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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CURA MILAGROSA / Michael Palmer
CURA MILAGROSA / Michael Palmer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CURA MILAGROSA

 

Foi necessário utilizar toda a sua força, mas Sylvia Vitorelli conseguiu enfiar uma terceira almofada sob as costas. Estava quase sentada na cama. Continuava a sentir-se um pouco tonta e apetecia-lhe respirar ar puro. "É por causa da humidade e do bolor", disse para si própria. Se estivesse no seu apartamento em Boston em vez de na quinta do filho, na zona rural do estado de Nova yorque, aquilo não lhe aconteceria. Não que em Boston não sofresse de problemas respiratórios. Na verdade, havia meses que tinha os tornozelos e os dedos inchados e, ao longo das últimas semanas, sentira cada vez maior dificuldade em respirar, especialmente quando estava deitada.

Sylvia praguejou baixinho. Fora um erro ter concordado em fazer a viagem até Fulbrook. Devia ter dito a Ricky que não estava em condições. Mas ela quisera ir. O fantasma do marido, Ângelo, tornara a vida no apartamento que ambos haviam partilhado muito triste. E o pó e o barulho das obras no principal túnel rodoviário de Boston tornara a vida naquela parte de North End bastante desagradável. Para além disso, a nora, que sempre agira como se as suas visitas fossem um grande transtorno, telefonara a convidá-la para passar quase duas semanas longe da cidade. "Os miúdos estão sempre a perguntar por ti, mãe", dissera ela. "E o Outono aqui é muito bonito."

Sylvia viu as horas. Ricky, Stacey e as crianças deviam ficar na igreja durante mais meia hora e depois iam passar por casa de uns amigos. Ela pedira para não os acompanhar, invocando uma dor de cabeça. A verdade é que achava que nem sequer seria capaz de se vestir. Devia tentar levantar-se, preparar qualquer coisa para comer, assistir à missa pela televisão, mas quando tentou mexer-se teve um violento ataque de tosse, acompanhado por um horrível som, como se tivesse líquido no peito.

Entrou em pânico pela primeira vez. O gorgolejar horrível nos pulmões continuava. Tentou respirar, a custo. Na testa formou-se uma película de suor que lhe fez arder os olhos. A sua mala encontrava-se na mesa-de-cabeceira. Remexeu o conteúdo à procura dos comprimidos, sem saber bem o que faria quando os encontrasse. Os seus dedos, que ultimamente tinham estado quase sempre inchados, pareciam agora salsichas rígidas, obscenas, azuladas.

O ar no quarto poeirento era pesado e espesso. Um diurético talvez ajudasse. Nitroglicerina também. Desesperada, esvaziou a mala sobre a cama. Junto aos vários frascos de comprimidos encontrava-se um cartão da clínica do Instituto do Coração de Boston. Gotas de suor pingaram do seu rosto para a tinta. A próxima consulta era do dia seguinte a uma semana. Para poder ir de avião passar onze dias em casa de Ricky tivera de faltar a um tratamento com o Vasclear - o primeiro a que faltava em quase um ano. Mas isso não podia ser a causa da dificuldade respiratória que sentia naquele momento. Ia aos tratamentos apenas de quinze em quinze dias e em breve passaria a ir apenas a um por mês. Além disso, o seu cardiologista dissera-lhe ao telefone que não havia problema em fazer a viagem.

"Oh!, meu Deus", pensou, engolindo à pressa um comprimido de cada um dos frascos. "Oh!, meu Deus, o que é que me está a acontecer?" De repente, lembrou-se que a nitroglicerina, que não tomava desde que começara a fazer os tratamentos com o Vasclear, devia ser dissolvida debaixo da língua e não engolida. Tentou colocar aí um comprimido, mas as mãos tremiam tanto que os comprimidos caíram para cima da cama e para o chão.

O anelar da mão esquerda começou a latejar. A aliança, que usava havia mais de cinquenta anos, encontrava-se completamente enterrada na carne. O próprio dedo estava bastante inchado e roxo-escuro, quase preto. "Por favor, meu Deus, ajuda-me... ajuda-me!"

A desfalecer, tentou encher de ar o peito gorgolejante. Começou a sentir espalhar-se uma dor desagradável a partir do esterno em direcção ao pescoço - era uma angina, igual à que tivera antes de começar os tratamentos. Tinha de ligar a Ricky. Ou seria melhor chamar o 112? Precisava de fazer qualquer coisa! A camisa de dormir estava empapada em suor. Respirava e tossia ao mesmo tempo, tentando bombear um pouco de ar para os pulmões. Não havia telefone no quarto de hóspedes.

A custo, arrastou-se para fora da cama e cambaleou até à escrivaninha. Os pés pareciam sacos de água, os dedos pouco mais do que nós, devido ao inchaço. Outro ataque de tosse roubou-lhe o pouco fôlego que ainda lhe restava. Apoiou-se à quina da escrivaninha, mal conseguindo manter-se direita. Transpirava abundantemente. Conseguiu levantar a cabeça o suficiente para ver que o espelho estava salpicado de sangue. No meio dos borrifos vermelhos sobressaía o seu rosto branco. Estava com um aspecto horrível. Tinha o cabelo encharcado em suor, o sangue cobria-lhe os lábios e o queixo.

Tomada por um medo até ali desconhecido, Sylvia virou costas ao seu próprio reflexo, vacilou e caiu pesadamente no chão. Ouviu e sentiu algo a bater no osso da anca esquerda e uma dor súbita e lancinante irrompeu daí. Quase desmaiou, e depois foi perdendo gradualmente os sentidos. As dores na anca e no peito começaram a desaparecer. "Ricky... Barbara... Maria... Johnny... " Um a um, os rostos dos filhos surgiram na sua mente. O último que viu foi o de Ângelo. Ele sorria... chamando-a.

 

Dois ANOS DEPOIS

 

               THE BOSTON GLOBE

 

Droga da Selva Promete Acabar com Doenças Cardíacas

 

Os investigadores da Newbury Pharmaceuticals, com sede em Boston, declararam que poderá haver um novo tratamento para as doenças cardíacas, a principal causa de morte nos Estados Unidos."

 

- Não podes jogar o sete de copas, Brian, eu bisquei o oito de copas há três jogadas.

 

-Aposto que tens oitos!

 

- Okay... apostaste mal. Rami.

 

Brian Holbrook viu o pai fazer mais dezanove pontos e levantar as cartas da mesa com perícia. As mãos, que outrora tinham sido suficientemente fortes para esmagar nozes, estavam manchadas devido a sessenta e três anos passados ao sol e ossudas por causa de quase uma década de enfermidade. Mas continuavam a saber mexer nas cartas.

 

Jack Holbrook - Black) Jack Holbrook para muitos desde que Brian se lembrava - não era um jogador profissional, mas adorava apostar. Fazia-o em relação à Supertaça ou a se o próximo carro a dobrar a esquina seria de fabrico estrangeiro ou nacional. Dois dólares, dez, cem - isso realmente não interessava, o jogo é que era importante. Jack sempre fora - e continuava a ser - o homem mais competitivo que Brian conhecera.

 

Disfarçadamente, para que o pai não visse, Brian olhou para o relógio. Três horas. Estavam a jogar havia quase duas. A um penny por ponto, continuavam a somar pontos até um deles, invariavelmente Jack, chegar aos dez mil. Brian já perdera setenta dólares.

 

- Que tal pararmos com isto e vermos o jogo de futebol na televisão? - sugeriu.

 

- Que tal irmos a Boston, jantarmos cedo e vermos o novo filme do Van Damme?

 

Tenho de estar na discoteca às nove.

 

Há tempo de sobra. Não me lembro quando foi a última vez que passámos um dia juntos, como hoje.

 

Jack tinha razão. Com dois empregos e as visitas semanais das filhas, Brian andava normalmente de um lado para o outro ou estava em casa a dormir, de barriga para baixo. A discoteca era a Aphrodite, passava música rock e ficava em Lansdowne Street, em frente a Fenway Park. Brian era porteiro. Com um metro e oitenta e sete e noventa e sete quilos, adaptava-se bem ao papel, embora aos trinta e oito anos já fosse um bocado velhadas para o trabalho. Depois, claro, havia a questão das suas habilitações: uma licenciatura em Medicina, com especialidade em medicina interna e cardiologia, faziam dele uma raridade entre os porteiros. Mas, sem a licença da Comissão de Registo e Disciplina em Medicina, o diploma servia-lhe apenas para forrar o caixote do lixo.

 

Raramente dispunha de uma tarde de domingo livre como aquela. Becky e Caitlin tinham ido passar o fim-de-semana a casa dos pais de Phoebe, pelo que a visita semanal fora adiada para terça, e, por qualquer estranha razão, o seu chefe na Speedy Rent-A-Car não reparara que se esquecera mais uma vez de o escalonar para trabalhar ao domingo. Há muitos anos na Speedy, Darryl adorava mandar nos outros - especialmente nos jovens acabados de sair do liceu que utilizavam a agência como entrada no mercado de trabalho. Só muito depois de Brian lá trabalhar é que Darryl descobrira que ele era formado em Medicina, mas desde essa altura fizera o possível para compensar o tempo perdido.

 

Porteiro, empregado numa agência de aluguer de automóveis, visitas controladas das filhas, viver com o pai... Brian sabia que ao fim de dezoito meses de trabalho árduo - psicólogos, reuniões dos Narcóticos Anónimos e horas intermináveis com o seu orientador, Freeman Sharpe, um homem encarregado da manutenção de alguns prédios que abandonara havia vinte anos o vício da heroína - os seus demónios interiores estavam sob controlo. Porém, a sua vida social continuava a deixar muito a desejar.

 

O trabalho de sábado à noite na Aphrodite terminara depois das três, por isso só se levantou às dez da manhã. Tencionara ir correr e talvez juntar-se a alguns miúdos no parque para um jogo de futebol. Os rapazes adoravam tê-lo na equipa, especialmente quando mandava um deles para a frente e lhe atirava uma bola a cinquenta ou sessenta metros. Mas uma olhadela a Jack fê-lo mudar de opinião. O homem que fora treinador de futebol de Brian desde a primária até ao liceu e depois na faculdade encontrava-se embrulhado num cobertor no seu cadeirão preferido, onde passara a maior parte da noite. Na mesa ao lado havia vários medicamentos para o coração e alguns analgésicos. Parecia abatido e tinha a barba por fazer.

 

Tens planos para hoje, treinador? - perguntou Brian.

- Sim. O sultão do Brunei deve passar por cá com o seu harém. Mas eu disse-lhe que só queria três.

 

- E que tal eu fazer-te o pequeno-almoço?

 

O cabelo grisalho curto de Jack, as suas feições marcadas e o bronzeado faziam-no parecer mais jovem e mais saudável do que na realidade era. Algumas zonas do seu bypass coronário deviam estar a ficar obstruídas. Brian pegou no pequeno frasco de comprimidos de nitroglicerina e espreitou lá para dentro. Mais de metade já desaparecera.

 

- Quantos destes tomaste ontem à noite? - perguntou. Jack arrancou-lhe o frasco das mãos e enfiou-o no bolso. -Para dizer a verdade, não me lembro de ter tomado nenhum.

 

-Vá lá, Jack...

 

- Olha, eu estou bem. Trata da tua vida, que eu trato da minha.

 

- Tu és a minha vida, Jack. Eu sou teu filho e sou cardiologista, lembras-te?

 

-Não. És segurança numa discoteca. Isso e vendedor de carros.

 

Brian esteve quase a responder-lhe, mas depois controlou-se. Jack devia ter dormido ainda menos do que ele.

 

- Tens razão, treinador - respondeu Brian, bocejando.

 

Quando voltar a ser cardiologista posso dar-te alguns conselhos, mas não antes disso. Vou fazer-te uma torrada.

 

A sala do apartamento de rés-do-chão que Jack comprara havia dez anos, desde que tivera o ataque cardíaco, não possuía, tal como o resto da casa, o mínimo toque feminino. Havia fotografias de desporto nas paredes e troféus um pouco por todo o lado. A maioria tinha o nome de Brian. Eram os despojos de um homem que precisava de objectos brilhantes e de diplomas plastificados para aumentar a sua auto-estima. Quando se mudara para ali, não fora fácil ver-se rodeado por todos aqueles troféus, mas Freeman Sharpe ajudara-o a lidar com isso. "Lembra-te, o teu pai ama-te e sempre quis mais para ti do que para si próprio. E se ele insistir contigo, aceita que tem o direito de o fazer, porque foi ele quem os pôs ali." E por fim, tal como muitas outras coisas que a princípio pareciam tão importantes, os troféus acabaram por só ter a importância que Brian lhes quis dar

 

Quando se dirigia para a pequena cozinha, olhou para uma das fotografias na parede junto à porta. Era a fotografia oficial da equipa da Faculdade de Medicina, tirada pouco antes do início do fatal penúltimo ano da faculdade. Número onze. Então, pela primeira vez desde há muito tempo, os seus olhos foram atraídos para um rosto no lado direito da última fila: o Dr. Linus King, o ortopedista da equipa. Brian já olhara muitas vezes para a fotografia - não fora ele que escolhera o local para a pendurar. Era curioso nunca ter reparado no homem até ali. Ao fim de inúmeras sessões de terapia e reuniões de recuperação, conseguira aceitar a responsabilidade do seu vício em relação aos analgésicos, mas, se havia alguém responsável por isso, esse alguém era King.

 

Brian reprimiu o súbito desejo de esmurrar a fotografia. Durante o ano seguinte ao tratamento do seu joelho, Linus King, uma divindade da medicina desportiva, estivera sempre demasiado ocupado para avaliar com cuidado o seu trabalho, para se sentar e ter uma conversa com o seu doente em relação à dor persistente na articulação. Em vez disso, pregara paciência e reabilitação e receitara-lhe centenas de analgésicos. Por fim, uma ressonância magnética detectara uma fractura que nunca havia sido diagnosticada, Gesso e três meses de repouso trataram a fractura, mas nessa altura já Brian recorrera a inúmeros médicos que preferiam passar-lhe uma receita a ter de o ouvir. O seu vício floresceu e foi aumentando ao longo dos anos até Brian infringir a lei e os seus próprios princípios ao passar a si mesmo uma receita.

 

- Jack, achas que estás em condições de ir à cidade? perguntou Brian.

 

-Não sei. Acho que sim. Estou farto de não sair do mesmo sítio, filho. E ter-te ganho ao rami não é a actividade mais exigente do mundo.

 

- Olha, vamos jogar às cartas. Se ganhares, vamos ver o filme do Van Damme e escolhes o restaurante.

 

-E se perder?

 

Brian percebeu que o pai adivinhara o que se seguia.

 

- Se perderes, vamos na mesma a Boston. Mas tens de me prometer que vais falar com o doutor Clarkin.

 

- Eu estou bem.

 

- Não estás nada bem. Já passaram seis anos desde a operação. O Clarkin pode dar uma olhadela a esses enxertos e fazer outros.

 

- Não quero voltar a ouvir falar no Clarkin nem na operação. Já te disse isso mil vezes. Não quero mais cateteres nem tubos!

 

Tal como acontecia muitas vezes, tudo o que podia correr mal no período pós-operatório de Jack correra mal: insuficiência cardíaca, infecção, novos enxertos, outra infecção. Um total de oito semanas horríveis no hospital, que, na era dos novos cuidados de saúde, indicavam o quanto estava doente. Durante muitas dessas semanas, chegara a implorar que o matassem. É verdade que "Black" Jack era mais teimoso do que a maioria dos doentes, mas como vira o que o pai sofrera durante todos esses cinquenta e seis dias, Brian não podia culpá-lo pela sua resistência em voltar à sala de operações.

 

- Está bem - disse Brian -, mas nunca te vi querer fugir de uma aposta amigável.

 

- Isso é por eu ter a reputação de pagar sempre as minhas dívidas. E sei que acabaria por não pagar esta. Olha, que tal isto: com os setenta dólares que me deves convidas-me para jantar e ir ao cinema.

 

- Combinado. - Brian virou a rainha de paus. - Ei, talvez a minha sorte esteja a mudar.

 

Jack cortou no três de ouros. Olhou para a carta durante alguns segundos.

 

- Talvez a minha também - disse.

 

Vestiu a sua camisola de malha preferida, uma camisola cor de laranja que a mãe de Brian lhe dera antes de morrer, havia quase treze anos.

 

-Não vais ter frio se eu descer a capota? - perguntou Brian.

 

- Claro que não. Hum... filho, tenho de desabafar uma coisa antes de sairmos.

 

- Força.

 

- Eu... eu abusei quando disse esta manhã que não eras cardiologista.

 

-Não te preocupes com isso. Além do mais, não costumo ligar ao que dizes. Porquê começar agora?

 

- Sinto-me frustrado, só isso. E não percebo como pudeste deixar que isto acontecesse.

 

- Eu sei, pai. Às vezes temos de chegar ao fundo antes de perceber como devemos saborear a vida.

 

- Tenho a certeza de que vai aparecer qualquer coisa. Brian desviou o olhar.

 

- Eu também - replicou.

 

Na verdade, tinha quase a certeza de que não iria aparecer coisa alguma. A Comissão de Registo e Disciplina em Medicina decidira havia seis meses que ele estava a recuperar bem e que poderia voltar a exercer, mas nos casos de droga e álcool costumavam insistir para que o médico arranjasse trabalho, fosse atentamente vigiado e fizesse análises surpresa antes de lhe passarem a licença de trabalho. Sem trabalho não havia licença. Era a lei imutável da comissão. Brian argumentara que em Boston, com três faculdades de Medicina e vários hospitais com estagiários, havia mais cardiologistas do que os necessários. Porque haveria alguém de arriscar-se a dar trabalho a um médico sem licença?

 

Duas filhas e o estado de saúde precário de Jack tinham tornado impossível a sua saída de Massachusetts, por isso Brian fazia o que podia, respondendo a anúncios nas revistas de cardiologia e no New England Journal of Medicine e enviando pelo menos duas dezenas de currículos. Continuara a insistir até receber respostas negativas mais do que suficientes e ver colegas que julgara seus amigos virarem-lhe as costas. -Até chegara a pôr um anúncio:

 

"Antigo cardiologista-chefe e director de sala de pequena cirurgia num hospital de Boston procura trabalho na zona este de Massachusetts, Rliode Island, sul de New Hainpshire."

 

Sem trabalho, não havia licença. Sem licença, não havia trabalho. Era fatal como o destino.

 

Durante o último mês deixara de tentar. Recuara e começara a pensar noutros possíveis rumos que a sua vida podia tomar. O processo não fora fácil, mas valera a pena. Durante aqueles meses frustrantes de rejeição e desilusão muito raramente pensara em beber e em engolir comprimidos.

 

-Estás pronto, pai?

 

-Vai baixar a capota, eu já te apanho.

 

Jack Rollbrook dirigiu-se devagar à casa de banho. Quando ouviu a porta da rua abrir e fechar, encostou-se à parede, tentando recuperar o fôlego quando uma dor se alastrou até ao pescoço a partir do esterno. Tirou a custo o frasco de comprimidos de nitroglicerina do bolso e dissolveu um debaixo da língua. Trinta segundos depois, a dor começou a abrandar. Limpou o suor do lábio superior e inspirou profundamente.

 

- Jack, está tudo bem? - perguntou Brian dos degraus em frente à porta.

 

- Sim, filho, está tudo bem.

 

O Towne Deli era um restaurante da moda em Boston com um óptimo bufete de saladas e sandes a nove dólares. Brian deixou o pai à porta e passou dez minutos à procura de lugar para estacionar. A casa de Jack ficava em Reading, um subúrbio de classe média junto à Estrada 128, a noroeste da cidade. Entrar em Boston ao pôr do Sol era muito agradável ao domingo, mas um pesadelo de manhã durante a semana. E o Le Baron vermelho de Brian, com três anos, a coisa melhor com que ele ficara depois do divórcio, era o carro ideal para um dia daqueles.

 

Durante o trajecto, Brian percebeu que Jack tentava tirar nabos da púcara. Havia perspectivas de emprego? Notícias da comissão? Alguma mulher interessante? Mas talvez por causa do agradável calor e da paz que se estabelecera entre os dois, o pai guardou para si os seus pensamentos. Brian também evitou tocar no tema difícil da saúde do pai. Assim, alternaram entre o desporto e o silêncio.

 

Brian entrou no Towne Deli e viu o pai numa pequena mesa, ao canto. Ficou durante alguns segundos à porta, a observar o que restava do homem que tanto dominara as primeiras duas décadas da sua vida. Quase desde o dia em que Brian dera o primeiro passo, o treinador estivera sempre lá, a vigiar a sua alimentação, a sua vida social, os seus treinos, criando quem ele julgava poder vir a ser um dos melhores quarterback. E se não tivesse sido um jogo fatal podia ter conseguido.

 

Jack estava sentado, imóvel, a olhar para a ementa. De súbito, de forma quase inconsciente, começou a esfregar o peito e o pescoço. Brian apressou-se a dirigir-se para junto dele. Sob o bronzeado, Jack estava branco como a cal. Os seus olhos pareciam vidrados.

 

- Jack, o que se passa? Estás com dores? Jack Holbrook inspirou pelo nariz e assentiu.

- Sim - respondeu, a custo.

 

Brian verificou a pulsação das carótidas no pescoço do pai. Era regular, mas com falhas. Na sua testa formara-se uma película de suor.

 

- Meu Deus... - sussurrou Brian. - Jack, trouxeste a nitroglicerina?

 

Jack tirou o frasco do bolso da camisa.

 

- Não devíamos ter vindo a Boston - disse, com voz áspera.

 

- Que disparate! - retorquiu Brian, sentindo a calma estranha, paradoxal, que, havia muitos anos, fora a sua reacção habitual a uma crise médica. - Não teria feito qualquer diferença. Vá lá, pai. Vou sentar-te ali no chão e dar-te um desses comprimidos. Ainda tens aquela aspirina que meti na tua carteira?

 

óptimo. Deixa-me tirá-la.

 

Ou Jack estava a ter uma angina de peito - não afluía sangue suficiente a uma parte do seu coração - ou uma trombose coronária: um enfarte do miocárdio, no qual essa parte do coração não estava a receber sangue. Se o problema fosse uma artéria obstruída por um coágulo, a aspirina poderia ajudar a dissolver a obstrução antes de haver danos irreversíveis.

 

- Há algum problema?

 

Brian levantou a cabeça e viu o gerente do restaurante, um homem quase calvo. "Claro que não, nos restaurantes costumo sempre sentar o meu pai no chão!", apeteceu-lhe replicar. Porém, conteve-se.

 

- É um doente cardíaco e está com dores no peito - disse Brian secamente.

 

- Quer... quer que chame uma ambulância? Que pergunte se há aqui algum médico?

 

- Eu sou médico - respondeu Brian pela primeira vez em dezoito meses. - E acho excelente a ideia da ambulância. Interiormente, Brian admoestou-se por ter cedido à ida a

 

Boston. O médico de família de Jack, o seu cardiologista, o seu cirurgião e o seu processo encontravam-se no Hospital Suburbano, na outra extremidade da Estrada 128. Era um excelente hospital, conhecido pelos seus ortopedistas, pela medicina de reabilitação e, em alguns círculos, por um antigo chefe de cardiologia chamado Brian Holbrook.

 

Brian verificou outra vez o pulso de Jack e limpou-lhe a testa.

 

-Que tal essa dor, Jack? Numa escala de um a dez.

 

- Seis. A nitroglicerina está a ajudar. Qual é a probabilidade de eu estar a ter uma trombose coronária?

 

- Há cinquenta por cento de probabilidades. -Isso é mau...

 

- Aguenta-te. Na ambulância vão dar-te um pouco de oxigénio e um analgésico e vais sentir-te melhor.

 

- Aposto dez dólares em como o enfermeiro da ambulância é uma mulher. Combinado?

 

- Combinado. Mantém-te calmo. Queres deitar-te? -Não consigo.

 

Ao longe ouviram a sirene, que se aproximava. Brian continuou a verificar o pulso de Jack. A transpiração, tão comum num ataque cardíaco, parecia menos intensa.

 

-Está tudo bem, pai. E a dor?

- Dez.

 

-A dor subiu para dez?

 

- Não, deves-me dez dólares.

 

Jack indicou a porta com a cabeça, onde uma jovem morena com uma bata azul segurava uma ponta da maca. Brian apresentou o pai, contou o que acontecera e a medicação que lhe dera.

 

- O senhor é médico? - perguntou imediatamente a mulher.

 

- Cardiologista. Brian Holbrook.

 

- Bom, nós não somos orgulhosos, doutor Holbrook - retorquiu ela, parecendo fazer uma dezena de coisas ao mesmo tempo, mas fazendo-as bem. - Se vir que deixamos escapar alguma coisa, diga.

 

- Obrigado. O Jack é doente do Hospital Suburbano. -Bem, daqui a alguns minutos passará a ser doente do White Memorial. Algum problema?

 

O White Memorial não era só o melhor hospital da cidade, como também sede do Instituto do Coração, um dos mais avançados do país. Brian reviu mentalmente a entrevista a que fora, e que arruinara por completo, quando concorrera a um estágio nessa instituição. A sua subsequente rejeição não fora surpresa. "Tendo em conta tudo o que lhe acontecera desde essa altura", pensou, "parecia que o entrevistador acertara no juizo que fizera dele."

 

Brian reparou que Jack parecia melhorar com a injecção de morfina e um pouco de oxigénio.

 

- Por acaso, era mesmo para lá que eu ia pedir que o levassem.

 

Brian meteu-se na ambulância para acompanhar Jack na curta viagem entre Back Bay e o White Memorial. A dor do pai baixara para dois ou três numa escala de dez quando haviam saído do Towne Deli. Mesmo assim, durante o trajecto Brian não tirou os olhos do monitor. A ausência de pulsações erráticas era um bom sinal, mas o padrão do electrocardiograma sugeria uma trombose coronária.

 

O cardiologista de Jack no Hospital Suburbano era Gary Gold, um dos antigos colegas de Brian - o único dos quatro colegas que acreditara que Brian estava a recuperar de uma doença e devia ser readmitido nas suas funções logo que estivesse melhor. Em silêncio, Brian admoestou-se por não ter insistido para que Gary fosse mais agressivo com Jack e o tivesse obrigado a repetir o cateterismo. Mas, por outro lado, com a recusa categórica de Jack em relação a uma nova operação, que mais poderia ter feito?

 

O White Memorial era um conjunto de mais de dez edifícios, que ocupava quatro quarteirões ao longo do rio Charles. Tal como a maioria dos hospitais, estava sempre em obras. Os buldózeres e as máquinas faziam parte do cenário da mesma forma que as ambulâncias e duas gruas elevavam-se acima de quase todo o complexo, menos do edifício mais alto. "Um novo centro ambulatório", indicava um cartaz. "O futuro lar do Centro de Investigação Hellman, com vinte andares", anunciava outro. Tal como os doentes no seu interior, o próprio hospital era um ciclo constante de doenças e de curas, agravamento e, melhoria, morte e nascimento.

 

Na grande sala das Urgências reinava uma balbúrdia ruidosa, mas controlada. As duas enfermeiras que faziam a triagem encontravam-se ao fundo e a sala de espera estava cheia. Brian abarcou a cena quando levaram Jack para uma cama com monitores, ao fundo. O drama e a energia do local eram bem palpáveis - eram o seu elemento. Entrar nas Urgências deu-lhe a sensação de ter estado a respirar oxigénio debaixo de água e de emergir de repente. Antecipara uma maior comoção ao reentrar naquele mundo, mas mesmo assim não deixou de ficar admirado com a euforia que o invadiu e por sentir os olhos rasos de água. Ainda não há muito tempo fizera parte daquele universo, e haviam sido as suas próprias acções que o tinham afastado. Naquele momento, não sabia quando nem "se" voltaria a fazer parte dele.

 

- Como é que vai isso, Jack? - perguntou Brian, pegando na mão do pai enquanto esperavam que o lençol da cama do quarto seis fosse mudado.

 

- Já estive melhor. Mas a dor passou. - óptimo.

 

-Aposto contigo dois dólares em como não me vão dar jantar.

 

Brian olhou para o monitor. A elevação no segmento ST do electrocardiograma era menos notória, o que era um bom presságio.

 

- Se aqui servirem a típica comida de hospital - retorquiu -, ganhas a dobrar.

 

Ajudou a equipa a transferir Jack para a cama; depois afastou-se para o lado quando um médico chamado Ethan Prince começou o seu exame. Contrariado, Brian teve de elogiar interiormente a rapidez e a minúcia do médico. Depois lembrou-se da sua situação. O Suburbano era um hospital razoável, mas nenhum dos seus médicos voltaria a ser chamado para uma segunda entrevista no White Memorial. Se os alunos de Medicina ficassem abaixo dos primeiros dez melhores, escusavam de se dar sequer ao trabalho de concorrer para lá.

 

- Conheces aqui alguém? - perguntou Jack a Brian. O médico, que o auscultava, mandou-o calar.

 

"Espero que não", pensou Brian. -Acho que não - murmurou.

 

Nesse momento, como se tivesse sido combinado, ouviu alguém chamá-lo e olhou para a porta. Ali, com as mãos nas ancas, encontrava-se Sherry Gordon, pouco mais velha do que Brian, mas com um ar muito mais cansado. Era uma das melhores enfermeiras com que Jack já trabalhara.

 

- Então, menina do Suburbano - disse ele, atravessando o quarto e aceitando um abraço caloroso e um beijo na cara que está aqui a fazer?

 

- A nata vem sempre ao de cima. Concorri para cá há vários anos, mas as vagas não surgem com muita frequência.

- Está a gostar?

 

Ela olhou sugestivamente a confusão reinante e sorriu.

- O que é que acha? - Observou-o atentamente. - E você? Está bem?

 

Brian susteve o olhar dela.

 

- Estive três meses em recuperação - respondeu baixinho, de forma que só ela ouvisse - e fui a centenas de reuniões dos Alcoólicos Anónimos e dos Narcóticos Anónimos, mas sim, estou bem.

 

-Folgo bastante em ouvir isso, Brian. Bastante, mesmo. Aquele é o seu pai, não é? Lembro-me do que ele sofreu no Suburbano.

 

- Sim, há seis anos. Teve um enfarte do miocárdio quatro anos antes disso, depois a angina de peito foi piorando até se tornar insuportável e teve de ser operado. Tem razão, sofreu bastante. E, para piorar ainda mais, o bypass nem sequer o ajudou muito. Provavelmente acabou de ter um ligeiro enfarte.

 

- Bem, está a ser tratado por um excelente médico. Faz-me lembrar você aqui há uns anos.

 

- Quem dera!...

 

- Diga-lhe que pense na possibilidade de dar Vasclear ao seu pai. Aqui toda a gente anda a falar disso. Olhe, tenho de voltar para junto do doutor Gianatasio. Tem uma doente muito mal ao fundo do corredor.

 

- O Phil Gianatasio?

- Exacto. Conhece-o?

 

- Há muitos anos; fomos internos ao mesmo tempo e depois residentes. Não fazia ideia de que ele estava em Boston. Estou a reencontrar muita gente. Por favor, diga-lhe que estou aqui, Sherry. Eu passo por lá quando tiver a certeza de que o meu pai estabilizou. Pode ser?

 

-Não vejo porque não. Tenho de ir. Boa sorte para o seu pai!

 

Vasclear. Brian sabia pouco sobre o medicamento, e o que sabia fora pelos jornais. Não estava tão ao corrente dos novos medicamentos como quando ia a seminários duas vezes por semana e lia uma dezena de revistas científicas, mas mantivera-se mais ou menos a par e sabia que pouco tinha sido divulgado sobre o Vasclear, o último dos muitos medicamentos experimentais que se destinavam a reduzir a arteriosclerose.

 

Ethan Prince tirou o estetoscópio, voltou a olhar para o electrocardiograma de Jack e entregou-o a Brian. Este aceitou-o, tentando esconder do outro médico a sua ansiedade e gratidão. Ainda havia uma elevação constante de dois milímetros no segmento ST.

 

-Parece uma ferida anterior persistente - disse Brian. -Concordo. Vou tratar da admissão dele. Entretanto, temos de decidir se vamos tentar desfazer o bloqueio. Antes, porém, vou arranjar-lhe um cardiologista. Devia ser o doutor Gianatasio, mas ele tem uma doente muito grave no quatro. Vou ver quem é o outro cardiologista de serviço. - Virou-se para Jack, que já estava com melhor cor: - Bem, Mister Holbrook, parece que isso está um pouco entupido e o seu coração não recebe sangue suficiente.

 

-Um ataque cardíaco - replicou Jack. - Não faz mal. Pode dizer.

 

- Por acaso, só depois de algumas análises ao sangue e de outro electrocardiograma é que, saberemos ao certo. -Aposto dois dólares em como é.

 

- Desculpe?

 

- Não lhe ligue - interveio Brian, voltando a pegar na mão de Jack. - Ele jogou futebol na escola... foi atacante e defesa. Levou demasiados pontapés no capacete!...

 

- Estou a ver... Bom, é melhor ir andando. Tenho de descobrir quem é o outro cardiologista de serviço e de ir ajudar o doutor Gianatasio.

 

Só mais uma coisa. A Sherry Gordon falou-me no Vasclear.

 

O médico encolheu os ombros.

 

- Se calhar o senhor sabe tanto a respeito disso como eu. É um medicamento desenvolvido aqui pelo Instituto do Coração. Diz-se que está a ter bons resultados.

 

- Obrigado.

 

- Anestesista... - anunciou o altifalante -, anestesista para o desfibrilhador nas Urgências...

 

- Aquela mulher no quatro deve estar a apagar-se. Calculo que estejam a chamar o anestesista para poderem entubá-la.

 

Ethan Prince afastou-se a correr, deixando a enfermeira a cuidar de Jack. Brian transferiu o peso de um pé para o outro, pouco à vontade, sentindo-se impotente e atrapalhado. Ao fundo do corredor um doente cardíaco estava com problemas graves. Brian era outro par de mãos habilitadas, outro cardiologista com quem Phil Gianatasio poderia trocar impressões. No entanto, impotente para ajudar fosse quem fosse, Brian sentia-se como se fosse um aluno de liceu.

 

- Doutor Holbrook?

 

A enfermeira morena atarracada que se encontrava junto à entrada tinha um porte autoritário. A sua expressão era carrancuda.

 

-Sim?

- Doutor Holbrook, sou Carol Benoit, a enfermeira-chefe. Desculpe interrompê-lo, mas o doutor Prince disse-me que a situação do seu pai tinha estabilizado. Posso falar consigo? -Com certeza.

 

- Doutor Holbrook, temos uma doente em estado bastante grave no quarto número quatro. O doutor Gianatasio pergunta se se importa de lá ir.

 

Brian sentiu imediatamente a adrenalina a fluir.

 

- Com todo o gosto - respondeu, talvez demasiado ansioso. Olhou para Jack, que estava a descansar de olhos fechados. Respirava sem dificuldade e o monitor indicava que o seu coração batia com regularidade. Não fazia mal deixá-lo sozinho alguns minutos. Brian avançou para a porta, mas a enfermeira continuou a tapar-lhe o caminho. Fez-lhe sinal para que se chegasse a um canto, longe dos ouvidos de Jack e dos outros funcionários.

 

- Antes de lá ir - murmurou ela com seriedade -, quero que saiba que insisti com a Sherry Gordon. para que me dissesse quem o senhor era e em que hospital trabalhava. Ela afirmou que o senhor tinha perdido a licença.

 

-E então?

 

- E quando insisti que me desse uma explicação, ela deu-ma.

 

A reacção de Brian para com a mulher passara a ser de desconfiança. Encheu o peito de ar, parecendo crescer alguns centímetros.

 

- Por favor, vá directa ao assunto.

 

- Não quero que uma pessoa sem licença exerça medicina nas minhas urgências.

 

- Francamente, não vejo como é que partilhar a minha experiência e a minha opinião seja exercer medicina.

 

O olhar de Carol Benoit era duro. -Eu vou ficar a assistir.

 

Brian voltou a entrar no quarto para dizer a Jack que estaria perto e que voltaria dentro de pouco tempo. Depois massajou o pescoço tenso e dirigiu-se ao quarto número quatro.

 

Haviam passado mais de dez anos desde que Brian e Phil Gianatasio tinham estagiado no Centro Médico Eastem Mass. Durante aqueles dois anos haviam trabalhado bem em equipa. Phil parecia não se importar com o êxito e a autoconfiança de Brian, e este gostava do facto de Phil, mais calmo e meticuloso do que brilhante, trabalhar sempre dentro das suas limitações e nunca ter relutância em pedir ajuda. Depois de ter sido médico residente, Brian ganhara uma bolsa para um dos melhores hospitais de Chicago e Phil transigira alistando-se no serviço militar, pensava Brian. A princípio tinham trocado correspondência e feito telefonemas, mas gradualmente a relação fora enfraquecendo e acabaram por deixar de ter qualquer contacto.

 

Phil cumprimentou-o do outro lado da cama. Sempre tivera peso a mais, mas, desde o tempo em que haviam sido residentes, devia ter engordado cerca de dez quilos. O seu cabelo escuro rareava em cima e Phil usava-o mais comprido atrás do que Brian se recordava. Uma coisa que não mudara, porém, era a ternura e bondade do seu olhar. Contudo, naquele momento Phil parecia preocupado. Não era difícil perceber porquê.

 

Na cama, inconsciente, encontrava-se uma mulher com cabelo ruivo já a ficar grisalho que devia rondar os setenta anos. Mal respirava e a palidez em redor dos olhos e da boca contrastava fortemente com o rubor do resto da cara. No quarto estavam também o Dr. Ethan. Prince, Sherry e outra enfermeira, a anestesista e, a um canto, um homem de idade com o fato amarrotado e o estetoscópio a sair-lhe do bolso do casaco. "Deve ser o médico da mulher, pensou Brian. Era apenas uma impressão, mas o homem parecia muito pouco à vontade perante uma crise daquelas. Junto à porta, mais observadora do que participante, encontrava-se Carol Benoit.

 

"Leitura do monitor.. ritmo cardíaco... pulso... aspecto... cor das unhas... " Quando Brian chegara ao pé da cama a sua mente já processara centenas de informações. Inspirou com força. A magia duraria apenas alguns minutos, mas isso não importava.

 

- Brian, bons olhos te vejam! - exclamou Phil. - Pareces um daqueles deuses numa tragédia grega que saltam para o palco quando são precisos.

 

- Ei, cuidado, já deixei de fazer o papel de Deus. Isso só me trouxe problemas. O que se passa aqui?

 

- Bem, Mistress Violet Corcoran tem sessenta e oito anos e é doente do doutor Dixon. Aquele ali é o Fred Dixon. Fred, Brian Holbrook. - Brian e o outro médico acenaram com a cabeça. - Tanto quanto o Fred sabe, ela nunca esteve doente.

 

Qualquer coisa no tom de Phil sugeria que o simples facto de ter Dixon como médico trazia certos riscos para a saúde, mas o homem fora ali ver como estava a sua doente num domingo à tarde e, na mente de Brian, isso contradizia, até certo ponto, a incompetência médica.

 

- O Fred estava a tratá-la de uma infecção das vias respiratórias superiores com eritromicina - continuou Phil. - Há algumas horas o marido ligou a dizer que ela não parecia muito bem. A temperatura é de quarenta graus Célsius. Pulso cento e quarenta. Tem uma pneumonia no lobo inferior esquerdo. A tensão arterial sistólica era cento e sessenta. Agora baixou para cem.

- Choque séptico?

 

- Provavelmente. Mas olha para isto.

 

Phil apontou para o ecrã do monitor cardíaco, que indicava o que Brian acreditava ser taquicardia ventricular. Aquele tipo de taquicardia era normalmente bastante instável e antecedia muitas vezes uma paragem cardíaca.

 

- Parece-me taquicardia ventricular - disse Brian.

 

- Estamos todos de acordo. Ela tem estado quase sempre assim desde que chegou. Primeiro duravam pouco tempo, agora são mais prolongados.

 

- Tratamento?

 

- Estamos a experimentar. Já lhe ministrámos xilocaína, Britélio e PronestyL E vamos dar-lhe uma injecção de digoxina. Até agora, nada disto a fez reagir.

 

- O coração está a bater demasiado depressa para poder ser acalmado.

 

- Exacto.

 

Brían estendeu a mão para o estetoscópio de Phil.

- Posso?

 

Carol Benoit já vira e ouvira o suficiente.

 

- Doutor Gianatasio - interveio -, lamento ter de recordar-lhe, mas o doutor Holbrook não está autorizado a tratar ou a tocar nos nossos doentes.

 

Durante alguns segundos ninguém se mexeu no quarto, não se ouviu nada, a não ser o silvo da botija de oxigénio. Depois Gianatasio tirou o estetoscópio do pescoço, contornou a cama e estendeu-o à enfermeira-chefe.

 

- Muito bem, Miss Benoit - disse ele sem rancor -, então é melhor a senhora examinar esta doente e dar-nos a sua valiosa opinião.

 

Benoit corou. Empurrou o estetoscópio na direcção de Phil e recuou.

 

- Como quiser - retorquiu. - Mas responsabilizo-o pelo que acontecer.

 

-Vou arriscar. Brian, se não te lembras de alguma coisa que ainda não tenhamos tentado, vou pedir à Sule que a entube e depois tentamos os choques.

 

Brian pegou no estetoscópio de Phil Gianatasio e aproximou-se da cama.

 

- Enquanto não descobrirmos por que motivo ela está assim e não resolvermos isso - disse -, acho que não serve de nada aplicar-lhe choques.

 

- Pode ser apenas uma grande infecção devida a uma doença cardíaca antiga.

 

- Talvez...

 

- Seja o que for, tens de ser rápido, Brian. Ela piorou outra vez.

 

Brian observou Violet Corcoran da cabeça aos pés. Havia nela qualquer coisa que lhe fazia lembrar um caso que vira durante o estágio. "Mas onde? O quê?" Apalpou-lhe o peito, a cabeça, sentiu a pulsação no cotovelo, no pulso, na virilha. Por fim, colocou o estetoscópio de Gianatasio e auscultou o coração da doente, o peito e o pescoço com o lado diafragmático. Depois repetiu o exame com o lado do fonendoscópio.

 

- Sule, comece a entubá-la - disse Phil. - Depois vamos tentar os choques. Raios, isto está a ficar descontrolado! Brian não reagiu. Estava completamente concentrado num som - um som que vinha do pescoço de Violet. E de repente lembrou-se. À sua esquerda, a anestesista enfiara um tubo endotraqueal na doente com tanta suavidade que Brian nem se apercebera de que ela o fizera.

 

-Vamos tentar já duzentos joules, depois passamos logo para trezentos e cinquenta - ordenou Phil.

 

- Espera! - exclamou Brian, apontando para o pescoço de Violet. - Phil, ouve isto.

 

Brian tinha quase a certeza de que o murmúrio bem audível era um sopro - o ruído de turbulência causado, naquele caso, pensava, pelo sangue a atravessar uma tiróide hiperactiva.

 

- O pulso está a baixar - disse Sherry Gordon. - Noventa.

 

Phil escutou durante alguns segundos.

 

- Eu ouvi isto quando a examinei pela primeira vez, mas pensei que era um som transmitido do coração.

 

-Eu não acho.

- Tiróide?

 

-Tenho quase a certeza. Só vi um caso assim na minha vida, mas este parece ser igual. Temperatura elevada, pulso errático, coma, taquicardia ventriCUlar.

 

Gianatasio voltou a ouvir o som.

 

- Pode ser - concordou, animado. - Raios, pode mesmo ser! Fred, esta senhora já teve hipertiroidismo?

 

Fred Dixon folheou os seus apontamentos.

- Oitenta - disse Sherry.

 

- Bem - respondeu Dixon com voz trémula -, há cerca de um ano houve uma altura em que o nível da tiróide esteve um bocado elevado. Mas as pessoas da idade dela costumam é ter tiróides hipoactivas, não hiperactivas, e, além disso, não acho que...

 

- Brian, o que fazemos a seguir? - interrompeu Phil.

- Chama um endocrinologista. Mas aconselho, entretanto, uma grande dose de esteróides, de propanolol, para bloquear o efeito da hormona no coração, e um bloqueador químico específico da produção hormonal da tiróide. O endocrinologista ou um livro podem dizer-nos o quê e quanto.

 

- Vamos a isso - respondeu Gianatasio. - Miss Benoit, veja quem é o endocrinologista de serviço e chame-o ou ponha-o ao telefone o mais depressa possível. Se for ao telefone, ele que fale com o doutor Holbrook. Depois vá à sala dos médicos e traga-me o livro Princípios de Medicina Interna, de Harrison, e o livro de endocrinologia mais grosso 'que conseguir encontrar. Se não vir nenhum com pelo menos cinco centímetros de lombada, vá à biblioteca. Agora vocês, ouçam. Estamos; a pisar terreno desconhecido...

 

-Nada de autógrafos, nada de autógrafos, por favor Lamento, mas hoje o doutor Holbrook não dá mais autógrafos.

 

Abrindo caminho através de uma multidão imaginária, Phil Gianatasio entrou de costas no quarto seis.

 

Brian, no quarto com Jack, observou-o, divertido, junto da cama.

 

- Se não parares com essa merda - disse -, ainda te autografo o rabo!

 

- Ah!, e que rabo ele se tornou! - exclamou Gianatasio, dando uma palmada no traseiro. - Parece de rinoceronte. De hipopótamo. Magnífico! Ora, podias autografar e escrever a tua autobiografia, e se calhar ainda tinhas espaço para um ou dois sonetos. Caramba, Holbrook, portaste-te lindamente! Lindamente! A pobre Violet não escapou a uma bala, escapou a um tiro de canhão!

 

- O que é que se passa? - perguntou Jack, despertando do torpor provocado pelo Valium.

 

Jack não escapara totalmente à sua bala, mas parecia que sofrera apenas um arranhão. As primeiras análises ao sangue confirmavam que, de facto, tivera um e do miocárdio, embora tudo indicasse que o ataque cardíaco fora ligeiro e não punha em risco a sua vida. No entanto, aos sessenta e três anos, e com a sua história clínica, talvez não vivesse muito mais tempo.

 

Embora Brian estivesse encantado por ter conseguido salvar a doente, decidiu não o revelar e deixou que Gianatasio fosse exuberante pelos dois. Fez sinal a Phil para se sentar

 

- O que se passa? - perguntou Jack de novo. Gianatasio sentou-se, agradecido.

 

- O que se passa é que este tipo apareceu vindo de nenhures, atravessou os defesas todos e, quando o jogo estava quase perdido, deu a volta ao resultado. É isso que se passa!

 

Brian virou-se para o pai.

 

- Pai, esta criança grande é o Phil Gianatasio. Provavelmente não te lembras, mas trabalhámos juntos como residentes na Idade Média.

 

- Claro que me lembro. O pai dele tinha um restaurante. A mulher era muito bonita e tinha o cabelo preto.

 

Jack pôs a mão fora da grade da cama e Phil apertou-a. -Tem uma memória espantosa - disse Phil. - O meu pai ainda tem o restaurante e a Joanne continua bonita e com o cabelo preto... mas já não é minha mulher.

 

- O Brian também se separou - retorquiu Jack, sem se esforçar por disfarçar o seu desânimo.

 

- Já não estás com a Phoebe? - perguntou Phil de sobrolho franzido.

 

- Separámo-nos há dois anos. Estamos oficialmente divorciados há pouco mais de um ano - disse Brian, sentindo a alegria começar a desvanecer-se. - Temos duas filhas.

 

- Não pareces muito contente. Brian encolheu os ombros.

 

- A separação não foi ideia minha, se é a isso que te referes. A Phoebe casou comigo à espera de uma vida idílica no campo, e acabou por me ver num centro de desintoxicação. Phil soltou uma gargalhada triste.

 

-A Joanne continua a ver-me no hospital e quase nunca estou em casa. Especialmente desde que vim trabalhar para aqui, há três anos.

 

- Filhos?

 

- Talvez para a próxima. Mister Holbrook, sabe o que o seu filho acabou de fazer? Durante os minutos em que o senhor passou pelas brasas, ele fez um diagnóstico extraordinário a partir do nada e salvou a vida a uma velhota.

 

- Que bom - comentou Jack, sem o mínimo entusiasmo. Virou-se e ficou de frente para a parede.

 

Phil olhou para Brian, que se limitou a abanar a cabeça. Não devia ter falado na desintoxicação. Jack era indiferente a bastantes coisas, mas não àquela.

 

Mais tarde - murmurou ele baixinho.

 

Phil aquiesceu. Era médico. Tinha pai. Conhecia a pressão das expectativas.

 

-Bem - continuou, Phil, Pigarreando -, como deves calcular, as notícias do quarto ao lado são boas. Muito boas. O endocrinologista está lá agora. Concordou inteiramente com o diagnóstico e com o tratamento. Já se começou a falar no caso pelo hospital. Eles aqui adoram essas coisas. E eu ali estava, com o problema à frente do nariz, e fui incapaz de o detectar.

 

- Estavas muito perto e, além disso, pressionado, pois tinhas de te preocupar em mantê-la viva.

 

Sempre foste muito bondoso. É a verdade.

 

Brian foi interrompido pelo ressonar monumental do pai.

- Tu eras assim quando estavas de banco - observou Gianatasio. - Não fazia ideia de que era um problema genético.

- Phil, fala-me do tal Vasclear.

 

O rosto de Gianatasio iluminou-se.

 

- É um milagre, Brian. O medicamento que a ciência criou mais parecido com o elixír da juventude.

 

-O que é?

 

-Parte fosfolípido, parte enzima. Foi originariamente recolhido da casca de uma árvore que um tal Art Weber encontrou na América do Sul. Já foi sintetizado pelos químicos da Newbury Pharmaceuticals, que fica no Sul da cidade. Brian, aquilo desentope as artérias!

 

-A sério?

 

-Os resultados dos ecocardiogramas antes e depois de os doentes tomarem o medicamento são espantosos!

 

-E quais são os efeitos secundários? Gianatasio abanou a cabeça.

 

- Sei que é difícil de acreditar, mas o Instituto do Coração está a fazer os testes da segunda fase e, até agora, não foram detectados quaisquer efeitos secundários.

 

Brian sentiu a pulsação aumentar. Parecia um oncologista que acabara de ouvir dizer que fora descoberta uma cura universal para o cancro sem os efeitos secundários da quimioterapia convencional. Apesar das ressonadelas de Jack, falou num murmúrio:

 

- Phil, como posso conseguir que dêem isso ao meu pai? -Não sei. Quem é o médico dele?

 

- Ainda não tem nenhum. O médico que o atendeu ia ligar ao outro cardiologista de serviço.

 

- Oh, não! O Bart Rutstein só aceita doentes particulares porque não arranja fundos para manter em funcionamento o laboratório onde replica genes e para dar de comer aos cinco filhos. Eu olho pelo teu pai, se quiseres. Mas tenho uma ideia melhor. A Carolyn Jessup é a directora clínica do programa Vasclear. Tem um consultório particular e muitos dos seus doentes foram submetidos aos testes. Podemos ver se ela aceita o teu pai como doente.

 

-A Carolyn Jessup! Tê-la como médica do meu pai em quaisquer circunstâncias seria óptimo! Assisti há alguns anos a um seminário que ela deu sobre cateterismos cardíacos. Foi o melhor do género a que fui.

 

Brian recordou a mulher alta, elegantemente vestida, com cerca de cinquenta anos, a andar de um lado para o outro no estrado com ar confiante diante de cento e cinquenta cardiologistas de todo o mundo. - era uma excelente professora e uma excelente médica, ainda por cima com a beleza de uma top model.

 

-Esse seminário tem muito boa reputação - concordou Phil. - A Jessup pode parecer um bocadinho intimidante, mas é, de facto, uma excelente médica. Quando vim para aqui, andavam à procura de um novo director para o instituto. Todos pensavam que seria ela. Continuo sem saber porque não a escolheram. Talvez a sua atitude, por vezes bastante arrogante, .ou o facto de ser mulher, ou, se calhar, por ter uma cor política diferente. Possui imensos trabalhos publicados.

 

- Foi o Ernest Pickard quem ficou com o cargo, não foi?

- Exacto.

 

- Também não é um desconhecido...

 

-Pois não. E por acaso até tem feito um excelente trabalho no instituto. A relação entre os dois continuou a ser óptima mesmo depois de ele ter tomado posse. E sabes tão bem como eu como são os boatos num hospital... Se um deles olhasse de lado para o outro, nem que fosse uma só vez, isso chegava logo aos ouvidos de toda a gente.

 

-Podes telefonar-lhe? - perguntou Brian.

 

-Posso e vou telefonar-lhe. Se ela cá não estiver logo à noite, está de certeza amanhã. De qualquer forma, devo dizer que, embora esteja prestes a ficar efectivo e ela saiba quem eu sou, continuo vários graus abaixo dela na escala académica.

 

- Ena, efectivo na melhor faculdade de Medicina do mundo e no Instituto do Coração de Boston! Isso é bestial, Phil! Estou muito orgulhoso de ti!

 

Por momentos, pairou um silêncio embaraçoso.

 

- Brian, eu não estava a querer gabar-me - acabou Phil por dizer. - Espero que saibas isso.

 

- Está descansado - retorquiu Brian -, claro que sei. Além disso, tive as minhas oportunidades e fiz as minhas opções, tal como tu. Talvez tivesse podido ser ajudado mais cedo, mas nunca pensei estar a fazer algo de errado ou, pelo menos, algo que não conseguisse controlar. Não quero que tu ou outra pessoa voltem a sentir-se melindrados ao pé de mim por causa do que aconteceu. Sempre vivi a vida de forma bastante intensa e rápida, como aqueles foguetões que têm de atingir uma determinada velocidade para escaparem à gravidade da Terra. Agora já percebi que tenho de aprender a ir mais devagar para poder conseguir alguma coisa. Ainda não sou muito bem sucedido, a minha velocidade mais baixa ainda é mais alta do que a velocidade mais alta das outras pessoas, mas estou a fazer progressos.

 

- Vê-se - disse Phil. - Isso é perceptível no teu olhar. Escuta, em relação ao Vasclear...

 

- Sim?

 

- Como já te disse, o medicamento continua a ser testado em três doses: dose mínima, dose máxima e placebo. Os grupos de tratamento são o alfa, o beta e o gama, mas, como os ensaios continuam a ser indefinidos, ninguém sabe qual é qual, nem a Jessup, nem sequer o Art Weber, o tipo que descobriu a droga. Ele é o director do projecto no laboratório farmacêutico.

 

Brian sabia que tinha de ser assim. Um ensaio cego era a única forma completamente válida de avaliar um novo medicamento. Para eliminar influências, nem o doente, nem o médico, nem os avaliadores do tratamento sabiam se a medicação administrada era activa ou apenas placebo. A informação só era conhecida do computador que determinava os grupos de tratamento e dispensava o medicamento. Deveria também haver uma troca a meio do período de tratamento, em que o grupo a ser tratado com placebo e o grupo que recebia a droga activa seriam trocados, continuando sem se saber qual era qual.

 

- Mas se o medicamento está a ter resultados tão bons como dizes - observou Brian -, já se deve ter uma ideia acerca da identidade dos grupos.

 

- Nós não temos dúvida de que o grupo beta é o que estáa receber a dose mais elevada. É nele que obtemos os melhores resultados. Mas o computador ainda não recebeu informações suficientes para autorizar a revelação dos grupos. Acho que é devido ao facto de o número de doentes ser ainda tão reduzido. Desde que passaram à fase dois, há alguns anos, só houve cerca de seiscentos doentes. Duzentos em cada grupo. Mas, mesmo assim, ouvi rumores de que talvez em breve o medicamento já esteja no mercado; os resultados são realmente bons.

 

- Bem, isso será óptimo para o mundo, mas talvez seja demasiado tarde para o Jack. Faz o que puderes, Phil, por favor. O pobrezinho já sofreu o suficiente.

 

- Foi o que me disse o outro médico. - Gianatasio olhou para o relógio. - Bem, é melhor ir ver como está a Glândula. Foi a alcunha que a Violet Corcoran passou a ter. Daqui a nada o Jack irá para a Unidade de Cardiologia. Eu vou lá dar uma espreitadela assim que...

 

Um pigarrear vindo da porta interrompeu-os. Viram um homem alto, magro e bem vestido.

 

- Ernest! - exclamou Phil.

 

- Estava no meu gabinete quando ouvi falar do milagre que aconteceu aqui. Vou agradecer aos responsáveis.

 

Phil apresentou Brian ao chefe do Instituto do Coração, afirmando que era a ele que se devia agradecer.

 

-Eu adoraria ficar com alguns louros - disse Phil mas a única coisa brilhante que fiz foi pedir a opinião do meu velho amigo.

 

- Às vezes, pedir a opinião certa é a única coisa brilhante que se pode fazer. Muito prazer, doutor Holbrook. - O aperto de mão de Pickard era confiante, a voz calma e o sotaque elegante. - Mas, a menos que esteja enganado, acho que já nos conhecemos.

 

-Al sim?

 

- De certa forma. Assisti àquele jogo em Harvard em que fez cinco touchdowns contra nós. Era o senhor, não era?

 

- Era.

 

-Jogou muito bem.

 

- Talvez, mas vocês eram mais inteligentes do que nós. Pickard soltou uma gargalhada grave e genuína.

 

- Talvez - concordou -, talvez. Mas no dia em que o vi jogar tive a certeza de que o voltaria a ver mais tarde entre os profissionais, pois era um excelente jogador.

 

Brian trocou um olhar com Gianatasio e limitou-se a responder:

 

- Mas isso não aconteceu.

 

- Bom, quem ganhou foi a medicina, e em particular nós, se o que ouvi é verdade, por isso, conte-me, por favor, o que aconteceu.

 

- Se não se importa, Ernest - interrompeu Phil -, tenho de ir ver como está a tal doente. Volto daqui a nada. Pickard pegou em duas cadeiras, afastou-as da cama e fez sinal a Brian para que se sentasse.

 

- Este senhor é o seu pai, não é?

 

- Sim. Era o nosso treinador naquele jogo a que o senhor assistiu.

 

-Deve ter um grande orgulho em si.

 

Brian perguntou-se o que saberia Pickard a seu respeito e sobre a sua situação. Olhou para Jack e depois para o monitor

- Às vezes - respondeu.

 

- Ele já estabilizou?

- Sim.

 

- óptimo. Bem, ouvi dizer que o senhor diagnosticou um problema na tiróide após um exame de dois minutos a uma doente que estava quase a morrer.

 

- Já tinha visto um caso parecido durante o estágio.

- Extraordinário. Conte-me o que se passou.

 

Para um homem com um cargo tão importante, Pickard parecia bastante descontraído e sem pressa. Brian contou-lhe passo a passo o seu exame e as pistas indicadas pela história clínica de Violet Corcoran e pelo electrocardiograma que o tinham levado àquele diagnóstico.

 

O chefe do Instituto do Coração ouviu-o atentamente. Quando Brian acabou de falar, fez-lhe algumas perguntas e depois levantou-se e apertou-lhe a mão.

 

- Foi uma excelente dedução, tendo em conta a pressão a que estava sujeito - observou. - Os meus parabéns, e espero que desempenhe o seu papel quando o caso dela for discutido.

- Com certeza.

 

- Se eu puder fazer alguma coisa, não hesite em falar comigo.

 

Pickard dirigiu-se para a porta; depois virou-se quando Brian falou.

 

- Talvez possa. Disseram-me que a doutora Jessup é a _directora do estudo efectuado ao Vasclear.

 

- Exacto.

 

- Será que podia sugerir-lhe que aceitasse o meu pai como doente?

 

- Creio que sim. A Carolyn está em casa neste momento. Falei com ela ainda não há uma hora. Mas devo preveni-lo de que não tenho qualquer influência na escolha dos participantes do programa Vasclear. Isso é da inteira responsabilidade do doutor Wéber e da doutora Jessup.

 

- Compreendo.

 

- Muito bem - disse Pickard. - Eu telefono à Carolyn assim que tiver visto a sua doente.

 

Virou-se de novo para a porta. E tornou a virar-se quando Brian voltou a falar.

 

- Doutor Pickard, só mais uma coisa - disse Brian.

- Sim?

 

- Se for possível, preciso mesmo de um emprego.

 

A sala de pequena cirurgia do Instituto do Coração de Boston ficava situada na cave e era do mais moderno que podia haver. Brian seguia ao lado da maca onde Jack era transportado através dos corredores do hospital.

 

Tinham passado dois dias desde o ligeiro ataque de Jack e, tal como calculara a sua nova médica, Carolyn Jessup, não houvera complicações. Agora chegara a altura de ver o estado das artérias coronárias e de tomar algumas decisões em relação ao futuro tratamento. O único que não estava à sua disposição era o tratamento com o Vasclear. Graças à intervenção de Ernest Pickard, Jessup concordara em aceitar Jack como seu doente, mas o protocolo para o estudo do Vasclear, que estava a ser seguido à risca, excluía especificamente doentes com bypasses.

 

- Aposto cinco contra dois em como ela me vai matar aqui em baixo - disse Jack.

 

Queixava-se sempre por causa dos cateterismos, mas Jessup não encontrou nele grande resistência quando lhos propôs. Brian achou que o pai devia estar a ficar com um fraquinho pela elegante médica. A ideia fê-lo sorrir.

 

- Que disparate! - exclamou. - Ela é a melhor nisto. -Pensava que tu é que eras...

 

- Isso não interessa.

 

Embora a perspectiva de ver Jack tratado com Vasclear parecesse, de momento, remota, a possibilidade de Brian arranjar emprego no Instituto do Coração era um pouco mais real. Na véspera, entre os turnos na Speedy e na Aphrodite, fora ter com Ernest Pickard ao escritório de canto no quinto andar com vista para o rio Charles e passara quase meia hora com ele a falar da sua vida, do seu vício e da sua recuperação. No final, Pickard não lhe revelou as suas ideias, mas quando chegou a casa, ao fim do dia, tinha no atendedor de chamadas um recado do seu ex-colega Gary Gold, a dizer que Pickard lhe telefonara a pedir a sua opinião acerca dele.

 

Um auxiliar empurrou a maca de Jack para uma sala. Brian, convidado por Jessup a assistir, foi ao vestiário alcatifado, vestiu uma bata e entrou no laboratório. Das muitas áreas da cardiologia, sempre preferira os cateterismos. Havia uma energia e uma tensão na sua execução que se assemelhavam ao que sentia quando jogava na posição de quarterback. Era preciso ter mãos firmes e um toque delicado e ainda a capacidade de transpor as duas dimensões representadas no ecrã para as três dimensões do coração do doente. E, claro, havia também sempre o espectro de uma crise cardíaca.

 

Naquele momento, sozinho no laboratório, reviu mentalmente o cateterismo que Carolyn Jessup iria executar no pai. O primeiro passo seria anestesiar localmente a virilha direita de Jack e inserir na pele dois cateteres compridos, finos e ocos um na veia femoral, depois na veia cava, até à aurícula e ao ventrículo direitos; o outro na veia arterial, depois na aorta e nos dois compartimentos correspondentes do lado esquerdo do coração. Eram necessários dois cateteres, porque, exceptuando certos problemas congénitos e situações de doença, não havia ligação directa entre a zona direita, que bombeava sangue para os pulmões, e a esquerda, que recebia o sangue dos pulmões e o bombeava através da aorta para as artérias coronárias e o resto do corpo.

 

Quando os cateteres estivessem em posição, como verificariam através do contraste nos raios X, seria medida a tensão arterial nas várias câmaras e vasos sanguíneos. A seguir, o cateter da esquerda seria reposicionado dentro da artéria coronária direita de Jack e depois na esquerda, os dois vasos sanguíneos principais que saíam da aorta para levar sangue ao músculo do coração. O contraste seria injectado nas artérias, enquanto uma câmara de vídeo gravava o fluxo e o projectava simultaneamente no ecrã. As artérias podiam então ser vistas de oito ângulos diferentes.

 

Grato por estar de volta ao seu ambiente, se bem que apenas como elemento externo, Brian observou a mesa mecanizada, a potente câmara de raios X e os vários tipos de cateteres pendurados em embalagens esterilizadas de celofane dos ganchos etiquetados na parede. Estava a olhar para o desfibrilhador quando a maca do pai foi empurrada para o laboratório por um técnico, um negro alto e magro chamado Andrew.

 

- A doutora Jessup disse-me que esperasse por si - declarou. - Ela vem já. Bem-vindo ao laboratório.

 

- Que tal levarem-me de volta para o meu quarto? - perguntou Jack.

 

-O seu pai é sempre assim? - observou Andrew.

 

- Não, nada disso. Deve ter sido medicado para estar tão calmo.

 

A sala, que parecera muito espaçosa quando Brian lá estivera sozinho, começou a encher-se rapidamente. A seguir chegou uma enfermeira que se colocou atrás da parede de vidro, começando a observar os ecrãs e o equipamento de filmagem. Momentos depois, outra enfermeira entrou, vinda do vestiário das mulheres, pôs uma touca, calçou um par de luvas e começou a preparar o tabuleiro de instrumentos. Brian ajudou Andrew a mudar Jack da maca para a mesa de fluoroscopia.

 

-Credo!, Brian, parece que me puseste em cima de um cubo de gelo. Podiam, ao menos, ter aquecido a mesa! E posto umas almofadas. Os raios X não atravessam as almofadas? Ei, Andrew, não me arranja uma almofadinha? Posso ter uma, não posso?

 

Brian sabia que aquele nervosismo de Jack e as suas queixas significavam que ele estava apavorado. Andrew, apercebendo-se disso, pousou a mão no ombro de Jack para o tranquilizar. Jack também compreendeu, e não tentou afastá-la.

 

-Bom dia a todos.

 

Carolyn Jessup entrou vinda do vestiário e tomou imediatamente o comando. Trazia touca, máscara, fato cirúrgico e ténis e parecia tão atraente com aquela indumentária como quando Brian a vira elegantemente vestida durante o seminário. A sua primeira paragem foi junto a Jack.

 

- Como é que se tem portado, Jack? - perguntou.

 

- Tenho-me queixado, mas portado bem. Fica com um ar muito misterioso só com os olhos à mostra.

 

Brian fez uma careta. De repente, "Black" Jack Holbrook, o homem que apenas com o olhar obrigava jogadores de cento e vinte quilos a fazerem vinte abdominais, parecia um cachorrinho.

 

-Todas as mulheres parecem misteriosas vestidas desta maneira - retorquiu Jessup. - É por isso que tantos homens querem ir trabalhar para as salas de operações. Antes de começarmos, tem alguma pergunta?

 

-Nenhuma, a não ser o que estou aqui a fazer.

 

- Sem estas imagens não podemos saber que tratamento seguir para o ajudar.

 

-Desde que uma dessas coisas não seja uma operação... Brian contara a Jessup o terrível período pós-operatório que Jack atravessara.

 

"Ele deve concordar com tudo o que lhe propuser", dissera-lhe Brian naquela primeira noite, "excepto com outro bypass." A expressão nos olhos de Jessup revelava compreensão. -Vamos ver - respondeu.

 

Baixou-se, murmurando-lhe algumas palavras de encorajamento, e depois aproximou-se da enfermeira, que a ajudou a calçar as luvas e a vestir a bata.

 

"Que comecem os jogos", pensou Brian, reparando no ar frágil do pai, entalado entre a mesa e a enorme câmara fluoroscópica.

 

De luvas, bata e máscara, Carolyn aproximou-se da mesa, olhou para a enfermeira do outro lado do vidro e para todas as pessoas da sala, para ver se estavam prontas, e começou. Os seus movimentos eram calmos. Demonstrou uma grande perícia na inserção das agulhas na artéria e na veia femoral.

 

- Brian, pedi ao Suburbano que me enviasse as filmagens das intervenções feitas ao seu pai - disse ela, empurrando os cateteres para cima. - Devem chegar ao fim do dia.

 

- Já passaram quatro anos desde a última, por isso não sei se as gravações irão ajudar alguma coisa. Sabe, acho que nunca vi um cateter arterial como esse.

 

- É muito perspicaz. É um protótipo da Ward-Dunlop. Há três anos que trabalhamos com eles no desenvolvimento deste cateter. Neste momento, há vários hospitais a experimentarem-no. Aqui não usamos mais nada.

 

- Percebe-se porquê. Parece ser bastante melhor do que aquele que usávamos.

 

- E é. Daqui a um ano esperamos que todos os hospitais do país o utilizem. Então, Jack, que tal vai isso?

 

-Vai bem... mas preferia estar a viajar consigo para o Havai.

 

Jack falava mais devagar e com uma voz pastosa. Tinha os olhos fechados. A medicação pré-operatória começara a fazer efeito na "hora h".

 

- óptimo - retorquiu Jessup. - Se o magoarmos, ou se alguma coisa o intrigar, diga.

 

- Com certeza.

 

-Agora, Jack, quero que saiba que pedi a outro médico para passar por cá e observar as suas artérias comigo. -Por mim, tudo bem. O que a senhora doutora quiser.

- Chama-se doutor Randa. É o director da Unidade de Cirurgia do Instituto do Coração de Boston.

 

- Não quero ser operado - conseguiu Jack dizer

 

- Compreendo o que sente, Jack - retorquiu ela num tom doce, segundo pareceu a Brian -, e neste momento não estou a sugerir nada. Ele vem só observar as imagens e cumprimentá-lo, está bem?

 

- Como... quiser.

 

Brian ficou satisfeito por ver o pai capitular tão depressa, embora percebesse o papel dos sedativos na pequena vitória de Jessup. Também ficara satisfeito com a presença de Laj Randa, embora já tivesse ouvido dizer que o médico era um estúpido com mãos de veludo.

 

Enquanto Jessup empurrava os cateteres para o coração de Jack, verificou a posição em que se encontravam injectando um pouco de contraste e ligando o raio X para captar imagens breves, utilizando um pedal no chão. Brian não ficou admirado ao ver que ela fazia essas verificações com menor frequência que os outros médicos. Mediu a tensão no lado direito do coração, depois concentrou-se no lado esquerdo, mais importante, e em particular nas artérias coronárias de Jack.

 

- Okay - disse a médica. - Vamos começar pela coronária direita. Quero uma panorâmica anterior oblíqua, Andrew. O técnico ajustou a posição da câmara grande no primeiro dos oito ângulos e Carolyn Jessup injectou contraste. Entre as olhadelas ao monitor do electrocardiograma e ao pai, Brian observou as artérias coronárias no ecrã. A cada injecção, a árvore arterial parecia iluminar-se em relação ao cinzento pulsante do próprio coração. Embora os vasos principais não variassem muito de doente para doente, o padrão das artérias era único e individual como as impressões digitais.

 

Os vasos sanguíneos de Jack estavam tão maus como Brian temera. Havia placas arterioscleróticas a bloquear zonas de quase todas as artérias importantes. Duas das aberturas feitas na operação anterior pareciam ter fechado. Durante trinta anos de casamento, Jack e Shirley Holbrook haviam bebido e fumado em demasia. Depois da morte da mulher por falha renal devido a problemas de álcool, Jack deixara de beber. Parara também de fumar cerca de um ano mais tarde, mas o tabaco já tinha causado bastantes danos.

 

Depois da última injecção na coronária esquerda - responsável por muitas mortes -, Brian assobiou baixinho e desviou o olhar. Jessup virou-se para ele.

 

-Não é uma visão muito animadora - observou. Jessup estava a tirar os cateteres quando a porta do vestiário dos homens se abriu de repente e Laj Randa entrou no laboratório, seguido a uma distância respeitável por dois colegas. O médico não tinha mais de um metro e sessenta, pele cor de café com leite, barba preta e olhos escuros penetrantes. Trazia um turbante de seda azul e uma pulseira de aço no pulso direito. "É um sique", pensou Brian. "Muitos religiosos, foram perseguidos no Penjabe, no Norte da índia, durante vários séculos." Tivera um colega sique durante o estágio. Era um tipo bastante determinado e decidido. Se Randa fosse igualmente fervoroso, o cabelo sob o turbante nunca era cortado e a maior parte da barba devia estar enrolada sob o queixo.

 

- Então, Carolyn - disse Randa, passando por Brian sem lhe prestar atenção -, que idade tem este homem?

 

O seu sotaque era um misto de britânico e de indiano. -Sessenta e três. Ele...

 

- E quem é que o operou antes?

 

-O Steve Clarkin, do Suburbano, fez-lhe um bypass há seis anos - respondeu Brian.

Randa deteve-se e virou-se lentamente para Brian, que era muito mais alto.

 

- E o senhor quem é?

 

-O filho de Jack, Brian Holbrook. Sou... Randa já lhe virara as costas.

 

- Carolyn, peça à sua enfermeira que passe o filme para eu ver.

 

Jessup assentiu na direcção da enfermeira do outro lado do vidro, que ouvia tudo o que eles diziam. Randa também devia saber isso, pensou Brian. Podia ter ele próprio feito o pedido à enfermeira. "Um estúpido com mãos de veludo." Quem fizera aquela observação sabia, com certeza, do que estava a falar. Momentos depois, o cateterismo de Jack começou a ser passado no ecrã.

 

- Estão a ver - disse Randa aos seus aduladores -, apenas três enxertos continuam abertos e um deles já está quase fechado. Um resultado típico do Clarkin.

 

O comentário era pouco correcto, fosse em que circunstância fosse, e era-o ainda mais na presença do doente de Clarkin. Jessup, que parecia habituada aos comentários do colega, não disse nada.

 

-Então - continuou Randa, assim que o ecrã ficou escuro -, tenciona tratar este homem com o seu sumo mágico?

 

Laj, é melhor não falarmos disso aqui.

 

Li um artigo acerca da sua droga no Boston Herald. No Herald! Porque não no National Enquirer?

 

- Não sei onde é que a imprensa não especializada vai buscar essas informações acerca do Vasclear - retorquiu Jessup, cheia de paciência.

 

-É evidente que alguém lhas está a fornecer. Não gosto de receber esse tipo de informação através dos tablóides. Desde o começo da ciência, os métodos para informar a comunidade científica de uma nova descoberta evoluíram. E esses métodos não incluem o Boston Herald.

 

uma -Meia dúzia de ensaios meus foram aceites ou já estão publicados em jornais científicos de grande prestígio. A FDA tem em seu poder centenas de páginas sobre a nossa investigação e dezenas de angiogramas. Por favor, Laj, falemos disto mais tarde. Quanto à sua pergunta em relação a este paciente, os nossos protocolos não permitem que doentes com bypass sejam tratados com o Vasclear, pelo que Mister Holbrook está excluído.

 

-Como quiser.

 

Randa aproximou-se da maca. Brian viu os olhos de Jack abrirem-se, depois fecharem-se. Ele estava acordado e perfeitamente consciente.

 

Eu sou o doutor Randa - disse o médico, sem se dar ao trabalho de apertar a mão a Jack ou de se certificar de que ele estava acordado. - Os seus arteriogramas mostram bastantes obstruções arterioscleróticas nas artérias do coração. Não era nada mau fazer outro bypass o mais depressa possível. A doutora Jessup discutirá consigo os pormenores e irá marcar a cirurgia. Se eu tiver alguma vaga, sugiro que a operação seja feita antes de o senhor ir para casa, senão, fica na cama até se arranjar qualquer coisa. Um dos meus colegas virá vê-lo mais logo. Bom dia, Carolyn.

 

- Obrigada por ter vindo - disse ela quando Randa se dirigiu para a porta

 

Brian-correu imediatamente para junto do pai. -Estás bem? - perguntou.

 

-Não quero ser operado - respondeu Jack.

 

- Veremos. Mas ouve, pai, não quero perder-te e as tuas netas iriam ficar muito tristes. Vou tentar que não sejas operado, mas, se tal não for possível, recomendo a operação e um novo bypass. Tens de me prometer que alinhas. Jack?

 

Houve um longo silêncio.

 

-Não gosto daquele tipo - respondeu Jack, por fim.

- Não tem de gostar dele, Jack - interveio Jessup. - Só tem de acreditar que ele é um dos melhores cirurgiões do mundo.

 

Fez sinal a Brian para que se aproximasse e foram para um sítio onde Jack não os ouvia.

 

-O Randa é um grosseirão, eu sei - disse ela -, mas acredite, é um verdadeiro mágico na sala de operações. Ultimamente, tem ficado ainda mais insuportável por causa da nossa investigação. Não posso acreditar que se sinta ameaçado pelos resultados que estamos a obter com o Vasclear.

 

- Se o que eu ouvi está certo, percebo porquê. Ele faria o papel de um ferreiro a olhar para um Ford Modelo T. Doutora Jessup, em relação a dar o Vasclear ao meu pai...

 

A cardiologista abanou a cabeça.

 

- Lamento, Brian. Em quase três anos de investigação seguimos sempre o protocolo. Sempre. A única coisa que posso prometer-lhe é que irei falar no seu problema ao doutor Art Weber, o director do projecto na Newbury Pharmaceuticals. Mas sabe, mesmo que ele concordasse, o que duvido, o Jack teria de ser tratado como todos os outros doentes. Teria trinta e três por cento de possibilidades de ir parar ao grupo que recebe o tratamento máximo e trinta e três por cento de ser tratado com placebo.

 

- Compreendo, mas, por favor, faça o que puder. Se insistirmos, é possível conseguirmos convencer o meu pai a ser operado. Ele gosta mais de si do que de qualquer outro médico que já teve. Mas se pudermos tratá-lo apenas com a medicação, talvez devêssemos tentar.

 

- Bom, talvez consigamos ganhar algum tempo se lhe mexermos na medicação. Tenho algumas ideias que talvez melhorem a situação, especialmente depois de ter visto o estado dele com os cateterismos. E vou falar com o doutor Weber, prometo. Mas, no estado em que estão as coisas, recomendo a cirurgia.

 

- Okay, não vou discutir isso. No entanto, preciso de tempo para pensar e para falar no assunto com o meu pai. São poucos os doentes que passaram o mau bocado que ele passou no pós-operatório. Quase morreu.

 

- Eu sei.

 

- Bom, obrigado. Não precisa de continuar aqui à espera. Eu fico com o meu pai até ele voltar lá para cima.

 

Jessup dirigiu-lhe um sorriso enigmático.

 

-Por acaso - disse ela - há uma razão para eu ficar aqui. Venha comigo ao laboratório.

 

Brian seguiu-a até à sala e viu que Jack já fora transferido para a maca onde viera.

 

-Que tal vai isso, pai?

 

-Não me diverti muito, se é isso que queres saber. Quem era aquele tipo? Algum árabe?

 

- É indiano. Não é muito simpático, pois não? Carolyn Jessup interveio, dirigindo-se aos enfermeiros.

- Se não se importam, vão até aos vestiários, porque eu preciso de falar a sós com estes senhores. Obrigada. - Esperou até que as portas se fechassem; depois tirou um sobrescrito do bolso e entregou-o a Jack. - O doutor Pickard, o director do hospital, deu-me isto antes de eu descer. Deixaram-no no gabinete dele esta manhã. Ele lamenta não poder estar aqui para lho entregar pessoalmente, mas eu tenho muito gosto em representá-lo. Vá lá, Jack, abra-o.

 

Com as mãos um pouco trémulas, Jack rasgou o sobrescrito e tirou de lá um pequeno cartão. Fitou-o durante quase um minuto, atónito, e depois disse, baixinho:

 

- Meu Deus! - Olhou para Jessup. - Isto é mesmo a sério? - Ela assentiu. - Doutora, isto vai fazer mais por mim do que qualquer medicamento... Toma, filho.

 

Estendeu o cartão através da grade da maca. Brian só percebeu do que se tratava quando lhe pegou.

 

     ESTADO DE MASSACHUSETTS

     COMISSSÃO DE REGISTO E DISCIPLINA EM MEDICINA

     David Connoly, governador EMITE ESTA LICENÇA A...

 

Seguiam-se o nome e a morada de Brian. Havia uma adenda impressa no fundo dizendo que a licença era provisória, mas isso não fazia diferença. Brian olhou para o cartão, receando desatar a chorar se tentasse falar.

 

- Começa a trabalhar na próxima segunda - disse Jessup.

- Na terça vai assistir-me aqui no laboratório. Se passar o teste, talvez esteja a fazer cateterismos daqui a um mês. Prometa-nos só uma coisa.

 

- Qualquer coisa - assentiu Brian -, qualquer coisa...

- Prometa que não se exibe aos outros médicos com diagnósticos como aquele da tiróide.

 

Angus "Mac" Mackanahan sempre se orgulhara de encarar a vida com bonomia. Primeiro, como maquinista em Glasgow, depois, após ter emigrado para os Estados Unidos, como mecânico da Jaguar, fora sempre optimista - satisfeito com a vida,

mas sempre ansioso por fazer tudo para a melhorar. Agora, ao sair da clínica e subir a colina até ao apartamento solitário, ca' da passo era um sofrimento, e tentava combater a tristeza que sentia por já não ser saudável.

 

Durante bastante tempo as coisas tinham-lhe corrido bem. Ele era um touro, conhecido pela sua força e pela sua energia. Haviam-no promovido a mecânico-chefe da Back Bay Jag. A mulher era um anjo e os três filhos uns garotos fantásticos. Depois aparecera um caroço no peito de Mary e tudo mudara. A operação, as consultas, a quimioterapia horrível, em seguida a dor nos ossos, a perda de peso e, por fim, a morte misericordiosa.

 

Só seis meses depois da morte de Mary é que Mac sentira as primeiras dores no peito. Estava a trabalhar num motor quando a sentiu - uma pressão ardente que começava sob o esterno, mas que parecia estender-se à metade superior do corpo, aos ombros, ao pescoço, aos maxilares, aos ouvidos. No seu íntimo soube que era o coração. Mas a sua mente não queria aceitar os factos. Limitou-se a beber um copo de água, sentou-se limpou o suor da testa e da cara e respirou devagar até a dor passar.

 

Não contou a ninguém o que acontecera - nem aos filhos, nem aos colegas, nem sequer ao seu médico. Durante alguns meses levou as coisas com mais calma e tirou férias quando sentiu que a dor ia voltar. Depois, com a língua solta por causa de umas cervejas a mais no The Tartan, cometeu o erro de contar o que sentira a um amigo, Marty Anderson. No dia seguinte, acompanhado por Marty, fora ao médico.

 

Agora, dois anos mais tarde, perguntava-se se não deveria ter concordado com a cirurgia.

 

O apartamento ficava apenas a cinco quarteirões, mas quando Mac chegou à loja de conveniência já fora obrigado a parar três vezes. A médica da clínica, que parecia ainda uma adolescente, mandara chamar um dietista para combinar com ele pela enésima vez uma dieta hipossalina e aumentara-lhe os comprimidos diuréticos para dois por dia. Mac recordou-lhe que tinha sempre o bacio ao pé da cama, porque urinava três ou quatro vezes durante a noite, mas a médica limitara-se a rir e garantira-lhe que o inchaço dos tornozelos e a falta de ar melhorariam se ele comesse menos batatas fritas e bebesse menos cerveja.

 

"Porque não me dá logo o comprimido preto?", retorquira Mac, meio a brincar.

 

Entrou na loja de conveniência e pegou num pacote de leite, num pacote de bolachas de baunilha e num pacote pequeno de Doritos. O esforço deixou-o ofegante.

 

- Sente-se bem? perguntou o caixa.

 

- Sim - conseguiu Mac dizer. - Só um pouco... ofegante.

- Tem a certeza?

 

- Daqui a... um minuto... estou bem. Tome.

 

Pagou a conta e conteve-se para não se apoiar ao balcão de vidro. Depois arrastou-se para fora da loja.

 

- Tem a certeza de que não quer que eu chame alguém?

- gritou o homem atrás dele.

 

"Um quarteirão e meio", pensou Mac. Não estava na melhor das formas, mas, bolas!, seria capaz de andar sobre vidro partido durante essa distância, se tivesse de ser. No entanto, se não melhorasse depressa, teria de repensar a questão de viver sozinho. Mas um lar era impensável, e não desejava tornar-se um fardo para os filhos. "Talvez a Dra Cara de Bebé tivesse razão", pensou. "Talvez o diurético ajudasse."

 

Quando chegou ao prédio doíam-lhe os pés. Só pensava em descalçar-se, tirar as meias e sentar-se no sofá. O último obstáculo entre ele, um copo de leite, algumas bolachas e o jogo de futebol era um lanço de escadas. Destrancou a porta da rua e a porta de segurança interior. Segurando o saco das compras numa das mãos e apertando o corrimão com a outra, subiu degrau a degrau.

 

Por fim, no segundo patamar, encostou-se à porta da sua casa, respirando a custo enquanto rodava a chave. O apartamento, como de costume, estava completamente às escuras. Não se lembrava de alguma vez ter deixado uma luz acesa. Quando entrou, apercebeu-se do cheiro a gás. "O bico do forno deve ter-se apagado", pensou, enquanto fechava a porta. Iria abrir uma janela e ver o que se passava. Acendeu o interruptor da sala ao pé da porta, mas não viu a faísca resultante do intervalo demasiado grande entre os fios.

 

A atmosfera cheia de gás tornou imediatamente o apartamento num inferno. Os tímpanos de "Mac" Mackanahan implodiram momentos antes de os seus olhos derreterem e de a sua roupa arder. Quando o corpo bateu na parede junto à porta, a pele e a película que envolvia os pulmões estavam carbonizadas. E quando a parede começou a arder, ficou inconsciente.

 

Brian saiu do hospital às cinco e foi até à igreja metodista em South End. Quando saíra do Centro de Tratamento Fairweather, na Carolina do Norte, havia quinze meses, não quisera ir às reuniões dos Narcóticos Anónimos ou dos Alcoólicos Anónimos onde pudesse dar de caras com algum dos seus ex-doentes. Preferira o anonimato de Boston.

 

Durante uma pausa para o café na terceira ou quarta reunião, já na cave da igreja metodista, um negro corpulento aproximara-se dele. Tinha óculos com armações de tartaruga e lentes escuras e pareceria um professor, se não fosse a cicatriz em "F" sobre o deltóide e as tatuagens azuis artesanais junto aos nós dos dedos da mão que diziam "mÁ soRTE" quando ele as fechava, cerrando os punhos.

 

"Sabe", dissera Freeman Sharpe nessa noite, na sua suave voz de barítono, "isto não é uma reunião qualquer. A doença que estamos a combater é mortífera. É astuta, poderosa e, acima de tudo, paciente. Se continuar sentado sobre as mãos na última fila e não falar com ninguém no intervalo, mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo, vai rebentar."

 

Fora nessa altura que Sharpe se oferecera para ser o orientador de Brian, para o ajudar a conhecer outras pessoas e para o guiar nos momentos mais difíceis da recuperação. Ainda agora continuavam a falar diariamente pelo telefone. Fosse qual fosse o problema de Brian, Freeman tinha sempre uma solução razoável. Fosse qual fosse a sua pergunta, havia uma resposta.

 

Naquela noite, contudo, Brian achava que a sua pergunta era suficientemente difícil até para Sharpe.

 

Já não tinha a Aphrodite, nem a Speedy Rent-A-Car, nem Darryl, nem dinheiro a entrar e faltavam três dias para voltar a tratar de doentes. Estava tudo ali, tudo. Então porque se sentia tão pouco à vontade?

 

A apreensão inexplicável de Brian começou a desaparecer assim que entrou na cave da igreja. Embora a maior parte das reuniões a que ia fosse dos Narcóticos Anónimos, não tinha qualquer problema em assistir também às dos Alcoólicos Anónimos. Uma droga era uma droga, tinham-lhe ensinado em Fairweather, e a decisão de manter-se afastado de substâncias que alteravam o comportamento tinha de incluir o álcool.

 

Freeman Sharpe acenou-lhe do outro lado da sala e cumprimentou-o com um aperto de mão, um abraço e o olhar observador e amistoso com que Brian contava sempre.

 

- Perdoa-me por te dizer isto, jovem Holbrook - afirmou Freeman -, mas não pareces nada o homem que viu o peso do mundo ser-lhe tirado dos ombros.

 

-É assim tão evidente?

- Sim.

 

-Acho que estou com medo. -De quê?

 

-Não sei.

 

- Não acredito. Porque não te deitas a adivinhar? -Bem, o Instituto do Coração de Boston é muito bom. -E então?

 

- Com o meu passado, as pessoas vão vigiar-me com bastante atenção.

 

- E então?

 

- Eu... não quero estragar tudo.

 

Freeman limpou os óculos com um lenço de papel, depois cerrou os punhos e olhou para a sua tatuagem, "mÁ soRTE". -Estou a ver... - respondeu.

 

As pessoas começavam a instalar-se para o início da reunião de sexta-feira, pelo que Freeman levou Brian para o exterior, onde o final do Verão começava a fazer-se notar. Os receios de Brian em relação ao trabalho no instituto eram bastante sérios para que Freeman o fizesse perder parte de uma reunião.

 

- Okay -'disse Freeman, encostando-se à parede da igreja e cruzando os braços, sem tirar os olhos de Brian -, tens medo de estragar tudo no famoso Instituto do Coração. Diz-me, quem é que te contratou?

 

-Pickard. Ernest Pickard. O director.

 

Brian já adivinhava o que estava para vir, mas sentiu-se grato pela ajuda de Freeman.

 

-O director.. e ele contratou-te...

- sim.

 

-Leu o teu currículo, e tudo isso?

- sim.

 

-E verificou as tuas referências?

- Sim.

 

- E mesmo assim decidiu contratar-te?

- Sim.

 

- É um homem inteligente?

- muito.

 

- Então quer-me parecer - e corrige-me, se me engano - que não és o único responsável pela tua entrada no corpo médico do hospital. Um homem muito inteligente, que sabe o que é necessário para o cargo, que sabe avaliar o talento de um médico, e que sabe o seu passado, decidiu que estavas à altura do cargo.

 

-Acho que sim.

 

-Então onde é que eu quero chegar?

 

Sharpe, ainda de braços cruzados, olhou para ele. O homem era exímio em saber quando chegara a altura de uma resposta e quando chegara a altura de fazer uma pergunta.

 

-O meu trabalho é fazer o meu melhor - respondeu Brian, não se permitindo dar a entender que aquele jogo de pergunta e resposta era coisa de crianças.

 

-Não "ser" o melhor. Espero que já tenhas percebido que essa treta toda de ser o melhor tem de desaparecer. Porque se o melhor que conseguires fazer for dar cabo desta oportunidade, o problema não é teu, pá, é do Ernest Pickard. Foi ele quem te escolheu.

 

O Dr. Alexander Baird olhou por cima do ombro para o cameraman e para os jornalistas que estavam na zona reservada à imprensa na sala de audiências. De imediato, dispararam dois flashes. A Subcomissão para o Controlo da Gestão Governamental, que estava integrada na Comissão do Senado para os Assuntos Governamentais, fizera um intervalo de cinco minutos. Baird, o director da FDA, arrependeu-se de não ter despejado a bexiga antes de entrar. Não lhe agradava nada a perspectiva de ter de atravessar a multidão para ir à casa de banho.

 

A subcomissão estava encarregada de determinar se a FDA desempenhava as suas funções de forma adequada. Claro, "adequada" tinha uma forte conotação política. Durante os dois ou três dias anteriores, Baird ouvira os seus colegas comentar que havia um interesse fora do comum naquela reunião. Ninguém sabia porquê. Agora, decorridos três quartos de hora de respostas a perguntas várias, Baird continuava sem perceber o inusitado interesse da comunicação social.

 

- Teri, não me sai da cabeça que estas pessoas sabem algo que eu não sei - murmurou ele, olhando para o estrado, que permitia aos membros da subcomissão ficarem acima das testemunhas.

 

A Dr a Teri Serinstrom, líder de grupo para os medicamentos cardiovasculares, encheu um copo com água, que o seu chefe declinou.

 

- Não é o único a pensar assim - respondeu ela. - O rio Little Bighoml está muito bonito este ano, não acha, general Custer?

- Muito engraçado...

 

Rio perto do qual o general Custer e as suas tropas foram derrotados pelos índios em 1876. (N. do T)

 

- Não, muito sério. Cheira-me a emboscada, mas ainda não percebi de que lado ela virá.

 

Durante os dez meses em que tinha vindo a assumir o cargo de director da FDA, Baird começara a confiar bastante na opinião de Teri. Ela tinha trinta e seis anos, a idade da sua filha, mas, ao contrário de Margaret, que saltava entre cursos de Letras e de Gestão e ainda não sabia o que ia fazer na vida, Teri, que já estava na agência havia três anos quando Baird fora para lá, era uma pessoa empenhada, expedita e leal. As vagas para director-assistente na FDA não eram muito frequentes, mas, quando surgisse a próxima, Teri Serinstrom estaria no primeiro lugar da sua lista de candidatos. Nesse dia encontrava-se sentada à direita de Baird como consultora clínica. À sua esquerda estava o advogado da FDA, um veterano das guerras políticas com nariz de falcão chamado Barry Weisman.

 

A reunião da subcomissão, presidida pelo poderoso senador republicano do Massachusetts Walter Louderman, era a segunda a que Baird ia como director da FDA. A primeira, logo após a _sua nomeação, fora pouco mais do que um treino - uma sessão amigável, durante a qual Louderman, que não parara de sorrir nem por um minuto, dera a entender a Baird que, embora este fosse um dos homens do presidente, muito liberal, o Congresso e todas as comissões importantes eram controlados pelo Partido Republicano. Desta vez Louderman, um republicano moderado com aspirações nacionais bem notórias, ainda tinha uma palavra a dizer.

 

Filho de um médico e oriundo de uma cidade do interior, Baird era professor na Faculdade de Medicina do Missouri quando fora chamado a Washington pelo presidente para endireitar a FDA. A agência fora muito mal gerida durante a última administração e fora abalada por vários escândalos, incluindo um episódio bastante desagradável envolvendo o pagamento de luvas para encobrir a rotulagem fraudulenta de alimentos para bebés. Directo e ousado em questões sociais que iam desde o tabaco ao controlo da posse de armas, Baird já começara a ser criticado por não possuir sociabilidade, sensatez política e genica necessárias para sobreviver naquele cargo.

 

Baird inclinou-se para Teri e tapou o microfone.

 

- O que acha que diria o Harvey Wiley se assistisse a este circo?

 

Wiley, um químico do virar do século defensor dos direitos do consumidor, dirigira a batalha legislativa para fazer aprovar a lei dos Alimentos e Medicamentos Puros em 1906, e era considerado o pai da FDA.

 

Teri sorriu.

 

- O Wiley era um político - respondeu ela -, compreenderia perfeitamente este espectáculo. E, por aquilo que li, também sabia lutar, quando a isso era obrigado. Mas permita-me fazer uma correcção, doutor Baird. O objectivo dos circos é encantar e divertir. Eu prefiro considerar esta audiência da subcomissão um teatro... o teatro do absurdo. - Indicou os senadores que regressavam às suas cadeiras e levantou a mão para alisar o cabelo louro-claro. - Segundo acto - disse.

 

Barry Weisman afastou o seu microfone e o de Baird.

- Bom, Alex, - disse -, cá vamos nós. Estou aqui ao seu lado. Mesmo se precisar apenas de fazer uma pausa, não tenha problemas de tapar o microfone com a mão e falar-me ao ouvido. Isso também fica muito bem na televisão. E lembre-se, por muitos elogios que lhe façam, por muitos flashes que disparem na sua direcção, nunca baixe a guarda. Nem por um segundo.

 

-Nem por um segundo... - repetiu Baird.

 

- Outra coisa. Quanto mais a câmara filmar a cara da doutora Serinstrom, melhor para a agência.

 

- Será que detecto uma discriminação inversa? - perguntou Téri.

 

Weisman sorriu. Era grande amigo de Teri havia bastantes anos, desde o dia em que aceitara finalmente que ela não tinha interesse em sair com ele.

 

- Apenas um truísmo biológico - retorquiu.

 

- Okay, doutor Baird - começou Louderman -, vamos continuar. O meu estimado colega do Texas, o senador Harrington, tem umas perguntas a fazer-lhe a respeito de algumas situações com as quais a sua agência se deparou.

 

Teri tapou o microfone e murmurou: -Sabe quem é este tipo, não sabe?

 

Baird assentiu. O senador Bart Harrington era discípulo de Louderman e por vezes seu capanga. O que Harrington dizia fora-lhe sem dúvida sugerido pelo presidente da comissão. Baird achou que sabia o que aí vinha. Uma das primeiras medidas que tomara como director da FDA fora tirar do mercado o Kinethane, um medicamento controverso para a perda de peso, três anos depois de ter sido aprovado para uso geral. O produto, que dera a lucrar vários milhares de dólares a uma empresa sedeada no Texas, parecia ter provocado uma pancreatite estranha e por vezes fatal num número reduzido, mas, mesmo assim, significativo, de pessoas.

 

Tinham sido atribuídas ao medicamento vinte e cinco mortes e estava em curso um processo. Os fabricantes haviam rechaçado as acusações com o depoimento de homens da estatística muito bem pagos, que revelaram que, dada a melhoria da saúde observada devido a uma redução da obesidade, apesar da ocorrência "natural" daquela forma de pancreatite, os benefícios do Kinethane eram muito superiores aos seus riscos. Mas a FDA tinha também os seus homens da estatística, e, no fim, Baird entendera que não lhe restava outra opção a não ser retirar o medicamento do mercado.

 

Sabia também que as mais violentas audiências da subcomissão giravam normalmente em torno da aprovação por parte da agência de um medicamento que se verificava mais tarde vir a ser prejudicial. Contava ter de explicar por que motivo a FDA levara tanto tempo a aperceber-se do perigo do Kinethane e a agir, por isso munira-se de números e contava com a ajuda de Teri Serinstrom. Tirou o dossiê grosso da pilha que tinha à sua frente, antecipando um ataque. Mas esse ataque não surgiu.

 

- Doutor Baird - começou Harrington -, quero felicítá-lo pelo excelente trabalho que tem feito na FDA.

 

Baird olhou para Barry Weisman, que se limitou a coçar o queixo e a encolher os ombros.

 

- Obrigado, senador - respondeu Baird. - Tentamos fazer o melhor possível.

 

- Hoje tenho um especial interesse em ouvi-lo partilhar connosco alguns dados a respeito dos novos medicamentos que estão a ser testados.

 

- Tais como?...

 

- Bem, por exemplo, quanto tempo leva um novo medicamento a chegar ao público?

 

-A partir dos testes nos animais?

- sim.

 

-Bem, claro que isso varia muito, consoante o medicamento; depende da minúcia do fabricante e de muitos outros factores. Mas o processo pode demorar entre cinco e dez anos, ou até mais, e custar mais de cento e vinte e cinco milhões de dólares.

 

-Há três fases de testes humanos durante a investigação de um medicamento, não é?

 

Baird ficou admirado com a especificidade da pergunta, mas não hesitou na resposta.

 

- Sim. Cada uma das três fases de testes nos humanos envolve mais doentes que a anterior e mais institutos.

 

- Alguma vez foram aprovados para venda ao público medicamentos mais prometedores enquanto a investigação ainda estava na segunda dessas três fases?

 

Sim, senador Harrington, isso já chegou a acontecer. Harrington, cuja cara e nariz vermelhos sugeriam a Baird que o homem talvez tivesse um problema de bebida, consultou os seus apontamentos e pigarreou.

 

- Doutor Baird, será que pode dizer-nos alguma coisa a respeito da lovastatina?

 

- O quê, por exemplo?

 

- Uma pequena história da substância do ponto de vista da FDA.

 

Teri tapou o microfone.

 

- Fazem ideia de onde é que ele quer chegar? - murmurou.

 

Baird abanou a cabeça.

 

-Nesse caso, vá com cuidado - preveniu ela.

 

- A lovastatina é um agente óptimo para a redução do colesterol desenvolvido pela Merck. A sua comercialização foi aprovada em Agosto de mil novecentos e oitenta e sete.

 

- A aprovação de um novo medicamento é o último passo antes da sua comercialização, não é?

 

- Exacto, senador.

 

- Então será que nos pode dizer, doutor, quanto tempo levou a lovastatina a ser aprovada?

 

- Antes de responder - retorquiu Baird, um pouco às cegas -, acho que tenho de explicar que o medicamento só é apresentado à nossa agência depois de as fases um, dois e três estarem...

 

- Sim, sim, compreendo, doutor. Importa-se de responder à minha pergunta?

 

A interrupção e o tom de Harrington deixaram Baírd de sobreaviso.

 

"Tenha calma", escreveu Weisman no bloco que estava na secretária entre os dois.

 

- A lovastatina foi aprovada nove meses depois de nos ter sido apresentada - respondeu Baird -, mas a investigação desse medicamento foi...

 

- Obrigado, doutor.

 

- Não, senador, se me dá licença, gostaria de terminar a ffrase. A Merck efectuou estudos clínicos muito meticulosos com o medicamento e apresentou-nos dados bastante minuciosos. O seu trabalho com o medicamento tinha começado no final dos anos setenta.

 

- Então diga-nos, por favor, precisamente quanto tempo passou desde o começo da fase dois até o medicamento ser aprovado.

 

- Não tenho essa informação comigo, mas teria todo o gosto em...

 

- Foram apenas três anos, doutor Baird. Apenas três anos desde o início da fase dois até à aprovação do medicamento. Harrington, cuja expressão presumida era quase cómica,

 

virou-se para Walter Louderman e fez-lhe sinal de que lhe dava a palavra. Louderman, um advogado grisalho e robusto formado em Harvard, remexeu nos papéis. Depois ingeriu um gole de água e pigarreou antes de pousar os olhos azuis em Baird.

 

- Doutor Baird - começou -, gostaria que nos falasse de outro medicamento. Corrija-me, por favor, se eu disser mal o nome. O medicamento é zidovudina.

 

- Disse o nome muito bem, senador Louderman. - "Porque não havias de dizer? Deves tê-lo repetido umas cem vezes antes de te exibires em frente às câmaras", pensou Baird. Essa substância era originariamente conhecida como AZt

 

Barry Weisman fez sinal a Baird para parar e puxou o microfone para si.

 

- Senador Louderman, será que pode dizer-nos onde quer chegar com essas perguntas? - inquiriu.

 

- Se não se importa de ter um pouco mais de paciência, Mister Weisman, creio que terá a sua resposta. Agora, doutor, pode resumír-nos a história do AZT, tal como fez com a lovastatina?

 

Baird tentou detectar uma armadilha na pergunta, mas não descobriu nada.

 

- O AZT é um agente antiviral desenvolvido pela Burroughs-Wellcome and Company, agora Glaxo Wellcome, e tem sido um medicamento precioso contra o vírus da sida.

 

-E quando começaram os estudos clínicos nesse medicamento?

 

- Não sei ao certo. Talvez em meados da década de oitenta.

- Por acaso, doutor, a fase um do AU começou em Junho de oitenta e cinco. A fase dois teve início sete meses mais tarde. Os testes em humanos terminaram em Setembro de oitenta e seis, apenas oito meses depois de a fase dois ter começado. Não chegou a haver fase três.

 

Baird sentiu a bexiga cheia e amaldiçoou-se em silêncio por não ter ido à casa de banho durante o intervalo. Mesmo assim, quer fosse devido ao cansaço, à irritação, à ansiedade ou a uma combinação destas três coisas, bebeu vários goles da água fresca que Teri lhe servira, e depois fez-lhe sinal para que respondesse.

 

-Não estamos aperceber onde quer chegar, senador disse Teri. - A FDA orgulha-se da rapidez com que a lovastatina e o AU foram aprovados para venda ao público.

 

- E têm razões para isso, doutora Sennstrom, porque esses dois medicamentos puderam salvar a vida a um grande número de pessoas...

 

Louderman fez uma pausa, olhou para as câmaras, depois tornou a revolver os papéis que tinha à sua frente.

 

"Aqui vem", escreveu Weisman.

 

- Doutor Baird e doutora Sennstrom - continuou, por fim, Louderman -, têm conhecimento de um medicamento chamado Vasclear, que está neste momento na fase dois dos estudos clínicos?

 

- Temos, sim, - respondeu Baird.

 

- Podem dizer-nos o que faz esse medicamento?

 

- Posso dizer-lhe o que ele "deveria fazer. Estão a investigar-se os efeitos que "possa" ter no tratamento da arteriosclerose.

 

- Tratamento da arteriosclerose... Isso quer dizer que o medicamento pode curar o endurecimento das artérias? Nesse momento, Baird recordou-se de que a Newbury Pharmaceuticals, a pequena empresa que estava a desenvolver o Vasclear, tinha sede em Boston, terra natal de Louderman. De súbito, percebeu o motivo daquela audiência. Era uma emboscada, sem dúvida. Tapou o microfone.

 

- Barry - sussurrou -, já sabemos onde é que o Louderman quer chegar. Se acharmos que ele está a apertar-nos demais, quero que vá lá fora ao átrio, ver se consegue apanhar o presidente, e pedir-lhe para pôr cobro a isto.

 

Voltou a virar-se para Louderman.

 

- Por aquilo que conheço do medicamento, senador, e admito que neste momento não é muita coisa, o tratamento do endurecimento das artérias é uma possibilidade. Quero chamar a atenção do senhor e de todos os presentes nesta audiência para o facto de a investigação do Vasclear ainda se encontrar numa fase inicial.

 

- Um medicamento que trata o endurecimento das artérias e o senhor não conhece muita coisa acerca dele?

 

- Um medicamento que "pode" tratar o endurecimento das artérias, senador. Estamos neste momento a seguir centenas de investigações a novos medicamentos. E, como disse, a investigação do Vasclear ainda se encontra numa fase inicial.

 

- Desculpe-me - retorquiu Louderman -, mas a investigação deste medicamento está já bastante adiantada, e o povo americano deve ter conhecimento de que os resultados obtidos até à data têm sido espantosos. Sei de fonte segura que os cientistas da Newbury Pharmaceuticals pediram duas vezes à sua agência que o medicamento fosse introduzido no mercado, exigindo o mesmo tipo de consideração que foi dado a esse medicamento para a sida, e que os pedidos foram recusados das duas vezes pelos seus funcionários.

 

"Vá!", escreveu Baird no bloco. Barry Weisman tirou o telemóvel da pasta, enfiou-o no bolso do casaco e saiu à pressa da sala de audiências. Baird empatou as coisas bebendo outro gole de água. Por aquilo que sabia, o Vasclear era um medicamento bastante prometedor. Mas também sabia que os homens de Louderman tinham pressionado a equipa encarregue de avaliar os dados clínicos da Newbury Pharmaceuticals.

 

Os lucros de um medicamento capaz de eliminar a arteriosclerose seriam espantosos. Louderman tencionava candidatar-se à presidência pelos republicanos. O seu apoio inicial ao medicamento seria um grande golpe político, e arranjaria forma de uma parte dos lucros ir parar aos cofres da sua campanha. No entanto, por aquilo que Baird ouvira dos seus funcionários, por muito espantosos que fossem os resultados da fase dois do Vasclear, era necessário efectuar mais estudos em humanos.

 

- Desculpe, senhor doutor - insistiu Louderman -, mas importava-se de responder à minha pergunta?

 

- Eu... hum... receio ter de lhe pedir que a repita, senador.

- A sua agência apressou as coisas em relação à lovastatina e à zidovudina porque são medicamentos capazes de salvar vidas. Não acha que o Vasclear, uma cura para uma doença geralmente fatal, também seria capaz de salvar vidas?

 

- Neste momento, senador, acho apenas que é um medicamento com um grande potencial.

 

- Então acha mal! - Louderman bateu com o punho na mesa. - É evidente que não leu os resultados da investigação. Se o tivesse feito, estaria muito mais entusiasmado.

 

- Talvez - foi a única coisa que Baird conseguiu dizer.

- A comissão voltará a reunir-se de hoje a um mês, doutor Baird. Até lá, espero que esteja pronto a explicar ao povo americano por que motivo um medicamento capaz de salvar vidas, de as prolongar...

 

Um dos assessores de Louderman aproximou-se e estendeu-lhe um telefone. Louderman ouviu durante trinta segundos o que diziam do outro lado da linha, murmurou algumas palavras e depois voltou a dar o telefone ao assessor. O seu sorriso era gélido. Baird julgou ver um espasmo no músculo de um dos olhos.

 

- Muito bem - disse ele. - Parece que o senhor tem um protector muito dedicado na Casa Branca, aqui ao fundo da rua. Ele deseja que o senhor disponha do tempo que for necessário para avaliar o Vasclear e que faça disso a sua prioridade máxima.

 

Baird sustentou o olhar do senador.

 

- Farei o meu melhor, senador - respondeu.

 

- Espero que sim - retorquiu Louderman. levantou-se da cadeira muito direito e rematou, olhando mais para as câmaras do que para Baird: - E doutor, espero também que as pessoas acamadas lá fora com dores no peito e problemas cardíacos sejam tão pacientes consigo como o presidente.

 

Sem esperar resposta, Louderman encerrou a sessão, batendo com o martelo na mesa.

 

Baird aguardou que o estrado ficasse vazio e virou-se para Teri.

 

-Não quis dizer-lhe que você era a líder deste projecto.

- Podia ter dito. Temos andado em cima desse medicamento.                                      

 

- Eu sei. O que pensa das palavras do Louderman?

 

-Não gosto de mensagens subliminares acerca do nosso esforço para tratar a sida e da forma como estamos a esconder a cura milagrosa dos cidadãos americanos. Desconfio que o Louderman vai concorrer à presidência.

 

- Vai, e toda a gente o sabe, mas acha que devíamos acelerar o processo de aprovação do medicamento?

 

- Ainda não posso dizer que sim ou que não. No entanto, acho-o bastante prometedor. E não há dúvida de que é um dos que salvam vidas.

 

Baird observou o rosto dela durante alguns minutos. "O Weisman tinha razão", pensou. "A beleza e a inteligência da Terí Sennstrom só podem beneficiar a agência."

 

- Então está bem - disse. - Já sabe o que tem de fazer. Não gosto de me sentir pressionado, mas sabia que havia muita política neste cargo antes de o aceitar. Vou colocar esse medicamento no primeiro lugar da minha lista de prioridades e precisarei da sua ajuda para reduzir a pilha de informações para metade, a fim de poder lê-la.

 

-Com certeza.

 

- Trate disso e daqui a, digamos, uma semana, encontramo-nos outra vez.

 

- óptimo.

- Teri?

- Sim?

 

- Podemos deixar o Louderman exercitar-se quanto lhe apetecer. Isso é fazer boa política. Mas não podemos esquecer-nos das nossas responsabilidades. Não quero uma repetição do caso Kínethane. Não quero outra talidomida. Se este medicamento causar problemas, não podemos deixá-lo chegar ao público, quer o Louderman queira quer não,

 

Sala de correios, centro de comunicação, segurança, funcionários, lista de pagamentos. Um a um, Brian foi assinalando os serviços na sua lista, enquanto avançava pelo labirinto de corredores, edifícios e gabinetes que formavam o White Memorial. Havia mais de uma década que não precisava de se orientar num hospital e sentía-se tão tenso e nervoso como no dia em que tomara posse como cardiologista, em Chicago.

 

Na lavandaria, Brian tentou explicar que estava ali para desempenhar o cargo de cardiologista, mas o seu título - professor-assistente - punha-o um grau acima. Depois de uma longa deliberação, a mulher do balcão das fardas decidiu dar-lhe duas batas curtas para o seu desempenho médico e duas batas até ao joelho para o académico.

 

- Nada de calças brancas - disse ela com um forte sotaque asiático. - As calças brancas são para os residentes.

 

A sua última paragem foi no gabinete de assistência aos funcionários, que, a pedido do Dr. Pickard, já acrescentara o nome de Brian à lista de médicos, enfermeiras e outros trabalhadores que faziam testes à urina para detecção de álcool e substâncias ilícitas. A enfermeira que se encarregava das recolhas era simpática e sabia o que estava a fazer, mas, ainda assim, Brian sentiu-se um pouco atrapalhado.

 

, A norma era ele receber, pelo menos uma vez por semana, num dia seleccionado ao acaso pelo computador, um recado para "ir ao Dr. Jones". Depois disporia de duas horas para se apresentar no laboratório para fazer a análise. A única desculpa que poderia apresentar para se atrasar mais de duas horas era ter estado na sala de operações ou na sala de pequena cirurgia.

 

"É desagradável, mas não insustentável", admitiu. "E é merecido."

 

Brian assinou a documentação, levou as cópias e a folha de instruções e foi ter com Phil Gianatasio à sala de reuniões para iniciar uma visita guiada às instalações. Phil já se encontrava lá com um pequeno bolo em forma de coração, um coração anatómicamente correcto, e uma morena elegante que devia rondar os trinta anos. Carrie Sherwood era a secretária da ala de investigação clínica.

 

- Pedi à Carrie que viesse aqui conhecer-te, porque ela dirige o serviço clínico e queria que visses primeiro o seu lado agradável. O último médico que a fez irritar acabou por se atirar de um prédio.

 

- Philip, pára com isso...

 

Pela forma como a secretária escultural reagiu à provocação de Phil, Brian percebeu que eles eram amantes. Depois de uns minutos de conversa e de uma fatia de bolo, Carrie regressou à unidade de investigação, dando-lhes uma boa perspectiva do seu traseiro. Brian assentiu com ar aprovador.

 

-Uma bela mulher - disse.

 

- E sabes qual é a melhor característica dela? Está-se nas tintas para o meu excesso de peso! E tem uma data de amigas. Sem ter de puxar muito pela cabeça, lembro-me de duas que não se deviam importar nada de conhecer um médico simpático como tu.

 

- Quem me dera...

 

-A sério... andas com alguém? Brian abanou a cabeça.

 

- Saí com algumas mulheres, mas nenhuma me deu volta à cabeça.

 

- Bom, por aquilo que a Carrie me contou, as amigas dela são capazes de prender a tua atenção durante uma ou duas noites.

- Vamos primeiro às coisas importantes, okay?

 

Brian mal podia acreditar que respondera aquilo à sugestão do amigo. Ter-se-ia transformado num tipo assim tão aborrecido?

 

- O que eu quis dizer, é que, para já, acho melhor habituar-me a isto. Depois falamos com a Carrie - disse ele, à laia de desculpa.

 

- óptimo. Bem, o doutor Pickard sugeriu que começássemos pela ala de investigação, depois vamos aos laboratórios e, por fim, à Clínica Vasclear. Mas primeiro, uma vez que vais lá passar bastante tempo, ele quer que vejas o vídeo.

 

-O vídeo?

 

-O pessoal chama-lhe Vasclear Ober Alles. É um vídeo informativo que mostramos aos funcionários, aos visitantes e até aos doentes. Por acaso é bastante bom, mas é demasiado simplista para os médicos e complexo de mais para a maior parte dos nossos doentes.

 

O interesse de Brian aumentou logo. -Gostaria de vê-lo.

 

Pois irás vê-lo, meu amigo, desde que não te importes de ficar sozinho. Vi-o mais de dez vezes e já o sei de cor. A propósito do Vasclear, a Jessup já te disse alguma coisa sobre o teu pai?

 

-Não. Acho melhor falar com ela amanhã, na sala de pequena cirurgia, embora não me pareça que a melhor maneira de começar as minhas funções aqui seja desatar logo a aborrecer a directora-assistente. Ela telefonou uma vez depois da alta do Jack para saber como é que ele estava. Foi muito simpático da sua parte, mas não disse nada acerca do Vasclear. Antes de o Jack ter tido alta ela prometeu falar com o doutor Weber, para ver se conseguia que ele fosse admitido no programa.

 

- Bem, não sei se devas ter muitas esperanças - retorquiu Phil. - O Weber é uma óptima pessoa, embora não tenha o mínimo sentido de humor, no entanto, está empenhado em garantir que o protocolo em relação ao Vasclear seja cumprido à risca. Acho que se estivesse no lugar dele, em vias de imortalizar o meu nome e de meter ao bolso uns milhões de dólares, agiria da mesma forma. Então o que é que a Jessup disse em relação ao tratamento do Jack?

 

- Continua a recomendar a operação. -E o teu pai vai alinhar?

 

- Bem, Phil, depois das oito semanas de pesadelo que ele viveu a seguir à última operação, continuamos a preferir o Vasclear.

 

-Desde que o integrem no grupo beta...

 

"Desde que o integrem no grupo beta... " Brian foi até à janela e olhou para Cambridge, do outro lado do rio. "Se não houvesse maneira de conseguir integrar o pai no grupo beta, seria que o desespero o levaria a roubar o medicamento?" A pergunta não o largava. Só se apercebeu de que estava a ranger os dentes quando o maxilar lhe começou'a doer.

 

-Põe o filme - disse, fechando os estores. - E dá os meus cumprimentos à Carrie.

 

Phil atirou-lhe o comando e saiu. Brian instalou-se num dos cadeirões de costas altas de cabedal vermelho-escuro, reclinou o encosto, descalçou-se e pôs os pés em cima da mesa. Na edição da véspera do Globe aparecera um pequeno artigo sobre a pressão que o senador Louderman estava a exercer sobre a FDA para conseguir a comercialização do Vasclear. Mesmo que Jack não fosse admitido no estudo, talvez o tratamento que Jessup lhe estava a ministrar lhe desse tempo, desde que, é claro, Louderman ganhasse a batalha.

 

Com os pensamentos num torvelinho, Brian carregou em play.

 

O vídeo informativo de vinte e cinco minutos atraía a atenção e exigira certamente um grande orçamento, tinha bons gráficos, boa música, som, animação e um guião que podia ter sido escrito por um evangelista.

 

         VASCLEAR

 

                   A PROCURA TERMINOU A RESPOSTA ESTÁ AQUI

 

Primeiro apareciam alguns quadros e litografias de Ponce de Léon, na sua busca da fonte da juventude. A seguir um voo sobre a selva com uma banda sonora que parecia ter sido tirada de um filme do Indiana Jones e uma litania de algumas das drogas mais importantes extraídas das plantas da selva. Por fim, algumas imagens dos nativos sul-americanos - carnívoros que tinham descoberto o segredo para evitar a arteriosclerose e viver, segundo a voz off paternalista, um século ou mais.

 

Em seguida aparecia a Newbury Pharmaceuticals - um tributo aos seus feitos modestos no passado, uma visita pelas suas novas e reluzentes instalações, na zona industrial de Boston, e uma imagem dos seus laboratórios de investigação. Por fim, para explicar o milagre do Vasclear, a voz off apresentava o Dr Art Weber, o director do projecto.

 

Weber, bronzeado, de cabelo claro e olhos azuis, tinha um rosto jovem e atraente; parecia um actor de cinema. O seu sotaque aparentava ser da Europa do Leste. Com a ajuda de animação e de imagens numa sala de operações, Weber descrevia a génese da arteriosclerose e dos esforços da medicina moderna para combater aquilo a que ele chamava os "estragos do principal assassino do mundo civilizado" - as dietas, as drogas, as alterações de comportamento e, por fim, as intervenções cirúrgicas.

 

O bypass que tinham decidido mostrar era particularmente sangrento, reparou Brían. De certeza que não era uma operação feita por Laj Randa. Um doente que visse aquilo preferiria oferecer-se para participar em qualquer tratamento alternativo, para evitar a intervenção cirúrgica.

 

"A desobstrução das artérias com o Vasclear tem sido regular, dizia Wéber. "Aqui está a radiografia arterial de uma das nossas doentes, e aqui está a mesma doente doze meses depois do começo do tratamento com o Vasclear. Reparem na desobstrução da principal artéria coronária esquerda, da direita, nestes locais, e da circunflexa. E será que a doente reagiu bem? Vamos perguntar-lhe."

 

Acordes de uma viola, trombetas celestiais e ângulos dramáticos com a câmara acompanharam a voz animada de uma mulher:

 

"Eu tinha dores no ombro e no pescoço. Foi por acaso que fui ao médico e fiz um exame ao coração. Estava prestes a ter um enfarte. Deram-me a escolher: submeter-me a um bypass ou participar no estudo do Vasclear. Ainda não sei que concentração de Vasclear recebeu o grupo de tratamento do qual fiz parte, mas desconfio que foi uma boa dose, porque os sintomas desapareceram quase de imediato e não voltaram a fazer-se sentir."

 

A câmara mostrava agora o rosto da doente. Era a avó com quem toda a gente sonhava - expansiva, com um sorriso caloroso e olhos brilhantes.

 

"Nesta altura", continuava Art Weber, "ainda não podemos dizer que o Vasclear resulta com toda a gente, mas os nossos testes sugerem que setenta e cinco por cento dos doentes podem ser consideravelmente beneficiados. Os investigadores da Newbury Pharmaceuticals, em colaboração com os médicos do famoso Instituto do Coração de Boston, estão a tentar que esta percentagem seja melhorada."

 

O vídeo terminava com uma projecção daquilo que o mundo podia esperar do Vasclear. Quando acabou, Brian estava obcecado com o medicamento. O Vasclear era como os doces que o chamavam" das taças de porcelana na sala da tia Bea e Brian a criança a quem o pai proibira de lhes tocar.

 

A chuva do fim da tarde obrigara Bill Elovitz e uma dezena de outras pessoas a esperar à porta dos armazéns Filene. Faltava uma semana para o aniversário de Deborah, e fora uma parvoíce ir a Boston num dia como aquele. No entanto, saldos eram saldos e a mulher dissera-lhe exactamente o que queria mas só se ele conseguisse arranjar o roupão cor-de-rosa com um desconto de quarenta por cento.

 

Do outro lado da rua, uma multidão de pessoas encharcadas corria para a estação de comboios. Elovitz levantou o capuz do impermeável de borracha e apertou o cordão sob o queixo. O impermeável cor de azeitona fora-lhe oferecido no aniversário por Deborah havia alguns anos, mas ele só o vestira quatro ou cinco vezes.

 

A entrada acanhada do Filene protegia-o pouco da chuva batida pelo vento. Elovitz tinha setenta e quatro anos e estava aposentado. Nunca antes se aventurara a sair com uma tempestade daquelas. Dois rapazes, a rir e a gritar um ao outro, passaram por ele a correr e saíram para a rua.

 

-Como é bom ser-se jovem - disse a mulher de idade que estava ao seu lado.

 

- Como é bom estar-se vivo - retorquiu Elovitz. - Bem, acho que a chuva está a abrandar Bom dia.

 

Agarrou melhor no grande saco e correu para a estação. Quando chegou às escadas estava ofegante. Ficou encostado à parede durante quase um minuto, até achar que se sentia em condições de descer os degraus. Sabia que o ar húmido e pesado era parcialmente responsável pela sua dificuldade em respirar, mas também tinha a certeza de que estava a acontecer qual'quer outra coisa. Havia semanas que a sua resistência aos esforços físicos vinha a diminuir. Mais cedo ou mais tarde, teria de ver com o médico o que se passava. Contudo, naquele momento só queria ir para casa.

 

Começou a descer as escadas. Uma mulher escorregou no cimento molhado. Chocou com o homem corpulento que ia à sua frente e foi isso que a impediu de cair pelas escadas. Elovitz era normalmente um indivíduo calmo e descontraído, mas a multidão de pessoas molhadas e cheias de pressa e o ar pesado estavam a deixá-lo nervoso.

 

- Charlestown, onde Elovitz e a mulher viviam e trabalhavam havia vinte e cinco anos, ficava na Linha Laranja, a meia dúzia de estações dali. Quando chegou à plataforma, a falta de ar continuava e agravou-se, devido a uma forte sensação de claustrofobia. Sentiu uma enorme necessidade de procurar um lugar afastado da multidão - um lugar onde pudesse finalmente respirar fundo.

 

A plataforma de cimento, uma ilha que, de um lado, servia quem desembarcava e, do outro, quem embarcava, estava apinhada. O cheiro a roupa e cabelos molhados e a transpiração era desagradável e estranhamente assustador.

 

- Com licença, com licença - disse Elovitz, ofegante, espremendo-se por entre os corpos. - Com licença, desculpe... Com licença, por favor.

 

A plataforma ficava pouco mais de um metro acima dos carris. Assim que Elovitz chegasse à primeira fila, tinha a certeza de que conseguiria respirar.

 

- Veja se tem mais cuidado! - exclamou um homem atrás dele.

 

-Vá à merda! - resmungou o outro.

 

Elovítz agarrou-se ao saco, manteve os olhos postos no espaço livre à sua frente e avançou. Por fim, quando sentiu que estava quase a desmaiar, abriu caminho entre duas mulheres e chegou à extremidade da plataforma. O ar que vinha do túnel era leve e agradável. Elovitz deixou que a multidão o sustivesse enquanto enchia os pulmões. À direita ouviu o som do comboio a aproximar-se.

 

De súbito, quando as luzes da primeira carruagem apareceram, a multidão mexeu-se. A pressão exercida fez Elovitz desequilibrar-se para a frente. Dobrou os joelhos e um dos pés escorregou para fora da plataforma. Ouviram-se gritos e Elovitz caiu pesadamente na linha. Os ossos do pulso esquerdo fracturaram-se imediatamente, enviando um feixe de dor braço acima. A cabeça bateu no carril. Atordoado, rebolou e tentou pôr-se de joelhos. Os travões chiaram quando o maquinista tentou uma travagem de emergência. Noventa metros... sessenta... trinta... Elovitz levantou-se e cambaleou alguns passos para trás. Esses poucos passos salvaram-no, O chiar parou quando a primeira carruagem se deteve, a meio metro dele.

 

Naquele momento, parecia que todas as pessoas da plataforma lhe gritavam.

 

- Pare! - bradavam. - O terceiro carril!... Não se chegue ao terceiro carril!... Não se mexa!... É alta tensão!... Não se mexa!

 

Atordoado e desorientado, Elovitz virou-se para a cacofonia, pestanejando para a multidão e para as luzes,

 

- Não se mexa!... Tensão!... Quieto!... Não!

 

Um homem saltou para a linha e avançou na sua direcção. Num gesto reflexo, Elovitz deu um passo à esquerda. O sapato prendeu-se no carril, fazendo-o tombar para trás. Os gritos das pessoas intensificaram-se quando ele perdeu completamente o equilíbrio e, num movimento que parecia desenrolar-se em câmara lenta, caiu pesadamente em cima do carril de alta tensão.

 

Phil ainda não voltara, por isso Brian aproveitou para telefonar e saber como estava o pai. Jack podia ficar sozinho algumas vezes, mas com Brian ausente durante a maior parte do dia, as refeições nutritivas e alguém que lhe fizesse companhia eram uma prioridade. A preocupação dos amigos e vizinhos de Jack fora espantosa. Uma mulher chegara a elaborar um horário de acompanhamento e obrigara as pessoas a aderir. O facto de o pai não resmungar com a atenção que lhe estavam a dar revelava bem o seu estado de saúde.

 

Que tal vai isso, pai?

- Não me queixo...

 

A sua voz estava trémula. -Puseste-te de pé e andaste? -Um bocadinho.

 

Tiveste dores?

- Poucas.

 

"Bolas, Jack! Porque não deixas de te armar em machão e me dizes o que se passa?", apeteceu-lhe gritar. Porém, conteve-se.

- A enfermeira vai aí ver-te daqui a meia hora - continuou. - Pedi-lhe que me ligasse para me dizer como é que estás. Tens o número do meu pager.

 

- E tu, como é que estás? Já salvaste alguma vida?

 

- Não, mas também ainda não matei ninguém. Era só isso que eu queria.

 

-Aposto cinco dólares em como vais salvar a vida de alguém nas próximas vinte e quatro horas.

 

- Pai, as coisas não são assim na vida real, só na televisão, onde é preciso manter as audiências.

 

- Cinco dólares.

 

- Está bem, aceito. Vais ver logo à noite o jogo dos Sox?... Jack? - O silêncio foi demasiado prolongado. - Jack, o que é que estás a fazer?

 

-Nada - respondeu finalmente o pai, a voz ainda mais tensa do que antes. - Estou bem.

 

Brian sabia que ele tinha acabado de meter um comprimido de nitroglicerina na boca. Dores no peito quando se estava em repouso não eram um bom sintoma.

 

- Diz à enfermeira que me telefone - pediu. Phil regressou com café e donuts.

 

- Um pouco de alimento para dois médicos famintos antes de terminarmos a visita guiada - anunciou.

 

- Phil, tu és cardiologista. Como é que consegues continuar a comer essas porcarias?

 

-O que queres que te diga? Sou fraco. Pergunta a Miss Carrie. Mas, por outro lado, pelo menos não vou perder a licença por andar a comer doces.

 

-Bem visto. Mas assim que eu me instalar vamos começar a fazer dieta e exercício físico.

 

- Se achaste difícil largar os comprimidos, espera até tentares levar-me a um ginásio...

 

Percorreram a ala clínica, uma unidade com vinte e cinco camas e vários funceonários, e depois subiram e atravessaram a ala cirúrgica: o feudo de Laj Randa.

 

- Okay - disse Phil. - Que tal irmos aos laboratórios? O Instituto do Coração tem vários investigadores. Eu próprio disponho de um pequeno laboratório onde estou a tentar provocar num grupo de hamsters problemas coronários, com a ajuda do stress e de uma alimentação pouco saudável.

 

-E estás a conseguir?

 

- O que é que isso interessa? Os artigos que já publiquei sobre aqueles desgraçados ajudaram-me a continuar aqui. As experiências agora só servem para isso. É a medicina académica, meu amigo. Trata dos hamsters ou morre.

 

- Já percebi. Olha, se não te importas, prefiro dispensar a visita aos laboratórios e ir ver a Clínica Vasclear. Amanhã à noite estou lá a trabalhar. Uma das razões por que nunca me envolvi com a medicina académica foi o meu desejo de evitar a investigação.

 

- Então vamos à Clínica Vasclear - concordou Gianatasio. - Mas, se não te importares, vou pedir à Lucy Kendall, a enferneira-chefe de lá, que te acompanhe. Esta tarde tenho uma série de coisas para fazer e dava-me jeito começar já.

 

-Tudo bem. Diz-me só uma coisa, Phil: o que é que as' pessoas sabem a meu respeito?

 

- Não estou a perceber...

 

- Bem, esta Lucy Kendall, por exemplo. Ela sabe que acabei de recuperar a minha licença e tudo o que aconteceu antes? Gianatasio encolheu os ombros.

 

- A Lucy não costuma ligar aos mexericos se estes não lhe dizem respeito - respondeu -, mas um hospital é um hospital; as pessoas gostam de falar umas das outras e nós, os médicos, somos uns grandes alcoviteiros. Estou-me nas tintas para quem sabe do meu relacionamento com a Carrie e quem não sabe, por exemplo. Assim é mais fácil. Talvez as pessoas falem de ti, em especial depois do teu feito nas Urgências, mas até agora ainda não ouvi nada. Informo-te assim que ouvir.

 

-Sim, se fazes favor, Phil.

 

A Clínica Vasclear era, como seria de esperar, uma preciosidade: dez salas para administração da medicação alcatifadas e bem decoradas, com assentos reclináveis e uma aparelhagem por sala. Lucy Kendall, a enfermeira do Vasclear, mostrou o espaço a Brian enquanto lhe contava a história da sua vida. Era casada com um médico de clínica geral, vivia nos subúrbios e tinha dado à luz havia pouco tempo o segundo filho, um rapaz.

 

Brian ignorou as insinuações da mulher. Quando era casado, Phoebe explicara-lhe várias vezes as diferenças entre o que era ser-se simpática e atirar-se a um homem, mas até para ele Lucy Kendall era transparente. Desde o início que se mostrara extremamente afectuosa e dissera mais do que uma vez que estava muito contente por ter recuperado rapidamente a silhueta depois da gravidez. Ficou delirante quando Brian concordou com ela.

 

Brian ficou aliviado por ver que iria trabalhar com uma pessoa de tal modo deslumbrada consigo própria que provavelmente não iria interessar-se por ele nem pelo seu passado. Também achou que Lucy não dera pelo facto de ele, sempre que tinha oportunidade, alternar as perguntas sobre ela e a sua vida com perguntas sobre o Vasclear.

 

Sabia o que estava a fazer quando lhe sacou informações sobre a forma como o medicamento era manuseado, onde era dado, como estava etiquetado, como era administrado e onde se encontravam os relatórios. Sabia perfeitamente o que estava a fazer, mas preferiu não o admitir.

 

Estava a examinar o local, tal como examinara a farmácia do Hospital Suburbano. Estava a aproveitar-se de Lucy Kendall tal como se aproveitara do jovem - farmacêutico do Suburbano, à procura de uma falha no sistema que pudesse explorar. Só que desta vez não andava à procura de comprimidos para alimentar o seu vício. Agora estava a esboçar um plano para o caso de Jessup e Wéber se recusarem a admitir Jack no estudo do Vasclear ou não o integrarem no grupo beta.

 

Brian começou a tremer. Estava a trabalhar apenas há um dia e já andava a magicar como roubar um medicamento. Haveria alguma diferença entre roubar um medicamento experimental para salvar o pai e roubar comprimidos para aliviar o seu próprio mal-estar, a sua própria dor? O seu programa de recuperação era baseado na honestidade. Estaria ele emocionalmente preparado para recomeçar a enganar o sistema, por muitos remorsos que sentisse, por muito nobre que fosse o motivo? Depois de todas as reuniões e sessões de terapia, seria possível que não tivesse mudado nada, que tivesse enganado os terapeutas, o seu orientador e, pior ainda, se tivesse enganado a si próprio?

 

As perguntas fizeram Brian sentir-se enjoado... mas não o fizeram desistir

 

                   THE WASHINGTON POST

 

FDA Acusada de Demora com Medicamento Milagroso para o Coração

 

O presidente da Comissão do Senado para os Assuntos Governamentais, o senador Walter Louderman, do Massachusetts, acusou o director da FDA, o Dr. Alexander Baird, de lentidão na aprovação de um medicamento que, segundo Louderman, pode salvar anualmente a vida de centenas de milhares de americanos.

 

A tarde já ia no fim quando Lucy Kendall terminou, com relutância, a visita guiada de Brian e foi ver os doentes. Graças à sua loquacidade, Brian ficara a saber muita coisa acerca do manuseamento e da administração do Vasclear, mas, faltavam ainda alguns elementos - elementos que seriam descobertos assim que fizesse um turno na clínica.

 

Do quinto andar viu que lá fora o trânsito da hora de ponta fora agravado por uma chuvada. Os vinte minutos de viagem para Reading seriam duplicados ou mesmo triplicados. O relatório que a enfermeira que estava em sua casa lhe fez não o deixou preocupado com Jack e, como antecipara chegar mais tarde, pedira ao vizinho que organizasse o horário de modo que

o pai tivesse companhia até às nove. Não havia motivos para correr para casa e havia todos os motivos para se familiarizar com o White Memorial e com o Instituto do Coração.

 

E Estava prestes a telefonar para Uxington para dar as boas-noites às filhas e dizer a Phoebe que sobrevivera ao primeiro dia de trabalho quando o pager tocou. Foi atender a chamada.

- Bri, já acabaste aí em cima?

 

- Agora mesmo. Porquê?

 

- Vou dar uma consulta nas Urgências e lembrei-me que talvez quisesses encontrar-te lá comigo.

 

- Deixa-me ligar primeiro às minhas filhas, Phil. Depois vou ter contigo. O que é que há?

 

- Oh, o habitual. Um cavalheiro de setenta e quatro anos que caiu para a linha do comboio.

 

-E está vivo?

 

-Não só está vivo como também pronto para se ir embora.

 

-Parece o meu tipo de homem. Vai começando. Apanho-te daqui a uns minutos.

 

Marcou o número de casa de Phoebe, perguntando-se se voltaria a fazê-lo sem precisar de se preparar para o tom de desaprovação e cinismo que continuava a detectar na voz dela.

 

Quando Brian e Phoebe se tinham conhecido, ele já era dependente dos analgésicos, embora ela tivesse levado anos a aperceber-se. Confrontara-o com os seus receios e isso só servira para receber respostas iradas, seguidas de anos de mentira e negação. Freeman dissera-lhe que poucas coisas eram tão fortes como a perda de confiança. Phoebe receava a desonestidade dele e abominava a sua dependência das drogas e nada podia alterar isso a não ser o tempo - o tempo e a mudança que só a recuperação continuada poderia provocar em Brian.

 

Caitlin atendeu ao primeiro toque. Tinha nove anos, gostava de livros e era tão parecida com a mãe que Brian às vezes pensava que era Phoebe que estava enroscada no cadeirão a ler. Mesmo dois anos depois de ele ter saído de casa, Caitlin ainda não se mostrava disposta a aceitar a situação e raramente abordava o assunto. Nessa noite estava ansiosa por falar das suas aulas de Francês, da Heidi, que acabara de ler, e da última peça para piano que aprendera. Não pareceu muito animada quando Brian lhe sugeriu que fosse passar um dia com ele e com Jack., Parecia que Phoebe ainda não lhe explicara que, como o pai voltara a exercer medicina, Caitlin e Becky podiam ir visitá-lo sempre que o desejassem e ele quisesse. As visitas vigiadas tinham chegado ao fim.

 

- Je taime, papá - disse Caitlin antes de passar o telefone à irmã mais nova.

 

- Eu também te amo, querida - respondeu Brian, tentando desfazer o nó que se formara de repente na sua garganta.

 

- Toe, toe - chilreou Becky, sem se dar ao trabalho de o cumprimentar.

 

Com quase sete anos, era uma criança exuberante, cheia de energia, desportista e terra a terra, ao contrário da irmã, que era mais etérea. Brian perguntara-lhes uma vez se concordavam em alguma coisa. Não se admirou quando uma respondeu que sim e a outra que não.

 

- Quem é? - perguntou ele.

- Atão.

 

- Atão quê?

 

- Atão era pastor e guardava ovelhas no cimo do monte. Está aqui a mamã. Adeus.

 

- Becky! - exclamou Phoebe. - Anda cá falar mais um bocado com o papá... foi-se embora.

 

- Não faz mal. Consegui que dissesse uma piada. Contento-me com isso.

 

- Ela está óptima.

 

- Eu sei. Estão as duas... Bom, já voltei a trabalhar.

- Parabéns. Deves sentír-te muito orgulhoso.

 

- Pagam-me na semana que vem. Os médicos como eu recebem pouco mais que os principiantes, mas o cheque que te vou mandar tem quase mais cinquenta por cento do que é costume.

 

-O que é bom para todos - retorquiu Phoebe, frontal, como sempre. - A minha conta faz eco quando deposito dinheiro. Se o que disseste é verdade, daqui a pouco poderei reduzir o número de horas de trabalho... talvez colaborar com os escuteiros.

 

- Que boa ideia - comentou ele, evitando reagir à alusão aos seus anos de promessas quebradas.

 

Fez-se silêncio e Brian percebeu que ela esperava a sua resposta.

 

- Sabes - acabou Phoebe por dizer -, por muito zangada e frustrada que me tenha sentido, sempre achei que serias capaz de ultrapassar isto.

 

"Continua a ser um dia de cada vez", apeteceu-lhe responder. Em vez disso, porém, agradeceu-lhe. Ela nunca lhe dissera aquilo antes.

 

As Urgências estavam calmas, devido à chuvada. Brian dirigiu-se à zona da recepção, um pouco enlameada, e apanhou Gianatasio no corredor à porta do quarto número quatro. Phil estava debruçado sobre um homem numa cadeira de rodas e auscultava-o. O doente, que aparentava uma certa idade, tinha o pulso esquerdo engessado e o braço ao peito. O cabelo desgrenhado parecia um monte de palha grisalha. As suas feições rudes e vincadas eram agradáveis, embora nesse momento parecesse ansioso. "Passou por um momento difícil e sobreviveu", pensou Brian.

 

Phil tirou o estetoscópio dos ouvidos e endireitou-se.

 

- Wilheim Elovitz, apresento-lhe o doutor Brian Holbrook.

- Bill. Todos me tratam por Bill - respondeu Elovitz com um sorriso cativante e um ligeiro sotaque hibraico. Indicou a mulher de meia-idade que estava atrás da cadeira de rodas. Esta é a minha vizinha, Mistress Levine. Veio buscar-me.

 

- O Bill vai aparecer no noticiário das dez - disse Phil.

- Talvez até na CNN. A plataforma da estação estava tão apinhada que ele foi atirado para a linha quando o comboio vinha a chegar. O maquinista conseguiu parar a tempo, mas depois o Bill cambaleou, tentando levantar-se, e caiu em cima dos carris. Esta gabardina de borracha evitou que ficasse frito e no fim de tudo só teve uma fractura no pulso.

 

- O senhor diz "só teve" porque o pulso não é seu - observou Elovitz com secura.

 

- Porque é que pediram um exame ao coração? - perguntou Brian.

 

- Ora, em parte porque acharam que uma pessoa que caiu em cima de um carril electrificado deve ser examinada, quer a electricidade a tenha atravessado ou não, e em parte porque é um doente tratado com Vasclear. Um dos primeiros, por acaso. O interesse de Brian aumentou de imediato.

 

- E tem passado bem? - perguntou.

 

- Não sei o que entende por "bem" - respondeu Elovitz; mas não tenho passado mal. Agora, se me dão licença, a minha mulher está adoentada e ficou muito preocupada comigo. Tenho de ir para casa.

 

Brian notou que o homem inspirava demasiadas vezes: durante uma frase.

 

-Dispneia? - perguntou a Phil.

 

- Teve há uns tempos uma ICC - respondeu Gianatasio, utilizando a abreviatura para insuficiência cardíaca congestiva: líquidos a formarem-se nos pulmões por causa de um coração fraco. - Escute, Bill, você está um pouco ofegante. Eu já não trabalho na Clínica Vasclear, mas o doutor Holbrook trabalha, e ele gostava de o examinar. Pode ligar amanhã e marcar uma consulta com ele?

 

Elovitz pôs a cabeça de lado e observou Brian.

- Você é um bom médico? - perguntou.

 

- Bastante bom - respondeu Brian. - Sim.

 

- Nesse caso, telefono. Obrigado, doutor Phil. Vamos, minha querida.

 

Antes que qualquer dos médicos pudesse responder, Mrs. Levine já empurrara a cadeira para o corredor e dobrara a esquina. -Ele é engraçado - comentou Brian. - Que tal está o seu coração?

 

-Precisa de ser visto. Não sou capaz de fazer um bom exame no corredor, quando o doente, ainda por cima, está completamente vestido e ansioso por se ir embora. Foi por isso que lhe disse que marcasse consulta contigo. Daqui a dois dias fala com a secretária da clínica. Se ele ainda não tiver marcado consulta, telefona-lhe. Agora, vamos até à nossa sala. Quero saber se a Lucy se atirou ou não a ti.

 

Vinte minutos mais tarde Brian acompanhou Phil à porta do hospital e regressou, para continuar a sua visita guiada. Gian atasio não podia saber se Wilheim Elovitz não reagira bem ao Vasclear ou se os seus sintomas se deviam a outros factores que não o endurecimento das artérias, mas não deixou de referir um aspecto que Brian já conhecia: embora o medicamento fosse um êxito, vinte e cinco por cento dos doentes que o tomavam não reagiam favoravelmente.

 

Voltou para o Instituto do Coração e passou pela sala de operações do terceiro andar e pelos laboratórios do segundo. A recepção e os escritórios ficavam no rés-do-chão, juntamente com a clínica normal de cardíología. A cave albergava o laboratório de cateterismos cardíacos numa das extremidades e uma sala com animais na outra. No meio havia uma cantina. Brian lembrou-se que desde o pequeno-almoço só comera o bolo que Phil lhe levara.

 

Chegou às escadas ao lado da sala de pequena cirurgia e desceu à cave. Na manhã seguinte faria aquele percurso para assistir a um cateterismo pela primeira vez num ano e meio, e, ainda por cima, com Carolyn Jessup. A sala de pequena cirurgia e a videoteca, ao lado, estavam trancadas e o corredor da cave completamente deserto, embora houvesse luz atrás das portas de vidro da sala dos animais. Estava a chegar à cantina quando apareceu um homem que levava na mão uma caixa de cartão com dois cafés e algumas sandes. Era da altura de Brian, talvez fosse até um pouco mais alto, com ombros largos e cintura estreita, olhos pequenos e escuros, maçãs do rosto salientes e pele com cicatrizes de acne. Vestia calças de ganga e uma camisa azul e ficou tão admirado por ver Brian que quase deixou cair a comida.

 

O seu olhar cruzou-se por breves momentos. Brian viu apenas hostilidade e nem uma centelha de inteligência. O homem grunhiu um cumprimento, falhou na tentativa de sorrir e recuou vários passos antes de se voltar. Depois tornou a hesitar antes de subir as escadas em frente às que Brian usara para descer, as que iam dar à subcave. Brian olhou para o seu mapa. Os andares indicados no papel terminavam na cave. Tentou atribuir ao homem uma função, tendo em conta a sua roupa, o seu tamanho e a ligação à subcave. Manutenção? Segurança? Lavandaria? Aquecimento?

 

Momentos depois, Brian aquecia no microndas uma sande de peito de frango panado e bebia por uma chávena de papel o pior café que já provara. A expressão estranha e atordoada do bexigoso recusava-se a abandonar os seus pensamentos. Mas o que podia o homem ter estado a fazer? A roubar comida de uma das máquinas?

 

As reflexões de Brian foram interrompidas pelo pager. O número que viu no mostrador era o de casa. Procurou em volta um telefone e depois percorreu o corredor de linóleo com o que restava da sande e do café até às luzes ao fundo, na sala dos animais, que tinha dois pares de portas de vidro. Só depois de ter transposto o primeiro é que sentiu o cheiro dos animais e os ouviu. Ao transpor o segundo, o cheiro e o barulho aumentaram.

 

- Posso ajudá-lo?

 

O homem, com os pés sobre uma secretária velha e riscada, era magro e tinha um ar desleixado. Brian viu que tinha a barba grisalha por fazer, cabelo preto com manchas grisalhas em desalinho, calças de ganga e uma bata suja até ao joelho. O caneteiro com a placa do nome identificava-o como "Earl".

 

- Chamo-me Holbrook, doutor Brian Holbrook. É o meu primeiro dia aqui no Instituto do Coração, por isso ainda ando a tentar orientar-me. Precisava de usar o seu telefone, se fosse possível.

 

- É todo seu - retorquiu Earl com o sotaque dos Apalaches. - Já tinha ouvido falar da sua vinda. Vai ajudar no estudo do Vasclear, não é?

 

Brian admirou-se que aquele funcionário da cave tivesse ouvido falar de si, "Talvez as pessoas falem de ti, em especial depois do teu feito nas Urgências. Mas até agora ainda não ouvi nada." Não fora aquilo que Phil lhe dissera?

 

Os dentes do homem estavam manchados de nicotina e a precisar de ser tratados e ele contribuía de fórma significativa para o cheiro do aposento. Mas dele emanava outro cheiro que não o da sujidade, um cheiro a que Brian se tornara sensível nos últimos dezoito meses: álcool.

 

- É - respondeu Brian. - Vou trabalhar na enfermaria e algumas noites na Clínica Vasclear. Você participou nos estudos efectuados em animais?

 

- Claro.

 

Brian pegou no auscultador e deitou para o lixo o que restava da sande. O odor corporal do homem mais os vapores do álcool tinham feito desaparecer o seu apetite. O número de Jack estava impedido. Ainda há poucas horas a enfermeira lhe dissera que ele estabilizara e estava bem-disposto. Brian olhou para o horário. Sally devia estar naquele momento com o pai. "Não deve ser nada", decidiu.

 

- Está impedido - disse. - Importa-se que dê uma olhadela em volta antes de tentar outra vez?

 

-Como queira. Eu fico aqui,

 

- Que animal utilizaram nos estudos preliminares com o Vasclear?

 

- Oh, um pouco de tudo - respondeu Earl. - é o que acontece normalmente. Primeiro ratazanas e coelhos, depois porcos, ovelhas, cães e, por fim, macacos. Também gostam de trabalhar com corações de porco. Dizem que são muito parecidos com os dos humanos. Isso não me surpreende. Conheço muitos humanos que são porcos.

 

O seu riso cheio de muco devido à graçola terminou num espasmo de tosse. Brian olhou para o adesivo que lhe tinham posto no braço para testar a imunidade à tuberculose e tomou mentalmente nota para o repetir daí a uns meses.

 

-Surgiram alguns problemas nos testes? - perguntou. Earl olhou-o de forma estranha.

 

- Ora, não! - acabou por dizer. - Porque é que alguém se lembraria de perguntar isso?

 

Brian sorriu, admirado com a mudança de humor do homem.

- Só estou a querer saber mais umas coisas sobre o medicamento com que vou trabalhar - respondeu, imitando o sotaque do outro.

 

- Bem, para sua informação, os testes com os animais correram na perfeição.

 

- É óptimo saber isso. Daqui a pouco venho tentar outra vez ligar.

 

Brian virou-se e dirigiu-se para a porta de vidro à direita da secretária de Earl, percorrendo uma fila de jaulas.

 

O território de Earl era bastante grande e estava em melhor estado do que o próprio homem. O tamanho das jaulas e dos animais aumentava a partir da esquerda. Ratos, hamsters, ratazanas, coelhos e até alguns cães pequenos. Brian nunca tivera um animal de estimação quando era pequeno e talvez por isso não fosse um opositor apaixonado dos testes farmacêuticos efectuados em animais, desde que estes estivessem bem tratados, mas vê-los ali naquele momento, presos nas jaulas, afectou-o.

 

À direita, separadas do resto da sala por uma parede de vidro, encontravam-se várias jaulas maiores. Algumas estavam vazias de momento, duas tinham ovelhas, outras duas cães grandes e oito albergavam primatas - seis gibões magros e dois chimpanzés.

 

As jaulas dos primatas tinham um metro e vinte de largo e dois metros e meio de altura; um homem podia ficar de pé lá dentro. Brian sentiu-se satisfeito por ver balouços e brinquedos: alguém se preocupava com eles. Alguns macacos pareciam tão curiosos como Brian. De súbito, um dos chimpanzés prendeu a sua atenção. Era o mais pequeno dos dois, embora fosse tão grande como uma criança de seis anos. Encontrava-se encostado ao canto mais próximo da jaula, aparentemente a dormir, mas a sua respiração era ruidosa e difícil e o abdómen parecia inchado. Além disso, tinha as patas também bastante inchadas.

 

Brian achou que o animal sonolento devia estar com uma grave retenção de fluidos. Pulmões, rins, fígado, coração. Instintivamente, pensou nos vários problemas que podiam provocar aquele estado, reconhecendo que certos desequilíbrios hormonais podiam ter o mesmo efeito.

 

Havia uma esfregona encostada à parede mais próxima. Brian pegou nela, enfiou o cabo na rede e tocou ao de leve no animal. Nada. Nenhuma reacção. Repetiu o gesto com mais firmeza, fazendo tocar o cabo da esfregona na barriga inchada do chimpanzé. Um olho rameloso abriu-se e, lentamente, olhou para baixo, mas, para além disso, não houve qualquer reacção. O animal estava doente, quase moribundo. Brian tomou nota do número afixado na jaula: 4386. Depois regressou à secretária, onde Earl lia a banda desenhada do Herald.

 

Antes de falar do animal, Brian ligou ao pai. Este atendeu após o primeiro toque.

 

- Brian?

 

- Sim, pai. Estás bem?

 

- Claro. Só queria saber quando é que vinhas para casa. Brian fez uma careta. Outrora o homem mais independente que conhecera, o pai tornava-se cada vez mais dependente, à medida que a doença progredia. Brian vira o mesmo acontecer a vários dos seus doentes, mas Jack tinha apenas sessenta e três anos. Parecia que o seu envelhecimento natural acelerara. E sem irmãos, Brian sabia que tinha de arcar sozinho com as consequências. O pai começava a tornar-se o seu terceiro filho.

 

- Vou esperar que o trânsito melhore - respondeu BrianChego pelas sete e meia, oito horas. Queres que te leve alguma coisa?

 

- Que tal um gelado?

 

-Não podes comer gelado, Jack... Oh!, que se lixe! Olha, chego por volta das oito e levo-te um cone do Schiller.

 

- Isso era óptimo. Traz-me daquele feito com bolacha, okay?

 

- Com Oreos, pai. Combinado.

 

Brian despediu-se e pousou o auscultador, perguntando-se onde aquilo iria terminar.

 

- Obrigado - disse a Earl -, muito obrigado. Olhe, estíve a ver um daqueles chimpanzés, o da jaula quatro, três, oito, seis, e ia jurar que ele está doente.

 

- Que disparate. O Jake está gordo e é preguiçoso. Está tão doente como nós os dois.

- Talvez, mas acho que está a fazer retenção de fluidos. Venha comigo, que eu mostro-lhe.

 

- Não vou a lado nenhum. Passo por lá antes de me ir embora.

 

Na sua voz detectava-se uma certa irritação.

 

- Ei, tenha calma - retorquiu Brian com um sorriso, mas começando a aborrecer-se. - Não demora nada a ir lá. Apontou para o Herald. - Isso não desaparece.

 

Assim que acabou de falar, percebeu que o seu comentário fora mal recebido.

 

Earl levantou-se de imediato e enfrentou-o, o rosto vermelho com uma expressão alterada. O cheiro a álcool era ainda mais intenso do que Brian julgara a princípio.

 

- Olhe - replicou Earl -, eu disse que daqui a bocado ia ver o Jake, e é precisamente isso que tenciono fazer. Você é toxicómano, não é? É o que toda a gente diz. Então é melhor ter cuidado e ver a quem é que pode dar ordens.

 

Brian ficou chocado. Achou melhor ir-se embora e deixar o assunto morrer ali, mas o atacante que havia em si não o permitiu.

 

- Earl, posso ser novo aqui, mas não deixo de ser um médico e creio que o meu pedido não foi assim tão despropositado. Olhe, diga-me só em que estudo é que o macaco está a participar. Eu depois falo com o investigador.

 

- Estes animais são meus. Se houver alguma coisa a relatar, cabe-me a mim fazê-lo.

 

- Bem, não sei qual é o seu problema, mas você andou a beber, e não deve ter sido pouco. Vou falar ao doutor Pickard no que se passa aqui.

 

Earl espetou o queixo para fora.

 

-Como queira - retorquiu. - Faça queixa de mim a quem lhe apetecer. Aposto que não tarda nada está sem emprego. Agora saia daqui!

 

Brian conteve-se, embora a custo. Não valia a pena envolver-se à pancada com um funcionário poucas horas depois de ter começado a trabalhar. De punhos cerrados, deu meia volta e foi-se embora.

 

                   BOSTON HERALD

 

Comercialização de Medicamento Milagroso Pode Estar para Breve

 

"Responsáveis da Newbury Pharmaceuticals, do Sul de Boston, dizem que os testes efectuados com o Vasclear, um medicamento para cardíacos, demonstraram uma desobstrução inequívoca das coronárias em mais de setenta e cinco por cento dos casos. Pediram que o medicamento fosse considerado prioritário, o que permitiria a sua comercialização imediata, sem necessidade de efectuar mais testes."

 

Brian dormiu menos de duas horas antes do seu primeiro dia de trabalho completo. Não fora dessa forma que desejara preparar o corpo e o espírito para uma manhã na sala de pequena cirurgia e uma tarde na clínica, mas o turbilhão emocional do dia anterior recusara-se a abrandar.

 

"Faça queixa de mim a quem lhe apetecer. Aposto que não tarda nada está sem emprego... "

 

Credo! Apesar do comentário de Gianatasio sobre a situação, já toda a gente sabia a história de Brian. E era evidente, que, apesar de lhe terem atribuído responsabilidades no tratamento dos doentes, nas reanimações, nos cateterismos cardíacos e na Clínica Vasclear, ele continuava a ser o elemento mais baixo do totem que era o instituto do Coração. No entanto, sentia que a sua recuperação o preparara para lidar com a vida que o hospital lhe reservara.

 

O momento da verdade chegara havia quase ano e meio, no segundo dia que fora ao Centro de Tratamento Fairweather. A sua orientadora, Lois, ela própria também em recuperação, mandara afixar duas placas na parede atrás da secretária.

 

         "O TEMPO É A FORMA QUE A NATUREZA ARRANJOU DE IMPEDIR QUE TUDO ACONTEÇA SIMULTANEAMENTE."

 

                   "QUANDO FALAMOS DO AMANHÃ, OS DEUSES RIEM."

 

Brian estava a olhar para as palavras sem compreender a sua mensagem quando Lois bateu com uma régua na secretária.

- Muito bem, doutor Holbrook - disse -, chegou o momento da pergunta para os sessenta e quatro mil dólares. O que é que está disposto a fazer para sair do monte de merda onde esteve enterrado até agora?

 

Passada apenas uma semana desde a manhã em que dois agentes da Brigada Antidroga haviam entrado no seu consultório com a cópia da receita de uma grande quantidade de analgésicos e com uma dezena de receitas passadas a vários membros da família Holbrook, Brian estava ainda demasiado assustado, demasiado perplexo e demasiado deprimido para responder de imediato à mulher. Não podia saber que havia apenas uma resposta aceitável para a sua pergunta e que estava prestes a dá-la. Por fim, fitara-a com os olhos vidrados e vermelhos, a barba por fazer.

 

- Estou disposto a fazer qualquer coisa - respondeu. Diga-me o que tenho de fazer.

 

Ainda não sabia de onde lhe tinham surgido aquelas palavras. Na altura não reparou na satisfação que elas fizeram aparecer no rosto da sua orientadora, mas assinalaram o começo de uma mudança radical na sua vida.

 

O Centro de Tratamento Fairweather especializara-se em ajudar profissionais de saúde alcoólicos e toxicómanos. A maior parte dos setenta residentes do centro quando Brian lá estivera era constituída por médicos. E quase todos, concluíra ele, tinham de ultrapassar a sua arrogância, as suas propensões, a sua disciplina, a sua negação e a sua lógica para se libertarem dos seus vícios. Tinham de aprender que o que funcionava para eles em cursos como Química Orgânica - a inteligência e a força de vontade - não bastaria para que a sua recuperação fosse duradoura e que, aliás, seria até um empecilho nos primeiros tempos.

 

Para Brian, os ensinamentos de Lois e o resto do tratamento foram como um tronco a flutuar perto de um náufrago. Ele agarrou-o e não o largou, embora não fizesse ideia para onde a corrente iria levá-lo. Para alguns dos outros doentes de Fairweather, as reuniões, os orientadores e a entrega a um poder mais forte não faziam qualquer sentido. E enquanto discutiam, racionalizavam e resistiam, o tronco passava por eles e afastava-se. Alguns desses médicos - médicos com tanto treino, tanta inteligência e tanto para dar - já tinham morrido.

 

-Nos últimos três meses você levou uma vida protegida aqui no Fairweather - dissera-lhe Lois pouco antes da sua saída -, mas acredite, a vida real está à sua espera no Massachusetts, e às vezes a vida real consegue ser bastante cruel, em especial para um médico com a sua história, por isso, lembre-se, é um dia de cada vez, uma hora de cada vez, um minuto de cada vez. O que for preciso para conseguir ultrapassar um problema sem voltar a recorrer aos comprimidos.

 

"Faça queixa de mim a quem lhe apetecer. Aposto que não tarda nada está sem emprego... "

 

"Às vezes a vida real consegue ser bastante cruel... "

 

As palavras continuavam a reverberar na cabeça de Brian quando entrou no hospital pelo vestíbulo. Ainda estava abalado com o que acontecera na noite anterior na sala dos animais, mas sabia que iria suportar o que fosse preciso. A única coisa que sempre pedira fora conseguir voltar a exercer. Agora chegara a altura de provar o seu valor. E se provar o seu valor significava dar a outra face a idiotas como o da noite anterior, era isso que ele iria fazer. Havia demasiado em jogo - tanto para ele como para o pai.

 

Às oito e um quarto da noite anterior, Brian chegara a casa e encontrara Jack a dormir no cadeirão. Sally Johansen, a vizinha que ali se encontrava nesse momento, levara um dedo aos lábios, depois apontara para o frasco dos comprimidos de nitroglicerina e esticara três dedos. Três episódios de dor. Brian agradecera-lhe em silêncio, dera-lhe um beijo na cara e acompanhara-a à porta. Depois acordara Jack e dera-lhe o cone de chocolate. Jack mantivera-se acordado o tempo suficiente para comer o gelado e depois permitira que Brian o acompanhasse à cama, uma concessão que não era normal nele. O homem estava a ir-se abaixo. As decisões difíceis não poderiam ser adiadas durante muito mais tempo.

 

Brian colocara no chão, ao pé do sofá, uma pilha de jornais científicos e de textos sobre cardiologia. Depois, subitamente ansioso, vestira umas calças de fato de treino e fora correr cinco quilómetros; a noite estava agradável - era a primeira vez desde há meses que corria. Custava-lhe a engolir o encontro com Earl, mas, ao fim do primeiro quilómetro, conseguiu começar a pensar no que seria a sua vida quando voltasse a ter o seu próprio consultório e dinheiro na conta.

 

De regresso a casa, tomara um duche e instalara-se no sofá, para passar algumas horas a estudar. Estava a dormitar quando ouviu Jack gemer, arrastar-se até à casa de banho e depois voltar para a cama. Terminou o capítulo que estava a ler e foi até à porta do quarto. O pai encontrava-se encostado à cabeceira da cama e tinha na mão o pequeno frasco de comprimidos de nitroglicerina.

 

- A dor acordou-te? - perguntou Brian, sobressaltando-o.

- Oh, olá... não... quero dizer, um pouco. Ontem não foi um dos meus melhores dias.

 

-O meu também não - respondeu Brian sem pensar.

- O que queres dizer com isso? Ao telefone afirmaste que estava tudo bem.

 

-E está. Está tudo bem... menos tu e essa angina.

 

- Vamos combinar uma coisa - disse Jack, metendo um comprimido debaixo da língua. - Se eu for sincero contigo, tu és sincero comigo.

 

Fechara os olhos e deitara-se, esperando que o medicamento dilatasse as artérias coronárias e levasse um pouco mais de sangue ao seu coração ávido de oxigénio. Poucos minutos depois, ressonava. Brian ficou algum tempo a observá-lo.

 

"E se eu não tiver mudado nada?", pensou.

 

Brian chegou à sala de pequena cirurgia depois de ter visitado dezoito doentes com Phil, um cardiologista, dois médicos residentes, dois estagiários e as enfermeiras. Não ficou admirado ao observar que o seu velho amigo era um excelente professor e um médico carinhoso. Só dois dos dezoito doentes participavam no estudo do Vasclear, e, embora tivessem graves problemas cardíacos, faziam parte do grupo gama, que Phil dissera tomar quase de certeza placebo. A conversa sobre o Vasclear e a não existência de efeitos secundários no grupo beta deixou-o ainda com maior certeza de que Jack beneficiaria se recebesse esse tratamento.

 

Ia assistir Carolyn Jessup com uma doente de sessenta e nove anos chamada Nellie Hennessey numa observação de rotina após o tratamento com Vasclear. Do quinto andar, Brian desceu até à cave, sem conseguir esquecer o rosto de Earl e o do homem das bexigas.

 

Antes de entrar, olhou para a sala dos animais, do outro lado do corredor. "Número 4386." Valeria a pena falar a alguém do pobre chimpanzé ou do péssimo comportamento de Earl? Uma vez que estava há tão pouco tempo no Instituto do Coração, Brian achou que a resposta às duas perguntas era "não". Se tivesse que levantar ondas acerca de alguma coisa, que fosse acerca da inclusão de Jack no estudo do Vasclear.

 

Andrew, o técnico do laboratório, estava a mudar de roupa no vestiário.

 

-Bom dia, doutor Holbrook - cumprimentou. - Bem-vindo à equipa.

 

Havia uma simpatia genuína no seu cumprimento. Brian estendeu a mão e o homem apertou-a com firmeza. Quando se tinham conhecido, durante o cateterismo de Jack, Brian simpatizara de imediato com Andrew. De súbito, sentiu um certo desconforto ao pensar que Andrew, tal como todas as outras pessoas do instituto, já devia saber a história da sua vida. "Habitua-te", pensou, parafraseando uma coisa que Freeman lhe dissera mais do que uma vez. "Habitua-te e passa por cima."

- Trate-me por Brian - pediu.

 

-Muito bem, pois será Brian. Que tal está o seu pai?

- Você viu o cateterismo dele.

 

- Pois vi. Espero que o espectáculo que o doutor Randa fez não vos tenha assustado ao ponto de não quererem seguir a recomendação que fez. Ele é sempre assim.

 

- Por acaso, o Randa não concorda que eu inclua o meu pai no programa Vasclear.

 

- E?...

 

- Ainda não sei nada. Parece que o bypass que ele já fez pode ser um empecilho.

 

- Lamento. O Vasclear tem sido uma maravilha. Mistress Hennessey, que operámos esta manhã, estava tão mal como o seu pai antes de começarmos o tratamento. Espere só até ver o estado dela agora.

 

- Ela já se encontra aqui? - perguntou Brian.

 

- Está noutra sala com a Jennifer, a nossa enfermeira. A Lauren irá manobrar a consola na sala de controlo. Estavam as duas aqui quando operámos o seu pai.

 

- Bom, estou pronto.

 

- A doutora Jessup também já chegou. Acabei de a ver entrar no vestiário, por isso daqui a nada devemos começar. Mistress Hennessey é uma senhora simpática, muito simpática.

 

Brian entrou na sala de pequena cirurgia no preciso momento em que Nellie Hennessey estava a ser transferida da maca para a mesa de operações. Já vira antes o seu rosto agradável e travesso, embora levasse alguns segundos a recordar-se onde. Aparecia no vídeo do Vasclear. Brian lembrava-se dos seus olhos azuis brilhantes.

 

-Nellie, veja estes dois homens - disse Jennifer. - São duas torres. Parecem jogadores de basquete.

 

Nellie Hennessey apontou para Brian.

 

- O Andrew já conheço, querida - disse -, mas quem é este?

 

-É um novo médico, o doutor Holbrook. Vai ajudar a doutora Jessup no seu cateter.

 

Nellie fez sinal a Jennifer para que se aproximasse.

 

- É muito giro - ouviu-a Brian dizer, num murmúrio.

- Mistress Hennessey, muito gosto em conhecê-la - disse, pegando-lhe na mão. - Mas já a conheci ontem, quando vi o vídeo sobre o Vasclear.

 

- Ah! sim, os meus quinze minutos de fama - respondeu Nellie. - É médico há quanto tempo?

 

- Há algum, mas sou novo aqui.

 

Ela ficou pensativa durante algum tempo.

 

- Bem - disse, por fim -, a doutora Jessup é a maior. Há-de ensinar-lhe tudo o que precisa de saber a respeito disto.

- Obrigada, Nellie - agradeceu Jessup, entrando na sala,

 

já vestida para a operação. - Bom dia a todos. Calculo que se lembrem do doutor Holbrook. Brian, porque não se vai vestir? Quando voltar começamos.

 

Havia uma pequena área entre o vestiário e o laboratório. Brian colocou uma máscara, uma touca e esfregou as mãos e os braços durante quatro minutos no lavatório de aço inoxidável. Apesar de já ter feito mais de mil cateterismos ao coração, e embora naquele dia fosse apenas assistente, o seu coração batia com força. Sacudiu as mãos, regressou ao laboratório e deixou que a enfermeira o ajudasse a vestir a bata e a calçar as luvas.

 

- Muito bem, pessoal - disse Carolyn -, vamos começar. Nellie, está pronta?

 

- Já me doem as costas. Vamos acabar depressa com isto.

- Isso, queixe-se...

 

Jessup resumiu a história de Nellie Hennessey enquanto trabalhava.

 

- Mistress Hennessey é uma professora aposentada de sessenta e nove anos...

 

Sessenta e oito e meio - interrompeu Nellie.

 

-... sessenta e oito e meio, que há quase dois anos e meio se queixou de dores no peito...

 

-Por acaso, foi mais no ombro e às vezes no pescoço

- disse Nellie, começando a ficar com a voz pastosa, - nunca no peito.

 

Jessup colocou dois dedos sobre a artéria femoral de Nellie para sentir a pulsação e, com destreza, espetou o trocarte na pele anestesiada, por entre os dedos. Depois enfiou o cateter arterial pelo trocarte até à aurícula do lado esquerdo do coração de Nellie.

 

- Ter a Nellie como doente é como regressar à escola disse. - Recebemos notas por tudo.

 

- A menina recebe sempre cincos - elogiou Nellie, com a boca e a língua completamente secas.

 

- Esse cateter Ward-Dunlop desliza mesmo bem - observou Brian.

 

- Espero que só use destes quando começar a operar.

- Com certeza.

 

- Bom, continuando, a prova de esforço que fizemos à Nellie foi positiva e um cateterismo subsequente revelou várias obstruções nas coronárias. Ela era a candidata perfeita para o estudo do Vasclear. Não é verdade, Nellie?

 

Nellie, de olhos fechados, respirava profunda e regularmente.

- Jennifer - prosseguiu Jessup -, talvez devesse ter-lhe dado menos anestesia. Se eu tenho de ficar acordada, os outros também têm. - Olhou para a enfermeira com um sorriso a bailar-lhe nos olhos. - A sério, bom trabalho. Ela está óptima,..

 

Continuando, Brian, os sintomas da Nellie desapareceram quase de imediato e não voltaram. Este é o terceiro e último cateterismo que lhe fazemos.

 

- Em que grupo do Vasclear é que ela está? - perguntou Brian, já sabendo a resposta.

 

- No beta. Okay, agora é você. Vamos trocar de lugar. Você faz o coração direito. Depois trocamos, A Nellie está a dormir, por isso não lhe atribui notas. Descontraia-se e divirta-se.

- Obrigado.

 

Admirado e satisfeito por fazer algo mais do que observar, Brian colocou-se atrás de Carolyn, para ocupar o seu lugar na mesa de operações.

 

- Os Ward-Dunlop são praticamente iguais àqueles a que você está habituado - disse -, só que obedecem muito mais aos comandos e às ligações nas conexões. Ajustam-se e fixam-se.

 

- Estou impressionado - respondeu Brian, medindo o pulso e injectando o contraste,

 

A enfermeira Jennifer trabalhava agora ao seu lado, atenta a Nellie, verificando a tensão e o soro.

 

- Está tudo bem? - perguntou Brian.

- Sim - respondeu ela.

 

Brian mediu a tensão através do cateter e depois injectou um pouco de contraste para ver as válvulas tricúspide e pulmonar. O momento que ele julgara nunca mais poder viver chegara, por fim. Estava de volta a uma sala de pequena cirurgia e recuperara o controlo do seu próprio destino.

 

- Parece bastante à vontade - observou Jessup, regressando ao seu lugar para fazer o exame do coração esquerdo e da artéria coronária.

 

- É como andar de bicicleta. Ela tem um coração bastante saudável.

 

- Espere até ver as coronárias. As últimas imagens que temos são de há dezoito meses e estão guardadas na videoteca, a seguir ao vestiário das mulheres. Deram-lhe o código de acesso?

- Sim.

 

- óptimo. Quando puder, vá ver como era o coração da Nellie antes do tratamento com o Vasclear. Temos lá dois vídeos Vangard. Um está sempre de reserva.

 

- Estou impressionado - comentou Brian. Por aquilo que se recordava, os vídeos custavam cada um vinte mil dólares.

 

- Ainda vai ficar mais quando vir as imagens - redarguiu Carolyn. - Bom, vejamos agora o coração esquerdo e as coronárias.

 

O cateter experimental Ward-Dunlop era muito fácil de manipular e via-se perfeitamente no raio X.

 

-Esquerda anterior oblíqua e cranial... direita anterior oblíqua e caudal...

 

Jessup disse o nome de cada ângulo, esperou que Andrew posicionasse o raio X, depois injectou contraste e activou a câmara com o pedal que se encontrava junto ao seu pé direito. Por cima, um ecrã mostrava o branco brilhante do contraste a encher as coronárias de Nellie antes de se dispersar, outro monitorizava a batida cardíaca, oxigenação e outros sinais vitais. Na sala de controlo envidraçada, à direita, Lauren, a outra en fermeira, monitorizava outros ecrãs idênticos e vigiava a máquina que gravava em vídeo as injecções. Mais tarde, a cassete seria vista por Jessup, que ditaria o relatório. A espessura de todas as artérias importantes e de todas as obstruções seria cuidadosamente medida por computador e gravada.

 

- Direita anterior oblíqua e caudal - disse Carolyn, terminando a última das cinco panorâmicas das coronárias esquerdas. - Muito bem, se alguém tiver alguma coisa a dizer acerca da união eterna desta mulher e deste cateter no sacramento do matrimónio, que fale agora ou se cale para sempre... Como ninguém objectou à sua remoção, procedo agora a ela.

 

Carolyn retirou o cateter com a mesma suavidade, a mesma confiança que demonstrara ao longo de toda a intervenção cirúrgica. De súbito, o ritmo cardíaco da doente aumentou bruscamente. Abrandou e depois voltou a aumentar.

 

Momentos depois, Nellie Hennessey gemeu. Depois abriu os olhos. Em seguida começou a gritar.

 

- Oh, meu Deus!... O meu peito, o meu peito!... Oh, céus, não consigo respirar!

 

A gemer, Nellie Hennessey levou as mãos ao peito e agitou-se para trás e para a frente, batendo com os braços e os ombros no tubo do raio X, ainda posicionado logo acima de si. O aparelho continuava a registar batimentos cardíacos extraordinários, muitas vezes prelúdio de uma paragem cardíaca.

 

Brian não teve dúvidas do que se passava. A mulher estava a ter uma oclusão coronária - um ataque cardíaco. Mas porquê? Tinham acabado de examinar as suas artérias e elas estavam praticamente limpas de arteriosclerose. Só havia duas explicações possíveis.

 

- Dê-lhe morfina! - ordenou Jessup. - Três miligramas. Não, quatro. Como está a tensão dela?

 

- Dezoito, dez - respondeu Jennifer.

- Brian, o que acha?

 

-Ou ela está a ter um espasmo coronário - respondeu Brian -, ou a ponta do cateter partiu-se quando estava a retirá-lo. Isso já aconteceu antes?

 

- Não - respondeu Carolyn demasiado depressa. - Quero dizer, não aqui. Não há algum tempo... Nellie... Nellie! Tem de tentar estar quieta. Jennifer, onde está essa morfina?

 

- Quatro miligramas.

- aplique, por favor. -É para já.

 

- Oh!, meu Deus! - gritou Nellie. - Ajudem-me!... Por favor, ajudem-me!

 

Brian sabia que estava ali para assistir e Carolyn Jessup era uma especialista, uma professora. Mesmo assim, a vida de Nellie Hennessey corria perigo. Ele passara sete anos numa clínica privada muito concorrida, os três últimos como chefe de uma sala de pequena cirurgia bastante movimentada. Se se tornasse evidente que via algo que escapava a Jessup, não hesitaria em chamar a sua atenção para isso. Mas até ao momento ela agira da forma mais correcta. E, independentemente de quem mandava, Nellie Hennessey corria grande perigo.

 

- Vamos dar-lhe setenta e cinco de xilocaína, para diminuir esses batimentos extra - disse Carolyn. - Nellie, por favor, tente estar quieta! Andrew, dê-me um ângulo esquerdo anterior oblíquo e cranial. Tenho de ver se a ponta do cateter se partiu e se alojou em alguma artéria.

 

Andrew moveu a câmara para a posição esquerda anterior. Nellie, talvez já a responder à morfina, acalmara-se um pouco, mas continuava a gemer com dores. Jessup ligou a câmara fluoroscópica com o pé.

 

-Ali! - exclamou Brian.

 

Os outros levaram algum tempo a ver o fragmento, mas ele ali estava - uma pequena linha branca no ecrã a preto e branco. Tinha dezoito milímetros de comprimento e encontrava-se por cima da zona superior do coração, movendo-se a cada batida.

 

-O que é que acha? - perguntou Jessup. - Esquerda principal?

 

-É difícil de dizer, mas sim. Acho que sim.

 

Quase de certeza que a ponta do cateter se partira e se alojara na principal artéria coronária esquerda.

 

- Lauren, ligue para a sala de operações, por favor disse Jessup à enfermeira que estava na sala de controlo. Eles que reúnam uma equipa e o cirurgião que estiver disponível. Nós vamos resolver isto, mas quero-os em standby o mais depressa possível.

 

- Oh, Deus do céu, não consigo respirar! - gritava Nellie Façam alguma coisa... o meu peito está a ser esmagado... Por favor, façam alguma coisa!

 

Na sala, a tensão aumentava com os gritos da mulher. Brian ficou impressionado e agradado ao ver que todos os membros da equipa pareciam manter o autodomínio. O olhar de Andrew cruzou-se com o seu. Embora aparentasse calma, a preocupação do técnico era evidente.

 

- Jennifer, se a tensão estiver boa, dê-lhe mais dois miligramas de morfina - disse Jessup.                          

 

- Já dei.

 

- Brian, o que acha de a entubarmos? Consegue?

 

- Eu trabalhei numas urgências durante os primeiros anos. Se o anestesista não vier, acho que sou capaz.

 

- Lauren, chame um anestesista. Andrew, prepare tudo para que o doutor Holbrook possa entubar a doente. Não se esqueça de verificar o balão no tubo. Nellie, aguente. Consegue ouvir-me? - Nellie assentiu. - óptimo. Então escute, por favor. Partiu-se a ponta do cateter que usámos. Alojou-se numa das suas artérias e está a obstruir a circulação. Vamos tirá-la de lá. Percebido?... óptimo. Assim que a tirarmos, verá que se sente muito melhor. Quem é que veio consigo hoje?

 

-A minha... filha.

 

-Vamos já falar com ela. Entretanto, avise o doutor Holbrook se a dor não diminuir, para ele lhe dar mais morfina. Andrew, preciso de um snare microvenoso. Depressa, por favor.

 

O snare era um laço de arame enfiado num cateter e operado por um gatilho. Não era de fácil utilização, e com Nellie incapaz de estar quieta durante mais de quinze ou vinte segundos e o fragmento do cateter a mover-se a cada batida a sua recuperação seria dificílima.

 

Brian ficou impressionado ao verificar como Jessup enfrentava o desafio, mas depois de a primeira tentativa e de a segunda terem falhado, reparou que a tensão era perceptível na voz dela. Semicerrara os olhos. Abanou a cabeça, para descontrair os músculos.

 

O ataque cardíaco de Nellie evoluía rapidamente. Uma grande zona do músculo na parte da frente do coração estava a receber pouco ou nenhum oxigénio, e esse músculo reagia ao escasso fornecimento de oxigénio com uma dor fortíssima e uma instabilidade eléctrica - surtos contínuos de batidas extra bastante perigosas. Ainda não havia danos permanentes, mas em breve haveria, quase de certeza ainda antes de poder ser levada para a sala de operações. E se duas batidas prematuras se fizessem sentir ao mesmo tempo, o coração podia sofrer um bloqueio eléctrico - uma paragem cardíaca... Brian procurou não pensar nisso.

 

Jessup tentou uma terceira vez, depois uma quarta. Cerrou os punhos, frustrada.

 

- Lauren, já estão prontos na sala de operações?

- Ainda não.

 

- A tensão diminuiu um pouco - observou Jennifer calmamente.

 

Jessup preparou o snare para outra tentativa. Depois olhou para Brian com uma expressão de derrota. "Não se pode fazer mais nada", dizia o seu olhar, "a não ser esperar que a equipa de cirurgia salve Nellie antes de o coração parar completamente." Mas mesmo que Nellie estivesse na sala de operações a fazer um bypass outra batalha teria de ser travada - a batalha para salvar a maior quantidade possível de músculo cardíaco. A cada segundo que passava tornava-se mais difícil não haver danos irreversíveis ou ela sobreviver.

 

- Oh!, por favor.. oh, por favor.. oh!, por favor.. Nellie gemia sem parar.

 

Brian olhou para as pupilas dela; estavam o mais contraídas possível. Dar-lhe mais morfina seria arriscado. Uma queda da tensão arterial ou uma paragem cardíaca induzidas pelo narcótico agravariam ainda mais a situação.

 

- Ideias? - perguntou Carolyn.

 

- Só uma - respondeu Brian. - Tente usar um fórceps de biópsias em vez do snare.

 

- Quê?!

 

- Andrew, temos algum fórceps de biópsias Bipal? -Acho que sim.

 

- Já o usei algumas vezes para biópsias do endocárdio. Tem duas garras para agarrar bocados de tecido. Gostaria de tentar apanhar o bocado do cateter com isso.

 

- Tenho um aqui! - gritou Andrew

 

- Tente, por favor - ordenou Jessup, afastando-se para dar espaço a Brian.

 

- Ligaram da sala de operações - disse Lauren através do intercomunicador. - Estão a postos.

 

Jessup hesitou. Se aquela tentativa falhasse, esgotariam o tempo de Nellie, mas a corrida para a sala de operações também não seria menos arriscada. Durante cinco, dez segundos, houve apenas silêncio.

 

- Brian, sei que já lá vai algum tempo - acabou ela por dizer. - Sente-se bem a fazer isto?

 

Brian olhou para Nellie Hennessey ali deitada, de olhos fechados, a gemer baixinho. Lágrimas de dor corriam-lhe pela cara. Ele sabia, tal como Carolyn, que a situação ameaçava transformar-se numa tragédia. Se a obstrução não fosse removida de imediato, só restaria a Nellie esperar ficar praticamente inválida.

 

- Posso tentar... - respondeu.

- Então vá!

 

Brian inspirou e empurrou o fórceps pela aorta na direcção do fragmento. Ao longo dos anos passara horas sem fim a ler e a estudar modelos do coração, a assistir na sala de operações e a trabalhar em salas de pequena cirurgia. Agora servia-se de toda a experiência acumulada para visualizar o coração de Nellie a três dimensões - para ver mais além da imagem achatada do monitor e manobrar o fórceps de forma conveniente.

 

"A Comissão de Registo e Disciplina em Medicina deliberou que a sua licença para exercer seja suspensa durante um período de... "

 

As palavras da carta surgiram na mente de Brian no momento em que ele fechou a pinça Bipal: no monitor, o fragmento do cateter estremeceu.

 

- Acho que o apanhou - murmurou Jessup.

 

Muito devagar, Brian puxou o instrumento. Durante um momento, o fragmento pareceu prender-se em qualquer coisa, Depois tornou a mexer-se, indicando que continuava preso pela pinça. Brian puxou o Bipal pela coronária esquerda, um milímetro de cada vez, pelo arco aórtico, depois pela aorta descendente. Quase de imediato, as extra-sístoles desapareceram no electrocardiógrafo. E Nellie deixou de se contorcer ainda antes de o cateter sair pela virilha.

 

- Ah!... - fez ela. - Assim está melhor. A dor começou a desaparecer.

 

Os membros da equipa suspiraram em uníssono. A euforia de Brian excedia tudo o que alguma vez sentira num campo de futebol.

 

"A sua licença para exercer medicina foi suspensa... "

 

- Obrigado, meu Deus - murmurou ele sob a máscara.

- Lauren - disse Jessup de olhos brilhantes -, ligue para a sala de operações e diga-lhes que já não vamos precisar deles.

 

Eram quase duas da tarde quando Carolyn Jessup pôde dispor de alguns minutos para aceder ao pedido de Brian para se encontrar com ele. Parecia descontraída e, como sempre, elegante, com um fato de algodão cinzento e uma blusa branca. Tinha o cabelo escuro apanhado. O seu gabinete rivalizava em opulência com o de Pickard, com uma estante até ao tecto cheia de livros numa das paredes e vários certificados, diplomas, fotografias de celebridades e cartas de agradecimento a cobrir outra. Brian não viu qualquer fotografia de família ou de Jessup num ambiente descontraído. Mas como o assunto que o preocupava era de trabalho, decidiu ignorar a curiosidade que sentia em relação à mulher. Quando quisesse, poderia ler coisas a respeito dela no Quem é Quem na Medicina Americana.

 

Sentou-se numa cadeira de cabedal em frente à secretária. Um compromisso inadiável impedira Jessup de se encontrar com ele depois da operação de Nellie Hennessey. Ela fitou-o com os seus olhos castanhos e fez um gesto de assentimento.

 

- Você causou um grande impacte neste lugar em pouco tempo - observou.

 

Brian fez um gesto indicando a sua altura.

 

- Sempre tive dificuldade em passar despercebido - retorquiu.

 

- Sempre quis ser médico?

 

- Não. Por acaso, sempre quis ser jogador de futbol profisional. Mas gosto de ciência, e depois de ter arruinado um joelho num jogo percebi que ainda queria fazer mais qualquer coisa, por isso decidi arriscar e ingressar na Faculdade de Medicina.

 

Estou a ver. Bom, há dois doentes neste hospital que devem estar muito gratos por causa dessa decisão. Eu também estou.

 

 

- Obrigado. E obrigado por não se ter arrependido de me contratar.

 

Brian evitou puxar o assunto de Jack e do Vasclear, esperando que fosse Carolyn a fazê-lo.

 

- A verdade é que a decisão não foi só minha - disse ela. - Acho que a Nellie não teria sobrevivido se tivesse sido necessário levá-la para a sala de operações. Foi mesmo uma situação extrema. E, para lhe dizer a verdade, não pensei que você conseguisse salvá-la. Mas presumo, ou pelo menos espero, que não tenha querido encontrar-se comigo para me ouvir dizer que fez um óptimo trabalho...

 

- Não, embora saiba bem ouvir isso. Queria era falar consigo por causa do Jack.

 

- Com certeza. Tenho muito gosto em falar disso consigo. Mas antes há uma coisa que gostaria de referir; esqueci-me de falar nela na sala de pequena cirurgia antes de sair.

 

- Sim?

 

-Há sempre, no mínimo, uma dezena de medicamentos e produtos a serem avaliados no Instituto do Coração. Por vezes somos um dos vários centros que trabalha em cooperação, outras vezes somos os únicos responsáveis por um estudo. Há sempre muita coisa em jogo; dezenas ou centenas de milhões de dólares. Pessoal, equipamento, cargos de investigação, cargos de ensino, o seu" cargo... todos estão relacionados com a economia da investigação e do desenvolvimento.

 

- Compreendo - disse Brian, intrigado, sem perceber onde Jessup queria chegar.

Uma das medidas que o doutor Pickard e o seu antecessor instituíram, e que achamos ser fundamental para o crescimento continuado do instituto, é que todos os problemas detectados com produtos sejam comunicados ao doutor Pickard ou a mim. Nós avaliamos a situação e decidimos se alguma medida tem de ser tomada.

 

Brian começou a sentir um aperto no estômago. -Estou a ver - conseguiu dizer.

 

- Os funcionários da sala de pequena cirurgia e da clínica sabem que podem ser despedidos se falarem do trabalho que fazemos aqui a alguém... dentro ou fora do instituto. Este nosso sistema mantém-se em uso por uma boa razão. Por vezes, o fabricante pode corrigir um problema com um medicamento com um equipamento em poucas semanas, mas se os burocratas de Washington ou da fda tomam conhecimento de alguma coisa, isso pode levar anos. Toda a gente aqui sabe que é esta a política da casa, mas não sei se alguém já lha tínha comunicado. Brian sentiu-se em queda livre.

 

-Por acaso não. -E?...

 

- Bem, falei com o Phil Gian atasio acerca do que aconteceu. Já nos conhecemos há muitos anos.

 

- Eu sei. Isso não é problema. O Phil é um dos nossos melhores e mais leais funcionários. Está quase a ficar efectivo.

- Estou certo de que irá conseguir. Hum... há mais. Nunca gostei de deixar acumular o trabalho mais do que o estritamente indispensável, em especial o trabalho burocrático. Ditei o comentário à operação ainda antes de ter tirado a bata. O comentário incluía a recuperação da ponta do cateter que se partiu, embora não tenha dito que estava a trabalhar com um fórceps BipaL

 

, - Não há problema - respondeu Jessup. - Assim que receber a sua cópia, mande-ma. Eu volto a ditar o comentário e você não tem de preocupar-se com o assunto.

 

Brian. começou a sentir-se verdadeiramente preocupado por causa do que ainda não revelara. Por momentos pensou em mentir por omissão e não lhe contar o que mais fizera, mas, mais cedo ou mais tarde, ela acabaria por descobrir. E, quando isso acontecesse, a carreira dele no Instituto do Coração poderia chegar ao fim.

 

-Receio que haja mais uma coisa - disse. Jessup franziu o sobrolho.

 

- Continue.

 

- Bom, depois de ter terminado o ditado, reparei que havia na secretária uma pilha daqueles impressos MedWatch que devemos enviar para a fda com a descrição de um problema ocorrido. Já que estava ali, preenchi um e enviei-o.

 

Brian viu os músculos do rosto de Jessup contraírem-se. O preenchimento desse impresso é voluntário - disse ela. Eu sei. Sempre achei que os médicos estavam demasiado ocupados ou eram demasiado preguiçosos para comunicar a maior parte dos problemas detectados com medicamentos e produtos, por isso sempre fiz questão de contrariar essa tendência. "Foi muito idiota da tua parte."

 

Teria Jessup realmente dito aquelas palavras ou tê-las-ia ele imaginado?

 

- O que é que fez exactamente ao sobrescrito? - perguntou ela.

 

- Desculpe?...

 

- O sobrescrito. O sobrescrito com esse relatório. - A voz de Jessup era áspera. - Meteu-o no correio?

 

- Eu... sim. Sim, deixei-o na sala do correio quando saí do laboratório. Doutora Jessup, lamento imenso. Se eu soubesse... Jessup já pegara no telefone e pedira que lhe ligassem à sala do correio. Ao fim de alguns minutos de espera, e de olhar para todo o lado menos para Brian, pousou o auscultador.

- O correio já saiu - disse num tom neutro. - Tínhamos combinado com a Ward-Dunlop que lhe daríamos a oportunidade de corrigir qualquer problema que surgisse com o cateter. É assim que trabalhamos. O cateter deve ser aprovado pelo Governo no fim do ano. Em Janeiro será utilizado por vários hospitais do mundo inteiro.

 

"Mas tem defeito", pensou Brian. E não havia Jessup referido um incidente anterior semelhante noutro hospital?

 

Como se tivesse lido os seus pensamentos, Jessup pareceu abrandar o ataque.

 

- Brian, eu sei que as suas intenções eram boas e acho que os médicos devem proteger os seus doentes de produtos e medicamentos defeituosos ou perigosos, mas há uma forma melhor, mais eficaz e mais barata de o fazer, sem ser confiar na agência mais inapta e burocrática do Governo. O que vimos no laboratório foi provavelmente apenas um defeito isolado num produto isolado, não uma falha de concepção.

 

- Compreendo, Acredite que não volta a acontecer.

 

- Bom, espero que não. Os funcionários da Ward-Dunlop vão fazer o que puderem para lidar com o impacte do seu relatório. - Olhou para a agenda e depois para o relógio. - Mais alguma coisa?

 

Brian percebeu que ela continuava irritada.

- O meu pai? - perguntou.

 

- Ah!, sim. Ele parece estar a dar-se bem com a medicação que lhe receitei.

 

- Por acaso, creio que está um pouco instável. Não o acho muito bem. Ao ver esta manhã o estado da Nellie desejei mais do que nunca que ele pudesse começar a tomar o Vasclear.

- Ele precisa de ser operado, Brian.

 

- Doutora Jessup, o meu pai faz apostas por tudo e por nada.

 

É uma espécie de passatempo. Dê-lhe a escolher entre os setenta e cinco por cento de hipóteses que a Nellie Hennessey tinha quando começou a tomar o Vasclear e a operação, e ele de certeza que escolherá o Vasclear.

 

- Brian, por favor. Eu sou a médica dele, e recomendo a repetição do bypass. Preciso de ser ainda mais clara? -Disse que iria falar com o doutor Weber.

 

- Lamento, ainda não tive oportunidade. Mas ele é muito cioso. Tenho a certeza de que diria que não aceitamos doentes com bypass.

 

- Porque não forma um subgrupo?

 

- Mesmo que o aceitássemos, ele teria de ser randomizado, como todos os outros doentes. Assim, só teria trinta e três por cento de hipóteses de obter os resultados de que falou.

 

- Foram as mesmas hipóteses que a Nellie Hennessey teve, e veja como ela está. Doutora Jessup, quero o meu pai de volta e não quero que ele sofra como sofreu com o último bypass.

 

- O doutor Randa, apesar dos seus defeitos de personalidade, é muito melhor do que o doutor Clarkin-

 

- Tenho a certeza de que o Randa também teve operações mal sucedidas.

 

- Bolas, você é persistente. Vamos fazer o seguinte: o doutor Weber tem estado fora, mas creio que já regressou. Você está cá de tarde?

 

-Por acaso vou estar na Clínica Vasclear.

 

- Muito bem. Vou tentar, por causa do que você fez esta manhã para salvar a Nellie. Vou falar com ele e depois entro em contacto consigo na clínica.

 

- Não posso pedir-lhe mais nada.

 

- E acabaram-se os relatórios Para a FDA?

- Sim.

 

- Muito bem. Então, por agora, é tudo.

 

Brian virou-se para a porta, e depois tornou a virar-se para a médica.

 

- Doutora Jessup, lembra-se de há pouco ter falado da minha persistência?

 

- Herdei-a do meu pai.

 

O monumento a Iwo Jima tinha vista para o rio Potomac e ficava perto do Cemitério Nacional de Arlington. O Dr. Alexander Baird entrou na limusina, que o fora buscar, tal como combinado, deixou que o motorista decidisse onde ia levá-lo e passou ao lado da estátua, dirigindo-se a um determinado banco. Ali, afastado dos trilhos e dos caminhos por um pequeno maciço de sempre-verdes, sentou-se e ficou à espera.

 

Habitualmente o dia de Baird começava às seis, com uma corrida pelas ruas de Georgetown, seguida do pequeno almoço com a mulher. Naquele dia, para seu desagrado, tivera de substituir esses dois prazeres por uma ida matutina ao escritório de Rockville. Durante a manhã continuara a analisar as duas pilhas de papéis com quase metro e meio de altura que constituíam o relatório sobre o Vasclear e os resultados da investigação.

 

Passava pouco da uma da tarde e, com excepção de alguns corredores, o parque estava deserto. Do outro lado do rio, o sol brilhava sobre as estátuas de Jefferson e Lincoln e sobre a cúpula do Capitólio. Vista de longe, Washington, D. C., parecia possuir uma beleza de alabastro, mas Baird já percebera que deixar-se iludir pela cidade - pelo seu aspecto, pelo seu poder, pela sua determinação - era o mesmo que deixar-se fascinar pela beleza, simetria e movimentos sinuosos de uma cobra-capelo.

 

Tinham passado quatro dias desde a audiência com a comissão de Walter Louderman. Durante esse tempo, tal como prometera, Baird acrescentara à equipa de Teri Sennstrom três examinadores para analisarem o relatório sobre a investigação do Vasclear e os dados sobre os cateterismos cardíacos, mas parecia que o senador Louderman, tal como a maior parte dos homens de Washington, só confiava em si próprio.

 

Tinham começado a circular memorandos que sugeriam que laboratórios farmacêuticos maiores e mais antigos que a Newbury andavam a pressionar Baird para impedir a distribuição do Vasclear, enquanto os seus cientistas procuravam o composto quimicamente diferente do do Vasclear, mas semelhante em resultados e eficácia. Ao mesmo tempo, tinham começado a surgir artigos na imprensa não especializada do mundo inteiro exaltando os espantosos resultados do maravilhoso medicamento e calculando o número de vidas perdidas e de dinheiro que era desperdiçado a cada dia que o medicamento continuava trancado nos armazéns da Newbury. "Fonte da juventude reduzida a um fio de água", anunciava o cabeçalho de um dos tablóides de Nova Yorque.

 

Se os homens de Louderman se ocupassem da sua campanha presidencial de forma igualmente eficaz, a reeleição do titular seria posta em causa. Eram feitas referências suficientes ao AZT, o medicamento para a sida, para desencadearem um fluxo de cartas ao editor e aos congressistas exigindo que um medicamento destinado a curar o coração da América recebesse da FDA a mesma prioridade que outro destinado a combater o vírus a que alguns dos protestantes mais radicais chamavam "o vírus de Deus".

 

O ataque da imprensa não podia ter sido mais eficaz. De súbito, até os leigos pareciam saber que o AZT fora aprovado em 1987, após menos de dois anos de testes clínicos e de três meses de análise por parte da FDA. E, embora na altura Alexander Baird estivesse a dar aulas a estudantes de Medicina no Missouri, dizia-se agora que ele conduzira esse processo de forma muito diferente da que utilizava presentemente com o Vasclear. Por fim, não fora surpresa receber um telefonema de' Stan Pomeroy, o porta-voz da Casa Branca, a marcar aquele encontro.

 

Baird esfregou os olhos cansados e olhou com inveja para dois corredores que passaram no trilho à sua esquerda. Era opinião geral que ele fizera um excelente trabalho na recuperação da confiança pública e privada na sua agência. Agora, porém, a

pressão política parecia prestes a arrasar a cautela que caracterizara os seus primeiros nove meses como director da FDA. E as únicas armas que conseguira reunir para contrariar essa tendência haviam sido a sua intuição e o seu respeito pelo progresso científico.

 

- A meditar?

 

Stan Pomeroy aproximara-se vindo das árvores atrás de Baird. Sentou-se no banco e estendeu-lhe a mão. Baird apertou-a com prazer. Pomeroy era o primeiro porta-voz negro da Casa Branca e era estimado numa cidade onde a estima não era fácil de obter. Quando Baird hesitara em entrar na fornalha da fda, fora Pomeroy quem voara até ao Missouri para o convencer.

 

-Nada que não seja resolvido pela descoberta do sentido da vida - retorquiu Baird.

 

- Estou a ver. Bem, nesse caso, posso dar-lhe um pouco mais de tempo.

 

-Não é preciso, basta-me até logo à noite.

 

-Obrigado por ter acedido a encontrar-se comigo assim, Alex.

 

-Havia alternativa? Pomeroy encolheu os ombros.

 

- Há sempre uma alternativa. Eu disse-lho quando lhe pedi que viesse para a fda. O presidente sabia que você iria ocupar um cargo ingrato e controverso. Sabia-o na altura e sabe-o agora. Você é que manda.

 

"Só que aqui estamos a falar do presidente dos Estados Unidos", pensou Baird, "o homem de quem até os gorilas de trezentos quilos se desviam."

 

-Obrigado, Stan - disse.

 

Pomeroy abriu a pasta e tirou de lá um dossiê cheio de recortes de jornais. Baird folheou-o e reparou que eram de vários países.

 

- Já viu isto?

 

- Vi um número suficiente. -Eh...

 

- Stan, só posso dizer-lhe que uma análise superficial à imprensa não especializada detectará dezenas... ou melhor, centenas de artigos acerca das últimas descobertas no combate ao cancro, às doenças cardíacas, à Alzheimer ou à sida. O público está ávido de boas notícias em todas as áreas da medicina, mas especialmente nessas. O fornecimento de informações à imprensa é a forma de extorsão utilizada pelos investigadores para obterem mais fundos e pelos laboratórios farmacêuticos para influenciarem a opinião pública. O problema é que, na maior parte dos casos, há um motivo para essas pessoas apresentarem primeiro os seus problemas ao público leigo, em vez de à comunidade científica: o motivo é que o seu trabalho não resistiria a um exame científico minucioso.

 

-E que tal está "este" medicamento a resistir ao "seu" exame, Alex?

 

Baird pensou algum tempo antes de responder.

 

-A verdade - disse, por fim - é que os resultados são impressionantes, pelo menos até agora. Os doentes da fase dois foram randomizados em três grupos de tratamento, cada um com cerca de duzentas pessoas, e parece que um dos grupos está a obter melhores resultados que os outros dois e outros muito piores.

 

-Então qual é o problema?

 

- Não sei, Stan. É um pressentimento... um formigueiro na nuca. Primeiro, temos a Newbury Pharmaceuticals. Apareceu vinda do nada. Até ao Vasclear só tinha produzido vitaminas e alguns medicamentos genéricos. Não se esqueça que a FDA não tem orçamento nem pessoas para fazer investigação científica ou clínica. Só podemos avaliar o trabalho dos laboratórios. Quanto melhor conhecermos um laboratório e os seus métodos, mais fácil é acreditar que nos estão a dizer tudo o que há para dizer. E depois há o problema do próprio medicamento.

 

- Continue.

 

- Bem, o medicamento é quase demasiado bom para ser verdade. Talvez eu esteja com receio do potencial da cura que nos foi apresentado por essas pessoas... com receio de que algo corra mal. Até este momento obtivemos resultados espectaculares no tratamento de uma doença devastadora e efeitos secundários mínimos ou nulos. Normalmente os nossos estatísticos tentam sacar aos fabricantes ratios risco-benefício, para poderem decidir se os êxitos dispersos obtidos são superiores aos efeitos secundários terríveis de um medicamento. No caso do Vasclear - e se, como já afirmei, me disseram tudo o que havia para dizer - não há contestação. A única coisa negativa digna de nota em que reparei em relação ao medicamento é que ele não funciona em toda a gente. Vinte e cinco por cento do grupo beta - o grupo que calculo que esteja a receber doses Mais elevadas de Vasclear - não beneficiou nada com o medicamento. Mas, mesmo assim, setenta e cinco por cento de êxito sem efeitos secundários mínimos colocariam qualquer medicamento na história da medicina.

 

- Então volto a perguntar-lhe, Alex: qual é o problema?

 

Baird suspirou e massajou as têmporas.

 

- Talvez nenhum. Mas os dados que nos foram apresentados reflectem apenas dois anos de tratamento com seiscentos doentes. Garanto-lhe que a poucos dias da aprovação do Vasclear estarão envolvidos dezenas de milhar. Daqui a meses serão centenas de milhar. Talvez milhões. Não estamos a falar de uma pomada para uma irritação, Stan. Este é o medicamento de que as pessoas estavam à espera, um medicamento que tem potencial para modificar o mundo civilizado, para dar a muitos de nós anos, décadas de vida.

 

-É precisamente isso que diz o presidente. -Mas são só seiscentos casos.

 

-Não investigam os medicamentos novos à procura dos efeitos secundários?

 

- Claro, mas os relatórios são-nos fornecidos de forma voluntária e com várias lacunas e este medicamento vai ter uma procura gigantesca. Assim que for comercializado, assim que começar a ser distribuído, se surgirem, a longo prazo, efeitos adversos que agora desconhecemos, vamos ter nas mãos um grande problema.

 

- Mas até agora ainda não se detectou nada. - Pois não.

 

-E o estudo está a ser bem conduzido?

 

- Sim, tanto quanto podemos aperceber-nos. Tenho uma das nossas melhores funcionárias a coordenar a revisão dos dados da Newbury Pharmaceuticals, a Teri Sennstrom. Conhece-a?

 

- Acho que sim. Jovem, alourada, mais ou menos bonita?

- Exacto, embora ache que a maior parte dos homens estaria em desacordo consigo na parte do "mais ou menos". Ela é também bastante inteligente e minuciosa.

 

- E já foi a Boston ver como está a decorrer o estudo e conhecer as pessoas que estão a conduzi-lo?

 

-Sim, mas isso já foi há algum tempo.

 

- O que acha de a mandar lá outra vez? Ou, melhor ainda, porque não vai você, se pensa que isso pode ajudá-lo a tomar uma decisão?

 

- Está a referir-se à decisão de aprovar o medicamento? Pomeroy pressentiu de imediato a irritação de Baird. Virou-se, pondo a perna no banco, de modo a ficar de frente para o director da FDA. A intensidade do seu olhar espelhava a das suas palavras.

 

- Alex, se isto não fosse importante para nós, se não fosse muito importante, eu não estaria aqui.

 

- Quando concordei em aceitar este cargo você prometeu-me liberdade de acção.

 

- E ainda a tem.

 

- Tenho? Então porque sinto que estou a ser equilibrado no nariz da foca presidencial?

 

Pormeroy sorriu perante aquela imagem, mas susteve o olhar de Baird.

 

- Diga-me uma coisa, Alex. A verdade. Se estivesse neste momento com dores no peito, o que escolheria: o Vasclear ou um bypass? Com base no que sabe "agora"...

 

A pergunta era hipotética e um pouco injusta, e a expressão de Pormeroy dava a entender que ele sabia isso. A verdadeira pergunta era: quando é que a investigação de um medicamento, a compilação de resultados, é suficiente? Em mãos hábeis, as estatísticas eram tão maleáveis como plasticina.

 

"Dê-me números", dissera-lhe uma vez um dos melhores estatísticos da FDA, "e eu dou-lhe os resultados que quiser sem fazer batota. Só depende dos testes estatísticos que preferirmos usar, bem como dos testes que preferirmos não usar."

 

Baird olhou para a cidade.

 

-Com os dados e os relatórios de que disponho agora

- acabou por dizer, aceitando que estava prestes a capitular-, e não sabendo mais nada, acho que escolheria tomar o medicamento.

 

Pormeroy suspirou de alívio.

 

-Obrigado, Alex. Obrigado pela sua sinceridade. Nesse _ caso, você e a doutora Sennstrom têm três semanas. Ao fim desse tempo, o presidente gostaria de estar ao seu lado quando você assinar a autorização de comercialização do novo medicamento e ele anunciar que a pesquisa, parcialmente financiada pela sua administração, está prestes a dar um grande passo na direcção da cura das doenças cardiovasculares. Se, entretanto, encontrar uma razão forte para não aprovaro medicamento, quero que no-la mostre, e depois poderá dispor de mais tempo... Alex, sei que está a pensar demitir-se por causa disto. Só posso implorar-lhe que não o faça.

 

- Okay, Stan - deu consigo a dizer, como se se encontrasse num túnel longo -, três semanas, então.

 

Brian visitou os restantes dezassete doentes e dirigiu-se para a Clínica Vasclear. Carolyn Jessup ainda tinha de lhe dizer qual o resultado da sua conversa com Art Weber, mas prometera-lhe que teria notícias antes de ir para casa. Jack passara uma noite razoável, mas não deixava de levar a vida de um inválido. E tinha consciência disso. Depois de ajudar o pai a deitar-se, Brian sentara-se na beira da cama e voltara a falar-lhe da operação e do Vasclear.

 

- Quero morrer - disse Jack. - Olha para mim. O que é que me espera? Meu Deus, nem sequer posso ir ao cinema, quanto mais a um jogo de futebol!

 

-Não vês que te sentes desanimado porque estás doente, pai? Já esqueceste que tens duas netas e que eu voltei a trabalhar? Talvez conheças alguém, faças umas viagens e voltes a treinar miúdos. Quero dizer, só tens sessenta e três anos... Tens o que nós todos temos hoje, nem mais, nem menos. Digo-te uma coisa, Jack, quer seja a operação ou o Vasclear, quando o teu corpo tiver recuperado, a tua cabeça também ficará melhor. Só tens de te aguentar.

 

-Não suporto a ideia de voltarem a abrir-me o peito, Brian. Aqueles tubos todos... Não suporto!

 

Brian pegou no frasco da loção de lanolina com vitamina e massajou a pele seca e escamada dos pés do pai. O casaco de pijama de Jack estava desabotoado, revelando a enorme cicatriz da esternotomia, bem como as numerosas "covinhas", cada uma resultante de um tubo de drenagem.

 

- Estou a tentar meter-te no Vasclear, pai. Estou mesmo. Mas se não conseguir incluir-te no grupo com a dosagem beta, tens de me deixar marcar-te a operação com o doutor Randa.

 

Passaste um mau bocado com o teu bypass, eu sei, mas há muita gente que não tem problemas com a operação e recebe alta ao fim de quatro ou cinco dias. Concordo que o Randa seja um idiota, mas é também um dos melhores cirurgiões do mundo.

 

- Não, Brian. Põe-me a tomar o medicamento. Prefiro essa probabilidade.

 

Lucy Kendall fora apanhada de surpresa na primeira visita de Brian à clínica, mas naquele dia estava preparada. Vestira umas calças justas e uma blusa que ajudava a testar o bom funcionamento cardíaco dos doentes do sexo masculino. Queixando-se de calor, embora a clínica estivesse fresca, tirou a bata e pousou-a nas costas de uma cadeira. Depois, enquanto mostrava a Brian algumas zonas que ele não vira na primeira visita, fez questão de encostar várias vezes um dos seus seios grandes ao braço dele.

 

-Então quantos doentes é que temos aqui esta noite? perguntou Brian, com pouca paciência para os avanços dela, mas decidido a aproveitá-los para obter as informações de que precisava.

 

-Cinco por hora durante quatro horas. É a média. Você disse que morava em Reading. Vive sozinho?

 

- Não, moro com o meu pai. O medicamento é trazido para aqui todos os dias?

 

O quê?

 

-O dos doentes do Vasclear.

 

- Ah!... Não, não, todas as semanas. Eu mando uma lista semanal para a Newbury e eles enviam-nos o Vasclear. Gostaria de ir a qualquer lado tomar um copo quando sairmos daqui?

 

- Obrigado, gostava muito, mas tenho de ir para o pé do meu pai. Ele está a recuperar de um ataque cardíaco. Não tem filhos à sua espera?

 

- Tenho uma au pair a tomar conta deles. Escolhi propositadamente uma beldade sueca de dezanove anos, para que o Jerry pudesse ter fantasias com outra mulher que não eu.

 

-E se algum dos doentes não aparece na clínica? O que faz com os medicamentos?

 

-Não acontece muito, mas de vez em quando as pessoas não conseguem vir. Guardo o Vasclear deles à chave. Depois, de tempos a tempos, catalogo o que sobrou e deito-o fora. Gosta de dançar?

 

-Claro. Não danço muitas vezes, nem muito bem, mas gosto. O frigorífico onde o Vasclear está guardado tem alguma chave?

 

- Oito, quatro, nove, zero.

- Desculpe?..

 

- O código para abrir o frigorífico. Oito, quatro, nove, zero. Sabe, devia pôr um daqueles painéis com números no frigorífico lá de casa. Talvez o Jetry percebesse a indirecta e metesse na cabeça que não se vai safar com aquela cintura com um metro de diâmetro. A sua tem uns noventa centímetros, não tem?

 

- Acertou. Deixe-me então recapitular a administração do medicamento. Cinco vezes por semana durante duas semanas, depois três vezes por semana durante dois meses, e a seguir uma vez por semana?

 

- Correcto. Cintura de noventa centímetros e perna de...

- recuou um passo, para poder avaliá-lo melhor - mais de um metro?

 

- Acertou outra vez. Impressionante. Quem é que criou esse esquema? Será que tem de ser seguido à risca?

 

- São acrescentados dias de tratamento quando algum falha, isso sei. A clínica fecha nalguns feriados e ninguém na Newbury parece importar-se que um doente falhe uma visita. Preenchemos um formulário especial se alguém falta a dois tratamentos numa semana, ou duas semanas num periodo de dois meses, quando está no regime da dose semanal. É tudo. É muito agradável falar consigo, sabia?

 

- Obrigado. Também é agradável falar consigo.

 

- Tem a certeza de que logo não quer tomar uma bebida?

- Fica para outra altura. Não acha que devíamos ir começando? Já há gente na sala de espera.

 

Brian começou a ver os doentes e a prepará-los para a administração do Vasclear. O trabalho era mais exigente do que ele esperara. A maior parte das pessoas encontrava-se bastante debilitada, devido aos problemas cardíacos. Todos eles, reparou Brian, estavam nos grupos alfa ou gama. Enquanto aguardava o telefonema de Jessup, só lhe restava concentrar-se no trabalho que tinha em mãos.

 

Mas havia outro motivo para estar com dificuldade em concentrar-se. Já tomara praticamente a decisão. Se recusassem a admissão de Jack no estudo do Vasclear, ou se fosse incluído noutro grupo que não o beta, ele iria roubar nessa noite a primeira dose de beta e utilizaria vários métodos para continuar a obter doses beta até o estudo estar concluído e o medicamento ser posto à venda.

 

Era sem dúvida, a escolha mais assustadora e difícil que fazia desde o começo da sua recuperação, mas que alternativas lhe restavam?

 

Sabia que tinha de tomar ainda uma outra decisão. Durante mais de um ano, Freeman Sharpe estivera à sua disposição primeiro como guia ao longo do sinuoso percurso da recuperação e depois como amigo.

 

"Só te peço é que antes de beberes, antes de te drogares, me telefones", dissera-lhe Sharpe várias vezes.

 

Subentendido estava também o acordo de que, até a sua recuperação ir mais adiantada, ele teria de consultar Sharpe antes de fazer qualquer coisa emocionalmente arriscada. "Iria Freeman Sharpe tentar dissuadi-lo de roubar o medicamento?", perguntou-se Brian. "Valeria a pena colocar o homem numa posição daquelas?" Naquele momento havia trinta e três por cento de hipóteses de Jack ser colocado no grupo beta, e essas perguntas nunca teriam de ser respondidas.

 

A primeira vaga de doentes estava instalada e a receber as suas transfusões de meia hora. Brian aproveitou a oportunidade para rever o seu plano uma última vez. O Vasclear beta para Jack podia sair de dois sítios: da reserva e das doses postas de parte para as transfusões. Tanto quanto se apercebia, a reserva não era controlada, mas era muitas vezes deitada fora. Se Lucy Kendall desconfiasse que o medicamento estava a desaparecer, a fiscalização aumentaria. Brian decidira que, de três em três dias, pelo menos durante as primeiras duas semanas, substituiria a solução salina para o Vasclear por uma das infusões beta, em vez de roubar um frasco da reserva. Lucy Kendall explicara-lhe que fora incluído no programa o factor de tratamento falhado. Uma dose perdida não era fatal. Aí não havia problema.

 

Brian só esperava que todas aquelas artimanhas fossem desnecessárias.

 

Passou pelos gabinetes onde estavam os doentes, para ver se não havia problemas, e depois esgueirou-se para a sala dos medicamentos, a fim de experimentar o código do frigorífico. A porta era de vidro, por isso não valia a pena fechá-la. Dentro da sala olhou lá para fora, para o corredor, enquanto fingia estar a inspeccionar as prateleiras dos vários medicamentos e o desfibrilhador. Detestava andar escondido.

 

-Oito, quatro, nove, zero.

 

Brian ajoelhou-se junto ao pequeno frigorífico e murmurou os números enquanto carregava nas teclas. A porta abriu-se imediatamente. Havia três caixas de cartão, duas na prateleira do meio e outra na do fundo, cada uma identificada por uma letra grega. A caixa beta continha quatro frascos, menos do que Brian esperara. Mesmo assim, se fizesse o que tinha planeado, talvez conseguisse obter o que queria nos primeiros cinco dias. Depois, iria...

 

- Doutor Holbrook?

 

O cumprimento do homem, vindo de trás dele, teria feito parar imediatamente um coração menos forte. Brian deu um salto e virou-se, fechando a porta do frigorífico no mesmo movimento. O Dr. Art Wéber encontrava-se do lado de fora da porta, sorridente. Rondava os quarenta anos e não era tão alto como Brian julgara quando o vira no vídeo. No entanto, era um homem robusto e bem-parecido, com feições marcadas e uns espantosos olhos azul-acinzentados.

 

- Ah!... sim... olá - cumprimentou Brian, recuperando rapidamente a postura. - Trate-me por Brian.

 

- Art. Art Wéber.

 

Pronunciava o "w" como se este fosse uma mistura de "w" e "v".

 

- Eu sei - retorquiu Brian. - Vi-o há pouco no vídeo do Vasclear.

 

-E com que impressão ficou?

 

- Excelente. Formidável. Se o Vasclear obtiver os resultados que o senhor refere, a cardiologia tal como a conhecemos pode estar prestes a alterar-se para sempre.

 

- Não há qualquer "se".

 

Brian saiu da sala dos medicamentos e fechou a porta atrás de si.

 

- Bem, Mistress Nellie Hennessey pode testemunhar a favor disso - retorquiu Brian alegremente, tentando desanuviar um pouco a seriedade do homem. - Assisti esta manhã ao cateterismo a que foi submetida.

 

-A Carolyn contou-me o que você fez.

 

- Tive sorte. O fragmento do cateter estava na posição indicada para os fórceps Bipal.

 

- Não, refiro-me a mandar para a FDA um relatório sobre o produto defeituoso.

 

Brian amaldiçoou-se interiormente.

 

- Sei agora que esse gesto vai contra a política do instituto. Já disse à doutora Jessup que não voltaria a acontecer.

- óptimo. O mesmo é válido para o Vasclear. Não detectámos problemas significativos, mas, se se aperceber de algum, espero que o comunique à doutora Jessup.

 

- Com certeza.

 

- Isso inclui os nossos doentes e as nossas cobaias. "Earl." Brian decidiu rapidamente que era melhor não levantar ondas. O encarregado do laboratório dos animais não brincara quando dissera estar bem relacionado.

 

- Percebo perfeitamente - disse Brian.

 

Pressentiu que o momento por que esperara estava próximo.

- óptimo! - exclamou Weber -, óptimo! Estamos cada vez mais perto de obtermos autorização dos nossos estatísticos para quebrar o código do ensaio. A partir daí, temos esperança de que a FDA aprove rapidamente a comercialização do Vasclear.

 

-Isso seria maravilhoso.

 

- É verdade. E escusado será dizer que conseguir que os burocratas da FDA encurtem o seu prolongado processo de avaliação exige dados impecáveis e um rateio impressionante e irreflitável de risco-benefício

 

- Que já conseguiram obter.

 

- Que já conseguimos obter - ecoou Weber. - Então, a partir deste momento, a comunicação de qualquer problema será feita por nosso intermédio. Percebido?

 

- Percebido - respondeu Brian, esforçando-se por sustentar o olhar do outro.

 

- Bom, a Carolyn disse-me que você manifestou o desejo de ver o seu pai incluído no estudo do Vasclear.

 

Sim. Ela apresentou-me a história clínica dele e recomendou que fosse submetido a um bypass.

 

- Ele passou um mau bocado com o primeiro bypass. Está disposto a sujeitar-se a tudo para não ter de repetir a experiência.

- Bem, talvez ele reconsidere, Brian. Fiquei com imensa pena

do seu pai e do problema dele e fiz tudo o que pude. Pedi ao estatístico encarregado do nosso ensaio que o randomizasse. O resultado foi este.

 

Meteu a mão no bolso e tirou um pequeno cartão de sete por cinco centímetros. Tinha impresso a computador o nome de Jack, a data de nascimento, o sexo, o nome do cardiologista e um número, o sete, que reflectia a gravidade da sua doença. Sob essa informação, em maiúsculas, havia uma única palavra. "ALFA"

 

"Alfa." Era quase de certeza o grupo placebo. Brian sentiu um aperto no coração.

 

-Não há hipótese de ele ser incluído no grupo beta? Weber abanou a cabeça.

 

- Receio bem que não - respondeu. - Sei que parece absurdo, mas, até termos autorização para quebrar o código que identifica as doses recebidas pelos doentes alfa, beta e gama, temos de agir como se não soubéssemos qual é qual. Neste momento, com os resultados que alcançámos, parece uma piada, mas ainda temos um número de doentes suficientemente grande nos nossos três grupos para concluir o estudo, a menos que obtenhamos autorização da FDA.

 

- Faz ideia de quanto tempo falta para quebrarem o código?

 

- Pouco. Talvez duas semanas. A FDA vai enviar uma pessoa para falar comigo, com a doutora Jessup e com os nossos estatísticos.

 

- Faz algum sentido que o Jack participe no estudo, ainda que no grupo alfa? Quero dizer, isso ajudará as vossas estatísticas?

 

- Provavelmente, não. Quando a sua inclusão pudesse começar a contar, o estudo deveria ter chegado ao fim. Sugiro que siga a recomendação da doutora Jessup e convença o seu pai a submeter-se à cirurgia. - Weber notou o desapontamento de Brian e acrescentou: - Lamento muito.

 

- Obrigado - respondeu Brian.

 

Mas o director do projecto Vasclear já se virara e começara a afastar-se. Brian olhou para trás, para o frigorífico, viu as horas e correu para o telefone. Dispunha de cinco minutos antes da vaga seguinte de doentes e queria falar com Freeman Sharpe.

 

Este deixou o telefone tocar cinco vezes antes de atender. Como sempre, a sua voz suave de barítono fê-lo acalmar-se -Freeman, é o Brian.

 

-Olá, pá. Há algum médico em casa? -Sim, há. Tens um minuto? -Tens-te portado bem?

 

- Claro.

 

- Então tenho um minuto.

 

- Admitiram o Jack no estudo do Vasclear, Freeman, mas calhou no grupo que acho que está a tomar placebo.

 

- Azar. Há alguma possibilidade de eles mudarem de ideias e de lhe darem o medicamento?

 

-Acho que não. Querem que o Jack repita o bypass.

- E tu achas que ele devia tomar o medicamento.

 

- Esta manhã ajudei a fazer um cateterismo a uma mulher cinco anos mais velha que o Jack. Teve uma doença coronária tão grave como a dele, embora nunca tenha tido um ataque cardíaco ou feito um bypass. Calhou ser escolhida para o grupo que recebe a dose máxima e agora tem artérias como uma pessoa de quarenta anos e nenhum sintoma.

 

Sharpe assobiou baixinho.

 

-Então estamos a pensar em quê, em roubar o medicamento?

 

- Não consigo obtê-lo de outra maneira.

- E arranjas uma quantidade suficiente?

 

- Durante duas semanas, três. Mas talvez não precise de mais. Acho que a FDA vai aprovar em breve a sua comercialização. Mesmo que o medicamento tenha um efeito lento no Jack, talvez ele consiga safar-se.

 

- E se não se safar?

 

- Segundo os resultados que obtiveram até agora, tem setenta e cinco por cento de hipóteses de se safar. As probabilidades agradam-lhe. A mim também.

 

- Consegues fazer isso sem ser apanhado? Provavelmente.

 

. -E sem prejudicar ninguém?

-Creio que sim.

 

Isso já não é novidade para ti, como sabes, roubar medicamentos num hospital. Achas que te safas?

-Com a tua ajuda, sim.

 

- Com a ajuda de Deus, pá. Foi boa ideia teres falado comigo, mas acho que também deves falar com o poder máximo. -É o que vou fazer. Obrigado, Freeman. Porta-te bem.

 

 

- Sabes o que vais fazer? - perguntou Sharpe. - Sei - respondeu Brian.

 

Pousou o auscultador e regressou à sala dos medicamentos. levou apenas alguns minutos a esvaziar dois frascos beta de Vasclear para seringas de dez centímetros cúbicos, a fazer umas marcas nos frascos e a tornar a enchê-los com solução salina. Depois meteu as seringas no bolso da bata e foi ver mais doentes. Uma hora mais tarde, já com as seringas e um frasco de soro na pasta, telefonou para casa.

 

- Jack, que tal te sentes? -Na mesma, na mesma.

 

- Bem, tenho boas notícias. Esta noite vais começar a tomar uma dose reforçada de Vasclear.

 

-Bestial! Foi a doutora Jessup que conseguiu?

 

- Não, foi outro médico. Na verdade, tens de me prometer que não contas nada à doutora Jessup.

 

Houve uma pausa prolongada.

 

- O que quiseres - acabou Jack por dizer.

 

- Óptimo. Daqui a umas duas horas estou em casa. Jack

- Sim?

 

- Devo-te dez dólares.

- Porquê?

 

-Tive um golpe de sorte, hoje... na verdade, foram dois.

 

Brian colocou o suporte improvisado para o soro ao lado da cadeira de Jack, pegou numa seringa cheia de Vasclear e injectou-a num saco com duzentos e cinquenta centímetros cúbicos de dextrose e água.

 

- Pronto para mais um copo do sumo da alegria? - perguntou.

 

Jack soltou uma risada.

 

- Que grande sumo da alegria! - exclamou. - Não está a resultar, pois não?

 

- Vá lá, pai. Nesta altura ainda não podemos concluir nada. Não desanimes. Só fizeste seis tratamentos. Por aquilo de que já me apercebi, a maior parte das pessoas precisou de mais tempo para que os sintomas melhorassem. Aliás, algumas continuaram a ter sintomas durante meses, embora os testes feitos em stress se tenham revelado quase normais.

 

-Aposto oito contra cinco em como não me vou safar.

- Raios, Jack, pára com isso! A tua atitude também ínflui bastante no êxito ou no fracasso do tratamento.

 

- Estou cansado, Brian, cansado de estar doente.

 

- Mais uma semana, treinador. Mais uma semana e aposto nas melhoras definitivas que terá.

 

E se não tiver?

 

- Se não tiveres, vamos ter com o Randa. - Vendo a expressão triste de Jack, acrescentou: - Mas acho que esta semana a coisa vai começar a resultar.

 

Durante a semana anterior, Brian não encontrara dificuldades na manipulação da reserva do Vasclear beta que se encontrava no frigorífico da clínica. Além disso, trocara o Vasclear de dois doentes por solução salina. Já estavam ambos no segundo ano de tratamento. Parecia impossível que isso os pudesse prejudicar. Mesmo assim, aquele gesto era contra todos os seus princípios.

 

Brian agarrava-se à esperança de que daquela forma conseguiria obter mais algum tempo, de que em breve não seria preciso continuar a roubar. Ao meio-dia do dia seguinte iria decorrer no White Memorial uma apresentação do Vasclear por Art Weber e por outras pessoas e iria ser dada uma resposta pelo representante da FDA. Brian esperava que em breve Jack pudesse tomar livremente o Vasclear, desde que, claro, o tratamento produzisse resultados.

 

No trabalho, os dois primeiros dias tumultuosos tinham-se transformado numa rotina confortável, embora agitada. Gostava de estar na clínica e começava a recuperar a autoconfiança como médico com cada doente que tratava e com cada situação de crise que resolvia. Phil Gianatasio era uma grande ajuda e parecia surgir sempre que uma situação ameaçava agravar-se. Era um trabalhador incansável e revelava em todas as situações um grande sentido de humor. Numa situação de crise, aguentava-se impávido e sereno.

 

-Jack, tens dores no sítio da agulha?

- Não.

 

Brian mediu a tensão do pai, que continuava baixa, e o pulso. Colocara um cateter fino numa veia do antebraço de Jack e mantinha-o aberto com um anticoagulante entre os tratamentos. Embora o pai dissesse que não sentia melhoras, Brian reparou que ele parecia tomar menos comprimidos de nitroglicerina e, inclusivamente, já fora ao pátio uma vez com as netas e outra vez sozinho.

 

Embora fossem sintomas encorajadores, Brian sabia que não lhes devia dar grande importância. Parte do problema da medicação clínica era o bem documentado efeito do placebo. Quanto mais os doentes, as suas famílias e os médicos queriam que uma determinada terapia funcionasse, mais os sintomas dos pacientes sugeriam que ela estava a funcionar, pelo menos até certo ponto.

 

Brian ansiava por falar do caso do Pai com Carolyn Jessup, para confirmar se a reacção de Jack ao medicamento era parecida com a dos outros doentes, mas revelar-lhe que andava a roubar o Vasclear beta faria com que fosse imediatamente despedido e perdesse a licença, por conseguinte, teria de avançar às cegas, "Já falta pouco", dizia para si próprio. Já faltava pouco para que, devido à melhoria de Jack e à legalização do Vasclear, ou a uma intervenção cirúrgica, os segredos chegassem ao fim. Já faltava pouco. -

 

Embora a última semana no hospital tivesse decorrido sem problemas, houvera um encontro desagradável. Brian acabara de livrar-se do tabuleiro na cantina quando vira Laj Randa a aproximar-se, seguido do sempre presente par de aduladores. Naquele dia o turbante era vermelho e a cor parecia realçar ainda mais a sua expressão de guerreiro.

 

-Então, Holbrook, como é que está o seu pai? - perguntou.

 

-Está em casa a descansar.

 

-Eu sei. Incluíram-no no estudo do Vasclear?

 

- Não - respondeu Brian -, mas espero que em breve o medicamento seja comercializado.

 

- Diga-me uma coisa,, Holbrook. Por que razão acha que o Weber e o laboratório farmacêutico estão a mexer todos os cordelinhos para colocar esse produto no mercado?

 

- Não sei. Por dinheiro?

 

-Não é só por dinheiro, meu amigo, mas sim por uma grande quantidade de dinheiro. Uma dose deste medicamento irá custar mais de cem dólares. Isso corresponde a mil dólares por doente nas duas primeiras semanas de tratamento. Cem mil doentes. Cem milhões de dólares. "Em duas semanas." E cem mil doentes é um número que está longe de corresponder àquele que começará a tomar o medicamento nos próximos meses. -E então?

 

- Na sua ânsia de lucros, a Newbury Pharmaceuticals está a esforçar-se por circundar as práticas científicas padrão. Um ensaio indefinido limitado sem cruzamento na fase intermédia e sem componente multí-institucional. Não têm mais nada. Há sempre um problema qualquer quando se atalha desta maneira, Holbrook, sempre. Você teve Bioestatística na faculdade. Sabe que há uma razão para que um estudo não seja estatisticamente válido até o n das equações - o número de casos - ter excedido um determinado mínimo.

 

- Os resultados que eles obtiveram são impressionantes. Os resultados não querem dizer nada até a matemática indicada provar o contrário.

 

A voz de Randa elevara-se e atraíra a atenção das pessoas próximas.

 

- Doutor Randa, o meu pai esteve quase oito semanas no hospital depois do último bypass. Estava mais morto do que vivo. E sabe o que dizem os números quanto à repetição de uma intervenção cirúrgica: a segunda vez acarreta o dobro dos riscos.

 

-Não nas minhas mãos.

 

- Diga-me uma coisa. A sua opinião desfavorável sobre a Newbury Pharmaceuticals, o medicamento e os métodos deles está relacionada com o facto de o número de candidatos a intervenções cirúrgicas ir quase de certeza diminuir?

 

O cique olhou para ele com uma expressão de desdém. -Você é um idiota, Ollbrook. O seu pai precisa de ser operado. E não vai sê-lo por causa das expectativas criadas por este medicamento. Até a comunidade científica dar a sua bênção ao Vasclear, ele não passa de banha da cobra. Faz mal em esperar que seja comercializado.

 

Sem aguardar resposta, afastou-se.

 

No White Memorial, a Cúpula de Hipócrates ficava no cimo do Edifício Pinkham, que tinha cinco andares, Era um anfiteatro construido no local onde as primeiras operações com anestesia geral tinham sido efectuadas. Os quatrocentos lugares dispostos num declive acentuado, ainda de madeira com verniz a lascar, ficavam sob uma cobertura de vitral com cenas de vários momentos importantes na história da medicina. Após mais de cem anos, a cúpula estava a ser remodelada: no seu interior havia andaimes e no exterior uma grua pairava sobre ela como uma enorme louva-a-deus.

 

Ao meio-dia menos vinte, quando Brian chegou ao terraço soalheiro junto ao primeiro piso do Edifício, Phil esperava-o com duas canecas de café na mão.

 

-Ainda o tomas simples com um cubo de açúcar?

- Claro.

 

Era o típico café dos médicos, destinado a ser engolido no corredor, entre dois doentes.

 

- Eu... hum... calculei que não quisesses um bolo, por isso não te trouxe nenhum.

 

- Ainda bem - respondeu Brian -, a menos que não tenhas ido buscar um antes de teres decidido que eu não queria.

 

- Caramba, deitas mesmo uma pessoa abaixo!

 

- Então o que é que esperas aqui do espectáculo?

 

- Não sei, mas o facto de um representante da FDA ir aparecer no palco ao lado do Ernie Pickard e do Art Weber só pode significar boas notícias.

 

- Espero que sim. Seriam boas notícias também para o meu pai.

 

-Como é que ele está?

 

Brian hesitou, pouco à vontade por ter de ocultar de um velho amigo a verdadeira história, mas acabou por achar que não valia a pena colocar Phil em maus lençóis por lhe contar que Jack andava a tomar em segredo o Vasclear beta.

 

-A verdade é que não está lá muito bem. -Vai ser operado?

 

- Da última vez que lhe falei nisso recusou-se a ouvir-me, como de costume. Acho que vai depender do que soubermos hoje acerca do que a FDA pensa fazer em relação ao Vasclear. Diz-me uma coisa, Phil. Na tua experiência, quanto tempo é que os doentes tratados com Vasclear beta demoraram a revelar uma melhoria dos sintomas?

 

Depende. Uns, apenas alguns dias, a maior parte, ao fim de duas semanas, outros, alguns meses. Mas lembra-te que um quarto dos casos não melhorou nada. A maior parte foi parar à sala de operações. Outros acabaram na morgue.

 

Brian assentiu. Phil sabia tão bem como ele que, tirando alguns tratamentos simples, como penicilina para garganta obstruída, praticamente nenhum obtinha aquela taxa de êxitos, muito menos um medicamento para o coração. Brian olhou para o relógio.

 

- Vamos subindo, está bem? Quero arranjar um bom lugar. Em frente aos dois elevadores havia uma multidão. Sempre a protestar, Phil subiu as escadas atrás de Brian. Metade dos lugares já estava ocupada e os 'restantes em breve o estariam. Brian não se admirou. O Star e o National Enquirer começavam a falar do Vasclear, bem como vários vespertinos. O medicamento estava a transformar-se numa celebridade nacional.

- Encontraram dois lugares num corredor à direita, a seis filas do palco, que era um semicírculo com seis metros de largura e três de profundidade a um metro do chão. A luz do sol, filtrada pelos vitrais, coloria o anfiteatro. O ecrã enorme atrás do palco estava descido. Sentados entre ele e o átrio estreito encontravam-se Ernest Pickard, Art Weber, Carolyn Jessup e, na extremidade mais próxima de Phil e Brian, uma mulher que devia ter pouco mais de trinta anos.

 

-Ela é que vem representar a FDA? - perguntou Phil, incrédulo. - Parece a Jodie Foster num dia bom.

 

- O que quer essa tua descrença dizer, meu porco sexista?

- Olha, eu sou como sou, Bri. Aquela mulher ali em cima não tem só a beleza da Jodie, é com certeza médica e se calhar mais qualquer coisa ainda. Isso impressiona-me e intimida-me.

- A Jodie Foster formou-se em Yale, Phil.

 

- Bom, ela também me intimida, É um problema genético. A minha mãe pregava-me grandes sustos.

 

Brian não achava que a mulher no palco fosse muito parecida com a Jodie Foster, mas estaria a mentir se dissesse que as suas feições delicadas e a cor da sua tez não o faziam sentir-se incrivelmente atraído. Era completamente diferente de Carolyn Jessup. E naquele momento, de frente para um anfiteatro cheio num dos mais importantes hospitais universitários do país, não parecia minimamente constrangida.

 

Quando deu meio-dia, Ernest Pickard aproximou-se do átrio. Phil inclinou-se para Brian e murmurou:

 

- O Distinto Emie, a Elegante Carolyn, o Manda-Chuva Art e a Jodie- Parece que está cá toda a gente. Só faltas tu no papel do meigo repórter Clark Kent.

 

- Senhoras e senhores - começou Pickard -, sejam bem-vindos. Vivem-se momentos emocionantes no White Memorial Hospital e no Instituto do Coração de Boston. Como sa'bem, ao longo dos últimos anos estivemos envolvidos numa investigação em conjunto com a Newbury Pharmaceuticals. Hoje gostaríamos de partilhar convosco os resultados dessa investigação. Mas primeiro quero apresentar-vos as pessoas que me vão ajudar nessa tarefa. A doutora Carolyn Jessup, professora de Cardiologia e directora-adjunta do Instituto do Coração, o doutor Art Weber, director do projecto Vasclear, que faz a ligação entre a Newbury Pharmaceuticals e o Instituto do Coração, e, por fim, a nossa convidada especial, a doutora Teri Sennstrom, líder da equipa da unidade de avaliação dos medicamentos cardiovasculares da FDA.

 

- Teri - murmurou Phil. - Gosto do nome. Tu também deves gostar. Ainda não tiraste os olhos dela!

 

Pára com isso, Phil.

 

Durante a primeira meia hora da conferência Brian não sobe de qualquer novidade. Era a festa de apresentação do Vasclear, com uma vistosa exibição de diapositivos explicados por Weber, que assinalava os momentos-chave na vida do medicamento. Depois de Weber, Carolyn Jessup fez uma apresentação mais científica, abordando a calendarização das dosagens e os resultados clínicos e apresentando imagens de ecocardiogramas de vários doentes antes e depois da ingestão do medicamento. A médica parecia um maestro a conduzir o palco, o átrio, o ecrã e o público.

 

Ao longo das apresentações, apesar de não querer admitir que Gianatasío estava certo, Brian não foi capaz de tirar os olhos de Teri Sennstrom. E o mais perturbador é que ela parecia estar também a olhar para ele. O olhar de ambos cruzou-se várias vezes durante breves momentos, embora nenhum deles tenha dado a entender que se apercebera disso. No entanto, acontecera. Brian tinha a certeza.

 

Jessup acabou a apresentação e respondeu a algumas perguntas técnicas para as quais estava tão bem preparada que Brian se perguntou se não teriam sido combinadas. Depois apresentou Téri Sennstrom.

 

- Já tens o número de telefone dela? - sussurrou Gianatasío quando Teri se aproximou do átrio. - Fiquei com a impressão que ela to deu a pestanejar em código morse.

 

- Philip, inportas-te de crescer?

 

- Trá, lá, lá... Olha, não estou a ver nenhuma aliança. Brian não teve coragem de admitir que também já reparara nisso. Não fazia parte das suas qualidades gostar de ser gozado.

 

- Isto é uma coisa científica - retorquiu. - Presta atenção. Teri Sennstrom vestia um fato de gabardina castanha com uma blusa creme e tinha o cabelo louro-escuro preso atrás com um gancho de tartaruga, revelando pequenos brincos de pérolas. A enfrentar quatrocentas pessoas num anfiteatro Teri parecia ligeiramente menos à vontade do que quando estivera sentada.

"Por favor", pensou Brian quando ela colocou no átrio algumas fichas com apontamentos, "por favor, diz-me o que posso esperar para o meu pai."

 

- Bom, hoje é um grande dia - começou Teri, depois de agradecer aos anfitriões e transmitir os cumprimentos do dr. Alexander Baird, director da FDA. - Parece que estamos prestes a descobrir um maravilhoso avanço na farmacologia cardiovascular. Os dados aqui apresentados são um resumo de milhares de páginas de relatórios e de dezenas de ecocardiogramas que a minha equipa na fda analisou ao longo de mais de um ano. Estamos impressionados, doutor Weber, com o cuidado e a minúcia da sua investigação. Estamos impressionados, doutor Pickard e doutora Jessup, com a forma escrupulosa como o protocolo da investigação foi seguido. E, acima de tudo, estamos impressionados com os resultados obtidos até agora.

 

"É desejo do doutor Baird, bem como do senhor presidente, que os doentes que necessitam deste medicamento recebam tratamento o mais depressa possível. Para isso é necessário que façamos algumas concessões à importância do Vasclear, tal como já fizemos anteriormente em relação a outros medicamentos. Doutor Weber, doutora Jessup, doutor Píckard, na FDA acreditamos estar na recta final do processo de avaliação. O doutor Baird acha que o Vasclear merece o estatuto de medicamento prioritário e tenciona aprová-lo para uso generalizado.

 

Ouviu-se uma onda de aplausos, que começou a espalhar-se rapidamente pelo anfiteatro, reverberando no tecto de vitrais até este parecer estremecer.

 

"óptimo!", pensou Brian, "óptimo!"

 

- Tencionamos assinar a aprovação da candidatura do Vasclear a novo medicamento apresentada pela Newbury Pharmaceuticals daqui a duas semanas.

 

De novo aplausos. Gianatasio ergueu o punho fechado. -Achas que consegues aguentar o teu pai até lá? - indagou.

 

- Podemos tentar - respondeu Brian, perguntando-se subitamente que factores preexistentes poderiam diferenciar os vinte e cinco por cento de insucessos dos restantes. "Duas semanas", pensou. "Aguentamo-nos duas semanas."

 

-No entanto - continuou Teri -, chegou a altura de a fda vos pedir um favor. Como sabem, a nossa missão é proteger o público sem atrasar a comercialização de um medicamento imprescindível. Gostaria de pedir a quem tiver perguntas ou informações sobre o Vasclear, positivas ou negativas, que me contacte. O doutor Weber e a doutora Jessup sabiam que eu tencionava fazer este pedido, e tenho o prazer de dizer que concordaram inteiramente. Agora o diapositivo. As luzes diminuíram e um diapositivo com o nome de Teri a morada da FDA em Rockville, Maryland, e um número de telefone grátis apareceu no ecrã.

 

- Escreve-se com "i" - sussurrou Gianatasio. - Gosto de uma mulher cujo nome termina em "i".

 

-Mesmo que sejam médicas e se calhar mais qualquer coisa?

 

-Não sei. Acho que nunca tinha encontrado essa combinação.

 

- Mais uma vez - dizia Teri Sennstrom -, se algum de vós já trabalhou com este medicamento ou com doentes que o tomaram, façam o favor de ligar para o meu gabinete e de comunicar qualquer efeito secundário ou sintoma inexplicável. Prometo que o vosso telefonema será mantido no maior sigilo. Não é preciso dizer-vos que é muito, muito mais fácil evitar que um medicamento entre no mercado do que impedir a sua venda e recolhê-lo depois de ele estar a ser utilizado. Durante as próximas duas semanas tenciono vir várias vezes ao Instituto do Coração e ao White Memorial. Terei todo o gosto em encontrar-me convosco pessoalmente para discutir o Vasclear. Entretanto, creio que podem sentir-se todos orgulhosos desta instituição e do que ela tem feito. Obrigada.

 

Os aplausos foram vigorosos e, por um momento, Brian pensou que as pessoas iriam aplaudir Teri de pé.

 

- Ela é uma vencedora - comentou Phil quando a multidão se levantou e começou a sair do anfiteatro.

 

- É verdade - respondeu Brian, já a pensar na forma como iria conseguir desviar Vasclear suficiente para as duas semanas seguintes.

 

-Vais encontrar-te com ela? -Talvez noutra ocasião.

 

- E que tal agora? Brian abanou a cabeça. Não posso.

 

- Bem, acho que devias reconsiderar.

- Porquê?

 

- Porque ela está três metros atrás de ti e vem nesta direçÇão. Estás por tua conta, meu rapaz. Eu fico de longe a observar o mestre em acção.

Antes de Brian poder responder, Phil começou a subir as escadas. Brian, juntamente com outras pessoas, virou-se quando Teri se aproximou. Ela apertou a mão a todos, mas hesitou um pouco com Brian, virando costas ao grupo, para poder falar-lhe sem ser ouvida. O seu olhar cruzou-se com o dele por momentos.

 

-,Por favor, ligue-me para o Hotel Boston Radisson, quarto quatrocentos e dezoito - disse baixinho, antes de se virar com um grande sorriso para um dos directores do hospital.

 

O Hotel Radisson ficava a poucos quarteirões do White Memorial. Brian comunicou a Phil que iria ausentar-se durante hora e meia e, seguindo as instruções de Teri Sennstrom, deu a volta por Beacon Hill, passou por State House e desceu para o hotel. Entrou e subiu as escadas até ao quarto andar, onde ficava o quarto 418. Teri pedira-lhe que não dissesse a ninguém que iriam encontrar-se, incluindo ao amigo que o acompanhava. Não recuara quando ele protestara, mas prometera explicar-lhe a razão daquele segredo todo. E Brian acabara por dizer a Phil Gianatasio que o seu terapeuta precisara de mudar a hora da consulta.

 

Eram duas e um quarto quando Brian chegou ao Radisson. O dia, que começara para ele às seis da manhã, só iria terminar na tarde do dia seguinte. Tinha a Clínica Vasclear das quatro às oito, depois iria fazer o turno nocturno na ala de investigação clínica - a primeira noite em que estava de serviço num hospital desde a especialização. As suas tarefas incluíam andar com o pager do código 99 por todo o hospital. Se houvesse alguma paragem cardíaca no instituto ou no hospital, ele faria automaticamente parte da equipa. Só de dez em dez noites é que estaria de serviço e sentia-se radiante. Num hospital tão grande como o White Memorial haveria, de certeza, bastante acção.

 

Bateu à porta do quarto 418 e Teri abriu ao fim de poucos segundos. Continuava com o fato que usara no anfiteatro, mas tirara o casaco. Tinha um corpo esbelto, mas a blusa de seda realçava os seios, que não eram minimamente arrapazados. Brian sentiu-se um pouco tenso por estar num quarto de hotel com ela, mas se Teri estava pouco à vontade escondeu-o bem.

 

- Entre, entre - disse ela, apertando-lhe novamente a mão. Os seus dedos, compridos e finos, continuavam rodeados pelos dele. - Calculei que não tivesse tido tempo para almoçar, por isso mandei vir comida. - Apontou para o tabuleiro na mesa ao lado da cama, com talheres para duas pessoas. Serve?

 

- Se soubesse o que eu ia comer no hospital não me fazia essa pergunta.

 

Teri Sennstrom parecia não ter posto perfume, mas emanava um aroma subtil, fresco e inebriante, que fez Brian lembrar-se da chuva primaveril. Ela ocupou a cadeira mais próxima da mesa e ele instalou-se à sua frente, decidido a manter o decoro, apesar de só ter comido uma sande durante todo o dia.

 

Como se lhe adivinhasse os pensamentos, Teri simplificou as coisas destapando de imediato a comida e atirando-se à sua salada.

 

- Antes de uma apresentação daquelas fico demasiado nervosa para conseguir comer - disse ela, sem se preocupar com o facto de ter a boca cheia -, e só ao fim de algumas horas é que tenho fome.

 

- Por acaso, achei-a bastante à vontade.

 

- Obrigada. Fiz teatro enquanto andava a estudar em Princeton, mas estava longe de adivinhar que representar iria ser mais importante para mim do que os cursos de ciências que tirei.

 

- Gosta de trabalhar na FDA?

 

- Sempre tive queda para matemática e estatística, bem como para biologia, por isso, de certa forma, este é o trabalho ideal para mim, mas o momento da verdade surgiu no meu primeiro dia de trabalho no hospital, quando andava no terceiro ano de Medicina e um alcoólico com uma hemorragia gastrointestinal me vomitou um litro de sangue em cima. Ups, desculpe, esqueci-me de que estávamos a comer.

 

- Essas coisas não me afectam - respondeu Brian. - Se um alcoólico vomitasse um litro de sangue para cima de mim, o mais certo seria eu nem sequer reparar. O meu sonho era ser jogador de futebol.

 

- Sim, eu sei.

 

Brian pousou o garfo e olhou para ela.

 

- Quarterback - acrescentou Teri. - E bastante bom, por sinal.

 

- Acho que isto não me está a agradar.

 

- Se estivesse no seu lugar pensava o mesmo. Desculpe ser tão dramática. Quer que eu comece a explicar, ou prefere acabar de comer?

 

- É melhor fazer as duas coisas em simultâneo. Não tenho muito tempo e sou péssimo a disfarçar a curiosidade.

 

O sorriso de Teri Sennstrom estendeu-se aos olhos verde-mar, realçando a boca sensual.

 

- Bem, como deve adivinhar - começou ela -, o Vasclear é a batata mais quente com que a FDA teve de lidar nos últimos anos, e talvez em toda a sua existência. O meu chefe, o doutor Alexander Baird, é como São Tomé.

 

-Ver para crer?

 

- Exacto. É uma pessoa cautelosa, que segue à risca o regulamento,, mas agora há uma enorme pressão sobre ele, tanto política como médica, para que faça o que lhe é mais difícil: abandonar o processo científico. Como disse na conferência, o doutor Baird concordou em aprovar a comercialização do Vasclear daqui a duas semanas, mas isso não significa que tenha desistido de investigar o medicamento. Perguntas?

 

- Nenhuma, a não ser o motivo da minha presença aqui. À esquerda de Teri, sobre a cama, encontrava-se uma pasta já com bastante uso. Ela abriu-a, tirou uma folha e colocou-a na cama ao lado de Brian. Ele olhou para ela, mas não precisou de lhe pegar. Era uma cópia do relatório da MedWatch que ele preenchera acerca do cateter cardíaco Ward-Dunlop defeituoso.

 

- Toda a gente na FDA sabe que o doutor Baird anda sob uma grande pressão. Deve ter visto na televisão a forma como ele foi encurralado pelo senador Louderman na audiência da comissão fiscalizadora. Estamos a tentar ajudá-lo no que for possível. O director do programa MedWatch reparou que você trabalha no Instituto do Coração de Boston e enviou o seu relatório ao doutor Baird, que insistiu para que eu falasse consigo quando cá viesse.

 

- Mas primeiro fez uma pequena investigação.

 

Brian deu ênfase às suas palavras, como se atirasse a Teri uma bola imaginária. Ela surpreendeu-o, apanhando-a. O olhar dela susteve o seu. Instintivamente, Brian pigarreou, engoliu em seco e acabou por beber um gole de Coca-Cola. Teri nunca seria capa de revista, mas não havia nada nela que não o excitasse.

 

- Acho que a expressão "pequena investigação" fica um pouco aquém da realidade - disse Teri. - Detesto estas coisas, Brian, mas habituamo-nos rapidamente a elas quando trabalhamos em Washington, terra dos paranóicos.

 

Pegou numa pasta de papel-manilha e abriu-a. A primeira coisa que Brian viu foi uma fotografia sua ampliada do anuário do liceu.

 

-Meu Deus... - murmurou ao folhear os papéis. Havia uma biografia sua de três páginas, bem como numerosas fotografias e cópias de artigos de jornal, muitos das páginas de desporto. Estavam ali também as suas notas do liceu e da faculdade, fotografias de Phoebe e das crianças e os relatórios da Polícia, as ordens do tribunal e recortes de jornal sobre as irregularidades nas suas receitas.

 

-Há em Washington uma agência que faz isto - disse ela. - Fiquei tão espantada como você ao ver a minúcia da investigação. Ou investigam a sério ou não investigam. É-lhes indiferente quem é a pessoa. Calculo que haja algures uma pasta sobre mim. Você passou um mau bocado. Admiro-o por ter conseguido recuperar.

 

Brian olhou para ela, irritado.

 

- Espanta-me que não tenha um relatório do Fairweather.

- Se isso é o centro onde você esteve no ano passado, acho que eles tentaram.

 

- E então?

 

- Um dos artigos menciona que os seus problemas começaram depois de se ter magoado a jogar futebol.

 

-Não é um desporto bom para os joelhos.

 

- O doutor Baird não gosta destas coisas, Brian, tem de acreditar no que lhe digo, mas está muito nervoso por causa do passo que vai dar em relação ao Vasclear. Não se esqueça que a avaliação de um novo medicamento exige uma grande confiança no laboratório que vai lucrar com a sua comercialização. Não há outra maneira de fazer as coisas. Na maior parte das vezes, os laboratórios têm ética, mas nunca tivemos contacto com a Newbury Pharmaceuticals, e já aconteceu com outros laboratórios haver omissão de informação ou alteração de números, para que os resultados passassem de prováveis a definitivos.

 

- Talvez seja melhor ir direita ao assunto.

 

- Brian, não é toda a gente que envia um relatório sobre um produto defeituoso. A maior parte dos centros médicos leva a cabo a investigação de produtos em colaboração com os fabricantes ou com os laboratórios.

 

- Já me constou.

 

-Bem, parece que outra pessoa, num centro médico universitário do Wisconsin, detectou o mesmo defeito no mesmo produto. A fda está a investigar, mas já descobrimos o que pensamos ser um terceiro caso. Ainda não confirmámos, mas um dos doentes teve de ser operado, para que se tirasse o resto do cateter, e o outro morreu. Estamos quase a ordenar a suspensão da utilização do cateter. Não teremos problemas, porque a sua utilização geral ainda não foi aprovada. Você pode ter contribuído para salvar não sei quantas vidas.

 

- Posso ter contribuído para ficar no desemprego...

 

- Duvido muito. A sério. A tal mulher do Wisconsin que nos enviou o relatório ainda trabalha lá no hospital. Bom, mas há pouco você perguntou qual o motivo desta reunião. O doutor Baird anda à procura de pessoas sérias e empenhadas que o ajudem a ter a certeza de que não há nada que ele não saiba acerca do Vasclear. O relatório que você enviou coloca-o num dos lugares cimeiros da lista.

 

Brian sentiu-se sufocar na camisa. Alargou o nó da gravata e desabotoou o colarinho.

 

- Deixe-me ver se percebi bem. O director da fda quer que eu espie as únicas pessoas que me contrataram e que ainda desconhecem que o meu relatório lhes pode ter custado milhares de dólares?

 

- Brian, queremos tomar uma decisão acertada em relação ao Vasclear. Sei que sente que está a ser usado, mas, como disse esta manhã, é mais fácil impedir a entrada de um medicamento no mercado do que retirá-lo depois de os delegados de informação médica terem feito uma lavagem ao cérebro dos médicos e de lhes terem dado prendas e de o medicamento estar já a ser receitado.

 

Brian pensou durante algum tempo e depois disse:

 

- Teri, não lhe prometo nada, mas digo-lhe que desde que comecei a trabalhar no Instituto do Coração tenho andado muito interessado no Vasclear. A mulher que referi no relatório MedWatch está a tomar Vasclear e já observei muitos outros doentes que estão a tomá-lo. Por aquilo que vi até agora, o medicamento corresponde ao que se diz dele.

 

-Era isso que estávamos à espera de ouvir. O doutor Baird só quer que você mantenha os olhos e os ouvidos bem abertos e que esteja alerta. Fale com os doentes e com os empregados. Se ouvir alguma coisa, o que quer que seja, em relação ao medicamento, informe-me. - Escreveu um número no cartão-de-visita e deu-o a Brian. - É o meu número de casa. Moro sozinha e deito-me sempre tarde, por isso não se preocupe, que não vai incomodar ninguém. Se não me apanhar, deixe mensagem no voice mail lá de casa ou no do trabalho. Quando estou fora verifico várias vezes se tenho mensagens.

 

Brian meteu o cartão na carteira, pensando como havia de perguntar-lhe se os seus telefonemas teriam de ser apenas sobre trabalho, mas não teve coragem.

 

"Oh!, claro, Phil, fui ao quarto dela. Primeiro massajou-me com óleo quente. Depois fizemos amor durante horas. A seguir mandámos vir comida e fizemos amor durante mais algumas horas... "

 

- Não lhe prometo que telefono - disse.

 

- Compreendo. Faça o que achar melhor. O doutor Baird disse que talvez precisasse de falar consigo. Isto é muito importante para ele. E, por favor, não se deixe intimidar. Pode parecer um homem muito reservado e até áspero, mas é uma pessoa extraordinária.

 

Levantou-se, endireitou a saia e voltou a guardar a pasta de papel-manilha. A reunião terminara. Brian queria dizer qualquer coisa, algo que o fizesse ficar ali mais algum tempo, mas nada nos modos dela o tinha encorajado a fazê-lo e, além disso, precisava de voltar para o hospital. Também sabia que o divórcio e a suspensão da licença tinham afectado mais a sua autoconfiança do que aquilo que gostaria de admitir. A verdade era que ainda não estava preparado para uma mulher como Teri Sennstrom, se é que estava preparado para alguma mulher. Recordou a divisa das reuniões nos Narcóticos Anónimos: "As coisas importantes primeiro." Quase conseguiu ouvir Freeman falar. Não era altura de se preocupar com a sua vida social.

 

Teri acompanhou-o à porta. Quando a abriu, inspirou para sentir o cheiro dela uma última vez.

 

- Brian, ouça - disse Teri quando ele avançou para o corredor. - Lamento que tenha sido colocado numa posição difícil. O doutor Baird não me deixou dissuadi-lo de fazer isto, e eu bem que tentei.

 

- Obrigado por dizê-lo.

 

- Eu ... eu volto a Boston daqui a três dias. Se não se importa, gostaria de lhe telefonar antes de vir. Talvez pudéssemos jantar os dois.

 

Brian sentiu o coração parar, depois voltar a bater mais depressa.

 

- Claro - replicou, tentando parecer calmo. - Gostaria muito.

 

Sorriu-lhe, virou-se e foi chocar no carrinho da empregada, cheio de lençóis.

 

Brian iniciou as suas quatro horas na Clínica Vasclear a desviar uma dose de medicamento que chegasse para três dias para o pai - dois frascos da nova reserva e um de uma doente beta chamada Jessie Pulliman, que deveria receber tratamento às seis. Ainda tinha uma dose escondida em casa, no frigorífico, para o caso de, por qualquer motivo, não ter acesso à reserva da clínica. Duas semanas. Partindo do princípio de que o medicamento provocaria melhoras em Jack, daí a duas semanas poderiam ir à farmácia mais próxima comprar Vasclear que desse para um mês.

 

A pensar em Jack, no Vasclear, na recuperação, em Teri, em Freeman, na FDA e na noite de trabalho que o esperava, Brian pegou no gráfico do primeiro doente. Era Wilhelm Elovitz, o homem de setenta e quatro anos que escapara por pouco a uma colisão com o carril de alta tensão do metro. Doente da fase um, Elovitz começara a tomar Vasclear antes do início do ensaio indefinido e já havia dois anos que andava a tomá-lo.

 

-Mister Elovitz, é bom voltar a vê-lo - disse Brian. Sou o doutor Holbrook.

 

- Bill - recordou-lhe Elovitz. - Toda a gente me trata por Bill.

 

O seu cabelo grisalho estava tão despenteado como antes e o seu sorriso era igualmente cativante. Brian olhou para o gesso que o homem tinha no pulso esquerdo, depois reparou nos números azuis tatuados no lado de dentro do pulso direito de Elovitz. Era um sobrevivente do Holocausto.

 

Distraído com os números e com as suas preocupações, Brian não estava tão atento e alerta como costumava quando se encontrava junto de um doente. Como resultado, já estava sentado à secretária quando reparou no inchaço dos tornozelos de Elovitz. Depois recordou-se da falta de ar que ele e Phil tinham observado nas Urgências. A dispneia não era tão perceptível naquele dia como fora no outro, mas mantinha-se. O homem parecia estar a desenvolver problemas cardíacos.

 

- Dá-me licença um minuto, Bill? - perguntou Brian. Gostaria de dar uma olhadela à sua história clínica.

 

Abriu a pasta e folheou os papéis. Elovitz, morador em Charlestown e antigo talhante, fora recomendado a Jessup pelo médico de família devido às suas típicas dores no peito. Começara imediatamente a tomar Vasclear e parecia que, durante algum tempo, registara melhoras: houvera uma diminuição da dor e a sua tolerância ao exercício aumentara. Depois, semana após semana, mês após mês, o seu estado voltara a piorar.

 

Havia oito meses estivera internado dois dias, devido ao que parecia ser um ligeiro enfarte. Desde essa altura, ia todos os meses à clínica receber a sua dose de Vasclear, mas as notas escritas por vários médicos e enfermeiras eram bastante genéricas. Tanto quanto Brian podia ver, havia mais de seis meses que não fazia uma radiografia ao tórax nem análises ao sangue. Toda a gente tratava Elovitz de uma insuficiência cardíaca congestiva - uma diminuição comum da capacidade de bombear do músculo cardíaco, normalmente causada por arteriosclerose. Afigurava-se que, a certa altura, um médico fizera aquele diagnóstico e toda a gente partira do princípio que ele estava correcto. "Parece um grande desleixo para o Instituto do Coração", pensou Brian "mas se calhar o diagnóstico está certo."

- Então? - perguntou Brian.

 

- Então?

 

-Então, como é que se sente?

 

- Ah, esse "então"! - Elovitz calou-se para inspirar. Bom, a verdade, doutor Holbrook, é que não me sinto muito bem.

 

-Conte lá.

 

Elovitz tocou no peito.

 

-É a minha respiração. Nunca é normal.

- Dorme na horizontal? - Oh, não! Quando tento parece que sufoco. Durmo com três almofadas. A minha mulher dorme sem nenhuma.

 

- Consegue subir um lanço de escadas?

 

- Sim; a nossa casa fica num primeiro andar, mas costumo ter de parar a meio.

 

Brian leu a lista de medicamentos que Elovitz tomara e que fora aumentando ao longo dos últimos seis meses; eram todos destinados à artrioSclerose e à insuficiência cardíaca congestiva. Digitálicos, nitroglicerina, um vasodilatador, aspirina como anticoagulante, um diurético forte.

 

- Quando é que os seus tornozelos começaram a inchar dessa maneira? - perguntou.

 

Elovitz encolheu os ombros.

 

- Quando é que as coisas começam? - retorquiu, parando entre cada frase para respirar. - As coisas aparecem, desaparecem, e nós não ligamos... Voltam, duram um bocadinho mais, e continuamos a não dar muita importância... Depois, um dia, percebemos que dessa vez não desapareceram. Foi assim com o inchaço dos tornozelos, foi assim com a falta de ar.. Já passei por muitas coisas, doutor Holbrook - disse, indicando a tatuagem -, na maior parte bastante desagradáveis. Se elas não me incomodam muito, normalmente espero que passem.

 

-Mas essa falta de ar não passou, pois não?

 

- Não - admitiu Elovitz com ar triste -, receio bem que não.

 

Brian olhou para a porta e para o corredor da clínica. Sabia que já estava atrasado. Sabia que os outros doentes estavam à espera do seu exame rápido para poderem tomar o Vasclear e dar lugar à leva seguinte de doentes. Mas aquele homem, que suportara tanta coisa, que sofrera tormentos inimagináveis, precisava de mais que um exame rápido. Precisava de um exame meticuloso e de um tratamento dirigido à causa da sua doença cardíaca. -O diagnóstico dos médicos e das enfermeiras provavelmente estava correcto, mas não o tratamento descuidado que o doente recebia.

 

Levou Elovitz na cadeira do quarto onde lhe era administrado o Vasclear para um dos dois quartos com uma marquesa. Depois pediu a Lucy Kendall que se ocupasse de mais dois doentes nessa hora.

 

- Eu depois compenso-a - disse ele, envergonhado por ter reforçado o duplo sentido da frase com uma piscadela de olho.

 

- Quando? - perguntou ela.

 

Brian começou por fazer um exame vascular cuidadoso a Elovitz: tensão arterial deitado e em pé, em cada um dos braços; exame oftalmoscópico das artérias e das veias nas duas retinas exame cuidadoso do pulso da jugular no pescoço; e palpação da tensão no pescoço, braços, virilha, parte de trás do joelho, tornozelos e pés. Por fim, depois de um exame aos pulmões e ao abdômen, concentrou-se no coração.

 

Tirando a dificuldade em estar deitado durante muito tempo, Bill Elovitz era o doente perfeito. Durante um minuto, dois, cinco, Brian escutou, virando-o para o lado esquerdo, depois para o direito, deitando-o e voltando a sentá-lo. Quando andara a estudar, Brian aprendera os nomes e o significado dos vários sons normais e patológicos que o coração fazia. Quando começara a trabalhar, começara também a distingui-los. Mas só durante a especialização em cardiologia é que o seu ouvido ficara bem treinado. Naquele momento, enquanto terminava o exame a Bill Elovitz e tirava o estetoscópio, recordou uma conversa com o chefe de cardiologia pediátrica durante o seu primeiro dia de trabalho naquele serviço.

 

- Desculpe, mas não sei como é que consegue ouvir tudo o que acabou de descrever, se o coração desta criança bate cento e quarenta vezes por minuto - dissera Brian.

 

- Filho - respondera o professor, cheio de paciência quando acabar o seu treino neste departamento, o seu ouvido há-de estar tão treinado que entre uma batida e outra você se há-de aborrecer.

 

O exame cardíaco de Bíll Elovitz não parecera nada normal a Brian. Incluíra sons que ele nunca tinha ouvido. Um aumento da componente pulmónica do segundo som cardíaco. Um quarto som cardíaco no ventrículo direito. Murmúrios que sugeriam uma turbulência anormal nas válvulas pulmonar e tricúspide. Tudo isto sem vestígios de edema pulmonar agudo.

 

Era possível que aquilo fosse apenas o que os outros médicos tinham diagnosticado, uma variante de insuficiência cardíaca congestiva causada pelo endurecimento progressivo das coronárias. Havia uma máxima que dizia: "Quando ouvires o som de cascos nas planícies do Arizona, não vás à procura de zebras." Mas, com base no que Brian detectara, era também possível que aquilo fosse outra coisa que não insuficiência cardíaca congestiva. - uma "zebra".

 

A insuficiência cardíaca congestiva continuava a ser a causa mais provável do "som de cascos, mas, se não fosse, então o problema de Elovitz estaria quase de certeza nos pulmões e os problemas cardíacos e o inchaço dos tornozelos seriam secundários.

 

A zebra que continuava a galopar na mente de Brian chamava-se saturação pulmonar, S.P. Esta, ao espessar as paredes das artérias do pulmão, causava problemas respiratórios e um aumento da resistência do fluxo sanguíneo que acabaria por obrigar o coração a fazer um esforço suplementar. Aquela situação não muito comum, a princípio pouco perceptível e depois quase sempre fatal. As suas causas podiam ser muitas, mas incluíam a ida de coágulos de sangue das pernas e da pelve para os pulmões, várias infecções, sida, certas doenças pulmonares degenerativas e diversas toxinas e medicamentos.

 

Havia também uma versão extremamente rara de SP - saturação pulmonar primária, sPP - que parecia não ter qualquer causa detectável.

 

Poderia a saturação pulmonar ser a explicação dos sintomas daquele doente medicado com Vasclear? Não iria ser fácil descobrir. E seria quase impossível determinar se a causa do problema era uma doença pulmonar, a toxicidade de uma outra substância ou um efeito secundário do Vasclear. Porém, era crucial que Brian tentasse descobrir.

 

- Bill, quem é que veio consigo? - perguntou Brian. -A minha mulher. Foi lá abaixo beber café.

 

- Bom, talvez eu deva esperar que ela volte para lhe dizer o que penso.

 

-Não! - exclamou Elovitz. - Não é preciso... A Deborah é uma mulher muito nervosa. Está a tomar medicamentos por causa disso... não quero perturbá-la... o que tiver a dizer, diga-mo a mim.

 

Brian encolheu os ombros.

 

- Okay - assentiu. - Os médicos que o têm tratado acham que o senhor tem uma coisa chamada "insuficiência cardíaca congestiva". E se calhar estão certos. Mas eu pergunto-me se o senhor não terá um problema pulmonar raro designado "saturação pulmonar". Chamamos-lhe SP. No entanto, quero deixar bem claro que a SP pode não ser o seu problema. Como é difícil de diagnosticar e envolve vários testes, gostaria de sugerir que me deixe interná-lo durante alguns dias aqui no instituto.

 

A cor desapareceu instantaneamente do rosto de feições marcadas de Bill Elovitz, Abanou a cabeça, a princípio devagar, depois com mais vigor.

 

- Vai ter de arranjar outra forma, doutor Holbrook - disse. - Mas porquê?

 

Elovitz mostrou-lhe a tatuagem.

 

-Por causa disto. Disto e da minha preocupação com a minha mulher. Não me importo de cá vir fazer testes, mas no campo de Buchenwald havia um hospital. Era o local mais abjecto e terrível que possa imaginar. Os meus amigos, a minha família e eu próprio fomos levados para lá várias vezes. Já passaram cinquenta anos, mas só uma vez fiquei num hospital, durante duas noites, quando tive o ataque cardíaco. Faça os seus testes, doutor Holbrook, faça o que quiser... mas não me interne... a menos que eu morra por causa disso.

 

- Neste momento ainda não corre assim tanto perigo - retorquiu Brian -, mas vai precisar de cá vir várias vezes para fazer os testes.

 

- Como deve imaginar, tenho pouca coisa a ocupar-me o tempo... Diga-me só o que tenho de fazer.

 

Brian preencheu várias credenciais: electrocardiograma, raios X ao tórax, ecocardiograma, níveis de gasimetria arterial, análises ao sangue e uma contagem dos glóbulos. Assim que tivesse os resultados poderia decidir se o exame mais incómodo, uma ecografia pulmonar, seria necessário.

 

-A secretária vai marcar-lhe estes exames, Bill - disse.

- A recolha de sangue pode ser feita agora. Entretanto, vou mudar alguns dos seus medicamentos.

 

- E o meu Vasclear?

- Desculpe?...

 

Elovitz sorriu.

 

- meu Vasclear... Foi por causa dele que cá vim hoje.

- Ah!, sim. Bem, Bill, com o que está a acontecer, e atendendo ao facto de já fazer parte do estudo há bastante tempo, acho que seria melhor interromper o Vasclear até termos os resultados dos exames. Venha, vou ajudá-lo a marcá-los.

 

Enquanto acompanhava Bill pelo corredor, Brian pensou no surto de saturação pulmonar que houvera em Espanha nos anos 80, causado por óleo de colza, e outro alguns anos mais tarde no Novo México, ligado à ingestão de L-triptofano através de um soporífero de venda livre. Depois, mais recentemente, houve um grande aumento de SP associada a certos supressores do apetite, mas, tirando aqueles surtos, a doença era tão rara -como... as zebras nas planícies do Arizona. E desde que chegara ao Instituto do Coração nunca ouvira dizer que a SP podia ser um efeito secundário do Vasclear.

 

O mais provável seria estar enganado. E mesmo que Bill Elovitz tivesse SP, seria um caso isolado. Não havia forma de provar, nem sequer de inferir, que o Vasclear estava relacionado com o problema. No entanto, Elovitz encontrava-se doente e a piorar. Tirando o transtorno que aquilo lhe iria causar e a despesa que a companhia de seguros iria ter, não havia razão para não avançar com os exames. Se ele tivesse SP, a sua qualidade e o seu tempo de vida poderiam ser melhorados, embora a doença tendesse a piorar.

 

Ao dobrar a esquina que conduzia à recepção, Brian viu meia dúzia de balões a pairar em cima do balcão da secretária. Quando se aproximou, reparou que havia na secretária um bolo suficientemente grande para alimentar um regimento.

 

- Despache-se! - exclamou Lucy Kendall, animada. Estamos todos famintos.

 

Brian ainda se encontrava a vários metros da secretária quando conseguiu ler a dedicatória escrita na cobertura do bolo: "Obrigada, Dr. Holbrook."

 

Em redor das palavras havia uma réplica comestível da vista que se tinha da entrada principal do White Memorial. Quando se aproximou, Lucy e a enfermeira desviaram-se. Atrás delas, radiante, estava Nellie Hennessey. Vestia calças de ganga e uma T-shirt amarela. Brian contornou a secretária e deu-lhe um abraço; os funcionários e alguns doentes aplaudiram.

 

-O bolo é muito bonito - disse ele.

 

- Obrigada. Decorar bolos é um dos meus passatempos preferidos - respondeu Nellie.

 

Depois apresentou Brian à filha, uma ruiva com os olhos de Nellie e um sorriso alegre.

 

- Se a Megan não fosse casada com o melhor homem do mundo, eu havia de insistir para que ela namorasse consigo disse Nellie.                                                    

 

Ouviram-se mais gargalhadas e aplausos na clínica. Brian olhou para Lucy Kendall e viu-a esboçar um sorriso travesso. Desejoso de deixar de ser o centro das atenções, cortou a primeira fatia.

 

- Então, Nellie, o que é que este médico alto, moreno e bonito fez para lhe salvar a vida? - perguntou um dos doentes.

 

Brian viu a confusão espelhada no rosto de querubim de Nellie durante uma fracção de segundo.

 

- Bem - disse ela -, tive um problema numa das artérias e este rapaz abriu-a.

 

Ouviram-se de novo aplausos e mais nada. Nenhuma referência ao produto defeituoso da Ward-Dunlop. Nenhuma referência à ponta do cateter.

 

"Teria alguém falado com Nellie?", perguntou-se Brian. "Tê-la-iam subornado? Ou teria ela percebido que era necessária a máxima díscrição?"

 

Brian levou-a até junto de Bill Elovitz e apresentou-os; depois afastou-se, enquanto eles contavam as suas histórias. Nellie fazia parte dos setenta e cinco por cento que haviam obtido bons resultados. Adoecera, tomara Vasclear, melhorara. Simples. Sem problemas.

 

"Mas o que teria exactamente Bill Elovitz?"

 

No início apresentara melhoras, depois regredira. Isso deixava-o de fora dos setenta e cinco por cento - era um dos que não reagia ao Vasclear. E agora havia a possibilidade de ter desenvolvido um problema pulmonar bastante raro. Seria o problema real ou apenas um tiro no escuro? E, se fosse real, tratar-se-ia de uma coincidência ou de uma complicação? E quais seriam as implicações que isso teria para Jack, se é que teria algumas?

 

Mesmo que os exames revelassem que Elovitz tinha SP, não havia forma de a relacionar com o Vasclear. E setenta e cinco por cento de êxitos eram setenta e cinco por cento de êxitos. O que Brian descobrira em Bill não era motivo para interromper os tratamentos de Jack.

 

- Nellie, diga-me uma coisa. Quanto tempo depois de ter tomado o Vasclear é que os seus sintomas melhoraram? - perguntou Brian.

 

- Quanto tempo? Muito pouco, querido. Isso, pelo menos, sei.

 

Eu lembro-me bem - interveio Megan. - Recebeste o primeiro tratamento a dez de Agosto e as dores tinham desaparecido no meu aniversário. Decoraste o bolo com caras sorridentes e corações, lembras-te?

 

- Então quanto tempo foi? - tornou Brian a perguntar.

- Oh!, eu faço anos a vinte e quatro. A tua dor desapareceu exactamente duas semanas depois. Duas semanas.

 

A noite foi menos movimentada do que Brian esperara. Ninguém o chamara pelo pager e depois de ter saído da Clínica Vasclear só dera entrada no instituto um doente, um homem de trinta e oito anos a tomar um medicamento experimental para a miocardite, uma infecção viral do músculo cardíaco. O medicamento ainda estava na fase um dos testes, toxicidade e ajustamento da dose, mas, por aquilo que Brian conseguiu perceber, o tratamento não estava a resultar minimamente. A insuficiência cardíaca congestiva do homem piorava a olhos vistos e ele ingeria cada vez mais medicamentos. Era candidato a um transplante, mas, tal como muitos outros doentes, estava tão no fundo da lista que o mais provável era a doença matá-lo antes de ser chamado para o transplante.

 

Brian inteirou-se da história do doente, fez-lhe um exame físico e mandou que desse entrada no instituto. Depois foi ao quarto do homem rever o gráfico e introduzir o seu parecer no computador portátil que ali se encontrava. Num serviço movimentado não havia tempo para introduzir no computador os diagnósticos, e os médicos eram obrigados a ditá-los, mas com a utilização dos computadores a síntese era geralmente mais elaborada e completa, fazia-se de imediato uma saída em papel que era anexada ao gráfico, eram precisas menos secretárias para dactilografarem os textos e eliminava-se a possibilidade de um erro de transcrição.

 

Brian pousou o gráfico e uma caneca de café ao lado do computador; carregou numa tecla, mas o ecrã continuou negro., Tentou fazer um restart, a única coisa que sabia fazer numa crise informática, mas o resultado foi o mesmo. Podia ditar, mas a escrever a sua análise, para ficar com ela. Ligou para a sala dos computadores a pedir um gravador e comunicou a avaria. Depois decidiu experimentar um dos computadores da sala de gravação na Clínica Vasclear.

 

Disse às enfermeiras de serviço onde estivera e entrou na clínica, marcando o código. O local encontrava-se deserto, escuro e assustadoramente silencioso. A pequena sala envidraçada ficava alguns metros à sua esquerda. Sem se dar ao trabalho de procurar o interruptor, encontrou a porta com a sua caneta-lanterna. Preferiu acender o candeeiro da secretária em vez da luz fluorescente do tecto. Depois fechou a porta e baixou os estores. Um casulo.

 

Eram dez e meia, mas tinha quase a certeza de que Jack não estava a dormir. A enfermeira que tinha contratado para ficar com ele em caso de impossibilidade dos vizinhos atendeu ao primeiro toque.

 

- Então como é que    ele está, Mistress Rice? - perguntou Brian.

 

- Desde que o senhor telefonou, às seis, não houve qualquer alteração. Está sentado a ver desporto.

 

Parecia frustrada, aborrecida, ou as duas coisas.

 

- Bem, ele já foi atleta - retorquiu Brian, um pouco irritado -, e por sinal era bastante bom. Teve dores no peito? -Algumas, quando se levantou para ir à casa de banho.

 

Colocou um daqueles comprimidos debaixo da língua. Quero esfregar-lhe as costas antes de o meu turno acabar, à meia-noite, mas ele não se quer deitar para que eu o possa massajar.

- Pode passar-lhe o telefone, por favor?

 

-Olá, Bri.

 

- Então, Jack, porque é que estás a dificultar a vida a Mistress Rice?

 

- Porque ela é uma chata. Além disso, não preciso de nenhuma massagem nas costas, preciso é de mais Vasclear.

 

- Esta noite não ficaste de o tomar. Já to disse uma dezena de vezes.

 

-Oh, acho que me esqueci. Passo a vida a esquecer-me das coisas. Pedi-te o Vasclear porque acho que ele está a fazer efeito.

 

Brian ficou radiante.

 

-O que queres dizer com isso? Diz lá...

 

- Bem, não sei explicar, mas sinto-me melhor esta noite.

 

- Isso é óptimo, pai, óptimo! Mas Mistress Rice disse-me que já tomaste nitroglicerina.

 

- Só dois comprimidos. Digo-te uma coisa, Bri, esse medicamento está a funcionar.

 

- Isso são óptimas notícias. Amanhã levo-te mais para casa.

 

-Espero que sim.

 

- Falo contigo pela manhã, Jack,

 

Brian pousou o auscultador, inclinou-se para trás e fechou os olhos. Era óptimo ouvir o pai variar o discurso e dizer que se sentia bem; porém, continuava a tomar nitroglicerina para dar vinte passos até à casa de banho. Estaria ele a imaginar a melhoría do seu estado, ou seria mesmo realidade?

 

Abrira o espesso gráfico da miocardite e pusera-o ao lado do computador quando ouviu a porta da clínica- abrir-se. Pouco depois ouviu vozes. Através de uma nesga no estore viu as luzes fluorescentes acenderem-se. Pousou a caneta e espreitou lá para fora. Segundos depois, Art Weber e Carolyn Jessup passaram pela sala sem olhar para ela. Acompanhavam um homem alto, robusto e com pouco cabelo que vestia roupas quase tão caras como as de Art Weber.

 

Brian não conseguiu ver a cara do homem, mas havia nele qualquer coisa familiar. Os dois médicos conduziram-no até ao quarto um, o mais próximo. Momentos depois, as luzes do quarto acenderam-se. As vozes ecoaram pelo corredor.

 

-Um exame rápido, para confirmar se está tudo bem ouviu Jessup dizer -; depois acho que lhe vamos fazer um electrocardiograma antes de lhe administrar o tratamento.

 

- Como é que se tem sentido? - perguntou Weber.

 

- Bem. A dor que me fez vir ver a Carolyn desapareceu ao fim de duas ou três semanas de tratamento e não voltou.

 

A voz do homem também era familiar.

 

- Isso são óptimas notícias! - exclamou Weber.

 

- Este vosso medicamento é excelente, Art, excelente. Ainda sinto umas ligeiras pontadas no peito, mas nunca duram muito.

 

-Isso é muito natural - disse Jessup. - Todas as pessoas com mais de vinte anos sentem de vez em quando umas pontadas no peito. O médico tem é de distinguir entre a verdadeira dor cardíaca, angina pectoris, e um espasmo muscular entre as costelas, ou entre a entrada de excesso de ácido vindo do estômago para o esófago e uma bolha de gás encurralada no intestino sob o diafragma, ou entre uma inflamação do pulmão e uma tendinite em volta do ombro. Às vezes não é fácil fazê-lo. A lista de possibilidades continua.

 

- Então muita coisa pode estar mal nessa parte do corpo disse o homem.

 

"Quem é ele?", pensou Brian, sentindo que estava perto da resposta.

 

- Na sua maior parte são problemas menores e inconsequentes, Walter - retorquiu Jessup. - Quase se pode dizer que a maioria das dores no peito é a resposta normal do corpo às tensões diárias da vida. E é isso que está a acontecer consigo, porque felizmente, graças ao doutor Weber e aos bons funcionários da Newbury Pharmaceuticals, o problema que o senhor tinhana artéria coronária está quase resolvido.

 

- óptimo - disse o homem.

 

"Walter?" Brian aproximou mais a cadeira da porta.

 

- Este electrocardiograma parece o de um adolescente observou Jessup, animada. - Está a responder muito bem. Art, acho que estamos prontos para o tratamento. Vou preparar a solução intravenosa enquanto você vai buscar o Vasclear.

 

- Com todo o gosto. Sai um cocktail Vasclear!

 

Weber saiu do quarto e dirigiu-se para a sala dos medicamentos. Brian ficou imóvel, atordoado, tentando processar o que acabara de ouvir. Parecia que o homem chamado Walter era um VIP - um VIP com problemas cardíacos que estavam a ser tratados com Vasclear. Teria, por acaso, sido escolhido para o grupo beta? Parecia pouco provável.

 

Art regressou pouco depois.

 

- Aqui tem, senador - disse. - Pediu o mais forte, não pediu?

 

"Walter Louderman!", pensou Brian, boquiaberto. Quase nunca votara nos republicanos, mas se aquele antigo jogador de futebol com o maxilar quadrado fosse nomeado pelo seu partido para as presidenciais, votaria quase de certeza nele. Não lhe restavam muitas dúvidas de que Weber e Jessup tinham quebrado o código para garantir que o senador recebesse a dosagem beta, mas quase tão surpreendente como isso era saber que o senador Louderman tinha problemas cardíacos - pelo menos tivera-os antes do tratamento com o Vasclear. Se isso fosse revelado, as suas aspirações à presidência da República desvanecer-se-iam.

 

"Deviam ter confiado em min!", pensou Brian, irritado. A vida do seu pai corria risco. Toda a gente sabia que o grupo beta era o que recebia a dosagem máxima. Andavam a fazer batota com o Louderman. Porque não tinham ignorado o protocolo e posto Jack naquele grupo? Podiam tê-lo feito de forma que ninguém, nem mesmo Brian, tivesse sabido. Em vez disso, Jessup deixara o computador seleccionar Jack para o maldito grupo placebo. Depois insistira para que ele repetisse a operação. Valeria a pena confrontá-los agora? O que ganharia com isso?

 

- Brian esteve à escuta durante mais trinta segundos; depois deixou que a porta quase se fechasse e aproximou-se do computador. Ligou-o e escreveu a password. Em seguida procurou o ficheiro de Walter Louderman. Não ficou admirado quando não o encontrou. Podia estar sob outro nome, mas Brian duvidava que um homem com as ambições políticas de Louderman corresse sequer esse risco.

 

Tomou mentalmente nota para ir à videoteca ao lado da sala de pequena cirurgia, mas sabia que a história médica de Louderman deveria encontrar-se num cofre do gabinete de Carolyn Jessup. Talvez até em casa dela. De súbito, apercebeu-se de um movimento à sua esquerda e ouviu o som de respiração. Art Weber encontrava-se à porta a olhar para ele; o seu rosto era uma máscara inexpressiva.

 

Brian olhou para o computador. De onde estava, Weber não podia ver que Brian estivera à procura do ficheiro de Walter Louderman.

 

- Olá, entre! - cumprimentou Brian com uma animação fingida.

 

Weber empurrou a porta com o pé, mas permaneceu no mesmo sítio.

 

- Já aqui estava quando entrámos? - perguntou.

 

- Eu... hum... sim. O outro computador não estava ligado. Já aqui estou há algum tempo a preparar um relatório.

 

- Estou a perceber, viu-nos entrar com o nosso... doente?

- Sim, vi.

 

- E reconheceu-o?

 

Brian ainda não conseguira decifrar nada na expressão do director do projecto. Por momentos pensou em mentir a Weber, depois desistiu. Acabou por assentir.

 

- Olhe, fique aí e continue o seu trabalho disse Weber. Quero falar com a doutora Jessup.

 

Weber fechou a porta atrás de si e dirigiu-se para o quarto um. Brian sentiu um certo medo, à mistura com ira. Poderiam despedi-lo? Iriam arriscar que contasse a alguém o que tinha visto? Infelizmente, a resposta era que ele era dispensável para o Instituto do Coração e que os toxicómanos - em recuperação ou não - não tinham a mínima credibilidade.

 

Carolyn Jessup saiu do quarto um, bateu ao de leve na porta de vidro, depois abriu-a e entrou. Brian esforçou-se por manter a calma. Recuou e sentou-se na ponta da secretária.

 

Jessup observou-o e cruzou os braços. Brian reparou que a maquilhagem dela era muito discreta e que estava bem aplicada. Tinha as unhas arranjadas e pintadas de vermelho. Se Phil Gianatasio se deixava intimidar por uma mulher como Teri Sennstrom, Jessup devia apavorá-lo.

 

- Bem, Brian - começou ela, escolhendo visivelmente as palavras -, aqui estamos de novo a falar das coisas que precisam de ser feitas para o bem do Instituto do Coração.

 

-Parece que sim.

 

- O doutor Weber disse-me que você sabe quem é o nosso convidado misterioso.

 

-O senador Louderman não passa facilmente despercebido.

 

Jessup esboçou um sorriso neutro.

 

- Sim, concordo - disse ela, descruzando os braços, mas sem desviar os olhos escuros dele. - Soube há pouco tempo que o senador tinha dores no peito. Fiz-lhe um teste, esperando, um resultado negativo, mas tal não aconteceu. Ele tinha um problema cardiovascular. Dada a natureza... "delicada" da sua posição política e dos seus planos, fiz-lhe secretamente um cateterismo onde ficou documentada uma oclusão de noventa por cento na artéria anterior descendente esquerda, bem como outras obstruções mais pequenas na direita e na circunflexa. Começou logo a tomar Vasclear e melhorou tanto que duvido que a saúde dele venha a ser assunto de conversa, privada ou pública, caso se candidate.

 

- Noventa por cento... - repetiu Brian. - Foi um resultado fantástico. Tenho a certeza de que o facto de o Vasclear ter obtido tão bons resultados num homem tão poderoso como o senador irá ajudar bastante.

 

-Ajuda sempre ter amigos bem colocados - retorquiu calmamente Jessup. - Um pouco como os amigos que o Brian tem no instituto: eu e o doutor Pickard.

 

A ameaça era clara e Brian respondeu rapidamente:

 

- Já lhe disse antes, doutora Jessup, que estou muito agradecido ao doutor Pickard e à senhora por me terem dado esta oportunidade. A última coisa que quero é fazer perigar a minha posição aqui. Tenho demasiadas coisas em jogo.

 

- Muito bem. Nesse caso, Brian, para bem da sua carreira - e não só -, tem de prometer-me que não fala do senador Louderman a ninguém. A ninguém, mesmo. Se alguém souber que está a receber tratamento pode acontecer o pior... para ele e para nós.

 

- Compreendo.

- Excelente.

 

Jessup olhou por cima do ombro.

 

- Art, tem alguma coisa a acrescentar? Weber entrou na sala.

 

- Gostaria de felicitá-lo, Brian, por ter compreendido a gravidade da situação - disse. - Se houver alguma coisa que possamos fazer por si, basta dizer.

 

Brian hesitou um momento, mas percebeu que não iria conseguir ficar calado.

 

-Por acaso, há uma coisa - começou. - Eu... calculo que o senador Louderman não tenha sido acidentalmente incluído no grupo beta.

 

Weber e Jessup olharam um para o outro.

 

- Brian, estamos a falar de um homem que pode vir a ser o nosso próximo presidente - respondeu Jessup. - Claro que não podíamos arriscar que ele fosse incluído no ensaio indefinido.

 

- Certo - retorquiu Brian -, mas por muito importante que seja o senador, o homem mais importante do mundo para mim é o meu pai.

 

-Claro. E quer que ele seja íncluído no grupo beta.

 

- Sempre foi isso que quis e continua a ser. No entanto, independentemente do que decidirem, podem estar descansados em relação ao segredo do senador.

 

No olhar de Carolyn Jessup surgiu uma expressão de surpresa e de admiração. "Bem-vindo ao clube, doutor Holbrook", parecia dizer o seu olhar. "Estou a ver que o senhor tem o que é preciso para vir a ser bem sucedido neste lugar."

 

- Bom, Brian, não está a pedir nada de transcendente. Suponhamos que o seu pai começa o tratamento amanhã, às cinco da tarde. Vou comunicar às enfermeiras que ele foi escolhido para o grupo beta.

 

- Acho que a viagem até à cidade pode ser um esforço demasiado grande para ele. Se não se importar, preferia começar os tratamentos em casa.

 

- Mas não se esqueça de que continuo a recomendar uma intervenção cirúrgica, e o mais depressa possível.

 

- Compreendo. Ainda não vi o filme, doutora Jessup, mas, por aquilo que me disse, os ecocardiogramas da Nellie Hennessey eram parecidos com os do meu pai, Vi-a hoje na clínica. Tem quase mais seis anos que o Jack e parece dez anos mais nova. Gostaria que ao menos ele experimentasse o Vasclear.

 

- Nesse caso, será o Vasclear beta. O Art irá dar-lhe amanhã doses que cheguem para uma semana.

 

- Fico-lhe muito grato.

 

A simpatia no olhar de Carolyn Jessup transformou-se em frieza.

 

- Espero que sim, Brian - retorquiu ela.

 

                   THE BOSTON GLOBE

 

Laboratório Farmacêutico de Boston Prestes a Ganhar Milhares de Milhões

 

"Até este mês, os maiores lucros efectuados pela Newbury Pharmaceuticals, com sede em Boston, provinham da exportação de vitaminas para a Rússia e para outras repúblicas do antigo bloco soviético.

Agora parece que esta empresa privada está prestes a lucrar, segundo os especialistas, dez mil milhões de dólares nos próximos três anos. A causa é a esperada aprovação do medicamento Vasclear pela fda no final do mês. O medicamento revelou uma eficácia de setenta e cinco por cento na desobstrução das artérias, segundo revelou uma fonte próxima do fabricante.

 

O dinheiro vai começar a entrar assim que os camiões começarem a sair", comentou um analista. "Os lucros podem ser inéditos numa indústria já famosa por lucros inéditos.

 

Até um sábado de Novembro de há quase dezoito anos o Outono fora a estação do ano preferida de Brian. Desde essa altura, embora o aroma das folhas em decomposição e da terra húmida, as cores maravilhosas e o ar fresco e cristalino da Nova Inglaterra continuassem a agradar-lhe, o Outono trazia também consigo sentimentos agridoces. Desde pequeno que fora educado para jogar futebol e era raro uma experiência fora do campo, até mesmo uma experiência médica, igualar aquilo que sentia quando se preparava para fazer o primeiro lançamento de um jogo.

 

Naquele dia, contudo, Brian sentia-se radiante com o Outono e bastante excitado. Teri Sennstrom telefonara e daí a menos de uma hora estariam a jantar. Precisava de um intervalo de tempo para pôr de lado algumas coisas, ainda que apenas momentaneamente.

 

Os dias a seguir ao início do tratamento oficial de Jack com o Vasclear haviam decorrido sem problemas, mas Brian duvidava que o pai tivesse melhorado, e já tinham passado dez dias desde que ele recebera a primeira dose beta. Brian começara a tomar nota do número de comprimidos de nitroglicerina tomados e arranjara um diário para que as enfermeiras e os vizinhos pudessem registar diariamente o nível de actividade de Jack. Os altos e baixos emocionais eram desgastantes: num dia tentava agarrar-se à esperança de que ele estava a melhorar, no outro ficava arrasado com a ideia de um possível retrocesso. "Mais três dias", decidiu. Ao fim desse tempo faria duas semanas que Jack estava a tomar o Vasclear. Se lhe acontecesse o mesmo que a Nellie Hennessey, estaria safo. Se isso não se verificasse, Brian iria insistir para que ele fosse falar com Laj Randa.

 

Teri pedira-lhe que se encontrassem num sítio que não fosse frequentado por ninguém do Instituto do Coração. Brian escolhera um restaurante onde tocavam blues. Abrira havia pouco tempo em Burlington, não muito longe de Reading. Eram quase seis horas quando saiu do hospital e ligou para casa para ver como estava Jack.

 

-Que tal vai isso, pai? -Não muito bem.

 

Brian sentiu-se desanimar.

- Dores no peito?

 

- Nem por isso. Não sei o que se passa, só sei que... tenho medo.

 

Jack Holbrook, o atleta que uma vez partira uma perna num jogo e continuara a jogar até ao intervalo com a fractura, sentia-se não apenas assustado com o seu estado, como também o admitia. Parecia estar a ir-se abaixo.

 

- Queres que eu vá para casa? -Não ias jantar com uma pessoa?

 

- Ia, mas isso não é importante se não estás a sentir-te bem.

 

- Que disparate, eu estou bem, só um pouco aborrecido e nervoso. Daqui a uma hora começam os jogos. Diverte-te. -Tens a certeza?

 

- Claro que tenho a certeza. A Sally está aqui comigo e tenho uma lasanha que alguém cá deixou. Desde que esta noit tome o meu Vasclear.

 

- Assim que eu chegar a casa. Dez e meia, onze horas, mais tardar. Bem, é a tua última oportunidade. Tens a certeza, de que não queres que eu vá para casa agora?

 

- Tenho.

 

-Eu levo o pager.

 

- óptimo. Não te preocupes, não te vou ligar.

 

- Está bem. Diverte-te com o jogo. E... pai?... Amo-te.

houve um breve silêncio.

 

- Diverte-te - respondeu Jack.

 

Brian ficou a ouvir o som do telefone desligado durante meio minuto antes de pousar o auscultador. "Amo-te." O seu programa de recuperação aconselhava coragem quando se tratava de expressar sentimentos, mas fora a primeira vez, a primeiríssima, que ele dissera aquilo ao pai desde... desde sempre, talvez.

 

"Amo-te." porquê naquele momento?

 

Animado com a ideia de ir voltar a ver Teri, mas ao mesmo tempo estranhamente esgotado pela breve conversa com Jack, Brian vestiu umas calças de ganga e uma camisa axadrezada e dirÍgiu-se para a garagem do hospital.

 

Teri aguardava-o numa mesa do Blues Barn, um espaço em madeira que restara de uma velha quinta. Com um ar descontraído no seu blusão de ganga e T-shirt dourada, Teri cumprinentou Brian com ternura e beijou-o na cara.

 

- Não teve dificuldade em chegar cá? - perguntou ele. -Não. você é óptimo a explicar. - Indicou o espaço que os rodeava. - Era num restaurante como este que me apetecia estar hoje.

 

- A música começa às oito - disse Brian. - Nunca ouvi falar no grupo.

 

- Não tem importância. Tenho estado a trabalhar sem descanso -naquilo que você sabe. Esta noite equivale a duas semanas de férias.

 

A empregada aproximou-se. Brian pediu uma Diet Coke com limão. Teri pediu o mesmo.

 

- Espero que não esteja a evitar o álcool por minha causa

- observou ele.

 

- Se estiver, não faz mal, É-me indiferente beber ou não álcool.

 

-Eu não posso dizer o mesmo. Não me lembro de uma única vez em que não tenha bebido para ficar alegre ou para esquecer. Já acontecia isso antes de os meus problemas com os analgésicos começarem.

 

-Está a tentar resolver o problema com reuniões e com apoio. Isso é que importa.

 

- Ah!, sim, o dossiê. Você já sabe a história da minha vida,

 

-Lamento. Isso deixa-me pouco à vontade.

 

Teri afastou uma madeixa de cabelo da testa, mas ela voltou a cair. Brian teve de resistir ao impulso de estender a mão e repetir o gesto.

 

-Bom - disse ele -, talvez a situação possa remediar-se. Fale-me de si.

 

- Se já existir um dossiê'a meu respeito em Washington, deve ser muito menos interessante que o seu. Nasci em Indiana e tenho uma irmã mais velha. Fui a primeira da família a ir para a faculdade. O meu pai ainda dá ao cabedal numa siderurgia, bebe muito e fica verbal e fisicamente agressivo quando bebe. A minha mãe cozinha, limpa e mantém sempre um sorriso tenso, aguenta tudo e nunca tem uma palavra menos simpática para os outros,

 

- Violência e martírio. Parece uma casa divertida.

 

- Ah!, sim. A minha irmã, Dianne, engravidou e casou antes dos dezoito. A velha escapatória.

 

- O tipo era, ao menos, simpático?

 

- O que é que acha? Dê-lhe trinta anos e mude-lhe a marca da cerveja, que ele torna-se como o meu pai.

 

- E você?

 

- Eu esperei quase até aos dezanove para fugir e casar. Ele era estudante de Medicina. Foi graças a ele que me interessei por estas coisas.

 

- O que aconteceu?                                        

 

- Tudo. O Peter era muito inseguro, precisava de alguém que o elogiasse mais do que eu... Eu apanhava-o, ele mentia, eu voltava a apanhá-lo, ele ficava violento e culpava-me. Eu tinha sido aceite em Princeton depois do liceu e deixei de me candidatar para acompanhar o Peter, trabalhar num armazém e ter umas aulas num colégio da zona. Os tipos de Princeton tiveram a amabilidade de me aceitar quando voltei a contactá-los. Até me ofereceram uma bolsa. Quando o Peter descobriu, decidiu que precisava de outra pessoa com mais tempo para lhe dobrar as meias.

 

A empregada regressou com as bebidas.

 

- Você tem um ar demasiado saudável - disse Brian mas recomendo o entrecosto.

 

Ela pegou na mala e tirou um pacote de bolachas com pedaços de chocolate.

 

- Para emergências - disse. - Não vá ficar presa no desabamento de uma mina. Vou no entrecosto com batatas fritas. Enquanto esperavam pela comida, viram a banda preparar-se e falaram de Boston e de Washington, de música, de livros, de filmes e contaram histórias de trabalho. Depois, durante algum tempo, comeram em silêncio, mas em um silêncio agradável.

 

- Então e você? - perguntou Teri, finalmente. -Eu o quê? O dossiê não está completo? -Como é que se aleijou?

 

-A jogar futebol. Isso vem no dossiê.

 

-Não, quero dizer agora. Devo avísá-lo que eu e uma amiga comprámos bilhetes para esta época para os jogos dos Redskins. Adoro futebol!

 

-Acho que estou no Paraíso! -Então, como é que se aleijou?

 

- Bom, primeiro tem de saber que o meu pai era o meu treinador. Na primária, no liceu e na faculdade. Fui para a Universidade de Massachusetts porque o tinham contratado. "BlacIm Jack Holbrook. Não sei quem é que lhe pôs a alcunha, mas sei que ele adora fazer apostas.

 

- Pai e treinador. Imagino que a linha divisória às vezes não fosse muito perceptível.

 

-Isso é dizer pouco. Ainda continuo sem saber como- lhe chamar. Éramos... somos... bastante temperamentais. Às vezes em especial quando eu era novo, fazia maus passes se ele dizia alguma coisa que me chateasse, mas na maior parte das vezes vivia em função daquilo que ele pensava a meu respeito e da forma como jogava. Aleijei-me num jogo no penúltimo ano da faculdade. Antes de a época começar, o meu nome apareceu em algumas revistas, embora não tenha pertencido a nenhuma equipa grande. O ano e o jogo estavam a correr bem, ainda que estivéssemos a perder por cinco pontos e faltassem apenas seis segundos para acabar o jogo...

 

Enquanto falava, Brian recordava perfeitamente aquela tarde de Outono. O dia estava a correr-lhe muito bem - fizera três touchdowns. Mas faltavam-lhe quatro metros para fazer pontos que lhes permitiriam ganhar o jogo e havia apenas tempo para mais uma jogada. Seis segundos... cinco...

 

-Pausa! - gritou Brian.

 

Dirigiu-se para a linha lateral, fazendo um esgar de cada vez que o joelho direito sustentava o seu peso. Por muito que tentasse, não conseguia deixar de coxear. Assim que recebera a bola no segundo quarter, percebera que alguma coisa no joelho se distendera, se rasgara ou rebentara, mas continuara, recordando-se que o treinador Holbrook uma vez jogara um quarter de um jogo com uma perna partida. O treinador chamou-o.

 

- Não gosto do teu andar. Consegues voltar para o campo?

- Porque é que perguntas?

 

- Porque sou teu pai, ora. Está bem, se vais continuar, quero que te livres da bola ao fim de três passos, o mais depressa possível. Passa a bola ao Tucker.

 

- Treinador, o Tucker já perdeu dois passes. Que tal eu fingir que lhe passo a bola e tentar marcar?

 

- Não quero que lixes a perna. Faz o que te disse. Entendido?

 

- Entendido.

 

Brian regressou ao campo e explicou a jogada à equipa. O joelho vacilou ligeiramente quando ele se aproximou do centro. Uma dor aguda irrompeu pela medula da coxa direita, mas a perna aguentou. Brian olhou para o pai. Os seus olhares cruzaram-se. O treinador bateu palmas uma vez e fez-lhe sinal com o polegar. Chegara o momento. Como sempre naquelas ocasiões, tudo pareceu começar a movimentar-se em câmara lenta para Brian. O som dos espectadores diminuiu e acabou por desaparecer. A posição de cada um dos adversários, os seus olhos, as suas poses, os seus pequenos movimentos estavam catalogados na sua mente. Parecia que tinham mordido o isco a formação ofensiva enganadora que indica a aproximação de um passe. Estavam mal colocados para a jogada que ia surgir. O passe que o treinador queria que ele fizesse podia resultar bem ou mal, mas Brian corria bastante...

 

A bola veio-lhe parar às mãos. Brian pegou nela de forma que os adversários pudessem ver que ele estava prestes a lançá-la. Recuou dois passos. À sua frente estava uma aberta - tão grande que ele quase sorriu, hesitou mais uma fracção de segundo e desatou a correr. Quando pousou o pé direito no chão a primeira vez, dois dos ligamentos que unem as partes superior e inferior da perna romperam-se. A parte inferior da perna dobrou-se para fora num ângulo grotesco e nada natural. Uma dor fortíssima irrompeu da rótula.

 

Brian começou a gritar ainda antes de cair. Inspirou e gritou, e voltou a gritar. Agarrou numa mão-cheia de trufa e enfiou-a na boca, mordendo-a com toda a força. Mesmo assim, continuava a gemer, à beira do desmaio. Muito ao longe ouviu o pai a chamá-lo.

 

- Brian... Brian...

 

Atrapalhado, apercebeu-se da voz de Teri. Ela tinha a mão sobre a dele e apertava-a com força.

 

- Bolas! - exclamou Brian, abanando a cabeça e limpando o suor do lábio superior. - Parece que me descontrolei um pouco. Já há muito tempo que não me acontecia uma coisa destas. O que eu disse fez sentido?

 

- Muito sentido, Brian. Acha que se tivesse passado a bola, como o seu pai queria, teria acabado por se tornar profissional?

 

-E não me teria transformado num toxicómano? O meu pai acha que sim, e mais nada importa. Ele nunca me perdoou., Começou de novo a divagar.

 

A banda, que não era muito má, tocava uns blues calmos.

- Quer dançar? - perguntou Teri, arrancando-o do sonho.

- Olhe que é a segunda vez esta semana que me fazem essa pergunta. Tem os pés no seguro?

 

Juntaram-se a três outros casais na pista. Com toda a naturalidade, Teri levantou os braços, pô-los à volta do pescoço de Brian e encostou a cara ao peito dele. Brian saboreou a sensação de ter o cabelo dela a tocar-lhe na cara, o corpo dela encostado ao seu e as suas mãos ao fundo das costas dela. Percebeu, talvez pela primeira vez, como a tensão da sua vida não abrandara desde o momento em que Jack sentira aquelas dores no peito no Towne Deli - um constante estado de alerta máximo. Fechou os olhos. Ainda continuavam à sua espera - o trabalho, os doentes, a vigilância, o medicamento, o pai -, mas, gradualmente, ficaram só a música e a mulher.

 

Continuaram abraçados algum tempo depois de a música ter terminado; em seguida Brian conduziu Terí até à mesa, enquanto a banda começava uma música ritmada com harmónica.

 

- Acho que não estou preparado para dançar coisas muito mexidas - comentou ele. - Aliás, acho que o "mundo" não está preparado para isso.

 

- Que disparate! Você é um atleta, e os atletas têm uma graciosidade visível em todos os movimentos.

 

- Permita-me corrigi-la. Eu sou cardiologista. Um cardiologista com um metro e oitenta e sete e pés quarenta e seis. Conhece combinação pior?

 

- Ora! Por agora essa sua falsa modéstia passa, mas aviso-o de que vou dançar, consigo ou sozinha.

 

- Entendido.

 

- E já que falou em cardiologia - acrescentou ela -, esta noite não me apetecia falar de trabalho, mas também não me agrada ficar no desemprego... ou, pior ainda, ler nos jornais que um medicamento que ajudei a ser comercializado mais cedo matou um número de pessoas equivalente à população do estado de lowa. Já pensou no meu pedido?

 

Brian suspirou.

 

-Não pensei noutra coisa - respondeu. - Só gostava que este processo pudesse passar pelo doutor Pickard e pela doutora Jessup.

 

- Isso é pouco aconselhável. Brian, não é a primeira vez que a nossa agência lida com um medicamento ou com um produto cujo objectivo é enriquecer uma série de pessoas. E também não seria a primeira vez que cientistas respeitados nos sonegavam informação. Não temos motivos para suspeitar que nos estão a esconder alguma coisa em relação ao Vasclear, e o Pickard e a Jessup têm uma excelente reputação, mas sabe tão bem como eu o que está em jogo.

 

Brian recordou-se do aviso que Jessup lhe fizera depois de ele ter preenchido o relatório da MedWatch e lembrou-se de que ela e Weber lhe tinham realmente mentido. Haviam-lhe dito taxativamente que, em três anos, o protocolo nunca fora infringido.

 

- Disse que a Jessup e o Pickard concordaram com a ideia de enviar relatórios confidenciais à sua agência?

 

- sim.

 

- Está bem. Vou ficar de olhos abertos. - Hesitou, e em seguida acrescentou: - E acho que devo dizer-lhe que ando neste momento a observar um caso interessante que envolve um dos primeiros doentes tratados com Vasclear.

 

- Continue, por favor.

 

- Ainda não há muito a dizer. E nunca divulgaria o nome dele sem autorização, nem sequer a si.

 

Compreendo. É um homem de idade avançada que vi há pouco na clínica, um dos primeiros a ser tratado com o medicamento. -Fase um?

 

- Acho que sim. Parece que respondeu bem no início e que depois regrediu. Agora, após dois anos de tratamento, está bastante doente. Ainda não recebi os resultados das análises, mas acho que tem saturação pulmonar

 

Os olhos de Teri brilharam.

 

- Saturação pulmonar. Tem tomado comprimidos para alguma dieta? Ou tem ingerido óleo de colza oriundo de Espanha?

 

Brian sorriu.

 

-Vejo que anda a par dos desastres médicos. Não me apercebi de nada de especial, mas ainda agora comecei a examiná-lo. Por enquanto, a SP é a causa mais plausível.

 

-Quando é que sabe alguma coisa? -Daqui a uns dias.

 

-E tenciona manter-me informada? -Desde que o possa fazer pessoalmente...

- Prometo.

 

-Mas Teri, gostava de lhe dizer outra coisa. O meu pai, sofre de uma doença coronária. Teve um enfarte há dez anos e o bypass que fez há seis está a funcionar mal. Pu-lo a tomar Vasclear. Veja como eu confio no medicamento.

 

- Espero que ele tenha calhado no grupo beta. -Felizmente, sim. Olhe, quer conhecê-lo? Vivemos perto daqui. Acho que ele adoraria conhecê-la. A sério. Podia ver-me a administrar-lhe o Vasclear. Dou-lho em casa.

 

- Se acha que ele iria gostar... - Iria adorar, acredite...

 

-O que foi?

 

- O meu pager! Estou a ver que não o trouxe, Nunca ando sem... ah!, já me lembro. Troquei de calças no hospital. Tenho o pager num saco, no carro. Vou telefonar ao meu pai a dizer que vamos aparecer.

 

- Eu aproveito para ir à casa de banho. Encontramo-nos aqui.

 

Brian foi até ao telefone de moedas da entrada. Depois do quarto toque, ouviu a sua própria voz no atendedor de chamadas:

 

-Olá, ligou para os Holbrook...

 

Desligou, com o coração acelerado, e esperou uns intermináveis vinte segundos para que a máquina pudesse desligar-se. Depois tornou a ligar. Obteve o mesmo resultado.

 

Correu para o carro e abriu o porta-bagagens. O pager estava preso ao cinto das calças, dentro do saco. Pegou nele e viu que recebera um telefonema de casa.

 

- Meu Deus... - murmurou, voltando a correr para o telefone. - Vá lá... atende... atende, raios!

 

Três toques, depois novamente o atendedor de chamadas. -Pai, vou já a caminho - disse a seguir ao sinal. - Vou já a'caminho!

 

Brian entrou a correr no restaurante no momento em que Teri regressava à mesa.

 

Aconteceu qualquer coisa - disse ele. - Em casa ninguém me atende. O Jack nunca sairia e estava acompanhado. E ele tentou contactar-me. Raios! É inacreditável! Logo na noite em que não tinha o pager comigo!

 

Atirou duas notas de vinte para cima da mesa, pegou na mão de Teri e levou-a lá para fora.

 

- Quer que vá atrás de si até sua casa? - perguntou ela.

- Não! Quero dizer, talvez fosse boa ideia. Claro.

 

Brian arrancou, mantendo o olhar na estrada e no espelho retrovisor. Entrou na sua rua à espera de ver ambulâncias à porta de casa, mas a rua encontrava-se deserta e em sua casa só estava acesa a luz da sala. Sem esperar por Teri, correu lá para dentro. Havia um bilhete sob o candeeiro ao lado da cadeira de Jack - um bilhete da vizinha que ficara a tomar conta dele.

 

Brian, São nove horas. Tentámos contactá-lo, mas o seu pager devia estar desligado. O seu pai sentiu dores fortes no peito, mas recusou-se a chamar uma ambulância, porque quer ir para o Instituto do Coração e acha que o levariam para o Suburbano. Ia chamar um táxi, mas eu e o Harold fomos levá-lo. Ele pediu-me que lhe dissesse que tomou a aspirina extra, tal como você recomendou.

Sally Johansen

 

Brian entregou a Teri o bilhete e ligou para as Urgências do White Memorial. Passaram vários minutos até um médico atender.

 

- Doutor Holbrook, sou o Stu Meltzer, estagiário. O seu pai está cá, mas não está muito bem. Teve um enfarte do miocárdio extensivo do ramo anterior e estamos a ter dificuldades em baixar-lhe a tensão.

 

Enfarte do miocárdio extensivo do ramo anterior, um enfarte que envolvia o músculo do ventrículo esquerdo, o principal ventrículo bombeante. Juntamente com uma rotura da parede do coração, era o pior que podia acontecer.

 

- Raios! - exclamou Brian. - Ele está consciente?

- Intermitentemente.

 

-Quem é que está com ele?

 

-Neste momento, a equipa de prevenção, mas já me disseram que a doutora Jessup vem a caminho e o doutor Randa acabou de chegar.

 

-Obrigado. Estou, diga ao meu pai que vou já para aí. -Com certeza.

 

-Estou? sim? -Façam o que for preciso.

 

- Compreendo.

 

Brian olhou para Teri. -Ele está em apuros.

 

- Já tinha percebido. Vá andando. Eu descubro o caminho para o Radisson. Ligue-me assim que souber alguma coisa.

- Não posso acreditar que isto esteja a acontecer! Não posso! Meu Deus, pobre pai!

 

Quando se virou, ela chamou-o. Depois esticou-se, puxou-o para si e beijou-o ao de leve nos lábios.

 

- Quer que o leve lá? - perguntou.

 

-Não, não, eu estou bem. Se puder, ligo-lhe para o hotel

- assim que souber como ele está.

 

Pode ligar até tarde, ou então de manhã cedinho.

 

- Okay. Venha daí. Siga-me até à auto-estrada, e depois fica por sua conta. E, Teri, obrigado pela noite.

 

- Obrigada eu! - gritou ela quando ele corria para o carro. - Vá com cuidado!

 

Brian esperou até ouvir o motor do carro alugado de Teri, depois arrancou rumo à 193 e a Boston. Lesões extensas no coração, queda da tensão, Laj Randa por perto... Brian apostara que o pai tinha algumas probabilidades de escapar, mas acabara de perceber que perdera. Só faltava perceber a gravidade da situação.

 

As Urgências do White Memorial fervilhavam, como habitualmente. Brian sabia exactamente onde se dirigir e correu para o quarto número quatro. Nada do que vira ou fizera em medicina o preparara para deparar com o pai no centro do mais extremo dos dramas médicos, uma paragem cardíaca.

 

-Pronta! - gritou Carolyn Jessup.

 

Brian ouviu o "pop" da alta tensão quando as pás descarregaram a sua energia no corpo de Jack. Através da multidão de cerca de quinze técnicos, enfermeiras e médicos, viu os braços de Jack elevarem-se, depois caírem. No monitor a linha continuou plana durante vários segundos, depois começou a apresentar algumas elevações, primeiro lentas, depois mais rápidas.

- Parece uma espécie de ritmo nodal.

 

- Tenho pulso, tenho pulso!

 

- Agora está em sinusal. Ritmo sinusal regular. -A tensão é de setenta.

 

- Aumentem o Levophed - ordenou Jessup. - Preparem a epinefrina. Esqueçam o cateterismo. Assim que pudermos, vamos para a sala de operações no Instituto do Coração.

 

Antes de Brian poder chegar junto da cama, dois dos colaboradores de Laj Randa entraram no quarto, emanando autoridade.

 

- O doutor Randa quer que lhe metam já um balão intra-aórtico - ordenou um deles. - Diz que o técnico do bypass coração-pulmões está de serviço e pode receber o doente na sala de operações daqui a quinze minutos.

 

Brian contornou a multidão. Carolyn Jessup levantou os olhos, viu-o e abanou a cabeça. Embora a sua expressão fosse neutra, Brian leu nela os seus pensamentos.

 

"Devia ter-me dado ouvidos. Eu disse-lhe que deixasse o Randa operá-lo."

 

- Parece que o seu pai estava consciente quando uns amigos o trouxeram para cá - disse ela enquanto a equipa cirúrgica começava a inserir o balão do tamanho de uma salsicha artéria femoral direita até à aorta -, mas tinha uma tensão apenas noventa e o electrocardiograma revelou um enfarte evolução. Pouco depois de o terem deitado, a tensão baixou.

 

 

Agora está com um ritmo instável. Foi a primeira vez que tivemos de lhe dar um choque.

 

-Vai ser operado?

 

- Se formos a tempo. Eu queria fazer-lhe um cateterismo, para ver se conseguíamos abrir a desobstrução com anticoagulantes ou com uma sonda, mas reparei que o funcionamento da válvula mitral tinha sido afectado pelo enfarte. Os ultra-sons revelaram uma disfunção do músculo da válvula mitral. A válvula vai ter de ser substituída com os bypasses, se ele aguentar. "Se ele aguentar."

 

Brian olhou, atordoado, para a maca estreita onde jazia o pai, de olhos fechados, as feições angulosas já a começarem a inchar. Tinha no nariz um tubo nasogástrico que descia até ao estômago e na boca um tubo respiratório endotraqueal, mais grosso, que atravessava as cordas vocais até à traqueia. Estava com uma coloração acinzentada assustadora.

 

"Treinador... "

 

Os colaboradores de Randa eram rápidos e hábeis. O balão intra-aórtico que envolvia um cateter fino foi introduzido e suturado no devido lugar em poucos minutos. Estava programado para inflar entre as batidas cardíacas de Jack, empurrando mais sangue para o ventrículo esquerdo. O aumento do volume de sangue mantinha as coronárias o mais abertas possível e fazia muitas vezes a diferença entre a vida e a morte.

 

"Vá lá, Jack. Aguenta-te, aguenta-te!"

 

- Temos de ir andando - disse o colaborador. - O doutor Randa está à espera.

 

Os suportes de soro, o monitor e a bomba do balão foram colocados a jeito para a deslocação e, antes de Brian poder reagír, Jack desaparecera. Agora só lhe restava esperar. As enfermeiras começaram imediatamente a limpar os detritos que cobriam o chão. O quarto número quatro tinha de ser preparado para a crise seguinte. Carolyn Jessup levou Brian para o corredor. Parecia ter ido à pressa para o hospital e não se pintou. O seu cabelo cor de ébano, que lhe dava pelos ombros e normalmente andava apanhado, encontrava-se preso por dois ganchos. Aparentava a idade que tinha pela primeira vez desde que Brian a conhecera.

 

- Estamos a fazer tudo o que podemos - disse ela. Brian olhou para os pés.

 

- Eu sei. Obrigado. E obrigado também por não dizer "eu avisei-o".                                                    

- Nunca achei que o seu pai dispusesse de tempo para reagir ao Vasclear.

 

- Sinto-me mal por não lhe ter dado ouvidos, mas ele não queria ser operado e tudo o que consegui descobrir indicava que o medicamento agiria nele se o pudesse tomar.

 

- Compreendo. Mas, quero ter a certeza de que você sabe que, mesmo que o tivéssemos posto a tomar Vasclear uma semana mais cedo, não teria adiantado nada.

 

Brian assentiu. Agora não valia a pena contar-lhe a verdade.

 

-Obrigado pelo que fez - agradeceu

 

- Gostaria que tivesse sido mais. Daqui a pouco vou para a sala de operações. Depois, assim que souber que o Randa foi bem sucedido, tenho de ir para casa. Logo que acordar, venho ver como está o Jack.

 

Brian voltou a agradecer-lhe, depois fez sozinho o trajecto até ao Instituto do Coração. No caminho, parou e fez dois telefonemas. O primeiro foi para Phoebe, que o obrigou a prometer que ligaria a dizer o resultado da operação, independentemente da hora. O segundo foi para Freeman Sharpe.

 

- Freeman, é o Brian - disse. - O Jack teve um enfarte e uma paragem cardíaca. Acabaram de o levar para a sala de operações no Instituto do Coração.

 

-Vou já para aí - limitou-se a responder Sharpe. Brian olhou para o relógio; era quase meia-noite. Demasiado tarde para ligar a Teri. Deixou recado na recepção do hotel a dizer que Jack estava a ser operado e que voltaria a telefonar de manhã. Depois correu para a zona de observação da sala de operações, no terceiro andar.

 

Tal como tudo no Instituto do Coração, a galeria da sala de operações era moderna, confortável e dispunha da mais recente tecnologia. Os observadores podiam assistir à intervenção cirúrgica através das janelas de plexiglas ou dos televisores colocados na parede. Havia também binóculos potentes através dos quais se podiam observar os mais ínfimos pormenores.

 

Brian chegou quando Randa, em cima do que parecia ser uma plataforma hidráulica, acabara de serrar o esterno de Jack para expor o coração. Os colaboradores de Randa já tinham colocado os tubos arterial e venoso utilizados para ligar Jack à bomba do bypass e estavam a tirar da perna veias que não tinham sido utilizadas na primeira operação. A técnica do cardiopulmonar já tinha pronta a máquina coração-pulmões. Daí a momentos, a circulação e a oxigenação de Jack seriam feitas por ela. Depois introduziram nas artérias de Jack uma solução de potássio gelada, que paralisaria o coração.

 

A partir desse momento, não haveria motivo para interromper a cirurgia até ela estar terminada. A variável crítica era a perícia e velocidade de Randa. Quanto mais tempo Jack estivesse com a bomba bypass, mais difícil seria voltar a tirar-lha

- desde que, claro, restasse suficiente músculo cardíaco. Com vários enxertos do bypass a serem colocados na superfície do coração, e com a substituição da válvula mitral entre a aurícula e o ventrículo esquerdos, a intervenção cirúrgica duraria pelo menos quatro horas, senão mais.

 

Brian já assistira e participara em dezenas de bypasses. De onde estava não conseguia ver a cabeça do pai, oculta por um pano. Privado dessa ligação, sentia-se estranhamente alheado do que estava a observar. Ainda pensou em ir para a sala de espera, mas sabia que era incapaz. Desde que pudesse concentrar-se na operação, conseguiria impedir a cabeça de explodir. Nesse momento, Randa levantou os olhos e viu-o. Depois, rapidamente, baixou-os e voltou a concentrar-se no microscópio.

 

-Não costumo permitir que as intervenções cirúrgicas sejam assistidas por familiares dos doentes - disse Randa pelos altifalantes, sem abrandar o trabalho.

 

- Eu não me importo, se o senhor também não se importar, doutor Randa. Acho que ficava ainda mais nervoso na sala de espera.

 

- Muito bem. Mas penso que devo dizer-lhe que não estou optimista. Não tenho forma de saber quanto músculo cardíaco é que este homem perdeu antes de vir para aqui.

 

- Compreendo.

 

-O músculo que segura a válvula mitral no lugar já não funciona. Vamos ter de a substituir.

 

-Eu sei.

 

Randa estava pessimista - preparava Brian para o pior. Brian já fizera várias vezes o mesmo com os seus doentes. Prometer bons resultados num caso difícil era pedir problemas. Até um cirurgião com o orgulho desmesurado de Randa sabia que não o devia fazer.

 

Brian já esperava o que Randa disse a seguir, mas teve de esperar alguns minutos. Nessa altura, Freeman Sharpe fora levado para a zona de observação por um segurança e aguardava calmamente ao seu lado.

 

- Então quanto tempo passou desde que recomendei que o seu pai fosse operado? - perguntou Randa calmamente. Três semanas?

 

-Mais ou menos.

 

-E o que fez por ele durante esse tempo? Brian teve de pigarrear antes de poder falar.

 

- Tratamento standard - respondeu - e Vasclear.

 

- Bom, posso assegurar-lhe que o medicamento milagroso não funcionou neste caso. As artérias do seu pai parecem contas de um rosário e a aorta está dura devido à arteriosclerose e a depósitos de cálcio.

 

-Temi que fosse esse o caso.

 

- Foi uma decisão infeliz da sua parte ter optado por esse caminho.

 

Freeman fez um esgar ao notar a falta de sensibilidade do médico. Brian, incapaz de responder imediatamente, abanou a cabeça com ar impotente e desviou o olhar.

 

- Levei em conta o desejo do meu pai e aquilo que sabia acerca do Vasclear para tomar a decisão que achei mais acertada - conseguiu dizer, por fim.

 

- O médico que trata de si próprio ou da sua família tem um tolo como médico e um tolo como doente.

 

- Onde é que se desliga o microfone? - murmurou Freeman ao ouvido de Brian.

 

Este apontou para um interruptor junto ao vidro e Sharpe desligou-o.

 

-Onde é que o desencantaste? - perguntou.

 

-Não precisa de tacto para ser um cirurgião famoso. Além disso, ele tem mão. Sou um tolo.

 

- Eu ouvi o teu pai falar da última operação. Não acho que sejas tolo. Como é que ele está?

 

- Está ligado a uma máquina de bypass coração-pulmões. É impossível dizer mais alguma coisa até a operação acabar e eles tentarem reanimá-lo. Faltam várias horas.

 

- Tomaste alguma coisa?

 

Brian olhou para ele com ar incrédulo.

 

- Freeman, como é que podes perguntar uma coisa dessas?

 

- Bem, quer acredites quer não, os toxicómanos costumam tomar drogas... em situações de tensão, ou não. Além disso, faz parte do meu trabalho colocar-te a questão.

 

- Não. A resposta é não. Freeman, não posso acreditar que isto esteja a acontecer!

 

- Eu sei, meu amigo. Acreditas no que aquele traste disse acerca de teres tomado a decisão errada?

 

- Não sei em que acreditar. Na medicina, quando a vida de alguém está em risco, eu acabo sempre por fazer o correcto pelo motivo errado ou por fazer o que está errado pela razão correcta.

 

-E tu próprio me disseste que um doente que é operado pela segunda vez tem menos probabilidades do que da primeira.

- Exacto. E desta vez eu dispunha de números (das estatísticas em relação ao Vasclear e à repetição do bypass), já para não falar na história do Jack e da sua aversão em relação a uma segunda intervenção cirúrgica. Julguei que tinha tomado a decisão correcta.. Freeman, obrigado por estares aqui comigo. Sinto-me tão sozinho...

 

Sharpe pôs o braço por cima do ombro dele.

 

- Pois meu amigo, não estás sozinho - respondeu. E enquanto tiveres as tuas lindas filhas, a tua fé e me tiveres a mim para te manter no bom caminho, nunca estarás.

 

- Estão feitos cinco bypasses - disse Randa. - Vamos para a válvula.

 

Brian olhou para o relógio. Passara menos de hora e meia. Num doente já com um bypass não seria de admirar que essa parte da operação tivesse levado três horas. Fechou os olhos. "Vá lá, Randa, podes continuar a armar-te em parvo, desde que mantenhas esse ritmo", pensou.

 

Randa e os seus colaboradores trabalhavam como uma unidade em perfeita sintonia. Devido à forma como rodeavam Jack, pouca coisa se via com os binóculos ou no televisor. Freeman decidiu não olhar.

 

- Já vi suficientes peitos abertos no Vietname - disse. Passou outra hora, enquanto Randa trabalhava na substituição da válvula mitral. Durante algum tempo, Freeman tentou distrair Brian com conversa; depois sentou-se e deixou que fosse Brian a decidir se queria ou não falar.

 

O desprendimento que evitara que Brian já se tivesse ido abaixo no início da operação começava a desaparecer, substituído por um caleidoscópio de imagens. A mais forte era a da expressão do pai nos primeiros jogos de Brian. Jack não estaria mais animado se se encontrasse a assistir à Supertaça. Só quando Freeman lhe passou um lenço de papel e lhe pôs um braço sobre os ombros é que ele percebeu que estava a chorar.

 

- Muito bem, o coração está fechado, vamos desligá-lo da bomba. Doutor Holbrook, ainda aí está?

 

Brian ligou o microfone e olhou para o relógio. Ainda não tinham passado três horas. Repetição de um bypass quíntuplO e substituição de uma válvula mitral em cento e setenta e cinco minutos. O pequeno sique era um mágico.

 

- Ainda - respondeu Brian.

- Tem estado muito calado.

- Estou preocupado.

 

- E tem motivos para isso. A intervenção correu bem tecnicamente, mas não sei o que vai acontecer quando tentarmos pôr o coração do seu pai a funcionar outra vez.

 

- Compreendo.

- E quer ficar?

 

Brian olhou para Freeman.

 

-Prefiro ficar a ter de esperar noutro sítio - respondeu.

- Introduzimos uma sonda esofágica de ultra-sons, para podermos controlar a contractilidade do músculo cardíaco.

 

Brian pegou nos binóculos e afirmou que conseguia ver bem o ecrã de ultra-sons.

 

- Obrigado por me deixar ficar - disse ele com voz rouca, agarrado à cadeira de costas altas.

 

- Começar a desligar a bomba. Ligar o pacemaker - disse Randa.

 

-Bomba a desligar,

 

-Pulso a setenta e cinco. Ainda nada. Ele está a fibrilhar, está a fibrilhar!

 

É mau sinal. Liguem a bomba. Dêem-me o desfibrilhador, por favor. Vinte joules... pronto!

 

- Linha isoeléctrica... Não, esperem, há alguns problemas. Ritmo setenta e cinco.

 

- Contracções mínimas. Não há circulação efectiva. Através dos binóculos, Brian observou o ecrã de ultra-sons e começou a perder as esperanças.

 

-Liguem a bomba do bypass - disse Randa.

 

O cirurgião olhou para Brian e abanou a cabeça. O primeiro assalto chegara ao fim. Chegara ao fim e estava perdido. Jack não iria poder ser desligado da bomba com facilidade, mas o mais perturbador era o ultra-som. Parecia já não restar músculo cardíaco suficiente para gerar pressão sanguínea. Passaram quinze minutos estranhamente silenciosos antes de Randa ordenar que o pacemaker fosse ligado outra vez e que se tentasse desligar a bomba do bypass. De novo o coração de Jack entrou em fibrilhação. De novo funcionou ao ritmo do pacemaker. De novo as contracções foram fracas e não houve movimento efectivo de sangue. E de novo Randa ordenou que a bomba do bypass voltasse a ser ligada. Segundo assalto perdido.

 

Mais vinte minutos. Brian sabia que aquela seria a última tentativa. O ultra-som continuou a revelar uma grande fraqueza do músculo da câmara bombeante. "Mas um teste era apenas um teste", pensou. "Cada doente era diferente e Jack Holbrook já jogara parte de um jogo de futebol com um perónio partido." "Vá lá, pai. Vá lá, tu consegues!"

 

As vozes da sala de operações ecoavam pela zona de observação enquanto Laj Randa comunicava com a sua equipa. -Pacemaker a noventa - ordenou ele. - Abrandem a bomba devagar.

 

-Pacemaker a noventa.

 

-Actividade eléctrica mínima - informou o primeiro assistente.

 

- Não há contracções - observou o segundo.

- O volume está bem? - perguntou Randa.

- Perfeito.

 

- Tem a certeza?

 

- Sim, está tudo a funcionar bem

- Tudo excepto o coração dele. -Ainda nada - disse o assistente.

 

Laj Randa curvou os ombros e virou costas ao monitor de ultra-sons, O seu olhar escuro dirigiu-se para a galeria de observação. Depois levantou a mão enluvada cheia de sangue e

baixou a máscara.

 

Lamento - disse. - Lamento imenso.

 

               NOTICIÁRIO DA NOITE NA NBC

 

Relatório Médico

 

"A Casa Branca confirmou que o presidente irá juntar-se a Alexander Baird, director da fda, na semana que vem, na cerimónia onde será aprovado para uso geral o miraculoso e famoso medicamento para cardíacos VascLear. O medicamento, desenvolvido e fabricado pela Newbury Pharmaceuticals, de Boston, parece ser capaz de dissolver as placas arterioscleróticas que obstruem as artérias coronárias e provocam ataques cardíacos. Segundo fontes da Newbury, o medicamento curou setenta e cinco por cento dos casos testados.

 

Stan Pomeroy, porta-voz da Casa Branca, diz que a cerimónia do Vasclear terá lugar no White Memorial Hospital de Boston, onde foi efectuada a maior parte dos testes clínicos.

 

O senador Walter Louderman, acérrimo defensor da comercialização do medicamento, expressou a sua admiração e o seu agrado em relação ao que considera ser "um súbito volta-face dos responsáveis quanto a um tratamento tão necessário e aguardado por muitos americanos"."

 

Brian encontrava-se sentado no sofá da sala, abatido, a mastigar uma fatia de piza da véspera, e mal ligava ao noticiário. A sala de estar, a sala de jantar e a cozinha do apartamento de Reading estavam cheias de flores e de cestos de fruta em vários estados de decomposição e as paredes encontravam-se cobertas de tristes recordações dos bons e maus dias do passado. Teri enviara flores e um sortido de queijos e bolachas de água e sal. Telefonara várias vezes e pedira desculpa pelo facto de o seu director achar não ser apropriado ela ir ao funeral. Brian respondeu-lhe que os seus telefonemas e a sua preocupação eram mais importantes para ele do que a sua presença em qualquer cerimónia.

 

Passara uma semana desde a morte de Jack, quatro dias desde o funeral. Excluindo o dia do enterro, o tempo arrastava-se para Brian. Só Freeman Sharpe era capaz de compreender o seu turbilhão interior e o seu desespero intermitente.

 

Phoebe revelara-se uma amiga incansável, trazendo comida, limpando a casa, certificando-se de que Becky e Caittlin se encontravam por perto sempre que Brian desejava estar com elas e ocupando-se das visitas de fora da cidade quando ele não podia fazê-lo.

 

- Uma atitude muito elegante - observara Freeman.

 

- Queres dizer, uma destruição muito elegante do meu passado - corrigira Brian.

 

Ao longo dos quase dois anos desde a separação e um desde o divórcio, nunca tinham estado juntos tanto tempo. E houvera momentos durante aquela semana em que a dor de perceber o que perdera em relação a Phoebe e à sua vida familiar o tinha magoado quase tanto como a morte de Jack.

 

Freeman saiu da casa de banho com o estojo da barba e meteu-o no saco. O grupo dos Narcóticos Anónimos certificara-se de que Brian não passara uma noite sozinho no apartamento desde o funeral. Naquele momento, depois de lhe ter feito companhia durante dia e meio, o seu orientador achava que ele estava pronto.

 

-Não falaram do medicamento no noticiário? - Perguntou Freeman.

 

- "Medicamento milagroso cura toda a gente na costa este, menos um".

 

- Importas-te de parar com isso?

- Desculpa.

 

- Sou um desgraçado, sou um desgraçado, dêem-me de beber..

 

-Eu sei, eu sei.

 

- Tens de deixar de te culpar, Brian. Fizeste uma escolha

- uma escolha "informada" - e ela não correu como esperavas. Não foi o mesmo que estares a brincar com uma arma e ela ter-se disparado acidentalmente, matando o teu pai.

 

- Eu sei. Só estou com uma certa dificuldade em assimilar isto tudo.

 

-Ficas bem se eu for para casa?

 

-Fico óptimo. Estou um bocado tenso por ir trabalhar amanhã, mas acho que eles não podem prescindir dos meus serviços por muito mais tempo.

 

Sharpe sentou-se na outra ponta do sofá.

 

- Acredita que estás melhor a trabalhar do que sentado para aqui sozinho. Vê as coisas assim: todas as reuniões a que foste nos últimos dezoito meses, todos os minutos que passaste a meditar, a falar comigo ou a fazer algo por ti e a afirmares-te como uma pessoa válida foram como teres posto dinheiro no banco. Agora, durante um tempo, vais ter de viver do juro desses depósitos ou do que tiveres de levantar.

 

- E se não tiver que chegue?

 

- Tens, Brian. Conheço-te bem e vais ter de confiar em mim, mas para isso não podes culpar-te mais. Isso faz-te mal. E, por amor de Deus, aconteça o que acontecer, lembra-te de que não há nada mau na vida que não piore com uma bebida ou com um comprimido.

 

Brian ficou pensativo durante algum tempo; depois foi até à estante, pegou num livro grosso e enfiou a mão no espaço vazio. Tirou de lá um frasco de plástico com analgésicos e entregou-o a Freeman,

 

- O antigo cardiologista do Jack tinha-lhe receitado isto. Escondi-os aqui depois do funeral... não fosse precisar deles. Sharpe olhou para o rótulo do frasco depois levou-o para a casa de banho e despejou os comprimidos na sanita.

 

- Foi sensato teres-me dado aquilo - disse. - Especialmente antes de os teres tomado. Acredita que é assim que as coisas devem funcionar. Acho que vais ficar bem, meu amigo, desde que prometas telefonar-me se te sentires em baixo. A qualquer hora do dia ou da noite.

 

- Prometo. E obrigado, Freeman. Obrigado por teres estado aqui comigo.

 

Freeman apertou a mão de Brian e deu-lhe uma palmada nas costas.

 

-Só gostava que tivesses conhecido o tipo que esteve sempre ao meu lado quando eu comecei a ir às reuniões dos Narcóticos Anónimos - disse.

 

Durante algum tempo, Brian andou de um lado para o outro no apartamento, sentindo-se quase esmagado pelo silêncio opressivo. Reviu mentalmente os anos em que Jack estivera doente. Muito antes de ter tomado a decisão de experimentar o Vasclear e evitar a operação houvera tantos passos que podiam ter sido diferentes... Poderia algum deles ter alterado o que acabara de acontecer?

 

"Fizeste uma escolha - uma escolha ---informada" -, tens de deixar de te culpar... "

 

O telefone tocou duas vezes antes que Brian se apercebesse. Cheio de pena de si próprio decidiu deixar o atendedor funcionar.

 

- Brian, é a Teri. Se estiver aí, atenda, por favor.

 

Brian correu para o telefone ao lado do cadeirão de Jack, fazendo tombar um candeeiro de latão. Teri telefonara no dia a seguir ao funeral, mas não tinham voltado a falar.

 

-Olá, sou eu. Estou aqui, estou aqui. -Olá. Que tal vai isso?

 

- Quer saber a verdade? Já estive melhor. Bastante melhor, por acaso. Ainda não sei se hei-de ir correr, se hei-de encher a banheira, se hei-de fugir ou se hei-de atirar o carro para um precipício. Esta não é uma das minhas melhores noites.

 

- Está acompanhado?

 

- Estive até há meia hora. O meu amigo Freeman acabou de sair.

 

- Quer companhia?

 

- Minha senhora, a sua oferta não podia vir em melhor altura. Aceito com prazer.

 

- Acabei de chegar ao Newton Marriott e estou no quarto cento e vinte e oito. Disseram-me na recepção que consigo chegar aí em vinte minutos.

 

- Precisa que lhe explique o caminho?

 

- Comprei um bom mapa. A sua rua vem lá. Você ainda corre com o joelho nesse estado?

 

- Galopo. E o meu joelho decide se quer participar ou não.

- Bem, eu trouxe o equipamento. Quer correr alguns quilómetros comigo?

 

-Depende. Defina "alguns".

 

Quarenta minutos mais tarde, corriam lado a lado pelas ruas escuras e quase desertas.

 

- Sou bastante flexível em relação à distância das corridas - dissera ele quando estavam a fazer exercícios de alongamento. - Posso correr três quilómetros, quatro, quatro e meio ou cinco, com ou sem pausa para descansar. Quanto é que você costuma correr?

 

-Não importa. Vamos correr quatro.

 

-Parece-me que quer correr mais... Cinco. Posso correr cinco sem descansar. Mas agora diga-me: quanto é que costuma correr?

 

-Bem, não corro muitas vezes. Temos uma espécie de clube de atletismo na agência e...

 

-Não diga mais. Eu conheço esses clubes de atletismo. Vinte quilómetros ao almoço, depois uma gemada, um duche para os poucos que transpirarem e o regresso ao trabalho. Corremos cinco quilómetros.

 

Teri tinha a passada leve e fácil de uma atleta experimentada, descontraída e agradavelmente coordenada. Brian esforçava-se por acompanhá-la, mas percebia que ela tentava conter-se. Estava uma bela noite de Outono, sem luar, fresca e calma, e, assim que correu os primeiros metros, Brian percebeu que era mesmo daquilo que estava a precisar.

 

- Pode ir à frente, se quiser - disse ele um pouco ofegante ao fim dos dois primeiros quilómetros. - Talvez desse modo consiga transpirar.

 

- Estou bem assim. Mande-me calar, se eu falar demasiado. Quando corro com os meus colegas, vamos em grupos de dois ou três e não nos calamos.

 

- Desde que não falemos do hospital... Volto para lá amanhã de manhã. E chega!

 

- Combinado.

 

- Sabe, quando a minha mãe morreu fiquei tão preocupado com o Jack que quase não tive tempo de chorar a morte dela. Agora, parece que as mortes de ambos me atingiram ao mesmo tempo. Bem, o Jack também não era só seu pai. Você olhou por ele. Foi como perder um pai e um filho ao mesmo tempo. Dois pais e um filho, por aquilo que me está a dizer.

 

- Fico contente por você estar aqui esta noite. E sinto-me bem por estarmos a correr juntos. Mas incomoda-me o facto de os seus ténis quase não fazerem barulho quando tocam no chão. Os meus parecem dois castores a bater com a cauda.

 

- Quinze - retorquiu ela. -o quê?

 

- Quinze. São os quilómetros que corremos à hora do almoço. Não vinte. Se corresse assim tanto, os seus pés também não faziam barulho.

 

Ao longo da corrida, a ligação entre Brian e Teri estreitou-se, e durante o último quilómetro ele percebeu que, intencionalmente ou não, correrem juntos à noite daquela forma era uma espécie de preliminares. A dois quarteirões de casa ultrapassou-a.                                         - Ei, para que é a pressa? - gritou ela.

- Adivinhe! - respondeu ele.

 

Teri recuperou e chegou ao alpendre com dez metros de avanço, depois teve de agarrar Brian pela cintura e ajudá-lo a chegar à sala de estar, enquanto ele recuperava o fôlego.

 

- Você é boa - murmurou Brian, ofegante.

 

- Ainda não sabe - retorquiu Teri, fazendo-o dobrar-se despindo-lhe a camisola encharcada.

 

- Sou mesmo grosseiro...

 

-Não faz mal - disse ela, levantando os braços para que ele a pudesse despir. - Eu sou médica.

 

Tirou o sutiã, depois ajoelhou-se à frente dele e desapertou-lhe os atacadores dos ténis. Em seguida, devagar, muito devagar, baixou-lhe os calções e as cuecas. Ele ficou imediatamente erecto.

 

- Caso ainda não tenha reparado - observou Brian estou um bocado destreinado e excito-me com facilidade. Ela roçou os lábios pelo corpo dele até chegar à boca. Brian enfiou os polegares no cós dos calções de Teri e baixou-o

- Eu também não estou muito habituada a estas coisas disse ela, encostando a cara dele ao seu cabelo húmido. - Não sei se deva orgulhar-me ou envergonhar-me por já ter passado tanto tempo desde a última vez.

 

Ali na sala, com as roupas ainda enroladas nos tornozelos voltaram a beijar-se, explorando-se com as pontas dos dedos. Por fim, descalçaram os ténis e livraram-se do resto da roupa.

 

- Assim que te vi no hospital desejei que isto acontecesse - murmurou ele.

 

- Eu também, caso não tenhas dado por isso. Só lamento não ter podido estar contigo antes.

 

- Já te redimiste. Mas se funcionas melhor com um sentimento de culpa, podes continuar.

 

Levou-a para a casa de banho que Jack remodelara alguns anos antes. O chão era alcatifado. Tinha uma banheira grande com pés e, em frente, uma cabina de duche com azulejos azul-claros. Escolheram o duche.

 

- Fria, morna ou quente? - perguntou ele, sem conseguir tirar as mãos dela.

 

Teri segurou o sexo dele com as duas mãos e acariciou-o, enquanto voltava a beijar-lhe os lábios.

 

- A temperatura que te mantiver neste estado - sussurrou.

 

Ensaboaram-se e puseram champô no cabelo um do outro. Enquanto a água fumegante caía sobre eles, Brian puxou Teri para si e beijou-a intensamente. Pegou nela pelas coxas e levantou-a. Ela pôs as pernas à volta da cintura dele e os braços à volta do pescoço.

 

- Consegues fazer isto assim? - murmurou ela.

 

-Não sei. Mas desde que não haja aqui nenhum juiz romeno a dar-nos pontos pelo estilo, podemos tentar.

 

Baixou-a um pouco.

 

- Encaixamos na perfeição - disse ela com ar sonhador.

- E olha, atrás de ti está um homenzinho com cara de romeno com um cartão de pontuação na mão: tens dez pontos.

 

Brian chegou ao hospital antes das sete, embora tenha passado a maior parte da noite acordado a falar com Teri e a fazer amor com ela. Continuava a saber menos sobre ela do que ela sobre ele, mas ficara ao corrente de que uma relação prolongada com um piloto da Força Aérea chegara ao fim havia cerca de um ano e que desde essa altura ela passara mais tempo a evitar os homens do que a sair com eles.

 

"Procuro a qualidade", dissera, "não a quantidade." Brian já estava com saudades dela.

 

Foi directamente para a clínica e começou o primeiro dia de trabalho a rever os gráficos dos dezassete doentes que ali se encontravam. Os colegas mostraram-se preocupados com ele e deram-lhe o maior apoio. Parecia que todos sabiam quais haviam sido as circunstâncias da morte do pai. Quando acabou de ler os gráficos, ainda não era hora de ir ver os doentes. Foi até à sala do correio buscar a pilha de correspondência que o aguardava. Depois levou-a para a clínica e atirou-a para cima da pequena mesa na sala dos médicos. Com a morte de Jack e a sua nova amante, Brian estava com dificuldade em concentrar-se. Talvez se abrisse algumas dezenas de sobrescritos e relatórios conseguisse acalmar-se.

 

"Tarefas simples", disse para si próprio, repetindo o conselho que achava ter aprendido com o pai. "Quando tudo o resto falha, divide a vida em pequenas tarefas e executa uma de cada vez."

 

A pilha de correspondência incluía alguns relatórios que tinham de ser revistos e assinados, boletins do hospital, dois agradecimentos de doentes e uma dezena de revistas gratuitas, jornais e revistas técnicas, todos eles subsidiados, de uma maneira ou de outra, por laboratórios farmacêuticos. Além disso, havia alguns relatórios de testes e de raios X. Brian leu um de cada vez, pois aprendera à força durante o primeiro ano de trabalho que era perigoso não estar concentrado quando executava essa tarefa.

 

Não encontrou nada de especial até chegar aos resultados dos testes de Bill Elovitz. Com tudo o que acontecera na semana anterior, não voltara a pensar no homem de Charlestown. Não havia análises ao sangue que diagnosticassem especificamente uma saturação pulmonar, mas, devido à variedade de potenciais causas da doença, talvez fosse possível encontrar qualquer coisa. Leu os valores bioquímicos. O colesterol e os triglicéridos, os lípidos que contribuíam para a arteriosclerose, eram, como seria de esperar, elevados. Havia também alguns problemas na fumção hepática que podiam ter várias causas, mas provavelmente eram originados por uma congestão do fígado, devido à pressão do sangue que tentava atravessar os pulmões e o coração debilitados. Mesmo assim, Brian escreveu num papel destinado a Teri os valores dispares.

 

Uma das enfermeiras bateu à porta e espreitou para a sala.

- Já cá está toda a gente - anunciou. - O Phil diz que vão começar a ronda daqui a cinco minutos.

 

-Já lá vou.

 

Aproveitando o tempo que lhe restava, Brian passou para a segunda página dos resultados dos testes de Bill Elovitz: hematologia, a contagem dos glóbulos. O seu olhar foi de imediato atraído para um teste. A contagem de eosinófilos era elevada

- bastante elevada, por sinal. Os eosinófilos eram um tipo de glóbulos brancos granulares que ao microscópio pareciam vermelhos. O seu número aumentava bastante em várias patologias, incluindo infecções parasitárias, como a ténia e a triquinose, e reacções alérgicas como a asma, os eczemas e a febre-dos-fenos. Contudo, uma das causas mais comuns da eosinofilia era a reacção a uma determinada medicação.

 

Brian olhou para o resultado, desenhou um círculo em volta dele e anotou-o na ficha de Elovitz. Resultados que apontavam para saturação pulmonar, acompanhados de eosinofilia num doente que tomava um medicamento experimental. Talvez não fosse nada, talvez fosse qualquer coisa. Mesmo assim, continuava a achar que o estado de saúde de Elovitz e a eosinofilía, podiam estar relacionados.

 

Meteu na pasta os relatórios e algumas revistas técnicas e saiu da sala. Phil Gianatasio, a quem cabiam as funções de professor nesse mês, estava a reunir os estudantes, os médicos e as enfermeiras para a visita ao primeiro doente. Phil fora ao funeral e revelara-se também um amigo preocupado, tendo telefonado, ido lá a casa duas vezes e conseguido levar Brian a almoçar fora uma vez.

 

Brian juntou-se ao grupo, mas só ouviu uma parte do que estava a ser dito. A falta de ar de Bill Elovitz e o inchaço dos seus tornozelos podiam ser apenas resultantes da insuficiência cardíaca congestiva devido ao endurecimento das artérias coronárias, mas agora havia outra coisa a explicar: a contagem anormal de eosinófilos.

 

A mente de Brian começou a analisar as várias possibilidades. Tanto quanto se lembrava, os casos de SP associados ao óleo de colza proveniente de Espanha, bem como ao L-triptofano e aos comprimidos das dietas, provocavam eosinofilia na maioria dos doentes. Antibióticos, iodetos, até aspirina. - a lista de medicamentos que produziam reacções acompanhadas por um aumento do número de eosinófilos era quase tão longa como o Simpósio Farmacêutico.

 

Freeman tinha razão. Era melhor estar no hospital do que em casa sozinho sem fazer nada.

 

- O que achas dessa possibilidade, Brian?

 

Phil encontrava-se do outro lado da cama, à espera. Brian esboçou um sorriso envergonhado.

 

- Estava a quilómetros daqui - respondeu. - Vou tentar concentrar-me. Desculpa.

 

-Vê se estás cá quando aparecer o próximo doente com problemas na tiróide - retorquiu Phil.

 

O resto da ronda decorreu sem incidentes. Brian conseguiu prestar mais atenção aos casos, mas não foi capaz de deixar de pensar em Jack, em Teri e em Elovitz. Por fim, depois de o último caso ser examinado e discutido, Phil dispensou as pessoas.'

- Hoje estás na clínica? - perguntou a Brian.

 

sim. -E sentes-te apto?                                          

- Estou bem, a sério. Desculpa à pouco parecer um pouco apático. Tenho uma série de coisas em que pensar. Mas aguento a clínica.

 

-Confio em ti. Queres falar de alguma coisa?

 

- Por acaso, sim, se tiveres tempo. Há café na máquina da sala.

 

-Nesse caso - respondeu Phil -, vamos a isso. Instalaram-se de frente um para o outro em dois cadeirões.

- Phil, quero falar-te de um caso e gostaria de saber a tua opinião.

 

- Força.

 

- É o Bill Elovitz, aquele doente que quiseste que eu tratasse nas Urgências.

 

- O homem-milagre?

 

- Exacto. Vi-o na Clínica Vasclear pouco antes de o Jack morrer. É um talhante reformado e tem no braço uma tatuagem dos campos de extermínio nazis. Foi um dos doentes do pré-estudo do Vasclear.

 

-Fase um, certo?

- Sim, acho que sim.

- Continua.

 

- Aqui na ficha consta que ele cá esteve há uns anos com problemas cardíacos. Parece que melhorou durante algum tempo depois de ter começado a tomar o Vasclear e que a seguir voltou a revelar sintomas de obstrução das artérias. Por fim, teve um ligeiro enfarte há oito ou nove meses, esteve internado dois dias e depois saiu. Não gosta muito de hospitais desde que esteve no campo de concentração.

 

- Compreendo. Conta-me mais.

 

- Bom, ele vem à clínica uma vez por mês para o tratamento com o Vasclear, mas durante os últimos quatro ou cinco meses começou a ficar com os tornozelos inchados e falta de ar. Está a ser tratado de insuficiência cardíaca congestiva com os medicamentos habituais, mas tem vindo a piorar gradualmente. Continua a conseguir deslocar-se, mas já não é capaz de subir um lanço de escadas sem parar a meio.

 

- Muito bem - disse Phil -, estou pronto. Não me chamaste até aqui para me falares de um simples caso de insuficiência cardíaca congestiva. Qual é então o problema?

 

Brian bebeu um gole de café, depois continuou:

 

- Os meus ouvidos podem estar um pouco destreinados ao fim de um ano e meio sem usar um estetoscópio, mas talvez estejam também repousados. Ouvi um som grave no ventrículo cardíaco direito, um aumento da componente pulmonar do segundo som e murmúrios de insuficiência das válvulas pulmonar e tricúspide.

 

- Doença pulmonar?

 

- Phil, ele tinha exactamente os mesmos sintomas do único doente com saturação pulmonar que diagnostiquei.

 

A expressão de Gianatasio pareceu endurecer, embora de forma quase imperceptível. Virou-se e pousou o café na mesa, mas salpicou um pouco a mão. Limpou as gotas com a outra mão e quando se virou para Brian voltara a ser o velho Phil.

 

- É difícil diagnosticar uma SP sem fazer uma batelada de exames - disse. - E às vezes até com os exames feitos. Mas será que posso duvidar dos ouvidos que diagnosticaram algo praticamente inaudível durante o calor da batalha?

 

- Ainda há mais - prosseguiu Brian, intrigado com a estranha reacção de Phil e sem saber se ela tinha mesmo acontecido. - Encontrei umas análises ao sangue que lhe foram feitas há dez dias. Os eosinófilos dele são catorze por cento. O número total de glóbulos brancos é normal... nove mil e quinhentos.

 

- Catorze por cento de nove mil e quinhentos não é nada de especial, se considerares o número real de células.

 

- Phil, o normal é entre zero e três por cento.

 

- Eu sei, mas isso continua a não me impressionar. Se fosse a ti,, voltava a verificar. E aposto uma piza em como vais obter um resultado inferior a cinco. A contagem dos eosinófilos nunca é fiável. A primeira coisa a fazer perante um resultado fora do normal e inesperado num exame é repeti-lo.

 

- É o que tenciono fazer. Parece que não ficaste muito impressionado...

 

- É demasiado cedo para dizer, Bri. Calculo que tenhas mandado fazer testes no valor de algumas centenas de dólares. -Mais ou menos.

 

Brian começava a sentir-se um pouco irritado com a petulância do amigo. Depois, subitamente, Phil levantou-se.

 

- Bem - disse -, tenho de ir ganhar a vida. Brian, foram tratados mais de duzentos casos com o Vasclear beta desde o início do ensaio indefinido, já para não falar dos outros duzentos do grupo gama que receberam a dosagem mais baixa. Nenhum teve sequer uma inflamação cutânea que pudesse ter sido causada pelo medicamento. Acho que estás errado quanto a essa coisa da SP. Mantém-me informado, okay?                  

- Assim farei.

Brian ficou na sala mais alguns minutos, sentindo-se frustrado e aborrecido com a conversa. Depois pegou na pasta e foi até ao computador. Descobriu o número de casa de Bill Elovitz logo na primeira página do ficheiro. O telefone foi atendido ao quarto toque por uma mulher de idade.

 

- Sim, residência Elovitz.

 

- Bom dia - disse Brian. - Daqui é o doutor Holbrook, do White Memorial Hospital. Seria possível falar com o Bill Elovitz, por favor?

 

Houve um longo silêncio antes de ele ouvir a voz parcialmente abafada da mulher dizer:

 

- Deborah, é um médico do White Memorial. Quer falar com o Bill.

 

Outra mulher respondeu, mas Brian não conseguiu perceber o que ela disse.

 

-Como é que disse que se chamava?

 

- Holbrook. Doutor Brian Holbrook. Olhe, se quiser ligar-me para o hospital para confirmar que é de lá que eu estou a ligar, o número é...

 

- Não é preciso, senhor doutor. Eu sou Mistress Levine, a vizinha do lado. Acho... acho que o vi quando o Bill se magoou. - Começou a soluçar. - O Bill Elovitz morreu, senhor doutor. Foi morto há cinco dias, num assalto aqui numa loja da rua.

 

A manhã foi dolorosamente longa. Brian pediu várias vezes às enfermeiras que resolvessem os problemas que pudessem e foi deitar-se na sala dos médicos. Nunca tivera dificuldade em manter energia suficiente para trabalhar, mas, agora, a ferida recente provocada pela morte de Jack, a noite acabada de passar com Terí e a notícia perturbadora sobre Bill Elovitz haviam-no deixado esgotado.

 

Talvez Freeman se tivesse enganado quando dissera que ele devia voltar imediatamente ao trabalho.

 

Como vítima de um homicídio, Elovitz devia, quase de certeza, ter sido autopsiado. hrian tomou nota para não se esquecer de telefonar para o Instituto de Medicina Legal a pedir os resultados. A seguir ligou para a sala de arquivo e descobriu que nenhum dos exames importantes que tinha mandado fazer fora efectuado antes da morte de Bill.

 

Por fim, dormitou e teve um sonho perturbador e confuso que envolveu futebol, campos de concentração, o Blues Barn e o seu professor de Geometria do décimo ano. Foi acordado não pelo pager, nem pelo telefone, mas por uma pancada na porta, e depois outra.

 

- Pode entrar - disse, perguntando-se, ainda meio a dormir, se seria Teri.

 

A porta entreabriu-se e Phíl espreitou lá para dentro. Parecia perturbado. Brian telefonara-lhe logo que soubera da morte de Bill Elovitz. Não houvera nada de petulante na reacção de Phíl - apenas um pequeno assobio, um silêncio prolongado e algumas palavras de consternação genuína.

 

- Tens tempo para conversar? - perguntou. -Estou metido em sarilhos?

 

-Porque perguntas?

 

-Não sei. Acho que estou a ficar paranóico. Da última vez que alguém me bateu assim à porta a perguntar se eu tinha tempo para falar era a Brigada Antidroga.

 

-Bom, que eu saiba não estás metido em sarilhos, preciso à mesma de falar contigo. O Chris Gidden concordou em ficar aqui na clínica uma hora.

 

- Parece grave. Dá-me só uns minutos para voltar a pôr o corpo a funcionar.

 

-Que tal ires ter ao meu gabinete daqui a uns dez minutos?

 

Phil foi-se embora antes de ele ter tempo para responder. Brian levantou-se e tentou apanhar Teri no Marríott, mas ela já se fora embora, como tinha dito. Devia estar algures no hospital a ler dossiês, ou então na Newbury Pharmaceuticals. Dizia-se em todos os jornais e noticiários que o presidente tencionava ir ao White Memorial para a cerimónia de aprovação do Vasclear. Começava a escassear o tempo para Teri descobrir um motivo para adiar o acontecimento.

 

O gabinete de Phil, no sétimo andar, era bastante modesto

- acanhado, com prateleiras de metal para os livros e vista não para o rio Charles, mas para o meio do hospital, incluindo o esqueleto de um edifício em construção e os andaimes em torno da Cúpula de Hipócrates. Brian parara numa máquina e comprara uns bolos com cobertura de açúcar envoltos em celofane. Atirou um para a secretária de Phil.

 

- Toma - disse. - Isto é um suborno para o caso de teres mentido quando afirmaste que eu não estava metido em sarilhos.

 

Phil desviou o bolo para o lado, o que era mau sinal.

- Eu não menti acerca disso - retorquiu -, mas menti a respeito de outra coisa. Senta-te, por favor.

 

Brian tirou alguns papéis de cima de uma cadeira de design moderno e instalou-se. Phil, que normalmente andava sempre bem vestido, tinha a roupa em desalinho e parecia tenso. Alargara o nó da gravata e no colarinho da camisa tinha uma pequena nódoa de café.

 

- Vai com calma, Phil - disse Brian. - Exceptuando matar alguém, não podes ter feito muita coisa que eu não tenha já feito. Independentemente do que tiveres para dizer-me, quero que saibas que eu não julgo ninguém.

 

Gianatasio respirou fundo.                              

 

- Desculpa ter reagido com tanto desprendimento quando me falaste daquele pobre homem que julgavas ter saturação pulmonar. A verdade é que não sei o que fazer com essa informação. Há alguns anos, quando os testes do Vasclear ainda estavam na fase um, encontrei outro doente tratado com Vasclear que me pareceu sofrer de saturação pulmonar. Investiguei e descobri o nome dele. Era Ford, Kenneth Ford. Só o vi uma vez na clínica, mas tenho um pequeno arquivo dos casos interessantes que se me deparam, e ele está lá. O que descobri foi quase o mesmo que me disseste ter descoberto no teu doente: edema maleolar, falta de ar, insuficiência das válvulas tricúspide e pulmonar, tudo.

 

-O que aconteceu?

 

- Eu... eu fiz aquilo que devia fazer. Falei dele ao Art Weber. Ele disse-me que houvera várias reacções alérgicas ao medicamento que ele e os seus químicos tinham determinado ser causadas por um ingrediente utilizado na parte de estabilização química da síntese. Depois disso o processo fora rectificado, o contaminador retirado, e não voltara a haver problemas até ao caso do tal Ford. O Weber e eu estudámos a ficha dele com atenção e descobrimos que começara a tomar o medicamento antes de a síntese ter sido modificada.

 

-Então o que aconteceu ao tipo? Que tal tem passado?,

- Brian, escuta. Tenho estado prestes a tornar-me efectivo desde que aqui cheguei. Agora estou na iminência de receber a aprovação. Efectivo no Instituto do Coração de Boston e na sua Faculdade de Medicina! É o sonho de todos os cardiologistas -académicos e eu estou prestes a conseguir alcançá-lo. Sabes tão bem como eu que não sou um indivíduo brilhante, por isso tive de trabalhar mais do que toda a gente, dando o meu máximo e, acima de tudo, seguindo as regras. E no Instituto do Coração uma das principais regras é não falar prematuramente acerca dos resultados da investigação de um produto ou de um medicamento do instituto. Tenho de ter bastante cuidado.

 

- Compreendo, Phil, compreendo perfeitamente. Mas diz-me, esse tal Ford... sempre lhe diagnosticaram saturação pulmonar?

 

Phil olhou para o tecto.

 

- Eu... não sei - respondeu. - O Weber prometeu-me que ia falar com a Carolyn, que ela passaria a tratar o Ford e decidiria se o estado dele deveria ser ou não comunicado. Nunca fiz qualquer esforço para seguir o caso e quase acabei por esquecê-lo... até esta manhã. Bri, sinto-me mesmo na merda por causa disto. A sério!

 

- Nota-se. Fizeste bem em desabafar, Phil. E a verdade é que não sabemos se algum destes doentes teve mesmo saturação pulmonar.

 

- Isso é verdade. E talvez não devêssemos remexer na porcaria. Acho que já sabes, Brian, mas gostaria de voltar a avisar-te: este medicamento é o bébé deles. Nem imagino o que estará por trás do Vasclear. Quando for posto à venda, há-de fazer-lhes ganhar mais dinheiro em trinta segundos do que aquele que nós recebemos num ano.

 

-Eu sei.

 

Brian não insistiu, pressentindo que o amigo estava demasiado tenso para ouvir piadas acerca dos ordenados.

 

- O Pickard, a Jessup e o Weber parecem gostar bastante de ti - continuou Phil -, e já fizeste algumas coisas brilhantes desde que aqui chegaste, mas são duros de roer quando se encontram encurralados numa discussão académica ou quando alguém lhes arranja problemas ou ameaça custar-lhes dinheiro. Desde que aqui estou já vi vários exemplos disso. Não deves saber, mas o Pickard e a Jessup vieram falar comigo depois de teres admitido ter enviado para a FDA o relatório sobre o cateter Ward-Dunlop. Brian, eles iam despedir-te. Logo ali. Não iam dar-te uma segunda oportunidade. Não estavam preocupados com o teu futuro, com as tuas filhas, nada! Tinhas salvo a minha doente com problemas na tiróide e a doente da Jessup e eles iam-te atirar para o purgatório médico, só porque tomaste uma decisão à revelia deles.

 

- O que é que me safou?

 

- Talvez um pouco de tudo. Eu defendi-te. E tu impressionaste o Pickard. Acho que foi ele quem persuadiu a Jessup a dar-te outra oportunidade. Mas durante um tempo a coisa esteve negra.

 

-Bom, então parece-me que temos ambos motivos para pensar bem antes de agir.

 

- Depende. -Do quê?

 

Umpouco mais descontraído, Phil foi incapaz de continuar a resistir ao bolo. Abriu o celofane e deu uma grande dentada antes de responder.

 

- De quanto gostas de alugar carros e se eu estou disposto a alinhar contigo.

 

Brian pensou em Teri e no chefe dela, à procura de qualquer coisa que pudessem usar para adiar a comercialização do Vasclear. Recordou-se de ela ter dito que era muito mais difícil retirar um medicamento do mercado do que evitar que ele lá entrasse. E, por fim, pensou nas centenas de vidas que podiam ser salvas todos os dias com uma receita de Vasclear.

 

- Phil, não podemos esquecer isto - disse.

 

- Porque não? Temos duzentos casos sem qualquer problema causado pelas doses terapêuticas do medicamento, cento e cinquenta dos quais foram curados de uma doença fatal. Tu viste os doentes. Viste os resultados. E ouviste a doutora Jodie Foster lá no palco da cúpula a dizer que a FDA estava ansiosa por descobrir coisas acerca do Vasclear antes de ele ser comercializado.

 

-Não sei, Phil...

 

- Brian, podes ter a certeza: se falarmos destes casos a mais alguém que não a Jessup, o Pickard e o Weber e formos apanhados, ou se investigarmos e eles tiverem conhecimento, estamos acabados. Aqui e em toda a parte. Acabados!

 

Brian continuava a não gostar de deixar escapar a possibilidade da existência de uma toxicidade desconhecida do medicamento, mas tudo, absolutamente tudo, o que Phil dissera fazia sentido. Todos os medicamentos do mercado tinham toxicidades, muitas delas fatais. O ratio risco-benefício era a espinha dorsal da farmacologia clínica.

 

"Foi detectada anemia aplástica em menos de um por cento dos doentes que tomavam o medicamento A... Surgiu hepatite como complicação da terapia com o medicamento B, deverão ser feitos mais testes à função hepática durante a terapia... Foram detectados casos de surdez irreversível ... Tonturas... Febre... Paragem renal... Cegueira... Convulsões... Encefalite... Paralisia... Morte súbita." A lista de avisos e de reacções adversas dos medicamentos aprovados pela FDA enchia quase a totalidade das três mil páginas do Simpósio Terapêutico. Então que mal tinha uma pequena percentagem de doentes a tomar Vasclear desenvolver uma complicação grave? Ratio risco-benefício? Não era uma competição.

 

Estavam perante uma cura milagrosa versus alguns homens de idade com sintomas comuns que podiam ou não ter uma causa pouco comum. E, recordou Brian, Ford e Elovitz haviam começado a tomar o Vasclear antes de o processo da síntese química ter sido alterado. Durante os últimos dois anos não houvera problemas com o Vasclear, nem um.

 

Mesmo assim, queria saber mais. Escolhera o Vasclear para terapia do pai, e agora ele estava morto, Precisava de descobrir tudo o que fosse possível sobre o medicamento- Mas a que preço?

 

- Olha, Phil, imagina que investigamos muito discretamente, Para ver se sabemos alguma coisa acerca do Ford e do Elovitz. Se não descobrirmos nada, ficamos calados e pronto.

- Não me agrada.

 

- Está bem, está bem. Então que tal ires buscar a ficha do teu doente e veres se ele tinha uma contagem elevada de eosinófilos? Isso não te pode prejudicar.

 

Quase todas as fichas do White Memorial tinham sido digitalizadas e estavam nos computadores. Phil encolheu os ombros e virou-se para o computador. Brian contornou a secretária e pôs-se atrás da cadeira dele. levara menos de um minuto a aceder ao ficheiro.

 

Havia cerca de dois anos e meio, quando fora pela primeira vez visto no Instituto do Coração, Kenneth Ford era um negro de sessenta e nove anos, divorciado, que vivia na zona de Dorchester. Queixara-se de dores no peito, fora-lhe detectado um problema coronário avançado e começara a tomar o Vasclear na fase um. Tivera uma excelente reacção ao medicamento, mas depois começara a sentir cada vez mais dores no peito, falta de ar e edema maleolar.

 

Fizeram uma leitura dos relatórios das consultas e dos da Clínica Vasclear,

 

- Olha - disse Phil, apontando para o ecrã -, aqui está o meu ditado.

 

Brian leu as duas páginas, que eram quase idênticas às que ele escrevera sobre Elovitz.

 

- Aí está o teu plano - disse. - Radiografia ao tórax, electrocardiograma, ultra-som cardíaco, análises, valores hematológicos. Muito bem. Vê lá os valores hematOlógicOs.

 

Phil procurou no resto do ficheiro. Havia vários testes laboratoriais, incluindo os de hematologia, mas nenhum feito na altura em que ele vira Kenneth Ford, nem depois.

 

- Estranho... - comentou.

 

Regressou às notas clínicas. Ford fora observado mais do que uma vez por um médico que não revira a sua ficha ou não se dera ao trabalho de reescrever um resumo do caso. Não havia qualquer referência ao relatório de Phil nem aos exames recentes. "Insuficiência cardíaca congestiva", concluíra o médico, fazendo um diagnóstico chapa cinco. Causa: "Doença, cardiovascular arteriosclerótica."

 

Phil leu o resto do ficheiro e parou numa carta redigida quatro meses depois de ele ter visto Kenneth Ford na Clínica Vasclear. A carta era de um médico de clínica geral de Dorchester e estava dirigida ao cardiologista a quem Ford fora inicialmente recomendado, informando-o da morte de Mr. Kenneth Ford no Boston City Hospital. A causa da morte era edema agudo do pulmão resultante de uma doença cardiovascular arteriosclerótica.

 

- Bolas, mas eu gostava de saber se ele tinha uma contagem elevada ou não! - exclamou Brian.

 

- Que diferença faz? Esse teste é pouco específico.

 

- Vá lá, Phil, sabes tão bem quanto eu que o teste é anormal em reacções alérgicas e normal na maior parte dos problemas cardíacos. Não é com certeza algo que se espere encontrar na arteriosclerose.

 

-Já te disse, Brian, esquece.

 

Brian pegou no telefone e ligou para o Boston City Hospital. Como esperava, não houve ninguém que aceitasse falar com ele sem uma autorização assinada por Kenneth Ford ou pelo seu representante legal.

 

- Raios! - exclamou, pousando o auscultador. - Phil, fazes ideia porque é que os valores hematológicos não constam da ficha do Ford?

 

- Não.

 

- Achas... hum... que podias ligar para o laboratório de hematologia e ver se lá o conseguem descobrir?

 

- Brian, estás a brincar com o nosso futuro. E para quê? -Não sei, Phil, não sei para quê. Mas porque é que falta esse exame?

 

Phil ligou para o laboratório. Não encontraram os valores hematológicos de Kenneth Ford.

 

- Merda! - exclamou. - Brian, não sei o que raio está a passar-se, mas acho que estamos a exagerar um bocado. As pessoas com problemas de coração estão sempre a ter insuficiências cardíacas. Os doentes têm contagens elevadas de cosinófilos por vezes por causa de um simples vírus. E nós estamos a exagerar!

 

- Desculpa - disse Brian, sentando-se e dando uma dentada no seu bolo.

 

- Obrigado, amigo. Olha, não sei por que motivo andas armado em perdigueiro. Talvez estejas furioso com o Vasclear por ele não ter resultado com o teu pai, mas sei que neste caso estás a exagerar. A analisá-lo em excesso.

 

- Talvez.

 

- Bom, graças a Deus por esse talvez". O meu coração já começou a bater mais devagar.

 

- Então o que é que vamos fazer?

 

- Fazer? Ora, nada, Bri. A questão é essa. Não temos nada, não fazemos nada.

 

- Talvez.

 

- Amen por este outro "talvez" do rapaz. Por favor, vamos terminar aqui. Tenho a consciência tranquila. Tens a consciência tranquila. E continuamos os dois empregados.

 

- Quanto apostas em como o Kenneth Ford tinha uma contagem de eosinófilos superior a dez por cento?

 

A expressão de Gianatasio era um misto de medo e ira. -Já chega, Brian, por favor - disse. - Avisei-te, não queiras atravessar-te no caminho destas pessoas... especialmente porque nada tens a ganhar.

 

- Como é que eles vão descobrir que eu fui ao Boston City tentar descobrir os exames do Ford?

 

- Não sei. Como é que eu fiquei a saber que quase andaste à pêra com aquele cretino bêbado que está na sala dos animais? Brian ficou a olhar para ele.

 

-O que foi? O que é que eu disse? - perguntou Phil.

- A sala dos animais! Phil, eu discuti com aquele idiota do Earl por causa de um macaco... um chimpanzé que me pareceu estar a fazer retenção de fluidos e edema pulmonar. Quis saber de que estudo experimental é que ele fazia parte, e o paspalho quase me arrancou a cabeça.

 

- Ora, vá lá. Não juntes um maldito macaco à teoria da conspiração!

 

Brian tirou um papel do bolso.

 

- Quatro, três, oito, seis - disse. --É este o número do chimpanzé. Queres ganhar umas massas? Vou apostar em três cavalos. Se um dos cavalos perder, perdem todos.

 

-Não percebo.

 

- Primeiro, o Kenneth Ford vai ter uma contagem elevada de eosinófilos. Segundo, o macaco número quatro, três, oito, seis vai fazer parte do primeiro estudo com o Vasclear. E terceiro, tem uma versão simiesca da saturação pulmonar.

 

- Se decidires levar isto avante, faz-me um favor - disse Phil.

 

- Qual?

 

- Guarda-me um carro de luxo com poucos quilómetros e não te preocupes com o seguro.

 

Memorando intra-hospitalar

 

De: Thomas Dubanowsid, chefe da segurança do te Memorial Hospital

 

Para: Todos os médicos e funcionários do White Memorial Hospital

 

14 de Outubro

 

Fomos informados pela administração do hospital de que o presidente dos Estados Unidos estará no White Memorial Hospital na sexta-feira, 18 de Outubro, ou no sábado, 19 de Outubro, para presidir a uma cerimónia que terá lugar na Cúpula de Hipócrates. Também estarão presentes nesse dia o Dr. Alexander Baird, director da FDA, e o senador Walter Louderman. Como há limite de lugares sentados, só entrarão na cúpula as pessoas constantes da lista de convidados.

 

A segurança em redor do Edifício Pinkham será reforçada. Só será permitida à entrada a pessoas cuja presença seja imprescindível. Quem não receber um convite formal para a cerimónia da administração do White Memorial Hospital, do Instituto do Coração de Boston ou da Newbury Pharmaceuticals poderá ter oportunidade de encontrar o presidente na cafetaria do hospital.

 

Ainda não foram tornados públicos quaisquer pormenores acerca da visita do presidente a Boston

 

nem da data e hora exactas da cerimónia no White Memorial. Agradeço antecipadamente a vossa compreensão para qualquer inconveniente que o aumento de segurança e o controlo de pessoas possam causar. Todas as perguntas devem ser dirigidas a esta secção.

 

Brian largou o serviço às quatro horas, alegando cansaço e dores de cabeça, e enfrentou o trânsito da hora de ponta pelo Túnel Callahan até ao Aeroporto Logan. Teri aguardava-o no canto de um pequeno bar do terminal B.

 

Tinham passado menos de doze horas desde que haviam feito amor, mas ali sentada no seu fato de trabalho, de óculos, com o cabelo apanhado, pasta aberta, a ler um documento, parecia estar a anos-luz da mulher que o amara na sua cama, gemendo baixinho quando tivera um orgasmo e depois outro.

 

Brian deteve-se uns momentos à porta do bar a observá-la, apercebendo-se dos sentimentos contraditórios de cumplicidade e desprendimento, de intimidade e distância. Tocara todos os milímetros do seu corpo, partilhara com ela sentimentos incomparáveis. Contudo, não sabia como era o apartamento em que vivia. Seria aquilo o começo de algo especial para ambos? Estariam destinados a tornar-se o amor da vida um do outro?

 

"Graças a Deus que é um dia de cada vez", pensou. "De outra forma, seria impossível lidar com as muitas reviravoltas da vida."

 

Para Brian, a situação do Vasclear era ainda muito vaga, porém, Phil colocara-se propositadamente à margem. Tinham falado ao telefone algumas horas depois da reunião no gabinete. Fora Brian quem ligara.

 

- Phil - disse -, só queria que soubesses que eu não me precipitei por causa desta coisa do Vasclear. E queria dizer-te que gostei que tivesses confiado em mim e me tivesses contado o que sabias.

 

- Ainda bem que ligaste para me dizer isso. A verdade é que estou bastante nervoso desde a nossa conversa, a pensar que, se tivesse ficado de bico calado sobre o caso Ford, tu não terias começado com ideias de desestabilizar isto aqui e arranjares forma de seres despedido. Gosto muito de te ter por cá, amigo.

 

- Obrigado. Acredita que também não estou com disposição para voltar a trabalhar ao balcão da Speedy Rent-A-Car, mas Phil, não deves sentir-te responsável por mim, aconteça o que acontecer. Admito que tenho uma certa curiosidade em relação às pequenas imperfeições na couraça do Vasclear, mas garanto-te que não quero autodestruir-me por causa delas, por isso, pára de te preocupares comigo.

 

- Okay. Mensagem recebida. Não estou preocupado contigo.

 

-A sério. Quero dizer, o que é que nós sabemos, hein? Fazes ideia de quantos desses "casos" é que tomaram o Vasclear durante os estudos da fase um?

 

- Não tenho a certeza, mas creio que uma vez ouvi dizer que tinham sido dezoito humanos mais uns quantos animais.

- Okay, dezoito. Dois desses dezoito podem, ou não, ter desenvolvido SP. Um desses "talvez" tivesse uma contagem elevada de eosinófilos. É isso. Não sabemos mais nada.

 

- É isso - repetiu Phil. - E, além do mais, os homens do Weber alteraram o que andava a provocar reacções alérgicas nos doentes. Se essa componente do medicamento andava também a provocar SP, a coisa está resolvida.

 

- Exacto.

 

- Então, vais esquecer o assunto? Brian hesitou antes de responder.

- Provavelmente.

 

- Aqui no Instituto do Coração não nos contentamos com um "provavelmente", queremos um "com certeza". Porque digo-te uma coisa, Brian, não temos nada a ganhar e eu não posso arriscar-me a perder tudo. Não posso mesmo!

 

- Compreendo. Foi por isso que te telefonei, para te dizer que não quero que faças nada em relação a estes casos de SP. Tens razão. Há demasiadas coisas em jogo.

 

- Obrigado. Bem, agora só espero que cumpras o que estás a dizer.

 

-Vou cumprir Phil. Fica bem.

 

-Vou ficar. Olha. Só mais uma coisa. Aquele macaco de que falaste... o chimpanzé do laboratório?

 

-O quatro, três, oito, seis? O que é'que tem? -Não existe.

 

- O quê?!

 

- E o Earl, o responsável pelo laboratório, também desapareceu.

 

Conta-me.

 

-Não há nada para contar. Fui lá abaixo tratar dos meus hamsters e encontrei um tipo novo. Acho que se chama Andrei. Fala com sotaque russo, creio. Perguntei-lhe pelo Earl e respondeu-me que não fazia ideia de quem ele era ou por que motivo já não trabalhava ali. Depois fui até à zona dos primatas. Há lá um chimpanzé, mas o número dele não é quatro, três, oito, seis e, tanto quanto me apercebi, não tem qualquer problema. Andava aos saltos em cima de um pneu pendurado e fez-me umas caretas parecidas com as que a Joanne me fazia.

- Perguntaste o que aconteceu ao outro macaco?

 

- Credo, não! Já te disse, Brian, as paredes aqui têm ouvidos. Eu caí fora!

 

-Caíste fora... - repetiu Brian.

 

Teri levantou a cabeça e viu Brian aproximar-se. O seu sorriso iluminou o canto escuro. Tinham combinado que ela lhe mandaria uma mensagem para o pager ao meio-dia. Nessa altura já Brian decidira contar-lhe o que soubera sobre Bill Elovitz e Kenneth Ford. Ela prometera contactar a sede para saber exactamente o que constava dos relatórios acerca dos dois doentes da fase um e pô-lo ao corrente no aeroporto.

 

- Olá - cumprimentou. - Estava a ver que não conseguias apanhar-me.

 

Levantou-se e beijou-o na boca, acrescentando que estivera a observar a clientela do bar e decidira que podia arriscar.

- Nesse caso, arrisca outra vez - disse ele. - Meu Deus, cheiras tão bem...

 

- Cheiro à Newbury Pharmaceuticals, porque foi lá que passei a maior parte do dia. Olha, pedi a tua bebida do costume. Eu estou no chardonnay.

 

- Como vão as coisas?

 

- Bem, acho que é mesmo isto. Reuni toda a informação que pude.

 

- E?...

 

- E acho que a coisa no sábado vai avante. Que comecem os jogos do Vasclear!

 

-E aqueles dois casos?

 

- Bom, falei para o escritório. Os doentes da fase um e da fase dois estão identificados apenas pelas iniciais. O doente K. F., que calculo que seja Kenneth Ford, morreu de insuficiência cardíaca congestiva. Mas havia também uma nota da equipa do Instituto do Coração a dizer que ele tinha saturação pulmonar. Os meus colegas não ligaram muito, uma vez que não houve mais nenhum caso.

 

- Até agora...

 

- Sem falar em ti, referi o teu segundo doente, o pobre homem que foi morto no assalto, ao doutor Baird. Ele achou que o teu diagnóstico era consistente com insuficiência cardíaca congestiva, bem como com saturação pulmonar. E antes de ocupar este cargo na FDA era professor de Medicina. Mas, mesmo que fosse SP, não será fácil relacioná-la com o Vasclear. Além disso, estes homens fizeram parte dos estudos da fase um. O processo químico utilizado para produzir o medicamento foi modificado antes da fase dois. Desde essa altura, nada. O doutor Baird acha que não temos motivos de preocupação ou de alarme. E a verdade é que eu sou da mesma opinião. Brian encolheu os ombros e pegou na mão dela.

 

- Por mim, tudo bem - disse. - Eu só estava a fazer o que te prometi: manter os olhos e os ouvidos abertos e comunicar-te tudo.

 

- E espero que saibas o quanto te estou grata, Brian. Finalmente sinto-me entusiasmada com o Vasclear. Depois de todo este trabalho, parece-me que o medicamento é mesmo bom. Acho que vamos salvar vidas... muitas, muitas vidas.

 

A recordação do pai dificultou a Brian partilhar o entusiasmo dela.

 

- Nesse caso, também fico satisfeito - disse ele. - Estou contente pelo facto de o teu papel nisto estar a chegar ao fim.

- De certa forma sim, mas temos um programa de vigilância "pós-marketing" bastante intenso. Se surgirem problemas com o medicamento, estamos em cima deles. E uma das coisas boas da aprovação para breve do Vasclear é que vou ter mais tempo para estar contigo. Aliás, daqui a nada vou ter algumas semanas de férias. Que tal irmos a qualquer lado?

 

- Infelizmente, acabei de entrar no instituto. Durante seis meses não tenho férias e combinei com o doutor Pickard que durante um ano não posso afastar-me, por causa das análises periódicas que me fazem, o que significa que não estou autorizado a sair de Boston.

 

- Então venho eu para cá. Adorava conhecer as tuas filhas.

- Isso é que é falar!

 

-Daqui a duas semanas devo poder escapar-me. Talvez antes disso possas lá ir passar um fim-de-semana.

 

- Talvez.

 

Teri olhou para o relógio.

 

- Entretanto, tenho de tratar da cerimónia. Mas daqui a cinco dias volto. Podemos telefonar-nos todos os dias. Se nos desencontrarmos, eu deixo-te recado no pager. Podes deixar-me recado em casa ou no escritório.

 

Brian tomou-a nos braços.

 

- Adorei a noite de ontem - disse. - E espero que seja o começo de algo muito especial.

 

- É - murmurou Teri, passando os lábios pela orelha dele. - Acredita, Brian. Agora sei porque é que durante tantos meses ignorei o telefone e fiquei sozinha. Estava à tua espera.

 

Brian foi buscar o Le Baron ao parque de estacionamento do aeroporto e iniciou o caminho rumo a Reading. Pensava apenas em Teri - na voz dela, nos seus gestos, no perfume do seu cabelo, no que sentia quando apertava a cintura dela, no corpo dela encostado ao seu. Tinham-se despedido no bar, pois acharam que daria demasiado nas vistas atravessarem juntos o terminal até ao posto de segurança. Depois de o Vasclear ser comercializado não haveria problema em tornarem pública a sua relação, mas por enquanto era conveniente serem discretos.

 

Teri tinha razão, pensou ele enquanto seguia para norte na A-1. Acabara. Apesar das suas desconfianças em relação a Ford e a Elovitz, o Vasclear demonstrara ser bastante eficaz e seguro num ensaio indefinido cuidadosamente controlado. Nada podia fazer em relação ao facto de Jack não ter reagido ao medicamento. Em cada milhão de doentes que iria ser tratado no mundo inteiro depois de a cerimónia na cúpula ter terminado, duzentos e cinquenta mil também não iriam responder favoravelmente ao Vasclear. Um total de duzentos e cinquenta mil tratamentos falhados. E naquela altura, tanto quanto era possível determinar, apenas o destino decidia quem iria ser curado pelo medicamento e quem não iria. Uma combinação letal de factores desconhecidos e a maldita e antiquada sorte, fora isso que conspirara para derrubar Jack Holbrook. Brian não podia ter feito mais nada.

 

Era altura de deixar morrer o assunto. Phil fora bem claro. Nada tinham a ganhar, só tudo a perder, se enfurecessem os poderes estabelecidos do Instituto do Coração de Boston.

 

É altura de deixar morrer o assunto." As palavras ainda ecoavam na cabeça de Brian quando chegou a Bell Circie, a rotunda a partir da qual saía a via rápida rumo a casa. Antes de perceber bem o que estava a fazer, deixou passar a saída, deu a volta à rotunda e dirigiu-se rumo a sul pela A-1, de regresso à cidade - mais especificamente em direcção ao Boston City Hospital.

 

O segredo para alguém se movimentar livremente num hospital era simples: parecer e agir como se pertencesse ao local onde se encontrava. Num hospital grande como o Boston City, com os seus muitos edifícios, um enorme corpo médico internacional, os seus milhares de doentes e funcionários com trabalho a mais, a tarefa era fácil.

 

O aspecto impecável de Brian, a bata, o estetoscópio e o cartão de identificação plástico permitiram-lhe chegar à sala de computadores, onde pouco depois tinha a bibliotecária a ajudá-lo a procurar o dossiê de Kenneth Ford, falecido. Demorou mais tempo a encontrar um segurança para o levar às entranhas poeirentas do hospital onde estava guardado o arquivo semi-activo.

 

Tal como seria de esperar, as caixas de cartão numeradas e as pastas no seu interior pareciam não estar na devida ordem. Depois de dez minutos a olhar para ele, o segurança fartou-se e foi-se embora, dizendo a Brian que não se esquecesse de trancar a porta quando saísse.

 

"Respeitamos o sigilo do doente." Havia placas com esta frase em todos os elevadores de todos os hospitais que Brian conhecia. No entanto, ali estava ele, munido apenas do seu bom aspecto, de um cartão de identificação de outro hospital e de alguns utensílios de médico, sozinho com milhares de dossiês.

 

Foram precisos quase quarenta e cinco minutos e meia dúzia de caixas de cartão para encontrar a pasta de Kenneth Ford. Brian já receava que ela tivesse desaparecido, tal como sucedera com os resultados dos exames no White Memorial e o chimpanzé 4386.

 

Kenneth Ford dera entrada no Boston City Hospital a 3 de Agosto, dois anos antes, e morrera no dia 6. Diagnóstico de entrada: insuficiência cardíaca congestiva grave. Causa de morte: a mesma. O seu electrocardiograma mostrava alterações consistentes com problemas cardíacos e pulmonares e o raio X ao tórax revelava demasiado líquido retido nos pulmões para poder permitir um diagnóstico tão subtil como o da saturação pulmonar

 

Brian sentiu uma tensão agradável quando encontrou a secção de hematologia no relatório.

 

Contagem de leucócitos: 13,300/nim3 (elevada). Fórmula leucocitária:

 

Granulócitos: 45%. Segmentados: 3%. Linfócitos: 33%. Monócitos: 5%. Eosinófilos: 14% (elevado). Basófilos: 0%.

 

Brian arrancou a folha, dobrou-a e meteu-a no bolso. Dali em diante deixaria Phil de fora da história; não seria justo envolvê-lo. Teria deter muito cuidado e de avançar devagar. Mas Jack estava morto e, directa ou indirectamente, o facto de Brian ter escolhido tratá-lo com Vasclear ajudara a matá-lo. Custasse o que custasse, não podia abandonar o assunto até ver respondidas algumas perguntas inquietantes.

 

The Oprah Winfrey Show

 

Oprah: Acredita em milagres? Hoje vamos dedicar o programa às pessoas cujas vidas foram salvas pelas chamadas "curas milagrosas". Mas antes de começarmos com os nossos convidados especiais, gostaria de vos apresentar Mister Al Morgenfield, um homem com uma doença coronária grave e que sofreu dois ataques cardíacos. Com Mister Morgenfield veio a sua esposa, Julia, e a sua cardiologista, doutora Susan Norman, que prometeu a Mister Morgenfield receitar-lhe o novo medicamento miraculoso chamado Vasclear no dia em que ele for posto à venda... o que poderá ser já na próxima semana.

 

Brian encontrava-se atrás da pequena multidão na sala de espera da Clínica Vasclear e assistiu à primeira parte do programa, que era aguardado com expectativa por toda a gente no hospital. Tanto os doentes como os funcionários aplaudiam a menção do medicamento que os fizera juntar-se. Lucy Kendall, resplandecente em caxemira cor-de-rosa, colocara-se à esquerda de Brian, um pouco mais atrás, e continuou a tocar-lhe no braço e nas costas com o seio.

 

-Não é maravilhoso? - perguntou ela.

 

- A minha única preocupação é saber quanto tempo é que a clínica irá continuar aberta.

 

- Não tinha pensado nisso.

 

Fazia sentido que assim que o medicamento fosse comercializado os doentes que tomavam Vasclear voltassem a ser tratados pelos seus próprios médicos. Qualquer médico com acesso a uma farmácia ou a uma carrinha de transporte de medicamentos poderia obter o Vasclear. A Time, a Newsweek, a CNN, os noticiários da noite, agora a Oprah... Como todos ansiavam por um medicamento como aquele! E quantas centenas de milhões de pessoas assistiam àqueles programas e liam aquelas revistas? Seria como a corrida ao ouro!

 

Brian recordou o que Laj Randa lhe dissera acerca do custo do tratamento com o Vasclear. Cem dólares a dose e cerca de cinquenta doses, no total, por pessoa. E mais ainda: a segurança social e as companhias de seguros, os verdadeiros controladores dos custos no país, iriam pagar com todo o prazer. Um bypass quíntuplo equivalia a quantas doses de Vasclear? "Se o doente", pensou Brian, com amargura, "não respondesse ao tratamento, tal como sucedera com Jack, e morresse antes de chegar à sala de operações, tanto melhor."

 

- Bem, o medicamento ainda tem de ser administrado por via intravenosa - disse Brian. - É de esperar que, nos próximos anos, as clínicas que o façam surjam como cogumelos. E, mesmo que isso não aconteça, você é uma excelente enfermeira e tenho a certeza de que encontrará facilmente colocação.

 

- Obrigada pelas suas palavras. Você está bem, Brian?

- Porque pergunta?

 

- Parece tão ausente... Ausente e triste.

- Tenho muitas preocupações.

 

- O seu pai?

 

- Sim, e outras coisas.

- Posso ajudar?

 

A pergunta foi secundada por um toque do seio nada subtil. Brian ainda pensou em perguntar-lhe se ela sabia o nome dos dezoito doentes tratados durante a fase um, mas reconsiderou. Bastaria uma palavra dela a Art Wéber e Brian ficaria de imediato em maus lençóis.

 

- Obrigado, Lucy - respondeu -, mas são coisas que tenho de resolver sozinho.

 

No televisor, um barbeiro chamado Al Morgenfield, de Moline, Illinois, contava às pessoas como fora viver com angina de peito, sabendo que cada pontada que sentia no peito, no ombro ou no maxilar podia ser o começo daquilo a que ele chamava "o grande".

 

- Doutora Norman - perguntou então Oprah -, diga-me uma coisa. Porque não mandou o Al fazer um bypass, como muitos milhares de doentes antes dele?

 

- Bem, po rque o Al já tinha feito um há sete anos - respondeu a médica. - Repetir a cirurgia era arriscado. Há cerca de um ano ouvi falar no Vasclear e tenho-me mantido em contacto permanente com as pessoas da Newbury Pharmaceuticals. Temos estado à espera de uma cura para o Al que não envolvesse uma intervenção cirúrgica.

 

-Quer dizer que tem estado à espera de um milagre... -Exacto. E acho que o alcançámos.

 

Brian virou-se e dirigiu-se para a sala dos médicos. -Olhe, já me tinha esquecido - gritou Lucy. - A sua namorada está no quarto dois.

 

- Namorada?

 

- A Nellie... a mulher que estava disposta a entregar-lhe a filha... - aproximou-se dele e murmurou-lhe o resto da frase ao ouvido - como escrava sexual.

 

- Oh! - fez Brian, com muito menos entusiasmo na voz e na expressão do que pretendia -, obrigado.

 

Continuou o caminho, evitando passar perto do quarto dois. Não era Nellie que o incomodava. Ela era encantadora. Era o que ela representava - uma cura com o Vasclear - que o incomodava.

 

"Porque não fúncionou com o Jack?", perguntou-se pela milíonésima vez. "Porque não funcionou com o meu pai?" Por fim, depois de alguns minutos a mexer em papéis, decidiu ir vê-la. Nellie parecia ainda mais cheia de vida do que quando lhe levara o bolo. Mas também parecia perturbada.

- Doutor Holbrook, a enfermeira acabou de me dizer que o seu pai morreu - disse. - Lamento muito.

 

- Obrigado. -Foi o coração -Foi, sim.

 

- Deve ter sido muito frustrante para um cardiologista ver o pai morrer assim. Lamento.

 

Novamente impressionado pela intuição da mulher, Brian voltou a agradecer-lhe, e depois observou-a, reparando na normalidade do seu ritmo cardíaco e nas artérias desobstruídas.

 

- Que idade tinham os seus pais quando morreram? perguntou ele.

 

- O meu pai - corrigiu ela. - A minha mãe tem noventa e três anos e continua rija e a viver sozinha, muito obrigada. Parecia ser uma pergunta a que gostava de responder. - O meu pai morreu há três anos, com oitenta e nove. Quer acredite quer não, caiu de uma escada de mão e partiu a anca. A operação acabou com ele. Um coágulo de sangue nos pulmões, disseram os médicos.

 

"Uma embolia pulmonar", pensou Brian, "resultante da falta de mobilização do doente e da não utilização de anticoagulantes de baixo peso molecular." Paratodos os efeitos, o pai de Nellie não morrera de causas naturais. Tinham ambos vivido até aos noventa! Normalmente, o factor que permitia prever uma doença cardiovascular era a história familiar. O que acontecera a Nellie?

 

- Nellie, a enfermeira que vai tratar de si deve estar a chegar - disse ele. - Depois fale com a secretária, para marcar a consulta do mês que vem.

 

- Espere! Já quase me esquecia. - Abriu a mala e entregou-lhe um sobrescrito aberto que tinha escrito "Dr Holbrook" na frente.

 

Era uma carta dactilografada a anunciar uma caminhada de trinta quilómetros a favor dos sem-abrigo e a pedir patrocínios para cada quilómetro. Uma folha anexa indicava outros eventos semelhantes em que ela já participara.

 

- isto é óptimo - disse Brian, lendo a lista, e perguntando-se como teria sido a vida do pai com as artérias desobstruidas. - Tenho muito gosto em patrociná-la.

 

Assinou, destacou essa parte da folha e entregou-lha; depois guardou o resto na pasta. Durante mais de uma década, a pasta fora para ele a mala de médico, biblioteca, secretária portátil até roupeiro. Iria reparar no papel de Nellie quando a arrumasse, como era obrigado a fazer quase todas as semanas.

 

- Será que ainda o vejo antes de me ir embora? - perguntou Nellie.

 

- Só se a secretária não lhe quiser marcar a consulta. Senão, ela tem os horários todos e a senhora só precisa de escolher uma data.

 

"Ela tem os horários todos." Este pensamento fez Brian correr para o balcão da entrada, onde a recepcionista, Mary Leander preenchia a ficha de um doente.

 

- posso ajudá-lo, doutor Holbrook? - perguntou.

 

- Ah!... sim. Pode, sim. - Brian percebeu que devia ter perdido um ou dois minutos a preparar a resposta. - Acabei de perguntar a Mistress Hennessey quando é que deixou de vir ao tratamento de quinze em quinze dias e passou a vir uma vez por mês, mas ela não se lembra. Ocorreu-me que talvez a resposta esteja aí nos seus livros de marcações, mas não sei até quando é que eles vão.

 

Brian esperava que a explicação fizesse sentido para Mrs. Leander, porque para ele não fazia.

 

- Bem, não sei - respondeu Mary. - Acho que temos um livro novo todos os anos. Não faço ideia de onde possam estar os antigos, ou se são sequer guardados. Talvez algures por aqui.

 

Apontou para as estantes até ao tecto repletas de formulários, livros de marcações, manuais, papéis e afins - demasiadas coisas para Brian poder verificar. Porém, se houvesse um livro de marcações do primeiro ano de vida da clínica, então talvez pudesse encontrar os nomes dos outros dezasseis doentes da fase um.

 

- Obrigado, Mistress Leander - disse. - Virei ver isso noutra altura, quando tiver tempo.

 

Essa noite, a primeira em que estava de serviço desde a morte de Jack, foi abençoadamente calma. Brian decidira esperar até às onze antes de ir à procura do primeiro livro de marcações da Clínica Vasclear. Precisamente às cinco para as onze, foi ver os seus dois doentes mais graves e ficou satisfeito ao constatar que o estado de ambos estabilizara. Em seguida disse à enfermeira que estava contactável através do pager, saiu do piso onde se encontrava e entrou na clínica pela mesma porta por onde Jessup e Weber tínham entrado com Walter Louderman.

 

O local, como da outra vez, estava estranhamente escuro. Brian decidiu deixá-lo assim. Usou a caneta-lanterna para ver o corredor até ao gabinete da recepcionista, perguntando-se se o gabinete com a parede de vidro estaria fechado.

 

Apesar de se encontrar sozinho, avançou com cuidado. Se a porta estivesse trancada, o jogo acabava e ele poderia voltar para cima, mas viu de imediato que não estava sequer completamente fechada. Entrou, hesitou, e acendeu as luzes do tecto. Depois da escuridão quase total, a luz das lâmpadas fluorescentes quase o cegou. Deixou que os olhos se habituassem e depois explorou as gavetas da secretária metálica atrás do balcão da recepcionista. Nada. A seguir virou-se para as prateleiras.

 

Levou apenas alguns minutos a encontrá-los - dois livros finos, com encadernação de cabedal, obviamente comprados na mesma livraria, idênticos ao que se encontrava naquele momento na secretária da recepcionista. Cada um tinha um ano gravado a ouro na capa. Brian puxou o primeiro e instalou-se na cadeira da recepcionista. As consultas eram bastante espaçadas no início, mas depois tornavam-se mais regulares. Brian calculou que devia estar perante a transição dos doentes da fase um, que podiam inicialmente ter recebido o tratamento no consultório dos seus médicos, para a fase dois, mais alargada, que chegara a abranger mais de seiscentos casos. A própria clínica parecia ter aberto havia dois anos e meio, a meio da fase um.

 

Encontrou consultas de Bill Elovitz e Kenneth Ford. Tomando-os como referência, começou a anotar nomes e a segui-los ao longo do livro, à procura dos que não tinham as duas semanas de tratamentos quase diários exigidos pela fase dois. Ao fim de vinte minutos, a lista, contando com Elovitz e Ford, apresentava dez nomes. Brian tinha quase a certeza de que a maior parte deles, senão a totalidade, eram doentes da fase um. Então, ouviu alguém marcar alguns números no teclado que abria a porta e depois esta a abrir-se. A escuridão do corredor foi atravessada por um raio de luz ténue.

 

Sentindo a adrenalina a correr nas veias, Brian desligou a luz do gabinete, enfiou no bolso a lista de nomes, ajoelhou-se e gatinhou o mais depressa que pôde às escuras até à sala de espera. As luzes do corredor acenderam-se. Brian avançou até à entrada dos doentes, depois escondeu-se atrás de um sofá quando sentiu o intruso a aproximar-se da recepção.

 

Só nesse momento se amaldiçoou por ter tido essa reacção. Escondera-se como um ladrão prestes a ser apanhado com a boca na botija. Fazia parte do corpo médico do instituto e estava de serviço naquela noite. Também possuía um código de acesso para entrar na clínica e tinha um motivo perfeitamente válido para estar ali - um motivo que surgira nesse dia em conversa com Mrs. Leander, a recepcionista. Agora, contudo, era demasiado tarde.

 

O móvel atrás do qual se escondera - um sofá com estrutura e braços de madeira e almofadas soltas - oferecia-lhe uma protecção apenas parcial. Brian deitou-se no chão e espreitou por baixo do sofá, perguntando-se se o seu metro e oitenta e sete estaria todo escondido. Fez descer a mão e, com cuidado, desligou o pager. Se houvesse alguma paragem cardíaca no hospital, poderia ser a sua.

 

A porta para a sala de espera ficava apenas a cerca de dois metros, mas não havia possibilidade de tentar lá chegar. O barulho que faria a abri-la fá-lo-ia com certeza ser apanhado, e havia ainda a possibilidade de se encontrar trancada. Encostou a cara à alcatifa e inspirou em silêncio.

 

De súbito, as luzes fluorescentes da sala de espera acenderam-se. De trás do sofá, Brian conseguiu ver as calças e os ténis de um homem. Ténis? Perguntou-se se a segurança do hospital permitia aquele tipo de calçado. Os ténis viraram-se para um lado, em seguida para o outro, enquanto o homem inspeccionava a sala. Depois, ao fim de dois ou três minutos intermináveis, as luzes do tecto desligaram-se.

 

Brian pressentiu que o homem voltava para trás. As luzes do corredor apagaram-se e de novo a clínica ficou mergulhada na mais completa escuridão. Uma porta abriu-se e fechou-se. Brian esperou. Cinco minutos... dez.

 

Por fim, foi até à porta e experimentou a maçaneta. Não houve problema. Estava quase a abri-la quando se lembrou do livro das marcações. Deixara-o na secretária da recepcionista. Não tinha estômago para continuar a procurar naquela noite os restantes doentes da fase um, mas, partindo do princípio de que a clínica estava vazia, não fazia sentido deixar ali o livro para suscitar perguntas. Ainda de gatas, atento a qualquer pista que lhe indicasse que o intruso não se fora embora, avançou até à porta do gabinete e parou. O silêncio e a escuridão eram totais.

 

Ficou ali durante alguns minutos, à escuta. Por fim, levantou-se, abriu a porta e acendeu a luz.

 

O livro das marcações desaparecera.

 

Correu as prateleiras, mas só encontrou o livro do ano dois. Procurou no chão e nas gavetas da secretária. Nada. Sentiu novamente o coração a bater com toda a força. Por que motivo tinha o segurança, ou lá quem era o homem, levado o livro? A situação não fazia sentido, mas era, mesmo assim, assustadora.

 

Não conseguiu pensar em mais nada, a não ser sair dali e tentar começar a raciocinar. Depois, quando estava prestes a desligar a luz, olhou para um canto do escritório e gemeu. Havia uma câmara na esquina onde a estante, uma parede e o tecto se encontravam - uma câmara de segurança apontada para o balcão da recepcionista, não exactamente escondida, mas também não exactamente à vista.

 

Brian olhou para ela durante alguns segundos, perguntando-se quem estaria a observá-lo e onde. Depois, sentindo-se completamente impotente, ligou o pager, apagou as luzes e saiu da clínica.

 

Se alguém o confrontasse com aquela expedição tardia, ainda conseguiria apresentar uma desculpa que Mrs. Leander confirmaria, embora sem grande êxito, mas, independentemente disso, não conseguiu afastar o pressentimento de que o rastilho atrás de si fora aceso, e que fora ele próprio quem riscara o fósforo.

 

Às três e meia da manhã, Brian estava física e mentalmente arrasado. O ambiente aquecera quando a tensão de uma doente baixara de repente e outra tivera várias arritmias difíceis de controlar. Nenhuma dessas doentes fazia parte do estudo do Vasclear. Foram precisas várias horas para estabilizar as duas mulheres e Brian foi obrigado a colocar um pacemaker temporário numa delas. Por fim, a coisa acalmou, embora naquela altura os músculos da parte de trás do seu pescoço parecessem cordas retesadas e os das pernas lhe doessem muito.

 

Aquelas duas emergências tiveram o condão de fazer com que Brian se esquecesse do incidente na Clínica Vasclear. Correra tudo mal, mas o pior era ter perdido o livro de marcações, logo a seguir a ter-se deixado filmar pela câmara de vigilância.

 

"O que é que havia de fazer?" Quando visitou os doentes pela última vez naquela noite, a questão começou a ecoar na sua cabeça.

 

Molhou a cara com água, largou o serviço e dirigiu-se para o gabinete da segurança, na cave do Edifício Pinkham. O guarda de serviço tinha o cabelo cortado à escovinha, era corpulento e trazia ao peito uma placa com o nome "JIM UNDERHIL". Envergava a farda azul de lã do seu departamento e encontrava-se sentado atrás do balcão a ler um romance de Stephen King.

 

Na parede à sua direita havia oito ecrãs e em cada um a imagem mudava de dez em dez segundos. Brian tentou ver a recepção da Clínica Vasclear, mas depois lembrou-se de que a deixara completamente às escuras.

 

Mostrou a sua identificação, enquanto tentava ver os sapatos do homem.

 

- Sim, doutor Holbrook - disse Underhill. - Já ouvi falar de si. Em que posso ajudá-lo?

 

"já tinha ouvido falar da sua vinda." Não haviam sido aquelas as palavras de Earl?

 

Ao contrário de quando falara com Mrs. Leander, desta vez Brian estava preparado.

 

- Desculpe não ter podido cá vir mais cedo, mas tivemos umas urgências no instituto. Hoje à noite fui uma das últimas pessoas a sair da Clínica Vasclear, por volta das oito e um quarto. Antes de sair, fui à recepção verificar umas marcações. Depois chamaram-me de urgência e fui-me embora a correr. Cerca de uma hora mais tarde percebi que tinha deixado a minha mala preta na recepção, mas quando voltei para a ir buscar ela já lá não estava.

 

-Não terá sido guardada por alguém?

 

- Talvez, mas Lucy Kendall, a enfermeira responsável, e eu fomos as últimas pessoas a sair de lá, creio. Liguei-lhe para casa quando me dei conta do que acontecera e ela disse-me que não tinha visto a minha mala.

 

Com lentidão, o segurança agarrou numa prancheta que estava sob a secretária. Enquanto isso, Brian deslizou até à extremidade do balcão e conseguiu ver-lhe os sapatos. Cabedal preto, muito bem engraxados. De certeza que o intruso na clínica não era um dos seguranças regulares do hospital.

 

Muito bem, doutor - disse Underhill com ar cansado preencha aqui este formulário.

 

Olhe, Jim, nunca depositei muita fé nesses formulários, mas quando estive na recepção à procura da minha mala reparei numa câmara quase escondida atrás da estante. Será que você viu alguma coisa? Pode ter gravada a cara da pessoa que me levou a mala.

 

Underhill semicerrou os olhos enquanto puxava pela cabeça. Depois desistiu e pegou numa folha plastificada que estava por baixo dos ecrãs.

 

- Tal como eu pensava - disse, ao fim de um minuto a olhar para a folha. - Não tenho indicação de que haja qualquer câmara na Clínica Vasclear.

 

Brian sentiu um arrepio na espinha.

 

- Então acha que aquela câmara serve para quê? O segurança encolheu os ombros.

 

-Não faço ideia. Talvez não esteja ligada.

 

-Talvez - concordou Brian, embora não acreditasse. Há mais alguma câmara no hospital que não conste da sua lista?

 

- Não faço ideia, embora não veja por que motivo haveria isso de acontecer. Talvez o Tom Dubanowski, o chefe do meu departamento, saiba. Pode perguntar-lhe. Ele entra às sete.

 

- Obrigado - respondeu Brian.

 

Saiu do gabinete do segurança dominado por um pressentimento de que algo terrível estava para acontecer. Alguém o vira através da câmara. Esse alguém mandara o homem dos ténis ir investigar. E agora esse alguém tinha o livro das marcações e devia já fazer uma ideia daquilo que Brian andava à procura. Gastou alguma energia mental preciosa a tentar descobrir quem poderia ser. A Newbury Pharmaceuticals podia ter instalado as câmaras, mas o seu edifício ficava a vários quilómetros do hospital. Como é que podiam ter feito chegar alguém à clínica tão depressa? Se calhar Jim Underhill mentira. Talvez tivesse um par de ténis debaixo da secretária para as suas escapadelas. O guarda não seria, com certeza, a primeira pessoa no hospital a ocultar-lhe a verdade.

 

A hora tardia - já passava das quatro da manhã - não o ajudava a pensar. Dentro de menos de três horas teria de começar a visitar os doentes. Brian sabia que daí a pouco não poderia voltar para trás, que ficaria pior se tentasse pôr de novo o seu corpo e o seu cérebro a funcionar depois de duas ou três horas de sono do que se simplesmente bebesse um café, reunisse a adrenalina da fadiga extrema e tentasse aguentar-se - vinte e quatro horas mais o dia de trabalho seguinte. Seria melhor do que tentar a viagem de regresso a casa.

 

"Cara, vais para a cama, coroa, vais à máquina buscar um café", decidiu, enfiando a mão no bolso à procura de uma moeda. Mas o que a sua mão encontrou foi a lista - dez nomes escritos à pressa num papel amarrotado.

 

Antes de se aperceber de que tinha tomado uma decisão, encontrava-se à porta da sala de arquivo, na cave do edifício adjacente ao Pinkham. Devia haver registos de quando alguém acedia de outro computador à base de dados. Parecia lógico que dali em diante o tipo dos ténis, ou o seu patrão, vigiassem os relatórios a que Brian tinha acesso. Mais cedo ou mais tarde, teria de se contentar a vê-los na sua forma electrónica, mas, antes que isso acontecesse, talvez conseguisse consultar um ou dois na sua forma original.

 

A porta encontrava-se fechada, mas havia um telefone na parede ao lado com instruções. Brian explicou quem era à mulher com sotaque hispânico que o atendeu e disse-lhe que queria ver um relatório ao qual não conseguia aceder pelo computador. Pouco depois a porta entreabriu-se uma nesga e uma mulher jovem espreitou. Brian mostrou a sua identificação e disse que não se importava de pedir a um segurança que o acompanhasse, se ela preferisse.

 

-Não é preciso - respondeu a mulher, - o segurança já cá está.

 

A porta foi encostada para ela poder soltar a corrente, depois aberta. A mulher, com pouco mais de vinte anos, era elegante e muito bonita, com cabelo escuro. As roupas e o cabelo pareciam um tanto em desalinho, o batom um pouco borrado. Um homem e uma mulher atrás de uma porta trancada num hospital, de madrugada... Brian gemeu interiormente. E, para tornar as coisas ainda piores, o homem era outro segurança, Dali a nada ele e Jim Underhill estariam a comparar notas. Brian ficou à porta, a pensar se não seria melhor arranjar uma desculpa e ir-se embora, mas a mulher já vira a sua identificação. Naquele ponto, não entrar podia suscitar ainda mais desconfiança.

 

A jovem levou apenas um minuto a aparecer com o relatório do primeiro nome na lista de Brian, uma mulher de setenta e cinco anos chamada Sylvia Vitorelli. Brian pousou o relatório. Apercebendo-se de que a mulher e o segurança o observavam com ar expectante, folheou o relatório o mais depressa que pôde. Como Vitorelli fora uma antiga doente do White Memorial, com uma histerectomia, remoção da vesícula, intervenção cirúrgica a uma fractura no tornozelo e problemas cardíacos, o relatório tinha uma espessura de cerca de três centímetros, mas, finalmente, Brian conseguiu reunir a história dela.

 

Moradora em North End, não muito longe do hospital, Vitorelli era casada, mãe de quatro filhos e avó, e fumara a certa altura da sua vida mais de um maço de cigarros por dia. Começara a ter dores no peito e fora recomendada a Carolyn Jessup, que lhe aplicara a terapia tradicional ao longo de mais de um ano, até a incluir na fase um do Vasclear, havia quase três anos. Brian olhou para a prova de esforço de Vitorelli, o ultra-som cardíaco e outros electrocardiogramas. O seu problema era grave, mas não tão grave como o de Jack.

 

Pelos apontamentos de Jessup parecia que Vitorelli reagira logo bem ao tratamento com o Vasclear. Depois, o relatório chegava abruptamente ao fim. Nem notas, nem resultados de exames, nada. Brian voltou um pouco atrás, à procura de folhas que pudessem estar fora de ordem.

 

- Vai demorar muito mais, doutor? - perguntou o segurança. - A Elana quer fazer um intervalo e não podemos deixá-lo aqui sozinho.

 

- Só mais um minuto - respondeu Brian.

 

Abriu outra vez o relatório na secção dos resultados dos exames. Não havia nenhum posterior aos primeiros três meses do tratamento com o Vasclear. Nenhum!

 

Tirou uma fotocópia da primeira folha do relatório, agradeceu à ansiosa Elana e regressou ao hospital. A menos que estivesse completamente enganado, as últimas páginas do relatório de Sylvia Vitorelli haviam tido o mesmo destino das de Kenneth Ford. Seria a mulher um terceiro caso de retrocesso no tratamento com o Vasclear, com sinais e sintomas que podiam ter sido de saturação pulmonar? Valeria a pena tentar provar as suas suspeitas?

 

Se estivesse certo quanto a Sylvia Vitorelli, os testes da fase um pareciam ter tido um grande número de problemas, ao passo que a fase dois era quase perfeita. Teriam as alterações na síntese química do medicamento feito assim tanta diferença?

 

As perguntas pareciam infindáveis. Mas havia outra pergunta que o preocupava mais. Quanto tempo lhe restaria ainda no Instituto do Coração?

 

               THE BOSTON GLOBE

 

Inúmeras Encomendas de "Vasclear"

 

A Newbury Pharmaceuticals, com sede em Boston, confirmou que as encomendas de Vasclear, o seu novo medicamento ainda não aprovado, têm surgido não só de todo o país, mas também do mundo inteiro. O medicamento, que vem em frascos de dez centímetros cúbicos e tem de ser diluído e administrado por via intravenosa, parece eliminar os coágulos responsáveis por ataques cardíacos em setenta e cinco por cento dos doentes.

 

O Dr. Art Weber, director do projecto na Newbury, afirma que a grande procura do medicamento fará com que este esgote nos primeiros dias e o seu preço se eleve."

 

Às sete e um quarto, quando Phil foi fazer a ronda pelos doentes, Brian estava a sair do duche na sala dos médicos. Fizera os possíveis por se manter acordado até à chegada do turno da manhã, mas como não surgira nenhuma emergência, não fora capaz de resistir ao sono. O telefonema da enfermeira acordara-o às seis e meia de um sono profundo de duas horas. Assim que desligara o telefone, voltara a adormecer. A enfermeira ligara-lhe de novo um quarto de hora mais tarde, como era costume, e não o deixara largar o telefone sem ele ser capaz de dizer os nomes de todas as câmaras, válvulas e artérias do coração.

 

Brian limpou-se e vestiu-se, furioso consigo mesmo por ter colocado em risco o seu trabalho, o seu futuro e a segurança imediata das filhas. Mas, na verdade, o que fizera ele? Um velho sobrevivente do Holocausto aparecera-lhe com um problema grave. Ao investigar o assunto, deparara com outro caso semelhante. Era natural que Brian, ou qualquer outro médico responsável, quisesse chegar ao fulcro da questão.

 

Correu até à enfermaria e apanhou a equipa que rodeava a cama da doente no quarto 514.

 

-Desculpa o atraso, Phil - disse.

 

- Não faz mal. Parece que tiveste uma noite atribulada. "Nem fazes ideia..."

 

- Suficientemente atribulada para estes velhos ossos. Ainda não marquei a operação de Mistress Cameron para a colocação do pacemaker permanente, mas vai ter de a fazer.

 

- Eu trato disso.

 

A ronda pelos doentes devia durar até às nove e meia, dez horas, o mais tardar Tecnicamente, como era o professor do mês, Phil não só estava encarregue da instrução das enfermeiras, estudantes e médicos como também era legalmente responsável pelas altas dadas aos doentes no serviço. Brian viu o amigo desempenhar o seu papel, apresentando a combinação adequada de perguntas, brincadeiras, humor inofensivo e conhecimentos médicos. Na opinião de Brian, Phil andava a subestimar-se. Era um excelente médico. Mas sabia que o que era respeitado, e mesmo reverenciado, num membro do corpo médico de um hospital, no Instituto do Coração não passava de norma.

 

A meio da ronda, quando se aproximavam de alguns doentes acerca dos quais Brian nada tinha a dizer, aproveitou para se escapar, foi até um telefone em frente ao balcão das enfermeiras e marcou o número de Sylvia Vitorelli. Atendeu uma mulher.

 

- Estou sim?

 

- Bom dia, Mistress Vitoreli?

- Desculpe?

 

- Estou a ligar para Mistress Sylvia Vitorellí.

 

-Aqui não mora ninguém com esse nome. Deve ser engano.

 

- Espere, não desligue, por favor. Brian leu o número que tinha marcado.

 

- Lamento - disse a mulher. - O meu número é esse, mas não mora aqui ninguém com o nome que referiu.

 

- Só mais uma coisa - disse Brian. - Sou médico, trabalho no White Memorial e estou a tentar encontrar esta senhora, o número que marquei é o que está na ficha dela. Há quanto tempo o tem?

 

- Há mais de seis meses.

 

- Obrigado - murmurou Brian, pousando o auscultador Regressou à ronda durante outros vinte mínutos, depois correu de novo para o telefone. Dessa vez a chamada era interurbana, para um familiar de Sylvia,. Richard Vitorelli, em Fulbrook, Nova Yorque. Brian, agora mais cuidadoso do que nunca, depois da quase catástrofe na Clínica Vasclear, recorreu à telefonista exterior e ao seu cartão de crédito, em vez de passar pela telefonista do hospital. Atendeu uma mulher.

 

-Como é que disse que se chamava? - perguntou ela.

- Doutor Holbrook, do White Memorial Hospital, em Boston.

 

- Tratou a minha sogra?

 

- Eu... bem... não exactamente.

 

- Acho que devia falar com o meu marido. Ele volta logo à noite, Vai ter de ligar amanhã.

 

- Bem, pode dizer-me só como é que está Mistress Vitorelli?

 

Houve uma pausa longa antes de a mulher responder.

 

- Ela morreu - disse, por fim. - Foi-se abaixo aqui em casa e morreu no hospital há cerca de dois anos.

 

Brian sentiu o pulso acelerar. O relatório de Sylvia terminava poucos meses antes disso.

 

- Lamento - disse. - Pode contar-me alguma coisa acerca das circunstâncias da morte dela?

 

-Eu... acho que é melhor o senhor ligar quando o meu marido cá estiver.

 

- Com certeza, mas diga-me só uma coisa, por favor: sabe qual foi a causa da morte?

 

O coração. Telefone amanhã, se não se importa.

 

A nora de Sylvía desligou antes de Brian poder fazer qualquer outra pergunta. Mas ele punha a si próprio muitas questões. Teria Sylvia sido internada algures antes de morrer? Ter-lhe-iam feito algum exame ao coração? Uma análise de sangue? Uma autópsia? E talvez. as duas perguntas mais irritantes. seria já demasiado tarde para deixar morrer o assunto Vasclear? E seria ele capaz de o fazer?

 

-Mais uma ronda empolgante, não?

 

Brian nem se apercebera da aproximação de Phil.

 

- Desculpa ter-vos abandonado. Tive de fazer, uns telefonemas.

 

- Não há problema. Continua a pôr pacemakers e a salvar vidas. Eu ocupo-me da teoria.

 

- Tu és um óptimo professor, Phil.

- Ora, não exageres.

 

- A sério. E também vejo que adoras ensinar. Nem toda a gente gosta, sabes?

 

- Bom, a verdade é que adoro mesmo. Adoro fazer tudo aquilo para que me pagam aqui. É por isso que estou disposto a aguentar algumas coisas e a obedecer às regras tácitas. Fazem parte do jogo. É também por isso que não te posso ajudar mais nesta coisa do Vasclear e que te peço para teres cuidado.

 

- Sabes alguma coisa que eu desconheça?

- Sobre o quê?

 

- Nada, nada. Acho que estou a ficar paranóico e completamente exausto.

 

- Percebo. Brian, peço desculpa. se estiver a ser abelhudo, mas toda a gente sabe que, quando há mais de uma pessoa a trabalhar num sítio, os zés-ninguéns como eu e tu têm de aprender a lidar com os egos dos grandes. Nos locais onde essas pessoas são médicos, as personalidades encontram-se... definidas com maior clareza, é tudo. Assim que te aperceberes de quem é que aqui tem os egos mais frágeis e do que é que precisas de fazer para ficar do lado deles, irás descobrir que até é bom trabalhar cá.

 

-Não precisas de me dizer isso. Fui eu quem foi arrancado do monte de porcaria, lembras-te?

 

- Sim. Bem, só queria agradecer-te por não insistires. -Não há problema.

 

Brian apercebeu-se do ar constrangido do amigo. Não fora fácil para ele ter tomado a decisão de não se envolver.

 

- Bom, então até logo - disse Phil, embaraçado. Recuou alguns passos, depois virou-se e afastou-se rapidaMente.

 

Brian abriu a pasta e tirou de lá um sobrescrito no qual escrevera o nome de Phil. No seu interior estava a lista dos dez doentes da fase um. Brian tencionara perguntar a Phil se ele se imporrtava de o ajudar a procurar as fichas de alguns. Em vez disso, Porém, rasgou a cópia e deitou os bocados no lixo. Phil estava oficialmente fora de jogo. Se ao menos pudesse dizer o mesmo a respeito de si próprio!

 

- Doutor Holbrook - chamou a secretária -, tem um minuto?

 

-Com certeza.

 

Brian fechou a pasta e aproximou-se do balcão.

 

- Doutor Holbrook, acabei de reparar que estava este sobrescrito dirigido a si na minha secretária. Não sei quem o deixou aqui, nem quando. Quando olhei, já ali estava. Lamento.

 

- Que disparate. Não há problema, obrigado. Também não parece ser nada importante. Provavelmente caiu da pilha da minha correspondência.

 

O sobrescrito era branco, estava fechado e tinha escrito "DR. BmN HoLBRooK" em maiúsculas. Brian abriu-o, mas ainda antes de desdobrar a folha pressentiu que vinham ali sarilhos.

 

Laboratório do White Memorial Hospital Doente: 1744

 

Data de recolha: 15 de Outubro

 

Nome do exame                         Resultado Etanol (urina)                         Negativo

 

Doseamento (urina):

 

Tétra-hidrocanabinol (THQ Negativo Anfetaminas                            Negativo Barbitúricos                           Negativo Metabolitos de benzodiazepina Negativo Cocaína e metabolito                   Negativo Metadona e metabolito                 Negativo Opiáceos                                 Positivo Fencielidina                           Negativo Propoxifeno e metabolíto Negativo Comentários:

 

Exame feito sem conhecimento do doente. Resultados positivos de opiáceos confirmados por cromatografia gasosa.

 

Segue resultado quantitativo.

 

Doente 1744. O número de Brian. Mas a data era desse dia. Nem sequer entregara urina nesse dia, e muito menos podia ter resultados positivos no grupo dos opiáceos, a classe de substâncias que o metera em apuros. Ficou sentado no pequeno vestíbulo a olhar para uma imagem emoldurada de Hipócrates a deitar qualquer coisa de uma tigela de barro para a garganta de um doente. Parecia que lhe tinha caído um haltere sobre o peito. De acordo com o que combinara com Ernest Pickard, bastava um teste positivo confirmado por cromatografia gasosa para se acabar tudo. Não haveria desculpas, nem álibis, nem protestos de inocência, nem erros de laboratório, nem segunda oportunidade. Nada! Era o fim da sua carreira no Instituto do Coração. Envio imediato de um relatório à Comissão de Registo e Disciplina em Medicina. Humilhação. Suspensão. Fim da medicina. Fim das visitas livres às filhas.

 

A clínica onde fizera a análise à urina tinha um livro de registos, para evitar que alguém acusasse o laboratório de uma recolha mal feita. Seria que quem lhe enviara aquele relatório falso também forjara o seu nome no livro? Brian perguntou-se porque teriam escolhido um dia em que ele não fizera exames, em vez de esperarem pelo dia em que os fizesse para depois alterarem os resultados. Se podiam fazer aquilo com um relatório oficial, podiam fazer qualquer coisa.

 

De repente, apercebeu-se de que o pager estava a tocar. No visor aparecera "chamada exterior. Brian enfiou o papel no bolso e marcou o número. Do outro lado da linha ouviu uma voz de homem grave, lenta, quase gutural... e com um sotaque indefinível.

 

- Tem o sobrescrito, doutor Holbrook?

- Quem é o senhor?

 

- Hoje é apenas um aviso. Para saber do que somos capazes. Se continuar a tentar arranjar problemas com a FDA ou com mais alguém, nós saberemos. E se isso acontecer, o próximo relatório será em relação a uma amostra de urina que tenha deixado no laboratório. O seu nome aparecerá no livro de registos. O teste será positivo, e será o seu fim. Fiz-me entender?

- Quem é o senhor? - repetiu Brian.

 

A chamada caiu.

 

Brian ficou a olhar para o telefone, perguntando-se por que motivo lhe estariam a dar uma segunda oportunidade. Com uma urina positiva, aquilo que ele dissesse deixaria de ter qualquer credibilidade. Devia ter descoberto qualquer coisa importante, capaz de destruir a imagem limpinha do Vasclear. Teri dissera-o várias vezes: Alexander Baird andava à procura de algo que fizesse esmorecer o entusiasmo que rodeava o medicamento e permitisse à fda atrasar a sua comercialização. Quem telefonara a Brian queria que ele ficasse calado e estava diSPOsto a permitir-lhe continuar a ter uma carreira em troca de silêncio absoluto. Rasgou o exame em pedaços e atirou-os para o lixo. Alguém estava a dar-lhe uma última oportunidade, mas quem?

 

Atordoado, perplexo e ausente, deixou o vestíbulo e quase chocou com Ernest Pickard. Nunca vira o chefe do instituto ali desde que lá trabalhava. No entanto, ali estava ele. Seria coincidência?

 

Pickard encontrava-se impecavelmente vestido com um jaquetão azul. De um bolso saía um estetoscópio, embora Brian duvidasse que o homem ainda fizesse muito uso dele.

 

- Bem, bem - disse Pickard com a habitual alegria, puxando Brian para longe do balcão, a fim de poderem conversar -, que tal vai o nosso quarterback?

 

Brian observou o homem o mais atentamente que ousou, tentando detectar algo que lhe permitisse deduzir que aquela visita se destinava a confirmar que ele percebera o recado sobre o Vasclear.

 

-Ainda não houve jogadas difíceis - respondeu.

 

- A informação que tenho recebido é um bocado diferente. Bom, vim cá porque queria saber se você estava bem depois da tragédia.

 

- Da tragédia?

 

- Sim. O seu pai.

 

- Oh, sim. Sim. É muito simpático da sua parte, doutor Pickard. A verdade é que agora me deixo ir ao sabor do vento. Pickard pousou a mão no ombro dele.

 

- É uma reacção perfeitamente normal. Sei que deve ser difícil conseguir concentrar-se. Bom, veja lá se não se deixa abater demasiado.

 

-Estou a tentar.

 

- E, por amor de Deus, não tenha uma recaída! Continua a ir às reuniões?

 

-Com certeza.

 

- óptimo. Acho que você se encaixou muito bem aqui e detestaria ter de o perder.

 

Sem esperar por resposta, Pickard deu uma nova palmada no ombro de Brian, lançou um sorriso às enfermeiras e à secretária, que estavam reunidas atrás do balcão a observá-lo, e foi-se embora.

 

Brian regressou à sala. Era impossível perceber se Pickard sabia ou não o que estava a acontecer com ele, mas uma coisa era certa: apenas a quatro dias da cerimónia de aprovação do Vasclear, ele era um homem marcado. Olhou para a porta, a fim de se certificar de que não havia ninguém por perto, depois ligou para a única pessoa em quem podia confiar inteiramente. Graças a Deus, Freeman estava em casa.

 

- Freeman, liguei para saber se esta tarde há alguma reunião por volta das três a que possas ir.

 

- Deixa-me só consultar a minha fiel agenda. Não vejo nada no departamento dos Narcóticos Anónimos até logo à noite, mas há uma reunião dos Alcoólicos Anónimos no número dezoito de Stiles Street, em Brookline. Das quatro às cinco. Discussão.

 

-Podes encontrar-te lá comigo?

 

- Olha, se precisas de mim, conta comigo. Especialmente numa reunião. É esse o meu trabalho.

 

- Obrigado. Bem, preciso de ti e da reunião. Só mais uma coisa. Fazes ideia de como se pode descobrir quem é o dono de uma empresa e quem faz parte do conselho de administração?

 

- Não, mas posso dizer-te que entre os Alcoólicos Anónimos e os Narcóticos Anónimos há sempre alguém que tem resposta para aquilo que queremos saber, seja relacionado com trabalho, música rap, reparações domésticas ou neurocirurgia. É só uma questão de localizarmos o tipo indicado.

 

- Importas-te de tentar?

 

- Claro que não, desde que me expliques o motivo.

- Vou explicar, Freeman. Prometo.

 

-Então está bem. Qual é a empresa?

 

- Newbury Pharmaceuticals. Quero saber quem é que manda, na Newbury Pharmaceuticals.

 

Freeman Sharpe chegou à igreja em Brookline quinze minutos depois do início da reunião dos Alcoólicos Anónimos, mas Brian guardara-lhe lugar. Estiveram algum tempo a ouvir falar um advogado acerca dos erros que cometera na profissão por causa da bebida e das mudanças que tinham ocorrido ao longo dos oito anos desde que parara de beber. Para além de fazer trabalho voluntário como telefonista uma vez por semana na sede dos Alcoólicos Anónimos, demitira-se da firma, trocara o BMW por um carro mais modesto, deitara fora os comprimidos para a azia e fazia alguns trabalhos legais em prol das classes mais desfavorecidas. O brilho no rosto de feições marcadas do homem parecia iluminar a sala.

 

- Acho que ele conseguiu - murmurou Sharpe, inclinando-se para Brian.

 

Este olhou para uma janela de vitral.

- Sim - respondeu com ar apático. Sharpe suspirou.

 

- Doutor Brian, acho que devemos ir conversar lá para fora.

- Lá para fora? Sharpe, desde que te conheço nunca saíste a meio de uma reunião.

 

- Bom, tenho um pressentimento que me diz que não estás muito bem.

 

Pararam junto da cafeteira para se servirem e levaram as canecas para a rua. O final da tarde estava nublado, mas quente, e Brian ficou satisfeito por ter vestido umas calças de ganga e uma T-shirt antes de sair do hospital. Em silêncio, percorreram um quarteirão, depois atravessaram um campo de futebol deserto e sentaram-se num banco de cimento. Freeman encheu um cachimbo de sabugo de milho.

 

- Estou em apuros - disse Brian.

 

- Parece que estás em apuros quase desde o primeiro dia em que foste trabalhar para aquele sítio.

 

- Podes crer que alugar carros era muito mais simples. Freeman, o Jack morreu, em parte, porque eu decidi não o obrigar a ser operado. E a razão principal, bolas, a única razão por que não o fiz foi porque o tinha a tomar Vasclear! Agora comecei a descobrir umas coisas acerca dos primeiros testes do medicamento... coisas que a companhia farmacêutica não soube ou não disse à FDA.

 

-Há alguma coisa errada com o medicamento?

 

-Não tenho a certeza, pelo menos por enquanto, mas há dois anos e meio fizeram uns testes preliminares em dezoito pessoas. Localizei três delas, mas já morreram. As análises ao sangue de duas são estranhas e apresentavam sintomas que podiam ter sido provocados pelo medicamento. Acabei de localizar a terceira. Morreu em casa do filho, no estado de Nova Yorque. Não sei pormenores, mas a ficha dela no hospital e a ficha dos outros dois doentes parecem ter sido alteradas. Faltam folhas.

 

- Mas o medicamento agora funciona bem, não?

 

- Sim. Continua a não resultar em toda a gente, mas parece que não prejudica ninguém.

 

Freeman acendeu o cachimbo. O fumo do tabaco, com cheiro a cereja, combinava perfeitamente com os aromas do Outono.

- E então? - perguntou.

 

-A noite passada fui apanhado por uma câmara de vigilância na clínica a tomar nota dos nomes dos primeiros doentes para poder localizá-los.

 

-E porque fizeste isso?

 

- Não sei. Tenho a sensação de que não insisti o suficiente com o Jack para que ele se submetesse à operação. Queria tanto acreditar que o Vasclear era a solução!

 

- Uma cruzada. Adoro cruzadas. Todos aqueles cavalos, aquelas túnicas brancas com cruzes vermelhas...

 

Brian soltou uma gargalhada.

 

- Sabes, talvez seja uma cruzada - concordou. - Mas a pergunta que se põe é a seguinte: estou a combater quem? Quanto mais me enterro nisto, mais acho que estou a combater contra mim próprio, contra a minha arrogância. Quase dei cabo da minha vida duas vezes... Uma vez quando rebentei com o 'joelho e mais tarde quando recusei que me ajudassem a livrar-me do vício que andava a devorar-me. Mas julguei que depois de todo o trabalho nos Narcóticos Anónimos e da terapia tinha conseguido superar isso. Então, de repente, decido o que é melhor para o meu pai e ignoro as recomendações da médica dele e de um dos melhores cirurgiões do mundo.

 

- Então é por isso que não consegues esquecer esta questão? -Talvez. Sim. Sim, acho que em grande parte é por isso. Não consigo enfrentar aquilo que o meu ego me levou a fazer, por isso quero punir o Vasclear e as pessoas que são responsáveis por ele. Mas Freeman, também acho que o medicamento tem um problema qualquer. Não faço ideia do que seja, mas acho que esta questão com os doentes da fase um foi deliberadamente ignorada e ocultada. Os médicos envolvidos no estudo do Vasclear são investigadores respeitados, mas já me mentiram uma vez em relação a uma coisa que é crucial para o estudo.

 

- E esses investigadores respeitados estão a ficar aborrecidos contigo?

 

- Ou eles ou alguém que não eles. Esta manhã deixaram-me um sobrescrito com o resultado de uma análise à urina com o meu número. Parece autêntico, mas não é. O resultado é positivo em relação aos narcóticos. Eu hoje não entreguei urina. Minutos depois recebi o telefonema de um homem a avisar-me que, se não parasse de arranjar problemas, para a próxima o resultado seria entregue ao meu patrão.

 

-Então que tipo de conselho queres que eu te dê? -Quero que me digas que voltei a exercer medicina ao fim de dezoito meses, que toda esta coisa do Vasclear é apenas fruto da minha imaginação fértil, que não tenho provas concretas de que haja problemas com o medicamento, que a FDA não está minimamente interessada no que eu descobri até agora e que devia meter-me na minha vida.

 

Sharpe soltou um anel de fumo.

 

- Por que motivo achas que te ameaçaram com aquela análise falsa à urina?

 

-Não tenho a certeza. Ou porque têm medo que eu descubra algum segredo ou porque estão a ser cuidadosos a poucos dias da aprovação do medicamento. Se vier a descobrir-se que eles sabiam algo sobre o Vasclear da fase um e não o comunicaram à FDA, mesmo que -posteriormente tenham solucionado o problema, a FDA terá motivos mais do que suficientes para adiar indefinidamente a aprovação.

 

- Mesmo que o medicamento tenha funcionado bem desde essa altura?

 

-Acho que sim. E há muito dinheiro em jogo.

 

- Bom, então o melhor que tens a esperar é que adiem a comercialização de um medicamento que parece funcionar às mil maravilhas e pode salvar milhares de vidas. E se tentares contribuir para isso podes estar a pôr em risco a tua carreira de médico.

 

Outro anel de fumo.

 

-Quando pões as coisas dessa forma, isto parece uma idiotice - observou Brian.

 

- Parece a história de um tipo que gostava muito do pai e se sente culpado, zangado e frustrado com a morte dele. Isso não é idiotice.

 

- Então achas que eu devia esquecer o assunto? -Nem por isso...

 

Brian hesitou.

 

-O que queres dizer?

 

- Bem, tu pediste-me que investigasse a Newbury Pharmaceuticals, não foi?

 

- Pedi-te isso esta manhã. Já descobriste alguma coisa?

- Talvez. Em primeiro lugar, a empresa é privada e parece imaculada. - Tirou do bolso do casaco um papel. - A secretaria de Estado não pede muitas informações às empresas privadas, e é precisamente isso que transparece quando se vê a ficha da Newbury. - Entregou a Brian uma lista com quatro nomes. - Um director executivo, um tesoureiro, um secretário, " nome do conselho de administração. O mínimo que se pede é isso e uma declaração de objectivos. Nenhum destes nomes me diz nada, e duvido que a ti digam alguma coisa.

 

- Não, realmente não.

 

- Lembras-te de que te disse que nos Alcoólicos Anónimos, quando queres saber ou fazer alguma coisa, há sempre alguém que pode ajudar? Bem, lembrei-me de que, se há alguma coisa errada com esta companhia farmacêutica, o Cedric L. deve saber. Conhece-lo? Deve ser o único chinês do mundo chamado Cedric. Pertence a um grupo da Baixa que se reúne nas sextas à noite. Também pertence a um clube de Chinatown onde param alguns dos gangs mais perigosos da cidade.

 

- E tu tão preocupado por eu ter roubado algumas ampolas do medicamento...

 

- O Cedric está em recuperação há vinte anos - retorquiu Freeman -, talvez mais. Quando se chega a esse ponto, podem fazer-se escolhas informadas. Bom liguei ao Cedric e descobri que ele sabe muitas coisas a respeito da Newbury Pharmaceuticals,

 

- Tais como?...

 

- Que nos últimos anos tem sido uma fachada para branqueamento de dinheiro.

 

- Dinheiro de droga? -Há mais algum? -A máfia?

 

- Não aquela em que estás a pensar. Segundo o Cedric, os russos são os donos do laboratório. Já o eram ainda antes da queda do Muro de Berlim.

 

Brian olhou para a lista com os quatro nomes. -Então quem são estas pessoas?

 

-Não sei. Pessoas que mudaram os nomes. Pessoas que recebem dinheiro para ter o nome em documentos. Provavelmente qualquer coisa assim. O laboratório produz vitaminas. -Eu sei.

 

-Bem, o Cedric disse que o que consta é que eles compram os ingredientes para as vitaminas algures na Rússia e depois vendem o produto acabado aqui. Em seguida parece que o dinheiro vai para lá em notas de cinco, dez e vinte e regressa na forma de notas e de transferências bancárias.

 

- Agora produzem o Vasclear?

 

- Parece que sim. E se o medicamento vale tanto como dizem os jornais, não vão ter de continuar a mexer em vitaminas ou em droga muito mais tempo.

 

Brian assobiou baixinho.

 

- Freeman, o tipo que telefonou esta manhã a ameaçar-me tinha sotaque russo. Tenho a certeza.

 

-Nesse caso, meu amigo, eu diria que estás enterrado na merda. Quando se irrita estes tipos, eles não nos batem na mão com uma régua. Admira-me que só te tenham ameaçado com uma análise à urina.

 

Brian estava atordoado e pôs-se a observar dois rapazes que tinham começado a atirar um ao outro uma bola de futebol.

- Tu confias nesse Cedric? - perguntou.

 

- Ele é um gangster. O que queres que te diga? Mas sim, acredito nele. Que motivo teria para me mentir?

 

- Eu arrisquei a vida do meu pai por causa de um medicamento milagroso que é controlado pela máfia russa?

 

- Parece que sim. Mas isso não altera os efeitos do medicamento.

 

- Pois não. Setenta e cinco por cento em duzentos casos. Freeman, o que devo fazer?

 

- Não bebas, não ingiras drogas, vai às reuniões e pede ajuda.

 

- Isso são conselhos genéricos.

 

- Mas os ideais para esta ou para outra situação. Brian, investi em ti mais de um ano. Podes ter razão a respeito de as pessoas da Newbury andarem a encobrir qualquer coisa, mas também podes não ter. Neste momento, estou-me nas tintas. Só não quero que te prejudiques.

 

- Então estás a dizer que eu devia fazer o que eles querem, ou seja, ficar de braços cruzados?

 

- Talvez.

 

- Mas o problema, Freeman, é que eu ainda não fiz nada... pelo menos nada que mereça este tipo de reacção. Aproveitaram o facto de estar em recuperação para me atingirem, ameaçando destruir a minha carreira, e a única coisa que fiz foi consultar umas fichas de doentes.

 

-Acho que eles estão a tentar matar uma formiga com uma caçadeira.

 

- Porquê? - Abanando a cabeça, Brian levantou-se e começou a atravessar o campo. Sharpe seguiu-o, a sacudir a cinza do cachimbo.

 

-Porquê? - repetiu Brian.

 

Aproximara-se dos adolescentes. Brian bateu palmas para que lhe passassem a bola e um deles obedeceu-lhe.

 

- Afasta-te - disse Brian, fazendo sinal ao rapaz para que fosse para longe. - Mais - gritou. - Mais ainda.

 

- Ora, vá lá... - ripostou o rapaz.

- Como queiras!

 

Brian transferiu para o lançamento a confusão, as dúvidas e o medo que sentia. Embora o rapaz estivesse a uns quarenta metros, a espiral perfeita continuava a subir quando passou pela cabeça dele. A bola aterrou a mais de sessenta metros de Brian, bateu no chão e desapareceu num maciço de arbustos.

 

-Não sou capaz de esquecer o assunto, Freeman! - exclamou. - Não sou mesmo!

 

Fulbrook, no estado de Nova Yorque, era uma pequena e bonita vila no sopé das montanhas CatskiII. A viagem de Boston até lá demorou três horas e meia através da folhagem de Outono inebriante. Brian fez a viagem no Le Baron com a capota baixa, o que normalmente o ajudava a superar quaisquer tumultos internos, porém, naquele dia nada seria capaz de o distrair

- nada, excepto algumas respostas.

 

Richard Vitorelli parecera tão desconfiado e relutante em falar com ele como a mulher. Por fim, concordara em encontrar-se pessoalmente com Brian, desde que ele fosse devidamente identificado, no consultório do médico de família, que era ao mesmo tempo o médico legista do município. Brian anuiu com todo o gosto.

 

Após quase trinta e seis horas a trabalhar, tinha o dia de folga. Depois de falar com Richard Vitorelli e de este lhe explicar como havia de chegar ao consultório do Dr. Samuel Purefroy, telefonara a Teri de casa. O som da sua voz fizera tudo o resto parecer menos importante.

 

- Ia agora mesmo ligar-te - disse ela.

- Porquê?

 

- Não sei. Para fazermos sexo pelo telefone, talvez... Tenho muitas saudades tuas, doutor.

 

-E eu tuas, doutora. Podes cá vir antes de sábado? -Não estou a ver jeito disso. Ainda há uma pilha enorme de coisas aqui para analisar. Eu e o doutor Baird vamos para aí no sábado bem cedo no avião a jacto do Governo.

 

Brian já decidira que sem provas concretas não iria partilhar a informação que Freeman obtivera através de Cedric L. Era provável que a fda conhecesse bem os representantes e principais investigadores da Newbury Pharmaceuticals e que eles estivessem acima de qualquer suspeita. Fazer acusações não fundamentadas só iria diminuir a sua própria credibilidade.

 

-Descobriste alguma coisa perturbante acerca do Vasclear? - perguntou a Teri.

 

- Nenhuma, a não ser aquilo que me disseste sobre os dois casos de insuficiência cardíaca que podem ter sido SP.

 

-E o doutor Baird não viu nada de especial nisso?

 

- Não. Lembra-te, os doentes da fase um já estavam bastante mal. É natural que alguns deles tenham morrido devido a problemas cardíacos.

 

-E em relação à saturação pulmonar?

 

- Brian, não há provas de que algum desses doentes tenha sofrido disso e só um deles morreu de insuficiência cardíaca. Disseste que o outro homem foi morto durante um assalto.

 

-E foi. Quis ir ao Instituto de Medicina Legal ver se na autópsia detectaram SP, mas ainda não tive tempo. E há outra doente da fase um que quero investigar uma senhora chamada Vitorelli. Já morreu, tal como os outros dois. Creio que devido a problemas cardíacos, mas quero saber se também teve SP. Amanhã estou de folga e não tenho nada para fazer, por isso pensei em baixar a capota, ir a casa do filho dela, no estado de Nova Yorque, e falar com ele e com o médico legista.

 

-Não vou tentar dissuadir-te, Brian, no entanto, digo-te que achamos que o medicamento é seguro e eficaz.

 

- Mas afirmaste que iam continuar a investigar o Vasclear até ao último minuto.

 

- E é isso que vai acontecer. Se descobrires alguma coisa concreta, seja o que for, o doutor Baird irá analisá-la. O presidente disse-lhe que a cerimónia pode ser cancelada no último minuto.

 

- Nesse caso, vou até Fulbrook. Tens a certeza de que não queres vir cá ter logo à noite e fazer a viagem comigo amanhã? Deve levar cerca de quatro horas e tenho uma fantasia que mete carros...

 

- Oh, essa fantasia não! Todos os homens a têm.

 

- Al sim? Bem, acontece que a minha mete doce de laranja, uma tábua Ouija e o meu estojo de medicina. Para que saibas o que estás a perder..

 

Isso é bastante intrigante. Brian, nós achamos que fizemos tudo aquilo que podíamos. Não precisas de te arriscar mais.

 

- Devias ter pensado nisso antes de me convidares a ir ao teu quarto no hotel. Agora estou obcecado.

 

- Nesse caso, posso ficar em dívida contigo em relação à tábua Ouija e ao doce de laranja?

 

- Com certeza. Ligo-te quando voltar. - De súbito, Brian ouviu um clique na linha. - Tens alguma chamada em espera? perguntou.

 

-Não, porquê?

 

- Ouvi agora um som... um clique.

 

- Estou sempre a ouvir coisas estranhas na linha telefónica, mas desta vez não dei por nada. Estás bem?

 

- Hum? Oh!, claro. Apenas cansado e tenso por causa do trabalho. E tenho saudades do meu pai.

 

- Creio que esses sentimentos se atenuam, mas não chegam a desaparecer.

 

- Pois... Bom, tenho de ir à loja comprar doce de laranja.

- Tenho saudades tuas, Brian.

 

O Dr. Samuel Purefroy, o médico legista do município de Greene, era um homem gordo com ar jovial. O seu consultório ficava num bangalow azul-celeste no sopé de uma colina repleta de cores outonais. No relvado da frente encontrava-se um velho buggy recém-pintado, que fazia lembrar os dias mais simples e mais agradáveis da medicina.

 

Brian chegou quinze minutos antes da hora marcada e Purefroy aproveitou para preparar um bule de chá e o admoestar delicadamente sobre a medicina, o White Memorial Hospital e o Instituto do Coração.

 

-Nunca tinha encontrado uma cena como a que se me deparou no quarto daquela mulher em casa do Ricky - disse, por fim, o médico idoso, revelando assim que aceitava a presença de Brian. - Havia fluido do edema pulmonar tingido de sangue por todo o lado. Meu Deus, a pobre mulher deve ter sofrido bastante antes do fim. Afogou-se, pura e simplesmente. Fizemos o que podíamos por ela, mas não havia qualquer possibilidade de a salvar.

 

- Ela ainda estava viva quando o senhor lá chegou?

 

- Sim, mas por pouco tempo. Era domingo. A minha casa fica a pouco menos de dois quilómetros da dos Vitorelli e eu estava na igreja. Cheguei lá ao mesmo tempo que a ambulância., Ainda a entubámos e levámo-la para o nosso hospital. É pequeno, mas muito bom.

 

-Aposto que sim - assentiu Brian.

 

- Mas não chegou a sair das Urgências. Com aquele fluido todo no peito, não conseguimos oxigenar-lhe o sangue.

 

- Pensou em autopsiá-la?

 

-Não. Ela já vinha com problemas cardíacos do White Memorial. A medicação que estava a tomar indicava-o. Achei que não valia a pena fazer sofrer ainda mais a família com uma autópsia. E o que o traz de Boston aqui dois anos depois de aquilo ter acontecido?

 

- Místress Vitorelli foi uma das primeiras doentes a ser tratada com o Vasclear.

 

-Ah!, o medicamento-maravílha. Já tenho meia dúzia de candidatos à espera dele. Ouvi dizer que ia ser posto à venda este fim-de-semana. É verdade?

 

-Acho que sim. Doutor Purefroy...

- Sam. Trate-me por Sam, por favor.

 

-... Sam, descobri que alguns dos doentes que fizeram parte dos primeiros estudos do Vasclear sofriam de uma coisa que parecia ser saturação pulmonar. Acha que Mistress Vitorelli pode ter tido esse problema?

 

- Saturação pulmonar.. hum. Acho que nunca vi um caso de SP. Ou, se vi, não o diagnostiquei. Ela tinha os tornozelos muito inchados, do mais inchado que já vi. Isso é resultante da saturação pulmonar, não é?

 

- Absolutamente, embora a SP não seja a única causa. Nesse momento, Richard Vitorelli entrou. Possuía o aspecto e o cheiro de um homem que passava o dia no campo. Tinha ombros largos, cabelo preto, espesso e encaracolado e um rosto bondoso. Estendeu a medo a mão calosa a Brian; depois virou-se para Purefroy.

 

- Este tipo é sério? - perguntou, com uma expressão que indicava que não confiava facilmente nos outros.

 

- Oh, é sério, sim - respondeu Purefroy. - Pertence ao White Memorial Hospital, tal como tinha dito. Anda a investigar o Vasclear, aquele medicamento que a tua mãe tomou. -E o que tinha ele?

 

- Bem - interveio Brian -, daqui a dois dias irá ser tomado por pessoas em todo o mundo.

 

- Incluindo uma mão-cheia delas aqui em Fulbrook - comentou Purefroy.

 

- Estou a investigar as pessoas que tomaram o Vasclear e morreram. A sua mãe fazia parte da minha lista.

 

Vitorelli tornou a olhar para Purefroy, que assentiu, indicando-lhe que podia falar à vontade.

 

- A minha mãe foi sempre saudável até o meu pai ter morrido de um ataque cardíaco, há quatro anos - começou. Então, poucos meses depois da morte dele, ela começou a ter dores no peito.

 

- Foi quando iniciou o tratamento com o Vasclear - disse Brian.

 

Sim. Tomou-o durante quase um ano - assentiu Vitorelli. A princípio, parecia que estava a fazer efeito. As dores no peito quase desapareceram e ela arrebitou. Depois começou novamente a queixar-se. Quando veio para cá e lhe vi as pernas, fiquei assustado. Ia ligar ao doutor Purefroy, mas era domingo e... achei que podia esperar até ao dia seguinte.

 

Os seus olhos encheram-se de lágrimas e limpou-as com as costas das mãos.

 

-A culpa não foi sua, Ricky - disse Brian. - Se a sua mãe tinha o problema pulmonar que eu julgo, ninguém podia tê-la salvo... nem eu, nem o Sam, ninguém.

 

-Ela era uma mulher muito boa - afirmou Ricky. Quer saber mais alguma coisa? Senão, vou voltar para o meu tractor.

 

Não fez perguntas sobre a possível ligação entre a morte da mãe e o Vasclear, não mostrou interesse em processar o laboratório. Richard Vitorelli não fora educado para pensar "processa primeiro, pergunta depois". Brian prometeu a si próprio que, se o Vasclear prejudicara Sylvia Vitorelli e a Newbury Pharmaceuticals tivera conhecimento disso ou tentara encobrir o caso, ele voltaria a visitar o filho dela.

 

Daquela vez Ricky apertou a mão de Brian com mais firmeza. Brian levantou-se para partir, mas recordou-se de outra coisa.

 

- Sam, lembrei-me agora - disse. - Fizeram alguma análise ao sangue de Mistress Vitorelli?

 

-Não faço ideia. Calculo que tenhamos enviado uma amostra de sangue, mas depois ela... ela não conseguiu safar-se.

- Será que podia descobrir isso? O que eu quero saber é o número total de leucócitos e a percentagem de eosinófilos.

- Se lá estiver, não vejo porque não. Ricky, sei que já passaram dois anos, mas por acaso lembras-te da data exacta da morte da tua mãe?

 

- Faz dois anos este mês. Cinco de Outubro.

 

Sam Purefroy ligou para o hospital, falou para o laboratório, depois desligou. Só esperaram dois minutos pelos resultados, que chegaram através de uma impressora que se encontrava a um canto do consultório.

 

- Bem - disse ele, olhando para a folha -, os eosinófilos estão altos, mas não muito. Sete por cento de um total de vinte mil leucócitos.

 

Estendeu-lhe a folha. Brian estudou os números, bastante animado. Não se deu ao trabalho de referir que a tensão e talvez até a desidratação tinham elevado artificialmente a contagem de leucócitos de Sylvia. Se se encontrasse nos valores normais, entre cinco mil e dez mil, a contagem de eosinófilos estaria entre quinze e vinte por cento - demasiado alta.

 

- Posso ficar com isto? - perguntou. -Claro - respondeu o médico.

 

Três doentes da fase um, dois mortos devido a insuficiência cardíaca, o terceiro "com" insuficiência cardíaca e todos com eosinófilos elevados. Parecia mesmo que houvera uma reacção ao medicamento.

 

Brian já se encontrava a um quarto de hora de Fulbrook e seguia devagar pela estrada de duas faixas deserta, ladeada por árvores de folhas vermelhas, cor de laranja e douradas. Distraído com o quebra-cabeças do Vasclear e com a conversa com Sam Purefroy e Ricky Vitorelli, não se apercebeu do carro castanho no espelho retrovisor até a luz vermelha no tabliê começar a brilhar.

 

Num gesto reflexo, olhou para o conta-quilómetros. Setenta. Talvez não tivesse visto algum sinal microscópico a obrigar a circulação a trinta e tivesse caído na armadilha.

 

Aborrecido, encostou na berma estreita. O carro parou atrás dele e a luz no tabliê apagou-se. Havia dois homens no banco da frente, ambos de óculos escuros. O do banco do passageiro saiu. Tinha pouco menos de um metro e oitenta e estava em boa forma, mas movia-se com a elegância de um atleta. Vestia calças e uma camisa com o colarinho desapertado. Também tinha um coldre sob o braço esquerdo.

 

Deu a volta até ao lado de Brian e mostrou-lhe o crachá.

- Carta de condução e documentos do carro, por favor disse, num tom aborrecido.

 

- Qual é o problema? - perguntou Brian, remexendo no porta-luvas à procura dos documentos do carro, entregando-os depois juntamente com a carta.

 

- Excesso de velocidade - murmurou o agente. Virou-se e foi ter com o colega. Um minuto depois regressou.

- Importa-se de sair do carro, senhor doutor?

 

"Senhor doutor? Como é que... " Então lembrou-se de que, quando renovara a carta, depois de ter acabado o curso, insistira em colocar o "DR" antes do nome. Menos um ponto por ser tão arrogante. A multa que iria ter de pagar seria provavelmente o dobro da normal. Da próxima vez que renovasse a carta...

 

- Não acho que viesse com excesso de velocidade - disse ele ao abrir a porta do carro.

 

O agente olhou para o colega, que tinha a carta de Brian e os documentos, e assentiu. O homem abriu a porta e saiu do automóvel. Ao contrário do primeiro agente, era fisicamente imponente - um metro e noventa, cintura estreita, ombros largos.

 

Brian não precisou de muito tempo para se recordar de onde já vira aquela cara. As maçãs do rosto salientes e a cara cheia de cicatrizes de borbulhas não eram fáceis de esquecer.

 

A carreira de futebolista de Brian e a maior parte do tempo que passara a fazer cateterísmos haviam sido guiadas por uma regra: "Avalia! Reage!" Agora, a quase trezentos quilómetros de Boston, ao observar o homem que vira na cave do White Memorial a sair do pretenso carro da Polícia, a sua avaliação demorou menos de um minuto. Ia magoar-se a sério... ou ia morrer.

 

Durante os três ou quatro minutos que haviam decorrido desde que o tinham mandado encostar não passara qualquer carro. E, mesmo que algum passasse, a possibilidade de o condutor parar ou de perceber que estava a acontecer alguma coisa de errado era remota. Daí a poucos segundos, estaria magoado dentro do carro ou no porta-bagagens, rumo a um local onde iria ser torturado com perguntas sobre o Vasclear - acerca do que tinha descoberto e a quem revelara o que sabia. Não havia nada de animador na ideia. Partindo do princípio de que Cedric L. estava certo quanto ao controlo da Newbury pela máfia russa, aqueles dois indivíduos deviam ser assassinos profissionais.

 

Nada nos modos do homem corpulento sugeria que percebera que fora reconhecido ou que se lembrava dos quinze segundos em que se haviam cruzado na cantina da cave, mas fechara a porta do carro e dirigia-se para Brian. Este sabia que seria imediatamente morto se tentasse fugir. Contudo, não fazer nada, ficar à mercê daqueles dois era uma opção ainda mais aterradora. Era quase quinze centímetros mais alto que o homem que se encontrava a três metros dele. Se fizesse alguma coisa, tinha de ser naquele momento.

 

Levantou o pé esquerdo e atingiu o outro nas virilhas com toda a força. Ainda se sentiu tentado a agredi-lo quando ele caiu de joelhos, mas, em vez disso, virou-se e desatou a correr. Ouviu um disparo, e depois outro, seguidos do som de uma bala a enterrar-se no chão, mesmo à sua frente.

 

Brian ziguezagueou o mais que pôde, amaldiçoando-se por não ter calçado os ténis depois da conversa com Purefiroy. Outro tiro, desta vez acompanhado por uma dor aguda no músculo deltóide. O que é que acontecera? Era aquilo que se sentia quando se levava um tiro?

 

Começara a correr havia cerca de quinze ou vinte segundos, mas já estava a ficar com falta de ar. Um metro e oitenta e sete, noventa e sete quilos e a abrandar - estava prestes a transformar-se num excelente alvo, Ficar na estrada seria suicídio. Havia uma pequena abertura mais à frente nas árvores do lado direito. Simulou que ia para a esquerda, depois dirigiu-se para as árvores, olhando para trás o tempo suficiente para ver onde vinham os seus perseguidores. O da arma estava perto, talvez a vinte metros. Atrás dele, o mais baixo tentava alcançá-los, um pouco cambaleante. Também nenhum deles calçava ténis.

 

Desviando os ramos com os braços, Brian passou por entre árvores novas e arbustos, tentando distanciar-se um pouco mais dos dois homens. Um deles gritou ao outro qualquer coisa numa língua que não era inglês. Seria russo? Ouviu-se outro disparo, mas nenhum barulho do iinpacte. Brian, tentando ignorar a dor que sentia de lado, tropeçou e escorregou por uma ravina íngreme coberta de arbustos. Esfolado, arranhado e a sangrar das costas das duas mãos, conseguiu levantar-se e arriscou-se a olhar para trás. Ouvia os dois homens, mas não os via. De repente, fez-se silêncio. Eles também o tinham perdido de vista e estavam à espera de ouvir um som denunciador.

 

Brian acocorou-se, combatendo o impulso de inspirar com sofreguidão. Já passava das cinco e o crepúsculo era seu aliado e inimigo dos seus perseguidores. Se ao menos pudesse encontrar um sítio onde se esconder.

 

Pôs-se de gatas e, devagar e em silêncio, começou a avançar ao longo da vala ao fundo da ravina. De repente, acima dele e um pouco atrás, um dos homens gritou. Era o mais baixo, agarrado a uma árvore no cimo da ravína a cerca de trinta metros, visível através de um corredor perfeito na folhagem. A única palavra que Brian conseguiu perceber com clareza foi "Leon", o nome do homem mais alto.

 

Quando o assassino estendeu a mão para a arma, Brian levantou-se e desatou de novo a correr, desta vez uma corrida de obstáculos, transpondo ramos caídos e atravessando um riacho estreito. Escorregou nas rochas viscosas e por pouco não perdia o equilíbrio. Um tiro. Depois outro. Brian sabia que as árvores e as sombras o tornavam agora um alvo mais difícil, mas o joelho começava a preocupá-lo. Enquanto corria na estrada, sem guinadas, sem movimentos de torção, o joelho parecia aguentar-se, mas agora, a correr no chão molhado e irregular, coberto de folhas, sobre altos, rochas e ramos, percebeu que o azar estava quase a bater-lhe à porta.

 

Enquanto corria não conseguiu deixar de perguntar-se como é que os dois homens teriam sabido que ele iria estar em Fulbrook. Talvez o tivessem seguido desde Reading. Enquanto viajava rodeado pelas magníficas cores do Outono, perdido nos seus pensamentos, não prestara atenção a nada, mas não se lembrava de ter visto o carro deles, nem sequer na estrada da montanha. Então recordou-se do clique estranho na linha telefónica quando falara com Teri. Chegara a mencionar-lhe o facto, tal como lhe falara da sua viagem a Fulbrook. O telefone dele estava sob escuta. Tinha de ser isso! Não o haviam seguido até ao consultório de Purefroy. Já estavam lá à espera dele.

 

Pressentiu que se distanciava dos dois homens. Quando se embrenhou mais na floresta, surgiram grandes penhascos de granito e afloramentos, oferecendo-lhe ainda milhor protecção. Ofegante, parou, encostou-se a um rochedo com dez metros de altura e pôs-se à escuta. Ouviu um dos homens atrás de si, o outro um pouco mais para a direita, ambos mais próximos do que esperara. Ficar ali e tentar passar despercebido ao pé do rochedo não era lá muito boa ideia. Nunca fora o seu género ficar quieto. Decidiu continuar a correr.

 

Levou mais alguns segundos a perceber onde se encontravam os homens e resolveu subir a colina à sua esquerda, afastando-se de, pelo menos, um deles. Virou-se, mas quando o seu peso caiu sobre a perna direita, o joelho estalou. Sentiu uma dor a subir-lhe pela anca. Porém, parte da dor desapareceu rapidamente. Deu um passo a medo. Sentiu um certo desconforto, mas o joelho suportou facilmente o peso. Uma ligeira entorse - que ainda o faria tornar-se mais lento. E agora?

 

O barulho dos homens atrás dele parecia mais próximo. Brian perguntou-se por que motivo não tinha dado ouvidos a Phil e esquecido o 'assunto. Estava prestes a ser torturado e provavelmente morto, e para quê? Mesmo que o tivessem ignorado por completo, ele não teria descoberto nada suficientemente importante para interessar Teri e o seu chefe. Aparentemente, porém, os russos estavam determinados.

 

Um ramo estalou não muito longe. "Está quase no fim", pensou Brian. Dois assassinos profissionais, duas armas contra um médico desarmado com um joelho aleijado. Pensou em Caitlin e em Becky. Aperceber-se de que podia não voltar a vê-las e que elas iriam sofrer muito se algo lhe acontecesse forçou-o a agir. Correr parecia fora de questão, mas aos seus pés havia uma grande pedra. Se conseguisse soltá-la o suficiente para lhe pegar e içá-la, para o cimo do penhasco...

 

Sem tempo para analisar as acções em pormenor, pôs os dedos debaixo da pedra, levantou-a da lama e encheu o buraco com folhas e terra. A pedra devia pesar uns dez quilos, mas Brian conseguiu equilibrá-la sob um braço e içou-se para um lugar onde podia ficar em vantagem. Deu um passo com a rocha aninhada debaixo do braço como se fosse uma bola gigante pré-histórica. Depois teve de pousá-la, para não perder o equilíbrio. O penhasco não era muito íngreme, pelo que pôde ir empurrando a rocha à sua frente enquanto subia.

 

Então, quando se preparava para descansar mais um pouco, o homem perto de si voltou a chamar Leon. Não devia estar a mais de doze metros. O homem corpulento com o rosto cheio de cicatrizes respondeu com uma palavra irada algures à esquerda de Brian, provavelmente mandand "o-o calar. Estavam ambos a aproximar-se. Brian pressentiu que daí a pouco estaria tudo terminado. Usar a pedra como arma fora uma ideia estúpida. Agora, praticamente encurralado, só lhe restava continuar a subir

 

Sentiu fortes dores no joelho quando se obrigou a seguir acocorado até ao cimo do enorme penhasco. Quando lá chegou, deitou-se sobre a pedra cinzenta fresca e macia e ficou à escuta. Se o homem aparecesse por trás do penhasco, estava liquidado. Se passasse por baixo, pelo trilho natural que ele percorrera, talvez conseguisse safar-se. Um ramo estalou. Depois viu uns arbustos mexerem-se à sua direita. Empurrou a pedra mais uns centímetros para a frente. Se ela acertasse directamente no homem podia partir-lhe o crânio. Só de pensar na possibilidade de matar alguém, mesmo alguém que queria matá-lo, fê-lo hesitar. Mas se tivesse de ser, era.

 

As árvores voltaram a mexer-se. Desta vez, com a cara encostada ao penhasco, Brian viu a parte de cima da cabeça do homem mais baixo. Devia estar a cerca de dez metros e movia-se silenciosamente. Se não se virasse e começasse a contornar o penhasco, iria passar directamente por baixo dele. Pouco depois, o assassino saiu de entre as árvores com a arma, um re vólver com silenciador, em riste. "Cinco metros... três... " Brian teria de se pôr de joelhos para poder dar ímpeto à pedra. Teria de acontecer tudo muito depressa e não poderia haver repetições nem uma segunda tentativa. "Dois metros... mais um passo... só mais um passo e... agora!" Brian pôs-se de joelhos, levantou a pedra até junto da cara e atirou-a para baixo com toda a força. O homem tinha começado a voltar-se quando a pedra o atingiu; ouviu-se um baque quando ela lhe acertou entre a orelha e um dos olhos. Caiu com um gemido e a pedra rolou para longe com barulho. Leon ficou imediatamente alerta.

 

À frente de Brian, os arbustos começaram a agitar-se. Desceu do penhasco e coxeou na direcção oposta, embrenhando-se na floresta. Avançou durante quase cinco minutos sem saber se ainda continuava a ser perseguido. Por fim, com uma dor de lado na barriga a fazer concorrência à dor do joelho, enfiou-se debaixo de umas raízes salientes sobre o leito seco de um riacho, tapou-se com paus e folhas e esperou que a noite caísse.

 

Freeman vivia num agradável apartamento de quatro assoalhadas na cave de um dos edifícios Roxbury, por cuja manutenção era responsável. Encontrava-se a ver o noticiário das onze com a mulher, com quem casara havia três anos, quando o telefone tocou. Como estava sempre de prevenção e era orientador de meia dúzia de pessoas, já se habituara aos telefonemas tardios.

 

Freeman, graças a Deus que estás em casa! O que se passa, doutor?

 

Tudo. Freeman, podes vir buscar-me?

- Claro.

 

- Estou numa cabina perto de uma bomba de gasolina.

- Onde é a bomba de gasolina?

 

- Nova Yorque.

 

Passava pouco das sete da manhã quando Freeman entrou com a carrinha Chevrolet na pequena garagem sem janelas que era também a sua oficina. Brian acordou de um sono pesado e pousou a mão ferida sobre a palavra "sorte" tatuada nos nós dos dedos do amigo.

 

- Obrigado - disse, com voz rouca. - Tirando a minha família, acho que nunca houve ninguém na minha vida que tivesse feito o que acabaste de fazer por mim.

 

- Ainda bem que conseguiste dormir um pouco. Como te sentes?

 

- Com mais dores do que quando jogava futebol. E amanhã ainda vou estar pior.

 

- Um duche quente, alguns ovos e umas batatas fritas caseiras da Marguerite devem ajudar-te a melhorar. E vais ter de te livrar dessa roupa. Tenho para aqui um fato de treino que um dos meus amigos dos Narcóticos Anónimos cá deixou. Deve servir-te.

 

Brian desceu a custo da carrinha e pousou a perna com o joelho magoado no chão. Não sentiu muitas dores. Depois fez sinal a Freeman para que parasse.

 

- Ainda estou a tentar ver se percebo quando é que puseram o meu telefone sob escuta e se há alguma possibilidade de saberem da tua existência. Tanto quanto me recordo, os problemas começaram quando recebi a análise ao sangue do Bill Elovitz. Não deviam estar muito preocupados comigo até essa altura, por isso não há qualquer possibilidade de estarem a vigiar a tua casa.

 

Freeman sorriu-lhe no escuro.

 

- Para bem deles, espero que não - respondeu.

 

Brian lembrou-se de Marguerite lhe ter falado das condecorações que Freeman recebera no Vietname. O seu orientador nunca falava muito de si próprio.

 

- Não quero que te envolvas nisto mais do que já te envolveste - disse.

 

- Oooh!... - fez Sharpe. - De repente, esquecemo-nos que depois de vinte anos de recuperação o nosso orientador deve ser capaz de tomar as suas decisões a respeito dessas coisas. Não te preocupes, doutor, não gosto de me prejudicar mais do que o necessário, mas também não gosto de ver os meus amigos em maus lençóis. Bem, agora vamos lá para dentro limpar-te e dar-te de comer. Depois podemos falar do que fazer a seguir.

 

Brian ficara na floresta ao pé de Fulbrook, escondido sob as raízes, durante quase uma hora, até achar que já estava demasiado escuro para que alguém ainda andasse à sua procura. O seu sentido de orientação não era grande coisa, mas, ao fim de quarenta e cinco minutos a vaguear no escuro, pelo meio das árvores, ouviu um carro. Pouco depois, chegava à estrada, que parecia ser a mesma onde os russos o tinham mandado parar. Um agricultor numa carrinha levou-o até à esquadra da Polícia da cidade mais próxima de Fulbrook.

 

Os agentes não tinham conhecimento de qualquer carro castanho nem de um LeBaron vermelho parados na Estrada 213. Um carro-patrulha passara por lá havia uma hora e o condutor não vira veículos parados na berma. O facto de os dois carros terem desaparecido devia significar que o alvo da pedra que Brian atirara sobrevivera e não estava muito ferido. Também significava que o LeBaron devia encontrar-se algures no fundo de uma pedreira inundada. Brian quase chorou ao imaginar o carro a afumdar-se.

 

A teoria do agente era que os dois homens deviam ser ladrões de carros profissionais, talvez de Nova Yorque, que tinham ido tentar a sua sorte com os pacóvios. Quando se haviam apercebido de que Brian era um dos espertinhos, tinham-no perseguido para se divertirem um bocado, sem tencionar magoá-lo. Brian não tentou contrariar aquela hipótese com a sua teoria, que, embora mais provável, pareceria muito mais rebuscada. Preencheu os formulários o mais depressa que pôde e foi até à cabina da rua telefonar a Freeman.

 

Marguerite Sharpe era uma mulher do Haiti com um sorriso sensato e inteligência prática. Freeman dizia que ela era a recompensa não merecida pela sua recuperação. E como passara muito tempo em casa deles durante os meses após a sua saída de Fairweather, Brian também a considerava uma recompensa não merecida pela sua recuperação. Marguerite era orientadora num centro de acolhimento para mulheres e era também a melhor cozinheira que ele conhecia.

 

Mesmo através do vapor do duche Brian conseguiu sentir o aroma de salsichas e cebola grelhadas. Com cuidado, limpou a terra e o sangue seco dos golpes da cara, das mãos e dos braços. Tinha as calças rasgadas nos joelhos, embora não se lembrasse de quando é que isso acontecera, e crostas nos joelhos. Tinha ainda um golpe fundo no braço direito, provavelmente provocado por uma bala.

 

"Uma bala." Brian recordou-se de como ficara eufórico quando Ernest Pickard o contratara para o trabalho no Instituto do Coração. Agora estava a limpar o ferimento de uma bala, a lamentar a perda do único bem que lhe interessava e a perguntar-se o que iria fazer da sua vida assim que a Comissão de Registo e Disciplina em Medicina fosse informada de que o teste à sua urina dera positivo e ele recorrera de novo às drogas.

 

Haveria alguma saída? Haveria forma de parar, de reconhecer perante si próprio e os seus perseguidores que se excedera e estava disposto a esquecer toda a questão do Vasclear? Com quem poderia negociar? Art Weber? Pickard? Jessup;?

 

Limpou-se à toalha e vestiu o fato de treino cinzento que Freeman lhe deixara. A outra pessoa orientada por Sharpe nos Narcóticos Anónimos vestia o xxL; se não era um defesa dos Patriots, era, pelo menos, candidato. Brian instalou-se à frente de Freeman e bebericou com gratidão de uma caneca com café forte e perfumado. Marguerite colocou no centro da mesa um jarro de sumo de laranja e uma enorme travessa com ovos, batatas panadas e salsichas e juntou-se a eles. Durante alguns minutos, ninguém falou.

 

- Ainda bem que não ficaste muito ferido, Brian - disse,, por fim, Marguerite no seu melódico sotaque insular. O Freeman contou-me por alto o que está a acontecer. Deve ser bastante assustador.

 

-E confuso - acrescentou Brian. - Nem sequer sei o que está realmente a acontecer. Mesmo depois disto tudo, con tinuo sem saber.

 

- O Freeman diz que a máfia russa está envolvida. Isso é mau, muito mau.

 

- Mas, mesmo que esteja, o medicamento deles tem potencial para salvar centenas de milhares de vidas. Isso já foi provado. Tenho estado a tentar descobrir o que é que fizeram de errado, ou o que tencionam fazer, e a única coisa que me ocorre é que estão a planear reter o Vasclear a troco de um resgate, como os vilões nos filmes do James Bond.

 

- Ah!, os vilões - exclamou Freeman com um sotaque teatral. - Apresente-nos, por favor, o seu relatório sobre o projecto das ogivas nucleares, Número Dois... Mas eu li algures que os lucros obtidos com o Vasclear podem aproximar-se de mil milhões de dólares só no primeiro ano. Não me parece que os nossos amigos da Newbury tenham de fazer trafulhices dessas. Basta-lhes expedir os camiões e depositar os cheques.

 

-Não sei... - murmurou Brian, passando os dedos pelos ferimentos das costas das mãos.

 

- Devias estar a trabalhar hoje? - perguntou Marguerite. Brian olhou para o relógio da cozinha.

 

- Bolas, são oito e meia! Esqueci-me completamente do trabalho. - Pegou no telefone e ligou para a clínica.

 

- Clínica, fala Jen.

 

- Jen, é o doutor Holbrook.

 

- Oh, doutor Holbrook, está toda a gente à sua procura! E à do doutor Gianatasio também.

 

- O que quer dizer com isso?

 

- Nenhum de vocês apareceu para as rondas. O doutor Cohen está neste momento a fazê-las.

 

-Teve notícias do Phil?

 

-Não. E acho que mais ninguém teve. Brian sentiu um arrepio na espinha.

 

- Bem - conseguiu dizer -, deixei-me dormir, porque estou doente. É só uma gripe. Talvez apareça aí à tarde. Podem contactar-me pelo pager, se o médico de serviço tiver alguma emergência. O meu turno na clínica só começa ao fim do dia. Devo aí chegar a tempo.

 

- Okay.

 

- Podia fazer-me mais um favor, Jen? Pedia ao Phil que me contactasse assim que lhe telefonar ou aparecer? É muito importante.

 

- Com certeza, doutor Holbrook. Acha que aconteceu alguma coisa?

 

-Não. Tenho a certeza de que ele apenas se esqueceu de avisar que não ia aparecer.

 

-Graças a Deus! - exclamou a mulher. - Estávamos muito preocupados convosco, e o senhor telefonou-nos. Talvez o doutor Gianatasio faça o mesmo em breve.

 

Brian pousou o auscultador.

 

- Pareces preocupado - observou Marguerite.

 

- A outra pessoa no hospital que sabia que podia haver um problema com o Vasclear ainda não apareceu para trabalhar. É um velho amigo que me ajudou a conseguir este cargo.

 

-Ele andava a investigar os casos como tu?

 

- Não, não. Pelo menos acho que não. Candidatou-se a um cargo de professor efectivo no hospital, por isso decidimos que era melhor ele não se meter. Isto não me agrada. Não me agrada mesmo nada!

 

- Come mais qualquer coisa - disse Marguerite. - Desconfio que vais precisar de energia.

 

Brian obrigou-se a engolir mais umas garfadas, depois voltou a pegar no telefone.

 

- A quem vais ligar agora? - perguntou Freeman.

 

- Ao meu atendedor. Olhem, se precisarem de ir trabalhar, vão. Eu fico bem.

 

- A Marguerite começa às nove e meia - disse Freeman.

- Eu começo quando me apetecer.

 

- Okay. Só quero que a minha presença não vos transtorne.

 

Brian marcou o número de casa, sentindo-se incomodado e irritado por saber que alguém devia estar à escuta.

 

"Olá, Brian, sou eu." Phoebe! "Tínhamos combinado que vinhas cá no domingo, mas esqueci-me que a Becky vai dançar às duas. Podes levá-la? Diz qualquer coisa. Espero não estar a' estragar os teus planos e que esteja tudo bem. Adeus." "Olá, doutor. Mais dois dias. Tenho saudades tuas. Continuo a pensar.,,, nas férias." Teri... "Olá, Brí." Phil. "Julguei que te apanhava em casa, uma vez que és demasiado bem comportado para sair à noite. Olha, tenho novidades. Descobri outro caso. Uma das estagiárias viu-o na clinica há algumas semanas e esta tarde pediu a minha opinião sobre o assunto. Doente da fase um, falta de ar, edema maleolar. Decidi dar uma olhadela à ficha do tipo,, embora tenha dito que não iria fazê-lo, não o consegui evitar. Estava curioso. Não havia análises ao sangue na ficha, mas perguntei a mim mesmo: "Se eu fosse o Brian, o que é que faria?" Liguei para o laboratório e descobri uma de há três meses. Quinze por cento de eosinófilos, pá! Um, cinco. O tipo chama-se MacLanahan. Angus MacLanahan. Amanhã de manhã, quando nos encontrarmos, conto-te mais. Fica bem."

 

O último telefonema era da secretária da clínica, a perguntar onde é que ele se tinha metido.

 

-Estás pálido, homem - notou Freeman quando Brian desligou. - Más notícias? -Talvez. O amigo do hospital de que te falei há pouco deixou-me uma mensagem a noite passada a dizer que tinha                 descoberto outro caso. Mudou de ideias quanto a ajudar-me e foi ver a ficha do doente.

 

- E agora não apareceu no hospital - observou Freeman.

- Exactamente. Freeman, desconfio que o meu telefone está sob escuta. Foi assim que aqueles tipos souberam como me encontrar em Nova Yorque. Se está mesmo sob escuta, também devem ter ouvido a mensagem do Phil. Ou então ele não tomou precauções quando foi à procura da ficha do doente. A Newbury tem olhos e ouvidos por todo o hospital.

 

-Não admira que estejas preocupado. Eu estou preocupado e nem sequer conheço o homem! Então o que vais fazer agora?

 

-Vou tentar apanhar a namorada do Phil no hospital. Brian marcou o número, mas desligou após algumas palavras.

 

- Ela está de férias esta semana - disse.

 

Depois de Marguerite ter saído para ir trabalhar, os dois homens sentaram-se à mesa em silêncio. Sharpe suspirou.

 

- Às vezes é difícil lembrarmo-nos de que as coisas se resolvem como têm de resolver - disse -, mas geralmente é o que acontece.

 

- Talvez, só que de momento tenho a sensação de que me encontro preso num torno que está cada vez mais apertado e não faço ideia de como o deter.

 

- Tens só de pôr um pé à frente do outro. Restam-te algumas opções.

 

- Pensei em ir à Polícia, mas rejeitei a possibilidade. Por que motivo haviam de acreditar em mim? O meu contacto na FDA disse-me que não podem tomar medidas contra o Vasclear sem provas irrefutáveis, Não sei em quem posso confiar no hospital... nem quem posso prejudicar. Ainda não tenho nada concreto, por isso os jornais estão fora de questão. De que opções é que estavas a falar?

 

- Bom, deixa-me ver. Precisas de roupa. Precisas também de alugar um carro. Tens de informar a companhia de seguros do roubo do teu. Hás-de ter de aparecer no hospital para trabalhar, partindo do princípio que queres fazer isso. Ou podes deitar-te no chão e fingir que estás morto até estares mesmo morto.

 

- Percebi - respondeu Brian. - A verdade é que neste momento estou cheio de pena de mim próprio. O Jack já me tinha dado um pontapé no rabo por causa das minhas lamúrias. -Podes fingir que ele to deu.

 

- Devem estar a vigiar a minha casa.

- Admirava-me se não estivessem.

 

- Tens tempo para me ajudar a ir lá buscar umas coisas?

- Claro. E podes ficar aqui até estar tudo mais calmo. Talvez depois de o presidente cá vir e declarar o medicamento legal eles te deixem em paz.

 

- Espero que sim. Obrigado, Freeman. Só mais uma coisa. Gostava de tentar entrar em contacto com o tipo de que o Phil falou.

 

-Como é que ele se chama?

- Angus MacLanahan.

 

Sharpe tirou de uma gaveta a lista telefónica de Boston. -Aqui está ele - disse. - Joy Street. Fica em Beacon Hill.

 

-Não é muito longe do hospital.

 

Sharpe marcou o número de MacLanahan e entregou o auscultador a Brian.

 

-Um passo de cada vez.

 

-Está avariado, e não dizem mais nada - comentou Brian. - O que achas?

 

-É o cliente tipico da companhia dos telefones. Queres passar por lá a caminho da tua casa?

 

- Se tiveres tempo. Mas tenho de ter cuidado. O seu nome estava no meu atendedor. Se calhar está alguém a vigiar a casa dele.

 

-Podem andar à tua procura - disse Freeman, - mas não andam à minha.

 

O apartamento de Angus MacLanahan ficava a meio de uma rua estreita em Beacon. Hill, não muito longe de State House. Freeman estacionou em segunda fila em frente ao prédio e já entrara quando Brian reparou nas tábuas que cobriam as janelas de um dos apartamentos do segundo andar. Sharpe regressou poucos minutos depois. Dirigiu-se calmamente para a carrinha, depois saltou lá para dentro e arrancou a toda a velocidade.

 

- O MacLanahan morreu - declarou com ar soturno. Quem me disse foi a inquilina do andar de baixo. A casa dele era aquela do segundo andar. Houve uma grande explosão de gás há três semanas.

 

- Eu sabia!... - exclamou Brian. - Assim que vi aquelas janelas entaipadas, desconfiei logo que era o apartamento dele. -E aquele outro homem de quem me falaste, o sobrevivente do campo de concentração?

 

- Foi morto num assalto a uma loja de conveniência. Freeman afastou-se da berma e dirigiu-se para a 1-93, a via rápida que seguia para Reading.

 

- Se a morte violenta desses dois homens foi coincidência, eu diria que foi uma coincidência muito estranha - comentou. O que vais fazer agora?

 

Brian esfregou os olhos fatigados.

 

- Depois de ir buscar as minhas coisas, acho que vou tentar falar com a mulher do Bill Elovitz - respondeu.

 

Conversa com Pat Carson WBZ-TV, Boston

 

Pat: Há muito que Boston foi reconhecida como a Meca da Medicina do nosso país, senão mesmo do mundo, mas nunca as atenções estiveram tão viradas para esta cidade como durante esta semana. Dentro de dois dias o presidente virá a Boston para presidir às cerímónias de aprovação do Vasclear, um medicamento aqui desenvolvido e testado. Para assinalar a ocasião iremos no programa de hoje falar com o doutor Art Weber, director do projecto Vasclear na Newbury Pharmaceuticals, sedeada aqui em Boston. Mas primeiro temos uma convidada muito especial, Mistress Hermione Goodman, que foi uma das pessoas de sorte a fazer parte do grupo experimental que tomou Vasclear durante o último ano e meio. Mistress Goodman, bem-vinda ao nosso programa. Conte-nos primeiro de que forma começou a tomar Vasclear.

 

Hermione: Aconteceu tudo bastante depressa, por acaso. Nunca estive doente até ao dia em que comecei a ter dores aqui na base do esterno.

 

Pat: Como eram as dores?

 

Hermione: Agudas e um pouco parecidas com gases. A princípio julguei que era uma indigestão, mas, pelo sim, pelo não, decidi ir ao médico. Como na minha família havia casos de problemas cardíacos e o meu electrocardiograma apresentava algumas alterações, ele mandou-me ser vista pela doutora Jessup, no White Memorial. Fiz a prova de esforço, depois um cateterismo. Fiquei bastante admirada por saber que tinha problemas cardíacos.

 

Pat: Foi então que começou a tomar Vasclear?

Hermione: Exactamente.

 

Pat: E reagiu depressa?

 

Hermione: Sim, logo passadas poucas semanas. Talvez um mês. O mal-estar desapareceu e sinto-me bem desde essa altura.

 

Brian ia sentado no banco do passageiro da carrinha, os pés no tabliê, um caderno de espiral no regaço. Na margem da folha, entre uma dezena de figuras geométricas, viam-se os seus habituais rabiscos: um toucado tribal índio, um barco a motor, o focinho de um porco, um vulcão e uma bola de futebol, todos muito parecidos. No centro da folha, escrevera:

 

Kenneth Ford - provavelmente SP; cosinófilos: 14 %; morto.

 

Sylvia Vitorelli - provavelmente SP; cosinófilos:

15 %; morta.

 

Maclanahan - provavelmente SP; eosinófilos: 15 %; morte violenta.

 

Bill Elovitz - SP; eosinófilos: 13 %; morte violenta.

 

Sob a lista escrevera as palavras "Russos... Laboratório farmacêutico... Vitaminas... Lavagem de dinheiro de droga... " e, por fim, por baixo, uma única palavra: "Vasclear."

 

- Freeman, escapa-me qualquer coisa - afirmou - É como disseste antes. Eu sou uma formiga, no entanto, andam atrás de mim com uma caçadeira. E agora o Phil. Meu Deus, espero que ele esteja bem!

 

De repente, praguejou e bateu com o punho.

- O que foi?

 

-A Teri... a mulher da FDA de que já te falei. Estive ao telefone com ela anteontem à noite. Se os tipos da Newbury estavam à escuta, pode estar metida em sarilhos. Tenho de lhe ligar e avisá-la para, ao menos, ter cuidado.

 

-Mas não o faças do telefone da tua casa.

 

Saíram da via rápida em Reading e passaram devagar pelas ruas de dois quarteirões em volta do andar que seria de Brian assim que o testamento do pai fosse lido. Naquele bairro residencial calmo era difícil haver desconhecidos a vigiar sem serem notados.

 

- Baixa-te! - ordenou Freeman quando finalmente passaram pela casa.

 

Brian acocorou-se no chão da carrinha.

 

-Vês alguma coisa? - perguntou.

 

-Um carro cinzento estacionado entre outros dois meio quarteirão abaixo do outro lado da rua. Tanto quanto me apercebi, só havia um homem lá dentro.

 

Freeman continuou a conduzir e depois encostou à berma, um pouco mais adiante.

 

-Queres mesmo ir a casa? - perguntou.

 

- Dava-me jeito alguma roupa, mas do que preciso mesmo é da pasta. Tem lá a minha identificação e uma tonelada de papéis do hospital, já para não falar no meu estetoscópio.

 

- Então vamos a isso.

 

O plano que esboçaram era simples. Brian ficaria a um quarteirão de distância e entraria em casa pelas traseiras, através do quintal de um vizinho, saltando uma sebe baixa. Entretanto, Freeman pararia ao lado do carro onde estava o homem a pedir uma informação. Iria empatá-lo o máximo que pudesse, tapando-lhe a vista, enquanto tentava descobrir mais alguma coisa sobre ele. Tanto quanto se haviam apercebido, de onde estava o homem via bem a sala de estar e a sala de jantar, pelo que Brian se devia manter afastado das janelas.

 

-Como é que vais entrar? - perguntou Sharpe.

 

- Há uma chave sobressalente debaixo de uma pedra no alpendre das traseiras.

 

-Entra e sai. Foi uma coisa que aprendi no Vietname.

- Entro e saio - repetiu Brian.

 

Freeman deixou-o; viu Brian atravessar o jardim de um vizinho e depois afastou-se com a carrinha. Brian saltou com facilidade a vedação baixa e caiu agachado, satisfeito com o facto de o seu joelho ter aguentado a pressão. Pelo espaço entre as casas viu Freeman aproximar-se do carro cinzento. Atravessou o jardim, pegou na chave, rastejou até ao alpendre e abriu em silêncio a porta das traseiras. A pasta com a ídentificação do hospital encontrava-se na mesa da cozinha, onde ele a deixara. Pegou num saco de ginástica que se encontrava debaixo da cama e encheu-o de roupa interior, meias, T-shirts, calças de ganga e um par de ténis. Em seguida tirou do roupeiro mais alguma roupa.

 

Olhou em volta para ver se precisava de mais alguma coisa, quando ouviu puxarem o autoclismo da casa de banho do vestíbulo ao pé da cozinha. Largou as roupas na cama e encostou-se à parede, respirando profundamente, para tentar acalmar-se: a adrenalina acelerara-lhe bastante o pulso. Segundos depois, a porta da casa de banho abriu-se. Brian olhou em volta, à procura de uma arma. A melhor que encontrou foi uma taça com a base em mármore na escrivaninha à sua direita; já não coubera na sala de Jack: Faculdade de New England, Jogador do Ano.

 

Agarrou no troféu e viu o intruso entrar na sala. Era o homem magro de Fulbrook. Parecia que a pedra não o ferira com tanta gravidade como supusera. Atrás dele, pela janela da sala, Brian viu a carrinha de Freeman. O amigo não poderia empatar o outro homem durante muito mais tempo.

 

O intruso usava um coldre de ombro sobre uma camisa de xadrez. Andou em volta durante algum tempo, espreitou pela janela, depois usou um walkie-talkie, provavelmente para contactar o carro lá fora. A conversa desenrolou-se em russo. Naquele momento, o homem encontrava-se apenas a três metros. Estava de costas voltadas para o quarto e concentrado na conversa, mas Brian percebeu que não era possível esgueirar-se até à cozinha. Agarrou com mais força no troféu, inspirou, levantou-o e passou à carga. Quando o homem se virou e gritou, Brian notou que a pedra lhe causara bastantes estragos na cabeça e na cara. Agrediu-o com a base de mármore com quanta força tinha mesmo no meio do ferimento anterior. O homem gemeu e desmaiou imediatamente.

 

Pela janela, Brian viu que a carrinha continuava parada ao lado do carro cinzento. Calculou que o outro bandido já devia estar aos gritos com Freeman, mandando-o desviar-se para poder sair. O homem aos pés de Brian ainda respirava, mas era impossível saber se o ferimento de onde escorria sangue para o chão era ou não mortal.

 

Brian tirou o revólver do coldre do seu perseguidor, atirou-o para o saco e depois saiu a correr pela porta das traseiras. Tinha acabado de saltar a vedação do vizinho quando ouviu os pneus da carrinha de Freeman chiar. este acabava de fazer a curva. Sharpe abrandou, mas não chegou a parar. Brian correu pelo passeio, depois saltou para a estrada. Abriu a porta da carrinha, atirou as coisas para o chão e lançou-se para o banco quando Sharpe acelerou. Já tinham andado dois quilómetros na direcção da via rápida quando conseguiu recuperar o fôlego suficiente para poder falar.

 

- Isto é uma loucura! - exclamou. - O tipo do carro era grande, com cicatrizes na cara?

 

Freeman abanou a cabeça.

 

- Atarracado, ombros largos, bigode - respondeu. - O inglês dele não era muito mau.

 

- Meu Deus! Freeman, eles têm um exército! O tipo que deixei a sangrar no chão da sala era o mesmo que atingi com uma pedra em Nova Yorque. Desta vez usei um dos meus velhos troféus. Acho que o matei.

 

- A prática aperfeiçoa-nos. Eles declararam-te guerra, doutor, por isso é melhor fazeres o que puderes para sobreviver. A primeira coisa é procurarmos uma cabina telefónica, para eu fazer um daqueles telefonemas anónimos para a Polícia de Reading a informá-los de movimentos suspeitos ao pé da tua casa. Com sorte, os agentes aparecem lá quando o Trotsky estiver a arrastar o Lenine para o carro. Não era giro?

 

- Sim, bestial. Freeman, estou a ficar maluco com isto! Não sou propriamente um bebé, mas aqueles bandidos querem matar-me e eu não sei porquê. Agora, a única pessoa em quem confio no hospital não apareceu. Achas que devia ir à Polícia contar o que está a acontecer?

 

- Se achas que isso te pode ajudar, deves lá ir. Brian cobriu a cara com as mãos.

 

-Não sei como poderia fazê-lo sem falar no Vasclear e, neste momento, não disponho de nada que se assemelhe a uma prova. Ninguém me daria ouvidos. Todos julgariam que sou maluco, ou que voltei a drogar-me, ou as duas coisas. Seria despedido, se é que já não fui. E os russos tentariam provavelmente matar-me na mesma.

 

Freeman parou ao lado de uma cabina telefónica e pousou a mão no ombro de Brian.

 

- Tem calma, rapaz - disse. - Aqueles cartazes para onde tens olhado nas reuniões durante o último ano e meio não são apenas palavras. Tem calma.

 

- Talvez deva continuar escondido até a cerimónia de aprovação do Vasclear ter passado e este estiver a ser distribuído pelo mundo.

 

- Olha, é uma excelente ideia. Deve ser muito bom para a tua vida profissional não apareceres no trabalho!...

 

- Pelo menos assim continuaria com vida. - Brian esboçou um sorriso tenso e apertou a mão de Freeman. - Eu estou bem. Só um pouco assustado. Mas estou bem. Vai fazer o teu telefonema, para eu depois fazer os meus dois.

 

Brian ficou sozinho enquanto Sharpe falava com a Polícia. Pensou em Phil. Tentou imaginar uma explicação plausível para o seu amigo viciado em trabalho não ter aparecido no hospital no dia em que devia dirigir a ronda e também não ter telefonado. Nada era credível - pelo menos, nada que não envolvesse o tipo de pessoas que acabara de tentar matá-lo.

 

- Bem - disse Freeman, voltando a entrar na carrinha os agentes de Reading não pareceram muito animados com o meu telefonema anónimo, mas talvez decidam ir investigar. Brian correu para a cabina e ligou para o gabinete de Teri,

 

depois para casa dela. Apanhou o atendedor de chamadas das duas vezes e deixou recado a avisá-la.

 

- Teri, sei que isto te vai parecer uma loucura, mas eu mexi num nervo sensível ao investigar os primeiros casos do Vasclear. De um momento para o outro, apareceram pessoas a tentar matar-me. O meu telefone deve estar sob escuta e eles certamente sabem que tenho estado em contacto contigo, por isso, até à cerimónia, tem cuidado, por favor. Fica em casa de amigos, se puderes. Não faças muita coisa sozinha. Tenho saudades tuas. Muitas.

 

Depois de gravar a segunda mensagem para Teri, Brian ligou para as informações e obteve o número de telefone de Wilhelin Elovitz, em Charlestown. Desta vez, foi a própria viúva de Elovitz, Deborah, quem atendeu.

 

- Oh!, sim - disse ela com um sotaque menos cerrado que o do falecido marido. - O Bill afirmou que o senhor foi o melhor médico que ele teve.

 

- O Bill pareceu-me uma pessoa muito bondosa, Mistress Elovitz. Lamento não o ter conhecido melhor.

 

- Sim...

 

Brian percebeu que ela começara a chorar.

 

- Mistress Elovitz, lamento se o meu telefonema está a perturbá-la. Talvez seja melhor ligar noutra altura.

 

- Não, não, eu estou bem. As lágrimas não são a pior coisa do mundo. Por favor, díga-me em que posso ajudá-lo.

 

- Sei que o Bill foi morto durante um assalto, mas desconheço mais pormenores.

 

-Veio em todos os jornais e até deu na televisão...

 

- Lamento não ter ouvido nem lido nada. Na altura a minha vida também era uma tragédia. O meu pai morreu de repente.

 

- Lamento. Tenho muita pena.

 

- Obrigado. Talvez eu possa passar por aí para falar consigo, em vez de lhe fazer as perguntas pelo telefone...

 

- Se quiser passar por cá, não há problema, mas acho que devia era falar com o Sid.

 

-O Sid?

 

- Sid Mastrangelo. Ele é dono da loja onde o Bill foi... foi alvejado.

 

- E ele estava lá quando isso aconteceu?

- Oh, sim. Também alvejaram o Sid.

 

A loja de conveniência de Sid ocupava o rés-do-chão de um edifício de tijolo vermelho numa zona arenosa de Charlestown, não muito longe do ancoradouro do USS Constitution. As indicações que Deborah Elovitz lhe dera eram exactas, mas foram desnecessárias.

 

- Depois de regressar do Vietname - explicou Freeman -, passei bastante tempo a fazer negócios nestas ruas. Por acaso lembro-me bem da loja do Sid.

 

-E lembras-te do Sid?

 

- Já passaram vinte anos, mas lembro-me que ele é tão alto quanto largo. Acho que me expulsou do estabelecimento mais do que uma vez.

 

Na viagem de Reading até Charlestown mantiveram o rádio sintonizado num posto de notícias. Embora tivessem ouvido duas relacionadas com o Vasclear e com a iminente visita do presidente a Boston, não ouviram nada acerca de um telefonema anónimo para a Polícia de Reading, seguido da descoberta de um corpo em casa de um médico que, até há pouco, estivera sem licença devido ao uso de drogas.

 

- É demasiado cedo - disse Freeman. - Além disso, não me parece que a tua querida Polícia tenha acreditado em mim. Que tal te sentes?

 

- Abalado, embora ache que a palavra "abalado" não descreve exactamente o que estou a sentir. Ainda me custa a crer que o patife estava à espera dentro da minha casa!

 

- Tinham a chave. Estar uma pessoa escondida lá dentro significa que o tipo de fora podia dar uma volta com o carro de vez em quando. Tiveste sorte pelo facto de o "senhor de dentro" ter estado a satisfazer uma necessidade fisiológica...

 

- Eu cá acho é que a minha sorte está a esgotar-se! -Não digas isso!

 

Sid Mastrangelo continuava tal e qual Freeman se recordava dele. Completamente careca, com excepção de uma franja grisalha à monge, teria sido facilmente seleccionado para representar o papel de frade Tuck. Usava um avental de lona não atado na cintura e tinha o braço direito ao peito. Brian apresentou-se e apresentou Freeman.

 

- A mulher do Bill Elovitz ligou há pouco a avisar-me da sua vinda - afirmou Mastrangelo.

 

- Ela disse-lhe o que pretendíamos?

 

- Acho que referiu o tiroteio. Também disse que o senhor era médico do Bill.

 

-É verdade. Fui um dos cardiologistas dele no Instituto do Coração.

 

-E quem é o senhor? - perguntou ele a Freeman. -Apenas um amigo.

 

- Al sim? Olhe que o acho parecido com um rufia que há uns anos costumava parar por aqui.

 

- Eu tomo conta de alguns prédios em Boston - retorquiu Freeman calmamente. - Sou casado, membro de uma associação de caridade, amigo de médicos como este aqui. Deve estar a confundir-me com outra pessoa.

 

- óptimo - replicou o merceeiro com os olhos a brilhar porque o rufia de que me recordo tinha a expressão sorte" tatuada nos nós dos dedos, tal como o senhor.

 

- Mister Mastrangelo - interveio Brian -, está disposto a falar connosco sobre o que aconteceu ou não?

 

- A mulher do Bill pedíu-me que o fizesse, por isso assim farei.

 

Uma mulher de idade entrou para comprar leite e cigarros. Mastrangelo fez a conta numa velha máquina registadora, entregou-lhe o troco e em seguida avisou-a do perigo que corria se continuasse a fumar.

 

- Antes de começarmos - disse Brian -, tem algum telefone que eu possa utilizar? Preciso de ligar para o hospital. Mastrangelo tirou de baixo do balcão um telefone sem fios. Rezando em silêncio, Brian marcou o número da enfermaria. Disseram-lhe que ainda não havia notícias de Phil.

 

- Sabe se o doutor Pickard tem conhecimento de que o Phil ainda não apareceu? - perguntou ele a Jen.

 

- Oh, sim. Aliás, o doutor Pickard esteve aqui há pouco a fazer umas perguntas. Espere, ele ainda aqui está. Vai no corredor.

 

-Posso falar com ele?

 

- Um momento, doutor Holbrook. Vou ver se o apanho. Brian olhou para a direita e viu Freeman. pagar um pacote de rebuçados de mentol, uma Coca-Cola e uma embalagem de tabaco para cachimbo.

 

- Eu não engulo o fumo - ouviu o amigo dizer no momento em que Ernest Pickard apareceu em linha.

 

- Brian - exclamou. - Tenho estado muito preocupado consigo e com o Phil. Você está bem?

 

- Sim, estou. Passei metade da noite levantado com febre e esqueci-me de ligar o despertador. Mas já me sinto melhor, por isso conto aparecer a horas para o meu turno.

 

- óptimo. Excelente. Faz ideia de onde possa estar o Phil? Faltou à ronda que devia ter dirigido esta manhã e não telefonou.

- Isso não é nada normal nele. Mandou alguém lá a casa?

- Acho que a Polícia vai agora a caminho. Brian, dois dos nossos professores estão de férias. O Phil esta noite devia estar de serviço. Será que você pode substituí-lo?

 

- Eu apareço aí às duas - respondeu Brian, pensando em aproveitar a noite para ir à sala de arquivo e continuar a investigar a lista dos doentes da fase um -, e tenho muito gosto em substituí-lo, se o senhor assim o desejar.

 

- Não há novidades? - perguntou Freeman.

- Não. Esta noite vou substituir o Phil. -Achas que isso é boa ideia?

 

- Foste tu quem disse que desaparecer do mapa era um erro.

- É verdade. Vai trabalhar, mas não saias dos corredores principais e afasta-te dos recantos. Mais uma coisa: pensa numa boa desculpa para o teu aspecto terrível.

 

- Desculpe a nossa conversa, Mister Mastrangelo - disse Brian. - Tem havido uma grande agitação no hospital e eu estou mesmo no centro dela.

 

- Tem alguma coisa a ver com o tiroteio? - perguntou o homem.

 

Freeman e Brian olharam um para o outro. "A verdade", decidiram.

 

- Talvez - respondeu Brian -, foi por isso que quisemos falar consigo. Gostava que o senhor nos contasse o que se passou exactamente quando o Bill Elovitz foi morto.

 

- Posso fazer melhor do que isso - respondeu Mastrangelo. - Posso mostrar-vos.

 

Mostrar-nos?

- Tenho uma cópia do vídeo que o meu sistema de segurança gravou nessa noite. A minha casa é já aqui em cima, se estiverem interessados em vê-lo.

 

Sid Mastrangelo colocou na janela o sinal de "Fechado" e conduziu Brian e Freeman pelas traseiras até ao apartamento, que ocupava todo o primeiro andar, onde vivia com a mulher.

 

- Tenho um amigo numa firma de segurança - explicou.

- Triple A Security, aqui de Charlestown. Passavam a vida a assaltar-me a loja e a bater-me. O Manny instalou-me este sistema. Depois do assalto, antes de entregar a cassete à Polícia, fez-me uma cópia. Os dois tipos tinham máscaras de esqui. Já passei a cassete três ou quatro vezes, para tentar ver se os conseguia identificar.

 

- E conseguiu? - perguntou Brian. Mastrangelo abanou a cabeça.

 

- Não.

 

Quando se sentaram em frente ao televisor de ecrã grande no apartamento confortável e ligeiramente bafiento, a mulher de Mastrangelo - uma versão feminina do merceeiro - acenou-lhes, alegremente da cozinha.

 

Sid ligou o aparelho, depois o vídeo, e entregou o comando a Brian.

 

- Pare quando lhe apetecer - disse. - Faça as perguntas que quiser.

 

Após alguns segundos de estática surgiu no ecrã uma imagem a preto e branco e com algum grão do interior da loja de Sid.

 

A câmara, situada por cima, atrás e à esquerda de Mastrangelo, tinha uma grande angular, que destorcia um pouco a imagem, mas que lhe permitia captar uma área maior. Vistas de cima, as pessoas pareciam comprimidas, e, sem som, o horror do que estava a ser gravado parecia estranhamente emudecido.

 

"Loja vazia, tirando a nuca de Sid enquanto ele anda de um lado para o outro atrás do balcão baixo... no canto inferior direito está escrito 20H4 8... "

 

- Às sextas fecho às nove - comentou Mastrangelo.

 

"A porta da frente abre-se e entra Bill Elovitz, envergando uma gabardina sem cinto. Tem o pulso esquerdo engessado. O seu cabelo grisalho farto brilha na gravação acinzentada. Conseguem ver-se os seus tornozelos inchados por cima dos sapatos. Acena a Mastrangelo e esboça o sorriso agridoce que atraíra Brian. Dirige-se para o fundo da loja e desaparece do ecrã. Momentos depois a porta abre-se e entram dois homens. Ambos envergam blusões escuros e máscaras de esqui. Um traz uma pistola, outro uma caçadeira de canos serrados...

 

Brian carregou no botão da pausa. Embora os corpos dos homens armados estivessem destorcidos, um deles - o que empunhava a caçadeira - era bastante mais alto e tinha os ombros mais largos que o outro. Freeman olhou para ele com uma expressão inquiridora e Brian assentiu. Era capaz de apostar que o rosto sob a máscara de esqui estava cheio de cicatrizes. Leon. No entanto, Brian não tinha a certeza se o outro homem era o que ele acabara de matar. Carregou no botão do play.

 

"O homem mais baixo faz sinal a Sid com a arma e parece, ser o único a falar. Leon desaparece do ecrã e regressa segundos mais tarde, empurrando Bill Elovitz com a caçadeira. Elovitz está a falar e não parece muito assustado. Não é a primeira vez que lida com rufias armados. O homem mais baixo manda abrir a caixa registadora, tira as notas que lá estão e enfia-as no bolso. Recuam para a porta. Chegam até ela. Começam a sair. De repente, um vira-se. Está apenas a dois ou três metros de Bill. Sem hesitar, dispara. Elovitz parece ter levado com o impacto do tiro no peito. Voa para trás como se fosse levantado por um tornado, embate numas prateleiras e resvala até ao chão. O intruso com a pistola vira-se para Mastrangelo e dispara de uma distância de dois ou três metros, mas Sid já está a esconder-se atrás do balcão quando é atingido. Os dois homens não tencionam acabar com ele. Em vez disso, fogem. Segundos mais tarde, a mão de Sid aparece no balcão quando ele se levanta. No canto inferior direito o relógio marca 20H52... Quatro minutos."

 

Brian desligou o vídeo e assentiu com ar soturno para Freeman. "São eles." Pousou o comando.

 

-Mister Mastrangelo - disse, tendo o cuidado de evitar fornecer quaisquer pistas para a resposta que esperava -, o homem que o alvejou... havia nele alguma coisa estranha?

 

-Falava com uma espécie de sotaque - respondeu Sid sem hesitar. - Não sei qual, mas pareceu-me alemão.

 

-E o outro?

 

- O Godzilla? Acho que não abriu a boca. O vídeo ajudou-vos?

 

-Talvez. Ainda há muitas coisas que não percebo.

 

- Mas parece-me que não acham que a morte do Bill fazia parte do assalto...

 

Brian encolheu os ombros, depois levantou-se e apertou a mão do dono da loja.

 

-Não tenho a certeza, Mister Mastrangelo - disse. Mas não vi ninguém levar a carteira do Bill.

 

Brian deixou o saco na carrinha e pediu a Freeman que o levasse ao White Memorial. Entrou no hospital com os sentidos bem alerta, tentando aperceber-se de alguém na multidão que estivesse a procurá-lo. Ia agarrado à pasta, que, além dos habituais papéis, estetoscópio, KitKats e uma muda de roupa interior, continha ainda uma meia branca de algodão com o revólver que tirara ao homem que ficara a sangrar no chão da sua sala.

 

Brian nunca disparara uma arma, exceptuando uma pressão de ar e, de outra vez, uma espingarda de calibre.22. Esperava não ter de repetir. Mas dois rufias da Newbury Pharmaceuticals haviam morto um doente idoso da fase um e talvez ainda um segundo. Agora os assassinos andavam atrás dele e Phil desaparecera.

 

Poderia confiar em mais alguém que não Teri? Estaria ela disposta a agir apenas tendo como prova a palavra dele? Quanto tempo teria até que um dos subalternos de Pickard o mandasse fazer um teste à urina que, de certeza, seria positivo? Talvez pudesse recorrer a Pickard.

 

"Doutor Pickard, não tenho provas, mas quero que saiba que o laboratório com que o senhor tem colaborado estreitamente nos últimos cinco anos é controlado pela máfia russa. A minha fonte? Oh, um gangster chinês chamado Cedric que vai a reuniões dos Narcóticos Anónimos. Agora, por qualquer razão, embora o medicamento que o senhor desenvolveu com a Newbury possa salvar dezenas de milhares de vidas e traga ao seu instituto milhões de dólares, o laboratório contratou assassinos para matar os seus doentes... "

 

Seria que a história funcionaria melhor com a Polícia? Com Carolyn Jessup?

 

Seguiu pelo corredor largo até à entrada do Instituto do Coração, mostrou a identificação ao guarda e subiu as escadas até à enfermaria. O que mais poderia fazer além de continuar a recolher informações, juntá-las e esperar que, a certa altura, elas lhe pudessem sugerir uma explicação que fizesse sentido? E claro que teria de agir enquanto se esgueirava dos assassinos profissionais que andavam a tentar matá-lo...

 

"Pai, onde estás quando preciso de ti?"

 

Subiu os cinco lanços de escadas, detendo-se em cada um dos patamares, para ver se ouvia passos. Na sala dos médicos vestiu uma bata. Jen, a secretária normalmente empertigada, pareceu animar-se quando ele entrou na enfermaria.

 

- Oh, doutor Holbrook, fico tão contente por vê-lo! exclamou. - Tem sido um dia horrível. O que lhe aconteceu?

- Estou ligeiramente engripado.

 

- Não, refiro-me à sua cara e às mãos.

 

- Oh!... Ah!... Jardinagem. Às vezes empolgo-me mesmo na jardinagem! Há notícias do Phil?

 

Ela abanou a cabeça com ar abatido.

 

- Nada. O doutor Pickard acabou de sair daqui e foi para o gabinete. Tem estado a tratar os doentes deste piso. Não sabia que ele era tão bom médico.

 

-Um dos melhores.

 

- Doutor Holbrook, ele disse que o senhor esta noite estava de serviço e deixou-lhe o pager.

 

Entregou-lho e Brian prendeu-o no cinto. Depois deu a Jen uma folha de papel que tinha impresso o nome "Allison Brougham", a doente seguinte na sua lista de pacientes da fase um.

 

- Podia, por favor, ligar para a sala de arquivo e pedir que enviem para aqui a ficha desta mulher? Melhor ainda: se puder ausentar-se daí durante algum tempo e ir lá abaixo buscar a ficha, ficava-lhe bastante agradecido.

 

-Não posso deixar a secretária sem ninguém, mas a Beverly vem às três para me substituir. Nessa altura vou lá abaixo.

- Perfeito.

 

A enfermaria de investigação clínica não punha problemas de maior. Quinze doentes, mas nenhum em estado grave. Ás três e um quarto, quando o chamaram à recepção, já vira nove doentes, Ernest Pickard redigira nas fichas um comentário meticuloso acerca da evolução de cada um. Brian percebeu que descrevera bem o chefe. Apesar de todas as responsabilidades burocráticas do seu cargo como director do Instituto do Coração, Pickard era realmente um cardiologista brilhante. Com dois dos seus médicos desaparecidos e a visita do presidente apenas a dois dias de se realizar, ajudar os colegas a tratar dos doentes era provavelmente a última coisa que ele devia querer fazer, mas, por aquilo que Brian deduziu dos comentários, o chefe fora bem informado e envolvera-se em cada um dos casos.

 

- Tem uma chamada da Jen - disse a nova secretária, estendendo-lhe o telefone. - Está a ligar-lhe da sala de arquivo.

- Jen, é o Brian.

 

- Doutor Holbrook, estou aqui na sala de arquivo. Não encontro nenhuma Allison Brougham, B-R-O-U-G-H-A-m, nos computadores. Essa pessoa nunca foi doente deste hospital.

 

"Oh!, isso é que foi", apeteceu-lhe responder, mas não valia a pena. As pontas soltas haviam sido apanhadas. Já não faltavam páginas nos exames laboratoriais. Os doentes da fase um estavam a ser sistematicamente eliminados da base de dados do hospital.

 

Quando deixara Freeman, Brian anotara tudo aquilo que sabia, bem como as poucas conclusões a que chegara. Freeman não gostara da expressão "Se me acontecer alguma coisa..." que Brian empregara, mas acabou por ficar com os papéis e prometeu que, de uma forma ou de outra, os dirigentes da fda, os jornais e qualquer pessoa que pudesse agir iria recebê-los.

 

Antes de ir ver os últimos seis doentes, Brian enviou uma mensagem para o pager de Phil e telefonou para casa dele. Nada! Carrie Sherwood, também estava fora. Teriam ela e Phil casado? Ter-se-ia Phil deixado levar pela espontaneidade, pelo romance e pelo sexo ao ponto de ter decidido abandonar o seu lado responsável e dedicado ao trabalho durante um dia? A explicação poderia ter acalmado um pouco os receios de Brian se Phil não tivesse deixado aquela mensagem sobre Angus MacLanahan no seu gravador.

 

Já passava das quatro quando viu o último doente. Pelo sim, pelo não, escolheu outro nome da lista de doentes da fase um e pediu a Beverly, a secretária que estava a fazer o turno da noite, que fosse à procura da ficha. Depois, lembrando-se de que ainda não comera nada desde o pequeno-almoço, saiu da enfermaria e dirigiu-se à cafetaria. Chegou à porta que dava para as escadas, deteve-se, regressou à sala dos médicos e pegou na pasta, que se encontrava debaixo da cama. Tinha vestido uma bata até aos joelhos. O revólver, enrolado na meia, dava nas vistas no bolso da bata. Voltou a metê-lo na pasta e decidiu levá-la.

 

A cafetaria, orgulho do White Memorial Hospital, possuía várias salas de jantar pequenas, umas abertas ao público, outras privadas, em torno de uma zona central em forma de ferradura. Na extremidade aberta da ferradura ficava a área de serviço, com um bar de saladas, cozinha para pízas, churrasqueira, zona de refeições completas e balcão de sobremesas. Como havia mais de mil funcionários a trabalhar por turnos, a cafetaria tinha quase sempre bastante gente.

 

Agarrado à pasta e sempre atento, Brian juntou-se à corrente humana que ia a entrar no enorme restaurante. Na fila não havia ninguém conhecido e muito menos alguém com quem pudesse sentar-se a conversar. Recordou os dias passados no Hospital Suburbano, em que se encontrava sempre um animado grupo de médicos na sala de jantar e não havia ninguém, desde o pessoal da limpeza ao director executivo, com quem ele não partilhasse uma história. Agora era praticamente anónimo e a única pessoa que conhecia acabara de desaparecer.

 

Depois de tentar dirigir-se ao bar das saladas, decidiu ir para a fila da churrasqueira. Estava prestes a pedir um cheeseburger com batatas fritas quando reparou num homem a alguma distância a sair da cafetaria com um tabuleiro cheio. Viu-o apenas por trás, mas a altura, a cintura fina e os ombros largos eram inconfundíveis - especialmente depois de ter acabado de ver um video onde ele matava um homem de idade a sangue-frio.

 

Brian saiu disparado da fila, tentando andar depressa, mas sem dar nas vistas. Leon vestia a mesma roupa - calças de ganga e camisa azul - que tinha naquela noite ao pé da máquina da comida. Era difícíl perceber se tentava verificar se estava a ser seguido ou se andava à procura de Brian, mas parou várias vezes para olhar em volta. Entrou no corredor principal e virou na direcção do Instituto do Coração, de volta ao local onde Brian o vira pela primeira vez. Brian manteve-se a alguma distância; tinha quase a certeza de que Leon se dirigia para as escadas que davam para a subcave.

 

Quando chegaram à cave do Instituto do Coração, o corredor estava praticamente deserto. Brian teve de se deixar ficar.

 

tanto para trás que perdeu de vista o assassino. Por fim, chegou às escadas de acesso à subcave. À sua direita ficavam as escadas que conduziam ao rés-do-chão do instituto e cem metros depois a sala de pequena cirurgia, a videoteca e as portas dos elevadores. Mais à frente, à esquerda, encontrava-se a máquina da comida e ao fundo a sala dos animais. leon desaparecera. Quase de certeza que continuara escadas abaixo.

 

Brian desceu com cuidado, esperando a qualquer momento ver Leon aparecer, o rosto sorridente, a arma apontada, As subcaves dos hospitais acomodavam normalmente a lavandaria, as máquinas e uma parte dos geradores. Leon podia estar a trabalhar numa dessas unidades, embora Brian não percebesse por que motivo elas haviam de ficar na subcave do Instituto do Coração e não sob o edifício do hospital.

 

A subcave do instituto encontrava-se mal iluminada por lâmpadas fluorescentes enfiadas no tecto e protegidas por coberturas de plástico opacas. O próprio corredor tinha paredes de cimento, sem qualquer adorno. Não havia portas, com excepção da das escadas e de uma porta de aço mais à frente, à direita, sensivelmente por baixo da sala de pequena cirurgia. O elevador parecia não chegar à subcave.

 

Brian deu alguns passos. A porta de aço tinha uma pega que sugeria que deslizava para se abrir. Mais dois passos; Brian hesitou, abriu a pasta e tirou o revólver da meia, enfiando-o no bolso da bata, ao lado do estetoscópio. Estava apenas a cinquenta metros da porta. O corredor depois dela parecia acabar num beco sem saída por baixo da sala dos animais. Se alguém descesse naquele momento ficaria encurralado. Enfiou a mão no bolso e agarrou no revólver. "Teria cão, algo que ele tivesse de puxar para poder disparar? Era horrível não o saber num momento daqueles", pensou. Deu mais um passo encostado à parede.

 

De repente, o pager começou a tocar, fazendo Brian quase ter um ataque de coração. Algures no hospital havia uma paragem cardíaca ou outra emergência. Baixou a mão rapidamente e desligou o aparelho. Depois arriscou-se a olhar para o mostrador.

 

IC-7, indicava. O andar das cirurgias cardíacas do instituto. Havia uma crise cardíaca no reino de Laj Randa. Brian sabia que o IC-7 era um dos locais do hospital onde a sua presença era mais dispensável. Randa tinha praticamente um exército de estagiários e professores. Além disso, respeitava-o tão pouco que não havia de querê-lo sequer perto do seu serviço.

 

Hesitou. Podia vigiar a porta das escadas. Ou podia avançar e tentar abri-la. As duas possibilidades degladiaram-se na sua cabeça, mas Brian não conseguia sequer decidir se havia de ignorar a emergência. "Não", decidiu, "nem mesmo que a sua presença fosse desnecessária."

 

Virou-se para as escadas e estacou, Atrás dele, junto ao tecto, praticamente escondida na esquina entre este e um suporte de cimento, estava uma pequena câmara, praticamente idêntica à da Clínica Vasclear.

 

Nesse momento, a porta metálica atrás dele abriu-se, deslizando.

 

Brian recuou rapidamente até às escadas, passando por baixo da câmara e desaparecendo do seu raio de alcance. Embora tivesse quase a certeza que o tipo que iria surgir na porta metálica devia ter uns cem quilos e estava decidido a matá-lo, sentiu uma necessidade irracional de não fugir, de tirar o revólver do bolso, impor-se e exigir algumas respostas. O pager voltou a apitar, chamando-o à realidade. Sem esperar que Leon aparecesse, deu meia volta e subiu rapidamente as escadas, esperando a qualquer momento ouvir uma arma a disparar e sentir uma explosão de dor ao fundo das costas.

 

Ofegante, chegou ao átrio principal do Instituto do Coração. Ainda tinha de subir sete lanços de escadas até ao piso das salas de operações. Entretanto, o joelho começara a latejar. O elevador era a opção mais óbvia, mas, só de pensar que podia ficar preso numa caixa de aço com Leon a persegui-lo, perdeu logo a vontade de o utilizar

 

Cedendo à imaginação, correu para as escadas. Subiu os sete lanços, parando apenas uma vez no terceiro piso, para recuperar um pouco o fôlego e ver se ouvia passos. Nada. Mas agora, graças à câmara na subcave, eles sabiam que ele estava a aproximar-se. "Talvez fosse melhor assim pensou. Estava armado e não tencionava voltar a deslocar-se para zonas do hospital que não estivessem cheias de gente. Era impossível Leon, ou outro assassino qualquer, apanhá-lo de surpresa. E se agissem precipitadamente e corressem riscos para o deter, mais probabilidades havia de cometerem algum deslize.

 

Quem era aquele tipo na série televisiva que tentava convencer as pessoas de que havia extraterrestres a infiltrarem-se na Terra com forma humana?... Vinson. Era isso, Roy Vinson.

 

Brian precisava apenas de apanhar um extraterrestre - um dos assassinos russos da Newbury que tentasse explicar à Polícia o que estava a fazer atrás de uma porta de aço na subcave do Instituto do Coração de Boston e por que motivo ele ou um dos seus amigos matara Angus MacLanahan e Bill Elovitz e andava a tentar matá-lo também a ele.

 

O piso das salas de operações tinha a mesma disposição do piso da medicina, só que o balcão das enfermeiras era maior e os quartos possuíam paredes e portas de vidro do lado do corredor.

 

A crise, evidenciada por um desfibrilhador e dois estudantes de Medicina à porta, era ao fundo do corredor, no quarto 703. Brian ficou aliviado por ter decidido aparecer quando constatou que dentro do quarto se encontravam três enfermeiras, um técnico de laboratório e apenas um médico - um estagiário. Na cama viu um homem de meia-idade., nu, que aparentava estar a morrer. Tinha uma costura recente de esternotomia de uma ponta à outra do esterno. A pele estava unida por dezenas de Steristpips, pensos autocolantes de contenção, com cerca de cinco centímetros, manchados de sangue seco. Havia outra incisão semelhante no interior da coxa direita, de onde uma veia fora retirada para um bypass.

 

Passaram dois ou três dias desde a operação", pensou Brian de imediato, reparando que os tubos do peito, inseridos rotineiramente na altura da cirurgia, já tinham sido retirados. A pulsação do coração no monitor era bastante rápida - cento e trinta, cento e trinta e cinco por minuto -, mas o traçado do electrocardiograma apresentava-se surpreendentemente ritmico, A cor do homem era horrível - tinha a pele manchada e os lábios púrpura - e a respiração custosa. "Está em choque."

 

Brian apresentou-se ao residente, claramente perplexo.

 

- Sou o Mark Uwellen - disse ele. Para Brian não passava de um adolescente. - É o meu primeiro ano de estágio, e ainda bem que o senhor apareceu. Costuma haver mais cirurgiões aqui no piso. Uma das nossas equipas está no edifício principal, na sala de operações, O doutor Randa e o resto da equipa estavam numa conferência no Boston City que acabou há quinze minutos, por isso já devem vir a caminho.

 

-Não estou a conseguir encontrar-lhe o pulso - disse a enfermeira que se encontrava junto da cama.

 

Brian já verificara a pulsação no pescoço, cotovelos, pulso e virilhas do homem. Colocou o estetoscópio e auscultou.

 

- Metam-lhe um cateter - disse às enfermeiras. - Dêem-lhe dopamina e soro e peçam a alguém para ver se no banco há sangue compatível com o dele. Se houver só um saco, avisem que precisaremos imediatamente de mais quatro a seis. Virou-se para Mark Uwellen. - Muito bem, fale. Depressa. O residente pigarreou.

 

- Chama-se Paul Wilansky - começou -, tem cinquenta e cinco anos, é contabilista, casado e...

 

- Vou precisar da versão condensada - interrompeu Brian, continuando o exame.

 

Nesse momento, Carolyn Jessup entrou no quarto, ligeiramente ofegante. Encontrava-se vestida como Brian - de ténis e com uma bata até ao joelho.

 

- Estava a acabar de ver um doente quando me chamaram a pedir ajuda - explicou. - O elevador demorou uma eternidade.

 

- Ainda bem que veio - disse Brian. - Continue, Mark. E despache-se, por favor.

 

- Há dois dias e meio o doutor Randa fez-lhe um bypass quádruplo semielectivo. Não houve complicações. Veio para esta unidade ontem à noite. Era para ter alta depois de amanhã. Estava bem. Então, de repente, o pulso começou a acelerar e ele queixou-se de tonturas e má disposição. Pouco depois ficou inconsciente.

 

-Há quanto tempo foi isso?

 

-Há cinco minutos - respondeu a enfermeira.

 

Brian calçou uma luva de borracha, enfiou a mão entre as pernas do homem e sob o escroto e fez-lhe um toque rectal rápido. Depois esfregou um pouco das fezes num cartão impregnado de químico e acrescentou uma gota de reagente, para ver se havia sangue.

 

-Negativo - disse a Jessup.

 

Não era provável haver uma súbita hemorragia digestiva baixa, embora uma úlcera hemorrágica no estômago pudesse provocar aquela reacção antes de o sangue ter tido tempo de chegar ao recto.

 

- Para o caso de isto ser uma hemorragia digestiva alta - disse Jessup a uma das enfermeiras -, coloquem-lhe uma sonda nasogástrica, por favor.

 

- Continua a não haver pulso - informou a enfermeira que se encontrava junto à cama.

 

- A dopamina já está a pingar - disse a terceira enfermeira. Brian olhou para o electrocardiograma de Wilansky e entregou-o a Jessup.

 

- Algum esforço, alguns danos antigos, nada de novo disse ela.

 

- Concordo.

 

Sem nada a indicá-lo no electrocardiograma, um ataque cardíaco, era pouco provável tendo em conta o recente bypass, parecia ainda mais improvável.

 

- Mark, quer que continuemos aqui até os cirurgiões chegarem? - perguntou Brian.

 

- Claro. Quero dizer, continuem, por favor.

 

-Acho que temos de começar a massajar-lhe o peito até esclarecermos isto. Ele tem de estar a sangrar algures. Jessup verificou as carótidas do doente e escutou-lhe o peito.

- Concordo, Brian - disse, muito calma e concentrada.

 

- Nada mais faz sentido. Quando é que lhe tiraram os fios do pacemaker?

 

"Os fios!", pensou Brian. "Claro!"

 

Os fios do pacemaker, inseridos rotineiramente durante a realização do bypass, eram às vezes retirados cinco ou seis dias depois da intervenção cirúrgica, mas, com a redução dos periodos de internamento, a norma passara a ser de dois ou três dias. Retirar os fios nessa altura não era problema", costumava dizer Brian, com sarcasmo, "desde que, claro, o doente não viesse depois a precisar deles."

 

- Os fios? - admirou-se Lewellen. - Oh, o doutor Randa mandou-os tirar. Fiz isso há cerca de uma hora.

 

- Bingo! - exclamou Brian, assentindo com ar satisfeito para Carolyn.

 

- Já vamos ver - retorquiu ela friamente.

 

Brian e Jessup estavam lado a lado, a trabalhar muito bem em equipa, ajudando-se, certificando-se de que não eram descuradas quaisquer possibilidades ou exames.

 

- Mark - disse Brian. -, acho que é melhor começar já a massajar o peito do homem. O anestesista vem a caminho? Senão, precisamos de entubá-lo.

 

- Consegue fazer isso? - perguntou Carolyn a Brian.

- Consigo.

 

O residente aproximou-se da cama e começou a fazer uma massagem cardíaca externa. As manchas na pele de Paul Wilansky estavam quase roxas. Com a tensão arterial inaudível, estava por um fio. E o mais estranho era que o ritmo cardíaco continuava normal.

 

- O anestesista está retido na sala de operações - disse a enfermeira.

 

- Miss... - Brian inclinou-se para ler o nome no cartão de identificação da enfermeira - Dixon, pensamos que durante a remoção dos fios dopacemaker um deles pode ter puxado um implante. Se for o caso, e este homem estiver a sangrar devido a um transplante arrancado no peito, vamos precisar de uma sala de operações e de umabomba de bypass em standby para os cirurgiões. Entretanto, preciso de um tubo endotraqueal com dezoito centímetros e de um laringoscópio. Verifique o balão do tubo, para ver se não tem fugas.

 

Pressionou a virilha do doente, para ver se as massagens de Mark Uwellen já tinham começado a fazer circular o sangue com força suficiente para gerar pulso na artéria femoral.

 

-Não estou a sentir nada - observou Brian.

 

- O coração está vazio - retorquiu Carolyn. - Precisamos de mais volume. Encha uma seringa grande com lactato de Ringer. Doutor Lewellen, pode fazer essas massagens cardíacas externas com mais força?

 

- Acho que já rebentei os fios que estavam a unir o esterno.

 

O residente era incapaz de ocultar o pânico que sentia.

- Não há problema - tranquilizou-o Brian. - Os cirurgiões podem resolver isso.

 

"Não podem é resolver a morte", apeteceu-lhe acrescentar. Tal como Jessup, era de opinião que o doente tinha poucas hipóteses de escapar com vida. E, tal como o residente, sentia-se bastante tenso. O segredo estava em impedir que essa tensão fosse demasiado perceptível e o deixasse raciocinar com clareza. Iriam fazer o que fosse preciso. Ter Carolyn Jessup ao seu lado era o mesmo que levar um barco até bom porto no meio de uma tempestade com a ajuda de um piloto experimentado.

 

Ajoelhou-se à cabeceira da cama. Passara muitas horas nas Urgências durante a sua carreira e, apesar de um interregno de dezoito meses, ainda não esquecera como entubar um doente em estado grave. Desviou a língua de Wilansky com a extremidade iluminada do laringoscópio e enfiou suavemente o tubo respiratório de poliestireno através das cordas vocais.

 

Boa! - comentou Jessup.

 

Depois prendeu a outra extremidade do tubo a um saco respiratório e começou a fazer ventilações rápidas, para tentar substituir por oxigénio o dióxido de carbono existente nos pulmões do contabilista.

 

Jessup procurou o pulso no pescoço e virilhas do homem e em seguida abanou a cabeça. Ainda nada.

 

Brian adivinhou o que Carolyn estava a pensar. Ele era da mesma opinião. Wilansky estava em fibrilhação auricular, a mais grave de todas as emergências cardíacas. O padrão do electrocardiograma indicava que o pacemaker e os nervos do coração estavam a enviar impulsos eléctricos para o músculo, mas que este não respondia com uma contracção capaz de fazer circular o sangue. A explicação devia residir no facto de a maior parte do sangue se encontrar no abdômen ou na cavidade torácica. Precisavam de ganhar tempo até que o problema subjacente, que Brian supunha ser um transplante arrancado, pudesse ser corrigido. E as massagens cardíacas de Lewellen, embora bem aplicadas, não estavam a resultar.

 

Tinham feito quase tudo o que podiam para salvar aquele homem... quase tudo.

 

- Já fez alguma massagem cardíaca directa? - perguntou ele a Jessup.

 

Ela suspirou e abanou a cabeça.

 

- Só há muitos anos, antes de se passarem a fazer apenas as massagens cardíacas externas. E você?

 

- Só uma vez - respondeu Brian -, mas também já foi há uns anos. Um ferimento de bala que tratei nas Urgências. Um confronto de gangs. Abrir o peito do doente não foi difícil, nem coser os dois buracos de balas que ele tinha no coração.

- E?...

 

- Não chegou vivo à sala de operações.

- Bom, Brian, talvez este doente chegue. "Merda!"

 

Brian não sabia se havia realmente dito a palavra ou se lhe tinha apenas surgido na mente. Tanto quanto se apercebia, só lhes restava abrir o peito do homem, reforçar o transplante do bypass que estava a sangrar, continuar a substituir o volume de fluidos e apertar manualmente o coração, até os cirurgiões o levarem para a sala de operações e o ligarem ao circuito extracorporal. As possibilidades de Paul Wilansky sobreviver à abertura do peito eram quase nulas, especialmente se não fosse efectuada por um cirurgião, mas sem um controlo da hemorragia e compressões manuais do coração, a fibrilhação auricular degeneraria em breve numa fibrilhação ventricular mortal.

 

Brian ainda pensou em dizer que não se sentia à altura para tentar, que a experiência de Carolyn como cardiologista era muito superior à sua. Em vez disso, porém, observou as pupilas do doente, que não estavam muito dilatadas, e decidiu-se. Talvez ainda houvesse tempo.

 

A boca de Brian estava completamente seca, todos os seus músculos tensos. Afastou para um canto da mente todos os pensamentos acerca de Leon e do incidente na subcave do Instituto do Coração e concentrou-se.

 

- Miss Dixon, prepare-se para ajudar a abrir o peito do doente, por favor - deu por si a dizer.

 

-É para já.

 

- Os instrumentos estão prontos - informou a enfermeira. Brian colocou uma máscara, calçou as luvas e pegou num bisturi. Então, de repente, ouviu-se um ruído e vozes no corredor. Momentos depois, Laj Randa entrou disparado no quarto. Os seus pequenos olhos negros pareciam os de um falcão prestes a atacar.

 

Randa abarcou rapidamente a cena que rodeava o seu doente. Mark Lewellen continuava a massajar o peito de Wilansky, mas Randa ignorou-o. Virou-se para Brian.

 

-Porque é que está aqui no meu serviço? - perguntou. Brian sentiu-se um idiota, ali de pé com luvas, bata, máscara e um bisturi na mão perante um dos maiores cirurgiões do mundo. Apesar de ser bastante mais alto do que Randa, sentiu-se encolher perante o ar de desaprovação do outro. O que teria acontecido, perguntou-se, se tivesse aberto o peito de Wilansky e o doente tivesse morrido? Ou, pior ainda, se tivesse aberto o peito de Wilansky, se o diagnóstico que haviam feito estivesse errado e o homem tivesse morrido? Na verdade, percebeu, nada pior do que iria acontecer.

 

- Chamaram-me pelo pager - respondeu, em tom de desafio.

 

Randa já ouvira o suficiente.

 

- Carolyn, o que é que se passa?

 

- Choque súbito menos de uma hora depois de os fios terem sido retirados - informou ela. - Está em fibrilhação auricular. Já percebeu o que íamos começar a fazer. O doutor Holbrook Já fez isto antes, por isso...

 

Randa levantou a mão, interrompendo-a. Já ouvira e vira o suficiente.

 

- Instrumentos prontos - ordenou. - Depressa, depressa! Se Mister Wilansky precisar, ponham-lhe um pouco de demerol no soro.

 

Com a cabeça, fez sinal a Lewellen para que se afastasse da cama e, com um gesto semelhante, ordenou a um dos seus colegas que substituísse o jovem médico.

 

Sem precisar que lho pedissem, a enfermeira ajudou Randa a vestir uma bata sobre a roupa e abriu um par de luvas onde ele enfiou as mãos. Os seus movimentos eram rápidos e precisos.

 

- Bisturi - disse. - Preparem o afastador.

 

Sem dizer mais nada, o cirurgião cortou o Steristrip e a incisão com o mesmo movimento. O esterno de Wilansky fora aberto ao meio para a intervenção cirúrgica de há uns dias e o osso voltara a ser unido com arames. Apenas o arame do meio se rompera durante a massagem de lewellen. Randa cortou os outros dois enquanto o colega colocava o afastador no sítio.

 

- Tamponamento - disse Randa, à espera de encontrar o coração rodeado por uma hemorragia.

 

O jacto de sangue que saiu da cavidade do mediastino confirmou as suas previsões, bem como o diagnóstico de Carolyn. O arame do Pacemaker prendera o implante e arrancara-o da aorta,

 

Randa trabalhou no mais profundo silêncio, interrompendo-o apenas para dar algumas ordens. Em menos de um minuto, a hemorragia foi estancada. Enfiou a mão esquerda sob o coração de Paul Wilansky para o amparar, enquanto o massajava por cima com a direita. Brian reparou, sem a mínima surpresa, que a técnica de Randa era perfeita. As compressões efectuadas com as duas mãos impediam o cirurgião de, inadvertidamente, perfurar a fina parede da aurícula direita com o polegar.

 

- O pulso está bom - arriscou-se Brian a dizer, pressionando com os dedos a artéria femoral.

 

- Precisamos de uma sala - disse Randa à enfermeira, ignorando ostensivamente Brian.

 

- Ela há-de estar pronta quando o senhor doutor lá chegar

- retorquiu a enfermeira. - A equipa já lá deve estar. Quem é que os mandou ir para lá?

 

O doutor Holbrook. Também temos dois sacos de sangue a caminho e ele pediu mais seis.

 

Randa continuou a massagem. Em seguida virou-se para Mark Lewellen, que tinha ar de quem desejava que se abrisse um buraco no chão, para poder enfiar-se lá dentro e desaparecer.

 

-Você quase matou este homem, Lewellen, ao não ter diagnosticado a fibrilhação auricular e a sua causa - observou num tom gelado. - Tem de agradecer a estes médicos o facto de ele ainda estar vivo. Quero que se vá já embora do meu serviço e que não apareça cá mais.

 

- Mas...

 

- Já! - exclamou Randa.

 

Um silêncio profundo e constrangedor acompanhou a saída do jovem médico. Brian olhou para Jessup, que parecia estar furiosa, mas ela limitou-se a encolher os ombros e a apertar os lábios.

 

- Bom - disse Randa aos colegas -, desliguem este homem do monitor e levem-no para a sala de operações. As minhas mãos estão a ficar cansadas.

 

Sem mais palavras, Randa e a sua equipa saíram do quarto e seguiram pelo corredor.

 

Brian, Carolyn e duas enfermeiras ficaram no meio da confusão que era típica após uma emergência, partilhando o cansaço e a incerteza, bem como a consternação em relação à forma como Mark Lewellen fora expulso. Os vinte minutos que tinham acabado de passar haviam sido agitados, cansativos, desafiadores e, pelo menos até ao momento, triunfantes. E, durante esse tempo, os membros daquela equipa formada à pressa tinham trabalhado numa harmonia pouco comum numa crise ocorrida num hospital.

 

Por fim, as enfermeiras agradeceram aos médicos a ajuda e garantiram-lhes que não era necessário mais nada. Brian seguiu Jessup até ao corredor.

 

- Foi extraordinário ter conseguido diagnosticar um transplante arrancado assim tão depressa.

 

- Obrigada, Brian. Eu ia precisamente dizer-lhe o quanto confio em si, depois de o ter visto na sala de pequena cirurgia e agora aqui.

 

- Que bela equipa!

 

Brian estendeu-lhe a mão. Hesitante, Jessup apertou-a. -Uma equipa - repetiu ela. - Bem, já estou atrasada para um compromisso.

 

Virou-se rapidamente e começou a afastar-se. -Doutora Jessup? - chamou Brian.

 

Ela parou e virou-se lentamente para ele.

- Sim?

 

- A senhora é uma excelente médica.

 

Mesmo à distância de três metros, Brian conseguiu ver no olhar dela uma grande tristeza.

 

-É bom ouvir isso - respondeu Jessup.

 

No piso de observação sobre a sala de operações, a ver Laj Randa e a sua equipa em acção, Brian recordou que a cena já lhe era algo familiar. Ainda apenas há dez dias estivera ali deitado o seu pai, vivendo os últimos minutos de vida.

 

Antes de seguir para ali para assistir à intervenção cirúrgica de Paul Wilansky, Brian vira rapidamente os doentes da enfermaria e tentara de novo contactar Phil Gianatasio- A cada toque que ouvia ia ficando mais com a certeza de que algo acontecera ao amigo. Também não conseguira contactar Teri, e começava a ficar igualmente preocupado com ela. Deixou recado no voice mail e em casa, implorando-lhe que o contactasse assim que pudesse. Por fim, telefonou à Polícia de Reading: Fora enviado um carro-patrulha a sua casa, disseram-lhe, mas como o agente não vira nada de estranho pelas janelas, decidira não arrombar a porta.

 

"Como raio é que aquilo fora acontecer?"

 

Brian teve a sensação de que estava rodeado de areia movediça até ao pescoço, sem corda e sem ninguém à vista. Fizera frente a uma empresa que tinha muitos milhões de dólares em jogo e dispunha de recursos e de coragem suficientes para fazer o que fosse necessário para proteger o seu investimento. Elovitz, MacLanahan, talvez Phil, e sabia Deus quem mais. Até o bêbado responsável pelos animais, Earli, e o seu pobre chimpanzé. Nenhuma daquelas vidas fora importante para o poderoso laboratório farmacêutico.

 

Brian temia aquilo que o esperava, mas sentia-se igualmente furioso e frustrado - furioso por não ter mais ninguém a quem poder pedir ajuda e frustrado por haver ainda tantas perguntas por responder. Tanto quanto se apercebia, no decurso dos testes da fase um o Vasclear actuara bem durante algum tempo em pelo menos alguns doentes, mas pouco depois as arterioscleroses tinham voltado a aparecer. Pior: embora não houvesse qualquer prova, alguns desses doentes haviam desenvolvido uma saturação pulmonar, que parecia induzida pelo medicamento.

 

Um remédio que trazia benefícios modestos e fugazes, complicados por um efeito secundário frequente e letal. Que combinação podia ser pior? E, contudo, os cientistas da Newbury tinham insistido, modificando o medicamento, acabando Por sair vitoriosos. Brian vira os êxitos clínicos em primeira mão. Setenta e cinco por cento! Nenhum efeito secundário significativo. Uma cura milagrosa. Então por que motivo estavam os responsáveis da Newbury tão determinados a matar as formigas?

 

Brian sentiu-se um pouco nervoso por estar sozinho na sala de observação pouco iluminada, mas encontrava-se um segurança postado à porta, como era habitual sempre que havia uma intervenção cirúrgica, e enfiado no bolso da bata, sob um pano que tirara da sala dos médicos, estava o revólver. Tanto quanto se apercebera, bastava apontar e disparar - não possuía cão nem qualquer outra característica especial -, mas não tinha a certeza. Estivera quase a enrolá-lo no colchão do quarto para o tentar disparar, mas receou que o barulho pudesse chamar a atenção de alguém ou que alguma coisa corresse mal e rebentasse com a mão.

 

Manteve-se a alguma distância da vitrina de plexiglas sobre a sala de operações número um. Nesse dia já não tinha disposiÇão para aturar mais a presunção de Laj Randa. Assim que tivesse a certeza de que Paul Wilansky conseguiria sobreviver, ia-se embora. Lá em baixo, a operação para reparar o enxerto do contabilista parecia estar a correr sem incidentes, embora fosse impossível saber que tipo de intelecto iria emergir assim que o efeito da anestesia passasse. A tensão de Wilansky estivera muito baixa durante algum tempo e recebera apenas os primeiros socorros durante os quinze minutos que haviam antecedido a chegada de Randa e a abertura do peito. Teriam conseguido manter-lhe o cérebro suficientemente oxigenado? A operação estava a ser um êxito, mas...

 

- Obrigado por ter -vindo, doutor Holbrook - disse Randa de repente.

 

Tanto quanto se apercebera, o médico não olhara uma única vez na sua direcção, nem estava a olhar naquele momento.

- Que tal vai isso? - perguntou Brian.

 

-Muito bem.

 

-Acha que ele vai recuperar?

 

-Não tenho motivos para acreditar que ficará com sequelas. "Ao contrário do outro que eu matei, não é?", pensou Brian.

 

- óptimo - respondeu.

 

Houve um silêncio prolongado, durante o qual a atenção de Randa pareceu de novo virada para o coração imóvel e artificialmente gelado que tinha diante de si.

 

- A minha enfermeira disse-me que o senhor agiu de forma extraordinária durante a crise deste homem - disse ele de repente. - Tem a minha gratidão e pelo menos algum do respeito que perdera ao suster a vida do seu pai pelo fio do Vasclear.

 

- Isso é cruel... - conseguiu Brian dizer.

 

- Mas não deixa de ser verdade. - Randa trabalhava enquanto falava. - O senhor fOi na onda, doutor Holbrook. Em vez de esperar pelo veredicto da razão e do progresso científico, preferiu acreditar no que lera na revista Time e no que viu na televisão.

 

- Isso não é verdade. Eu investiguei, li relatórios, falei com os meus colegas, observei doentes. O meu pai quase morreu depois do bypass. Para ele, o Vasclear era a escolha preferível.

 

- E eu digo-lhe, doutor Holbrook, que tudo o que parece demasiado bom para ser verdade "é", invariavelmente, demasiado bom para ser verdade. Fixe estas palavras. O Pai Natal não existe. E o facto de o senhor ter acreditado em milagres acabou por custar a vida ao seu pai.

 

- O doutor Holbrook não fez nada disso, Randa! Sobressaltado, Brian pôs a mão sobre o revólver e virou-se, cambaleando vários passos para trás. Art Weber encontrava-se a menos de três metros, mas olhava para baixo e não para Brian.

 

- Ah!, eis que chega o guru do Vasclear - comentou Randa. - O seu homem ajudou a salvar a vida deste doente. Estava a agradecer-lhe.

 

- Eu ouvi - ripostou Weber. - Randa, você está apenas com medo de perder uma grande fatia do seu querido império dos bypasses. Desde o dia em que percebeu que o Vasclear estava a curar muitas pessoas, dedicou-se a impedir que ele chegasse ao público. Bem, Laj, perdeu. A partir de sábado, os reis e os sultões que têm voado até aqui para fazer inchar ainda mais o seu já desmesurado ego vão poder sentar-se nos seus tronos e ser tratados apenas com a ajuda de um frasco de soro.

 

- Saia! - gritou Randa. - Saia da minha sala de operações.

 

Brian ficou chocado por ver o sique perder a compostura e ser incapaz de responder à letra. Mesmo àquela distância e quase totalmente tapado pela bata, touca e máscara, Randa parecia ter-se esvaziado. "A única explicação possível", pensou Brian, "era o cirurgião pressentir que Wéber tinha razão. Apesar da sua campanha contra a forma como o Vasclear convencera a comunidade científica, Randa não tinha motivos para acreditar que havia problemas com o medicamento."

 

Mas Brian tinha outras preocupações que não o ego ferido de Randa. Havia pessoas dispostas a matá-lo. E o homem no centro da ameaça estava apenas a dois passos dele. Brian não largou o revólver e enfiou o dedo no guarda-mato. Se fosse necessário, dispará-lo-ia do bolso. Os músculos dos ombros e do pescoço estavam tão tensos que quase lhe provocavam espasmos. Esperava que, a qualquer momento, o enorme Leon arrombasse a porta de arma em punho.

 

Em vez disso, Art Weber avançou calmamente e desligou o microfone. Depois saiu da linha de visão da sala de operações e indicou a Brian que fizesse o mesmo.

 

- Encontrei a Carolyn - disse Weber. - Contou-me que você tinha feito um excelente trabalho com o doente do Randa e que calculava que estivesse aqui.

 

Brian recuou um pouco, aumentando a distância entre os dois. Weber parecia descontraído, quase eufórico - tinha o ar de um homem prestes a entrar na história da medicina e, ao mesmo tempo, na iminência de _ganhar vários milhões de dólares.

 

-Onde está o Phil? - perguntou Brian.

- O Gianatasio?

 

- Sim. Sabe o que lhe aconteceu?

 

-Não fazia ideia de que lhe tinha acontecido alguma coisa. Brian tentou decifrar a expressão do homem. Nada. Mas Weber "era" o Vasclear. Se a Newbury Pharmaceuticals tivera algo a ver com o desaparecimento de Phil, ele devia saber.

 

- Ele não apareceu hoje - disse Brian. - Estamos todos muito preocupados.

 

- Agora também estou. Já chamaram a Polícia?

- Chamou o doutor Pickard.

 

Brian largou o revólver, mas manteve a mão no bolso. Mesmo que Weber soubesse onde estava Phil, não iria revelá-lo.

- Brian, queria falar consigo sobre o Vasclear. Sei que andou a investigar alguns dos doentes da fase um. Creio que os nomes deles são Elovitz e Ford.

 

- Eram - corrigiu Brian.

- Desculpe?

 

- Eram Elovitz e Ford. Morreram ambos.

 

Brian absteve-se de falar acerca de MacLanahan e de Sylvia Vitorelli.

 

-Não sabia - comentou Weber. - Bem, gostaria de lhe pedir que não investigasse mais o nosso medicamento até a cerimónia de sábado chegar ao fim. Depois disso pode, e deve, investigar o que quiser.

 

- Não percebo. Quer que eu investigue o Vasclear? Weber assentiu.

 

-Ficámos muito bem impressionados com algumas das coisas que você fez por aqui, Brian. Com a sua actuação de hoje, por exemplo. As nossas responsabilidades não acabam só pelo facto de o Vasclear ser aprovado. E, sejamos francos, tenho outros projectos que requerem a minha atenção. Preciso de um colaborador que supervisione a comercialização do Vasclear e averigúe outros problemas que surjam. Acho que você era capaz de fazer isso, e de o fazer bem.

 

Brian olhou para o outro médico. Pelo canto do olho conseguiu ver Laj Randa afastar-se da mesa quando os seus colaboradores começaram a coser o peito de Paul Wilansky. A operação chegara ao fim.

 

- Não... não sei se acredite no que estou a ouvir - disse.

- Está a oferecer-me trabalho na Newbury?

 

- Iria começar por receber, digamos, cento e cinquenta mil. Mas após os seis primeiros meses podemos renegociar.

- Cento e cinquenta mil é... é bastante generoso.

 

- Não tem de me dar já uma resposta, mas começará a receber assim que o fizer. Claro que pode ficar no Instituto do Coração enquanto o Ernest precisar de si. Durante esse tempo irá receber os dois ordenados.

 

-Não sei o que dizer.

 

- Não tem de me dizer nada já, Brian. Contudo, espero ter notícias suas ainda hoje. E, claro, sugiro que suspenda todos os contactos com a FDA. Eles ainda estão um bocado tensos a respeito da comercialização do Vasclear. Qualquer atraso neste momento seria bastante prejudicial para a Newbury e para milhares de doentes.

 

- Dou-lhe a minha palavra.

 

Art avançou um passo e estendeu-lhe a mão. Brian teve alguma relutância em tirar a mão do bolso da bata, mas acabou por fazê-lo.

 

- Estou ansioso por tê-lo na nossa equipa - disse Weber.

- Sei que a nossa colaboração beneficiará ambas as partes durante vários anos.

 

Ao ver o homem afastar-se, Brian apercebeu-se de que numa semana aprendera o que é ser caçado, alvejado e agora subornado. Art Wéber e os tipos da Newbury tinham-lhe indicado uma saída: a possibilidade de abandonar a sua cruzada, com honra e algum lucro e, claro, com vida. Cento e cinquenta mil logo no começo! Talvez valesse a pena... Não tinha nada de concreto acerca do Vasclear, menos até do que Wéber podia julgar. Cento e cinquenta mil mais os cerca de quarenta e cinco mil que recebia no Instituto do Coração! Fechou os olhos por um momento, quase tonto só de pensar no que perto de duzentos mil dólares poderiam fazer por si e pelas crianças, mas esses pensamentos foram rapidamente substituídos por outra imagem, a imagem de Bill Elovitz a ser projectado contra as prateleiras de uma loja de conveniência em Charlestown, já sem vida ainda antes de tocar no chão.

 

Aproximou-se do plexiglas e viu Paul Wilansky, com o coração a trabalhar de forma satisfatória, a ser transferido para uma maca para fazer a viagem até aos Cuidados Intensivos. Randa, já com a máscara puxada para baixo, encontrava-se a um canto da sala. Brian ligou o microfone.

 

-Como é que ele está?

 

Randa olhou para cima. Por momentos, Brian achou que' iria ignorá-lo.

 

- As pupilas estão menos dilatadas e reagem. Vamos levar algum tempo a saber se houve lesões cerebrais, mas creio que vai ficar bem - respondeu o cirurgião.

- óptimo.

 

-O seu amigo Wéber é um insolente!

 

- Talvez, mas o senhor estava a atacar o trabalho da vida dele.

 

- A corrida nem sempre é ganha pelos mais rápidos - retorquiu Randa. - Na ciência, a vitória vai sempre para o atleta mais constante que percorre a distância a andar, e não para o sprinter.

 

Brian achou graça à analogia de Randa. Nellie Hennessey, a imagem do Vasclear, fazia muitas caminhadas.

 

- Vou ter isso presente - retorquiu.

 

De súbito, Brian sentiu-se gelar, como se tivesse sido atingido por uma rajada de ar do Ártico, mas percebeu o que lhe acontecera: finalmente, compreendera! Estremeceu. Randa dera-lhe a resposta. As suas mãos agarraram o varão de metal na parede e apertaram-no até os nós dos dedos ficarem brancos. A explicação - a resposta fugidia para tantas perguntas passara várias vezes por ele, mas nunca numa forma suficientemente concreta para poder ser agarrada. E ele nunca a vira.

 

Agora, subitamente, percebera. Já sabia qual era o segredo do Vasclear.

 

- Sim! - exclamou. - Meu Deus, sim!

 

Deu meia volta e regressou à sala dos médicos.

 

A hora das visitas estava a terminar quando Brian irrompeu pela porta da enfermaria de investigação clínica, assustando um casal idoso que ia a caminho do elevador.

 

- É uma emergência - explicou quando passou por eles a correr.

 

Se estivesse certo, a chave para desvendar o caso era uma folha de papel que se encontrava na sua pasta. Tirou-a de baixo da cama e despejou o conteúdo sobre a colcha de algodão branco. Durante um momento, pensou que a memória lhe falhara, mas depois encontrou o que procurava no meio de um artigo científico. Era a carta que Nellie Hennessey lhe dera a pedir apoio para a sua marcha de caridade - mais especificamente, a parte do pedido que incluía uma lista das anteriores marchas que ela tinha feito.

 

"Nellie, diga-me uma coisa. Quanto tempo depois de ter tomado o Vasclear é que os seus sintomas melhoraram?" "Quanto tempo? Pouco, querido. Isso, pelo menos, sei." Brian recordou a conversa que tivera com Nellie e com a filha, Megan.

 

"Eu lembro-me bem. Recebeste o primeiro tratamento a dez de Agosto e as dores tinham desaparecido no meu aniversário. Eu faço anos a vinte e quatro. A tua dor desapareceu exactamente duas semanas depois."

 

Dez de Agosto, havia dois anos. O dia em que Nellie iniciara o tratamento. Brian percorreu a lista com o dedo. A caminhada em que ele reparara fora por volta dessa altura.

 

             27 DE JULHO - CAMINHADA DE 40 Km PELA SIDA

 

             40 Km PERCORRIDOS. 2600 DÓLARES RECOLHIDOS

 

Brian olhou para a data. Porque é que não pensara antes em questioná-la? Depois de caminhar quarenta quilómetros no calor de Julho, Nellie encontrava-se a fazer um cateterismo no Instituto do Coração, tendo-lhe sido diagnosticada doença cardíaca arteríosclerótica terminal.

 

Outras peças começaram a encaixar-se. Os sintomas de Nellie, tal como se encontravam expostos na sua ficha, eram os de uma angina, mas a descrição que ela fizera da dor estava longe de ser típica. Porque não teria ele notado isso? Os pais de Nelhe tinham vivido ambos até aos oitenta ou noventa. Qual fora o último doente cardíaco que ele vira que se podia gabar disso? Nenhum.

 

O número de telefone de Nellie encontrava-se na folha.

- Sim, fala Nellie Hennessey - disse ela ao atender. -Nellie, é o doutor Holbrook, aqui do hospital.

 

- Olá, querido. Está tudo bem?

 

- Sim, tudo bem. Estava aqui a olhar para a lista de caminhadas que me entregou e apercebi-me de que fez uma bastante grande pouco antes de lhe ter sido diagnosticado o seu problema cardíaco.

 

- É verdade - respondeu ela, sem hesitar. - Quarenta quilómetros pela sida.

 

- Recorda-se de ter tido dores no peito durante a caminhada?

- Nem por isso. Não me lembro. Mas não se esqueça, doutor Holbrook, que eu nunca cheguei a ter dores no peito, só no ombro e no pescoço. Aliás, na altura em que a prova de esforço deu positivo com a doutora Jessup, a minha saúde começou a melhorar.

 

"Porque a sua dor nunca foi uma dor cardíaca!", apeteceu-lhe gritar.

 

- Nellie, ajudou-me bastante - disse ele. - Espero que a sua próxima caminhada seja um grande êxito.

 

-Não é para essa que você devia desejar êxito, mas sim para a seguinte - retorquiu ela.

 

-Al sim?

 

- A vinte e um de Dezembro vou fazer a caminhada anual do Natal de Boston. O dinheiro vai todos os anos para uma coisa diferente,

 

-E para onde vai este ano?

 

- Julguei que já sabia, querido --- respondeu ela. - Para o Instituto do Coração.

 

Brian voltou a colocar as coisas na pasta e ficou sentado durante algum tempo, com ar ausente, a limpar a arma com um pano. Se estivesse certo - e a sua teoria era a única onde as coisas se encaixavam -, cerca de setenta e cinco por cento dos doentes do grupo beta Vasclear da fase dois não tinha sequer problemas de coração. Os tais setenta e cinco por cento que haviam "melhorado" de forma espantosa. As dores que os tinham levado a Carolyn Jessup eram devidas a bursite, esofagite, gastrite ou pleurisia, ou qualquer dos muitos outros camufladores de doenças cardíacas. Quando tivera o seu consultório, Brian vira tantos doentes com sintomas de origem não cardíaca como doentes com sintomas de origem cardíaca.

 

Não era difícil um electrocardiograma ser electronicamente "ajustado para imprimir o padrão de uma doença cardíaca durante uma prova de esforço. E quanto aos ecocardiogramas feitos na sala de pequena cirurgia? Jessup não fora a única a olhar para o monitor. Tinham estado presentes, no mínimo, duas enfermeiras bem treinadas e um técnico com bastante experiência, já para não falar nos estudantes, estagiários e cardiologistas particulares que frequentavam o laboratório. Entre todos, já haviam visto milhares de cateterismos. Seriam certamente capazes de dizer se um exame era ou não normal.

 

Seria que um cateterismo cardíaco podia ser falsificado? Haveria forma de alterar o ecocardiograma de um doente no momento em que estava a ser feito?

 

Não, concluiu Brian, não havia, a menos que... a menos que o ecocardiograma que estivesse a aparecer no monitor durante o cateterismo inicial não fosse o do doente!

 

Tirou um bloco da gaveta da pequena secretária e começou a escrever uma carta a Teri, explicando-lhe o que achava que estava a acontecer com o Vasclear. Depois, ao fim de algumas frases, parou de escrever e tentou ligar-lhe para casa. Ela atendeu ao primeiro toque.

 

- Olá, sou eu - disse.

 

O alívio que sentiu ao ouvir a sua voz fez de imediato desaparecer a apreensão que o incomodava.

 

- Oh, Brian, acabei de chegar e de ouvir os teus recados. Ia contactar-te agora pelo pager. Estás bem? O teu amigo Phil já apareceu?

 

-Não. Teri, há aqui um grande sarilho e acho que o Vasclear e a Newbury Pharmaceuticals estão envolvidos. Quando é que cá vens?

 

Só no sábado de manhã. Não consegues vir amanhã?

 

Gostava muito, Brian, mas é impossível.

 

-Está bem. Nesse caso, será que tens tempo para ficar mais um pouco ao telefone?

 

-Claro. Mas o que é que se passa?

 

-Acho que o Art Wéber e a Carolyn Jessup têm andado a falsificar os resultados do estudo da fase dois. Acho que a maior parte dos doentes do grupo beta nem sequer tinha problemas cardíacos. E acho que também não têm tomado Vasclear.

 

- Isso é impossível. Temos analisado os ecocardiogramas e os electrocardiogramas. Até temos falado com os doentes... Tens alguma prova concreta?

 

- Vou agora à videoteca tentar buscá-la. Ligo-te assim que puder.

 

- Okay. Eu vou estar por aqui. Tem cuidado, Brian, não faças nada perigoso.

 

Brian voltou a enfiar o revólver no bolso da bata, foi até ao balcão e disse à secretária que durante a hora seguinte poderiam contactá-lo pelo pager. Menos cuidadoso que antes, desceu a correr os seis lanços de escadas até à videoteca da sala de pequena cirurgia, o único sítio onde poderia encontrar provas tangíveis para a sua teoria.

 

Art Wéber parecia estar convencido de que Brian havia sido comprado - pelo menos até depois da cerimónia. Era lógico então que Leon e os seus amigos tivessem sido mandados embora. Com sorte, quando Wéber se apercebesse do seu erro, ele já estaria num local seguro com a documentação de que precisava para desmascarar um embuste de milhares de milhões de dólares.

 

A cave encontrava-se deserta e estranhamente silenciosa. Na outra extremidade do corredor, a seguir à máquina da comida, as luzes da sala dos animais estavam apagadas. Decidido a não repetir o mesmo erro, Brian continuou nas escadas e olhou para o tecto e para as paredes do corredor à procura de uma câmara. Convencido de que não havia nenhuma, avançou para a porta da sala de pequena cirurgia. Era estranho e assustador pensar que Leon e talvez outras pessoas da Newbury podiam estar apenas alguns metros abaixo dele,

 

Podia chegar-se à videoteca pelo laboratório ou pelo corredor. Brian optou pela porta do corredor. Tal como na maior parte das salas de acesso restrito do Instituto do Coração, para se abrir aquela porta tinha de se marcar um código no painel. Brian marcou o seu código e entrou rapidamente na sala escura e sem janelas. Antes de acender as luzes, usou a lanterna para inspeccionar as paredes e o tecto. Tanto quanto se apercebia, não havia câmaras, mas havia uma grade - provavelmente da conduta do ar - no centro do tecto. Subiu para uma cadeira e tentou espreitar lá para dentro. Se havia ali alguma câmara, estava demasiado recolhida para poder ser vista. Brian hesitou, encolheu os ombros e acendeu a luz do tecto. Já que chegara até ali, não ia desistir.

 

A sala era comprida - com cerca de sete metros e meio e estreita. Os últimos dois terços encontravam-se ocupados por prateleiras com vídeos dos cateterismos em caixas de cartão individuais e o primeiro terço pelos dois vídeos Vangard. Brian ligou os dois e procurou num livro o número dos filmes de Nellie. No total, ela fizera quatro cateterismos: no pré-tratamento, depois seis meses, um ano e dois anos após o início da terapia com o Vasclear.

 

Brian não teve dificuldade em encontrar os quatro filmes. Meteu o do pré-tratamento num dos Vangard e o dos dois anos

- aquele a que já assistira - no outro. Depois fez avançar cada uma das cassetes até à primeira imagem, a anterior esquerda oblíqua tirada imediatamente após a injecção de contraste na artéria coronáría direita de Nellie. Quando vistos individualmente, não havia nada de estranho em qualquer dos filmes. O do pré-tratamento mostrava uma arteriosclerose avançada nas ramificações da coronária direita. O dos dois anos, embora não completamente livre de obstruções, mostrava vasos sanguíneos em óptimo estado para uma mulher da idade de Nellie.

 

Só quando os filmes eram observados com atenção, lado a lado, é que o segredo se tornava visível- os ecocardiogramas não eram do mesmo doente, Brian viu o primeiro e o último vídeos, depois passou rapidamente os olhos pelos outros dois, que eram praticamente iguais ao mais recente. O do pré-tratamento - o que fizera com que Nellie Hennessey fosse incluída no estudo do Vasclear - era falso. Bastante parecido, fora escolhido por alguém com acesso a um grande número de casos anormais e que conhecia bem a anatomia cardiovascular. Mas o padrão dos vasos de cada pessoa era único. E o padrão dos vasos nos vídeos de pré e pós-tratamento era bastante diferente. Durante o estudo inicial, fora introduzido no sistema um vídeo do cateterismo de uma pessoa doente que fora projectado no ecrã da sala de pequena cirurgia.

 

- Espantoso... - murmurou Brian. - Absolutamente espantoso!...

 

Ficou ali sentado algum tempo, sentindo um misto de raiva e arrependimento. Se tivesse razão, privara o pai de uma operação que podia curá-lo e pusera a sua recuperação em risco para tratar Jack com uma substância pouco mais forte que água. Não era de admirar que Carolyn Jessup tivesse insistido tanto para que Jack fosse operado por Laj Randa. Ela sempre soubera que o Vasclear que estava a ser dado aos doentes era inútil. Os casos bem sucedidos do Vasclear nunca tinham incluído doentes cardíacos.

 

Brian rebobinou as cassetes, voltou a guardá-las nas caixas e colocou na prateleira a dos seis meses e a do ano. Depois, com as outras duas cassetes na mão esquerda, desligou os vídeos, apagou as luzes e abriu uma nesga da porta que dava para o corredor.

 

Embora não fossem irrefutáveis, os vídeos de Hennessey seriam prova suficiente para adiar a comercialização do Vasclear e trazer Teri, o chefe dela e os peritos em cardiologia até à videoteca à procura de outros exemplos de fraude. Se Brian estivesse certo, iriam encontrar mais cerca de cento e setenta casos em que os vídeos de pré e pós-tratamento tinham discrepâncias anatómicas. Art Weber e os outros directores da Newbury Pharmaceuticals não sabiam, mas estavam metidos num grande sarilho.

 

O corredor encontrava-se silencioso. Brian encostou o ombro à porta e abriu-a um pouco mais. Nada. Só tinha de conseguir chegar à clínica e esconder as duas cassetes na sala dos médicos. De manhã, com a multidão de funcionários e de visitas, não seria difícil levá-las para fora do hospital.

 

Abriu completamente a porta e saiu para o corredor. A coronha pesada de uma pistola bateu-lhe no pulso como um martelo. A dor foi atroz, paralisando-lhe os dedos. As cassetes de vídeo caíram com estrondo no chão de azulejos.

 

Agarrado ao pulso, Brian cambaleou para trás e bateu contra a parede, mal conseguindo manter-se de pé. A pouca distância a olhá-lo de soslaio, estava uma "aparição" - o homem magro que levara com a pedra no bosque de Nova Iorque e depois com o troféu na sua sala. Tinha um hematoma violeta desde o cabelo até ao canto da boca, que lhe inchava o olho e lhe descoloria a cara e um dos lados do nariz. Um bocado do cabelo tinha sido rapado, revelando um corte feio, que fora fechado por vários pontos bem feitos.

 

O homem chamou em russo alguém que se encontrava na sala de pequena cirurgia, impedindo-o de fugir pelo outro lado. Brian, que continuava a sacudir a mão, para ver se deixava de ficar dormente, sabia que dispunha apenas de alguns segundos para agir. Enfiou a mão que não estava magoada no bolso da bata, apontou a pistola na direcção do homem e disparou. A bala atingiu o russo no peito. Os seus olhos abriram-se, cheios de terror, dor e espanto enquanto caía. Dos seus lábios jorrou uma golfada de sangue e já estava de joelhos no chão quando a porta da sala de pequena cirurgia se abriu.

 

Brian, já com a arma fora do bolso, disparou várias vezes na direcção da porta. Depois recuou dois passos, disparou outra vez quando se virou e desatou a correr pelo corredor.

 

Ouviu um tiro, depois outro. Perto do seu rosto saltaram algumas lascas de cimento. Com a bata a esvoaçar atrás dele como uma capa, dobrou a esquina e dirigiu-se para o edifício principal. Ouviu passos atrás de si. Daí a segundos, quem o perseguia teria um bom ângulo para disparar. Reagindo instintivamente, Brian virou à direita e desceu as escadas até à subcave. Passou pela lavandaria, cujo portão estava fechado com uma grade extensível de aço. Ouviu o eco de passos na escada atrás dele, mas, como estava de ténis, julgou poder escapar

 

À direita do túnel principal havia outro mais pequeno com a indicação "Central eléctrica". Sem saber onde estava, Brian enfiou por ali, procurando um esconderijo. Encontrou umas escadas estreitas e escuras que subiam. Lá em cima parecia estar suficientemente escuro para se conseguir esconder. Também poderia disparar na direcção do homem, se fosse preciso. Subiu os degraus de cimento dois a dois, tentando lembrar-se de quantos tiros disparara, para saber quantas balas teria ainda o revólver.

 

Chegou ao cimo das escadas e acocorou-se, às escuras. As escadas terminavam num pequeno patamar onde havia uma pesada porta de aço. Lutando contra a falta de ar e um tremor gelado incontrolável, encostou-se à porta. Poderia ser visto lá de baixo? Achava que não, mas não tinha a certeza. De uma coisa estava certo: matara um homem a tiro. Tentou sentir algum remorso, mas foi incapaz. O seu pai estava morto por causa da ganância daquelas pessoas - e o mesmo sucedera a Bill Elovitz e Angus Maclanahan. Mataria de novo, se fosse preciso.

 

Sentou-se, ainda encostado à porta. Lá de baixo não vinha qualquer som. Estaria lá alguém à espera? Como é que teriam descoberto onde ele estava? Devia haver uma câmara atrás da grade do tecto, nenhuma outra explicação fazia sentido. Passou um minuto. Nada. Brian despiu a bata, enrolou-a numa bola e sentou-se em cima dela. A sua roupa escura devia ser mais difícil de ver na escuridão do que a bata branca. Então ouviu no corredor a estática de um rádio e uma breve troca de palavras em russo. Momentos depois, Leon passou lá em baixo, de pistola em punho, lançando apenas um breve olhar às escadas.

 

Brian susteve o fôlego, levantou a mão e agarrou na barra de metal, para ver se conseguia abrir a porta. Devagar, e sem fazer barulho, empurrou-a. Ela cedeu um pouco. Uma lufada de ar fresco e húmido chegou-lhe ao nariz. Seria possível que a porta desse para o exterior? Empurrou com mais força. Ouviu-se um estalido metálico quando a porta se soltou da esquadria. O som ecoou pelas escadas. Leon apareceu imediatamente lá em baixo, de arma em punho. Brian disparou primeiro. O assassino recuou, dobrou a esquina e disparou vários tiros para as escadas. A bala bateu na parede e foi alojar-se na porta. Ainda acocorado, Brian abriu a porta e disparou duas vezes para as escadas. Quando premiu o gatilho pela segunda vez, ouviu apenas um clíque.

 

Leon avançou e disparou, mas Brian já se encontrava no exterior. Caía uma chuva gelada. Estava num beco entre edifícios numa das extremidades do hospital. À sua esquerda, o beco parecia não ter saída. À sua direita, ouviu o barulho de carros. Largou o revólver e correu nessa direcção. Com o peito a arder, avançou disparado pela rua molhada e deserta, passando por umas obras. Não seria capaz de continuar a correr assim durante muito mais tempo.

 

Uma sebe densa que lhe chegava ao ombro rodeava um prédio à sua frente. Reuniu as forças que lhe restavam e tentou enrolar-se, para ver se passava incólume pelo meio dos arbustos, mas não conseguiu. Os ramos de cima arranharam-no. Encharcado e a sangrar dos novos ferimentos nos braços e na cara, caiu pesadamente no'chão do outro lado da sebe, esforçando-se por respirar.

 

Com a roupa encharcada, Brian ficou deitado no chão à chuva durante mais quinze minutos, espreitando para o hospital, a duzentos metros de distância. Não havia sinal de Leon, mas sabia que isso não queria dizer nada. Os capangas da Newbury Pharmaceuticals estariam sempre mobilizados e à procura dele. Não podia tentar regressar ao White Memorial. Weber e os dirigentes do Instituto do Coração teriam posto a segurança do hospital à sua procura, e talvez mesmo a Polícia de Boston.

 

Já deviam ter inventado uma história a respeito do homem que fora morto na cave do instituto e o mais provável é que Brian estivesse no centro dessa história.

 

Levantou-se a custo e flectiu os braços e as costas. Tinha o joelho a latejar por causa da corrida pelos túneis de cimento. A chuva batia-lhe nos golpes superficiais dos braços, evitando que o sangue coagulasse. Nesse momento, o seu pager soou. Precisavam dele na enfermaria. Reparou ainda que o pager tinha o código geral ligado, através do qual podia ser chamado por todo o hospital. Felizmente, a carteira encontrava-se no bolso das calças.

 

Chegou a uma loja de conveniência e ignorou os olhares curiosos do empregado enquanto lhe trocava um dólar. Depois ligou para a secretária da enfermaria.

 

- Encontro-me fora do hospital e amanhã à noite também não vou estar aí - declarou. - Informe o cardiologista de serviço no White Memorial. Diga-lhe que também terei o pager geral desligado.

 

Cortou a chamada sem dar à secretária tempo para responder, chamou um táxi e dirigiu-se a casa de Freeman Sharpe. As suas chaves e as que os Sharpe lhe tinham dado da sua casa encontravam-se na pasta, na sala dos médicos. Se Freeman e Marguerite não estivessem em casa, teria de vaguear pela zona perigosa de Roxbury à noite, encharcado até aos ossos, com a roupa do hospital vestida. Nesse momento, a monotonia do ano que passara na Speedy Rent-A-Car não lhe pareceu tão má como até aí.

 

A rua junto ao prédio estava deserta.

 

- Quem é? - perguntou Freeman pelo intercomunicador.

- Freeman, é o Brian.

 

- Hum...

 

Freeman abriu-lhe a porta da rua. Marguerite espantou-se com o seu aspecto.

 

- Um dia apareces-me à porta com um belo fato - disse ela. - Nessa altura vão ter de me reanimar.

 

Brian tomou duche e vestiu as calças de ganga e a camisola que fora buscar a casa. Depois sentou-se na sala enrolado num cobertor e com uma caneca de café fumegante na mão, tentando expulsar o frio dos ossos.

 

-Esta noite matei um homem no hospital - disse, simplesmente.

 

-Um deles? - perguntou Freeman.

 

-O que esteve em minha casa. Atingi-o no peito com a arma que lhe tirei esta manhã.

 

- Pelo menos a cabeça já não lhe vai doer mais. Eu avisei-te, Brian. Estas pessoas não têm alma e declararam-te guerra. Tens de lhes responder na mesma moeda; rege-te pelas regras deles. Já percebeste melhor o que está a passar-se... porque é que se sentem tão ameaçados por ti?

 

- Já percebi, mas não tenho provas. Quanto a sentirem-se ameaçados por mim, têm bons motivos para isso.

 

- Conta-nos.

 

- Ainda faltam algumas peças do puzzle, mas, essencialmente, a questão é que, assim que o medicamento estiver no mercado, vai ser muito difícil tirá-lo de lá. E é praticamente impossível mandar recolher um medicamento por este não funcionar. Aliás, a maior parte dos remédios que estão no mercado não é grande coisa. Alguns não fazem absolutamente nada. E a verdade é que ninguém se importa. Ninguém nos laboratórios nem na fda tem tempo ou está interessado em avaliar os resultados obtidos com esses medicamentos, desde que não façam mal a ninguém. O problema é esse. Primum non nocere é a expressão latina que nos ensinam na faculdade: "Primeiro, não se faça mal." A maior parte das pessoas melhora "independentemente" ou até "apesar" do medicamento que toma. Outras, em estado mais grave, fazem sempre tratamentos múltiplos. É quase impossível dizer o que funciona e o que não fumciona.

 

- Mas esse Vasclear funciona - interrompeu Marguerite. Brian abanou a cabeça.

 

- É precisamente isso. Não funciona - respondeu. - Os investigadores do Instituto do Coração têm forjado os resultados. o Vasclear não faz nada. Aliás, foi até prejudicial às pessoas a quem foi administrado. Alguns dos primeiros doentes que o tomaram tiveram melhoras no início, mas depois desenvolveram um problema fatal nos pulmões.

 

- Então porque é que eles continuaram? - perguntou Freeman.

 

- Acho que sabes tão bem como eu qual é a resposta. Desenvolver um novo medicamento, testá-lo e pô-lo à venda custa cem milhões de dólares, ou mais. Se o teu amigo Cedric estiver certo em relação aos homens que estão por trás da Newbury Pharmaceuticals, e não vejo porque não há-de estar, não me parece que eles encarem de ânimo leve a perda de cem milhões de dólares. Só precisam de pôr o medicamento à venda para o dinheiro começar a entrar. Há-de passar um ano, talvez mais, antes de as pessoas começarem a suspeitar de que o medicamento não faz nada e vários anos até ser retirado do mercado.

 

- Desde que ninguém seja prejudicado... - observou Marguerite.

 

- Eles não contam com pessoas como o meu pai, que acabam por não ser operadas porque se deixam iludir pela promessa do Vasclear, mas sim, desde que ninguém seja prejudicado...

 

- E os doentes da fase um? Os que pioraram? - perguntou Freeman.

 

- São pontas soltas. Quanto mais tempo andarem por aí, maiores probabilidades haverá de alguém começar a estranhar o problema de pulmões deles e questionar o papel que o Vasclear teve nele, por isso acho que alguém, provavelmente o Wèber tem vigiado as análises ao sangue dos doentes da fase um. Assim que os resultados começam a ser estranhos, as pessoas sofrem um acidente.

 

- Mas não tens provas?

 

- Tive-as na mão: duas cassetes de vídeo tiradas da videoteca do hospital. - Falou-lhes das de Nellie Hennessey. - Foi quando quase me mataram. A propósito, acho que devíamos ligar a televisão, para ver o noticiário.

 

-Eu ligo - disse Marguerite -, embora o noticiário só vá para o ar daqui a um quarto de hora.

 

Não foi necessário fazerem zapping ou esperar os quinze minutos. Estava a dar um noticiário especial no primeiro canal de Boston que Marguerite sintonizou. "Violência no Instituto do Coração", lia-se no ecrã ao lado da pivô. Brian e os dois amigos viram em silêncio a reportagem passar para uma jornalista que se encontrava no local.

 

- Daqui Lina Fallin, em directo do White Memorial Hospital, em Boston, onde dois homens foram mortos a tiro e parte do Instituto do Coração se encontra destruída por um incêndio. É no White Memorial que, daqui a dois dias, o presidente vai assinar a aprovação da comercialização de um medicamento milagroso desenvolvido e testado no instituto. Não se sabe ainda se estas mortes estão ou não relacionadas com a visita presidencial.

 

"A identidade de uma das vítimas, um segurança encontrado num corredor da cave, ainda não foi divulgada, mas a outra, praticamente carbonizada, crê-se ser o doutor Philip Gianatasio, um cardiologista do Instituto do Coração que desaparecera hoje ao início do dia. Embora ainda não haja qualquer confirmação oficial, um dos agentes presentes no local disse que a morte de Gianatasio parece ter sido devida a um tiro, e não ao incêndio que destruiu por completo a videoteca na cave do instituto. O incêndio ficou circunscrito a esse local.

 

- Oh!, meu Deus, não! - exclamou Brian, tapando o rosto com as mãos. - Oh, Phil! Merda! Não!

 

. Marguerite apertou a mão de Brian e puxou-o para si. Todos calculavam o que viria a seguir.

 

- Os pormenores ainda não são claros, Paula, mas a Polícia diz andar à procura de um médico, também cardiologista, chamado Brian Holbrook, que esteve de serviço esta noite no hospital, mas que ligou há algumas horas a dizer que se encontrava fora do edifício e não iria voltar.

 

Brian mudou de canal.

 

-... o superintendente Dracut está no local e dentro de quinze minutos dará uma conferência de imprensa, mas, repito, os agentes encontraram o que acreditam ser a arma do crime, uma pistola provavelmente abandonada pelo assassino durante a fuga. Procura-se neste momento o doutor Holbrook, que no passado parece ter tido problemas com drogas e só há pouco foi autorizado a voltar a exercer medicina.

 

- Bill, já se sabe se a Casa Branca foi informada desta tragédia e se ela irá afectar a cerimónia de sábado?

 

-Não, ainda não.

 

Brian desligou o aparelho, demasiado chocado e furioso para conseguir chorar.

 

- Dinheiro ilimitado, nenhuma consideração pela vida humana - comentou Freeman. - É uma péssima combinação.

- Médico toxicómano enlouquece - disse Brian. - Que

 

conveniente! Temos de reconhecer a habilidade deles! E podes ter a certeza de que, assim que a Polícia me apanhar, o Weber e os seus amiguinhos hão-de arranjar maneira de chegar até mim.

 

- Quem me dera poder discordar de ti!... - redarguiu Freeman. - Tens algum trunfo na manga? Qualquer coisa?

- As fichas desapareceram. As cassetes de vídeo desapareceram. O Phil também. E eu devo desaparecer antes de conseguir convencer alguém a acreditar na minha história. Agarrou no telefone e ligou a Phoebe, que estava a dormir.

- Faz o que puderes para proteger as miúdas - disse, depois de lhe suplicar que acreditasse que não tivera uma recaída e apenas disparara em autodefesa. - Eu contacto contigo assim que puder. Lamento que isto esteja a acontecer.

 

Ela ficou demasiado chocada para conseguir falar, mas, pelo menos, não o acusou.

 

Brian viu ainda televisão durante hora e meia, mas pouco mais ficou a saber. O incêndio da videoteca fora provocado com grande perícia. Os detectores de fumo tinham sido tapados com fita adesiva, depois as centenas de angiogramas haviam sido retiradas das caixas, colocadas sobre o corpo de Phil Gianatasio e incendiadas.

 

Por volta da meia-noite, Ernest Pickard leu um comunicado a lamentar o sucedido e a pedir a Brian que se entregasse. Mais tarde, o porta-voz da Casa Branca, Stan Pomeroy, informou que, se não se soubesse mais nada sobre as circunstâncias do duplo homicídio, o presidente iria manter a cerimónia de sábado, conforme planeado. No entanto, acrescentou, talvez fosse necessário tomar medidas de segurança adicionais.

 

Freeman e Marguerite foram-se deitar por volta da meia-noite e meia. Brian desligou a televisão e telefonou a Teri. Ela estava acordada.

 

-Brian! Tenho estado tão preocupada contigo! Acabaram de me telefonar a contar o que aconteceu.

 

- Eu não provoquei aquele incêndio, Teri, e o único homem que matei foi um que estava a tentar matar-me. -Então quem é que provocou o incêndio e matou o teu amigo Phil?

 

-As pessoas da Newbury Pharmaceuticals.

- Brian, o que é que estás a dizer?

 

Ele contou-lhe os acontecimentos dessa noite. Ela ouviu-o pacientemente, mas quando respondeu fê-lo num tom de urgência.

- Brian, tens de te entregar - replicou. - Se o que estás a dizer é verdade, as pessoas vão acreditar em ti.

 

-Não tenho provas. Nem uma!

 

- Posso mandar analisar algumas amostras de Vasclear. Achas que isso ajudava?

 

- Talvez, mas desconfio que nos frascos há um químico qualquer parecido com o original. Aquelas pessoas são muito cuidadosas.

 

- Não sei o que dizer, Brian. Conhecemo-nos há pouco tempo e... não sei no que é que hei-de acreditar. Continuo a pensar que devias entregar-te.

 

-Não me vou entregar. Se o fizer, eles matam-me, tenho a certeza. Terí, tens de convencer as pessoas a acreditarem em mim!

 

-Tens alguma prova? -Não, mas...

 

- Brian, por favor, não me coloques nesta posição. Entrega-te.

 

- Se eu conseguir arranjar alguma prova, como é que a faço chegar às tuas mãos?

 

- Trá-la a Maryland.

 

- Quando é que vais cá estar?

 

-No sábado. A cerimónia é às oito na Cúpula de Hipócrates.

 

- Vou tentar contactar-te. Teri, eu não fiz nada de errado. Tens de acreditar em mim!

 

- Estou a tentar... - afirmou ela.

 

Brian desligou e deitou-se no sofá. Quando acordou, cinco horas mais tarde, encontrava-se tapado com um cobertor. Ocheiro de café e de salsichas fritas enchia a casa.

 

-Ainda bem que conseguiste dormir - disse Marguerite. - O Freeman está a tomar banho.

 

-Obrigado. Tens o jornal de hoje?

 

- Sim, mas acho que não vais querer vê-lo.

 

- Se for o Globe, quero, se for o Herald, não sei.

 

- É o Globe, mas a diferença entre os dois é muito pouco perceptível em histórias como esta.

 

Brian encheu uma caneca com café e olhou para a sua própria fotografia na primeira página. Por ironia do destino, era a que entregara com o currículo no White Memorial.

 

- E pensar que quando jogava à bola me queixava se a imprensa não me dava muita atenção... Isto vai ser horrível para as minhas filhas.

 

Freeman saiu da casa de banho em roupão, a secar o cabelo com uma toalha.

 

-Bom, hoje é outro dia.

 

- Eu lembro-me do que dizem os Alcoólicos Anónimos: um dia sem beber ou tomar droga é um bom dia, mas tenho algumas dúvidas quanto a ontem.

 

-Eu sei. Já tens algum plano?

 

- Nem por isso, mas preciso de fazer qualquer coisa. Freeman sentou-se ao lado dele e bebeu um pouco de sumo,

- No hospital há alguém em quem possas confiar? - perguntou.

 

- Só o Phil. - Brian apontou para a fotografia do amigo que vinha no jornal. - E talvez aquele cirurgião egomaníaco que tentou salvar o Jack. O resto das pessoas tem demasiado a ganhar, em termos profissionais e financeiros, com o Vasclear. Porque perguntas? -Bom, sei que a máfia russa é capaz de abater um tipo numa loja ou de fazer ir pelos ares um velhote num apartamento, mas é um bocado difícil de acreditar que todos esses médicos cheios de poder são capazes do mesmo ou que aprovam esse tipo de actuação.

 

- Ou que tenham sequer conhecimento! - exclamou Brian.

 

- O que queres dizer? Brian não respondeu de imediato. Se Freeman tivesse razão talvez houvesse uma fenda na couraça do Vasclear – alguém que sabia, em parte, o que estava a acontecer, mas não tudo, especialmente não a parte sobre os homicídios dos doentes da fase um.

 

- Freeman, estás sempre a dizer que quando precisas de qualquer coisa há sempre alguém nos Alcoólicos Anónimos e nos Narcóticos Anónimos que ta pode arranjar,

 

- É verdade.

 

-Bem, se eu te der o nome de uma pessoa que tem um número de telefone confidencial, achas que consegues arranjar alguém que me descubra esse número de telefone e a morada que o acompanha?

 

- Queres dizer alguém que trabalhe para a companhia dos telefones?

 

- Exacto.

 

Freeman e a mulher trocaram um sorriso.

 

- Qual o nome e a localidade? - perguntou Freeman.

- Mora na margem norte; Salem, MarbIehead, Beverly, Gloucester... uma destas. Não sei qual.

 

-E o nome?

 

- Doutora Carolyn Jessup.

 

-Vou ver o que posso fazer. Pode levar algum tempo.

- Não faz mal, não posso ir para mais lado nenhum. E Freeman, se conseguires, preciso de outras três coisas.

 

- Desde que uma delas não seja uma arma... -Por acaso...

 

- Estou a falar a sério, meu amigo. Se estás a pensar em enfrentar aqueles tipos da Newbury, quero que primeiro vás até à Polícia. Se arranjares uma arma nesta altura do campeonato, o mais certo é acabares morto.

 

- Okay, okay. Esquece a arma.

 

- Nesse caso, diz-me só o que é que precisas para o teu grande plano, e eu vou ver o que posso fazer.

 

-Não é nada de extraordinário. Preciso de um carro alugado, de três ou quatro envelopes de correio azul e de um telemóvel... e, já agora, de muita sorte!

 

                BOSTON HERALD

 

Médico Toxicómano Procurado por Duplo Homicídio. Presidente Confirma Vinda

 

Foi emitido um mandado de captura em nome de Brian Holbrook, antiga estrela de futebol da Universidade do Massachusetts e actual médico do Instituto do Coração de Boston. Holbrook, que perdeu a licença durante dezoito meses devido à prescrição fraudulenta de narcóticos para sustentar o seu vício, é o principal suspeito num estranho tiroteio que teve lugar no White Memorial Hospital, onde morreram um segurança e um proeminente cardiologista, de nome Phil Gianatasio, que também trabalhava no instituto.

 

Fontes próximas do presidente informaram que não há planos para alterar a data da cerimónia agendada para amanhã à noite no White Memorial.

 

Brian passou a manhã sentado ao computador de Freeman,,

 

a escrever um relatório pormenorizado de tudo o que acontecera desde o dia em que Jack fora levado para as Urgências do White Memorial.

 

"As fichas do hospital desapareceram", escreveu ele, "e maior parte dos doentes da fase um, senão todos, está morto mas acredito que uma análise cuidada à autópsia de Wilhe Elovitz irá revelar as alterações que a saturação pulmonar provocou nas artérias dos pulmões, tal como um exame cuidado do vídeo da loja de conveniência irá demonstrar que o seu homicídio foi deliberado e premeditado... "

 

Era quase uma da tarde quando começou a imprimir o documento de onze páginas. Uma cópia para o Globe, outra para o Herald, outra para os pais de Phil Gianatasio e uma última para Teri. Não daria nenhuma a Freeman e a Marguerite. Já se tinham arriscado o suficiente por ele. Como dissera Freeman, aquilo era uma guerra. E Brian não podia permitir que mais amigos seus perdessem a vida.

 

Um relatório de onze páginas para o Globe e para o Herald escrito por um médico toxicómano procurado por homicídio, sustentado por factos pouco tangíveis, acusando os fabricantes de um medicamento milagroso de fraude e de várias mortes... soaria a uma grande loucura? Os devaneios de um louco... e de um louco perigoso, ainda por cima! "Não me safo", pensou Brian. Não havia a mínima hipótese de alguém o levar a sério. E se o fizessem, um suborno, uma ameaça ou uma bala resolveriam o assunto.

 

Lá fora a chuva constante continuava a cair. Iria continuar durante cinco ou sete dias, tinham previsto os meteorologistas. A chuva, o sol, o Outono, as crianças, a única noite que passara com Teri, Freeman e Marguerite, os seus doentes, todos pareciam valer tanto naquele momento! Lançar uma bola, escutar um coração, respirar fundo... Brian perguntou-se se não teria saboreado muitas coisas da sua vida de forma diferente se soubesse que era a última vez que as vivia.

 

Quantas "últimas vezes" com Jack haviam passado sem ser devidamente notadas durante aquelas derradeiras semanas agitadas?

 

O telefone tocou. Brian hesitou, depois atendeu. Era Freeman. Rebentara um cano no prédio ao lado. Ele estaria em casa daí a uma hora com tudo o que Brian lhe pedira.

 

-Assim que me entregares as coisas, eu piro-me daqui e não precisas de te preocupar com mais nada.

 

- Olha, se pensas que vou tentar díssuadír-te, estás muito enganado - retorquiu Freeman. - Não gosto de me armar em herói.

 

Brian vestiu-se e calçou os ténis ainda húmidos. Era altura de começar a preparar-se. Se estivesse enganado quanto a Carolyn Jessup, se não conseguisse demovê-la, teria de estar disposto a entregar-se... ou a fugir. A única coisa que ainda lhe faltava fazer era falar de novo com Teri. Não podia deixá-la às escuras. Mas também não podia esperar que ela arriscasse a sua credibilidade nem a sua carreira por causa dele. Resolveria aquele assunto sozinho. E se falhasse, falharia sozinho.

 

Encontrou-a no gabinete.

 

- Teri, vou mandar-te por correio azul um resumo completo do que acho que está a passar-se com o Vasclear. Também vou mandar uma cópia para os jornais. Talvez alguém pressinta que não estou maluco.

 

- Mas continuas a não ter provas...

 

- Pois não, mas vou procurá-las esta noite. Ontem trabalhei com a doutora Carolyn Jessup num caso bastante difícil e ela tratou do meu pai antes de ele morrer. É uma médica excelente. Embora eu não quisesse que o Jack fosse operado, ela fartou-se de insistir na cirurgia. Creio que foi por achar que o Vasclear não iria fazer-lhe nada. Não sei como é que se envolveu com aquelas pessoas da Newbury, mas espero que venha a público quando souber o que é que elas têm andado a fazer.

 

-Para teu bem, eu espero o mesmo. Posso fazer alguma coisa por ti?

 

- Onde é que vais ficar hospedada amanhã aqui em Boston?

 

- Em lado nenhum. Apanhamos um avião de volta a seguir à cerimónia.

 

- Até é melhor. Creio que é preferível manteres-te de fora. O Phil achou o contrário e olha o que lhe aconteceu!

 

- Brian, tens a certeza de que estás bem? Os jornais daqui disseram coisas muito desagradáveis a teu respeito.

 

- Devem ter dito. Teri, quem me dera que isto não estivesse a acontecer, mas eu só me safo quando tudo chegar ao fim. O envelope deve estar no teu gabinete amanhã por volta das dez. Lê o que eu escrevi, e logo vês se mudas ou não de opinião.

 

- Está bem. Toma cuidado. Não faças nenhuma loucura. Brian pousou o auscultador e fechou os olhos. Estava quase a adormecer quando o som de uma chave na fechadura o assustou. O cheiro do cachimbo de Freeman precedeu-o alguns segundos - Um telemóvel. As chaves de um Ford Taurus - anunciou ele, pousando-os na mesa com uma certa cerimónia. - Envelopes de correio azul dos correios ao pé da tua casa. Morada e número de telefone de uma doutora Carolyn Jessup. Mapa da zona metropolitana, incluindo a cidade de Nahant.

 

- Nahant... - repetiu Brian. - Ela disse-me que vivia na margem norte, mas não me lembrei de Nahant.

 

A antiga ilha estava agora ligada ao continente por uma ponte com quase dois quilómetros. Consistia principalmente em bairros acidentados de casas de madeira amontoadas, mas possuía também belas mansões viradas para o mar, muitas com vista para o porto de Boston. Por acaso, agora que pensava nisso, Nahant - remota, imaculada, interessante - parecia o lugar ideal para Carolyn Jessup.

 

A tarde já ia a meio quando Brian fechou o último envelope e o deixou no balcão da cozinha.

 

-Obrigado por tudo o que fizeste por mim, Freeman - disse ele, agarrando na mão do amigo. - E olha que te saíste bem: apesar de tudo aquilo por que passei, não voltei a tocar na droga nem na bebida.

 

-Não te esqueças é de continuar assim - retorquiu Sharpe. - Tens sempre lugar nesta casa, meu amigo. E espero um telefonema teu assim que falares com essa mulher de Nahant. Usa o telemóvel e fica com ele o tempo que precisares. Quanto ao carro, fiz todos os seguros e tomei a liberdade de mandar fazer outra chave. Fico com a original, não vá alguém roubá-lo. Toma lá mais isto, para o caso de não encontrares um multibanco.

 

Estendeu-lhe um envelope.

 

- É só um empréstimo - disse Brian, sem o abrir. - Vou pagar-te.

 

- Só precisas de não te deixares matar. Isso é paga suficiente.

 

Brian meteu no saco de ginástica algumas roupas, o telemóvel e o mapa.

 

- Se isto não resultar, tencionas entregar-te? - perguntou Freeman.

 

- Não sei. Talvez alugue O Fugitivo e decida depois.

 

- Com esse tamanho, dás mais nas vistas que o Harrison Ford.

 

-Não me digas...

 

Brian abraçou o amigo durante bastante tempo.

 

- O carro está em frente à porta - disse Freeman, por fim. - Calculei que gostasses de preto.

 

- Perfeito.

 

-Não te esqueças, pá, que Deus não nos dá mais do que aquilo que conseguimos aguentar.

 

-Freeman, desculpa o que te vou dizer - redarguiu Brian -, mas com o meu pai e o meu amigo mortos e eu procurado por dois homicídios, um dos quais não cometi, esta não é a melhor altura para me vires falar de Deus.

 

Brian sentiu-se tenso e alerta durante a viagem de quarenta e cinco minutos até Nahant, feita na hora de ponta. O mais pequeno toque de chapa ou uma mudança proibida de faixa poderia significar os seus últimos minutos de liberdade.

 

Teria mesmo de fugir? Assim que o fizesse, sabia que não seria salvo repentinamente, que não obteria qualquer vingança triunfante. O Vasclear seria posto à venda - ou melhor, um placebo quimicamente semelhante "rotulado" Vasclear. Anos mais tarde, e talvez depois de ganhos milhares de milhões, o Vasclear sairia do mercado, apenas outro medicamento promissor que não resistira ao teste do tempo. Mas pronto, não houvera vítimas... exceptuando, claro, Jack Holbrook, Bill Elovitz, Phil e alguns outros.

 

Brian subiu Lynnway, uma avenida feia de três quilómetros com stands de automóveis, restaurantes, estações de serviço e postes de electricidade. Já passava das quatro e a chuva dera lugar a uma pálida aparição do Sol. Até Lynnway parecia ter a cara lavada. Passou por um complexo de apartamentos, por um último restaurante, e encontrou-se na estrada para Nahant. Aproximou-se dele um carro-patrulha com a sirene a funcionar. Brian sentiu o coração parar. Encostou-se à berma, pronto a render-se, mas o carro ultrapassou-o. Se fugisse, iria acontecer-lhe aquilo até ao fim da vida.

 

Graças ao mapa de Freeman, não teve dificuldade em encontrar o caminho através do emaranhado de ruas estreitas que formava a cidade. A casa de Carolyn Jessup ficava à beira-rio, no fim de uma pequena rua secundária na extremidade sudeste da península. Era modesta, mas encontrava-se oculta dos vizinhos e da rua por uma sebe bem aparada com mais de dois metros de altura. A casa em si, térrea, tinha uma garagem e ficava um pouco afastada da rua, num pequeno promontório sobre a água. As janelas que davam para a rua não tinham grande vista, mas Brian calculou que as que estavam viradas para o porto e para a cidade deviam ter uma vista espectacular.

 

Com pouca vontade de ficar demasiado tempo parado, foi dando voltas. Quando os candeeiros da rua se acenderam, já descobrira uma ruela escura onde podia deixar o Ford Taurus sem que a Polícia local desse por ele. Só conseguiria sacar a verdade a Jessup se se encontrasse frente a frente com ela.

 

A ponte era um problema. Se Jessup estivesse decidida a proteger-se e a proteger a Newbury, e se soubesse que ele se encontrava por perto, um telefonema para a Polícia faria com que a outra extremidade da ponte fosse cortada antes de ele ter tempo de abandonar a península. Outro problema era a sua relutância em ficar dentro do carro na ruela. Uma patrulha não prestaria atenção ao Ford Taurus se este se encontrasse vazio. Durante a hora seguinte, Brian foi e veio várias vezes ao continente, arriscando-se a parar numa loja de hambúrgueres. Passou duas vezes por carros-patrulha de Nahant.

 

Eram nove horas quando reparou que havia luzes acesas em casa de Jessup. Envergando um casaco escuro, pegou no telemóvel, saiu do carro e atravessou a rua deserta, dirigindo-se para junto da sebe. Contornou-a até se encontrar do lado da água. Deparou-se com um relvado estreito bem aparado atrás da casa e com um declive rochoso de cerca de seis metros até à água, As nuvens baixas ajudavam a manter o relvado às escuras, mas o brilho das luzes da cidade reflectia-se na água e iluminava ligeiramente o edifício.

 

Tal como Brian esperara, o lado sul da casa de Jessup era praticamente só vidro e tinha um telheiro com três metros quadrados junto à cozinha. Avançou até à extremidade do terreno, depois desceu e aproximou-se da margem, chegando às rochas alisadas pela água. Daí conseguia ver bem a cozinha e a sala de Jessup. Pegou no papel com o número de telefone, mas parou assim que ela entrou na cozinha.

 

Encontrava-se a cerca de cento e cinquenta metros, mas, mesmo àquela distância, apercebeu-se de que ela estava agitada. Tinha ainda vestidas a saia e a blusa e andava de um lado para o outro. Parou de repente, tirou uma garrafa do armário, encheu um copo e despejou-o de um trago. Voltou a servir-se, mas deixou o copo no balcão, aproximou-se da janela e olhou para a cidade do outro lado do rio.

 

Brian desceu um pouco mais até à água. Sentia-se pouco à vontade por estar a espiá-la daquela forma, mas, nesse momento, quanto mais próximos estivessem, melhor. Jessup parecia exausta. Soltou o cabelo e abanou a cabeça. "Estava na altura", pensou Brian. Marcou o número e, com alívio, viu-a reagir ao toque do telefone. As fontes de Freeman nos Narcóticos Anónimos tinham conseguido de novo. Reparou que ela usava um telefone sem fios, que se encontrava sobre uma mesa a um canto da cozinha.

 

- Sim?

 

- Doutora Jessup, fala Brian Holbrook.

 

Ela pareceu retesar-se ao ouvir o nome dele.

- Como é que conseguiu o meu número?

 

- Estava encurralado. As pessoas desesperadas às vezes conseguem as coisas mais inusitadas. Desculpe ligar-lhe assim, mas, como sabe, estou metido num grande sarilho. E a verdade é que não posso contar com ninguém.

 

-Devia contar com a Polícia e não comigo.

 

- Doutora Jessup, ontem trabalhámos em conjunto para salvar a vida de um homem. Acho que a senhora é uma médica extraordinária. Acho também que é justa ao ponto de ouvir o que tenho para lhe dizer. E outra coisa.

 

- Sim?

 

- Creio que tentou salvar o meu pai ao insistir que ele fosse operado, em vez de tomar o Vasclear.

 

Durante os poucos segundos de silêncio que se seguiram, Brian viu-a pegar no copo que estava em cima do balcão e esvaziá-lo.

 

- Não sei do que é que está a falar.

 

- Doutora Jessup, eu não matei o Phil Gianatasio. Ele era meu amigo. Mas matei o homem que os jornais dizem que era segurança do hospital. Ele pode ter trabalhado para lá, mas trabalhava também para a Newbury Pharmaceuticals como assassino a soldo. Matei-o porque ele ia matar-me. E ia matar-me porque eu ia a sair da videoteca ao pé da sala de pequena cirurgia com os angiogramas de Nellie Hennessey tirados antes e depois de ela ter tomado o Vasclear. Sei que o filme feito antes não era dela, doutora Jessup. Não verifiquei os dos outros doentes, mas aposto o que quiser em como uma análise atenta aos vídeos revelaria a mesma coisa. O Phil também tinha começado a perceber o que estava a passar-se. Foi por isso que o mataram. Foi por isso que queimaram os filmes.

 

- E está a falar de quem?

 

- Das pessoas da Newbury. Acho que o Art Weber se encontra no centro de tudo, embora não acredite que ele controle a empresa toda.

 

Houve outra hesitação reveladora. Jessup estava encostada ao frigorífico.

 

- Não acredito em si. Se tem alguma acusação a fazer, fale com a Polícia. Agora, vou desligar.

 

- Por favor! Por favor, doutora Jessup, ouça-me! A minha vida está nas suas mãos, bem como a vida de muitas outras pessoas. Não acredito que pelo menos não me ouça!

 

-Continue - disse ela, por fim.

 

- Obrigado. Não sei como é que se meteu nisto, mas não me parece que tivesse percebido o que estas pessoas fizeram. Em relação aos doentes da fase um - os doentes que começaram a desenvolver saturação pulmonar com a ingestão do Vasclear -, a Newbury tem arranjado umas mortes acidentais para aqueles que não morreram com SP. Enquanto vocês andavam a criar um milagre médico fantasma ao inventar doentes que não tinham problemas cardíacos, a Newbury andava a eliminar aqueles que podiam abrandar o processo de aprovação do Vasclear. A matá-los.

 

- Tem provas?

 

-A senhora é a minha prova, doutora Jessup. Podia ter deixado o meu pai morrer, mas tentou salvá-lo. Se tivesse sabido o que a Newbury andava a fazer aos doentes da fase um, acho que teria agido. Preciso da sua ajuda. Preciso que faça o que é correcto.

 

No silêncio que se seguiu viu-a despejar outro copo.

- Não... não sei se sou capaz.

 

Sentara-se numa cadeira da cozinha e olhava lá para fora, apática.

 

- Importa-se de, ao menos, falar comigo pessoalmente? perguntou Brian. - Preciso que me esclareça algumas coisas. Depois, se não quiser fazer mais nada, é consigo. Eu vou arriscar.

 

Jessup estava vencida, exausta. Brian apercebeu-se disso nesse momento.

 

- Quando? - perguntou ela.

 

- Agora. Deixei um papel com instruções nos degraus das traseiras da sua casa. Elas dir-lhe-ão onde pode encontrar-se comigo.

 

Brian inventara aquela mentira para impedir que Jessup ligasse à Polícia e mandasse cortar o trânsito na ponte. Ela continuava sem saber que ele estava ali. Se lhe desligasse o telefone ou ligasse a alguém, ele ir-se-ia embora; se viesse até cá fora e depois se recusasse a ajudá-lo, teria de a amarrar, para conseguir fugir.

 

Sem a perder de vista, e mantendo-se agachado, Brian avançou até um sítio onde podia aparecer entre ela e a porta de casa. Na cozinha, Jessup continuava agarrada ao telefone, a pensar no pedido dele. Por fim, após um interminável minuto, abriu as portas de correr e saiu de casa. Brian escondeu-se ainda mais. Ela olhou em volta com cuidado, depois avançou até às escadas e procurou o papel. Brian saiu do esconderijo e parou à frente dela.

 

-Doutora Jessup, por favor, não tenha medo - disse ele rapidamente -, não vou fazer-lhe mal. Só quero falar. Jessup cambaleou um passo para trás, fitando-o com uma expressão de raiva. Brian julgou que ela iria atacá-lo.

 

- Como é que se atreve a vir aqui espiar-me desta maneira? - perguntou, com voz rouca.

 

Brian não pôde deixar de a admirar. Ele ganhava-lhe em tamanho, e não só, mas ela não parecia minimamente intimidada.

- Doutora Jessup, o meu pai morreu porque eu acreditei no que me disseram acerca do Vasclear. Agora o meu pai morreu, eu tive de matar um homem e a minha própria vida está a ir por água abaixo. Isto tem de acabar! Falsificar os resultados de uma investigação é uma coisa. No entanto, há pessoas a serem assassinadas. Não pode permitir que isto continui.

 

Jessup ainda o fitava, mas Brian apercebeu-se da fadiga e da confusão no olhar dela. Por fim, soltou um longo suspiro de derrota.

 

- Quer entrar? - perguntou. -Prefiro ficar cá fora.

 

Levou-a para um canto do relvado e pôs no chão o casaco, para que ela se sentasse sobre ele.

 

-Lamento imenso a morte do seu pai.

 

- Eu sei. Pelo menos agora tem oportunidade de fazer qualquer coisa acerca disso.

 

- Tenho medo.

- Eu também.

 

Jessup esfregou os olhos.

 

-Muito bem, por onde quer que comece?

 

-Tanto faz. Quero saber mais coisas sobre o Vasclear. Quero saber como é que isto aconteceu.

 

- Aqui há uns anos, o Art Weber trabalhou com um grupo médico internacional numa clínica situada na bacia do rio Amazonas, na Colômbia. Foi aí que ele descobriu o Vasclear. Ou, pelo menos, julgou ter descoberto. Havia uma tribo de índios que todos os dias comia uma casca de árvore cozida e cujos membros viviam até aos cem anos, ou mais, sem sinal de endurecimento das artérias. O Art julgou ter descoberto a fonte da juventude, mas precisava de dinheiro para analisar os componentes da casca, isolar a substância bioactiva, sintetizá-la e testá-la. E queria manter a maior parte do controlo e dos lucros. Não sei como é que ele conheceu as pessoas que agora possuem a Newbury ou que tipo de acordo fez com elas, mas uma coisa lhe digo: ele era capaz de convencer um coelho assustado a sair da toca.

 

- Ele fez um pacto com o Diabo - disse Brian. - Essas pessoas pertencem à máfia russa.

 

Jessup olhou para ele, impressionada.

 

- Por acaso, pertencem à máfia chechena - continuou embora eu não soubesse nada acerca deles até as coisas começarem a correr mal. Segundo o Art, até a máfia russa tem medo dos chechenos.

 

- Acredito.

 

- As pessoas por trás da Newbury investiram uma enorme quantidade de dinheiro, mas o Art explicara-lhes quanto podiam ganhar. Foram precisos três anos de investigações químicas e de trabalho com animais para isolar a substância bioactiva-a que chamaram Vasclear. Deram-me o cargo de directora de investigação clínica e a Newbury começou a financiar vários projectos do Instituto do Coração em troca do trabalho que eu fazia. Tudo parecia estar a correr bem com o Vasclear até termos começado os testes da fase um. A princípio, o medicamento mostrou-se prometedor, mas depois alguns animais ficaram doentes, em especial os primatas, e a seguir algumas pessoas.

 

- Eosinófilia seguida de saturação pulmonar.

 

- Exacto. O Art disse aos seus sócios da Newbury que tinham de recomeçar do zero. Eles afirmaram que não havia problema, desde que ele lhes devolvesse com juros as dezenas de milhões de dólares que lhe tinham emprestado.

 

- Mas como é que ele a convenceu a continuar com a farsa? Jessup desviou o olhar. Mesmo na penumbra, Brian viu-a corar. Ela e Art Weber eram amantes!

 

- Havia... havia muita coisa em jogo para mim - respondeu Jessup, escolhendo as palavras com cuidado -, financeiramente e não só.

 

- Compreendo - disse Brian, poupando-lhe a humilhação de ter de contar tudo.

 

- O Art estava completamente em pânico. Disse que as pessoas da Newbury não hesitariam em matar-nos se não arranjássemos forma de lhes devolver o dinheiro. Foi aí que eu tive a ideia de criar falsos problemas em alguns doentes, para depois os curar. Sim, a ideia foi quase toda minha. O Art fez alguns ajustamentos, mas a base foi minha. Até calculámos quanto tempo o medicamento teria de estar no mercado até ficarmos livres da Newbury.

 

- Aposto que não seria muito... - comentou Brian. -O fundamental era que a FDA nunca efectuasse a sua própria investigação.

 

-E desde que ninguém fosse prejudicado pelo Vasclear, ninguém prestaria atenção.

 

- Mas os casos e os resultados laboratoriais tinham de parecer convincentes - acrescentou Jessup com um certo orgulho na voz.

 

- E pareceram.

 

- Reprogramar o electrocardiógrafo para imprimir testes de esforço anormais foi relativamente fácil. O desafio maior eram os cateterismos. Escolhi uma espécie de arrecadação que existia sob a sala de pequena cirurgia. Construímos um apartamento lá em baixo para os nossos técnicos, bem como um sofisticado centro electrónico ligado ao ecrã do laboratório.

 

- Eu sei onde fica esse apartamento - interrompeu Brian. - O assassino que matei devia estar lá escondido, se é que não vivia lá.

 

- Isso eu não sabia - disse ela. - Tem de acreditar em mim. Eu não sabia.

 

-Acredito. Continue, por favor.

 

-Bem, reuni um conjunto de vinte cateterismos anormais... os suficientes para conseguirmos duplicar a anatomia de quase todos os doentes.

 

- O que utilizaram com a Nellie Hennessey era bastante parecido.

 

- E não era sequer o melhor que tínhamos.

 

- Então como é que fazia? Tinha algures um interruptor?

- Sim, sob o pedal que utilizava para controlar a câmara. Quando carregava nele, a injecção de contraste que era projectada no ecrã vinha lá de baixo. Tinha de corresponder exactamente àquilo que estávamos a ver no laboratório.

 

- Mas não era a do doente...

 

Jessup olhou para a água, abatida. No entanto, Brian pressentiu nela um certo alívio.

 

- Não, não era.

 

- Desculpe perguntar-lhe isto, mas a senhora e o Art continuam... tão íntimos como dantes?

 

- Ele, parece estar a afastar-se gradualmente, se é isso que quer dizer, mas continuamos a ser amantes. Houve uma altura em que pensei que era capaz de fazer qualquer coisa por ele. Mas não me interprete mal: eu também iria lucrar. Dois milhões ou mais, só no primeiro ano, se tudo corresse bem. Eu tenho dinheiro, mas não tanto assim.

 

Brian esfregou os olhos, para aliviar o ardor provocado pela tensão e pelo cansaço.

 

- Temos de arranjar um plano - disse ele. - O que acha que devemos fazer agora?

 

-Fazer? - repetiu uma voz de homem atrás deles. Ora, eu espero que não façam nada.

 

Brian e Jessup viraram-se de repente. Art Weber estava ali, a observá-los com ar calmo. Perto de si encontravam-se Leon e outros dois homens, todos de arma na mão.

 

Brian olhou para Jessup para ver se ela estava tão chocada com a chegada dos intrusos como ele. Não teve de esperar muito para descobrir.

 

- Art, ele sabe tudo - disse ela -, tudo!

 

Weber avançou e bateu-lhe com toda a força na cara com as costas da mão.

 

- Sabe agora, sua estúpida! - exclamou.

 

Minutos?... Horas?... Dias?... Para Brian, a noção de tempo deixara de existir, devido ao remoinho causado pelas drogas e pela dor. Encontrava-se sentado numa cadeira numa sala pequena e sem janelas, os braços e as pernas amarrados. As costelas, que deviam estar feridas, devido aos pontapés que levara na barriga e no peito, causavam-lhe dores atrozes quando respirava.

 

Agora, pela primeira vez, as suas ideias começavam a ficar mais claras. Lembrava-se de ter sido agredido por Ixon nas traseiras da casa de Carolyn Jessup - socos e pontapés na cara e na barriga. Lembrava-se da primeira injecção que lhe tinham dado no músculo situado na base do pescoço quando ainda estava deitado sobre a relva húmida. Lembrava-se também de o terem enfiado num saco. De o terem colocado num porta-bagagens. Depois, não se lembrava de mais nada.

 

Pestanejou, tentando focar a vista. Os olhos estavam inchados, os músculos da cara rígidos e dilatados. A língua tocou na cavidade carnuda onde outrora estivera um dente. Tinha as narinas cobertas de sangue seco.

 

- Água... - gemeu. - Dêem-me água...

 

Atrás dele houve um movimento. Pouco depois encostaram-lhe à boca um copo de plástico. Bebeu, agradecido, bochechando antes de engolir. Começou a ver melhor. O homem que segurava o copo tresandava a perfume barato. Era baixo e atarracado, com um bigode fino e olhos castanhos inexpressivos. o condutor com quem Freeman falara à porta de sua casa em Reading. O aposento era um misto de sala de estar e de cozinha, os móveis práticos. Não havia quadros nas paredes brancas. A um canto encontravam-se uma televisão e um vídeo.

 

Embora não houvesse nada a indicá-lo, Brian tinha a certeza de se encontrar nas profundezas do hospital, no espaço da subcave que Carolyn Jessup ajudara a criar. Algures, talvez atrás da porta de incêndio cinzenta à sua frente, devia estar a sala de controlo utilizada para projectar vídeos no ecrã da sala de pequena cirurgia do andar de cima. Não ficaria admirado se nessa sala houvesse também ecrãs para vigiar os corredores, os quartos e as zonas ligadas ao programa Vasclear.

 

Brian perguntou-se como é que Weber conseguira apanhá-lo. Carolyn devia ter sido seguida até casa desde o hospital por um dos chechenos. Não havia outra explicação para a chegada oportuna de Weber ao local. Agora Weber estava decidido a saber os nomes das pessoas a quem Brian falara do Vasclear. Usara drogas - algo parecido com Seconal, pensou Brian. Agredira-o - para além das dores que sentia no corpo, tinha a certeza de que o dedo mínimo da mão esquerda estava partido.

 

Teria a tortura terminado? Estaria Weber convencido de que sabia tudo o que Brian tinha a dizer? Quanto tempo passara? Teria a cerimónia de aprovação do Vasclear chegado ao fim? O que acontecera a Jessup? Ter-se-ia ele ido abaixo em algum momento e dito o nome de Teri? De Freeman e de Marguerite?

 

As perguntas ecoavam na sua cabeça. De uma coisa tinha a certeza: não iria sair dali vivo. A porta à sua esquerd'a abriu-se, revelando um segundo aposento, uma espécie de quarto com metade do tamanho da sala onde se encontrava. Viu uma cama e a extremidade de outra. Sentada de lado na cama estava Carolyn Jessup. Parecia ter sido agredida na cara, mas o cabelo não se encontrava em desalinho e, de resto, aparentava estar bem. Vestira o fato de operar, mas Brian não conseguiu imaginar por que motivo.

 

- Não vou voltar a amarrar-te, Carolyn - ouviu Weber dizer -, mas já sabes o que acontece se tu ou o teu amigo sentado naquela cadeira causarem mais sarilhos. Estes homens receberam ordens, e gostarão muito de as executar. Entendido?... Entendido?

 

- Sim.

 

- O senhor também entendeu, doutor Holbrook? - perguntou ele saindo de costas do quarto e vírando-se para Brian. Se a doutora Jessup se magoar, a culpa é sua.

 

-Entendi - conseguiu Brian dizer. - Que dia é hoje?

 

- Dia? Ora, é Natal! Caramba, parece que o senhor não está nada bem! Acho que o Leon ficou muito aborrecido consigo por causa do que fez ao amigo dele, não ficaste, Leon?

 

O gigante assassino apareceu vindo de trás de Brian e agrediu-o violentamente na boca. As feridas dos lábios de Brian, já estalados e cobertos de sangue, voltaram a abrir-se. Ele chupou o sangue e olhou, furioso, para o rosto cheio de cicatrizes de Leon. Os olhos ferozes deste fitaram-no também.

 

- Parem com isso! - gritou Carolyn.

 

Weber apontou de dedo em riste na sua direcção.

 

- Cala-te! - exclamou. - Isto é um aviso. Um último aviso. - Virou-se para Brian e continuou: - Ainda não estamos conversados. - Olhou com ar teatral para o Rolex e Brian reparou que Weber vestira um fato de excelente corte e uma gravata de seda cara. - No entanto, como já deve ter notado, hoje é dia dezanove de Outubro. Tenho um assunto urgente para resolver com o presidente dos Estados Unidos. Os nomes que nos deu incluem dois jornais e o pai do pobre infeliz Phil Gianatasio. Com esses podemos bem. Mas continuo com a sensação de que está a esconder-nos mais coisas.

 

- Mandou pôr o meu telefone sob escuta - replicou Brian com voz rouca. - Já sabe tudo.

 

- Doutor Holbrook, exceptuando os poucos minutos de que todos temos conhecimento, há vários dias que o senhor não vai a casa. Mas descanse, os seus pecadilhos estão bem guardados. Nunca pusemos o seu telefone sob escuta.

 

- Mas...

 

-Agora não tenho tempo para estar a falar consigo. No entanto, prometo que quando voltar vamos continuar a nossa conversa, se necessário com uso da violência. Entretanto, Leon, não quero que batas em nenhum deles, a menos que te causem problemas. Nesse caso, castiga-a. Ela pode vir para aqui assistir à cerimónia na televisão, se quiser, e até pode falar com ele, mas não quero que os deixes sozinhos nem por um momento. Percebido?

 

Leon grunhiu qualquer coisa e assentiu.

- Okay - disse.

 

- O inglês do Leon deixa um pouco a desejar - explicou Weber -, mas pode ter a certeza de que percebe tudo. Não é, Leon?

 

- Tudo.

 

O sorriso de Leon revelou dentes manchados de nicotina. Weber aproximou-se da televisão e ligou-a num canal local.

- Se as informações de que disponho estiverem correctas,

 

o Canal Sete irá transmitir em directo a cerimónia lá de cima. Os delegados de informação médica da Newbury têm recebido encomendas de Vasclear vindas de todo o mundo e os camiões estão prontos a ir para a estrada. Pouco antes de a cerimónia chegar ao fim, hão-de pôr-se a andar.

 

- O senhor não passa de um idiota e de um falhado - observou Brian.

 

Weber recuou e deixou que Leon voltasse a esmurrar Brian. A cabeça bateu nas costas da cadeira e o nariz partido começou a deitar sangue. Nos seus olhos surgiram lágrimas.

 

- Vamos ver quem é o falhado - retorquiu Weber. Volto daqui a umas horas. Tenho de assistir a uma cerimónia com o presidente e de começar a espalhar uns boatos a respeito de vocês os dois. Holbrook, espero que me dê respostas satisfatórias.

 

Virou-se, atirou um beijo a Carolyn e saiu. Brian ficou imóvel, tentando arrumar as ideias. Teria Weber dito a verdade quando afirmara não ter colocado o seu telefone sob escuta? Nesse caso, como teria...

 

-Brian, está bem?

 

Carolyn saíra do quarto. As equimoses em redor dos olhos estavam feias e tinha o lábi 'o inferior rasgado.

 

- Já estive melhor - conseguiu ele dizer. - Porque é que vestiu o fato de operar?

 

- Vomitei. Obrigaram-me a vê-los bater-lhe. -Ainda bem que eu não assisti.

 

Estava prestes a continuar a falar, mas parou quando lhe ocorreu uma ideia. Talvez Weber tivesse prometido qualquer coisa a Carolyn se esta conseguisse sacar-lhe aquilo que as drogas e a tareia não tinham conseguido.

 

Ela foi até ao lavatório, humedeceu uma toalha e limpou-o com cuidado. Depois afastou uma cadeira da pequena mesa e colocou-a, a pouca distância, de forma que Brian pudesse ver-lhe a cara. Brian pressentiu que, tal como ele, ela estava a pensar numa forma de sair dali. Se não pudesse confiar nela, decidiu nesse momento, não teria qualquer hipótese. Mas não ia falar em Teri nem nos Sharpe. Viu um homem no quarto à esquerda e outro, o homem do perfume, atrás, à direita. Leon, agora perto de Jessup, fazia três deles. Todos tinham coldres sob o braço. Era mau sinal.

 

- Lamento o que aconteceu, Brian - disse Jessup, fitando-o e falando devagar, demasiado devagar, pensou ele. - Lamento muito. Sabe, tenho estado a pensar nos maravilhosos casos médicos que partilhámos ao longo dos anos.

 

"Que diabo...?"

 

A expressão intensa dos olhos de Jessup fê-lo continuar calado.

 

- Sim - respondeu ele, ainda intrigado. - Recordo-me. -Fiquei particularmente impressionada com aquele cavalheiro que você me ajudou a tratar uma noite na clínica. Walter qualquer coisa.

 

"Louderman." Brian olhou para Leon, que estava encostado ao balcão da cozinha a pouco mais de um metro. Parecia indiferente à conversa.

 

- Era um caso fascinante - continuou Jessup. - Parecido com o daquela senhora chamada Hennessey... a que tinha aqueles vídeos incríveis e que você ajudou a salvar daquela vez na sala de pequena cirurgia.

 

"Louderman... vídeos como os da Nellie... " De repente, Brian percebeu. Nem todas as provas do caso Vasclear haviam sido destruídas no incêndio da videoteca. Ainda havia um conjunto de vídeos - um que fora cuidadosamente escondido dos olhares curiosos -, os vídeos do homem que tencionava vir a ser o próximo presidente dos Estados Unidos.

 

Brian assentiu, indicando-lhe que percebera. Olhou para a televisão, onde estava a dar um concurso. A cerimónia ainda não começara.

 

- Tem a certeza de que o vimos na clínica? - perguntou Brian.

 

- Por acaso, agora que penso nisso, acho que foi no meu gabinete - respondeu ela. - Fizemos-lhe o electrocardiograma com aquele aparelho especial que eu lá tenho... aquele que eu inventei. O que está ao lado do arquivo.

 

"No gabinete de Jessup. Os vídeos de Louderman encontram-se no arquivo, bem como o electrocardiógrafo alterado." Eram as provas que ele tanto procurara - as provas que podiam deter o Vasclear, encerrar a Newbury e ilibá-lo das acusações de homicídio.

 

Leon parecia estar a prestar atenção à conversa, mas, se percebia que os pormenores médicos eram disparatados, não o deixou transparecer. Brian não fazia ideia de como poderiam sair dali, mas, se conseguisse chegar aos pisos de cima, precisava de saber o código de entrada no gabinete de Jessup.

 

- Lembro-me perfeitamente desse caso - disse ele, fazendo um esgar, devido a uma forte dor no peito. - Esperámos os dois uma hora no corredor porque "não conseguímos entrar. Jessup assentiu.

 

- Sim - disse ela. - Eu pensei que ele estava com problemas na vértebra cervical inferior.

 

"C-7... a vértebra cervical inferior."

 

-É verdade - respondeu Brian -, mas não era esse o caso.

 

- Não. E, tanto quanto me lembro, também verificámos os leads dele no electrocardiograma.

 

"Doze leads... 7-1-2... "

 

- Admira-me que ainda se lembre.

 

- É difícil esquecer. Você fez um óptimo trabalho. Especialmente a examinar as coronárias.

 

"Quatro... 7-1-2-4... " Brian fez-lhe sinal de que compreendera a combinação e testou a corda que lhe prendia as mãos. Esta não cedeu. Se levasse os joelhos ao peito conseguiria dar um pontapé ou poderia bater em alguém com a cabeça, mas a corda em redor dos tornozelos significava que não poderia pôr-se de pé nem manter o equilíbrio. E não sabia quanto mais pancada as suas costelas partidas conseguiriam suportar.

 

-Como é que está o seu coração? - perguntou Jessup com uma expressão que sugeria que ele devia prestar atenção. -Dói-me um bocado.

 

-Bom, desde que não tenha uma FV.

 

"FV, fibrilhação ventricular.. " Era um ritmo cardíaco letal, normalmente acompanhado de colapso e de apoplexia. Carolyn queria que ele simulasse uma paragem cardíaca. E depois?

 

Viu-a levantar-se e pôr-se a andar de um lado para o outro. Na mesa havia uma garrafa de vodca a meio. Bebeu um gole

- ninguém tentou impedi-la -, depois tornou a pousar a garrafa. Uma arma. A seguir virou-se para a televisão. A cerimónia ainda não começara. Uma vez Brian saíra do aeroporto em direcção a Boston quase ao mesmo tempo que o presidente. O túnel de cerca de dois quilómetros para a cidade fora fechado ao trânsito. O cortejo era formado por duas ambulâncias, meia dúzia de motociclistas, sete carros-patrulha e seis ou sete limusinas. Era de admirar que conseguissem chegar a horas a qualquer lado.

 

Jessup espreitou para dentro do frigorífico e dos armários, que estavam praticamente vazios. Por fim, alargou o elástico das calças e devagar, com um gesto teatral, meteu a blusa para dentro. Depois voltou a apertar o elástico em torno da cintura estreita. Foi um gesto que qualquer homem com uma molécula de testosterona, independentemente da sua idade, acharia sedutor. Brian apercebeu-se de que os dois bandidos a observavam. Ela aproximou-se de Leon, fazendo os possíveis para o manter interessado no seu corpo, e queixou-se de que estava cheia de fome. "Só um dónut e um café", murmurou, roçando-lhe no braço. Era uma boa tentativa.

 

"Não tens hipótese", pensou Brian, embora reconhecendo a coragem dela. Então, subitamente, Leon esboçou um grande sorriso e deu-lhe uma palmadinha no rabo.

 

-Donuts - repetiu, com uma gargalhada.

 

Disse qualquer coisa em russo ao homem de bigode, que rapidamente veio postar-se em frente de Brian. Depois gritou para o homem que estava no quarto. O terceiro russo, bastante mais novo que os outros dois, apareceu de imediato e colocou-se junto à porta. Era alto e bem constituído, mas parecia ter apenas uns vinte anos, se tanto. Por fim, Leon pegou no braço de Carolyn e sentou-a no sofá em frente à televisão.

 

- Quieta! - ordenou,

 

Saiu, depois de ter dado mais algumas ordens aos seus homens. "Dispunham de cinco minutos", pensou Brian. "dez, no máximo. Se iam tentar alguma coisa, tinha de ser imediatamente."

 

- Escute - disse Brian ao homem que agora mandava você fala inglês?

 

- Eu falo bem inglês - disse o guarda corpulento com ar ameaçador, mas ao mesmo tempo vaidoso.

 

-Olhe, não me sinto nada bem.

 

Esperou mais trinta segundos. Depois inclinou-se para a frente e começou a gemer e a ofegar.

 

- O quê? - perguntou o homem. - O que foi?

 

- Brian, é o seu coração? - gritou Jessup, levantando-se de repente.

 

Brian gemeu ainda mais, depois atirou-se para o chão, abanando a cabeça com força e fazendo os possíveis por parecer que estava a ter uma apoplexia. Jessup correu para ele.

 

-É o coração! - exclamou. - Depressa, desamarre-o, para eu o poder ajudar!

 

-Não, espere pelo Leon.

 

-Nessa altura já estará morto, seu idiota! Olhe para ele! -Não! - repetiu o homem.

 

- Você aí! - disse Jessup para o guarda mais jovem. Vire-o de barriga para cima.

 

Os dois guardas, cada vez mais perplexos, trocaram algumas palavras em russo, enquanto Brian continuava a gemer e a agitar ritmadamente as pernas.

 

Por fim, o homem mais novo baixou-se e virou Brian de barriga para cima. Brian viu que Jessup se levantara e segurava a garrafa de vodca atrás das costas.

 

- Agora! - ouviu-a gritar.

 

Jessup bateu com a garrafa na cabeça do homem mais corpulento e ele caiu no meio de uma chuva de vidros e de bebida. O guarda mais novo virou-se para trás ao ouvir o barulho. Embora os movimentos de Brian estivessem limitados pela corda e pela dor que sentia nas costelas, o seu ataque foi suficientemente rápido. Passou as mãos por cima da cabeça do homem. A corda que lhe prendia os pulsos apertou a garganta do bandido. O checheno caiu pesadamente em cima dele, virado para o tecto.

 

Ignorando a dor no peito provocada pelo peso do homem, Brian fez força para baixo. O jovem agitou-se violentamente, mas foi incapaz de se voltar. O seu cotovelo era uma lança, batendo uma e outra vez nas costelas de Brian. Subitamente, os golpes pararam. O corpo do homem ficou inerte. Brian, com os olhos cheios do sangue que lhe escorria do nariz, continuou a exercer pressão com a corda.

 

- Já pode parar, Brian - disse Jessup. - Ele está morto. Brian empurrou o corpo para o lado, incapaz de deixar de olhar para a massa violeta protuberante que era a sua lingua. Ficou admirado por sentir tão poucos remorsos em relação a ter morto alguém pela segunda vez. Carolyn, ainda ofegante, ajoelhou-se ao seu lado e desatou os nós.

 

- O outro tipo morreu? - perguntou ele. -Não. Por acaso, acho que está a vir a si.

 

Brian ajudou-a a virar o homem semi-inconsciente de barriga para baixo e amarraram-lhe os braços e os tornozelos.

 

- Quer ficar e tentar surpreender o Leon? - perguntou ela.

- Quero é sair daqui! Não estou em condições de derrotar o Leon.

 

-Nesse caso, temos de ir até ao meu gabinete o mais depressa possível - disse ela. - Se conseguirmos levar aqueles vídeos para a cúpula e mostrar ao Alexander Baird aquilo que temos, ainda podemos interromper a cerimónia.

 

- Prometo que digo a quem me der ouvidos que você me salvou a vida - declarou Brian quando ela o ajudou a levantar-se. - Isso vai ajudar.

 

Jessup baixou-se, tirou o revólver do coldre do cadáver e estendeu-o a Brian.

 

Este abanou a cabeça.

 

- Um amigo meu disse-me ainda ontem que o facto de eu ter uma arma na mão pode fazer com que alguém decida matar-me primeiro e fazer depois as perguntas.

 

-Não me importo que me matem - replicou ela, embalando a arma nas mãos. - Nunca tinha pegado numa coisa destas. Tem algum truque?

 

- Aponte e dispare, tal como com uma máquina fotográfica. Abriram devagar a porta que dava para o centro de comunicações. O aposento era tal como Brian o imaginara - equipamento de gravação ultramoderno, meia dúzia de ecrãs na parede.

 

O corredor estava deserto.

 

- Vamos até ao primeiro andar e de lá apanhamos o elevador para o quarto - sugeriu Jessup.

 

- Com o nosso aspecto, acho melhor cingirmo-nos às escadas.

 

Carolyn tirou um lenço de uma caixa que se encontrava sobre o balcão e limpou algum do sangue da cara de Brian. -Então vamos pela escada. Aguente, Brian. Isto está a acabar.

 

- Espero que sim - murmurou ele. - Diga-me uma coisa - continuou, enquanto seguiam pelo corredor até às escadas -, como é que lhe parece que o Art apareceu ontem à noite em sua casa daquela forma? Acha que foi seguida?

 

Jessup pensou algum tempo.

 

-Não sei - acabou por dizer. - Parei um bocado na praia junto à ponte e não havia lá ninguém. O meu carro era o único que se encontrava no parque de estacionamento. Se havia alguém a seguir-me, não sei como é que não me apercebi disso nessa altura. Porquê?

 

- Continuo intrigado - respondeu Brian. - Só isso.

 

                 WHDH-TV

                 Canal Sete

 

"Daqui Kimberly Herrera, directamente da venerável Cúpula de Hipócrates, no White Memorial Hospital, onde há poucos momentos o presidente dos Estados Unidos foi ovacionado pelas cerca de quatrocentas pessoas que enchem este bonito auditório. A acompanhá-lo, o director da FDA, o doutor Alexander Baird, e à sua espera os senadores do Massachusetts Sal Giglia e Walter Louderman.

 

"O ambiente é eléctrico. Daqui a momentos, o doutor Baird e o presidente irão assinar os documentos necessários à aprovação do Vasclear, o miraculoso medicamento para o coração. O medicamento foi desenvolvido pela Newbury Pharmaceuticals de Boston e testado aqui no famoso Instituto do Coração. Após essa parte da cerimónia, o presidente declarará aberta a Semana Nacional do Coração.

 

"A multidão, composta não só por dignitários locais, está admirada com a atmosfera que rodeia a visita presidencial e com a enorme cúpula de vitral, onde se vêem representados grandes momentos da história da medicina. A cúpula encontra-se na última fase do restauro, que durou dois anos e custou para cima de cinco milhões de dólares, que vieram inteirinhos de fontes particulares. Como podem ver, ainda se encontram aqui alguns andaimes. Está magnificamente iluminada por oito projectores, trazidos expressamente para esta ocasião.

 

Bem, as luzes estão a diminuir. A cúpula brilha. E o presidente acabou os cumprimentos e tomou o seu lugar no estrado. Hoje é um grande dia para a medicina de Boston, famosa em todo o mundo...

 

Impelido pela adrenalina, mas limitado pelos ferimentos, Brian seguiu Carolyn Jessup até ao gabinete no quarto andar. Sentia muita dificuldade em respirar. Tinha o nariz tapado por sangue seco e as costelas doíam-lhe a cada movimento. Mesmo assim, subiu os seis lanços de escadas desde a subcave sem parar. Como dissera Carolyn, aquilo estava quase no fim.

 

Dada a presença do convidado de honra do hospital, as escadas encontravam-se desertas. Chegaram ao gabinete de Jessup sem dar de caras com ninguém. Ela marcou o código e abriu a porta, conduzindo Brian pela zona da recepção até ao gabinete propriamente dito. O electrocardiógrafo estava onde ela dissera. Ao lado encontrava-se um arquivo de carvalho com quatro gavetas. Jessup gemeu.

 

-A chave está no meu molhe de chaves - disse. -Não tem uma sobressalente?

 

- A minha secretária tem, mas penso que também a guarda no molhe dela.

 

Brian revistou a secretária da recepcionista e surgiu não com a chave, mas com um corta-papéis.

 

- Foi uma dádiva inesperada terem-me mandado o senador Louderman para uma avaliação cardíaca - explicou Jessup enquanto Brian tentava abrir a gaveta. - Completamente inesperada. Assim que o fizemos acreditar no Vasclear, todo o processo se acelerou.

 

- Mas ele não tinha problemas cardíacos...

- Não, só uma simples esofagite.

 

Brian notou que ela não conseguia ainda disfarçar um certo orgulho. No preciso momento em que achou que o corta-papéis se iria partir, a gaveta abriu-se. Os vídeos de Louderman, devidamente itiquetados, encontravam-se numa pequena pasta de cabedal.

 

-Temos de nos despachar - disse Brian. - O Leon já deve ter voltado com o café e devem andar à nossa procura Vamos!

 

Quando se dirigiram para a porta que dava para a recepção, Brian comentou:

 

-Não sei se estou suficientemente apresentável para conhecer o...

 

O barulho de uma pistola com silenciador interrompeu-o a meio da frase. Virou-se a tempo de ver Jessup, que levara as mãos ao peito, a girar e a cair pesadamente sobre a secretária. À porta, de armas em punho, encontravam-se Leon e o assassino corpulento que tinham amarrado. Brian amaldiçoou-se ao lembrar-se que Carolyn sugerira que fossem directamente ao seu gabinete, sem lhes ocorrer que o homem no chão podia estar consciente. "Estúpido!" Mas mais estúpido ainda fora não ter levado a arma que Carolyn lhe oferecera.

 

Desesperado, olhou para a janela quando os dois assassinos avançaram para a recepção. O gabinete de Jessup ficava no quarto andar, mas no piso de baixo, talvez a menos de quatro metros, havia um terraço - o terraço da unidade de observação cirúrgica, calculou Brian. Teria ele coragem para saltar pela janela? Conseguiria sobreviver à queda?

 

- Doutor maroto - disse Leon, esboçando um sorriso grotesco. - Fica aí - ordenou ao colega em inglês.

 

Avançou um passo. Atrás dele, Brian viu que Carolyn tentava mexer-se. O outro homem não estava a olhar para ela, mas sim para Brian. A sua distracção foi fatal. O tiro de Carolyn, disparado de um ângulo estranho, acertou em cheio na testa do homem, Ele ia a cair para trás quando Jessup tornou a disparar. Desta vez, Leon gritou e agarrou-se ao ombro. Carolyn, de joelhos, conseguiu esconder-se atrás da secretária quando Leon disparou na sua direcção.

 

Brian sabia que chegara o seu momento de agir. Atirou-se para a porta que dava para a recepção, fechou-a e trancou-a, De trás da porta veio um tiro e depois outro. Ainda pensou em pedir ajuda à telefonista, mas mudou rapidamente de ideias quando a madeira em volta da fechadura foi desfeita por um tiro e depois por outro. Pegou na cadeira giratória de cabedal e atirou-a com toda a força contra a janela. O ar fresco e húmido da noite inundou o gabinete. Lá fora, uma chuva batida a vento caía do céu negro. Outro tiro. Mais madeira a saltar.

 

Brian limpou com o pé os vidros que restavam, enfiou a mão na pega da pasta que continha os vídeos de Louderman e pendurou-se na janela até ficar com os braços esticados. O latejar no peito e no dedo eram excruciantes. O telhado parecia mais baixo do que julgara, mas que diferença fazia isso naquele momento? Assim que a porta lá em cima se abriu, ele saltou.

 

"Passa e rola", foi o seu único pensamento enquanto caía à chuva. "Passa e... "

 

Caiu no terraço de gravilha com as pernas esticadas e tombou desajeitadamente para um lado. As suas costelas partidas afastaram-se ainda mais. Sentiu uma forte dor no joelho aleijado. Bateu nas pedras molhadas com o ombro e com um lado da cara, rasgando a pele já ferida. O impacto abalou-o, mas, mesmo assim, conseguiu reagir à voz que gritava na sua cabeça: "Mexe-te!... Mexe-te!"

 

Brian rolou, afastando-se do edifício, quando uma bala foi alojar-se na gravilha, não muito longe do seu pescoço. Leon, lá em cima, à janela, tornou a disparar. Desta vez o tiro rasgou o músculo da coxa de Brian, Ele gritou, mas continuou a rolar pelo terraço. Olhou para trás no preciso momento em que Leon, pendurado pelo braço que não estava ferido, descia pela janela.

 

Agarrado aos vídeos dos angiogramas de Louderman, Brian obrigou-se a levantar e, arrastando a perna esquerda ferida, cambaleou pelo terraço, rezando para encontrar uma porta de incêndio. No entanto, em vez disso, viu um andaime que ia até ao edifício ao lado. À sua frente, talvez a cinquenta metros, a noite estava completamente iluminada. Projectores situados em vários edifícios brilhavam à chuva, apontados para o mesmo sítio: a cúpula!

 

Se conseguisse aproximar-se o suficiente, poderia atirar a pasta com os vídeos pelo vidro e depois tentar descer pelos andaimes ao longo do Edifício Pinkham. Pelo menos as provas sobreviveriam. A distância até ao chão do anfiteatro era de sete ou oito metros, mas os vídeos pareciam estar suficientemente protegidos.

 

Olhou por cima do ombro no momento em que Leon caiu no terraço. Apesar do braço ferido, o assassino rolou com uma agilidade graciosa e levantou-se com a rapidez de um gato. Nenhum jogador com que Brian se defrontara se movera daquela maneira. Arrastou-se até ao andaime e avançou em direcção à luz, ciente de que Leon devia estar prestes a apanhá-lo. As cores brilhantes da cúpula encontravam-se cada vez mais próximas mas Brian ouvia os passos atrás de si cada vez mais perto. Restavam-lhe apenas alguns segundos. Não havia possibilidade de sair do andaime, nenhuma esperança de chegar ao solo. Rapidamente, dobrou a pasta de cabedal mole em torno dos vídeos e levantou-a na mão, atirando-a como se fosse uma bola de futebol no momento em que a arma de Leon lhe batia nas costas. A pasta estilhaçou os vidros da Cúpula de Hipócrates.

 

Brian ouviu gritos lá em baixo quando cambaleou para a frente alguns passos e caiu a poucos centímetros do vidro despedaçado. Leon alcançou-o de imediato. Furioso, levantou Brian pela camisa, obrigou-o a pôr-se de joelhos e enfiou-lhe o cano da pistola na boca. Brian apenas conseguiu fechar os olhos e esperar pelo fim.

 

- Serviços Secretos! Largue a arma, já!

 

A voz vinha da janela no edifício atrás de Leon e à esquerda de Brian. Quase a perder os sentidos, viu o agente dos Serviços Secretos, de espingarda apontada, empoleirado no parapeito da janela. Leon deixou de puxar a camisa com tanta força. Devagar, tirou o cano da pistola da boca de Brian. Depois apontou rapidamente a arma, na direcção do agente e disparou. Da janela veio imediatamente uma saraivada de balas. Brian sentiu-as alojarem-se no corpo de Leon. O gigante, ainda agarrado à sua camisa, caiu para cima dele, obrigando-o a tombar de costas sobre os vitrais da cúpula.

 

Lá de baixo ouviram-se gritos quando Brian partiu o vidro com o peso morto de Leon em cima. Preparou-se para uma morte certa, mas a queda terminou pouco depois, quando bateu no andaime que se encontrava no interior da cúpula. Leon caiu em cima dele, empurrando-lhe as costelas na direcção dos pulmões. A dor era quase insuportável. Então, devagar, muito devagar, o enorme assassino rolou para o lado e desapareceu da vista de Brian. Pouco depois ouviu o baque do corpo de Leon a cair nas cadeiras, lá em baixo.

 

- Se fizer um movimento é um homem morto! - gritou-lhe alguém do anfiteatro.

 

Brian esboçou um sorriso fraco e fechou os olhos.

 

"Não te preocupes", pensou. "Não me vou mexer durante uns tempos."

 

Brian não fazia ideia de há quanto tempo ali estava. Quando abriu os olhos, continuava no andaime. Um homem com um blusão azul-escuro inclinava-se sobre ele e apontava-lhe uma pistola à testa.

 

- Sou dos Serviços Secretos, Holbrook. Não pense sequer em mexer-se. Estão a preparar uma escada. Vamos amarrá-lo a uma maca e descê-lo. Ouve-me bem?

 

Brian limitou-se a assentir, concentrando-se em conseguir inspirar com a forte dor que sentia no peito. -Pouco depois, a escada foi encostada ao andaime. Um segundo agente dos Serviços Secretos e um médico subiram por ela com uma maca.

 

- Fique quieto, amigo - disse o médico. - Vamos levá-lo para baixo.

 

- Há armas apontadas para si até lá abaixo, Holbrook avisou o agente dos Serviços Secretos.

 

Brian pestanejou, devido à chuva que caía pelo enorme buraco no vitral.

 

-Já ouvi - murmurou.

 

Os homens prenderam-no à maca, baixaram-no e colocaram-no numa outra maca com rodas. O anfiteatro encontrava-se quase vazio. Dois médicos e duas enfermeiras das Urgências começaram de imediato a tratá-lo. Uma das enfermeiras inclinou-se para ele.

 

- Brian, é a Sherry - disse a sua amiga do Suburbano. Sherry Gordon.

 

- olá.

 

-Não fale. Só quero que saiba que a doutora Jessup está nas Urgências. Levou alguns tiros, mas está consciente. Perguntou por si. Os cirurgiões dizem que vai ficar boa. Devem estar neste momento a levá-la para a sala de operações.

 

-Obrigado - sussurrou Brian.

 

Um agente da Polícia substituiu o homem dos Serviços Secretos e algemou os pulsos de Brian aos varões da maca. -Não precisa de fazer isso - observou Sherry.

 

- Faça o seu trabalho e deixe-me fazer o meu - retorquiu o agente.

 

Pouco depois, Sherry afastou-se para deixar passar Laj Randa. O sique, magnífico num fato escuro e num turbante cor de laranja, auscultou Brian e apertou-lhe a mão devagar.

 

- Acho que o seu pulmão direito não está a funcionar disse. - Vou acompanhá-lo até às Urgências e entubá-lo. Depois veremos o que tem de ser feito. Escolheu uma bela maneira de demonstrar que concorda comigo a respeito do Vasclear!

- É verdade.

 

Começaram a empurrar a maca, mas de súbito pararam. -Posso falar com ele? - perguntou uma voz que Brian conhecia.

 

- Só uns segundos, senador - respondeu o polícia -, não mais do que isso. E fique deste lado da maca. Este homem é procurado por homicídio.

 

- Eu sei.

 

O rosto de Walter Louderman surgiu sobre Brian. Tinha uma expressão preocupada.

 

- Que vídeos são aqueles, Holbrook? - perguntou. Porque me está a fazer isto?

 

Brian esforçou-se por sorrir, embora lhe faltasse um dente da frente. Levantou a mão ensanguentada e deu umas palmadinhas no braço do senador. A sua voz era rouca.

 

-Não vai ficar aborrecido comigo muito tempo - disse.

 

                 UMA SEMANA MAIS TARDE

 

Uma série de tempestades aumentara ainda mais o movimento no Aeroporto Internacional de Míami. Art Weber sentia-se irritado devido ao atraso do seu voo para Bogotá, mas, ao mesmo tempo, grato pelo mar de gente. Faria tudo para não dar nas vistas. Era por essa razão que viajava em classe económica.

 

No momento em que o corpo de Leon Kulnishtin irrompera pela cúpula de vitral, aterrando como uma saca de cimento nas cadeiras do anfiteatro, Weber percebera que os seus planos para o futuro e a vida tal como a conhecera haviam chegado ao fim. Aliás, se não agisse com determinação e rapidez, a sua vida chegaria ao fim num sentido muito mais literal. No meio da confusão e do pânico, escapulira-se do anfiteatro e correra para um pequeno estádio que tinha em Cambridge, do outro lado do rio, em frente ao seu apartamento em Back Bay.

 

Só usava o estádio para sexo exótico com mulheres que comprava através de serviços de acompanhantes dispendiosos, mas, essencialmente, o local tinha como função ser o seu refúgio, no caso de ocorrer um desastre do género daquele que Brian Holbrook provocara. Lá encontravam-se roupas, bagagem, três passaportes com identidades diferentes, várias armas e cem mil dólares em notas de vinte e de cinquenta. Desviara mais de três milhões da Newbury Pharmaceuticals; ao longo dos anos, mas esse dinheiro já se encontrava depositado num banco das ilhas Cayman.

 

Weber calculava que dispunha de alguns dias para se distanciar o máximo possível dos chechenos enquanto eles próprios se tentavam distanciar das autoridades. Depois, começariam à sua procura. Recorrer-se-ia a favores. Oferecer-se-iam recompensas. Seriam pagos subornos. Nos anos que se tinham seguido ao colapso da União Soviética, a máfia chechena espalhara-se pelos Estados Unidos e raramente ia atrás de alguém que não acabasse por apanhar, mas nunca tinha ido atrás de um homem tão inteligente e cheio de recursos como Art Weber.

 

O principal era um bom planeamento. Logo desde o princípio previra todas as eventualidades. Assim, planeara a sua fuga para a Colômbia e começara a dar dinheiro a homens que o ajudariam a "desaparecer" durante o tempo que fosse preciso. Nesse momento, na fila para o check-in, felicitou-se pela rapidez e perfeição do seu plano de fuga. Daí a menos de cinco horas estaria a sair de Bogotá rumo à selva.

 

Uma mala bateu-lhe na barriga da perna.

 

-Perdone usted, sefior - disse uma jovem atrapalhada atrás dele.

 

Weber virou-se. Ela tinha pouco mais de vinte anos, vestia a blusa pregueada e a saia colorida dos camponeses e era deslumbrante: pele acobreada, cabelo negro espesso, olhos escuros e um corpo que lhe fez secar a boca.

 

-Não tem importância - retorquiu, num espanhol quase perfeito. - Vai para Bogotá?

 

Antes de ela ter respondido, já Weber a despira mentalmente.

- Moro lá - respondeu a rapariga com timidez,

 

-Eu também vou lá morar - disse ele, obrigando-se a afastar o olhar dos seus magníficos seios. - O meu trabalho vai manter-me lá durante vários meses.

 

- O seu espanhol é muito bom.

 

Chamava-se Rosalita e tinha vindo visitar a irmã a Miami. Quando Weber despachou as malas ela já concordara em sentar-se ao seu lado no avião. Ficou por perto enquanto a rapariga despachava a mala de lona velha. Antes de aterrarem em Bogotá já deveria ir com a cabeça encostada ao seu ombro, de mãos dadas com ele. E à noite...

 

Ainda faltava uma hora para o voo. A mulher já era sua uma recompensa pela sua meticulosidade. Cinquenta milhões e Carolyn Jessup em Boston, ou três milhões e aquela incrível jóia dos trópicos. A escolha, se tivesse sido forçado a fazê-la, não seria fácil. Sugeriu uma bebida e deu-lhe o braço quando encontraram um bar recatado. Havia um compartimento vago no canto mais escuro da sala, decorada a madeira e cabedal. Weber não conseguia desviar os olhos dos seios dela e ocorreu-lhe que a rapariga era capaz de ser virgem - barro para ele modelar.

 

Durante algum tempo, falaram de banalidades. Wéber tentou, em vão, manter as mãos afastadas dela. Por fim, pôs-lhe o braço em volta da cintura e ficou radiante quando ela não o afastou.

 

-Você é muito bonita - murmurou.

- E você é muito atraente e persuasivo,

 

Virou-se para ele. Tinha um cheiro inebriante. O seu seio, encostado a ele, era firme como o de uma adolescente. Os seus olhos abriram-se. Os seus lábios convidaram-no. Wéber olhou furtivamente em volta, para ver se não seria escandaloso beijá-la. Nenhuma das Pessoas presentes estava a prestar-lhes atenção. Puxou-a para si e encostou a boca à dela. Os lábios dela abriram-se e a sua língua procurou a dele.

 

Quando Wéber sentiu a dor entre as costelas e percebeu que ela o apunhalara, o estilete de vinte centímetros atravessara-lhe o diafragma e enterrara-se no seu coração. A mulher torceu a lâmina com perícia para alargar o buraco, enquanto com o beijo o impedia sequer de falar. Depois soltou-o e posicionou-lhe o corpo de forma a ficar sentado. Por fim, ajoelhou-se no banco ao lado dele, encostou a boca ao ouvido de Wéber e pousou-lhe a mão na virilha.

 

- Não leve a mal - disse.

 

                     Um MÊs Mais TARDE

 

A sede da fda era uma estrutura maciça de treze andares, cinzenta e lúgubre, que se estendia por dois quarteirões numa praça em Rockville, Maryland. Sob um céu de Novembro incolor, Brian estacionou o carro alugado e entrou no edifício Parklawn.

 

Chegara o momento de enfrentar Teri. Ainda coxo, aproximou-se do segurança na recepção e foi encaminhado para o gabinete dela, no quarto andar. Quando haviam falado ao telefone, apercebera-se do espanto de Teri por insistir em encontrar-se com ela no gabinete e não em casa ou noutro local qualquer. No entanto, ela sabia que as coisas tinham mudado. Exceptuando uma breve conversa quando lhe ligara no dia a seguir à operação, não haviam voltado a falar. Ele não lhe telefonara desde essa altura nem atendera nenhum dos seus telefonemas.

 

Saiu do elevador e entrou numa modesta área de recepção que servia doze gabinetes. Embora a fda pudesse ser pouco eficiente, pensou Brian enquanto dava o seu nome à recepcionista, ninguém poderia acusá-la de ocupar espaço desnecessário no edifício. Sentou-se numa cadeira de design moderno, passou a língua pela ponte que mantinha no lugar os seus temporários dentes da frente e pensou no que lhe iria dizer.

 

"És a amante mais extraordinária com quem já estive e provavelmente nunca mais vou encontrar ninguém como tu." Isso seria verdade, mas não era o que Teri iria ouvir naquele dia. A recepcionista chamou-o e indicou-lhe uma porta igual às outras, com a diferença que tinha "Dr. T. Sennstrom" pintado. Brian bateu e entrou.

 

O gabinete era pequeno. As paredes estavam ocultas atrás de estantes de aço cinzentas cobertas de manuscritos, textos e revistas. Teri decidira cumprimentá-lo sem sair do lugar, mas estendeu-lhe a mão sobre a secretária e ele apertou-a. Vestia uma saia preta direita e uma blusa cor de alfazema - uma roupa simples, que nela ficava sensacional. Brian sentou-se na cadeira em frente à secretária. A conversa não iria ser fácil, mas ele queria conduzi-la bem.

 

- Estás com bom aspecto - disse Teri. - Fez-te bem o facto de as acusações de homicídio terem sido retiradas.

 

- Obrigado. O meu nariz está finalmente a voltar ao normal, embora desconfie que nunca mais irá ter a mesma forma. Tu também estás bem.

 

- Fiquei um bocado triste por nunca teres retribuído os meus telefonemas.

 

- Eu sei. A Phoebe começou a ir ver-me todos os dias ao hospital. Passei uns dias em casa dela, em convalescença. Nós... nós estamos a pensar em voltar a viver juntos.

 

-Al sim? E foi por isso que não me telefonaste? Brian hesitou, mas obrigou-se a não desviar o olhar.

 

- Por acaso, não - respondeu -, não foi por isso. Tenho andado incomodado com algumas coisas, Teri... muito incomodado. Gostaria de as partilhar contigo, para saber a tua opinião. Ela olhou-o de forma estranha e fria.

 

-Continua - disse.

 

- Bem, quando o Art Weber pensava que eu não ia sair vivo daquela masmorra no hospital, garantiu-me que o meu telefone não tinha sido posto sob escuta. Tenho a certeza de que ele estava a dizer a verdade.

 

- E então?

 

- E então, o capanga dele, o Leon, e outro tipo estavam à minha espera em Nova Iorque. Em Fulbrook. Se o meu telefone não estava sob escuta, como é que eles sabiam onde eu me encontrava?

 

- Talvez te tenham seguido.

 

- Não acredito, Teri. Tentei recordar-me a quem é que tinha falado da viagem. Foi só a ti.

 

- Que disparate - disse ela, mas a cor desaparecera das suas faces.

 

-Não me parece. Mas há mais. Era uma vez um velhote simpático chamado Elovitz. Bill Elovitz. Sobreviveu aos campos da morte nazis, mas não sobreviveu aos tipos da Newbury Pharmaceuticals. Foi morto porque eu pensava que ele tinha hipertensão pulmonar. Mas como é que eles souberam disso quase ao mesmo tempo que eu? Vou-te dizer como, Teri. Eu contei-te e tu contaste-lhes.

 

- Mas...

 

- E depois o Art Weber apareceu no preciso momento em que a Carolyn Jessup concordara em ajudar-me. Ela tem a certeza de que não foi seguida até casa. Tentei lembrar-me a quem é que tinha dito que ia a casa dela. Foi só a duas pessoas. Ao meu orientador nos Narcóticos Anónimos, que seria capaz de pôr as mãos no fogo por mim, e a ti. Teri, quanto é que o Weber te pagou para me espiares?

 

- Brian, por favor. Isso é ridículo.

 

- Não, não é. Já revi os factos uma centena de vezes. Tu recebias dinheiro do Weber.

 

Os olhos dela marejaram-se de lágrimas.

 

-Eu não fazia ideia do que estava a passar-se. Tens de acreditar nisso. O Weber pagava-me apenas para eu lhe dar informações, mais nada. Não sabia o que faziam com essas informações. Não tinha motivos para julgar que havia problemas com o Vasclear até... até teres começado a contar-me coisas. Quando me apercebi de que tipo de pessoa era o Weber, ele tinha vídeos meus a... a aceitar dinheiro. Fiquei assustada. Não sabia o que fazer.

 

Brian abanou a cabeça.

 

-Morreram várias pessoas por tua causa.

 

Tão depressa como tinham surgido, as lágrimas de Teri Sennstrom desapareceram. Levantou a cabeça.

 

- Como é que tens coragem de vir acusar-me? Eu não matei ninguém. Aliás, nunca fiz nada assim tão ilegal. Trabalho que nem uma escrava para receber um salário de miséria. Ganhei mais com o Art Weber em poucos meses do que em toda a minha carreira. Eu merecia aquele dinheiro!

 

-Vou contar ao doutor Baird aquilo que sei - disse Brian.

 

- Patife! Vai, conta-lhe, que eu nego tudo. Ele ama-me. Conhece o meu trabalho. Podes contar-lhe. -

 

Brian suspirou. O rosto com que ele tivera fantasias, com que sonhara tantas noites, estava vermelho e feio devido à raiva.

- Por acaso - disse com ar cansado -, não vai ser a tua palavra contra a minha. Vai ser a tua palavra contra a tua palavra.

 

Levantou-se e abriu a porta. Depois voltou-se para ela, abriu o blusão de cabedal e mostrou-lhe o gravador que tinha colado ao forro.

 

-Faço isto por aquele meu doente que foi morto a tiro

- disse ele com amargura -, pelo meu pai, e especialmente por mim.

 

Teri gritou-lhe tanto que a recepcionista apareceu a correr, mas Brian limitou-se a passar pela mulher e a dirigir-se às escadas. As invectivas de Teri ainda se faziam ouvir quando a porta das escadas se fechou atrás dele.

 

No caminho de regresso a Washington, onde iria encontrar-se com Phoebe e com as filhas, Brian parou num pequeno parque onde um grupo de adolescentes estava a preparar-se para um jogo de futebol.

 

- Precisam de mais um jogador? - perguntou.

 

                                                                                Michael Palmer  

 

                      

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