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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DAMA DISCRETA / Vilmar Ledesma
DAMA DISCRETA / Vilmar Ledesma

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Depois de alguns telefonemas, encontrei Cleyde Yaconis no primeiro dia de outubro de 2003. Ela mora em Jordanésia, pertinho de Jundiaí, a 40 km do centro de São Paulo, e aproveitou uma reunião de trabalho para nos conhecermos e conversar sobre o livro. Ao meio-dia, exatamente o horário combinado, ela apareceu. Cleyde é pontualíssima e detesta atrasos. Vinha à cidade acertar seu próximo espetáculo, cujo título mantém em segredo. Só adiantou que era uma peça de época e sobre corrupção.

O cenário desse encontro inicial foi numa doceira no bairro do Itaim, próximo ao Teatro Escola Célia Helena, o local da reunião da atriz. Rosto limpo, nada de jóias e muito menos afetações de grande dama do teatro brasileiro, ela está longe de aparentar os 80 anos que completaria um mês depois. O porte é de rainha, mas Cleyde Yaconis é toda simplicidade. Nossa primeira conversa durou quase uma hora e ela bebeu um ice tea gelado, isso porque não tinha natural. Nossa conversa só foi interrompida quando Cleyde viu um passeador de cachorros, segurando pela coleira vários au-aus, e ficou observando atenta a passagem da trupe. Cleyde adora cachorros e seu xodó é Felipe, que reina na casa de Jordanésia, e tem três filhas. Depois de uma hora de conversa, acompanhei-a até o estacionamento e ela saiu dirigindo rumo à sua casa. Cleyde adora dirigir e, como prefere evitar avião, enfrenta a estrada sempre que está gravando novela ou fazendo teatro no Rio.

Cleyde marcou o nosso próximo encontro para dali a três dias, no começo da tarde do sábado, em sua casa. A casa da atriz fica numa rua sem saída, construída no centro do amplo terreno, rodeada de árvores frutíferas, roseiras, hortênsias e o muro coberto de azaléias. “Conhece lixia?”: é com zelo e carinho que ela apresenta suas árvores. E como trilha sonora tem sempre o cantar dos pássaros.

No interior da residência, simples e confortável, Cleyde reservou uma parede para cada uma das mulheres de sua vida: a mãe e as duas irmãs, as três já falecidas. Na sala de estar, em frente a uma janela bem iluminada, estão fotos dos principais trabalhos da irmã Cacilda Becker. Num canto da mesma peça, uma parede menor tem fotos de espetáculos dela, umas cinco ou seis, as que ela mais gosta. Os retratos da mãe Alzira e da irmã Dirce estão na parede dos quartos. Em cima de uma cômoda, objetos que a mãe adorava, como uma gaitinha de boca, que foi presente de um namorado dela.

Foram quatro sessões de entrevistas, algumas vezes com mais de um mês de pausa entre elas, e a última na metade de dezembro. Todas começaram praticamente do mesmo jeito. Era eu chegar, sempre nas primeiras horas da tarde, tocar a campainha e esperar o caseiro abrir o portão. Cleyde estava sempre na varanda, escorada na mureta, emoldurada pelos galhos de plantas. Depois dos cumprimentos, sentávamos no sofá da sala para a conversa. Com aquela voz grave, pausada e marcante, ela não é do tipo que recusa perguntas, embora não seja de falar muito e tenha um jeito todo especial de ser modesta.

No final da primeira sessão, fui presenteado com um pote de geléia de jaboticaba, deliciosa, preparada pela própria Cleyde. E quando acabou outra, acho que a terceira entrevista, numa tarde especialmente calorenta, Cleyde precisava ir até a ótica, ali pertinho, e ofereci uma carona. Cleyde, Dadá (que foi babá do filho de Cacilda e acompanha a família há mais de 50 anos) e o cachorro Felipe foram me apresentar a principal atração turística de Jordanésia, o caipiródromo. É uma espécie de ginásio, localizado num terreno imenso e, ela me informa, passa quase todo ano inativo, com exceção de uma semana, quando se apresentam por lá os artistas sertanejos, daí o nome caipiródromo. “Pode um lugar que não tem nem atendimento médico para a população gastar dinheiro com essas coisas?”, ela observava.

Cleyde é assim, cheia de preocupações sociais e indignada com as tramóias do poder. E se mantém ativíssima aos 80 anos e 53 de teatro. Um mês antes de nosso primeiro encontro ela esteve em Salvador para receber o Prêmio Nacional Jorge Amado de Literatura e Arte, este ano dedicado ao teatro. No dia da última entrevista, confirmou por telefone sua presença na cerimônia de entrega da Comenda da Independência, concedida pelo governo do estado de São Paulo. E alguns dias depois, saía o resultado da premiação da Associação Paulista de Críticos de Arte, e Cleyde levou o Grande Prêmio da Crítica de 2003.

Na primeira semana de janeiro de 2004 estive com ela para deixar uma cópia deste livro e uns dez dias depois, numa tarde de sábado, voltei para conversarmos a respeito. Ela não pediu para cortar nada, apenas, íntima do português, sugeriu mudanças em algumas frases que estavam de maneira muito coloquial e pareciam sem sentido. Claro que ela tinha razão.

 

             Amor Que Vem do Conhecimento

Uma revelação. É assim que o teatro foi para mim. E pensar que quando comecei não tinha a menor noção do que é ser atriz, do que é fazer teatro. Eu nem sabia o que era teatro. Estudava, queria fazer medicina, não tinha nenhuma vontade de representar. E a minha infância foi muito pobre, morava em Santos, não tinha interesse, nem dinheiro, para ver teatro ou alguma outra manifestação artística.

A primeira peça que assisti? Não lembro, é provável que tenha sido Patinho Feio, com o Raul Roulien, uma das primeiras que a Cacilda Becker, minha irmã, fez. Também recordo de ter assistido Divórcio, com a Bibi e o Procópio Ferreira. Comecei a minha carreira sem a me-nor noção do que era teatro. Fui aprendendo. Isso foi ótimo. Não sou daquelas que, desde criança, vive dizendo “quero ser atriz”. No colégio, eu adorava estudar, mas nunca fui talentosa, nunca decorei poesia. Sempre pensei no que eu poderia ser útil e achava que só poderia ser com a medicina. E descobri que, da mesma forma, o teatro é importante para o país, é importante para o povo. O meu interesse pelo palco veio quando aprendi o valor cultural do teatro. Eu detesto publicidade, fama, entrevista. Não dou valor a essas coisas. Gosto de ensaiar e representar. Só. Do resto eu não gosto.

Sem nada dessa coisa de “a minha paixão”, foi um amor que veio do conhecimento. Tudo começou no palco do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, onde entrei por acaso, em 1950, e trabalhei sem parar durante sete anos. Nessa época, junto com os diretores, com o elenco, o repertório de primeira categoria, foi que percebi o que era o teatro. Fazendo teatro, você não precisa estudar mais nada. História universal, geografia, social, economia, política, tudo você estuda através do teatro. A cada peça é preciso se aprofundar, saber sobre o autor, de onde ele é, descobrir o país de onde ele vem. Chega a ponto de discutir se o clima daquele lugar influencia na personalidade, na alimentação, na religião daquelas pessoas. O teatro é a síntese da humanidade.

Você conhece o ser humano fazendo teatro. Se você se abrir para o teatro você melhora como gente. O Brecht diz uma coisa maravilhosa: a finalidade maior do teatro é divertir, só precisa saber o que é divertir. Divertir não é besteirol, é externar o prazer do conhecimento. Tive muita sorte com o meu começo no TBC, com gente séria e respeito pelo público. Eu não sabia que o teatro era tanta doação. Como é importante você ser um ator, um artista. Por que é que os poderosos temem tanto os atores? Porque aquilo que é dito no palco tem um peso muito maior do que o que eles dizem no palanque. Por isso que é muito perigoso, e o ator precisa pensar muito bem antes de abrir a boca para falar. Os poderosos temem a palavra do autor, o teatro. Schiller, não vou me lembrar exatamente da frase, mas ele diz que quando tudo cessa, os poderosos falham, todo o mundo luta e não consegue, quando acabaram todas as possibilidades para vencer o teu poderoso e a ditadura, nesse momento entra o teatro, pega a sua espada e transforma o palco num palanque, num altar. E eu tomei consciência disso nesses meus sete primeiros anos no TBC. O teatro não me ensinou só a representar, me ensinou a viver.

 

                       Quatro Mulheres

Nasci no dia 14 de novembro de 1923, em Pirassununga, que não tem muitas diferenças de outras pequenas cidades do interior de São Paulo. Meu nome é Cleyde Becker Yaconis, filha de dona Alzira Leonor Becker e do seu Edmundo Radamés Yaconis, irmã de Cacilda e Dirce. O Yaconis é grego, o Becker, alemão e o Radamés, italiano da Calábria. A mamãe era filha de alemães, Pedro Becker e Maria Becker. O meu pai era grego por lado de pai e tinha mãe calabresa, Antonio Yaconis e Francesca Marino.

Todas essas nacionalidades são marcantes em mim. Acho que tenho todas elas. Eu tenho bem o calabrês, o grego, que é muito parecido com o baiano, e a minha cabeça é alemã. Há uma mistura grande de raças e também de religião, o lado paterno é católico e o materno, protestante. Fomos batizados na religião protestante e a Cacilda, quando adolescente, adotou o catolicismo. Eu, por incrível que pareça, freqüento mais a religião católica, mas fora do horário de missa. Em minha família predomina o matriarcado, desde que me lembro, e começa com a imagem de meus avós maternos, Pedro e Maria Becker. Uma das coisas lindas da minha infância, ele era um homem alto, culto, inteligente, da nobreza alemã, completamente apaixonado por minha avó, uma camponesa, baixinha, gordinha, muito bonita e que o dominava totalmente. Meu avô Pedro tinha um microscópio, falava de astronomia, astrologia e, tenho impressão, suas histórias tinham coisas de mitologia grega.

Meu pai era filho único entre sete irmãs, não convivi com meus avós paternos, apenas com minhas tias. Bem mais tarde vim a conhecer melhor essas sete calabresas, que a gente chamava de “tias gatas”, e eram mulheres fortes, admiráveis. Seu Yaconis era caixeiro-viajante. Vivemos muito pouco tempo juntos, pois ele saiu de casa quando eu tinha quatro anos. Ele nunca fez parte da nossa vida. Hoje eu gostaria de saber quem ele era. Infelizmente, ele morreu antes que a gente descobrisse. Ele não foi feliz, não pode ter sido. Um homem elegante, inteligente, solitário, estranho fisicamente, requintado. Eu me lembro, e eu tinha quatro anos, das unhas dele. Eram lindas. Antigamente tinha um pó e ele lustrava as unhas. A pele era seca. Eu me lembro, ele escanhoava, se barbeava com navalha, passava duas vezes até ficar com a pele lisa. Era um homem requintado. Usava cuecas de seda, bengala de cabo de prata, chapéu coco, polainas de abotoar, abotoaduras de homem super requintado. Era requintado e nos espancava por qualquer coisa, se batia com a cinta era do lado da fivela, e quando batia na cabeça era no cocuruto pra gente desmaiar. Era do tipo que não deixava falar. A gente só podia responder, não podia falar. Não podia fazer barulho com o talher no prato. Assim que terminava o jantar, a gente ia para o quarto. Minha mãe respeitava muito isso. A gente comia, sempre tinha que dormir um pouco depois do almoço e sete, oito horas, já ia pra cama.

Alzirão, que é como eu chamo carinhosamente minha mãe, era uma mulher linda, nenhuma de nós três tem a beleza que ela teve. Uma mulher simples, inteligente, brilhante. Estranho, como essa mulher, em Pirassununga, com dez, doze anos escrevia peças de teatro. Se não sabia de teatro, como ela escrevia? Em Santos, mamãe escrevia as peças representadas nas festas de fim de ano da escola onde ela lecionava e nunca tinha ido ao teatro. Escrevia peças interessantes, poemas. Ela escrevia muito bem, ela falava muito bem, era uma mulher atenta a tudo, à vida.

Mamãe era professora recém-formada quando casou, mas acabou não exercendo a profissão, pois o marido não queria que ela trabalhasse. Meu pai não punha comida em casa, mas não deixava a mulher trabalhar. A gente mudava muito de cidade. Eu me lembro de Rio Claro, quando eu tinha uns três anos e nossa alimentação era salsa roubada de uma quitanda. Como não tinha dinheiro para calça e combinação, ela fazia macaquinhos de algodão para nós três. Depois, veio uma passagem por São Paulo, onde morei na Rua Caconde, Jardim Paulista, quando bem criança. Era uma rua de terra, tinha um riozinho, a gente morava num bangalô, meu pai sumia, a gente passava fome. É a lembrança que tenho. Foi quando ele nos abandonou e fomos viver na casa da vó Maria, em Pirassununga. Minha mãe tinha o estigma de “separada” e nós ficamos um ano lá, no fundo do quintal, num depósito do meu avô e nunca sentamos à mesa. Comíamos quando sobrava. Minha avó tinha um pomar e apanhávamos as frutas de cima, porque as de baixo ela contava.

Foi aí que mamãe conseguiu vaga para lecionar numa escola rural e fomos para uma fazenda de colonização japonesa, onde de brasileiro só tinha nós e o administrador. Lá aprendi a comer gengibre, a falar um pouquinho de japonês e entrei em contato com a nudez. Como os japoneses tomavam banho nus, a minha mãe maravilhosa abriu mão de seus conceitos e nos jogou nuas entre eles. Foi uma época muito feliz. Quando eu tinha nove anos, mamãe conseguiu uma transferência para uma escola de São Vicente e fomos viver em Santos, pois ela queria que as filhas estudassem. Morávamos numa favela, num casebre feito de contêineres. Era uma fase de miséria absoluta, onde chegamos a roubar para comer. Mas isso não enfeia a vida quando se tem uma mãe e irmãs como eu tive a sorte de ter. O nosso casebre era lindo, com móveis de caixote, que a Cacilda pintava e os buracos no chão, cobríamos com tapetes de estopa que a gente bordava. Do lado de fora, um pé de maracujá de um lado e um de Maria Mole do outro, plantados pela minha mãe. Foi uma época dura, mas nós tínhamos certeza de que íamos sobreviver e vencer. Vencer como gente.

A infância é a fase mais feliz da minha vida, momentos de lutas, de vitórias, ao lado de mamãe e minhas duas irmãs. A diferença de idade entre nós três era pequena. A Cacilda nasceu em abril de 1920, a Dirce em agosto do ano seguinte, uma diferença de um ano e quatro meses. Eu nasci em novembro de 1923, um ano e três meses. A minha diferença pra Cacilda é de menos de três anos. Crescemos juntas. Tivemos catapora junto, sarampo junto, coqueluche junto, tudo junto, tudo na mesma época.

Nossas brincadeiras eram pular, correr, subir em árvore. Pular, andar pelo mato catando fruta, correr de boi, correr de um cachorro, animal, natureza, pular em rio, nadar em rio. Nós éramos moleques. A gente nunca quis saber de boneca, nem de brinquedo, as nossas brincadeiras eram todas inventadas. Era pegador, correr um atrás do outro, esconde-esconde. Era brincadeira de campo, de rua, jogar futebol.

As três irmãs eram completamente diferentes, nenhuma tinha nada a ver com a outra. A Cacilda completamente diferente, a Dirce completamente diferente e eu também. Isso é que era bom. Tudo diferente, tudo. De gostar de coisas diferentes, de ser diferentes, de temperamentos diferentes. E a dona Alzira, diferente. Eram quatro mulheres diferentes, que conviviam maravilhosamente bem.

A minha infância foi a coisa mais maravilhosa e, se pudesse voltar hoje, agora, eu queria voltar ao período da minha infância até a juventude. Raramente, uma pessoa pode ter a sorte de ter nascido nesse núcleo que eu nasci. Onde eu tive uma irmã, a Cacilda, que até morrer me chamava de “minha irmãzinha”. Era a união, a luta em conjunto, a não rivalidade, todas amando a mesma coisa, lutando por uma mesma coisa, por uma história. A força, as dores, mas acima de tudo a beleza da nossa vida. O contato com a natureza, com quatro, cinco anos, eu já estava na fazenda, depois o ano que passamos na casa de minha avó. Mas aos cinco anos já estávamos em São Simão, a natureza. Depois, morar em favela, vida pobre, onde os pobres ajudavam, o menosprezo das minhas colegas e meus colegas, às vezes. Tudo isso é um aprendizado.

Era fantástico, porque nada disso, a pobreza, a fome, nos massacrava. Ao contrário, cada dor era um elemento a mais para nos dar energia e luta. Foi extraordinária, maravilhosa, a minha infância. Fome, passar fome, o desapego das coisas materiais. Até hoje, eu rio quando escuto a palavra grife, aquela revista Caras, eu não sei nada disso. Daqui a dez anos vai faltar água e ficam falando de grife. Engraçado, né.

Então, eu dei uma sorte de ter nascido filha da Dona Alzira e do seu Edmundo. Tenho sorte de esse homem nos abandonar porque resultou tão bem. Se ele não tivesse abandonado o que se-ria de nós? Sempre uma coisa má resultando no bem. Isso é fantástico. Nenhuma coisa má que nos aconteceu resultou em algo mau, sempre resultou em melhor.

O Teatro Paulista

Na segunda metade dos anos 40, São Paulo, que sempre foi a potência econômica mais forte do País, tinha mais de seis milhões de habitantes e nenhuma companhia de teatro. Todas as companhias eram cariocas: Dulcina de Moraes, Jaime Costa, Procópio Ferreira, Eva Todor. Aqui tinha só as temporadas de inverno. As companhias cariocas vinham fazer as temporadas em São Paulo e cada espetáculo era representado dois ou três dias. Desde que começou o teatro era assim e esse pessoal viajava o Brasil inteiro. As capitais recebiam as companhias cariocas, e a elite recebia a Comèdie Française, o teatro italiano, o teatro polonês. Os espetáculos estrangeiros eram vistos por pouca gente, não apenas pelo preço dos ingressos, mas também pela barreira do idioma. Naquela época, a língua estrangeira mais falada era o francês.

As companhias brasileiras faziam uma peça por dia e, às vezes, dois espetáculos. Não tinha dia de folga, era de segunda a segunda, o teatro naquela época. Os atores recebiam não a peça inteira, só as falas de cada personagem e a última palavra, a deixa, do ator com quem iriam dialogar. O ator decorava o seu papel na medida do possível e contava com a ajuda do ponto, alguém que ficava assoprando as falas para os artistas. Não existia o ensaio de mesa de todo o texto.

O guarda-roupa era fornecido pelos atores. O produtor só dava quando era roupa de época, e pode-se dizer que quase todo o repertório das companhias cariocas era moderno. Praticamente o salário dos artistas ia para essas despesas. No caso da Cacilda, muitas vezes ela comia café com leite e pão com manteiga. O dinheiro era contado. E isso numa época em que as mulheres usavam sapato, meia, luva, chapéu, tudo caríssimo. Aconteceu várias vezes da Cacilda, em começo de carreira, chegar no teatro com uma roupa que ela tinha comprado e a Laura Suarez, a primeira estrela da companhia, ter comprado uma da mesma cor. E quem tinha que sair correndo para comprar outra era a Cacilda. Não existia nenhum planejamento, tipo nessa cena você põe verde e ela, cor de rosa.

Quando vencia o contrato, Cacilda não tinha outra opção a não ser renovar, pois para comprar roupa ela ia tirando vale adiantado. Era como o fazendeiro que contrata e obriga os empregados a comprar mantimento no armazém dele, eles ficam sempre presos porque no fim de cada ano devem mais do que ganharam. A Cacilda estava sempre assim.

As coisas começaram a mudar com o Teatro Brasileiro de Comédia, que inaugurou no dia 11 de outubro de 1948, na rua Major Diogo. Foi o primeiro produtor que dava tudo para o ator, e não porque fossem bonzinhos, mas porque a partir daí o guarda-roupa passou a fazer parte do espetáculo. Nos oito primeiros meses do TBC, a fase de organização, foram quatorze espetáculos. Pela primeira vez, São Paulo teve teatro todas as noites e começa aí a história do teatro profissional na cidade. Foi necessário fazer o público, que não estava acostumado com teatro de dezembro a janeiro, de terça a domingo. Eles só estavam familiarizados com a temporada de inverno da Dulcina, do Procópio. Esse trabalho de atrair o público foi muito importante.

Tenho grande admiração pelo Franco Zampari, o fundador do TBC e acho que São Paulo, o Brasil não dá o lugar que ele merece no teatro. Zampari eliminou o ponto, trouxe diretor, iluminação. Tenho um grande amor, uma lembrança dele, que sempre me respeitou e gostou muito de mim.

Querem Que Eu Faça Amanhã?

Eu me formei no ginásio com 15 anos, sempre querendo fazer medicina. Fiz um curso de enfermagem e cheguei a trabalhar como enfermeira de acidentados numa companhia de seguros. Eu trabalhava, a Dirce dava aulas e a Cacilda, que já estava fazendo teatro, nos ajudava financeiramente. Aos 18 anos, a gente já morava numa casinha de tijolo, em Santos e voltei a estudar, cursando o científico.

No começo de 1948, mamãe e eu mudamos para São Paulo. A Dirce tinha casado no ano anterior e a Cacilda estava grávida. Eu vim para fazer o terceiro ano do científico no Colégio Bandeirantes. Fomos morar em Santo Amaro e naquela época o transporte era bonde. A Cacilda me dava mesada de quinhentos mil réis para estudar e em 1949 estava fazendo o cursinho para o vestibular de medicina ali perto da Major Diogo, e arrumei um emprego no guarda-roupa do TBC. Nem me passava pela cabeça ser atriz, mas era divertido ver o pessoal de teatro e eu estava sempre por lá, assistia os ensaios.

Em 1950, O TBC estreou O Anjo de Pedra, do Tennessee Williams. Era um espetáculo maravilhoso, a primeira vez que o teatro me tocou, e tinha um trabalho de atriz inesquecível da Cacilda, que era uma coisa impressionante mesmo para alguém como eu que não entendia nada de teatro. Assisti várias vezes e a peça me tocava muito. Luz, cenário, figurino, atriz, direção, ator, coadjuvantes, tudo era perfeito. Foi quando comecei a perceber que o teatro era uma coisa importante, mas o meu interesse era fazer o vestibular para medicina em janeiro.

Um dia, a Nydia Licia ficou doente, teria que ser operada e não poderia fazer o espetáculo do dia seguinte. Lembro que era meia-noite e estavam todos num corre-corre atrás de uma atriz de cabelo comprido e castanho. Eu falei “Querem que eu faça amanhã?”. Foi um susto geral e não tenho idéia, nem adianta me perguntar, como eu disse isso. Sei que estava no camarim da Cacilda e perguntei “Querem que eu faça amanhã?” Achei que era a coisa mais fácil do mundo. Já tinha assistido tantas vezes e, como tenho uma memória de elefante, decorado as falas. Sabia mais ou menos que eu ia entrar ali, sair por lá, essas coisas. Subimos no palco, ensaiamos e estreei no dia seguinte. Quando entrei em cena, todo mundo estava nervoso e eu, calmíssima. No fim do espetáculo, todos gaguejaram e eu estava entusiasmada com tudo aquilo e me divertindo muito. Tímida e retraída, estreei fazendo a Rosa Gonzales, uma mexicana sensual.

Parece que fui bem, pois o Ziembinski logo me perguntou se eu não queria fazer o teatro das segundas-feiras. Além dos espetáculos normais,

o TBC levava textos experimentais nas noites de segunda. O Ziembinski ia montar Pega-fogo, a Cacilda faria o menino e faltava a empregadinha. Ele falou que não ia prejudicar meus estudos e que eu ia ganhar um dinheiro. E o que eles me ofereciam para fazer quatro segundas-feiras era o dobro da mesada que a Cacilda me dava para estudar. Aceitei por causa disso. Não fiz o vestibular e nunca mais saí do palco. Não que tivesse me apaixonado pelo teatro, mas simplesmente porque iam me pagar e eu ia levar dinheiro para casa. A empregada era um papel bonitinho, pequeninho, e representei essa peça durante nove anos com a Cacilda. Ela não pôde mais largar, todo mundo queria ver o Pega-fogo, não uma vez, mas dez, vinte vezes. Pega-Fogo saiu das segundas experimentais e quase dez anos depois fizemos em Paris, no Uruguai. Foi minha primeira peça ensaiada e também estreou em 1950.

 

                     No Pique do TBC

De 1950 a 1957, a minha primeira fase do TBC, fiz 28 peças. Tive muita sorte como atriz. Durante sete anos, interpretei papéis completamente diferentes, porque cada diretor me via de um jeito. Fazia comédia, drama, clássico, moderno e tive um aprendizado nessas peças que nenhuma escola poderia me dar. Eu não parei para um dia de descanso. No TBC nós fazíamos de terça a domingo, dez sessões por semana (sábado três e domingo duas). Em 1955, com Maria Stuart, foi abolida a terceira sessão dos sábados, porque acabava à uma da manhã e a gente entrava à uma da tarde. Tínhamos a segunda de folga, mas às vezes éramos escalados para o teatro experimental das segundas.

Ensaiávamos de uma, uma e meia até seis, seis e meia no TBC. Mesmo que estivesse fazendo um papel que entrava no terceiro ato, na última fala, tinha que estar presente desde o primeiro dia do ensaio. E ficavam todos atentos, um assistindo ao ensaio do outro, não se podia ter uma revista, um jornal, um crochê, um tricô. Depois que fazíamos o espetáculo, ensaiávamos os teleteatros das segundas, da meia-noite até duas da manhã. E das sete ao meio-dia, para ganhar mais, pois ganhávamos muito pouco, a gente fazia dublagem. Então, era trabalho das sete às duas da manhã, todos os dias. Nos meus primeiros anos de TBC, estive em espetáculos como Ralé, de Maximo Gorki, que retratava uma hospedaria de indigentes. O meu papel era o de uma tuberculosa, que era mulher do Luis Linhares, e ganhei prêmio de revelação.

 

Em 1953, depois de vários papéis pequenos, o diretor Adolfo Celi me deu a protagonista de Assim é Se Lhe Parece. Foi uma responsabilidade muito grande fazer essa peça do Pirandello. Com apenas três anos de teatro e com menos de trinta, fui fazer a Frola, uma velha de 80 anos, sogra do Paulo Autran. Celi foi formidável e dis-se: “Todo principiante fala: eu vou fazer um velho. Não faça. Não existe andar de velho, voz de velho, não tem nada. Cada velho é um velho”. Ele marcou ensaios de manhã comigo, duas horas antes do resto do elenco. Celi fazia laboratório comigo, foi o primeiro, claro que sem

 

usar a palavra laboratório. Saíamos pelas ruas do centro de São Paulo, eu vestida com as roupas da personagem. Ele dizia “vamos passear, você tem 80 anos, olhe uma vitrine. O que você está vendo? Mostra pra mim se você está vendo alguma coisa para eu perceber o que você está vendo. Agora você cansou, senta, levanta, vamos tomar café”. Eu tinha que agir como uma velha, atravessar a rua, quase ser atropelada, ver cachorro, ver criança, rezar ir na igreja, tudo para ir criando a minha personagem.

 

Celi também me fez recorrer à memória emotiva, lembrei de minha avó Maria e usei vários elementos dela. Minha avó morreu com 84 anos, começou a ter lapsos de memória e o tato foi o sentido que nela ficou muito vivo. Ela primeiro punha a mão e depois dizia: “copo”. Se as palavras não saiam, apelava para a mímica. Foram esses achados, mais que a maquilagem, que me ajudaram a compor a Frola. A peça foi um sucesso incrível. Eu era aplaudida toda noite, numa cena muda em que contra-cenava com o Paulo. Ele falava e a cena era só minha reação. Assim é Se lhe Parece é um momento marcante em minha carreira e com ela ganhei o prêmio Governador do Estado de melhor atriz.

Frola foi das primeiras velhas de uma grande galeria. Sempre fiz personagens com mais idade. Acho que pela minha compreensão. Sempre fui introspectiva. Rio pouco, falo baixo, falo pouco. Não tive filhos por opção. Gosto de pessoas de idade, enquanto não tenho paciência com criança. “Faz gracinha pra mamãe ver”, não acho graça nenhuma.

Tenho paciência de ouvir uma velha me contar a mesma história várias vezes. Acho que por isso eu fui uma boa filha. Tenho dois sobrinhos, a Maria Clara e o Luiz Carlos, o Cuca, filhos da Cacilda. E tenho um sobrinho-neto, o Luiz Guilherme, que é filho do Cuca.

Depois de Assim é Se lhe Parece, vieram espetáculos, como Leonor de Mendonça, onde eu ganhei Medalha de Ouro de atriz no Rio de Janeiro, Volpone e Maria Stuart, em que contracenei com a Cacilda, ela fazendo a personagem título e eu a rainha Elizabeth, antagonistas e papéis igualmente intensos. Ganhei o prêmio Saci e contracenar com a Cacilda foi maravilhoso, uma delícia. Toda aquela luta e a célebre cena do jardim, onde nos degladiávamos num embate feroz. E quem tinha vencido o embate - às vezes eu, às vezes ela - virava nosso assunto nos camarins. Era muito gostoso, como uma luta de florete, um jogo entre duas pessoas que se amavam. Maria Stuart era um espetáculo de três horas: matinê das 4 às 7, das 8 às 11 e das 11:30 às 2. Era um massacre e para os atores agüentarem, tinha enfermeiro de plantão dando injeção de B12.

 

Muito importante politicamente foi o Mortos Sem Sepultura, do Jean Paul Sartre, que se passava no inferno com os personagens se digladiando o tempo todo, machucando uns aos outros. Santa Marta Fabril S/A foi a primeira que teve temporada longa e permaneceu um ano em cartaz. A formação do público paulista tinha se concretizado. Na peça, eu interpretava uma jovem casada com o Walmor Chagas, em sua segunda peça no TBC. Walmor estreou no TBC em Assassinato a Domicílio, comigo e com o Jardel Filho. O Jardel saiu, voltou para o Rio, e o Walmor entrou. No vastíssimo repertório do TBC, a gente fazia ponta, papel grande, protagonista. Em 1957, antes de sair do TBC, trabalhei nas peças A Rainha e os Rebeldes, com direção do Maurice Vaneau e Adorável Júlia, direção do Ziembinski, com ele, Cacilda e Walmor.

 

As peças têm importância naquele momento, o que passou, passou. Estou sempre pensando na próxima, na que vou ensaiar. Eu não sou saudosista, eu não sou melosa, eu não sou romântica. Não fico chorando pelas coisas. Tem gente que chega no último espetáculo e chora na despedida. Eu não, acabou, acabou. Não gosto de despedidas. Tchau, tchau, acabou, acabou... Eu não tenho nada de romantismo.

 

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O meu conhecimento de teatro, eu fui aprendendo aos poucos. Aí é que aprendi que tem que estudar o personagem. Quando você pega uma peça, tem que primeiro localizar o autor, de onde ele veio, saber o que ele pretende, como ele era, o que ele comia, a personalidade, porque que ele escreveu aquela peça, o que aquele texto quer dizer, o que o personagem quer dizer. Aquilo que é letra de forma, que é texto, é que acaba se transformando numa pessoa. Você fala porque pensa. Não existe a fala sem pensamento. Para representar, o fundamental é ouvir e pensar, pensar e ouvir. Você ouve e registra, responde. Tem gente que estuda o texto. O texto é uma conseqüência de um pensamento. O que tem que estudar é o que a personagem pensa, porque daí ela fala. Ela não fala e depois pensa. Ela pensa e depois fala. Aos poucos, e guiada por pessoas diferentes, fui entendendo esse trabalho de construir um ser humano, que sai da letra de forma e vira gente.

Comecei sendo dirigida pelos melhores diretores, quer dizer, os únicos. Dizem que O TBC só contratou diretores estrangeiros. Ué, mas não tinha diretor nacional. Foi durante esse período até 1957 que apareceram os brasileiros diretores, como Flávio Rangel e Antunes Filho. O Flávio Rangel tinha 22 anos quando dirigiu Zimba. Com 18, 19, ele trazia café pros diretores e ficava na platéia do TBC aprendendo. O Antunes também.

Adolfo Celi, Flamínio Bollini, Luciano Salce, Ruggero Jacobi, Ziembinski: os diretores do TBC eram completamente diferentes. Cada um tinha seu sistema, seu método. Isso é que é bom. É como o ator. Eu não sou igual à Fernanda Montenegro, a Fernanda não é igual a Cacilda... Como os atores são diferentes, os diretores também. Cada um vê o espetáculo de uma maneira.

O diretor com quem mais trabalhei foi o Flávio Rangel, a partir da fase anos 60 do TBC. Também fiz muita coisa com o Ziembinski, que me adorava. Era um diretor mestre, professor, paciente, ensinava um caminho para você procurar. O Celi era instigante, ele te provocava, enquanto o Salce judiava muito do ator, era impaciente. Um intelectual, o Ruggero Jacobi dava muito intelectualmente o que era esse personagem. O Bollini, a gente chamava de “faça ver” e conto daqui a pouco por quê.

O Celi se formou na Itália, em 1945, com 24 anos, chegou ao Brasil em 1948 e logo estava no TBC dirigindo Nick Bar, que tinha 28 personagens. Acho que de todos eles foi o diretor mais apaixonante. O Celi tinha uma velocidade interior maravilhosa e com ele aprendi duas coisas: ouvir e pensar. Tinha uma análise de texto de cada vírgula.

O polonês Ziembinski foi o grande mestre de toda uma geração de teatro. A importância dele é anterior ao TBC e graças ao grupo carioca Os Comediantes, a atuação dele foi talvez o primeiro estímulo dos paulistas. Por incrível que pareça, o polonês foi o que mais perto chegou do Nelson Rodrigues, que é o brasileiro carioca, com a histórica montagem de Vestido de Noiva, em 1943.

Era um mestre. Às vezes, numa cena difícil que o ator não conseguia, ele tinha o método de ensinar a fazer. O Celi explicava. Já o Ziembinski, como ele era um grande ator, fazia pra gente ver. Mesmo que inicialmente a gente copiasse, como uma criança copia. Ele tinha paciência de explicar onde você devia acentuar a palavra, qual era a palavra que tinha que ser acentuada. Ele ensinava que dependendo do peso da palavra você muda o sentido da frase, um outro diretor não tinha essa paciência. Ele dizia “você está falando errado, está dizendo EU vou lá, não tô querendo saber quem vai, eu quero saber se você vai. Ah, Eu VOU lá, é isso”.

O italiano Luciano Salce foi indicado para o TBC pelo Ruggero e pelo Celi. Ele dirigiu Anjo de Pedra, a primeira peça que eu participei, era um diretor extraordinário, mas para o ator já mais formado. Ele era impaciente, queria ver um ótimo ator. Acho que um ator principiante fazendo a cena errada irritava, mexia com ele. Eu, por exemplo, sofri. Era principiante e fui fazer uma peça com ele logo no primeiro ano, Convite ao Baile.

 

Sofri porque não sabia como fazer e sentia que ele se irritava, porque não tinha aquela paciência de ensinar, era mais para corrigir. Quando a pessoa já está fazendo, ele burilava. Então, a Cacilda, o Paulo, trabalhando com ele era uma maravilha. Eu sofri com o Salce, embora ele fosse de um brilhantismo, acho que o diretor que eu mais apreciei assistindo. Numa das minhas idas para a Europa, eu o vi na Itália. Em Roma, telefonei para ele e fui assistir A Gaivota.

O mais jovem dos diretores italianos do TBC, Flamínio Bollini devia ter uns 23 anos quando chegou a São Paulo. Com ele fiz também meu primeiro filme, Na Senda do Crime. Bollini era muito interessante, principiante também como diretor, com um grupo de gente que tinha muitos novatos também. Nós fizemos Ralé, onde Ziembinski, Paulo, Maria Della Costa, eram atores mais tarimbados, mas tinha uma turma bem principiante: eu, Elizabeth Henreid, Nydia Licia. E nós o chamávamos “Faça Ver”. Por quê? Bom, ele sabia o que queria, mas tinha muita dificuldade de pedir, orientar, pois era muito jovem.

Então, a gente dizia, será que a cena não é assim, mais pro lado do humor. Ele dizia “Faça Ver”. Vendo, ele dizia “não, não é isso, talvez seja puxando mais pro lado dramático, aqui é mais forte a cena”, coisas assim. “Faça ver”. Ele sabia como era a cena, mas não sabia orientar o ator. A gente se esforçava para colaborar com ele e o espetáculo foi feito junto. Bollini era magro, nariz grande, um italiano interessante. Bonito nenhum deles era. Jacobi era o contrário do Bollini. Era o que mais conhecia teatro intelectualmente, mas como diretor não era tão bom. E tinha também o Maurice Vaneau, que era belga.

O que é um bom diretor? É quando ele vai fun-do no texto, na sua maneira de ver. Eu posso até não concordar... O teatro é fantástico porque a mesma peça pode ser feita de dez mil maneiras. Depende da visão de cada um. Os teus valores não são os meus valores. Mas sejam quais forem os valores, o que faz um mau diretor é a superficialidade. É ser superficial, é passar por cima. Eu posso assistir o espetáculo que é um grande espetáculo, não concordar com a visão do texto, mas não tem como negar que ele foi fundo. O que faz um grande diretor é ele mergulhar e não deixar nada de superficial. É isso que dá segurança, prazer ao autor. Um bom diretor vai fundo, sem medo de errar. Um dire-tor, como o ator, tem que arriscar.

                     A Companhia da Cacilda

Em 1957, depois de Adorável Julia, me desliguei do TBC, onde fiquei sete anos e aprendi a gostar de fazer teatro. Depois começaram os outros grupos, com atores saídos de lá: a Cacilda organizou seu grupo, Paulo Autran com a Tônia Carrero também, o Sérgio Cardoso com a Nydia Licia. Eu fui trabalhar com Cacilda, Walmor, Ziembinski, Fredi Kleemann. Éramos sócios e fundamos o Teatro Cacilda Becker (TCB).

A Cacilda estava começando seu relacionamento com o Walmor e eu, o meu com Stênio Garcia. Fizemos um repertório de seis peças, e percorremos o Sul até o Uruguai, fazendo tudo quanto era cidade. Nós fomos de trem. Era um vagão carregando toneladas de roupa e cenários. De trem e de carro. Depois fomos para o Norte até Recife e lá tomamos o navio para Portugal.

Ficamos sete meses na Europa, quatro em Portugal (fizemos Portugal inteiro), Espanha e participamos do Festival das Nações, em Paris, no Teatro Sarah Bernhardt.

Pega-fogo, cujo título original é Poil de Carotte e quer dizer cabelo de cenoura, do francês Jules Renard, foi o espetáculo apresentando no festival, em Paris. E faz pouco tempo, soube de um fato incrível relacionado a essa apresentação. O presidente Bill Clinton veio ao Brasil e na comitiva estava o ator inglês Anthony Hopkins. O neto da Cacilda, o Luis Guilherme, fez a faculdade de cinema e fotografia, e foi escalado para tirar fotografias da conferência do Clinton com o reitor da Universidade, que o apresentou a Hopkins: “É o neto da maior atriz brasileira de todos os tempos, Cacilda Becker”. “Como é o nome?”, disse Hopkins, “Escute, a sua avó não representou em Paris. Ela não era uma mulher magra, magra? Eu vi sua avó em 1959, no Teatro Sarah Bernhardt. Eu era estudante, tinha vinte e poucos anos, pobre e entrei porque gostava muito da peça. Mas eu não sabia quem era, estava certo de que era um rapaz fazendo, nunca mais eu esqueci da sua avó”. Anthony Hopkins tinha visto a minha irmã em 1959, em Paris, e nunca mais esqueceu. Não é incrível? Ele disse que não foi cumprimentar porque era muito era muito tímido. “Becker? Nunca mais esqueci. Onde está essa atriz?”

Uma das boas lembranças da época da Companhia Cacilda Becker é meu conhecimento com Ariano Suassuna, de quem montamos duas peças O Santo e a Porca e O Auto da Compadecida. Os personagens de Ariano são maravilhosos, brasileiros, têm o humor, a malícia e a safadeza do povo brasileiro, como ele se vira e se sustenta. Fiz um palhaço do Auto e a Caroba do Santo e a Porca, que foi a peça de lançamento do Teatro Cacilda Becker, em março de 1958, no Teatro Dulcina, no Rio. Ariano adorou a montagem e eu ganhei o Prêmio Governador do Estado de melhor atriz. Peça de estréia da Companhia em Lisboa, o Auto era dirigido pela Cacilda.

Quando a Companhia passou por Recife, rumo à excursão pela Europa, fui almoçar na casa do Ariano e ficamos amigos. Lembro que a casa dele tinha um muro amarelo, cheio de pinha. Eu fa-lei que adorava pinha e ele arrancou uma pinha do muro e me deu.

Adoro O Santo e a Porca e, no começo dos anos 70, produzi uma remontagem da peça que fez bastante sucesso e chegamos a apresentar na Penitenciária de Bangu, no Rio, mas não trabalhei como atriz. Três anos atrás, o Ariano Suassuna foi homenageado por uma escola de samba, ele me telefonou e falou que fazia questão de que eu fosse. Eu disse, “Te adoro, mas não tanto”. Carnaval nem pensar. Só gosto porque são quatro dias e, quando estou trabalhando, fico de folga na minha casa.

Outra do repertório da Companhia Cacilda era Santa Marta Fabril S/A. Na montagem do TBC, eu fazia a protagonista e dessa vez cedi a personagem pra Cacilda, e peguei um papel pequeno. Fiz Santa Marta Fabril duas vezes, mas em papéis diferentes.

Na passagem do Teatro Cacilda Becker por Paris, recebi um convite do Flávio Rangel. Nessa época ele tinha 23 anos e estava em Paris participando do Festival das Nações com Gimba, peça do Guarnieri montada pela Companhia Maria Della Costa. Ele me disse que tinha sido convidado para dirigir o TBC e que iria fazer um repertório só com autores brasileiros, coisa que eu ainda não tinha feito. Aquilo me interessou socialmente, politicamente, e eu falei pra Cacilda, “Agora a tua companhia já está feita, montada, estabilizada, então eu volto para o TBC, porque me interessa esse convite para fazer peças nacionais”. Quando voltei da Europa me desliguei da Companhia da Cacilda e voltei para o TBC.

                   Surpresas a Cada Passo

Gosto de viajar sozinha. Sou sozinha até hoje, não tenho medo. Não gosto dessa coisa de excursão, de viajar com brasileiro. Viajo sozinha. Converso com pessoas que viajam pela Europa e é completamente diferente. Eu não vou a lugares turísticos, viajo com muito pouco dinheiro, sem mala. A primeira viagem que fiz ao exterior foi na excursão da Companhia Cacilda Becker para Portugal, em 1959. Dormi três meses dentro de uma kombi, eu e o Stênio, éramos casados. Não tinha dinheiro para pagar hotel. Viajamos por Portugal e pela Espanha toda. Fui para o Norte da África, Marrocos.

Tive uma sorte danada quando cheguei ao Marrocos. Uns muros cercavam a cidade. Era uma época difícil para brancos viajarem por lá, o país estava na luta pela independência com os franceses. Eu estava com o Stênio e nós queríamos entrar. Encontramos um guarda, que tinha uns vinte anos, e fazia teatro amador. Era o dia de ronda dele, que nos convidou a acompanhá-lo, fazendo a guarda com ele. Andamos a noite inteira com o rapaz, fomos a lugares que turista nenhum vai. Eu dizia “Não agüento mais andar, vou cair dura”. O guarda nos levava a lugares escuros, uns mafuás, espécies de boates, aqueles homens fumando haxixe. Ele nos deixava por lá, dizia que éramos amigos dele, que iríamos ficar descansando e que voltava para nos buscar em meia hora. E a gente gastando o mínimo. Às vezes era um copo d´água, um café. Eu vi coisas de dança, de meninos adolescentes dançando. Não eram mulheres, não, eram homens dançando a dança de ventre. Ficamos até de manhã. Ficamos a noite inteira dentro de Kasbah, vimos todo o amanhecer, as rezas para Alá. Uma coisa que turista nenhum faz.

Voltei à Europa em 1967, com a passagem do prêmio Moliére que ganhei por Toda Nudez Será Castigada. Estava sozinha, com pouco dinheiro, sem mala. Fiquei um mês na Grécia com um vestido, um sapato, uma calça comprida, três blusas, calcinha e maiô. Era uma sacolinha de mão.

Comia na rua, sem dinheiro. Eu podia gastar um dólar por dia com a entrada de teatro e foi uma viagem maravilhosa.

Gosto de pegar ônibus, descer onde eu quero, depois torno a pegar outro e vou parando onde tem coisas que me interessam. Muito dos lugares por onde passei eram uma decepção. Cote D´azur, o que interessa? O bacana é mesmo a surpresa, o “Que lugar é esse?”. Você pára, desce, fica. Não faço coisa de turista, gosto de ter surpresas.

Na Grécia, fiquei em Atenas. De Atenas eu fui zanzando e na Alemanha também foi assim. Eu passava num lugar, dizia “nossa que maravilha eu vou ficar aqui”. Eu andava de cidade em cidade. Era bem antes da queda do muro de Berlim, fui pra Alemanha Oriental, e achei a Ocidental uma porcaria. O domínio americano estava por todo lado, nas placas de Helena Rubinstein, Coca-Cola, e era como se eu nem estivesse na Alemanha.

Gosto muito de andar. Hotel é só para dormir. Acordo às sete da manhã, ponho um tênis e saio para andar. Eu ando, ando, ando e vou encontrando as coisas ao acaso. De repente ouço uma música, entro no lugar que tá tocando. Na igreja tem um coral. Saio. Depois tem um museu, tem um teatro. O bom é ver essas coisas sem programar, a não ser que tenha um espetáculo que eu queira assistir. Caso contrário, prefiro ter a surpresa. Lembro que uma vez em Paris passei uma tarde inteira conversando com uma vendedora. Cansada, sentei na grama, e lá estava uma mulher com um cachorro. Fiquei a tar-de inteira conversando. Tudo sem pressa.

Peguei um navio grego, e como tinha muito pouco dinheiro, comprei poltrona no convés. Uma poltrona, um cobertor, e eu levava uma sacola de comida com pão, azeitona, queijo. Viajando no convés, acho que tinha uns 400 meninos e meninas do mundo inteiro, e eu já estava com 40 anos. Todos com instrumentos musicais, com tóxicos, fazendo sexo, uma loucura, ainda mais para a minha eterna caretice.

Eles perguntavam o que eu fazia e eu dizia “estudante”. Viajei uns dois dias no convés. Aquela garotada toda viajando e eu lá no meio. Entende, essas coisas ninguém faz.

Desci do navio em Patra e peguei o ônibus, que era uma charanga, quase caindo aos pedaços. Quando cheguei a Atenas eram onze horas da noite e desci na parte nova da cidade, mas uma amiga que morava em Paris tinha me descrito Atenas com tal perfeição que não foi difícil me achar. Eu tinha que procurar a rua Epidaurus. Fui a pé, por aquelas ruas de um metro de largura, onde nem dá para abrir os braços. À meianoite eu estava chegando num hotel que era dentro de um mercado, ao pé da Acrópole, que eu via da janela do meu quarto. A diária era um dólar, com direito a café da manhã, que era uma tigela de coalhada. Eu fui a pé da parte nova até a antiga, ao pé da Acrópole, andando e descobri a rua. Eu li a placa com aquelas letras gregas, “Epidaurus”. E era.

A coisa mais linda que eu vi na vida foi a Grécia. Atenas é uma coisa deslumbrante, a cor do céu, a cor do mar, o povo, que é barulhento e parece baiano. Eu não gosto de fotografar. O que fica dentro da memória é o que vale, o que não vale você esquece. Então não precisa de fotografia. A fotografia nunca mostra o que o lugar é de verdade.

Um Jeito Brasileiro de Fazer

Na volta ao TBC, onde fiquei os quatro primeiros anos da década de 60, o repertório era basicamente de autores nacionais e eu trabalhava com diretores muito jovens, como o Flávio Rangel e o Antunes Filho. Fiz O Pagador de Promessas, do Dias Gomes; A Semente, do Gianfrancesco Guarnieri; A Escada, Os Ossos do Barão e Vereda da Salvação, do Jorge Andrade; além de Almas Mortas, do Gogol e Yerma, do Garcia Lorca.

Nessa época aconteceu uma coisa muito engraçada. O TBC tinha uma linha de representação bem definida e o recém-fundado Teatro de Arena ia por outros caminhos. No Arena, a coisa era bem realista, o ator podia falar errado, coçar as axilas, cuspir no chão, fazer brasileiro assim, né. Aí veio o Zé Celso com o Oficina fazendo Brecht. Nessa época, quando saí da companhia da Cacilda e voltei para o TBC, começou um grande período do teatro, que eu chamo de coquetel. E no início tinha muita rivalidade, as pessoas do Arena falavam mal do TBC, o TBC criticava o Arena, criticava o Oficina. Quando chegou em 1960, foi a mistura, foi o salutar. No TBC estavam Juca de Oliveira, Flavio Migliaccio, Flávio Rangel e o Nelson Xavier. No Oficina, estava, imagine, Madame Morineau, vinda do teatro super-tradicional. É por isso que eu chamo de coquetel. No TBC estavam Leonardo Villar, Nathalia Timberg e eu, que éramos da geração TBC dos anos 50. E vieram Juca, Garnieri e Flavio Migliaccio, do Arena. Começou a mistura e aí que foi bom, começou a se definir o que era o teatro brasileiro. Várias tendências se misturaram e começou uma nova.

Nessa segunda fase no TBC, com os textos nacionais, a dramaturgia do Jorge Andrade foi muito importante. Eu fiz três peças dele e as melhores novelas. Jorge foi uma pessoa que admirei e, o que me honra muito, ele adorava escrever para mim. A primeira personagem do Jorge que representei foi a mãe mais pobre, que fazia crochê e era amiga das filhas em A Escada. Esta peça faz parte de uma trilogia, junto com Os Ossos do Barão e Vereda da Salvação, que seriam montadas a seguir.

Jorge Andrade não era romântico. A importância dele é inegável. É só deixar passar mais um tempo e daqui a pouco vai estar se refazendo tudo o que ele escreveu. Ele retrata um mundo que estava ruindo, o dos grandes latifúndios, do café, dos fazendeiros. As grandes fazendas, as mucamas, os empregados, os colonos, tudo isso acabou. Depois vieram as paulistas quatrocentonas que se mantiveram fazendo doce, que sustentavam a família diante de uma derrocada. Uma época fantástica. O sofrimento dessa gente, a delicadeza, a nobreza. Era o fim da influência européia para começar a entrar a desgraça americana. Foi toda uma mudança do Brasil, que saiu do francês para o inglês.

O Jorge era uma pessoa extraordinária. Sofrida, muito sofrida, porque o mundo dele foi acabando. Era o mundo dos paulistas quatrocentões, uma época de serões, saraus, poesia, patriarcado.

Intelectualmente, ele escrevia que isso tinha que terminar, mas sofria porque morriam todas as coisas que ele gostava também, as grandes famílias, os empregados, as babás, os poderosos.

Foi uma delícia trabalhar com o Otelo Zeloni em Os Ossos do Barão. Era um ator maravilhoso, comediante. Ele fazia comédia, mas humanamente, com verdade, o tipo de humor que eu gosto.

 

Zeloni era muito engraçado, inteligente, tinha uma capacidade de improviso, mas nunca em tom de besteirol. Nós ficamos com Os Ossos do Barão mais de um ano em cartaz e foi com essa peça que pegou fogo no TBC, numa segundafeira. E na quinta teve matinê com o teatro ainda sujo, aquele cheiro de queimado, com aquela umidade da água usada para apagar o fogo entranhada nas paredes. Lotou a matinê. Pegou fogo na segunda, terça e quarta apagando o fogo, lavando e limpando; e na quinta teve matinê com o teatro lotado.

 

                         Um Bom Amigo

Flávio Rangel foi um grande amigo. Nos conhecemos em 1959, fizemos várias peças juntos e ficamos amigos até a morte dele, em 1988. Conheci o Flávio em São Paulo, quando ele ia assistir aos ensaios do TBC. Com dezenove, vinte anos, ele e o Antunes Filho ficavam no TBC assistindo aos ensaios e a gente conversava muito. Flávio era um bom amigo, muito inteligente, uma pessoa boníssima, generosa. Flávio era autodidata e a primeira direção dele foi o Gimba, do Guarnieri. Quando cheguei em Paris, encontrei com ele, que estava com a peça por lá, também participando do Festival das Nações.

Eu e o Stênio fomos os padrinhos do casamento dele, o primeiro, maldito casamento e nem vou falar o nome da noiva que não interessa. Depois ele casou com a Dulce com quem teve um filho, o Ricardo, e a terceira mulher foi a maravilhosa Ariclê Perez, minha amiga, viveram juntos por 14 anos. Mas o primeiro casamento foi maldito e durou só oito dias. Foi casamento mesmo, na igreja dos dominicanos. Ele casou numa segunda e no domingo acabou. Flávio estava apaixonado, sofreu muito e acho que foi aí que deixou de ser jovem e virou homem. Almas Mortas, do Gogol, que tínhamos assistido em Paris, com direção do Roger Planchon, foi bem nessa época conturbada. Nosso Almas Mortas foi trágico, um fracasso.

 

Estive com o Flávio nos momentos mais difíceis e acompanhei o crescimento dele como profissional e como homem. Como diretor, acho que ele era mais parecido com o Adolfo Celi. Sempre ágil e dando muitas indicações. Ele era paciente com o ator iniciante, mas tinha mais o dinamismo do Celi, o ritmo, a rapidez, a ligeireza mental. Flávio dirigia por indicações, não era o “faça ver” do Bollini, nem aquela coisa delicada do Ziembinski de ensinar. Era muito mais próximo do Celi. Talvez porque, quando iniciante, esteve perto do Celi, de quem foi assistente, mas assistente de assistir e não aquele auxiliar direto.

Nos quatro anos da minha segunda passagem pelo TBC, trabalhei em cinco peças com direção do Flávio: O Pagador de Promessas, A Semente, Almas Mortas, A Escada e A Morte do Caixeiro Viajante. Voltei a fazer essa peça do Arthur Miller em 1986, com direção do Domingos de Oliveira. Mas nem se compara a primeira, embora naquela época eu fosse muito nova para fazer a Linda Loman, a esposa do protagonista, que era o Dionísio de Azevedo. Leonardo Villar e Juca de Oliveira interpretavam os nossos filhos. Alguns anos depois, Flávio e eu voltamos a nos encontrar em Édipo Rei, A Capital Federal e A Nonna.

Nosso último trabalho juntos, a comédia A Nonna, encenada em 1980, caracterizava-se por uma coisa que eu gosto muito, humor negro. Eu tinha pouquíssimo texto, só mastigava. Minha personagem era uma avó centenária, dona de um apetite incrível. Eu passava o tempo todo em cena comendo. Durante a temporada toda eu comia montes de arroz integral, que leva um tempo para mastigar e faz bem para o intestino. Laura Cardoso, Flavio Galvão, Marcos Plonka e Célia Helena estavam no elenco. A peça só foi apresentada em São Paulo e devia ser refeita, porque é muito boa.

 

A Semente dos Laboratórios

Trabalhei com o Antunes Filho duas vezes, em Yerma e Vereda da Salvação, ambas no começo dos anos 60. Em Yerma, do Garcia Lorca, o Raul Cortez fazia o marido e o Altair Lima, o amante. O Antunes é de uma precisão, de uma delicadeza, de uma sensibilidade. Parece incrível a contradição do Antunes, como gente, o lado do diretor perverso, cruel, terrível, maldoso e essa sensibilidade. São as contradições. Na Yerma, felizmente não tivemos problema, apesar desse temperamento. Ele é terrível, mas eu nunca tive problema com ele. Mas é desagradável as-sisti-lo ser tão cruel com outro ator. Na Yerma não teve, foi muito bom o trabalho.

Lembro que durante a peça, a María Casares, uma atriz espanhola que trabalhava mais na França, veio fazer um espetáculo no Brasil. O Antunes e o Sábato Magaldi a convidaram para assistir a peça e, como ela se apresentava à noite no Municipal, foi feita uma matinê, às quatro horas da tarde. Era um espetáculo só para ela, sem público. Foi uma das coisas mais emocionantes que já passei: representar só para uma mulher sentada na platéia, uma mulher que eu admirava, uma atriz fantástica. Foi uma experiência incrível aquela de se abrir o pano e saber que aquela mulher estava sozinha ali na platéia. Se tivesse umas 400 pessoas seria menos traumatizante. Minha sorte é que tenho sangue calabrês, um temperamento violento também. Apesar de ser muito calma, muito serena, tenho um lado de sangue calabrês que quando precisa ele funciona.

O espetáculo começou e gaguejei na primeira fala, a minha língua estava seca, enorme, pare-cia maior do que a minha boca. Gaguejei também na segunda fala, fiquei tão desesperada que me deu um ódio da Casares, apesar de todo amor que eu tinha por ela. Então me bateu uma revolta e fui em frente. Se tivesse chorado, ficado desesperada depois de ter gaguejado, acho que talvez não fizesse o espetáculo. Mas me veio uma revolta e foi um prazer tão grande que, à medida que o espetáculo correu, num trecho muito bonito onde tinha uma parte meio falada e meio cantada, ela levantou e me aplaudiu em cena aberta. Foi uma felicidade.

A Casares fez uma menina numa montagem de Yerma, com a grande atriz Margarita Xirgu, que o Lorca adorava. E ela me falou que eu era a cara da Xirgu. Não pessoalmente, mas a minha maquiagem, a minha cara em Yerma. Ela me mandou um livro com uma dedicatória que tinha uma fotografia da Xirgu em Yerma. Éramos muito parecidas mesmo. Yerma teve tempo normal de ensaio, uns dois meses. A gente sempre fazia muito exercício, muita preparação física. Tínhamos aula de dança, de canto, era um musical. A gente tinha muito trabalho, era o dia inteiro. Eu nunca tinha cantado nada, mas foi ótimo.

 

Depois se resolveu fazer Vereda da Salvação. Antunes sempre trabalhou com laboratórios, na Yerma já fazia. Acho que nessa época foi praticamente o princípio de todo esse trabalho que ele está fazendo agora, de procura, de caminhos, de forma de representação, de Brasil. Tudo super-minucioso. Foram seis meses de ensaio para Vereda da Salvação. Por quê? Os Ossos do Barão foi feita para uma carreira normal de uns três meses e pegou de tal forma que ficou mais de um ano, uma loucura. Era casa lotada de terça a domingo e quando chegava quarta-feira, a lotação já estava esgotada. A estréia de Vereda foi adiada e o Antunes aproveitou essa espera e começou a trabalhar não só para a peça, mas fez um trabalho conosco muito grande de brasilidade, de parte física.

Nós fazíamos duas, três horas de ginástica, de corpo, de exercício, de laboratório. Ele teve tempo de fazer uma procura, uma pesquisa do brasileiro da terra, do caiçara, do caipira, do homem do campo. Esse trabalho não era só dirigido para a peça e funcionava como uma procura de estilo de representação. Eram umas duas horas de trabalho de corpo, depois trabalho de gesto, anti-gesto, anti-palavra, coisas que nem sempre eram aplicadas ao espetáculo.

Foi um aproveitamento de criatividade, de imaginação, de procura, de caminhos, um trabalho muito bonito.

O elenco de Veredas era grande, mas tinha muita gente com formação de circo que não era ator e que fez aqueles exercícios todos. Isso foi muito útil para nós, atores feitos, porque tínhamos a realidade brasileira de gente humilde, gente pobre, a maneira como eles falavam, como eles representavam. A gente estudava muito a verdade para depois criar teatralmente em cima de uma verdade que a gente via. Às vezes não é útil fazer a verdade absoluta, mas ver e criar artisticamente sobre essa imagem real a imagem teatral.

A Glória Menezes ensaiou uma ou duas semanas Vereda da Salvação e, quando soube que estava grávida do Tarcisinho, largou a peça, que era muito violenta. Não chegamos a trabalhar juntas, só muitos anos depois, quando fizemos a novela Rainha da Sucata. Foi uma convivência muito boa. Ela é uma pessoa muito gentil, delicada, atenciosa. Depois de Vereda, não trabalhei mais com o Antunes e, como estou sempre trabalhando, vi pouca coisa dele, só uns dois espetáculos. Infelizmente não assisti Macunaíma, que todo mundo diz que foi fantástico. Vereda da Salvação, um daqueles fracassos inexplicáveis do teatro brasileiro, foi muito útil para todos atores que estavam envolvidos. Foi um trabalho de pesquisa.

 

                       Não Toquem Nessa Moça

Uma noite, quando saía do espetáculo Vereda da Salvação, tinha cinco carros da polícia na porta do TBC me esperando. Eu saí com o Stênio, estava com o meu carro e ele me levou até a porta do DOPS, lá perto da Estação da Luz. “Corre e avisa a Cacilda”, disse para ele. Meia hora depois que eu cheguei no DOPS, começou uma chuva de telefonemas de gente influente que a Cacilda tinha contatado. Parece que eles iam me mandar para não sei onde, mas daí vieram os telefonemas dizendo “não toquem nessa moça”. Em meia hora, a Cacilda pôs São Paulo em pé. Ela era danada, tirou muita gente da cadeia e escondia no apartamento dela, os padres dominicanos, Flavio Império, Guarnieri. Cacilda era intocável.

Não sei porque me prenderam. Parece que encontraram o meu nome e do Flávio Rangel na lista de uma reunião não sei de quem. Nunca tive uma atividade política, como tiveram vários conhecidos meus, de assaltar banco para pegar dinheiro. O que eu tinha feito era absolutamente legal, como assinar abaixo-assinados pró-Fidel Castro na época da Revolução Cubana, ou quando teve a renúncia do presidente Jânio Quadros para que seu vice, o João Goulart, assumisse. Eram todas atitudes democráticas. Todas as minhas atitudes eram de pessoa consciente mas democrática, nada a ver com ação de luta, guerrilha, nada disso. Mas parece que eles encontraram meu nome numa lista com o Flávio, que foi preso várias vezes.

Quando cheguei, eles me puseram na cela, a porta não era gradeada, era aquela porta de ferro com aberturinha. A porta abriu e eu vi uma pessoa falando assim “Cleyde, Cleyde você aqui”. Era o físico Mario Schemberg que estava preso lá. E eles tiveram que esvaziar uma cela porque só tinha eu de mulher. Todos os que estavam em duas celas foram colocados em uma só e eu fiquei na outra. Era maio, fazia frio e era cimento, uma laje de cimento. Só que a Cacilda me tirou logo. Foi uma situação pavorosa, mas eu não entrei em pânico, consegui ficar calma.

De autores de esquerda, eu só tinha feito Guarnieri. Jorge Andrade era um homem de esquerda sim, mas não comunista. Do partido comunista eram o Dias Gomes e o Guarnieri. Mas eu tinha uma atitude de esquerda, isso sim, como até hoje, um posicionamento de esquerda, não de direita, claro. Como hoje. Tenho uma atitude de esquerda e contra o abuso do poder, me revolto com a má distribuição de renda, com a fome no Brasil, com a corrupção...Então se tiver uma revolução hoje vão me prender também, porque a minha atitude continua sendo a mesma.

A Semente, do Guarnieri, não é uma grande peça. O Guarnieri tem uma função, mas ele é um comunista romântico: o patrão é sempre ruim e o empregado é sempre bom. Ele é romanticão. É um bom texto, mas não é verdade. O Pagador de Promessas, do Dias Gomes, em que fiz a prostituta Marli, também tem essa visão romântica. É bom e tudo, mas não me toca especificamente. Eu não gosto dessa coisa bem clichê de o mau é castigado e o bom perdoado. O ser humano é diversificado, ninguém é só “o bonzinho”, “o mauzão”, aquela coisa de novela, onde os bons sempre são recompensados e os maus castigados. Essa visão romântica, de folhetim, não me pega muito. Eu gosto de coisa mais áspera, mais verdadeira. O brasileiro na dramaturgia é meio romanticão, o Nelson Rodrigues não, ele não é romântico, ele é cru. Eu gosto do humor do Nelson, ácido, humor negro.

 

                             O Vestidinho da Geni

Em 1964, depois de Vereda da Salvação, saí do TBC definitivamente e passei a ser free-lance, sem contrato com nenhuma companhia. Fui fazer O Homem Com Cartaz no Peito (Reco Reco), que era uma peça inglesa, sobre um trintão virgem, que era o Francisco Cuoco, num encontro com uma prostituta. A direção era do Walmor. Como ele é um extraordinário ator, é um bom diretor. Não é um encenador excepcional, mas para o trabalho de ator é muito bom. Quando eu estava viajando com essa peça, o Nelson Rodrigues me chamou para fazer a Geni de Toda Nudez Será

 

Castigada, depois da recusa de várias atrizes. O Nelson estava em todos os ensaios, mas não se metia, tinha confiança absoluta na direção do Ziembinski. Se ele tivesse alguma observação, e deve ter tido, ia falar com o diretor. É muito desagradável uma pessoa assistir a um ensaio e ir cochichar no ouvido do ator.

Seria uma falta de ética ele dar um palpite para

o ator e isso o Nelson nunca fez. Os ensaios eram no Rio, ele estava sempre por lá, a gente saia, ia jantar. Mas eu sou muito fechada e a relação não se aprofundou. Ele dizia “Minha atriz, minha atriz” (imita a voz grossa do Nelson), mas não tive intimidade, eu sou muito difícil pra ficar íntima. O ser humano é risível, nós somos risíveis, e o Nelson é um autor que pega esse lado patético do ser humano que se julga grande coisa.

A estréia de Toda Nudez Será Castigada foi uma loucura, o público de pé estupefato aplaudindo, gritando. Eu também era aplaudida em cena aberta praticamente toda noite, e o meu parceiro de elenco, o Luiz Linhares estava fantástico como Herculano. O Nelson Xavier fazia o meu cunhado e o Ênio Gonçalves, em início de carreira, era o garoto filho do Herculano. A Elza Gomes e a Antonia Marzullo, tia da Marília Pêra e irmã do Manoel Pêra, faziam as tias beatas.

O escândalo de Toda Nudez foi a empostação, a prostituta que as pessoas viam em cena. O linguajar da Geni era um lingüajar cru, porque ela era uma puta da Lapa, prostituta de dez reais. “Esqueça que ela é uma prostituta e vamos ver o ser humano”, me disse o Ziembinski. Fomos trabalhar o ser humano Geni. Fizemos um levantamento. O mundo da prostituição me era totalmente desconhecido. O pessoal do elenco me levou para a Lapa para ouvir, observar. E a grande parte das prostitutas desse nível, na metade dos anos 60, eram meninas que com doze, quatorze anos os pais botavam para fora de casa depois que elas davam o tal “mau pas-so”. Então, mentalmente elas param nessa idade, continuam crianças na mentalidade. E elas morrem de inveja das que casam de branco, com véu, com grinalda. Por isso nos prostíbulos, os quartos delas, tem uns babadinhos cor de rosa, boneca em cima da cama, a leitura delas é Grande Hotel, revista de fotonovelas, folhetim.

O fato de a Geni falar “puta que pariu” não importava. Nada pegava nela, que continuava intelectualmente aquela menina do Grande Hotel, boneca em cima da cama e como ela dizia “lava a xoxota” e pronto.

Gosto de costurar e, com aquele calorão do Rio, fiz um vestidinho para ir aos ensaios. Era um tubinho de algodão vagabundo, listradinho, cor de rosa e branco. Eu chegava no teatro, punha aquela roupinha, chinelos e ensaiava. Um belo dia, o Ziembinski me olhou e disse “Mas pra que tô procurando um guarda-roupa. É essa aí a roupa da Geni. E nada de maquilagem. Quero você de cara lavada e o teu cabelo loiro. Nada de cabelo bonito, lava e deixa espigado”. Acho que o público levou um choque, pois a puta tradicional da saia preta aberta com meia rendada preta e salto alto, de repente aparece de vestidinho de algodão, chinelo e sem um pingo de pintura. Eles viam o ser humano que, ocasionalmente, era puta. Foi esse o espanto. O Ziembinski foi de uma felicidade incrível. Ele viu quem era a Geni, uma menininha, mas nada romântico, que parou com 12, 13 anos. Uma menina que não cresceu, ela trepava, mas não era uma mulher adulta. Até hoje, se você con-versa com prostitutas, se elas têm filha, elas querem que a filha case de branco, virgem. E a leitura, o tipo de leitura, é novela e essas revistas de televisão.

Toda Nudez Será Castigada marcou uma época e me deu meu primeiro Molière. Eu ganhei dois e costumo dizer que foram presentes das minhas colegas. A Geni foi recusada por todas atrizes, inclusive a Fernanda Montenegro, por causa de frases fortes, como “Prostituta não pega doença, porque depois que trepa faz tcheco theco, lava a xoxota e pronto”. E anos depois, veio o segundo Molière por O Baile de Máscaras, onde eu entrei dez dias antes da estréia para substituir a Beatriz Segall.

 

                             Fúrias e Fardão

Meu primeiro encontro no palco com o Antônio Abujamra foi na metade dos anos 60, na comédia francesa Tchin-tchin, onde Stênio Garcia e eu fazíamos um casal que bebia o tempo todo. Logo depois, ele me dirigiu em dois grandes espetáculos, As Fúrias e O Fardão. Na década de 70 foi a vez de A Rainha do Rádio e, no final dos anos 80, contracenamos em Cerimônia do Adeus. Gosto muito do Abujamara. Ele me chamou agora, deu a peça, extraordinária, mas eu não faria nunca. Uma peça maldita, neurótica, odiei. Ele fica zangado comigo quando digo que queria que ele fosse diretor. Acho uma pena, eu não me conformo, acho que não está certo ele ser ator, ele deveria ser diretor.

O Abujamra diretor é aquele que percebe onde você estava errado e diz “não vá por esse caminho, vá por aqui”. A indicação do diretor, precisa, certa. Ele é seco, profissional, anti-romântico, agressivo. Quando ele dizia “é isso aí, vai por esse caminho” você podia ir.

 

A indicação dele é curta, enxuta, ele não faz masturbação mental. Ele dá uma indicação simples. Matemático. Gosto muito dele, o humor negro, cruel.

As Fúrias, do espanhol Rafael Alberti, foi um fracasso, mas era um espetáculo deslumbrante e muito à frente do seu tempo. Antecipou, era moderno demais para a época. O Abujamra estava anos na frente do público. Eu acho que foi um dos trabalhos mais extraordinários dele, com grande atuação do Stênio Garcia. No elenco estavam a Ruth Escobar e o Silvio de Abreu também trabalhava. O tema era o patriarcado espanhol e a repressão familiar. Eu interpretava a Gorgo, nome que o Silvio escolheu trinta anos depois para a minha personagem na novela As Filhas da Mãe. Quando o irmão morre, Gorgo põe uma barba, o terno, o chapéu e a bengala dele e assume o poder da família. É a mais velha de três irmãs parasitas que aprisionavam uma sobrinha de 16 anos e chupavam a juventude dela. O visual do espetáculo era extraordinário.

Tudo baseado na série negra do Goya, aqueles vampiros.

Fiz uma dona de casa caretíssima em O Fardão. O personagem era maravilhoso e ganhei o prêmio de melhor atriz da APCT, a associação dos críticos de teatros paulistas. Quase no final da peça eu tinha um telefonema que era aplaudido em cena aberta quase que todo dia. A peça era interessante, a estréia como dramaturgo do Bráulio Pedroso, que fez pouca coisa em teatro. Ele e a mulher eram amigos da Cacilda e ficaram hospedados no apartamento dela, que era aquele abrigo. A Cacilda era a mãe de todos. Várias pessoas ficavam hospedadas lá. Entravam para ficar três dias e ficavam três meses.

Foi um prazer contracenar com o Fauzi Arap em O Fardão. Nunca fui dirigida por ele. Uma vez ele me convidou, não lembro mais para o que foi, mas não deu certo. Parece que também como diretor ele é muito detalhista, tipo camafeu. Como ator, ele foi maravilhoso, a peça era excelente, assim como a direção do Abujamra. Foi a primeira vez que trabalhei com a Yara Amaral, começando, bem mocinha, fazendo uma empregadinha. Ela era encantadora e virou aquela atriz fantástica. Yara ficou muito minha amiga, freqüentava a minha casa e mamãe a chamava de portuguesa. A morte dela foi uma coisa espantosa. Ela me pegava muito, gostava muito da Yara.

Voltei a trabalhar com o Abujamra dez anos depois em A Rainha do Rádio, de 1976, escrita pelo José Safiotti Filho. Foi o meu primeiro monólogo. O cenário era uma mesa de rádio com microfone e as pernas que apareciam eram de manequim. Eu ficava imóvel, só aparecia o tronco, e como era A Rainha do Rádio era só a minha boca, eu falando. Era sem gestos, só a palavra, a variação de tons. Eu ficava imóvel por mais de uma hora. Terrível, mas um exercício imenso passar a personagem com nenhum outro recur-so a não ser a palavra.

 

                         Tempo de Gigantes

Em 1967, eu estava ensaiando para fazer a Jocasta de Édipo Rei, que o Paulo Autran tinha decidido montar com direção de Flávio Rangel, depois do sucesso que eles fizeram com Liberdade, Liberdade. Adoro trabalhar com o Paulo, que é um colega de uma correção, de uma gentileza, um homem de teatro. Cartazes, programas, estava tudo pronto para a estréia e comecei a me sentir mal. Nós ensaiávamos no Rio, na cobertura da Mara Rubia, em Copacabana. Era um andar alto, o elevador estava sempre com problemas, e tínhamos que subir e descer pelas escadas. Um belo dia eu acordei e comecei a sentir dor na barriga que parecia de uma grávida de cinco meses. Apavorada, telefonei para o Paulo e pedi para ir pra casa em São Paulo.

Eles me levaram no aeroporto e a Cacilda me esperou em São Paulo. O Stênio estava em São Paulo, não sei fazendo o quê. Eu sei que fui direto para o hospital São Luiz, entrei e fui para a mesa de operação. Um cisto ovariano, talvez agravado pelo fato de subir todos aqueles an-dares. Isso aconteceu umas duas semanas antes da estréia. Felizmente a Tereza Rachel me substituiu. Fui operada e quando melhorei resolvi aproveitar a passagem para a Europa que eu tinha ganho com o Molière por Toda Nudez Será Castigada. Paris, depois Alemanha e Grécia. Quando estava na Grécia, recebi um telefonema do Paulo pedindo para eu voltar, pois a Tereza tinha que sair para fazer outro espetáculo. Voltei e viajei pelo Brasil com o Paulo fazendo Édipo Rei, que já tinha sido apresentado no Rio e São Paulo com a Tereza. Eu fiz com o Paulo a excursão de Édipo Rei.

Espetáculo infeliz foi Gigantes da Montanha, que estreou em junho de 1969, uma semana depois que a Cacilda morreu, no dia 14. Eu tinha que estrear, pois todo mundo diz que quando você tem um acidente de automóvel tem mais é que pegar o carro e guiar. Quando a Cacilda partiu, se eu não retomasse o teatro eu não poderia mais. E me convenceram a estrear, mas foi um espetáculo infeliz, não lembro mais

o nome de ninguém. Os produtores nos abandonaram, largaram sem pagar. Mas não faz mal, pois foi a maneira de eu superar. Eu precisava trabalhar para agüentar a morte da Cacilda. Apesar de toda cachorrada, esse espetáculo do Pirandello foi útil nesse sentido.

 

Em 1969, depois que a Cacilda morreu e o meu casamento com o Stênio acabou, voltei a morar com a mamãe, numa casa no bairro Jabaquara, zona sul de São Paulo. Ela acordava muito cedo, fazia o café, comprava o jornal, ficava lendo o jornal de ponta a ponta e marcava com caneta

o que interessava. Depois, ia me acordar no quarto, levava garrafa térmica, caneca de café pra mim e pra ela. Ficávamos tomando café, ela abria o jornal e me dizia “tá acontecendo isso, isso na Alemanha, na França, a posição econômica”. Mamãe era atenta, interessada no que acontecia no mundo, política, econômica, artística. Era uma crítica terrível de teatro. Era uma crítica sensata. Ela sabia tudo, onde estava o erro, porque errou ontem, ou se estava bem porque estava bem. Não era só “fantástico, maravilhoso”. Ela sabia o porquê. E não era de falar muito. Falava só o fundamental, falava quando precisava, mas não tinha o prazer de falar. Como nenhuma de nós quatro, ela não era uma faladeira. Mamãe morreu em 1984 e sinto muita saudade dela.

Medéia, em 1970, foi o meu primeiro espetáculo como produtora. Foi um bom trabalho, mas não um dos melhores. Um bom espetáculo, sério, honesto, mas eu não acho que foi um dos grandes, como Assim é se Lhe Parece, Yerma, As Fúrias, Toda Nudez Será Castigada e os de agora, As Filhas de Lúcifer e Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro.

 

Eu não escolho o papel, escolho peça e era importante fazer o texto de Medéia. Como estávamos em plena ditadura militar, eu e o Silney Siqueira, que foi o diretor, não interpretamos a Medéia como a mulher que mata os filhos, a mulher ferida uterinamente. No momento em que o Creonte a expulsa do país, o texto se torna um espetáculo político. A Medéia se vinga politicamente do Jasão, não como mulher abandonada e sim como mulher banida do país pelo poder. O Abujamra ficou indignado, ele queria a amante, a mulher ferida e eu fiz a mulher fria, a revolta e a vingança política. Foi muito interessante. Não sei se é certo ou errado, não importa. Você pode ter várias visões sobre o espetáculo. Nós optamos por fazer um espetáculo político e não pessoal, de mulher abandonada pelo amante. O que era um drama passional virou uma peça política.

Se fizesse Medéia de novo, eu faria assim, me pega muito mais politicamente. Não compreendo mulher traída se vingar, acho uma besteira. Se foi traída dá um chute, manda embora e pronto. Eu não sou ciumenta, nunca fui, não sei

o que é ciúme. Quer, quer; não quer, vai embora. Marido, amante, apaixonado, não é vital pra mim. Vital pra mim era minha mãe e minhas duas irmãs. Marido, namorado, não.

Eu não entendo, acho o fim da picada morrer por amor, matar por amor. Então, a Medéia, quando ela é expulsa, o ser humano, isso me pega. É uma violentação do ser humano. Agora, traição? Primeiro que acho que homem dar uma trepadinha fora do casamento não quer dizer nada, é besteira. Não sei o que são ciúmes, não sei o que é isso. Talvez seja falta de auto-estima. Quer ir embora, vai. Eu ajudo arrumar a mala para ir mais rápido. Ninguém é propriedade de ninguém.

Amor para ficar com homem nunca me interessou. Sou uma pessoa inteligente, não me faz falta o lado sentimental, emocional. Com 18 anos, tive um namorado, alto, moreno e simpático. Era um namorado ideal para qualquer outra moça, menos para mim.

Nunca me apaixonei por ele. Era gostoso, namoramos, ele era gentil, mas eu estava estudando e ele morreu num acidente de carro. Eu dizia “não quero casar, some vai embora, vai dançar em boate”. Mas ele fazia a vida dele, eu nunca tive ciúmes. Depois eu encontrei Stênio, casei e acabou daquela maneira desagradável, com ele saindo de casa sem avisar, em 1969, quando a Cacilda estava no hospital. Minha vida sentimental é essa.

Acho que o tipo de casamento é medieval. As mulheres são libertas, trepam com qualquer um e querem casar de véu e grinalda. Porque mulher é bicho burro, né. Quando casam, fazem aquele ritual do pai entregar a mulher para outro homem e dizem que são libertas. É uma coisa que eu não entendo. Eu não casei na igreja. E nem queria casar. O Stênio queria. O homem do cartório foi lá em casa, leu aquela papagaiada, assinei o livro e casei. Estava trabalhando, o casamento foi às 11 horas, a Beatriz e o Maurício Segall, que eram casados, foram os padrinhos, almoçamos, e as duas horas já estava no ensaio. Teve o ritual porque o Stênio queria casar, não sei porque cargas d´água. Acho que ele se prendeu muito mais a mim do que a eu a ele. Em teatro eu nunca me casei, mas em televisão não me lembro.

 

                     Uma Mulher de Negócios

Depois da morte da Cacilda, comecei a produzir, aplicar o dinheiro que eu ganhava em televisão. Ganhava, juntava e aplicava em teatro. Trabalhei muito e praticamente não saía do teatro nessa época. Medéia foi minha primeira produção e depois vieram Um Homem é Um Homem, do Brecht e uma remontagem de O Santo e a Porca com outros atores. Quando chegou A Capital Federal, quase enlouqueci. Eram cinqüenta empregados. Eu ia para a bilheteria e se não tivesse a casa lotada totalmente não tinha dinheiro para pagar, porque não tinha ajuda, patrocínio. Se A Capital fosse produzido hoje teria um custo de dois, três milhões. O dinheiro investido só voltou e, felizmente, não fiquei devendo para ninguém, mas não ganhei um tostão. A peça ficou um ano em cartaz. E a gente viajou: Brasília, Porto Alegre e depois Rio de Janeiro. Cheguei a alugar 10 apartamentos para acomodar todo mundo. Quase enlouqueci e disse que não queria mais ser produtora.

Passei a fazer co-produções ou ser empregada em peças, como Ensina-me a Viver e Agnes de Deus.

Um Homem é um Homem, do Brecht, foi um desacerto. O diretor Emílio Di Biasi fez uma proposta, nós topamos e deu errado. Mas isso que eu acho bom no teatro, é arriscar. O espetáculo era muito ruim, foi um fracasso. Sorte que eu alugara o Teatro Sesc Anchieta e tinha três espetáculos em cartaz. Um infantil, que dava um dinheirão, e um juvenil, O Santo e a Porca, sustentavam o fracasso do Brecht. Não fiquei devendo nada, graças a esses dois espetáculos. Um Homem é um Homem foi um fracasso total, mas eu não me arrependo. Foi uma tentativa e a gente errou.

Espetáculo muito feliz, A Capital Federal começou a nascer de um jeito interessante. Eu estava procurando peça, naquela coisa difícil de escolher texto. Mostrava vários pro Flávio e não decidia por nenhum, estava indecisa entre uns quatro ou cinco.

 

Antes de dormir rezo sempre pra Cacilda e certo dia resolvi pedir a ajuda dela. Na manhã seguinte, tinha na caixa do correio a revista do SBAT, com a Cacilda na capa naquela foto famosa, diante do teatro vazio. Dentro da revista, o texto de A Capital Federal, comédia do Artur de Azevedo. Eu disse “Ah, você quer assistir”, decidi produzir a peça e fui correr atrás de dinheiro. Como eu não canto – e por isso digo que não escolho peça pra mim - começou a procura pela estrela do espetáculo. Por sorte, ficou com Suely Franco, que era uma gracinha e fez o papel maravilhosamente bem. Tinha aquela direção forte do Flavio Rangel, cenários incríveis e o trabalho da Marika Gidali, do Balé Stagium. Tínhamos nos conhecido fazendo Medéia, ficamos muito amigas e a chamei para trabalhar a parte musical da Capital. Marika é uma mulher que combina muito comigo, porque ela também é uma louca, brava. Eu gosto muito dela, da energia, da força, mas ela não é de passar a mão na cabeça de ninguém. Gosto muito da Márika, mandona e chefona. Eu tinha 35 atores, seis músicos ao vivo, seis contra-regras, eram 26 cenários, uma loucura. Foi nessa época que fiquei conhecendo Francarlos Reis, Etty Fraser, Ricardo Blat, Carlos Alberto Ricelli, Ileana Kwasinsky, Neusa Borges e tantos outros. Quando o pessoal da Globo assistiu A Capital, contratou muita gente. E o espetáculo abriu caminho para outros musicais. Logo depois, o Flávio dirigiu O Homem de La Mancha, com a Bibi Ferreira e o Paulo Autran. A Capital Federal ficou um ano em cartaz. Foi um prazer muito grande e foi um pedido da Cacilda, acho que ela queria ver o espetáculo. Fiquei um ano só na administração e foi bom. Eu tenho um temperamento de patroa, de mandona, de chefe, isso eu tenho.

 

                         Quando Baixa o Santo

Não existe maior atriz, maior ator, existem momentos maiores de um ator. Cacilda no Pega-Fogo, Teresa Rachel de A Mãe, Raul Cortez no Garcia Lorca, Paulo Autran em comédias maravilhosas, o Sergio Cardoso no Mentiroso. Quando você assiste a gravação do Laurence Olivier no Rei Lear é uma coisa que te arrebenta. Gerard Philipe era outro ator fantástico. Então, gosto de todos eles, quando baixa o santo, ilumina, e eles fazem um trabalho extraordinário. Não dá para fazer tudo sempre, é humanamente impossível. Então, você vai fazendo uma carreira e de vez em quando desponta, um momento, um ápice, que os deuses ajudaram.

Tive a felicidade de contracenar com grandes atores de gerações diferentes da minha. Dulcina e Conchita de Moraes, Henriette Morineau, Jaime Costa, Manoel Pêra, Elza Gomes: foi uma honra contracenar com eles.

 

Substituí Madame Morineau em A Ce rimônia do Adeus e felizmente, cheguei a contracenar com ela. Foi em 1968, na comédia Quarenta Quilates.

Meu encontro no palco com a Dulcina e a mãe dela, a Conchita de Moraes, foi no Rio de Janeiro. Ela costumava promover uns espetáculos beneficentes para a Escola de Arte Dramática e que reuniam os principais atores da época. Eram espetáculos de variedades, aconteciam às segundasfeiras, batizados de Poeira de Estrelas. Na metade dos anos 50, acho quem em 1957, foi montada uma peça e ela me convidou para fazer. Era As Mulheres, da Clare Boothe, com elenco todo feminino, mais de vinte atrizes.

Foi nesse Poeira de Estrelas da Dulcina que cruzei com Mara Rúbia e todas aquelas vedetes do teatro rebolado. Essa peça tinha sido filmada com a Norma Shearer, que interpretava o papel que eu fiz. A Dulcina representava a mexeriqueira e a Mara Rúbia, a grande vedete da época, a amante do meu marido. A Conchita tinha um papel no meio daquela mulherada toda. Nós fizemos duas segundas-feiras no Municipal do Rio lotado. Deu um dinheirão. Ah, fiquei conhecendo também o Odilon Azevedo, marido da Dulcina. Era o único homem do espetáculo e só entrava no fim.

Guardo belas recordações de Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come. Era uma comédia do Oduvaldo Vianna Filho, montada no final dos anos 60 pelo grupo Opinião, do Rio e, além do autor, estavam no elenco o Jaime Costa e o Manoel Pêra, pai da Marília. O Jaime e o Manoel ficavam na coxia e todo dia falavam alguma coisa pra mim, alguma dica sobre o personagem. E eles sempre estavam certos. Era uma delícia ficar observando as sutilezas de interpretação deles. Com o Manoel, um dos maiores atores que vi em cena, aprendi o tempo da comédia. O mais incrível é que ele, firme como uma rocha no palco, estava morrendo de enfisema.

A maravilhosa Elza Gomes foi minha amiga. Ela fez uma das tias solteironas de Toda Nudez Será Castigada. A Elza mostra que você pode ser uma anti-atriz. Ela tinha uma voz de taquara rachada, fantástica, mas daquelas que qualquer pessoa dizia que uma atriz não pode ter. Ela tinha uma voz horrorosa e era maravilhosa! Veja só como isso é uma bobagem. É como feia, bonita, nada disso importa.

 

Lembro dos ensaios de Seis Personagens à Procura de Um Autor. Eu, iniciante, me deliciando com os trabalhos da Cacilda, Paulo e Sergio Cardoso, os três melhores atores do momento. Dos atores da minha geração, acho que trabalhei quase igual com o Paulo Autran e o Leonardo Villar. O Leonardo é uma pessoa pura, doce, discreta e, como eu, também uma ostra. É um caipirão, graças a Deus, um colega excepcional. Nós pensamos nele para fazer Longa Jornada de um Dia Noite Adentro, mas ele teve uma operação na época em que íamos começar os ensaios. Ficou sendo o Sergio Britto, com quem eu só tinha trabalhado na televisão, na época dos teleteatros ao vivo.

Na fase anos 60 do TBC, trabalhei com diretores muito jovens, como o Flávio e o Antunes, e tinha uma turma de atores recém-saída da Escola de Arte Dramática, como o Juca de Oliveira e a Aracy Balabanian. E quando fiz Péricles, contracenei com uma turma bem jovem e fiquei amiga da Bel Kutner. A Bel me adora, eu adoro ela. Vou trabalhar agora com o Rui Cortez, que é sobrinho do Raul. Eu gosto de trabalhar com gente jovem, mas não com essa juventude idiota, que tem pouquíssimas palavras, que se droga (odeio, não quero nem saber), liberdade sexual, tudo isso eu discordo.

Com essa ala eu não me dou. E não é só jovem, tem criança e muito sessentão que pensa assim. Depende da cabeça.

Idade é uma coisa que não existe. Existe o temperamento. O que eu penso hoje, é o que eu pensava antes. O que eu não gosto, eu não gostava antes. Com 18 anos, tive um namorado que dizia “Não sei por que eu namoro você. Quer ir ao cinema? Não. Quer ir a baile? Não. Quer fazer carnaval? Não”. Eu só gosto de ficar em casa. Como eu era, eu sou hoje. Sempre fui assim, quieta. Mais do que seis pessoas, para mim, é multidão.

 

                         Decorar, Marcar e Entrar

Quando o Domingos de Oliveira me chamou para fazer Ensina-me a Viver, eu não tinha vis-to a peça. Madame Morineau teve um infarto em cena e precisava ser substituída às pressas. Era decorar, marcar e entrar. No primeiro dia, quando cheguei para marcar, o Domingos falou “você entra pela platéia, chegando mais ou menos ali você se ajoelha e faz o sinal da cruz”. E eu disse, “mas como você vai derrubar a personagem assim logo de cara?”

Maude, a velhinha de Ensina-me a Viver, está às vésperas de completar 80 anos. É um personagem completamente anti-princípios, luta pela libertação e, coisa que eu não gosto, também fuma seu cigarrinho de maconha, seu tóxico. Maude não tinha senso de propriedade, de direito, nada. Imagina se uma mulher dessas, que beija um garotão, que trepa em árvore, que rouba carro, vai fazer o sinal da cruz? Fica ridículo. Fiz a entrada diferente. A Maude entra na igreja com um saco de biscoitos. Ela adorava ficar comendo na igreja e não tinha nenhum desrespeito nisso, era o jeito dela.

Fiz Ensina-me a Viver em São Paulo, em 1982, e foi muito bom conhecer o Diogo Villela e voltar a encontrar a Nathalia Timberg, com quem trabalhei bastante no segundo período do TBC, e que ficou muito minha amiga. Ela é uma pessoa extraordinária, uma profissional, colega honesta, mulher maravilhosa, atriz excelente, um ser humano incrível. Nathalia é uma mulher que nunca tem uma palavra desagradável a respeito de qualquer pessoa, mesmo que tenha razões para ter. Ela é de uma discrição, de uma delicadeza, ela é extremamente gente. Ensiname a Viver foi quase que meu reencontro com a Nathalia. Foi um trabalho que fiz com enorme prazer.

Queriam que eu continuasse, que viajasse com a peça, mas já tinha um compromisso com o Jorge Takla para fazer O Jardim das Cerejeiras.

 

Quando eles me chamaram para substituir Madame Morineau, ele me liberou porque era questão de não deixar um elenco parado. Logo depois, fiz outra peça com o Takla, Agnes de Deus, onde eu era a madre superiora ao lado da Walderez de Barros e da Clarisse Abujamra. A maioria das peças que fiz nessa época não deixou muitas recordações. E quando uma coisa não dá certo, seja o que for, eu costumo apagar da memória. Tenho poucas lembranças de espetáculos feito A Lei de Lynch e Direita, Volver, do Lauro Cesar Muniz, que tinha a Rosa-maria Murtinho e o Dionísio Azevedo no elenco. Ah, tem O Campeão do Mundo, do Dias Gomes, no antigo Teatro Jardel Filho. Essa marcou, pois o Dias Gomes não pagou a gente. Eu, Leonardo Villar e Ariclê Perez, todo mundo ficou sem receber.

Existe também o outro lado da moeda, o daquelas peças que têm uma historinha bacana. Em Moeda Corrente do País é uma dessas. No começo dos anos 80, estive numa remontagem dessa peça do Abílio Pereira de Almeida, com direção do Sylvio Zilber, que era casado com a Miriam Muniz. Depois de uma turnê pelo interior de São Paulo, fizemos uma apresentação no Carandiru. A peça é a história de um fiscal de imposto de renda, que recebe uma proposta de suborno de vários milhões. Ele é honesto. O público do Carandiru vinha abaixo: “aceita, idiota, burro”. Eu fazia a mulher do fiscal e tinha uma empregada que enchia a bolsa com mixarias roubadas, como abobrinha, tomate, essas coisinhas. Eles adoravam a empregada que roubava e xingavam o protagonista honesto, que era o Henrique Martins. O Abílio era um homem encantador, bonito, alegre. Ele fazia um padrão de comédia leve, não profunda e até hoje não tem o lugar que merece no teatro brasileiro.

 

                       Ninho da Serpente

Estive na televisão praticamente desde que ela foi implantada no Brasil, em 1950, quando foi inaugurada a TV Tupi de São Paulo. Mas tem uma coisa: nunca fui contratada de nenhuma emissora. Tupi, Excelsior, Bandeirantes, Cultura, Globo, SBT: passei por praticamente todos os canais. No começo, eram os teleteatros feitos ao vivo e apresentados na segunda-feira, que era o dia de folga dos atores no teatro.

Gosto de trabalhar, seja em teatro, cinema ou televisão. Posso ter plenitude no teatro, mas gosto de trabalhar, então, se recebo um convite interessante para uma novela, aceito. Às vezes sinto medo. Porque é imprevisível. Você lê um roteiro, aceita fazer um papel e, de repente, acontecem aquelas mudanças. Existe o despudor total de mudar a história, mudar o personagem, por causa do ibope. Na sexta-feira, o personagem é um poço de ruindade e na segunda chega o script e ele é um anjo da guarda. Há um certo desrespeito, mas eu gosto de trabalhar e sempre procuro fazer o melhor possível. Só me assusta um pouco esse imprevisível. É perigoso você ir a fundo no personagem. No primeiro mês você aprofunda, faz o persona-gem cruel, maldoso, quando de repente mudou, não é nada disso. Isso me dá um certo pânico. Depois, na televisão a máquina é mais importante. A espera, fazer cenas de um minuto, sessenta segundos, dois minutos, tudo picadinho, sem seqüência. Então é procurar o encanto dis-so, porque num momento é preciso se apoiar naqueles dois minutos. Num dia se faz 30 cenas e tem uma que dá aquele certo prazer. Não dá para aprofundar.

Algumas novelas me deram prazer. Mulheres de Areia e Os Inocentes, ambas da Tupi e feitas em 73/74, me deram prazer. Mas é bom lembrar que Os Inocentes foi do começo ao fim sem mudanças, porque era baseada n’A Visita da Velha Senhora, do Friedrich Durrenmatt, uma peça que eu conhecia, e que foi adaptada para a televisão pela Ivani Ribeiro. Todos os atores puderam se aprofundar, porque foi de acordo com o roteiro, com o script inicial. Foi até o fim, foi aquela história, não teve deturpação. Gosto das vingativas, das mulheres fortes, e minha personagem, a Juliana era assim. Depois de muitos anos, ela volta rica e poderosa para a cidadezinha onde nasceu e tem muitas contas a acertar.

 

Contracenei bastante com o Claudio Corrêa e Castro, que fazia um padre. Uma das primeiras na Tupi, foi Éramos Seis, em 1967, em que eu representei a mãezona D. Lola, com o Tony Ramos e o Plínio Marcos fazendo o papel de meus filhos.

Tive a sorte de fazer as principais novelas e grandes personagens do Jorge Andrade. Gaivotas era excelente e eu interpretava uma motoqueira de sessenta anos que transava com um garoto de vinte e cinco. A última novela que o Jorge escreveu foi Ninho da Serpente e tratava da decadência da aristocracia paulistana. Era uma no-vela realista. A personagem matou, não era condenada, o mal venceu, porque o poder vence. Não tinha nada dessa babaquice de o mal ser castigado. Castigado nada! O mal está por cima.

Nós gravávamos num casarão no Jardim América, na Rua Groelândia. Guilhermina Taques Penteado, minha personagem, tinha uma cachorra. Era uma mulher terrível e, através dela, o Jorge atacava o poder. Era a matriarca de uma família tradicional e tinha várias filhas, a Beatriz Segall fazia uma delas e a Marcia de Windsor também. Foi a última novela da Marcia, que era muito minha amiga e morreu no finalzinho das gravações.

Nos anos 80, fiquei um bom tempo sem fazer televisão. Só voltei em 1990 com Rainha da Sucata. Foi a primeira novela que fiz na Globo, escrita pelo Silvio de Abreu. Foi uma das que me deram prazer. Interpretei Isabelle de Breson, uma ricaça viúva que voltava de Paris com a filha. Gozado, as novelas que mais gostei na Globo foram as comédias. A outra é Torre de Babel, também do Silvio, onde fui a Diolinda Falcão, uma ricaça decadente e hipocondríaca, mãe do Victor Fassano. A novela era engraçada e o meu núcleo ótimo, com a Claudia Gimenez, a Etty Fraser e o Carvalinho, que fazia o meu mordomo. Foi nessa novela que fiquei conhecendo o Carvalinho, uma pessoa encantadora que mambembou por esse Brasil todo fazendo teatro. O Victor também é uma pessoa deliciosa. Foi ótimo conviver com essas pessoas. Das outras novelas, lembro de quase nada. Olho por Olho era uma bobagem, mas meus companheiros de núcleo eram o Sergio Viotti e a Eva Todor, que eu conheci nessa novela.

Graças a Deus, as coisas acabam um dia. Novela passa. Teatro eu guardo mais, mas televisão só gravei aquelas que me agradaram mais, uma seis, sete, o resto tudo que fiz esqueci. Foi para

o cérebro, para a gaveta do cérebro de experiência, aprendizado. Das novelas da Excelsior não me lembro mais. Infelizmente, a gente sempre recebe um carimbo em televisão. Eu sou a mulher rica, chique e má. Fiz três novelas do Silvio de Abreu e, às vezes, ele já escreve pensando em mim. Gosto de trabalhar nas novelas do Silvio, com mais liberdade.

A espera na televisão é massacrante. O trabalho não cansa, não exaure nem emocionalmente, mas a espera é uma coisa. A gente chega na televisão às dez da manhã para se maquiar e sai às onze da noite. Minissérie pode ser uma experiência mais interessante? Por que, só porque acaba antes? É mais cuidadoso e a espera é a mesma, talvez até maior, porque quanto mais cuidado técnico tem, mais demora. Quanto mais demora para acertar a câmera, a luz, mais o ator espera.

 

                                     Baile de Máscaras

Eu estava no Rio fazendo a novela Rainha da Sucata, quando me chamaram, doze dias antes da estréia, para fazer Baile de Máscaras. É que a Beatriz Segall abandonou os ensaios depois de uma briga com o Mauro Rasi, o autor e dire-tor da peça. Disse pro Mauro que ia telefonar pra Beatriz, madrinha do meu casamento com o Stênio, e depois dava a resposta. Liguei, perguntei se era briga definitiva mesmo. Porque briga em teatro, diretor e atriz discutindo por causa de uma cena, é normal. Arranca-rabo, nervosismo, são normais. Ela me disse que era definitivo. Eu tinha gostado muito do texto, ensaiei dez dias e chegou o dia da estréia, com um elenco que estava mergulhado na peça fazia dois meses.

Baile de Máscaras é uma peça boa. O Mauro a escreveu inspirado nos retiros carnavalescos na casa do Sérgio Britto. Ele tem uma grande coleção de vídeos e, durante o carnaval, chama um pequeno grupo de amigos, que ficam trancados vendo filmes e ópera. Eles se trancam no sábado e ficam até a quarta-feira de cinzas, de manhã à noite, assistindo vídeo e conversando, discutindo culturalmente. O Mauro se inspirou nessas reuniões. É uma coisa de louco você se fechar com várias pessoas, casais ou não, e tomar café, almoçar, jantar, cear, com as mesmas companhias três, quatro dias, vendo filme, filme. É um negócio louco e a peça mostra como as pessoas ficam neurotizadas nessa espécie de prisão.

Umberta, minha personagem, era inspirada na Mimina Roveda, dona do Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, e o do Sergio Viotti, no Sérgio Britto. Só que eu tinha ficado mais de vinte anos longe do Rio e nem tinha idéia de quem era Mimina. Depois soube que aquela criatura era a dona do teatro onde íamos representar. Só nos apresentaram perto da estréia, mas isso não teve a menor importância. Eu não tive um estudo da personalidade, nada. Fiz a visão que o Mauro Rasi, que a adorava, tinha dela. Ele fez uma peça linda, com todo o amor e carinho, compreendendo todas as contradições da Mimina.

Não tive muito contato com o Mauro Rasi, de quem já tinha feito A Cerimônia do Adeus. Mauro era uma pessoa ferina e acho que ser inimiga dele não era uma coisa boa. Era uma pessoa inteligente, arguto. Ele gostava muito de mim, tivemos um relacionamento bom, e eu dizia sempre que queria morrer amiga dela. Fiz duas peças dele, ganhei o Molière por Baile de Máscaras e ele deve ter ficado feliz com isso. Ganhei o Molière, mas esgotaram os dois anos de prazo e não aproveitei as passagens do prêmio, não viajei.

A Cerimônia do Adeus, que fiz em 1989, foi a melhor peça do Mauro e um encontro prazeroso com uma mulher extraordinária, a Simone de Beauvoir. O papel era pequeno, como texto, como aparição. Era uma personagem fantástica. O Marcos Frota fazia o menino de 16 anos apaixonado por aquela mulher fascinante.

Eu fiz toda a pesquisa de Simone de Beauvoir, chorei de rir porque era extraordinária aquela mulher. A minha entrada em cena chamava atenção. Eu entrava andando reto, marcial e tirei isso de umas fitas que assisti com horas de imagens dela. Era uma entrevista e ela estava sempre com as mãos cerradas, não abria as mãos uma única vez, e acabei incorporando essa característica dela na peça. Peguei a Simone de Beauvoir na fase dos 40 anos, porque se um adolescente se apaixona daquele jeito tem que ser uma mulher de 40. Outras pessoas fazem a peça e pegam a Simone com 60. Não é possível. Um menino lindo se apaixona por uma mulher experiente, que é depois dos 30.

O Sartre viajava de carro e de trem, ela ia a pé, andava dez, vinte quilômetros e dormia na estrada. Quando ela se apaixonou por um americano, pegava o avião em Paris e ia para Nova York só para se encontrar com ele e voltava. Era independente, livre, mulher, audaciosa. Então foi um prazer, mesmo num papel pequeno, transmitir o que era essa mulher do Sartre, que era preguiçoso, mole, moleirão. E ela dinâmica e fantástica. Depois eu achei muito engraçado, porque ela nunca morou com o Sartre, eles moravam separados. Com o último amante, a última paixão, ela caiu em contradição. O último, ela levou para morar com ela. Ela já com 60, e o amado, jovem. A peça foi bem, excursionamos. O Sartre que era o Abujamra, na excursão passou a ser o Fernando Peixoto. Eles fizeram de maneiras diferentes, mas foi ótimo contracenar com os dois. Representamos em Lisboa, quinze dias.

 

                       No Reino Divino de Shakespeare

Péricles me trouxe de volta aos palcos paulistas, de onde estive afastada desde A Cerimônia do Adeus, no finalzinho dos anos 80. Foram cinco anos fazendo novelas e teatro só no Rio de Janeiro. Com Péricles, reencontrei o Ulysses Cruz, um encenador extraordinário que tinha dirigido Cerimônia, e entrei no reino divino de Shakespeare, embora naquela que chamam de uma peça inferior dele. História de encontros e desencontros, Péricles não é uma das peças de primeiro plano dele, como Rei Lear, Macbeth. Mas o espetáculo era maravilhoso.

Quando o Ulysses me chamou, disse não saber que papel eu faria, mas que queria que eu estivesse no elenco. Quando soube que iria trabalhar com um elenco de jovens, que tinha Bel Kutner, Felipe Folgosi e Leonardo Brício, fiquei estimulada. O convívio com a garotada foi ótimo. Acabei fazendo Gower, o narrador da trama, um poeta. Eu vestia uma roupa preta, uma capa de veludo imensa, botas. Embora fazendo papel masculino, não me deu ainda aquele prazer de fazer um Shakespeare num texto burilado, trabalhado. Mas Péricles foi um espetáculo lindo. Não sei se eu vou ter tempo, mas é como se eu ainda não tivesse plenamente feito Shakespeare, ainda me falta. Foi uma experiência quase de aluna, de aprendizado, beabá, um curso primário de Shakespeare. Mas já é bom.

Gower era uma figura imaginária, irreal, saído da poeira, do pó do teatro, do fluído deixado pelos atores que passaram por esse mesmo palco. Os grandes atores deixam algo no palco, na madeira, no ar. É como se nós atores fossemos fantasmas no palco. Eu acho que a gente volta. Deve voltar. Toda a energia que gastamos em cena, ela não desaparece, ela fica ali. Gower, esse ser nascendo da poeira e da fumaça, eu acho que é energia do Shakespeare, dos atores, dos amores, das tragédias. Eu tentei isso e fiz uma coisa não real, mas bastante real.

Em 2000, bolei um espetáculo de formatura para uma turma da Escola de Teatro Célia Helena, onde eu tinha dado um curso de três meses. A experiência de lecionar teatro pode ser interessante, e alguns anos antes já tinha dado um curso para os professores do Célia Helena e passei também pelo Centro de Artes Laranjeira (CAL). A peça com os alunos chamava-se Quinze Atores à Procura de Um Papel, com um elenco na faixa dos 18 anos. Como ponto de partida, pedi que cada um deles selecionasse uma cena que queria interpretar e que haviam sido trabalhadas durante o curso.

Eles escolheram trechos de A Gaivota, do Tchecov; Salomé, do Oscar Wilde; Medéia, de Eurípides; Maria Stuart, do Schiller; A Megera Domada, do Shakespeare e eu quebrei a cabeça para amarrar tudo isso. Surgiu a história de um grupo de jovens atores que invade o porão de um teatro desativado e lá encontra um misterioso baú. Enquanto tentam descobrir quem é o dono, vão retirando papéis do baú, entrando em contato com a essência do teatro, e descobrindo personagens com que sempre sonharam, como a Salomé, Medéia. Busquei criar um jogo teatral que mostrasse o processo de criação do personagem. Foi minha estréia na direção, no ano em que completava 50 anos de teatro.

 

                         A Mocinha é Sempre Idiota

Qualquer manifestação artística me interessa. Não tive sorte ainda em cinema. Não aconteceu, pode ser que não aconteça. Nunca tive convite para fazer um papel interessante. Se acontecer ótimo, senão... Não me mexo, não procuro. Estou aqui no meu canto. Mas cinema não é uma manifestação que me apaixona. Assim como a televisão, tem a máquina. Eu prefiro o teatro.

Na Senda do Crime, meu primeiro filme, é de 1953, quando eu tinha três anos de teatro e foi produzido pela Vera Cruz. Era uma história policial, fui a mocinha e a mocinha é sempre um papel muito idiota. Mas fiz direitinho. Tudo é útil, foi aprendizado. Feliz ou infeliz, errando ou acertando, são momentos de uma carreira. O filme foi dirigido pelo Bollini, com quem eu tinha feito Ralé no TBC e a quem a gente chamava de “faça ver”. Foi interessante, uma experiência nova.

Madona de Cedro, de 1968, foi filmado em Congonhas do Campo, Minas Gerais. Foi legal porque no elenco estavam Ziembinski, Sérgio Cardoso, Leila Diniz, Leonardo Vilar, gente bacana. A minha mãe também estava lá e, inclusive, ela aparece na cena da procissão. Foi interessante aquela personagem, mas não me pegou. No sentido humano foi bom, no sentido artístico não acrescentou. O que ficou foi eu estar em Minas, vendo as obras de arte, ir para Ouro Preto, Sabará. O que ficou foi o que lucrei vendo a parte de artesanato, de arte mineira, do Aleijadinho. Foi ótimo fazer Madona de Cedro porque eu conheci as cidades mineiras.

 

Fui muito amiga da Leila Diniz, que era uma pessoa pura, gente, magnânima, carinhosa. Não sei se foi feliz. Ela superou uma vida dura, finalmente teve o que ela tanto queria, a filha, e até nisso a vida foi estranha. O que ela mais queria era parir, não era como pegar uma criança para adotar. Ela adorava crianças, mas ela queria era a maternidade, a barriga grande, o prazer dela sentir a barriga.

Leila foi a primeira que mostrou a barriga de grávida em público. Uma pessoa extraordinária, foi muito bom ter conhecido a Leila, criança. Ela era infantil, ela era grande, mulher e criança e pura, muito pura. Fizemos Madona de Cedro e novelas na Excelsior. Em 1969, quando a Cacilda faleceu, nós estávamos fazendo uma novela juntas.

Parada 88 foi filmado em Paranapiacaba, cidade do interior paulista que fica coberta pela neblina a partir das quatro horas da tarde. O lugar é incrível. O diretor José de Anchieta teve uma grande idéia, que foi desperdiçada. O ovo gorou. A idéia era mostrar o que está acontecendo agora, quando o planeta Terra caminha para a destruição. A história era depois da bomba atômica, com todo mundo vivendo dentro de plástico, de bolhas. Eu não entendo de cinema, mas acho que faltaram condições técnicas. Tinha que ser feito com o poderio técnico do cinema americano, aqui no Brasil não tinha recursos. O resultado é que o filme é muito ruim, só tem uma idéia, completamente falha.

Fiz, mas nunca assisti, Jogo Duro, dirigido pelo Ugo Giorgetti e com o Antonio Fagundes. A verdade é que não considero os filmes que fiz, porque não me renderam artisticamente. O que chegou mais perto é o curta Célia e Rosita, filmado em 2000, que me deu um certo estímulo. Adorei conhecer a Dirce Migliaccio. A diretora Gisella de Mello conseguiu mostrar a posição da idade, a chamada velhice, o que fazer, como resolver a vida, o que é ter 80 anos. E ela faz isso em apenas dez minutos, com duas mulheres dando a opinião dela, de que o importante é viver. As duas personagens dão uma virada na postura diante da vida. Elas, que estavam velhas, acomodadas, fazendo tricô e crochê, vi-ram duas porras-loucas. Se o mundo é assim, a questão é não rejeitar e entrar na loucura. Isso em dez minutos. Achei incrível o trabalho da Gisella. No cinema, o trabalho do diretor é que deve dar um prazer muito grande, quando ele consegue transmitir suas idéias.

O cinema nunca me deu a sensação da plenitude de quando eu fiz As Fúrias, Yerma, Assim é se lhe Parece, a Karen Blixen, a Mary Tyrone.

Aquela coisa que te enche o peito, o prazer de quando fecha o pano depois de um espetáculo bom e você sente que o público levanta, todo o impacto de atores e público, quando você sente missão cumprida. Isso o cinema não me deu. Será que consegue dar? Eu não sei. Gostaria mesmo de saber. Tenho dúvidas. Eu não sei se quando

o filme fica pronto e você vai assistir, aquilo só te estimula a vaidade de fazer um grande trabalho. Ou será que tem aquele impacto do público, de abrir o pano e você não saber se está bem ou se não está, se vai ser um grande espetáculo ou não. Se você fez um grande filme, acho que o que estimula, o que dá prazer, é só o “Ai, que maravilha que eu fiz”. Só a vaidade, mas a troca eu acho que não acontece. É aquela imagem que vai ter contato com o público, você não. Estou me referindo a quem fez um grande trabalho. Ele não tem essa emoção. Eu acho que não. Eu penso que não tem. O impacto com o público, de emoção da troca.

O cinema, quando o filme vai passar, não te dá aquele pânico. Porque o filme já está feito. No teatro, cada espetáculo é um momento de tensão, de nervosismo. Cada dia é diferente. O teatro dá uma troca de emoção que o cinema não dá. Eu gostaria de fazer um grande filme para ver se existe essa troca com a platéia. Eu penso que não. Como eu não fiz, não sei, não aconteceu, estou só presumindo. Tem gente que acha teatro repetitivo e que é chato fazer todo o dia a mesma coisa. Tem gente que pensa que fazer todo dia é a mesma coisa, mas não é.

 

                         Duas Mulheres Extraordinárias

Ultimamente, duas peças me deram um prazer completo de fazer: A Filha de Lúcifer e Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro. As duas foram baseadas em fatos verídicos e interpretei duas mulheres extraordinárias. Em As Filhas de Lúcifer é a Karen Blixen, e na Jornada, a Mary Tyrone. Nos dois espetáculos, eu acho que foi a plenitude da minha carreira de atriz.

Escritora dinamarquesa, a Karen Blixen escrevia com o pseudônimo de Isak Dinesen. E a complicação começa aí, uma mulher que escreve com pseudônimo masculino numa época em que a situação da mulher era outra. Hoje ainda é, ultimamente dizem que está liberado, mas não é verdade, está se tentando ainda. Eu acho que a mulher ainda não conseguiu encontrar o seu lugar na sociedade.

No começo do século passado, a Karen Blixen passou 17 anos vivendo numa fazenda no

 

Quênia, África. Esse período da vida dela é contado no filme Entre Dois Amores, com a Meryl Streep. Eu me apaixonei pela Karen Blixen, mulher extraordinária, que sofreu muito. Através do sofrimento, ela atingiu uma plenitude, uma maturidade, uma grandeza espiritual. Ela não teve uma existência muito feliz. De família tradicional, fez um casamento por conveniência com um barão e, depois, teve um romance com um aviador que morreu, e perdeu seus bens. E era considerada pornográfica, por aquilo que escrevia. E no entanto, a paixão dela pela África, a posição de uma mulher que sai da Dinamarca, com clima seco, escuro, cinza e vai para a África, e lá se encontra com aquele calorão, com a nudez do negro em meio àquela euforia de cores. Foi uma das primeiras mulheres brancas a conviver com os negros africanos. Ela cuidava deles e, inclusive, foi menosprezada, detestada pelas outras mulheres brancas. E tem a paixão dela pelos empregados, especialmente por um, o grande amor, não amor em relação a sexo, nada disso. O grande amor de gente pra gente que ela teve foi com um empregado.

O grande amor de ser humano para ser humano, o ser humano que mais compreendeu, que mais amou foi esse empregado.

O Miguel Falabella me chamou para fazer As Filhas de Lúcifer pouco tempo depois da morte da minha irmã Dirce. Muita gente me disse para não fazer a peça que retrata uma mulher três anos antes da morte dela. A Karen Blixen morreu em 1966, com 77 anos, e teve uma morte pavorosa, com sífilis, dores terríveis na coluna vertebral, câncer no estômago, anorexia. Ela morreu com 38 quilos, dores e sofrimento. Mas ao contrário do que me diziam, foi uma grande experiência fazer uma mulher que passa por esse sofrimento todo, sem se abater, escrevendo, produzindo coisas lindas. Foi extraordinário para mim como gente conhecer uma mulher excepcional. E fazendo teatro você conhece mesmo a pessoa.

Poucos dias antes da estréia de As Filhas de Lúcifer, o personagem praticamente definido e, certo dia, o Falabella apareceu com uma fita de uma entrevista coletiva da Karen Blixen. Ele me disse: “Você quer ouvir? Como será que ela fala? Será que vai te perturbar? Se você não quiser ouvir, não vamos ouvir pra gente não levar um choque”. Decidimos ouvir. Era a minha voz. A voz dela era grave, redonda, áspera, que nem a minha. A maquiagem da Karen Blixen era muito clara. Além de ser muito branca, ela fazia um risco bem preto em torno dos olhos, daquele jeito que as turcas fazem. Os olhos pretos e a boca muito vermelha, como ela achava que as mulheres deviam se pintar. No rosto, quase nada de pintura, só a boca vermelha e o olho preto: assim eu apareci na peça. Ganhei o prêmio Mambembe de melhor atriz. As Filhas de Lúcifer foi o meu segundo monólogo, feito vinte anos depois do outro, A Rainha do Rádio. Eu prefiro peças com personagens, mas quando acontece um grande monólogo não tem como resistir. Eu fiz dois. Chega.

E agora, o maior presente que eu já tive foi fazer a Mary Tyrone, de Longa Jornada do Dia Noite Adentro. A peça é autobiográfica e foi escrita pelo Eugene O´Neil. Mary é a matriarca de uma família desestruturada, viciada em morfina desde que o médico lhe injetou a droga para aliviar as dores do parto. A peça se passa no início do século passado e ela foi uma mulher de família rica, criada para ser dona de casa. Com todos os seus repentes, uma mulher mimada pelo pai, careta, frágil, sem nenhuma força, o contrário da Karen Blixen. Mas, apesar dis-so, com tudo isso, tem um amor incrível pelo marido. Mary não foi uma grande mãe, mas foi uma grande amante do marido.

A Jornada foi uma das primeiras peças do Teatro Cacilda Becker. Foi montada em 1958, com a Cacilda fazendo a Mary, o Ziembinski era o marido e o Walmor, o filho mais novo. Lembro pouco da peça, apenas flashes. A Jornada teve montagem recente em Nova York com a Vanessa Redgrave, que é uma atriz fantástica. O Silvio de Abreu assistiu a mim e a Vanessa fazendo a Mary. Ele disse que a leitura dela da personagem era bem diferente da minha, mas que tinha adorado a nossa montagem e gostava muito da minha leitura. Foi o meu encontro com o Sergio Britto, com quem só tinha trabalhado na televisão, no tempo dos teleteatros e, por acaso, em duas peças do O´Neil.

 

                             Um Desvio na Linha da Vida

No começo de setembro de 2003, tive o privilégio de receber o Prêmio Jorge Amado de Literatura e Arte. É um prêmio importante que, nesse ano, foi destinado ao teatro. Eram cinqüenta e tantos candidatos, ator, atriz, produtor, diretor, autor. Eu ganhei por unanimidade. Não foi por peça nenhuma em especial. Foi um prêmio para a atriz que mais colaborou com a cultura do País através do teatro. Eu tenho um repertório muito importante. A Cacilda não tem um repertório como eu. Nem Fernanda, nem Nathalia. É o meu repertório, resultado do trabalho de 53 anos. Fiz mais de 90 peças, de autores como Tennessee Williams, Tchecov, Goldoni, Gorki, Sófocles, Pirandello, Sartre, Gogol, Garcia Lorca, Harold Pinter, Brecht, Arthur Miller. E entre os nacionais tem Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, Machado de Assis, Dias Gomes, Guarnieri, Jorge Andrade, Mauro Rasi.

A entrega do prêmio foi no Teatro Castro Alves, em Salvador. Fizeram uma cerimônia linda, com políticos, artistas locais e a Zélia Gattai; e não sabiam o que fazer, de gentileza, de respeito, para me agradar. Foi fantástico. Eu não sou dessas coisas, mas a cerimônia não teve um ar de festa não, foi respeitosa, bonita. Eu fiquei muito feliz. No dia seguinte, assisti à inauguração do Museu Jorge Amado, com a Zélia se despedindo da casa em que eles moraram por tantos anos, que foi transformada em museu. Eu nunca estive com o Jorge Amado e a Zélia só conheci agora.

Eu não fico me batendo no passado. Eu tive muita sorte porque eu fiz coisas muito diferentes, comédia, clássico. Um repertório muito bom, de qualidade, eu não gosto de fazer bobagens, detesto besteirol. Cobro pouquíssimo para fazer teatro. Vivo sozinha aqui na minha chácara em Jordanésia, a quarenta quilômetros de São Paulo, com a Dadá, que era babá do filho da Cacilda e acompanha a família desde então, os caseiros e meus cachorros. Não gasto muito e não quero ter mais. Pra quê? Não sou de luxos. Não faço unha, pé, não freqüento cabeleireiro e nem cuido das mãos, que estão sempre judiadas, pois vivo mexendo no jardim, subindo em árvore. Eu não tenho vaidade. Com o mundo prestes a ter um colapso, a água do planeta acabando, vou ficar pensando em moda? Sou consciente disso e tento me apegar a outros valores. Sou espiritualista, tenho a minha paz de espírito, graças a espíritos mais elevados que me ajudam.

Se o teatro não fizer parte dessa minha maneira de discutir o ser humano não me interessa. Só represento se eu tenho um texto que faça parte da minha maneira de pensar. Essa peça que eu escolhi, o nome ainda é segredo, vai tratar da corrupção. Então isso é fundamental nesse país que não tem jeito, eu não acredito. Já cheguei a acreditar, quando essa malha da corrupção não era do Amazonas ao Chuí. Agora se você puxar um fio não solta. O Brasil é uma raça que começou mal, os valores, a mentalidade americana. Quando a coisa era mais européia, até os anos 50, ainda tinha alguma esperança. Mas depois os valores passaram a ser o ter, ter, ter. Minha mobília da sala, mamãe comprou em 1940. Tudo que eu tenho é anti-go, não posso entender essa coisa de comprar tudo novo de dois em dois anos. Decorador? Pra quê. Não me entra na cabeça a casa da gente feita por outra pessoa.

 

                                   Minha Irmâzinha

Não gosto de entrevistas, de contato com a imprensa, de gente tentando penetrar na minha intimidade. Odeio essa parte, isso não me dá prazer. Nesses 53 anos de teatro, nunca conversei com o Décio de Almeida Prado mais que cinco minutos. Era “Bom dia, boa noite” e só. Não conheço Barbara Heliodora, não conheço crítico, não conheço jornalista. Eu não atendo, não gosto. Contato com a imprensa só quando obrigada. Desde os tempos do TBC, quando estreava uma peça e tinha coletiva eu ia lá. Obrigação. Continua assim até hoje, não mudou nada. Para que tudo isso? Se é para a vaidade, eu não tenho vaidade. Não sei qual é a vantagem dis-so, qual é a utilidade. A Cacilda tinha esse prazer. Nós éramos completamente diferentes. Ela conhecia muitas pessoas, dava reuniões na casa dela. A casa da Cacilda era cheia de gente, festas, reuniões. Todo mundo lá, todo mundo do teatro. Aqui na minha casa, não sei se vieram dez atores e também não sei se fui à casa de dez. Eu precisava fazer uma listinha pra ver. Dez ou quinze, em 53 anos de teatro. E a Cacilda tinha 50 pessoas, às vezes, por noite, diariamente, e ela adorava isso. Eu não ia às reuniões na casa dela. Eu ia de manhã visitar a Cacilda, quando não tinha ninguém.

A Cacilda se aborrecia muito comigo. A minha mão era muito judiada, ela ficava desesperada. Não gosto de me cuidar. A partir de amanhã, vou pra Academia, recomeçar alongamento, musculação. Isso eu gosto. Mas manicure, cabeleireiro, roupa, eu tenho horror dessas coisas. Adoro exercícios físicos. Sempre fiz, mas dei uma parada com esse negócio de ficar no Rio, depois vir pra cá, viajar com a Jornada. Há dois anos não faço nada e agora estou sentindo as conseqüências, vou retomar. Ontem fiz avaliação com o fisioterapeuta e o médico e estabelecemos toda a seqüência de exercícios. Amanhã eu começo, às oito e meia da manhã. Vou fazer musculação pra ajeitar a minha coluna. É um problema constante. Eu só tomo remédio quando a dor extrapola a média, digamos, que tenho uma diária de dor. Isso o meu médico já sabe e não há nada a fazer, porque a dor é inerente do problema.

Eu acho que a coisa que completa a minha ligação com a Cacilda é saber que ela sempre falou: “Já conhece a minha irmãzinha?”. E isso quando eu tinha quarenta anos e ela quarenta e dois. Ela me pegava no colo. Com três anos, com dois anos e poucos, a maneira como ela me pegava no colo era uma...

Era uma asa protetora, um abrigo. Um sonho, um abrigo, um aconchego, tudo o que seja gostoso, carinhoso e protetor era a Cacilda. Se ela era aquela mãezona com os outros, imagina como era pra mim. “Minha irmãzinha”. Ela me tratava como se tivesse uma diferença de 30 anos entre nós. Cacilda era uma apaixonada, era paixão pura.

Nosso amor não era prisão. As três irmãs eram muito diferentes. A forma como a gente amava era com extrema liberdade, quer dizer, não éramos propriedade uma da outra, nem a dona Alzira. A Dirce escolheu o caminho que ela quis e ela foi feliz, ela ficou casada 33 anos, casou com o primeiro namorado e morreu em 1989. A liberdade de opção, aquilo que é bom, a vida que a Dirce escolheu não era boa pra mim, nem pra Cacilda. Mas a vida que a Cacilda escolheu não era boa pra mim. A vida que eu escolhi, a Cacilda não entendia, não entrava na cabeça da Cacilda. Claro que haviam discussões, mas nenhuma interferência nas opções de cada uma.

 

                                 De Frutas Nativas e Fé

Sempre gostei de estudar. Toda a parte de ciência me interessava, tanto que queria ser médica. Desde que eu me lembro por gente e na família sempre fui a acompanhante da tia que ia ser operada, da prima. Eu acho que a minha verdadeira vocação é a medicina, eu estou na profissão errada. Acredito que eu tenha talento, mas não vocação. A minha vocação é a ciência, pesquisa, medicina. Acho que fiz um desvio na linha da minha vida, que tinha a ciência.

Moro longe da cidade e levo uma vida simples. Gosto de acordar cedo. Mamãe costumava dizer que na casa dela ninguém ficava com a mão no colo. Eu costuro, bordo, faço geléia, licor, doces, pães. Gosto muito de dirigir meu carro. Quando estou gravando novela no Rio, vou de carro. Tenho pavor de avião e evito voar sempre que posso. Agora, guiar é uma coisa que me distrai. Não sou de correr, no máximo uns 80 km por hora, vou olhando a paisagem, as coisas, as pessoas. A estrada me inspira, fico pensando, tenho idéias. E nunca tenho pressa. Paro onde quero, às vezes para pegar uma folhagem, uma muda de árvore.

Sou preocupada com a alimentação, como alimentos integrais, sem carne vermelha, sangue. Durante um tempo aderi à macrobiótica e cheguei até o quarto degrau, de um total de 10. A macrobiótica é um modo de alimentação complicado com o meio da gente. Como muito legume, grão, adoro grão. Quem come grão não precisa comer mais nada. Como verdura e fruta diariamente, não posso passar sem, sinto falta. Não como carne vermelha, só franguinho no forno. Não dispenso os legumes, almeirão, jiló, todos aqueles amargos. De manhã, um mamão com granola e no meio da tarde, coalhada. Às vezes, pela manhã, tomo suco de batata, às vezes de abóbora, que é bom para o estômago. Ou cenoura com laranja, um copo de chá de carqueja, que é amargo. Depois, passado um tempo eu tomo uma xícara de café preto, sem nada, e só lá pelas dez horas é que eu vou comer uma fruta ou coalhada. Eu me alimento bem, me alimento certo, mas não ligo para comida. Acho comida uma coisa meio chata. Eu não gosto de sentar à mesa e dessa cerimônia toda para comer. Agora, fruta, coisa que você pega com a mão, é comigo mesma.

Subir em árvore, comer fruta no pé, são coisas que adoro fazer desde criança. Gosto de todas as frutas, mas tenho uma paixão especial pelas nativas, que são muito saborosas. Carambola, jaboticaba, lixia: Tenho muitas árvores frutíferas aqui em casa. O pessegueiro está carregado, a pitombeira também e o pé de guabiju já está com as frutas bem grandinhas. Quando chega em janeiro, eu acordo e vou direto pro pé, fico comendo fruta. As pessoas são luxentas, eu esfrego a frutinha na blusa e como, não quero nem saber de lavar. Ah, e se tiver bichinho, assopro para não matar. Isso eu conservo. Eu sou uma caipira. Gosto de terra, de andar descalça, continuo assim. E meu jardim é cheio de rosas, hortênsias, mas nunca corto as flores. Quando é para colocar no vaso, prefiro comprá-las.

Minhas preferidas são orquídeas e antúrios. Tem também muitas ervas aqui em casa. A minha caseira conhece bem as raízes, plantas. Às vezes a gente quer arrancar um matinho e ela não deixa, porque serve pra isso, pra aquilo. Ela veio do Norte e é entendida em chás, e muita gente bate aqui no portão procurando por ela. A minha medicação eu faço numa farmácia de ervas. E o meu médico alopata sabe da minha medicação paralela.

Nunca me interessei por astrologia, ler a mão, saber o futuro, cartomante. Acho tudo isso absurdo. Nada disso me interessa. Gosto das ciências exatas, o meu lado alemão, e do misticismo, o lado latino. Sou espiritualista. Acredito na reencarnação, na comunicação entre parte espiritual. O kardecismo é uma corrente que eu aceito. Vejo pessoas que têm essa capacidade de comunicação, que são médiuns, que têm mediunidade, como a Cacilda tinha. Eu não tenho, e gostaria de ter. Tenho inveja dessa gente que tem, que consegue ver e ouvir coisas.

Não sei se eu conseguiria, se a pessoa estudando muito a fundo poderia adquirir isso. Mas o lado espiritual é necessário, fundamental.

O lado espiritualista vem de casa, mamãe e Cacilda tinham. Menos a Dirce. Ela era a mais, um pouco mais material, materialista. O Cuca, filho da Cacilda, diz que a minha fé tem que ser trabalhada, porque entra a interferência da pergunta, do conhecimento científico. A minha fé, segundo ele, é mais difícil de conseguir, tem que ser peça por peça. O meu sobrinho neto diz que é feliz porque, assim como a mãe dele, já nasceu com fé, aquela fé indiscutível, a fé que não questiona. Eu questiono. Quero saber por que, quando, onde, como. Então interfere. A mamãe também era fé e pronto. Agora tem uma coisa: nunca me sinto só.

Para mim todo dia é um dia novo, é como se fosse o último.

   

                                                                                Vilmar Ledesma

 

 

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