Embora este fato não tenha importância, grande parte do pano de fundo desta história foi descrita de modo preciso. A SMERSH, uma contração de Smiert Spionam — morte aos espiões —, existe e é, até hoje, o departamento mais secreto do governo soviético. No início de 1956, quando este livro foi escrito, o efetivo da SMERSH, no país e no exterior, era de 40 mil homens, tendo como chefe o general Grubozaboyschikov. Minha descrição de sua aparência é exata. Atualmente, o quartel-general da SMERSH fica onde o situei no capítulo 4, o nº 13 de Sretenka Ulitsa, em Moscou. A sala de reuniões está descrita com exatidão, e os chefes da Inteligência reunidos em torno da mesa são oficiais que realmente existem e que são frequentemente convocados a esta sala para fins semelhantes aos que narrei.
......
PARTE 1
O PLANO
1. A VILA DAS ROSAS
O homem despido que antes jazia esparramado, de bruços, ao lado da piscina, poderia estar morto. Talvez afogado, içado da piscina e posto no gramado para secar enquanto alguém avisava a polícia ou seus parentes. A pequena pilha de objetos no gramado, ao lado da cabeça, talvez reunisse seus pertences, postos bem à vista para ninguém pensar que algo havia sido roubado por quem o resgatara.
A julgar por essa pilha cintilante, ele fora, ou era, um sujeito rico. Ali estavam os sinais típicos — um prendedor de notas feito de uma moeda de cinquenta dólares mexicanos, substancialmente recheado de notas, além de um isqueiro de ouro Dunhill, uma cigarreira oval de ouro com ranhuras onduladas e um discreto botão turquesa que traía sua origem Fabergé, e o tipo de romance que um sujeito rico tiraria da estante para levar ao jardim: A pepita pequena, um antigo livro de P. G. Wodehouse. Havia também um volumoso relógio de pulso, de ouro, preso a uma correia de crocodilo bastante gasta. Era um modelo Girard
Perregaux, projetado para os apreciadores de belos instrumentos como aquele, com um ágil ponteiro de segundos e duas janelinhas no mostrador para indicar o dia, o mês e a fase da lua. Eis a história que ele agora contava: 2h30 de 10 de junho, lua em quarto crescente. Uma varejeira verde-azulada surgiu como um raio do roseiral no fundo do jardim, pairando alguns centímetros acima da base da coluna dorsal do sujeito. Fora atraída pelo brilho dourado do sol de junho na camada de pelos louros e finos sobre o seu cóccix. Uma brisa forte soprou do mar. A pequena moita peluda se mexeu de leve. Depois de um movimento nervoso para o lado, a
varejeira pairou acima do ombro esquerdo do homem e olhou para baixo. A grama nova se agitou sob a boca aberta do sujeito. Uma grande gota de suor escorreu pelo lado do nariz carnudo e caiu reluzente no gramado. Foi o que bastou para a varejeira fugir em disparada entre as roseiras, passando por cima dos cacos de vidro sobre o muro alto do jardim. Aquilo daria um bom prato, mas se mexia. O jardim no qual jazia o homem tinha cerca de quatro mil metros quadrados de gramado bem-cuidado, com três lados cercados por moitas bem densas de roseiras, de onde vinha um zumbido constante de abelhas. Além desse
zumbido letárgico, o mar retumbava ao pé do rochedo, no final do terreno. Do jardim não se avistava o mar — não se via coisa alguma a não ser o céu e as nuvens acima do muro de quatro metros de altura. Na verdade, só se via algo, além da propriedade, dos dois cômodos do segundo andar da vila, que constituía o quarto lado daquele terreno cercado tão exclusivo. Deles se podia distinguir, à frente, uma vasta extensão do mar azul e, de ambos os lados, as janelas superiores das vilas vizinhas e as copas das árvores de seus jardins — carvalhos sempre verdes do tipo mediterrâneo, pinheiros, casuarinas e uma ou outra palmeira. A vila era moderna — um caixote
alongado, sem ornamentos. Do lado do jardim, a fachada plana, cor de rosa desbotada, vazada por quatro pequenas janelas de esquadrias de ferro e uma porta de vidro central, dava para um pequeno quadrilátero de lajotas. Estas se fundiam com o gramado. O outro lado da vila, afastado alguns metros de uma estrada poeirenta, era quase idêntico. Mas as quatro janelas tinham grades, e a porta central era de carvalho. A vila tinha dois quartos de tamanho médio no andar de cima, e no térreo uma sala de estar e uma cozinha, com uma divisória que continha um lavabo. Não havia banheiro. O silêncio sensual e preguiçoso do
começo da tarde foi quebrado pelo ruído de um carro que descia a estrada. Ele parou diante da vila. A porta do carro bateu com um barulho metálico e este seguiu viagem. A campainha da porta tocou duas vezes. O sujeito despido ao lado da piscina continuou imóvel, mas, com o barulho da campainha e do carro se afastando, abriu bem os olhos por um instante. Parecia que se ergueram atentos como as orelhas de um animal. O homem lembrou logo onde estava, o dia da semana e as horas. Identificou os ruídos. As pálpebras, de cílios curtos e louros, abaixaram-se de novo, sonolentas, sobre os olhos azuis bem claros, opacos e introspectivos. Os pequenos lábios cruéis se abriram em um largo bocejo,
escancarando o maxilar e enchendo a boca de saliva. O sujeito a cuspiu na grama e ficou à espera. Uma jovem carregando uma pequena sacola trançada, vestida com uma blusa branca de algodão e uma saia curta azul, de aspecto comum, passou pela porta de vidro e caminhou decidida pelas lajotas e pela extensão do gramado, em direção ao homem despido. A poucos metros dele, pousou sua sacola no chão, sentouse e tirou os sapatos baratos e um tanto empoeirados. Em seguida, levantou-se, abriu e despiu a blusa, colocando-a bem dobrada ao lado da sacola. A garota não vestia nada debaixo da blusa. De pele agradavelmente
bronzeada, seus ombros e belos seios irradiavam saúde. Ao dobrar os braços para abrir os botões laterais da saia, deixou transparecer pequenos tufos de cabelos sob as axilas. A impressão de vitalidade agreste e saudável da jovem camponesa foi realçada pelos generosos quadris no short de malha azul desbotada, e pelas pernas e coxas curtas e grossas, agora expostas. A garota colocou a saia metodicamente junto à blusa, abriu a sacola, tirou uma velha garrafa de refrigerante contendo um líquido incolor e denso e foi até o sujeito, ajoelhando-se no gramado a seu lado. Despejou entre as espáduas dele um pouco do líquido, um óleo leve que, como tudo mais nessa
parte do mundo, tinha um perfume de rosas, e depois de flexionar os dedos como uma pianista, começou a massagear os músculos do trapézio, atrás do pescoço. Era um trabalho pesado. O sujeito era extremamente forte, e os músculos salientes, na base do pescoço, mal cediam aos polegares da garota, mesmo quando ela pressionava com toda a força de seus ombros. Ao terminar, estaria ensopada de suor e tão exausta que cairia na piscina e depois deitaria na sombra e dormiria até o carro vir buscála. Mas não era isso que a incomodava, enquanto suas mãos continuavam a massagear automaticamente as costas do
sujeito. Era o horror instintivo pelo corpo mais belo que ela já vira. Nada desse horror transparecia no rosto impassível da massagista, e os olhos negros e oblíquos, sob a franja dos cabelos curtos, grossos e pretos, estavam vazios, como manchas de óleo sobre a água. Mas o animal acuado dentro dela gania de medo, fazendo seu pulso se acelerar — o que ela perceberia, se tivesse lhe ocorrido a ideia de tomá-lo. Ficou pensando de novo, como tantas vezes no decorrer dos últimos dois anos, sobre o motivo de detestar aquele corpo esplêndido, e procurou mais uma vez analisar sumariamente a sua repulsa. Talvez agora conseguisse se livrar deste
sentimento que considerava mais condenável, e certamente mais antiprofissional, do que o desejo erótico que certos clientes lhe despertavam. A começar pelos detalhes, como o cabelo. Ela contemplou a pequena cabeça redonda que encimava o pescoço musculoso. Densos cachos louroavermelhados a cobriam, o que deveria lhe dar prazer, por lembrar o cabelo estilizado nas fotos que já vira das estátuas clássicas. Mas os cachos eram encaracolados em excesso, por demais entrelaçados e colados ao crânio. Provocavam-lhe um arrepio, como se raspasse as unhas em um tapete felpudo. E desciam muito nuca abaixo — quase
(pensou ela, em termos profissionais) até a quinta vértebra cervical. E ali terminavam bruscamente em uma linha reta de pequenos cabelos louros eriçados. A garota parou para descansar as mãos, sentando-se sobre os quadris. O belo torso já reluzia de suor. Enxugou a testa com a parte de trás do antebraço e estendeu a mão para pegar a garrafa de óleo. Despejou cerca de uma colher de sopa sobre a pequena área plana e peluda na base da coluna do sujeito, flexionou os dedos e voltou a se curvar para a frente. Aquela cauda embrionária de penugem dourada acima do sulco das nádegas teria sido divertida e erótica em
um amante. Mas naquele homem era de certo modo animalesca. Não, reptiliana. Mas as cobras não tinham cabelos. Ora, que culpa tinha ela? Desceu as mãos para os dois montes dos músculos glúteos. Nessa hora, muitos de seus clientes, especialmente os rapazes do time de futebol, começavam as brincadeiras. Em seguida, se ela não tivesse muito cuidado, vinham as cantadas. Às vezes conseguia parar com aquilo descendo as mãos para espetar com os dedos o nervo ciático. Outras vezes, especialmente se achasse o sujeito atraente, ocorriam disputas acompanhadas de risadinhas, breve luta corporal e uma rápida e deliciosa
capitulação. Com este sujeito era diferente, quase sinistramente diferente. Desde o princípio, ele se comportara como uma posta de carne inanimada. Durante dois anos, jamais lhe dirigira uma palavra sequer. Quando acabava a massagem nas costas e chegava a hora de ele se virar, nem os olhos nem o corpo jamais demonstravam o menor interesse por ela. Batia no seu ombro, e ele simplesmente se virava e fitava o céu por entre pálpebras semicerradas, dando de vez em quando um daqueles longos bocejos arrepiantes, o único sinal de que possuía verdadeiras reações humanas. A garota mudou de posição e
começou a trabalhar lentamente a perna esquerda em direção ao tendão de Aquiles. Ao chegar ali, voltou a contemplar o belo corpo. Seria sua repulsa somente física? Era devida à cor avermelhada das queimaduras solares na sua pele naturalmente branca como leite, àquele aspecto típico de rosbife? Talvez a textura da própria pele, os poros profundos e bem espaçados na superfície acetinada? As sardas alaranjadas densamente distribuídas nos ombros? Ou seria a sexualidade desse homem? A indiferença desses esplêndidos músculos, a insolência com que se avolumavam? Ou seria algo espiritual
— algum instinto lhe avisando que dentro daquele corpo maravilhoso morava uma pessoa má? A massagista se levantou, girando sua cabeça lentamente para cada lado e dobrando os ombros. Esticou os braços para os lados e depois para cima, segurando-os um momento assim, para aliviar a circulação. Foi até a sua sacola e tirou uma toalha de mão, com que enxugou o rosto e o corpo. Quando voltou para o sujeito, ele já tinha se virado e jazia agora com a cabeça descansando sobre a mão aberta, fitando o céu com um olhar vazio. O braço desocupado estava jogado sobre a grama, à espera. Ela se aproximou e se ajoelhou no gramado ao lado da sua
cabeça. Esfregou um pouco de óleo nas palmas, pegou a mão largada e semiaberta do homem e começou a massagear os dedos curtos e grossos. A garota olhou para o lado, um olhar nervoso de relance para o rosto cor de bronze avermelhado, sob a coroa de densos cachos dourados. Superficialmente, estava tudo bem com ele — beleza rude, faces bem coradas, nariz arrebitado e queixo arredondado. Porém, ao se olhar mais de perto, havia algo cruel na boca de lábios finos, riscados, um quê de porcino nas largas narinas do nariz arrebitado; e o vazio que toldava os olhos azuis muito pálidos se comunicava ao rosto inteiro, e o fazia
parecer um afogado, um ser cadavérico. Era como se alguém — pensou ela — tivesse pegado uma boneca de porcelana e pintado sua face para meter medo. A massagista trabalhou o braço até o enorme bíceps. Onde este sujeito arranjara músculos tão fantásticos? Era lutador de boxe? O que fazia com esse corpo formidável? Diziam os boatos que esta villa era da polícia. Os dois empregados eram obviamente guardas de algum tipo, embora cozinhassem e fizessem o trabalho doméstico. Todo mês o homem se ausentava infalivelmente por alguns dias e comunicavam a ela que não viesse. E de vez em quando lhe diziam para não vir durante uma semana, ou duas semanas,
ou um mês. Certa vez, depois de uma dessas ausências, o corpo do sujeito era um monte de contusões. Em outra ocasião, o canto vermelho de um ferimento ainda meio curado transparecia sob um palmo de esparadrapo cirúrgico em cima do coração. Nunca ousara fazer perguntas sobre ele no hospital ou na cidade. Da primeira vez que a chamaram para ir à casa, um dos empregados lhe dissera que seria presa se falasse o que visse. Lá no hospital, o diretor, que jamais tomara conhecimento de sua existência, mandara chamá-la para lhe dizer a mesma coisa. Seria presa. Os dedos fortes da garota afundaram com
nervosismo no grande músculo deltoide na extremidade do ombro. Sempre soubera que se tratava de uma questão de segurança nacional. Talvez fosse este o motivo da sua repugnância por aquele corpo esplêndido. Talvez fosse apenas medo da organização que mantinha aquele corpo sob tutela. Fechou os olhos com força pensando em quem poderia ser esse sujeito, e naquilo que poderia mandar fazer com ela. Abriu-os de novo depressa. Ele podia ter notado. Mas seus olhos vazios olhavam para cima, para o céu. Agora — ela estendeu a mão para pegar o óleo — era a vez de fazer o rosto. Os polegares da garota mal haviam
apertado as órbitas dos olhos fechados do homem quando o telefone da casa começou a tocar. O ruído insistente alcançou o silêncio do jardim. De repente o sujeito ficou sobre um joelho, como um corredor à espera do tiro de partida. Mas não deu prosseguimento à atitude. A campainha parou. Ouvia-se o murmúrio de uma voz. A garota não podia ouvir o que ela dizia, mas o tom parecia servil, de quem recebe instruções. A voz parou e um dos empregados apareceu rápido na porta, fez um gesto chamando e voltou para dentro da casa. Mal o gesto acabara, e o sujeito despido já corria. Ela observou as costas bronzeadas desaparecerem em
disparada pela porta de vidro aberta. Era melhor que ele não a encontrasse ali quando voltasse — sem fazer nada, talvez escutando. Levantou-se também, deu dois passos até a borda de concreto da piscina e mergulhou com elegância. Para a tranquilidade de espírito da garota, melhor seria jamais descobrir a identidade daquele seu cliente, ainda que ela fosse capaz de explicar as suas reações instintivas. Seu verdadeiro nome era Donovan Grant, ou Grant, o “Vermelho”. Conhecido nos últimos dez anos como Krassno Granitsky, codinome “Granit”. Ele era o carrasco-chefe da SMERSH, setor responsável pelas execuções da MGB, que naquele
momento recebia instruções desta entidade na sua linha direta de Moscou.
2. O CARNICEIRO
Grant recolocou o telefone suavemente no gancho e ficou olhando para ele, sentado. O guarda de cabeça raspada, em pé ao lado, disse: “É melhor andar logo.” “Eles te deram alguma pista sobre a tarefa?”, Grant falava russo muito bem, mas com um sotaque pesado. Poderia passar por um cidadão de qualquer das províncias soviéticas do Báltico. Tinha um timbre de voz agudo e inexpressivo como se recitasse algo entediante de um
livro. “Não. Só que te querem em Moscou. O avião já está a caminho. Chegará dentro de mais ou menos uma hora. Meia hora para abastecer e depois três ou quatro horas, dependendo se houver escala em Kharkov. Estará em Moscou lá pela meia-noite. É melhor arrumar a mala. Vou chamar o carro.” Grant levantou-se, nervoso: “Sim. Tem razão. Mas não chegaram a dizer se era alguma missão? Gosto de saber. A linha é segura. Podiam ter dado um indício. Geralmente dão.” “Desta vez não deram.” Grant passou lentamente pela porta de vidro até o gramado. Se notou a garota sentada na outra extremidade da piscina,
não demonstrou nada. Inclinou-se para pegar seu livro e os troféus dourados próprios de sua profissão, voltando para casa e subindo a pequena escada até o seu quarto. O quarto era frio, mobiliado apenas com uma cama de ferro, de um lado da qual pendiam lençóis amarrotados até o chão, uma cadeira de vime, um armário sem pintura e um lavatório barato com uma pia de metal. O assoalho estava cheio de revistas inglesas e americanas espalhadas. Livros de bolso de capas apelativas e policiais de capa dura jaziam empilhados contra a parede debaixo da janela. Grant se abaixou, retirando de sob a
cama uma valise italiana gasta, de fibra. Arrumou-a com uma seleção de roupas baratas, mas respeitáveis e bempassadas, tiradas do armário. Em seguida lavou-se apressado com água fria e o inevitável sabonete de rosas, secando-se com um dos lençóis da cama. Ouviu-se o barulho de um carro lá fora. Grant se vestiu depressa com roupas tão inexpressivas e comuns como as que pusera na mala, pôs o relógio, enfiou seus outros pertences no bolso, pegou a valise e desceu. A porta da frente estava aberta. Distinguiu seus dois guardas conversando com o motorista de um sedan ZIS malconservado. Idiotas,
pensou (ainda pensava de preferência em inglês). Provavelmente estão dizendo a ele para garantir que eu tome mesmo aquele avião. Não conseguem imaginar que um estrangeiro possa querer morar na bosta do seu país. Grant deu um olhar frio e desdenhoso para eles ao botar sua valise na soleira da porta. Depois foi procurar um casaco entre um monte pendurado nos cabides na porta da cozinha. Encontrou seu “uniforme”, a capa parda e o boné preto do funcionalismo soviético, vestiu-os, pegou sua valise, saiu e entrou no carro ao lado do motorista à paisana, dando um forte empurrão em um dos guardas. Os dois sujeitos recuaram, sem dizer
nada, mas olhando-o de maneira agressiva. O motorista tirou o pé da embreagem, e o carro, já engrenado, acelerou rápido pela estrada poeirenta. A villa ficava na costa sudeste da Crimeia, aproximadamente a meio caminho entre Feodosiya e Yalta. Tratava-se de uma das muitas datchas oficiais de veraneio, ao longo do trecho mais valorizado do litoral montanhoso que faz parte da Riviera russa. Grant, “o Vermelho” sabia o imenso privilégio que era morar ali em vez de em uma villa triste nas cercanias de Moscou. Enquanto o carro subia as montanhas, pensou que eles de fato o tratavam da melhor maneira possível, embora esta preocupação com seu bem-estar fosse
ambígua. A viagem de sessenta quilômetros até o aeroporto de Simferopol levou uma hora. Não havia outros carros na estrada, e a rara carroça dos vinhedos encostava rápido na vala ao lado da estrada, diante do som da buzina. Como em todo lugar na Rússia, o carro era indício de um funcionário público, e um funcionário público só podia ser sinal de perigo. Havia rosas por todo o caminho, campos delas que se alternavam com os vinhedos, cercas vivas de roseirais ao longo da estrada e, nas proximidades do aeroporto, um vasto canteiro circular com variedades vermelhas e brancas
formando uma estrela vermelha contra um fundo branco. Grant estava enjoado delas e ansiava chegar a Moscou para fugir de seu cheiro adocicado. Passaram pela entrada do aeroporto civil e seguiram por cerca de um quilômetro e meio ao longo de um muro alto, até o setor militar do aeroporto. Diante do portão alto de arame, o motorista mostrou seu passe a duas sentinelas de submetralhadoras e prosseguiu até a pista. Havia vários aviões por ali, grandes aviões militares de transporte, camuflados, pequenos bimotores de treinamento e dois helicópteros da Marinha. O motorista parou para perguntar a um sujeito de macacão qual era o avião de Grant.
Imediatamente um som metálico veio da torre de controle atenta, e um altofalante gritou-lhes: “À esquerda. Bem à esquerda. Prefixo V-BO.” O motorista rodava obediente pela pista quando a voz metálica gritou de novo: “Pare!” Enquanto pisava fundo no freio, ouviu-se um ruído ensurdecedor acima. Os dois homens abaixaram instintivamente a cabeça quando uma formação de quatro MIGs-17 surgiu do sol poente e passou rente a eles, com suas grossas aletas de frenagem bem abaixadas para o pouso. Os aviões tocaram a enorme pista um depois do outro, soltando lufadas de fumaça azul
de seus pneus dianteiros e, com as turbinas a urrar, taxiaram até a linha de demarcação distante e voltaram para a torre de controle e os hangares. “Prossigam!” Uns cem metros depois chegaram a um avião com o prefixo V -BO. Era um bimotor Ilyushin 12. Uma pequena escada de alumínio pendia da porta da cabine, e o carro parou ao seu lado. Um dos tripulantes surgiu na porta. Desceu a escada e examinou cuidadosamente o passe do motorista e os documentos de identidade de Grant, em seguida dispensou o motorista com um aceno e com outro convidou Grant a segui-lo escada acima. Não se ofereceu para ajudar com a valise, mas Grant
carregou-a pela escada como se não pesasse mais do que um livro. O tripulante recolheu a escada, bateu a porta larga e se dirigiu à cabine de comando. Havia vinte assentos vazios à disposição. Grant resolveu ficar com o que estava mais próximo da porta e apertou o cinto. Uma breve conversa com a torre de controle, cheia de estática, vazou pela porta aberta da cabine. Os dois motores gemeram, tossiram, pegaram, e o avião virou depressa, como um carro, seguindo até o início da pista norte-sul e, sem maiores delongas, disparou por ela e alçou voo. Grant desafivelou o cinto, acendeu um
cigarro Troika de filtro dourado e se acomodou para refletir sobre sua carreira passada, além de tecer considerações sobre o futuro imediato. Donovan Grant era fruto de uma transa noturna entre um alemão, levantador de pesos profissional, e uma garçonete da Irlanda do sul. A relação durou quinze minutos, sobre grama úmida atrás de uma tenda de circo em Belfast. Depois o pai deu à mãe dois xelins e meio, e a mãe foi caminhando contente para casa e para sua cama na cozinha de um café perto da estação ferroviária. Quando se descobriu grávida, foi morar com uma tia na pequena aldeia de Aughmacloy, em cima da fronteira, e lá, seis meses depois,
morreu de febre puerperal, depois de dar à luz um menino de cinco quilos e meio. Antes de morrer disse que deveria se chamar Donovan (a alcunha do levantador de pesos era “O Poderoso Donovan”) e Grant, que era o seu sobrenome. O garoto foi criado, a contragosto, pela tia e cresceu extremamente forte e saudável, mas muito quieto. Não tinha amigos. Negava-se a se comunicar com as outras crianças e, quando queria algo delas, conquistava-o com os punhos. Na escola do bairro continuou temido e malquisto, mas ganhou fama no boxe e na luta livre nas feiras locais, pois a fúria sanguinária de seu ataque,
combinada com sua malícia, fez com que derrotasse inúmeros garotos mais velhos e maiores. Foi como lutador que ele atraiu a atenção dos militantes do Sinn Féin, que usavam Aughmacloy como rota principal de seus deslocamentos até o norte, e também dos contrabandistas locais, que usavam a aldeia com o mesmo objetivo. Quando deixou o colégio, tornou-se capanga de ambos os grupos. Pagavamlhe bem pelo serviço, mas mantinham o menor contato possível com ele. Foi mais ou menos nessa época que ele começou a sentir ímpetos estranhos e violentos durante a lua cheia. Quando, em outubro do seu décimo sexto ano, teve “as sensações” pela primeira vez,
que é como as chamava em seu íntimo, saiu e estrangulou um gato. Isto fez com que “se sentisse melhor” durante um mês inteiro. Em novembro, foi um grande cão pastor e, no Natal, degolou uma vaca à meia-noite, em um estábulo de um vizinho. Esses atos lhe davam “bemestar”. Tinha bastante juízo para perceber que a aldeia não demoraria a ficar matutando sobre essas mortes misteriosas, por isso comprou uma bicicleta e, uma noite por mês, saía nela para o campo. Muitas vezes precisava andar muito para encontrar o que queria e, depois de dois meses sendo obrigado a se contentar com gansos e galinhas, resolveu se arriscar e degolou um
mendigo que dormia. Havia tão pouca gente andando à noite que ele não demorou a pegar a estrada mais cedo, indo na sua bicicleta a diversos lugares distantes, ao cair da noite, quando as pessoas chegavam isoladamente do campo e as garotas saíam para seus encontros amorosos. Quando matava uma ou outra garota, não “mexia” de modo algum com ela. Essas coisas, de que já ouvira falar, lhe eram bastante incompreensíveis. Somente o maravilhoso gesto de matar o fazia “se sentir melhor”. Nada mais. No final de seu décimo sétimo ano, começaram a correr terríveis boatos ao redor da região de Fermanagh, Tyrone e Armagh. Quando uma mulher foi morta
em plena luz do dia, estrangulada e metida displicentemente em um monte de feno, os boatos pegaram fogo e se transformaram em pânico. Formaram-se grupos de vigilantes nas aldeias, chegaram reforços policiais com cães, e os casos sobre o “assassino lunático” atraíram jornalistas à região. Por várias vezes Grant foi parado na sua bicicleta, porém dispunha de uma forte proteção em Aughmacloy, e a história de que precisava pedalar como treinamento para o boxe era sempre confirmada, pois ele era agora o orgulho da aldeia e pretendente ao título de campeão peso leve da Irlanda do Norte. Mais uma vez, antes que fosse tarde,
seu instinto o salvou de ser descoberto e ele deixou Aughmacloy e foi para Belfast, onde se entregou aos cuidados de um empresário falido que queria transformá-lo em lutador profissional. A disciplina era dura no ginásio vagabundo. Aquilo era quase uma prisão, e quando o sangue tornou a ferver nas veias de Grant, não houve mais nada a fazer senão quase matar um dos seus sparrings. Depois de ter sido duas vezes separado à força dos adversários no ringue, foi apenas por ter conquistado o campeonato que ele se salvou de ser expulso pelo empresário. Grant ganhou o campeonato em 1945, aos dezoito anos, em seguida foi prestar o serviço militar, tornando-se motorista
no Real Corpo de Sinaleiros. O período de treinamento na Inglaterra deu-lhe certo juízo, ou pelo menos o tornou mais cauteloso quando tinha “a sensação”. Agora, na lua cheia, dedicava-se a beber. Levava uma garrafa de uísque para a mata em volta de Aldershot e a bebia toda, enquanto observava friamente “suas sensações”, até que sobreviesse a inconsciência. Então, nas primeiras horas da manhã, se arrastava de volta ao acampamento, satisfeito apenas pela metade, mas sem representar mais perigo. Se fosse flagrado por uma sentinela, pegaria só um dia de detenção no quartel, porque seu comandante queria lhe agradar em
função dos campeonatos militares. Mas a seção de transporte em que se encontrava Grant foi embarcada às pressas para Berlim, mais ou menos na época da disputa com os russos sobre o Corredor, e ele não pôde participar dos campeonatos. Em Berlim, a constante atmosfera de perigo o deixou fascinado e até mesmo mais precavido e ardiloso. Ainda ficava bêbado como um gambá, na lua cheia, mas durante todo o tempo restante observava e tramava. Gostava de tudo que ouvia falar sobre os russos, sua brutalidade, seu descuido com a vida humana, sua esperteza, e decidiu se bandear para o seu lado. Mas como? O que poderia lhes levar como oferta? O que desejariam?
Foi o campeonato anual do Exército que finalmente o fez se decidir. Por acaso, foi disputado em uma noite de lua cheia. Grant, que lutava pelo Royal Corps, recebeu uma advertência por segurar e dar golpe baixo, tendo sido desclassificado no terceiro assalto pelas suas constantes faltas. O estádio inteiro o vaiou quando abandonou o ringue — sendo que maior demonstração veio de seu próprio regimento — e na manhã seguinte seu comandante o mandou chamar e lhe disse friamente que ele era uma vergonha para o Royal Corps e seria repatriado na primeira leva. Seus colegas motoristas o boicotaram e, já que ninguém queria viajar com ele, teve
de ser transferido para o cobiçado serviço de motociclistas estafetas. A transferência não poderia ter calhado melhor para Grant. Esperou alguns dias e então, em uma tarde em que recolhera os despachos do quartelgeneral da Inteligência no Reichskanzlerplatz, foi direto para o setor russo. Esperou, com o motor ligado, que o portão de controle do setor inglês fosse aberto para dar passagem a um táxi, e então passou disparado, a quarenta por hora, enquanto o portão se fechava, freando com uma derrapagem ao lado da guarita de concreto do posto de fronteira russo. Foi violentamente arrastado até a sala da guarda. Um oficial com uma
expressão granítica, atrás de uma mesa, perguntou o que ele queria. “Quero o Serviço Secreto Soviético”, disse Grant, sem rodeios. “O Chefe.” O oficial olhou-o com frieza. Disse algo em russo. Os soldados que haviam trazido Grant começaram a arrastá-lo para fora. Grant se desvencilhou facilmente deles. Um deles ergueu sua submetralhadora. Grant disse, falando de modo claro e pausado: “Tenho uma porção de documentos secretos. Lá fora. Nas sacolas de couro na motocicleta.” Teve uma boa ideia: “Vocês ficarão muito encrencados se não contatarem seu serviço secreto.”
O oficial disse algo para os soldados, que recuaram. “Não temos serviço secreto”, disse em um inglês arrevesado. “Sente-se e preencha este formulário.” Grant sentou-se à mesa e preencheu o longo formulário cheio de perguntas para quem quisesse visitar a zona oriental — nome, endereço, natureza do negócio e assim por diante. Enquanto isso, o oficial falou em voz baixa no telefone. Quando Grant terminou, mais dois soldados — suboficiais que usavam bonés verdes de campanha, com insígnias verdes de patente nos seus uniformes cáqui — entraram na sala. O oficial de fronteira deu a um deles o
formulário, sem olhá-lo, e eles saíram com Grant, colocando-o, junto com sua motocicleta, na traseira de um furgão e trancando a porta. Depois de uma rápida viagem de quinze minutos, o furgão parou. Quando Grant saiu, viu-se em um pátio nos fundos de um grande prédio novo. Foi levado para o prédio, e depois de subir em um elevador, deixaram-no sozinho em uma cela sem janelas. Não continha nada além de um banco de ferro. Uma hora depois, durante a qual examinaram os supostos documentos secretos, foi levado a um escritório confortável, onde um oficial com três carreiras de condecorações e as insígnias douradas de um autêntico coronel estava sentado atrás de uma
mesa. A mesa estava vazia, a não ser por um vaso de rosas. Dez anos mais tarde, quando Grant olhou pela janela do avião para um amontoado de luzes que julgou ser Kharkov, sorriu sem graça para seu reflexo no vidro. Rosas. Daquele momento em diante, sua vida nada mais fora do que rosas. Rosas, rosas, o tempo todo rosas.
3. CURSO DE PÓSGRADUAÇÃO
“Então, gostaria de trabalhar na União Soviética, senhor Grant?” Isto foi meia hora depois, e o coronel da MGB estava entediado com a entrevista. Achava que já havia arrancado daquele soldado britânico bastante desagradável todas as informações militares de interesse possível. Algumas frases polidas para recompensar o sujeito pelo belo lote de segredos revelados pelos seus malotes,
e então poderia mandá-lo de volta à carceragem e, no seu devido tempo, despachá-lo para Vorkuta, ou algum outro campo de trabalho. “Sim, gostaria de trabalhar para os senhores.” “E que tipo de trabalho poderia fazer, senhor Grant? Já temos bastante mão de obra não especializada. Não precisamos de motoristas de caminhão”, disse o coronel, com um sorriso fugaz. “E se for para lutar boxe, temos muitos homens capazes de fazer isso muito bem. Entre os quais, por acaso, dois possíveis campeões olímpicos.” “Sou perito em matar gente. Faço isso muito bem. Gosto.” O coronel percebeu o lampejo
vermelho que tremulou, por um instante, nos olhos azuis muito claros sob as pestanas louras. Pensou: O sujeito está sendo sincero. É louco, além de desagradável. Olhou friamente para Grant, pensando se valeria a pena desperdiçar comida com ele em Vorkuta. Talvez fosse melhor mandar fuzilá-lo. Ou enviá-lo de volta ao Setor Britânico e deixar que sua própria gente cuidasse dele. “O senhor não acredita em mim”, disse Grant, impaciente. Aquele não era o homem indicado, nem o departamento. “Quem resolve o jogo duro aqui?” Tinha certeza de que os russos possuíam alguma espécie de esquadrão da morte.
Era o que todo mundo afirmava. “Deixeme falar com eles. Matarei alguém para provar. Qualquer pessoa que quiserem. Agora.” O coronel olhou para ele aborrecido. Talvez fosse melhor comunicar o caso. “Espere aqui.” Levantou-se e saiu da sala, deixando a porta aberta. Chegou um guarda que ficou na porta, observando Grant pelas costas, com a mão na pistola. O coronel foi até a outra sala. Estava vazia. Havia três telefones na mesa. Pegou o fone da linha direta da MGB em Moscou. Quando o telefonista militar atendeu, ele disse: “smersh.” Quando a smersh atendeu, pediu para falar com o Chefe de Operações.
Dez minutos depois, repôs o fone no gancho. Que sorte! Uma solução simples e construtiva. A despeito de seus desdobramentos, só podia dar certo. Se ele fracassasse, mesmo assim causaria muitos problemas no Setor Ocidental — para os britânicos, porque Grant era um deles; com os alemães, porque o atentado amedrontaria muitos dos seus espiões; com os americanos, porque eram eles que bancavam em grande parte o círculo de Baumgarten, e agora achariam que seu esquema de segurança fora inútil. Satisfeito consigo mesmo, o coronel voltou para sua sala e sentou-se de novo diante de Grant. “Falou sério?”
“Claro que falei.” “Tem boa memória?” “Tenho.” “No Setor Britânico tem um alemão chamado Dr. Baumgarten. Mora no apartamento 5, no Kurfürstendamm, nº 22. Sabe onde fica?” “Sei.” “Hoje à noite você e sua moto serão devolvidos ao Setor Britânico. Suas placas serão trocadas. Seu pessoal estará de sobreaviso com você. Levará um envelope para o Dr. Baumgarten, com uma indicação para ser entregue em mãos. Uniformizado, e com este envelope, não terá nenhuma dificuldade. Dirá que a mensagem é tão confidencial
que você precisa falar com o Dr. Baumgarten a sós. Em seguida, deverá matá-lo.” O coronel fez uma pausa. Ergueu as sobrancelhas. “Está certo?” “Sim”, respondeu Grant, impassivelmente. “E, se eu fizer, me darão mais trabalho deste tipo?” “Possivelmente”, disse o coronel, com indiferença. “Primeiro precisa mostrar o que é capaz de fazer. Depois de terminada sua tarefa e de ter voltado ao Setor Soviético, pode procurar o coronel Boris.” Tocou uma campainha e entrou um sujeito à paisana. O coronel fez um gesto na sua direção. “Este homem lhe dará comida. Depois o envelope e uma faca afiada, de fabricação americana. Excelente arma.
Boa sorte.” O coronel pegou uma rosa do jarro e cheirou-a voluptuosamente. Grant se levantou. “Obrigado, senhor”, disse, calorosamente. O coronel não respondeu, nem tirou o olhar da rosa. Grant seguiu o sujeito à paisana e saiu da sala. O ronco do avião avançava pelo coração da Rússia. Haviam deixado para trás os altos-fornos que flamejavam a distância no leste, em volta de Stalino, e, a oeste, o fio prateado do Dnieper que engrossava em Dnepropetrovsk. O clarão em volta de Kharkov sinalizara a fronteira da Ucrânia, e a claridade menor da cidade de fosfato, Kursk,
surgira e desaparecera. Grant percebeu agora que o sólido e ininterrupto breu lá embaixo escondia a grande estepe central, onde os bilhões de toneladas de cereais da Rússia sussurravam e amadureciam na escuridão. Não haveria mais nenhum oásis luminoso, a não ser uma hora mais tarde, depois de percorrerem os últimos quinhentos quilômetros até Moscou. Porque a essa altura Grant já conhecia muita coisa sobre a Rússia. Depois do rápido e hábil assassinato de um espiãochave da Alemanha Ocidental, logo que Grant conseguiu passar pela fronteira e chegar, meio às cegas, até o “coronel Boris”, enfiaram-lhe roupas civis, puseram um capacete de aviador na sua
cabeça e o despacharam depressa para um avião vazio da MGB, que decolou direto para Moscou. Começou então um ano de semiencarceramento, que Grant dedicou a se manter em forma e a aprender russo, enquanto as pessoas iam e vinham à sua volta — inquisidores, delatores, médicos. Enquanto isso, espiões soviéticos na Inglaterra e na Irlanda do Norte vasculharam minuciosamente o seu passado. No final do ano, Grant recebeu o tipo de aval de saúde política que é o máximo que um estrangeiro pode conseguir na Rússia. Os espiões haviam confirmado a sua história. Os
informantes ingleses e americanos relataram que ele nutria um total desinteresse pela política e costumes sociais de qualquer país no mundo, e os médicos e psicólogos concordaram que era um maníaco-depressivo em fase avançada, cujos períodos de crise coincidiam com a lua cheia. Acrescentaram que Grant também era um narcisista assexuado que tinha uma alta tolerância à dor. Descontando essas peculiaridades, sua saúde física era excelente e, embora seu nível de instrução fosse incorrigivelmente baixo, possuía a esperteza natural de uma raposa. Todos foram unânimes em considerá-lo um membro extremamente perigoso da sociedade, que precisava
ser eliminado. Quando o relatório chegou às mãos do Chefe de Departamento de Pessoal da MGB, este esteve prestes a escrever mate-o na margem, quando mudou de ideia. Eram necessárias muitas execuções na URSS; não que o russo médio seja um sujeito cruel — ainda que as raças que compõem sua nacionalidade estejam entre os povos mais cruéis do mundo —, mas por questões políticas. As pessoas que atentam contra o Estado são inimigas do Estado, e este não dá guarida aos seus inimigos. Há mais o que fazer do que perder um tempo precioso com eles. Se constituírem um
estorvo permanente, são mortos. Em um país com uma população de 200 milhões, é possível se matarem vários milhares por ano, sem que se dê falta deles. Se, como aconteceu nos dois maiores expurgos, for preciso matar um milhão de pessoas em um ano, isso também não constitui uma grave perda. O problema mais sério é a falta de carrascos. Estes têm “vida” curta. Cansam-se do trabalho. A alma enjoa daquilo. Depois de dez, vinte, cem execuções, o ser humano, por mais subumano que seja, adquire, talvez por um processo de osmose com a própria morte, o germe letal que penetra seu corpo e o vai corroendo como um câncer. É dominado pela melancolia e
pela bebida, e um terrível marasmo que tolda seu olhar e destrói sua pontaria. Quando o patrão percebe esses sinais, não tem alternativa senão executar o carrasco e arranjar outro. O Chefe de Pessoal da MGB tinha conhecimento do problema e da busca constante, não só do assassino refinado, como também do carniceiro comum. E ali estava finalmente um sujeito que parecia preencher de modo exímio ambos os requisitos, dedicado ao seu ofício e, na verdade, a julgar pelos médicos, destinado a ele. O Chefe escreveu uma breve e mordaz anotação nos documentos de Grant, marcou-os com SMERSH Otdyel
II e jogou-os na sua bandeja de saída. O departamento 2 da SMERSH, encarregado de Operações e Execuções, adotou Donovan Grant, mudou seu nome para Granitsky e o incorporou à sua equipe. Os dois anos seguintes foram duros para Grant. Foi uma volta ao colégio, e a um colégio que lhe provocou saudades das longas carteiras de pranchão no galpão de ferro corrugado, cheirando a meninos pequenos e cheio de varejeiras sonolentas, que fora até então sua única imagem de algo parecido com um colégio. Agora, na Escola de Inteligência para Estrangeiros, nas cercanias de Leningrado, apertado entre as fileiras de alemães, tchecos,
poloneses, gente do Báltico, chineses e negros, todos compenetrados e dedicados, com suas canetas a riscar os cadernos, lutava com matérias que lhe pareciam grego. Havia cursos de “conhecimentos gerais de política”, que incluíam a história dos movimentos operários, do Partido Comunista e das forças industriais do mundo, e dos ensinamentos de Marx, Lênin e Stálin, todos recheados de nomes estrangeiros que mal podia soletrar. Havia aulas sobre “o inimigo de classe contra o qual lutamos”, palestras sobre o capitalismo e o fascismo; semanas passadas às voltas com “tática, agitação e
propaganda”, e outras mais com os problemas das minorias, povos colonizados, negros, judeus. Todo fim de mês tinha provas, nas quais Grant escrevia bobagens semialfabetizadas, de mistura com pedaços meio esquecidos da história da Inglaterra e lemas comunistas cheios de erros de ortografia. Acabava sempre tendo as suas provas rasgadas, certa vez diante de toda a turma. Mas aguentou, e ao chegar a vez das “matérias técnicas”, seu desempenho foi melhor. Aprendeu depressa as primeiras noções de códigos e mensagens cifradas, porque tinha vontade de compreendêlos. Era bom em Comunicações e entendeu de imediato o labirinto de
contatos, intermediários, mensageiros e locais de troca de mensagens; e obteve excelentes notas em trabalho de campo, no qual cada aluno tinha que planejar e executar tarefas nos subúrbios e no campo em volta de Leningrado. Finalmente, quando chegou a vez das provas de vigilância, discrição, medidas de segurança, presença de espírito, coragem e sangue-frio, obteve as maiores notas da escola inteira. No final do ano, o relatório enviado à SMERSH concluía: “Valor político: nulo. Valor operacional: excelente” — exatamente o que a Otdyel II queria ouvir. O ano seguinte foi passado apenas
com dois outros alunos estrangeiros, entre várias centenas de russos, na Escola de Terror e Ações Diversivas, em Kuchino, perto de Moscou. Ali Grant passou admiravelmente por cursos de judô, boxe, atletismo, fotografia e rádio, sob a supervisão geral do célebre coronel Arkady Fotoyev, pai do moderno espião soviético, completando sua instrução sobre armas leves sob os cuidados do tenente-coronel Nikolay Godlovsky, campeão soviético de tiro com fuzil. Por duas vezes naquele ano um carro da MGB veio buscá-lo inesperadamente em uma noite de lua cheia para levá-lo a uma das prisões de Moscou. Lá, de capuz negro na cabeça, o deixaram fazer
execuções por vários meios — corda, machado, submetralhadora. Passou por eletrocardiogramas, medição de pressão e vários outros exames médicos antes, durante e depois dessas ocasiões, mas seu objetivo e os resultados não lhe foram revelados. Foi um ano bom e ele julgou, acertadamente, que estava agradando. Em 1949 e 1950, permitiram que Grant participasse de uma pequena operação com grupos móveis, ou Avanposts, nos países satélites. Consistia em surras e simples execuções de espiões russos e agentes de inteligência suspeitos de traição ou outras aberrações. Grant executou essas
incumbências com habilidade, exatidão e discrição, e, apesar de ter sido meticulosa e constantemente vigiado, não demonstrou o menor desvio das normas exigidas, nenhuma fraqueza de caráter ou falha técnica. Talvez o mesmo não acontecesse se lhe dessem alguma missão parecida no período da lua cheia, mas seus superiores, percebendo que neste período ele estaria fora do controle deles, ou de seu próprio controle, escolhiam dias seguros para suas missões. O período da lua cheia era exclusivamente reservado para a carnificina nas prisões, que era de vez em quando oferecida como recompensa por alguma missão arriscada, bemsucedida.
Em 1951 e 52, a utilidade de Grant tornou-se mais evidente e oficialmente reconhecida. Como resultado de um trabalho excelente, especialmente no setor oriental de Berlim, foram-lhe concedidos a cidadania soviética e aumentos de salário que, em 1953, totalizavam belos 5 mil rublos por mês. Em 1953, recebeu a patente de major, com direitos de pensão retroativos ao dia de seu primeiro contato com o “coronel Boris”, e lhe concederam a villa na Crimeia. Dois seguranças foram destinados para acompanhá-lo, em parte para protegê-lo, em parte para impedi-lo de se “aposentar” — que no jargão da MGB significava deserção —, e era
conduzido uma vez por mês à prisão mais próxima, para levar a cabo tantas execuções quantos fossem os candidatos disponíveis. Grant naturalmente não tinha amigos. Era odiado, temido ou invejado por todo mundo que entrava em contato com ele. Não tinha nem mesmo quaisquer relações profissionais, que passam por amizades no mundo discreto e cauteloso do funcionalismo soviético. Mas, se tinha conhecimento deste fato, não ligava. Os únicos indivíduos pelos quais se interessava eram suas vítimas. O resto de sua vida se passava no seu íntimo. E era povoada por seus ricos e excitantes pensamentos. E, naturalmente, tinha a SMERSH.
Ninguém na União Soviética que tivesse a SMERSH a seu lado precisava se preocupar com amigos, ou até mesmo com qualquer outra coisa, a não ser manter-se sob as asas negras da instituição. Grant ainda divagava sobre como andaria sua reputação com seus empregadores, quando o avião começou a perder altitude ao captar as ondas de radar do aeroporto de Tushino, logo ao sul do clarão vermelho de Moscou. Estava no apogeu da carreira, como carrasco-chefe da SMERSH e, portanto, de toda a União Soviética. O que mais poderia almejar agora? Maiores promoções? Mais dinheiro? Mais
bugigangas douradas? Alvos mais importantes? Técnicas mais apuradas? Na verdade, não parecia haver mais nada a desejar. Ou existiria alguém no estrangeiro, um desconhecido total, que precisava ser eliminado para que a supremacia absoluta lhe pertencesse?
4. OS POTENTADOS DA MORTE
A SMERSH é a organização oficial do governo soviético para execução de seus adversários. Funciona tanto no país como no exterior e, em 1955, empregava um total de 40 mil homens e mulheres. SMERSH é uma abreviatura de Smiert Spionam, que significa “morte aos espiões”. É uma sigla só empregada pelo seu quadro de funcionários e pelos altos escalões soviéticos. Ninguém mais, em sã consciência, sequer
sonharia em deixar essas palavras escaparem de seus lábios. O quartel-general da SMERSH está localizado em um prédio moderno grande e feio na Sretenka Ulitsa. É o nº 13 dessa rua larga e sem graça, e os pedestres mantêm o olhar baixo ao passar pelas duas sentinelas de submetralhadora, postadas de ambos os lados da larga escadaria que leva à grande porta dupla de ferro. Caso lembrem a tempo, ou o possam fazer de modo discreto, atravessam a rua e passam pelo outro lado. A direção da SMERSH funciona no segundo andar. A sala mais importante deste piso é um cômodo enorme e claro, pintado em um tom pálido de verde
oliva que é o denominador comum de todas as repartições públicas do mundo inteiro. Do lado oposto da porta à prova de som, duas amplas janelas contemplam, de cima, o pátio nos fundos do prédio. O piso é totalmente coberto por um tapete do Cáucaso da melhor qualidade. No canto esquerdo da sala fica uma enorme escrivaninha de carvalho com o tampo coberto de feltro vermelho, sob uma grossa lâmina de vidro temperado. Do lado esquerdo dela ficam as bandejas de entrada e de saída da papelada, e no direito, quatro telefones. Uma mesa de reuniões se estende diagonalmente na sala, a partir do centro
da mesa de carvalho, fazendo um T com ela. Oito cadeiras de couro vermelho e espaldar reto estão dispostas ao seu redor. A mesa é também coberta por veludo vermelho, mas sem o vidro de proteção. Há cinzeiros sobre ela e dois pesados jarros d’água com copos. Nas paredes estão pendurados quatro grandes quadros de molduras douradas. Em 1955, eles constavam de um retrato de Stálin em cima da porta, um de Lênin entre as duas janelas e, nas outras duas paredes opostas, retratos de Bulganin e, onde até 13 de janeiro de 1954 estivera um retrato de Beria, agora estava o do general de Exército Ivan Aleksandrovitch Serov, diretor do Comitê de Segurança do Estado.
Na parede esquerda, sob o retrato de Bulganin, fica uma grande televisão em um belo móvel de carvalho envernizado. Este esconde um gravador que pode ser ligado da mesa. Os microfones do gravador alcançam toda a área da mesa de reuniões e seus fios ficam disfarçados nas pernas do móvel. Ao lado do televisor há uma pequena porta que leva a um lavabo pessoal e a uma pequena sala de projeção para exibir filmes secretos. Sob o retrato do general Serov há uma estante que contém, nas prateleiras de cima, as obras de Marx, Engels, Lênin e Stálin e, de modo mais acessível, livros em todas as línguas sobre espionagem,
contraespionagem, métodos policiais e criminologia. Ao lado da estante, encostada na parede, fica uma longa mesa estreita onde se acha uma dúzia de álbuns encadernados em couro, com datas gravadas em ouro nas capas. Contêm fotos de cidadãos soviéticos e estrangeiros assassinados pela SMERSH. Na hora aproximada em que Grant se preparava para pousar no aeroporto de Tushino, pouco antes das 11h30 da noite, um homem robusto e atarracado, beirando os cinquenta anos, estava em pé ao lado desta mesa, folheando o volume de 1954. O diretor da SMERSH, coronel general Grubozaboyschikov, conhecido
no prédio como “G”, vestia uma elegante túnica cáqui de colarinho alto e calças azul-escuras da cavalaria, com finas listas vermelhas do lado. As calças terminavam em botas de montaria de couro preto macio, extremamente polidas. Três fileiras de fitas metálicas ornavam o peito de sua túnica — duas Ordens de Lênin, Ordem de Suvorov, Ordem de Alexander Nevsky, Ordem da Bandeira Vermelha, duas Ordens da Estrela Vermelha, a medalha por vinte anos de serviço e medalhas pela defesa de Moscou e pela captura de Berlim. No fim delas vinham a fita rosa e cinza da CBE britânica e a fita vermelho-clara e branca da Medalha do Mérito
americana. Sobre as fitas pendia a estrela dourada de Herói da União Soviética. Acima do colarinho alto da túnica o rosto era estreito e agudo. Havia bolsas sob os olhos castanhos e redondos, que se projetavam para fora como bolas de gude polidas sob espessas sobrancelhas negras. O crânio era completamente raspado, e sua pele branca e esticada brilhava à luz do lustre do centro. A boca era larga e severa, sobre um queixo com uma profunda cova. Rosto duro, inflexível, de impressionante autoridade. Um dos telefones na mesa tocou baixo. O sujeito caminhou com pequenos passos exatos até sua cadeira alta atrás
dela. Sentou-se e pegou o fone do aparelho marcado com letras brancas, VCh, sigla que é uma abreviatura de vysokochastoty, ou alta frequência. Somente uns cinquenta funcionários do mais alto escalão estão ligados à rede VCh, e todos os ministros de Estado ou diretores de departamentos seletos. É servida por uma pequena linha operada por profissionais da segurança. Até mesmo eles não conseguem escutar as conversas, mas cada palavra falada na linha é gravada automaticamente. “Sim?” “Serov falando. Que providência foi tomada desde a reunião do Presidium esta manhã?”
“Convoquei uma reunião aqui dentro de poucos minutos, camarada general — com a presença da RUMID, da GRU e, é claro, da MGB. Depois disso, se houver acordo quanto à ação, terei uma entrevista com o meu diretor de Operações e o diretor de Planejamento. No caso de se decidir pela ação radical, tomei a precaução de trazer o executor necessário até Moscou. Desta vez eu mesmo supervisionarei os preparativos. Não queremos outro caso Khoklov.” “Nem pensar. Telefone para mim depois da primeira reunião. Quero informar ao Presidium amanhã de manhã.” “Certo, camarada general.”
O general G recolocou o fone no gancho e apertou uma campainha debaixo da mesa. Ao mesmo tempo ligou o gravador. Seu ajudante de ordens, um capitão da MGB, entrou. “Já chegaram?” “Sim, camarada general.” “Traga-os.” Em poucos minutos seis homens, cinco de uniforme, entraram um depois do outro e, mal olhando para o sujeito atrás da mesa, ocuparam seus lugares na mesa de reuniões. Eram três oficiais superiores, diretores de seus departamentos, cada qual acompanhado por um ajudante de ordens. Na União Soviética, ninguém vai sozinho a uma
reunião. Como autoproteção, e para tranquilizar seu departamento, cada um leva sempre uma testemunha, de modo que seu departamento possa ter uma versão própria do que aconteceu na reunião e, acima de tudo, o que foi dito em seu apoio. Isto é importante, caso haja alguma investigação posterior. Nenhuma anotação é feita durante a reunião, e as decisões são transmitidas oralmente aos departamentos. No lado oposto da mesa se sentavam o tenente-coronel Slavin, diretor da GRU, o departamento de Inteligência do Estado-Maior do Exército, com um coronel ao lado. No final da mesa se sentavam o tenente-general Vozdvishensky, do RUMID, o
departamento de Inteligência do Ministério das Relações Exteriores, com um civil de meia-idade à paisana. De costas para a porta sentava-se o coronel Nikitin, da Segurança do Estado, diretor de Inteligência da MGB, o serviço secreto soviético, com um major ao lado. “Camaradas, boa tarde.” Os três oficiais de alto escalão emitiram um murmúrio cauteloso e polido. Cada um sabia, julgando que só ele soubesse, que a sala estava grampeada, e cada um deles decidira, sem transmitir nada a seus ajudantes de ordens, dizer o mínimo de palavras possível, conforme a boa disciplina e as
necessidades do Estado. “Fumemos.” O general G tirou um maço de cigarros Moskwa-Volga e acendeu um deles com um isqueiro americano Zippo. Ouviram-se vários cliques de isqueiros em volta da mesa. O general G apertou o longo cigarro, quase o achatando e pondo-o no canto direito da boca. Esticou os lábios, afastando-os dos dentes, e começou a falar em frases curtas e sincopadas, que saíam um tanto sibilantes, entre os dentes e o cigarro empinado. “Camaradas, estamos aqui reunidos segundo as instruções do camarada general Serov. O general mandou, em nome do Presidium, que eu os informasse sobre determinados assuntos
da política do Estado. Devemos depois deliberar e recomendar um rumo de ação alinhado a esta política, no sentido de fortalecê-la. Precisamos chegar rápido a uma conclusão, pois nossa decisão será de suprema importância para o Estado. E, portanto, terá que ser uma decisão correta.” O general G fez uma pausa para permitir que o significado de suas palavras fosse absorvido. Examinou um por um os rostos dos três oficiais graduados na mesa. Eles devolveram seu olhar, sem pestanejar. Mas, no íntimo, aqueles homens extremamente importantes se sentiam incomodados. Estavam prestes a olhar dentro da
fornalha. Prestes a ficar sabendo um segredo de Estado, cujo conhecimento poderia um dia ter sérias consequências para eles. Sentados na sala silenciosa, sentiam-se banhados pela terrível incandescência que brilhava a partir do centro de todo o poder na União Soviética — o Presidium Supremo. A última cinza da ponta do cigarro do general G caiu na sua túnica. Limpou-a com a mão e jogou a guimba na cesta de lixo confidencial, ao lado de sua mesa. Acendeu outro cigarro e falou com ele na boca. “A recomendação que devemos examinar diz respeito a um ato de terrorismo explícito, a ser executado em território inimigo dentro de três meses.”
Seis pares de olhos inexpressivos fitavam o diretor da SMERSH, à espera. “Camaradas”, o general G se recostou na cadeira e sua voz tornou-se didática: “A política externa da URSS entrou em uma nova fase. Antigamente era uma política ‘dura’ — uma política [ele se permitiu a piada com o nome de Stálin] de aço. Esta política, eficaz como era, acumulou tensão no Ocidente, especialmente na América, que estava se tornando perigosa. Os americanos são uma gente imprevisível e histérica. Os relatórios de nossa Inteligência começaram a mostrar indícios de que estávamos empurrando a América para uma posição favorável a um ataque
atômico não declarado à URSS. Vocês já leram esses relatórios e sabem que é verdade o que digo. Não queremos uma guerra assim. Se houver guerra, somos nós que devemos escolher a hora. Certos americanos poderosos, especialmente o grupo do Pentágono liderado pelo Almirante Radford, foram auxiliados em seus planos provocadores pelos próprios sucessos de nossa política ‘dura’. Por isso decidiu-se que chegara a hora de mudar nossa tática, ainda que conservando seus objetivos finais. Criou-se uma nova política — a política ‘dura-mole’. Genebra foi o início desta política. Fomos ‘moles’. A China ameaça Quemoy e Matsu. Fomos ‘duros’. Abrimos nossas fronteiras a
inúmeros jornalistas e artistas, embora saibamos que muitos deles são espiões. Nossos líderes riem e fazem piadas nas recepções em Moscou. No meio destas piadas fizemos o maior teste atômico de todos os tempos. Os camaradas Bulganin e Khrushchev, e o camarada general Serov [o general G teve o cuidado de incluir seus nomes em função dos ouvidos do gravador] visitam a Índia e o Oriente e dão uma rasteira nos ingleses. Ao voltarem, debatem amistosamente com o embaixador britânico sobre a sua próxima visita de boa vontade a Londres. E assim seguimos em frente — primeiro o chicote, depois a cenoura, o sorriso, depois a cara amarrada. O
Ocidente fica confuso. As tensões são relaxadas antes de terem tempo de se enrijecer. Nossos inimigos passam a ter reações desencontradas, uma estratégia confusa. Enquanto isso, o povo ri das nossas piadas, torce por nossos times de futebol e baba de prazer quando soltamos alguns prisioneiros de guerra que não desejamos mais alimentar!” Houve sorrisos de prazer e de orgulho ao redor da mesa. Que política brilhante! Como a gente está fazendo o Ocidente de tolo! “Ao mesmo tempo”, prosseguiu o general G, ele mesmo dando um sorriso rarefeito diante da satisfação que causara, “continuamos a avançar sem muito alarde em todo canto — revolução
no Marrocos, armas para o Egito, amizade com a Iugoslávia, problemas em Chipre, motins na Turquia, greves na Inglaterra, grandes conquistas políticas na França. Não existe frente alguma no mundo em que não avançamos discretamente.” O general G viu os olhos cheios de cobiça em volta da mesa. Os homens haviam sido amolecidos. Agora era a vez de ser duro. Agora era a vez de sentirem os efeitos da nova política na própria carne. Os serviços de Inteligência também teriam de somar esforços neste grande jogo que estava sendo disputado em seu próprio benefício. O general G inclinou-se
mansamente para a frente. Apoiou seu cotovelo direito na mesa e ergueu o punho no ar. “Mas, camaradas”, a voz era suave, “onde tem havido falhas na execução da política do Estado na URSS? Quem tem sido constantemente mole, quando queríamos a dureza? Quem tem sofrido derrotas, enquanto todos os outros departamentos do Estado colhiam vitórias? Quem fez, com seus erros idiotas, com que a União Soviética parecesse fraca e tola perante o mundo? QUEM?” A voz se alteara, quase a gritar. O general G pensou como estava transmitindo bem a autocrítica exigida pelo Presidium. E não pareceria
esplêndido quando Serov ouvisse a fita? Olhou com dureza os rostos pálidos e expectantes na mesa de reuniões. O general G bateu o punho com força na mesa. “Todo o aparato de Inteligência da União Soviética, camaradas.” A voz agora se transformara em um berro de fúria. “Somos nós os preguiçosos, os sabotadores, os traidores! Somos nós que estamos traindo a União Soviética na sua grande e gloriosa luta! Nós!”, seu braço varreu a sala. “Todos nós!” A voz voltou agora ao normal, tornou-se mais razoável. “Camaradas, olhem para o que está registrado. Sookin Sin [ele se permitiu a obscenidade camponesa],
filhos da mãe, olhem os registros! Primeiro perdemos Gouzenko e toda a rede canadense, e o cientista Fuchs; em seguida, a rede americana sofre uma limpeza; depois perdemos homens como Tokaev; em seguida, vem o caso escandaloso de Khoklov, que causou um grande dano ao nosso país; depois Petrov e sua mulher na Austrália — uma incompetência inigualável! A lista não tem fim. Derrota após derrota, e o diabo é que não mencionei nem a metade.” O general G fez uma pausa. Prosseguiu na sua voz mais suave: “Camaradas, devo lhes dizer que, se não tomarmos uma iniciativa hoje a favor de uma ofensiva da Inteligência, se não agirmos corretamente em relação a esta
iniciativa, caso seja aprovada, teremos encrenca.” O general G buscou uma frase final para transmitir essa ameaça, sem definila. Achou-a. “Haverá”, fez uma pausa e olhou com fingida brandura a extensão da mesa, “descontentamento”.
5. KONSPIRATSIA
Os mujiques haviam sentido a chibata. O general G lhes deu alguns minutos para lamber suas feridas e se recuperar do choque causado pelos açoites oficiais que ele havia aplicado. Ninguém se defendeu. Ninguém pediu a palavra para defender seu departamento ou mencionou as inúmeras vitórias da Inteligência soviética que poderiam ser contrapostas às suas poucas falhas. E ninguém questionou o direito do diretor da SMERSH, que
dividia a culpa com eles, de lançar essa terrível denúncia. A Palavra lhe havia sido dada pelo Trono, e o general G fora escolhido como porta-voz da Palavra. Foi uma grande lisonja para o general G ter sido escolhido assim, um sinal de boas graças, de promoção à vista, e todos os presentes registraram que, na hierarquia da Inteligência, o general G, com a SMERSH por trás, chegara ao topo da pirâmide. Na ponta da mesa o representante do Ministério do Exterior, tenente-general Vozdvishensky, do RUMID, observava as volutas de fumaça saídas da ponta de seu cigarro Kazbek e lembrava quando Molotov lhe havia dito em particular, depois da morte de Beria, que o general
G iria longe. “Não foi necessária grande clarividência para fazer esta profecia”, refletiu Vozdvishensky. Beria não gostava de G e muitas vezes freara o seu avanço, desviando-o da escada principal do poder para um dos departamentos menos importantes do que era então o Ministério da Segurança do Estado, que Beria abolira rapidamente por ocasião da morte de Stálin. Até 1952, G ocupara o segundo lugar em uma importante diretoria desse ministério. Quando o cargo foi abolido, dedicou seus esforços a planejar a derrubada de Beria, trabalhando sob as ordens secretas do formidável general Serov, cujo currículo o deixava até fora
do alcance de Beria. Serov, herói da União Soviética e veterano dos célebres antecessores da MGB — a Cheka, o OGPU, a NKVD e a MVD —, era, sob todos os aspectos, um homem maior que Beria. Estivera diretamente por trás das execuções em massa dos anos 1930, nas quais morreram um milhão de pessoas; fora o metteur en scène da maioria dos grandes julgamentos espetaculares de Moscou; organizara o sangrento genocídio no Cáucaso Central, em fevereiro de 1944; e fora ele quem inspirara as deportações em massa dos Estados bálticos e o sequestro dos cientistas atômicos, e demais cientistas alemães, que possibilitaram o grande
avanço tecnológico da Rússia no pósguerra. Beria e todo o seu círculo foram executados, enquanto o general recebeu a SMERSH como recompensa. Quanto ao general de Exército Ivan Serov, ele agora governava a Rússia, junto com Bulganin e Khrushchev. Um dia, talvez chegasse a figurar sozinho no topo. Porém, adivinhou o general Vozdvishensky, lançando um olhar mesa acima até o seu crânio luzidio como uma bola de bilhar, com o general G nos seus calcanhares. O crânio se levantou e os olhos duros, castanhos e saltados olharam mesa abaixo bem nos olhos do general
Vozdvishensky. Este conseguiu devolver o olhar com calma, até mesmo com um toque de distanciamento. “Este é profundo”, pensou o general G. “Vamos botar os holofotes em cima dele e ver como ele se sai na trilha sonora.” “Camaradas”, o ouro faiscou de ambos os cantos de sua boca, ao esticar os lábios em um sorriso de presidente da diretoria. “Não fiquemos desanimados. Mesmo a árvore mais alta tem um machado esperando a seu pé. Creio que nunca achamos nossos departamentos tão bem-sucedidos a ponto de estar isentos de crítica. O que me instruíram a lhes dizer não deve ter constituído nenhuma surpresa para
nenhum de nós. Por isso, vamos enfrentar o desafio com disposição e nos dedicar ao trabalho.” Não houve sorrisos em volta da mesa diante desses lugares-comuns. O general G não esperava que houvesse. Acendeu um cigarro e continuou: “O meu conselho foi que fizéssemos o quanto antes um atentado terrorista na área da espionagem, e que convidássemos um de nossos departamentos — sem dúvida, o meu — para executá-lo.” Um suspiro silencioso de alívio passou em torno da mesa. Então seria a SMERSH o departamento responsável! Isso era uma grande coisa. “Mas a escolha do alvo não será uma
questão fácil, e nossa responsabilidade coletiva de que seja correta será grave.” Macia, dura, dura, macia. A bola estava agora com a reunião. “Não se trata apenas de explodir um prédio ou alvejar um primeiro-ministro. Não se pensou nessas brincadeiras burguesas. Nossa operação precisa ser delicada, refinada, e visar o coração do aparato da Inteligência ocidental. Precisamos infligir um duro golpe — um prejuízo oculto do qual o público provavelmente nada ouvirá falar, mas que será a conversa confidencial nos círculos governamentais. Mas também é necessário que provoque um escândalo público tão calamitoso que o mundo lamberá os beiços e zombará da
vergonha e da burrice de nossos inimigos. Os governos saberão naturalmente que se trata de uma konspiratsia soviética. Isso é bom. Será um pouco da política ‘dura’. E os agentes e espiões do Ocidente também saberão, ficarão admirados de nossa esperteza e tremerão. Os traidores e possíveis desertores mudarão de ideia. E nossos próprios agentes serão estimulados. Serão encorajados a fazer mais esforços diante da nossa demonstração de força e de engenhosidade. Obviamente, negaremos qualquer autoria do fato, seja qual for, e é desejável que o povo comum da União Soviética permaneça completamente
ignorante de nossa cumplicidade.” O general G fez uma pausa e olhou mesa abaixo para o representante do RUMID, que novamente devolveu o seu olhar, impassivelmente. “E agora devemos escolher a organização a ser golpeada, para depois decidir sobre o alvo específico dentro dela. Camarada tenente-general Vozdvishensky, já que o senhor observa a cena da Inteligência estrangeira de um ponto de vista neutro [uma zombaria aos ciúmes notórios que existiam entre a Inteligência militar da GRU e o serviço secreto da MGB], talvez possa fazer um levantamento desta área para nós. Gostaríamos de sua opinião sobre a importância relativa dos serviços de
Inteligência ocidentais. Depois escolheremos o mais perigoso, aquele a quem mais desejamos prejudicar.” O general G recostou-se na sua cadeira alta. Descansou os cotovelos nos braços dela e apoiou o queixo nos dedos entrelaçados de suas mãos, como um professor pronto para ouvir uma longa exposição. O general Vozdvishensky não perdeu o ânimo diante da tarefa. Integrava o sistema de Inteligência havia trinta anos, a maior parte no estrangeiro. Servira como “porteiro” da embaixada soviética em Londres, sob Litvinoff. Trabalhara com a agência Tass em Nova York e em seguida voltara a Londres, para a
Amtorg, a organização soviética de comércio. Durante cinco anos fora adido militar sob as ordens da brilhante Madame Kollontai, na embaixada em Estocolmo. Ajudara a treinar Sorge, o grande espião soviético, muito antes de Sorge ir para Tóquio. Durante a guerra havia sido por algum tempo diretor residente na Suíça, ou “Schmidtland”, como era conhecida no jargão da espionagem, e ali ajudara a plantar as sementes da rede “Lucy”, sensacionalmente bem-sucedida, mas tragicamente mal-utilizada. Chegara até a ir algumas vezes à Alemanha como emissário da “Rote Kapelle” e escapara por um triz da limpeza que esta sofrera. E depois da guerra fora transferido para
o Ministério do Exterior, estivera por dentro da Operação Burgess e Maclean e inúmeros outros esquemas para infiltrar os ministérios do Exterior estrangeiros. Era um espião profissional da cabeça aos pés e estava perfeitamente preparado para registrar suas opiniões sobre os rivais com quem vinha esgrimando a vida inteira. O ajudante de ordens ao seu lado sentia-se menos confortável. Estava nervoso pelo fato de o RUMID ter sido exposto daquela maneira, sem uma preparação prévia de todo o departamento. Limpou o cérebro e aguçou os ouvidos para não perder nenhuma palavra.
“Nesta questão”, disse o general Vozdvishensky cautelosamente, “não se deve confundir o homem com seu cargo. Todo país tem bons espiões, e nem sempre são os maiores que os têm em maior quantidade, ou melhor qualidade. Mas os serviços secretos são caros, e os países pequenos não podem bancar o esforço coordenado que cria o bom sistema de Inteligência — os departamentos de falsificação, a rede de rádio, o departamento de registros, o aparelho digestivo que avalia e compara os relatórios dos agentes. Há vários agentes individuais servindo a Noruega, Holanda, Bélgica e até Portugal que nos seriam muito prejudiciais se estes países
soubessem o valor de seus relatórios e como fazer bom uso deles. Mas não sabem. Em vez de repassar sua informação para as potências maiores, preferem ficar sentados em cima dela, sentindo-se importantes. Por isso, não precisamos nos preocupar com esses países menores”, pausou, “até chegarmos à Suécia. Ali eles nos espionam há séculos. Sempre tiveram uma informação melhor sobre o Báltico do que até mesmo a Finlândia ou a Alemanha. São perigosos. Eu gostaria de pôr um fim a suas atividades.” O general G interrompeu: “Camarada, eles vivem tendo escândalos de espionagem na Suécia. Um escândalo a mais não atrairia a atenção mundial. Por
favor, continue.” “A Itália pode ser dispensada”, prosseguiu o general Vozdvishensky, sem dar a entender que notara a interrupção. “São inteligentes e ativos, mas não nos fazem mal. Estão apenas interessados no seu quintal, o Mediterrâneo. O mesmo pode ser dito da Espanha, exceto que sua contraespionagem é um grande empecilho ao Partido. Perdemos muita gente boa para aqueles fascistas. Mas armar uma operação contra eles provavelmente nos custaria mais homens. E pouco seria alcançado. Não estão maduros para a revolução. Na França, apesar de termos nos infiltrado
na maioria de seus serviços, o Deuxième Bureau ainda é inteligente e perigoso. Tem um sujeito chamado Mathis, que está na chefia. Uma nomeação de Mendés-France. Daria um alvo tentador e seria fácil agir na França.” “A França está cuidando de si mesma”, comentou o general G. “A Inglaterra é uma coisa completamente diferente. Acho que todos nós respeitamos o seu serviço de Inteligência”, o general olhou em volta da mesa. Todos os presentes mexeram a cabeça a contragosto, inclusive o general G. “Seu serviço de segurança é excelente. A Inglaterra, sendo uma ilha, tem grandes vantagens quanto à segurança, e seu chamado MI5 emprega
gente de boa instrução e boa cabeça. O seu serviço secreto é melhor ainda. Consegue êxitos notáveis. Em certos tipos de operação, estamos cansados de descobrir que eles já estiveram lá antes da gente. Seus agentes são bons. Pagamlhes pouco — só mil ou dois mil rublos por mês —, mas trabalham com dedicação. No entanto, não gozam de nenhum privilégio especial na Inglaterra, nenhuma isenção de imposto de renda e nenhum acesso a lojas exclusivas, como nós, onde podemos comprar artigos baratos. Sua posição social não é alta no estrangeiro, e suas mulheres precisam aturar o fato de serem casadas com secretários. São raramente
condecorados, a não ser depois da aposentadoria. E, no entanto, esses homens e mulheres continuam a fazer o trabalho perigoso. É estranho. Talvez seja a tradição do colégio interno e da universidade. O amor à aventura. Ainda assim, é estranho que joguem tão bem este jogo, já que não são conspiradores naturais.” O general Vozdvishensky sentiu que seus comentários poderiam ser considerados excessivamente laudatórios. E fez uma ressalva apressada: “É claro que a maior parte de sua força vem do mito — do mito da Scotland Yard, de Sherlock Holmes, do serviço secreto. Certamente nós nada temos a temer desses senhores. Porém, este mito é um empecilho que seria bom
eliminar.” “E os americanos?” O general G queria pôr fim às tentativas de Vozdvishensky de ressalvar seus elogios à Inteligência dos ingleses. Um dia aquele trecho sobre o colégio interno e a tradição universitária soaria bem em um tribunal. Só faltava agora que ele dissesse, assim esperava o general G, que o Pentágono é mais forte do que o Kremlin. “Os americanos possuem o serviço maior e mais rico entre os nossos inimigos. Tecnicamente, em questões como rádio, armas e equipamento, são os melhores. Mas falta-lhes a compreensão do trabalho. Ficam
entusiasmados com qualquer espião balcânico que afirme haver um exército secreto na Ucrânia. Eles o enchem de dinheiro para comprar botas para este exército. É claro que ele vai direto para Paris e gasta o dinheiro com mulheres. Os americanos procuram fazer tudo com dinheiro. Os bons espiões não trabalham apenas por dinheiro — só os ruins, dos quais os americanos possuem várias divisões.” “Eles têm êxitos, camarada”, disse o general G, insinuantemente. “Talvez o senhor os subestime.” O general Vozdvishensky sacudiu os ombros. “Devem ter seus êxitos, camarada general. Não se pode semear um milhão de sementes sem colher uma
batata. Pessoalmente, eu não acho que os americanos devam merecer a atenção desta reunião.” O diretor do RUMID recostou-se na cadeira e tirou a sua cigarreira. “Uma exposição muito interessante”, disse com frieza o general G. “Camarada general Slavin?” O general Slavin, da GRU, não tinha nenhuma intenção de se comprometer em benefício do Estado-Maior do Exército. “Ouvi com interesse as palavras do camarada general Vozdvishensky. Nada tenho a acrescentar.” O coronel da segurança do Estado Nikitin, da MGB, achou que não havia mal nenhum em expor a GRU como uma
instituição tão burra que era incapaz de ter qualquer ideia, e ao mesmo tempo fazer uma sugestão modesta que provavelmente viria ao encontro dos pensamentos íntimos dos presentes — e que certamente estava na ponta da língua do general G. O coronel Nikitin também sabia que, considerando a proposta feita pelo Presidium, o serviço secreto soviético o apoiaria. “Recomendo que o serviço secreto britânico seja o alvo da ação terrorista”, disse, decisivamente. “Vejam só, meu departamento mal o considera um adversário à altura, mas é o melhor dessa turma medíocre.” O general G ficou aborrecido pelo tom autoritário da voz do sujeito, e
também porque ele roubara a sua declaração bombástica, já que ele pretendia concluir igualmente por uma operação contra os britânicos. Bateu de leve com o isqueiro na mesa para impor novamente sua direção. “Estamos de acordo então, camaradas? Um ato de terrorismo contra o serviço secreto britânico?” Todas as cabeças em torno da mesa se moveram lentamente em assentimento. “Concordo. E agora o alvo dentro da organização. Lembro do camarada general Vozdvishensky falando algo sobre um mito do qual depende grande parte da alegada força do serviço secreto. Como podemos ajudar a
destruir o mito e assim golpear a própria força motivadora dessa organização? Onde está esse mito? Está na chefia? Quem é o chefe do serviço secreto britânico? O ajudante do coronel Nikitin cochichou no seu ouvido. O coronel Nikitin resolveu que esta era uma pergunta que ele podia e talvez devesse responder. “É um almirante. Conhecido pela letra M. Temos uma zapiska sobre ele, mas pouca coisa. Não bebe muito. É velho demais para as mulheres. O público não sabe de sua existência. Seria difícil criar um escândalo em torno de sua morte. E não seria fácil de matar. Raramente viaja ao exterior. Alvejá-lo
em uma rua de Londres seria algo grosseiro.” “Tem muita coisa certa no que você diz, camarada”, disse o general G. “Mas estamos aqui para encontrar um alvo que preencha nossas exigências. Não terão eles alguém que seja um herói aos olhos da própria organização? Alguém que seja admirado e cuja destruição e desmoralização provocassem um grande desalento? Os mitos são criados sobre os feitos e indivíduos heroicos. Não terão esse tipo de homem?” Houve silêncio em volta da mesa, enquanto todo mundo varria sua memória. Tantos nomes a lembrar, tantos dossiês, tantas operações em
curso todo dia no mundo inteiro. Quem haveria no serviço secreto britânico? Quem seria o homem que... Foi o coronel Nikitin quem quebrou o silêncio constrangedor. Disse, hesitante: “Há um sujeito chamado Bond.”
6. MANDADO DE MORTE
“Y*b**nna mat!” Esta expressão indecorosa era uma das prediletas do general G. Ele deu um tapa na mesa: “Camarada, certamente há um sujeito chamado ‘Bond’, conforme afirmou.” Seu tom de voz era sarcástico. “James Bond [ele o pronunciou ‘Shems’]. E olha que ninguém, nem eu, conseguia se lembrar do nome desse espião! Somos realmente esquecidos. Não é de estranhar que o sistema de informação esteja sendo criticado.”
O general Vozdvishensky achou que devia defender a si mesmo e a seu departamento. “Existem inúmeros inimigos da União Soviética, camarada general”, protestou. “Quando quero saber seus nomes, mando consultar o Índice Central. Com certeza conheço o nome desse Bond. Já nos causou grandes problemas em diversas ocasiões. Mas hoje minha cabeça está cheia de outros nomes — nomes de gente que está nos causando problemas hoje, nesta semana. Eu me interesso por futebol, mas não consigo me lembrar do nome de todos os estrangeiros que fizeram gol contra o Dínamo.” “O senhor gosta de brincar,
camarada”, disse o general G, para frisar o comentário inoportuno. “Isto é um assunto sério. Eu mesmo admito minha falha ao deixar de lembrar o nome desse notório agente. O camarada Nikitin sem dúvida refrescará ainda mais a nossa memória, mas eu lembro que esse Bond frustrou ao menos duas vezes as operações da SMERSH. Isto é”, acrescentou, “antes que eu assumisse a direção do departamento. Houve aquele caso na França, naquela cidade que tem o cassino. O homem era Le Chiffre. Um excelente líder do Partido na França. Deixou-se tolamente enrolar com problemas financeiros. Mas teria se safado, se não fosse a interferência desse sujeito, Bond. Lembro que o
departamento foi obrigado a agir rapidamente e liquidar o francês. O executor deveria ter dado cabo ao mesmo tempo do inglês, mas não deu. Depois teve aquele nosso negro do Harlem. Grande sujeito — um dos melhores agentes estrangeiros que jamais empregamos, e com uma enorme rede para apoiá-lo. Houve uma questão qualquer sobre um tesouro no Caribe. Esqueço os detalhes. O inglês foi enviado pelo serviço secreto, destruiu todo o esquema e matou nosso homem. Foi uma grande perda. Repito, meu antecessor deveria ter agido impiedosamente contra o espião inglês.” O coronel Nikitin interrompeu:
“Tivemos uma experiência semelhante no caso do alemão, Drax, e o foguete. O senhor deve se recordar deste caso, camarada general. Uma konspiratsia das mais importantes. O Estado-Maior estava profundamente envolvido. Era um assunto de alta política que poderia ter dado um fruto decisivo. Mas novamente esse Bond frustrou a operação. O alemão foi morto. O Estado sofreu graves consequências. Seguiu-se um período de sérios constrangimentos que só se resolveu com dificuldade.” O general Slavin, da GRU, achou que deveria dizer algo. O foguete fora uma operação do Exército e seu fracasso debitado na conta da GRU. Nikitin o sabia muito bem. Como sempre, a MGB
estava procurando encrencar a GRU — vasculhando a história passada daquele modo. “Pedimos a seu departamento que desse um jeito nesse homem, camarada coronel”, disse, com azedume. “Não me lembro de que tenha havido alguma ação depois do nosso pedido. Se tivesse, não teríamos agora de nos incomodar com ele.” As têmporas do coronel Nikitin pulsavam de ódio. Controlou-se. “Com o devido respeito, camarada general”, disse, num tom de voz alto e sarcástico, “o pedido da GRU não foi confirmado pelo alto escalão, que não queria mais problemas com a Inglaterra. Talvez este detalhe tenha lhe escapado da memória.
De qualquer maneira, se esse pedido tivesse chegado à MGB, teria sido repassado à SMERSH, para que ela entrasse em ação.” “Meu departamento não recebeu nenhum pedido desse tipo”, disse com rispidez o general G. “Ou a execução desse homem teria sido cumprida rapidamente. No entanto, não é hora para revirar a história. A questão do foguete foi há três anos. Talvez a MGB possa nos contar as atividades mais recentes desse sujeito.” O coronel Nikitin cochichou depressa com seu auxiliar. Voltou-se para a mesa: “Temos muito pouca informação adicional, camarada general”, disse, defensivamente. “Achamos que ele
esteve envolvido em um negócio de contrabando de diamantes no ano passado, entre a África e a América. O caso não nos dizia respeito. Desde então não tivemos mais notícias suas. Talvez haja informações mais recentes na sua ficha.” O general G balançou a cabeça. Pegou o telefone mais próximo. Era o chamado Kommandant Telefon da MGB. Todas as linhas eram diretas e não havia uma mesa telefônica central. Discou um número. “Índice Central? Bond — espião inglês. Urgente.” Ele escutou o “imediatamente, camarada general” e recolocou o telefone no gancho. Olhou para a mesa com
autoridade. “Camaradas, sob muitos pontos de vista, esse espião parece um alvo adequado. Parece um inimigo perigoso do Estado. Sua liquidação beneficiará todos os departamentos de nosso sistema de informação. Não é?” O conclave resmungou que sim. “E sua perda também será sentida pelo serviço secreto. Mas terá um efeito maior? Eles serão seriamente atingidos? Ajudará a destruir esse mito de que falamos? Esse homem é considerado um herói pela sua organização e pelo seu país?” O general Vozdvishensky achou que a pergunta lhe era endereçada. Falou alto: “Os ingleses não se interessam por heróis, a não ser que sejam jogadores de
futebol, de críquete ou jóqueis. Se alguém escala uma montanha ou corre com muita velocidade, também vira herói para algumas pessoas, mas não para as massas. A Rainha da Inglaterra também é uma heroína, e Churchill. Mas os ingleses não se interessam muito por heróis militares. Esse sujeito, Bond, é desconhecido do público. Mesmo se fosse conhecido, ainda assim não seria um herói. Na Inglaterra, nem a guerra declarada nem a secreta são uma questão de heroísmo. Não gostam de pensar em guerra, e depois que ela passa os nomes de seus heróis de guerra são esquecidos o mais rapidamente possível. Dentro do serviço secreto é
possível que esse sujeito seja um herói local, ou não. Dependerá de sua aparência e características pessoais. E não sei nada sobre elas. Pode ser que seja seboso, gordo e desagradável. Ninguém consegue transformar alguém assim em herói, ainda que seja bemsucedido.” Nikitin interrompeu: “Os espiões ingleses que capturamos falam muito bem desse sujeito. É certamente muito admirado no seu serviço. Dizem que é um lobo solitário, mas bem-apessoado.” O telefone interno ronronou suavemente. O general G pegou o fone, ouviu brevemente e disse: “Traga-a.” Houve uma batida na porta. O ajudante de ordens entrou carregando uma
volumosa pasta de capas de papelão. Atravessou a sala e colocou a pasta na mesa defronte ao general, depois saiu, fechando a porta com delicadeza. A pasta tinha uma capa preta brilhante. Uma larga lista branca corria diagonalmente, de seu canto esquerdo superior ao canto direito inferior. No espaço superior esquerdo figuravam as letras SS, e sob elas, em branco, “SOVERSHENNO SEKRETNO”, o equivalente a “ultraconfidencial”. No centro, pintadas meticulosamente em letras brancas, “JAMES BOND”, e debaixo, “Angliski Spion”. O general G abriu a pasta e tirou um grande envelope de fotografias que
esvaziou na tampa de vidro da mesa. Pegou-as uma a uma. Olhou-as meticulosamente, às vezes com uma lupa que tirou de uma gaveta, e passou-as por cima da mesa para Nikitin, que as olhou e passou adiante. A primeira era de 1946. Mostrava um rapaz moreno sentado em uma mesa de um café ensolarado. Havia um copo a seu lado e um sifão de soda. O antebraço direito descansava na mesa e via-se um cigarro entre os dedos, pendendo negligentemente. As pernas estavam cruzadas em uma posição que só os ingleses adotam — com o tornozelo direito descansando no joelho esquerdo e a mão esquerda segurando o tornozelo. Era uma pose descontraída. O
sujeito não sabia que estava sendo fotografado de uma posição a cerca de sete metros de distância. A próxima era de 1950. Do busto, borrada, mas do mesmo sujeito. Foi tirada de perto e Bond dava um olhar escrutinador, de olhos semicerrados, a algo, provavelmente ao rosto do fotógrafo logo acima da lente. “Uma câmera miniatura presa à lapela”, adivinhou o general G. A terceira era de 1951. Tirada do lado esquerdo, bem de perto, mostrava o mesmo homem em um terno escuro, sem chapéu, descendo uma rua larga e deserta. Passava diante de uma loja fechada cuja placa dizia “Charcuterie”.
Parecia se dirigir a algum lugar, apressado. O perfil bem-definido apontava bem à frente, e o ângulo do cotovelo direito sugeria que estivesse com a mão direita enfiada no bolso do casaco. O general G pensou que ela provavelmente tivesse sido tirada de um carro. Julgou que a aparência decidida do sujeito e a inclinação determinada de sua postura ao andar pareciam um perigo, como se ele se dirigisse rapidamente a algo errado que estivesse acontecendo mais adiante na rua. A quarta e última foto tinha a marca Passap. 1953. Viam-se o selo real e as letras “...TÉRIO DO EXTERIOR” no segmento de um círculo, à mostra no canto inferior direito. A fotografia,
ampliada para tamanho console, devia ter sido tirada em uma fronteira, ou pelo recepcionista de algum hotel, quando Bond entregara seu passaporte. O general G passou sua lupa cuidadosamente sobre o rosto. Era um rosto moreno, bem-definido, com uma cicatriz esbranquiçada de seis centímetros, riscando a pele da face direita bronzeada. Os olhos eram bem abertos e nivelados, sob sobrancelhas negras um tanto longas. O cabelo era preto, repartido à esquerda e escovado com displicência, com uma espessa mecha negra e curva caída sobre a sobrancelha direita. O nariz reto e meio comprido terminava em um lábio
superior estreito, sob o qual havia uma boca larga, bem-delineada, porém, cruel. O queixo tinha um perfil reto e firme. Um pedaço de terno escuro, camisa branca e gravata preta de malha completavam a imagem. O general G estendeu o braço que segurava a foto. Decisão, autoridade, implacabilidade — eram essas as qualidades que podia perceber. Fora isso, o íntimo desse sujeito, para ele, não tinha importância alguma. Passou a foto adiante sobre a mesa e voltou-se para a pasta, olhando rapidamente cada folha e virando-a bruscamente. As fotos deram a volta à mesa até retornar a ele. Depois de marcar com o dedo o lugar onde estava, levantou o
olhar por um instante. “Esse freguês parece uma ameaça”, disse, severamente. “Sua história o confirma. Lerei alguns trechos. Depois precisamos resolver. Já está ficando tarde.” Ele voltou à primeira página e começou a recitar os pontos que o haviam impressionado: “Nome: JAMES. Altura: 183 centímetros; peso: 76 quilos; compleição magra; olhos: azuis; cabelos: pretos; cicatriz na face direita e no ombro direito; sinais de cirurgia plástica na mão direita (ver apêndice ‘A’); atleta completo; perito em tiro a pistola, boxeador, atirador de faca; não usa disfarces. Línguas: francês e alemão. Fuma muito (NB: cigarros especiais
com três anéis dourados); vícios: bebida, mas sem excesso, e mulheres. Considerado insubornável.” O general G pulou uma página e continuou: “Este homem anda invariavelmente armado com uma automática Beretta .25, que carrega em um coldre sob o braço esquerdo. O pente contém oito balas. Há informações de que carrega uma faca presa ao antebraço esquerdo; já usou sapatos com ponta de aço; conhece os golpes básicos do judô. Geralmente, luta com tenacidade e possui grande tolerância à dor (ver apêndice ‘B’).” O general G vasculhou outras páginas, lendo textos extraídos de relatórios de agentes. Chegou à última página antes
dos apêndices, que continha detalhes dos casos em que Bond teve uma atuação decisiva. Continuou rápido até o final e leu alto: “Conclusão. Este indivíduo é um perigoso terrorista e espião profissional. Trabalha para o serviço secreto britânico desde 1938 e ostenta agora (ver a ficha Highsmith, de dezembro de 1950) o código secreto ‘007’ daquela organização. O duplo zero significa um agente que já matou e possui o privilégio de poder matar no cumprimento de seus deveres profissionais. Acredita-se que só existem dois outros agentes britânicos com essa licença para matar. O fato é que este espião foi condecorado com a
CMG, em 1953, comenda geralmente só concedida após a aposentadoria do serviço secreto, o que demonstra o seu valor. Se for encontrado durante alguma operação, este fato e todos os detalhes devem ser comunicados à sede (ver ordens da SMERSH, MGB e GRU, de 1951 em diante).” O general G fechou a pasta e deu um tapa decidido na capa. “Bem, camaradas. Estamos todos de acordo?” “Sim”, disse o coronel Nikitin em voz alta. “Sim”, disse o general Slavin em um tom de voz entediado. O general Vozdvishensky olhou para as unhas. Estava cansado de assassinatos. Gostara de seu período na
Inglaterra. “Sim”, disse. “Acho que sim.” As mãos do general G pegaram o telefone interno do escritório. Falou com seu ajudante de ordens: “Mandado de Morte”, disse, ríspido. “Em nome de ‘James Bond’.” Soletrou os nomes. “Descrição: angliski spion. Crime: inimigo do Estado.” Recolocou o fone no gancho e se inclinou na cadeira. “E agora precisamos criar uma konspiratsia apropriada. E uma que não falhe!” Deu um sorriso rígido. “Não podemos deixar que outra trapalhada do tipo Khoklov se repita.” A porta se abriu e o ajudante de ordens entrou segurando uma folha de
papel amarelo-clara. Colocou-a em frente ao general G e saiu. O general leu rapidamente o documento e escreveu as p a l a v r a s deve ser morto, Grubozaboyschikov em cima do grande espaço em branco. Passou o documento ao representante da MGB, que leu e escreveu Matem-no. Nikitin, passandoo para o diretor da GRU, que escreveu Matem-no. Slavin. Um dos ajudantes passou o documento para o sujeito à paisana sentado ao lado do representante do RUMID. O sujeito colocou-o diante do general Vozdvishensky e entregou-lhe uma caneta. O general Vozdvishensky leu o documento com cuidado. Ergueu o olhar
lentamente para o general G, que o espiava, e, sem baixar os olhos, rabiscou Matem-no mais ou menos debaixo das outras assinaturas e assinou depois. Em seguida largou o documento e se levantou. “É só, camarada general?”, perguntou, empurrando a cadeira para trás. O general G estava satisfeito. Sua intuição sobre o outro fora correta. Precisava observá-lo e transmitir suas suspeitas ao general Serov. “Um momento, camarada general”, respondeu. “Preciso acrescentar algo à autorização.” O documento foi passado pela mesa até ele. Pegou a caneta e riscou o que
escrevera. Escreveu de novo, soletrando as palavras lentamente, enquanto escrevia. Deve ser morto COM IGNOMÍNIA. Grubozaboyschikov. Levantou os olhos e sorriu satisfeito para os presentes. “Obrigado, camaradas. É só. Eu lhes direi a decisão do Presidium sobre a nossa deliberação. Boa noite.” Quando a reunião se esvaziara, o general G se levantou, se esticou e deu um grande e lento bocejo. Sentou-se de novo à mesa, desligou o gravador e tocou a campainha, chamando seu ajudante. O sujeito entrou e ficou de pé ao lado da mesa.
O general G entregou-lhe o documento amarelo. “Mande-o imediatamente para o general Serov. Descubra onde está Kronsteen e mande um carro o buscar. Não me interessa se já estiver na cama. É preciso que venha. A Otdyel II saberá onde achá-lo. E verei a coronel Klebb dentro de dez minutos.” “Sim, camarada general.” O sujeito deixou a sala. O general pegou o telefone e pediu para falar com o general Serov. Falou tranquilamente durante cinco minutos. No final, concluiu: “E agora estou prestes a dar esta incumbência à coronel Klebb e ao planejador, Kronsteen. Discutiremos um esboço de uma
konspiratsia apropriada e eles me entregarão os projetos detalhados amanhã. Isso é uma ordem, camarada general?” “Sim”, disse a voz tranquila do general Serov, do Alto Presidium. “Mate-o, mas que a coisa seja bem-feita. O Presidium ratificará a decisão pela manhã.” A linha foi desligada. O telefone interno tocou. O general G disse “sim” no fone e recolocou-o no gancho. Um instante depois o ajudante de ordens abriu a grande porta e ficou na entrada. “Camarada coronel Klebb”, anunciou. Uma figura parecida com um sapo, de uniforme verde-oliva onde havia uma
única condecoração, a fita vermelha da Ordem de Lênin, entrou na sala e se aproximou da mesa com passos rápidos e miúdos. O general levantou os olhos e fez um gesto em direção à cadeira mais próxima da mesa de conferências. “Boa tarde, camarada.” O rosto atarracado se rasgou em um sorriso meloso. “Boa tarde, camarada general.” A diretora da Otdyel II, departamento da SMERSH responsável por operações e execuções, recolheu a saia e se sentou.
7. O MAGO DO GELO
As duas faces do relógio duplo na caixa luzidia em forma de cúpula olhavam para o tabuleiro de xadrez como os olhos de algum enorme monstro marinho que espiasse o jogo por cima da beira da mesa. As duas faces do relógio de xadrez indicavam horas diferentes. A de Kronsteen mostrava vinte minutos para uma. O longo pêndulo vermelho que marcava os segundos se movia em staccato na metade inferior do relógio,
enquanto o relógio do adversário estava quieto, o pêndulo parado. Era o relógio de Makharov, que indicava cinco minutos para uma. Desperdiçara tempo no meio do jogo e agora só lhe restavam cinco minutos. Agora tinha um grande “problema de tempo” e, a menos que Kronsteen cometesse alguma loucura, o que era impensável, já estava derrotado. Kronsteen mantinha-se ereto e imóvel, tão terrivelmente inescrutável quanto um papagaio. Descansava os cotovelos sobre a mesa, com a cabeça grande apoiada nos punhos fechados que pressionavam suas faces, comprimindo os lábios fechados em uma expressão de altivez e de desdém. Sob a larga testa proeminente, os olhos pretos
ligeiramente amendoados miravam, com uma calma mortal, a sua vantagem no tabuleiro. Mas, atrás dessa máscara, o sangue pulsava no dínamo de seu cérebro, e na sua têmpora direita uma veia grossa como um verme palpitava a mais de noventa pulsações. Perdera meio quilo, suando nas últimas duas horas e dez minutos, e o fantasma de um lance em falso ainda mantinha a garra em volta de sua garganta. Mas, para Makharov e os espectadores, ele ainda era o “mago do gelo”, cujo jogo havia sido comparado com um homem a comer peixe. Primeiro tirava a pele, em seguida as espinhas, depois o comia. Kronsteen, que foi campeão de Moscou
durante dois anos seguidos, estava agora pela terceira vez na final e seria candidato a Grande Mestre. Na bolha de silêncio em volta da mesa principal, cercada de cordões de isolamento, não havia nenhum ruído exceto o dos sonoros pulinhos do relógio de Kronsteen. Os dois árbitros continuavam sentados, imóveis, em suas cadeiras elevadas. Sabiam, tanto quanto Makharov, que aquilo era certamente o golpe de misericórdia. Kronsteen introduzira uma brilhante alteração na Variante Meran do gambito recusado da rainha. Makharov não ficara atrás dele até o vigésimo oitavo lance. Perdera tempo então. Talvez tivesse cometido um erro ali, e talvez também no
trigésimo primeiro e trigésimo terceiro lances. Quem seria capaz de saber? Seria um jogo comentado na Rússia inteira durante semanas por vir. Houve um suspiro vindo das bancadas apinhadas do outro lado da disputa do campeonato. Kronsteen tirara lentamente a mão direita do rosto e a estendera sobre o tabuleiro. Seu polegar e indicador se abriram e abaixaram, como pinças de um caranguejo rosado. A mão que segurava uma peça se moveu para cima, para o lado e para baixo. Em seguida se recolheu lentamente ao rosto. Os espectadores deram um grande suspiro e sussurraram ao ver a reprodução do quadragésimo primeiro
lance em um dos placares de um metro. R-Kt8. Aquilo só podia ser o golpe final! Kronsteen estendeu a mão deliberadamente e apertou a alavanca embaixo de seu relógio. O pêndulo vermelho congelou. Faltavam quinze para uma. Ao mesmo tempo, o pêndulo de Makharov se reanimou e começou sua batida sonora, inexorável. Kronsteen se recostou. Colocou as mãos estendidas sobre a mesa e olhou friamente o rosto abaixado e luzidio do homem, cujas entranhas — ele sabia, porque também já amargara derrotas, na sua época — estariam se contorcendo de agonia, como uma enguia trespassada por uma lança. Makharov, campeão da
Geórgia. Pois bem, o camarada Makharov amanhã voltaria para casa e lá ficaria. De qualquer maneira, este ano não mudaria com a família para Moscou. Um sujeito à paisana escorregou por baixo das cordas e cochichou para um dos árbitros. Entregou-lhe um envelope branco. O árbitro sacudiu a cabeça, apontando para o relógio de Makharov, que agora mostrava três minutos para uma. O homem à paisana sussurrou uma frase curta que fez com que o juiz abaixasse a cabeça, aborrecido. Em seguida tocou uma sineta de mão. “Mensagem particular urgente para o camarada Kronsteen”, anunciou no microfone. “Haverá um intervalo de três
minutos.” Um murmúrio correu pelo salão. Apesar de Makharov ter levantado agora os olhos do tabuleiro, por cortesia, enquanto, sentado e imóvel, fitava os recessos do alto teto abaulado, os espectadores sabiam que a posição do jogo estava gravada em seu cérebro. Um intervalo de três minutos significava simplesmente três minutos adicionais para Makharov. Kronsteen sentiu a mesma pontada de aborrecimento, mas seu rosto estava impassível quando o árbitro desceu de sua cadeira e entregou-lhe um envelope simples sem endereço. Kronsteen o rasgou com o polegar e tirou a folha de papel anônima. Dizia, nos grandes
caracteres datilografados que ele tão bem conhecia: “VOCÊ É SOLICITADO NESTE INSTANTE.” Nenhuma assinatura ou endereço. Kronsteen dobrou o papel e o colocou cuidadosamente no bolso interno do paletó. Depois teria de devolvê-lo para ser destruído. Olhou para o rosto do homem à paisana, em pé ao lado do árbitro, cujos olhos o fitavam, impacientes e autoritários. “Para o diabo com essa gente”, pensou Kronsteen. Ele não desistiria faltando só três minutos. Era inimaginável. Um insulto ao esporte popular. Mas, quando fez um gesto para o árbitro indicando que continuasse com o jogo, tremeu por
dentro, evitando o olhar do sujeito à paisana, que permanecia em pé do lado de dentro dos cordões, em uma imobilidade peçonhenta. A sineta tocou. “Prossegue o jogo.” Makharov abaixou lentamente a cabeça. O ponteiro do relógio passara da hora e ele ainda estava vivo. Kronsteen continuava a tremer por dentro. O que fizera era uma coisa inimaginável para um funcionário da SMERSH, ou de qualquer outro órgão estatal. Seria certamente denunciado. Desobediência crassa. Falta de cumprimento do dever. Quais poderiam ser as consequências? Na melhor das hipóteses, uma bronca do general G e uma observação negativa na sua
zapiska. Na pior? Kronsteen não conseguia imaginar. Não queria pensar. Fosse lá o que acontecesse, o mel da vitória se tornara amargo em sua boca. Mas agora era o fim. Faltando cinco segundos no seu relógio, Makharov ergueu os olhos derrotados sem ultrapassar a altura dos lábios enfadados de seu adversário e dobrou a cabeça na breve mesura formal da derrota. Ao duplo toque da sineta do árbitro, o salão apinhado se pôs de pé a aplaudir estrondosamente. Kronsteen se levantou e fez uma mesura a seu adversário, aos árbitros e finalmente se inclinou mais ainda para os espectadores. Em seguida, com o
homem à paisana nos seus calcanhares, mergulhou sob as cordas e abriu caminho, de modo frio e grosseiro, entre a massa de admiradores que o aclamavam, até a saída principal. Do lado de fora do salão do torneio, no meio da larga Pushkin Ulitza, já o esperava como sempre o anônimo sedã preto ZIS, com o motor ligado. Kronsteen entrou atrás e fechou a porta. Quando o sujeito à paisana pulou no estribo e entrou meio apertado na frente, o motorista arranhou a marcha e o carro disparou rua abaixo. Kronsteen sabia que seria um desperdício de saliva se desculpar ao guarda à paisana. E também contrário à disciplina. Afinal de contas, ele era o
chefe do setor de planejamento da SMERSH, com a patente honorária de coronel. Seu cérebro valia ouro para a organização. Talvez conseguisse se safar dessa encrenca com uma boa argumentação. Olhou pela janela as ruas escuras, que já estavam molhadas devido ao trabalho das equipes de limpeza noturnas, e obrigou a mente a se debruçar sobre sua defesa. Em seguida pegaram uma rua reta, em cujo final a lua corria rápido entre os pináculos sobre as cebolas do Kremlin, e eles haviam chegado. Quando o guarda entregou Kronsteen ao ajudante de ordens, entregou também a este um pedaço de papel. O ajudante
olhou-o e ergueu os olhos, fitando Kronsteen friamente, com as sobrancelhas semilevantadas. Tranquilo, Kronsteen devolveu o seu olhar, sem dizer nada. O ajudante deu de ombros, pegou o telefone do escritório e anunciou sua presença. Quando entraram na grande sala e Kronsteen recebeu um gesto para se sentar, devolvendo com um movimento de cabeça o breve sorriso franzido da coronel Klebb, o ajudante de ordens foi até o general G e entregou-lhe o pedaço de papel. O general o leu e deu um olhar duro para Kronsteen. Enquanto o ajudante caminhava até a porta e saía, o general continuou a olhar para Kronsteen. Depois que a porta se
fechou, o general G abriu a boca e disse suavemente: “Sim, camarada?” Kronsteen estava calmo. Sabia a história que agradaria. Falou baixo e com autoridade: “Para o público, camarada general, sou um jogador de xadrez profissional. Hoje à noite eu me tornei campeão de Moscou pela terceira vez seguida. Se, faltando três minutos para terminar, eu recebesse uma mensagem de que minha mulher estava sendo assassinada na porta do salão do torneio, não teria levantado um dedo para salvá-la. Meu público sabe disso. É tão dedicado ao jogo quanto eu. Hoje à noite, se eu tivesse desistido do jogo e vindo imediatamente quando recebi a
mensagem, cinco mil pessoas saberiam que isso só poderia ser porque recebi ordens de algum departamento igual a este. Haveria uma tempestade de boatos. Minhas idas e vindas futuras seriam vigiadas em busca de pistas. Seria o fim de minha fachada. No interesse da segurança do Estado, esperei três minutos para obedecer à ordem. Mesmo assim, minha saída apressada será objeto de muitos comentários. Serei obrigado a dizer que um de meus filhos está muito doente. Terei de pôr uma criança no hospital por uma semana para confirmar a sua história. Peço mil desculpas pela demora em obedecer à ordem. Mas foi uma decisão difícil. Fiz o que achei melhor no interesse do
departamento.” O general G olhou pensativamente para os olhos pretos e amendoados. O sujeito era culpado, mas fez uma boa defesa. Leu o papel de novo, como se pesasse a gravidade da falta, em seguida tirou seu isqueiro e queimou-o. Deixou cair o último resto em chamas em cima do tampo de vidro de sua mesa e soprou as cinzas para o lado e para o chão. Não disse nada que revelasse seus pensamentos, mas a queima da prova era tudo que importava para Kronsteen. Agora nada seria acrescentado à sua zapiska. Ficou profundamente grato e aliviado. Empregaria todo o seu engenho nessa questão pendente. O general
demonstrara grande clemência. Kronsteen lhe pagaria com a moeda mais valiosa que seu cérebro pudesse produzir. “Passe as fotos, camarada coronel”, disse o general G, como se a breve corte marcial não houvesse ocorrido. “O assunto é o seguinte...” Então é outra morte, pensou Kronsteen, enquanto o general falava, e ele examinava o rosto moreno e impiedoso que o fitava da fotografia ampliada do passaporte. Enquanto Kronsteen ouvia meio distraído o que o general dizia, destacava os fatos relevantes — espião inglês. É desejável grande escândalo. Sem envolvimento soviético. Exímio matador. Queda pelas
mulheres (portanto, não é homossexual, pensou Kronsteen). Bebe (mas não se menciona). Insubornável (quem sabe? Todo homem tem seu preço). Não se mediriam despesas. Todo o equipamento e pessoal disponíveis de todos os departamentos de informação. Êxito deve ser alcançado dentro de três meses. Precisa-se agora de ideias amplas. Detalhes seriam elaborados depois. O general G deu um olhar penetrante para a coronel Klebb. “Quais são suas reações imediatas, camarada coronel?” As lentes quadradas e sem molduras brilharam na luz do lustre quando a mulher endireitou sua pose de concentração, inclinada, e olhou o
general por cima da mesa. Os lábios úmidos e pálidos sob o brilho da camada de nicotina na boca se abriram e começaram a se mover rápido, para cima e para baixo, enquanto a mulher comunicava seus pontos de vista. Para Kronsteen, que a observava do outro lado da mesa, seu abrir e fechar dos lábios, inexpressivo e mecânico, o fazia lembrar a lenga-lenga saída do encaixe quadrado da boca de um fantoche. A voz era rouca, enfadonha, sem emoção: “...Parece em alguns aspectos com o caso Stolzenberg. Se o senhor lembra, camarada general, também se tratava de destruir uma reputação e a vida. Naquela ocasião o problema foi simples. O espião também era um
pervertido. O senhor lembra...” Kronsteen parou de ouvir. Conhecia todos esses casos. Cuidara do planejamento da maioria e estavam arquivados na sua memória como tantas outras jogadas de xadrez. Ficou de ouvidos fechados observando o rosto daquela terrível mulher e imaginando quanto tempo ela ainda duraria no seu cargo — quanto tempo ainda teria de trabalhar com ela. Terrível? Kronsteen não se interessava pelos seres humanos — nem sequer pelos filhos. Nem as categorias de “bom” e de “mau” pertenciam a seu vocabulário. Para ele todas as pessoas eram peças de xadrez. Só se interessava
pelas reações que elas tinham aos movimentos das demais peças. Prever essas reações constituía a maior parte de seu trabalho, mas era preciso compreender suas características individuais. Seus instintos básicos sempre foram os mesmos. Autopreservação, sexo e o instinto do rebanho — nesta ordem. Seus temperamentos podiam ser sanguíneos, fleumáticos, coléricos ou melancólicos. A índole de um indivíduo decidia em grande medida a força relativa de suas emoções e sentimentos. O caráter dependia em grande parte da criação e, apesar do que Pavlov e os behavioristas diziam, até certo ponto do caráter dos pais. E, é claro, a vida e o
comportamento das pessoas eram condicionados parcialmente pela força e pela fraqueza física. Foi com essas categorias básicas na cabeça que o cérebro frio de Kronsteen considerou a mulher do outro lado da mesa. Era a centésima vez que fazia um sumário dela, mas agora eles tinham semanas de trabalho conjunto pela frente e era bom refrescar a memória, para que a súbita intrusão do elemento humano nas suas relações não constituísse uma surpresa. É claro que Rosa Klebb tinha um forte instinto de sobrevivência, do contrário não teria se tornado uma das mulheres mais poderosas do Estado, e certamente
a mais temida. Sua ascensão, lembrou Kronsteen, começara com a guerra civil espanhola. Na época, como agente duplo dentro do POUM — isto é, trabalhando para a OGPU, em Moscou, além de para o serviço de informação dos comunistas espanhóis —, ela havia sido o braço direito, e uma espécie de amante, de seu chefe, o famoso Andreas Nin. Trabalhara com ele de 1935 a 37. Em seguida, por ordens de Moscou, ele foi assassinado e, segundo os boatos, assassinado por ela. Verdade ou não, o fato é que dali em diante ela ascendera lenta porém inexoravelmente pela escada do poder, sobrevivendo aos reveses, às guerras, sobrevivendo porque não fazia nenhuma aliança nem
ingressava em nenhuma facção, a todos os expurgos, até que, em 1953, com a morte de Beria, as mãos ensanguentadas se agarraram ao degrau, tão perto do topo, que era a chefia do Departamento de Operações da SMERSH. E, refletia Kronsteen, grande parte do seu sucesso se devia à natureza estranha de seu instinto — o segundo em importância — sexual. Pois Rosa Klebb pertencia indubitavelmente à mais rara categoria sexual: era neutra. Kronsteen tinha certeza disso. As histórias sobre os homens, e também sobre as mulheres, tinham indícios em demasia para serem postas em dúvida. Ela podia gostar do ato fisicamente, mas o instrumento não
tinha a menor importância. Para ela, o sexo não passava de uma coceira. E esta neutralidade psicológica e fisiológica a aliviava simultaneamente de muitas emoções, sentimentos e desejos humanos. A neutralidade sexual representava a essência da frieza no indivíduo. Era algo ótimo, uma maravilha nascer assim. Nela, o instinto de rebanho também estava morto. Sua vontade de poder exigia que ela fosse um lobo, não um cordeiro. Agia sozinha, mas jamais era solitária, porque o calor da companhia humana lhe era desnecessário. E, quanto ao temperamento, devia ser fleumática — impassível, resistente à dor, morosa. A preguiça seria o vício que a
perseguiria, pensou Kronsteen. Devia ser difícil tirá-la da cama, quente como uma pocilga, de manhã. Seus hábitos íntimos seriam desleixados, até mesmo porcos. Não devia ser agradável, pensou Kronsteen, investigar esse lado íntimo de sua vida, quando ela relaxava, depois de despir o uniforme. Os lábios desdenhosos de Kronsteen se deformaram para fugir dessa imagem, e seu pensamento passou rápido adiante, saltando sobre o caráter dela, certamente forte e astucioso, para abordar sua aparência. Rosa Klebb devia beirar os cinquenta anos, supunha, a julgar pela data da guerra civil espanhola. Era baixa e
atarracada, com cerca de um metro e sessenta de altura, braços roliços e pescoço curto, pernas grossas de grandes panturrilhas, enfiadas em meias cáqui sem graça, demasiadamente robustas para uma mulher. Só o diabo sabe como seriam seus seios, pensou Kronsteen, mas o volume deles sob o uniforme, visível acima do tampo da mesa, parecia um saco de areia malenchido. Sua figura, com seus quadris em formato de pera, só podia ser comparada, de modo geral, a um violoncelo. Os semblantes das tricoteuses da Revolução Francesa deviam ser parecidos com o seu, concluiu Kronsteen, se recostando na cadeira e
inclinando a cabeça ligeiramente de lado. O cabelo alaranjado, começando a rarear, recolhido no coque apertado e obsceno; os brilhantes olhos castanhos amarelados que fitavam, de modo tão frio, o general G através dos quadrados de vidro de bordas afiadas; a cunha do nariz de grandes poros cheia de pó de arroz; o alçapão molhado da boca, que continuava a abrir e fechar como se fosse manobrado por arames sob o queixo. Aquelas mulheres francesas, sentadas, tricotando e tagarelando enquanto a guilhotina caía com um baque, deviam ter a mesma pele de galinha grossa e anêmica, que se enrugava em pequenas dobras sob os
olhos, nos cantos da boca e sob o maxilar, as mesmas orelhas grandes de camponesa, os mesmos punhos compactos, duros e cheios de covinhas como cabos de cajados que, no caso de Rosa, descansavam agora bem fechados sobre o tampo da mesa de veludo vermelho, de cada lado da trouxa grande de seus seios. E os rostos das tricoteuses deviam transmitir a mesma impressão, concluiu Kronsteen, de frieza, crueldade e força quanto o daquela — sim, ele precisava se permitir essa palavra emotiva — horrível mulher da SMERSH. “Obrigado, camarada coronel. Seu balanço da situação foi valioso. E agora, camarada Kronsteen, o senhor tem
alguma coisa a acrescentar? Por favor, seja breve. São duas horas e todos nós teremos um dia duro pela frente.” Os olhos do general G, injetados de tensão e falta de sono, olhavam fixos, do outro lado da mesa, para os insondáveis olhos castanhos sob a testa abaulada. Não havia necessidade de recomendar brevidade a esse homem. Kronsteen nunca tinha muito a dizer, mas cada uma de suas palavras valia um discurso do resto de sua equipe. Ele já se decidira, de outro modo não teria permitido que seus pensamentos se concentrassem por tanto tempo naquela mulher. Inclinou a cabeça lentamente para trás
e fitou o teto vazio. Sua voz era extremamente branda, porém dotada de uma autoridade que exigia atenção redobrada. “Camarada general, foi um francês, de certo modo um precursor seu, Fouché, que observou que não adiantava matar um homem sem destruir também a sua reputação. Será fácil, evidentemente, matar esse sujeito Bond. Qualquer pistoleiro búlgaro pode fazê-lo, se for devidamente instruído. A segunda parte desta operação, destruir o caráter desse homem, é mais importante e difícil. Neste ponto só tenho clareza de que a ação precisa ser feita longe da Inglaterra, em algum país em que dispomos de influência sobre o rádio e a
imprensa. Se me perguntar como faremos para levá-lo até lá, só posso dizer que, se a isca for bastante importante e sua captura só for possível através desse sujeito, ele será enviado para cumprir este objetivo, de onde estiver. Para evitar a aparência de uma armadilha, acho melhor uma isca com um toque de excentricidade, com algo fora do comum. Os ingleses se orgulham de sua excentricidade. Tratam qualquer problema excêntrico como um desafio. Tendo a achar que, se nos ativermos a esta interpretação de sua psicologia, será possível fazê-los enviar esse agente importante atrás da isca.” Kronsteen fez uma pausa. Baixou a
cabeça de modo a olhar ligeiramente sobre o ombro do general G. “Vou me dedicar à criação de uma armadilha assim”, disse displicentemente. “Por ora, só posso dizer que, se a isca tiver êxito em atrair a vítima, precisaremos de um assassino com um domínio perfeito da língua inglesa.” O olhar de Kronsteen se dirigiu ao tampo da mesa de veludo vermelho à sua frente. Pensativo, como se isto fosse o X da questão, acrescentou: “Precisaremos também de uma garota de confiança, e de beleza excepcional.”
8. O BELO CHAMARIZ
Sentada à janela de seu único quarto e olhando para o tranquilo anoitecer de junho, para os primeiros tons rosados do ocaso refletidos nas janelas do outro lado da rua, para a distante cúpula de cebola de uma igreja que flamejava como uma tocha acima do perfil desigual dos tetos de Moscou, a cabo da segurança estatal Tatiana Romanova pensou que ela era mais feliz do que jamais fora. Sua felicidade não era romântica.
Nada tinha a ver com o começo arrebatador de um caso amoroso — aqueles dias e semanas antes que surgissem as primeiras pequenas nuvens no horizonte. Era a felicidade tranquila e estável que a segurança dava, de poder olhar para o futuro com confiança, realçada por acontecimentos concretos, uma palavra elogiosa do Professor Denikin naquela tarde, o cheiro de um bom jantar sendo cozido em um fogão elétrico, seu prelúdio favorito de Boris Goudonov executado pela Orquestra Estatal de Moscou no rádio e, acima de tudo, pela beleza do longo inverno e da breve primavera já ter passado e por já ser junho. O quarto era uma caixa mínima no
enorme prédio de apartamentos na Sadovaya-Chernogriazskay Ulitza, que é o quartel feminino dos departamentos de Segurança do Estado. Construído por meio de trabalho forçado e terminado em 1939, o ótimo prédio de oito andares contém dois mil quartos; alguns, como o seu no terceiro andar, não passavam de caixas quadradas com telefone, água fria e quente, uma única lâmpada e o uso dos banheiros e lavatórios comunitários. Outros, nos andares de cima, eram apartamentos de três ou dois quartos com banheiros. Estes, destinados às mulheres de patente mais alta. A promoção aos andares mais altos do prédio era estritamente por patente, e a
cabo Romanova precisava ser promovida a sargento, tenente, capitão, major e tenente-coronel antes de conseguir chegar ao paraíso do oitavo andar, o andar dos coronéis. Mas Deus sabe que ela estava bastante satisfeita com a sua sina. Salário de 1.200 rublos por mês (trinta por cento a mais do que poderia ganhar em qualquer outro ministério), um quarto só para ela; comida barata e roupas das “lojas restritas” no térreo do prédio; recebimento mensal do ministério de pelo menos duas entradas para o balé ou a ópera; férias pagas de duas semanas completas por ano. E, sobretudo, um emprego fixo com boas perspectivas, em Moscou — e não em uma daquelas
tristes cidades provincianas em que não acontecia nada mês após mês, onde só a chegada de um novo filme ou do circo era capaz de manter as pessoas fora da cama à noite. É claro que havia um custo em se pertencer à MGB. O uniforme apartava seu usuário do mundo. As pessoas tinham medo, o que não casava bem com a índole da maioria das garotas, pois ficavam limitadas ao convívio com outros integrantes, masculinos e femininos da MGB, com um dos quais, chegada a hora, deveriam se casar para permanecer no ministério. E eles trabalhavam como o diabo — das oito às seis, cinco dias e meio por semana,
só quarenta minutos de folga para o almoço na cantina. Mas o almoço era bom, uma refeição de verdade, e dava para fazer apenas um jantar leve, podendo assim juntar dinheiro para comprar um casaco de zibelina que um dia haveria de substituir o de raposa siberiana, já bem gasto. Ao pensar no jantar, a cabo Romanova se levantou da cadeira junto à janela e foi examinar a panela de sopa grossa com algumas lascas de carne e cogumelos em pó, que seria a sua refeição. Estava quase pronta, com um cheiro delicioso. Ela desligou a eletricidade e deixou a panela ainda pelando, enquanto se lavava e arrumava, como a haviam ensinado anos antes a
fazer antes das refeições. Enquanto secava as mãos, examinouse no grande espelho oval sobre a pia. Um de seus primeiros namorados lhe havia dito que ela se parecia com Greta Garbo quando jovem. Que bobagem! No entanto, hoje ela estava bastante bem. Belos cabelos sedosos castanhoescuros, escovados diretamente para trás a partir da testa alta, caindo pesadamente até quase os ombros, onde se curvavam ligeiramente nas pontas (Garbo já tivera cabelos assim, e a cabo Romanova admitia para si mesma que os havia copiado); uma bela pele clara e macia, com um brilho de marfim nas faces; olhos bem nivelados e separados,
do mais profundo azul, sob sobrancelhas retas naturais (ela fechou um olho depois do outro. Sim, seus cílios eram de fato bastante longos!); nariz reto, um tanto arrogante; e depois a boca. O que tinha a boca? Larga demais? Deveria parecer terrivelmente larga quando ela sorria. Sorriu para si mesma no espelho. Sim, era larga, mas também a de Garbo havia sido larga. Os lábios eram pelo menos cheios e belamente desenhados. Havia a insinuação de um sorriso nos cantos. Ninguém poderia dizer que era uma boca fria! E a forma oval de seu rosto. Era longa demais? Seu queixo seria um pouquinho definido demais? Girou a cabeça para vê-lo de perfil. A pesada cortina de seus cabelos se
deslocou para a frente, tapando seu olho direito, de modo que ela teve de afastálos. Sim, o queixo era pontudo, mas ao menos não era definido demais. Ela encarou o espelho, pegou uma escova e começou a escovar o longo cabelo pesado. Greta Garbo! Ela era bonita, senão não teria ouvido os mesmos elogios de tantos homens — nem de garotas que sempre a procuravam para pedir conselhos de beleza. Mas uma estrela de cinema — célebre! Fez uma careta para si mesma no espelho e foi jantar. Na verdade, a cabo Tatiana Romanova era uma garota realmente muito bonita. Sem falar no rosto, o
corpo alto e firme se movia de forma especialmente bela. Cursara um ano na escola de balé em Leningrado e abandonara a carreira de bailarina quando sua altura ultrapassara dois centímetros do limite de um metro e sessenta e oito. A escola lhe ensinara uma boa postura e a maneira correta de caminhar. E ela tinha uma aparência maravilhosamente saudável, graças à sua paixão pela patinação artística no gelo, que treinava durante o ano inteiro no estádio de patinação do Dínamo, o que lhe dera um lugar em seu time principal feminino. Seus braços e seios eram impecáveis. Um purista teria condenado seu traseiro. Seus músculos, de tão exercitados, haviam perdido a
suave curva descendente das mulheres e acabaram se tornando redondos atrás e achatados e duros dos lados, salientes como os de um homem. A cabo Romanova era admirada muito longe dos confins da seção de tradução inglesa do Índice Central da MGB. Todos eram da opinião de que em breve um dos oficiais mais graduados toparia com ela, tirando-a definitivamente de sua seção modesta para transformá-la em amante ou, no caso de ser absolutamente necessário, esposa. A garota despejou a sopa grossa em uma pequena terrina de porcelana, decorada na borda com lobos que
perseguiam um trenó fugindo a galope, arrancou pedaços do pão preto que colocou na sopa, indo se sentar na sua cadeira junto à janela, onde a tomou lentamente com uma bela colher luzidia que escondera na bolsa, muitas semanas atrás, depois de uma noite alegre no Hotel Moskva. Quando acabou, lavou a louça, voltou para sua cadeira e acendeu o primeiro cigarro do dia (nenhuma garota respeitável fuma em público na Rússia, exceto em restaurantes, e fumar no trabalho significaria ser despedida na hora), ouvindo impacientemente as dissonâncias lamurientas de uma orquestra do Turcomenistão. Essas coisas orientais horríveis que eles
viviam tocando para agradar aos cúlaques daqueles países bárbaros periféricos! Por que não podiam tocar algo kulturny? Algo de jazz moderno, ou algo clássico. Aquele negócio era horrendo. Pior, fora de moda. O telefone tocou, estridente. Ela foi até o rádio, abaixou-o, atendeu o telefone. “Cabo Romanova?” A voz era do caro Professor Denikin. Mas fora do trabalho ele sempre a chamara de Tatiana, até mesmo Tania. O que significava aquilo? A garota arregalou os olhos e ficou tensa. “Sim, camarada professor?” A voz do outro lado da linha parecia
estranha e fria. “Dentro de quinze minutos, às 8h30, você tem uma entrevista marcada com a camarada coronel Klebb, na Otdyel II. Procure-a no seu apartamento, nº 1.875, no oitavo andar de seu prédio. Está claro? “Mas, camarada, por quê? O quê... o quê...? A voz estranha e forçada de seu querido professor a interrompeu. “Isso é tudo, camarada cabo.” A garota segurou o fone a distância do rosto. Fitou-o com um olhar desvairado, como se fosse possível arrancar mais palavras dos seus círculos de furinhos. “Alô! Alô!” O fone desligado bocejava. Ela percebeu que a mão e o antebraço doíam devido à força com que pegava o
aparelho. Inclinou-se para a frente devagar e recolocou o fone no gancho. Ficou congelada por um instante, olhando cegamente o aparelho preto. Deveria ligar de volta? Não, estava fora de cogitação. Ele falara daquele jeito porque estava ciente, como ela, de que toda ligação para aquele prédio ou procedente de lá era escutada ou gravada. Por isso ele não desperdiçara nenhuma palavra. Tratava-se de um assunto de Estado. No caso de uma mensagem assim, você se livrava dela o mais rápido possível, em quanto menos palavras melhor, e lavava as mãos. Livrara-se da carta terrível na sua mão. Passara a rainha de espadas para outra
pessoa. Suas mãos estavam limpas de novo. A garota pôs os nós dos dedos na boca e mordeu-os, fitando o telefone. Por que a queriam? O que fizera? Recuou mentalmente, vasculhando os dias, meses, anos. Teria cometido algum erro terrível no trabalho, que haviam acabado de descobrir? Teria feito algum comentário contra o Estado, alguma piada que fora delatada? Era sempre possível. Mas que comentário? Quando? Se tivesse sido um comentário maldoso, ela teria sentido uma pontada de culpa ou de medo na época. Sua consciência estava limpa. Ou não estava? De repente lembrou. E a colher que ela roubara? Seria isso? Propriedade do Estado! Ela
a jogaria pela janela, agora, bem longe para qualquer um dos lados. Mas não, não podia ser isso. Era insignificante demais. Deu de ombros, resignada, e deixou a mão escorregar a seu lado. Levantou-se e foi até o armário de roupas para pegar seu melhor uniforme, e seus olhos estavam marejados de lágrimas provocadas pela culpa, pelo medo e espanto, como uma criança. Não podia ser nada disso. A SMERSH não mandava chamar por causa deste tipo de coisa. Devia ser algo muito, muito pior. A garota olhou por entre lágrimas o relógio barato em seu pulso. Faltavam só sete minutos! Um novo pânico a dominou. Secou os olhos com o
antebraço e pegou o uniforme de gala. Só faltava chegar atrasada! Não importava para o que fosse. Quase arrancou os botões de sua blusa branca de algodão. Enquanto se vestia, lavava o rosto e escovava o cabelo, sua mente continuou a sondar o mistério terrível, como uma criança curiosa a cutucar a toca de uma serpente com uma vara. De qualquer ângulo que explorasse o buraco, dele saía um silvo zangado. Independentemente da natureza de sua culpa, o contato com quaisquer dos tentáculos da SMERSH era temível. O próprio nome da organização era abominado e evitado. SMERSH. “Smiert Spionam”, “Morte aos espiões”.
Tratava-se de uma palavra obscena, uma palavra tumular, o próprio sussurro da morte, palavra jamais mencionada até mesmo na conversa fiada entre amigos no trabalho. O pior de tudo é que, dentro dessa organização hedionda, o departamento de tortura e morte, ou Otdyel II, era o núcleo do terror. E a cabeça do Otdyel II, essa mulher, Rosa Klebb! Sussurravam-se coisas incríveis sobre ela, coisas que surgiam nos pesadelos de Tatiana, eram esquecidas durante o dia, mas agora desfilavam diante dela. Dizia-se que Rosa Klebb proibia qualquer tortura sem a sua presença. Havia um avental manchado de sangue
na sua sala, e um banquinho de camping, e diziam que, quando ela era vista correndo pelas passagens do porão, de avental e com o banquinho na mão, a informação logo corria, e até mesmo os funcionários da SMERSH falavam baixo e se inclinavam sobre seus documentos — talvez até cruzassem os dedos no bolso — até chegar a informação de que ela já voltara à sua sala. Porque — assim corriam os rumores — ela pegava o banquinho e o aproximava do rosto do homem ou da mulher que pendia da mesa de interrogação. Então se agachava no banquinho baixo, olhava o rosto e dizia tranquilamente “nº 1”, ou “nº 10”, ou “nº 25”, e os inquisidores sabiam o que ela
queria dizer e começavam. Ela observava os olhos da pessoa a poucos centímetros dos seus e aspirava os gritos como se fossem perfume. E, dependendo do que diziam os olhos, mandava mudar tranquilamente a tortura, dizendo “agora o nº 36”, ou “agora o nº 64”, e os inquisidores mudavam o procedimento. À medida que a vontade de resistir e a coragem abandonavam os olhos, quando começavam a fraquejar e implorar, ela passava a arrulhar docemente: “Sim, meu pombinho. Fale comigo, meu doce, e isso passa. Sei que dói. Ah, como dói, meu filho. E a dor cansa tanto. Seria tão bom que parasse para a gente poder ficar deitada em paz, sem que ela jamais
recomeçasse. Sua mãezinha está aqui a seu lado, só esperando que a dor passe. Ela tem uma boa cama macia pronta para você dormir e esquecer, esquecer, esquecer. Fala”, sussurrava amorosamente. “Basta falar e você terá paz e a dor não voltará.” Se os olhos ainda resistissem, o arrulho recomeçava: “Mas você é bobinho, meu doce. Tão bobinho. Essa dor não é nada. Nada! Não acredita em mim, meu pombinho? Então mamãe vai experimentar um pouco, só um pouco o nº 87.” E os interrogadores ouviam e mudavam seus métodos e objetivos, enquanto ela ficava agachada ali vendo a vida fugir lentamente dos olhos, até que fosse obrigada a falar alto no
ouvido da pessoa, caso contrário as palavras não chegariam ao cérebro. Mas era raro, diziam, que alguém na SMERSH fosse tão resistente a ponto de avançar muito longe nessa estrada da dor, muito menos até o fim e, quando a voz doce acenava com a promessa de paz, geralmente vencia, porque Rosa Klebb tinha um modo de perceber o momento em que o adulto desmoronava e virava criança chorando pela mãe. Ela fornecia essa imagem materna e derretia o espírito de resistência, quando este teria se endurecido diante das palavras duras de um homem. Em seguida, depois de ter alquebrado mais um suspeito, Rosa Klebb descia o
corredor com o banquinho, tirava o avental recém-manchado e voltava ao trabalho, e no porão corria a notícia de que tudo acabara e voltara ao normal. Tatiana, quase paralisada por seus pensamentos, consultou o relógio de novo. Faltavam quatro minutos. Alisou seu uniforme e olhou mais uma vez o rosto no espelho. Virou-se e despediu-se do pequeno quarto tão familiar e querido. Tornaria a vê-lo? Desceu o longo corredor e chamou o elevador. Quando ele chegou, ela endireitou os ombros, levantou o queixo e entrou no elevador como se fosse no patíbulo da guilhotina. “Oitavo”, disse para a ascensorista.
Ficou de frente para as portas. No íntimo, lembrou uma expressão que não usava desde a infância, repetindo sem cessar: “Meu Deus, meu Deus, meu Deus.”
9. UMA TAREFA DE AMOR
Do lado de fora da porta anódina pintada de creme, Tatiana já sentia o cheiro da sala lá dentro. Quando a voz lhe disse abruptamente para entrar e a porta foi aberta, foi esse cheiro que ficou na sua cabeça, enquanto permanecia de pé olhando nos olhos da mulher sentada na mesa redonda, sob a luz no centro. Era o cheiro do metrô em uma noite quente — perfume barato para esconder os odores animalescos. As pessoas na
Rússia se enchem de perfume, quer tomem banho quer não, mas em grande parte quando não tomam, e garotas limpas e saudáveis como Tatiana sempre vão para casa caminhando do trabalho, a menos que a chuva ou a neve estejam muito fortes, para evitar o fedor dos trens e do metrô. Agora Tatiana estava imersa no fedor. Suas narinas se contraíram de nojo. Foram o nojo e o desprezo por alguém capaz de viver no meio de um cheiro assim que a ajudaram a olhar nos olhos amarelados que a fitavam através das lentes quadradas. Não se podia ler nada neles. Eram olhos frios, não dadivosos. Moveram-se lentamente sobre toda sua figura, como lentes
fotográficas a registrá-la. A coronel Klebb falou: “Você é uma bela garota, camarada cabo. Ande pela sala e volte.” O que significavam essas palavras açucaradas? Tensa com um novo medo, medo dos hábitos pessoais notórios da mulher, Tatiana fez o que ela mandou. “Tire seu casaco. Ponha-o na cadeira. Levante as mãos acima da cabeça. Mais alto. Agora se incline e encoste as mãos nos pés. De pé. Bom. Sente-se.” A mulher falava como um médico. Fez um gesto para a cadeira do outro lado da mesa, diante dela. Seus olhos fixos e perscrutadores se ocultaram quando ela se inclinou sobre a ficha na mesa.
“Deve ser minha zapiska”, pensou Tatiana. Que interessante ver o objeto que regulava toda a sua vida. Como era grossa — quase cinco centímetros de espessura. O que haveria em todas aquelas páginas? Olhou fascinada para a pasta aberta, com olhos arregalados. A coronel Klebb folheou as últimas páginas e fechou a capa alaranjada, com listas pretas em diagonal. O que significavam as cores? A mulher levantou os olhos. Tatiana conseguiu de algum modo devolver corajosamente o olhar. “Camarada cabo Romanova.” Era a voz da autoridade, do oficial superior. “Tenho bons relatórios sobre o seu
trabalho. Sua ficha é excelente, tanto nas suas obrigações quanto no esporte. O Estado está satisfeito com você.” Tatiana não conseguia acreditar no que ouvia. Reagiu sentindo-se tonta. Corou até as raízes dos cabelos e em seguida empalideceu. Estendeu a mão até a borda da mesa. Gaguejou em voz fraca: “Gra-grata, camarada coronel.” “Por causa de seu excelente trabalho você foi escolhida para uma missão muito importante. É uma grande honra. Compreende?” Fosse o que fosse, era melhor do que imaginara. “Sim, claro, coronel.” “Uma missão muito importante, de grande responsabilidade, que corresponde a uma patente mais alta. Eu
lhe dou parabéns, camarada cabo, porque, depois de terminada sua missão, será promovida a capitã de segurança do Estado.” Isso era sem precedentes para uma garota de vinte e quatro anos! Tatiana farejou perigo. Enrijeceu como um animal que percebe os dentes metálicos da armadilha escondidos sob a carne. “Eu me sinto muito honrada, camarada coronel.” Não conseguiu disfarçar a cautela na voz. Rosa Klebb resmungou de forma impessoal. Sabia exatamente o que a garota devia ter pensado ao receber a convocação. O efeito da acolhida amável, o espanto de alívio diante das
boas notícias, o medo renovado, tudo isso havia transparecido. Ali estava uma garota bela, sincera, inocente. Exatamente o que a konspiratsia exigia. Precisava agora de um estímulo para se soltar. “Minha cara”, disse ela suavemente, “que negligência de minha parte. Esta promoção deveria ser comemorada com uma taça de vinho. Não pense que nós oficiais superiores somos destituídos de humanidade. Vamos beber juntas. Será um bom pretexto para abrir uma garrafa de champanhe francês.” Rosa Klebb se levantou e foi até o console onde o ordenança colocara o que ela lhe ordenara. “Experimente um desses chocolates
enquanto eu luto com a rolha. Jamais foi fácil tirar as rolhas do champanhe. Nós garotas precisamos de um homem para nos ajudar neste tipo de tarefa, não é?” Esta terrível tagarelice continuou enquanto ela colocava uma caixa esplêndida de chocolates diante de Tatiana. E voltava para o console. “São suíços. O melhor que há. Os redondos têm o centro macio, e os quadrados, duro.” Tatiana murmurou agradecimentos. Estendeu a mão e escolheu um redondo. Seria mais fácil de comer. Sua boca estava seca com o medo de finalmente perceber a armadilha e senti-la se fechar em volta do seu pescoço. Devia ser algo
terrível para precisar ser disfarçado por toda aquela encenação. O pedaço de chocolate grudou na sua boca como goma de mascar. Felizmente, o copo de champanhe foi posto na sua mão. Rosa Klebb avultava sobre ela. E ergueu alegremente sua taça. “Za vashe zdarovie, camarada Tatiana. Minhas congratulações mais calorosas!” Tatiana grudou um sorriso horrível no rosto. Pegou sua taça e fez uma pequena mesura. “Za vashe zdarovie, camarada coronel.” Esvaziou a taça, como se costuma fazer na Rússia, e colocou-a diante de si. Rosa Klebb encheu-a de novo imediatamente, derramando um pouco em cima do tampo da mesa. “E agora à
saúde de seu novo departamento, camarada.” Ergueu a taça. O sorriso meloso se intensificou ao observar as reações da garota. “À SMERSH!” Tatiana se levantou estarrecida. Pegou a taça cheia. “À SMERSH.” As palavras mal saíram. Engasgou com o champanhe e precisou tomar dois goles. Sentou-se pesadamente. Rosa Klebb não lhe deu tempo para pensar. Sentou-se em frente e colocou as mãos com as palmas para baixo na mesa. “E agora vamos ao trabalho, camarada.” O tom autoritário voltara à sua voz. “Há muito trabalho a fazer.” Inclinou-se para a frente. “Já quis morar
no estrangeiro, camarada? Em um país estrangeiro?” O champanhe estava fazendo efeito em Tatiana. Talvez o pior ainda estivesse por vir, mas que viesse rápido. “Não, camarada. Estou feliz em Moscou.” “Nunca imaginou como é viver no Ocidente — todas aquelas belas roupas, o jazz, as coisas modernas?” “Não, camarada.” Estava sendo sincera. Nunca pensara nisso. “E se o Estado precisar que você more no Ocidente?” “Obedecerei.” “De bom grado?” Tatiana sacudiu os ombros, com um toque de impaciência. “A gente faz o que
nos mandam.” A mulher fez uma pausa. Havia uma cumplicidade adolescente na próxima pergunta. “É virgem, camarada?” “Ah, meu Deus”, pensou Tatiana. “Não, camarada coronel.” Os lábios úmidos brilhavam na luz. “Quantos homens?” Tatiana se ruborizou até a raiz dos cabelos. As garotas russas são discretas e puritanas sobre sexo. Na Rússia, o clima sexual é vitoriano. Essas perguntas da parte dessa mulher Klebb eram ainda mais revoltantes por serem feitas daquela maneira fria, inquisitorial, por uma funcionária do Estado que ela
nunca conhecera na vida. Tatiana reuniu sua coragem. Fitou os olhos amarelos defensivamente. “Qual é o objetivo dessas perguntas íntimas, camarada coronel?” Rosa Klebb se endireitou. Sua voz veio cortante como uma chicotada: “Olha lá, camarada. Não está aqui para fazer perguntas. Está esquecendo com quem fala. Responda!” Tatiana se encolheu. “Três homens, camarada coronel.” “Quando? Quantos anos você tinha?” O olhar duro dos olhos amarelos ultrapassou a mesa e bateu nos olhos azuis acossados da garota, mantendo-os fixo neles, no comando. Tatiana estava à beira das lágrimas.
“No colégio. Quando eu tinha dezessete anos. Depois no Instituto de Línguas Estrangeiras. Eu tinha vinte e dois anos. Em seguida no ano passado. Tinha vinte e três anos. Foi um amigo que conheci patinando.” “Seus nomes, por favor, camarada.” Rosa Klebb pegou um lápis e puxou um bloco de rascunho na sua própria direção. Tatiana cobriu o rosto com as mãos e desandou a chorar. “Não”, dizia entre soluços, “não. Nunca, não importa o que fizer comigo. Não tem esse direito.” “Pare com essa bobagem!” A voz disse, sibilante. “Dentro de cinco minutos eu obteria esses nomes de você,
ou qualquer outra coisa que eu queira saber. Você está jogando um jogo perigoso comigo, camarada. Minha paciência não vai durar para sempre.” Rosa Klebb fez uma pausa. Estava sendo dura demais. “No momento, vamos pular isso. Amanhã você me dará os nomes. Nenhum mal acontecerá a esses homens. Terão de responder a uma ou duas perguntas sobre você — perguntas simples, técnicas, só isso. Agora sente direito e enxugue as lágrimas. Não podemos mais fazer essas bobagens.” Rosa Klebb se levantou e se aproximou em volta da mesa. Ficou olhando para Tatiana embaixo. A voz se tornou suave e untuosa. “Vem, vem, minha querida. Você precisa confiar em
mim. Seus pequenos segredos estão seguros comigo. Venha, beba mais champanhe, esqueça este pequeno contratempo. Precisamos ser amigas. Temos que trabalhar juntas. Precisa aprender, Tania querida, a me tratar como se eu fosse sua mãe. Venha, beba isto aqui.” Tatiana tirou um lenço da faixa na cintura de sua saia e enxugou os olhos. Estendeu a mão trêmula até a taça de champanhe e sorveu-o de cabeça abaixada. “Beba, querida.” Rosa Klebb permanecia em pé ao lado da garota, como uma terrível mamãe pata, grasnando estímulos.
Tatiana esvaziou o copo, obediente. Sentiu que sua resistência havia acabado, estava cansada, disposta a qualquer coisa para terminar aquela entrevista e ir para algum lugar dormir. Pensou: “Então é assim na mesa do interrogatório, é essa a voz que Klebb usa.” Bem, funcionava. Ela agora estava dócil. Cooperaria. Rosa Klebb sentou-se. Sopesava a garota, por trás da máscara maternal. “E agora, querida, só mais uma pergunta íntima. É entre nós, garotas. Você gosta de fazer amor? Sente prazer? Muito prazer?” Tatiana levantou de novo as mãos e cobriu o rosto. Por detrás delas, em uma
voz abafada, respondeu: “Sim, camarada coronel. Naturalmente. Quando a gente está apaixonada...” Sua voz diminuiu. O que mais poderia dizer? Que resposta aquela mulher queria? “E supondo, querida, que não esteja apaixonada. Fazer amor com um homem ainda lhe daria prazer?” Tatiana sacudiu a cabeça, indecisa. Tirou as mãos do rosto e inclinou a cabeça. O cabelo caiu dos dois lados como uma cortina pesada. Procurava pensar, ser prestativa, mas era incapaz de imaginar semelhante situação. Ela achava... “Acho que dependeria do homem, camarada coronel.” “Uma resposta sensata, querida.” Rosa Klebb abriu uma gaveta da mesa.
Tirou uma foto e empurrou-a por cima da mesa para a garota. “Que me diz deste homem, por exemplo?” Tatiana puxou a foto cautelosamente, como se ela pudesse pegar fogo. Olhou com cuidado para o belo rosto impiedoso. Tentou pensar, imaginar... “Não consigo, camarada coronel. É bonito. Talvez se for delicado...” Ansiosa, ela afastou de si a fotografia. “Não, guarde-a, querida. Ponha-a ao lado de sua cama e pense neste homem. Aprenderá mais sobre ele no decorrer do seu novo trabalho. E agora,” os olhos brilhavam atrás das lentes quadradas, “gostaria de saber onde será seu novo trabalho? A tarefa para a qual você,
entre todas as garotas da Rússia, foi escolhida?” “Sim, certamente, camarada coronel”, e Tatiana olhou obediente o rosto atento, agora apontado para ela como um cão de caça. Os lábios úmidos e borrachudos se abriram sedutoramente. “É um dever simples, delicioso, para o qual a escolheram, camarada cabo — uma verdadeira tarefa de amor, como dizemos. Trata-se de se apaixonar. E só. Mais nada. Apenas se apaixonar por este homem.” “Mas quem é? Nem sequer o conheço.” A boca de Klebb demonstrou o seu prazer. Isso daria algo que pensar a essa
bobinha. “É um espião inglês.” “Bogou moiou!” Tatiana tapou a boca com a mão, tanto para abafar o uso do nome de Deus, como de terror. Ficou sentada, tensa com o choque, olhando para Rosa Klebb com olhos arregalados e levemente embriagados. “Sim”, disse Rosa Klebb, satisfeita com o efeito de suas palavras. “É um espião inglês. Talvez o mais famoso deles. E de agora em diante você está apaixonada por ele. Por isso, é melhor se acostumar com a ideia. E nada de bobagens, camarada. Precisamos ser sérias. Esta é uma importante questão de Estado para a qual foi escolhida como
instrumento. Por isso, nada de bobagem, por favor. Agora alguns detalhes práticos.” Rosa Klebb parou. “E tire a mão de sua cara boba. Pare de me olhar como uma vaca assustada. Sente-se direito na cadeira e preste atenção. Ou o pior lhe acontecerá. Compreendeu?” “Sim, camarada coronel.” Tatiana endireitou rapidamente suas costas e sentou-se direito com as mãos no colo, como se estivesse de volta à Escola dos Oficiais de Segurança. Sua cabeça estava confusa, mas esta não era hora para coisas pessoais. Todo seu treinamento lhe dizia que se tratava de uma missão para o Estado. Ela agora trabalhava para seu país. Havia sido escolhida para uma konspiratsia
importante. Como oficial da MGB precisava cumprir seu dever e cumpri-lo bem. Ouviu com cuidado e com toda a atenção profissional. “Por enquanto serei breve”, disse Rosa Klebb, adotando sua voz oficial. “Saberá mais depois. Durante as próximas semanas será treinada meticulosamente para esta operação até que saiba exatamente o que fazer em todas as situações. Vão lhe ensinar alguns costumes estrangeiros. Ganhará belas roupas. Será instruída em todas as artes da sedução. Em seguida será mandada para um país estrangeiro, em algum lugar da Europa. Lá encontrará este homem. Irá seduzi-lo. Quanto a isto,
nada de escrúpulos tolos. Seu corpo pertence ao Estado. Foi nutrida por ele desde que nasceu. Agora seu corpo deve trabalhar para o Estado. Compreendeu?” “Sim, camarada coronel.” A lógica era inescapável. “Acompanhará este homem à Inglaterra. Lá, sem dúvida será interrogada. O interrogatório será fácil. Os ingleses não usam métodos duros. Dará as respostas possíveis sem pôr em perigo o Estado. Nós lhe forneceremos algumas respostas que gostaríamos que você desse. Provavelmente será mandada para o Canadá. É para lá que os ingleses mandam determinada categoria de prisioneiros estrangeiros. Será resgatada e trazida de volta a
Moscou.” Rosa Klebb olhou para a garota. Parecia estar aceitando tudo isso inegavelmente. “Está vendo, é uma questão relativamente simples. Tem alguma pergunta até agora?” “O que acontecerá ao homem, camarada coronel?” “Isso nos é indiferente. Simplesmente o usaremos como meio de introduzi-la na Inglaterra. O objetivo da operação é dar falsa informação aos britânicos. Ficaremos muito contentes, é claro, camarada, em ouvir suas próprias impressões da vida na Inglaterra. Os relatórios de uma garota inteligente e altamente treinada como você serão muito valiosos para o Estado.”
“Realmente, camarada coronel!” Tatiana se sentiu importante. De repente tudo parecia incrível. Se apenas fizer bem aquilo. Certamente faria o melhor possível. Mas supondo que não consiga fazer com que o espião inglês se apaixone por ela. Olhou de novo a fotografia. Inclinou o rosto para o lado. Era um rosto atraente. O que eram essas “artes da sedução” que a mulher tinha mencionado? O que seriam? Talvez fossem um auxílio. Satisfeita, Rosa Klebb se levantou da mesa. “E agora podemos relaxar, querida. Acabou-se o trabalho desta noite. Irei me arrumar e teremos uma conversa amigável juntas. Não levarei
mais que um instante. Coma esses chocolates ou eles se estragarão.” Rosa Klebb fez um gesto vago e desapareceu, com aspecto preocupado, no quarto ao lado. Tatiana se recostou na cadeira. Então era disso tudo que se tratava! Na verdade, não era tão mau assim. Que alívio! E que honra ter sido escolhida. Que bobagem ter ficado tão amedrontada! Naturalmente, os grandes líderes do Estado não deixariam que algum mal acontecesse a uma cidadã inocente, que trabalhava duro e não tinha nenhuma mancha na sua zapiska. De repente sentiu-se imensamente grata à figura paterna do Estado e orgulhosa por poder quitar agora parte de sua dívida
com ele. Até mesmo essa mulher Klebb não era tão má, afinal de contas. Tatiana ainda estava revendo a situação alegremente quando a porta do quarto se abriu e “a Klebb” apareceu na abertura. “O que acha, querida?” A coronel Klebb abriu os braços roliços e girou nos calcanhares como um manequim. Fez uma pose, com um braço esticado e o outro dobrado na cintura. O queixo de Tatiana caiu. Fechou-o depressa. Buscou dizer algo. A coronel Klebb, da SMERSH, estava usando uma camisola semitransparente de crèpe de chine alaranjada. Decorada com tiras com as bordas cheias de pequenas curvas do
mesmo tecido em volta do decote bem cavado, e as mesmas tiras nos punhos das mangas bufantes. Por baixo se via um sutiã composto de duas grandes rosas de cetim rosado. Na parte de baixo, usava calções antiquados de cetim rosado, com o elástico acima dos joelhos. Um deles, cheio de covinhas, aparecia, como um coco amarelado, por entre as dobras semiabertas da camisola, na pose clássica da modelo. Os pés calçavam chinelos de cetim rosados com pompons de penas de avestruz. Rosa Klebb tirara os óculos, e seu rosto nu estava coberto agora por uma máscara grossa, ruge e batom. Parecia a puta mais velha e feia do mundo.
Tatiana gaguejou: “É muito bonito.” “Não é?”, gorjeou a mulher. Foi até um largo sofá no canto da sala, forrado por uma tapeçaria rústica berrante. Atrás, contra a parede, as almofadas de cetim em cores pastéis estavam um tanto encardidas. Com um guincho de prazer, Rosa Klebb se deixou cair em uma pose caricata de Madame Récamier. Estendeu um braço e acendeu uma luminária com abajur rosado, cuja base era uma mulher nua em falso vidro Lalique. Deu alguns tapinhas no sofá a seu lado. “Apague a luz principal, querida. O interruptor fica no alto, ao lado da porta. Depois venha sentar a meu lado.
Precisamos nos conhecer melhor.” Tatiana caminhou até a porta. Desligou a luz de cima. Levou a mão decididamente à maçaneta da porta. Girou-a, abriu a porta e saiu tranquilamente. De repente faltou coragem. Bateu a porta atrás de si e correu desesperadamente pelo corredor, com as mãos tapando os ouvidos para não ouvir o grito persecutório, que nunca veio.
10. O PAVIO QUEIMA
Era manhã do dia seguinte. A coronel Klebb estava sentada à mesa no escritório espaçoso que constituía o seu quartel-general no porão da SMERSH. Era mais uma sala de operações do que um escritório. Um mapa do hemisfério ocidental cobria inteiramente uma parede. O hemisfério oriental cobria a parede oposta. Atrás da mesa e ao alcance da mão esquerda, uma Telekrypton vez por outra murmurava um sinal en clair,
duplicando outro aparelho no departamento de criptografia, sob as altas antenas de rádio no teto do prédio. De vez em quando, a coronel Klebb se lembrava de rasgar um pedaço da fita que ia se alongando e lia as mensagens. Era uma formalidade. Se algo importante acontecesse, seu telefone tocaria. Todo agente da SMERSH mundo afora era controlado a partir dessa sala, e era um controle férreo, vigilante. O rosto pesado parecia taciturno e dissoluto. A pele de galinha formava bolsas sob os olhos injetados. Um dos três telefones a seu lado ronronou suavemente. Ela pegou o fone: “Mande-o entrar.”
Voltou-se para Kronsteen, que estava sentado palitando os dentes com um clipe, pensativo, em uma poltrona contra a parede da esquerda, sob o chifre da África. “Granitsky.” Kronsteen voltou lentamente a cabeça e olhou a porta. Grant, o Vermelho entrou e fechou a porta com cuidado. Caminhou até a mesa e ficou em pé olhando para baixo, obediente, quase com voracidade, nos olhos de sua comandante. Kronsteen pensou que ele parecia um poderoso mastim à espera de ser alimentado. Rosa Klebb examinou-o com frieza. “Está pronto e em forma para
trabalhar?” “Sim, camarada coronel.” “Vamos dar uma olhada em você. Tire as roupas.” Grant, o Vermelho não demonstrou surpresa. Tirou o casaco e, depois de procurar algum lugar para botá-lo, deixou-o cair no chão. Em seguida, sem nenhum constrangimento, despiu o resto das roupas e chutou os sapatos até que saíssem dos pés. O corpo enorme, vermelho-amarronzado, com seus cabelos dourados, iluminou a melancolia da sala. Grant se deixou ficar descontraído, com as mãos caídas ao lado e um joelho levemente dobrado, como se estivesse posando para uma aula de desenho.
Rosa Klebb se levantou, contornando a mesa. Examinou o corpo minuciosamente, cutucando aqui, tateando lá, como se estivesse comprando um cavalo. Foi por detrás, continuando o exame meticuloso. Antes de voltar para a frente, Kronsteen percebeu que ela tirara algo do bolso do casaco e o enfiara na mão. Percebeu um brilho metálico. A mulher veio para a frente e se aproximou bem do abdome luzidio do sujeito, com o braço direito atrás das costas. Colou o olhar nos olhos dele. De súbito, com rapidez terrível e todo o peso dos ombros atrás do golpe, trouxe seu punho direito, reforçado com
uma pesada soqueira de bronze, e o descarregou bem no plexo solar do homem. Uac! Grant deixou escapar um ronco de surpresa e dor. Seus joelhos cederam ligeiramente, em seguida se endireitaram. Por um átimo os olhos se fecharam com força, de agonia. Depois abriram de novo, fitando, penetrantes e avermelhados, os olhos frios e amarelos que o sondavam atrás das lentes quadradas. Além de uma mancha vermelha logo abaixo do esterno, Grant não demonstrou nenhum efeito deletério de um soco que derrubaria no chão, a se contorcer, qualquer sujeito normal. Rosa Klebb sorriu rigidamente.
Enfiou a soqueira de volta no bolso, caminhou até a mesa e sentou-se. Olhou para Kronsteen com um sinal de orgulho. “Pelo menos está bastante em forma.” Kronsteen grunhiu. Desnudo, Grant sorriu com tímida satisfação. Levantou a mão e esfregou o estômago. Rosa Klebb se recostou na cadeira e o observou pensativa. Finalmente, disse: “Camarada Granitsky, há trabalho para você. Uma tarefa importante. Mais importante do que qualquer outra que tenha feito. Uma tarefa que lhe renderá uma medalha” — os olhos de Grant brilharam — “porque o alvo é difícil e perigoso. Você estará em um país
estrangeiro, sozinho. Está claro?” “Sim, camarada coronel.” Grant ficou animado. Ali estava a oportunidade para o grande passo à frente. Qual seria a medalha? A Ordem de Lênin? Escutou com atenção. “O alvo é um espião inglês. Gostaria de matar um espião inglês?” “Muito, camarada coronel.” O entusiasmo de Grant era autêntico. Era só o que ele queria, matar um inglês. Tinha um acerto de contas a fazer com aqueles desgraçados. “Precisará de muitas semanas de treinamento e preparo. Nesta missão irá disfarçado de agente inglês. Suas maneiras e aparência são grosseiras. Terá de aprender pelo menos alguns dos
costumes”, zombava a voz, “de um cavalheiro. Será colocado nas mãos de um inglês que nós temos aqui. Um excavalheiro do Ministério do Exterior em Londres. Sua tarefa será fazê-lo se passar por algum tipo de espião inglês. Eles empregam gente de muitos tipos diferentes. Não deve ser difícil. E terá de aprender muitas outras coisas. A operação será no final de agosto, mas você começará o treinamento imediatamente. Há muito a fazer. Vistase de novo e volte a se apresentar ao ajudante de ordens. Compreendeu?” “Sim, camarada coronel.” Grant sabia não fazer perguntas. Enfiou as roupas depressa, indiferente ao olhar da mulher,
e andou até a porta abotoando o paletó. Virou-se: “Obrigado, camarada coronel.” Rosa Klebb estava tomando notas sobre a entrevista. Não respondeu nem levantou os olhos, e Grant saiu e fechou a porta com cuidado. A mulher descansou a caneta e se recostou na cadeira. “E agora, camarada Kronsteen? Será que existem questões que precisam ser discutidas antes de movimentarmos a máquina inteira? Devo dizer que o Presidium aprovou o alvo e ratificou a ordem de matar. Relatei seu plano, em linhas gerais, ao general Grubozaboyschikov. Ele está de acordo. Os detalhes da execução foram deixados
inteiramente a meu encargo. A equipe conjunta de planejamento e execução foi escolhida e está à espera de começar a trabalhar. Tem alguma ideia de última hora, camarada?” Kronsteen estava sentado, olhando para o teto, com as pontas dos dedos entrelaçadas diante dele. Pouco ligava para a condescendência na voz da mulher. Suas têmporas pulsavam ao ritmo da concentração. “Este sujeito, Granitsky, é confiável? Pode confiar nele em um país estrangeiro? Será que não vai se ‘privatizar’?” “Já foi testado há quase dez anos. Teve muitas oportunidades de fugir. Foi
vigiado para ver se sentia cócegas. Jamais houve o mínimo traço de suspeita. Este sujeito está na mesma situação de um viciado em drogas. Não abandonaria a União Soviética, do mesmo modo que um viciado não abandonaria sua fonte de cocaína. É meu carrasco supremo. Não existe melhor.” “E essa garota Romanova? É boa?” A mulher disse, a contragosto: “É muito bonita. Servirá aos nossos propósitos. Não é virgem, mas é pudica e sexualmente reprimida. Receberá instruções. Seu inglês é excelente. Deilhe determinada versão da nossa tarefa e de seu objetivo. Ela coopera. Se der sinais de fraquejar, tenho os endereços de certos parentes, inclusive crianças.
Saberei também os nomes de seus amantes anteriores. Se necessário, será explicado a ela que essas pessoas ficam como reféns até que sua tarefa seja completada. Ela é de índole afetiva. Uma insinuação assim será suficiente. Mas prevejo que não haverá qualquer problema no caso dela.” “Romanova. É nome de uma buivshi — dos antigos. Parece estranho usar uma Romanov em uma tarefa tão delicada.” “Seus avós eram parentes distantes da família imperial. Mas ela não frequenta círculos buivshi. De qualquer forma, todos os nossos avós eram gente da época passada. Não há nada que
possamos fazer quanto a isso.” “Nossos avós não se chamavam Romanov”, disse secamente Kronsteen. “No entanto, desde que você esteja satisfeita...” Refletiu por um momento. “E este sujeito, Bond? Descobrimos seu paradeiro?” “Sim. A rede inglesa da MGB diz que ele se encontra em Londres. Durante o dia vai à sede, de noite dorme em seu apartamento em um bairro londrino chamado Chelsea.” “Isso é bom. Esperemos que ele fique por lá nas próximas semanas. Significa que não está metido em alguma operação. Estará disponível para ir atrás da nossa isca quando eles a farejarem. Enquanto isso”, os olhos escuros e
pensativos de Kronsteen continuavam a examinar um determinado ponto no teto, “tenho estudado a utilidade dos centros no exterior. Decidi que será em Istambul o primeiro contato. Temos uma boa máquina lá. O serviço secreto só tem uma pequena estação. Dizem que o chefe é bom. Será liquidado. O centro está convenientemente situado para a gente, com linhas curtas de comunicação com a Bulgária e o mar Negro. É relativamente longe de Londres. Estou elaborando os detalhes do local do assassinato e os meios de fazer com que Bond chegue até lá, depois de ter feito contato com a garota. Será na França, ou muito perto. Temos uma excelente alavancagem na
imprensa francesa. Ela vai explorar esta história ao máximo, com suas revelações sensacionais sobre espionagem e sexo. Falta ainda decidir quando Granitsky entra em cena. Estes são pequenos detalhes. Precisamos escolher o câmera e os outros agentes para transportá-los tranquilamente para Istambul. Não pode haver inchaço de nossa máquina lá, nenhuma congestão, nenhuma atividade anormal. Avisaremos a todos os departamentos que os contatos pelo rádio com a Turquia devem permanecer absolutamente normais, antes e depois da operação. Não queremos que os interceptadores britânicos farejem um rato. O departamento de códigos concordou que
não existe nenhuma objeção de segurança quanto à entrega de uma caixa externa do aparelho Spektor. Isso será um atrativo. O aparelho irá para a seção de dispositivos especiais. Eles se encarregarão de seu preparo.” Kronsteen parou de falar. Seu olhar baixou lentamente do teto. Levantou-se pensativo. Olhou para os olhos atentos e vigilantes da mulher. “Não sou capaz de pensar em mais nada agora, camarada”, disse. “Surgirão muitos detalhes que precisarão ser resolvidos no dia a dia. Mas, com certeza, a operação pode começar.” “Concordo, camarada. A questão deve prosseguir agora. Darei as
necessárias diretrizes.” A voz áspera e autoritária suavizou-se. “Sou grata pela sua cooperação.” Kronsteen baixou a cabeça levemente, em reconhecimento. Virou-se e caminhou silenciosamente até a saída da sala. O silêncio foi quebrado pelo Telekrypton, que deu um estalo de aviso e começou a sua tagarelice mecânica. Rosa Klebb se mexeu na cadeira e estendeu a mão para um dos telefones. Discou um número. “Sala de operações”, disse uma voz masculina. Os olhos desbotados de Rosa Klebb olharam através da sala e se encheram de brilho ao distinguirem a área rosa
que representava a Inglaterra no mapa na parede. Seus lábios se afastaram. “Coronel Klebb falando. Konspiratsia contra o espião inglês Bond. A operação deve começar imediatamente.”
PARTE 2
A EXECUÇÃO
11. VIDA MANSA
Os braços macios da vida mansa tinham enlaçado o pescoço de Bond e o estrangulavam aos poucos. Era um homem de ação e, quando não havia ação durante muito tempo, seu espírito se abatia. Em seu setor de atividades já reinava a paz por quase um ano. E a paz o estava matando. Às 7h30 da manhã de quinta-feira, 12 de agosto, Bond acordou no seu confortável apartamento na praça
arborizada ao lado de King’s Road e ficou aborrecido ao perceber que estava inteiramente entediado com a perspectiva do dia pela frente. Do mesmo modo que, em pelo menos uma das religiões, a apatia é o primeiro pecado capital, o tédio, especialmente a situação incrível de se acordar entediado, era o único vício que Bond desprezava por completo. Bond estendeu a mão e tocou a sineta duas vezes para mostrar a May, sua estimada governanta escocesa, que já estava pronto para tomar o café da manhã. Em seguida, arremessou abruptamente o único lençol que cobria seu corpo nu e pôs os pés no chão. Só havia uma maneira de lidar com o
tédio — torturar-se até se livrar dele. Bond se deitou sobre as mãos e fez vinte pressões lentas, demorando-se em cada uma de modo que seus músculos não tivessem descanso. Quando os braços não aguentavam mais a dor, rolou para ficar de costas e, com as mãos ao lado, levantou as pernas esticadas até que seus músculos abdominais gritassem. Levantou-se e, depois de tocar os pés vinte vezes, passou a fazer exercícios para o braço e o peito, conjugados à respiração profunda, até ficar tonto. Ofegante com o esforço, entrou no grande banheiro de azulejos brancos e se deixou ficar no box, debaixo da água pelando do chuveiro, e depois debaixo
da água fria sob pressão durante cinco minutos. Finalmente, depois de se barbear e vestir uma camisa de mangas curtas de algodão azul-marinho e calças de tropical azul mais claro, enfiou os pés descalços em sandálias de couro pretas. Passando pelo quarto, entrou na longa sala de estar de janelas grandes, satisfeito por ter superado o tédio, ao menos por enquanto, suando. May, uma escocesa idosa, com os cabelos grisalhos cor de aço e um rosto bonito e fechado, entrou com a bandeja e colocou-a na mesa perto da janela de sacada, junto com The Times, o único jornal que Bond sempre lia. Bond desejou-lhe bom-dia e se sentou
para o café. “Bom dia, s.” (Para Bond, uma das qualidades que o faziam estimá-la era sua recusa em chamar qualquer um de “senhor”, exceto — Bond brincara a este respeito com ela, anos antes — os reis da Inglaterra e Winston Churchill. Como sinal de apreço incomum, concedia a Bond a eventual insinuação de um “s” no final da frase.) Ela permaneceu ao lado da mesa enquanto Bond virava as páginas do jornal para chegar à seção de notícias, no meio. “Aquele seu sujeito esteve de novo aqui na noite passada, a respeito da televisão.”
“Que sujeito é esse?” Bond lia as manchetes. “Esse seu sujeito que não para de vir. Já veio aqui seis vezes desde junho, para me chatear. Depois do que eu lhe disse da primeira vez sobre esse aparelho pecaminoso, seria de crer que ele parasse de tentar nos vender um. E por leasing, além disso, veja só!” “São uns caras persistentes esses vendedores.” Bond largou o jornal para pegar o bule de café. “Eu lhe disse cobras e lagartos, na noite passada. Perturbando as pessoas na hora do jantar. Perguntei se tinha algum documento — qualquer coisa para provar quem era.”
“Suponho que isso tenha dado um jeito nele.” Bond encheu sua grande xícara até em cima com café puro. “Nem um pouco. Brandiu sua carteira do sindicato. Disse que tinha todo o direito de ganhar a vida. Era do sindicato dos eletricistas. É aquele sindicato comunista, não é?” “É. Tem razão”, disse Bond vagamente. Sua mente se aguçou. Seria possível que eles estivessem mantendo um olho nele? Sorveu um gole do café e largou a xícara. “O que o sujeito disse exatamente, May?”, perguntou, mantendo certa indiferença na voz, mas levantando o olhar para ela. “Disse que estava vendendo
aparelhos de televisão sob comissão em seu tempo livre. E perguntou se tínhamos certeza de não querer uma. Disse que somos as únicas pessoas na praça que ainda não têm. Percebeu que não existe uma daquelas coisas metálicas no telhado, acho. Vive perguntando se você está em casa para poder dar uma palavrinha sobre isso. Imagine sua audácia! Estou espantada de ele ainda não ter pensado em pegá-lo na hora de entrar ou sair. Vive perguntando se espero que você ainda chegue. Naturalmente, não lhe conto nada sobre seus movimentos. Sujeito respeitável, de fala mansa, pena ser tão persistente.” “Podia ser”, pensou Bond. Há muitas maneiras de verificar se o dono está em
casa ou não. O surgimento de um empregado e suas reações — uma olhada pela porta aberta. “Bem, você está perdendo seu tempo porque ele não está”, seria a recepção óbvia se o apartamento estivesse vazio. Deveria relatar isso para a seção de segurança? Bond deu de ombros, irritado. Que diabo. Provavelmente não havia nada de mais. Por que estariam eles interessados nele? E, se houvesse algum problema deste tipo, a segurança era bem capaz de fazê-lo trocar de apartamento. “Suponho que você deva tê-lo amedrontado desta vez.” Bond sorriu para May. “Acho que não ouviremos mais nada de sua parte.”
“Sim, s”, disse May, incerta. De qualquer maneira seguira suas ordens de lhe contar caso visse alguém “em volta dali”. Saiu alvoroçada, com um sussurro vindo do uniforme preto antiquado que ela insistia em usar mesmo no calor de agosto. Bond voltou para o seu café da manhã. Normalmente, eram coisas aparentemente sem importância como essa que punham sua cabeça para trabalhar continuamente, usando toda sua intuição e, se fosse em outro dia, não teria se dado por satisfeito se não tivesse resolvido o problema do sujeito do sindicato comunista que não parava de vir à sua casa. Agora, depois de
meses de indolência e falta de uso, a espada enferrujara na bainha e a guarda mental de Bond andava baixa. O café da manhã era a refeição predileta de Bond. Quando estava estacionado em Londres, era sempre igual. Consistia em café muito forte, do De Bry, em New Oxford Street, feito em uma Chemex americana, do qual ele bebia duas grandes xícaras, puro e sem açúcar. O único ovo, no porta-ovo azul-escuro com um anel dourado em cima, fervia durante três minutos e vinte segundos. Era um ovo corado e manchado, muito fresco, de galinhas Marans francesas, de alguma amiga de May do campo. (Bond não gostava de ovos brancos e,
novidadeiro como era em tantas pequenas coisas, divertia-se afirmando que o ovo cozido perfeito existia de fato.) Em seguida, duas grossas fatias de torrada de pão de aveia natural, um grande pedaço de manteiga amarela de Jersey e três jarros baixos contendo geleia de morango Little Scarlet, da Tiptree, geleia de laranja Cooper’s Vintage Oxford e mel de urze norueguês da Fortnum. O bule de café e a prataria na bandeja eram Queen Anne, e a louça da Minton, da mesma cor azul-escuro, branca e dourada do porta-ovo. Naquela manhã, enquanto Bond encerrava com mel o café da manhã, descobriu a causa imediata de sua
letargia e desânimo. Para começar, Tiffany Case, seu caso de tantos meses felizes, o deixara e, depois de algumas semanas dolorosas em que se retirara para um hotel, embarcara para a América no final de julho. Ele sentia muito a sua falta e ainda evitava pensar nela. Era agosto e fazia calor em Londres, que andava muito monótona. Ele estava prestes a tirar férias, mas não tinha nem a energia nem o desejo de viajar sozinho, ou tentar obter alguma substituta provisória de Tiffany que o acompanhasse. Então ficara na sede meio vazia do serviço secreto, ralando nas velhas rotinas, sendo rude com sua secretária e irritando os colegas. Até M acabara ficando impaciente
com o tigre enjaulado do andar de baixo e, na segunda-feira daquela determinada semana, mandara um bilhete ríspido a Bond, nomeando-o para uma comissão de inquérito presidida pelo tesoureiro Capitão Troop. O bilhete dizia que já era tempo para que Bond, como velho funcionário do serviço, participasse de problemas administrativos importantes. De qualquer maneira, não havia mais ninguém disponível. A sede estava com pouca mão de obra e a seção 00 parada. Bond faria o favor de se apresentar naquela tarde, às 14h30, na sala 412. Era Troop, pensou Bond, ao acender o primeiro cigarro do dia, a causa mais aborrecida e imediata do seu
descontentamento. Em todo grande empreendimento existe um sujeito que é o tirano e bichopapão do escritório, e que é antipatizado por todos os funcionários. Esse indivíduo desempenha um papel inconsciente importante, agindo como uma espécie de para-raios para os ódios e medos habituais do escritório. Na verdade, ele reduz as tendências destrutivas fornecendo-lhes um alvo comum. O sujeito é geralmente o administrador geral, ou o diretor administrativo. Ele é aquele indivíduo indispensável, o cão de guarda das pequeninas coisas — dinheiro pequeno, aquecimento e luz, toalhas e sabão dos banheiros, artigos de papelaria, a
cantina, a escala das férias, a pontualidade dos funcionários. É o sujeito que de fato causa um impacto sobre o conforto e as amenidades do escritório e cuja autoridade se estende à privacidade e aos hábitos pessoais dos homens e mulheres da organização. Para querer um trabalho assim, e possuir as qualificações necessárias, o sujeito precisa ter exatamente aquelas características que irritam e causam atrito. Precisa ser avarento, observador, inquiridor e meticuloso. E precisa ser forte, adepto da disciplina e indiferente à opinião alheia. Precisa ser um pequeno ditador. Em todos os empreendimentos bem-administrados
existe alguém assim. No Serviço Secreto é o tesoureiro Capitão Troop, reformado da Marinha Real, diretor administrativo, cujo trabalho consiste, nas suas próprias palavras, em “manter o lugar espanado e brilhando”. Era inevitável que os deveres do Capitão Troop o pusessem em conflito com a maioria da organização, mas era especialmente infeliz que M não conseguisse pensar em mais ninguém, a não ser Troop, para presidir aquela determinada comissão. Porque aquela era mais uma dessas comissões de inquérito para tratar das complicações do caso Burgess e Maclean, e das lições que podiam ser tiradas dele. Fora inventada por M,
cinco anos depois de ter encerrado sua própria ficha particular sobre esse caso, puramente como satisfação ao inquérito do Conselho do Reino sobre os Serviços de Segurança, ordenado pelo primeiroministro em 1955. Imediatamente, Bond entrara em uma disputa acirrada com Troop sobre o emprego de “intelectuais” no Serviço Secreto. Com certa malícia, já sabendo que o aborreceria, Bond propusera que, se o MI5 e o Serviço Secreto fossem se preocupar seriamente com o “espião intelectual” da era atômica, seriam obrigados a empregar determinado número de intelectuais para se contrapor
a ele. “Não é possível que oficiais reformados do Exército indiano”, declarara Bond, “possam compreender os processos mentais de um Burgess ou de um Maclean. Eles nem sequer sabem que gente assim existe — quanto mais frequentar seus círculos e conhecer seus segredos e amigos. Depois que Burgess e Maclean foram para a Rússia, a única maneira de fazer contato com eles e, talvez, quando se cansassem da Rússia, transformá-los em agentes duplos contra os russos, seria ter mandado seus amigos mais próximos para Moscou, Praga e Budapeste, com ordens para esperar até que um deles pusesse o nariz de fora para contatá-lo. E um deles, provavelmente Burgess, teria sido
compelido a fazê-lo por causa da solidão e da agonia de contar sua história a alguém.* Mas certamente não se arriscariam a aparecer para alguém de capa, bigode da cavalaria e cabeça bitolada”. “Ah, sim”, disse Troop com uma calma gelada. “Então você sugere que a gente forme nosso quadro de funcionários com pervertidos cabeludos. Uma noção bastante original. Pensei que estivéssemos todos de acordo que os homossexuais representam o pior grupo de risco que existe. Não posso imaginar os americanos entregando segredos atômicos a um bando de efeminados de perfume.”
“Nem todo intelectual é homossexual. E muitos são até carecas. Só estou dizendo que...”, e assim a discussão se prolongara intermitentemente durante as sessões dos últimos três dias, e os outros membros da comissão haviam se alinhado mais ou menos com Troop. Mas hoje tinham que redigir suas recomendações, e Bond estava pensando se deveria tomar a iniciativa antipática de apresentar um relatório minoritário. Até que ponto iam suas preocupações com toda essa questão?, pensava Bond quando, às nove horas, saiu de seu apartamento, descendo as escadas até seu carro. Será que estava sendo apenas teimoso e mesquinho? Teria criado uma
oposição do eu sozinho só para se confrontar com algo que seus dentes pudessem morder? Estaria tão entediado que não podia achar nada melhor para fazer do que se tornar um estorvo dentro de sua própria organização? Bond não conseguia se decidir e, no fundo, havia aquela preocupação persistente e indefinida. Ao apertar o botão de partida, os dois canos de escape do Bentley acordaram com um ronco trêmulo, e uma citação espúria surgiu, não se sabe de onde, na cabeça de Bond: “Os deuses primeiro entediam aqueles que pretendem destruir.” * Escrito em março de 1956. (I.F.)
12. SERÁ MOLEZA
Por fim, Bond jamais precisou tomar a decisão sobre o relatório final da comissão. Elogiara o novo vestido de verão de sua secretária e estava no meio da série de sinais em código que haviam chegado durante a noite, quando o telefone vermelho, que só podia significar M ou seu chefe de gabinete, deu seu suave e decisivo trinado. Bond pegou o fone: “007.” “Você pode subir?” Era o chefe de
gabinete. “M?” “Sim. E parece que vai ser uma longa sessão. Eu disse a Troop que você não poderá comparecer à comissão.” “Alguma ideia sobre o que é?” O chefe de gabinete deu um risinho. “Sim, por acaso tenho. Mas é melhor ouvir de sua própria boca. Fará você se sentar bem na beira da cadeira. Essa aí é uma bola de efeito.” Quando Bond vestiu o paletó e saiu para o corredor, batendo a porta, tinha quase certeza de que fora dado o tiro de partida e que os dias de ócio haviam terminado. Até mesmo o percurso ao andar de cima no elevador e pelo corredor silencioso, até a porta de M,
parecia impregnado da mesma importância de todas aquelas outras ocasiões em que a campainha do telefone vermelho havia sido o sinal que o disparara pelo mundo, como um míssil carregado, rumo a algum alvo distante escolhido por M. Os olhos da srta. Moneypenny, secretária particular de M, tinham aquele mesmo brilho de excitação e cumplicidade confidencial quando levantou a cabeça para lhe dar um sorriso e apertar a tecla do interfone. “007 está aqui.” “Mande-o entrar”, disse a voz metálica, e a luz vermelha de ocupado se acendeu em cima da porta. Bond passou pela porta, fechando-a
com cuidado. A sala estava fresca, ou talvez fossem as venezianas que lhe davam uma impressão de frescor. Projetavam barras de luz e sombras sobre o tapete verde-escuro, até a beira da grande mesa de centro. Ali terminava a luz do sol, de modo que a figura calma atrás da mesa estava sentada numa densa penumbra esverdeada. No teto, diretamente acima da mesa, um grande ventilador tropical de duas pás, aquisição recente na sala de M, girava lentamente revolvendo o ar carregado de agosto que, mesmo bem acima de Regent’s Park, estava pesado e abafado depois do calorão de uma semana. M fez um gesto para a cadeira diante dele na mesa de couro vermelho. Bond
sentou-se e olhou para o rosto tranquilo e vincado de homem do mar, que ele estimava, honrava e obedecia. “Você se importa se eu lhe fizer uma pergunta pessoal, James?” M jamais perguntava coisas pessoais a seus funcionários, e Bond não conseguia imaginar o que viria a seguir. “Não, senhor.” M pegou o cachimbo no grande cinzeiro de cobre e começou a enchê-lo, pensativo, olhando seus dedos mexendo no fumo. Disse bruscamente: “Não precisa responder, mas diz respeito a... a sua amiga srta. Case. Como sabe, eu geralmente não me interesso por esses assuntos, mas ouvi dizer que vocês...
têm se visto muito depois daquele negócio dos diamantes. E que até mesmo pensam em se casar.” M levantou os olhos para Bond e baixou-os de novo. Colocou o cachimbo cheio na boca e acendeu-o com um fósforo. Depois de dar uma baforada para avivar a brasa, disse do canto da boca: “Você se importa em me contar algo sobre este assunto?” E agora?, pensou Bond. Que diabo, fofocas de trabalho. “Sim, nós nos dávamos bem”, ele respondeu asperamente. “E tínhamos certa intenção de casar. Mas aí ela conheceu por acaso um sujeito na embaixada americana. Da equipe do adido militar. Major dos fuzileiros navais. E estou sabendo que
vai se casar com ele. Aliás, ambos voltaram para os Estados Unidos. Ela realmente não conseguia se acostumar aqui. Ótima garota, mas um pouco neurótica. Brigávamos demais. De qualquer maneira, agora terminou.” M deu um de seus breves sorrisos que lhe iluminavam mais os olhos do que a boca. “Sinto muito que não tenha dado certo, James”, disse. Sua voz não demonstrava simpatia. Desaprovava as atividades “mulherengas” de Bond, como as chamava no seu íntimo, a despeito de reconhecer que este preconceito era uma relíquia de sua criação vitoriana. Mas, como chefe de Bond, a última coisa que queria era vê
lo amarrado permanentemente às saias de uma mulher. “Talvez seja melhor assim. Não é bom se envolver com mulheres neuróticas, neste ramo. Elas pesam no braço que deve estar pronto para atirar, se é que me entende. Perdoe por ter perguntado. Precisava saber a resposta antes de lhe contar a novidade. É um negócio bastante estranho. Seria difícil se envolver se você estivesse prestes a se casar, ou algo assim.” Bond sacudiu a cabeça, à espera da história. “Então, está bem”, disse M. Havia um tom de alívio em sua voz. Recostou-se na cadeira e deu várias baforadas no cachimbo para reavivá-lo. “Eis o que aconteceu. Ontem recebemos uma longa
mensagem em código de Istambul. Parece que na terça o chefe da estação T recebeu uma mensagem anônima, datilografada, que lhe dizia para comprar um bilhete de ida e volta na barca das oito da noite, da Ponte de Gálata à desembocadura do Bósforo. Só isso. O chefe da T é um sujeito meio aventureiro e, é claro, pegou a barca. Ficou na parte da frente, na amurada, esperando. Depois de uns quinze minutos apareceu uma garota que ficou ao seu lado, uma garota russa, muito bonita, conforme ele disse, e depois de conversarem um pouco sobre a vista e assim por diante, de repente ela mudou de registro e, no mesmo tom de
conversa, contou-lhe uma história extraordinária.” M parou para acender novamente o cachimbo. Bond fez um parêntese. “Quem é o chefe da T? Nunca trabalhei na Turquia.” “Um sujeito chamado Kerim, Darko Kerim. Pai turco, mãe inglesa. Sujeito incrível. É chefe da T desde antes da guerra. Um dos nossos melhores homens em qualquer lugar. Faz um trabalho excelente, que adora. Muito inteligente, conhece aquela parte do mundo como a palma da mão.” M se eximiu de maiores informações com um gesto lateral do cachimbo. “De qualquer maneira, a história da garota era que ela tinha patente de cabo e trabalhava na MGB.
Estava metida neste negócio desde que saiu do colégio e acabara de ser transferida para Istambul como decifradora. Manobrara para ser transferida porque queria sair da Rússia e desertar para o nosso lado.” “Ótimo”, disse Bond. “Talvez seja útil termos uma de suas decifradoras de códigos. Mas por que ela quer desertar?” M olhou para Bond. “Porque está apaixonada.” Fez uma pausa, acrescentando com bonomia: “Diz que está apaixonada por você.” “Apaixonada por mim?” “Sim, por você. É o que diz. Seu nome é Tatiana Romanova. Já ouviu
falar?” “Deus do céu, não! Não mesmo.” M sorriu diante da mistura de expressões que o rosto de Bond demonstrava. “Mas que diabo ela quer? Nem me conhece. Como sabe que eu existo?” “Bem”, disse M, “tudo isso parece absolutamente ridículo. Mas é tão maluco, que pode ser mesmo verdade. A garota tem vinte e quatro anos. Desde que ingressou na MGB, sempre trabalhou no Índice Central deles, o mesmo que nossos Registros. E vem trabalhando na seção inglesa. Há seis anos. E uma das fichas que precisou estudar foi a sua”. “Eu gostaria de vê-la”, comentou Bond.
“A história que ela conta é que primeiro ficou atraída por uma foto que eles têm de você. Admirou seu aspecto e assim por diante.” Os cantos da boca de M viraram para baixo como se tivesse acabado de chupar um limão. “Ela estudou todas as suas missões. Decidiu que você era um cara infernal.” Bond olhou desconfiado. O rosto de M não demonstrava nada. “Disse que se sentia atraída por você porque a fazia lembrar-se de um livro de um russo chamado Lermontov. Parece que é seu livro favorito. Neste livro o herói gostava de jogar e vivia se metendo em encrencas e escapando delas. De qualquer maneira, você a fazia
se lembrar dele. Disse que não conseguiu tirar mais isso da cabeça, e um dia teve a ideia de pedir uma transferência para um dos centros estrangeiros onde poderia entrar em contato com você, para ir resgatá-la.” “Nunca ouvi uma história tão maluca. É lógico que o chefe da T não a engoliu.” “Olha, espere só”, a voz de M era impaciente. “Não seja tão apressado só porque surgiu algo com que você nunca se deparou. Imagine que você fosse um astro do cinema, em vez de trabalhar neste ramo. Receberia cartas malucas de garotas de todas as partes do mundo cheias de uma porção de baboseiras, como dizer que não poderiam viver sem
você e assim por diante. Aqui está uma garota boba fazendo o serviço de uma secretária em Moscou. Não há nenhum homem nas acomodações para quem ela possa olhar, e lá está ela, diante de suas, ahn, feições vistosas em uma ficha que vive sendo consultada. E ela adquire uma ‘paixonite’, acho que é assim que a chamam, por essas fotos, do mesmo modo que as secretárias no mundo inteiro se apaixonam por esses terríveis rostos nas revistas.” M fez um gesto lateral com o cachimbo para indicar sua ignorância desses horríveis hábitos femininos. “Deus sabe que não conheço muito bem essas coisas, mas você deve admitir que elas acontecem.”
Bond sorriu diante do pedido de ajuda. “Sim, começo a achar que faz algum sentido. Não há motivo para que uma garota russa não seja tão boba quanto uma inglesa. Mas precisa ter coragem para fazer o que fez. O chefe da T disse se ela está ciente das consequências se for apanhada?” “Disse que ela estava apavorada”, comentou M. “Passou o tempo todo no barco olhando em volta para ver se alguém a espionava. Mas parece que só havia os camponeses e usuários de sempre nessas barcas, e como era muito tarde, não havia muitos passageiros. Mas espere só. Você não ouviu nem a metade da história.” M deu uma longa
baforada no cachimbo e soprou uma nuvem de fumaça em direção ao ventilador que girava lentamente por cima de sua cabeça. Bond observou a fumaça ser apanhada pelas pás, que a dissolveram até desaparecer. “Ela contou a Kerim que essa paixão por você foi se acompanhando aos poucos de uma fobia. Começou a detestar a imagem do homem russo. Dentro de pouco tempo isto se transformou numa repugnância pelo regime e especialmente pelo trabalho que ela estava fazendo para ele, de certa forma contra você. Por isso, requereu uma transferência para o estrangeiro, e já que tinha um domínio muito bom de línguas — inglês e francês — foi-lhe oferecido,
no seu devido tempo, Istambul, no caso de ela querer ingressar no departamento de criptografia, o que significava uma redução de salário. Para encurtar a história, depois de um treinamento de seis meses, ela chegou a Istambul há mais ou menos três semanas. Em seguida andou farejando por ali e logo encontrou o nome do nosso homem, Kerim. Ele está lá há tanto tempo, que a esta altura todo mundo na Turquia sabe o que faz. Não se importa, e isso desvia a atenção que os emissários especiais que mandamos de tempo em tempo poderiam despertar. Não há mal em se ter um homem de fachada em alguns desses lugares. Há uma grande clientela que
gostaria de vir conversar conosco se soubesse quem e onde procurar.” Bond comentou: “O agente conhecido muitas vezes tem mais resultado do que o sujeito que precisa gastar uma porção de tempo e energia para se manter encoberto.” “Então ela mandou o bilhete para Kerim. Agora quer saber se ele pode ajudá-la.” M fez uma pausa e deu uma baforada no cachimbo. “É claro que a primeira reação de Kerim foi exatamente igual à sua, e andou farejando uma armadilha. Porque ele simplesmente não podia perceber o que os russos ganhariam em mandar essa garota para nós. Durante todo esse tempo a barca subia o Bósforo e em
breve seria hora de voltar para Istambul. E a garota cada vez mais desesperada, enquanto Kerim tentava desmontar a sua história. Então”, os olhos de M brilharam com benevolência em direção a Bond, “surgiu o argumento decisivo”. Esse brilho nos olhos de M, pensou Bond. Como ele conhecia bem os momentos em que os olhos frios e cinzentos de M traíam sua excitação e cobiça. “Ela tinha uma última carta na manga. E sabia que era o maior trunfo. Se pudesse se bandear para nós, traria seu aparelho decodificador. É um Spektor novinho em folha. Algo que daríamos tudo para ter.”
“Meu Deus”, disse Bond, baixinho, com a cabeça embaralhada pela magnitude da recompensa. O Spektor! O aparelho que lhes permitiria decifrar as mensagens mais secretas possíveis. Possuí-lo, mesmo se sua perda fosse percebida imediatamente e sua configuração mudada, ou se o aparelho fosse retirado de uso em todas as embaixadas russas e centros de espionagem no mundo inteiro, seria uma vitória inestimável. Bond não sabia muita coisa sobre criptografia e, por razões de segurança no caso de ser capturado, só fazia questão de saber o mínimo de seus segredos, mas pelo menos sabia que para o serviço secreto
russo a perda de um Spektor seria uma calamidade. Bond fora convencido. Aceitou de imediato toda a crença que M depositava na história da garota, embora ela parecesse desvairada. Para uma russa dar-lhes este presente, e correr o terrível risco de trazê-lo, só podia ser um gesto de desespero — ou, se preferirem, de paixão desenfreada. Não importava se a história da garota fosse verdade ou não, o prêmio era demasiado alto para que corressem do jogo. “Está vendo, 007?”, disse M, em tom suave. Não era difícil ler a mente de Bond a partir da excitação em seus olhos. “Está vendo o que eu quis dizer?” Bond se resguardou: “Ela falou como
faria isso?” “Não exatamente. Mas Kerim disse que ela foi absolutamente positiva. Algo a respeito do turno da noite. Parece que ela está de serviço, sozinha, em determinadas noites da semana e dorme em uma cama de campanha no escritório. Não parecia ter dúvidas quanto a isto, embora soubesse que seria fuzilada imediatamente se alguém sequer sonhasse sobre o seu plano. Chegou a ficar preocupada porque Kerim iria me relatar tudo isso. Fez com que prometesse codificar ele mesmo a mensagem e mandá-la em um suporte descartável, sem guardar nenhuma cópia. Naturalmente, ele fez como ela
havia pedido. Na hora em que ela mencionou o Spektor, Kerim percebeu que talvez estivéssemos diante do lance mais importante surgido desde o final da guerra.” “O que aconteceu depois?” “A barca estava chegando a um lugar chamado Ortakoy. Ela disse que ia desembarcar ali. Kerim prometeu mandar uma mensagem naquela noite. Ela se recusou a fazer qualquer combinação para se manter em contato. Só disse que manteria sua parte no negócio, se mantivéssemos a nossa. Deu boa-noite e se misturou à multidão que descia a prancha de desembarque. E foi a última coisa que Kerim viu.” M inclinou-se de repente na cadeira e
deu um olhar intenso para Bond. “Naturalmente, ele não podia garantir que fôssemos aceitar o acordo com ela.” Bond não disse nada. Tinha a impressão de poder adivinhar o que seria dito em seguida. “A garota só fará essas coisas sob uma condição.” Os olhos de M se estreitaram até se tornarem frestas maliciosas e atrevidas. “Que você vá até Istambul e a traga, junto com o aparelho, para a Inglaterra.” Bond deu de ombros. Isto não representava nenhuma dificuldade. Mesmo assim... olhou com franqueza para M. “Será moleza. Mas, pelo que vejo, só há um senão. Ela só viu fotos de
mim e ouviu uma porção de histórias fascinantes. Imagine se, quando me vir em carne e osso, eu frustrar suas expectativas.” “É aí que entra o seu trabalho”, disse M, seriamente. “Foi por isso que lhe fiz aquelas perguntas sobre a srta. Case. Depende de você fazer com que ela ache que você preenche as suas expectativas.”
13. “A BEA LEVA VOCÊ ATÉ LÁ...”
As quatro pequenas hélices de extremidade quadrada giraram lentamente, uma a uma, tornando-se quatro vórtices. O ronco baixo dos turbojatos se elevou a um guincho regular. A ausência completa de vibração e o tipo de ruído eram diferentes do ronco grave e serrado e do grande esforço do motor da maioria dos outros aviões em que Bond voara. Quando o Viscount taxiou com
facilidade até a pista leste-oeste do aeroporto de Londres, Bond sentiu que estava sentado em um brinquedo caro. Houve um intervalo enquanto o piloto acelerava os quatro turbojatos até chegar a um guincho sobrenatural e então, com uma sacudida dos freios sendo soltos, o voo 130, das 10h30, da BEA para Roma, Atenas e Istambul ganhou velocidade, arremetendo pela pista e decolando rápida e facilmente. Dentro de dez minutos eles haviam atingido os 20 mil pés e se dirigiam ao sul pelo largo canal aéreo que acolhe o tráfego mediterrâneo provindo da Inglaterra. Os urros dos jatos se reduziram a um assobio letárgico. Bond soltou o cinto de segurança e acendeu
um cigarro. Pegou a pasta esguia, de aspecto caro, no chão a seu lado, pesada demais para o seu tamanho, dela tirou A máscara de Dimitrios, de Eric Ambler, e colocou-a no assento junto ao seu. Pensou como a despachante no aeroporto de Londres teria se espantado se tivesse pesado a pasta em vez de deixá-la passar direto como “bagagem de mão”. E, se a alfândega se espantasse por acaso com seu peso, teria ficado mais intrigada ainda se a submetesse aos raios x. O setor Q preparara esta pasta de aspecto elegante, desmanchando o cuidadoso trabalho artesanal de Swaine e Adeney, para poder guardar cinquenta
balas .25 em duas fileiras achatadas, entre o couro e o forro da lombada. Em cada um de seus lados inocentes havia uma faca chata de arremessar fabricada pela Wilkinsons, os fabricantes de espadas, sendo que a parte de cima de seus cabos era engenhosamente escondida pela costura nos cantos. A despeito dos esforços que Bond fez tentando ridicularizar a sua iniciativa, os artesões da Q insistiram em fazer um compartimento secreto na alça da pasta, que, quando pressionada em um determinado ponto, largava uma cápsula de cianureto, para suicídio, na palma de sua mão. (Tão logo recebeu a pasta, Bond jogou a pílula na privada.) Mais importante era o grosso tubo de creme
de barbear Palmolive na nécessaire, que fora isso parecia tão inocente. Toda a sua parte de cima se desatarraxava revelando o silenciador da Beretta, guardado no meio de algodão. No caso de ser preciso dinheiro à vista, a tampa da pasta continha cinquenta soberanos de ouro. Estes podiam ser retirados lateralmente, torcendo-se um pedaço do debrum. Aquela complicada mixórdia de truques divertiu Bond, embora também fosse obrigado a confessar que, apesar de seus três quilos e seiscentos gramas, a pasta era uma maneira conveniente de carregar as ferramentas de seu ofício, que de outro modo teriam de ser
escondidas junto ao corpo. O avião carregava somente uma dúzia de passageiros de vários tipos. Bond sorriu diante do horror que Loelia Ponsonby sentiria se soubesse que com ele a lotação perfazia treze. No dia anterior, quando deixara M e voltara à sua sala para organizar os detalhes de seu voo, sua secretária protestara violentamente contra a ideia de viajar na sexta-feira, treze. “Mas é sempre melhor viajar no dia treze”, explicara pacientemente Bond. “Praticamente não há passageiros, é mais confortável e o serviço é melhor. Sempre que posso escolho o dia treze.” “Bem”, ela dissera, resignada, “o enterro é seu. Mas passarei a manhã me
preocupando com você. E, pelo amor de Deus, não vá passar debaixo de escadas ou fazer qualquer outra besteira hoje à tarde. Não deve desafiar sua sorte assim. Não sei por que você vai à Turquia, nem quero saber. Mas tenho uma intuição cá com meus botões.” “Ah, esses belos botões!” Bond implicara com ela. “Vou levá-los para jantar na noite em que eu voltar.” “Não fará nada deste tipo”, dissera, friamente. Mais tarde o beijara com súbita ternura, e Bond pensou pela centésima vez por que razão se preocupava com outras mulheres, quando a mais encantadora delas era sua secretária.
O avião avançava assobiando ininterruptamente acima de um oceano infindável de nuvens de creme chantilly, que pareciam bastante sólidas para que pousasse em caso de pane nos motores. As nuvens se dissiparam e uma névoa azul, bem longe à esquerda, era Paris. Voaram alto durante uma hora acima dos campos ressequidos da França até que, depois de Dijon, a terra mudou, de verde-claro para verde mais escuro, à medida que subiam para os Juras. Chegou o almoço. Bond pôs de lado o livro e os pensamentos que teimavam em se interpor entre ele e a página impressa e, enquanto comia, olhava para o espelho frio do Lago Genebra embaixo.
À medida que as florestas de pinheiros começava a subir em direção às manchas de neve entre os belos dentes limpos dos Alpes, lembrava-se de antigas férias esquiando. O avião ladeou o grande dente canino do Montblanc, a algumas centenas de metros a bombordo, e Bond olhou para o couro de elefante encardido, cinza sujo, das geleiras embaixo, lembrando-se dele mesmo, quando adolescente, com a ponta superior da corda em volta da cintura, se apoiando com força no topo de uma chaminé de pedra nas Aiguilles Rouges, enquanto seus dois companheiros da Universidade de Genebra escalavam palmo a palmo a rocha lisa em sua direção.
E agora? Bond sorriu de esguelha para seu reflexo no vidro temperado quando o avião fez uma volta, saindo das montanhas para sobrevoar os terraços, lembrando gorgorão, da Lombardia. Se este jovem James Bond se aproximasse de sua versão mais velha na rua e lhe falasse, será que reconheceria nele o jovem puro e vigoroso que ele havia sido aos dezessete anos? E o que pensaria o jovem do agente secreto, o James Bond mais velho? Será que se reconheceria sob aquele homem vincado por anos de traições, crueldade e medo — este sujeito com o olhar frio e arrogante, a cicatriz na face e o volume achatado
debaixo da axila esquerda? Se o jovem o reconhecesse, qual seria o seu juízo? O que pensaria da missão atual de Bond? O que pensaria do audaz agente secreto que partia para o outro lado do mundo para desempenhar um papel novo e ultrarromântico — bancar o gigolô para a Inglaterra? Bond afastou da mente o pensamento sobre sua juventude perdida. Jamais trabalhe olhando para trás. O que poderia ter sido é uma perda de tempo. Siga o seu destino e se satisfaça com ele, se satisfaça de não ser um vendedor de carros usados ou um jornalista da imprensa marrom conservado em álcool e nicotina, ou um aleijado — ou um morto.
Olhando como Gênova se alastrava, encharcada de sol embaixo, e para o belo mar azul do Mediterrâneo, Bond fechou sua cabeça ao passado e focou-a no futuro imediato — na sua tarefa de, como a descrevia amargamente para si mesmo, “bancar o gigolô para a Inglaterra”. Porque era isso, a despeito de como outra pessoa poderia descrevê-lo, o que ele estava prestes a fazer — seduzir, e seduzir muito depressa, uma garota que nunca vira, cujo nome ouvira falar pela primeira vez no dia anterior. E, por enquanto, sua beleza era irrelevante — o chefe da T a descrevera como sendo “muito bonita” —, pois toda a atenção
de Bond não podia se concentrar no que ela era, e sim no que ela possuía, no dote que a acompanhava. Seria como tentar se casar com uma mulher rica por causa de seu dinheiro. Seria capaz de desempenhar este papel? Talvez soubesse fazer as caras e dizer as coisas certas, mas será que seu corpo se dissociaria de seus pensamentos íntimos e se comportaria de fato em consonância com o amor que ele proclamava? Como é que os homens podiam demonstrar credibilidade na cama quando suas cabeças estavam totalmente concentradas no saldo bancário da mulher? Talvez houvesse um estímulo erótico na noção de se estar violando um baú de ouro. Mas um decodificador?
Elba passou debaixo deles e o avião entrou no seu voo planado de oitenta quilômetros em direção a Roma. Meia hora entre os alto-falantes tagarelas do aeroporto de Ciampino, tempo de beber dois excelentes Americanos, e eles estavam de novo a caminho, voando regularmente rumo à ponta da bota da Itália, enquanto a mente de Bond voltou a repassar os mínimos detalhes do encontro que se aproximava a quatrocentos e oitenta quilômetros por hora. Seria tudo uma trama complicada da MGB, cuja chave ele não conseguia encontrar? Estaria caminhando para uma armadilha qualquer que nem a mente
ardilosa de M podia conceber? Deus sabe que M estava preocupado com a possibilidade de uma armadilha assim. Todos os ângulos concebíveis dessa possibilidade, os prós e os contras, haviam sido analisados — não apenas por M, mas por uma reunião operacional completa dos chefes das seções, que haviam tratado disso durante toda a tarde e noite anteriores. Porém, não importa como abordavam este caso, ninguém conseguiu sugerir o que os russos ganhariam com isso. Poderiam querer sequestrar Bond e interrogá-lo. Mas por que Bond? Era um agente operacional, desligado do funcionamento do serviço como um todo, que não trazia na cabeça nada de
utilidade para os russos, com exceção dos detalhes de sua atual tarefa e certa informação de fundo que não era vital. Ou podiam querer matar Bond, como um gesto de vingança? No entanto, ele não os enfrentava havia dois anos. Se quisessem matá-lo, bastava alvejá-lo nas ruas de Londres, no seu apartamento, ou colocar uma bomba em seu carro. Os pensamentos de Bond foram interrompidos pela aeromoça: “Afivelem os cintos, por favor.” Mal acabara de falar, o avião perdeu altura de maneira estonteante e voltou a subir com uma expressão medonha de esforço no gemido dos jatos. O céu lá fora ficou negro de repente. A chuva martelava as
janelas. De repente viu-se um clarão azul e branco ofuscante, seguido de um trovão, como se a bala de um canhão antiaéreo os houvesse atingido, e o avião prosseguiu sacolejando e balançando no meio de uma tempestade elétrica que os emboscara, vinda da entrada do Adriático. Bond sentiu o cheiro de perigo. É de fato um cheiro, algo como a mistura de suor e eletricidade que a gente sente em um parque de diversões. Um raio estendeu novamente as mãos ao longo das janelas. Cresh! Parecia que estavam no centro do trovão. De repente o avião dava a impressão de ser incrivelmente frágil e pequeno. Treze passageiros! Sexta-feira, treze! Bond pensou nas
palavras de Loelia Ponsonby e sentiu as mãos úmidas nos braços da cadeira. Qual é a idade desse avião?, especulou. Quantas horas de voo? Será que o cupim da fadiga metálica penetrara nas suas asas? Quanto de sua resistência eles já haviam comido? Talvez ele não chegasse a Istambul, afinal. Talvez uma queda vertical no Golfo de Corinto fosse o destino que ele estivera esquadrinhando filosoficamente havia apenas uma hora. No âmago de Bond existia um abrigo de furacão, o tipo de refúgio que se encontrava em casas antigas nos trópicos. Esses abrigos são pequenas celas construídas de modo resistente no
centro das casas, no meio do térreo e às vezes escavadas entre as fundações. Era para este abrigo que o dono e sua família se recolhiam se a tempestade ameaçasse destruir a casa, e lá ficavam até o perigo passar. Bond só se recolhia ao seu abrigo de furacão quando a situação escapava do controle e não havia alternativa possível. Mas agora ele se recolheu a este refúgio, fechou sua mente para o barulho infernal e os movimentos bruscos, concentrando-a em um único ponto da costura do assento na sua frente, esperando com nervos relaxados por aquilo que o destino decidiria quanto ao voo 130 da BEA. Quase de imediato, clareou na cabine. A chuva parou de bater com força na
janela e o ruído das turbinas voltou ao seu assobio imperturbável. Bond abriu a porta de seu abrigo de furacão e saiu. Voltou a cabeça, olhou curioso pela janela e viu a pequena sombra do avião correndo em cima do mar calmo do Golfo de Corinto. Deu um profundo suspiro e enfiou a mão no bolso do lado para pegar sua cigarreira de metal. Ficou satisfeito ao ver que suas mãos estavam cem por cento firmes quando tirou o isqueiro e acendeu um dos cigarros Morland, com os três anéis de ouro. Deveria contar a Lil que ela quase teve razão? Resolveu que o faria se conseguisse achar um cartão-postal bastante pitoresco em Istambul.
O dia lá fora esmaecia, passando pela gama de cores de um golfinho ao morrer, e o Monte Himettus surgiu de repente, azul, no crepúsculo. Desceram sobre a extensão cintilante de Atenas, e logo em seguida o Viscount já estava rodando sobre a pista de pouso de concreto, com sua biruta arriada e os avisos nos estranhos caracteres dançantes que Bond raramente tornara a ver desde o colégio. Bond desembarcou do avião junto com um punhado de passageiros pálidos e calados, foi até o saguão e o bar. Pediu uma dose de Ouzo, bebeu e rebateu com um gole de água gelada. Sob o gosto enjoativo de anis havia um travo forte, e Bond sentiu que a bebida
acendia um pequeno fogo que descia pela garganta até o estômago. Largou o copo e pediu outro. Quando os alto-falantes o chamaram de novo já era noite e a meia-lua singrava alta e clara acima das luzes da cidade. O ar estava doce com o perfume de flores e ouviam-se o ritmo regular das cigarras — zing-zing-zing-zing — e o som distante de um homem cantando. A voz era nítida e triste, e era uma canção lamurienta. Perto do aeroporto um cão latia nervoso devido a um cheiro humano desconhecido. Bond percebeu, de súbito, que chegara ao Oriente, onde os cães de guarda uivam à noite. Por algum motivo, esta percepção o fez sentir uma pontada de prazer e
entusiasmo no coração. Só restava um voo de noventa minutos até Istambul, atravessando o Egeu e o Mar de Mármara. Um jantar excelente, com dois dry martínis e meia garrafa de Clarete Calvet, afastou da mente de Bond as reservas sobre voar na sexta, treze, e suas preocupações sobre a missão, substituindo-as por uma agradável expectativa. Não demoraram a chegar, e as quatro hélices do avião pararam no aeroporto moderno de Yessilkoy, a uma hora de carro de Istambul. Bond se despediu, agradecendo à aeromoça pelo bom voo, carregou sua pesada pasta durante a vistoria dos passaportes na alfândega e
ficou esperando que sua mala chegasse do avião. Então aqueles funcionários pequenos, morenos e feios eram os turcos modernos? Ouviu suas vozes cheias de vogais abertas, sibilantes e comedidas e sons alterados de u, e observou seus olhos que desmentiam as vozes suaves e polidas. Eram olhos brilhantes, zangados, cruéis, que tinham descido havia pouco das montanhas. Bond acreditava saber a história desses olhos. Eles haviam sido treinados há séculos para observar os carneiros e decifrar pequenos movimentos em horizontes distantes. Eram olhos que mantinham o cabo da faca sempre em vista, sem parecer que o faziam, que contavam
cada miligrama de cereal e as pequenas frações das moedas, e notavam o movimento rápido da mão do comerciante. Eram olhos duros, desconfiados, ciumentos. Bond não simpatizava com eles. Do lado de fora da alfândega um sujeito alto e magro, com bigodes caídos, surgiu da escuridão. Trajava um elegante uniforme e um chapéu de motorista. Fez uma saudação e, sem perguntar o nome de Bond, pegou sua valise e foi andando em frente até um velho sedã Rolls-Royce Coupé-de-ville preto, com trabalho de cestaria, que Bond adivinhou ter sido fabricado para algum milionário dos anos vinte – um
cintilante aristocrata entre os automóveis. Quando o carro deixou o aeroporto como se estivesse planando, o sujeito se virou e disse educadamente sobre seu próprio ombro, em excelente inglês: “Kerim Bey achou que o senhor talvez preferisse descansar esta noite. Devo buscá-lo amanhã às nove horas. Em que hotel ficará?” “No Kristal Palas.” “Muito bem.” O carro seguiu como uma brisa pela estrada moderna e larga. Atrás deles, no estacionamento do aeroporto manchado de sombras, Bond ouviu o barulho do arranque de uma motoneta. Como o barulho não lhe dizia nada, recostou-se no banco para
desfrutar a viagem.
14. DARKO KERIM
James Bond acordou cedo no seu quarto infecto do Kristal Palas, na elevação de Pera, e, distraído, levou a mão à parte externa da coxa direita para examinar uma coceira aguda. Algo o havia picado durante a noite. Irritado, ele coçou o local. Deveria ter esperado por aquilo. Quando chegara na noite anterior, ao ser recebido por um porteiro carrancudo em mangas de camisa, e ter examinado rapidamente o saguão de entrada com as palmeiras carcomidas nos vasos de
cobre, e o piso e as paredes de azulejos mouriscos desbotados, adivinhara o que o esperava. Teve a ideia de ir para outro hotel. A inércia e o gosto perverso pela atmosfera de decadência romântica dos velhos hotéis europeus o fizeram resolver ficar, e ele se registrara e seguira o sujeito até o terceiro andar no antigo elevador de grade. Seu quarto, com poucos móveis velhos e cama de ferro, era conforme ele havia esperado. Olhou apenas para ver se havia manchas de sangue de percevejos esmagados no papel de parede atrás da cabeceira, antes de dispensar o porteiro. Fora precipitado. Quando foi ao banheiro e abriu a torneira de água
quente, esta deu um profundo suspiro, depois uma tossida rabugenta, e finalmente cuspiu uma pequena centopeia na pia. Bond se livrou lentamente dela com o jato fino de água marrom da torneira de água fria. Bem feito, refletira tristemente, quem mandou escolher um hotel porque achara o nome divertido e quisera ficar distante da boa vida dos grandes hotéis. Mas dormira bem, e agora, com a ressalva de que precisava comprar um inseticida, resolveu esquecer seu conforto e começar o dia. Bond saiu da cama, puxou as pesadas cortinas de veludo, encostou-se na balaustrada de ferro e contemplou um
dos panoramas mais famosos do mundo — à sua direita, as águas calmas do Chifre de Ouro; à sua esquerda, as ondas revoltas do mar aberto do Bósforo; e entre elas, os telhados lançantes, os minaretes arrojados e as mesquitas atarracadas de Pera. Afinal de contas, fora boa a sua opção. A vista compensava os muitos percevejos e o grande desconforto. Durante dez minutos Bond ficou olhando para o braço de mar cintilante entre a Europa e a Ásia. Em seguida, voltou para o quarto, agora claro com a luz do sol, e telefonou para pedir o café da manhã. Não compreenderam o seu inglês, mas seu francês finalmente funcionou. Tomou um banho frio,
barbeando-se com água fria, na esperança de que o café da manhã exótico que pedira não se revelasse um fiasco. Não ficou decepcionado. O iogurte, em uma terrina de porcelana azul, era amarelo-escuro e tinha a consistência de creme grosso. Os figos, já descascados, estouravam de maduros, e o café turco era preto como azeviche, com aquele gosto queimado que era sinal de ter sido recém-moído. Bond comeu a refeição deliciosa em uma mesa levada para perto da janela aberta. Observou os vapores e os caíques cruzando para lá e para cá, os dois mares que se estendiam diante dele, e ficou imaginando Kerim e
as notícias recentes que poderia dar. Pontualmente às nove, o Rolls Royce elegante veio buscá-lo e o levou pela Praça Taksim, descendo a apinhada Istiklal e saindo da Ásia. A grossa fumaça negra dos vapores à espera, ostentando o emblema das elegantes âncoras cruzadas da Marinha Mercante, se espalhava pelo primeiro vão da Ponte de Gálata, escondendo a outra margem em cuja direção o Rolls abria caminho entre os bondes e as bicicletas, mal afastando os pedestres de sob as suas rodas com o toque educado da velha buzina de borracha. Em seguida, o tráfego ficou desimpedido, e o velho setor europeu de Istambul podia ser visto a brilhar no final da larga ponte de
oitocentos metros, com os minaretes esguios lancetando o céu, e os domos das mesquitas, como seios grandes e firmes, aos seus pés. Era um ambiente das Mil e Uma Noites, mas, para Bond, que o viu primeiro por cima dos tetos dos bondes e das grandes cicatrizes criadas pelos cartazes de propaganda modernos ao longo da beira do rio, ele pareceu um belo e antigo cenário dramático que a Turquia moderna havia descartado em favor do edifício de concreto armado do Istambul-Hilton Hotel, que brilhava inexpressivamente às suas costas, na parte alta de Pera. Tendo atravessado a ponte, o carro tomou a direita, descendo por uma rua
estreita de paralelepípedos rente ao cais, e parou diante de uma portecochère de madeira. Um segurança de aspecto forte, com um rosto grosseiro e sorridente, vestido de cáqui puído, saiu de uma casinhola e os saudou. Abriu a porta do carro e fez um gesto para que Bond o seguisse. Foi na frente, mostrando o caminho, passando por sua casinhola e atravessando uma porta que dava para um pequeno pátio de cascalho bemvarrido. No meio havia um eucalipto retorcido, ao pé do qual dois pombos brancos bicavam o chão. O barulho da cidade era um ronco distante; ali era tranquilo e silencioso. Caminharam pelo cascalho, passaram
por outra pequena porta e Bond se viu na extremidade de um grande armazém arqueado com altas janelas circulares, pelas quais entravam raios empoeirados de sol que recaíam de viés sobre um cenário de pacotes e fardos de mercadorias. Pairava no ar um aroma fresco e úmido de café e especiarias, e, ao seguir o vigia pela passagem central, Bond foi envolto pelo súbito e forte cheiro de menta. No final do longo armazém havia um estrado cercado de uma balaustrada. Nele, meia dúzia de moças e rapazes, sentados em bancos altos, escreviam, compenetrados, em gordos e antiquados livros de escrituração. Parecia o
escritório de um guarda-livros da época de Dickens, e Bond notou que em todas as escrivaninhas altas havia um ábaco bem gasto ao lado do tinteiro. Nenhum dos escriturários levantou os olhos quando Bond passou entre eles, porém, um sujeito alto e moreno, de rosto magro e espantosos olhos azuis, se adiantou da escrivaninha mais distante e veio tirá-lo das mãos do vigia. Depois de dar um sorriso caloroso para Bond, mostrando uma fileira de dentes extremamente brancos, conduziu-o até os fundos do estrado, onde bateu em uma bela porta de mogno com uma fechadura Yale e, sem esperar resposta, abriu-a, admitindo Bond e fechando a porta com cuidado. “Ah, meu amigo. Entre. Entre.” Um
sujeito enorme em um terno creme de tussor muito bem-cortado se levantou de uma escrivaninha de mogno e veio a seu encontro, de mão estendida. Um vestígio de autoridade por trás da voz alta e amistosa lembrou a Bond que esse era o chefe da Estação T, e que ele estava em território alheio e juridicamente sob seu comando. Não era simples etiqueta, e sim uma questão que devia ser lembrada. Darko Kerim tinha um aperto de mão maravilhosamente seco e quente. Um aperto ocidental de dedos vivos — nada do aperto mole como casca de banana do Oriente, que nos faz querer secar os dedos nas abas do casaco. E a mão
grande tinha uma força recolhida que insinuava a capacidade de poder apertar a nossa com cada vez mais força, até finalmente quebrar os ossos. Bond tinha um metro e oitenta e três, mas aquele sujeito era pelo menos uns treze centímetros mais alto, dando a impressão de ser duas vezes mais largo e corpulento do que Bond. Quando este levantou o olhar, encontrou dois olhos sorridentes e azuis, bem separados, em um grande rosto liso e moreno com um nariz adunco. Os olhos eram aquosos e levemente injetados, como os olhos de um cão que se deita com demasiada frequência perto do fogo. Bond viu neles a imagem de uma intensa devassidão. Com seu rosto feroz, orgulhoso,
cabelos negros grossos e cacheados, e o nariz adunco, lembrava vagamente um tipo cigano. O aspecto de mercenário errante era realçado pelo pequeno e fino brinco redondo de ouro, que Kerim usava no lóbulo da orelha direita. Era um rosto espantosamente dramático, vital, cruel, dissoluto, porém, mais notável por irradiar vida do que pela sua dramaticidade. Bond pensou que nunca vira tanta vitalidade e calor em um rosto humano. Era como estar perto do sol, e Bond soltou a mão forte e seca, devolvendo o sorriso de Kerim com um sentimento amistoso que raramente nutria por estranhos. “Obrigado por ter mandado o carro
me buscar ontem à noite.” “Ah!” Kerim ficou satisfeito. “Também deve agradecer a nossos amigos. Os dois lados foram lá se encontrar com você. Sempre seguem meu carro quando ele vai para o aeroporto.” “Foi uma Vespa ou uma Lambretta?” “Você notou? Uma Lambretta. Eles têm uma frota inteira para os seus funcionários subalternos, para os sujeitos que eu chamo ‘os sem-rosto’. Eles se parecem tanto, que jamais conseguimos identificá-los. Gangsterzinhos, em sua maior parte búlgaros vagabundos, que fazem o trabalho sujo para eles. Mas acho que aquele ali ficou bem longe. Não se
aproximam mais do Rolls desde o dia em que meu motorista parou de repente e deu ré com toda a força. Estragou a pintura e sujou de sangue a traseira do carro, mas ensinou boas maneiras ao pessoal.” Kerim foi até sua cadeira e ofereceu uma idêntica do lado oposto da escrivaninha. Empurrou uma caixa branca e achatada de cigarros em direção a Bond, que se sentou, pegou e acendeu um. Foi o cigarro mais maravilhoso que jamais havia experimentado — do mais doce e suave fumo turco, em um formato longo e oval, com um elegante crescente dourado. Enquanto Kerim encaixava um deles
em uma longa piteira de marfim manchada de nicotina, Bond aproveitou a oportunidade para olhar em volta da sala, que tinha um cheiro forte de tinta e de verniz, como se tivesse sido recémreformada. Era grande, quadrada e forrada de lambris de mogno polido, exceto pela parede atrás da cadeira de Kerim, coberta por uma tapeçaria oriental que pendia do teto e se mexia delicadamente na brisa, como se houvesse uma janela aberta por trás. Embora fosse improvável, já que a luz entrava por três janelas circulares no alto das paredes. Talvez, encoberto pela tapeçaria, houvesse um balcão dando para o Chifre de Ouro, cujas ondas Bond podia ouvir
batendo na amurada logo abaixo. No centro da parede da direita pendia uma reprodução do retrato que Annigoni fez da Rainha. Do lado oposto, igualmente enquadrado de modo impressionante, o retrato que Cecil Beaton tirara de Winston Churchill na época da guerra, na sua mesa na sala do ministério, erguendo os olhos como um buldogue desdenhoso. Havia uma larga estante encostada contra outra parede e, do lado oposto, um canapé estofado de couro. No centro da sala, a grande escrivaninha com seus puxadores de latão polido, a brilhar. Sobre o tampo em desordem viam-se três porta-retratos de prata, e Bond conseguiu ver de relance o texto
gravado em cobre de duas menções honrosas em despachos, e a Divisão Militar da OBE. Kerim acendeu seu cigarro. Jogou a cabeça para trás em direção à tapeçaria. “Nossos amigos me fizeram uma visita ontem”, disse, casualmente. “Prenderam uma bomba magnética do lado de fora da parede. Havia sido programada para me pegar na hora em que estivesse na minha escrivaninha. Por sorte, eu tirara alguns minutos para relaxar naquele canapé ali, com uma jovem romena que ainda acredita na existência de homens que revelam segredos em troca de amor. A bomba explodiu em um momento vital. Não me deixei perturbar, mas lamento dizer que a experiência foi
demais para a garota. Quando a larguei, ela teve um ataque histérico. Acho que concluiu que eu era excessivamente violento na cama.” Gesticulou com a piteira com ar de quem se desculpava. “Mas foi uma corrida danada para ajeitar a sala a tempo de sua visita. Troquei os vidros das janelas e também dos porta-retratos. Contudo, o local ainda fede a tinta.” Kerim se recostou na cadeira. Fez uma leve careta. “O que eu não consigo entender é este súbito rompimento da paz. Vivemos juntos de modo muito amigável em Istambul. Precisamos todos fazer nosso trabalho. É inimaginável que meus chers collègues declarem guerra assim, de
repente. É muito preocupante. Essa história só pode encrencar nossos amigos russos. Serei obrigado a aplicar um corretivo no sujeito que fez isso, quando descobrir seu nome.” Kerim sacudiu a cabeça. “É tudo muito confuso. Espero que não tenha nada a ver com esse seu caso.” “Mas era mesmo necessário tornar tão pública a minha chegada?”, Bond perguntou delicadamente. “A última coisa que eu quero é envolver você nesta coisa toda. Por que mandou o Rolls para o aeroporto? Só serviu para eles me ligarem a você.” A risada de Kerim foi indulgente. “Meu amigo, devo explicar algo que você precisa saber. Nós, os russos e os
americanos temos um sujeito a soldo em todos os hotéis. Também subornamos um funcionário do quartel-general do Serviço Secreto e recebemos uma cópia em carbono da lista de todos os estrangeiros que entram no país, todo dia, pelo ar, por trem, pelo mar. Se me fossem dados alguns dias, eu poderia ter contrabandeado você através da fronteira grega. Mas para quê? Sua existência aqui precisa ser conhecida pelo lado adversário para que nossa amiga faça contato. Foi uma condição imposta por ela, a de fazer seu próprio arranjo para o encontro. Talvez não confie na nossa segurança. Quem sabe? Mas ela foi positiva a este respeito e
disse, como se eu não soubesse, que o seu departamento seria imediatamente avisado de sua chegada.” Kerim sacudiu os ombros largos. “Então, para que dificultar as coisas para ela? Estou apenas preocupado em facilitar e tornar as coisas confortáveis para que você pelo menos aprecie sua estada — mesmo que seja infrutífera.” Bond riu. “Retiro tudo. Já tinha me esquecido do estilo dos Bálcãs. Aliás, estou sob suas ordens aqui. Diga-me o que fazer e o farei.” Kerim mudou de assunto: “E agora, já que estamos falando do seu conforto, que tal o hotel? Fiquei espantado de você ter escolhido o Palas. É pouco melhor do que uma casa de tolerância —
o que os franceses chamam baisodrome. E é um ponto dos russos. Não que isso tenha importância.” “Não é tão ruim assim. Eu só não queria ficar no Istanbul-Hilton ou em qualquer dos outros lugares mais elegantes.” “Dinheiro?” Kerim enfiou a mão em uma gaveta e tirou um pacote achatado de notas verdes e novas. “Aqui estão mil libras turcas. Seu valor de fato e sua cotação no mercado negro é mais ou menos de vinte para a libra britânica. A cotação oficial é sete. Me avise quando acabarem e lhe darei mais quantas você quiser. Podemos fazer nossas contas depois de terminado o jogo. É uma
merda, de qualquer maneira. Desde que Cresus, o primeiro milionário, inventou moedas de ouro, o dinheiro perdeu valor. E a cara das moedas também foi se aviltando tão depressa quanto seu valor. Primeiro elas tinham as caras dos deuses. Depois as caras dos reis. Em seguida dos presidentes. Agora não têm absolutamente cara nenhuma. Olhe para este troço!” Kerim jogou o dinheiro para Bond. “Hoje é só papel, com um retrato de um prédio público e a assinatura do tesoureiro. Merda! O milagre é que a gente ainda consegue comprar coisas com ele. Bem. O que mais? Cigarros? Fume só estes aqui. Mandarei algumas centenas para o seu hotel. São os melhores. Diplomates. Não é fácil
arranjá-los. A maioria vai para os ministérios e as embaixadas. Mais alguma coisa antes de arregaçarmos as mangas? Não se preocupe com a comida e com o seu lazer. Cuidarei de ambos. Isto me dará prazer e, se me permite, quero permanecer por perto enquanto estiver aqui.” “Não tem mais nada”, disse Bond. “Só que você precisa vir a Londres um dia desses.” “Nunca”, disse Kerim, com firmeza. “O tempo e as mulheres são frios demais. E tenho orgulho de que você esteja aqui. Me faz lembrar a guerra. Agora”, ele tocou uma sineta na sua escrivaninha, “você gosta de seu café
amargo ou doce? Na Turquia não se pode conversar seriamente sem café ou raki, e é cedo demais para o raki.” “Amargo.” A porta atrás de Bond se abriu. Kerim gritou uma ordem. Depois que a porta se fechou, Kerim destrancou uma gaveta, tirou uma pasta e a colocou diante dele. Bateu a mão com força sobre ela. “Meu amigo”, disse, severamente, “não sei o que dizer sobre este caso”. Recostou-se na cadeira e entrelaçou as mãos na nuca. “Já lhe ocorreu que o nosso tipo de trabalho é um pouco como fazer um filme? Muitas vezes estou com todo mundo na locação e acho que já posso começar a rodar. Mas, quando não há problemas com o tempo, tem os
atores, depois os acidentes. E também tem outra coisa que acontece quando se faz um filme. O amor aparece de alguma forma ou outra e, na pior das hipóteses, como neste caso, entre dois astros. Para mim, é o fator mais confuso neste caso, o mais misterioso. Será que essa garota está mesmo apaixonada pela ideia que faz de você? Será que vai amá-lo quando o vir? Você será capaz de amála o suficiente para que ela se bandeie para o nosso lado?” Bond não fez nenhum comentário. Houve uma batida na porta e o chefe dos escriturários pôs uma xícara de porcelana casca de ovo, sustentada por um suporte de ouro filigranado, diante
de cada um e saiu. Bond sorveu o café e descansou a xícara. Estava bom, mas cheio de borra. Kerim tomou o dele de um gole, pôs um cigarro na piteira e acendeu-o. “Mas não há nada que possamos fazer sobre esta questão do amor”, continuou Kerim, um pouco para si mesmo. “Só podemos esperar e ver. Enquanto isso, há outras coisas.” Inclinou-se para a frente e, apoiado na mesa, fitou Bond com um olhar subitamente duro e malicioso. “Tem algo acontecendo no campo adversário, meu amigo. Não é só esta tentativa de acabarem comigo. Há uma movimentação. Tenho poucos fatos”, ele encostou o comprido indicador no nariz,
“mas tenho isto”. E deu um tapinha no lado do nariz como se acariciasse um cachorro: “Este aqui é um bom amigo, no qual confio.” Depois baixou a mão lenta e ostensivamente até a mesa, acrescentando em voz mais suave: “E se o prêmio não fosse tão grande, eu lhe diria: vá para casa, meu amigo. Vá para casa. Tem algo aqui do qual se deve fugir.” Kerim se recostou. Sua voz se esvaziou da tensão. Deu uma gargalhada violenta. “Mas não somos umas velhas. E este é o nosso trabalho. Por isso, vamos esquecer o meu nariz e tratar de botar mãos à obra. Antes de tudo, há alguma coisa que eu possa lhe contar
que já não saiba? A garota não deu sinal de vida desde a minha mensagem e não tenho nenhuma outra informação. Mas talvez você queira me fazer algumas perguntas sobre o encontro.” “Só há uma coisa que quero saber”, disse Bond, de modo direto. “O que acha dessa garota? Você acredita na história dela ou não? Na sua história sobre mim? Nada mais interessa. Se ela não tiver uma espécie de paixonite histérica por mim, tudo cai por terra e se trata de alguma intriga complicada da MGB que não conseguimos compreender. Então. Acreditou na garota?” Havia urgência na voz de Bond e seus olhos perscrutaram o rosto do outro.
“Ah, meu amigo…” Kerim sacudiu a cabeça e abriu os braços em um gesto largo. “Foi o que me perguntei na hora, e é o que me pergunto o tempo todo desde então. Mas quem pode dizer se uma mulher está mentindo em um assunto como este? Seus olhos brilhavam — aqueles belos e inocentes olhos. Seus lábios úmidos estavam entreabertos naquela boca celestial. A voz era ansiosa e assustada com o que ela fazia e dizia. Os nós dos dedos estavam brancos pela força com que ela apertava a balaustrada do barco. Mas o que se passava no seu coração?” Kerim ergueu as mãos. “Só Deus sabe.” Abaixou-as com resignação. Espalmou-as sobre a
escrivaninha e olhou direto para Bond. “Só há uma maneira de saber se uma mulher o ama de verdade, e mesmo isso só pode ser decifrado por quem sabe.” “Sim”, disse Bond, dubiamente. “Sei o que quer dizer. Na cama.”
15. O PASSADO DE UM ESPIÃO
Veio mais café, depois mais café, e a grande sala foi ficando turva com a fumaça de cigarro, enquanto os dois homens dissecavam cada fiapo de evidência e depois o punham de lado. No final de uma hora haviam voltado ao ponto de partida. Cabia a Bond resolver o problema dessa garota e, se a história dela o convencesse, tirá-la do país junto com o aparelho. Kerim se comprometeu a cuidar dos
problemas administrativos. Como primeiro passo, pegou o telefone e falou com seu agente de viagem, reservando dois lugares em todo avião que partisse na semana seguinte — da BEA, Air France, SAS e Turkair. “E agora você precisa de um passaporte”, disse. “Basta um. Ela pode viajar como sua mulher. Um de meus homens tirará sua fotografia e arranjará uma foto de alguma garota que se pareça mais ou menos com ela. Aliás, uma foto antiga de Garbo serviria. Há certa semelhança. Pode consegui-la nos arquivos dos jornais. Falarei com o cônsul geral. É um excelente sujeito que adora minhas pequenas tramas de capa e espada. O passaporte estará pronto até
hoje à noite. Que nome você gostaria de usar? “Tire qualquer um da cartola.” “Somerset. Minha mãe era de lá. David Somerset. Profissão, diretor de empresa. Isso não quer dizer nada. E a garota? Digamos Caroline. Ela combina com Caroline. Um casal de jovens ingleses bonitos que gosta de viajar. Declaração financeira? Deixe comigo. Oitenta libras em traveler’s checks, digamos, e um recibo do banco mostrando que você trocou cinquenta durante sua estada na Turquia. Alfândega? Não olham nada e já ficam muito satisfeitos quando alguém compra alguma coisa no país. A declarar: doces
turcos — presentes para os amigos em Londres. Se tiver que sair correndo, deixe as contas do hotel e a bagagem comigo. Eles me conhecem bem no Palas. Mais alguma coisa?” “Não consigo pensar em nada.” Kerim consultou o relógio. “Meiodia. Está bem na hora de o carro levar você de volta ao hotel. Pode haver algum recado. E examine bem as suas coisas para ver se algum curioso já não o fez.” Tocou a sineta e encheu de instruções o escriturário-chefe, que conservava o olhar atento fixo em Kerim, com a cabeça esguia inclinada ostensivamente para a frente, como um galgo. Kerim levou Bond até a porta.
Novamente deu-lhe um forte e caloroso aperto de mão. “O carro o levará para almoçar”, disse. “Um lugarzinho no Bazar de Especiarias.” Seus olhos fitaram Bond com alegria. “Fico contente de trabalhar com você. Faremos uma bela dupla.” Largou a mão de Bond. “E agora preciso fazer uma porção de coisas urgentes. Talvez coisas erradas, mas, de qualquer modo”, deu um largo sorriso, “jouons mal, mais jouons vite!” O escriturário-chefe, que parecia ser um lugar-tenente de Kerim, conduziu Bond por outra porta na parede do estrado. As cabeças continuavam abaixadas sobre os livros contábeis.
Havia uma pequena passagem, com cômodos de ambos os lados. O sujeito foi na frente e entrou em um deles, e Bond viu-se em um quarto escuro e laboratório fotográfico extremamente bem-equipados. Dentro de dez minutos já estava de novo na rua. O Rolls saiu da ruela estreita e voltou para a Ponte de Gálata. Havia um novo porteiro de serviço no Kristal Palas, um sujeitinho obsequioso, com um olhar de culpa no rosto amarelado. Saiu de trás do balcão, com as mãos abertas em sinal de desculpa. “Efendi, sinto muito. Meu colega lhe deu um quarto errado. Ninguém percebeu que o senhor é amigo de Kerim Bey. Sua bagagem foi levada para o nº 12. É o
melhor quarto do hotel. Na verdade”, sorriu, maliciosamente, “é o apartamento nupcial. Tem todo o conforto. Minhas desculpas, efendi. O outro quarto não é apropriado a visitantes ilustres”. O sujeito fez uma mesura untuosa, esfregando as mãos. Se havia algo que Bond não suportava era o ruído de suas botas sendo lambidas. Olhou bem nos olhos do porteiro, que se desviaram, e disse: “Ah. Deixe-me ver o quarto. Talvez não goste dele. Estava muito bem no outro.” “Certamente, efendi”, o sujeito fez uma mesura em direção ao elevador. “Mas, infelizmente, os encanadores já estão no seu antigo quarto. O
abastecimento d’água...”, a frase ficou incompleta. O elevador subiu cerca de três metros e parou no primeiro andar. Bem, a história dos encanadores faz sentido, pensou Bond. E mal não havia em ficar no melhor quarto do hotel. O porteiro abriu uma porta alta e recuou. Bond foi obrigado a concordar. O sol jorrava por amplas janelas duplas que davam para um pequeno balcão. Tudo era nas cores rosa e cinza, e o mobiliário composto de cópias estilo império, castigado pelos anos, mas ainda assim com toda a elegância do fim de século. Havia belos tapetes Bukhara sobre o assoalho de parquet. Um candelabro cintilante pendia do teto
ornamentado. A cama, contra a parede da direita, era enorme. Um grande espelho de moldura dourada cobria quase toda a parede atrás. (Bond achou graça. Quarto nupcial! Também deveria haver um espelho no teto.) O banheiro ao lado era azulejado e completo, inclusive com bidê e chuveiro, e os apetrechos de barbear de Bond já estavam perfeitamente arrumados. O porteiro seguiu Bond de volta ao quarto e, quando este concordou em ficar, despediu-se com gratidão e cheio de mesuras. Por que não? Bond caminhou de novo pelo quarto, desta vez examinando meticulosamente as paredes, as laterais
da cama e o telefone. Por que não ficar com ele? Será que teria microfones e portas secretas? Com que fim? Sua valise estava em cima de um banco perto de uma cômoda. Ajoelhouse. Não havia arranhões em volta da fechadura. O pedaço de felpa que colocara no fecho ainda estava ali. Abriu a valise e tirou a pequena pasta. Não havia também sinal de violação. Bond fechou a valise e se levantou. Lavou-se, saiu do quarto e desceu as escadas. Não, não havia recados para o efendi. O porteiro se curvou ao abrir a porta do Rolls. A eterna culpa naqueles olhos seria sinal de alguma conspiração? De qualquer maneira, Bond resolveu não se importar. O jogo,
fosse qual fosse, precisava ser jogado até o fim. Se a troca dos quartos havia sido o lance de abertura, tanto melhor. O jogo precisava começar em algum ponto. Enquanto o carro descia o morro velozmente, os pensamentos de Bond se voltaram para Darko Kerim. Que belo sujeito para chefiar a Estação T! Só o seu tamanho, naquele país de homenzinhos furtivos, de crescimento retardado, já lhe dava autoridade, e sua gigantesca vitalidade e amor à vida conquistavam a amizade de todo mundo. De onde surgira aquele pirata esperto e exuberante? E como viera a trabalhar para o Serviço? Era o tipo raro de sujeito que Bond apreciava e já estava
pronto a acrescentá-lo à meia dúzia de seus amigos de verdade, por quem tinha verdadeiro afeto, já que não cultivava “conhecidos”. O carro voltou pela Ponte de Gálata e parou perto das arcadas abobadadas do Bazar de Especiarias. O motorista ia à frente mostrando o caminho, subindo os degraus rasos e gastos que levavam à nuvem de perfumes exóticos, gritando pragas contra os mendigos e os carregadores cheios de sacos. Depois da entrada o motorista virou à esquerda, abandonando o fluxo daquela humanidade ruidosa, a arrastar os pés, e mostrou a Bond um pequeno arco em um muro largo. Degraus de pedra subiam em espiral como o acesso a uma torre.
“Efendi encontrará Kerim Bey no cômodo mais distante, à esquerda. Basta perguntar. Todos o conhecem.” Bond subiu as escadas frias até uma antessala onde um garçom o conduziu, sem lhe perguntar o nome, através de um labirinto de saletas abobadadas cobertas de azulejos coloridos, até onde Kerim estava sentado em uma mesa de canto por cima da entrada do bazar. Kerim o saudou com entusiasmo, brandindo um copo de líquido leitoso, onde o gelo tilintava. “Aqui está você, meu amigo! E agora um pouco de raki. Deve estar exausto depois do seu turismo.” Deu ordens rápidas ao garçom.
Bond sentou em uma cadeira de braços confortável e pegou o pequeno copo que o garçom lhe ofereceu. Ergueu-o em direção a Kerim e provouo. Era igual a ouzo. Bebeu tudo, e o garçom logo tornou a encher seu copo. “E vamos fazer os pedidos para o seu almoço. O pessoal só come bosta de vaca cozida em azeite rançoso na Turquia. Pelo menos a bosta do Misir Carsarsi é a melhor.” O garçom sorridente deu sugestões. “Ele diz que o Doner Kebab está muito bom hoje. Eu não acredito, mas pode ser. É carneiro muito novo na brasa, com arroz de especiarias. Leva muita cebola. Ou tem algo que prefere?
Um pilaff ou essa porcaria de pimentões recheados que comem aqui? Está bem, então. E é preciso começar com algumas sardinhas grelhadas em papillote. São apenas comestíveis.” Kerim provocava o garçom. Recostou-se e sorriu para Bond. “Esta é a única maneira de tratar essa gente danada. Eles adoram ser xingados e chutados. É só o que compreendem. Está no sangue. Toda essa encenação democrática os está matando. Eles querem sultões, guerras, estupros e diversão. Pobres bárbaros de ternos riscados e chapéu-coco. São uns infelizes. Basta olhá-los. Aliás, para o diabo com eles. Soube de alguma notícia?” Bond sacudiu a cabeça. Contou a
Kerim sobre a troca de quartos e a valise intocada. Kerim esvaziou um copo de raki, limpando a boca com as costas da mão. Repetiu um pensamento que Bond tivera. “Bem, o jogo precisa começar em uma hora qualquer. Eu fiz certas pequenas jogadas. Agora só nos resta esperar e ver. Faremos uma pequena incursão em território inimigo depois do almoço. Acho que vai interessá-lo. Ah, não seremos vistos. Iremos nos deslocar nas sombras, debaixo da terra.” Kerim riu de sua própria esperteza. “E agora vamos falar de outras coisas. Que achou da Turquia? Não, não quero saber. O que mais?”
Foram interrompidos pela chegada do primeiro prato. As sardinhas em papillote de Bond se pareciam com quaisquer outras sardinhas. Kerim atacou um grande prato que aparentava ser de tiras de peixe cru. Notou o olhar interessado de Bond. “Peixe cru”, disse. “Depois disso comerei carne crua e alface, e em seguida uma tigela de iogurte. Não sou novidadeiro, mas já treinei para lutador profissional. É uma boa profissão na Turquia. O público adora. E meu treinador insistia que eu comesse apenas comida crua. Peguei o hábito. Me faz bem, mas”, ele brandiu o garfo, “não acho que seja bom para todo mundo. Não ligo a mínima para o que os
outros comem, desde que gostem. Não tolero os comedores e bebedores tristes”. Kerim espetou com o garfo uma tira de peixe que rasgou com os dentes. Bebeu meio copo de raki. Acendeu um cigarro e se recostou na cadeira. “Bem”, disse com um sorriso amargo, “podemos falar sobre mim, tanto quanto sobre qualquer outro assunto. E você deve estar pensando: como é que esse sujeito maluco e grandalhão entrou para o Serviço? Vou lhe contar, mas resumidamente, porque é uma longa história. Interrompa-me se ficar entediado. Está certo?” “Ótimo.” Bond acendeu um Diplomate. Inclinou-se e se apoiou nos
cotovelos. “Sou da Trebizonda.” Kerim observou a fumaça do cigarro que subia em espiral. “Éramos uma grande família com muitas mães. Meu pai era o tipo de homem que as mulheres acham irresistível. Todas as mulheres sonham em ficar extasiadas. Em seus sonhos anseiam que algum homem as atire por cima do ombro, as leve para uma caverna e as viole. Era assim que as tratava. Meu pai era um grande pescador e sua fama se espalhara por todo o Mar Negro. Pescava peixe-espada. São difíceis de pegar e duros na luta, e ele sempre superava todos os outros pescadores na pesca desse peixe. As
mulheres gostam que seus homens sejam heróis. Ele era uma espécie de herói, em um recanto da Turquia em que a tradição manda que o homem seja forte. Um tipo de sujeito grandalhão, romântico. Por isso tinha qualquer mulher que quisesse. Ele queria todas, e às vezes matava outros homens para obtê-las. É claro que tinha muitos filhos. Vivíamos todos empilhados uns em cima dos outros em um casarão desengonçado e arruinado que nossas ‘tias’ tornavam habitável. As tias na verdade constituíam um harém. Uma delas era uma governanta inglesa de Istambul que meu pai avistara na plateia de um circo. Ele se agradou dela e ela dele, e naquela noite ele a colocou no seu barco de pesca e velejou Bósforo
acima até voltar para Trebizonda. Acho que ela nunca se arrependeu. Que se esqueceu do mundo inteiro, exceto dele. Morreu logo depois da guerra. Tinha sessenta anos. O filho antes de mim fora de uma garota italiana, que o batizara Bianco. Era claro. Eu moreno. Por isso vim a ser chamado Darko. Éramos quinze filhos e tivemos uma infância maravilhosa. Nossas tias brigavam com frequência e nós também. Era como um acampamento cigano. Mantido coeso pelo meu pai, que nos batia, mulheres ou crianças, quando nos tornávamos insuportáveis. Mas era bom conosco quando éramos tranquilos e obedientes. Não consegue entender uma família
assim, não é?” “Tal como a descreve, consigo, sim.” “De qualquer maneira, era desse jeito. Cresci e me tornei um sujeito quase tão grande como meu pai, porém, mais instruído. Minha mãe cuidou disso. Meu pai só nos ensinava a ser limpos, ir ao banheiro uma vez por dia e jamais sentir vergonha de nada neste mundo. Minha mãe também me ensinou a ter carinho pela Inglaterra, mas isso foi um detalhe. Ao chegar aos vinte anos, eu já tinha meu barco e ganhava dinheiro. Mas era danado. Abandonei o casarão e fui morar em dois pequenos quartos à beiramar. Queria ter muitas mulheres em um local que minha mãe não soubesse. Sofri um golpe de azar. Tive uma gata
selvagem da Bessarábia. Eu a ganhei em uma briga com uns ciganos, aqui nos morros atrás de Istambul. Eles vieram me pegar, mas eu a coloquei no barco. Antes, fui obrigado a deixá-la inconsciente. Ela ainda tentava me matar quando voltamos para Trebizonda, por isso, a levei para minha casa, tirei todas as suas roupas e a deixei acorrentada e nua, debaixo da mesa. Quando comia, costumava jogar pedaços de comida para ela, debaixo da mesa, como se faz com um cachorro. Ela precisava aprender quem era o senhor. Antes que isto acontecesse, minha mãe fez algo inimaginável. Visitou minha casa sem avisar. Veio me dizer que meu pai
queria me ver imediatamente. Encontrou a garota. Minha mãe ficou realmente furiosa comigo pela primeira vez na vida. Furiosa? Ela estava fora de si. Eu era um vagabundo que ela tinha vergonha de chamar de filho. A garota precisava ser levada imediatamente de volta a seu pessoal. Minha mãe trouxe de casa algumas de suas próprias roupas. A garota as vestiu, mas, quando chegou a hora, recusou-se a me abandonar.” Darko Kerim deu uma enorme gargalhada. “Uma lição interessante de psicologia feminina, meu caro amigo. Aliás, o problema da garota é outra história. Enquanto minha mãe cuidava dela e só recebia xingamentos ciganos, eu tinha uma entrevista com
meu pai, que não tinha ouvido falar nada disso, e nunca ouviu. Minha mãe era assim. Havia outro sujeito com meu pai, um inglês, alto, calado, com um tapaolho negro em uma vista. Falavam sobre os russos. O inglês queria saber o que eles estavam fazendo ao longo da fronteira, o que acontecia em Batoum, sua grande base petrolífera e naval só distante oitenta quilômetros da Trebizonda. Ele pagaria bem pela informação. Eu sabia inglês e russo. Tinha boa visão e audição. Tinha um barco. Meu pai resolvera que eu trabalharia para o inglês. E esse inglês, meu caro amigo, era o Major Dansey, meu antecessor como chefe da Estação.
E o resto”, Kerim fez um amplo gesto com a piteira, “você pode imaginar”. “E quanto ao treinamento para ser lutador profissional?” “Ah”, disse Kerim, com malícia, “isso foi apenas uma fachada. Nossos artistas de circo ambulantes são os únicos turcos que eles deixam passar pela fronteira. Os russos são incapazes de viver sem circos. Foi simples assim. Eu era o sujeito que arrebentava as correntes e levantava pesos por uma corda segura pelos dentes. Enfrentava os lutadores locais nas aldeias russas. E alguns daqueles georgianos são gigantes. Felizmente, gigantes burros, e eu quase sempre os vencia. Depois, enquanto bebíamos, havia muita conversa e
boatos. Bancava o bobo e fingia não compreender. De vez em quando fazia uma pergunta inocente e eles riam da minha burrice, mas me davam a resposta”. Chegou o segundo prato, acompanhado de uma garrafa de Kavaklidere, um borgonha encorpado e rascante como qualquer outro vinho balcânico. O kebab estava bom e tinha gosto de gordura de bacon defumada e cebolas. Kerim comeu uma espécie de Steak Tartare — um grande hambúrguer achatado de carne crua bem moída, temperada com pimentão e cebolinha e unido com gema de ovo. Fez Bond experimentar um pouco no garfo. Estava
delicioso. Foi o que disse Bond. “Devia comer isso todo dia”, disse Kerim a sério. “É bom para quem deseja amar muito. Há certos exercícios que você devia fazer com o mesmo objetivo. Essas coisas são importantes para os homens. Ou, pelo menos, para mim. Tal como meu pai, consumo uma grande quantidade de mulheres. Mas, ao contrário dele, eu também fumo e bebo demais, e essas coisas não combinam com a atividade amorosa. Nem este trabalho que faço. Tensão demasiada, demasiado raciocínio. Leva sangue à cabeça, em vez de levá-lo para o lugar adequado à atividade amorosa. Mas tenho fome de viver. Faço coisas demais o tempo todo. Algum dia meu coração
vai parar de repente. O Caranguejo de Ferro me pegará, como pegou meu pai. Mas não temo o Caranguejo. Pelo menos terei morrido de uma doença respeitável. Talvez gravem este epitáfio no meu túmulo: ‘Este homem morreu de tanto viver.’” Bond riu. “Não vá tão cedo, Darko”, disse. “M ficaria muito zangado. Ele tem você em alta conta.” “Tem?” Kerim perscrutou o rosto de Bond para ver se ele estava contando a verdade. Riu, encantado. “Neste caso, não deixarei que o Caranguejo leve meu corpo ainda.” Consultou o relógio. “Venha, James”, disse. “Foi bom ter lembrado o meu dever. Tomaremos café
no escritório. Não há muito tempo a perder. Todo dia, às 14h30, os russos reúnem seu conselho de guerra. Hoje, você e eu lhes daremos a honra da nossa presença às suas deliberações.”
16. O TÚNEL DOS RATOS
De volta ao escritório fresco, enquanto esperavam o inevitável café, Kerim abriu um armário na parede e tirou vários macacões azuis usados em obras. Kerim ficou de cuecas e vestiu um dos macacões, calçando a seguir botas de borracha. Bond pegou um macacacão e botas mais ou menos do seu tamanho, e fez o mesmo. Junto com o café, o escriturário-chefe trouxe duas potentes lanternas, que colocou na escrivaninha.
Depois que ele saíra da sala, Kerim disse: “É um dos meus filhos — o mais velho. Todos os outros ali são meus filhos. O motorista e o vigia são meus tios. Nada como o mesmo sangue para garantir a segurança. E esse negócio de especiarias é uma boa fachada para todos nós. Foi M quem bancou o negócio. Falou com seus amigos financistas em Londres. Hoje sou o maior negociante de especiarias da Turquia. Há muito já paguei o investimento. Meus filhos são sócios do negócio. Levam uma boa vida. Quando há alguma tarefa secreta a ser feita e preciso de ajuda, escolho o filho mais adequado. Todos receberam treinamento
em várias atividades de espionagem. São corajosos e inteligentes. Alguns já mataram por minha causa. Todos morreriam por mim — e por M. Ensineilhes que abaixo de Deus está M.” Kerim fez um gesto de pouco caso. “Mas isso é só para lhe dizer que você está em boas mãos.” “Não imaginava outra coisa.” “Há!”, disse Kerim, displicentemente. Pegou as lanternas e entregou uma a Bond. “E agora ao trabalho.” Kerim foi até a grande estante envidraçada e enfiou a mão por trás dela. Ouviu-se um estalido, e a estante deslizou silenciosamente ao longo da parede da esquerda. Atrás dela havia uma pequena porta, rente à parede.
Kerim apertou um lado da porta e esta se abriu para dentro, revelando um túnel escuro com uma escadaria de pedra que descia abruptamente. Um cheiro de umidade, misturado ao ligeiro fedor de zoológico, invadiu a sala. “Vá você primeiro,” disse Kerim. “Desça a escada até embaixo e espere. Preciso dar um jeito na porta.” Bond ligou sua lanterna, passou pelo vão da porta e desceu com cuidado as escadas. A luz da lanterna revelou um trabalho recente de alvenaria e, sete metros mais abaixo, o brilho de água. Quando Bond chegou ao fundo, viu que o brilho era de um pequeno riacho, que corria por uma vala central no piso de
um antigo túnel revestido de pedra, subindo bem inclinado para a direita. À esquerda, o túnel prosseguia descendo, para emergir, segundo adivinhou, debaixo da superfície do Chifre de Ouro. Fora do alcance da luz de sua lanterna ouvia-se um ruído constante e abafado, um reboliço, e centenas de pontinhos vermelhos brilhavam e se moviam na escuridão. Tanto para a direita quanto para a esquerda. A vinte metros de distância, de ambos os lados, milhares de ratos olhavam para Bond. Farejavam seu cheiro. Bond imaginou seus bigodes a se erguer ligeiramente em cima da boca. Imaginou, por um instante, o que fariam se a lanterna se apagasse.
Kerim surgiu de repente a seu lado. “É uma longa subida. Quinze minutos. Espero que você goste de animais”, a risada de Kerim fez um eco túnel abaixo. Os ratos buliram, espantados. “Infelizmente, não há muita alternativa. Ratos e morcegos. Esquadrões deles, divisões — toda uma força aérea e um exército. E precisamos empurrá-los à nossa frente. Lá pelo final da subida a coisa fica congestionada. Vamos começar. O ar é bom. Nos dois lados do riacho o piso é seco. Mas no inverno chegam as enchentes e precisamos usar roupas de mergulho. Mantenha a luz de sua lanterna nos meus pés. Se algum morcego se enredar no seu cabelo, bata
até ele sair. Não será frequente. O radar deles é excelente.” Iniciaram a subida íngreme. O fedor dos ratos e de excremento de morcego era intenso — uma mistura de jaula de macaco com galinheiro. Bond pensou que levaria dias para se livrar dele. Pencas de morcegos pendiam do teto como cachos de uvas murchas e quando, vez ou outra, a cabeça de Bond ou de Kerim as roçava, elas explodiam aos guinchos na escuridão. À frente deles, uma floresta de pontinhos vermelhos, guinchantes e buliçosos, engrossava dos dois lados da vala central, à medida que subiam. De vez em quando Kerim jogava a luz de sua lanterna adiante, e ela iluminava uma área cinzenta,
ponteada de dentes e bigodes faiscantes. Quando isto acontecia, um novo frenesi percorria os ratos, e os mais próximos subiam nas costas uns dos outros para fugir. Durante o tempo todo, os corpos cinzentos engalfinhados desciam pela valeta central e, à medida que a massa mais à frente ficava mais comprimida, a retaguarda enfurecida se aproximava. Os dois homens mantiveram suas lanternas apontadas como armas para a retaguarda até que, depois de uma boa subida de quinze minutos, alcançaram seu destino. Era uma profunda alcova de tijolos recém-assentados construída na parede lateral do túnel. Havia dois bancos de
cada lado de um objeto embrulhado em uma pesada lona impermeável, que descia do teto da alcova. Entraram. Mais alguns metros de subida, pensou Bond, e a massa de milhares de ratos mais distantes no túnel teria sido presa de histeria coletiva. A horda teria se virado. Lutando por mais espaço, os ratos desafiariam as luzes e se lançariam contra os dois intrusos, a despeito dos dois focos ofuscantes e do cheiro ameaçador. “Olhe só”, disse Kerim. Houve um momento de silêncio. Adiante no túnel os guinchos pararam, como se obedecendo a uma ordem de comando. Depois, subitamente, o túnel foi invadido por uma grande onda de
trinta centímetros de corpos cinzentos colidindo e brigando, à medida que, com um guincho agudo e constante, os ratos viravam e se lançavam ladeira abaixo. Durante alguns minutos o lustroso rio cinzento escorreu violentamente pelo lado externo da alcova até que afinal rareou e apenas um punhado de ratos doentes ou feridos passava cambaleante pelo piso do túnel. O grito da horda sumiu pouco a pouco na direção do rio, até baixar um silêncio somente interrompido pelo eventual guincho de um morcego em fuga. Kerim resmungou vagamente. “Um desses dias esses ratos começarão a morrer. Então a peste voltará a Istambul.
Às vezes me sinto culpado por não revelar este túnel às autoridades de modo que possam limpá-lo. Mas não posso enquanto os russos estiverem lá em cima.” Fez um gesto da cabeça para o teto. Consultou o relógio. “Faltam cinco minutos. Daqui a pouco estarão puxando as cadeiras e mexendo nos papéis. Dos presentes, três são permanentes, os da MGB, ou talvez um da Inteligência do Exército. E provavelmente mais três. Dois chegaram há quinze dias, um através da Grécia e o outro pela Pérsia. Outro chegou segunda-feira. Deus sabe quem são, ou o que vieram fazer aqui. E às vezes a garota, Tatiana, entra com uma mensagem e sai de novo. Tomara que
possamos vê-la hoje. Vai ficar impressionado. Ela é uma coisa.” Kerim levantou a mão e desprendeu a capa de oleado, puxando-a para baixo. Bond percebeu. A capa protegia a extremidade polida de um periscópio de submarino totalmente estendido. A umidade brilhava na graxa espessa, sobre a junta inferior exposta. Bond achou graça. “Que diabo, onde arranjou isto, Darko?” “Da Marinha turca. Excedente de guerra.” A voz de Kerim não incentivava outras perguntas. “Agora o setor Q de Londres procura uma maneira de incorporar um sistema de captação de som a esta porcaria. Não será fácil. A
lente lá em cima é do tamanho da extremidade de um isqueiro. Quando o levanto, ela chega ao nível do assoalho da sala. No canto dela, onde emerge, fizemos um pequeno buraco de rato. Um serviço bem-feito. Uma vez, quando vim dar uma olhada, a primeira coisa que vi foi uma ratoeira com um pedaço de queijo. Parecia enorme através das lentes.” Kerim deu uma breve risada. “Mas não há muito espaço para encaixar um microfone sensível ao lado da lente. E não temos muita esperança de poder entrar de novo para mexer na arquitetura deles. Só pude instalar essa coisa aí através de meus amigos do Ministério de Obras Públicas, que conseguiram despejar os russos por alguns dias. A
desculpa era que os bondes, ao subirem a ladeira, estavam abalando os alicerces dos prédios. Era preciso fazer uma vistoria. Custou-me algumas centenas de libras, que fiz chegar aos bolsos certos. O ministério vistoriou meia dúzia de casas dos dois lados desta rua e declarou que ela estava segura. A essa altura, eu e minha família havíamos terminado nossa obra. Os russos ficaram desconfiados como o diabo. Soube que eles varreram o lugar com uma escova de dentes, quando voltaram, em busca de microfones, bombas e assim por diante. Mas não podemos repetir esse expediente. A menos que o setor Q invente algo muito inteligente, tenho que
me contentar em observá-los. Um dia desses eles me revelam algo de útil. Interrogarão alguém em quem temos interesse ou algo assim.” Ao longo da haste do periscópio no teto da alcova pendia uma forma metálica arredondada, duas vezes maior que uma bola de rúgbi. “O que é isso?”, perguntou Bond. “A metade inferior de uma bomba — uma bomba grande. Se algo me acontecer, ou se estourar uma guerra com a Rússia, esta bomba será deflagrada por controle remoto do meu escritório. É triste [Kerim não parecia triste], mas lamento dizer que muita gente inocente morrerá, além dos russos. Quando o sangue ferve, o homem é tão
pouco seletivo quanto a natureza.” Kerim estivera polindo as lentes dos visores protegidos entre os dois cabos laterais que se projetavam da base do periscópio. Agora consultou o relógio, se curvou e puxou os dois cabos até a altura do queixo. Ouviu-se um chiado hidráulico à medida que a haste brilhante do periscópio deslizava para dentro de sua bainha metálica no teto da alcova. Kerim inclinou a cabeça e espiou pelos visores, levantando os cabos lentamente até poder ficar totalmente em pé. Girou delicadamente. Focalizou as lentes e chamou Bond com um gesto. “Só os seis.” Bond se adiantou e pegou os cabos.
“Repare bem neles”, disse Kerim. “Eu os conheço, mas é melhor gravar as fisionomias na sua cabeça. Na cabeceira da mesa está o diretor residente. À sua esquerda, dois de sua equipe. Do lado oposto, os três novos. O último, que parece um sujeito bastante importante, está à direita do diretor. Avise-me, se fizerem outra coisa além de falar.” O primeiro impulso de Bond foi dizer a Kerim que não fizesse tanto barulho. Era como se ele estivesse na sala com os russos, como se estivesse sentado em uma cadeira no canto, talvez um secretário tomando notas taquigráficas da reunião. As lentes grande-angulares, olho de
peixe, projetadas para detectar aviões, além de navios na superfície, deram-lhe uma visão curiosa — a visão que um rato teria de uma floresta de pernas embaixo do tampo da mesa, e vários aspectos das cabeças pertencentes a essas pernas. O diretor e seus dois colegas estavam nítidos — rostos russos sérios e sem graça, cujas características Bond gravou. Via-se o rosto estudioso e professoral do diretor — óculos fundo de garrafa, queixo proeminente, testa grande e cabelo ralo penteado para trás. À sua esquerda, um rosto quadrado, como se talhado em madeira, com duas covas profundas dos dois lados do nariz, cabelo louro à escovinha e um entalhe na orelha esquerda. O terceiro membro
da equipe permanente tinha um rosto armênio volúvel, olhos amendoados, brilhantes e inteligentes. Era quem falava agora. Seu rosto revelava um ar de falsa modéstia. Tinha ouro nos dentes que brilhava. Bond não conseguia ver tão bem os três visitantes. Estavam meio de costas para ele, e somente o perfil do mais próximo, e presumivelmente o mais novo, era claramente visível. A pele desse sujeito também era morena. Devia ser de uma das repúblicas do sul. Queixo malbarbeado e perfil de olho bovino e inexpressivo, sob uma espessa sobrancelha negra, seu nariz era carnudo e poroso. O lábio superior era comprido
sobre uma boca desanimada, e o início de um queixo duplo. O cabelo negro e duro era cortado muito curto, de modo que a maior parte da nuca parecia azul até o nível da ponta das orelhas. Era um corte de cabelo militar, feito à máquina. A única pista para o próximo sujeito era um furúnculo virulento atrás do pescoço gordo e sem cabelos, um terno brilhoso azul e sapatos marrons um tanto claros. O homem permaneceu imóvel durante todo o período em que Bond espiava e aparentemente jamais falou. Agora o visitante de maior patente, à direita do diretor residente, recostou-se e começou a falar. Seu perfil marcado, talhado em pedra, tinha grandes ossos e um queixo proeminente sob um pesado
bigode castanho ao estilo de Stálin. Bond podia ver um olho frio e cinzento sob uma sobrancelha basta, e uma pequena testa encimada por cabelo crespo cinza-castanho. Era o único sujeito fumando. Tragava com entusiasmo um pequeno cachimbo de madeira dentro do qual havia meio cigarro. De vez em quando sacudia o cachimbo de lado para que a cinza caísse no chão. Seu perfil ostentava mais autoridade do que qualquer um dos demais, e Bond imaginou que ele devia ser algum emissário importante de Moscou. A vista de Bond estava ficando cansada. Girou os cabos delicadamente
e olhou em volta da sala até onde permitia a borda irregular do buraco de rato. Não viu nada de interessante — dois arquivos verde-oliva, um cabide de chapéus ao lado da porta, no qual contou seis chapéus cinza praticamente idênticos, e um console com uma pesada jarra de água e alguns copos. Bond se afastou do visor, esfregando os olhos. “Se apenas pudéssemos ouvir”, disse Kerim, sacudindo a cabeça com tristeza. “Valeria uma fortuna em diamantes.” “Resolveria muitos problemas”, concordou Bond. E depois: “Por falar nisso, Darko, como encontrou este túnel? Para que foi construído?” Kerim se inclinou, deu uma olhada rápida nos visores e se endireitou.
“É um esgoto pluvial inativo do Pátio das Colunas”, respondeu. “O Pátio das Colunas é agora atração turística. Fica muito acima da gente, nos morros de Istambul, perto de Santa Sofia. Foi construído há mil anos para ser um reservatório em caso de cerco. É um imenso palácio subterrâneo, com cem metros de comprimento por quase a metade disso. Foi feito para armazenar milhares de litros de água. Sua redescoberta se deu há cerca de quatrocentos anos por um sujeito chamado Gyllius. Um dia eu estava lendo seu relato da descoberta. Dizia que o enchiam no inverno por ‘um grande cano que fazia um barulho
enorme’. Ocorreu-me que deveria haver outro ‘grande cano’ para esvaziá-lo rapidamente se a cidade fosse tomada pelo inimigo. Fui até o Pátio das Colunas e subornei o vigia. Remei a noite inteira entre as colunas em um barco de borracha, com um dos meus garotos. Examinamos os muros com um martelo e um detector de eco. Em uma das extremidades, no local mais provável, havia um som oco. Dei mais dinheiro para o Ministro de Obras Públicas e ele fechou o local durante uma semana — ‘para limpeza’. Minha pequena equipe pôs mãos à obra.” Kerim se abaixou de novo para olhar pelos visores e continuou: “Cavamos o muro acima do nível da água e chegamos
à parte de cima de um arco. O arco era o início de um túnel. Entramos e descemos por ele. Muito emocionante, a gente não sabia onde sairia. E, é claro, descia junto com o morro — sob a Rua dos Livros, onde ficam os russos, saindo no Chifre de Ouro, ao lado da Ponte de Gálata, a vinte metros do meu armazém. Então tapamos o buraco que fizemos no Pátio das Colunas e começamos a cavar a partir da nossa extremidade. Isso foi há dois anos. Levamos um ano e foi preciso muito trabalho de exploração para chegar exatamente embaixo dos russos.” Kerim riu. “E agora acho que em um dia desses eles resolverão mudar seus escritórios. Até lá, espero que outra
pessoa esteja dirigindo a T.” Kerim se inclinou em direção aos visores revestidos de borracha. Bond percebeu que ele se contraiu. Kerim disse com urgência: “A porta está se abrindo. Rápido. Pegue aqui. Aí vem ela.”
17. HORA DE MATAR
Eram sete horas da noite do mesmo dia e James Bond voltara ao hotel. Tomara um banho quente e uma chuveirada fria. Achou que conseguira, afinal, tirar de sua pele o fedor de zoológico. Estava sentado quase sem roupas, só de cuecas, junto a uma das janelas do quarto, bebericando uma vodca com tônica e contemplando diretamente o grande e trágico pôr do sol sobre o Chifre de Ouro. Mas seus olhos não viam o pano de fundo rasgado, de ouro e
sangue, por trás do palco cheio de minaretes, sob o qual vira, pela primeira vez, Tatiana Romanova. Pensava na garota bonita e alta, com passo longo de bailarina, que entrara pela porta desbotada com um pedaço de papel na mão. Parara ao lado do chefe e lhe entregara o papel. Todos os homens haviam levantado os olhos para ela, que ruborizara e baixara os seus. O que significava aquela expressão no rosto dos homens? Ultrapassava o olhar que certos homens dirigem a uma garota bonita. Demonstravam curiosidade. Isso era razoável. Queriam saber o que dizia a mensagem, por que haviam sido interrompidos. Porém, o que mais? Revelavam também malícia e desprezo
— o tipo de olhar que as pessoas dão às prostitutas. Fora uma cena estranha, enigmática. Aquele setor fazia parte de uma organização paramilitar altamente organizada. Os homens eram funcionários em exercício, cada qual desconfiado dos outros. E essa garota fazia apenas parte da equipe, com a patente de cabo, realizando agora um ato rotineiro e normal. Por que todos haviam olhado diretamente para ela com esse olhar de desprezo — quase como se fosse uma espiã capturada que ia ser executada? Suspeitavam dela? Será que teria se traído? Mas isso parecia menos provável à medida que a cena se
desenrolava. O diretor residente leu a mensagem, e o olhar dos outros homens passou da garota para ele. Disse algo, provavelmente repetindo o texto da mensagem, e os homens olharam para ele, desanimados, como se o assunto não lhes interessasse. Então o diretor residente olhou para a garota, e os outros olhos seguiram a sua mirada. Disse algo, com uma expressão amistosa, inquisitiva. A garota sacudiu a cabeça e respondeu com parcimônia. Os outros homens pareciam agora apenas interessados. O diretor pronunciou uma palavra seguida de um ponto de interrogação. A garota corou profundamente e assentiu com a cabeça, sustentando o olhar dele com disciplina.
Os outros sujeitos sorriram para encorajá-la, talvez com malícia, mas também com aprovação. Suspeita alguma. Nem condenação. A cena terminou com algumas frases do diretor, às quais a garota respondeu com o equivalente a “sim, senhor”, virando-se e saindo da sala. Depois que ela saiu o diretor disse algo com uma expressão de ironia no rosto, e os homens riram com satisfação, mas novamente com um ar malicioso, como se o que fora dito fosse algo obsceno. Depois voltaram ao trabalho. Desde então, enquanto voltavam pelo túnel, e depois no escritório de Kerim, quando discutiam o que ele, Bond, havia
visto, quebrava a cabeça em busca de uma solução para aquele desafio maluco, e agora, com um olhar vago para o sol poente, continuava perplexo. Bond acabou o drinque e acendeu outro cigarro. Pôs de lado o problema e voltou sua cabeça para a garota. Tatiana Romanova. Uma Romanov. Bem, ela certamente parecia uma princesa russa, ou a ideia tradicional que se tinha delas. O corpo alto, de ossos estreitos, que se movia com tanta graça, com uma postura tão boa. A cortina espessa de cabelos que chegava aos ombros e a serena autoridade do perfil. O maravilhoso rosto à la Garbo, com sua curiosa e tímida serenidade. O contraste entre o grau de inocência dos
grandes e profundos olhos azuis e a promessa apaixonada na boca rasgada. E a maneira como corara e como as longas pestanas haviam coberto seus olhos baixos. Seria o pudor de uma virgem? Bond achou que não. Os seios orgulhosos e o traseiro insolentemente arredondado demonstravam a confiança de quem já fora amada. Era a afirmação de um corpo que conhece sua utilidade. Pelo que Bond havia visto, seria possível acreditar que ela fosse o tipo de garota capaz de se apaixonar por uma foto e uma ficha? Como era possível saber? Uma mulher assim deveria ter uma índole profundamente romântica. Havia algo sonhador nos olhos e na
boca. Naquela idade de vinte e quatro anos, a máquina soviética ainda não teria destruído sua capacidade de sentir. O sangue Romanov poderia fazê-la desejar outro tipo de homem, diferente do funcionário russo que ela conhecia — severo, frio, automático, basicamente histérico e, devido à educação partidária, terrivelmente chato. Podia ser verdade. Na sua aparência não havia nada que desmentisse sua história. Bond queria que fosse verdade. O telefone tocou. Era Kerim. “Alguma novidade?” “Não.” “Então eu o pego às oito.” “Estarei pronto.” Bond recolocou o fone no gancho e
começou a se vestir sem pressa. Kerim havia sido firme sobre essa noite. Bond queria ficar no seu quarto de hotel e esperar que houvesse o primeiro contato — um bilhete, um telefonema, fosse o que fosse. Mas Kerim se opusera. A garota fora categórica quanto a ela própria escolher o lugar e a hora. Seria um equívoco se Bond parecesse ser escravo de sua conveniência. “Psicologia errada, meu amigo”, insistira Kerim. “Nenhuma garota gosta do sujeito que vem quando ela assobia. Ela o desprezaria se você se mostrasse demasiado disponível. Pelo que conhece de seu rosto e de sua ficha, há de esperar que você se comporte com
indiferença — até mesmo com insolência. Ela gostaria disso. Quer cortejá-lo, roubar um beijo”, Kerim piscou, “dessa boca cruel. Foi por uma imagem que ela se apaixonou. Comporte-se como essa imagem. Represente o seu papel”. Bond dera de ombros. “Está certo, Darko. Devo dizer que você tem razão. O que sugere?” “Leve a vida que você levaria normalmente. Vá para casa agora, tome um banho e um drinque. A vodca local é passável, desde que você a afogue em água tônica. Se nada acontecer, eu o pego às oito. Jantaremos na casa de um cigano meu amigo. Um sujeito chamado Vavra. É chefe de um clã. De qualquer
maneira, preciso vê-lo esta noite. É uma das minhas melhores fontes. Está descobrindo quem tentou explodir meu escritório. Suas meninas dançarão para você. Não sugiro que elas devam entretê-lo de modo mais íntimo. É preciso conservar sua espada afiada. Há um ditado que diz: ‘Quem já foi rei nunca perde a majestade!’” Bond sorria pela recordação do ditado de Kerim quando o telefone tocou de novo. Pegou o fone. Era apenas o carro. Ao descer a pequena escada e sair para encontrar Kerim à espera no Rolls, Bond admitiu consigo mesmo que estava desapontado. Subiam o morro mais distante nos
bairros mais pobres acima do Chifre de Ouro, quando o motorista virou um pouco a cabeça e disse algo em um tom de voz preocupado. Kerim respondeu com um monossílabo. “Disse que há uma Lambretta no nosso calcanhar. Um dos sem-rosto. Não importa. Quando quero, me movimento em segredo. Muitas vezes seguiram este carro por quilômetros com um boneco no banco traseiro. Um carro bem conhecido tem sua utilidade. Sabem que este cigano é meu amigo, mas acho que não sabem por quê. Não faz mal que saibam que vamos ter uma noite divertida. Num sábado à noite, com a presença de um amigo da Inglaterra, qualquer outra coisa seria incomum.”
Bond olhou pela janela traseira e contemplou as ruas apinhadas. Surgida de trás de um bonde parado, uma motoneta se deixou ver por um instante, antes de ser encoberta por um táxi. Bond se virou. Pensou um pouco na maneira como os russos administravam seus centros — dispondo de todo o dinheiro e equipamento no mundo, enquanto o Serviço Secreto britânico contrapunha a eles um punhado de sujeitos aventureiros e malpagos como esse aqui, com seu Rolls de segunda mão e seus filhos para ajudá-lo. Mesmo assim, Kerim controlava a Turquia. O homem certo talvez fosse superior à máquina certa.
Às oito e meia pararam no meio de um morro comprido nas cercanias da cidade, em um café com ar decrépito, com algumas mesas vazias na calçada. Atrás dele via-se a copa de árvores acima de um muro de pedra alto. Saíram e o carro seguiu adiante. Esperaram a Lambretta, mas seu zumbido de abelha parara de imediato e ela já estava a caminho de volta, descendo o morro. Tudo que viram do motorista foi a imagem de um sujeito baixo e atarracado, de óculos. Kerim entrou na frente, entre as mesas do café. Parecia vazio, mas um sujeito se levantou rápido de trás do caixa. Ele conservou a mão sob o balcão. Quando
viu quem era, deu um sorriso nervoso e amarelo para Kerim. Algo metálico caiu no chão. Saiu de trás do balcão e os conduziu até os fundos, atravessando um trecho de cascalho, até uma porta em um muro alto. Depois de bater uma vez, abriu-a e, com um gesto, os fez passar. Encontraram um pomar com mesas rústicas espalhadas sob as árvores. No centro havia uma pista de dança circular de cerâmica. Em volta, lâmpadas decorativas, agora apagadas, presas a postes enfiados no chão. No lado oposto, cerca de vinte pessoas de todas as idades estavam sentadas em uma mesa comprida, comendo, mas agora largaram os talheres e olharam para a porta. Algumas crianças brincavam no
gramado atrás da mesa. Também se aquietaram e ficaram olhando. A lua em quarto crescente iluminava tudo perfeitamente e criava zonas de sombra filtrada debaixo das árvores. Kerim e Bond se adiantaram. O sujeito na cabeceira da mesa disse algo aos outros. Levantou-se e veio ao encontro deles. Os demais continuaram a jantar e as crianças, a brincar. O homem cumprimentou Kerim com certa reserva. Ficou por alguns momentos dando uma longa explicação, que Kerim ouvia atento, fazendo de vez em quando uma pergunta. O cigano era uma figura imponente, dramática, no seu costume macedônio —
camisa branca de mangas bufantes, calças largas e botas de couro macio, de amarrar. Seu cabelo era um emaranhado de serpentes negras. Um grande bigode preto, caído, quase escondia os lábios carnudos e vermelhos. Olhos ferozes e cruéis ladeavam um nariz sifilítico. A luz brilhava no contorno agudo do queixo e nas maçãs salientes do rosto. Sua mão direita, com um anel de ouro no polegar, descansava no cabo de uma adaga curta e curva, com uma bainha de couro, cuja ponta era de prata trabalhada. O cigano acabou de falar. Kerim disse algumas palavras eloquentes, aparentemente laudatórias, sobre Bond, enquanto estendia o braço em sua
direção, como um apresentador de boate elogiando uma nova atração. O cigano se acercou de Bond, estudando-o. De repente fez uma mesura com a cabeça. Bond o imitou. O cigano disse algumas palavras entre um sorriso irônico. Kerim riu, virando-se para Bond. “Ele disse que, se algum dia você estiver desempregado, pode procurá-lo. Ele lhe dará emprego — de domesticar suas mulheres e matar seus inimigos. É um grande elogio a um gajo — estrangeiro. Você devia dar uma resposta qualquer.” “Diga-lhe que eu acho que ele não precisa de ajuda nesses assuntos.” Kerim traduziu. O cigano deu um sorriso polido. Disse algo e voltou para
a mesa, batendo palmas de repente. Duas mulheres se levantaram e se aproximaram dele. Ele lhes falou bruscamente e elas voltaram para a mesa, onde pegaram uma grande travessa de barro e desapareceram entre as árvores. Kerim pegou o braço de Bond, puxando-o de lado. “Viemos em uma noite desfavorável”, disse. “O restaurante está fechado. Há problemas familiares que precisam de uma solução. Mas, como sou um velho amigo, ele nos convidou para jantar. Não vai ser bom, mas mandei buscar raki. Depois poderemos assistir — desde que a gente não se meta. Espero que compreenda, meu amigo.” Kerim
apertou mais um pouco o braço de Bond. “A despeito do que possa acontecer, não se meta nem comente nada. Houve um julgamento e a justiça precisa ser feita — justiça à maneira deles. Trata-se de um problema de paixão e ciúmes. Duas garotas do clã estão apaixonadas por um de seus filhos. A morte paira no ar. Ambas ameaçam matar uma à outra para ficar com ele. Se ele escolher alguma, a perdedora ameaça matar a ele e à escolhida. Criou-se um impasse. Discute-se muito no clã. Por isso mandaram o filho para os montes e as duas garotas devem brigar aqui esta noite — até a morte. O filho concordou em ficar com a vencedora. As garotas
estão trancadas em caravanas diferentes. Não é recomendável a estômagos fracos, mas será um espetáculo extraordinário. A nossa presença é um grande privilégio. Compreendeu? Somos gajos. Será que consegue esquecer seu cavalheirismo? Não vai interferir? Eles o matarão, e talvez a mim, se você fizer isso.” “Darko”, disse Bond, “tenho um amigo francês. Um sujeito chamado Mathis, chefe da Deuxième. Ele me disse uma vez: ‘J’aime les sensations fortes.’ Sou como ele. Não o decepcionarei. Homem brigando com mulher é uma coisa. Agora, mulher brigando com mulher já é outra. E a bomba? A bomba que explodiu o seu
escritório. O que ele disse a respeito?” “Foi o líder dos sem-rosto. Ele mesmo a colocou ali. Desceram o Chifre de Ouro de barco, e ele subiu uma escada e a prendeu no muro. Deu azar e não conseguiu me atingir. O plano foi bem preparado. Esse sujeito é um gângster. Um ‘refugiado’ búlgaro chamado Krilencu. Preciso ter um acerto de contas com ele. Deus sabe por que de repente eles passaram a querer me matar, mas não posso tolerar esse tipo de aborrecimento. Talvez mais tarde esta noite eu resolva agir. Sei onde ele mora. No caso de Vavra já ter a resposta, mandei meu motorista voltar com o equipamento necessário.”
Uma jovem extremamente atraente em um vestido negro antiquado, com um colar de moedas de ouro no pescoço e cerca de dez braceletes finos de ouro em cada pulso, veio da mesa e fez uma grande mesura tilintante diante de Kerim. Ela lhe disse algo, e ele respondeu. “Estão nos chamando para a mesa”, disse Kerim. “Espero que saiba comer com os dedos. Vejo que todos estão nas suas melhores roupas esta noite. Essa garota é um bom partido. Olha a quantidade de ouro que carrega. É o seu dote.” Caminharam até a mesa. Arrumaram dois lugares ao lado do chefe dos
ciganos. Kerim fez o que parecia ser uma saudação polida aos presentes. Houve um breve aceno da cabeça da parte de todos. Sentaram-se. Na frente de cada um havia um grande prato de uma espécie de ensopado com um cheiro forte de alho, uma garrafa de raki, cheia, uma jarra de água e um copo ordinário. Havia mais garrafas cheias de raki na mesa. Quando Kerim pegou a sua e encheu um copo pela metade, todo mundo fez o mesmo. Kerim acrescentou um pouco d’água e ergueu seu copo. Bond o imitou. Kerim fez um breve e veemente discurso e todos erguerem seus copos e beberam. A atmosfera se tornou mais descontraída. Uma velha ao lado de Bond lhe passou um pão
comprido e disse algo. Bond sorriu e agradeceu. Tirou um pedaço e passou o pão para Kerim, que pegava seu ensopado com o indicador e o polegar. Kerim pegou o pão, enquanto punha um grande pedaço de carne na boca com a outra mão, e começou a comer. Bond estava prestes a fazer o mesmo, quando Kerim lhe disse incisivamente em voz baixa: “Com a mão direita, James. A mão esquerda só é usada para um único fim entre essa gente.” Bond abortou o movimento de sua mão esquerda, transformando-o em um gesto de pegar a garrafa de raki mais próxima. Serviu-se de mais um copo e começou a comer com a mão direita. O
ensopado estava delicioso, mas fervendo. Bond fazia uma careta cada vez que enfiava os dedos nele. Todo mundo ficou observando-os comer, e de vez em quando a velha mergulhava os dedos no ensopado de Bond e escolhia um pedaço para ele. Depois de terem limpado os pratos, foi colocada entre os dois uma bacia de prata com água, na qual boiavam pétalas de rosa, e uma toalha limpa de linho. Bond lavou seus dedos e queixo engordurados e, virando-se para seu anfitrião, fez um breve discurso de agradecimento, que Kerim traduziu. O chefe cigano fez uma mesura com a cabeça em direção a Bond, dizendo, segundo Kerim, que detestava todos os
gajos, exceto Bond, a quem se orgulhava de ter como amigo. Em seguida bateu palmas com vigor e todo mundo se levantou da mesa, começou a tirar os bancos e arrumá-los em volta da pista de dança. Kerim circundou a mesa para ir falar com Bond. “Como se sente? Foram buscar as duas garotas.” Bond assentiu com a cabeça. Estava gostando da noite. A cena era bela e emocionante — a lua branca brilhando sobre o círculo de figuras que se ajeitavam nos bancos, o cintilar de ouro ou joalheria quando alguém mudava de posição, a cerâmica fosforescente e, por toda a volta, as árvores montando
guarda, como sentinelas envoltas em seus mantos de sombra. Kerim levou Bond até um banco em que o chefe cigano estava sentado sozinho. Ocuparam seus lugares à sua direita. Um gato preto de olhos verdes atravessou lentamente a pista de cerâmica e se juntou a um grupo de crianças sentadas tranquilamente, como se alguém estivesse prestes a ocupar a pista para lhes ensinar alguma coisa. Sentou-se e começou a lamber o peito. Além do muro alto um cavalo relinchou. Dois ciganos olharam por cima dos ombros em direção ao ruído como se estivessem lendo o relincho. Vindo da estrada, ouviu-se a cascata
prateada da campainha de uma bicicleta, enquanto alguém corria morro abaixo. O silêncio pesado foi quebrado pelo ruído metálico de um ferrolho que se abria. A porta se escancarou com violência e duas garotas, cuspindo e brigando como duas gatas selvagens, se arremessaram no gramado e seguiram emboladas até o ringue.
18. SENSAÇÕES FORTES
A voz do chefe cigano trovejou. As garotas se separaram a contragosto e ficaram olhando para ele. O cigano começou a falar em tom de dura acusação. Kerim cobriu a boca com a mão e sussurrou: “Vavra está dizendo a elas que este é um grande clã de ciganos e que elas trouxeram a discórdia para o seu seio. Diz que não há lugar para ódio entre eles, só contra os forasteiros. O ódio criado por elas precisa ser purgado
para que o clã possa viver novamente em paz. Elas devem lutar. Se a perdedora não sair morta, será banida para sempre. O que será igual à morte. Essa gente murcha e morre fora do clã. Não conseguem viver no nosso mundo. Ficam como feras selvagens, obrigadas a viver enjauladas.” Enquanto Kerim falava, Bond examinava as duas belas fêmeas nervosas e zangadas no meio do ringue. Eram ambas da cor morena dos ciganos, de cabelos negros e grossos até os ombros, e ambas vestiam um conjunto de trapos que a gente associa aos favelados — túnicas marrons esfarrapadas, compostas principalmente de remendos e cerzidos. Uma era de
maior ossatura do que a outra, e evidentemente mais forte, mas parecia emburrada e de olhar preguiçoso, e talvez não tivesse as pernas tão ágeis. Bela de uma maneira meio leonina, tinha um brilho avermelhado nos olhos de pálpebras pesadas, enquanto ouvia, impaciente, o chefe do clã. “Provavelmente será a vencedora”, pensou Bond. “É um centímetro e pouco mais alta, e mais forte.” Enquanto essa garota era uma leoa, a outra era uma pantera — esguia e ágil, com um olhar agudo e esperto que não se fixava no chefe, mas fugia para os lados, medindo centímetros, com as mãos curvas como garras. As pernas
finas pareciam ter músculos tão fortes quanto os de um homem. Tinha seios pequenos, ao contrário dos seios grandes da outra, que mal enchiam os farrapos de sua túnica. “Parece uma cadela pequena e perigosa”, pensou Bond. É provável que acerte o primeiro golpe. É ágil demais para a outra. Imediatamente se viu desmentido. Enquanto Vavra pronunciava as últimas palavras, a garota maior — que, segundo cochichara Kerim, se chamava Zora — deu um forte chute para o lado, sem visar onde, pegando a outra bem na barriga. Enquanto a menor cambaleava, prosseguiu com um soco na cabeça que a derrubou estatelada no chão de cerâmica.
“Oi, Vida”, lamentou uma mulher na plateia. Não precisava ter se preocupado. Até mesmo Bond percebeu que Vida estava fingindo no chão, aparentemente meio desacordada. Podia ver o brilho nos seus olhos sob o braço dobrado, quando o pé de Zora veio como um raio nas suas costelas. As mãos de Vida se estenderam juntas. Agarraram o tornozelo, e sua cabeça bateu no peito do pé como o bote de uma cobra. Zora deu um grito de dor e sacudiu violentamente seu pé aprisionado. Tarde demais. A outra tinha se ajoelhado e depois ficou ereta, ainda agarrada ao pé. Fez força para cima, e o outro pé de Zora saiu do chão,
e ela se estatelou ao comprido. O baque da queda fez tremer o chão. Por um instante, ela ficou imóvel. Com um rosnado animal, Vida mergulhou em cima dela, unhando e rasgando. “Meu Deus, que gata bravia”, pensou Bond. A seu lado, Kerim soltava um bafo tenso e sibilante entre os dentes. Mas a garota maior se protegeu com os cotovelos e joelhos e finalmente conseguiu repelir Vida. Pôs-se de pé com dificuldade e recuou, com os dentes à mostra, a túnica toda rasgada pendendo de seu corpo esplêndido. Voltou imediatamente ao ataque, com os braços estendidos, e quando a garota menor pulou de lado, Zora agarrou a gola de sua túnica e a rasgou até a
bainha. Mas Vida logo se aninhou junto ao corpo da outra, dando socos e chutes. Esta proximidade foi um erro. Os braços fortes se fecharam em volta da garota menor, prendendo as mãos de Vida embaixo, de modo que não pudessem alcançar os olhos de Zora. E esta começou a apertar, enquanto as pernas e os joelhos de Vida se debatiam lá embaixo, em vão. Bond achou que agora a maior venceria. Só bastava a Zora cair em cima da outra. A cabeça de Vida bateria no chão duro, e então Zora faria o que quisesse. Mas de repente foi a grandona que começou a gritar. Bond percebeu que a cabeça de Vida estava
profundamente mergulhada nos seios da outra. Seus dentes estavam em ação. Zora abriu os braços para alcançar e puxar a cabeça de Vida pelos cabelos para trás. Mas agora as mãos de Vida estavam livres para arranhar o corpo da garota grande. As garotas se arrancavam pedaços e recuavam como gatas, seus corpos brilhando por entre os últimos farrapos de suas túnicas, com o sangue a escorrer dos seios expostos da maior. Moveram-se em círculos, com cautela, ambas satisfeitas de terem escapado. Enquanto rodavam, arrancaram os últimos trapos e os atiraram à plateia. Bond prendeu o fôlego diante da
visão dos dois corpos nus e reluzentes, e sentiu o corpo de Kerim ficar tenso a seu lado. O círculo dos ciganos parecia ter se fechado sobre as duas lutadoras. O luar brilhava nos olhos cintilantes, e ouvia-se o cicio de respirações acaloradas. As duas garotas ainda se moviam em círculos, com os dentes à mostra e a respiração entrecortada. A luz se refletia nos seus peitos e barrigas ofegantes, e também nos seus flancos magros de rapaz. Seus pés deixavam pegadas escuras de suor nas pedras brancas. Novamente foi a garota grande, Zora, a primeira a atacar, com um súbito salto à frente e braços estendidos de lutador.
Mas Vida se manteve firme. Seu pé direito lançou um furioso coup de savate, que deu um estalo como um tiro de pistola. A garota grande deu um grito por ter sido atingida e se abraçou. Imediatamente o outro pé de Vida chutou sua barriga e ela se atirou sobre a outra. Ouviu-se um murmúrio alto na plateia quando Zora se pôs de joelhos. Levantou as mãos para proteger o rosto, mas era tarde demais. A menor a cavalgava e suas mãos prenderam os pulsos de Zora, enquanto empregava todo seu peso para derrubá-la, com os dentes brancos à mostra visando o seu pescoço descoberto. BUM! A explosão quebrou a tensão, como se
quebra uma noz. Um clarão de fogo iluminou a escuridão atrás da pista de dança, e um pedaço de alvenaria passou assobiando perto da orelha de Bond. O pomar de repente ficou cheio de homens correndo, e o chefe cigano avançou cautelosamente sobre a pista, com a adaga curva empunhada na frente. Kerim o seguia, com uma arma na mão. Quando o cigano passou pelas duas garotas tremendo em pé, com os olhos esbugalhados, gritou com elas, que fugiram correndo e desapareceram entre as árvores, onde as últimas mulheres e crianças já faziam o mesmo entre as sombras. Bond, empunhando a Beretta incerto,
seguia lentamente na esteira de Kerim em direção ao grande buraco causado pela explosão no muro do jardim, pensando que diabo teria acontecido. A extensão do gramado entre o buraco no muro e a pista de dança estava cheia de figuras que combatiam e corriam. Só ao chegar mais perto é que Bond conseguiu distinguir os búlgaros atarracados, vestidos de maneira convencional, da elegância rodopiante dos ciganos. Parecia haver uma quantidade maior de sem-rostos do que de ciganos, quase dois por um. Enquanto Bond observava aquela massa em luta, um jovem cigano foi cuspido dela, segurando a barriga. Veio trôpego em direção a Bond, tossindo terrivelmente.
Dois sujeitos morenos o perseguiam, com suas facas empunhadas baixo. Bond se pôs instintivamente de lado, de modo que a multidão deixasse de ficar atrás dos dois. Visou suas pernas acima dos joelhos, e a pistola na sua mão estalou duas vezes. Os dois sujeitos caíram sem um grito, com o rosto no gramado. Duas balas gastas. Só restavam seis. Bond se aproximou do combate. Uma faca passou sibilante ao lado de sua cabeça e foi cair com um barulho metálico na pista de dança. Visara Kerim, que saiu correndo das sombras com dois sujeitos atrás. O segundo deles parou e ergueu a faca
para o arremesso, e Bond atirou do quadril, às cegas, e o viu cair. O outro sujeito virou e fugiu entre as árvores, enquanto Kerim se ajoelhava ao lado de Bond, lutando com sua arma. “Cubra-me”, gritou. “Enguiçou no primeiro tiro. São os diabos dos búlgaros. Deus sabe o que eles pensam que estão fazendo.” Bond sentiu-se agarrado em volta da boca e puxado para trás. Ao cair, sentiu o cheiro de fenol e nicotina. Sentiu uma bota que pisava na sua nuca. Ao girar de lado no gramado, esperou a ardência de uma faca flamejante. Mas os sujeitos, e eram três, estavam atrás de Kerim, e quando Bond se ajoelhou com dificuldade, viu as figuras negras e
atarracadas se empilharem em cima do homem agachado que deu um golpe inútil com sua arma imprestável antes de desabar sob o peso deles. No mesmo momento em que Bond pulou para a frente e deu uma coronhada em uma cabeça redonda e raspada, algo passou cintilante pelos seus olhos. A adaga curva do chefe cigano se projetava de costas ofegantes. Então Kerim se levantou e o terceiro sujeito correu. Um homem em pé no buraco do muro gritava algo repetidamente, e um a um os atacantes pararam de lutar e correram até o homem, passando por ele e alcançando a rua. “Atire, James, atire!”, berrou Kerim.
“É Krilencu.” E começou a correr para a frente. A pistola de Bond cuspiu uma vez, mas o homem já havia se protegido atrás do muro, e trinta metros é uma distância muito grande para se atirar à noite com uma automática. Enquanto Bond baixava a arma ainda quente, ouviu-se em stacatto o arranque de um esquadrão de lambretas, e Bond ficou ali ouvindo o enxame de abelhas que descia correndo o morro. Em seguida, fez-se silêncio, quebrado apenas pelos gemidos dos feridos. Bond, apático, observou Kerim e Vavra voltando do buraco no muro e caminhando entre os corpos, de vez em quando virando algum com o pé. Os outros ciganos voltaram aos poucos da
estrada, e as mulheres mais velhas correram das sombras para cuidar de seus homens. Bond espantou a letargia. Qual seria o motivo de tudo aquilo? Dez a doze homens haviam sido mortos. Ele, Bond, não. Quando havia sido derrubado e estava pronto para ser morto, deixaramno para ir atrás de Kerim. Era a segunda tentativa de morte contra Kerim. Teria algo a ver com o negócio da Romanova? Como era possível relacionar as duas coisas? Bond retesou o corpo. Sua pistola disparou duas vezes da altura do quadril. A faca caiu inofensivamente das costas de Kerim. A figura que
despertara entre os mortos girou lentamente, como um bailarino, e caiu de cara. Bond correu até lá. Atirara exatamente na hora. A lua brilhara na faca e ele teve o campo livre para o tiro. Kerim contemplou o corpo agonizante no chão. Virou-se para encontrar Bond. Este parou subitamente. “Seu idiota”, disse zangado. “Por que não toma mais cuidado! Devia ter uma babá.” Grande parte da raiva de Bond provinha de saber que fora ele quem atraíra a nuvem mortífera em torno de Kerim. Darko Kerim sorriu envergonhado. “Agora não adianta, James. Já salvou a minha vida muitas vezes. Poderíamos ter sido amigos. Mas a distância entre a gente agora é grande demais. Perdoe
me, porque jamais poderei lhe retribuir.” Estendeu a mão. Bond afastou-a para o lado. “Não seja tão idiota, Darko”, disse, com rudeza. “Minha arma funcionou, só isso. A sua não. É melhor arranjar uma que funcione. Pelo amor de Deus, me diga o que significa essa história toda. Já houve bastante derramamento de sangue esta noite. Estou farto. Quero uma bebida. Vamos acabar com aquele raki.” Pegou o homem grande pelo braço. Ao chegarem à mesa repleta dos restos do jantar, um grito agudo e terrível veio das profundezas do pomar. Bond levou a mão à arma. Kerim sacudiu a cabeça. “Dentro em breve
saberemos quem os sem-rosto visavam”, disse, desanimado. “Meus amigos estão averiguando. Já sei o que descobrirão. Mas acho que jamais me perdoarão por ter vindo esta noite. Cinco dos seus estão mortos.” “Poderia também haver uma mulher morta”, disse Bond, sem demonstrar concordância. “Pelo menos você salvou sua vida. Não seja bobo, Darko. Estes ciganos sabiam o risco de espionar os búlgaros para você. Foi uma guerra de gangues.” Acrescentou um pouco d’água a dois copos de raki. Ambos os esvaziaram de um trago. O chefe cigano chegou, limpando a adaga curva em um punhado de grama. Sentouse e aceitou um copo de raki da parte de
Bond. Parecia bastante alegre. Bond teve a impressão de que para ele a briga durara pouco. O cigano disse algo maliciosamente. Kerim achou graça. “Ele disse que o seu juízo estava certo. Você mata bem. Agora ele quer que você enfrente aquelas duas mulheres.” “Diga-lhe que até uma é demais para mim. Mas que elas são belas mulheres. Eu ficaria contente se ele me fizesse um favor e decretasse que a luta foi um empate. Muitos dos seus já foram mortos esta noite. Ele precisará dessas garotas para parir crianças para seu clã.” Kerim traduziu. O cigano olhou para Bond, um tanto descontente, e disse
algumas palavras amargas. “Disse que você não devia ter pedido a ele um favor tão difícil. Disse que seu coração é mole demais para um bom combatente. Mas que ele fará o que você pediu.” O cigano ignorou o sorriso de agradecimento de Bond. Começou a falar depressa com Kerim, que ouvia com atenção, às vezes interrompendo o fluxo de palavras com uma pergunta. O nome de Krilencu foi mencionado várias vezes. Kerim falou em resposta. Sua voz demonstrava grande pesar e ele não se deixou interromper pelo protesto do outro. Fez-se uma última referência a Krilencu. Kerim virou-se para Bond. “Meu amigo”, disse, secamente, “é
um caso curioso. Parece que os búlgaros receberam ordens de matar Vavra e o maior número de ciganos possível. Até aí é simples. Sabiam que o cigano estava trabalhando para mim. Talvez seja um tanto drástico. Mas, na hora de matar, os russos não têm grande finesse. Gostam de extermínio coletivo. Vavra era um dos alvos principais. Eu era o outro. Também consigo entender a declaração pessoal de guerra contra mim. Mas parece que você devia ser poupado. Você foi descrito com perfeição para não haver engano. Estranho. Talvez não quisessem repercussões diplomáticas. Quem pode dizer? O ataque foi bem planejado.
Chegaram ao cimo do morro por um caminho alternativo e desceram com os veículos desligados de modo que não ouvíssemos nada. Aqui é um lugar isolado e não existe um policial a quilômetros de distância. Assumo a culpa por ter tratado esse pessoal de modo muito displicente.” Kerim parecia perplexo e aborrecido. Aparentemente resolveu alguma coisa. Disse: “Já é meia-noite e o Rolls deve estar aí. Ainda falta um pequeno trabalho antes de irmos para a cama. E já é hora de nos despedirmos dessa gente. Eles têm muito que fazer antes do amanhecer. Há muitos corpos que precisam ir para o Bósforo, e tem o muro para ser consertado. De manhã não pode restar nenhum vestígio
desses problemas. Nosso amigo lhe deseja tudo de bom. Diz que você precisa voltar e que Zora e Vida são suas até que seus seios despenquem. Recusa-se a me culpar pelo que aconteceu. Diz que devo continuar a lhe mandar búlgaros. Dez foram mortos esta noite. Ele quer mais. E agora apertamos sua mão e vamos. É só o que nos pede. Somos bons amigos, mas gajos. E acho que ele não quer que vejamos suas mulheres chorando seus mortos.” Kerim estendeu sua enorme mão. Vavra pegou-a e olhou nos olhos de Kerim. Por um momento seu olhar feroz pareceu ficar opaco. Largou a mão e se voltou para Bond. A mão era seca,
áspera e acolchoada como a pata de um grande animal. Novamente o olhar ficou opaco. Largou a mão de Bond. Falou rápida e veementemente com Kerim e deu-lhes as costas, caminhando em direção às árvores. Ninguém levantou os olhos do trabalho quando Kerim e Bond passaram pela brecha no muro. O Rolls estava lá, brilhando ao luar, alguns metros rua abaixo, do lado oposto à entrada do café. Um jovem estava sentado ao lado do motorista. Kerim fez um gesto com a mão. “Este é meu décimo filho. Ele se chama Boris. Achei que talvez fosse precisar dele. E vou.” O jovem se virou e disse: “Boa noite, senhor.” Bond o reconheceu como um
dos escriturários do armazém. Era esguio e moreno, como o escrituráriochefe, e seus olhos também eram azuis. O carro desceu o morro. Kerim falou em inglês com o motorista. “É uma pequena rua perto da praça do hipódromo. Quando chegarmos lá, vamos devagar. Eu direi quando parar. Está com os uniformes e o equipamento?” “Sim, Kerim Bey.” “Está bem. Agora vamos depressa. Já é hora de estarmos todos na cama.” Kerim se recostou no assento. Pegou um cigarro. Fumaram sentados. Bond olhou para as ruas tristes e pensou que a iluminação precária era um sinal certo
de uma cidade pobre. Passou-se algum tempo antes que Kerim falasse. Em seguida, disse: “O cigano comentou que nós dois estamos com as asas da morte sobre nós. Disse que eu preciso tomar cuidado com um filho das neves e você com um homem que pertence à lua.” Riu asperamente. “Isso é o palavrório que eles falam. Mas disse que Krilencu não é nenhum desses dois. Que bom.” “Por quê?” “Porque não vou conseguir dormir se não matar esse sujeito. Não sei se o que aconteceu hoje à noite tem algo a ver com você e com sua missão. Não me interessa. Por algum motivo, declararam guerra contra mim. Se eu não matar
Krilencu, ele certamente me matará na terceira tentativa. Por isso, estamos agora a caminho de um encontro com ele em Samarra.”
19. A BOCA DE MARILYN MONROE
O carro passou rápido pelas ruas desertas, pelas mesquitas envoltas em sombras, cujos minaretes cintilantes se erguiam como lanças contra a lua em quarto crescente, sob as ruínas do Aqueduto, cruzando o Bulevar Ataturk rumo ao norte e aos gradis das entradas do Grande Bazar. Na Coluna de Constantino o carro virou à direita, atravessando as ruas pobres e sinuosas que cheiravam a lixo, desembocando
finalmente em uma longa praça ornamental, na qual três colunas de pedra se perfilavam como uma bateria de mísseis prontos para disparar contra o céu semeado de estrelas. “Devagar”, disse Kerim em voz baixa. Circundaram a praça lentamente sob as sombras dos limoeiros. No final de uma rua do lado leste o farol abaixo do Palácio de Seraglio lhes deu uma grande piscada amarela. “Pare.” O carro parou na escuridão sob os limoeiros. Kerim apertou a trava da porta. “Não vamos demorar, James. Sente na frente, no assento do motorista, e se aparecer algum policial, diga apenas: ‘Ben Bey Kerim’in ortagiyim.’
Consegue lembrar? Quer dizer ‘Eu sou companheiro de Kerim Bey’. Não o incomodarão.” Bond resmungou. “Muito obrigado. Mas sinto informar que vou com você. Certamente vai se meter em alguma encrenca se eu não for. De qualquer modo, vê lá se vou ficar aqui tentando enganar a polícia. Aprender uma boa frase é péssimo quando aparece gente que sabe a língua. O policial me responderá com uma enxurrada de turco e, quando eu não conseguir responder, vai farejar algo errado. Não adianta discutir, Darko.” “Bem, não me culpe se não gostar disso”, disse Kerim em um tom de voz
constrangido. “Vai ser um assassinato imediato, a sangue-frio. No meu país a gente diz: ‘Deixe os cães que dormem quietos, porque se acordarem e morderem, nós os matamos.’ Não vou desafiá-lo para um duelo. Certo?” “Como quiser”, respondeu Bond. “Ainda tenho uma bala, caso você erre.” “Então, vamos”, disse Kerim, relutantemente. “Temos uma caminhada e tanto. Os outros irão por um caminho diferente.” Kerim pegou uma longa bengala com o motorista e um estojo de couro. Colocou-os sobre o ombro e começaram a descer a rua, sob as piscadas amarelas do farol. Ouviam o eco de seus passos refletidos nas portas de ferro das
fachadas das lojas. Não havia vivalma, nem sequer um gato, e Bond sentiu-se satisfeito por não ter que caminhar sozinho pela longa rua em direção àquele olho distante e sinistro. Istambul lhe dera a impressão, desde o início, de que uma atmosfera de horror emanava até das pedras, à noite. Parecia uma cidade há tantos séculos banhada de sangue e violência que, chegada a noite, era povoada apenas pelos fantasmas dos mortos. A intuição lhe dizia, como já dissera a outros viajantes, que só com sorte sairia dela com vida. Chegaram a uma ruela estreita e fétida que mergulhava morro abaixo à direita. Kerim entrou nela e começou a descê-la,
andando cuidadosamente sobre sua superfície empedrada. “Cuidado onde pisa”, disse baixinho. “Lixo é uma palavra suave para traduzir o que os meus belos compatriotas jogam nas ruas.” O luar brilhava branco sobre o rio de pedras úmidas. Bond mantinha a boca fechada, respirando só pelo nariz. Pisava pé ante pé, de lado com os joelhos dobrados, como se descesse uma encosta cheia de neve. Pensou na sua cama do hotel e nas almofadas confortáveis do carro sob o perfume dos limoeiros, imaginando quais fedores variados ainda teria de enfrentar durante sua atual missão. Pararam no final da ruela. Kerim
virou-se para ele com um largo sorriso de dentes brancos. Apontou para um bloco colossal de sombra em cima. “Mesquita do Sultão Ahmet. Dos famosos afrescos bizantinos. Perdão, mas não tenho tempo de lhe mostrar as belezas de meu país.” Sem esperar uma resposta de Bond, virou à direita e continuou ao longo de um bulevar poeirento ladeado de lojas baratas, que descia em direção ao brilho distante do mar de Mármara. Andaram dez minutos em silêncio. Em seguida, Kerim diminuiu o passo e pediu a Bond que permanecesse na sombra. “Será uma missão simples”, disse em voz baixa. “Krilencu mora ali, ao lado
da ferrovia.” Apontou vagamente para um conjunto de luzes verdes e vermelhas no final do bulevar. “Ele se esconde em um barraco atrás de um cartaz. O barraco tem uma porta da frente. E também um alçapão que dá para a rua através do tapume. Acha que ninguém sabe. Meus dois homens entrarão pela porta da frente. Ele fugirá através do tapume. Aí eu disparo. Certo?” “Tudo bem.” Continuaram a caminhar pelo bulevar, mantendo-se próximos às paredes. Depois de dez minutos avistaram o cartaz de sete metros de altura que formava uma parede no cruzamento ao final da rua. A lua estava atrás do tapume, sombreando sua fachada. Agora
Kerim andava ainda com mais cuidado. A cerca de cem metros do tapume acabavam as sombras e o luar embranquecia o cruzamento. Kerim parou no último umbral na sombra e posicionou Bond à frente, contra seu peito. “Agora é preciso esperar”, sussurrou. Bond ouviu o ruído de Kerim remexendo em alguma coisa às suas costas. Percebeu um som oco do estojo de couro se abrindo. Um tubo de aço fino e pesado de sessenta e cinco centímetros de comprimento, com uma protuberância em cada extremidade, foi posto na mão de Bond. “Telescópio para franco-atirador. Modelo alemão”, sussurrou Kerim. “Lentes
infravermelhas, que veem no escuro. Olhe só para aquele enorme cartaz ali. Para aquele rosto. Logo debaixo do nariz. Você verá o contorno do alçapão. Imagine uma linha reta partindo do sinaleiro.” Bond descansou o braço contra o portal e levou o tubo ao seu olho direito. Focalizou-o na mancha de sombra escura à sua frente. O que era negro transformou-se em cinza. Surgiu o contorno do rosto de uma mulher enorme e um letreiro. Agora Bond conseguiu ler o letreiro. Dizia: NIYAGARA. MARILYN MONROE VE JOSEPH COTTEN. E, embaixo, a sessão de desenho animado: BONZO FUTBOLOU. Bond aproximou o
telescópio milimetricamente, descendo pela enorme pilha dos cabelos de Marilyn Monroe, pelo penhasco de sua testa, por quase um metro de nariz até as narinas cavernosas. Percebeu um ligeiro quadrado no cartaz, situado entre o nariz e a curva insinuante dos lábios. Tinha cerca de um metro. Dali ao chão seria um salto bastante alto. Bond ouviu uma série de cliques macios atrás dele. Kerim estendeu sua bengala. Como Bond suspeitara, era uma arma, um rifle, cuja extremidade mais grossa era a culatra. A saliência atarracada de um silenciador substituíra a ponta de borracha. “Cano do novo Winchester 88”,
sussurrou com orgulho Kerim. “Montado para mim por um sujeito em Ankara. Comporta balas .308. Do tipo curto. Três. Dê-me o telescópio. Quero visar aquele alçapão antes que meus homens entrem pela frente. Se importa se eu usar seu ombro como descanso?” “Está bem.” Bond entregou o telescópio. Kerim o prendeu por cima do cano e descansou o rifle sobre o ombro de Bond. “Estou vendo”, cochichou Kerim. “Onde Vavra falou. Ele é o tal.” Baixou a arma quando dois policiais surgiram no canto direito da interseção. Bond gelou. “Não tem problema”, sussurrou Kerim. “São meu filho e o motorista.”
Botou dois dedos na boca. Por uma fração de segundo deu um assobio abafado. Um dos policiais levou a mão à nuca. A dupla virou e se afastou caminhando, com o barulho das botas repercutindo sobre as pedras. “Faltam poucos minutos”, sussurrou Kerim. “Eles precisam chegar aos fundos daquele tapume.” Bond sentiu o cano pesado do rifle se insinuar de volta sobre seu ombro direito. O silêncio lunar foi quebrado pelo ruído alto e metálico do sinaleiro atrás do tapume. Uma das setas baixara. Uma luzinha verde surgiu entre o emaranhado de vermelhas. Ouviu-se um rolar surdo a distância, vindo do lado da Ponta
Seraglio. Aproximou-se e foi se definindo como o resfolegar pesado de uma locomotiva e o clangor rangente de um comboio mal-engatado de vagões de carga. Um ligeiro reflexo amarelo brilhava no cais à esquerda. A locomotiva surgiu esbaforida acima do tapume. O trem passou sacolejando na sua viagem de cento e sessenta quilômetros até a fronteira grega, como uma silhueta negra e irregular contra o prateado do mar, e a pesada nuvem de fumaça produzida por seu combustível ordinário veio rumo a eles no ar parado. À medida que as luzes vermelhas do vagão do freio tremularam um instante e sumiram, ouviram-se um rolar mais grave quando
a locomotiva entrou em um corte e, em seguida, dois severos e tristes apitos ao sinalizar sua aproximação da pequena estação de Buyuk, dois quilômetros adiante. O rolar do trem definhou. Bond sentiu que a arma fazia mais pressão sobre seu ombro. Forçou a vista na direção do alvo sombreado. Em seu centro surgiu um quadrado negro mais escuro. Bond levantou a mão esquerda cautelosamente para se proteger do luar. Sentiu um bafejo atrás de seu ouvido direito. “Aí vem ele.” Da boca do enorme cartaz sombreado, entre os grandes lábios violáceos entreabertos de êxtase, surgiu a silhueta
de um homem que ficou pendurado como um verme da boca de um cadáver. O homem pulou. Um navio que se dirigia ao Bósforo rosnou na noite como um animal insone no zoológico. Bond sentiu um prurido de suor na testa. O cano da arma deixou de fazer pressão quando o homem abandonou a calçada e veio na direção deles. Quando estiver na beira da sombra, começará a correr. Seu idiota, abaixe mais a mira. Agora. O sujeito se abaixou para dar uma rápida corrida atravessando a rua enluarada. Estava saindo da sombra. Dobrou a perna direita e projetou um ombro para ter mais impulso. Bond ouviu uma pancada de machado
contra o tronco de uma árvore ao lado do seu ouvido direito. O sujeito mergulhou para a frente, com os braços estendidos. Ouviu-se um baque alto quando seu queixo, ou sua testa, bateu no chão. Um cartucho vazio tilintou aos pés de Bond. Ouviu o clique do seguinte penetrando na agulha. Os dedos do homem arranharam brevemente o chão. Seus sapatos chutaram a rua. Em seguida, ficou absolutamente imóvel. Kerim resmungou. O rifle foi retirado do ombro de Bond. Ouviram-se os barulhos de Kerim dobrando-o e guardando a mira telescópica no estojo
de couro. Bond desviou o olhar da figura estatelada na rua, a figura de alguém que já existira e não existia mais. Teve um instante de ressentimento contra sua vida, que o fazia testemunhar coisas assim. Não era ressentimento contra Kerim, que fora por duas vezes o alvo daquele sujeito. De certo modo, havia sido um longo duelo, em que o sujeito atirara duas vezes e Kerim, uma. Mas Kerim era um homem mais inteligente, mais calmo, mais sortudo, e tudo não passava disso. Mas Bond jamais matara a sangue-frio e não gostara de ser testemunha, nem de ter ajudado outra pessoa a fazê-lo. Kerim pegou seu braço, em silêncio.
Afastaram-se lentamente da cena, voltando por onde vieram. Kerim pareceu adivinhar os pensamentos de Bond. “A vida é plena de morte, meu amigo”, disse, filosoficamente. “E às vezes somos transformados no instrumento dela. Não me arrependo de ter matado aquele sujeito. Nem me arrependeria de matar aqueles russos que vimos hoje na sala. Eles são inflexíveis. Nunca cedem nada por bem, só pela força. Gostaria que o seu governo percebesse isto e tomasse uma atitude firme com eles. Só uma pequena lição ocasional de boas maneiras, como lhes dei esta noite.” “Na grande política, a gente nem
sempre tem a oportunidade de ser tão rápido e direto quanto você foi esta noite, Darko. E não esqueça que você castigou apenas um dos seus satélites, um dos sujeitos que sempre encontram para fazer o trabalho sujo para eles. Veja só”, disse Bond, “concordo plenamente quanto aos russos. Simplesmente não compreendem a cenoura. Só o chicote. No fundo são masoquistas. Adoram o açoite. Por isso eram tão felizes sob Stálin. Ele aplicava o chicote. Não sei como irão reagir às migalhas de cenoura que Khrushchev & Cia. lhes dão. Quanto à Inglaterra, o problema é que hoje a moda é cenouras para todo mundo. Em casa e no exterior. Não mostramos mais os dentes — só as
gengivas”. Kerim achou muita graça, mas não fez nenhum comentário. Subiam de novo a ruela fedorenta e não sobrava fôlego para falar. Descansaram no topo e caminharam lentamente para as árvores da Praça do Hipódromo. “Então me perdoa por hoje?” Era estranho ouvir a voz daquele homenzarrão geralmente tão exuberante pedindo para ser reassegurado. “Perdoá-lo? Perdoá-lo pelo quê? Não seja ridículo.” A voz de Bond demonstrava afeto. “Você tem um trabalho a fazer e o está fazendo. Fiquei muito impressionado. Tem uma bela organização aqui. Eu é quem deveria me
desculpar. Parece que lhe trouxe muitas amolações. E você as resolveu. Apenas o segui. E não avancei nada na minha missão principal. M deve estar bastante impaciente. Talvez eu encontre uma mensagem qualquer no hotel.” Mas, quando Kerim levou Bond de volta ao hotel e foi com ele até o balcão, não havia nada. Kerim deu-lhe um tapinha nas costas. “Não se preocupe, meu amigo”, disse, alegremente. “A esperança dá um bom café da manhã. Coma bastante. Mandarei o carro de manhã e, se não tiver acontecido nada, inventarei mais algumas pequenas aventuras para passar o tempo. Limpe a sua pistola e durma com ela debaixo do travesseiro. Ambos merecem um bom
descanso.” Bond subiu a pequena escada, destrancou a porta e voltou a trancá-la depois de ter entrado. O luar penetrava entre as cortinas. Foi até a penteadeira e acendeu as luminárias cor-de-rosa. Tirou as roupas, foi para o banheiro e passou alguns minutos sob o chuveiro. Pensou como sábado, catorze, havia sido muito mais movimentado do que sexta, treze. Escovou os dentes, gargarejou fortemente para se livrar do gosto do dia e apagou a luz, voltando para o quarto. Bond afastou uma cortina e abriu completamente as grandes janelas, ficando em pé ali a ver a enorme curva
em bumerangue do mar, sob a lua que ia alta. A brisa noturna transmitia um delicioso frescor a seu corpo nu. Consultou o relógio. Duas horas. Bond deu um bocejo trêmulo. Largou as cortinas. Inclinou-se para apagar as luzes da penteadeira. Subitamente, congelou, com o coração palpitando. Das sombras no fundo do quarto veio um risinho. Uma voz de mulher disse: “Pobre sr. Bond. Deve estar cansado. Venha para a cama.”
20. NEGRO SOBRE ROSA
Bond voltou-se depressa. Olhou para a cama, mas seus olhos estavam ofuscados pelo luar. Atravessou o quarto e acendeu o abajur rosado na cabeceira. Havia um corpo comprido sob o único lençol. Cabelos castanhos espalhados em cima do travesseiro. Viam-se pontas de dedos segurando o lençol que tapava um rosto. Mais embaixo, seios salientes como montes cobertos de neve. Bond soltou uma breve risada. Inclinou-se e deu um leve puxão nos
cabelos. Houve um gemido de protesto debaixo do lençol. Bond sentou na beira da cama. Depois de um minuto de silêncio um canto do lençol foi cautelosamente abaixado, e um grande olho azul passou a examiná-lo. “Você está muito indecente”, disse a voz, abafada pelo lençol. “E você! Como entrou aqui?” “Desci dois andares. Também estou hospedada aqui.” A voz era grave e provocante, com pouco sotaque. “Bem, vou entrar na cama.” O lençol baixou logo até o queixo e a garota se aprumou nos travesseiros. Estava enrubescida. “Ah, não. Não pode.” “Mas a cama é minha. Aliás, você me
disse para entrar.” O rosto era incrivelmente belo. Bond o examinou com calma. Ela corou ainda mais. “Foi só uma expressão. Para me apresentar.” “Bem, muito prazer em conhecê-la. Meu nome é James Bond.” “O meu é Tatiana Romanova.” Ela pronunciou o segundo “a” de Tatiana e o primeiro de Romanova de maneira muito alongada. “Meus amigos me chamam de Tania.” Fez-se um intervalo enquanto olhavam um para o outro, a garota com curiosidade, e possivelmente com alívio, enquanto Bond a examinava com frieza.
Foi ela quem primeiro quebrou o silêncio: “Você se parece exatamente com as suas fotos.” E corou de novo. “Mas precisa vestir algo. Fico perturbada.” “Você me perturba do mesmo jeito. Chama-se sexo. Se eu entrasse na cama junto com você, não teria importância. Aliás, o que você está usando?” Ela abaixou o lençol um pouquinho, expondo uma fita de veludo preta, de um centímetro, em volta do pescoço. “Isso.” Bond olhou para os provocantes olhos azuis, que agora se arregalaram como se para indagar se a fita era indecente. Ele sentiu que perdia o controle do próprio corpo.
“Puxa, Tania. Onde está o resto de sua roupa? Ou você desceu no elevador assim?” “Ah, não. Não teria sido kulturny. Estão debaixo da cama.” “Bem, se você acha que vai sair deste quarto sem...” Bond deixou a frase inacabada. Levantou-se da cama e foi botar um de seus casacos de pijama de seda azulescura, que usava em vez do pijama inteiro. “O que você sugere não é kulturny.” “Ah, não é?”, disse Bond, sarcasticamente. Voltou e puxou uma cadeira ao lado da cama. Dirigiu um sorriso à garota. “Olhe, vou lhe dizer
uma coisa kulturny. Você é uma das mulheres mais bonitas do mundo.” A garota corou de novo. Olhou para ele, séria. “Está falando a verdade? Acho minha boca muito grande. Sou tão bonita quanto as ocidentais? Já me disseram que pareço a Greta Garbo. É mesmo?” “Mais bonita”, respondeu Bond. “Seu rosto é mais iluminado. E sua boca não é grande demais. É do tamanho certo. Pelo menos para o meu gosto.” “O que é isso — rosto iluminado? O que quer dizer?” Bond queria dizer que ela não lhe parecia uma espiã russa. Não demonstrava nenhuma reserva típica do espião. Nenhuma frieza, nenhum
calculismo. Dava a impressão de um coração caloroso e alegre. Essas coisas se irradiavam através do olhar. Buscou uma expressão não comprometedora. “O seu olhar demonstra muito humor e alegria”, disse, de modo meio capenga. Tatiana pareceu séria. “Que curioso”, disse. “Não existe muito humor nem alegria na Rússia. Ninguém fala nessas coisas. Nunca me disseram isso antes.” Alegria?, pensou ela. Depois desses últimos dois meses? Como poderia demonstrar alegria? E contudo havia, sim, uma leveza no seu coração. Seria uma mulher depravada? Ou tinha algo a ver com este homem que ela nunca havia visto antes? Alívio a seu respeito,
depois da agonia pensando naquilo que teria de fazer? Era certamente muito mais fácil do que pensara. Ele tornava a coisa fácil — divertida, com um toque de perigo. Era extremamente bonito. E dava a impressão de ser muito limpo. Será que a perdoaria quando chegassem a Londres e ela lhe dissesse? Dissesse que fora mandada para seduzi-lo? Até mesmo a noite em que deveria fazê-lo e o número do quarto? Com certeza, não se importaria muito. Não era nada que lhe fizesse mal. Apenas uma maneira de ela chegar à Inglaterra e fazer aqueles relatórios. “Humor e alegria no seu olhar.” Sim, por que não? Era possível. Havia uma maravilhosa sensação de liberdade em estar sozinha com um
homem assim e saber que não seria punida. Era de fato muito excitante. “Você é bonito”, disse ela. Buscou uma comparação que agradasse a ele. “Parece um astro de cinema americano.” Ficou espantada com sua reação. “Pelo amor de Deus! É o pior insulto que se pode fazer a um homem!” Ela correu para endireitar o erro. Que coisa curiosa, o elogio não lhe agradou. Todo mundo no Ocidente não gostaria de se parecer com um astro de cinema? “Eu estava mentindo”, ela disse. “Queria lhe agradar. Na verdade, você é igual a meu herói favorito. É do livro de um escritor russo chamado Lermontov. Um dia lhe contarei sobre ele.”
Um dia? Bond pensou que era hora de falarem a sério. “Escute só, Tatiana.” Procurou não olhar para o belo rosto no travesseiro. Fixou o olhar na ponta de seu queixo. “Precisamos deixar de brincar e falar sério. Que significa isso? Vai mesmo voltar comigo para a Inglaterra?” Ergueu os olhos para os dela. Foi fatal. Ela os arregalara de novo com aquela terrível inocência. “Mas é claro!” “Ah!” Bond ficou espantado com sua resposta direta. Olhou para ela, desconfiado. “Tem certeza?” “Sim.” Seu olhar agora era verdadeiro. Parara de flertar.
“Não tem medo?” Percebeu que uma sombra passara pelo seu olhar. Mas não pelo motivo que ele pensava. Ela havia lembrado que precisava desempenhar um papel. Precisava ter medo pelo que estava fazendo. Aterrorizada. Parecera tão fácil essa atuação, mas agora estava difícil. Estranho! Ela resolveu pôr um meiotermo. “Sim, estou com medo. Mas não tanto, agora. Você me protegerá. Acho que sim.” “Sim, claro que vou.” Bond pensou nos parentes dela na Rússia. Afastou rápido este pensamento. O que estava fazendo? Procurando dissuadi-la de vir?
Bloqueou sua mente para as consequências que imaginou que o ato dela teria. “Não é preciso se preocupar com nada. Cuidarei de você.” E agora a pergunta que ele vinha evitando. A garota não era nem um pouco o que ele esperara. Fazer a pergunta ia estragar tudo. Mas precisava ser feita. “E a respeito do aparelho?” Sim. Fora o mesmo que esbofeteá-la. Seu rosto demonstrou mágoa e ameaça de lágrimas. Ela puxou o lençol sobre a boca e falou através dele. O olhar acima do lençol era frio. “Então é isso que você quer.” “Escute só.” Bond deu um tom negligente à sua voz. “O aparelho não
tem nada a ver com você e comigo. É meu pessoal em Londres que o quer.” Lembrou-se da preocupação com a segurança. “Não é assim tão importante. Sabem tudo sobre o aparelho e acham que ele é uma maravilhosa invenção russa. Só querem copiar. Do mesmo modo que seus compatriotas copiam câmeras estrangeiras, e assim por diante.” Meu Deus, como parecia capenga! “Agora você está mentindo”, uma grande lágrima rolou de um olho azul arregalado, escorreu pela face macia e depois caiu no travesseiro. Ela tapou os olhos com o lençol. Bond estendeu a mão e segurou o
braço dela sob o lençol. Ela sacudiu e livrou o braço, zangada. “Dane-se o raio do aparelho”, falou com impaciência. “Mas, pelo amor de Deus, Tania, você deve saber que tenho uma tarefa a cumprir. Apenas me dê uma resposta, positiva ou negativa, e esqueceremos tudo isso. Temos muito mais coisas que conversar. Precisamos planejar nossa viagem e assim por diante. É claro que o meu pessoal o quer; do contrário, não teriam me mandado buscar você e ele.” Tatiana secou os olhos com o lençol. Puxou de novo o lençol bruscamente até os ombros. Sabia que estava esquecendo a sua tarefa. Mas havia sido apenas... Ah, se ele tivesse apenas dito que o
aparelho não tinha importância desde que ela viesse com ele. Mas era esperar demais. Ele tinha razão. Tinha uma tarefa a fazer. Ela também. Olhou para ele com calma. “Vou trazê-lo. Não tenha receio. Mas não vamos falar nisso de novo. E agora, escute.” Ela lembrou sua lição. “É a única chance. Esta noite estou de serviço a partir das seis horas. Ficarei sozinha no escritório e pegarei o Spektor.” Os olhos de Bond se estreitaram. Sua mente disparou ao pensar nos problemas que teriam de ser enfrentados. Onde escondê-la. Como tirá-la dali pelo primeiro avião depois que o roubo fosse
descoberto. Seria um negócio arriscado. Nada os deteria para reaver a ela e ao Spektor. Barreira na estrada. Bomba no avião. Qualquer coisa. “Que maravilha, Tania.” A voz de Bond era despreocupada. “Vamos mantê-la escondida e depois tomaremos o primeiro avião amanhã cedo.” “Não seja tolo.” Tatiana fora avisada que agora haveria umas falas difíceis de sua parte. “Tomaremos o trem. Esse Expresso do Oriente. Parte hoje às nove da noite. Acha que eu também não andei pensando na solução desse problema? Não ficarei nem mais um minuto além do necessário em Istambul. Já teremos atravessado a fronteira ao amanhecer. Você precisa arranjar os bilhetes e um
passaporte. Viajarei como sua mulher.” Ela ergueu os olhos, feliz, para ele. “Gostarei dessa parte. Em uma dessas cabines sobre as quais já li nos livros. Devem ser muito confortáveis. Como pequenas casas sobre rodas. Durante o dia a gente conversa e lê, e de noite você fica do lado de fora de nossa casa, de guarda.” “Vá esperando”, disse Bond. “Mas olhe, Tania, isso é uma loucura. Seremos certamente alcançados em algum ponto. O trem leva cinco dias e cinco noites para chegar a Londres. Precisamos pensar em algo diferente.” “Não quero”, disse a garota, incisivamente. “Só irei assim. Se você
for esperto, como poderão descobrir?” Ah, meu Deus. Por que eles haviam insistido nesse trem? Mas haviam sido categóricos. Era um bom lugar para amar, haviam dito. Ela teria quatro dias para fazer com que ele se apaixonasse. Depois chegariam a Londres, e ela teria uma vida fácil. Ele a protegeria. Caso contrário, se fossem de avião para Londres, ela logo seria presa. Os quatro dias eram essenciais. E eles haviam lhe avisado: “Teremos agentes no trem para assegurar que você não desembarque. Por isso, cuidado. Obedeça às nossas ordens.” Ah, meu Deus, meu Deus, como ela ansiava por aqueles quatro dias com ele na casinha sobre rodas. Curioso! Antes havia sido seu dever obrigá-lo a
isso. Agora era seu desejo ardente. Contemplou o rosto pensativo de Bond. Ansiava por estender a mão e lhe garantir que tudo daria certo; que se tratava de uma konspiratsia inofensiva para levá-la para a Inglaterra; que nenhum deles sofreria qualquer mal, porque não era este o objetivo do plano. “Olhe, eu ainda acho uma loucura”, disse Bond, imaginando qual seria a reação de M. “Mas vamos supor que funcione. Tenho o passaporte. Precisarei de um visto iugoslavo.” Olhou-a severamente. “Não pense que vou levála através da Bulgária, senão acharei que você quer me sequestrar.” “Quero, sim.” Tatiana deu uma
risadinha. “É exatamente o que quero fazer.” “Agora, fique quieta, Tatiana. Precisamos pensar bem nisso. Arranjarei os bilhetes, e que um dos nossos nos acompanhe. Só por precaução. É um bom sujeito. Gostará dele. Seu nome será Caroline Somerset. Não esqueça. Como pretende chegar até o trem?” Karolin Siomerset, a garota revolveu o nome na sua cabeça. “É um nome bonito. E você é Mister Siomerset.” Ela riu alegremente. “Que divertido. Não se preocupe comigo. Chegarei ao trem logo antes de ele partir. É na Estação Sirkeci. Sei onde fica. Então é só. E não precisamos mais nos preocupar, não é?”
“Mas suponhamos que você perca a coragem. Que eles a peguem.” De repente Bond ficou preocupado com a segurança da garota. Como ela podia ter tanta certeza? Um arrepio de surpresa percorreu sua espinha. “Antes de ver você, eu tinha medo. Agora não.” Tatiana procurou dizer a si mesma que era verdade. De certo modo, quase. “Mas não perderei a coragem agora. E eles não poderão me pegar. Deixarei minhas coisas no hotel e só levarei minha bolsa normal para o escritório. Não consigo abandonar meu casaco de pele. Amo-o demais. Mas, como hoje é domingo, terei uma desculpa para usá-lo no escritório. Hoje
à noite, às oito e meia, sairei e pegarei um táxi para a estação. E agora pare de ficar tão preocupado.” Impulsivamente, e porque era assim que tinha que ser, ela estendeu a mão para ele. “Diga que você ficou contente.” Bond foi sentar-se na beira da cama. Pegou na sua mão e olhou os seus olhos. Meu Deus, pensou, espero que dê certo. Espero que esse plano maluco funcione. Será que essa garota maravilhosa é uma farsante? Será sincera? Será verdadeira? Seus olhos não transmitiam nada, a não ser que estava feliz, querendo que ele a amasse, e surpresa diante do que lhe acontecia. A outra mão de Tatiana se ergueu e enlaçou o pescoço dele, puxando-o violentamente
contra seu corpo. De início sua boca tremeu sob a dele, mas, à medida que foi dominada pela paixão, ela se entregou a um beijo infindável. Bond colocou as pernas sobre a cama. Enquanto sua boca continuava a beijar, a mão foi até o seio esquerdo, segurandoo, sentindo o mamilo endurecido de desejo sob os dedos. Sua mão deslizou para baixo sobre a barriga esticada. As pernas dela se mexeram languidamente. Ela gemeu baixinho e afastou sua boca. Embaixo dos olhos fechados os longos cílios tremiam como asas de beija-flor. Bond estendeu o braço, pegou a beira do lençol e puxou-o para baixo, atirando-o no pé da grande cama. Ela
não vestia nada exceto a fita negra em volta do pescoço e meias de seda pretas enroladas acima dos joelhos. Seus braços procuraram por ele. Acima deles, e sem que ambos soubessem, por trás do falso espelho de moldura dourada no teto sobre a cama, os dois fotógrafos da SMERSH se comprimiam no apertado cabinet de voyeur, tal como, antes deles, muitos amigos do proprietário haviam se sentado para observar uma noite de núpcias no apartamento de luxo do Kristal Palas. E os fotógrafos fitavam friamente os apaixonados arabescos que os dois corpos formavam, desfaziam e tornavam
a formar; e o mecanismo de corda das câmeras zunia baixo, enquanto os homens ofegavam de boca aberta e o suor da excitação escorria de seus rostos inchados, até os colarinhos baratos.
21. EXPRESSO DO ORIENTE
As grandes composições estão acabando na Europa, uma a uma, mas ainda assim o Expresso do Oriente cobre, com seu estrépito e imponência, os 2.100 quilômetros de trilhos de aço reluzentes entre Istambul e Paris. Sob as luzes fluorescentes a locomotiva alemã de longo chassi arfava com a respiração agônica de um dragão morrendo de asma. Cada suspiro pesado parecia ser o último. Mas era seguido de outro. Pequenas nuvens de vapor se
erguiam entre os engates dos vagões, para se esvair rápido no ar quente de agosto. O Expresso do Oriente era o único trem a dar mostras de vida no barracão feio, de arquitetura barata, que é a estação principal de Istambul. Faltavam locomotivas às demais composições abandonadas — à espera do dia de amanhã. Apenas a linha nº 3 e sua plataforma pulsavam com a trágica poesia das despedidas. A grande placa de bronze ao lado do vagão azul-escuro ostentava os dizeres: COMPAGNIE INTERNATIONALE DES WAGON-LITS ET DES GRAND EXPRESS EUROPÉENS. Sobre a placa, presa por cantoneiras de metal, outra placa, de ferro, pintada de branco,
anunciava em caracteres negros maiúsculos: EXPRESSO DO ORIENTE. E, embaixo, em três linhas:
ISTANBUL THESSALONIKI VENEZIA MILAN LAUSANNE PARIS
James Bond olhou vagamente para uma das tabuletas mais românticas do mundo. Consultou o relógio pela décima vez. 8h51. Seu olhar voltou para a tabuleta. As cidades todas estavam grafadas na língua original, exceto MILAN. Por que não MILANO? Bond tirou o lenço e enxugou o rosto. Onde diabo estaria a garota? Teria sido
apanhada? Teria pensado duas vezes? Ou ele havia sido bruto demais com ela na noite passada, ou melhor, nesta madrugada, na enorme cama? 8h55. O resfolegar baixo da locomotiva havia parado. Um chiado ecoou na plataforma quando a válvula de escape automática deu vazão ao excesso de vapor. Por entre a multidão compacta, Bond avistou o chefe da estação, a cem metros dali, erguendo a mão para o maquinista e o foguista, e começando a percorrer a composição lentamente, batendo as portas dos vagões de terceira classe, na frente. Os passageiros, na sua maior parte camponeses gregos de volta depois de um fim de semana com os parentes
turcos, se debruçavam nas janelas tagarelando com a multidão sorridente na plataforma. Ao longe, onde as luzes fluorescentes acabavam para dar lugar à noite azulescura e estrelada, surgida no arco crescente da estação, Bond viu uma luzinha vermelha mudar para verde. O chefe da estação se aproximou mais. O condutor do vagão-leito, em um uniforme marrom, bateu no braço de Bond. “En voiture, s’il vous plaît.” Dois turcos com aparência de milionários beijaram suas amantes — eram bonitas demais para serem esposas — e, depois de uma batelada de recomendações sorridentes, subiram no
pequeno pedestal de ferro, e dali para os dois degraus altos do vagão. Não havia mais nenhum passageiro dos vagõesleitos na plataforma. O condutor deu um olhar impaciente para o inglês alto, recolheu o pedestal de ferro e entrou com ele no trem. O chefe da estação passou com ar decidido. Faltavam mais dois vagões, da primeira e segunda classes, para que ele, quando chegasse ao vagão do guarda-freio, levantasse a bandeira verde suja. Não se via ninguém correndo pela plataforma a partir do guichê. Lá no alto, perto do teto da estação, o ponteiro de minutos do grande relógio iluminado pulou dois centímetros, anunciando:
“Nove.” Bond ouviu uma janela sendo arriada com força. Olhou para cima. Sua primeira reação foi achar que o véu preto tinha malhas muito abertas. O intento de disfarçar a boca sensual e os olhos azuis excitados havia sido, no mínimo, amador. “Rápido.” O trem começara a andar. Bond alcançou o balaústre e pulou no degrau. O condutor ainda mantinha a porta aberta. Bond entrou sem pressa. “A madame se atrasou”, disse o condutor. “Veio pelo corredor. Deve ter entrado no último vagão.” Bond atravessou o longo corredor
atapetado até a cabine, no centro do trem. Um 7 preto encimava um 8 preto no losango branco de metal. A porta estava entreaberta. Bond entrou e a fechou. A garota tirara o véu e o chapéu preto de palha. Estava sentada no canto, junto à janela. O longo casaco de pele de marta zibelina aberto deixava à mostra o vestido de shantung de cor crua, a saia plissada, meias de náilon cor de mel e sapatos e cinto de crocodilo preto. Aparentava calma. “Você não confia em mim, James.” Bond sentou a seu lado. “Tania”, disse, “se houvesse um pouquinho mais de espaço, eu botava você no colo e lhe dava umas palmadas. Quase me mata do coração. O que aconteceu?”
“Nada”, disse ela, inocentemente. “O que poderia acontecer? Eu disse que estaria aqui, e aqui estou. Você é desconfiado. E já que está mais interessado no meu dote do que em mim, ele está aí em cima.” Bond olhou para cima com displicência. Havia dois pequenos estojos na prateleira, ao lado da mala. Ele pegou sua mão. Disse: “Graças a Deus que está a salvo.” Algo em seu olhar, talvez um lampejo de culpa por ter confessado a si mesmo que estava mais interessado na garota do que no aparelho, bastou para convencêla. Ela conservou a mão dele entre as suas e se recostou, satisfeita, no seu
canto. O uivo do trem contornou lentamente a Ponta Seraglio. O farol iluminava os tetos dos barracos miseráveis ao longo da ferrovia. Bond pegou um cigarro com a mão livre e acendeu-o. Pensou que em breve passariam por trás do grande cartaz onde Krilencu morava — pelo menos morava até menos de vinte e quatro horas antes. Bond reviu a cena em todos os detalhes. A encruzilhada esbranquiçada, os dois sujeitos na sombra, o condenado escapando por entre os lábios violáceos… A garota olhava o homem com ternura. Em que pensava ele? O que se passava por trás daqueles frios olhos cinza-azulados que às vezes eram
meigos, e às vezes, como no momento de paixão entre seus braços, na noite anterior, brilhavam como diamantes? Agora estavam velados, a pensar. Será que se preocupava com ambos? Preocupava-se com a segurança? Se apenas ela pudesse lhe dizer que não havia nada a temer, que ele era somente o seu passaporte para a Inglaterra — ele e o estojo pesado que o diretor residente lhe entregara naquela noite no escritório. O diretor falara a mesma coisa: “Eis o seu passaporte para a Inglaterra, cabo.” Disse com alegria: “Olhe.” Abrira o estojo. “Um Spektor novinho em folha. Preste atenção para não abrir este estojo novamente, nem deixá-lo sair de sua
cabine até você chegar a seu destino. Do contrário este inglês o tomará e depois vai jogá-la no lixo. É este aparelho que eles querem. Não deixe que o tomem, senão terá fracassado em sua missão. Compreendeu?” Um sinaleiro surgiu lentamente no crepúsculo azulado lá fora. Tatiana olhou Bond abrir a janela e enfiar a cabeça na escuridão. O corpo dele estava ao seu lado. Ela mexeu com o joelho até tocá-lo. Como era extraordinária essa ternura apaixonada que a dominara desde que ela o vira na noite anterior, nu à janela, com os braços erguidos para afastar a cortina, o perfil encimado pelo cabelo preto desgrenhado, pálido e concentrado ao
luar. E, depois, a maravilhosa fusão dos olhos e dos corpos. A chama que de repente se acendera entre eles — entre dois agentes secretos, oriundos de lados inimigos que um mundo separava, cada um engajado em seu próprio plano contra o país do outro, adversários por profissão e, no entanto, transformados em amantes por ordem de seus governos. Tatiana estendeu a mão e puxou a beira do paletó de Bond. Bond fechou a janela e se virou. Sorriu-lhe. Leu o que havia nos seus olhos. Inclinou-se e, pondo as mãos na pele que cobria seus seios, beijou-a com força nos lábios. Tatiana inclinou-se para trás, puxando-o para si.
Ouviram-se duas batidas leves na porta. Bond se levantou. Tirou o lenço e esfregou com força os lábios para tirar o batom. “Deve ser meu amigo, Kerim”, disse. “Preciso falar com ele. Falarei com o condutor para fazer as camas. Fique aqui enquanto isso. Não vou demorar. Estarei do lado de fora da porta.” Ele se curvou e tocou na mão dela. Olhou para seus grandes olhos e para a expressão amuada de seus lábios entreabertos. “Teremos a noite inteira só para nós. Primeiro, preciso garantir a sua segurança.” Abriu a porta e saiu. O corpanzil de Darko Kerim bloqueava o corredor. Estava apoiado no corrimão de metal, fumando e
contemplando, pensativo, o mar de Mármara que se afastava à medida que a longa composição se distanciava do litoral, avançando terra adentro em direção ao norte. Bond se apoiou no corrimão ao seu lado. Kerim olhou para o reflexo do rosto de Bond na janela escura. Disse em voz baixa: “As notícias não são boas. Há três deles no trem.” “Ah!” Um arrepio percorreu a espinha de Bond. “Os três estranhos que vimos naquela sala. É óbvio que estão atrás de você e da moça.” Kerim olhou incisivamente de lado. “Isso a transforma em cúmplice. Ou não?” Bond manteve a cabeça fria. Então a
garota havia sido uma isca. No entanto, no entanto… Não, diabos, ela não podia estar representando. Impossível. E o aparelho decodificador? Talvez não estivesse naquele estojo, afinal de contas. “Espere um minuto”, disse. Virou-se e bateu delicadamente na porta. Ouviu-a destrancá-la e tirar a corrente. Entrou e fechou a porta. Ela pareceu espantada. Pensou que fosse o condutor chegando para arrumar as camas. Ela lhe deu um sorriso radiante. “Acabou?” “Sente-se, Tatiana. Preciso falar com você.” Ela agora percebeu a expressão fria no rosto dele e seu sorriso murchou.
Sentou-se docilmente com as mãos no colo. Bond ficou em pé à sua frente. Era culpa ou medo no rosto dela? Não, apenas espanto e uma frieza que combinava com a própria expressão dele. “Agora, escute só, Tatiana”, a voz de Bond era mortífera. “Algo aconteceu. Preciso olhar naquela bolsa para ver se o aparelho está lá mesmo.” Ela respondeu com uma voz neutra: “Pegue-a e veja.” Contemplou suas mãos no colo. Então era chegada a hora. Conforme o diretor havia dito. Iam tomar o aparelho e descartá-la, talvez obrigá-la a desembarcar do trem. Ah, meu Deus, esse sujeito ia fazer isso com
ela. Bond ergueu os braços e pegou o estojo pesado, colocando-o no assento. Abriu o zíper lateral e olhou. Sim, um estojo de metal envernizado com três fileiras de teclas largas, meio parecido com uma máquina de escrever. Abriu a bolsa e mostrou-a para ela. “Isto é um Spektor?” Ela deu um olhar vago para a bolsa. “Sim.” Bond fechou o zíper e voltou com a bolsa para a prateleira. Sentou-se ao lado da garota. “Há três sujeitos da MGB no trem. Sabemos que são os que chegaram ao centro de vocês na segunda. O que estão fazendo aqui,
Tatiana?”, Bond falou em um tom de voz delicado. Olhou-a. Examinou-a com todos os seus sentidos. Ela ergueu o olhar. Lágrimas brotaram de seus olhos. Seriam lágrimas de uma criança apanhada em flagrante? Mas não havia nenhum vestígio de culpa no seu rosto. Parecia apenas muito amedrontada. Ela estendeu a mão, em seguida retirou-a. “Você não vai me expulsar do trem, agora que obteve o aparelho, vai?” “Claro que não”, respondeu Bond, com impaciência. “Não seja idiota. Mas precisamos saber o que estes sujeitos estão tramando. O que vieram fazer? Você sabia que eles estariam no trem?” Ele tentou encontrar alguma pista na sua
expressão. Via apenas um grande alívio. E o que mais? Certo cálculo? Reserva? Sim, ela escondia algo. Mas o quê? Tatiana pareceu decidir-se. Limpou as lágrimas bruscamente com as costas da mão. Estendeu o braço e pôs a mão no joelho dele. As lágrimas ainda eram visíveis em cima da mão. Olhou nos olhos de Bond, para obrigá-lo a acreditar nela. “James”, disse, “eu não sabia que eles estariam no trem. Me disseram que partiriam hoje. Para a Alemanha. Presumi que fossem de avião. É só o que posso lhe dizer. Até chegarmos à Inglaterra, fora do alcance do meu pessoal, é bom não me perguntar mais
nada. Fiz o que disse que faria. Aqui estou com o aparelho. Confie em mim. Não tema pela gente. Tenho certeza de que esses sujeitos não pretendem nos fazer nenhum mal. Certeza absoluta. Confie”. (Será que ela tinha tanta certeza?, ponderou Tatiana. Aquela mulher Klebb lhe contara toda a verdade? Mas também ela precisava ter fé — confiar nas ordens que recebera. Esses sujeitos deviam ser os guardas encarregados de impedi-la de abandonar o trem. Não tinham a intenção de lhes fazer mal algum. Mais tarde, quando chegassem a Londres, Bond a esconderia em algum lugar fora do alcance da SMERSH e ela lhe contaria tudo que ele quisesse saber. Já resolvera
isto categoricamente. Mas Deus sabe o que aconteceria se ela os traísse agora. Eles dariam um jeito de pegá-la e a ele também. Ela sabia. Não havia segredos que essa gente desconhecesse. E eles não teriam nenhuma misericórdia. Mas, desde que ela desempenhasse o seu papel, tudo daria certo.) Tatiana examinou o rosto de Bond buscando um indício de que ele lhe dava crédito. Bond deu de ombros. Levantou-se. “Não sei o que pensar, Tatiana”, disse. “Você está me escondendo alguma coisa, mas acho que é algo cuja importância desconhece. E creio que acredita de fato que estejamos seguros. Talvez sim. A presença desses sujeitos
no trem pode ser uma coincidência. Preciso conversar com Kerim e decidir o que deve ser feito. Não se preocupe. Cuidaremos de você. Mas agora precisamos ter muita cautela.” Bond olhou em volta da cabine. Experimentou a porta de comunicação com o compartimento ao lado. Estava trancada. Decidiu calçá-la depois que o condutor saísse. Faria o mesmo com a porta que dava para o corredor. E seria obrigado a ficar acordado. Adeus, lua de mel sobre rodas! Bond deu um sorriso contrariado para si mesmo e chamou o condutor. Tatiana o olhava com ansiedade. “Não se preocupe, Tatiana”, repetiu. “Não se preocupe com nada. Vá para a cama depois que o
sujeito sair. Não abra a porta a não ser para mim. Não dormirei esta noite, ficarei de vigia. Talvez amanhã as coisas sejam mais fáceis. Farei um plano junto com Kerim. É um bom sujeito.” O condutor bateu. Bond o deixou entrar e saiu para o corredor. Kerim permanecia lá, olhando para fora. O trem ganhara velocidade correndo desabalado pela noite, com seu apito melancólico ecoando em um corte alto na montanha, em cujas paredes dançavam os reflexos saltitantes de suas janelas iluminadas. Kerim permanecia imóvel, mas seus olhos, grudados no espelho da janela escura, estavam
atentos. Bond contou a conversa. Não foi fácil explicar a Kerim o motivo pelo qual ele confiava tanto na garota. Observou a curva irônica de seu lábio quando procurou lhe descrever o que decifrara nos olhos dela, e o que a sua intuição lhe dizia. Kerim deu um suspiro resignado. “James”, disse, “agora é você quem manda. Faz parte de sua missão. Já discutimos grande parte desta questão hoje — o perigo do trem, a possibilidade de mandar o aparelho para casa pela mala diplomática, a integridade ou falta de integridade da garota. Parece que se rendeu incondicionalmente a você. Mas ao
mesmo tempo você confessa que se rendeu a ela. Talvez em parte. Mas decidiu confiar nela. Na conversa que tive com M, esta manhã, ele disse que apoiaria sua decisão. Deixou a seu critério. Assim seja. Mas ele não sabia que teríamos uma escolta de três sujeitos da MGB. Nem a gente. E acho que isso teria nos feito mudar de atitude, não é?” “Sim.” “Então a única coisa a fazer é eliminar esses três sujeitos. Tirá-los do trem. Deus sabe o que eles estão fazendo aqui. Não acredito em coincidências, do mesmo modo que você. Mas algo é certo. Não vamos aturar a companhia desses três no trem. Certo?”
“Evidente.” “Então deixe comigo. Pelo menos hoje à noite. Isto aqui ainda é meu território e tenho certo poder. E muito dinheiro. Não posso me arriscar a matálos. O trem seria detido. Você e a garota poderiam se comprometer. Mas vou inventar alguma coisa. Dois deles estão no vagão-dormitório. O mais graduado, de bigode e com o pequeno cachimbo, está na cabine a seu lado — aqui, na nº 5.” Ele fez um gesto para trás com a cabeça. “Viaja com um passaporte alemão na pele de ‘Melchior Benz, vendedor’. O moreno, armênio, está na nº 12. Ele também tem um passaporte alemão — ‘Kurt Goldfarb, engenheiro
civil’. Compraram bilhetes para Paris. Vi seus documentos. Tenho uma carteira da polícia. O condutor não criou problema. Fica com todos os bilhetes e passaportes na sua cabine. O terceiro, o sujeito com o furúnculo na parte de trás do pescoço, acabou tendo outros no rosto também. Um tipo estúpido e feio. Não vi seu passaporte. Viaja sentado de primeira classe, no compartimento colado ao meu. Só precisa entregar o passaporte na fronteira. Mas entregou seu bilhete.” Como um mágico, Kerim fez aparecer de seu bolso do paletó um bilhete amarelo de primeira classe, que ele tornou a embolsar. Sorriu orgulhoso para Bond. “Que diabo…?”
Kerim deu um sorriso de prazer. “Antes de se acomodar para a noite, essa mula foi ao banheiro. Eu estava em pé no corredor e de repente lembrei como costumávamos roubar caronas no trem quando eu era menino. Dei-lhe um minuto. Em seguida, fui até o banheiro e sacudi a maçaneta da porta. Segurei-a com força. ‘Bilheteiro’, eu disse em voz alta. ‘O bilhete, por favor’, disse em francês e repeti em alemão. Houve um resmungo lá dentro. Senti que ele tentava abrir a porta. Segurei com tanta força, que ele deve ter achado que a porta emperrara. ‘Não se incomode, Monsieur’, eu disse polidamente. ‘Passe o bilhete por baixo da porta.’ Ele mexeu
mais na maçaneta e eu ouvi uma respiração ofegante. Em seguida, uma pausa e um barulho de algo raspando sob a porta. Era o bilhete. Eu disse: ‘Merci, Monsieur’, com toda a polidez. Peguei o bilhete e passei para o vagão seguinte.” Kerim fez um gesto vago com a mão. “A mula deve estar em um sono tranquilo a esta altura. Achará que seu bilhete será devolvido na fronteira. Está equivocado. O bilhete terá virado cinza, e a cinza, levada pelos quatro ventos.” Kerim fez um gesto em direção à escuridão lá fora. “Farei com que esse sujeito seja retirado do trem, não importa quanto dinheiro ele tenha. Será dito que as circunstâncias precisam ser investigadas, que suas declarações
precisarão ser confirmadas pela agência de viagem. Poderá continuar viagem em um próximo trem.” Bond sorriu diante da imagem de Kerim fazendo travessuras da época do colégio. “Só você mesmo, Darko. E os outros dois?” Darko Kerim sacudiu seus ombros maciços. “Algo me virá à cabeça”, disse com segurança. “O melhor modo de agarrar um russo é obrigá-lo a fazer papel de bobo. Constrangê-lo. Torná-lo risível. Não toleram isso. Daremos um jeito de fazê-los passar um mau pedaço. Depois deixaremos que a MGB os castigue por terem falhado em suas missões. Sem dúvida, serão fuzilados
pelo próprio pessoal deles.” Enquanto falavam, o condutor saíra da nº 7. Kerim virou-se para Bond, botando a mão em seu ombro. “Não se preocupe, James”, disse, alegremente. “Vamos derrotar essa gente. Vá para a sua garota. A gente se encontra de manhã. Não dormiremos muito esta noite, mas o que fazer? Cada dia é diferente do outro. Talvez possamos dormir amanhã.” Bond olhou o homenzarrão se afastar com facilidade pelo corredor balançante. Notou que, a despeito do movimento do trem, os ombros de Kerim jamais encostavam nas paredes. Bond sentiu uma onda de afeto pelo espião profissional duro e bem-humorado. Kerim desapareceu na cabine do
condutor. Bond voltou-se e bateu de leve na porta da nº 7.
22. FORA DA TURQUIA
O trem prosseguia cortando a noite com seu uivo. Sentado, Bond contemplava a paisagem enluarada e fugitiva, concentrado em ficar acordado. Mas tudo conspirava para que ele dormisse — o galope metálico das rodas, o passar hipnótico dos postes telegráficos prateados, o uivo ocasional e melancólico do apito abrindo caminho, o embalante entrechocar metálico dos engates dos vagões no final dos corredores, os estalos constantes da
madeira na cabine. Até mesmo o pequeno brilho da luz violácea que ficava acesa à noite sobre a porta parecia dizer: “Eu cuidarei de você. Não vai acontecer nada enquanto eu estiver acesa. Feche os olhos e durma, durma.” A cabeça da garota no seu colo estava quente e pesada. Havia espaço para que ele se enfiasse sob o único lençol e se aninhasse contra ela, corpo encaixado no corpo, com a cabeça entre o leque aberto dos seus longos cabelos sobre o travesseiro. Bond apertou os olhos e abriu-os de novo. Levantou o relógio com cuidado. Quatro horas. Faltava apenas uma hora para a fronteira da Turquia. Talvez
pudesse dormir durante o dia. Entregaria a arma a ela, calçaria novamente as portas, enquanto ela vigiava. Contemplou o belo perfil adormecido. Como parecia inocente essa garota do Serviço Secreto russo, com as pestanas quase encostadas na delicada saliência das faces, os lábios entreabertos e inconscientes, a longa mecha de cabelo caindo desordenadamente na testa, que ele queria pôr no lugar, o pulso constante latejando na veia do pescoço descoberto. Sentiu uma súbita onda de ternura, uma vontade de abraçá-la e sentir suas coxas apertadas contra si. Queria que ela acordasse, talvez no meio de um sonho, para poder beijá-la e
lhe dizer que tudo estava bem, e vê-la voltar a dormir satisfeita. A garota insistira em dormir assim. “Não conseguirei dormir se você não me segurar”, dissera. “Preciso sentir que está a meu lado o tempo todo. Seria horrível acordar sem que estivesse me tocando. Por favor, James. Por favor, duschka.” Bond tirara o paletó e a gravata e se acomodara no canto, com os pés em cima da valise, a Beretta sob o travesseiro, ao alcance da mão. Ela nada comentara sobre a arma. Tirara toda a roupa, exceto a fita preta ao redor do pescoço, fingindo não seduzi-lo, e se enfiou impudicamente na cama, remexendo o corpo até encontrar uma
posição confortável. Estendera os braços para ele. Bond puxara sua cabeça para trás pelo cabelo e lhe dera um longo e violento beijo. Em seguida dissera-lhe que dormisse e se recostara com frieza, esperando o corpo se acalmar. Resmungando, sonolenta, ela se ajeitara com um braço sobre as coxas dele. De início o agarrou com força, mas depois seu braço relaxou aos poucos e ela dormiu. Bond desviou bruscamente seu pensamento da garota e se concentrou na viagem à frente. Em breve sairiam da Turquia. Mas seria mais fácil na Grécia? Não havia grande simpatia entre os dois países. E a
Iugoslávia? De que lado estava Tito? É provável que de ambos. Os três sujeitos da MGB, sem entrar no mérito das ordens que receberam, ou já sabiam da presença de Bond e Tatiana no trem, ou em breve o descobririam. Ele e a garota não podiam passar quatro dias encerrados naquela cabine com as venezianas puxadas. A presença deles seria comunicada a Istambul pelo telefone de alguma estação, e de manhã o sumiço do Spektor já teria sido descoberto. E depois? Rápidas providências através da embaixada soviética em Atenas ou Belgrado? Tirar a garota do trem por acusação de furto? Ou tudo isso era simples demais? E se fosse mais complicado — parte de um
plano misterioso, de uma intrincada conspiração russa —, devia driblá-la? Seria melhor eles desembarcarem em alguma estação sem importância, na contramão de sua linha, alugar um carro e pegar um avião para Londres? Lá fora o amanhecer luminoso começara a orlar de azul as pedras e as árvores disparadas. Bond consultou o relógio. Cinco horas. Em breve estariam em Uzunkopru. O que estaria acontecendo à sua retaguarda, no trem? Teria Kerim conseguido alguma coisa? Bond se recostou, relaxando o corpo. Afinal de contas, a solução era simples, de bom-senso. Se pudessem se livrar logo dos três agentes da MGB, poderiam
ficar no trem e seguir o plano original. Caso contrário, Bond desembarcaria com a garota e o aparelho em algum ponto da Grécia, e encontraria outro caminho para casa. Mas, se as circunstâncias melhorassem, Bond era a favor de continuar. Ele e Kerim eram sujeitos jeitosos. Kerim tinha um agente em Belgrado que iria encontrar o trem. Podia-se sempre apelar para a embaixada. A mente de Bond prosseguia acelerada, somando os prós e descartando os contras. Confessou tranquilamente a si mesmo que no fundo de sua lógica havia um desejo louco de jogar aquele jogo até o fim, para ver de que se tratava. Queria enfrentar essa
gente e solucionar o mistério, e, caso fosse alguma intriga, frustrá-la. M deixara as coisas por sua conta. Tinha a garota e o aparelho nas mãos. Por que temer? O que havia a temer? Seria loucura fugir e talvez escapar de uma armadilha só para cair em outra. O trem deu um longo apito e começou a diminuir a velocidade. Estava na hora do primeiro round. Se Kerim falhasse. Se os três sujeitos permanecessem no trem?... Uma máquina resfolegante puxando alguns vagões de carga passou por eles. Viram rapidamente o perfil de barracões. Com um solavanco e um rangido dos engates, o Expresso do
Oriente tomou um desvio em curva e abandonou a linha principal. Pelas janelas viam-se quatro pares de trilhos entremeados de capim e a extensão vazia da plataforma. Um galo cantou. O expresso diminuiu bem a marcha e finalmente, com suspiros de seus freios hidráulicos e o chiado do vapor sendo expulso, parou com um rangido. A garota se mexeu, ainda dormindo. Bond transportou com delicadeza sua cabeça até o travesseiro, levantou-se e saiu. Era uma típica estação do interior dos Bálcãs — fachadas de prédios tristes de pedra demasiadamente angulosa; a extensão poeirenta da plataforma, que não era elevada, e sim ao rés do chão, de modo que era preciso descer uma
longa escada para sair do trem; algumas galinhas ciscando e alguns funcionários desmazelados e indolentes, de barba por fazer, que nem sequer se esforçavam em se dar importância. Mais para cima, do lado da segunda classe, uma horda de camponeses tagarelas, com trouxas e cestas, esperava a alfândega e o controle de passaportes para poder embarcar e se juntar ao enxame lá dentro. Do outro lado da plataforma Bond avistou uma porta fechada com uma placa, POLIS. Pela janela suja ao lado da porta, achou ter entrevisto a cabeça e os ombros de Kerim. “Passeports. Douanes!” Um sujeito à paisana e dois policiais
em uniformes verde-escuros, com coldres nos cintos pretos, entraram no corredor. O condutor do vagão-leito vinha na frente, batendo nas portas. Na porta da nº 12 o condutor fez um discurso indignado em turco, segurando os bilhetes e os passaportes, como cartas, de modo espalhado na mão. Quando acabou, o sujeito à paisana pediu que os dois policiais se adiantassem, bateu com força na porta e, quando se abriu, entrou. Os dois policiais de guarda seguiram atrás. Bond desceu pelo corredor. Conseguia ouvir uma enxurrada de alemão arrevesado. Uma voz era fria, a outra amedrontada e nervosa. O passaporte e os bilhetes de Herr Kurt
Goldfarb estavam faltando. Herr Goldfarb os teria tirado da cabine do condutor? Certamente não. Será que Herr Goldfarb teria entregado mesmo seus documentos ao condutor? Claro que sim. Então se tratava de um problema infeliz. Era preciso instaurar um inquérito. Sem dúvida a legação alemã em Istambul esclareceria a questão (Bond sorriu diante dessa sugestão). Enquanto isso, infelizmente, Herr Goldfarb não poderia prosseguir viagem. Sem dúvida, poderia reiniciá-la amanhã. Herr Goldfarb deveria se vestir. Sua bagagem seria transferida para a sala de espera da estação. O sujeito da MGB que surgiu no
corredor era o tipo caucasiano moreno, o mais novo dos “visitantes”. Seu rosto pálido estava cinzento de medo. Tinha o cabelo desgrenhado e vestia calças de pijama. Mas não havia nada de engraçado sobre sua afobação no corredor. Passou raspando por Bond. Parou na porta da cabine nº 6 e procurou se controlar. Bateu com uma calma forçada. A porta se entreabriu, segura ainda pela corrente, e Bond viu de relance um nariz grosso e parte de um bigode. A corrente foi solta e Goldfarb tornou a entrar. Houve silêncio enquanto o funcionário à paisana tratava dos documentos de duas francesas idosas na nº 9 e 10, e depois examinava os de Bond.
Mal olhou para o passaporte. Fechouo com força e o entregou ao condutor. “O senhor viaja com Kerim Bey?”, perguntou em francês. Tinha um olhar distante. “Sim.” “Merci, Monsieur. Bon Voyage.” O homem fez um gesto de cumprimento. Voltou-se e bateu com força na porta da nº 6. A porta se abriu e ele entrou. Cinco minutos depois a porta foi escancarada. O funcionário à paisana, agora ereto em uma demonstração de autoridade, chamou os policiais. Falou com eles de modo áspero, em turco. Voltou-se para a cabine. “O senhor está preso, mein Herr. A tentativa de
suborno a funcionários é um crime na Turquia.” Ouviu-se uma irada reclamação no alemão mal falado de Goldfarb. Foi interrompida por uma única frase cortante, em russo. Um outro Goldfarb, um Goldfarb com olhar de louco, surgiu, desceu o corredor às cegas e entrou na nº 12. Um policial ficou em pé do lado de fora, à espera. “E seus documentos, mein Herr. Por favor, adiante-se. Preciso examinar esta foto.” O funcionário à paisana segurou contra a luz o passaporte alemão de capa verde. “Saia, por favor.” A contragosto, com as feições lívidas de raiva, o sujeito da MGB, que se chamava Benz, saiu para o corredor vestindo um roupão de seda azul
brilhante. Seus olhos castanhos inflexíveis deram um olhar duro para Bond, ignorando-o. O homem à paisana fechou o passaporte com força e o entregou ao condutor. “Seus documentos estão em ordem, mein Herr. E agora, por favor, a bagagem.” Entrou seguido do policial. O sujeito da MGB deu as costas azuis para Bond e acompanhou a busca. Bond notou a saliência sob o braço esquerdo do roupão e a marca de um cinto na cintura. Pensou se não deveria denunciá-lo ao policial. Resolveu que seria melhor ficar calado. Poderia ser convocado como testemunha. A busca terminara. O funcionário fez
um cumprimento com frieza e prosseguiu corredor abaixo. O agente da MGB voltou para dentro e bateu a porta com força. Que pena, pensou Bond. Um deles conseguiu escapar. Bond tornou a olhar pela janela. Um homem robusto, com um chapéu cinzento e um furúnculo feio na parte de trás do pescoço, entrou escoltado na porta marcada POLIS. Nos fundos do corredor uma porta bateu. Goldfarb, escoltado pelo policial, desembarcou do trem. De cabeça baixa, percorreu a plataforma poeirenta e desapareceu pela mesma porta. A locomotiva apitou, um novo tipo de apito, o corajoso e estridente silvo de
um maquinista grego. A porta do carroleito bateu. O homem à paisana e o segundo policial surgiram caminhando até a delegacia. O guarda na traseira do trem consultou o relógio e ergueu a bandeira. Com um solavanco e um crescendo de bafos violentos da máquina, a primeira seção do Expresso do Oriente começou a se mover. A outra, que tomaria o caminho do norte, através da Cortina de Ferro — por Dragoman, na fronteira búlgara, a apenas oitenta quilômetros de distância —, foi abandonada na plataforma poeirenta, à espera. Bond abriu a janela e deu uma última olhada para a fronteira turca, onde os
dois sujeitos estariam sentados em uma sala despojada, já aguardando o equivalente a uma sentença de morte. Dois pássaros derrubados, pensou. Dois de três. A proporção agora estava mais razoável. Olhou para a plataforma morta, empoeirada, com suas galinhas e a pequena figura preta do guarda, até que a longa composição entrou abruptamente no desvio, voltando para a única linha principal. Sua vista passou pela paisagem feia e seca em direção ao sol que subia da planície turca como uma moeda de ouro. O dia prometia ser bonito. Bond tirou sua cabeça do ar fresco e doce da manhã. Fechou a janela com um
baque. Decidira. Ficaria no trem até o fim.
23. FORA DA GRÉCIA
Depois do café fresco no pequeno e modesto bufê de Pithion (o vagãorestaurante só abriria depois do meiodia), de uma visita inócua da alfândega e do controle de passaporte da Grécia, as camas foram dobradas à medida que o trem corria para o sul em direção ao Golfo de Enez, na cabeceira do Egeu. Lá fora o ambiente tinha mais claridade, era mais colorido. O ar mais seco. As pessoas nas pequenas estações e nos campos eram bonitas. Girassóis,
videiras, milho e fumo estaqueado amadureciam ao sol. Como dissera Darko, mais um dia. Bond se lavou e fez a barba, enquanto Tatiana observava, divertida. Gostou que ele não usasse óleo no cabelo. “É uma porcaria esse hábito”, disse. “Disseram-me que muitos europeus têm este costume. Nem pensamos em fazer isso na Rússia. Suja os travesseiros. Mas é estranho que vocês ocidentais não usem perfume. Todos os nossos homens usam.” “A gente toma banho”, disse Bond, secamente. No auge dos protestos dela, ouviu-se uma batida na porta. Era Kerim. Bond deixou-o entrar. Kerim cumprimentou a
garota com um gesto de cabeça. “Que cena doméstica encantadora”, comentou, alegre, arriando o corpanzil no canto perto da porta. “Raramente vi um casal tão belo de espiões.” Tatiana fuzilou-o com o olhar. “Não estou acostumada às piadas ocidentais”, disse com frieza. A risada de Kerim foi desarmante. “Você aprenderá, minha cara. Os ingleses são humoristas de mão cheia. Lá todo mundo não acha nada de mais brincar sobre tudo. Eu também tive que aprender a fazer piadas. Lubrificam as coisas. Ri muito esta manhã. Daqueles pobres sujeitos em Uzunkopru. Gostaria de estar presente quando a polícia foi
telefonar para o consulado alemão em Istambul. O ruim dos passaportes falsificados é isso. Não são difíceis de fazer, mas é quase impossível falsificar também a certidão de nascimento — o registro civil dos países supostamente emitentes. Lamento dizer que a carreira de seus dois companheiros teve um triste fim, Sra. Somerset.” “Como conseguiu?” Bond deu o nó na gravata. “Dinheiro e influência. Quinhentos dólares para o condutor. Altas conversas com a polícia. Sorte que o nosso amigo tentasse um suborno. Pena que o espertalhão do Benz aí do lado”, fez um gesto para a parede, “escapasse. Eu não podia usar o expediente do
passaporte duas vezes. Bem, nós o pegaremos de outra maneira. O sujeito com o furúnculo foi fácil. Não falava nada de alemão, e viajar sem bilhete é coisa séria. Ah, sim, o dia começou bem. Vencemos o primeiro assalto, mas nosso amigo e vizinho de porta terá agora muito cuidado. Já sabe com quem lida. Talvez seja melhor assim. Seria muito ruim ter que esconder vocês o dia inteiro. Agora a gente já pode sair — e até almoçar juntos, desde que vocês tragam as joias de família. Precisamos vigiá-lo para ver se vai telefonar de alguma das estações. Mas duvido muito que consiga enfrentar o sistema interurbano grego. É provável que
espere até chegar à Iugoslávia. Mas lá tenho meu esquema. Podemos arranjar reforços, se for preciso. A viagem promete ser muito interessante. Há sempre emoção no Expresso do Oriente”, Kerim se levantou. Abriu a porta, “e romance”. Sorriu para dentro da cabine. “Virei buscá-los na hora do almoço. A comida grega é pior do que a turca, mas até o meu estômago está a serviço da Rainha.” Bond se levantou e trancou a porta. Tatiana falou zangada: “Seu amigo não é kulturny! Que desrespeito se referir assim à Rainha.” Bond sentou-se a seu lado. “Tania”, disse com paciência, “ele é um sujeito maravilhoso. E também um bom amigo.
Por mim, pode dizer o que quiser. Está com inveja de mim. Gostaria de ter uma garota como você. Por isso implica contigo. É uma forma de flerte. Você devia considerar isso um elogio.” “Acha?”, disse, voltando os grandes olhos azuis para os dele. “Mas aquilo que ele disse sobre o seu estômago e a chefe de Estado. Foi uma falta de consideração com a Rainha. Falar algo assim seria considerado má educação na Rússia.” Ainda discutiam quando o trem parou na estação ensolarada e infestada de moscas de Alexandropolis. Bond abriu a porta do corredor, e o sol jorrou por cima de um mar claro e espelhado que
se confundia, quase sem horizonte, com um céu da cor da bandeira grega. Almoçaram com o pesado estojo sob a mesa, entre os pés de Bond. Kerim fez amizade rápido com a garota. O sujeito da MGB, chamado Benz, evitou o vagão-restaurante. Viram-no na plataforma comprando sanduíches e uma cerveja em um carrinho ambulante. Kerim sugeriu que o convidassem para completar uma mesa de bridge. Bond de repente se sentiu muito cansado, e seu cansaço o fez perceber que eles estavam transformando aquela viagem muito perigosa em um piquenique. Tatiana notou seu silêncio. Levantou-se e disse que precisava descansar. Quando saíram do vagão-restaurante, ouviram Kerim
pedir, alegre, conhaque e charutos. De volta ao compartimento, Tatiana disse com firmeza: “Agora é você quem vai dormir.” Arriou a veneziana isolando a luz forte da tarde e os campos ensolarados e infindáveis de milho, fumo e girassóis murchos. A cabine se tornou uma caverna subterrânea, verdeescura. Bond calçou as portas, deu-lhe sua arma e se esticou, com a cabeça em seu colo, dormindo imediatamente. A extensa composição serpenteava ao longo do norte da Grécia, abaixo dos contrafortes dos montes Ródopes. Passou Xanti, depois Drama e Serrai, e então eles se encontraram nas terras altas da Macedônia e tomaram o sul, em
direção a Salônica. Foi só ao anoitecer que Bond acordou no berço macio de seu colo. Imediatamente, como se estivesse esperando esse momento, Tatiana agarrou seu rosto entre as mãos e disse, ansiosa: “Duschka, por quanto tempo ainda teremos de suportar isto?” “Por muito tempo.” Os pensamentos de Bond conservavam ainda certa volúpia sonolenta. “Mas por quanto tempo?” Bond fitou seus belos olhos preocupados. Livrou-se do resto de sono. Era impossível prever qualquer coisa além dos próximos três dias no trem e da chegada deles a Londres. Era preciso encarar o fato de que essa garota
era uma agente inimiga. Os sentimentos dele não teriam nenhuma influência sobre os inquisidores do Serviço Secreto e dos ministérios. Outros serviços de Inteligência desejariam saber o que essa garota tinha a informar sobre a organização em que trabalhava. É provável que em Dover fosse levada para “a gaiola”, aquela casa particular bem vigiada por sentinelas, perto de Guilford, onde lhe dariam um quarto confortável, mas terrivelmente grampeado. E os eficientes agentes à paisana viriam, um a um, conversar com ela, enquanto o gravador girasse no quarto embaixo, e o registro fosse transcrito e filtrado em busca de novos
fatos — e, evidentemente, de contradições que pudessem incriminá-la. Talvez eles introduzissem uma alcaguete na casa — uma simpática moça russa que se compadecesse do tratamento recebido por Tatiana e sugerisse meios de escapar, de virar agente duplo, de conseguir enviar informação “inofensiva” a seus país. Isto poderia levar semanas ou meses. Nesse meiotempo manteriam Bond a distância, com todo o tato, a não ser que os inquisidores achassem que ele pudesse extrair mais segredos aproveitando os sentimentos que tinham um pelo outro. Depois o quê? Mudança de nome, oferta de uma nova vida no Canadá, as mil libras por ano que lhe dariam de fundos
secretos? E onde estaria ele quando ela terminasse de passar por isso tudo? Talvez do outro lado do mundo. Ou, se ele ainda estivesse em Londres, seriam os sentimentos dela por ele os mesmos depois de ser moída pela máquina dos interrogatórios? Até que ponto ela odiaria ou desprezaria os ingleses depois de passar por essa história toda? E, a propósito, até que ponto sua paixão por ela sobreviveria? “Duschka”, repetiu Tatiana, impaciente. “Por quanto tempo?” “Pelo maior tempo possível. Dependerá de nós. Muita gente vai interferir. Seremos separados. Não será sempre como aqui nesta pequena cabine.
Dentro de poucos dias teremos que enfrentar o mundo. Não será fácil. Seria tolice lhe dizer que não.” O rosto de Tatiana se desanuviou. Sorriu para ele. “Tem razão, não farei mais perguntas bobas. Mas não vamos desperdiçar mais nada destes dias.” Ela mudou a cabeça dele de lugar e foi se deitar a seu lado. Uma hora depois, quando Bond estava no corredor, Darko Kerim surgiu de repente. Examinou o rosto de Bond. Disse, maliciosamente: “Não devia dormir tanto. Andou perdendo a paisagem histórica do norte da Grécia. E já é hora do premier service.” “Você só pensa em comida”, disse Bond. Fez um gesto para trás com a
cabeça. “E nosso amigo aí?” “Não se mexeu. O condutor está vigiando para mim. Este sujeito acabará sendo o condutor mais rico da ferrovia. Quinhentos dólares pelos documentos de Goldfarb, e agora tem um emprego fixo de cem dólares por dia até o final da viagem.” Kerim deu uma risadinha. “Eu lhe disse que talvez até ganhe uma medalha por serviços prestados à Turquia. Ele acredita que somos um bando de contrabandistas. Costumam usar este trem para levar o ópio turco para Paris. Não ficou espantado, só satisfeito por estar ganhando tão bem. E então, você descobriu mais alguma coisa sobre sua princesa russa? Ainda tenho
desconfiança. As coisas estão quietas demais. Esses dois sujeitos dos quais nos descartamos podiam realmente estar fazendo uma inocente viagem a Berlim, como diz a garota. Este Benz talvez se refugie na sua cabine com medo de nós. Tudo vai muito bem com a nossa viagem. No entanto, no entanto...” Kerim sacudiu a cabeça. “Esses russos são grandes jogadores de xadrez. Quando querem executar um plano, o fazem brilhantemente. O jogo é planejado com toda a minúcia, já incorporando as jogadas do adversário. São previstas e neutralizadas. No fundo”, o rosto de Kerim estava melancólico na janela, “tenho a impressão de que você e eu, e a garota, somos peças em um tabuleiro
enorme — que nossas jogadas são permitidas porque elas não interferem no jogo russo”. “Mas qual é o objetivo do plano?” Bond olhou para a escuridão lá fora. Falou para seu reflexo na janela: “O que querem obter? A gente sempre volta a isto. É claro que todos nós desconfiamos de uma conspiração qualquer. E a garota talvez nem saiba que está envolvida. Sei que esconde algo, mas acho que é apenas algum pequeno segredo que não acha importante. Ela me disse que vai contar tudo quando chegar a Londres. Tudo? O que ela quer dizer? Só diz que preciso confiar — que não há perigo. Você deve admitir, Darko”, Bond olhou
nos olhos astutos do amigo buscando uma confirmação, “que a realidade confirmou a versão que ela nos deu”. Não havia nenhum entusiasmo no olhar de Kerim. Ficou calado. Bond deu de ombros. “Confesso que estou caído por ela. Mas não sou bobo, Darko. Venho procurando um indício qualquer. Qualquer coisa que possa ajudar. Você sabe que a gente consegue enxergar longe quando certas barreiras são removidas. Bem, foram removidas. E sei que ela está contando a verdade. Pelo menos em noventa por cento da história. E sei que acha que o resto não tem importância. Se estiver enganando, também foi enganada. Naquela nossa analogia enxadrística, é possível. Mas
voltamos ao ponto de entender o motivo de tudo isso.” A voz de Bond endureceu. “E se você quer saber, tudo que eu desejo é continuar com esse jogo até descobrirmos.” Kerim sorriu diante da expressão obstinada no rosto de Bond. Deu uma súbita risada. “Se eu fosse você, meu amigo, desembarcava deste trem em Salônica — com o aparelho e, se quiser, com a garota também, embora isto não seja tão importante. Tomaria um carro de aluguel em Atenas e pegaria o primeiro avião para Londres. Mas não fui criado para ter espírito esportivo.” A voz de Kerim era irônica. “Para mim isto não é um jogo. É trabalho. Mas para
você, que é um jogador, é diferente. Para M também. Caso contrário, não teria lhe dado carta branca. Ele está igualmente curioso para saber a resposta do enigma. Que seja. Prefiro jogar seguro, ter certeza, deixar o mínimo possível ao acaso. Você acha que a sorte nos favorece?” Darko Kerim se voltou e encarou Bond. Seu tom de voz era insistente. “Escute, meu amigo”, ele pôs sua mão enorme no ombro de Bond, “isto aqui é uma mesa de bilhar. Plana, lisa, verde. Você bateu na bola branca e ela rola com facilidade, silenciosa, em direção à vermelha. A caçamba está ao lado. É fatal e inevitável acertar na vermelha, que entrará na caçamba. É a lei da mesa de bilhar, do salão de
bilhar. Mas, fora da órbita dessas coisas, um piloto de caça desmaiou e seu avião mergulhou direto neste salão de bilhar, ou um depósito de gás está prestes a explodir, ou um raio a cair. E o prédio desmorona em cima de você na sala de bilhar. Então, o que acontece com a bola branca que não podia deixar de acertar a vermelha, e com a vermelha, que não podia deixar de ser encaçapada? A bola branca não podia errar de acordo com as leis da mesa de bilhar. Mas essas leis não são as únicas neste jogo, nem as leis que governam o avanço deste trem, nem as que o levam ao seu destino.” Kerim se calou. Deu de ombros e
parou com aquele sermão. “Você já sabe essas coisas, meu amigo”, disse em tom de desculpa. “E fiquei com sede falando essas coisas óbvias. Apresse a garota para a gente ir comer. Mas cuidado com as surpresas. Eu lhe peço.” Fez uma cruz com os dedos no meio de seu paletó. “Não o faço em cima do coração. É sério demais. Faço em cima da minha barriga. Para mim é um juramento importante. As surpresas nos esperam, aos dois. O cigano disse para ter cuidado. Agora digo o mesmo. Podemos jogar o jogo na mesa de bilhar, mas precisamos ficar ambos na defensiva contra o mundo fora da sala de bilhar. É o meu faro”, deu um tapinha no nariz, “ele me diz”.
A barriga de Kerim fez um barulho indignado, como um fone esquecido com alguém muito zangado do outro lado da linha. “Está vendo?”, disse ansioso. “Olha o que eu disse? Precisamos comer.” Acabaram de jantar quando o trem entrou no horrível entroncamento moderno em Tessalônica. Com Bond carregando o pequeno estojo pesado, voltaram pelo trem e se separaram. “Seremos novamente incomodados daqui a pouco”, avisou Kerim. “Chegaremos à fronteira em uma hora. Os gregos não incomodam, mas aqueles iugoslavos gostam de acordar todo mundo que viaja no bem-bom. Se o
aborrecerem, me chame. Mesmo no país deles tenho alguns nomes que posso citar. Estou no segundo compartimento do próximo vagão. Sozinho. Amanhã vou mudar para a cama do nosso amigo Goldfarb, na cabine nº 12. Por enquanto, dá para suportar as pulgas da primeira classe.” Bond cochilava meio acordado enquanto o trem se esforçava para subir o vale enluarado do Vardar, em direção ao interior da Iugoslávia. Tatiana dormiu de novo com a cabeça em seu colo. Pensou no que Darko dissera. Não haveria um jeito de mandar o homenzarrão de volta para Istambul, depois de estarem a salvo em Belgrado? Não era justo arrastá-lo pela Europa em
uma aventura fora de seu território e pela qual não nutria grande simpatia. Darko desconfiava obviamente de que Bond se apaixonara pela garota e não conseguia mais enxergar a missão direito. Bem, não deixava de ter um pouquinho de razão. Era certamente mais seguro abandonar o trem e seguir outro caminho até a casa. Mas Bond confessou a si mesmo que não conseguia tolerar a ideia de abandonar esta intriga, se é que ela existia. Do mesmo modo, não conseguia tolerar a ideia de sacrificar três dias a mais com Tatiana. E M deixara a decisão a seu encargo. Como dissera Darko, M também estava curioso de chegar ao fim deste jogo.
Perversamente, queria descobrir o porquê dessa confusão toda. Bond desistiu do problema. A viagem corria bem. Por que temer? Dez minutos depois de terem chegado à estação de Idomeni, na fronteira grega, alguém bateu rápido na porta. A garota acordou. Bond saiu de sob a sua cabeça. Colou o ouvido na porta. “Sim?” “Le conducteur, Monsieur. Houve um acidente. Com o seu amigo Kerim Bey.” “Espere”, disse Bond, ferozmente. Enfiou a Beretta no coldre e vestiu o paletó. Escancarou a porta. “O que foi?” O rosto do condutor estava amarelo debaixo da luz do corredor. “Venha!” Correu em direção à primeira classe.
Havia um grupo de funcionários diante da porta aberta do segundo compartimento. Olhavam fixamente. O condutor abriu caminho para Bond. Este chegou à porta e olhou para dentro. Seu cabelo se arrepiou ligeiramente. Ao longo do assento da direita havia dois corpos. Estavam congelados em uma terrível luta mortal, que poderia ter sido encenada para algum filme. Debaixo estava Kerim, com os joelhos levantados em uma última tentativa de se levantar. O cabo de um punhal saía de seu pescoço, perto da jugular. Sua cabeça pendia para trás e os olhos vazios, injetados de sangue, voltados para cima, fitavam a noite
escura. A boca estava contorcida em uma careta. Um fio de sangue escorria pelo queixo. Por cima dele, estatelado, jazia o corpo pesado do homem da MGB chamado Benz, seguro ali pela gravata que Kerim lhe aplicara no pescoço. Bond pôde ver um canto de bigode à la Stálin e meia face de um rosto escurecido. O braço de Kerim descansava nas costas do sujeito, quase displicentemente. A mão fechada em torno do cabo de uma faca, e uma grande mancha no casaco, sob a mão. Bond deu trela à sua imaginação. Era como assistir a um filme. Darko que dormia, o sujeito passando quieto pela porta, os dois passos à frente e o golpe
na jugular. Em seguida a última contração violenta do moribundo, quando esticou um braço e deu uma gravata no assassino, agarrando-o contra si, enquanto cravava a faca à altura da quinta costela. Era um tipo maravilhoso e solar. Agora extinto, indiscutivelmente morto. Bond virou-se bruscamente, afastando-se do homem que morrera por ele. Começou a responder, vaga e cautelosamente, ao interrogatório.
24. FORA DE PERIGO
O Expresso do Oriente entrou lentamente em Belgrado às três da tarde, meia hora atrasado. Haveria uma espera de oito horas pela outra seção do trem que passara pela Cortina de Ferro e chegaria da Bulgária. Bond contemplava a multidão, à espera da batida na porta que anunciaria o agente de Kerim. Tatiana, sentada e encolhida em seu casaco de peles perto da porta, olhava para Bond, imaginando se ele voltaria a ser o mesmo com ela.
Vira tudo pela janela — os longos cestos saindo do trem, o clarão do flash dos fotógrafos da polícia, o chef de train que gesticulava tentando apressar as formalidades, e a figura imponente de Bond, fria e dura como uma faca de açougueiro, andando de lá para cá. Bond voltara e ficara olhando para ela. Fizera-lhe perguntas incisivas e brutais. Ela se defendera desesperadamente, apegando-se à sua história original, sabendo agora que, se contasse tudo, por exemplo, o envolvimento da SMERSH, certamente o perderia para sempre. Sentia-se apavorada pela teia em que se enredara, apavorada pelo que poderia
haver por trás das mentiras que lhe haviam contado em Moscou — sobretudo, com medo de perder este homem que de repente se tornara a luz da sua vida. Ouviu-se uma batida na porta. Bond levantou-se e abriu-a. Um homem forte e jovial, com aparência ágil, os mesmos olhos azuis de Kerim e cabelos claros e revoltos sobre o rosto moreno, irrompeu na cabine. “Stefan Trempo, a seu dispor.” O sorriso largo abrangia a ambos. “As pessoas me chamam de ‘Tempo’. Onde está o patrão?” “Sente-se”, disse Bond e pensou consigo mesmo: Eu sabia que era mais um dos filhos de Darko.
O sujeito olhou para ambos, atentamente. Sentou-se com cuidado entre os dois. Seu rosto perdera a vivacidade. Seus olhos brilhantes agora fitavam Bond com intensa ansiedade, cheios de medo e desconfiança. Enfiou a mão distraidamente no bolso do paletó. Quando Bond terminou, levantou-se. Não fez perguntas. Disse: “Obrigado. Venha comigo, por favor. Iremos a meu apartamento. Há muito o que fazer.” Saiu para o corredor e deu as costas para ambos, olhando os trilhos. Quando a garota surgiu, ele desceu o corredor sem olhar para trás. Bond foi atrás da garota, carregando o estojo pesado e sua pequena pasta.
Percorreram a plataforma e saíram na praça em frente à estação. Começara a chuviscar. O cenário, composto de um punhado de táxis e o panorama dos prédios modernos tediosos, era deprimente. O sujeito abriu a porta traseira de um sedã Morris Oxford castigado. Entrou na frente e pegou a direção. Sacolejaram em cima do calçamento de pedras e rodaram por um bulevar de asfalto escorregadio durante quinze minutos, passando por ruas largas e desertas. Viram poucos pedestres e pouco mais que um punhado de carros. Pararam no meio de uma pequena rua de paralelepípedos. Tempo foi na frente, entrando pela larga porta de um prédio e
subindo dois lances de escada, com o cheiro típico dos Bálcãs: suor azedo, cigarro e repolho. Abriu uma porta e os fez entrar em um apartamento de dois quartos, mobiliado de modo inexpressivo e com cortinas de veludo vermelho, afastadas de modo a mostrar as janelas vazias do outro lado da rua. Em um aparador havia uma bandeja com várias garrafas fechadas, copos e travessas com frutas e biscoitos — as boas-vindas a Darko e seus amigos. Tempo fez um vago aceno em sua direção. “Por favor, sintam-se em casa. Temos um banheiro. Sem dúvida, gostariam de tomar um banho. Com licença, preciso telefonar!” A máscara dura de seu rosto estava prestes a
desmoronar. Ele entrou rápido no quarto e fechou a porta. Seguiram-se duas horas ociosas, nas quais Bond ficou sentado, olhando para a parede oposta. Levantava-se de vez em quando, andava para lá e para cá e se sentava de novo. Durante a primeira hora Tatiana ficou sentada, fingindo que lia uma pilha de revistas. Em seguida, entrou subitamente no banheiro, e Bond ouviu vagamente a água que jorrava na banheira. Mais ou menos às seis horas, Tempo deixou o quarto. Disse a Bond que ia sair. “Tem comida na cozinha. Voltarei às nove e os levarei ao trem. Por favor, tratem de se sentir em casa.” Sem
esperar uma resposta, saiu, fechando a porta com cuidado. Bond ouviu seus passos na escada, o clique da porta da frente e o arranque do Morris. Entrou no quarto, sentou na cama, pegou o telefone e pediu uma ligação interurbana, falando em alemão. Meia hora mais tarde ouviu a voz tranquila de M. Bond falou como um vendedor falaria com o gerente da firma de exportação Universal Export. Disse que seu companheiro ficara muito doente. Pedia novas instruções. “Muito doente?” “Sim, senhor, muito.” “E a outra firma?” “Havia três deles conosco. Um pegou
a mesma doença. Os outros dois passaram mal ao saírem da Turquia. Deixaram-nos em Uzunkopru. Fica na fronteira.” “Então a outra firma desistiu?” Bond podia ver o rosto de M filtrando as informações. Imaginou se o ventilador do teto estaria girando, se M estava com o cachimbo na mão, se o chefe do pessoal estaria ouvindo na extensão. “O que acha? Você e sua mulher gostariam de voltar para casa por outro caminho?” “Prefiro que o senhor decida. Minha mulher passa bem. A amostra está em bom estado. Não acho que vá se
estragar. Ainda quero terminar a viagem. Caso contrário, este território permanecerá inexplorado. Não saberemos suas reais possibilidades.” “Gostaria de receber ajuda de um de nossos outros vendedores?” “Não será necessário. Mas, como o senhor quiser.” “Vou pensar no assunto. Então você quer levar esta campanha de vendas até o fim?” Bond podia ver os olhos de M brilhando com a mesma curiosidade obstinada, a mesma ânsia de saber que ele mesmo sentia. “Sim, senhor. Agora que estou a meio caminho, acho uma pena não ir até o fim.” “Está bem, então. Vou pensar se
mando outro vendedor para ajudá-lo.” Fez-se uma pausa do outro lado da linha. “Não tem mais nada em mente?” “Não, senhor.” “Então, adeus.” “Adeus.” Bond recolocou o fone no gancho. Ficou sentado olhando-o. De repente desejou ter concordado com a oferta de reforços da parte de M, só no caso de precisar. Levantou-se da cama. Pelo menos não demorariam a sair desses malditos Bálcãs e estariam na Itália. Depois na Suíça e na França — entre gente amiga, longe de países traiçoeiros. E a garota? Poderia culpá-la pela morte de Kerim? Bond entrou no outro
quarto e ficou na janela, olhando para fora, imaginando, revivendo tudo, cada expressão e gesto que ela fizera desde a primeira vez que ouvira sua voz no Krystal Palas. Não, sabia que não podia culpá-la. Se ela era agente, agia sem saber o que fazia. Não havia garota dessa idade no mundo capaz de ter desempenhado esse papel, se é que ela o desempenhara, sem se trair. E gostava dela. Confiava na própria intuição. Além disso, com a morte de Kerim, não teria o plano se esgotado? Algum dia ele ainda descobriria o sentido dessa intriga. Por enquanto, tinha certeza. Tatiana não era cúmplice. Tendo resolvido a questão na sua cabeça, Bond foi até a porta do banheiro
e bateu. Ela saiu, ele a pegou nos braços e beijou. Tatiana ficou agarrada ao seu corpo e sentiu a volta do antigo calor animal entre eles, afastando a memória gelada da morte de Kerim. Tatiana desvencilhou-se do abraço. Olhou para o rosto de Bond. Afastou a mecha de cabelo caída sobre a testa. Seu rosto estava radiante. “Que bom que você voltou, James”, disse. E depois, de modo natural: “Agora precisamos comer, beber e recomeçar nossa vida.” Mais tarde, depois de Slivovic, presunto defumado e pêssegos, Tempo voltou e os levou à estação e ao
expresso, à espera sob a luz dura das lâmpadas fluorescentes. Despediu-se rápida e friamente, e sumiu na plataforma, voltando para a sua vida obscura. Pontualmente às nove, a locomotiva fez um barulho diferente e começou a puxar a longa composição na sua viagem de toda uma noite pelo vale do Sava. Bond foi até a cabine do condutor, para lhe dar dinheiro e vistoriar os passaportes dos novos passageiros. Bond conhecia a maior parte dos sinais de um passaporte falsificado. A escrita borrada, o carimbo por demais perfeito, vestígios de cola velha em volta das bordas da foto, a leve transparência das páginas onde o papel
foi alterado na troca de uma letra ou de um número. Mas os cinco passaportes recentes — três americanos e dois suíços — pareciam inofensivos. Os documentos suíços, os prediletos dos falsificadores russos, pertenciam a um casal de mais de setenta anos, e Bond os devolveu e voltou à cabine, pronto para mais uma noite com a cabeça de Tatiana no seu colo. Passaram por Vincovi, Brod e depois, tendo ao fundo uma aurora flamejante, chegaram aos arredores feios de Zagreb. O trem parou entre fileiras de locomotivas enferrujadas capturadas dos alemães, que ainda estavam lá, melancólicas, no meio do capim e do
mato no ramal. Bond leu a placa de uma delas — BERLINER MASCHINENBAU GMBH — enquanto passavam por aquele ferro-velho. Seu longo cilindro preto tinha marcas de balas de metralhadora. Bond imaginou o ronco do mergulho do caça e os braços do maquinista estendidos para cima. Por um momento pensou com saudades despropositadas na emoção e no torvelinho da guerra de fato, comparada às suas próprias escaramuças encobertas da guerra fria. Subiram com esforço as montanhas da Eslovênia, onde as macieiras e os chalés eram quase austríacos. O trem prosseguiu na sua labuta, passando por Ljubliana. A garota acordou. Tomaram
um café da manhã de ovos com pão preto duro e café, composto principalmente de chicória. O vagãorestaurante estava cheio de alegres turistas ingleses e americanos com destino à costa do Adriático, e Bond pensou, com um alívio no coração, que até aquela tarde já teriam atravessado a fronteira e entrado na Europa ocidental. E que mais uma noite perigosa, a terceira, passara. Dormiu até Sezana. Um policial iugoslavo à paisana, de rosto severo, entrou no trem. Em seguida, deixaram a Iugoslávia e chegaram a Poggioreale, onde perceberam os primeiros sinais de uma vida decente, vendo os alegres e
falantes funcionários italianos e os rostos despreocupados do pessoal aglomerado na estação. A nova locomotiva diesel elétrica deu um apito embriagado e, com um monte de mãos morenas acenando, eles desceram para Veneza, na direção do brilho distante de Trieste e do alegre azul do Adriático. “Conseguimos”, pensou Bond. “Acho que agora realmente conseguimos.” Afastou da cabeça as recordações dos últimos três dias. Tatiana percebeu que as linhas tensas de seu rosto haviam relaxado. Pegou a sua mão. Ele sentou ao lado dela. Contemplaram as vilas alegres na Corniche, os barcos a vela e as pessoas que praticavam esqui aquático.
O trem fez ruídos metálicos ao pegar o desvio e entrou calmamente na estação de Trieste. Bond ficou de pé, levantou a janela e eles permaneceram lado a lado olhando para fora. De repente Bond sentiu-se feliz. Agarrou a garota pela cintura e apertou-a de encontro a ele. Contemplaram a multidão festiva. O sol entrava pelas janelas altas e limpas da estação em feixes dourados. A cena esfuziante contrastava com a escuridão e a sujeira dos países que o trem atravessara, e Bond observou, com um prazer quase sensual, as pessoas vestidas alegremente que passavam pelos feixes de luz em direção à entrada, e as pessoas bronzeadas, em fim de
férias, que se apressavam na plataforma para pegar os seus lugares no trem. Um raio de sol iluminou a cabeça de um sujeito aparentemente típico daquele mundo alegre e festivo. A luz brilhou por um instante nos cabelos louros sob o boné e no bigode louro recente. Havia tempo de sobra para pegar o trem. O sujeito caminhava descansado. Pela cabeça de Bond passou a ideia de que fosse inglês. Talvez o formato familiar do boné verde-escuro, ou a capa de chuva bege, já bem gasta, que é o sinal do turista inglês, ou talvez as calças de flanela cinzentas e os sapatos bemengraxados. De qualquer modo, o olhar de Bond se viu atraído por ele, como se fosse algum conhecido, à medida que o
homem se aproximava pela plataforma. O sujeito carregava uma valise bem surrada e, debaixo do outro braço, um livro grosso e alguns jornais. Parece um atleta, pensou Bond. Tem os ombros largos, o rosto saudável e bronzeado de um tenista profissional, voltando para casa depois de uma série de torneios no estrangeiro. O homem se aproximou, encarando-o. Com uma expressão de reconhecimento? Bond vasculhou a memória. Conhecia este homem? Não. Teria se lembrado desses olhos tão frios sob os cílios descorados. Eram opacos, quase sem vida. Olhos de um afogado. Mas lhe comunicavam alguma coisa. O que
seria? Reconhecimento? Aviso? Ou apenas a reação defensiva ao próprio olhar fixo de Bond? O indivíduo chegou à altura do vagãodormitório. Seus olhos agora olhavam abertamente o trem. Passou por ele, sem que seus sapatos de borracha fizessem qualquer barulho. Bond viu-o segurar o balaústre e içar-se com facilidade pelos degraus que davam para o vagão da primeira classe. De repente percebeu o que significava o olhar, quem era o sujeito. Era óbvio! Pertencia ao Serviço Secreto. Afinal, M decidira enviar-lhe uma ajuda extra. Foi essa a mensagem daqueles olhos estranhos. Bond seria capaz de apostar que ele não demoraria a entrar em
contato. Como era típico de M garantir que tudo desse absolutamente certo!
25. UMA GRAVATA COM NÓ DE WINDSOR
Para facilitar o contato, Bond ficou no corredor. Rememorou os detalhes da senha do dia, as poucas frases inofensivas que eram mudadas a cada primeiro dia do mês, que servem apenas de sinal de identificação entre os agentes ingleses. O trem deu um solavanco e saiu devagar para a luz do sol. A porta de comunicação no fim do corredor bateu. Não houve ruído de passos, mas de
repente o rosto dourado e vermelho surgiu refletido na vidraça. “Perdão. Tem um fósforo?” “Uso isqueiro.” Bond pegou seu velho Ronson e entregou-lhe. “Melhor ainda.” “Até que enguicem.” Bond olhou para o rosto do sujeito, esperando que sorrisse depois do ritual infantil da troca de senhas. Os lábios carnudos se encolheram por um instante. Não havia brilho em seus olhos azuis muito claros. O sujeito tirara sua capa. Vestia um velho paletó de tweed marromavermelhado, com calças de flanela, uma camisa limpa amarelo-clara, e a gravata azul-escura com linhas
vermelhas em zigue-zague do Corpo Real de Engenharia. Atada com um nó de Windsor. Bond desconfiava de todo mundo que usava um nó de gravata Windsor. Era uma demonstração de vaidade em excesso. Muitas vezes o sinal de um patife. Mas Bond resolveu esquecer seu preconceito. No dedo mínimo da mão direita, que segurava o corrimão, brilhava um anel de sinete, de ouro, com um escudo de armas indecifrável. Do bolso da lapela saía a ponta de um grande lenço vermelho. No pulso esquerdo, usava um relógio de prata bem antigo, preso por uma velha correia de couro. Bond conhecia o tipo — aluno de
algum internato particular menos importante, colhido pela guerra. Segurança no campo de batalha, talvez. Sem nenhuma ideia do que fazer depois, permanecera com as tropas de ocupação. De início deve ter integrado a Polícia do Exército, depois, conforme os mais antigos foram para casa, ganhou uma promoção dentro do serviço de segurança. Enviado a Trieste, saíra-se bem. Preferia não enfrentar o rigor do clima inglês. Provavelmente tinha namorada, ou se casara com uma italiana. O Serviço Secreto precisara de um agente para o pequeno posto em que Trieste se transformara depois da retirada das tropas. Aquele sujeito estava disponível. Empregaram-no.
Faria serviços rotineiros — com algumas fontes de baixa patente na polícia iugoslava e italiana e nas suas redes de inteligência. Mil libras por ano. Boa vida, sem que esperassem grande coisa dele. Então, do nada, surgira aquilo. Deve ter levado um susto ao receber uma daquelas mensagens de máxima urgência. É provável que demonstrasse certa timidez diante de Bond. Rosto estranho. Um olhar meio louco. Mas era comum na maioria desses sujeitos que faziam trabalho encoberto no estrangeiro. Era preciso ser um pouco louco para se meter nisso. Um homem muito vigoroso, mas provavelmente meio burro. No entanto,
ideal para este tipo de trabalho de guarda-costas. M simplesmente avisara o agente mais próximo e o mandara tomar o trem. Tudo isso passou pela cabeça de Bond enquanto registrava fotograficamente as roupas e a aparência geral do sujeito. Mas agora disse: “Prazer em vê-lo. Como soube?” “Recebi uma mensagem. Na noite passada. De M, pessoalmente. Fiquei abalado, meu velho.” Sotaque curioso. De que lugar? Um toque de irlandês — e irlandês rasteiro. E de algo a mais que Bond não conseguia definir. Resultado talvez de viver muito tempo fora, falando línguas estrangeiras o tempo todo. E esse
terrível “meu velho” no final da frase. Timidez? “Com certeza”, disse Bond com simpatia. “O que dizia?” “Apenas para eu pegar o Expresso do Oriente e fazer contato com um homem e uma mulher no vagão-dormitório. Descreveu mais ou menos a sua aparência. Depois eu devia grudar em vocês e vigiá-los até a velha Paris. E foi só, velho.” Haveria um tom defensivo na sua voz? Bond olhou de relance para o lado. Os olhos claros se viraram ao encontro do seu olhar. Uma centelha vermelha passou rápido por eles. Como se a porta de segurança de uma fornalha tivesse se
escancarado. A centelha se extinguiu. A porta que dava para o íntimo desse homem fora fechada. Os olhos haviam voltado a ser velados — olhos de um introvertido, de alguém que raramente olha para o mundo, mas, ao contrário, vive examinando a sua paisagem interna. Realmente aí há loucura, pensou Bond, alarmado pelo que vira. Trauma de guerra, talvez, ou esquizofrenia. Pobre sujeito, com esse corpaço. Qualquer dia desses a coisa estoura com certeza. A loucura toma conta. Bond devia dar uma palavra ao setor de pessoal. Para examinarem a sua ficha médica. Aliás, qual era o seu nome? “Bem, estou contente com a sua presença. É provável que não tenha
muito trabalho. No início fomos seguidos por três vermelhos. A gente se livrou deles, mas pode haver outros no trem. Ou pode ser que outros embarquem. É preciso levar esta moça até Londres, sem problemas. É bom que nos acompanhe. Hoje à noite é melhor ficarmos juntos e nos revezarmos na vigília. É a última noite, e não quero correr riscos. Aliás, meu nome é James Bond. Viajo como David Somerset. E Caroline Somerset está lá na cabine.” O sujeito procurou no bolso interno e pegou uma carteira gasta que parecia conter muito dinheiro, de onde tirou um cartão de visita. Dizia: “Capitão Norman Nash” e, no canto inferior
esquerdo, “Real Automóvel Clube”. Ao botar o cartão no bolso, Bond passou o dedo por cima dele. Era gravado em relevo. “Obrigado”, disse. “Bem, Nash, venha conhecer a Sra. Somerset. Não vejo por que não podemos viajar juntos.” Deu um sorriso animador. A centelha vermelha novamente se acendeu e se extinguiu depressa. Os lábios tremeram sob o pequeno bigode louro. “Será um prazer, meu velho.” Bond virou-se para a porta, bateu de leve e deu o seu nome. A porta se abriu. Bond convidou Nash a entrar, tornando a fechá-la. A garota pareceu espantada. “Este é o Capitão Nash, Norman
Nash. Mandaram que ficasse de olho na gente.” “Como vai?” A mão foi estendida de modo hesitante. O sujeito apertou-a rapidamente. Seu olhar era fixo. Não disse nada. A garota deu um risinho sem graça. “Não quer se sentar?” “Ah, obrigado.” Nash se sentou rigidamente na beira do banco. Pareceu lembrar alguma coisa, algo que se fazia quando não se tem nada a dizer. Tateou no bolso do paletó e tirou um maço de Players. “Aceita, anh... um cigarro?” Abriu a tampa com uma unha mais ou menos limpa do polegar, afastou o papel prateado e puxou os cigarros. A garota pegou um. A outra mão de Nash
ofereceu um isqueiro com a rapidez obsequiosa de um vendedor de carros. Nash levantou os olhos. Bond estava de pé, encostado na porta, imaginando como poderia ajudar aquele sujeito constrangido e desajeitado. Nash ofereceu os cigarros e o isqueiro como se estivesse oferecendo contas de vidro a algum chefe de uma tribo. “E você, velho?” “Obrigado”, disse Bond. Detestava fumo Virgínia, mas estava pronto a fazer qualquer coisa para que aquele sujeito ficasse à vontade. Pegou e acendeu o cigarro. O Serviço Secreto precisava empregar cada sujeito esquisito atualmente. Como esse indivíduo conseguia se desembrulhar na sociedade
semidiplomática que era obrigado a frequentar em Trieste? Bond disse, meio sem graça: “Você parece estar em forma, Nash. Tênis?” “Natação.” “Está há muito tempo em Trieste?” O lampejo vermelho tornou a surgir. “Uns três anos mais ou menos.” “O trabalho é interessante?” “Às vezes. Sabe como é, meu velho.” Bond pensou como poderia impedir que Nash continuasse a chamá-lo de “velho”. Não conseguia achar um meio. Fez-se silêncio. Nash sentiu que obviamente era a vez dele de novo. Procurou no bolso e tirou um recorte de jornal. Era da primeira
página do Corriere de la Sera. Entregou-o a Bond. “Já viu isto, velho?” O lampejo nos olhos surgiu e passou. Era a manchete da primeira página. As grandes letras pretas no papel ordinário ainda estavam frescas. O cabeçalho dizia: TERRIBLE ESPLOSIONE IN ISTANBUL UFFICIO SOVIETICO DISTRUTTO TUTTI I PRESENTI UCCISI Bond não conseguia compreender o resto. Dobrou e devolveu o recorte. Quanto saberia esse homem? Melhor tratá-lo como um segurança, e nada mais. “Que calamidade”, disse, “deve ter sido o encanamento de gás”. Bond reviu a barriga obscena da bomba
pendurada no teto da alcova do túnel, os fios que seguiam pela parede úmida até o detonador na gaveta da escrivaninha de Kerim. Quem apertara o detonador na tarde anterior, depois de terem recebido o aviso de Tempo? O “escrituráriochefe”? Ou tinham tirado a sorte e ficado ali vendo a alavanca ser apertada, e depois o profundo estrondo na Rua dos Livros, no morro em cima. Todos eles estariam presentes na sala arejada. Com olhos que faiscavam de ódio. As lágrimas seriam reservadas para a noite. A vingança vinha antes. E os ratos? Quantos milhares não teriam explodido no túnel? A que horas acontecera? Cerca das quatro horas.
Teria sido durante a reunião diária? Três mortos na sala. Quantos mais no resto do prédio? Talvez amigos de Tatiana. Ele precisava esconder dela essa história. Darko teria assistido de alguma janela no Valhalla: Bond podia ouvir o eco da grande gargalhada triunfante entre as paredes. De qualquer modo, Kerim levara muita gente com ele. Nash o olhava. “Sim, suponho que tenha sido o encanamento de gás”, disse, de modo desinteressado. Ouviram o tilintar de uma campainha que se aproximava, vinda do final do corredor. “Deuxième Service. Deuxième Service. Prenez vos places, s’il vous plaît.”
Bond olhou para Tatiana. Seu rosto estava pálido. Seus olhos pediam que alguém a salvasse daquele sujeito desajeitado e não kulturny. Bond perguntou: “Vamos almoçar?” Ela se levantou imediatamente. “E você, Nash?” O Capitão Nash já estava de pé. “Já almocei, obrigado, meu velho. E gostaria de dar uma olhada no trem. O condutor está — você sabe...?”, fez um gesto de contar dinheiro. “Ah, sim, ele está cooperando”, disse Bond. Ergueu os braços e retirou o pequeno estojo pesado. Abriu a porta para Nash. “A gente se vê mais tarde.” O Capitão Nash saiu. Disse: “Sim,
acho que sim, velho.” Virou à esquerda e foi caminhando pelo corredor, movendo-se com facilidade no meio do balanço do trem, com as mãos nos bolsos da calça e a luz batendo nos pequenos cachos louros atrás da cabeça. Bond seguiu Tatiana pelo trem. Os vagões estavam cheios de gente que voltava das férias. Nos corredores da terceira classe as pessoas se sentavam em cima de sacolas, mastigando laranjas e enrolados de aspecto duro, recheados de salame. Os homens examinavam Tatiana com cuidado quando ela passava espremida. As mulheres analisavam Bond, imaginando se seria um bom amante para a sua mulher. No vagão-restaurante Bond pediu
“americanos” e uma garrafa de Chianti Broglio. Chegou a entrada maravilhosa. Tatiana começou a demonstrar mais alegria. “Que sujeito esquisito”, disse Bond, olhando-a fazer sua escolha entre os pequenos pratos. “Mas fiquei contente com a chegada dele. Terei oportunidade de dormir. Dormirei por uma semana quando chegarmos em casa.” “Não gosto dele”, disse ela com indiferença. “Ele não é kulturny, e desconfio de seu olhar.” Bond riu. “Ninguém é bastante kulturny para você.” “Você o conhecia antes?” “Não. Mas pertence à minha firma.”
“Como disse que ele se chamava?” “Nash. Norman Nash.” Ela soletrou o nome. “N.A.S.H.? Assim?” “Sim.” A garota deu um olhar de perplexidade. “Suponho que saiba o que isto quer dizer em russo. Nash significa ‘nosso’. No nosso serviço um sujeito é nash quando ele é dos ‘nossos’, svoi quando é deles — quando pertence ao inimigo. E esse sujeito se chama Nash. Não é nada agradável.” Bond riu. “Realmente, Tania. Você inventa motivos fantásticos para não gostar das pessoas. Nash é um nome muito comum em inglês. Ele é
perfeitamente inofensivo. De qualquer modo, é bastante forte para a função de que precisamos.” Tatiana fez uma careta. Continuou a almoçar. Chegaram tagliatelli verdi, o vinho e depois um escalope delicioso. “Ah, é tão bom”, disse ela. “Depois que deixei a Rússia, só penso em comer.” Abriu mais os olhos. “Não me deixe engordar demais, James. Não me deixe ficar tão gorda que não sirva mais para fazer amor. Você precisa tomar cuidado senão comerei e dormirei o dia inteiro. Você me bate se eu comer demais?” Tatiana franziu o nariz. Ele sentiu a carícia macia de seus tornozelos. Olhouo de modo intenso. Abaixava os cílios
sedutoramente. “Pague, por favor”, disse ela. “Estou com sono.” O trem estava chegando a Maestre. Ali começavam os canais. Uma gôndola de carga cheia de legumes avançava lentamente por um espelho d’água reto em direção à cidade. “Chegaremos a Veneza dentro de um minuto”, protestou Bond. “Não quer vêla?” “Será apenas mais uma estação. E posso ver Veneza em outro dia. Agora quero que você me ame. Por favor, James.” Tatiana se inclinou para a frente. Pôs a mão sobre a dele. “Você sabe o que eu quero. Temos tão pouco tempo.”
Em seguida estavam no pequeno cômodo de novo, com o cheiro do mar entrando pela janela meio aberta e as venezianas balançando ao vento do trem. Havia de novo duas pequenas pilhas de roupa no chão, dois corpos sussurrantes na cama, e as mãos que se buscavam lentamente. Formou-se o enlace do amor e, enquanto o trem avançava aos solavancos no desvio para a estação barulhenta de Veneza, ouviu-se o intenso grito final. Além da atmosfera isolada da cabine, ouvia-se uma confusão de chamados, sons metálicos e pés que se arrastavam, reverberando lá fora, que terminaram por se dissolver no sono deles.
Passaram por Pádua, Vicenza e por um fabuloso pôr do sol sobre Verona, que espalhou dourado e vermelho através das frestas das venezianas. A campainha tilintou de novo pelo corredor. Acordaram. Bond se vestiu, saiu para o corredor e se encostou no balaústre. Contemplou o rosa desbotado sobre a planície da Lombardia, pensando em Tatiana e no futuro. O rosto de Nash veio deslizando pela vidraça escura até chegar perto do seu. Aproximou-se muito, até tocar cotovelos com Bond. “Acho que descobri um jogador do outro time, velho”, disse baixinho. Bond não se espantou. Presumira que,
se a coisa tivesse que acontecer, aconteceria esta noite. Respondeu quase com indiferença: “Quem é?” “Não sei seu nome verdadeiro, mas já passou uma ou duas vezes por Trieste. Tem algo a ver com a Albânia. Talvez seja o diretor residente lá. Agora viaja com um passaporte americano. ‘Wilbur Frank.’ Declara ser banqueiro. Está na nº 9, ao seu lado. Não creio ter me enganado quanto a ele, velho.” Bond olhou para os olhos no rosto grande e bronzeado. A porta da fornalha se escancarou de novo. A centelha brilhou e se extinguiu. “Que bom que o descobriu. Esta talvez seja uma noite difícil. É melhor ficar com a gente de agora em diante.
Não podemos deixar a garota sozinha.” “Foi o que pensei, meu velho.” Jantaram em silêncio. Nash se sentou ao lado da garota e manteve os olhos fixos no prato. Segurava a faca como uma caneta, limpando-a com frequência no garfo. Era desajeitado. No meio da refeição foi pegar um saleiro e derrubou o copo de Chianti de Tatiana. Desculpou-se profusamente. Fez uma questão enorme de pedir outro copo e enchê-lo. Chegou o café. Agora foi a vez de Tatiana ser desajeitada. Derrubou sua xícara. Ficou muito pálida e com a respiração acelerada. “Tatiana!” Bond estava a meio
caminho de se levantar. Mas foi o Capitão Nash quem se levantou de um pulo e tomou conta da situação. “A senhora teve uma reação estranha”, disse, brevemente. “Permitame.” Abaixou-se, passou um braço em torno da garota e levantou-a até que ficasse de pé. “Eu a levarei de volta para a cabine. É melhor vigiar o estojo. E tem a conta. Cuidarei dela até você chegar.” “Estou bem”, protestou Tatiana, com os lábios anestesiados pela ameaça de uma inconsciência. “Não se preocupe, James. Vou me deitar.” Sua cabeça caiu sobre o ombro de Nash. Este enlaçou sua cintura com seu braço musculoso e conseguiu sair com ela, rápida e
eficientemente, pelo corredor cheio até a saída do vagão-restaurante. Bond estalou os dedos com impaciência para o garçom. Pobre garota. Deve estar morta de cansaço. Por que não pensara no estresse que ela sofrera? Condenou-se pelo egoísmo. Felizmente havia Nash. Um sujeito bastante eficiente, embora rude. Bond pagou a conta. Pegou o pequeno estojo pesado e atravessou o mais rápido possível o trem lotado. Bateu de leve na porta da nº 7. Nash abriu. Saiu com o dedo nos lábios e fechou-a. “Teve um pequeno desmaio”, disse, “mas agora está bem. As camas estavam feitas. Foi dormir na de cima.
Acho que isso tudo foi demais para a moça, velho.” Bond balançou de leve a cabeça. Entrou na cabine. Uma das mãos de Tatiana pendia, pálida, do casaco de zibelina. Bond ficou em pé na cama de baixo e pôs a mão delicadamente por baixo do casaco. A mão estava muito fria. A garota não fez nenhum ruído. Bond desceu silenciosamente. Melhor deixá-la dormir. Saiu para o corredor. Nash o fitou com o olhar vazio. “Bem, acho que é melhor a gente se acomodar para passar a noite. Estou com meu livro.” Ergueu-o. “Guerra e paz. Há muitos anos tento terminá-lo. Durma você primeiro, meu velho. Até você parece bastante pregado. Eu o acordo
quando não puder mais manter meus olhos abertos.” Fez um gesto de cabeça em direção à porta da nº 9. “Ainda não apareceu. Acho que não o fará se estiver disposto a dar seu golpe.” Fez uma pausa. “Por falar nisso, você está armado, velho?” “Sim. Você não?” Nash pareceu desculpar-se. “Infelizmente, não. Tenho uma Luger em casa, mas é muito volumosa para este tipo de trabalho.” “Está bem”, disse Bond, relutante. “É melhor pegar a minha. Entre.” Entraram e Bond fechou a porta. Pegou a Beretta e a entregou. “Oito balas”, disse em voz baixa.
“Semiautomática. Está travada.” Nash pegou a pistola e sopesou-a profissionalmente. Travou-a e destravou-a. Bond detestava que alguém pusesse a mão na sua arma. Sentia-se nu sem ela. E, meio rabugento, disse: “Um pouco leve, mas capaz de matar se você acertar nos lugares.” Nash balançou a cabeça. Sentou-se perto da janela no final da cama de baixo. “Ficarei nesta extremidade”, sussurrou. “Tem um bom ângulo de tiro.” Botou o livro no colo e se acomodou. Bond tirou o paletó e a gravata e os estendeu ao seu lado na cama. Recostouse contra os travesseiros e apoiou os pés
no estojo do Spektor que estava no chão, ao lado de sua pasta. Pegou o livro de Ambler, achou onde estava e tentou ler. Depois de algumas páginas sentiu a concentração sumindo. Estava cansado demais. Arriou o livro no colo e fechou os olhos. Poderia se dar ao luxo de dormir? Haveria qualquer outra precaução a tomar? Os calços! Bond tateou dentro do bolso do paletó à procura deles. Saiu da cama, se ajoelhou e enfiou-os com força debaixo das duas portas. Em seguida voltou a se acomodar e desligou a luz de leitura atrás de sua cabeça. A luz violeta da luminária noturna brilhava suavemente.
“Obrigado, velho”, disse em voz baixa o Capitão Nash. Com um gemido, o trem entrou fragorosamente em um túnel.
26. A GARRAFA DA MORTE
A leve cutucada no tornozelo acordou Bond. Não se mexeu. Seus sentidos se avivaram como os de um animal. Nada mudara. Havia os barulhos do trem — o compasso leve e metálico medindo os quilômetros, os estalidos baixos do madeirame, um tinido no armário da pia onde havia uma escova de dentes solta. O que o acordara? O olho espectral da luminária noturna lançava seu brilho violeta-escuro sobre a cabine. Não se
ouvia nenhum ruído da cama superior. Ao lado da janela o Capitão Nash permanecia em seu posto, com o livro aberto no colo, cujas páginas eram riscadas pela luz branca de um raio de luar filtrado pela veneziana. Olhava fixamente para Bond, que registrou a intensidade do olhar violáceo. Os lábios negros se entreabriram. Os dentes brilhavam. “Desculpe incomodá-lo, velho. Estou com vontade de conversar!” Que nova entonação seria essa na sua voz? Bond pousou os pés levemente no chão. Endireitou-se. O perigo se fez presente, como um terceiro homem na cabine. “Ótimo”, disse Bond com ar
despreocupado. O que teria havido nessas poucas palavras que lhe provocara um arrepio na espinha? Seria o tom autoritário da voz de Nash? Ocorreu-lhe a ideia de que Nash pudesse ter enlouquecido. Talvez fosse a loucura, e não o perigo, o que Bond fora capaz de farejar na cabine. Sua intuição sobre este sujeito estava certa. A questão era arranjar um meio qualquer de se livrar dele na próxima parada. Onde estavam agora? Quando chegariam à fronteira? Bond levantou o pulso para ver as horas. A luz violácea derrotava os algarismos fosforescentes. Bond inclinou o rosto em direção ao raio de
luar vindo da janela. Da direção de Nash ouviu-se um nítido clique. Bond sentiu um impacto violento no pulso. Estilhaços de vidro o atingiram no rosto. Seu braço foi arremessado para trás contra a porta. Pensou se o pulso havia sido quebrado. Deixou pender o braço e dobrou os dedos. Todos se mexiam. O livro ainda estava aberto no colo de Nash, mas um fio de fumaça saía agora de um orifício na parte superior da lombada, e havia um leve cheiro de fogos de artifício na cabine. A saliva secou na boca de Bond, como se tivesse comido pedra-pomes. Então havia uma armadilha o tempo todo. E a armadilha se fechara. O
Capitão Nash fora enviado de Moscou. Não por M. O agente da MGB na cabine nº 9 era um mito. E Bond dera sua arma a Nash. Chegara a botar calços sob as portas para que ele se sentisse mais seguro. Bond tremeu. Não de medo. Mas de desgosto. Nash falou. Sua voz não era mais um sussurro, não era mais untuosa. Era alta e confiante. “Isso nos poupará muita discussão, meu velho. Só uma pequena demonstração. A turma acha que sou muito bom com essa engenhoca. Carrega dez balas — .25 dum-dum, deflagradas por uma bateria. Devo admitir que os
russos são formidáveis na hora de inventar essas coisas. Pena que esse seu livro seja só de leitura, velho.” “Pelo amor de Deus, pare de me chamar de ‘velho’.” Quando havia tanta coisa para saber, tanta coisa para pensar, e essa foi a reação de Bond diante da catástrofe total. Era como a reação de alguém em uma casa incendiada, que pega o objeto mais trivial para salvar das chamas. “Desculpe, velho. Tornou-se um hábito. Faz parte da minha maldita tentativa de ser um cavalheiro. Como essas roupas. Todas saídas do departamento de costumes. Disseram que eu me sairia bem assim. E me saí, não foi, velho? Mas vamos ao que
interessa. Suponho que gostaria de saber o que significa tudo isso. Terei prazer em lhe contar. Temos cerca de meia hora antes da sua despedida. Será um duplo prazer contar ao célebre Senhor Bond, do Serviço Secreto, o idiota completo que ele é. Sabe, meu velho, você não é tão bom quanto pensa. Não passa de um boneco estofado, e me deram a tarefa de esvaziar o seu enchimento.” O tom de voz era regular e inexpressivo, e as frases terminavam sem ênfase. Como se Nash se entediasse pelo fato de ter de falar. “Sim”, disse Bond. “Quero saber o que isso tudo significa. Posso lhe dar meia hora.” Pensou desesperadamente:
haveria alguma maneira de atrapalhar aquele sujeito? De desequilibrá-lo? “Não se iluda, velho”, a voz demonstrava desinteresse por Bond, ou pela ameaça que ele representava. Bond era apenas um alvo. “Você morrerá dentro de meia hora. Não tem engano. Nunca falhei. Senão, não teria o meu emprego.” “Qual é o seu emprego?” “Carrasco-chefe da SMERSH.” A voz demonstrou certa animação, um indício de orgulho. Mas voltou a se tornar inexpressiva. “Acho que conhece a sigla, meu velho.” A SMERSH. Então era essa a resposta — a pior de todas. E aquele era o seu carrasco principal. Bond se
lembrou da centelha vermelha que brilhava no olhar opaco. Um assassino. Psicopata — provavelmente maníacodepressivo. Alguém que realmente tinha prazer nisso. Que achado útil para a SMERSH! Bond se lembrou de repente do que Vavra dissera. Tentou um lance difícil. “A lua tem algum efeito sobre você, Nash?” Os lábios pretos se torceram. “Espertinho, não é, senhor agente do Serviço Secreto? Acha que sou pancada. Não se preocupe. Eu não atingiria a minha posição, se fosse.” O desprezo raivoso na voz do sujeito indicava que Bond tocara em um ponto sensível. Mas o que ganharia se fizesse
o sujeito perder o controle? Melhor agradá-lo e ganhar algum tempo. Talvez Tatiana... “E como a garota entra em tudo isso?” “Como parte da isca”, a voz era novamente entediada. “Não se preocupe, ela não vai se meter na nossa conversa. Dei-lhe um pouco de hidrato de cloral naquele copo de vinho. Esta noite ela apagou. Do mesmo modo que em todas as próximas noites. Precisa ser eliminada assim como você.” “Ah, é?” Bond levantou lentamente a mão dolorida até o colo, dobrando os dedos para ativar a circulação. “Bem, vamos ouvir a história.” “Cuidado, velho. Nada de truques. Não é bancando o Bulldog Drummond
que vai se safar desta. Se eu desconfiar do mínimo gesto, lhe mando uma bala no coração. E só. Será mesmo o seu fim. Uma bala bem no meio do coração. Se você se mexer, apenas apressará este fim. E não se esqueça de quem eu sou. Lembra o seu relógio de pulso? Eu não erro. Nunca.” “Que beleza”, disse Bond, despreocupado. “Mas não tenha medo. Minha pistola está com você. Lembra? Continue a história.” “Está bem, velho, só não coce a orelha enquanto falo. Senão eu a arranco a bala. Ouviu? Bem, a SMERSH decidiu matar você — ouvi dizer que esta decisão veio de um escalão mais alto,
da cúpula mesmo. Parece que querem dar um golpe duro no Serviço Secreto — rebaixá-lo um ou dois lugares no ranking. Compreendeu?” “Mas por que me escolher?” “Não me pergunte, velho. Mas dizem que você goza de uma reputação e tanto na sua organização. A maneira como será morto vai explodir toda essa brincadeira. Este plano levou três meses sendo bolado, e é uma beleza. Tem que ser. A SMERSH cometeu um ou dois erros ultimamente. Por exemplo, aquele caso Khoklov. Lembra da cigarreira explosiva e tudo mais? Deram a tarefa ao sujeito errado. Deveriam ter dado a mim. Eu não me bandearia para os ianques. Mas, voltando ao assunto.
Sabe, velho, temos um planejador e tanto na SMERSH. Um sujeito chamado Kronsteen. Grande jogador de xadrez. Ele disse que ia pegá-lo pela vaidade, pela cobiça e uma pitada de loucura que há nessa intriga. Disse que vocês todos em Londres cairiam pela loucura. E você caiu, não foi, velho?” Teriam mesmo? Bond lembrou como os aspectos excêntricos dessa história haviam despertado a curiosidade deles. E a vaidade? Sim, era obrigado a confessar que a ideia dessa garota russa apaixonada por ele havia ajudado. E também o Spektor. Isso decidira tudo — a simples ambição de possuí-lo. Disse, em tom casual: “Sim, estávamos
interessados nele.” “Em seguida, veio a execução. Nossa chefe de operações é um verdadeiro tipo. Acho que ela já matou mais gente do que qualquer outra pessoa no mundo — ou pelo menos mandou matar. Sim, é mulher. Chama-se Klebb, Rosa Klebb. Um verdadeiro animal. Mas conhece todos os truques.” Rosa Klebb. Então na cúpula da SMERSH havia uma mulher! Se ele apenas conseguisse sobreviver e ir atrás dela! Os dedos da mão de Bond se fecharam levemente. A voz monótona, no canto, prosseguiu: “Bem, ela encontrou essa garota Romanova. Treinou-a para essa tarefa. Por falar nisso, como ela é na
cama? Muito boa?” Não! Bond não conseguia acreditar. A primeira noite deve ter sido encenada. Mas depois? Não, depois a coisa fora de verdade. Aproveitou a oportunidade para sacudir os ombros. Foi uma sacudida exagerada. Para que o sujeito se acostumasse a alguns movimentos dele. “Ah, sim. Eu mesmo não me interesso por essas coisas. Mas eles conseguiram uns belos filmes de vocês dois.” Nash bateu no bolso do paletó. “Um rolo inteiro em 16 milímetros. Estará na bolsa dela. Ficará ótimo na imprensa.” Nash riu — uma gargalhada áspera, metálica. “Terão de cortar umas cenas
mais picantes, claro.” A mudança do quarto no hotel. A suíte nupcial. O grande espelho por trás da cama. Como tudo se encaixava bem! Bond sentiu que suas mãos haviam ficado molhadas de suor. Enxugou-as na calça. “Calma aí, velho. Quase recebeu a bala agora. Eu lhe disse para não se mexer, lembra?” Bond voltou a botar as mãos em cima do livro no colo. Até que ponto podia ampliar esses pequenos movimentos? Até que ponto podia ir? “Vamos com a história”, disse. “A garota sabia que estávamos sendo filmados? Sabia do envolvimento da SMERSH em tudo isso?”
Nash deu um resmungo. “É claro que ela não sabia dos filmes. Rosa não confiava nem um pouco nela. Demasiadamente emotiva. Mas eu não sei muita coisa disso. Todos nós trabalhávamos em compartimentos estanques. Só sei o que consegui entreouvir. Sim, é claro que a garota sabia que estava trabalhando para a SMERSH. Disseram que ela precisava ir a Londres para fazer um pouco de espionagem.” Aquela boba, idiota, pensou Bond. Por que não lhe dissera simplesmente sobre o envolvimento da SMERSH? Devia ter medo até de pronunciar esse nome. Achou que ele fosse trancafiá-la,
ou algo assim. Sempre disse que lhe contaria tudo quando chegasse à Inglaterra. Que ele não precisava ter medo, e sim confiar. Confiar! Quando ela mesma não tinha a mínima ideia do que estava fazendo. Ah, sim. Pobrezinha. Tinha sido tão enganada quanto ele. Mas qualquer insinuação teria bastado — teria salvado a vida de Kerim, por exemplo. Sem falar nas suas vidas. “Então aquele turco de vocês precisava ser apagado. Ouvi dizer que deu trabalho. Osso duro de roer. Deve ter sido seu bando que explodiu o nosso centro em Istambul, ontem à tarde. O que deverá criar certo pânico.” “Que pena.” “Isso não me preocupa, velho. O meu
trabalho vai ser fácil.” Nash fez uma consulta rápida ao relógio. “Dentro de mais ou menos vinte minutos entraremos no Túnel Simplon. É lá que eles querem que eu execute a tarefa. Mais coisas dramáticas para a imprensa. Uma bala para você. Quando entrarmos no túnel. Só uma, no coração. O barulho no túnel ajuda, se você for um moribundo barulhento, dado a estertores. Depois um na nuca da garota — com sua pistola — e lá se vai a moça pela janela. Em seguida mais uma em você, com sua arma. Naturalmente a arma estará na sua mão. Muita pólvora na sua camisa. Suicídio. É o que parecerá de início. Mas há duas balas no seu coração.
Descobrirão isso mais tarde. Mistério adicional! Farão outra busca no Simplon. Quem era o sujeito de cabelo louro? Acharão um filme na bolsa dela, e no seu bolso uma longa carta de amor da parte da garota — meio ameaçadora. Boa. Foi escrita pela SMERSH. Diz que entregará o filme à imprensa se você não se casar com ela. Que você prometeu se casar se ela roubasse o Spektor...” Nash fez uma pausa e acrescentou à guisa de parênteses: “Por falar nisso, velho, o Spektor está minado. Quando seus peritos em criptografia começarem a mexer nele, explodirá e mandará todos para o além. Nada desprezível como ganho secundário.” Nash deu um risinho enfadonho. “E depois a carta diz que ela
só tem para lhe oferecer o aparelho e seu corpo — e fala do seu corpo e de tudo que você fez com ele. Essa parte é quente! Certo? Então qual é a história que vai aparecer nos jornais — nos de esquerda, que serão avisados para ir ao encontro do trem? Velho, essa história está com tudo. O Expresso do Oriente. Bela espiã russa assassinada no Túnel Simplon. Filme pornô. Máquina secreta de decifrar códigos. Belo espião inglês com a carreira arruinada mata a garota e se suicida. Sexo, espionagem, trem de luxo. Sr. e Sra. Somerset... Meu velho, vai dar uma cobertura de vários meses! O caso Khoklov será uma brincadeira! Este vai desbancá-lo em muito. E que
soco no olho no seu célebre Serviço de Inteligência! Seu melhor agente, o famoso James Bond. Que confusão. E então o decodificador vai pelos ares! O que o seu chefe pensará de você? O que pensará o público? E o governo? E os americanos? E por falar em segurança, acabaram aqueles segredos atômicos dos ianques!” Nash fez uma pausa, para que tudo aquilo fosse absorvido. Com um toque de orgulho, disse: “Meu velho, será a história do século!” Sim, pensou Bond. Sim. Quanto a isso ele certamente tem razão. Os jornais franceses fariam tamanho barulho, que não haveria como impedir a sua propagação. Não teriam escrúpulos quanto aos filmes, nem com mais nada.
Não haveria imprensa no mundo que não explorasse a história. E o Spektor! O pessoal de M e da Deuxième teria bastante juízo para adivinhar que estava minado? Quantos dos melhores criptógrafos do Ocidente iriam pelos ares junto com ele? Meu Deus, precisava se salvar dessa encrenca! Mas como? A parte superior do Guerra e paz de Nash bocejava em sua direção. Vejamos. Haveria uma barulheira quando o trem entrasse no túnel. Então, de imediato, o clique abafado e a bala. Os olhos de Bond observaram a meia escuridão violácea, medindo a extensão da sombra em seu canto sob a cama de
cima, lembrando exatamente onde ficava sua pasta no chão, adivinhando o que Nash faria depois do tiro. Bond disse: “Você se arriscou bastante. Não podia saber se seria bem recebido em Trieste. E como sabia a senha do mês?” Nash disse, pacientemente: “Parece não compreender, velho. A SMERSH é eficiente — muito eficiente. Não há nada melhor. Sabemos sua senha do mês de todos os anos. Se alguém do seu time reparasse nessas coisas, o padrão delas, como faz o meu time, perceberia que em todo mês de janeiro vocês perdem um dos seus, entre os menos importantes, em algum lugar — pode ser em Tóquio, talvez em Timbuktu. A SMERSH
simplesmente os captura. Então extraem deles as senhas para o ano todo. E qualquer outra coisa que eles saibam, evidentemente. Mas estão atrás é da senha. É transmitida para todos os centros. Simples como dois e dois são quatro, meu velho.” Bond cravou as unhas na palma da mão. “Quanto a me juntar a você em Trieste, velho, eu não me juntei. Vim acompanhando-o desde antes, na parte da frente do trem. Desembarquei quando paramos e voltei andando pela plataforma. Fique sabendo, meu velho, que estávamos à sua espera em Belgrado. Sabíamos que telefonaria para
seu chefe, ou para a embaixada, ou alguém assim. Há semanas que aquele telefone iugoslavo estava grampeado. Foi pena não termos compreendido o termo em código que foi transmitido a Istambul. Poderíamos ter impedido aquela demonstração pirotécnica, ou pelo menos salvado nossa gente. Mas o alvo principal era você, velho, e estava no papo, com certeza. Você entrou no corredor da morte desde o minuto em que desembarcou daquele avião na Turquia. Era apenas uma questão de determinar o momento oportuno para a execução.” Nash deu outra olhada rápida no relógio. Levantou os olhos e sorriu. Seus dentes tinham um brilho violeta. “Falta pouco agora, velho.
Quinze minutos para a hora fatal.” Bond pensou: sabíamos que a SMERSH era eficiente, mas não que era tão eficiente assim. Esta informação era vital. Precisava arranjar um meio de transmiti-la. Precisava. A cabeça de Bond repassava a galope os detalhes de seu pobre, frágil, desesperado plano. Disse: “A SMERSH parece ter planejado isso muito bem. Deve ter dado muito trabalho. Só tem uma coisa...” Bond deixou a frase por terminar. “Qual é, meu velho?” Nash, pensando em seu relatório, ficou alerta. O trem começou a diminuir a velocidade. Domodossola. A fronteira
italiana. E a alfândega. Mas Bond se lembrou. Não havia formalidades para os vagões que iam direto para a França, para a fronteira, Vallorbes. Mesmo assim, os vagões-dormitórios eram isentos. Essas composições passavam direto pela Suíça. Só as pessoas que desembarcavam em Brigue, ou Lausanne, é que precisavam passar pela alfândega nas estações. “Bem, continue, meu velho.” Nash parecia ter mordido a isca. “Não sem fumar um cigarro.” “Está bem. Pode fumar. Mas, se fizer algum movimento que me desagrade, será um homem morto.” Bond enfiou a mão no bolso de trás da calça. Tirou sua larga cigarreira
metálica. Abriu-a. Pegou um cigarro. Tirou o isqueiro do bolso da calça. Acendeu o cigarro e guardou o isqueiro. Deixou a cigarreira no colo, ao lado do livro. Colocou a mão esquerda casualmente sobre a cigarreira e o livro, como se fosse para impedi-los de escorregar do colo. Tragou várias vezes no cigarro. Quem dera que fosse um cigarro de brincadeira — daqueles que produzem uma explosão de magnésio, qualquer coisa que ele pudesse atirar na cara do sujeito! Quem dera que a sua organização apreciasse esses brinquedos explosivos! Mas pelo menos havia alcançado seu objetivo sem ter sido alvejado. Já era um começo.
“Veja.” Bond descreveu um círculo com o cigarro para distrair a atenção de Nash. Sua mão esquerda enfiou a cigarreira achatada entre as páginas do livro. “Veja, tudo está muito bem, mas e você? O que fará depois de sairmos do Simplon? O condutor sabe que está envolvido conosco. Virão atrás de você em um piscar de olhos.” “Ah, isso”, a voz de Nash estava entediada de novo. “Você não parece ter entendido que o russo pensa em tudo. Desembarco em Dijon e pego um carro até Paris. Lá desapareço. Um pouquinho do clima de O terceiro homem não faz mal nenhum à história. De qualquer modo, isto será descoberto mais tarde
quando eles extraírem a segunda bala de você e não conseguirem encontrar a segunda arma. Mas não conseguirão me pegar. Aliás, tenho um encontro marcado amanhã ao meio-dia, no quarto 204 do Ritz Hotel, para entregar meu relatório a Rosa. Ela quer colher todos os louros deste trabalho. Depois me transformo no seu motorista e vamos de carro para Berlim. Pensando nisso, meu velho”, a voz inexpressiva não demonstrava nenhuma emoção, “acho que ela botou uma Ordem de Lênin para mim no pacote. Pelo excelente trabalho”. O trem começou a andar. Bond se contraiu. Dentro de poucos minutos aconteceria. Que maneira de morrer, caso viesse mesmo a morrer. Por causa
de sua própria burrice — burrice cega, letal. E letal para Tatiana. Meu Deus! A qualquer momento ele poderia ter feito alguma coisa para se livrar dessa encrenca. Não faltaram oportunidades. Mas a vaidade, a curiosidade e quatro dias de amor o haviam sugado para aquela trajetória descendente que ele percorreria conforme havia sido planejado. Essa era a parte execrável de tudo aquilo — o triunfo da SMERSH, o inimigo que ele havia jurado especialmente derrotar, quando esbarrasse nele. Faremos isso, e ele fará aquilo. “Camaradas, vejam como a coisa é fácil com um tolo vaidoso como esse Bond. Vejam-no morder a isca.
Vocês verão. Não disse que é um tolo? Todos os ingleses são uns tolos.” E Tatiana, a isca — a adorável isca. Bond pensou na primeira noite deles. As meias pretas e a fita de veludo. E enquanto isso a SMERSH assistia a tudo, assistia às suas jogadas vaidosas, conforme o planejado, de modo a construir a nódoa — a nódoa sobre ele; sobre M, que o mandara a Istambul; sobre o Serviço Secreto, que vivia do mito construído em torno do renome dele. Meus Deus, que encrenca! Se ao menos... se ao menos seu minúsculo plano funcionasse! À frente, o barulho do trem tornou-se um profundo fragor. Mais alguns segundos, alguns metros
a mais. A boca oval entre as páginas brancas pareceu crescer. Em um segundo o túnel escuro extinguiria o luar e a labareda azul estenderia sua língua para pegá-lo. “Bons sonhos, seu bastardo inglês.” O estrondo se transformou em clangor metálico. Da lombada do livro brotou uma flor de fogo. A bala, mirada no coração de Bond, zuniu pelos dois metros daquele espaço tranquilo. Bond caiu para a frente no chão, estendido sob a luz violácea e funérea.
27. CINCO LITROS DE SANGUE
Tudo dependeria da pontaria do indivíduo. Nash havia dito que Bond receberia uma bala direto no coração. Bond aceitara o risco de a pontaria de Nash não ser tão boa quanto ele dissera. Mas foi. Bond jazia como um morto. Antes do tiro, lembrara-se dos cadáveres que havia visto — da aparência desses cadáveres. Agora jazia completamente desengonçado, como um boneco
quebrado, com as pernas e os braços estendidos propositalmente de determinado modo. Examinou as suas sensações. No lugar em que a bala batera no livro, suas costelas ardiam em fogo. Ela devia ter atravessado a cigarreira e penetrado no livro pela metade. Podia sentir o chumbo quente em cima de seu coração. Parecia uma ardência dentro do tórax. Só a dor aguda na cabeça, onde batera no revestimento de madeira, e o brilho violeta da ponta dos sapatos engraxados contra seu nariz demonstravam que ele não estava morto. Como se fosse um arqueólogo, Bond explorou as ruínas cuidadosamente arrumadas de seu corpo. A posição dos
pés espalhados. O ângulo do joelho meio dobrado, que daria apoio quando preciso. A mão direita, que parecia agarrar seu coração destroçado, estaria a poucos centímetros da pequena pasta, quando ele soltasse o livro — a poucos centímetros da costura lateral que guardava as facas de arremessar de dois gumes, afiadas como navalhas, das quais tanto zombara quando o setor Q havia demonstrado o seu funcionamento. E a mão esquerda, estendida no abandono da morte, descansava no chão, onde teria uma boa alavancagem para cima quando chegasse a hora. Acima dele, ouviu-se um longo bocejo cavernoso. As pontas dos
sapatos marrons se mexeram. Bond viu o couro repuxado dos sapatos quando Nash se levantou. Dentro de um minuto, com a pistola de Bond na mão, ele subiria no beliche inferior e sua mão tatearia os cabelos espalhados, em busca da nuca da garota. Em seguida a boca do cano da Beretta se introduziria, obedecendo à sondagem dos dedos. Nash apertaria o gatilho. A barulheira do trem encobriria a explosão abafada. Seria muito arriscado. Bond tentou se lembrar desesperadamente dos rudimentos da anatomia. Onde ficavam os pontos mortais na parte inferior do corpo humano? Por onde passava a artéria principal? A femoral. Pela parte interna da coxa. E a ilíaca externa, se
este fosse o seu nome, que se convertia na femoral? Pelo meio da virilha. Se ele errasse as duas, a coisa ficaria difícil. Bond não tinha ilusões de poder vencer esse sujeito terrível em combate desarmado. A primeira facada violenta teria de ser decisiva. As pontas dos sapatos marrons se mexeram. Apontaram em direção ao beliche. O que fazia ele? Não havia outro ruído exceto o clangor cavernoso do aço da grande composição que arremetia pelo Simplon — atravessando o centro do Wasenhorn e do Monte Leone. A escova de dentes tilintava. O madeirame rangia de modo aconchegante. Em um raio de cem
metros, de ambos os lados da pequena cela da morte, havia uma série de pessoas dormindo, ou acordadas, pensando em suas vidas e amores, fazendo planos, imaginando quem viria encontrá-las na Gare de Lyon. E, durante o tempo todo, a morte viajava com elas pelo mesmo buraco escuro, atrás da mesma e enorme locomotiva a diesel, sobre os mesmos trilhos aquecidos. Um sapato marrom se levantou do chão. Devia ter passado por cima de uma parte de Bond. O arco vulnerável estaria aberto sobre a sua cabeça. Os músculos de Bond se retesaram como os músculos de uma serpente. Sua mão direita avançou alguns centímetros até a costura dura na beirada da pasta.
Apertou-a de lado. Sentiu o cabo estreito da faca. Puxou-a silenciosamente para fora, sem mexer o braço. O calcanhar marrom levantou do chão. A ponta do pé se dobrou, recebendo o peso. Agora o segundo pé sumira. Apoiar o peso silenciosamente, fazer alavanca ali, agarrar a faca com força para não resvalar em um osso, e então... Com um vigoroso movimento de torção, Bond ergueu o corpo, com a faca brilhando. O punho com a longa lâmina de aço, e toda a força concentrada dos braços e dos ombros de Bond, deu a estocada. Os
nós dos dedos bateram em flanela. Ele segurou bem a faca enfiada, empurrando-a mais para dentro. Ouviu-se um uivo terrível vindo de cima. A Beretta caiu com barulho. Em seguida, a faca foi arrancada da mão de Bond, quando o sujeito se contorceu convulsivamente e despencou com força no chão. Bond previra a queda, mas, ao se afastar para um lado, foi alcançado por uma das mãos convulsas de Nash e lançado com violência no beliche de baixo. Antes que pudesse se recuperar, o rosto terrível, com um brilho violeta nos olhos e nos dentes expostos, se levantou do chão. Lentas e agonizantes, duas mãos enormes procuraram se fechar
sobre ele. Bond, meio deitado de costas, chutava às cegas. Seu sapato fez contato, mas Nash segurou e torceu seu pé, e ele sentiu que estava escorregando para baixo. Os dedos de Bond lutavam para se agarrar à colcha da cama. Agora a outra mão do sujeito segurou-o pela coxa. Suas unhas se cravaram nela. O corpo de Bond estava sendo torcido e puxado para baixo. Em breve seria alvo dos dentes. Bond chutava com a perna livre. Não fazia diferença alguma. Escorregava. De repente os dedos desesperados de Bond encontraram algo duro. O livro!
Como funcionava? Qual era o lado que ficava em cima? Acertaria ele ou Nash? Em desespero, Bond ergueu-o na direção do grande rosto suado. Apertou a base da lombada de pano. “Clique!” Bond sentiu o recuo. “Clique-clique-clique-clique.” Agora sentiu o calor sob os dedos. As mãos nas suas pernas se afrouxaram. O rosto luzidio recuou. Fez um barulho com a garganta, um terrível gargarejo. Depois, o corpo escorregou e tombou para a frente com um baque, e a cabeça caiu para trás contra os painéis de madeira. Bond permaneceu deitado, ofegando entre os dentes fechados. Olhou para a lâmpada violeta sobre a porta. Notou
que o filamento curvado minguava e empalidecia. Passou-lhe pela cabeça que o dínamo sob o vagão devia estar com defeito. Piscou os olhos para focar melhor a lâmpada. O suor escorria para dentro deles, fazendo-os arder. O estrondo galopante do trem começou a mudar. Soava mais cavo. Com um rugido final reverberante, o Expresso do Oriente saiu para o luar e diminuiu a marcha. Bond levantou a mão devagar e puxou a beirada da veneziana. Viu armazéns e desvios. As luzes brilhavam claras sobre os trilhos. Luzes boas e fortes. As luzes da Suíça. O trem se deteve suavemente. No silêncio constante e pesado ouviu
se um pequeno ruído no chão. Bond praguejou por não ter se certificado. Inclinou-se rápido, à escuta. Segurava o livro diante de si, só como precaução. Estendeu a mão e sentiu a jugular. Não havia pulso. O sujeito estava morto mesmo. Havia sido o cadáver se acomodando. Bond se recostou e esperou com paciência que o trem voltasse a andar. Havia muita coisa a fazer. Antes mesmo de cuidar de Tatiana, precisava fazer uma faxina. Com um solavanco, o longo expresso começou a rodar lentamente. Em breve o trem estaria descendo como um trenó em zigue-zague pelos contrafortes dos
Alpes até o Canton Vallois. O barulho das rodas já estava diferente — uma cadência animada, como se estivessem contentes por terem passado o túnel. Bond se pôs de pé e passou por cima das pernas do morto, acendendo a luz de cima. Que desordem! O lugar parecia um açougue. Quantos litros de sangue o corpo continha? Lembrou-se. Cinco litros. Pois todos eles vazariam em breve ali. Desde que não fossem para o corredor! Bond retirou as roupas de cama do beliche inferior e se pôs a trabalhar. Finalmente terminou o serviço — as paredes já estavam esfregadas em torno do vulto encoberto no chão, as malas
prontas para escapar em Dijon. Bond esvaziou um jarro d’água inteiro. Em seguida, subiu na cama inferior e sacudiu o ombro em cima, coberto pelo casaco de peles. Não houve reação. O homem mentira? Matara-a com veneno? Bond enfiou a mão e sentiu o seu pescoço. Estava quente. Tateou até achar o lóbulo de uma orelha, que beliscou com força. A garota se mexeu lentamente e gemeu. Bond beliscou a orelha de novo, muitas e muitas vezes. Finalmente uma voz abafada disse: “Não faça isso.” Bond sorriu. Sacudiu-a. Continuou a sacudir até que Tatiana se virasse
lentamente de lado. Os olhos azuis dopados fitaram os seus e voltaram a se fechar. “O que foi?” A voz sonolenta estava zangada. Bond falou com ela, praguejou e importunou-a. Sacudiu-a com mais violência. Finalmente ela se sentou. Olhou vagamente para ele. Bond puxou suas pernas para fora, de modo que pendessem da beira da cama. Conseguiu de alguma maneira que ela chegasse empurrada ao beliche de baixo. Tatiana tinha um aspecto horrível — boca mole, olhos sonolentos virados para cima, cabelos úmidos emaranhados. Bond se pôs a trabalhar com um pente e a toalha molhada. Chegaram a Lausanne e, uma hora
depois, à fronteira francesa em Vallorbes. Bond deixou Tatiana e ficou em pé no corredor, só por precaução. Mas os homens da alfândega e dos passaportes passaram por ele até a cabine do condutor e, depois de cinco minutos inescrutáveis, seguiram pelo trem. Bond voltou à cabine. Tatiana dormira de novo. Consultou o relógio de Nash, que agora estava no seu próprio pulso. 4h30. Mais uma hora até Dijon. Voltou ao trabalho. Finalmente os olhos de Tatiana se abriram direito. Suas pupilas estavam mais ou menos centradas. Disse: “Pare com isso, James.” Fechou os olhos de
novo. Bond enxugou o suor de seu rosto. Levou as malas, uma a uma, até o final do corredor e empilhou-as perto da saída. Em seguida, foi até o condutor e disse que a senhora não estava passando bem e que deixariam o trem em Dijon. Bond deu uma última gorjeta ao condutor. “Não se preocupe”, disse. “Eu mesmo levei a bagagem para não incomodar a senhora. Meu amigo de cabelos louros é médico. Passou a noite acordado conosco. Botei-o para dormir na minha cama. Estava exausto. Por favor, só o acorde dez minutos antes de chegar a Paris.” “Certainement, Monsieur.” O condutor não recebia uma chuva de dinheiro como essa desde os bons e
velhos tempos dos viajantes milionários. Ele entregou o passaporte e os bilhetes de Bond. O trem começou a diminuir a velocidade. “Voilà que nous y sommes.” De volta à cabine, Bond obrigou Tatiana a ficar de pé e a sair para o corredor, fechando a porta contra o relevo branco do cadáver ao lado da cama. Finalmente desceram a escada até a maravilhosa plataforma dura e imóvel. Um porteiro de uniforme azul levou a bagagem. O sol começava a surgir. Naquela hora da manhã havia muito poucos passageiros acordados. Apenas um
punhado da terceira classe, que havia passado a noite sentado, viu um homem ajudando uma garota a se afastar do vagão poeirento com os nomes românticos escritos do lado, em direção à porta de cor indefinida onde se lia “SORTIE”.
28. LA TRICOTEUSE
O táxi parou na Rue Cambon, diante da entrada do Hotel Ritz. Bond consultou o relógio de Nash. 11h45. Precisava ser muito pontual. Sabia que se um espião russo chegasse alguns minutos antes da hora, ou atrasado para um encontro, este seria automaticamente cancelado. Pagou o táxi e entrou pela porta à esquerda que dava para o bar do Ritz. Bond pediu um martíni duplo de vodca. Bebeu metade. Sentia-se
maravilhosamente bem. De repente os últimos quatro dias, e especialmente a noite anterior, haviam sido varridos do calendário. Agora agia por conta própria, em uma aventura particular. Cumprira todas as suas obrigações. A garota dormia em um quarto na embaixada. O Spektor, ainda grávido dos explosivos, fora levado pelo esquadrão antibomba do Deuxième Bureau. Falara com seu velho amigo René Mathis, que agora era chefe do Deuxième, e o porteiro do Ritz, da entrada da Rue Cambon, recebera ordens de lhe dar uma chave mestra e não fazer perguntas. René ficara encantado por se ver novamente envolvido em une affaire
noire de Bond. “Fique tranquilo, cher James”, dissera. “Cumprirei suas ordens misteriosas. Pode me contar a história depois. Dois empregados da lavanderia carregando um grande cesto de roupa virão ao quarto 204, às 12h15. Eu os acompanharei vestido como motorista de seu camion. Devemos encher o cesto, levá-lo a Orly e esperar um Canberra da RAF, que chegará às duas horas. A gente entrega o cesto. A roupa suja que estava na França será levada para a Inglaterra. Certo?” O chefe da Estação F falara com M em código. Transmitira-lhe um relatório sucinto de Bond. Pedira o Canberra. Não fazia ideia do motivo. Bond só
aparecera para entregar a garota e o Spektor. Tomara um enorme café da manhã e deixara a embaixada dizendo que voltaria depois do almoço. Bond consultou as horas de novo. Terminou o martíni. Pagou, saiu do bar e subiu a pequena escada até a portaria. O porteiro dirigiu-lhe um olhar incisivo e entregou a chave. Bond caminhou até o elevador, entrou e subiu até o terceiro andar. A porta do elevador bateu atrás dele. Bond desceu o corredor silenciosamente, olhando os números nas portas. 204. Bond meteu a mão dentro do casaco e pegou a coronha da Beretta. Estava enfiada na cintura de suas calças.
Podia sentir o silenciador metálico quente contra o estômago. Bateu uma vez com a mão esquerda. “Entre.” A voz era trêmula. Uma voz de velha. Bond experimentou a maçaneta da porta. Estava destrancada. Enfiou a chave mestra no bolso do paletó. Abriu a porta rapidamente, de um gesto, entrou e fechou a porta. Era uma sala de estar típica do Ritz, extremamente elegante, com um bom mobiliário estilo Império. As paredes eram brancas, e as cortinas e os estofados das cadeiras de um chintz com um padrão pequeno de rosas vermelhas contra um fundo branco. O tapete era
bordô, de parede a parede. Sentada ao sol, em uma cadeira de braços ao lado da escrivaninha Diretório, estava uma velhinha a tricotar. O barulhinho das agulhas de tricô prosseguiu. Os olhos atrás dos bifocais tingidos de azul-claro examinaram Bond com uma curiosidade polida. “Oui, Monsieur?” A voz era grave e rouca. O rosto muito empoado e um tanto inchado sob os cabelos brancos denotava apenas um interesse polido. A mão de Bond na pistola sob o paletó estava retesada como uma mola de aço. Seus olhos entrefechados passearam em volta da sala e de volta à velhinha na cadeira.
Teria se enganado? Seria este o quarto errado? Deveria se desculpar e sair? Seria possível que essa mulher pertencesse à SMERSH? Ela se parecia tanto com o tipo de viúva rica que esperamos ver sentada sozinha no Ritz, a passar o tempo tricotando. O tipo de mulher que teria sua própria mesa e seu garçom favorito, em um canto do restaurante lá embaixo — certamente não no lugar mais movimentado. O tipo de mulher que dormiria depois do almoço, cujo motorista viria apanhá-la depois em uma elegante limusine preta com pneus de banda branca, que a levaria para a casa de chá na Rue de Berri, para encontrar alguma outra
amiga rica. O vestido preto antiquado com um pouco de renda na gola e nas mangas, a corrente fina de ouro que pendia sobre o busto informe e terminava em uma lorgnette de dobrar, os pequenos pés elegantes nas botas de abotoar pretas e discretas que mal chegavam ao chão. Não podia ser Klebb! Bond pegara o número do quarto errado. Podia sentir o suor nas axilas. Agora teria que continuar com a encenação. “Meu nome é Bond, James Bond.” “E eu, Monsieur, sou a Condessa Metterstein. O que deseja?” Era um francês com sotaque meio pesado. Ela poderia ser suíça alemã. As agulhas tricotavam diligentemente.
“Lamento dizer que o Capitão Nash teve um acidente. Não poderá vir hoje. Por isso vim em seu lugar.” Teriam os olhos se estreitado um pouquinho atrás dos óculos azul-claros? “Não tenho o prazer de conhecer o Capitão, Monsieur. Nem ao senhor. Sente-se, por favor, e diga o que deseja.” A mulher inclinou um pouco a cabeça em direção à cadeira de espaldar alto ao lado da escrivaninha. Não era possível apontar nenhuma falha nela. Todo aquele requinte era devastador. Bond caminhou pela sala e sentou-se. Estava agora a cerca de dois metros dela. Em cima da escrivaninha só havia um telefone alto antiquado, com o
fone no gancho, e, ao alcance da mão da mulher, uma campainha de apertar de marfim. A boca negra do telefone bocejava polidamente em direção a ele. Bond dirigiu um olhar insolente ao rosto da mulher, examinando-o. Era feio, um rosto de rã, sob a camada espessa de pó de arroz e do bolo compacto de cabelos brancos. Seus olhos eram de um castanho tão claro que pareciam quase amarelos. Os lábios pálidos, úmidos e volumosos apareciam sob a orla manchada de nicotina de seu buço. Nicotina? Onde estavam seus cigarros? Não havia cinzeiro, nem cheiro de cigarro no quarto. A mão de Bond estreitou a coronha da arma. Olhou para a cesta do tricô, para o
pedaço informe de lã bege em que a mulher trabalhava. As agulhas de aço. O que havia de errado nelas? Suas pontas estavam descoloridas como se houvessem sido postas no fogo. As agulhas de tricotar poderiam apresentar este detalhe? “Eh bien, Monsieur?” Havia uma irritação na sua voz? Teria ela interpretado algo na sua expressão? Bond sorriu. Estava com os músculos tensos, à espera de algum gesto, de algum truque. “Não adianta”, disse em um tom alegre, se arriscando, “você é Rosa Klebb. Chefe da Otdyel II, da SMERSH. É uma torturadora e assassina. Queria matar a mim e à garota
Romanov. Muito prazer em conhecê-la, finalmente”. O olhar não mudara. A voz áspera demonstrava paciência e polidez. A mulher estendeu a mão esquerda em direção à campainha. “Monsieur, lamento dizer que o senhor está louco. Chamarei o valet de chambre para lhe mostrar a porta.” Bond nunca soube o que lhe salvara a vida. Talvez a percepção súbita de não haver fios da campainha para a parede, ou para o chão. Talvez a súbita recordação do convite para entrar, feito por ela em inglês, quando ele bateu na porta. Mas, quando seu dedo já ia alcançando o botão de marfim, ele se jogou da cadeira, para o lado.
Quando Bond atingiu o chão, ouviu o barulho agudo do estofado sendo dilacerado. Os destroços do encosto da cadeira choveram a sua volta. A cadeira caiu com força no chão. Bond se virou, puxando a arma. Do canto do olho percebeu uma espiral de fumaça azul que saía da boca do “telefone”. Em seguida, a mulher se jogou em cima dele, com as agulhas de tricô brilhando em suas mãos fechadas. Golpeava para baixo, nas pernas. Bond chutou e arremessou-a para um lado. Ela visara as suas pernas! Ao se apoiar sobre um joelho, Bond percebeu o significado das pontas coloridas das agulhas. Veneno. Provavelmente um
desses venenos alemães que atacam o sistema nervoso. Bastava arranhá-lo, mesmo sob as roupas. Bond estava de pé. Ela atacou de novo. Bond puxou a pistola com fúria. O silenciador ficara preso. Houve um clarão. Bond se esquivou. Uma das agulhas chocalhou na parede atrás dele, e aquela mulherzinha horrorosa, com a peruca branca e embolada torta na cabeça, de lábios nojentos arreganhados, pulou em cima dele de novo. Bond, que não ousava enfrentar as agulhas de mãos limpas, saltou de lado por cima da escrivaninha. Ofegante e falando russo, Rosa Klebb perseguiu-o em volta da mesa, com a
agulha restante em riste como um florete. Bond recuou, se esforçando para sacar a pistola. A parte de trás de suas pernas esbarrou em uma cadeira pequena. Largou a arma para pegá-la atrás dele. Segurando-a pelo encosto, brandiu a cadeira com as pernas voltadas para a frente, como chifres, e deu a volta na escrivaninha para enfrentá-la. Mas ela estava ao lado do telefone falso. Pegouo e fez mira. Apertou o botão. Bond pulou para a frente. A cadeira bateu no chão. As balas furaram o teto, e o gesso choveu sobre sua cabeça. Bond estocou de novo. As pernas da cadeira prenderam a mulher na cintura e passaram sobre seus ombros. Céus,
como era forte! Ela recuou, mas só até a parede. Ali resistiu, cuspindo em Bond por cima da cadeira, enquanto a agulha de tricô buscava atingi-lo, como um longo ferrão de escorpião. Meio recuado, Bond segurava a cadeira com os braços totalmente estendidos. Fez pontaria e deu um chute para cima no pulso que tentava espetálo. A agulha voou pela sala e caiu tilintando atrás dele. Bond se aproximou. Examinou a situação. Sim, a mulher estava bem presa contra a parede pelas quatro pernas da cadeira. Não havia maneira de sair daquela jaula, a não ser pela força bruta. Sua cabeça, braços e pernas estavam livres, mas o torso,
imobilizado. A mulher falou algo sibilante em russo. Cuspiu nele por cima da cadeira. Bond baixou a cabeça e secou o rosto com a manga. Levantou os olhos para o rosto manchado. “Basta, Rosa”, disse. “O Deuxième chegará em um minuto. Dentro de mais ou menos uma hora você vai estar em Londres. Não será vista saindo do hotel. Não será vista chegando à Inglaterra. Na verdade, pouquíssimas pessoas a verão. De agora em diante será apenas um número em uma ficha confidencial. Quando terminarmos com você, estará pronta para o hospício.” O rosto, a pouco mais de um metro de
distância, passava por uma transformação. Ficara exangue e agora estava amarelado. Mas não, pensou Bond, de medo. Os olhos claros fitaram os seus abertamente. Não estavam derrotados. A grande boca disforme alongou-se em um sorriso. “E onde estará quando eu estiver no hospício, Sr. Bond?” “Ah, vivendo a minha vida.” “Acho que não, angliski spion!” Bond mal prestara atenção às palavras. Ouviu uma gargalhada espoucar na sala atrás dele. “Eh, bien”, era a voz alegre de que Bond se lembrava tão bem. “A septuagésima posição! Agora,
finalmente, já vi tudo. E inventada por um inglês! James, que humilhação para meus compatriotas.” “Não a recomendo”, disse Bond por cima do ombro. “Muito cansativa. Seja como for, vocês agora podem assumir o controle. Vou apresentá-los. O seu nome é Rosa. Gostará dela. É uma figurona da SMERSH — por sinal, é a encarregada das execuções.” Mathis se aproximou. Havia dois empregados de lavanderia com ele. Os três ficaram ali, olhando o rosto medonho com admiração. “Rosa”, disse Mathis, pensativamente. “Mas desta vez uma Rosa Malheur. Sim, senhor! Mas tenho
certeza de que ela deve estar desconfortável nesta posição. Vocês dois, tragam o panier de fleurs — deitada terá mais conforto.” Os dois sujeitos foram até a porta. Bond ouviu o ranger do cesto da lavanderia. O olhar da mulher ainda estava preso aos olhos de Bond. Mexeu-se um pouco, apoiando-se na outra perna. Sem que Bond ou Mathis notasse, sendo que este ainda examinava o rosto da mulher, a ponta de um pé apertou o peito da outra bota luzidia. Do bico desta surgiu a ponta estreita de uma lâmina de pouco mais de um centímetro. O aço tinha a mesma cor azulada das agulhas de tricô. Os dois sujeitos se aproximaram e
colocaram o cesto no chão ao lado de Mathis. “Levem-na”, disse Mathis, depois de fazer uma ligeira mesura para a mulher. “Foi uma honra.” “Au revoir, Rosa”, disse Bond. Os olhos amarelados se acenderam brevemente. “Adeus, senhor Bond.” A bota, com sua pequenina língua metálica, deu um chute. Bond sentiu uma dor aguda no tornozelo direito. Foi uma dor atribuível apenas ao chute. Contraiu o corpo e recuou. Os dois sujeitos pegaram Rosa pelos braços. Mathis riu. “Pobre James”, disse ele.
“A SMERSH sempre faz questão de ter a última palavra.” A língua suja de aço se retraíra na bota. A mulher agora não passava de uma velha inofensiva que estava sendo posta no cesto, como uma trouxa. Mathis observava enquanto a tampa do cesto era bem fechada. Voltou-se para Bond. “Você cumpriu um bom dia de trabalho, meu amigo”, disse. “Mas parece cansado. Volte para a embaixada e descanse, porque precisamos jantar juntos esta noite. Jantaremos onde melhor se come em Paris. E, como acompanhamento, levarei a garota mais bela que conseguir encontrar.” Bond começava a sentir o corpo entorpecido. Sentiu muito frio. Levantou
a mão para afastar a mecha de cabelos caída sobre a sobrancelha direita. Não sentia os dedos. Pareciam estar grandes como pepinos. Sua mão caiu pesadamente. A respiração tornou-se difícil. Bond inflou ao máximo seus pulmões. Fechou os maxilares e semicerrou os olhos, como fazem as pessoas quando querem disfarçar a embriaguez. Viu por entre as pálpebras o cesto sendo carregado até a porta. Obrigou-se a abrir os olhos. Focou desesperadamente Mathis. “Não preciso da garota”, disse com voz pastosa. Agora ofegava. Levou de novo a mão
ao rosto frio. Teve a impressão de que Mathis vinha em sua direção. Bond sentiu que seus joelhos começavam a fraquejar. Disse, ou achou que disse: “Eu já tenho a mais bela...” E então rodopiou e caiu estatelado no tapete bordô.
Ian Flaming
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