Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DANÇA DAS SOMBRAS / Julie Garwood
DANÇA DAS SOMBRAS / Julie Garwood

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Aquele casamento não era coisa de somenos. Havia sete damas de honor, sete amigos do noivo, três mestres de cerimónias, dois acólitos, três leitores e suficiente poder de fogo dentro da igreja para dizimar metade da congregação. À exceção de dois, todos os outros amigos do noivo tinham vindo armados.
Aos agentes federais não agradava minimamente ver tanta gente reunida, mas sabiam que as suas queixas seriam inúteis. O juiz Buchanan, pai do noivo, não estava disposto a perder tão auspicioso acontecimento, por muitas ameaças de morte que houvesse recebido. O juiz estava a apreciar um caso de crime organizado em Boston e os agentes federais incumbidos da sua proteção iriam continuar a desempenhar a sua missão até o julgamento acabar e ser proferida a sentença.
A igreja estava a abarrotar. Os Buchanan eram uma família tão numerosa que alguns dos parentes e amigos do noivo tiveram de se instalar no lado destinado à noiva. Na sua maioria tinham viajado desde a pequena aldeia de Silver Springs, na Carolina do Sul, até Boston, mas havia vários primos dos Buchanan que haviam vindo de Inverness, na Escócia, para participar no casamento de Dylan Buchanan e Kate MacKenna.
O noivo e a noiva mostravam-se delirantemente felizes e o seu casamento era um acontecimento festivo, embora nunca tivesse ocorrido se não fosse Jordan, a irmã de Dylan. Kate e Jordan eram grandes amigas e, no colégio, haviam partilhado o mesmo quarto. A primeira vez que Jordan levou Kate a casa da sua família, em Nathans Bay, todos os seus irmãos estavam reunidos para celebrar o aniversário do pai. Jordan não tivera qualquer intenção de se armar em casamenteira e, na verdade, nem sequer se apercebeu da faísca que se havia produzido entre Kate e o seu irmão Dylan; por isso, quando, anos depois, a faísca se converteu em chama viva e os dois ficaram noivos, ninguém ficou mais surpreendido - ou entusiasmado - do que ela.

 

 

Tinham sido meticulosamente planeados todos os pormenores do feliz acontecimento. Tal como Kate, Jordan era uma excelente organizadora e, por essa razão, coube-lhe a responsabilidade de decorar a igreja. Tinha de se admitir que Jordan se excedera um tanto. Dispusera flores por toda a parte, quer no interior como no exterior da igreja. O carreiro de pedra achava-se ladeado por rosas cor de framboesa e magnólias brancas, cujo odor agradável acolhia os convidados logo à chegada. De cada lado da velha porta dupla carcomida pelo tempo pendiam rosas brancas e rosas delicadamente entrelaçadas por fitas de cetim com bordos rendados. Jordan havia mesmo pensado em revestir a porta com uma nova camada de tinta, mas acabara, já quase em cima da hora, por recobrar a sensatez e deixá-la como estava.
Kate também pedira a Jordan para se ocupar da música e a amiga, nesse domínio, também ultrapassara os limites do razoável. Começara por pensar em arranjar um pianista e um cantor para a cerimónia, mas acabara por contratar uma orquestra. Havia vários violinos, um piano, uma flauta e duas trombetas. Sentados no balcão do coro, os músicos tocariam Mozart para entreter os assistentes reunidos na igreja. Quando os amigos do noivo se alinhassem em frente do altar, a música devia cessar; então as trombetas soariam, a multidão pôr-se-ia em pé e a pompa e o esplendor começariam.
A noiva e as damas de honor aguardavam num aposento apropriado contíguo ao vestíbulo. Chegara a altura. As trombetas deviam estar, agora, a soar para dar início à cerimónia, mas mantinham-se em silêncio. Kate pediu a Jordan que fosse ver qual a razão daquele atraso.
As belas notas de Mozart abafaram o ruído que a porta fez ao abrir-se, quando Jordan deu uma espreitadela ao interior da igreja. Vislumbrou um dos agentes federais postado num recanto do lado esquerdo da nave e tentou não pensar no motivo que o levava a encontrar-se ali. Acreditava que os guarda-costas não eram verdadeiramente necessários, atendendo a todos os agentes da lei que havia na sua família. Dos seus seis irmãos, dois eram agentes do FBI, um exercia o cargo de delegado federal, outro frequentava o curso do Navy Seal, outro era polícia e o mais novo, Zachary, andava no colégio e não decidira ainda qual o setor da lei que mais o atraía. Junto do altar estava também Noah Clayborne, amigo íntimo da família, e também agente do FBI.
Os agentes destacados para proteger o seu pai não queriam saber de quantos outros se achavam presentes. A sua missão encontrava-se claramente definida e não se deixariam distrair pelo decorrer da cerimónia. Jordan acabou por admitir que eram um reconforto e não um empecilho e concluiu que devia concentrar-se no casamento e pôr de lado as preocupações.
Divisou um dos irmãos e encaminhou-se lentamente para o fundo da igreja. Alec, o padrinho de casamento de Dylan, sorriu-lhe, quando a viu aproximar-se. Alec tinha-se esmerado para a cerimónia. Pertencia aos serviços secretos, mas havia cortado o cabelo, o que, da sua parte, constituiria uma demonstração de enorme consideração pelo casamento de Dylan. O seu trabalho exigia, em regra, que ele se assumisse como um transviado assassino em série e se vestisse a condizer. Jordan quase não o reconhecera quando ele comparecera ao ensaio geral, na noite anterior. Alec parou para falar com um dos guarda-costas. Jordan acenou para chamar a sua atenção e fez-lhe um gesto para que se aproximasse do vestíbulo.
Quando a porta se fechou por trás dele, perguntou-lhe, num sussurro:
- Por que motivo não começaram ainda? Já são horas.
- O Dylan pediu-me que dissesse à Kate que a cerimónia vai começar dentro de poucos minutos - respondeu Alec.
O seu colarinho estava um pouco torcido e Jordan estendeu a mão para o endireitar.
- Tens o colarinho torto - disse-lhe, antes que ele reagisse. - Fica quieto.
Quando acabou de lhe endireitar o colarinho e a gravata, deu um passo atrás. Alec ficava muito bem assim, depois de se arranjar. O engraçado era que Regan, a sua mulher, gostava dele fosse qual fosse o seu aspeto. O amor produz efeitos esquisitos nas pessoas, concluiu Jordan.
- A Kate está preocupada? Receia que o Dylan se escape? - perguntou Alec, com um brilho no olhar que mostrou a Jordan que estava a brincar. Naquele momento, só passavam dois minutos da hora marcada.
- Nem por isso - respondeu. - Ela já se foi embora, há cinco minutos.
Alec abanou a cabeça.
- Que gracinha! - replicou, com um sorriso. - Tenho de regressar.
- Espera. Ainda não me explicaste porque continuamos à espera. Aconteceu alguma coisa?
- Não te preocupes. Não aconteceu nada. - Ia já a sair, mas, de súbito, voltou-se. - Jordan?
- Sim?
- Estás muito bonita.
Teria sido um cumprimento encantador por parte de um irmão que nunca os fazia se o próprio Alec não se mostrasse surpreendido pelo que acabara de dizer.
Jordan estava prestes a devolver o cumprimento, quando a porta da entrada da igreja se escancarou, de súbito, e Noah Clayborne irrompeu no interior, ainda a apertar o nó da gravata.
Aquele homem nunca deixava de causar grande impressão. As mulheres adoravam-no e Jordan via-se forçada a admitir que compreendia a razão. Alto, atlético, extrovertido, bem-parecido, era do género varonil que preenchia as fantasias de qualquer mulher. O cabelo de um louro arruivado estava sempre a precisar de ser um tanto aparado e os olhos azuis e penetrantes brilhavam zombeteiros, sempre que esboçava um dos seus diabólicos sorrisos.
- Cheguei atrasado? - perguntou.
- Não, ainda vens a tempo - disse Alec. - Muito bem, Jordan. Agora podemos começar.
- Onde estiveste? - perguntou ela a Noah, exasperada.
Em vez de lhe responder, Noah lançou-lhe uma rápida mirada, sorriu e seguiu pela nave, atrás de Alec. Jordan sentiu vontade de erguer as mãos ao céu. Ele havia estado com uma mulher, concluiu. Aquele homem era incorrigível.
Devia sentir-se aborrecida, mas, em vez disso, riu-se. Ser assim tão despreocupado, tão desinibido... Jordan não conseguia imaginar-se a ter semelhante comportamento. Noah, porém, sabia muito bem como fazê-lo.
Apressou-se a regressar à sala de espera, empurrou a porta e exclamou:
- Chegou a altura.
Kate fez sinal a Jordan para que se aproximasse.
- A que se deveu o atraso? - perguntou.
- Ao Noah. Acaba de chegar. Se queres que te diga, acho que esteve com uma mulher.
- Isso não é só o que tu achas - replicou Kate. - É um dado adquirido. Não fazia ideia de como ele era mulherengo até o ver com os meus próprios olhos. Ontem, no ensaio geral, desapareceu durante o jantar na companhia de três das minhas damas de honor e esta manhã, quando chegaram à igreja, não davam mostras de haver dormido.
Jordan cruzou os braços, enquanto percorria a sala com o olhar, tentando descobrir quais as damas de honor que haviam desaparecido na companhia de Noah.
- Ele devia ter vergonha - comentou.
- Oh! a culpa não é inteiramente dele - replicou Kate. - Elas foram com ele de livre vontade e muito contentes.
A tia de Kate, Nora, anunciou que não iriam a parte nenhuma enquanto não ouvissem soar as trombetas. Depois começou a pôr toda a gente em fila.
Kate fez sinal a Jordan para que se aproximasse ainda mais.
- Preciso de pedir-te um favor. E é bem difícil.
Difícil ou não, pouco importava. Kate estivera sempre do lado de Jordan nos bons e maus momentos e Jordan fazia tudo o que pudesse para a ajudar.
- Só tens de dizer o que é e eu farei seja o que for.
- Por favor, és capaz de obrigar o Noah a comportar-se como deve ser? Bom, talvez não devesse ter dito "seja o que for".
Jordan respirou fundo e respondeu:
- Estás a pedir-me o impossível. Tentar controlá-lo dá vontade de rir. Seria mais fácil ensinar um urso a servir-se de um computador. Se me deres essa tarefa, prometo executá-la. Mas tomar conta do Noah? Vá lá, Kate...
- Na verdade, é com a Isabel que estou preocupada. Viste a maneira como ela se colou ao Noah, no ensaio geral?
- Foi por isso que o puseste como meu par no casamento? Para manter a tua irmãzinha afastada dele?
- Não - retorquiu Kate -, mas, depois de a ver ontem à noite, sinto-me contente por o ter feito. Não posso censurá-la.
O Noah é adorável. Aparte o Dylan, claro está, creio que é um dos homens mais sexy que encontrei até hoje. Irradia carisma, não achas?
Jordan assentiu, afirmativamente.
- É verdade.
- Não quero que a Isabel se converta em mais uma CNC - prosseguiu Kate. - E tão-pouco quero que outra das minhas damas de honor desapareça subitamente.
- O que é uma CNC? - perguntou Jordan.
Kate sorriu:
- Conquista do Noah Clayborne.
Jordan soltou uma gargalhada.
- Das pessoas que conheço, és a única que parece ser imune ao seu charme. Ele trata-te como se fosses sua irmã.
A tia Nora bateu as palmas.
- Pronto, meninas. Está na hora.
Kate agarrou o braço de Jordan.
- Não me mexo de onde estou até tu prometeres.
- Oh, está bem. Prometo.
As trombetas voltaram a fazer-se ouvir. Uma vez que Jordan ia ser a primeira a percorrer a nave, sentiu-se nervosa e comprimiu o buque contra o peito com ambas as mãos. Fora sempre considerada a desajeitada da família, mas naquele dia estava decidida a não tropeçar. Prestaria atenção à maneira como iria caminhar e como poria um pé à frente do outro.
Esperou no umbral até ouvir a tia Nora sussurrar-lhe:
- Avança.
Respirou fundo e começou a andar. A nave parecia ter mais de um quilómetro de comprimento. De pé, em frente do altar, Noah aguardava-a. Quando Jordan já ia a meio do percurso, ele dirigiu-se ao seu encontro. com o seu smoking, tinha um aspeto deslumbrante. Jordan descontraiu-se. Ninguém estava a prestar-lhe atenção. Todos os olhos, pelo menos os das mulheres, estavam postados em Noah.
Concentrou-se no seu sorriso e deu-lhe o braço. Por um breve segundo, fitou-o nos olhos e viu o tal brilho malicioso.
Oh! céus, como ia ser-lhe difícil cumprir a promessa.

CAPÍTULO DOIS

A cerimónia foi deslumbrante. As lágrimas rolaram pela face de Jordan, quando o irmão e a melhor amiga formularam os seus votos. Pensou que ninguém havia reparado na vermelhidão dos seus olhos, mas, quando deu o braço a Noah, enquanto caminhava para o exterior, ele inclinou-se e sussurrou-lhe:
- Sua chorona.
Claro que ele notara. Nada lhe escapava.
Depois das fotografias, os intervenientes foram separados e Jordan acabou por ir para a boda juntamente com os noivos. Era como se fosse no porta-bagagens porque nenhum deles lhe prestou atenção. Só tinham olhos um para o outro.
Kate e Dylan foram os primeiros a entrar no Country Club e Jordan permaneceu nos degraus exteriores à espera que os restantes convidados chegassem e se juntassem a ela.
A tarde estava magnífica, mas o ar parecia um tudo-nada fresco, o que era pouco habitual na Carolina do Sul, naquela época do ano. As portas envidraçadas do salão estavam abertas para permitir acesso ao terraço lateral. As mesas achavam-se cobertas por toalhas de linho sobre as quais haviam sido dispostos candelabros e centros de mesa com rosas e hortênsias. Jordan sabia que a boda ia ser fabulosa, a comida, magnífica (tivera de provar alguns dos pratos escolhidos por Kate) e a banda, soberba. No entanto, não planeava dançar muito. Fora um dia cansativo e sentia-se cansada. Da varanda chegou uma brisa fria que a fez estremecer. Para afastar o frémito, esfregou os braços nus. Adorava o vestido sem alças
11
que usava, de um cor de rosa pálido, mas não havia dúvida de que não era o ideal para lhe manter o corpo quente.
O frio não era a única coisa que a incomodava. As suas lentes de contacto estavam a pô-la doida. Felizmente, havia enfiado os óculos no bolso do smoking de Noah, juntamente com o estojo das lentes e o batom. Era pena que não se tivesse lembrado de fazer o mesmo com um casaco de malha.
Ouviu uma gargalhada e voltou-se a tempo de ver Isabel, a irmã mais nova de Kate, agarrar-se ao braço de Noah e inclinar-se para ele. Oh, céus, lá ia começar a festa!
Isabel era uma beldade, de cabelo louro e olhos azuis, tal como Noah. A cor do seu cabelo era muito semelhante à dele e, embora Noah fosse muito mais alto, podiam passar por parentes próximos. Tal ideia dava calafrios, pensou Jordan, já que Isabel estava descaradamente a atirar-se a ele. Ela era bastante ingénua, o que não sucedia com Noah. A irmã de Kate era uma jovem de dezanove anos apenas e pela maneira como olhava para Noah, como que em adoração, era manifesto que se achava já subjugada pelo seu charme. A favor de Noah tinha de admitir-se que ele não estava a encorajá-la. Na realidade, nem sequer lhe prestava qualquer atenção. Em vez disso, ouvia o que lhe dizia Zachary, o mais novo dos Buchanan.
- Compreendo.
Jordan não ouvira ninguém aproximar-se dela e quase reagiu com um salto quando o seu irmão Michael lhe deu um beliscão, postando-se a seu lado, a sorrir como um idiota. Quando ela era miúda, Michael deleitava-se a apanhá-la de surpresa, a ela e à sua irmã Sidney, pregando-lhes tremendos sustos. Nessa época, adorava ouvi-las gritar. Jordan julgara que, com a idade, ele superara aquele horrendo hábito, mas, ao que parecia, voltava a ele, por vezes, quando se encontrava perto dela. Agora que pensava nisso, todos os seus irmãos mais velhos pareciam regressar à infância, quando ela andava por perto.
- Que estás a fazer aqui fora? - perguntou Michael.
- À espera.
- Isso é evidente, mas estás à espera de quem ou de quê?
- Das outras damas de honor, mas, em particular, da Isabel. Confiaram-me a missão de a manter afastada do Noah.
12
Michael voltou-se e contemplou a cena que se desenrolava ao fundo da escada. Isabel achava-se praticamente colada a Noah. Sorriu-se.
- E como estão a correr as coisas?
- Até agora, nada de especial.
Michael riu-se, enquanto continuava a observar Isabel, que, finalmente, conseguira que Noah lhe prestasse atenção. Estava muito corada.
- O que temos ali é um ménage à trois.
- Que queres tu dizer?
- Olha para eles. - disse Michael. - A Isabel só tem olhos para o Noah, o Zachary só tem olhos para ela e, pela forma como aquela mulher, ali adiante, mira o Noah, como uma onça à espreita da presa, diria que aquilo que há entre eles não se fica apenas por uma troca de olhares. - Michael encolheu os ombros e acrescentou: - Para dizer a verdade, é um ménage à quatre.
- Não é nenhum ménage a três, nem a quatro, nem a dez. - contrapôs Jordan.
- Segundo creio, a dez seria considerado uma orgia. Já alguma vez ouviste falar disso?
Jordan não ia permitir que o irmão a apanhasse na ratoeira. Agora, toda a sua atenção se achava concentrada em Zachary. Estava a fazer quanto podia para levar Isabel a reparar nele. Não ficaria surpreendida se o visse começar a dar saltos mortais para trás.
- É uma pena - declarou, enquanto sacudia a cabeça.
- O Zac?
Jordan assentiu com a cabeça.
- Não posso criticá-lo - comentou Michael. - A Isabel tem tudo a seu favor. O corpo, o rosto... sem sombra de dúvida, é....
- Uma miúda de dezanove anos, Michael. Ela só tem dezanove anos.
- Eu sei. É nova demais para o Noah e para mim e julga ser velha demais para o Zachary.
O carro que transportava os seus pais parou à entrada do clube. Jordan pôde ver um guarda-costas que se manteve sempre atrás do juiz, enquanto este subia a escada. Outro guarda-costas galgava os degraus à sua frente.
Michael deu-lhe uma cotovelada e disse:
- Não te preocupes por causa dos guarda-costas.
13
- E tu, não estás preocupado?
- Talvez um pouco. O certo é que o julgamento dura há tanto tempo que já me habituei a ver o pai acompanhado pelas suas sombras. Tudo irá terminar dentro de duas semanas, depois de proferida a sentença.
Deu-lhe uma cotovelada, ao de leve.
- Por esta noite, afasta tudo isso do espírito, está bem?
- De acordo - prometeu ela, embora não soubesse como conseguiria fazê-lo.
- Devias começar a festejar - disse Michael, ao ver que ela continuava preocupada. - Agora que vendeste a tua empresa e nos tornaste ricos a nós, acionistas, estás livre e sem amarras. Podes fazer tudo quanto queiras.
- E se eu não souber o que quero?
- A seu tempo hás de acabar por saber. - replicou Michael. - Vais continuar na área da informática, não é assim?
Jordan não sabia ao certo o que iria fazer. Supunha que estaria a desperdiçar as suas qualificações se não continuasse a trabalhar em qualquer coisa relacionada com computadores. Era uma das muito poucas mulheres que haviam alcançado êxito no domínio das inovações informáticas. Havia começado ao serviço de uma grande empresa, mas acabara por constituir a sua própria sociedade e, com os investimentos efetuados pelos membros da sua família, convertera-a num empreendimento de enorme sucesso. Passara os últimos anos a trabalhar sem descanso. No entanto, quando outra grande empresa lhe propusera comprar a sua sociedade, por um preço astronómico, não hesitara em vendê-la. Agora, inquieta, ansiava por uma mudança.
Encolheu os ombros.
- Talvez me dedique a um trabalho de assessoria - declarou.
- Sei que tens imensas propostas - comentou Michael -, mas não te precipites a tomar qualquer decisão. Espera e descontrai-te. Aproveita para te divertires.
Aquela noite era de Dylan e Kate, recordou a si própria. Poderia pensar amanhã no seu próprio futuro.
Noah levava uma eternidade a subir as escadas, já que não parava de ser abordado por familiares e amigos.
14
- Porque não vais lá para dentro? - insistiu Michael. E deixa de te preocupar com o Noah. Ele sabe que a Isabel é muito nova. Não iria fazer nada de inconveniente.
Michael tinha razão no respeitante a Noah, mas Jordan não podia dizer o mesmo quanto a Isabel.
- Vai ter com ela, por favor, e trá-la para dentro.
Não teve de repetir o pedido. O irmão já ia a meio do terraço antes que o porteiro abrisse a porta para ela passar.
Afinal de contas, Jordan não teve de desempenhar o seu papel de cão de guarda. Noah mostrou-se um perfeito cavalheiro, tal como Michael havia predito. Apesar disso, várias jovens persistentes não o largavam e era evidente que Noah não se importava de ser o centro das suas atenções. Como aquelas mulheres tinham todas mais de vinte e um anos, Jordan calculou que sabiam o que estavam a fazer.
O comportamento virtuoso de Noah libertou-a das suas responsabilidades e começou a apreciar um pouco de divertimento. No entanto, pelas nove horas, as lentes de contacto tornaram-se-lhe insuportáveis. Foi à procura de Noah, que ainda mantinha no bolso do casaco os seus óculos e a caixa das lentes. Foi encontrá-lo na pista de dança com uma loura platinada, a oscilar ao ritmo da música lenta. Jordan só o interrompeu pelo tempo necessário para recuperar a caixa das lentes, dirigindo-se depois para a casa de banho das senhoras.
No vestíbulo, deparou com um certo alvoroço. Um sujeito de aspeto estranho estava a discutir com os seguranças em serviço no Country Club. Estes insistiam para que se fosse embora, mas o homem não se mostrava disposto a fazê-lo. Um dos agentes federais já o havia revistado para se assegurar de que não trazia nenhuma arma consigo.
- É incrível que um convidado seja tratado da forma como estão a tratar-me - protestava o homem. - Já lhes disse que Miss Isabel MacKenna vai ficar contente por me ver. Devo ter deixado o meu convite em qualquer lugar, mas garanto-lhe que fui convidado.
Quando viu Jordan encaminhar-se na sua direção, abriu um argo sorriso. Um dos dentes da frente achava-se encavalitado em outro e sobressaía o suficiente para que o lábio superior ficasse preso nele, quando o homem falava.
15
Jordan não sabia se devia ou não intervir. O sujeito estava a comportar-se de maneira assaz anormal. Não deixava de dar estalos com os dedos e de menear a cabeça como se estivesse a concordar com o que alguém dizia, mas não estava, naquele momento, a falar fosse com quem fosse. As suas roupas também eram bizarras. Embora se estivesse no pino do verão, o estranho envergava um blazer de espesso tweed com cotoveleiras de couro. Escusado será dizer que estava a suar profusamente; o suor empapava-lhe a barba mal aparada e onde se viam alguma zonas grisalhas. Apesar disso, não se podia adivinhar a sua idade. Apertava contra o peito uma velha pasta de couro de onde saíam as pontas de um montão de papéis.
- Posso ser-lhe útil? - perguntou Jordan.
- A senhora está na boda dos MacKenna?
- Exatamente.
O sorriso do homem alargou-se, enquanto colocava a pasta a abarrotar de papéis debaixo do braço e enfiava a mão no bolso do casaco de tweed. Extraiu dele um cartão de visita enrugado e pouco limpo e entregou-lho.
- Sou o professor Horace Athens MacKenna - anunciou, orgulhosamente. Ficou à espera de que Jordan lesse o seu nome no cartão de visitas e, em seguida, tirou-lho das mãos e voltou a enfiá-lo no bolso do casaco. Bateu várias vezes com a mão no bolso, sem deixar de sorrir para Jordan.
Os seguranças haviam recuado, mas continuavam a observar o homem, desconfiados. Não admirava; o professor MacKenna era um tanto esquisito.
- Não tenho palavras para descrever a minha satisfação por estar aqui. - Estendeu-lhe a mão e acrescentou: - É uma ocasião memorável. Uma MacKenna a casar-se com um Buchanan. É espantoso, deveras espantoso. - Soltou um risinho e concluiu: - Imagino que os nossos antepassados MacKenna devem estar a contorcer-se e a dar voltas nos túmulos.
- Não sou da família MacKenna. - replicou ela. - O meu nome é Jordan Buchanan.
O estranho não retirou a mão, mas esteve quase a fazê-lo. O seu sorriso desapareceu e pareceu repensar a sua atitude.
- Buchanan? Você é uma Buchanan?
- Sou, sim.
16
- Pois claro - retorquiu o homem. - Afinal de contas trata-se do casamento de uma MacKenna com um Buchanan e claro que teria de deparar com os Buchanan. É lógico, não acha?
Jordan estava a ter dificuldade em compreender o que ele dizia. O professor MacKenna tinha um sotaque bastante acentuado e pouco vulgar, que consistia numa mistura de brogue escocês com a fala arrastada dos estados do Sul.
- Desculpe. Disse que os antepassados MacKenna devem estar a dar voltas nos túmulos? - perguntou, convencida de haver compreendido mal as palavras do professor.
- Sim, foi isso mesmo o que eu disse, minha querida.
"Querida"? Aquele homem revelava-se cada vez mais esquisito.
- Calculo que os Buchanan também devem estar em não pequenas convulsões nos seus malditos túmulos - prosseguiu o homem.
- E porquê?
- Por causa do antagonismo, claro.
- Antagonismo? Não percebo. Que antagonismo?
O homem sacou de um lenço e limpou o suor da testa.
- Estou a adiantar-me demais. Deve pensar que sou doido.
Sim, era exatamente o que Jordan estava a pensar. Afortunadamente, o estranho não ficou à espera de resposta.
- Estou a morrer de sede - declarou. Inclinou a cabeça na direção do salão de baile de onde Jordan havia vindo. - Gostaria de tomar algo.
- Sim, claro. Por favor, venha comigo.
O homem agarrou-se ao braço de Jordan e, enquanto caminhavam, lançou um olhar desconfiado por cima do ombro.
- Sou professor de História no Franklin College do Texas. Já ouviu falar do Franklin?
- Não - admitiu Jordan. - Nunca ouvi falar.
- É um bom colégio. Fica mesmo às portas de Austin. Ensino História Medieval ou, pelo menos, era o que fazia antes de entrar na posse de uns dinheiros inesperados e decidir gozar uma licença. Uma espécie de férias. Não sei se compreende - prosseguiu. - Há cerca de quinze anos, comecei a investigar a história da minha família. Foi, para mim, um hobby muito reconfortante. Sabe que, entre nós, existe uma rivalidade ancestral bastante sangrenta? - Sem esperar por uma resposta, adiantou: - Uma rivalidade
17
sangrenta entre os Buchanan e os MacKenna, é o que quero dizer. Este casamento nunca devia ter ocorrido, se a História tem algum significado.
- Por causa do tal antagonismo?
- Isso mesmo, minha querida.
Muito bem, não restavam dúvidas; o homem era doido varrido, concluiu Jordan. De súbito, ficou grata ao agente que o revistara à procura de armas escondidas e sentiu-se apreensiva por estar a conduzir o estranho para o salão de baile, particularmente se fosse sua intenção armar escândalo. Por outro lado, o sujeito parecia inofensivo e conhecia Isabel... Pelo menos, assim o dissera.
- A respeito da Isabel... - começou ela, determinada a descobrir o que sabia o professor acerca da irmã de Kate.
O homem estava por demais mergulhado na sua história para prestar atenção às suas palavras.
- O antagonismo subsiste há séculos e, de cada vez que julgo chegar à sua origem, zás! deparo com outra contradição. - Meneou a cabeça por diversas vezes, lançando depois outro breve olhar para trás, como se receasse que viesse alguém atrás dele, aproximando-se sem ruído. - Tenho orgulho em afirmar que segui o rasto do antagonismo até ao século treze - gabou-se.
Logo que fez uma pausa para tomar fôlego, Jordan sugeriu-lhe que fosse ter com Isabel.
- Estou certa de que vai ficar entusiasmada por conhecê-lo - declarou, dizendo para consigo que melhor seria empregar a palavra "estupefacta".
Percorreram o corredor e entraram no salão de baile no preciso momento em que passava um criado com uma bandeja cheia de taças de champanhe.
O professor tirou uma taça, engoliu o líquido de um trago e apressou-se a pegar noutra.
- Oh! como é refrescante. Há comida? - perguntou, descaradamente.
- Claro que há. Venha comigo. Vamos sentar-nos a uma mesa.
- Obrigado - disse ele, sem contudo se mexer. - Acerca de Miss MacKenna... - Percorreu o salão com o olhar e acrescentou: - Na verdade, nunca me encontrei com ela. Terá de ma indicar. Correspondo-me com ela há já algum tempo, mas não faço ideia
18
da sua cara. Sei que é jovem e anda no colégio - acrescentou. Lançou a Jordan um olhar matreiro e prosseguiu: - Calculo que deve estar a perguntar a si própria como estabeleci contacto com ela, não é assim?
Antes que Jordan pudesse responder, o professor mudou a pasta cheia de papéis de um braço para o outro e fez sinal a um criado para que lhe trouxesse outra bebida.
- Adquiri o hábito de ler todos os jornais que consigo arranjar. Gosto de me manter informado - explicou. - Como é óbvio, leio os principais jornais na Internet. Devoro tudo, desde a atualidade política até à necrologia e memorizo tudo o que leio - gabou-se. - É verdade. Nunca me esqueço seja do que for. É assim que o meu cérebro funciona. Também andei a estudar a história da minha família ao longo dos tempos e ligada a essa história encontra-se a propriedade do Glen MacKenna. Através de documentos processuais descobri que Miss MacKenna vai herdar essa terra magnífica, dentro de poucos anos.
Jordan assentiu com a cabeça.
- Ouvi dizer que o tio-avô da Isabel lhe deixou uma vasta porção de terreno na Escócia.
- Não se trata de um terreno qualquer, minha querida, mas sim do Glen MacKenna - advertiu ele, assumindo-se agora como um professor a instruir um aluno. - Essa terra está intimamente ligada ao antagonismo ancestral, e o antagonismo está intimamente ligado a essa terra. Os Buchanan e os MacKenna estão em guerra há séculos. Não sei qual é a exata origem da disputa, mas tem a ver, ao que parece, com um tesouro que os vis Buchanan roubaram do Glen, e estou decidido a descobrir em que consistia e quando foi ele roubado.
Jordan não fez caso do insulto aos seus antepassados, enquanto oferecia ao professor uma cadeira na mesa mais próxima. O homem pousou a pasta e disse:
- Miss MacKenna mostrou-se interessada nas minhas pesquisas, de tal modo que a convidei a visitar-me. Não me era humanamente possível trazer tudo comigo, como deve compreender. Há anos que trabalho nesta investigação.
Fitou-a, expectante. Jordan concluiu que ele estava à espera de uma resposta qualquer, por isso assentiu, perguntando:
- Onde mora, professor?
19
- Num lugar perdido. - O homem sorriu, depois de dizer aquilo, e explicou: - Por causa da minha situação económica... ou melhor, da herança que recebi - corrigiu-se -, tive oportunidade de me mudar para uma cidadezinha pacata, no interior do Texas, chamada Serenity. Passo os dias a ler e a fazer pesquisas - acrescentou. - Gosto da solidão e aquela cidade é, na verdade, um oásis. Seria um lugar encantador para quando me reformar, mas o mais provável é regressar à terra onde nasci, a Escócia.
- Ah, sim? Vai voltar à Escócia? - perguntou Jordan, enquanto percorria o salão com o olhar, à procura de Isabel.
- Exatamente. Quero visitar todos os lugares que vi citados nas minhas leituras. Já não me lembro deles. - Apontou para a pasta e continuou: - Escrevi parte da nossa história para que Miss MacKenna possa lê-la. A maior parte dos sofrimentos que o clã MacKenna teve de suportar ocorreram por culpa do clã Buchanan, - afirmou, apontando um dedo ao rosto de Jordan. - Talvez queira também dar uma vista de olhos às minhas pesquisas, mas aviso-a desde já que investigar estas lendas e tentar chegar à origem de tudo isto pode converter-se numa obsessão. Por outro lado, contudo, é uma deliciosa forma de distração da monotonia da vida quotidiana. Para dizer a verdade, pode até tornar-se numa paixão.
"Qual paixão!" Enquanto matemática e técnica de computadores, Jordan lidava com factos e abstrações e não com fantasias. Podia elaborar qualquer plano empresarial bem como o software adequado. Adorava resolver quebra-cabeças. Não podia imaginar algo que constituísse maior perda de tempo do que andar atrás de lendas, mas não estava disposta a alimentar uma longa discussão com o professor. Tinha de encontrar Isabel tão depressa quanto possível. Depois de deixar o professor MacKenna instalado à mesa com um prato cheio de comida à sua frente, deu início à busca.
Isabel encontrava-se no exterior e ia sentar-se, quando Jordan a agarrou pelo braço.
- Vem comigo - disse-lhe. - O teu amigo, o professor MacKenna, acaba de chegar. Tens de tomar conta dele.
- Ele está aqui? Veio até cá? - Isabel parecia atónita.
- Não o convidaste?
Isabel sacudiu a cabeça, mas em seguida pareceu mudar de ideias.
20
- Espera. Talvez o tenha convidado, mas não formalmente. Quero dizer, não o incluí na lista. Temos comunicado um com o outro e referi-lhe o casamento e a boda porque ele me disse que andava a percorrer a Carolina do Norte e a do Sul e talvez se encontrasse por perto, nesta data. E acabou por aparecer? Que aspeto tem ele?
Jordan sorriu.
- É difícil descrevê-lo. O melhor é ires ver com os teus próprios olhos.
Isabel voltou ao salão, na peugada de Jordan.
- Falou-te do tesouro?
- Por alto - respondeu Jordan.
- E acerca do antagonismo? Disse-te que os Buchanan e os MacKenna andaram sempre em guerra? O antagonismo dura há séculos. Uma vez que vou herdar o Glen MacKenna, quero saber quanto puder acerca da sua história.
- Pareces entusiasmada - observou Jordan.
- E estou. Já decidi que vou licenciar-me em História e escolher Música como a segunda especialidade. O professor trouxe com ele as pesquisas que fez? Segundo me disse, tem caixas e caixas...
- Traz uma pasta.
- E as caixas?
- Não sei. Tens de lhe perguntar.
O professor mostrou-se mais atencioso para com Isabel. Levantou-se e apertou-lhe a mão.
- É para mim uma grande honra conhecer a nova proprietária do Glen MacKenna. Quando for para a Escócia, não deixarei de dizer aos homens do meu clã que me encontrei consigo e que é uma jovem tão bonita como eu já calculava.
Depois, virou-se para Jordan e acrescentou:
- Também lhes falarei a seu respeito.
Não foram aquelas palavras mas a forma como foram proferidas que despertaram a curiosidade de Jordan.
- A meu respeito?
- A respeito dos Buchanan - corrigiu o homem. - Deve saber que Kate MacKenna se casou com alguém que lhe é inferior.
O professor conseguiu fazer explodir a ira de Jordan com aquela observação.
21
- E porquê? - perguntou ela.
- Ora porquê! Porque os Buchanan são uns selvagens, aí tem porquê. - Apontou para a pasta e prosseguiu. - Ali dentro encontram-se apenas umas amostras das atrocidades que cometeram contra os pacíficos MacKenna. Devia lê-las. Depois compreenderia como o seu parente teve muita sorte por se casar com uma MacKenna.
- Professor, está a querer insultar a Jordan? - perguntou Isabel, chocada.
- Ela é uma Buchanan - replicou ele. - Estou apenas a constatar um facto.
- E que fiabilidade têm as suas pesquisas? - Jordan cruzou os braços no peito e encarou aquele homem malcriado, franzindo as sobrancelhas.
- Sou um historiador - ripostou ele. - Lido com factos. Admito que algumas das histórias poderão ser consideradas... lendas... mas há indícios bastantes para as tornar credíveis.
- Como historiador, acredita ter provas de que os MacKenna foram todos uns santos e todos os Buchanan, uns pecadores?
- Sei que isso pode parecer parcial, mas as provas são irrefutáveis. Leia tudo isto - desafiou-a de novo - e chegará à mesma conclusão.
- Então os Buchanan são selvagens?
- Receio bem que sim - declarou o professor, com notória satisfação, - Também são ladrões - acrescentou. - Andaram a apossar-se de terras dos MacKenna até o Glen MacKenna ficar reduzido a metade do que era. E, claro, também roubaram o tesouro.
- O tesouro que deu origem ao antagonismo - disse Jordan, deixando transparecer a sua irritação.
O homem lançou-lhe um sorriso sarcástico e ignorou-a deliberadamente, voltando-se para Isabel.
- Não podia viajar com todas as minhas caixas. Tenho de as deixar armazenadas, antes de partir para a Escócia. Se quer examiná-las, o melhor será deslocar-se ao Texas nas próximas duas semanas.
- Vai partir dentro de duas semanas? É que as aulas estão a começar e eu... - Isabel calou-se, respirou fundo e declarou: - Posso faltar na primeira semana.
22
Jordan ínterrompeu-a.
- Isabel, não podes faltar às aulas durante uma semana inteira. Precisas de conhecer os horários das aulas e de arranjar os livros de estudo... Não podes ir disparada para o Texas. Porque não pedes que o professor te mande os seus arquivos por e-mail?
- A maior parte da minha pesquisa está escrita à mão e só pus no computador uns quantos nomes e datas. Podia enviá-los, mal regresse a casa, mas, sem os meus papéis, nada disso fará sentido para vocês.
- E se despachar as caixas pelo correio? - sugeriu Jordan.
- Ah, não, nunca poderia fazer tal coisa - protestou o professor - A despesa...
- Nós pagaremos os portes - propôs Jordan.
- Não confio nos correios. Aquelas caixas poderiam extraviar-se e representam muitos anos de pesquisa. Não, não quero correr esse risco. Tem de ir ao Texas, Isabel. Talvez quando eu regressar... se bem que...
- O quê? - perguntou Isabel, julgando que ele havia encontrado outra solução.
- Posso decidir permanecer na Escócia. Tudo depende da minha situação financeira. Se decidir fazê-lo, o material das minhas pesquisas permanecerá armazenado até eu estar preparado para vir buscá-lo. Se quiser ler tudo quanto acumulei, é agora ou nunca - declarou, perentório.
- Não pode arranjar alguém que faça fotocópias dos arquivos? - inquiriu Isabel.
- Não disponho de ninguém para tal e, pura e simplesmente, não me resta tempo para isso. Estou a preparar-me para a viagem. Quando vier, terá de ser você mesma a fazer as cópias.
Isabel soltou um profundo suspiro de frustração e Jordan, vendo como aquilo era importante para ela, compreendeu o seu dilema. Por muito irritada que estivesse por o professor haver forjado uma acusação parcial contra os seus antepassados, sentiu pena por Isabel não poder aprender algo mais acerca da história da terra que ia ser sua.
- Talvez eu decida fazer uma pequena investigação por minha própria conta - disse, enquanto se levantava para deixar que Isabel e o professor continuassem a falar.
Aquele homem ridículo tinha conseguido enfurecê-la e Jordan achava-se determinada a desenterrar alguns factos para provar que
23
ele estava errado. Todos os Buchanan tinham sido selvagens? Que professor de História era aquele para chegar a uma conclusão tão genérica? E que crédito merecia essa conclusão? Seria ele realmente um professor de História? Decididamente, ia investigar tudo aquilo.
- Talvez venha a provar que os Buchanan é que foram santos - declarou.
- Isso é praticamente impossível, minha querida. A minha investigação é inatacável.
Jordan olhou por cima do ombro, enquanto se afastava, e disse ainda:
- É o que vamos ver.
24
CAPÍTULO TRÊS

Já passava das dez quando Jordan teve finalmente a oportunidade de tirar as lentes de contacto. Regressou ao salão de baile e postou-se perto da entrada, tentando localizar Noah no meio da multidão na pista de dança. Os seus óculos continuavam dentro do bolso do casaco dele.
O professor MacKenna tinha abandonado o local havia uma hora e Isabel desfizera-se em desculpas pelo comportamento indelicado do indivíduo. Jordan dissera-lhe que não se preocupasse, que não ficara ofendida e, quando se afastou apercebeu-se de que Isabel se achava transtornada por causa das caixas com os resultados das pesquisas. Jordan pensara em oferecer-se para a ajudar, mas mudara de ideias. Embora, como Michael lhe lembrara, se encontrasse então livre de compromissos e sentisse curiosidade de ler algumas das pretensas investigações do professor, esse oferecimento significaria ter de suportar por algum tempo mais a sua companhia. Não, obrigada. Nada compensava passar uma hora com aquele homem.
- Que te leva a franzir a testa?
A pergunta foi feita pelo seu irmão Nick, que entretanto surgira a seu lado.
- Não estou a franzir a testa. Estou a forçar a vista. O Noah tem os meus óculos. Viste-o?
- Vi, sim. Está mesmo à tua frente.
Jordan focou os olhos, vislumbrou-o, e então franziu realmente a testa.
- Olha para aquelas malucas a babarem-se para o teu amigo. É nojento.
25
- Achas que sim?
- Acho - replicou ela. - Promete-me uma coisa.
- O quê?
- Se alguma vez eu me comportar daquela maneira, dá-me um tiro.
- Com todo o gosto - prometeu Nick, soltando uma gargalhada.
Noah pediu desculpa ao seu clube de fãs e encaminhou-se para eles.
- De que estão a rir?
- A Jordan quer que eu lhe dê um tiro.
Noah lançou-lhe uma mirada e, por um ou dois segundos, Jordan foi o centro de toda a sua atenção.
- Eu posso fazer isso - propôs.
Na voz dele havia demasiada euforia para o gosto de Jordan. Acabara de resolver afastar-se dos dois homens quando detetou Dan Robbins a caminhar na sua direção. Pelo menos, julgou que se tratava de Dan. A imagem era por demais esborratada para ter a certeza. Dançara uma vez com Dan, algum tempo atrás, e, independentemente da música que estivesse a ser tocada, fosse ela uma valsa, um tango ou hip-hop, Dan balouçava sempre ao seu próprio ritmo, que parecia a versão de uma polca. Jordan mudou de ideias e permaneceu no mesmo sítio. Aproximou-se um pouco mais de Noah e sorriu-lhe. O truque pareceu dar resultado porque Dan hesitou e acabou por se afastar.
- Não queres saber por que razão ela quer que eu lhe dê um tiro? - perguntou Nick.
- Já sei - replicou Noah. - Está aborrecida.
Jordan enfiou a mão na algibeira de Noah, encontrou os óculos e pô-los.
- Não estou aborrecida.
- Estás, sim - disse Noah, enquanto olhava para algo que se achava por trás da sua cabeça. Jordan suspeitou de que ele o fazia de propósito para a irritar.
- O Noah tem razão - adiantou Nick. - Deves sentir-te aborrecida. Só vivias para a tua empresa e, desde que a vendeste...
- Que queres dizer com isso?
Nick encolheu os ombros.
- Tens de sentir-te aborrecida.
26
- Lá porque não gosto das mesmas coisas que vocês os dois, isso não significa que me sinta aborrecida ou infeliz. Tenho uma magnífica vida social e...
Noah interrompeu-a.
- Os mortos têm uma vida social melhor do que a tua.
Nick concordou.
- Não te divertes o suficiente, não é assim?
- Claro que me divirto. Gosto de ler e...
Exibiam ambos sorrisos sarcásticos. Eram uns rematados palhaços e ela estava prestes a dizer-lhes isso mesmo, quando Nick se antecipou.
- Gostas de um bom livro. Que andavas a ler, há dois dias?
- Não me lembro. Leio tantos livros.
- Pois eu lembro-me - declarou Noah com desagradável satisfação. - O Nick, o Dylan e eu regressávamos da pesca e tu estavas sentada no cais a ler as obras completas do Stephen Hawking.
- É fascinante.
Os dois homens riram-se daquele comentário, na defensiva.
- Deixem de gozar comigo e ponham-se a andar. Os dois!
Podia ter escolhido uma ocasião melhor para dizer aquilo. Mal os mandou embora, apercebeu-se de Dan, que se dirigia novamente para ela.
Agarrou o braço de Noah. Estava certa de que ele sabia a razão por que o fazia - teria de ser cego para não se aperceber da aproximação de Dan -, mas ele não proferiu qualquer comentário.
- A tua irmã vive fechada numa caixa - comentou Noah.
Nick concordou.
- Jordan, qual foi a última vez que fizeste alguma coisa só para te distraíres?
- Faço montes de coisas para me distrair.
- Deixa-me reformular a pergunta. Quando é que fazes alguma coisa divertida que não tenha a ver com computadores, com chips ou com software?!
Jordan abriu a boca para responder, mas voltou a fechá-la. Não conseguia pensar fosse no que fosse, mas isso, decerto, era por se achar sob pressão.
- Alguma vez fizeste alguma coisa inútil? - quis saber Noah.
- Que lógica haveria nisso? - replicou ela.
Noah voltou-se para Nick.
27
- Ela está a falar a sério?
- Receio bem que sim - retorquiu Nick - Antes que a minha irmã decida fazer qualquer coisa, analisa primeiro todos os dados, e depois calcula as probabilidades estatísticas de ter êxito...
Os dois homens estavam muito divertidos a atormentá-la e teriam continuado a fazê-lo se o patrão de ambos, o Dr. Peter Morganstern, não tivesse vindo juntar-se a eles. Trazia consigo um prato com duas fatias do bolo de casamento.
Morganstern tornara-se um bom amigo da família e não perderia o casamento por nada deste mundo. Jordan gostava dele e admirava-o. Era um brilhante psiquiatra forense que dirigia um serviço altamente especializado do FBI. Chamavam-lhe o departamento de perdidos e achados. O seu irmão Nick e Noah faziam parte do programa conduzido por Morganstern. Uma das suas responsabilidades era descobrir crianças perdidas e exploradas e Jordan acreditava que ambos constituíam fator importante para o êxito do programa.
- Vocês os três parecem estar muito divertidos.
- Como consegue trabalhar com eles? - perguntou Jordan.
- Há momentos em que questiono a minha sanidade mental, especialmente no que respeita a este - disse Morganstern, inclinando a cabeça na direção de Noah.
- Lamento que o senhor e a sua esposa tenham sido colocados na mesma mesa com a nossa tia íris - declarou Nick. - Ela já se apercebeu de que é médico?
- Receio que sim.
- A íris é uma hipocondríaca obsessiva - explicou Nick, dirigindo-se a Noah.
- Que probabilidade havia de que o doutor Morganstern fosse parar à mesa dela? - inquiriu Noah.
Todos se voltaram para a mesa a que a tia íris se achava sentada.
- Uma em cento e setenta e nove mil e setecentas - respondeu Jordan, antes de poder conter-se.
Os homens viraram-se para ela.
Atónito, o médico perguntou:
- Trata-se de um número exato ou de uma mera estimativa aproximada?
- É um número exato baseado no facto de haver seiscentos convidados - afirmou Jordan. - Nunca faço estimativas aproximadas.
28
- Ela faz sempre coisas como esta? - Noah exprimiu, em voz alta, a pergunta que colocava a si próprio.
- Quase sempre - respondeu Nick.
- Lá porque tenho pendor para a mate....
- Mas sem qualquer noção de bom senso - concluiu Nick.
- Estou certo de que teria lugar na minha equipa - declarou Morganstern. - Se alguma vez pensar em mudar de profissão, venha trabalhar comigo.
- Não! - exclamou Nick, enfaticamente.
- Nem pensar nisso! - corroborou Noah, em simultâneo.
O médico virou-se para Jordan e piscou-lhe o olho, de modo conspiratório.
- Não iria colocá-la no terreno, de imediato. Como aconteceu com vocês os dois, precisaria de treinar-se durante bastante tempo - Pareceu ficar a ponderar a hipótese durante uns segundos, e depois acrescentou: - Tenho uma boa impressão de si. Creio que seria uma mais-valia para o departamento.
- Mas não existe uma norma qualquer que impede dois membros da mesma família de trabalharem juntos?
- Eu não sigo essa norma - contrapôs Morganstern - Não a obrigaria a frequentar a academia. Seria eu próprio a treiná-la.
Noah parecia siderado.
- No entanto, continua a ser uma má ideia - insistiu, enquanto Nick acenava energicamente com a cabeça, em concordância.
Exasperada, Jordan voltou-se para Noah e exclamou:
- Ouve, senhor Metediço. A decisão não cabe a ti. Só a mim.
O médico parecia espantado pela reação de Noah à sua proposta.
- Terei de andar armada? - perguntou Jordan.
- Isso está fora de questão - atalhou Nick.
- Tu és por demais descoordenada e cega como um morcego - contrapôs Noah. - Acabavas por dar um tiro em ti mesma - profetizou.
Jordan voltou-se para Morganstern, com um sorriso.
- Foi um prazer falar consigo. Agora, se me perdoa, gostaria de afastar-me destes dois cretinos.
Noah agarrou-a pelo braço.
- Anda. Vem dançar comigo.
Uma vez que ele já estava praticamente a arrastá-la para a pista de dança, Jordan considerou que de nada serviria protestar. A noiva convencera
29
a irmã a cantar. Isabel tinha uma voz maravilhosa e, quando começou a entoar a balada preferida de Kate, a multidão ficou em silêncio. Velhos e novos pareciam hipnotizados por aquela voz.
Noah puxou Jordan para os seus braços e apertou-a contra si. Jordan teve de admitir que a sensação não era inteiramente desagradável...
Gostava de sentir o seu corpo firme pressionado contra o dela. E também gostava do cheiro de Noah. Fosse qual fosse a fragrância que usava, era terrivelmente sexy.
Noah olhava por cima da cabeça dela quando lhe perguntou:
- Não estás decerto a planear trabalhar para o professor, pois não?
Dava a impressão de estar um tanto preocupado. Jordan não pôde impedir-se de o provocar um pouco.
- Só se for trabalhar contigo.
Noah sorriu, enquanto abanava a cabeça.
- Isso não vai acontecer. E não estás a falar a sério, não é verdade?
- É verdade - concedeu ela. - Não estou a pensar ir trabalhar para o doutor Morganstern. Satisfeito?
- Estou sempre satisfeito.
Jordan revirou os olhos. Oh! céus. O ego dele!
- Na verdade, não acredito que o professor estivesse a falar a sério. Só queria espicaçar-vos, a ti e ao Nick. E deu resultado. Ficaram ambos exasperados.
- O professor nunca espicaça seja quem for e eu nunca fico exasperado.
- Está bem. Mesmo que ele não estivesse a querer espicaçar-vos, ainda assim não iria aceitar a proposta de trabalhar para ele.
Noah abriu um sorriso e, por um fugidio momento, Jordan esqueceu-se de como ele podia ser irritante.
- Nunca acreditei que te interessasse semelhante perspetiva.
Aborrecida, Jordan replicou:
- Então, porque estás a manter esta conversa? Se já sabias a resposta, por que razão fizeste essa pergunta?
- Só para ter a certeza, nada mais.
Acompanharam o ritmo da música por um bom meio minuto. Jordan já estava a sentir-se descontraída, quando ele estragou tudo.
- No entanto, serias terrível naquilo...
30
- Naquilo?
- No trabalho.
- Como podes saber se eu seria boa ou má no trabalho?
- Vives numa zona privada de conforto. É por isso.
- Não percebo. Que entendes por zona privada de conforto?
- É onde tu vives. Nunca dás um passo fora do teu ambiente seguro, da tua zona privada de conforto. - Antes que ela pudesse objetar, acrescentou: - Aposto que nunca fizeste nada de espontâneo na tua vida nem te abalançaste a correr riscos.
- Corri imensos riscos no ano que passou, para falar só desse.
- Ah sim? Diz-me um só.
- Vendi a minha empresa.
- Isso foi uma decisão calculada e obtiveste grande lucro - contrapôs Noah. - Que mais?
- Corri muito. Pensei até participar na maratona de Boston, no próximo ano - adiantou Jordan.
- Isso é um regime de manutenção, algo que exige disciplina. Além disso, praticas exercício para te manteres em forma - argumentou ele.
Agora, não estava a olhar por sobre a sua cabeça. Fitava-a nos olhos, o que a fazia sentir-se extremamente desconfortável. Por mais que fizesse, não conseguia pensar num único ato espontâneo ou em nenhum risco que alguma vez houvesse assumido. Tudo quanto fizera fora sempre bem ponderado e planeado até ao mais ínfimo pormenor. A sua vida seria, na verdade, assim tão enfadonha? Seria ela própria tão enfadonha?
- Estás a ter dificuldade em descobrir alguma coisa?
- Não há mal nenhum em ser prudente. - bom, agora estava a falar como se tivesse noventa anos!
Noah fitou-a como se estivesse prestes a desatar às gargalhadas.
- Tens razão - disse. - Não há mal nenhum em ser-se prudente.
Embaraçada por ter acabado de descobrir como era enfadonha e calculando que ele também o houvesse descoberto, apressou-se a mudar de assunto para deixar de ser o alvo da conversa. Debitou o primeiro pensamento que lhe ocorreu ao espírito.
- A Isabel tem uma excelente voz, não é verdade? Podia ficar a ouvi-la durante toda a noite. Sabes que anda a ser perseguida por agentes que querem fazer dela uma vedeta? No entanto, não está
31
interessada. É uma caloira, mas já decidiu doutorar-se em História, e depois dedicar-se à carreira docente. Interessante, não achas? Está a desprezar fama e fortuna. Considero que isso é extraordinário. Não concordas?
Noah lançou-lhe um sorriso penetrante que atingiu o seu âmago, mas mostrou-se atónito. O que não admirava, porque ela pairara como se fosse uma bebé de colo. Sabia que devia calar-se, mas parecia incapaz de manter a boca fechada. Graças à maneira como ele a fitava, sentia-se à beira de uma tremenda crise de nervos.
Por favor, Isabel, acaba de cantar. Já basta!
- E sabes que, daqui a alguns anos, ela vai herdar uma propriedade na Escócia? Chama-se Glen MacKenna - prosseguiu, apressadamente. - Convidou para o casamento e para a boda o homenzinho mais estranho que jamais vi. Acabo de o conhecer. O homem tem todas as informações que coligiu enfiadas em caixas, no Texas. É professor, percebes, e efetuou inúmeras pesquisas acerca de um antagonismo que, segundo diz, existe há séculos entre os Buchanan e os MacKenna. Na sua opinião, o Dylan e a Kate nunca deviam ter-se casado. Também existe uma lenda a propósito de um tesouro. Tudo isto é, na verdade, fascinante. A sério.
Teve, por fim, de fazer uma pausa para respirar, sob pena de perder o fôlego e os sentidos.
Noah parou de dançar, por alguns segundos, e depois perguntou-lhe:
- Sou eu que estou a pôr-te nervosa? "Ora, que pergunta".
- Quando olhas para mim, é verdade. Ficar-te-ia muito grata se voltasses a ser grosseiro e olhasses por cima da minha cabeça, quando falas comigo. É para isso que o fazes, não é assim? Para seres grosseiro.
O rosto de Noah iluminou-se.
- E para te irritar.
- Então, fica a saber que dá resultado. Irritas-me.
A Isabel nunca iria acabar aquela canção? Estava a demorar uma eternidade. Jordan sorriu, com indiferença, para os pares que evoluíam a seu lado, enquanto fazia votos para que a dança terminasse. Seria uma má-criação pôr termo à dança a meio da música, ponderou.
Com o indicador, Noah ergueu-lhe o queixo e fitou-a, olhos nos olhos.
32
- Posso fazer uma sugestão?
- Claro que sim. Sugere - respondeu-lhe.
- Devias considerar a hipótese de entrar no jogo.
Jordan soltou um suspiro.
- E que jogo é esse?
- A vida.
Aparentemente, não havia acabado ainda de lhe propor maneiras de melhorar a sua sorumbática existência.
- Sabes qual é a diferença que existe entre nós? - perguntou Noah.
- Consigo pensar em mais de mil.
- Eu como a sobremesa.
- E que quer isso dizer? - inquiriu Jordan.
- Quer dizer apenas que a vida é curta. Por vezes, temos de comer a sobremesa em primeiro lugar.
Ela sabia aonde aquilo ia levar.
- Compreendo. Eu limito-me a observar a vida, enquanto tu a vives. Achas que eu devia fazer algo de espontâneo em vez de andar sempre a planear tudo o que faço, mas, para tua informação, já estou a fazer algo de espontâneo.
- Ah, sim? - perguntou ele, com um tom de desafio na voz. - O quê?
- Algo de espontâneo - retorquiu ela, procurando ganhar tempo.
- Mas de que se trata?
Sabia que ele não estava a acreditar no que dissera. Fossem quais fossem as consequências, estava decidida a fazer algo de espontâneo, nem que isso lhe custasse a vida. Só pela satisfação de lhe tirar da cara aquele seu arrogante sorriso de sabichão, valia a pena qualquer sacrifício, ainda que fosse ilógico.
- Vou ao Texas - declarou, reforçando a decisão com um aceno de cabeça.
- E para quê? - perguntou Noah.
"Para que vou ao Texas?" A princípio não fazia a mínima ideia, mas, afortunadamente, tinha o dom de pensar depressa. Antes que ele pudesse proferir outra palavra, respondeu à sua própria pergunta:
- Vou numa caça ao tesouro.
33
CAPÍTULO QUATRO

Paul Newton Pruitt amava as mulheres. Adorava tudo quanto era próprio delas: a sua pele suave e lisa; o odor feminino; a luxuriante carícia do seu cabelo sedoso quando lhe roçavam o peito; os sons eróticos que emitiam quando ele lhes tocava. Adorava as suas gargalhadas contagiosas, os seus estimulantes gritinhos de prazer.
Não fazia discriminações. Fosse qual fosse a cor dos seus olhos ou da sua pele - adorava-as a todas. Altas, baixas, magras, gordas. Não fazia diferença. Eram todas maravilhosas e, para ele, cada uma era um caso especial.
É certo, tinha de admiti-lo, que dispensava particular interesse à maneira como algumas lhe sorriam. Um sorriso que não tinha forma de descrever. Só sabia que bastava que um desses sorrisos lhe fosse dirigido para que o seu coração começasse a bater descompassadamente. A atração tinha esse poder. Não conseguia resistir, não era capaz de dizer não. Sedutor, excitante, aquele particular sorriso nunca deixava de o cativar.
Antes que tivesse de corrigir-se, alterando o seu comportamento para conseguir sobreviver, fora um autêntico Casanova. E não era o seu ego a falar. Fora, de facto, assim. Em tempos, havia sido irresistível.
As coisas, porém, eram agora diferentes.
No passado, quando ficava farto, despedia-se com presentes luxuosos para que não deixasse rancores atrás de si. Não suportava imaginar que uma sequer de todas as mulheres que possuíra ficasse a odiá-lo. Só depois de ter absoluta certeza de que satisfizera as aspirações da última é que avançava para outra, adorável e, muitas vezes, encantadora. E havia sempre uma outra.
34
Até encontrar Marie. Apaixonara-se por ela e a sua vida modificara-se para sempre. A existência anterior desaparecera. Paul Ifewton Pruitt deixara de existir. Um novo nome, uma nova identidade, uma nova vida. Ninguém iria jamais descobri-lo.
35
CAPÍTULO CINCO

Devia ter perdido por completo o seu tão prezado bom senso. Uma caça ao tesouro? Que lhe passara pela cabeça? Ao que parecia, estivera mais interessada em provar a Noah Clayborne que não era uma rematada chata do que em servir-se do bom senso.
Jordan sabia que não podia culpar ninguém a não ser ela própria pela sua presente situação, mas, mesmo assim, queria lançar as culpas sobre Noah, simplesmente porque, ao fazê-lo, se sentia melhor.
Encostou-se ao vetusto carro de aluguer na berma daquela mal conservada estrada de duplo sentido, perdida algures no Texas, enquanto esperava impacientemente que o motor arrefecesse e pudesse despejar mais água no radiador. Felizmente, havia parado na fronteira entre dois estados para comprar duas garrafas de água para beber durante o resto da viagem. Tinha quase a certeza de que o radiador estava furado, mas precisava de manter o motor a trabalhar durante o tempo suficiente para chegar à cidade mais próxima onde pudesse confiar a um mecânico a reparação da avaria. A temperatura devia ultrapassar os quarenta graus à sombra e, como era evidente, o ar condicionado do automóvel deixara de funcionar, havia cerca de uma hora, juntamente com o sofisticadíssimo GPS que a agência de rent-a-car lhe concedera como prémio de consolação por não haver respeitado a reserva que Jordan fizera e para se livrar dela.
O suor escorria-lhe por entre os seios; as solas das sandálias colavam-se ao asfalto que se derretia e o protetor que aplicara no rosto e nos braços estava a perder a sua batalha contra o sol.
Jordan tinha cabelo de um castanho avermelhado, mas a sua pele era a de uma ruiva e não carecia de apanhar muito sol para ficar
36
queimada e cheia de sardas. Segundo julgava, só dispunha de duas alternativas. Ou se sentava no carro e morria desidratada, à espera de que o motor arrefecesse, ou permanecia no exterior e seria cremada, pouco a pouco.
É certo, estava a dramatizar um pouco. "É efeito do sol", pensou.
Afortunadamente, tinha consigo o telemóvel. Nunca saía de casa sem ele. Desgraçadamente, uma vez que se encontrava temporariamente retida no meio daquela vastidão plana, não dispunha de rede.
A cidade de Serenity, no Texas, ficava a uns noventa ou cem quilómetros de distância. Não conseguira saber grande coisa acerca dela; sabia apenas que era tão pequena que o seu nome aparecia escrito no tipo de letra mais minúsculo usado no mapa do Texas. O professor dissera que Serenity era um oásis encantador, mas, quando o conhecera, o homem estava vestido com um blazer de tweed espesso em pleno calor estival. Qual seria a noção dele de "encantador"?
Antes de sair de Boston tentara documentar-se a respeito do professor. Embora fosse estranho e excêntrico, era um autêntico professor, com diversos diplomas universitários e licenciado para dar aulas. A assistente da administração do Franklin College, uma mulher chamada Lorraine, desfizera-se em elogios acerca das suas capacidades docentes. Segundo lhe dissera, o professor dava vida à História. As suas aulas eram sempre as primeiras a ter a sala cheia, adiantara.
Jordan considerara difícil acreditar em tal coisa.
- A sério?
- Ah! sim. Os alunos não se importam com o seu sotaque e devem estar atentos a todas as palavras que profere porque nunca faltam às suas aulas.
Ah! agora Jordan já percebia. O homem dava boas notas.
A assistente mencionara ainda que ele se aposentara antecipadamente, mas tinha esperança de que o professor reconsiderasse e voltasse a dar aulas.
- É difícil arranjar bons professores - comentara. - E, com os salários que lhes são pagos, muitos deles não conseguem aposentar-se tão cedo. Na verdade, o professor MacKenna deve ter POUCO mais de 40 anos.
37
Era manifesto que Lorraine não se importava grandemente de divulgar informações de caráter pessoal acerca de um antigo professor da faculdade e nem sequer perguntara a Jordan porque estava ela tão interessada em tais informações. É certo que Jordan havia mentido e dissera à mulher que era uma parente afastada do professor, mas Lorraine não exigira qualquer prova desse facto.
Era faladora, disso não restavam dúvidas.
- Aposto que julgava tratar-se de um homem muito mais velho, não é assim?
- É verdade.
- Também eu o julgava - admitira Lorraine. - Posso procurar a sua data de nascimento, se o desejar.
Santo Deus, a mulher era mesmo prestável!
- Não é necessário - explicara Jordan. - Você disse que ele está oficialmente aposentado. Julguei que havia pedido uma licença prolongada.
- Não, reformou-se - insistira Lorraine - Ficaríamos radiantes se ele regressasse. No entanto, duvido de que volte a dar aulas, porque recebeu uma grande herança - continuou. - Não esperara nada receber tal coisa e todo aquele dinheiro fora uma surpresa para ele. De imediato, decidiu comprar uma propriedade longe do bulício da cidade. Andava a fazer pesquisas acerca da história da sua família e desejava dispor de um lugar onde pudesse trabalhar em paz e sossego.
Agora, ao olhar em volta, Jordan calculava que o professor encontrara essa tal paz e sossego. Não havia vivalma à vista e ela começava a pensar que Serenity seria um lugar tão inóspito como a paisagem que a rodeava.
Passada meia hora, o motor arrefeceu e Jordan voltou a fazer-se à estrada. Já que não havia ar condicionado, abriu todas as janelas; a deslocação de ar abrasador parecia fustigar-lhe o rosto como se fosse exalado por uma fornalha. O terreno era tão plano com um dos seus soufflés, mas quando, depois de descrever uma longa curva, deparou com cercas de cada lado da estrada, pareceu-lhe que entrava em zona menos desolada. Pelo menos, havia sinais de ser habitada. Uma enferrujada cerca de arame farpado que parecia implantada havia um século circundava pastagens vazias. Uma vez que não se via nem sequer uma planta cultivada, deduziu que a cerca se destinava a impedir a fuga de cavalos e de gado.
38
Os quilómetros foram passando, mas o cenário pouco se alterou. Por fim galgou duas pequenas subidas e a estrada deixou de ser reta. Depois de descrever uma curva pronunciada, divisou uma torre ao longe. À beira da estrada, um sinal anunciou-lhe que Serenity se achava a pouco mais de um quilómetro. Enquanto descrevia a curva, pegou no telemóvel e verificou que já dispunha de rede. A estrada entrou num declive para em seguida trepar uma colina. Ali, à sua frente, estendia-se a parte oriental de Serenity.
Parecia um lugar esquecido por Deus.
O limite de velocidade foi reduzido para quarenta quilómetros por hora e Jordan passou por umas quantas casitas. No pátio dianteiro de uma delas, havia uma furgoneta enferrujada e sem pneus, apoiada em suportes de cimento. No pátio lateral de outra casa, pôde ver uma máquina de lavar abandonada. A pouca relva que se via entre as ervas daninhas crescia ao deus-dará e apresentava-se crestada pelo sol. No quarteirão seguinte, passou por uma estação de serviço abandonada com uma bomba de gasolina ainda de pé. Nas paredes laterais dos prédios desertos cresciam trepadeiras selvagens e Jordan nem quis imaginar que bicharocos havia lá dentro.
- Que estou eu a fazer aqui? Nunca devia ter vendido a empresa - murmurou Jordan para si própria.
O orgulho. Fora isso que a levara àquela aventura ridícula. Não quisera que Noah Clayborne fizesse pouco dela.
- Zona privada de conforto - voltou a murmurar. - Que há de mal em querer viver num mundo confortável?
Pensou em atravessar Serenity e guiar até à próxima cidade importante, devolver o carro de aluguer com algumas palavras de reclamação e apanhar o primeiro avião com destino a Boston. Só que não podia fazê-lo. Prometera a Isabel que se encontraria com o professor e depois lhe telefonaria para lhe transmitir tudo o que houvesse averiguado.
Tinha de admitir que também ela própria sentia uma certa curiosidade em saber algo mais acerca dos seus antepassados. Não acreditava minimamente que todos os seus antepassados Buchanan tivessem sido selvagens e queria prová-lo. Também pretendia saber, antes de mais, o que havia causado o antagonismo entre os "Uchanan e os MacKenna. E que história era aquela do tesouro? Saberia o professor sequer de que tesouro se tratava?
39
Jordan enfiou pela rua principal. As casas pareciam habitadas, mas os jardins encontravam-se castanhos e crestados e as persianas, corridas.
Serenity era tão acolhedora como o Purgatório.
A luz vermelha do painel começou a piscar, indicando que o motor voltara a ficar sobreaquecido. Descobriu uma pequena loja de conveniência, um quarteirão mais à frente, e enfiou o carro no parque. O calor era tanto que lhe parecia ter as costas coladas ao assento. Estacionou à sombra, desligou o motor para que pudesse arrefecer e pegou na agenda em que anotara o número de telefone do professor, marcando o número no telemóvel.
Ao fim de quatro toques, chegou ao voice mail. Disse o seu nome e o seu número e já estava a enfiar o telemóvel na mala quando ele tocou. O professor devia estar a observar os números das chamadas que recebia para só atender as que lhe interessavam.
- Miss Buchanan? Fala o professor MacKenna. Estou com pressa. Quando quer encontrar-se comigo? E se jantássemos juntos? Sim, jantar. Encontre-se comigo no Branding Iron. É na Rua Três. Basta virar para ocidente e dará com ele. É bom. Do outro lado da rua há um bom motel. Pode fazer o check-in, refrescar-se e encontrar-se comigo às seis. Não chegue atrasada.
Desligou antes que Jordan pudesse dizer fosse o que fosse. Parecia estar nervoso, talvez até mesmo preocupado. Jordan abanou a cabeça. Havia qualquer coisa naquele homem que a fazia sentir-se pouco à vontade. Não sabia ao certo se era simplesmente por ser um homem nervoso, sempre a olhar para trás, por cima do ombro, como se estivesse à espera de que alguém lhe saltasse em cima, ou se era apenas alguma coisa que a incomodava, algo que não conseguia definir com precisão. Fosse qual fosse o motivo, a sua filosofia era muito simples: mais valia prevenir do que remediar, por isso só se encontraria com o professor num lugar público.
Um lugar com ar condicionado, acrescentou mentalmente. Estava cheia de calor, a transpirar e a fazer um grande esforço para não se sentir de rastos. "Pensamentos positivos", ordenou a si própria. Depois de despir a roupa que se lhe colava ao corpo e de tomar um bom duche, iria sentir-se muito melhor.
Continuava a preferir continuar a conduzir de modo a regressar a Boston o mais cedo possível, mas isso estava fora de questão.
40
O carro corria sério risco de se avariar na estrada e só de imaginar-se sozinha e abandonada a meio da noite sentiu um calafrio. Não, essa hipótese estava definitivamente fora de questão. Além disso, fizera uma promessa a Isabel e não ia faltar à sua palavra. Por tudo isso, iria encontrar-se com o professor maluco, falar com ele durante o jantar acerca das suas pesquisas e arranjar fotocópias da documentação que possuísse, saindo de Serenity logo ao raiar da manhã.
Bom, agora já se sentia melhor. Estava decidida e dispunha de um plano.
- Oh! não. - exclamou.
O plano desmoronou-se e caiu por terra, assim que desviou para o parque de estacionamento do motel e deu de caras com o malfadado antro que lhe fora recomendado pelo professor MacKenna. Era com certeza gerido pelo próprio Norman Bates (1).
O caminho de acesso era um amontoado de cascalho que conduzia a cada um dos quartos. Havia oito, ao todo, comprimidos uns contra os outros como caixotes num armazém. A pintura branca encontrava-se lascada e a única janela de cada um encontrava-se suja e encardida. Nem sequer conseguia imaginar como os quartos seriam horrorosos. Até os percevejos deviam fugir deles, por estarem habituados a melhores lugares.
No entanto, podia suportar aquilo durante uma noite. Não seria assim?
- Não, não é - disse, em voz alta.
Com certeza poderia encontrar algo melhor, um lugar onde não tivesse medo de tomar um duche.
Jordan não se considerava mimada nem snobe. Não se importava que um motel estivesse quase em ruínas, mas exigia que fosse limpo e seguro. Aquele lugar não preenchia nenhum desses requisitos básicos. Uma vez que não tinha intenção de passar a noite ali, não precisava de ver os quartos.
Jordan estacionou o carro no parque e pôs a cabeça de fora para examinar o restaurante do outro lado da rua. Cometeu a imprudência de apoiar o braço no rebordo a escaldar do vidro. Deu um salto no assento e retirou precipitadamente o braço.

(1)Proprietário do motel sinistro em que se desenrola a maior parte do filme Psycho, de Atfred Hitchcock. (N. dos T.)
41
O Branding Iron fez-lhe lembrar um comboio, porque o edifício era comprido e estreito, com telhado côncavo. Junto à berma da estrada, via-se um cartaz encimado por uma ferradura de néon. Calculou que devia simbolizar um ferro de marcar gado para corresponder ao nome do restaurante.
Uma vez que já localizara o restaurante, tirou o carro do parque e seguiu em frente pela rua. Tinha quase a certeza de que a empresa de rent-a-car não dispunha de uma sucursal em Serenity, o que significava que tinha de suportar aquela carripana até chegar a uma cidade mais importante; só que a mais próxima devia ficar a mais de cento e cinquenta quilómetros. Decidiu que, mal conseguisse encontrar um motel para passar a noite, entraria em contacto com a empresa de rent-a-car e iria depois à procura de um mecânico para consertar o radiador. E não se esqueceria de comprar uma dúzia de garrafões de água, antes de voltar a sair da cidade. Só de pensar em atravessar aquela vastidão deserta ao volante de um carro avariado ficava com os nervos em franja.
Primeiro, tinha de encontrar um mecânico, disse a si própria. Depois, decidiria. Podia deixar o carro ali e tomar qualquer outro meio de transporte disponível. Devia haver carreiras de camionetas ou comboios ou qualquer outra maneira de sair dali.
Pouco depois, chegou a uma ponte feita de pranchas de madeira com um dístico a anunciar que estava a atravessar Parsons Creek. O riacho não levava uma gota de água, mas, enquanto os pneus faziam ressoar as pranchas de madeira, pôde ler um aviso que proibia a passagem da ponte durante as cheias. Não era coisa que a preocupasse, naquele dia, disse para consigo. O riacho estava tão seco como parecia estar a própria cidade.
No outro lado da ponte havia um dístico pintado de verde em que grandes letras brancas acolhiam os visitantes:

BEM-VINDOS A SERENITY, GRADY COUNTY, TEXAS. POPULAÇÃO: 1968."
Em letras mais pequenas pintadas à mão, lia-se:
"Novas instalações do Bulldogs College de Grady County".

À medida que avançava para leste, as casas tornavam-se cada vez maiores. Parou numa esquina, ouviu o som de crianças que riam e pairavam e virou o carro nessa direção. À sua esquerda, havia uma piscina de bairro. "Finalmente", pensou. Já não se sentia como se estivesse num cemitério. Havia pessoas e barulho, mulheres
42
a apanhar banhos de sol, enquanto os filhos brincavam na piscina e o nadador-salvador, a tostar ao sol escaldante, se encontrava sentado no seu posto de observação, meio a dormir.
Era impressionante a transformação ocorrida entre os dois lugares, depois de ter atravessado a ponte. Daquele lado da cidade, as pessoas regavam os seus jardins. A zona achava-se limpa, as casas bem conservadas e as ruas e os passeios eram novos. Havia patentes sinais de comércio, com lojas abertas de cada lado da rua principal. À esquerda uma loja de cosméticos, uma outra de ferragens e uma agência de seguros e, à direita, um bar e um antiquário. Ao fim do quarteirão, ojaffees Bistro dispunha de mesas e cadeiras no exterior por baixo de um toldo verde e branco, mas Jordan não conseguia imaginar fosse quem fosse disposto a sentar-se ali fora, com tão grande calor.
O sinal na porta dizia ABERTO. As prioridades de Jordan alteraram-se de imediato. O ar condicionado apresentava-se-lhe como um paraíso naquele momento e não menos tentadora era a perspetiva de uma bebida fresca. Mais tarde, trataria de ir à procura de um mecânico e de um motel.
Estacionou o carro, pegou na mala de mão e na maleta com o computador portátil e entrou no bar. O impacto de ar fresco fê-la cambalear. Era uma bênção.
Uma mulher sentada a uma das mesas, a enrolar talheres em guardanapos, ergueu os olhos, quando ouviu a porta abrir-se.
- Já passou a hora de almoço e o jantar ainda não está pronto para ser servido. Se quiser, posso arranjar-lhe um belo copo de chá gelado.
- Muito obrigada. É uma excelente ideia - replicou Jordan.
A casa de banho das senhoras ficava ao fundo. Depois de lavar a cara e as mãos e de passar um pente pelo cabelo, sentiu-se novamente como um ser humano.
Havia dez ou doze mesas com toalhas de xadrez e almofadas a condizer sobre os assentos das cadeiras. Decidiu-se por uma mesa a um canto. Podia ver através da janela, mas não tinha o sol a bater-lhe na cara.
A empregada regressou, passado um minuto, com um copo de chá gelado e Jordan perguntou-lhe se podia facultar-lhe a lista telefónica.
- De que está à procura, minha querida? - perguntou a mulher. - Talvez possa ajudá-la.
43
- Preciso de arranjar um mecânico - explicou Jordan - e um motel apresentável e limpo.
- Nada mais fácil. Só há dois mecânicos na cidade e uma das oficinas está fechada até à próxima semana. A outra, a Lloyds Garage, fica a poucos quarteirões de distância. O homem tem um temperamento um tanto difícil, mas vai conseguir resolver o seu problema. vou buscar a lista para que possa telefonar-lhe.
Enquanto esperava, Jordan tirou da maleta o seu computador portátil e colocou-o sobre a mesa. Na noite anterior, havia tomado algumas notas e elaborado uma lista das perguntas a fazer ao professor e pretendia recapitulá-las.
A empregada trouxe-lhe uma lista telefónica pouco espessa aberta na página em que estava registado o número da Lloyds Garage.
- Já adiantei serviço e telefonei à minha amiga Amélia Ann - anunciou. - Ela gere o Home Away From Home Motel e está a preparar-lhe um quarto para esta noite.
- Foi muito amável - agradeceu Jordan.
- É um local encantador. O marido da Amélia morreu há alguns anos e não lhe deixou nada, nem sequer um tostão de seguro de vida, por isso ela e a filha, a Candy, mudaram-se para o motel e começaram a arranjá-lo. Transformaram-no numa hospedaria muito acolhedora e familiar. Creio que vai gostar de lá ficar.
Jordan marcou o número da garagem no seu telemóvel e foi laconicamente informada, de que não havia ninguém que pudesse ocupar-se do seu carro antes do dia seguinte. O mecânico disse que lhe levasse o automóvel logo ao princípio da manhã.
- Que chatice - disse Jordan, com um suspiro, enquanto desligava o telemóvel.
- Está só de passagem por Serenity ou perdeu-se? - inquiriu a mulher. - Espero não estar a ser indiscreta - apressou-se a acrescentar.
- Não faz mal. Vim encontrar-me aqui com alguém.
- Oh! minha querida. Não é um homem, pois não? Não veio até aqui atrás de um homem, ou veio? Foi isso que eu fiz. Andei atrás dele desde San António, mas foi sol de pouca dura. Tempos depois, desarvorou e deixou-me. - Abanou a cabeça e deu um estalo com a língua. - Agora estou para aqui até arranjar dinheiro suficiente para me ir embora. Ah! é verdade, chamo-me Angela.
44
Jordan declinou o seu nome e apertou a mão da mulher.
- Muito prazer. Não, não vim atrás de um homem. vou encontrar-me com um homem, ao jantar, mas por questões de negócios. Ele vai trazer-me uns papéis e prestar-me umas informações.
- Não se trata, então, de nada de romântico.
Jordan lembrou-se do aspeto do professor e quase sentiu um calafrio.
- Não!
- E de onde vem você?
- De Boston.
- Ah, sim? Não tem sotaque, pelo menos não muito pronunciado.
Jordan não poderia dizer se aquele comentário era bom ou mau, mas Angela estava a sorrir. Tinha um sorriso encantador e parecia dotada de um temperamento afável. Nos tempos de juventude, fora decerto grande apreciadora de sol, calculou Jordan, porque tinha vincos marcados no rosto e a sua pele parecia-se um pouco como couro curtido.
- Há quanto tempo vive em Serenity?
- Há perto de dezoito anos.
Jordan pestanejou. Aquela mulher andava a poupar havia dezoito anos e ainda não conseguira o suficiente para regressar à terra natal?
- Onde vai encontrar-se com esse homem de negócios para jantar? - perguntou Angela. - Não é obrigada a dizer-mo. Só lhe pergunto por mera curiosidade.
- Vamos jantar no Branding Iron. Já lá foi?
- Oh! sim - retorquiu Angela -, mas a comida não é tão boa como a que servimos aqui, e fica situado na parte má da cidade. O restaurante é uma referência local, por isso é que continua aberto. Até faz bom negócio aos fins de semana. Depois de escurecer, não é um sítio seguro. O seu homem de negócios deve residir na cidade ou então foi alguém daqui que lhe falou do Branding Iron. Ninguém que não seja de Serenity saberia sequer da existência do restaurante.
- Ele chama-se MacKenna - adiantou Jordan. - É professor de História e vai entregar-me os resultados de uma pesquisa que efetuou.
45
- Não o conheço - replicou Angela. - Claro que não conheço todos os habitantes da cidade, mas iria apostar que vive há pouco tempo nestas paragens. - Voltou-se, preparando-se para se afastar, declarando: - vou deixá-la sozinha para que saboreie o seu chá. Toda a gente diz que eu falo demais.
Jordan compreendeu que a empregada estava à espera de que ela expressasse o seu desacordo.
- Não acho.
Angela virou-se, com um grande sorriso na cara.
- Eu também não. Sou apenas cordial, nada mais. É uma pena que não possa comer aqui. O Jaffee está a preparar a sua especialidade com camarões.
- Creio que o professor sugeriu aquele restaurante por ficar em frente do motel que me recomendou.
Angela ergueu as sobrancelhas.
- O Lux? Ele recomendou-lhe o Lux?
Jordan sorriu.
- É assim que se chama o motel?
A empregada assentiu com a cabeça.
- Costumava ter um velho letreiro luminoso. A palavra "luxúria" acendia e apagava durante toda a noite. Agora só as três primeiras letras continuam a acender-se e é por isso que as pessoas lhe chamam Lux. Fazem bom negócio à noite... Todas as noites, para ser mais precisa. - A voz de Angela reduziu-se até não passar de um sussurro, ao acrescentar: - O sujeito que gere o hotel cobra à hora. Não sei se está a compreender...
Devia ter julgado que Jordan não compreendera, porque se apressou a explicar:
- É uma casa de meninas.
- Compreendo - retorquiu Jordan, assentindo com a cabeça para que a empregada não sentisse a necessidade de lhe explicar o que se entendia por "meninas".
Angela pôs a mão na anca e inclinou-se sobre a mesa, mantendo a voz baixa.
- E, se quiser a minha opinião, é também um lugar muito perigoso, em caso de incêndio. - Lançou uma rápida mirada para a esquerda e para a direita, a fim de se assegurar de que ninguém entrara no restaurante sem que ela tivesse dado conta e pudesse ouvir o que dizia, e adiantou: - Já devia ter sido demolido há muitos
46
anos, mas é o J.D. Dickey quem dirige o estabelecimento, e ninguém se atreve a meter-se com ele. Ao que julgo, vive à custa de algumas das "meninas", se quer saber a minha opinião. O J.D. é um cipo que mete medo. Tem uma maldade do tamanho da cidade.
Angela era um manancial de informação e não tinha qualquer pejo em contar tudo quanto sabia. Jordan estava fascinada. Quase invejou a franqueza de Angela e a forma ingénua e cordial como expressava o que sabia. Jordan era o oposto. Mantinha aferrolhados os seus pensamentos. Apostava que Angela era capaz de dormir durante toda a noite. Jordan já não desfrutava de uma noite inteira de sono havia mais de um ano. A sua mente estava sempre a fervilhar e havia noites em que andava de um lado para o outro no seu apartamento, preocupada com os problemas do momento. Quando rompia a manhã, nenhum desses problemas pareciam assim tão importantes, mas, a meio da noite, assumiam proporções descomunais.
- Porque é que os bombeiros ou a polícia não fecharam ainda o motel? Se há um tal grave risco de incêndio... - disse Jordan, pensando em voz alta.
- Há, sim, não tenha dúvida.
- A prostituição é ilegal no Texas.
- Pois é - concordou Angela, antes que Jordan pudesse prosseguir -, mas isso pouco importa. Você não sabe como as coisas se passam em Serenity. De cada lado do Parsons Creek, a cidade pertence a jurisdições distintas, que são geridas de forma tão diferente como a noite do dia. Neste preciso momento, você está aqui em Grady County, mas o xerife de Jessup County, do outro lado da ponte, é um daqueles tipos que julga poder fechar os olhos a tudo quanto se passa na sua jurisdição. Compreende o que estou a dizer-lhe? "Vive e deixa viver", é o seu lema. Se quer saber a minha opinião, ele tem medo de enfrentar o J.D. Eles são irmãos, está a ver?
Jordan acenou com a cabeça.
- E quanto a si? Tem medo desse homem?
- Minha querida, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso sabe que deve ter medo dele.
47
CAPÍTULO SEIS

J.D. Dickey era o fanfarrão da cidade. Dispunha de um dote congénito: não tinha de fazer grandes esforços para conseguir que as pessoas o odiassem. Estabelecer a sua reputação fora tarefa que o deliciara, e tinha por adquirido que alcançara o seu objetivo, quando passeava pela rua principal de Serenity e todos se apressavam a afastar-se do seu caminho. A expressão das pessoas era bem reveladora. Tinham medo dele e, no espírito de J.D. o medo significava o poder. O seu poder.
O seu nome completo era Julius Delbert Dickey Jr. No entanto, pouco ligava ao seu nome, considerando-o por demais efeminado para corresponder à imagem de férrea dureza que desejava transmitir; por isso, quando ainda andava no liceu, começara a instruir os habitantes da sua cidade natal para que o tratassem pelas iniciais. Os poucos que haviam resistido tinham sido submetidos à sua forma especial, se bem que pouco sofisticada, de produzir nos outros uma alteração de comportamento. Espancara-os sem dó nem piedade.
Havia dois irmãos Dickey e ambos tinham sido criados em Serenity. J.D. era o primogénito. Randall Cleatus Dickey chegara dois anos mais tarde.
Nenhum dos irmãos via o pai havia mais de dez anos, que estava numa prisão federal do Kansas por vinte e cinco anos, como consequência de um assalto à mão armada que dera para o torto, como ele próprio explicara ao juiz que o havia condenado. Olhando para trás, dissera ao juiz, percebia que, afinal de contas, talvez não devesse ter alvejado aquele guarda. O homem estava só a fazer o seu trabalho.
48
A mãe dos rapazes, Sela, só ficara junto dos filhos até J.D. e Randy haverem completado o curso secundário. Depois, decidira que estava farta de ser mãe. Cansada, consumida, farta de tentar evitar que os turbulentos filhos se metessem em sarilhos, ao aperceber-se de que falhara irremediavelmente nessa tarefa emalara as roupas e esgueirara-se da cidade, a meio da noite. Os rapazes calcularam que não iria regressar tão cedo porque ela levara consigo toda a sua grande provisão de laca Extra Super Hold Aqua Net. Os produtos para o cabelo eram o único luxo da mãe e ela tinha sempre consigo cinco ou seis embalagens.
Não sentiram a sua falta e muito menos a das suas crónicas queixas de ter de governar-se sem recursos e, uma vez que J.D. já era, na verdade, quem punha e dispunha na família, a vida de ambos não se alterou grandemente, depois da partida da mãe. Haviam crescido na miséria e continuavam na miséria, mas J.D. estava firmemente decidido a alterar essa situação. Tinha grandes projetos, mas esses projetos exigiam dinheiro. Muito dinheiro. Queria ter um rancho. Deitara o olho a uma bela porção de terreno, não muito grande, situado a quase cinquenta quilómetros a oeste da cidade. A pequenez da propriedade, com os seus duzentos hectares, tinha de ser entendida face aos padrões do Texas, mas J.D. calculara que, uma vez firmemente estabelecido como rancheiro, seria capaz de se apoderar de todas as terras em redor. O rancho que queria tornar seu dispunha de terra de excelente qualidade com diversos locais onde o gado que iria comprar podia ir beber, assim que arranjasse maneira eficaz de deitar a mão a algum dinheiro. Também incluía um bom lago para a pesca e o seu irmão Randy adorava pescar.
Sim, estava decidido, ia ser cowboy. Tinha a impressão de já estar a meio caminho de o ser. Possuía as botas e o chapéu e quando frequentara o liceu trabalhara dois verões seguidos num rancho.
O ordenado era uma miséria, mas a experiência adquirida fora inestimável.
O sonho de J.D. teve de ficar à espera durante cinco anos sujeitos a bom comportamento. Matou um homem numa rixa de tar e apanhou cinco anos de prisão por homicídio involuntário. Havia circunstâncias atenuantes. Segundo depuseram as testemunhas, o estranho é que havia dado início à luta, infligindo a J.D. diversos
49
ferimentos profundos com a sua navalha de ponta e mola, antes de J.D. o atingir com um potente murro. Não quisera tirar a vida ao homem, mas o soco fora violento e, por má sorte, o estranho fraturara o crânio ao cair.
J.D. gabara-se ao irmão de que teria sido condenado a mais anos atrás das grades se, ao abandonar a sala do tribunal, não houvesse lançado olhares assassinos a cada um dos jurados.
Randy vira o incidente por outro prisma. Na realidade, o encarceramento do irmão abrira-lhe os olhos e apercebera-se pela primeira vez de que o verdadeiro poder ficava do lado certo da lei. Por isso, enquanto J.D. cumprira a sua pena, Randy convertera-se num cidadão respeitador da lei e, passados poucos anos, conseguira influenciar um número suficiente de pessoas para ser eleito xerife de Jessup County.
J.D. não podia ter ficado mais contente com o feito do irmão. O novo cargo de Randy e a posição que acabara de alcançar na comunidade eram proezas dignas de serem comemoradas. Afinal de contas, ter um xerife na família podia vir a revelar-se muito útil.
50
CAPÍTULO SETE

Jordan fez o seu registo como hóspede no Home Away From Home Motel e foi-lhe atribuído um quarto espaçoso que dava para as traseiras. A porta dispunha de uma forte fechadura dupla. No aposento, limpo e quadrangular, havia uma cama de casal fronteira à porta e uma secretária com duas cadeiras encostadas à parede, em frente da janela. Reparou que não havia ficha para o computador portátil nem dispositivo de acesso à Internet, mas podia passar sem isso durante uma noite.
A amiga de Angela, Amélia Ann recebeu-a como hóspede de honra. Trouxe-lhe sabõezinhos suplementares e toalhas felpudas acabadas de sair da máquina de secar roupa.
Depois de tirar os seus pertences da mala, Jordan despiu-se e tomou um revigorante duche frio. Lavou e secou o cabelo, vestiu uma saia e uma blusa e acabou de arranjar-se a tempo de partir para o Branding Iron. Já não se recordava da última vez em que havia jantado às seis horas, mas, como não comera nada desde o pequeno-almoço, sentia fome.
O jantar foi memorável... mas não pelas melhores razões. Como veio a revelar-se, o professor MacKenna tinha o dom de fazer perder o apetite a qualquer pessoa.
Embora ainda não passasse das seis, o parque de estacionamento do Branding Iron estava cheio. À porta, foi recebida por uma empregada que a conduziu a uma espécie de cabina situada no fundo da sala de jantar.
- Temos mesas melhores, mas o sujeito com quem vai encontrar-se exigiu privacidade. vou mostrar-lhe onde ele se encontra. Não escolha o prato do peixe esta noite, pois não cheira lá muito bem
51
- sussurrou, enquanto lhe mostrava o caminho. - Sou eu quem vai servi-la - acrescentou com um sorriso.
Quando Jordan chegou junto da mesa, o professor MacKenna não se levantou nem sequer se dignou dirigir-lhe um aceno de cabeça, enquanto se sentava à sua frente. Tinha a boca cheia de pão e devia ter esperado até o engolir, antes de falar, mas não o fez. As palavras que proferia tiveram de circundar um pedaço de pão do tamanho de uma bola de golfe, metade dentro e metade fora da boca.
- Chegou atrasada - comentou com a voz deturpada pelo pão.
Uma vez que só passavam alguns minutos da hora combinada, Jordan não sentiu necessidade de pedir desculpa ou responder a tão ridícula crítica. Pegou no guardanapo de linho, desdobrou-o e colocou-o no regaço. Reparou que o guardanapo do professor permanecia sobre a mesa. Tentou desesperadamente não olhar para a boca do homem, enquanto ele mastigava. Se não fosse tão ordinário, poderia considerar-se cómico.
Sentia o impulso quase incontrolável de sair dali disparada. Que diabo estava a fazer naquele sítio? Antes da conversa que tivera com Noah não estava feliz e contente? Agora, pelo contrário, ali estava a jantar com o professor Malcriado. "Bonito serviço", pensou. Que encantadora aventura.
"Bom, mudança de planos", disse a si própria. "Acaba com este jantar tão depressa quanto possível e com o mínimo de aborrecimento, pega nos papéis das pesquisas e sai daqui para fora."
- Já encomendei o meu jantar - disse o professor. - Dê uma vista de olhos à ementa e escolha qualquer coisa.
Jordan abriu a ementa, encomendou o primeiro prato que lhe despertou a atenção, frango com molho picante, e água gaseificada. A empregada trouxe-lhe a bebida, lançou-lhe um olhar cúmplice acompanhado de uma mirada significativa em direção ao professor e apressou-se a rumar a outra mesa, fazendo de conta que não tinha reparado no cesto do pão vazio que MacKenna brandia na mão.
Jordan esperou que a boca do professor ficasse vazia, antes de lhe dirigir a palavra.
- Como professor de História - começou - deve decerto saber que o clã dos Buchanan não podia ser inteiramente mau. Ao
52
longo dos séculos, estou certa de que... - Interrompeu-se ao vê-lo abanar energicamente a cabeça. Perguntou-lhe: - Acredita realmente que foram todos pessoas horrorosas?
- Acredito, sim. Foram desprezíveis.
- Dê-me um exemplo de alguma coisa desprezível que os Buchanan tenham feito aos imaculados MacKenna - desafiou-o Jordan.
A atitude e o comportamento do professor modificaram-se no momento em que começou a falar das suas pesquisas. Graças a Deus, não estava a mastigar quando encetou a sua lição de história... a sua facciosa e distorcida lição de história.
- Em 1784, o excelente Laird Ross MacKenna enviou a sua filha única, Freya, para o clã Mitchell. Estava prometida em casamento ao filho mais velho de Laird Mitchell, que, segundo toda a gente sabia, se tornaria Laird (1) assim que o pai morresse. Segundo revelam os documentos de que disponho, ocorreu um terrível ataque durante a viagem para a fortaleza dos Mitchell.
- Os Buchanan atacaram? - perguntou Jordan.
O professor abanou a cabeça.
- Não, não foram os Buchanan. O ataque foi efetuado pelo clã MacDonald. Laird MacDonald opunha-se à aliança entre os MacKenna e os Mitchell porque acreditava que os tornaria demasiado poderosos. A emboscada verificou-se nas margens de um grande lago e, durante a escaramuça, a formosa donzela Freya caiu à água.
Ficou à espera da reação de Jordan e esta, perguntando a si própria como ia ele imputar a morte aos Buchanan, inquiriu:
- E afogou-se?
- Não e está registado que sabia nadar, mas começou a chover e o lago ficou muito agitado. De súbito, ouviu-se um grande grito e um dos MacKenna olhou para o outro lado do lago a tempo de ver um guerreiro Buchanan retirar Freya da água. A jovem estava ainda viva, porque agitava os braços.
- Então, trata-se de uma história boa para os Buchanan - comentou Jordan. - Acaba de dizer-me que foi um guerreiro Buchanan quem salvou a vida dessa rapariga.

(1) Laird: proprietário de grande extensão de terreno na Escócia, muitas vezes chefe de um clã. (N. dos T.)
53
O professor carregou o sobrolho.
- A jovem Freya nunca mais foi vista nem dela se ouviu falar.
- Que lhe aconteceu?
- O Buchanan apoderou-se dela. Aí tem o que aconteceu. Viu-a, desejou-a e ficou com ela.
Jordan pensou que o professor estava à espera de que ela se mostrasse chocada e sabia que não iria gostar se soltasse uma gargalhada.
- Houve uma só testemunha desse rapto?
- Uma testemunha idónea.
- Um MacKenna.
- Sim.
- Então, tem de admitir que a história pode ter sido empolada de forma a os Buchanan serem considerados responsáveis.
Antes que ele pudesse contestar aquela conclusão, perguntou:
- Pode dar-me outro exemplo... com provas documentais?
- Terei muito gosto em fazê-lo - retorquiu o professor.
Por pouca sorte, chegara entretanto a sua salada e ele começou a nova história enquanto enfiava o garfo no prato. Jordan fixou os olhos na mesa para não ter de contemplar aquele espetáculo.
Enquanto cravava o garfo nas folhas de alface, o homem declarou:
- Consulte os seus livros de História e verá que, em 1691, o rei Guilherme II ordenou que todos os chefes de clã assinassem um compromisso de fidelidade em 1 de janeiro de 1692.
"Os MacKenna constituíam o clã mais venerado e respeitado de toda a Escócia. William MacKenna, como chefe do clã, no mês de novembro, encetou viagem para Inverary com um grupo de homens do seu clã, para assinar o compromisso. Durante a viagem foi abordado por um mensageiro que lhe contou que o rei estava a introduzir alterações no compromisso e que devia regressar a casa até receber nova ordem. Quando os MacKenna chegaram à sua fortaleza, descobriram que todas as cabeças de gado haviam sido dispersadas e muitas das casas incendiadas. Quando conseguiram restabelecer a ordem no clã, o prazo estabelecido pelo rei achava-se já esgotado.
"Foi então que vieram a saber que o mensageiro tinha mentido e não fora enviado pelo rei. O compromisso de fidelidade não havia sido adiado.
O professor lançou-lhe outro dos seus olhares carrancudos. Santo Deus! Já sabia onde ia parar aquela história.
54
.- E? - inquiriu. - Que aconteceu então?
- Vou dizer-lhe o que aconteceu. - O homem pôs de lado o garfo e inclinou-se para a frente. - O rei Guilherme ficou furioso por os MacKenna haverem desobedecido à sua ordem. Para Os castigar, obrigou-os a pagar um pesado tributo e a ceder-lhe uma boa parte das suas terras. Pior ainda, caíram em desgraça perante a Casa Real, situação que perdurou durante décadas a fio.
Acenando com a cabeça, pegou novamente no garfo e cravou-o numa rodela de tomate.
- Não há dúvidas acerca de quem enviou o mensageiro e lançou o caos nas propriedades dos MacKenna.
- Deixe-me adivinhar: foram os Buchanan.
- Tem razão, minha querida. Os desprezíveis Buchanan.
O professor elevou o tom de voz e foi quase aos gritos que acrescentou: "Os desprezíveis Buchanan." Os outros clientes do restaurante observavam-nos e escutavam o que diziam. Jordan não se importava que ele quisesse armar um escândalo. Estava decidida a enfrentá-lo.
- Houve provas concretas de que foram os Buchanan que enviaram o mensageiro e atacaram as terras dos MacKenna?
- Não há necessidade de provas - ripostou o professor.
- Sem provas bem documentadas, tudo isso não passa de um boato ou de uma história do arco da velha - acrescentou Jordan.
- Os Buchanan eram o único clã suficientemente ardiloso para querer desacreditar os venerados MacKenna.
- Isto é o que diz um MacKenna. Já lhe ocorreu alguma vez que talvez a história possa ter sido deturpada e os Buchanan tenham em determinada altura sido atacados pelos MacKenna?
O aspeto perverso que o rosto do professor assumiu revelou a Jordan que havia tocado num ponto sensível. Bateu com o punho na mesa e exclamou:
- Eu sei o que estou a dizer. Não se esqueça de que foram os Buchanan quem deu início a tudo aquilo. Foram eles que roubaram o tesouro dos MacKenna.
- E em que consistia esse tesouro, mais precisamente? - inquiriu Jordan. Fora esse assunto que, desde o início, despertara o seu interesse.
- Algo de muito valioso e que pertencia de pleno direito aos MacKenna - respondeu o homem. Bruscamente endireitou-se na
55
cadeira e galhofou: - É disso que anda atrás, não é verdade? Julga que consegue descobrir o tesouro... Talvez até para ficar com ele. Pois posso assegurar-lhe que tem estado escondido há séculos e que, se eu não o descobri, não vai ser você a dar com ele. Todas as atrocidades cometidas pelos Buchanan, geração atrás de geração, obscureceram a origem do antagonismo. É bem provável que nunca ninguém o venha a descobrir.
Jordan não sabia porque o professor a irritava daquela maneira, mas sentiu-se subitamente determinada a defender o bom nome da sua família.
- Sabe, por acaso, qual a diferença entre a realidade e a fantasia, professor?
A conversa tornou-se mais acalorada. Cada um mal conseguiu impedir-se de falar aos berros, e Jordan chegou ao ponto de se servir de algumas palavras pouco delicadas para qualificar o clã do professor.
A discussão cessou logo que chegaram os pratos que haviam encomendado. Jordan ficou quase abismada ao ver o grande naco de carne quase crua que foi colocado à frente de MacKenna. A seu lado havia uma gigantesca montanha de batatas cozidas. Em comparação, o seu minúsculo prato de frango parecia uma comida de criança. O professor baixou a cabeça e não voltou a levantá-la até haver devorado a carne e as batatas. Quando acabou, não restava no prato nem um só resto de gordura ou de cartilagem.
- Quer mais pão? - perguntou-lhe Jordan, calmamente.
Em resposta, o homem empurrou na sua direção o cesto vazio.
Jordan conseguiu chamar a atenção da empregada e, com delicadeza, pediu-lhe mais pão. Pela expressão assustada da rapariga, Jordan deduziu que ela havia assistido à discussão e sorriu para lhe assegurar de que tudo estava bem.
- O senhor tem grande paixão pelo seu trabalho - elogiou-o Jordan. Compreendera que, se não começasse a pô-lo mais bem-humorado, o homem era capaz de se ir embora sem lhe mostrar o resultado das suas pesquisas e, nesse caso, aquela viagem teria sido uma completa perda de tempo.
- E você admira a minha dedicação - respondeu ele, lançando-se de imediato noutra história acerca dos nefandos Buchanan. Só se interrompeu pelo tempo suficiente para escolher a sobremesa e, quando esta chegou, já havia recuado até ao século XIV.
56
Tudo no Texas é enorme, inclusivamente a comida. Jordan ficou a olhar para o cimo do crânio do professor, enquanto este se dedicava a deglutir uma monstruosa fatia de tarte de maçã acompanhada por duas colheradas de gelado de baunilha.
Uma empregada deixou cair um copo. O professor olhou em redor e apercebeu-se de que a sala ficara cheia de gente. Pareceu encolher-se dentro da cabina, e manteve os olhos fixos nos que entravam e saíam.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou Jordan.
- Não gosto de multidões.
MacKenna sorveu o seu café e acrescentou:
- Registei alguns dados numa pen. Encontra-se numa das caixas destinadas à Isabel. Sabe o que é uma pen?
Antes que Jordan pudesse responder, o homem prosseguiu:
- Tudo o que a Isabel tem a fazer é enfiar a pen no seu computador. É como uma disquete e pode armazenar um grande volume de dados.
O tom condescendente do professor teve o condão de a irritar sobremaneira.
- Farei o necessário para que chegue às mãos da Isabel - afirmou.
O homem disse-lhe o preço da pen e acrescentou.
- Presumo que você ou Miss MacKenna me irão reembolsar.
- Fá-lo-ei eu própria.
Tirou do bolso um recibo e ficou a olhar para ela, obviamente à espera de ser reembolsado naquele preciso instante. Por isso, Jordan tirou da carteira o dinheiro necessário e entregou-lho. O homem não era dado a confiar nos outros. Contou o dinheiro, antes de o enfiar na própria carteira.
- Quanto às minhas pesquisas.... Tenho três grandes caixas. Falei longamente com a Isabel e, contra as minhas convicções, acabei por resolver consentir que você faça fotocópias do material que reuni. A Isabel assegurou-me que assume inteira responsabilidade, por isso vou confiar na sua integridade, como MacKenna que é. Se faltar alguma coisa, darei por isso. Tenho uma memória fotográfica. Tudo quanto leio, fica registado aqui dentro - Fez uma pausa para bater na testa. - Lembro-me dos nomes e das caras das pessoas que encontrei há dez ou vinte anos. Está tudo armazenado aqui dentro. O que é importante e o que não é.
57
- De quanto tempo disponho para fazer as cópias? - perguntou Jordan, na esperança de desviar a conversa.
- Tenho andado muito ocupado a preparar-me para a viagem. vou partir mais cedo do que a princípio havia planeado. Você tem de ficar em Serenity e fazer as suas cópias aqui. Não deve tomar-lhe mais de dois dias. Ou talvez três - admitiu.
- Há na cidade alguma loja de fotocópias?
- Não creio - replicou o professor -, mas existe uma fotocopiadora no supermercado, e estou certo de que há outras em mais lojas.
O seu irmão Zachary sempre conseguira ser grosseiro para com ela. Sabia fazê-lo muito melhor do que qualquer um dos outros irmãos, mas naquela noite o professor usurpara a Zachary o título de rei da grosseria.
MacKenna limpou a boca com o guardanapo, que havia ficado dobrado em cima da mesa durante toda a refeição, e saiu disparado da cabina.
- Quero chegar a casa antes que caia a noite.
A noite não ia cair senão daí a uma hora, pelo menos.
- Vive longe daqui?
- Não - respondeu ele. - Encontro-me consigo no carro para proceder à transferência das caixas. Vai ter muito cuidado com elas? A Isabel elogiou-a bastante e confio no que ela me disse.
Dez minutos mais tarde, a conta do restaurante estava paga, as caixas haviam sido transferidas para o carro de Jordan e esta ficara livre do professor, pelo menos por agora.
Sentiu-se aliviada.
58
CAPÍTULO OITO

Na manhã seguinte, Jordan levantou-se cedo. Levou o carro até à Lloyds Garage, estacionou-o e ficou à espera de que a oficina abrisse.
Tinha esperança de que o automóvel ficasse arranjado para ir nele até ao supermercado em que, segundo lhe dissera o professor, havia uma fotocopiadora. Se tudo corresse bem, era possível que conseguisse copiar uma das caixas e talvez até metade da outra. Duas das caixas estavam cheias até ao cimo e felizmente o professor não escrevera de ambos os lados da folha porque a tinta de que se servira em algumas delas havia passado para o outro lado.
As portas da garagem abriram-se dez minutos depois das oito horas. Depois de levantar o capô e de dar uma vista de olhos ao motor durante trinta segundos, o mecânico, um homenzarrão abrutalhado mais ou menos da sua idade, encostou-se ao guarda-lamas, cruzou os tornozelos e mirou-a, de modo arrepiante, dos pés à cabeça, enquanto limpava as mãos num oleoso pedaço de desperdício.
Devia ter pensado que lhe escapara qualquer coisa na sua mirada porque voltou a olhá-la de cima a baixo, uma e outra vez. Meu Deus! O carro não lhe merecera tanta atenção.
Tinha de suportar aquele cretino por ser o único mecânico disponível na cidade até à próxima segunda-feira.
- Tenho a certeza de que há uma fuga no radiador - adiantou ela. - Que acha? Pode consertá-lo?
O mecânico tinha o nome - Lloyd - impresso numa tira de fita adesiva colada no bolso da camisa e cujas pontas se achavam
59
reviradas. Virou-se, depositou o desperdício sujo numa estante próxima e voltou-se novamente para ela.
- Se posso consertá-lo? - perguntou, com voz arrastada. - Depende. O que aqui temos é flagrante, está a ver?
- E o quê?
- Notório e salivante, compreende?
Era óbvio que Lloyd gostava de empregar palavras difíceis sempre que podia, embora aquelas não fizessem qualquer sentido. Salivante? Existiria tal palavra?
- Mas pode consertá-lo?
- Está quase irreparável, minha querida.
"Querida? Não faltava mais nada!" Contou em silêncio até cinco, na tentativa de manter o controlo de si própria e não explodir. Não fazia sentido virar contra si o homem que podia pôr o carro a trabalhar.
Lloyd baixara o olhar até aos seus pés e estava de novo a dirigi-lo para a parte superior do corpo, quando disse:
- O que aqui temos é um caso muito sério.
- Ah, sim? - Determinada a aguentar, por muito irritante que o homem fosse, Jordan assentiu com a cabeça. - Disse que era quase irreparável.
- Isso mesmo. Quase.
Jordan cruzou os braços e esperou que o homem terminasse outro exame aprofundado das suas pernas. Naquele momento, já devia conhecê-las de cor.
- Importa-se de explicar o que quer dizer com isso?
- O seu radiador tem uma fuga.
Jordan sentiu-se prestes a gritar. Já dissera aquilo ao homem.
- É provável que consiga repará-lo temporariamente, mas não posso garantir que aguente por muito tempo - continuou Lloyd.
- Quanto tempo levará a consertá-lo?
- Depende do que houver por baixo do capô. - Arqueou as sobrancelhas de modo significativo e, vendo que ela não reagia de imediato, acrescentou: - Percebe o que quero dizer?
Jordan percebera perfeitamente o que ele queria dizer. Lloyd era um autêntico pervertido. A sua paciência chegou ao fim.
- Já o examinou por baixo do capô? - lançou, exasperada.
60
O seu evidente aborrecimento não pareceu perturbar Lloyd. pevia estar habituado a recusas, pensou ela. Ou isso ou então ficara demasiado tempo à torreira do sol e tinha o cérebro frito.
- É casada, querida?
- Sou o quê?
- Casada. É casada? Tenho de saber a quem vou passar a fatura - explicou o mecânico.
- Passe-a em meu nome.
- Só estou a ser hospitaleiro. Não precisa de gritar comigo.
- Quanto tempo levará a reparação?
- Um dia... talvez dois.
- Muito bem. Nesse caso, vou-me embora - disse Jordan, em tom prazenteiro.
O homem não pareceu perceber até a ver passar por ele e abrir a porta do carro.
- Espere um momento. Vai partir com uma fuga no...
- Vou, sim.
Lloyd rosnou:
- Não conseguirá ir muito longe.
- Vou correr esse risco.
O mecânico julgou que ela estava a brincar até Jordan ligar o motor e começar a sair da garagem em marcha-atrás.
- Talvez consiga tê-lo pronto ao meio-dia - exclamou.
- Talvez?
- Está bem. Ao meio-dia ficará pronto, de certeza.
Jordan travou.
- E quanto me vai custar?
- Sessenta e cinco dólares ou talvez setenta. Não aceito cartões de crédito e como você não é da cidade, também não lhe aceitarei um cheque. Tem de pagar-me em dinheiro.
Confortada pela promessa de voltar a dispor do carro ao meio-dia, Jordan concordou e entregou as chaves a Lloyd.
Voltou a pé ao motel mas parou na receção para falar com Amélia Ann.
- Tenho várias caixas cheias de papéis que preciso de fotocopiar - declarou. - O supermercado perto da ponte de Parsons Creek dispõe de uma fotocopiadora, mas fica bastante longe daqui. Não haverá outras máquinas de fotocópias mais perto?
- Deixe-me fazer uma pesquisa, enquanto tomo o pequeno-almoço. Talvez consiga encontrar alguma.
61
O Home Away From Home Motel dispunha de uma cafetaria minúscula. Jordan era a única cliente. Não tinha grande apetite e encomendou uma torrada e sumo de laranja.
Amélia Ann apareceu, à sua procura.
- Só tive de fazer dois telefonemas - anunciou. - Está com sorte. A Charlene, da Agência de Seguros Nelson, tem uma fotocopiadora novinha em folha. A companhia colocou-a na agência na semana passada e está à experiência. Por isso, não tem de preocupar-se com o número de papéis que tem de copiar, desde que pague o papel que for gasto. O Stevie Nelson é quem fez o seguro do motel, e por isso não iria importar-se de prestar esse favor.
- É formidável - disse Jordan. - Fico-lhe muitíssimo agradecida.
- Não me importo de ajudar, sempre que posso fazê-lo. A Charlene pediu-me que lhe dissesse que a máquina dispõe de um alimentador de papel, por isso é muito rápida.
As notícias eram ainda melhores. A agência de seguros ficava apenas a três quarteirões do motel e a fotocopiadora encontrava-se numa divisão própria. Por isso, Jordan não iria incomodar Charlene ou o seu patrão, enquanto tirasse as fotocópias.
A máquina de fotocópias era uma autêntica maravilha e Jordan fez rápidos progressos. Foi interrompida uma única vez, quando um cliente da agência, Kyle Heffermint entrou para obter uns dados. Enquanto Charlene os coligia, Kyle descobriu Jordan na sala de fotocópias e tomou a seu cargo atuar como comissão de boas-vindas da cidade de Serenity. Encostou-se à parede e conversou com Jordan, enquanto esta continuava a colocar folhas na máquina. Kyle era um homem de trato agradável e Jordan apreciou bastante ouvi-lo falar da história e da política da comunidade, muito embora o seu hábito de repetir-lhe o nome e de sublinhar os seus comentários com um arquear de sobrancelhas fosse um tanto fastidioso. Depois de Jordan haver declinado a sua quarta proposta de lhe "mostrar a cidade", Charlene veio em seu socorro e acompanhou-o até à porta.
Jordan conseguira copiar duas caixas inteiras até ao meio-dia. A cambalear sob o efeito do peso, transportou a primeira e a segunda caixa de originais de volta ao quarto do motel e depois regressou para ir buscar as cópias. Enfiou algumas das folhas na maleta em que se achava o seu computador portátil a fim de poder lê-las enquanto almoçava.
62
Faltava um quarto para o meio-dia quando chegou à Lloyds Garage e deparou com o reservatório de refrigeração e a maior parte do motor depositados sobre uma lona.
Lloyd encontrava-se esparramado numa cadeira de metal, a abanar-se com um jornal dobrado, mas, mal a lobrigou à porta, atirou o jornal para o lado e pôs-se em pé de um salto. Ergueu as mãos como para proteger-se de uma bofetada e pediu:
- Agora não desate aos berros.
O tubo do radiador achava-se sobre o reservatório de refrigeração no centro da lona. Jordan olhou para tudo aquilo e perguntou, em voz neutra:
- Que é isto?
- São peças... que fazem parte do seu carro. Deparei com alguns problemas - declarou o homem, sem ousar olhá-la de frente. - Quis ter a certeza de que era uma fuga no radiador e não qualquer outra coisa e por isso tirei o tubo para verificar se tinha alguma fissura, mas não tinha. Então, decidi examinar a braçadeira e também estava bem. Por isso, resolvi examinar mais algumas coisas. E quer saber? Não é que a fuga era mesmo no radiador? Tal como eu suspeitava. Mais vale prevenir do que remediar, não acha? E não vou levar-lhe nada pelo trabalho extra. Basta-me um "obrigado". Ah! e mais uma coisa - acrescentou, apressadamente: - Vai ficar pronto ao meio-dia de amanhã, tal como eu prometi.
Jordan respirou fundo.
- Você prometeu-me que o carro ficaria consertado ao meio-dia de hoje.
Estava tão furiosa por ter sido lograda que a sua voz tremia.
- Não, isso foi uma suposição sua.
- Prometeu-me ter o carro pronto ao meio-dia de hoje - repetiu Jordan energicamente.
- Não, nunca falei no dia de hoje. A senhora é que supôs que seria hoje. Eu só falei em meio-dia. Não disse se era o meio-dia de hoje ou de amanhã - E, sem parar para tomar fôlego, perguntou: - Uma vez que tem de ficar mais uma noite na cidade e não conhece ninguém aqui, que tal jantar comigo?
Ao que parecia, Lloyd vivia numa outra dimensão.
- Ponha tudo isso lá dentro. Já!
- O quê?
- Ouviu muito bem o que eu disse. Quero que ponha tudo isso no lugar que lhe pertence. Por favor, faça-o já.
63
Lloyd não devia ter gostado da expressão que leu nos seus olhos porque se apressou a dar um passo atrás.
- Não posso. - declarou. - Tenho outro trabalho para acabar, antes deste.
- Ah, sim? Então não estava a passar pelas brasas, quando aqui cheguei.
- Não estava a dormir, só estava a fazer uma pausa.
Jordan compreendeu que era inútil discutir com o mecânico.
- Quando vai o meu carro ficar pronto?
- Amanhã, ao meio-dia - afirmou ele. - Vê a diferença? Acabo de dizer-lhe amanhã, ao meio-dia. Quando digo uma coisa, está dito.
- O melhor é pô-lo por escrito - ripostou Jordan. - Quero que ponha por escrito o momento em que o carro ficará pronto e o preço - acrescentou. - Assinado por si.
- Está certo. vou fazê-lo - prometeu Lloyd, voltando-se e entrando na oficina.
Passado um minuto, voltou com um bloco e uma caneta. Encostou-se ao carro, enquanto redigia e assinava a garantia. Chegou mesmo a datá-la, embora Jordan não o houvesse exigido.
- Está satisfeita? - perguntou, depois de lhe ter dado o papel e de ela o ler.
Jordan assentiu.
- Voltarei amanhã, ao meio-dia. Não me desiluda.
- Que me faria, se isso acontecesse? Batia-me?
- Era bem capaz - e começou a afastar-se.
- Espere aí!
- O que é?
- Que tal ir jantar comigo?
Jordan tentou ser comedida, ao declinar o convite. Chegou mesmo a agradecer-lhe. O homem parecia apaziguado, quando ela saiu do local.
Abrandou o passo, enquanto se encaminhava para o Jaffees Bistro. Estava um calor abrasador. Quando lá chegou, estava arrasada pelo calor e pela humidade. Como podiam os habitantes de Serenity suportar tal clima? O termómetro colocado no exterior do restaurante marcava trinta e oito graus.
Quando entrou, Angela ia a passar com uma bandeja, em direção a uma das mesas.
64
- Olá, Jordan.
- Olá, Angela - Deus do Céu! Agora estava a começar a agir como se vivesse na cidade. Ao aperceber-se disso, não pôde deixar de sorrir.
- Quer a mesa do costume? vou já prepará-la.
O restaurante estava quase cheio e todos os presentes a observaram quando se deslocou até à mesa do canto. Era manifesto que os forasteiros despertavam a curiosidade dos habitantes.
- Está com pressa ou quer um chá gelado, enquanto espera?
- Posso esperar e um chá gelado seria ótimo.
Angela trouxe-lhe a bebida e foi depois servir os outros clientes, enquanto Jordan consultava a ementa. Decidindo-se por uma salada de frango, colocou a ementa sobre a mesa, abriu o computador portátil, ligou-o e pegou em algumas das folhas de pesquisa para começar a lê-las.
Tomou notas, enquanto as lia, para que pudesse testar as conclusões do professor, quando regressasse a Boston.
- Os seus dedos voam sobre o teclado - comentou Angela. - Estou a interromper os seus raciocínios?
- Não, nada disso - garantiu Jordan, olhando para a empregada por cima do monitor.
- Que está a fazer?
- Estive a tomar notas, mas agora estava a fazer o merging da minha agenda com uma spreadsheet. Nada de importante - acrescentou, enquanto fechava a tampa do portátil.
- Então deve saber bastante acerca de computadores... Como eles funcionam e tudo isso.
- Sim, trabalho com computadores - respondeu Jordan.
- O Jaffee tem de falar consigo. Tem um computador, mas não está a funcionar bem. Depois do almoço, talvez possa responder a algumas das questões que o preocupam.
- Terei muito gosto em ajudá-lo - afirmou Jordan.
Quando acabou de comer a sua salada, o restaurante havia ficado vazio. Angela veio da cozinha, acompanhada pelo dono do estabelecimento. Apresentou-os e Jordan teceu elogios ao restaurante.
- É um local encantador - comentou.
- Tem o meu nome, é claro. - disse ele, com um sorriso. - O meu nome próprio é Vernon, mas toda a gente prefere tratar -me
65
por Jaffee. E gosto disso - confessou. - De onde é, Jordan Buchanan? - Jaffèe tinha um belo timbre de voz, como uma guitarra a ser dedilhada.
- Boston - replicou Jordan. - E você? Cresceu em Serenity ou foi transplantado como a Angela?
- Fui transplantado - replicou ele, com um sorriso radioso - Vim de uma outra cidade pequena de que decerto nunca ouviu falar. Também passei uns tempos em San António. Foi lá que conheci a minha mulher, a Lily. Ela trabalhava no mesmo restaurante e... bom, engraçámos um com o outro. Estamos casados há catorze anos e continuamos apaixonados. Como é o tempo em Boston? Faz tanto calor como aqui?
A conversa acerca do tempo prolongou-se por uns bons dez minutos. Jordan não conhecia quem, além de um meteorologista, se interessasse tanto pelo tempo atmosférico como Jaffee.
- Importa-se que me sente a seu lado, durante um pouco? - perguntou ele, enquanto puxava uma cadeira e se instalava à sua frente. - A Angela disse-me que está disposta a responder a algumas perguntas que tenho a fazer acerca de computadores.
- Faça o favor - declarou Jordan.
- Gostou da salada? As raparigas da cidade gostam sempre de saladas, não é assim?
Jordan riu-se.
- Esta rapariga da cidade gosta.
Jaffee era muito simpático e estava decididamente disposto a conversar.
- Tive a casa cheia para o pequeno-almoço, o que sempre acontece. Ao almoço, tenho apenas metade dos clientes. Para falar verdade, mal consigo cobrir as despesas nos meses de verão, mesmo estando aberto para o jantar, mas, quando chega o outono, faço bom negócio. Nessa altura a minha mulher tem de vir ajudar-me. O meu bolo de chocolate é famoso nas redondezas. Daqui a alguns minutos, começarão a aparecer pessoas para comprar uma ou duas fatias. Mas não se preocupe, já reservei uma fatia para si.
Jordan julgou que ele ia levantar-se, quando se agitou na cadeira, e estendeu a mão para uma das pastas, pronta a ler outra história estapafúrdia acerca dos imaculados MacKenna e dos demoníacos Buchanan.
66
Jaffee, contudo, não pretendia levantar-se. Quisera apenas sentar-se mais confortavelmente.
- Foi graças ao bolo de chocolate que acabei por ser dono deste estabelecimento.
Jordan pôs de lado a pasta para lhe dedicar toda a sua atenção.
- E como aconteceu isso?
- Trumbo Motors - começou ele. - Dave Trumbo, para Ser mais preciso. É concessionário em Bourbon, a cerca de sessenta quilómetros daqui. O certo é que o Dave e a mulher, a Suzanne, estavam a passar férias em San António e foram jantar no restaurante em que eu trabalhava. Eu tinha feito nesse dia um bolo de chocolate e, Deus do céu, como ele gostou do bolo! Já havia comido três fatias, quando a mulher o obrigou a parar. - Riu-se. - Ele adora chocolate, mas a Suzanne não o deixa comer com frequência. Fica preocupada com o colesterol do marido e com outras coisas do género. Seja como for - prosseguiu -, o Dave não conseguiu afastar aquele bolo do espírito e não estava disposto a fazer a viagem até San António, que, como sabe, ainda fica longe daqui. E então, que fez ele? Uma proposta que não pude recusar. Antes de mais, falou-me de Serenity e contou-me que não havia na cidade um restaurante digno desse nome. Depois referiu que tinha ido falar com o seu amigo Eli Whitaker. O Eli é um rancheiro rico que anda sempre à espreita de um bom investimento. O Dave convenceu-o a adiantar-me algum dinheiro. O Eli é o proprietário deste prédio, mas não terei de pagar-lhe renda até começar a ter bons lucros. É o que pode chamar-se um sócio oculto. Raramente consulta os livros de contabilidade e, em certos meses, quando recebo a conta-corrente do banco, verifico que regista um depósito a crédito. Não confessa ser ele quem o faz, mas sei que é ele ou o Trumbo que põem na minha conta esse dinheiro adicional.
- Parece serem boas pessoas - disse Jordan.
- E são - replicou Jaffee. - O Eli é uma espécie de recluso. Vem aqui com frequência, mas não creio que tenha saído de Serenity desde que cá se instalou, há quinze anos. Talvez possa encontrar-se com ele, esta tarde. O Dave vai trazer-lhe a sua nova carrinha. O Eli compra todos os anos uma nova.
Jordan julgou de novo que Jaffee estava prestes a levantar-se e Por isso estendeu a mão para a pasta.
67
- O Dave é a nossa melhor publicidade. O homem adora o nosso chocolate e muita gente vem cá porque o Dave lhes contou como é excelente.
- A Trumbo Motors dispõe de um bom mecânico?
- Claro que sim. Mais do que um - afirmou Jaffee, rindo-se. - Ouvi dizer que o Lloyd está a fazê-la passar um mau bocado.
Jordan abriu os olhos de espanto.
- Ouviu dizer? Como?
- Serenity é uma cidade pequena, e as pessoas gostam de falar.
- E falaram a meu respeito? - Não conseguia ocultar o seu pasmo.
- Oh! sim, claro que falaram. Você é o assunto do momento. Uma mulher bonita que não se dá ares de vedeta e fala com a gente do povo.
Jordan não era capaz de imaginar a quem ele se referia. Não se considerava nada bonita, com que gente do povo havia falado e que queria ele dizer com "gente do povo"?
- Parece ter ficado atónita - disse Jaffee, com um sorriso irónico. - Aqui é diferente de Boston. Gostamos de pensar que somos mais acolhedores, mas a verdade é que somos metediços. Acabamos por nos acostumar, com toda a gente a saber tudo a respeito dos outros. Vai ver. Quando o Dave aqui chegar com a carrinha do Eli, apresento-a. Aposto o que quiser em como já sabe do que se passa com o seu carro.
- Mas disse que ele vive em outra cidade...
- E vive - replicou Jaffee. - Vive em Bourbon, mas toda a gente de Serenity lhe compra os seus automóveis e as suas carrinhas. É o melhor concessionário desta região. Levo a vida a dizer-lhe que devia utilizar a televisão para fazer anúncios como os daqueles tipos das grandes cidades, mas ele recusa sempre. Não quer que o filmem. Creio que é tímido e tem medo das câmaras. Além disso, gosta de fazer negócios com a gente daqui. Vem muitas vezes a Serenity. A mulher dele também trata aqui do cabelo e das unhas e por isso está sempre informada das últimas notícias, graças ao que ouve às outras senhoras no salão de beleza.
Jaffee abordou finalmente as suas dúvidas em relação a computadores e depois de Jordan lhe explicar para que serviam os diversos comandos, pareceu ficar satisfeito. Regressou à cozinha para preparar um novo molho, mas Jordan continuou a ponderar como
68
era a vida numa cidade pequena. Perderia o juízo se toda a gente ficasse a saber quanto fazia. Depois, pensou na sua própria família e compreendeu que já vivia dessa maneira.
Os seus seis irmãos eram todos adoráveis, meigos e terrivelmente bisbilhoteiros. Talvez tivessem aprendido a intrometer-se na vida dos outros em consequência das suas profissões, muito embora não pudesse incluir Theo nesse número, uma vez que trabalhava para o Departamento de Justiça e, ao contrário de Nick, Dylan e Alec, não trazia uma arma sempre consigo. Estavam habituados a meter o nariz na vida de outras pessoas e, tanto quanto conseguia lembrar-se, estavam sempre a par do que se passava com ela e com a irmã.
Nos tempos do liceu compraziam-se a pregar valentes sustos aos seus namorados. Ela fizera queixa ao pai, mas isso não servira de nada. Aliás, pensava que, secretamente, o pai estava do lado deles.
As grandes famílias são como as cidades pequenas, não havia dúvida. Tal como os clãs das Terras Altas da Escócia a que se referia o que estava a ler. A acreditar no material de pesquisa do professor, os Buchanan levavam a vida a meter o nariz na vida dos outros clãs. Pareciam conhecer as mais pequenas coisas que os MacKenna faziam e cada uma delas punha-os furiosos como leões. Nunca esqueciam um desaire. Jordan não conseguia conceber como é que eles faziam para memorizar todos os conflitos existentes.
A mesa estava coberta de papéis espalhados. Tentava decifrar algumas notas que o professor havia tomado nas margens. Não faziam sentido: números, nomes, cifrões e outros símbolos escrevinhados a escuro. Aquilo seria uma coroa? Alguns dos números podiam ser datas. Teria acontecido algo de importante em 1284?
Ouviu Jaffee soltar uma gargalhada e voltou-se a tempo de o ver sair da cozinha. Era seguido por um homem avantajado que trazia uma travessa com uma enorme fatia de bolo de chocolate. Devia ser Dave Trumbo.
O homem acercou-se dela com o ar de estar muito seguro de si. O seu rosto era duro como se as feições tivessem sido talhadas em pedra. Dispunha de ombros largos e, pela maneira como estava vestido - camisa branca engomada, gravata às riscas, calças de um cinzento-escuro e sapatos pretos -, compreendeu que passava muito tempo a cuidar da sua aparência. Trumbo era o que a sua mãe designaria como "elegante". Tirou os óculos escuros de marca e sorriu, quando Jaffee lhe disse qualquer coisa.
69
Tinha um sorriso atraente e tudo nele era agradável. Fitou-a nos olhos, quando lhe apertou a mão e lhe disse ter muito prazer em conhecê-la. Oh! sim, como era afável e insinuante. Não precisou de lhe perguntar se vivera sempre no Texas. O elegante Dave falava com o arrastado sotaque texano. Lembrou-se de que Noah nascera no Texas e, de vez em quando, falava com o mesmo sotaque, especialmente quando o fazia com uma mulher que queria conquistar.
- Jaffee contou-me que está a ter problemas com o Lloyd e lamento o que se passou. Se quiser, posso falar com ele. Se ele não quiser cooperar, faremos uma coisa. Posso fazer com que o seu carro seja rebocado até Bourbon e um dos meus mecânicos poderá repará-lo a preceito, é pena que não possa troca-lo por outro novo. Tenho à venda um Chevrolet novinho em folha por um preço irrecusável.
- É de uma agência de rent-a-car, Dave - lembrou-lhe Jaffee.
O homem assentiu.
- Eu sei. Por isso disse que é pena não poder trocá-lo. Tem de apresentar queixa de quem lhe alugou semelhante veículo. Não está certo negociar dessa maneira.
Jaffee referiu a Dave que ela era de Boston e Jordan respondeu a algumas perguntas acerca da sua cidade. Dave nunca lá havia ido, mas queria levar a família a Boston para passar umas férias.
- O Dave tem um filho e uma filha - anunciou Jaffee. O homem voltou a assentir.
- É verdade. Por isso é que tenho de trabalhar tanto. O melhor é eu ir comer este bolo na cozinha, não vá a minha mulher aparecer por aí. Ela vem esta tarde à cidade para fazer uma coisa qualquer ao cabelo. Está muito bem como está, mas, segundo diz, gosta de se manter a par dos últimos estilos que vê nas revistas. Se me vir a comer este bolo, vai ter um acesso de fúria. Impôs-me uma dieta para me afastar de comida sem hidratos de carbono e sem gorduras, mas que não tem gosto algum. - Bateu na barriga. - Estou a ficar com um pneu, mas este bolo vale bem ter de fazer mais uns quilómetros no aparelho de corrida.
Não parecia gordo, mas sim em plena forma. No entanto, não permaneceria assim por muito tempo, se continuasse a comer tantos doces. Jordan apercebeu-se do que parecia ser a ponta de uma tablete de chocolate a sair-lhe do bolso da camisa. Dave devia adorar chocolate.
70
Jaffee virou-se para olhar pela janela da frente.
- O Eli acaba de estacionar a sua carrinha do outro lado da rua - anunciou. - Parece novinha em folha.
- Faz um ano, este mês - explicou Dave. - É por isso que ele quer trocá-la. Pode permitir-se ter todos os carros que quiser e Deus sabe como tentei convencê-lo a comprar um automóvel de luxo, mas ele continua a encomendar todos os anos a mesma carrinha, se bem que de novo modelo. E não escolhe outra cor. Sempre preta.
Jordan podia ver o rancheiro a atravessar a rua. Eli Whitaker era um homem bem-parecido - alto, moreno e sem dúvida atraente. Estava à espera de ver um rancheiro com botas de cowboy e chapéu de abas largas, mas ele vestia calças de ganga, um polo e sapatos de ténis.
Eli dirigiu-lhe um largo sorriso, quando Jaffee os apresentou um ao outro e a sua mão estava quente quando apertou a dela.
- É um prazer conhecê-la, Jordan - disse ele.
Jaffee informou-o rapidamente da razão por que ela se achava na cidade.
- Lamento a sua pouca sorte, mas se há nesta terra algum lugar em que se possa permanecer, creio que escolheu o sítio certo. Vai ver como a gente de Serenity é hospitaleira. Se eu puder fazer qualquer coisa para ajudar, não hesite em dizer-mo.
- Obrigada - disse Jordan. - Toda a gente tem sido muito prestável. O meu carro deve ficar pronto amanhã, e voltarei a fazer-me à estrada.
Os três homens sentaram-se à sua mesa e continuaram a conversar com ela durante mais alguns minutos, muito embora fossem eles quem mais falava e ela quem mais escutava.
Por fim, Dave Trumbo disse-lhe:
- Bom, foi um prazer conhecê-la, Jordan Buchanan, e, da próxima vez que esteja na região, não se esqueça de visitar a Trumbo Motors. Ninguém oferece melhores preços - disse, de modo algo fanfarrão. Pôs a mão no ombro de Eli e acrescentou: - Queres uma fatia de bolo, Eli? Vem comigo à cozinha. Deixemos esta jovem voltar ao seu trabalho de casa.
Trabalho de casa? Julgaria ele que ela andava a tirar um curso de verão?
- Não é nenhum trabalho de casa, Dave - informou Jaffee. - Está a ler histórias acerca dos seus parentes na Escócia. Histórias de
71
épocas passadas. Deslocou-se até cá para ler esta papelada fornecida por um professor qualquer. Não é assim, Jordan?
- Sim, com efeito. É o resultado das pesquisas do professor MacKenna.
Por sobre o seu ombro, Dave espreitou para o que ela estava a ler.
- Consegue compreender tudo isso? - perguntou.
Jordan riu-se.
- Estou a tentar. Por vezes, não é muito claro.
- A mim, parece trabalho de casa. vou deixá-la trabalhar em sossego.
Voltou-se e, sempre com a mão no ombro de Eli, encaminhou-se para a cozinha, com Jaffee logo atrás.
O tempo passou a voar e eram quase quatro horas quando Jordan guardou os papéis. Jaffee encontrava-se na ombreira da porta, a vê-la enfiar o portátil na maleta.
- Ouça, acerca daqueles comandos... - disse, enquanto coçava a cabeça.
- Sim?
- Não estão a funcionar. Em Serenity, somos uns ignorantes no que respeita a computadores, mas estamos a tentar ficar ao nível do resto do Texas e do mundo. Todos os miúdos aprendem a servir-se de computadores em escolas aperfeiçoadas, mas não temos nenhuma em Serenity. A cidade está a começar a crescer e acabámos de construir o nosso primeiro liceu. Esperamos ter por cá bons professores, dentro de pouco tempo. Talvez possam até ensinar os adultos. Tenho um belo e grande computador nas traseiras, mas não está a responder aos comandos que me indicou. Fiz qualquer coisa.... não sei bem o quê e dei cabo de tudo.
Jordan sorriu.
- Deu cabo de tudo? A menos que se tenha servido de um martelo pesado, é difícil dar cabo de um computador. Terei muito gosto de o examinar.
- Ficar-lhe-ia muito grato. Fiz várias chamadas para técnicos de informática em Bourbon, mas nenhum se dignou vir até cá.
Jaffee fora tão simpático com ela, deixando-a ficar durante todo o dia no seu restaurante, que era o mínimo que podia fazer por ele. Pegou na maleta e foi atrás dele até à cozinha. O escritório de Jaffee estava instalado num pequeno recanto situado junto da porta das traseiras. O computador era arcaico pelos padrões atuais.
72
Havia cabos que corriam em todas as direções. Na sua maioria, eram desnecessários.
- Que acha? - perguntou Jaffee. - Consegue salvá-la e pô-la de novo a funcionar?
- Salvá-la? Pô-la?
- Às vezes, chamo-lhe Dora - admitiu Jaffee, um tanto envergonhado.
Jordan não se riu. O rosto dele estava a ficar vermelho e apercebeu-se de que era embaraçoso para Jaffee confessar que havia humanizado uma máquina.
- Deixe-me ver o que posso fazer.
Calculou que dispunha de tempo de sobra para regressar à agência de seguros, a fim de fotocopiar os documentos que se achavam na última caixa. Já não restavam muitos, por isso, mesmo que a agência entretanto fechasse, poderia sempre acabar o trabalho na manhã seguinte.
Jaffee voltou às suas tarefas na cozinha e ela começou a reconstruir o computador. Removeu todos os cabos, pôs de lado dois e desenrolou e voltou a fixar dois outros. Depois de o fazer, não levou muito tempo a pôr o computador a funcionar. A seguir, ocupou-se dos programas que alguém havia instalado, a pedido de Jaffee. Eram demasiado arcaicos. Jaffee andava a tentar servir-se de três diferentes e todos eles eram complicados. Se ela dispusesse de tempo e do equipamento necessário, teria elaborado um novo programa. Teria sido divertido fazê-lo. Oh! céus, que dizia isso sobre ela mesma? Jurou ali mesmo a si própria que, se alguma vez humanizasse e batizasse um computador, isso seria o fim.
Uma vez que não podia instalar um novo software, decidiu tentar simplificar um dos programas existentes.
Da próxima vez que Jaffee veio espreitar, ficou entusiasmado por ver o ecrã azul.
- Já o pôs de novo a funcionar! Oh, muito obrigado. Mas que palavreado é esse que está a escrever?
Levaria muito tempo a explicar-lho.
- Eu e a Dora estamos a ter uma pequena conversa. Quando acabar, será mais fácil para si servir-se do programa.
As oito e meia, depois de o último cliente haver partido, Jaffee fechou o restaurante e sentou-se ao lado de Jordan para que ela lhe dissesse quais as alterações que fizera.
73
Jordan levou uma hora a ajudá-lo a familiarizar-se com o computador. Jaflfee tomou inúmeras notas em Post-its que colou na parede. Jordan já havia programado o seu e-mail para que ele pudesse fazer-lhe perguntas se estivesse em apuros, mas ele pediu-lhe que lhe desse também o seu número de telemóvel para o caso de não conseguir pôr a funcionar o correio eletrónico.
Jordan julgou que havia concluído a sua tarefa, mas Jaffee entregou-lhe uma grande lista de endereços de e-mail e pediu-lhe que os introduzisse na sua agenda. Eli Whitaker encontrava-se no topo da lista e Dave Trumbo vinha a seguir. Jordan sorriu, ao ler o seu endereço de e-mail: dangerousdealerdave (1). Introduziu-o sem comentários e passou ao seguinte.
Quando chegou ao fim, Jaffee insistiu em acompanhá-la até ao motel.
- Sei que não fica muito longe e temos candeeiros nas ruas, mas mesmo assim vou consigo. Além disso, quero esticar as pernas.
No exterior, ainda se sentia calor, muito embora a temperatura houvesse baixado um pouco, depois de o Sol se pôr. Quando chegaram ao carreiro que conduzia à entrada do motel, Jaffee deu-lhe as boas-noites e seguiu o seu caminho.
Jordan entrou no vestíbulo, julgando que iria diretamente para o seu quarto, mas foi encontrá-lo cheio de mulheres.
Amélia apressou-se a ir recebê-la, junto da porta.
- Que bom que tenha podido vir.
- Desculpe? Que quer dizer? - admirou-se Jordan.
A filha de Amélia Ann, Candy, achava-se sentada à secretária da receção. Escreveu o nome de Jordan num distintivo cor de rosa e apressou-se a colar-lho no ombro.
- Ficamos muito satisfeitas por se juntar a nós - afirmou Amélia, desvanecida.
- E com que propósito? - perguntou Jordan, com um sorriso endereçado a todas as mulheres que a miravam.
- Reunimo-nos aqui para festejar o noivado da Charlene. Deve lembrar-se da Charlene - acrescentou, num sussurro. - Foi ela que a deixou fotocopiar os seus documentos na agência de seguros em que trabalha.

(1) Perigoso vendedor de carros Dave. (N. dos T.)
74
- Sim, claro que sim. - Jordan procurou entre aqueles rostos sorridentes o de Charlene. - São muito amáveis em convidar-me, mas nãão quero intrometer-me.
- Que disparate! - protestou Amélia. - Adoramos tê-la connosco.
Jordan baixou a voz.
- Isso é fácil de resolver - declarou Amélia. - Que tal se lhe der um serviço de porcelana? A Charlene escolheu um muito bonito. Vera Wang.
- Sim, gostaria muito, mas... - começou Jordan a dizer.
- Não se preocupe. vou encomendá-lo amanhã e ponho o preço na sua conta. Candy, vai preparar outro cartão de presentes e escreve nele o nome da Jordan.
Jordan falou com todas as outras vinte e três mulheres e ficou feliz por ostentarem também distintivos com os seus nomes. Durante a hora seguinte, assistiu ao desembrulhar dos presentes, enquanto bebia ponche adocicado e comia chocolates com hortelã-pimenta e fatias de bolo de noiva revestidas com uma espessa camada de açúcar glacê.
Quando finalmente entrou no seu quarto, Jordan estava eufórica, por efeito de tanto açúcar. Depois, caiu em colapso.
Dormiu profundamente durante toda a noite e, na manhã seguinte, respondeu a todas as chamadas registadas no seu telemóvel e só saiu do motel quando já passava das dez horas. Os seus planos consistiam em caminhar até à agência de seguros para fotocopiar o resto dos papéis, trazê-los de volta ao motel e em seguida ir até à Lloyds Garage e esperar que Lloyd acabasse a reparação do carro. E ele iria acabá-lo, nem que ela tivesse de ficar de pé atrás dele e o fosse espicaçando com uma chave-inglesa. Uma coisa era certa: não ia tolerar mais surpresas ou demoras.
Os seus planos caíram por terra quando Charlene lhe deu a má notícia:
- Vieram buscar a máquina de fotocópias e levaram-na, uma hora depois de o Steve haver dito ao vendedor que não iria comprá-la. Tinha ainda muitos documentos a fotocopiar?
- Umas duzentas folhas - respondeu Jordan.
Agradeceu novamente a Charlene e rumou de regresso ao motel. Muito bem, alteração de planos. Iria buscar o carro, tentaria servir-se da fotocopiadora do supermercado e, se ela não tivesse um dispositivo de alimentação de papel, iria à procura de outra.
75
Lloyd andava de um lado para o outro, à frente da garagem. Quando a viu, gritou-lhe:
- Está pronto. Pronto a seguir viagem, e acabei muito a tempo. Disse-lhe que iria consertá-lo e fi-lo. Que tal?
Encontrava-se num tremendo estado de nervos. A sua mão tremia quando lhe apresentou a fatura pormenorizada. Era manifesto que tinha pressa de se ver livre dela, porque nem sequer contou o dinheiro que ela lhe entregou.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, não! - apressou-se ele a replicar. - Agora, já pode partir.
E, sem olhar para trás, entrou a correr na oficina.
Jordan colocou a mala e o portátil no assento do passageiro, a seu lado, e pôs o motor em marcha. Tudo parecia estar a funcionar corretamente. Lloyd, ponderou, podia disputar o primeiro lugar ao professor MacKenna no que tocava a extravagância. Sentia-se feliz por não ter de voltar a contactar com ele.
Seguiu diretamente para o supermercado e ficou encantada por ali encontrar uma fotocopiadora moderna com tudo aquilo que podia desejar. Estava de volta ao trabalho. Calculou que podia acabar o que lhe faltava em duas horas, se andasse depressa. Depois, telefonaria ao professor e devolver-lhe-ia as caixas.
Mais vale prevenir do que remediar, recordou a si própria. Para estar preparada, não fosse o carro fazer outra vez das suas em plena estrada, comprou água e decidiu parar numa estação de serviço para comprar uma data de anticongelante para a eventualidade de o radiador ter outra fuga.
Saiu da loja com quatro garrafões de água, dois em cada braço. O parque de estacionamento encontrava-se deserto. Não admirava. Ninguém decidia ir fazer compras à mercearia em pleno pino do sol, com aquele calor infernal. O dia estava abrasador. Jordan teve de semicerrar os olhos por o sol se refletir no chão cimentado do parque e sentiu a pele a queimar-se só de o atravessar. Pôs os garrafões no chão, junto do porta-bagagens. Enquanto remexia na mala, à procura das chaves, apercebeu-se de um pedaço de plástico esbranquiçado que saía por baixo da tampa do porta-bagagens e achou estranho não o ter notado antes. Tentou puxar por ele mas o plástico não cedeu.
Encontrou a chave, introduziu-a na fechadura e a tampa saltou para cima, enquanto ela recuava. Jordan olhou para o interior do
76
porta-bagagens... e ficou hirta. Em seguida, fez descer de novo a tampa com todo o cuidado.
- Oh, não! Não pode ser - murmurou.
Sacudiu a cabeça, recusando-se a acreditar. Andava a ver coisas, era o que era. A sua mente estava a pregar-lhe partidas. Havia sido de todos aqueles doces que comera... e do calor. Apanhara uma insolação e não se dera conta.
Abriu a tampa outra vez, e foi como se o seu coração tivesse deixado de bater. Ali, enroscado como um gato malhado, dentro da maior bolsa de plástico com fecho de correr que jamais havia visto, encontrava-se o professor MacKenna. Tinha abertos os olhos sem vida e parecia fitá-la. Jordan ficou tão desvairada que nem conseguia respirar. Não soube quanto tempo permaneceu ali, a olhar para o homem. Talvez durante dois segundos ou talvez três, mas que lhe pareceram uma eternidade antes que a sua mente permitisse que o corpo reagisse.
Então, entrou em pânico. Deixou cair a mala de mão, tropeçou em dois garrafões de água e bateu com a tampa do porta-bagagens para o fechar. Por muito que pretendesse convencer-se do contrário, não conseguia convencer-se de que não vira um cadáver lá dentro.
Deus do Céu, que fazia ele na mala do seu carro?
Muito bem, tinha de voltar a espreitar, mas, santo Deus! não queria fazê-lo! Respirou fundo, voltou a dar uma volta à chave e mentalmente encheu-se de coragem.
Oh, céus! Ainda lá estava!
Deixou a chave na fechadura, contornou o carro, a correr, e quase mergulhou de cabeça pela janela para apanhar o telemóvel que deixara no assento do passageiro.
A quem devia telefonar? Ao Departamento de Polícia de Serenity? Da cidade ou da circunscrição? Ao xerife? Ou ao FBI?
Jordan tinha a certeza de duas coisas. Primeira: tinham-lhe armado uma cilada. Segunda: não sabia o que fazer. Que diabo, era uma cidadã respeitadora da lei! Não andava de um lado para o outro com cadáveres dentro do porta-bagagens e por isso não tinha a mínima ideia do que fazer com aquele.
Precisava de auxílio - e o mais depressa possível. A primeira pessoa a quem pensou telefonar foi ao pai. Era juiz federal e por isso sabia certamente o que havia a fazer. No entanto, era também
77
uma pessoa sobressaltada, como a maioria dos pais, e já tinha muito com que se preocupar por causa do julgamento explosivo que decorria em Boston.
Decidiu telefonar a Nick. Trabalhava para o FBI e dir-lhe-ia o prosseguimento a seguir.
O telemóvel tocou, de súbito. O toque apanhou-a tão de surpresa que Jordan soltou um grito e quase deixou cair o telemóvel.
- Sim? - A sua voz era a de alguém que estivesse a ser estrangulado.
Era a irmã que estava em linha. Não pareceu aperceber-se da histeria na voz de Jordan.
- Nem vais acreditar. Sabes o que encontrei? Nem sequer andava à procura de um vestido, mas acabei por comprar dois. Estavam em saldo e quase te comprei outro, mas pensei que, como os nossos gostos são tão diferentes, talvez não fosses gostar dele. Achas que devo voltar à loja para o comprar? Os saldos não vão durar por muito tempo, mas ainda poderia devolvê-lo...
- O quê? Oh, céus, Sidney! De que estás tu para aí a falar? Não importa. Estás em casa?
- Estou. Porquê?
- Está mais alguém em casa?
- Não - respondeu Sidney - Porquê? Jordan, passa-se alguma coisa?
Perguntou a si própria qual seria a reação da irmã se lhe contasse a verdade. Sim, passava-se alguma coisa. Tinha um cadáver na mala do carro.
Não podia dizer-lho. Mesmo que acreditasse, Sidney só iria ficar preocupada e, na verdade, não havia nada que, de Boston, ela pudesse fazer. Além disso por muito querida que fosse a sua irmã mais nova, nunca sabia manter segredos e de imediato iria contar tudo à mãe e ao pai.
Para dizer a verdade, contá-lo-ia a qualquer pessoa disposta a escutá-la.
- Depois explico - declarou.
- Agora tenho de telefonar ao Nick. Espera. E quanto ao vestido? Queres que...
Sem lhe responder, Jordan desligou a chamada e apressou-se a marcar o número do telemóvel de Nick.
Não foi o irmão quem atendeu. Foi o seu colega, Noah.
78
Deus do Céu! Que mais iria acontecer-lhe, quando toda a sua vida se achava em risco!
- Olá Jordan. Neste momento, o Nick não pode atender. Digo-lhe que te telefone, logo que puder. Ainda estás no Texas?
- Estou sim, mas, Noah...
- É um grande estado, não é assim?
- Estou metida num sarilho.
O pânico na voz dela chegou ao outro lado da linha com toda a clareza.
- Que espécie de sarilho? - apressou-se Noah a perguntar.
- Há um cadáver na mala do meu carro.
Noah não pareceu grandemente impressionado.
- Não me digas.
Seria possível revelar maior indiferença?
- Está metido numa bolsa com fecho de correr.
- Ah, sim?
Jordan não saberia dizer porque sentiu necessidade de fornecer aquela informação, mas, no momento, pareceu-lhe de vital importância que ele soubesse da existência do saco de plástico.
- E está vestido com um pijama às listas azuis e brancas. Mas sem chinelos.
- Jordan, respira fundo e acalma-te.
- Acalmar-me? Não ouviste o que acabo de dizer? Conseguiste perceber a parte em que expliquei que tenho um cadáver na mala do carro?
- Sim, ouvi tudo o que disseste - replicou ele, com exasperante serenidade.
Dava a impressão de que aquilo que lhe transmitira não era coisa de monta, o que era obviamente ridículo, mas, ainda assim, o facto de ele se mostrar tão calmo serviu para serená-la um pouco.
- Sabes de quem se trata?
- É o professor MacKenna - disse Jordan. Respirou fundo e baixou a voz. - Encontrei-me com ele no casamento do Dylan. Jantei com ele ontem à noite. Não, não é isso. Na noite de anteontem. Achei-o um homem asqueroso. Comia como um animal feroz. É horrível falar assim a respeito de um morto, não é? Só que ele ainda não estava morto e...
Compreendeu que estava a descarrilar e calou-se, a meio da frase. Uma pequena carrinha entrou no parque e foi estacionar em
79
frente da porta principal. Saiu dele uma mulher de meia-idade que olhou para Jordan, de olhos semicerrados, e entrou no supermercado.
- Tenho de sair daqui - murmurou. - Tenho de me livrar do cadáver. Não é assim? Quero dizer: armaram-me uma cilada para me culparem de homicídio....
- Jordan, onde estás, neste momento?
- No parque de estacionamento de um supermercado em Serenity, no Texas. É uma cidade tão pequena que quase não se vê no mapa. Fica a cerca de sessenta quilómetros a oeste de Bourbon, Texas. Talvez possa despejar lá o corpo. Percebes? Descobrir um sítio isolado e....
- Não vais despejar o corpo em sítio nenhum. Ouve bem o que tens a fazer. Vais chamar a polícia e eu vou fazer o mesmo - explicou Noah. - Também vou providenciar para pôr aí dois agentes do FBI dentro de uma hora ou, no máximo, duas. E Phoenix não fica muito longe. Eu e o Nick chegaremos aí dentro de pouco tempo.
- Estou a ser vítima de uma armadilha, não estou? Oh! meu Deus, ouço sirenes. Vêm prender-me, não vêm?
- Jordan, agora desliga e chama a polícia, antes que ela chegue aí. Se te prenderem, pede um advogado e não digas palavra. Entendeste?
O silvo das sirenes indicava que a polícia estava apenas a alguns quarteirões de distância, quando o telefonista do 911 (1) atendeu a chamada de Jordan. Ela explicou rapidamente de que emergência se tratava e, em seguida, declinou o seu nome e referiu o local onde se encontrava.
O telefonista dava-lhe instruções no sentido de permanecer onde estava, no momento em que um automóvel cinzento entrou velozmente no parque de estacionamento, a derrapar.
- O carro do xerife acaba de chegar.
- O xerife? - O telefonista pareceu ficar surpreendido.
- Sim - confirmou Jordan. - É o que está escrito no lado do carro e tenho a certeza de que consegue ouvir a sirene.
Jordan já não pôde responder à pergunta seguinte do telefonista. O automóvel cinzento estacou, com um chiar de pneus, a uns

(1) Número de urgência equivalente, na Europa, ao 112. (N. dos T.)
80
sete metros de distância e um homem saltou do assento da frente, do lado do passageiro. Não envergava qualquer uniforme.
Correu para ela, com uma expressão aterradora na cara. Jordan viu qualquer coisa voar na sua direção e virou-se instintivamente para procurar proteger-se, mas o golpe atingiu-a na face direita e ela caiu ao chão.
81
CAPÍTULO NOVE

A controvérsia tinha a ver com uma questão de jurisdição. Jordan ouviu vozes excitadas e abriu os olhos no preciso momento em que um paramédico lhe colocou um saco de gelo na face. Tentou fugir com a cara. Achava-se aturdida e desorientada.
- Que aconteceu? - perguntou num murmúrio, enquanto se esforçava por se pôr em pé. Sentia o cimento a queimar-lhe o braço.
Um dos paramédicos, um jovem vestido com um uniforme azul, segurou-lhe no braço para a ajudar a levantar-se. Ainda combalida, Jordan encostou-se a ele.
- Foi agredida, aí tem o que aconteceu - disse ele. - Quando eu e o Barry aqui chegámos, os irmãos Dickey já cá estavam. Ouvimos o xerife Randy a gritar ao irmão, o J.D. porque o J.D. saltou do carro e a agrediu. No entanto, deixou de gritar-lhe, quando me viu correr ao longo do parque. Agora, ele e o irmão estão a discutir com a chefe de polícia de Serenity.
- Estão a discutir acerca de quê? - perguntou Jordan.
Tinha a cabeça a latejar e o seu queixo parecia deslocado.
- O J.D. insiste em que você resistiu à ordem de prisão e ele pensou ajudar o irmão, dando-lhe um murro para que o xerife Randy pudesse pôr-lhe as algemas nos pulsos.
Jordan sentiu a cabeça cada vez mais confusa.
- Isso não é verdade.
- Eu sei que não é - murmurou o jovem paramédico para que os irmãos não pudessem escutar o que ele dizia. - Eu e o Barry ouvimos a sua chamada para o 911 e viemos o mais depressa que pudemos. O que não levou muito tempo porque a nossa pequena
82
clínica fica só a três quarteirões de distância. Ouvíamo-la perfeitamente, mas de repente escutámos o que pareceu um grito abafado. Sabe a que me refiro?
- Ele atirou o meu telemóvel ao chão.
- E fê-lo em pedaços. Receio que tenha de comprar outro. Agora, porém, não estão a discutir a propósito do seu telemóvel. O xerife Randy argumenta que você se encontrava na sua jurisdição, quando fugiu para vir até aqui. Neste momento, encontra-se em Grady County - explicou. - Randy Dickey é o xerife de Jessup County e como chegou a xerife é um mistério que nenhum de nós consegue decifrar. Deve ter feito um ror de promessas. Seja como for, a jurisdição do xerife Randy termina no início da ponte por cima do riacho. Uma vez que se entra na ponte, está-se já em Grady County. Nós também temos um xerife, mas, neste momento, encontra-se no Havai, a passar férias com a mulher e os filhos, e só o vemos de vez em quando, porque vive no extremo leste de Grady County.
Barry, o outro paramédico, tinha estado a escutar a conversa do colega. Enfiou um palito entre os dentes, foi estacionar a ambulância num recanto e aproximou-se em largas passadas.
- A única razão por que o xerife Randy apareceu aqui é porque o irmão reside em Serenity. Gosta de ir à pesca com ele. Del, devias obrigá-la a manter o saco de gelo encostado à face. Já está a formar-se um inchaço por baixo do olho. Acho que temos de a levar à clínica para tirar uma radiografia.
- Não, estou bem. Não preciso de tirar uma radiografia.
- Não podemos obrigá-la a ir connosco - disse Del. - Se porventura se recusar a ser tratada, não há nada que possamos fazer, mas se começar a sentir tonturas ou dores de estômago, diga-nos. Está bem?
- Sim, eu digo.
- Posso fazer-lhe uma pergunta? - acrescentou Del. - Como é encontrar um cadáver no carro? A mim, dar-me-ia um ataque cardíaco. Eu e o Barry calculamos que você não deve ter nada a ver com o homicídio, porque, de contrário, nunca teria chamado o 911, não é assim?
- Dá-me a impressão de que está a sentir dores - interveio Barry.
83
- Estou bem. Sinto apenas dor de cabeça, nada mais do que isso, e não quero tomar nada que acalme a minha raiva. Juro que...
- Então, então, não lhe faz bem irritar-se - aconselhou Barry. - Muito especialmente, depois de ter levado tamanho murro.
Del fez sinal a Barry para se aproximar.
- Se a Maggie Haden pudesse, entregá-la-ia ao xerife Randy e ao irmão num abrir e fechar de olhos.
Barry concordou.
- E não ficaria com quaisquer remorsos - murmurou.
- Quem é a Maggie Haden? - perguntou Jordan.
Estava a tentar descortinar o que se passava entre o chefe de polícia e os irmãos Dickey, mas os paramédicos bloqueavam-lhe o campo de visão.
- É aquela, ali. É a chefe de polícia - respondeu Del. - Ela e o xerife Randy tiveram um caso. Percebe o que quero dizer? Toda a gente da cidade sabe que foi ele quem lhe conseguiu o cargo.
- Ela nunca devia ter tal cargo - resmungou Barry. - Não tem qualificações para o ocupar. Lá porque fez parte do corpo de polícia de Bourbon não justifica que fosse chefe em Serenity. No entanto, como aqui quase nada acontece, creio que as pessoas não se importam que ela saiba ou não o que está a fazer. - Transferiu o palito para o outro lado da boca e agachou-se em frente de Jordan. - Foi uma maneira de a calar - sussurrou. - Ela queria o lugar e o Randy estava em dívida para com ela, por ter casado com outra e a haver abandonado.
- Há quanto tempo é ela chefe de polícia? - perguntou Jordan.
- Há cerca de um ano - declarou Del.
- Há quase dois anos - corrigiu-o Barry. - Não deixe que o aspeto dela influencie a sua opinião. É bastante mais dura do que possa pensar. Pode revelar-se uma autêntica víbora.
Jordan inclinou-se para o lado, a fim de olhar para trás de Del. A chefe tinha cabelo platinado e espampanante e ostentava maquilhagem suficiente para poder trabalhar num circo.
- Obter o cargo de chefe de polícia foi um grande golpe da parte dela. Serenity é uma cidade bastante atrasada. A esquadra de polícia só há pouco tempo dispõe de um computador e todas as chamadas do 911 são encaminhadas via Bourbon.
84
- Já me sinto muito melhor - declarou Jordan. - E estou cansada de estar aqui sentada no chão e ser uma simples espectadora. Por favor, ajudem-me a levantar.
Barry ajudou-a, mas não a largou, insistindo para que ela se sentasse na parte de trás da ambulância.
- Agarre-se a mim, se sentir tonturas.
Surpreendentemente, não se sentia tonta, mas a face inchada e dorida recordava-lhe que um dos irmãos a esmurrara. Sentia-se furiosa e ia perguntar aos paramédicos qual deles era J.D. quando Barry lhe disse:
- Ouça, se a chefe Haden decidir entregá-la ao xerife, dir-lhe-ei que temos de levá-la à clínica para tirar uma radiografia. Garanto-lhe que é melhor para si não ir com eles, seja para onde for.
- Está bem - anuiu Jordan. - Foram muito amáveis para comigo. Fico-vos muito grata. Sei que tudo isto pode parecer suspeito. Sou uma forasteira e...
- E há um cadáver no seu carro - recordou-lhe Del.
- Exatamente - concordou Jordan. - Mas estou inocente. Não matei ninguém e asseguro-lhes de que ninguém ficou mais surpreendida do que eu, quando abri o porta-bagagens.
- Eu acredito em si. Já agora, chamo-me Del. E este é o Barry.
- O meu nome é Jordan Buchanan e...
- Sabemos quem você é. A chefe Haden já tirou a carta de condução da sua mala - adiantou Barry. - Leu o seu nome, em voz alta. Não se recorda? Del, talvez devêssemos levá-la mesmo à clínica para tirar uma radiografia.
Jordan não se dera conta de que alguém houvesse revistado a sua mala de mão para a identificar. O murro tê-la-ia deixado inconsciente? Talvez a tivesse deixado estúpida. Era o que a sua mãe costumava perguntar-lhe quando ela fazia algo que não merecia a aprovação materna. "Ficaste estúpida?"
- Não preciso de tirar uma radiografia - afirmou pela segunda vez. - E não fiz nada de mal.
- Parecer culpada e ser culpada são duas coisas diferentes - comentou Del.
Tirou o estetoscópio do pescoço e entregou-o a Barry.
- Creio que vai ficar boa. - sussurrou-lhe Barry, enquanto arrumava o estetoscópio numa caixa de metal que fechou em seguida.
85
- A chefe Haden sabe que você não veio de Jessup County e também sabe que não esteve envolvida numa perseguição de carro. Há uma testemunha.
- E essa testemunha vai fazer com que seja muito difícil para ela entregá-la aos Dickey.
- Mesmo assim, é capaz de fazê-lo. - disse Del.
- Não, não pode - contrapôs Barry. - Não perante o que declarou a testemunha. Uma mulher que vinha a sair do supermercado viu tudo. Também chamou o 911 e contou ao telefonista o que havia visto e como o J.D. deu um soco em Miss Buchanan, sem que houvesse qualquer provocação. Disse também que o J.D. saltou do carro como se viesse um enxame de vespas atrás dele, lhe arrancou o telemóvel da mão e a esmurrou, sem mais aquelas. E como, depois, esmagou o telemóvel.
- O melhor é Miss Buchanan rezar para que o J.D. não vá ter com a testemunha e a intimide para que ela altere o seu relato.
- Não fará diferença. Todas as chamadas de emergência ficam gravadas e o J.D. não pode alterar o que já se encontra na fita do gravador.
Os dois homens falavam acerca de Jordan como se ela não se achasse presente. Espantava-a que ninguém estivesse a fazer nada em relação ao cadáver. Vira a chefe de polícia lançar uma mirada ao interior do porta-bagagens, mas não passara disso. Tanto quanto Jordan pudera aperceber-se, mais ninguém olhara sequer para a mala do carro. Os paramédicos não o haviam feito, de certeza. Parecia que ninguém estava interessado em saber quem era a vítima. Perguntou a si própria quando iriam eles abordar essa questão.
- Achas que teremos de levar o cadáver para Bourbon? - perguntou Del.
- Creio que sim. Temos de permanecer aqui até que cheguem os peritos de medicina legal e o médico-legista autorize a remoção do corpo.
Farta de ser marginalizada, Jordan voltou a agradecer aos paramédicos, encaminhando-se depois em direção à chefe de polícia, ficando à espera de que ela lhe prestasse atenção.
Um dos irmãos Dickey apercebeu-se de que Jordan tinha as mãos livres.
86
- Alguém tem de pôr as algemas à suspeita - declarou. - Alguém que, ao fim deste tempo todo, já devia saber o que há a fazer - acrescentou.
Jordan deu um passo em frente.
- Foi você que me deu um murro?
O homem não olhava para ela, quando respondeu.
- Ninguém lhe deu um murro - ripostou.
- Pelo amor de Deus, Randy, olha para o rosto dela. Não há dúvida de que alguém lhe deu um soco - exclamou Maggie Haden. - E há uma testemunha. - Por ver que o xerife parecera ficar surpreendido, acrescentou, assentindo com a cabeça. - Sim, há uma testemunha que viu o teu irmão tirar-lhe o telemóvel da mão e depois agredi-la. - Baixando a voz, comentou: - Como vês, agora já nada pode ser feito nem alterado. É demasiado tarde. Podemos ter de nos confrontar com uma queixa.
J.D. estivera encostado à capota do carro do xerife, a berrar as suas objeções à chefe de polícia, mas quando ouviu falar da testemunha, inclinou-se para a frente.
- Que testemunha? Quem viu o quê? Se vou ser acusado de uma coisa que não fiz, tenho de saber o nome dessa testemunha.
- Sabê-lo-ás, a seu tempo, J.D. - disse a chefe.
- Chefe Haden, quero apresentar queixa - pediu Jordan.
- Você, cale-se! - atirou-lhe Haden.
- Quero que o prenda - insistiu Jordan.
A chefe abanou a cabeça.
- Não me importa o que você quer. E agora, cale essa boca.
J.D. acenou aprovadoramente e adiantou:
- Randy, não te parece estranho que a chefe esteja a arengar acerca do tratamento um tanto duro para dominar um suspeito violento quando esse suspeito assassinou um homem? É um facto indiscutível. A prova está ali, à vista de toda a gente. O cadáver
não se encontra no meu carro ou no teu, Randy. Encontra-se no carro dela. E desde quando nos importamos com violência, quando se trata de dominar um assassino?
Os irmãos Dickey eram dois dos indivíduos menos atraentes que Jordan jamais havia encontrado. Tinham ambos a compleição de antigos lutadores de wrestling que tivessem deixado de tratar da musculatura. Os pescoços eram grossos e os ombros arredondados.
J.D. era um pouco mais alto do que o irmão. Randy tinha uma
87
enorme barriga e o seu rosto prolongava-se num duplo queixo. Ambos dispunham de olhos pequenos, mas os de J.D. ficavam muito juntos um do outro, tais como os de uma doninha.
A chefe de polícia, finalmente, dedicou a sua atenção a Jordan.
- Sou a chefe de polícia Haden - apresentou-se. - E você, como se chama?
Uma vez que tinha na mão a carta de condução de Jordan, sabia perfeitamente quem ela era, mas, se pretendia cumprir todas as formalidades, não era Jordan quem iria contrariá-la. Disse o nome e deu-lhe a sua morada.
- Quero que responda, aqui e agora, a algumas perguntas. Sabe quem é o homem que se encontra na mala do seu carro? - perguntou. - O defunto. Sabe como se chama?
- Sei, sim - respondeu Jordan. - É o professor Horace Athens MacKenna.
- Como o conheceu? - foi a pergunta seguinte.
Jordan explicou rapidamente onde e como se encontrara com o professor e a razão por que se encontrava em Serenity. A chefe Haden não pareceu acreditar numa só palavra de Jordan.
- Tem de ir comigo até à esquadra - declarou. - Há muito mais coisas que terá de explicar. Esperaremos até que chegue o médico-legista. Por isso, não me cause problemas, porque se não vou pôr-lhe as algemas de imediato.
Sem dizerem palavra, o xerife Randy e o irmão regressaram ao seu carro. J.D. exibia um repugnante sorriso.
- Chefe Haden, posso fazer-lhe uma pergunta? - pediu Jordan.
Estava ainda a ferver de cólera, mas manteve a calma, embora o esforço não pudesse considerar-se nada agradável.
- Que seja breve. - O tom de voz da chefe era agressivo.
- Como soube o xerife que havia um cadáver no meu porta-bagagens?
- Ele disse que o irmão recebeu uma denúncia no telemóvel. Não sei se está ou não a dizer a verdade.
O xerife Randy ignorou aquele comentário, mas o mesmo não sucedeu com o irmão. Rodando sobre si próprio, bradou:
- Acabas de chamar-me mentiroso?
Ao ver que a chefe não respondia, J.D. acrescentou:
- Vais aceitar a palavra de uma assassina, em lugar da de um cidadão cumpridor da lei?
88
- O FBI pode consultar os registos das chamadas para o telemóvel do xerife e obter cópia de todas as que os irmãos receberam nas últimas vinte e quatro horas. Vai ser de grande ajuda, não acha, chefe Haden? - comentou Jordan.
J.D. rosnou:
- Claro. Como se o FBI fosse ralar-se com um homicídio nesta cidade perdida no fim do mundo. Não vão ligar-lhe nenhuma.
- Já os chamei e vêm a caminho - replicou Jordan.
com aquela declaração atraiu manifestamente a atenção de toda a gente.
- Porque chamou o FBI? - inquiriu Haden.
- O meu irmão Nick é agente do FBI. Falei com um colega dele que me assegurou que ele e o Nick estarão aqui em pouco tempo e que, entretanto, ia enviar para cá dois agentes do departamento do distrito.
O xerife Randy não pareceu ficar perturbado, ao ouvir que o FBI ia envolver-se no caso, mas J.D. pelo seu lado, mostrou-se espantado e furioso.
- Ela está a mentir!
O xerife continuou a encaminhar-se para o seu carro.
- Espera aí! - chamou-o J.D. - O meu irmão tem o direito de a interrogar.
- Não, não tem - contrapôs Jordan.
J.D. lançou-lhe um olhar furibundo. Jordan não se perturbou. Sabia que ele estava a tentar assustá-la, mas não estava disposta a encolher-se nem a acobardar-se. Foi então que J.D. deu um passo ameaçador em direção a ela. "Atreve-te!", pensou Jordan. Tinha-a apanhado desprevenida, aquando do primeiro soco, mas não iria permitir que isso se repetisse. Desta vez, estava preparada para o enfrentar.
- Maggie, vais deixar que o FBI venha aqui dizer-te o que tens de fazer? - rosnou J.D. - Depois de tudo o que eu e o Randy fizemos por ti? Não serias uma prestigiada chefe de polícia se não fossem...
Haden cortou-lhe a palavra.
- Ouve uma coisa: não vou deixar que ninguém me diga o que tenho de fazer - ripostou.
- Randy?
O xerife virou-se para trás.
89
- O que é, Maggie?
- A propósito, que estavas tu a fazer aqui? E porque não trazes vestido o teu uniforme?
- Tinha planeado tirar um dia de folga - adiantou o xerife. - Não vês as canas de pesca no meu carro? Pensava ir pescar com o meu irmão.
- Mas tu serves-te sempre da carrinha, quando vais pescar - fez notar a chefe Haden.
- Hoje não o fiz, pois não?
- Não te faças de engraçado. Devias ir à tua pesca e deixar-me fazer o meu trabalho.
- Mas o FBI... - começou a dizer J.D.
Jordan interrompeu-o, deliberadamente.
- Espero que a vossa esquadra seja suficientemente grande para acolher a minha família. Tenho a certeza de que, neste momento, todos os meus irmãos já conhecem a novidade e vêm a caminho. E tenho muitos irmãos. O mais engraçado é que, na sua maioria, pertencem a forças da ordem. Theo, o mais velho - continuou, num tom irritantemente prazenteiro -, não gosta de se gabar, mas ocupa um alto posto no Departamento de Justiça. - Fixou os olhos no feio rosto de J.D. ao acrescentar: - O Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O Alec está agora a trabalhar como elemento infiltrado para o FBI, mas também vai querer vir até cá. Ah! e também há o Dylan. Ele próprio é chefe de polícia - prosseguiu. - Calculo que vai querer ter uma conversinha com o xerife Randy e o J.D. Como podem imaginar, nenhum deles vai acreditar naquele disparate acerca de uma perseguição de automóvel e, tal como eu, vão querer saber quem está a mentir e porquê.
- Sua cabra! - rosnou J.D.
- Entra no carro, J.D. - disse-lhe o irmão. - Maggie, quero falar contigo, a sós.
- Fique onde está - ordenou a chefe Haden a Jordan. - Rapazes, fiquem de olho nela - gritou para os paramédicos, enquanto se apressava a ir ao encontro do xerife.
De onde se encontrava, Jordan ficou a observar os dois a conversar. A chefe, que se chegara o mais possível ao xerife, assentiu várias vezes com a cabeça, dando a demonstrar manifestamente que concordava com o que ele dizia, fosse lá o que fosse. "Não deve ser nada de bom", disse Jordan para consigo.
90
Passaram-se alguns minutos. Por fim, os irmãos Dickey entraram no carro e foram-se embora. A chefe Haden parecia indignada.
- Tenho de descobrir o que se passou aqui. Que fez você para irritar o xerife?
- Não fiz nada - protestou Jordan.
Como se ela não houvesse falado, a chefe continuou:
- Vai dizer-me por que razão queria o xerife levá-la consigo para a interrogar. Que sabe ele a seu respeito?
Antes que Jordan pudesse dizer-lhe que não fazia a mínima ideia do que ia na mente conturbada dos irmãos Dickey e que não estava disposta a averiguar o que fosse, o médico-legista, de óculos escuros e com um boné dos Dálias Cowboys, chegou ao parque de estacionamento num descapotável rosa-pálido.
Del agarrou Jordan pelo braço.
- Venha para a ambulância e fique connosco, à espera.
Jordan seguiu na companhia do paramédico, mas não perdeu de vista a chefe Haden, que se encontrava, junto do carro de aluguer, a conversar com o médico-legista. Quando terminou e decidiu partir, enfiou Jordan no banco traseiro do carro da polícia, mas não se preocupou em algemá-la. Arrancaram, mas pararam na esquina. Haden telefonou ao seu ajudante, dizendo à mulher deste que fosse à sua procura para que comparecesse na esquadra o mais depressa possível.
- Diga ao Joe que estou a braços com um caso de homicídio.
Jordan estremeceu intimamente, ao perceber a exultação na voz da mulher. A chefe carregou no acelerador e, a toda a velocidade, atravessou Serenity, com a sirene a apitar de modo tonitruante.
91
CAPÍTULO DEZ

A esquadra da polícia era muito pequena. Jordan pensou que parecia fazer parte de um cenário de um velho filme de cowboys. Havia duas secretárias, separadas por uma balaustrada de madeira que chegava à altura do peito e uma portinhola de vaivém que dava acesso ao interior. Nas traseiras, situava-se o pequeno gabinete do xerife, do tamanho de uma guarita. À esquerda, por trás de uma porta, ficava a casa de banho e uma única cela.
Só havia mais uma pessoa na esquadra, uma jovem que estava a chorar, em frente de um computador. Quando a chefe e Jordan entraram, a rapariga enxugou os olhos com a manga da camisa e baixou a cabeça. Jordan pôde ouvir a chefe soltar uma imprecação, em voz baixa.
- Continuas com problemas, Carrie?
- Já sabe que detesto isto.
- Claro que sei. Não fizeste outra coisa senão queixares-te, desde que aceitaste este lugar.
- Não aceitei este lugar - murmurou Carrie. - Foi-me imposto. E nem por isso me queixei muito.
- Não discutas comigo em frente de um suspeito.
- Sou um suspeito? - perguntou Jordan.
Esperava que a chefe lhe dissesse que obviamente era um suspeito. Afinal de contas, o corpo aparecera no seu carro. A chefe iria ler-lhe os seus direitos, e Jordan pediria então a presença de um advogado.
Nada disso aconteceu.
- Se é um suspeito? - repetiu a chefe. Inclinou a cabeça para o lado e franziu as sobrancelhas, como se não conseguisse chegar a uma conclusão. - vou determinar isso depois de a interrogar.
92
Jordan julgou que a mulher estava a gracejar, mas o aspeto da sua cara indicava que, na realidade, falava a sério. Pensaria que Jordan iria, de sua livre vontade, responder a todas as perguntas que lhe fizesse e se incriminasse a si própria para que a chefe a pudesse prender? Era surrealista, considerou. Era pura e simplesmente surrealista.
A cela, porém, era bastante real. Estava postada num recanto, por trás da divisão principal.
A chefe conduziu Jordan até àquele cubículo, saiu e fechou a porta.
- Vou deixá-la encerrada aqui para ter a certeza de que não foge, enquanto vou falar com os peritos que estão a examinar o local do crime. E vou levar a chave comigo - acrescentou Haden -, para o caso de aparecer alguém que queira libertá-la.
Jordan não disse nada. Não conseguiu fazê-lo. Estava sem palavras. Precisava de acalmar-se e de pôr as ideias em ordem. Por isso, sentou-se na enxerga e pôs as mãos em cima dos joelhos, com as palmas para cima; endireitou o tronco e focou a vista na parede de pedra à sua frente. Passados alguns minutos, fechou os olhos e tentou recordar-se de alguns dos seus exercícios de ioga com o objetivo de obter o que o seu instrutor denominava "paz interior". Muito bem, paz interior era coisa fora de questão, mas se conseguisse fazer com que o coração deixasse de bater apressadamente e a sua respiração ficasse normal, talvez pudesse deixar de sentir-se tão aterrorizada.
Passaram duas horas e mais algum tempo antes que a chefe regressasse à esquadra. Abriu a cela e arrastou consigo uma cadeira de costas direitas. Jordan pôde ouvir a assistente da chefe a murmurar qualquer coisa na sala, mas não foi capaz de perceber o que estava ela a dizer.
- A sua assistente está a chorar? - perguntou.
A chefe Haden ficou tensa e respondeu:
- Claro que não. Seria uma falta de profissionalismo.
Ouviram ambas um soluço.
- com certeza enganei-me - disse Jordan.
- vou gravar esta entrevista - anunciou Haden, enquanto exibia um pequeno gravador que colocou em cima da enxerga.
A chefe de polícia era incrivelmente inepta. Jordan teve vontade de lhe perguntar se alguma vez havia investigado um homicídio,
93
mas tal pergunta só iria irritá-la ainda mais, particularmente se Jordan acentuasse que ainda não a havia informado dos seus direitos.
- Tenho umas perguntas a fazer-lhe. Está pronta para me responder com sinceridade? - Não esperou que Jordan respondesse e prosseguiu: - Pode começar por dizer-me como lhe foi possível guiar um carro sem saber que havia um cadáver dentro dele.
O tom acusatório de Haden não agradou a Jordan.
- Já lhe disse que fui buscar o carro à garagem e não olhei para dentro da mala até sair do supermercado.
- Esse seu amigo, o tal professor MacKenna, encontrou-se consigo num dia e, dois dias depois, foi descoberto assassinado, e você não faz ideia nenhuma do que aconteceu, não é assim?
- Acho que devia contar com a presença de um advogado, se vai continuar a fazer-me essas perguntas - declarou delicadamente Jordan.
A chefe Haden fez de conta que não a tinha ouvido.
Se era aquele o jogo, então também iria participar nele, decidiu Jordan. E, a partir de então, fez de conta que não percebia nenhuma das perguntas feitas pela chefe.
A certa altura, Haden parou, frustrada.
- Julguei que podíamos ter uma conversa amigável - acentuou.
Jordan pôs a cabeça de lado e fitou a mulher.
- Fechou-me numa cela e está a gravar tudo quanto eu digo. Não me parece que se trate de uma conversa amigável.
- Ouça! Não vai ser capaz de me intimidar, como o fez com os irmãos Dickey, com esse seu falatório acerca do FBI e do Departamento de Justiça. Pode contar com a presença de um advogado, quando eu a autorizar e, já agora, fique a saber que, por se negar a cooperar, está a tornar-se cada vez mais suspeita nesta investigação de um homicídio.
Desligou o gravador e por fim decidiu-se a informar Jordan dos seus direitos. Arrastou depois a cadeira para fora da cela e fechou a porta, com estrépito.
Passada uma hora, a sua cabeça surgiu por trás da esquina, enquanto dizia:
- Aqui tem uma lista telefónica. Pode consultá-la e escolher o seu advogado. Pode até mandá-lo vir do Leste, se for isso que
94
quiser, mas vai ficar fechada nessa cela até responder às minhas perguntas. Não me importo de esperar o tempo que for necessário. - Entregou-lhe a lista telefónica e acrescentou: - Quando quiser fazer a chamada, diga-me.
Podiam levá-la a ser acusada de homicídio? Se ao menos soubesse a altura aproximada em que fora assassinado o professor, seria capaz de calcular onde então se encontrava e se alguém a havia visto nesse lugar. Fazia votos para que MacKenna não tivesse sido morto durante a noite, porque não conseguiria provar que permanecera no seu quarto, no motel. Poderiam dizer então que ela fora a correr a casa do professor e o matara. Mas como fizera para enfiar o cadáver no porta-bagagens do seu carro, que nessa altura se achava fechado no interior da Lloyds Garage? E que motivo tinha ela para o matar? Conseguiriam eles inventar algum?
Assim, não ia a parte alguma. Não dispunha de informação bastante para arquitetar nenhuma espécie de defesa... ou para apresentar um álibi. Não sabia sequer como fora assassinado o professor. Ficara demasiado perturbada, ao vê-lo ali, embrulhado no saco como se fosse lixo, que nem conseguira examiná-lo bem. Achava-se perfeitamente fora do seu elemento... ou da sua zona privada de conforto, como diria Noah. Fora tudo culpa sua, ponderou, já que havia sido Noah quem lhe mostrara como a sua vida era chata. Tinha sido inteiramente feliz, enquanto não se apercebera da monotonia da sua vida, E agora sentia-se impotente. Para sobreviver, o corpo precisava de beber e comer, mas, no caso de Jordan, também carecia de ter um computador e um telemóvel à mão. Sem aqueles artefactos tecnológicos, ficava completamente à deriva.
Jordan detestava sentir que não podia controlar uma situação. Quando saísse dali... se alguma vez saísse... ocuparia os próximos anos a frequentar a faculdade de Direito. Não se sentiria tão vulnerável se conhecesse as leis, não era verdade?
A chefe interrompeu o seu rol de lamentações.
- Vai telefonar a um advogado ou não?
- Decidi esperar pela chegada do meu irmão.
A chefe resmungou:
- Vai agarrar-se a essa história? Só está a querer ganhar tempo, nada mais do que isso. Em breve, vai mudar de atitude, porque
95
não terá nada para beber ou para comer enquanto não resolver cooperar comigo. Não me importa o tempo que isso possa levar. Faço-a morrer de fome, se for preciso - ameaçou.
- E isso é legal? - perguntou Jordan, com voz suave.
Haden tinha um temperamento realmente perverso. Bateu várias vezes no peito, enquanto bradava:
- Posso fazer tudo aquilo que quiser, nesta cidade. Percebeu? Não sou tão meiga como pareço!
Jordan não pôde resistir.
- Ninguém diria que parece meiga.
Conseguira irritar a chefe, cujo rosto se tornou vermelho de cólera.
- Gostaria de saber se seria tão desbocada, se eu decidisse entregá-la aos irmãos Dickey.
Apontou um dedo para Jordan e mostrava-se prestes a proferir qualquer outra ameaça, quando foi interrompida por Carrie.
- Maggie?
- Já te disse para me tratares por chefe Haden! - berrou a mulher.
- Chefe Haden!
- Que é?
- Chegou o FBI.
96
CAPÍTULO ONZE

- Onde está ela? - perguntou Nick.
- Esta investigação é minha - lançou a chefe Haden. - O FBI não tem nada que fazer aqui.
Nick e Noah haviam entrado na esquadra de polícia, julgando que iam lidar com um competente profissional das forças da ordem. Estavam redondamente enganados. Nenhum deles, porém, se encontrava com disposição para debater estúpidas questões de competência territorial.
- Ele fez-lhe uma pergunta - rosnou Noah. - Onde está ela?
- Não interessa onde está - ripostou Haden. - Como já lhes disse, esta investigação é minha. Você e o seu amigo têm de sair da minha esquadra.
Nick já lhe havia referido que Jordan era sua irmã e mostrara-lhe as suas credenciais e os seus documentos de identificação. Agora, chegara a vez dela. Ia ter de responder, fosse como fosse, às perguntas que ele fizesse.
A chefe Haden dera um passo atrás para se afastar da ira de Nick, mas ficara com as costas encostadas à balaustrada e não podia recuar mais. Sabia que começara mal, mas não estava decidida a ceder. Quanto mais cedo aqueles dois percebessem quem mandava ali, tanto melhor.
O homem que se identificara como agente Nick Buchanan era intimidante e arrebatado mas nada que se comparasse, em termos de inspirar terror, com o agente que o acompanhava. Havia algo nos seus penetrantes olhos azuis que lhe dizia que não se atravessasse no seu caminho. Haden sabia que não era preciso muito para
97
que ele saltasse sobre ela e não queria ser alvo de sua fúria. A única alternativa que lhe restava era atacar primeiro.
Nick achava-se prestes a perder as estribeiras, quando a jovem sentada à frente de um computador sem qualquer imagem no ecrã se intrometeu na conversa.
- A sua irmã está sentada na cela que fica ali no canto. Encontra-se bem, mas esperem até a ver.
Quando prestou aquela informação, enrolava no dedo uma mecha do seu comprido cabelo encaracolado e sorria para Noah.
- A minha irmã encontra-se numa cela? - exclamou Nick.
- Exatamente - respondeu a chefe, depois de fulminar a assistente com o olhar.
- E de que é acusada?
- Não quero, por enquanto, divulgar essa informação - replicou Haden. - E você não vai vê-la nem falar-lhe até eu haver terminado com ela.
- Nick, que foi que ela disse? Até haver terminado com ela? - perguntou Noah, em tom jocoso.
Nick não desviou os olhos da chefe, quando respondeu:
- Foi o que ela disse.
A chefe espetou o lábio inferior e semicerrou os olhos.
- Você não dispõe de jurisdição neste lugar - afirmou.
- Ela julga que pode meter-se com o governo federal - fez notar Noah.
Haden estava furiosa. Os dois agentes estavam a pressioná-la. Empurrou a abertura da balaustrada e postou-se junto da porta que dava acesso à cela, para impedir a passagem.
Em seu entender os agentes do FBI eram dois rufiões arrogantes que estavam a querer humilhá-la. Julgavam-se muito importantes e, de forma insolente, tentavam forçá-la a aceitar essa importância. Não sabiam, porém, com quem estavam a lidar. O facto de uma mulher chegar ao cargo de chefe de polícia de Serenity, Texas, devia ser bastante para lhes mostrar que ela não era uma qualquer. Se bem que Serenity fosse uma cidadezinha insignificante, tivera de lutar bastante, na cama e fora dela, para alcançar a posição que era agora a sua. Aqueles dois matulões musculados, com distintivos e pistolas, tinham-na deixado enervada por alguns minutos, mas agora já readquirira o controlo de si própria e eles não iam
98
dizer-lhe o que tinha de fazer. Que se lixassem! Aquela era a sua cidade e em Serenity mandava ela. Era ela quem detinha o poder.
Vou dizer-lhes o que podemos fazer. Forneçam à minha assistente os números dos vossos telemóveis e, quando eu acabar de interrogar a suspeita, ligo-vos. - Dirigindo-se a Nick, acrescentou: - E agora vá-se embora, saia da minha esquadra e deixe-me voltar ao meu trabalho.
O irmão da suspeita abriu um sorriso e Haden pensou que ele talvez fosse desatar a rir. Tal possibilidade não era nada agradável.
- Como vamos resolver esta situação? - quis saber Nick.
A bravata de Haden cessou bruscamente, quando Noah começou a caminhar na sua direção. Ela afastou-se do seu caminho. Se não o tivesse feito, ele tê-la-ia atropelado ou passado através dela. Não havia dúvidas.
Noah lançou um olhar a Nick, por cima do ombro, e sorriu.
Nick admitiu:
- Está bem, continuas a ter o dom.
O "dom" era o da tática do terror. Noah fora sempre capaz de fazer enregelar fosse quem fosse, homem ou mulher, com um olhar duro. No entender de Noah, Nick, por seu turno, não aprendera ainda a dominar essa arte na perfeição.
- Podes tirar-lhe a chave - disse Noah.
- Ouça! Não vou permitir que aquela mulher saia até começar a mostrar-se cooperante - exclamou Haden, mal-humorada.
Do outro lado da parede, Jordan esperava pacientemente que alguém aparecesse para a tirar dali. Sabia que Nick e Noah haviam chegado porque conseguira ouvir a chefe da polícia a discutir. Ao ver Noah, deixou descair os ombros, aliviada. Estava tão contente por o ver.
Noah ficou estarrecido perante o seu aspeto.
- Que te aconteceu? Estás com um ar horrível.
- Obrigada. Também fiquei encantada por te ver.
Noah ignorou o sarcasmo. Dadas as circunstâncias, a maioria das mulheres estaria transtornada, mas Jordan não pertencia a essa maioria. Por mais destroçada que se encontrasse, conseguia sempre manter-se de cabeça erguida. Não podia senão admirar a sua energia.
Encostou-se às barras de metal da cela e sorriu-lhe.
99
- Queres sair daqui?
Exasperada, Jordan replicou:
- Que achas?
- Então, vamos fazer uma coisa. Tu contas-me o que aconteceu a esse teu bonito rosto e eu deixo-te sair.
Jordan tocara ao de leve na face e fez um esgar de dor.
- Entrou em colisão com um punho. O Nick ainda está lá fora? Não o ouço falar.
- Não me parece que possas ouvir seja o que for, com os guinchos daquela mulher.
- Como conseguiram chegar aqui tão depressa? Julguei que iam mandar alguns agentes do distrito.
- Consegui alugar um pequeno avião, e por isso não foi necessário recorrer a eles.
- O Nick entrou de boa vontade numa avioneta? É preciso uma grande dose de insistente persuasão para o levar a entrar num Jumbo das linhas comerciais. Não consigo imaginá-lo a voar num avião pequeno.
- Eu não disse que o fez de boa vontade, pois não? Foi preciso empurrá-lo e levá-lo quase ao colo.
Jordan mostrou-se impressionada.
- E enjoou? - perguntou, sorrindo perante tal hipótese. Seria cómico ver o irmão ficar esverdeado.
- Claro que sim.
Jordan riu-se.
- Fico tão contente por vocês os dois estarem aqui - afirmou.
Noah encolheu os ombros.
- E deves ficar.
A sua arrogância, naquela ocasião, não a incomodou excessivamente. Ouviu de novo a chefe elevar o tom de voz e perguntou:
- Que está a passar-se ali fora?
- Nada de especial. O teu irmão está só a ter uma pequena conversa com a chefe de polícia.
- A chefe Haden é realmente uma doçura, não é verdade?
Noah riu-se.
- Tão doce como uma cascavel - retorquiu ele. - Está a tentar dar má fama ao estado em que eu nasci, mas não te preocupes com isso. O Nick pode bem com ela.
100
Jordan pôs-se em pé e tentou alisar as rugas da blusa.
- Consegues descobrir a chave para me tirares desta cela? - perguntou com voz doce.
- Claro que consigo - declarou Noah. - Logo que me digas a quem pertence o punho que embateu na tua cara.
Nesse momento, Haden irrompeu de trás da esquina da parede, com expressão azeda e uma chave na mão. Abriu a porta da cela, resmungou entre dentes qualquer coisa que Jordan fez de conta que não ouviu e declarou:
- Foi-me... sugerido que nos sentássemos e falássemos acerca do caso. Percebe... Para chegarmos ao fundo deste mistério.
Nick ficou parado no vão da porta. O cabelo de Jordan havia caído para a frente, cobrindo-lhe parcialmente o rosto, mas, quando ela o sacudiu para cima do ombro, o irmão pôde ver claramente o ferimento.
- Que te aconteceu? - exclamou. - Que filho da...
- Não tem importância - apressou-se Jordan a dizer, antes que ele pudesse completar a obscenidade. - Estou bem, a sério.
Os olhos de Nick dardejavam de cólera, quando se dirigiu à chefe.
- É você a responsável por isto?
- Claro que não sou eu a responsável - ripostou a mulher.
- Nem sequer estava presente, quando ocorreu o alegado incidente.
- Alegado? - Noah girou sobre si próprio para enfrentar Haden.
- Jordan, quem te bateu? - inquiriu Nick.
A chefe abriu a porta, quando Nick formulou aquela pergunta. No entanto, não se afastou, o que levou Noah a avançar para agarrar o braço de Jordan e a puxar para si.
- Jordan, responde-me! - ordenou Nick.
- O nome dele é J.D. Dickey. Não sei o que quer dizer o J nem o D. Randy, o irmão dele, é o xerife de Jessup County. Chegaram ambos no carro do xerife Randy. Agora, encontram-si em Grady County - acrescentou.
- E porque não foi preso o tipo que te agrediu?
- Tentei apresentar queixa contra ele.
- Que queres dizer com isso? Tentaste? - perguntou Nick.
- Quero dizer que tentei, mas ela não me deixou.
101
O seu irmão e Noah ficaram sem palavras. Nunca haviam encontrado ninguém que fosse tão incompetente.
Dirigiram-se todos para a sala da frente. Uma vez que não havia cadeiras suficientes nem espaço para as colocar, acabaram por ficar agrupados, de pé, junto da secretária da assistente. Jordan apercebeu-se de que Carrie estava a tentar chamar a atenção de Noah, mas sem grande sucesso.
Maggie Haden contornou o grupo em direção ao seu gabinete e sentou-se no rebordo da secretária, fazendo balouçar o pé impacientemente, enquanto escutava a conversa.
- Vamos trazê-lo para aqui - prometeu Noah.
- Onde é que foste presa? - inquiriu Nick.
- A três ou quatro quarteirões daqui.
- Ela nunca foi presa - contrapôs Haden.
- Então porque fui encerrada numa cela? Lembra-se do que me disse? Que não ia dar-me nada para beber nem para comer até eu responder às suas perguntas. Também afirmou que não se importava se eu morresse à fome.
- Nunca disse nada disso.
Carrie havia-se contentado em olhar para Noah até ouvir aquela afirmação da chefe. Então, ergueu a cabeça e, por um momento, deixou de enrolar o cabelo.
- Sim, disse-o. Ouvi-a dizê-lo - declarou.
- Estava a fazer bluff- argumentou Haden.
- A fazer bluff! - exclamou Noah. - Nick, não é isso que consideramos mentir a um agente federal e obstrução à justiça?
- Esperem aí - a voz de Haden havia subido uma oitava. - A sua irmã não estava a querer cooperar. Por isso, tive de a encerrar na cela.
- Jordan, o que ela diz é verdade? - perguntou Nick.
- Que achas?
- Responde à minha pergunta - ordenou Nick, impaciente. Nick estava agora a comportar-se mais como um irmão mais velho do que como um agente do FBI, mas Jordan achava-se ainda por demais contente e grata por ele se achar ali para se incomodar com a sua atitude autoritária.
- Pedi a presença de um advogado - começou - e também informei a chefe Haden de que te havia chamado. Ela comunicou-me então que eu não era uma suspeita, mas que ia interrogar-me
102
com o gravador ligado. Quando eu disse que não ia responder às suas perguntas acusatórias sem a presença de um advogado, mudou de opinião e decidiu que, afinal de contas, eu era uma suspeita.
Voltando-se para a mulher, que exibia um rosto carrancudo, declarou:
- Já não me lembro bem. Foi antes ou depois de ameaçar entregar-me aos irmãos Dickey?
Voltaram-se todos para Haden, aguardando as suas explicações.
O peito de Haden pareceu inchar, enquanto respirava fundo.
- Ameaçou, sim - interveio Carrie. - Disse que...
A chefe fê-la calar-se, com um olhar fulminante.
- Cala essa boca, Carrie, e volta a ocupar-te desse computador. Estás em regime de trabalho para a comunidade e não em férias.
O rosto de Carrie ficou vermelho. Baixou a cabeça e fixou os olhos no teclado. Jordan podia ver que ela ficara embaraçada por Nick e Noah terem ficado a saber que estava em liberdade condicional.
- Não consigo trabalhar com o computador. Esta estúpida máquina está avariada.
Jordan sentiu pena da rapariga e perguntou a si própria o que seria pior: trabalhar para aquela mulher diabólica ou voltar à prisão para cumprir o resto da pena.
A voz de Carrie demonstrava o seu desespero.
- Não sei o que hei de fazer.
Por muito aborrecedor que fosse prestar uma ajuda a Haden, mesmo inadvertidamente, Jordan não pôde impedir-se de auxiliar Carrie. com um suspiro, postou-se ao lado dela, premiu duas teclas, esperou meio segundo e depois carregou em mais duas. O monitor acendeu-se.
Carrie deu a impressão de haver assistido a um milagre. De olhos arregalados, fitou Jordan e sussurrou:
- Como o conseguiu?
Enquanto Jordan explicava o que havia feito, Nick discutia com Haden acerca de jurisdição. A mulher gostava daquela palavra e servia-se dela como resposta, fosse qual fosse a pergunta.
- O médico-legista forneceu-lhe a hora aproximada da morte da vítima?
103
- Esta jurisdição é minha, e por conseguinte, o caso também é meu. Você não tem nada a ver com isto.
- Porque não trouxe o J.D. e o irmão para a esquadra? - perguntou Nick.
- Que quer você do xerife?
- Que estava ele a fazer em Grady County?
- Esta jurisdição é minha - bufou Haden.
- Quando vai você prender o J.D. Dickey? - inquiriu Nick.
O telemóvel de Haden tocou. Voltou as costas aos agentes e contornou a sua secretária.
Cobrindo a boca com a mão, disse em voz baixa:
- Sim, sei quem está a falar. Ouve uma coisa. Estão a pressionar-me para te prender. - Passaram alguns segundos e depois Haden prosseguiu: - Por teres dado um soco na mulher. Porque julgas tu que eles querem que te prenda?
- Ela não percebe que conseguimos ouvir tudo o que ela está a dizer? - perguntou Noah a Nick.
- Parece que não.
Haden havia alterado a voz.
- E estou a dizer-te que estou de mãos atadas. Estou a fazer o melhor que posso.
Desligou a chamada e atirou o telemóvel para cima da secretária. Nick esperou que ela se voltasse, antes de lhe perguntar o que era óbvio:
- Esteve a falar com o J.D. Dickey?
- Não, não estive.
- Se não o trouxer para aqui, fazemo-lo nós.
- Esta jurisdição é minha.
Nick perguntou-lhe outra vez se o médico-legista não lhe fornecera a hora aproximada em que morrera o professor MacKenna.
- Já respondi a essa pergunta. Esta jurisdição é minha e este caso é meu. - Cruzou os braços e começou a bater com o pé no chão. - Quero que saiam daqui...
- Não vamos sair - interrompeu-a Noah.
- Qual foi a causa da morte? - inquiriu Nick
- A jurisdição é minha - repetiu Haden, fazendo arrastar a última palavra.
E as coisas continuaram assim. Fosse qual fosse a pergunta, tinham sempre a mesma resposta.
104
Jordan tinha a impressão de estar a assistir a uma partida de ténis, com o seu olhar a desviar-se alternadamente para o irmão e para Maggie Haden.
Carrie tocou-lhe no braço para chamar a sua atenção.
- Porque não consigo que a impressora imprima?
Jordan inclinou-se sobre a secretária e fez notar:
- A impressora não está ligada ao computador.
De seguida, virou a cabeça para continuar a assistir à discussão em curso. Carrie, porém, voltou à carga.
- Não pode ligá-la? - suplicou.
- Está bem.
- Encontrei o manual do computador - sussurrou. Estava agora de olhos postos na chefe para se assegurar de que esta não estava a ouvi-la. - Mas não o li. Disse à chefe que o tinha lido, mas... compreende. Estive ocupada com outras tarefas. Devo lê-lo, não é assim?
- É capaz de ser uma boa ideia - declarou Jordan. Contornou a mesa e começou a ligar o cabo, enquanto Carrie continuava a sussurrar:
- O seu irmão é muito bem-parecido, mas usa aliança. É uma aliança, não é?
Jordan sorriu.
- É, sim.
- A mulher dele ainda é viva? Quero dizer, alguns homens continuam a usar aliança durante anos, depois da morte das mulheres.
- Sim, a mulher dele está viva e são um casal feliz. Na verdade, ele e a mulher estão à espera do segundo filho, que deve nascer daqui a três meses.
A voz de Carrie tornou-se ainda mais baixa.
- O Jaffee também é muito bem-parecido. Quero dizer, está a perder o cabelo e tudo o mais, mas isso torna-o bastante sexy. Ia a passar pelo restaurante dele, durante a minha folga de ontem, e ele e os amigos estavam lá a falar consigo. Aquele rancheiro rico... sabe aquém me refiro... chama-se Whitaker... esse é um belo homem. Para o magro, mas acho que é musculado e eu adoro músculos. Aposto que ele faz exercício físico, não concorda?
Jordan não respondeu, mas Carrie não pareceu importar-se com isso.
105
- Mas aquele ali... - disse, acenando com a cabeça em direção a Noah - ...deve ser o homem mais sexy que jamais vi.
Haveria algum homem que Carrie não considerasse atraente? Há quanto tempo estaria ela presa? Jordan esperava que a conversa tivesse chegado ao seu termo, mas Carrie não estava disposta a largá-la.
- Quero dizer... Não acha?
- Sim, é sexy - replicou Jordan.
- Era o que eu calculava.
Jordan lançou uma mirada a Noah e apercebeu-se de que ele havia estado a observá-la. Teria ouvido a conversa? Esperava que não.
A chefe Haden tivera de atender outra chamada e Jordan aproveitou aquela oportunidade.
- Nick, e agora o que vai acontecer?
- Vamos esperar pela chegada do teu advogado.
- Quem é ele? - perguntou Jordan.
- Não o conheço, mas foi-me recomendado com grandes louvores.
- Foi o doutor Morganstern quem contactou com ele - explicou Noah.
Espantada, Jordan quase se engasgou e levou a mão à garganta.
- Contaram ao doutor Morganstern o que se passava comigo? Porque o fizeram?
O Dr. Morganstern era uma sumidade e a sua opinião era importante para ela. Não queria que ele fosse levado a pensar mal dela ou a julgar que fosse responsável pela embrulhada em que se vira metida.
- E isso que importa? - comentou Noah.
- Não deviam ter incomodado o doutor. Ele é um homem muito ocupado.
Nick abanou a cabeça.
- Trabalhamos para ele, lembras-te? Não podíamos abandonar o serviço sem lhe dizer para onde íamos. Tivemos de dizer-lhe o que íamos fazer e porquê.
- Porque é que isso te apoquenta? - quis saber Noah.
- Já te disse porquê. Ele é um homem muito ocupado - retorquiu Jordan, enquanto se acercava de Noah, sentando-se no tampo da secretária, junto dele. - A mim, não me faz diferença. Só não queria incomodá-lo, nada mais do que isso.
106
Noah deu-lhe uma cotovelada amistosa.
- É evidente que te importa. - Inclinou-se para ela e sussurrou: - Não mataste aquele tipo, pois não?
- Não, claro que não - murmurou ela, em resposta.
- Então, não tens nada com que te preocupar.
- Vai dizer isso à chefe Haden.
- Isso já não constitui um problema.
Antes que ela pudesse pedir-lhe uma explicação, tocou o telemóvel de Nick. Olhou para o visor e disse a Noah:
- É o Chaddick, como combinado.
Abriu a tampa do telemóvel e disse:
- E então? Que tens para nós?
Jordan tocou com os dedos no braço de Noah.
- Quem é o Chaddick?
- Um agente do FBI que está a fazer umas chamadas para nós e a averiguar umas quantas coisas. Vai intervir neste caso, se for preciso.
- Agradecia - disse Nick, ao telemóvel. - Certo. Encontro-me lá contigo. Telefono-te quando sair de Serenity. Consegues fazê-lo? Ótimo. Mais uma vez, obrigado.
Jordan e Noah olharam para Nick, na expectativa, logo que ele desligou o telemóvel.
- Estrangulamento - declarou Nick, sem qualquer preâmbulo.
- Então, foi algo de pessoal e muito próximo - fez notar Noah.
- Um crime violento - comentou Nick. - Foi utilizada uma corda. O Chaddick disse que foram encontradas algumas fibras incrustadas na pele.
- É preciso muita força para estrangular alguém. Duvido que Jordan tenha essa força. Mesmo chegando por trás, mesmo contando com o elemento de surpresa...
- Eu não estrangulei ninguém.
- Não lhe examinaste o pescoço? - perguntou Nick. - Viste algum ferimento ou descoloração?
- Não, não vi.
- Estavas a usar as tuas lentes de contacto? Conseguiste ver...
- Sim, tinha as lentes de contacto e podia ver perfeitamente.
107
- Então, como pudeste não notar...
Jordan interrompeu-o.
- Ouve uma coisa - disse, sentindo aumentar a sua irritação. - Estava por demais concentrada em ver que ele estava embrulhado como se fosse uma sanduíche. Oh! céus, nunca mais como nada que venha numa embalagem de plástico com fecho.
- Jordan, contém-te - exclamou Nick. - Não é o momento de ficares exaltada. Sei que tudo isto é suficiente para te deixar enervada...
- Enervada? - Saltou da secretária e deu um passo em direção ao irmão. - Da maneira como me sinto, enervada é palavra mais do que insuficiente.
Nick ergueu uma das mãos.
- Acalma-te. Estou só a tentar obter tantas informações quantas forem possíveis, antes que o teu advogado chegue aqui. Teria sido melhor se te servisses do teu poder de observação...
Jordan avançou outro passo.
- Sabes o que teria sido melhor? Ter chamado o Theo.
Noah segurou-a pelo braço e empurrou-a para trás.
- Mas não chamaste o Theo. Chamaste o Nick. Respira fundo, está bem?
Obrigou-a a sentar-se de novo na secretária.
- Que sugeres que façamos com ela? - perguntou-lhe, apontando com a cabeça na direção da chefe Haden. A mulher andava de um lado para o outro no seu gabinete, enquanto falava ao telemóvel. - Acho que devíamos fechá-la na cela e deitar fora a chave.
- Jordan?
Era Carrie que a chamava pelo nome.
- Sim, Carrie?
- Não devia zangar-se com o seu irmão. Quem me dera ter um irmão que me ajudasse, quando me meto em sarilhos. Tenho um irmão - adiantou, com azedume. - Era ele que estava no carro em que devíamos fugir. Ele ainda arrancou, mas não foi muito longe. Também o apanharam.
Jordan não sabia o que dizer, por isso limitou-se a assentir com a cabeça.
- Uma vez que me ajudou com aquele estúpido computador, quero ajudá-la também. Sabe que a Maggie... Quero dizer, a chefe
108
Haden... viveu com o xerife Randy Dickey? Toda a gente da cidade julgava que iam casar-se. Ela também o queria, mas ele casou-se com outra. E sabe o que ouvi dizer? O xerife Randy, por intermédio da mulher, tem ligações com um dos membros do conselho municipal e conseguiu que dessem o lugar de chefe de polícia a Maggie para que ela tivesse de se mudar para Serenity. Também me contaram que, de qualquer maneira, a Maggie ia ser despedida do antigo emprego. - Carrie colocou a mão ao lado da boca como se fosse revelar um segredo e murmurou: - Já então não prestava e fez uma data de favores aos irmãos Dickey. - Piscou o olho e acrescentou: - Permitiu que eles se safassem de muitos sarilhos. Pelo menos, foi isso que ouvi dizer.
- E o adjunto dela? Como é ele?
- Oh! nada que se pareça com ela. Era ele que devia ter obtido o lugar de chefe de polícia. Tem muito mais experiência do que ela e trabalha aqui há mais tempo. Ouvi dizer que anda à procura de um emprego, fora de Serenity.
- Não me custa a crer. Deve ser horroroso ter de trabalhar com ela.
- Posso chamá-lo, se quiser.
- Consegue fazê-lo?
- Estou certa de que consigo. O adjunto Davis pode ser bastante austero, mas é honesto e, tanto quanto sei, só vai para a cama com a mulher. Trata-me como gente.
- Queres que a Carrie tente ligar ao adjunto da chefe Haden? ?- perguntou Jordan a Noah.
- Seria bom - replicou ele, sorrindo para a jovem.
Carrie não se mexeu. Ficou sentada, a olhar para Noah como se estivesse hipnotizada. Jordan teve de lhe bater com a mão no ombro.
- Ele disse que seria bom.
- O quê?
- Que seria bom que você tentasse encontrar o adjunto Davis.
- Ah!... está bem.
Sem olhar, Carrie pegou no auscultador do telefone que se encontrava no outro lado da secretária e tentou levá-lo ao ouvido. Contudo, o fio era demasiado curto, e por isso o telefone veio atrás, atirando para o chão uma lata de água tónica e uma grande quantidade de dossiês.
109
- Chiça! - exclamou Carrie, saltando do seu lugar e contornando a mesa para apanhar do chão o que caíra. - Que estúpida sou!
Noah agachou-se para a ajudar.
- Não, não é. Um acidente pode acontecer seja a quem for.
- Especialmente a mim - lamentou-se Carrie. Pegou na caixa de lenços de papel colocada sobre a secretária e enxugou o líquido derramado. - Sinto-me tão embaraçada. Devo parecer uma lagosta. Sinto a cara a ficar vermelha.
Noah endireitou uma pilha de dossiês e entregou-lha.
- Acho que é uma cara bem bonita.
Quando lhe pegou no braço para a ajudar a levantar-se, as faces rosadas de Carrie tinham ficado de um vermelho intenso.
- Obrigada - disse ela.
- Consegue descobrir a lista dos membros do conselho municipal? - pediu Nick, do outro lado da sala.
A atenção de Carrie desviou-se para ele.
- Consigo, sim. Estão aqui na agenda. São só três.
- Convoca-os para virem até aqui - disse Nick a Noah. - Têm de ser eles a substituí-la oficialmente.
- Vão substituir a chefe Haden? - perguntou Carrie.
Maggie Haden acabara de falar ao telemóvel e arvorava um ar presunçoso até ouvir um fragmento da conversa.
- Ninguém vai substituir-me - declarou, enquanto saía do seu gabinete. De testa franzida, o seu olhar estava fixo em Jordan.
- Eu sabia que tinha razão a seu respeito. Acabo de ter uma interessante conversa com o Lloyd. Lembra-se dele? - perguntou aJordan.
Como podia ela tê-lo esquecido?
- Claro que me lembro. Reparou o meu carro.
- Ele afirmou que você o ameaçou.
Jordan foi apanhada de surpresa.
- Ele... o quê?
- Ouviu o que eu lhe disse. Ele diz que você o intimidou.
- Não o ameacei.
- Pois ele diz que o fez. Afirma que você lhe disse que ia fazer-lhe mal.
Ah! Jordan recordou-se da conversa.
- Talvez tenha...
110
- Basta! - exclamou Noah. - Jordan, não quero que digas nem mais uma palavra. - Voltando-se para Haden, acrescentou: - Mande o Lloyd vir até cá. Já!
- Você não vai dizer-me o que eu tenho de fazer - e começou a caminhar na direção de Jordan, com a mão pousada na pistola que trazia à cintura.
Quando Noah se interpôs, a chefe Haden ergueu o braço e espetou-lhe o cotovelo no peito.
- Chega! - exclamou Noah. Pegou-lhe firmemente no braço e fê-la voltar-se para a porta que conduzia à cela. - Chefe Haden, tem o direito de permanecer calada...
Os olhos de Haden semicerraram-se.
- Não me diga quais são os meus direitos.
- Tenho de o fazer - replicou Noah. - Estou a efetuar uma detenção.
Haden tentou sacudi-lo para se libertar da sua mão e pegou nas algemas que se encontravam em cima da mesa.
- É um ultraje! - A sua voz tornou-se sibilante. - Não tem o direito!
Fez balouçar as algemas e golpeou com elas o ombro de Noah. Noah tirou-lhe as algemas da mão e a pistola do coldre e empurrou-a à sua frente.
- Obstrução a uma investigação criminal e agressão a um agente federal... creio que é mais do que suficiente.
- Conheço muita gente! - berrou Haden, enquanto Noah a enfiava na cela.
- Estou certo disso - concordou ele.
- Gente poderosa e influente!
- Tanto melhor para si. - Noah fechou-lhe a porta na cara.
- Vai ficar aí até ser transferida para uma cadeia federal para instauração de um processo.
- Isso são tretas! - exclamou Haden.
- Vai precisar de um advogado. Se fosse a si, escolheria um que fosse bastante bom.
A mulher percebeu finalmente que Noah não estava a brincar.
- Espere aí. Está bem, está bem. vou cooperar com vocês.
Carrie assistiu à cena de olhos arregalados. Queria levantar-se e aplaudir, mas sabia que tal atitude poderia vir a voltar-se contra
111
si. O agente encarregado da sua liberdade condicional advertira-a de que os gestos impulsivos é que a haviam levado à cadeia e, se quisesse mudar de vida, teria de aprender a pensar antes de agir. Além disso, a chefe acabaria por sair da prisão, não era assim? Quando Noah passou por Nick, disse-lhe:
- Não há nada que eu mais deteste do que um polícia corrupto.
Olhou pela janela. Um automóvel de último modelo estava a parar em frente da esquadra. Do lugar do condutor apeou-se um homem que trazia uma pasta numa das mãos, enquanto com a outra segurava um telemóvel encostado ao ouvido.
Noah voltou-se para Jordan.
- Chegou o teu advogado.
112
CAPÍTULO DOZE

Louis Maxwell Garcia era o símbolo perfeito da elegância. Transpirava confiança e charme. O seu sorriso era radioso e a modos que sincero e as suas maneiras tão polidas como o alabastro. Nem o seu fato feito por um alfaiate de nomeada nem a camisa engomada apresentavam uma ruga sequer.
Depois de efetuadas as apresentações, o advogado insistiu em que o tratassem por Max.
- O doutor Morganstern teceu-lhe muitos louvores - afirmou Nick. - Não é assim, Noah?
Noah não disse palavra. Limitou-se a aproximar-se de Jordan e a cruzar os braços sobre o peito. O seu rosto permaneceu impassível. Levava tempo a simpatizar fosse com quem fosse e mostrava-se sempre cético. Max, por muito boas referências de que dispusesse, tinha ainda de provar merecê-las.
- Ficamos gratos por haver aceitado este caso e por ter acorrido tão rapidamente - acrescentou Nick.
O olhar de Max estava fixado em Jordan.
- Eu nunca poderia recusar um pedido do doutor Morganstern.
- E porquê? - quis saber Noah.
- Ele fez-me muitos favores, ao longo dos anos - disse o advogado, voltando-se de seguida para Jordan. - Há algum sítio onde possamos falar em privado?
Jordan pensou em referir o gabinete da chefe de polícia, mas logo mudou de ideias. O cubículo com a porta fechada seria por demais claustrofobia).
- Na verdade, não há aqui nenhum lugar apropriado - declarou. - Podíamos ir sentar-nos no banco, lá fora, se o calor não o incomoda.
113
Max tinha um bom sorriso.
- Não constitui qualquer problema para mim. Estou habituado ao calor. Onde está o chefe de polícia? - perguntou a seguir. - Devia falar primeiro com ele para saber de que você é acusada. Seria ótimo se conseguíssemos que colaborasse connosco e nos desse as informações necessárias.
- Pois sim, mas isso não vai acontecer - retorquiu Noah.
- O chefe Haden é uma mulher - explicou Nick. - E o Noah tem razão. Ela não vai colaborar connosco.
- E por que razão? - inquiriu Max.
- Porque está lá atrás, fechada numa cela.
O advogado fez a pergunta que era óbvia.
- Mas porquê?
- Porque a prendi.
Jordan considerou que Max não ficara minimamente surpreendido, mas, enquanto advogado, estava decerto habituado a esconder as suas reações.
- Compreendo - disse. - E qual foi a causa da prisão?
Nick explicou o que se passava. Quando acabou, Max cofiou o queixo e perguntou:
- Há mais algumas surpresas que queira revelar-me?
- O doutor Morganstern explicou-lhe porque preciso de um advogado? - adiantou Jordan.
- Disse, sim. Contou-me que você descobriu qualquer coisa na mala do seu carro.
Carrie acenou com a mão para chamar a atenção de Jordan.
- Tenho aqui o adjunto Davis em linha - informou. Quem quer falar com ele?
- Falo eu - declarou Noah, contornando a secretária de Carrie para segurar no telefone.
Max espreitou pelo corredor que conduzia à cela.
- vou tentar falar com a chefe Haden - disse.
- Para quê?
- Quero tentar saber quais as provas de que ela dispõe.
- Vai perder o seu tempo.
A conversa de Noah com o adjunto demorou menos de um minuto. Depois de se identificar, disse ao adjunto que a sua superior estava presa e que era necessária a sua presença na esquadra, tão depressa quanto possível.
114
A conversa de Max com Haden foi muito mais demorada, muito embora não tivesse começado bem. Jordan torceu o nariz perante o rude vocabulário da mulher, mas, daí a poucos minutos, Haden deixara de falar aos berros e Jordan pensou que Max devia ter sabido cativá-la, fosse lá como fosse.
- Que te parece? - perguntou Nick. - Aquilo ali está muito calmo.
- Talvez o Max a tenha convencido a ser razoável - sugeriu Jordan.
- Não importa - contrapôs Noah. - Está a perder o tempo dele.
- Não vai deixá-la sair, pois não? - perguntou Carrie a Jordan, com preocupação na voz.
Max regressou à sala principal.
- A chefe de polícia não parece querer o conselho de um advogado e aceita que seria mais prudente colaborar com o FBI. Também aceita que, primeiro, realizemos a nossa conferência no exterior e que, quando acabarmos, nos sentemos aqui para conversar com ela.
- Isso não irá acontecer - replicou Noah, abanando a cabeça. Max ignorou a intervenção de Noah.
- Que lhe parece? Não seria melhor soltar a chefe? - perguntou a Nick.
Nick olhou para Noah, antes de responder. Jordan achou que o irmão ficara um tanto divertido com aquela pergunta. Será que Max esperava que ele contrariasse a opinião de Noah?
- O meu colega acaba de dizer-lhe que isso não irá acontecer e isso significa que não vai mesmo acontecer. - Antes que Max pudesse contrapor fosse o que fosse, prosseguiu: - O adjunto vem a caminho. Você e a Jordan podem conversar com ele.
Max olhou diretamente para Noah e adiantou:
- O doutor Morganstern preveniu-me acerca de ambos. Declarou que iam causar-me problemas.
Nick encolheu os ombros.
- Não vamos causar-lhe problemas, mas fazemos o que é preciso. Levamos o nosso trabalho até ao fim.
Max assentiu com a cabeça e pôs a mão no ombro de Jordan.
- Vamos lá para fora?
115
Nick abriu-lhes a porta.
- Jordan, agora que está aqui o teu advogado, vou a Bourbon para ver o cadáver - voltando-se para Noah, perguntou: - TU manténs tudo isto sob controlo, não é verdade?
- Não te preocupes - assegurou-lhe Noah.
Max pegou na pasta e encaminhou-se para o exterior, juntamente com Nick e Jordan. Noah seguiu-os e fechou a porta atrás de si.
O ar sufocante cortou a respiração a Jordan. Não acreditava que alguma vez conseguisse habituar-se àquele calor.
Depois de Nick partir, Max sentou-se no banco ao lado de Jordan. Abriu a pasta, tirou um bloco e uma caneta e estava ainda a fechar novamente a pasta quando Noah deu início ao interrogatório.
- Qual foi a faculdade de Direito que frequentou?
- Universidade de Stanford. Quando acabei o curso, ingressei numa sociedade de advogados da Costa Oeste e trabalhei lá, até há quatro anos.
- Porque saiu da sociedade?
- Queria mudar.
- Porquê?
Max sorriu.
- Cansei-me de defender os meninos de Silicon Valley que estavam a dar cabo das suas empresas "ponto com". Resolvi regressar a casa e começar tudo de novo.
As respostas de Max eram tão rápidas como as perguntas de Noah.
- Agradeço-lhe todo o auxílio que puder prestar-me - disse Jordan para interromper o interrogatório de Noah.
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance - garantiu afavelmente o advogado. Depois, virando-se para Noah, declarou: - Preciso de falar a sós com a minha constituinte.
Depois de ponderar a situação por alguns segundos, Noah virou-se para reentrar na esquadra.
- Jordan, se precisares de alguma coisa, chama-me - disse ainda.
- Fá-lo-ei - prometeu ela.
Ao contrário de Noah, o advogado não a metralhou com perguntas. Limitou-se a pedir-lhe que lhe relatasse os acontecimentos,
116
começar no casamento a que assistira e onde se encontrara pela primeira vez com o professor.
Max ouviu-a atentamente e tomou notas quando ela narrou os seus passos naquela manhã. Ao chegar à parte referente à agressão de J.D Dickey, Max ergueu uma das sobrancelhas.
- Já informei a chefe Haden de que ia apresentar queixa - explicou Jordan. - Mas ela recusou-se a aceitá-la.
- Ela disse-lhe qual a razão por que não ia prendê-lo?
Jordan abanou a cabeça e referiu o que lhe fora dito acerca do relacionamento de Haden com os irmãos Dickey.
- Vou falar com o adjunto Davis, logo que ele chegar - declarou Max. - Garanto-lhe que pode apresentar queixa contra o J.D. Dickey. Talvez seja obrigada a permanecer em Serenity um pouco mais do que planeava...
- Não sei - replicou Jordan, hesitante. - Creio que seria melhor largar tudo, sair da cidade e deixar todo este pesadelo para trás de mim.
- Compreendo - disse Max. Lançou-lhe um olhar compreensivo e tocou-lhe na mão. - Basta uma palavra sua para que eu obrigue Mister Dickey a responder pelo que lhe fez.
Noah permanecera à janela, observando a conversa que decorria no exterior entre Jordan e Max. Quando falava, Jordan mantinha os olhos fixos nos joelhos e Noah podia garantir que ela estava a recordar os acontecimentos daquele dia. Max Garcia tomava notas no seu bloco e, de quando em vez, lançava-lhe um olhar afetuoso.
- Advogados - resmungou Noah, com um toque de desprezo.
De súbito, um carro parou junto do passeio e um homem vestido com calças de ganga azuis e uma camisa aos quadrados encaminhou-se para o local onde se encontravam Max e Jordan e deu a cada um aperto de mão.
Carrie espreitava por outra janela.
- É o Joe - anunciou ela.
Joe Davis era ainda jovem, mas já tinha vincadas na testa rugas de preocupação. De imediato, apercebeu-se da pistola de Noah, quando este saiu da esquadra para se juntar a eles.
- É o agente com quem eu falei ao telefone? - perguntou Joe. - Clayborne, não é assim?
117
- Exatamente - respondeu Noah, avançando para lhe apertar a mão. - Espero que não seja como a chefe Haden porque senão vamos ter grandes problemas.
- Não, senhor. Não sou nada como ela - assegurou Davis. - Que grande embrulhada! Eu estava de visita ao rancho de um amigo e a minha mulher não conseguiu entrar em contacto comigo, antes de eu regressar a casa. Recebi três chamadas de três membros do Conselho Municipal. O presidente vai chegar dentro em pouco.
- E por que razão? - quis saber Max.
- Quer ser ele a despedir pessoalmente a chefe Haden. Andavam já à procura de um bom motivo para se verem livres dela, e agora, com esta detenção sem fundamento e a recusa em aceitar uma participação, parece-me que dispõem de motivos mais do que suficientes. Todos eles tiveram de lidar com queixas a seu respeito, durante o último ano. E nos últimos meses as queixas foram cada vez mais numerosas.
- Então, é você que fica a chefiar - concluiu Noah.
Davis acenou afirmativamente.
- Eu disse aos membros do Conselho que assumiria esse encargo até eles arranjarem um substituto - Depois, voltou-se para Max e perguntou-lhe: - A sua constituinte está preparada para falar comigo?
Jordan fez que sim com a cabeça. E as perguntas começaram de novo.
118
CAPÍTULO TREZE

J.D. estava em frenesim. Sabia que precisava de ficar sozinho durante algum tempo para controlar o seu temperamento, antes que fizesse mais alguma coisa de que mais tarde viria a arrepender-se. Conduziu ao longo de uma estrada poeirenta em direção a uma zona plana fora dos limites de Serenity. De mãos crispadas ao volante, derrapava numa curva, e depois noutra, quase perdendo o domínio da carrinha, enquanto rolava a grande velocidade. O veículo levantava uma onda de poeira à sua volta e ele mal conseguia ver o caminho por onde seguia por causa da sujidade que cobria o para-brisas. Quase caiu num barranco, mas virou para a direita, em cima de duas rodas, e retomou a estrada.
Logo a seguir, meteu travões a fundo, saltou da carrinha e começou a dar pontapés na porta, enquanto amaldiçoava a sua estupidez.
Estava num pânico tal que lhe era difícil pensar a preceito. Tinha consciência de que havia cometido um grande disparate, mas não podia fazer nada para o reparar. Era demasiado tarde. Randy estava furioso com ele, embora tivesse declarado que ia tentar arranjar as coisas.
Minorar os danos. Era tudo o que havia a fazer, naquele momento.
Sabia o que Cal estaria a dizer-lhe, naquela altura, se soubesse da terrível situação que havia criado. O seu companheiro de cela, quando estivera preso, ter-lhe-ia dito que assumisse a responsabilidade da sua falha e depois tentasse compreender o que correra mal. Aprender com os próprios erros. Quando um negócio corria mal, era imperativo descobrir o percalço que acontecera, antes de
119
empreender outro. Qualquer idiota o sabe. Sim, era isso o que Cal lhe teria dito. Era um homem tão ponderado e inteligente.
E que aprendera J.D.? Aprendera que se tornara por demais ganancioso. Levava uma vida bem aprazível com a sua nova carreira, até chegar o professor, que lhe pusera no espírito aquelas ideias de grandeza.
Não quisera que a vida aprazível acabasse e, decerto, não queria voltar para a cadeia, arriscando-se desta vez à injeção letal como condenação por homicídio premeditado.
Não tinha sorte, fora isso. Voltara por duas vezes ao quarto de Jordan Buchanan no motel, mas não conseguira entrar. Da primeira vez, Amélia Ann estava lá dentro com o aspirador, e da segunda fora encontrar dois eletricistas a instalar novas luzes mesmo em frente da porta.
Deixou de dar pontapés à carrinha e, inclinando-se para trás, encostou-se ao guarda-lamas. Limpou o suor e a sujidade da testa e tentou concentrar-se. Aquela cabra havia estragado tudo. Não, não era verdade. Ela complicara-lhe a vida, mas não dera cabo dela. Ainda podia arranjar as coisas. E também trataria dela, decidiu. Sim, ia tratar dela.
Mas havia outras coisas a fazer, primeiro. Tinha de acabar o trabalho e isso implicava manter Jordan Buchanan na cidade, até descobrir o que ela sabia. Que probabilidades havia de que soubesse a razão pela qual o professor tivera de ser silenciado? Praticamente nenhumas, calculou J.D.
Mesmo assim, precisava de ter a certeza.
120
CAPÍTULO CATORZE

A tortura chegou finalmente ao seu termo e, por volta das sete e meia da tarde, Jordan ficou livre de qualquer acusação ou responsabilidade. Assim que o novo chefe de polícia foi informado da hora oficial da morte - embora com uma margem de erro de três horas - e pôde confirmar o álibi de Jordan, esta ficou inteiramente livre.
Jordan havia relatado tudo o que fizera na tarde anterior. Apercebeu-se da sorte que tivera por nunca haver ficado sozinha, exceto quando fora deitar-se, mas nessa altura já o professor MacKenna estava morto havia muito.
O presidente do conselho municipal insistiu em despedir Maggie Haden enquanto esta se encontrava ainda atrás das grades. Também insistiu em que o chefe Davis não a deixasse sair da cela antes que ele abandonasse a esquadra.
Maggie não recebeu lá muito bem a notícia do seu despedimento.
- Tu já devias calcular que isto ia acabar por acontecer - disse-lhe Davis.
Sem grande surpresa, a resposta da mulher foi um palavrão e, enquanto reunia os seus pertences e os atirava para dentro de uma caixa de cartão, debitou uma tirada acerca da discriminação sexual.
- As pessoas queixaram-se de mim ao conselho porque sou Uma mulher. Tu nunca suportaste que o cargo fosse meu e não teu. Andaste a espicaçar o conselho para que se livrassem de mim.
- Não vais assumir a responsabilidade pelo que aconteceu hoje? - perguntou Davis.
121
- vou arranjar um advogado e processá-los a todos, a ti e aos outros. Quando acabar contigo, não vais ficar nem com um tostão.
- Ouve lá. Não tens razões de queixa. Custou-me imenso convencer o agente Clayborne a desistir da participação por agressão. Olha que ele ainda pode mudar de ideias.
- É uma acusação inventada.
A caixa em que metia as suas coisas estava no centro da secretária. Deu uma vista de olhos ao conteúdo e depois pegou na caixa e atirou-a contra a parede.
- Não preciso de toda esta porcaria!
- O que precisas é de sair daqui e já - disse Davis, tentando pegar-lhe no braço. Haden sacudiu-o.
- Não julgues que vais ficar confortavelmente instalado atrás da minha secretária. Não vais ser chefe de polícia por muito tempo. O meu advogado vai obrigar o conselho a devolver-me o cargo. vou voltar a usar o meu distintivo e a minha pistola antes que te dês conta disso. E depois a tua carreira terá chegado ao fim. A primeira coisa que farei é ver-me livre de ti.
Jordan havia caminhado até à berma do passeio para se despedir de Max, mas ainda podia ouvir os berros de Haden. Max entregou-lhe o seu cartão com todos os números de telefone, inclusivamente o do seu telemóvel privado para que, segundo declarou, pudesse chamá-lo a qualquer hora do dia ou da noite, se deparasse com qualquer problema.
- Sugiro que saia de Serenity tão depressa quanto possível - aconselhou - Quem depositou o cadáver no seu carro teve decerto uma razão para o fazer, Jordan. Se fosse a si, não ficaria na cidade para saber qual é essa razão. Deixe que seja a polícia local a conduzir a investigação. Se o chefe Davis precisar de ajuda, sabe que pode pedi-la ao Noah ou ao seu irmão. - Abruptamente, mudou de assunto. - Tenho de ir-me embora, mas queria perguntar-lhe...
- Sim? - disse Jordan, inquirindo a si própria porque estava ele tão hesitante.
- Irei a Boston, no próximo mês, para uma conferência e, se estivesse livre, gostaria muito de convidá-la para jantar.
Noah já havia agradecido ao advogado e ficara na porta, à espera de que Jordan se despedisse dele. Agora, ela estava a sorrir para
122
Max mas havia algo mais na sua expressão. Surpresa, calculou. Curioso, decidiu descobrir o que Max estava a dizer-lhe, mas foi interrompido pelo toque do seu telemóvel. Estava disposto a não atender a chamada, quando viu o número e mudou de ideias. Era Nick.
Jordan meteu o cartão de Max no bolso e ficou a ver o advogado entrar no carro e afastar-se. Acenou-lhe um gesto de despedida. Aquele gesto, fosse lá pelo que fosse, incomodou Noah. Pareceu-lhe demasiado... pessoal, demasiado amistoso. Perguntou a si próprio se Max ficara impressionado com Jordan e chegou à conclusão de que certamente ficara. Jordan era uma mulher bonita e Noah notara que o advogado se apercebera disso. O que também o incomodava. Não era um comportamento profissional que se esperasse do advogado, demonstrar tão grande interesse pessoal pelos dotes físicos de Jordan. Ah! sim, claro, ele também se apercebera deles, mas era diferente.
A porta por trás de Noah abriu-se com estrondo e Maggie Haden saiu disparada. Viu Jordan junto da berma do passeio e encaminhou-se para ela.
Jordan voltou-se e viu o olhar furioso de Haden, mas não recuou nem pediu socorro. Podia bem com ela. Manteve-se firme e esperou até ver o que a mulher enfurecida ia fazer. Estava pronta fosse para o que fosse.
Não teve oportunidade de o descobrir. Em dado momento, Haden ia a correr em direção a Jordan e, no seguinte, Jordan já tinha à frente dos olhos as costas de Noah. Como conseguira ele chegar tão depressa àquele local era coisa que não compreendia.
Haden estava a acusá-la de tudo, a não ser do calor. Como tiro de partida, berrou:
- Isto não fica assim!
- Fica, sim - garantiu Noah.
Jordan bateu com os dedos no ombro de Noah, mas ele não se voltou até Haden desaparecer de vista.
- Sim, que queres?
- Não precisas de te pôr à minha frente. Sei tomar conta de mim própria.
Ele brindou-a com o famoso sorriso Noah Clayborne.
- Achas que sim?
Afastou-lhe o cabelo para trás dos ombros e acariciou-lhe delicadamente uma das faces.
123
- Se sabes tomar conta de ti, porque tens a cara inchada?
Apanhara-a em falso.
- Foi um ataque de surpresa - retorquiu, teimosamente. - Não estava preparada.
Só depois de avançar aquela desculpa se apercebeu de como era esfarrapada.
- Compreendo. Portanto, quando estás preparada e não constitui uma surpresa, és capaz de tomar conta de ti própria? E de quanto tempo precisas para ficar precavida?
Jordan considerou que aquele sarcasmo não merecia resposta. Além disso, não lhe ocorria nenhuma.
- Os teus irmãos mais velhos não te ensinaram a defender-te?
- Claro que ensinaram. Ensinaram-me a mim e à Sidney tudo quanto há a propósito de defesa contra armas, disparar uma pistola e luta corporal. Tanto a limpa como a menos limpa - Acrescentou: - E mais uma data de coisas que não nos interessavam minimamente.
- E por que razão não vos interessavam?
- Porque éramos raparigas e gostávamos de coisas de raparigas.
- Conceber programas de computador é coisa de raparigas? - perguntou ele, com um sorriso. - O Nick contou-me que passas a vida a desenhar e a fazer cálculos.
- Ainda faço algumas coisas de rapariga - insistiu Jordan -, mas a Sidney e eu também prestámos atenção às lições dos nossos irmãos. A sério.
Noah mudou de assunto, abruptamente.
- Estás com fome?
- Estou a morrer de fome - queixou-se ela. - E descobri o restaurante perfeito para te levar a jantar. Vais adorar a comida. Mas achas que já podemos partir? O chefe Davis não vai...
- Ele sabe onde vais ficar esta noite. Podemos ir embora.
O restaurante ficava a poucos quarteirões de distância.
- Os meus óculos estão na minha mala de mão, que está no carro de aluguer - disse Jordan, enquanto caminhavam. - Achas que quando o Nick voltar vai trazê-los?
- O Nick não vai regressar a Serenity.
- E porque não?
Atravessaram a rua e viraram para sul.
124
- O doutor Morganstern chamou-o e quer que o Nick se encontre com ele em Boston, O Nick não sabe porquê.
- Também tens de ir?
- Não - respondeu ele. - Deram-me ordens para ficar ao pé de ti.
Jordan deu-lhe uma cotovelada.
- Não precisas de te mostrar tão contrariado. Sou assim tão chata?
Noah observou-a. Numa situação normal, teria ficado encantado com aquela perspetiva e com a oportunidade de passar a noite a vigiar uma mulher bonita, mas a situação não era normal e Jordan não era uma mulher qualquer.
- Achas que sou chata? - insistiu Jordan, ao ver que ele não lhe respondia.
Noah limitou-se a encolher os ombros.
- Porque é que o Nick te pediu...
- O Nick não me pediu que ficasse - declarou ele. - Foi o Morganstern que me ordenou que ficasse ao pé de ti.
Jordan inclinou a cabeça.
- E porquê? Fiquei livre de todas as acusações. Está bem. Sei que o professor foi colocado no meu automóvel e também sei o que estás a pensar.
Noah sorriu-se.
- Não creio que saibas.
- E que aconteceu ao meu carro de aluguer? Sabes quando vai ficar disponível?
- Não, não sei. Um agente do FBI deste distrito vai trazer-nos outro carro e passará primeiro em Bourbon para recolher os teus pertences - anunciou Noah. - Virá também um colega seu para o transportar de regresso. Ele telefona-me, logo que chegar.
- E a agência de rent-a-car?
- Terão de arranjar maneira de ir buscar o carro a Bourbon. É problema deles e não nosso.
- Porquê?
- O Nick teve uma conversa com o dono da agência. Logo que falou num processo judicial, o sujeito não levantou mais problemas. A licenciatura em Direito do teu irmão é muito útil em certas ocasiões.
125
Chegaram ao restaurante de Jaffee. Noah abriu a porta para que ela entrasse. Havia só duas mesas ocupadas e ambas em frente da janela que dava para a rua.
- Olá, Jordan.
- Olá, Angela - replicou ela.
A empregada transportava uma travessa vazia de regresso à cozinha.
- A sua mesa está posta - informou.
Noah seguiu-a até à mesa do canto.
- Tens mesa reservada?
- Tenho, sim.
Noah riu-se.
- Não estou a brincar. É a minha mesa habitual. E olha só: ela está a trazer-me já a minha bebida habitual.
Noah escolheu as duas cadeiras com as costas voltadas para a parede. Jordan apercebeu-se disso e pensou que esse tipo de precaução já se convertera em algo de instintivo. Noah, segundo ela acreditava, nunca seria apanhado desprevenido.
Angela apressou-se a colocar na mesa dois copos de chá gelado e dois outros com água gelada. Sorrindo para Noah, perguntou:
- E para si, o que vai ser?
- vou tomar chá gelado.
Angela afastou-se para ir buscar a bebida de Noah, mas estacou no vão da porta. Dirigiu um olhar a Jordan e, inclinando a cabeça na direção de Noah, ergueu o polegar em sinal de aprovação.
- Ela não deve ter-se apercebido de que posso vê-la - fez notar Noah, com jovialidade. - Não fez por mal.
Jaffee acorreu, com as ementas.
- Olá, Jordan - saudou-a, do outro lado da sala.
- Olá, Jaffee
- Quem é este? - perguntou Noah descaradamente, enquanto Jaffee lhes entregava as ementas.
Jordan apresentou Noah.
- É do FBI, não é verdade? - inquiriu Jaffee.
- Sou, sim.
Jaffee assentiu com a cabeça. ;
- O seu irmão vem ter consigo? - perguntou ele a Jordan.
126
- Você sabe da existência do Nick?
- Claro que sei - respondeu Jaffee - Esquece-se de que está numa cidade pequena?
- O Nick foi chamado e regressou a Boston.
- Então este é o seu guarda-costas?
Jordan replicou:
- É um amigo meu.
- Um amigo que anda armado? - fez notar Angela, juntando-se ao grupo.
Jordan não se perturbou, quando Angela e Jaffee puxaram duas cadeiras e se sentaram à mesa.
- Comece pelo princípio, minha querida - pediu Angela. - E não se esqueça de nenhum pormenor.
- Aposto que sabem mais do que eu - retorquiu Jordan.
- É bem provável - admitiu a empregada -, mas queria ouvir da sua boca o que aconteceu. Deve ter sido terrível encontrar no carro o que você encontrou.
- Devemos deixá-los primeiro comer o jantar sossegados - advertiu Jaffee. - Depois ela terá tempo de nos contar o que aconteceu.
Angela assentiu, em concordância. Empurrou a cadeira para trás e levantou-se.
- O adjunto Joe Davis veio falar connosco.
- Agora é chefe Davis - recordou-lhe Jaffee.
- É verdade. E já não era sem tempo - acrescentou Angela, com um assentir da cabeça. - O chefe Davis queria confirmar onde você tinha estado, Jordan, e contámos-lhe que esteve aqui até cerca das dez horas e que depois o Jaffee a acompanhou a pé até ao motel.
- Contámos a verdade - corroborou Jaffee, lançando um olhar a Noah.
- Não havia razão para mentir. - disse Angela.
Noah assentiu com a cabeça.
- É bom ouvi-lo.
- Agora, consultem a ementa. Tenho uma excelente carne assada, se estiverem interessados.
Logo que Angela e Jaffee regressaram à cozinha, Noah informou:
127
- O Joe Davis pediu-me que amanhã de manhã eu fosse com ele à casa do professor MacKenna. Está esperançado em que eu possa descobrir alguma coisa que lhe tenha escapado.
- Posso ir com vocês? - A voz de Jordan revelava grande interesse.
- Não vejo porque não. Duvido que o Joe se importe com isso. Os detetives de Bourbon já vasculharam a casa, mas não encontraram nada de significativo. Diz-me uma coisa: que pensavas tu do professor?
- Creio que queres saber a verdade.
- Sim, quero a verdade.
- Era um tipo repugnante, grosseiro e casmurro.
Noah riu-se.
- Não te reprimas, por minha causa.
- Não estou a exagerar - insistiu ela.
Contou-lhe então o que tivera de suportar durante o jantar, acentuando a parte respeitante às maneiras do professor à mesa.
- Ouvi dizer que discutiste com ele.
- Onde ouviste isso?
- A empregada do restaurante disse ao Joe que tu gritaste com o professor, e o Joe repetiu-mo.
- Eu não estava a gritar. Ah! espera. Sim, gritei. Isto é, ergui a voz, mas não gritei. O professor estava a ser odioso, insultando horrivelmente os Buchanan e eu senti que era meu dever, enquanto Buchanan, defender o bom nome da família.
- Achas que te excedeste?
- Não, não excedi. Hei de ler-te umas passagens das suas pesquisas para que possas julgar por ti próprio. As suas pesquisas enviesadas e parciais - achou oportuno acrescentar.
Angela trouxe-lhes o jantar e deixou-os sozinhos para que pudessem saborear a refeição. Noah mal podia acreditar na excelência da comida.
- O Jaffee podia fazer fortuna em qualquer lugar - comentou. - Pergunto a mim próprio o que o retém em Serenity.
- O bolo de chocolate.
- Ah, sim?
Enquanto comiam, Jordan repetiu o que Jaffee lhe contara. Também referiu que Trumbo, da Trumbo Motors, e Whitaker, um
128
rico rancheiro, haviam passado por ali para saudarem Jaffee e comerem o seu bolo de chocolate.
- Ouve, doçura: há quanto tempo estás em Serenity? - quis saber Noah.
- Há dois dias.
- E já dizes olá a toda a gente?
- Estou a integrar-me, a adaptar-me ao ambiente local - disse Jordan, acrescentando: - E não sou a tua doçura.
Noah abanou a cabeça, com um sorriso irónico:
- Não tens papas na língua, pois não?
Angela retirou os pratos, encheu-lhes os copos e voltou a sentar-se à mesa. Para não ficar atrás, Jaffee juntou-se-lhes logo a seguir.
- O jantar estava excelente - disse Jordan. Vendo que Noah não tecia qualquer comentário, deu-lhe uma pequena pancada, por baixo da mesa.
Noah recordou-se das boas maneiras e elogiou a comida, mas sem olhar para Jaffee. Manteve o olhar fixo na porta. O restaurante estava rapidamente a encher-se de gente da cidade. Noah não gostava nada de multidões. Discretamente, inclinou-se para trás e encostou-se um pouco mais a Jordan, enquanto colocava a mão mais próximo da pistola. Estava preparado para o que quer que pudesse acontecer, fosse uma reunião citadina ou um linchamento.
Jordan apercebeu-se de como ele ficara tenso e pôs a mão na sua coxa.
- Olá, Jordan! - exclamou uma jovem Sorriu-lhe.
- Olá, Candy.
- Olá, Jordan.
- Olá, Charlene.
- Olá, Jordan.
- Olá, Amélia.
E por ali adiante. Jordan cumprimentava todas as pessoas quando estas, fossem homens ou mulheres, se aproximavam da sua mesa. Dentro em pouco, havia já três filas de pessoas.
- Lembra-se do Steve, não é verdade? - perguntou-lhe Charlene. - É o meu patrão na agência de seguros.
- Lembro-me, sim. Tenho muito prazer em voltar a vê-lo, Steve.
129
- Jordan, adorei as porcelanas. Muito e muito obrigada -, continuou Charlene.
- Não tem de agradecer. Espero que lhe seja útil.
Noah tocou-lhe no braço.
- Porcelanas? - sussurrou.
Jordan sorriu-se.
- Da Vera Wang.
Jaffee fez girar uma cadeira e escarranchou-se nela.
- Bom, já fomos por demais pacientes. Precisamos de saber o que aconteceu.
- Ouvimos dizer o que aconteceu. Toda a gente da cidade fala disso - comentou Angela -, mas não o ouvimos ainda da sua boca. Como é deparar com um cadáver?
- Foi uma coisa asquerosa - respondeu Candy, em vez de Jordan.
Todos começaram a fazer perguntas ao mesmo tempo. Noah considerou curioso que Jordan não tivesse de responder a nenhuma delas. Havia sempre uma ou duas pessoas do grupo que já sabiam a resposta e ficavam encantadas por a debitarem, em lugar dela.
No meio daquela sessão de perguntas e respostas, fez-se ouvir o toque de chamada do telemóvel de Noah. Toda a gente deixou de falar para ouvir o que ele dizia.
Passados poucos segundos, Noah declarou:
- Jordan, fica aqui. O agente do FBI está lá fora com o carro que nos trouxe. Concede-me só um minuto.
Charlene esperou que ele saísse do restaurante para comentar:
- É um homem muito bem-parecido, não acha?
- É um amigo - anunciou Angela.
- Um amigo especial? - quis saber Amélia.
As mulheres fitaram-na, expectantes.
- Só um amigo - garantiu Jordan.
- Você vai passar a noite na cidade, não é assim? - inquiriu Amélia.
- Vou, sim.
- E ele também?
- Também - respondeu Jordan.
Amélia seguiu em frente.
- No seu quarto ou noutro? - perguntou, em voz ciciada.
130
- Noutro.
- Mas no meu motel, não é verdade?
- Presumo que sim... se tiver algum quarto disponível.
- Deixe-me dizer-lhe o que posso fazer - continuou Amélia. Vou ajudá-la porque tenho quartos disponíveis.
- Ajudar-me como? - perguntou Jordan.
- Vou dar-lhe o quarto contíguo ao seu.
Charlene piscou o olho a Jordan.
- Fica ao seu critério abrir a fechadura da porta de comunicação.
- Charlene! - murmurou Candy, carregando no nome. - Ele pode andar com outra mulher... Ter um caso sério.
"Andar com mais dez mulheres", pensou Jordan. Charlene deu-lhe uma cotovelada amistosa.
- Que pena o Kyle Heffermint não estar aqui. Esta manhã parecia muito interessado.
- Se vocês já acabaram de embaraçar a Jordan com as vossas estúpidas insinuações acerca do lugar onde ela vai dormir, eu gostaria de saber o que aconteceu quando a Maggie Haden foi despedida.
Foi Keith, o noivo de Charlene, quem proferiu aquela frase. Toda a gente se pôs a especular, repetindo o que tinham ouvido dizer, até Keith voltar à carga:
- O seu amigo, aquele agente do FBI, prometeu ao Joe Davis que ia ficar na cidade.
- Porque fez ele tal promessa? - perguntou Charlene.
- O Joe pediu-lhe que ele desse uma vista de olhos à casa do falecido. Uma vez que tem grande experiência desse tipo de investigações, o Joe achou que ele podia dar-lhe algumas dicas e sugestões ou talvez possa encontrar alguma coisa na casa que ajude o Joe a descobrir o assassino.
Amélia levou a mão à garganta.
- Não acredito que alguém em Serenity seja um assassino. Quem matou aquele homem deve ser um forasteiro. Somos demasiado pacíficos e afáveis para matar seja quem for.
- Por muito pacíficos e afáveis que sejamos, não te parece estranho que nenhum de nós conhecesse esse tal MacKenna? - perguntou Jaffee.
- Isso era porque ele se mantinha à distância - adiantou Keith. - Ouvi dizer que arrendou uma casa, a menos de quilómetro e meio daqui.
131
Jaffee acenou com a cabeça.
- Nunca veio comer ao meu restaurante, nem uma vez sequer. Nem tão-pouco veio comprar uma fatia do meu bolo.
- A Jordan contou-me que ele tinha sido professor.
- Já tirou fotocópias de toda aquela papelada com as pesquisas? - perguntou Jaffee a Jordan.
- Não - respondeu ela. - Ainda me falta uma caixa.
- Agora que o sujeito está morto, você pode levar todas as caixas consigo, não é assim? - quis saber Candy. - Ele já não vai querê-las de volta.
Jordan sacudiu a cabeça.
- O material das pesquisas faz agora parte da investigação e também da herança do professor MacKenna. Não posso levar as caixas comigo.
- Talvez possa ler o resto dos papéis, esta noite - sugeriu ela.
Era amável da sua parte preocupar-se com os projetos que ela acalentava. No entanto, Jordan duvidava que fosse ler grande coisa, naquela noite. Estava exausta, depois de um dia tão longo e cansativo e sabia que, mal pousasse a cabeça na almofada, mergulharia no sono.
Noah regressou ao restaurante, mas foi intercetado por Steve Nelson e um outro homem. Steve era quem mais falava e parecia tão empenhado que Jordan perguntou a si própria se ele não estaria a tentar vender um seguro a Noah. De vez em quando, Noah assentia com a cabeça. Dentro em pouco, formou-se um grupo à sua volta e a conversa tornou-se mais animada. Podia ouvi-los a bombardearem Noah com perguntas e a fornecerem-lhe as suas conjeturas. Noah parecia suportar tudo aquilo com grande calma e escutava pacientemente as opiniões de cada um. A certa altura, olhou para ela e sorriu. Era manifesto que há anos que Serenity não vivia um momento tão excitante. Também era evidente para Jordan que Noah estava a ser bastante complacente. Os outros queriam falar e ele mostrava-se disposto a ouvi-los.
132
CAPÍTULO QUINZE

Os bons cidadãos de Serenity continuaram a debater e comentar o acontecimento que havia tão subitamente desabado sobre a sua pequena povoação, mas passada uma hora Noah pediu desculpa e insistiu em que tanto ele como Jordan tinham de ir-se embora. O ar noturno do Texas ainda estava abafado e quente quando saíram para a rua. Noah ligou o ar condicionado do novo carro e Jordan soltou um "Ah!" e um "Oh!" de satisfação perante aquela novidade.
Viu a mala de mão pousada sobre o assento traseiro e pegou nela. Voltou-se de novo à procura do computador portátil, mas não estava ali. Olhou para o chão do automóvel. Tão-pouco se encontrava lá.
- Oh! não - exclamou.
- Que se passa? - perguntou Noah.
- O meu computador portátil não está aqui. - Voltou-se e procurou debaixo do assento. - Encontrava-se no meu carro de aluguer, esta manhã.
- Viste alguém pegar nele no parque do supermercado? - inquiriu Noah.
- Não. Quando a chefe Haden me levou para a esquadra, não me deixou tirar nada do carro.
- Amanhã faremos umas chamadas para descobrir onde está - garantiu-lhe Noah.
Estacionou o automóvel na parte de trás do pátio do motel. Dirigiram-se à receção, onde Amélia estava à sua espera com a chave que entregou a Noah. Este não teceu qualquer comentário quando viu que o seu quarto era contíguo ao de Jordan. Abriu
133
a porta que dava para o corredor, dirigiu-se à porta de comunicação, abriu-a também e a seguir entrou no quarto de Jordan, atrás dela.
- Vais manter esta porta bem aberta - disse-lhe. Esperou que ela desse o seu assentimento.
- Está bem, mas nada de surpresas - espicaçou-o Jordan. - Tu ficas no teu quarto e eu no meu.
Noah riu-se, enquanto regressava ao seu quarto.
- Não tens de preocupar-te com isso.
Jordan ficou admirada por aquelas palavras a haverem ferido. Se ele tivesse olhado para os seus olhos, ter-se-ia apercebido disso. Felizmente, não se incomodou a fazê-lo. Aquela reação deixou-a estupefacta. Não fazia sentido. Não queria que Noah se sentisse atraído por ela, pois não?
Não, claro que não. Só lhe havia passado aquela ideia estúpida e esquisita pela cabeça por estar fatigada e stressada. Só isso.
Não conseguiu serenar o espírito. Noah dissera que ela não tinha de preocupar-se. Porquê? Porque não tinha ela de preocupar-se? Que havia de errado com ela? O homem, segundo constava, havia conquistado praticamente todas as mulheres com quem se cruzara e o facto de lhe dizer que não tinha de preocupar-se com ele só podia significar que Noah não estava interessado nela. Mas porquê?
Foi até à casa de banho, olhou-se ao espelho e encolheu os ombros. É certo que tinha de admitir não ser nenhuma rainha de beleza e naquela noite não tinha decerto a melhor aparência. Os olhos achavam-se avermelhados por ter usado as lentes de contacto durante demasiado tempo; o cabelo comprido caía-lhe para o rosto e não havia cor alguma na pele do rosto, à exceção do grande inchaço por baixo de um dos olhos.
"Basta de me examinar", decidiu. Não podia fazer fosse o que fosse acerca do seu aspeto, pelo menos naquela noite. Além disso, se queria ler um pouco, o melhor era tentar revigorar-se.
Retirar as lentes de contacto e tomar um bom duche ajudou-a a recompor-se. Lavou o cabelo, mas não teve tempo para o secar e ondular. Ainda estava a escorrer água quando o penteou, deixando-o cair sobre os ombros. Vestiu uma camisola de algodão cinzenta e uns calções com listas cinzentas e brancas. Depois de lavar os dentes, pôs os óculos com aros de tartaruga e voltou a mirar-se ao espelho.
134
Ótimo! Agora parecia um anúncio de creme contra a psoríase. Havia esfregado a cara com tanta energia que a pele parecia uma grande pústula vermelha.
Riu de si própria. Oh! sim, estava muito sexy, mas, ao menos, já não se sentia cheia de sono. Afinal de contas, talvez conseguisse ler um pouco.
Voltou ao quarto, retirou a colcha, dobrou-a e enfiou-a a um canto, ao lado da mesa de cabeceira. Depois, puxou o lençol para trás, pegou numa resma de documentos que não haviam sido fotocopiados e que tirou da terceira e última caixa e sentou-se no meio da cama de casal para começar a ler.
Por várias vezes, lançava um olhar ao quarto contíguo, mas não conseguiu ver Noah. A sua cama era paralela à de Jordan, o que significava que, se quisesse, poderia vê-lo a dormir. "Concentra-te na pesquisa", ordenou a si própria, pegando na folha cimeira.
Havia, outra vez, notas escrevinhadas nas margens. E lá estava, de novo, um número que via pela segunda vez: 1284. Algo de importante devia ter acontecido naquele ano aos Buchanan e aos MacKenna. Mas o quê? Seria o início do antagonismo entre eles ou do roubo do tesouro? Que havia sucedido em 1284?
A sua frustração subiu de tom. Se tivesse consigo o computador e acesso à Internet, poderia começar a sua pesquisa. Assim, tinha de aguardar até regressar a Boston.
Soltou um suspiro.
- Bom - murmurou, enquanto iniciava a leitura. - Que fizeram os Buchanan, desta vez?
Aquela história tinha lugar em 1673. Lady Elspet Buchanan, única filha do impiedoso Laird Euan Buchanan, assistia a um festival anual perto de Finlay Ford. Por simples acaso, encontrou-se com Allyone MacKenna, filho predileto do justo e ilustre Laird Owen MacKenna. Mais tarde, os Buchanan acusaram Allyone de haver penetrado furtivamente no seu acampamento para enfeitiçar a bonita donzela, mas os MacKenna sabiam que fora a nefanda Elspet que havia lançado um sortilégio malsão sobre o filho do seu kird.
Fosse como fosse, o destino ditara que, ao cabo de umas quantas trocas de olhares, Elspet ficara loucamente perdida de amores
135
por Allyone. A fazer fé nos descendentes do clã MacKenna, o jovem era, afinal, um guerreiro garboso e atraente como jamais se vira.
Por ter sido enfeitiçado, Allyone apaixonou-se por Elspet tanto quanto ela por ele, mas ambos sabiam que nunca poderiam viver juntos.
Apesar disso, porém, não conseguiram permanecer afastados um do outro. Elspet suplicou a Allyone que deixasse de lado a sua família, a sua posição e a sua honra e fugisse com ela.
Na noite anterior àquela em que deviam encontrar-se na floresta para fugirem juntos, Laird Buchanan descobriu o que a filha havia planeado. Enraivecido, encerrou-a na torre do castelo e convocou os seus guerreiros para encontrarem Allyone, a fim de o matarem.
Aterrorizada por o pai saber onde Allyone iria esperar por ela, Elspet estava determinada a prevenir o amado, mas, ao descer os degraus escorregadios da torre, prendera o pé e caíra escada abaixo, acabando por morrer.
Ficara registado que ela sucumbira enquanto pronunciava o nome de Allyone.
Quando Jordan leu que a pobre Elspet morrera chamando pelo seu amor, começaram a rolhar-lhe lágrimas pela face. Talvez por se encontrar exausta. Não era nada próprio dela mostrar-se tão sentimental e emotiva.
- Que raio se passa?
Ao ouvir a voz de Noah, Jordan sobressaltou-se. Ergueu os olhos e viu-o de pé no vão da porta a fitá-la, de sobrolho franzido. Era manifesto que acabara de sair do duche. Vestira as calças de ganga mas nada mais.
- Que aconteceu? - perguntou ele, avançando pelo quarto, enquanto enfiava uma T-shirt.
- Não aconteceu nada.
Jordan inclinou-se para o lado e tirou uma caixa de lenços de papel da mesinha de cabeceira.
- Estás a sentir-te doente?
Jordan bem tentou, mas não conseguiu deixar de chorar. Tirou um lenço de papel e enxugou as faces.
- Não estou doente.
- Então que raio se passa contigo, Jordan?
136
Passou-lhe os dedos pelo cabelo e ficou ali imóvel, a olhar para ela, durante uns quinze segundos. Por fim, sentou-se no rebordo da cama e puxou-a de encontro a si.
- Vá, conta-me - insistiu.
- É que... - Jordan fez uma pausa para tirar outro lenço de papel. - É tão...
Noah julgou que havia compreendido o problema que a atormentava e inclinou-se para ela.
- Vá, doçura. Sei que hoje tiveste um dia terrível. Deves estar agora a sofrer as consequências disso. Vá, chora à vontade. Deixa tudo isso sair cá para fora. Foi muito penoso, eu sei.
Jordan ia concordar com ele, mas, em vez disso, reconsiderou e disse:
- O quê? Não, não estou a sofrer as consequências seja do que for. Só que é tão triste...
- Triste? Não chamaria "triste" àquilo por que passaste. Chamar-lhe-ia uma experiência arrasadora.
- Não... a história...
Noah estava a apertar-lhe gentilmente o braço e a distraí-la. De súbito, ocorreu-lhe que Noah tentava reconfortá-la. E como isso era adorável. E doce e carinhoso... e... oh!
Oh! Deus do Céu. Estava a começar a gostar dele e não de uma maneira aceitável, do género "Não é um bom amigo?". Noah podia mostrar-se sensível, quando queria. Nunca tivera tempo de se aperceber disso. Lembrava-se de como, naquela tarde, fora amável para com Carrie. Levara-a a sentir-se importante e bonita. Agora, apercebia-se Jordan, estava a tentar levá-la a sentir-se melhor e não tão sozinha.
- Achas que consegues parar de chorar dentro em breve?
Jordan olhou para ele e esboçou um sorriso amarelo. Estava apenas a uns centímetros daqueles olhos esplêndidos... daquela boca...
Bruscamente, recuou a cabeça e apressou-se a olhar para o lado.
- Já acabei - anunciou. - Estás a ver? Já não estou a chorar.
- Acabaste? Então que é esse líquido a escorrer-te dos olhos?
Jordan deu-lhe um pequeno soco no ombro.
- Para de ser amável comigo. Põe-me os cabelos em pé.
137
Noah soltou uma gargalhada.
- Tenho de te dizer uma coisa. Quando te vi chorar no casamento, julguei que era apenas uma aberração, mas agora lá estás tu a fazer o mesmo. Aqui, és diferente.
- Sou diferente porquê?
- De todas as vezes que te vi em Nathans Bay, tinhas o nariz enfiado num livro ou num computador. Estavas sempre atarefada no teu trabalho.
"E não era nada divertido", acrescentou ela, mentalmente.
- Bom, talvez tu, aqui, também sejas diferente - contrapôs.
- Como assim? - perguntou Noah.
- Não sei. Acho que pareces um pouco mais... afável. Talvez seja por estares mais perto da tua terra natal. Cresceste no Texas, não é assim?
- A minha família foi morar em Houston, quando eu tinha oito anos. Antes disso, vivíamos em Montana.
- O teu pai foi jurista, antes de se reformar.
- Exatamente.
- E o teu avô e o pai dele...
- Descendo de uma família de juristas - confirmou Noah. Voltou a apertar-lhe o braço, o que, agora, não a distraía, antes lhe sabia bem.
- O Nick contou-me que trazes contigo uma bússola que pertenceu ao teu trisavô.
- Chamava-se Cole Clayborne e era jurista em Montana. O meu pai deu-me a sua bússola, quando comecei a trabalhar para o doutor Morganstern.
- Então, nunca perdeste o norte. Foi o que me disse a minha mãe.
- Ah, sim?
- Sabes o que mais me disse ela acerca de ti?
- O quê?
- Disse-me que ela era a única mulher no mundo que podia dizer-te o que devias fazer.
Noah riu-se.
- E tem razão.
Uma pancada na porta do outro quarto interrompeu a conversa. Noah foi abrir e deu de caras com Amélia Ann, que trazia nos braços um balde com várias garrafas de cerveja enfiadas em gelo.
138
Amélia hesitou por momentos, antes de dizer:
- Olá. Hum... Sei que teve um dia atarefado... a viagem e tudo o mais... e... pensei que talvez estivesse com sede.
Entregou-lhe o balde do gelo. Noah pegou nele e brindou-a con um largo sorriso.
- É muito amável da sua parte. Muito obrigado.
- Se estiver com fome - continuou ela - posso preparar umas pipocas ou qualquer outra coisa.
- Não, obrigado. No entanto, agradeço-lhe a cerveja - acrescentou, começando a fechar a porta. - Tenha muito boa noite.
Amélia enfiou a cabeça pela nesga da porta para lhe dizer, fitando-o:
- Se houver mais alguma coisa que eu possa fazer... seja o que for que precisar... só tem de ir ter comigo à receção.
- Assim farei. Obrigado.
Quando regressou ao quarto de Jordan, ia já a tirar a cápsula de uma garrafa de cerveja.
- Era a senhora que dirige o motel... Como se chama ela? - perguntou.
- Amélia Ann? - adiantou Jordan.
- Sim, Amélia Ann. Trouxe-nos umas garrafas de cerveja. Foi muito gentil, não achas? Queres uma? - ofereceu.
- Não, obrigada - declarou Jordan. - E não creio que fosse para "nós" que ela queria ser gentil.
Noah bebeu um gole da garrafa.
- Ainda não me contaste porque estavas a chorar - lembrou-lhe.
- É um disparate.
- Mesmo assim, conta-me.
- Li uma história que o professor transcreveu e impressionou-me. Queres que ta leia? Assim, irás compreender.
- com certeza, vamos a isso - declarou Noah, sentando-se na cama.
Jordan começou a ler com voz clara e concisa, mas quando chegou ao final daquela história trágica, a sua voz tremia e as lágrimas haviam-lhe regressado aos olhos.
Noah estava a rir-se dela. Não conseguiu impedir-se de o fazer.
139
- Tu és uma autêntica caixinha de surpresas - disse, enquanto lhe entregava mais lenços de papel - Nunca podia imaginar tal coisa.
- Imaginar o quê?
- Que fosses romântica.
- Não há nada de mal em ser-se romântica.
Jordan regressou às folhas da pesquisa e leu outro ridículo relato acerca dos bárbaros Buchanan sedentos de sangue. A lenda não era minimamente romântica, mas sim uma descrição pormenorizada de uma cruenta batalha que, segundo pretendia o professor MacKenna, fora desencadeada pelos Buchanan.
- O que não constitui nenhuma surpresa - murmurou para si própria.
- Disseste alguma coisa?
- Pelo amor de Deus, o homem ensinava História. História medieval. A cadeira devia chamar-se Fantasia, porque era isso que ele ensinava.
Noah sorriu. Quando Jordan se excitava com qualquer coisa, o seu rosto iluminava-se. Como é que nunca reparara nisso?
- Então em que curso te vais inscrever? Fantasia do 1º ano? - gracejou Noah.
- Não, chamar-lhe-ia "Vamos contar petas" do 1º ano.
Ele riu-se.
- Vou matricular-me nesse curso. Os exames devem ser canja. Há algum ponto da pesquisa que seja credível? - perguntou, enquanto bebia um gole de cerveja e se encostava à cabeceira da cama.
- Não sei - respondeu Jordan. - Quanto mais avanço, mais as lendas se tornam estapafúrdias. No entanto, aqui e ali, faz-se referência a um tesouro que foi roubado.
- Sabes bem o que se costuma dizer.
Jordan estendeu o braço, pegou na garrafa dele e bebeu um trago.
- O quê?
- Que há sempre uma ponta de verdade em qualquer mentira. Fazes alguma ideia do que fosse esse tesouro?
Jordan beberricou outro gole da cerveja de Noah e devolveu-lhe a garrafa, antes de responder:
140
- É mencionada, por várias vezes, uma coroa cravejada de pedras preciosas, mas também uma espada igualmente adornada com pedras preciosas.
Pegou de novo na garrafa de Noah, esvaziando-a de um só trago, e voltou a entregar-lha. Noah não disse nada. Limitou-se a levantar-se e a ir buscar duas garrafas.
- Chega-te para lá, doçura - disse, enquanto se deixava cair a seu lado.
Jordan afastou-se para fazer espaço e, quando ele lhe ofereceu uma das garrafas, abanou a cabeça.
- Não, obrigada. Esta noite não estou com disposição para beber cerveja.
- Não me digas.
Jordan alinhou as folhas para voltar a colocá-las na caixa.
- Embora a pesquisa do professor seja grosseiramente parcial, ele acreditava realmente que havia um tesouro. Estou certa de que, em seu entender, foram os Buchanan que o roubaram aos MacKenna.
- E tu, achas que havia um tesouro?
Jordan sentiu-se embaraçada por o admitir.
- Acho - declarou, para logo acrescentar: - Sinto-me enredada em tudo isto. Talvez esteja a ser imaginosa. - Sentou-se e estendeu as pernas. - No entanto, algumas das histórias... são tão curiosas de ler por parecerem... tão à mão de semear.
- Ah, sim? Então, conta-me uma história que esteja ali, à mão de semear.
Colocou na mesinha de cabeceira a garrafa de que ainda não bebera ao lado da que oferecera a Jordan, cruzou os tornozelos e fechou os olhos.
- Estou à espera, doçura. Era uma vez... lê-me qualquer coisa que meta medo.
Jordan folheou os papéis até encontrar um relato particularmente sangrento. Era bastante pormenorizado e foi talvez essa a razão pela qual Noah o apreciou. Quando terminou essa história, contou-lhe outra do mesmo género.
- A lenda diz que dois anjos desceram à terra para escoltar até ao céu um guerreiro caído em combate. Isso aconteceu durante uma batalha encarniçada. Todos os guerreiros de ambos os lados
141
do campo de batalha viram chegar os anjos. De repente, o tempo parou. Alguns dos guerreiros estavam de espada erguida, outros preparavam-se para atacar com as lanças ou para fazer girar as suas maças, mas ficaram todos petrificados. Observavam, paralisados, enquanto o guerreiro era erguido nos ares.
- E que aconteceu então?
Jordan encolheu os ombros.
- Julgo que recobraram os movimentos e continuaram a batalha.
- Gostei dessa. Lê-me outra - pediu Noah.
- Queres que te leia uma história romântica ou uma sangrenta?
Noah não abriu os olhos, quando replicou:
- Deixa-me pensar. Estou deitado numa cama, ao lado de uma mulher em trajos menores que carece desesperadamente de um pouco de ação...
Jordan deu-lhe uma cotovelada.
- Não estou em trajes menores. Tenho calções e T-shirt. Não são trajes menores.
Os olhos de Noah permaneceram cerrados, mas agora estava a sorrir.
- Apesar disso, sei que não trazes nada por baixo desses calções e dessa T-shirt.
Jordan apressou-se a olhar para o peito. Graças a Deus, não se via nada através do tecido.
- Só tu ias pensar em tal coisa.
- Qualquer homem o faria.
- Não acredito nisso - escarneceu Jordan.
- É o que os homens fazem.
Jordan tentou puxar o lençol para cima mas este estava preso debaixo das pernas de Noah.
- Porque nunca deixas de pensar nisso?
Ele abriu um olho.
- De pensar em quê?
- Queres ou não queres ouvir outra história?
- Hummm...
- Hum o quê? - suspirou ela.
- Não negaste que estás a precisar de um pouco de ação. Era melhor não ir por ali.
- Não achei necessário responder a uma suposição tão incorreta. Que história queres tu ouvir?
142
Noah tinha conseguido embaraçá-la de novo. Não sabia porque lhe dava tanto gozo vê-la indignada, mas a verdade era essa.
- Estou a embaraçar-te, doçura?
Jordan pôs os olhos em alvo, dizendo para consigo "Oh! meu Deus".
- Não estás a embaraçar-me minimamente. vou arrumar esta papelada - anunciou.
- Desculpa. É que tu és tão fácil de...
Jordan interrompeu-o.
- É o que todos os rapazes me dizem - gracejou.
- Ah, sim? Mas gostas?
Os olhos dela brilharam com malícia.
- O que é que tu achas?
A princípio, Noah não respondeu. Examinou aqueles incríveis olhos azuis e perdeu o fio dos seus pensamentos. As piadas de natureza sexual haviam-se tornado uma parte de si próprio, mas, de súbito, não encontrou resposta. Na sua mente perpassou a imagem de Jordan - sem T-shirt, sem calções, a fazer amor - e ele ficou sem palavras.
Pegou nas garrafas de cerveja que se encontravam sobre a mesinha de cabeceira e encaminhou-se para o seu quarto. A sua voz adquirira um tom brusco quando, por fim, lhe respondeu:
- Creio que é melhor sair daqui.
143
CAPÍTULO DEZASSEIS

Dois telefones tocaram em simultâneo.
Jordan acordou ao ouvir o som vindo do quarto de Noah. Virou-se para o lado, na cama, e descerrou ligeiramente os olhos, enquanto ouvia Noah responder ao toque que parecia ser o do seu telemóvel. Ouviu-o pedir à "querida" que esperasse um minuto e depois atender o outro telefone. Era patente que não gostou daquilo que alguém lhe estava a dizer, porque a sua voz endureceu. Depois, começou a dar ordens. Ouviu-o dizer, num tom muito seu e que não admitia contestação, que esperava pelos resultados ao meio-dia.
Poucos minutos depois, irrompeu pela porta de comunicação.
- Era o Joe Davis... - começou a dizer.
- Antes de me contares o que ele disse, talvez queiras falar com a "querida", se ela ainda não desligou.
- Ah! que raio... - exclamou Noah, apressando-se a regressar ao seu quarto.
Jordan pôde ouvi-lo ainda pedir desculpa a quem lhe ligara, quando regressou. Deixou-se cair na cama de Jordan, agarrou-lhe a ponta da T-shirt quando ela fez menção de se levantar e disse-lhe:
- Espera aí. Sim, está aqui - Entregou-lhe o telemóvel e adiantou: - A Sidney quer falar contigo.
Jordan não acreditou que fosse a irmã, até a ouvir.
- Como é que tens o número de telemóvel do Noah? - perguntou-lhe.
- Não sei. Sempre o tive. Mas isso agora não interessa. O Theo contou-me o que aconteceu. Já sabias do cadáver, quando falámos antes?
144
- Antes? Não me lembro - admirou-se Jordan. - Já toda a gente sabe o que aconteceu?
- O Dylan e a Kate não sabem, mas estão em lua de mel e por isso o Alec achou melhor não os incomodar. Jordan, diz-me: estás bem?
- Estou, sim - assegurou à irmã. - A polícia já se ocupou do caso, e vou regressar a casa amanhã. Depois conto-te tudo, prometo. Sidney... - começou a dizer.
- Sim?
- A mamã e o papá sabem o que aconteceu?
- O Nick telefonou-lhes e contou-lhes tudo.
- Não devia tê-lo feito - insurgiu-se Jordan. - Vão ficar preocupados e já têm problemas que bastem, com o julgamento e tudo o mais.
- Acabariam por sabê-lo. O Zac não é capaz de guardar segredo.
- E quem contou ao Zac?
Fez-se um longo silêncio e por fim Sidney adiantou:
- Talvez eu lhe tenha contado.
Jordan não queria discussões. Falou com a irmã durante mais alguns minutos, para a serenar, e desligou. Enquanto entregava o telemóvel a Noah, disse-lhe:
- Quando descobri o cadáver, devia ter telefonado ao Dylan.
- E porquê? Porque o Nick contou o caso à tua família?
Jordan assentiu com a cabeça.
- A Sidney está convencida de que acabariam por saber.
- E é verdade.
- Talvez - admitiu ela.
Depois de se vestir e arrumar os seus pertences na bolsa, correu o fecho e dirigiu-se ao quarto contíguo. Noah estava a apertar a correia que segurava a pistola.
- Ias contar-me o que o chefe Davis te disse - lembrou-lhe.
- Pois é. Ele disse-me que o xerife Randy não faz ideia do local onde se encontra o irmão, e pôs pessoas à procura dele.
- E tu acreditas nisso?
- Não - respondeu Noah. - O xerife sabe muito bem onde está o J.D. Provavelmente, quer falar com o chefe Davis para conseguir alguma solução, antes de o J.D. voltar a aparecer. É o que eu penso.
145
- É costume ser o xerife de Grady County a ocupar-se da investigação de um homicídio?
- É, sim, mas o Davis explicou-me que ele está de férias.
- No Havai - adiantou Jordan. - Porque é que o FBI não presta ajuda ao chefe?
- O David parece julgar que pode tratar do caso, sem interferência do FBI.
- E quanto ao Lloyd? O Davis já falou com ele?
- Não - respondeu Noah. - Ninguém consegue encontrá-lo. A porta da garagem encontra-se aberta e o Davis afirma que isso é habitual. Muita gente da cidade não fecha as portas à chave.
- Aposto que agora vão passar a fazê-lo. Afinal de contas, um dos seus foi assassinado.
- Só que o professor MacKenna não era um deles. Não era o proprietário da casa. Arrendou-a e manteve-se isolado dos demais. Muito pouco sociável. Ninguém o conhecia verdadeiramente.
- Creio que o Lloyd sabe o que sucedeu. Se não foi ele quem matou o professor, aposto que sabe quem o fez. Estava tão nervoso quando fui buscar o carro. Acho que ele sabia que havia um cadáver no porta-bagagens.
- Acho que é o suspeito número um.
- Mal podia esperar que eu me fosse embora - continuou Jordan. - O que é muito estranho, porque quando lá levei o carro fez-se a mim e tentou por várias vezes levar-me a sair. Parecia querer que eu permanecesse na cidade.
- E continuou a tentar sair contigo, mesmo depois de o ameaçares?
- Eu não... bom, está bem, creio que o fiz. Mas foi uma coisa tão estúpida... Ele perguntou-me o que eu ia fazer, se o carro não ficasse pronto, quando fui à garagem pela segunda vez. Antes que eu pudesse responder, perguntou-me se eu lhe ia bater. Acho que lhe disse que sim.
- Estou a ver.
- Não, não estás. Acontece que o Lloyd é muito alto. Eu teria de subir a uma cadeira para lhe conseguir bater.
- A uma cadeira, ha?!
Jordan ficou irritada por Noah estar a troçar dela.
- Contei tudo isto ao chefe Davis e, segundo creio, tu estavas presente. Não prestaste atenção ao que eu disse?
146
- O Lloyd vai acabar por aparecer - profetizou Noah. Jordan assentiu, em concordância.
- Quando vamos encontrar-nos com o chefe Davis na casa do professor?
Noah consultou o relógio.
- Daqui a uma hora.
- Não te importas de parar primeiro no supermercado? Gostaria de fotocopiar o resto dos documentos. Não vou demorar muito tempo, prometo.
- Todas as caixas têm de ser entregues ao Davis? - perguntou Noah.
- As fotocópias, não. vou pedir à Candy que as despache para Boston.
Candy estava sentada à secretária da receção e acolheu com prazer a perspetiva de ajudar Jordan e de, assim, obter mais algum dinheiro. Jordan preencheu um impresso com as informações postais necessárias, disse a Candy que ia trazer-lhe as caixas que iam ser despachadas, pagou-lhe adiantadamente e regressou ao seu quarto.
Foi encontrar Noah encostado à porta do seu quarto, a conversar com Amélia Ann, que lhe havia levado café e um cesto com biscoitos de canela caseiros. Jordan notou que ela estava maquilhada. A blusa que vestia estava enfiada nas calças, com os três botões superiores desabotoados. Jordan apostava que ela estava a usar um wonderbra. Ouviu ainda o riso nervoso de Amélia Ann, quando entrou no quarto de Noah, pegou nas chaves do carro que se encontravam sobre a secretária e disse:
- vou começar a pôr as caixas no carro.
- Já vou ter contigo - declarou Noah.
"Pois vais", pensou Jordan, "mas só quando Amélia Ann acabar de te provocar."
Transportou uma caixa para o exterior, contornou a esquina do prédio e, de imediato, apercebeu-se de que o pneu traseiro do lado direito estava em baixo.
- Bonito! - murmurou.
O pneu ou tinha um furo ou precisava de mais ar e, com a má sorte que a perseguia, apostava que tinha um furo. Depositou a caixa no chão, enfiou a chave na fechadura do porta-bagagens e deu um passo atrás, quando a tampa se abriu.
147
Não podia acreditar no que estava a ver. Não conseguiu mexer-se. Fechou os olhos, voltou a abri-los - e nada havia mudado.
- Oh! meu Deus - sussurrou.
Bateu com a tampa para a fechar e correu tão depressa quanto pôde até chegar ao quarto de Noah. A porta encontrava-se fechada. Bateu nela com o punho cerrado.
Noah apercebeu-se de que algo havia acontecido, mal viu o rosto dela.
- Jordan? Que se passa?
Jordan agarrou-o pela camisa e, embora ofegante, conseguiu dizer-lhe.
- Há um cadáver na mala do nosso carro.
148
CAPÍTULO DEZASSETE

Lloyd achava-se dobrado como um contorcionista. Uma das pernas estava fletida por baixo dele e a outra, comprimida contra a nuca. Morrera com a mais espantada expressão no rosto, não de dor, mas apenas atónita, como uma carpa de olhos vidrados apanhada num anzol. Jordan julgava não ser capaz de afastar aquela imagem da sua memória por muitos, muitos anos.
- Tens razão, Jordan. O Lloyd era muito alto.
Noah encontrava-se em frente da mala aberta, inclinado para observar o cadáver. Para a fitar, lançou-lhe uma mirada por cima do ombro.
Jordan foi sentar-se num pequeno muro de pedra, à espera de que ele concluísse a inspeção do corpo.
Recusava-se a olhar uma segunda vez para o pobre Lloyd.
- Não está num saco de plástico com fecho de correr - comentou, em voz ténue. Não conseguia imaginar porque isso era importante para ela, mas era-o naquele momento.
- Não, não está.
O chefe Davis achava-se ao lado de Noah. Os dois homens já se tratavam pelo nome próprio. O homicídio é um bom meio para afastar formalidades. Davis inclinou-se para o porta-bagagens, dizendo:
- Estamos de acordo, não é verdade? Uma pancada na parte posterior do crânio. Depois, foi enfiado na mala, não é assim?
Noah acenou com a cabeça.
- Parece que sim, Joe.
- A pancada fraturou-lhe o crânio - concluiu Joe. - Deve ter sido alguém bastante forte. Muito forte, mesmo.
149
Em simultâneo, os dois homens voltaram-se e olharam para Jordan. Estariam a ponderar se ela era suficientemente forte para haver assassinado Lloyd? Jordan cruzou os braços e enfrentou Noah, de sobrancelhas carregadas. Era melhor que não lhe passasse pela cabeça tão estúpida ideia.
Joe voltou a olhar para o cadáver.
- Mas que está a acontecer? - exclamou, frustrado. - Dois cadáveres em quantos dias? Dois? Três?
- É o seu primeiro caso de homicídio? - inquiriu Noah.
- O segundo, se contarmos com o do professor MacKenna
- declarou. - Se bem que não tenha visto o cadáver, o caso está agora nas minhas mãos. Este é o segundo homicídio que jamais ocorreu em Serenity. Somos uma comunidade pacífica. Isto é, éramos até a sua namorada aparecer na cidade e os homens começarem a cair como moscas.
Noah não o corrigiu quanto a Jordan ser sua namorada.
- Sabe bem que não foi ela quem cometeu esses crimes. Não matou nenhum deles. - O Lloyd era o meu principal suspeito. Teve o outro carro na garagem, dispondo de uma boa oportunidade.
- Mas e quanto ao motivo? - contrapôs Noah.
Joe abanou a cabeça.
- Ainda não consegui formular uma presunção credível quanto a esse aspeto. Vou dispor de ajuda. Vêm a caminho dois adjuntos de xerife e ambos têm mais experiência do que eu.
- Em relação a homicídios?
Joe encolheu os ombros.
- Não sei. Também consegui que viessem até cá dois detetives de Bourbon.
- Onde está o médico-legista? - perguntou Noah, consultando o relógio - Estamos à espera dele há cerca de três quartos de hora. E onde estão os peritos do laboratório?
- Sabe que nas cidades pequenas as coisas são muito mais lentas. Todos eles vêm de outros lugares. Mas vêm todos a caminho - assegurou-lhe Joe.
- Sabe que tenho amigos que podem ajudá-lo.
Joe assentiu.
- Eu sei e, se precisar de auxílio do FBI, peço.
150
- E quanto ao xerife Randy?
- Vou encontrar-me com ele logo à tarde. Era para ser esta manhã. Ele telefonou-me ontem à noite - explicou. - No entanto, agora que tenho de lidar com esta nova situação - acrescentou, inclinando a cabeça para Lloyd -, vi-me forçado a adiar o encontro com ele, assim como a ida consigo à casa do MacKenna.
- Quero ir consigo - afirmou Noah.
Joe abanou a cabeça.
- Não. O Randy conhece-me, mas não vai contar-me seja o que for acerca do irmão se você estiver presente.
- Onde está o irmão? E não tente dizer-me que não poderei falar com ele.
- Não sei onde se encontra o J.D. mas o Randy há de dizer-mo. Decidirei depois o que há a fazer.
O que havia a decidir? J.D. agredira Jordan. Devia ser levado para a cadeia e fechado numa cela. Não havia grande coisa a decidir quanto a ele.
- Se não prender o J.D. vou eu fazê-lo.
Joe inclinou a cabeça para o lado e franziu a testa.
- Isso é uma ameaça?
Noah ripostou:
- Claro que é.
Joe ergueu as mãos, em gesto conciliatório.
- Está bem, está bem. Concordo consigo, mas, por favor, deixe-me falar sozinho com o Randy. Eu vivo nesta cidade - lembrou-lhe. - Tenho de tentar fazer as coisas da melhor maneira, por isso permita-me que avance passo a passo.
Ao contrário de Joe, Noah não queria nem necessitava de agradar fosse a quem fosse. Estava prestes a dizer-lhe que não iria mostrar-se paciente e que, não importava como, iria falar com ambos os irmãos Dickey, quando Jordan solicitou a sua atenção.
A jovem levantou-se, aproximou-se dele, passou-lhe a mão pelo braço e disse:
- Joe, tanto o Noah como eu gostaríamos de o ajudar quanto nos fosse possível. Não é assim, Noah? - Noah fitou-a. Vendo que ele não respondia, Jordan repetiu: - Não é assim?
- Com certeza - replicou finalmente Noah.
Era uma das situações mais absurdas em que jamais se encontrara. Havia um homem morto na mala do carro, um polícia sem
151
experiência e possivelmente inapto a conduzir a investigação e uma mulher que, aos poucos, estava a pô-lo louco e que agora queria que ele se mostrasse simpático.
- Creio que vocês os dois vão ter de permanecer em Serenity mais tempo do que pensavam - declarou Joe em tom mais de afirmação do que de conjetura.
- Sim, é verdade - admitiu Noah. - Até este momento, a Jordan é a única ligação entre o professor e o Lloyd.
- vou dizer à Amélia que precisamos dos quartos esta noite - propôs Jordan.
Noah agarrou-lhe o braço e puxou-a para trás.
- Tu vais ficar a meu lado.
- Eu queria ir...
- Ela já sabe - adiantou Noah, inclinando a cabeça para a janela por trás do muro.
Amélia e Candy estavam ambas a observar a cena de olhos arregalados. Por sorte, do local onde se encontravam não podiam ver o interior do porta-bagagens.
Joe sugeriu-lhes que entrassem ambos no motel.
- Não têm de permanecer aqui comigo. Telefono-lhes logo que conclua o meu trabalho neste local e tenha falado com o Randy.
Noah pôs o braço sobre os ombros de Jordan e encaminhou-se para a porta do motel.
- Noah! - chamou ainda Joe.
- Sim?
- Vão precisar de outro carro.
- Parece que sim - Noah sentiu os ombros de Jordan descaírem. - Sentes-te bem, doçura? - perguntou.
- Sinto - respondeu ela, com um suspiro -, mas começo a pensar que esta aprazível cidade afinal de contas não é tão aprazível como isso.
152
CAPÍTULO DEZOITO

Muito embora os agentes Chaddick e Street do departamento regional do FBI não tivessem sido oficialmente encarregados da investigação, estavam a fazer tudo o que podiam para ajudar Noah a descobrir o que estava a acontecer.
Os dois homens trouxeram a Noah e Jordan um outro carro, um Toyota Camry. Jordan, que por aquela altura se achava extremamente alarmada, insistiu para que fosse um deles a abrir o porta-bagagens e a olhar lá para dentro antes de ela entrar no automóvel. O agente Street tinha um sentido de humor bastante perverso. Considerava divertido a irmã de Nick ter descoberto outro corpo e, por galhofa, chamou-lhe "íman de cadáveres".
Chaddick entregou a Noah um grande sobrescrito espesso de papel.
- Tens aqui tudo o que pediste - declarou. - Há cópias dos extratos bancários do MacKenna no último ano. Se quiseres, posso investigar mais para trás.
- O MacKenna estava com certeza envolvido em alguma coisa - comentou Street. - Durante oito meses, só efetuou depósitos. Cinco mil dólares, de quinze em quinze dias.
- E deslocava-se a Austin para efetuar esses depósitos - acrescentou Chaddick. - Também comprou um carro novo, há oito meses, e o conta-quilómetros indica que desde então guiou bastante. Um dos assistentes da faculdade em que ele ensinava contou-me que o professor havia recebido uma herança.
- Uma estranha herança - adiantou Street. - Dinheiro em frotas, de duas em duas semanas, cuja proveniência não pode ser determinada.
153
- E quanto ao registo das chamadas telefónicas? - quis saber Noah.
- Também se encontram nesse sobrescrito - informou Chaddick. - Durante os seis meses em que viveu naquela casa só recebeu duas chamadas de telemarketing. Também não fez nenhumas, a não ser uma, muito curta, meia hora antes do momento em que o J.D. Dickey disse ter recebido a denúncia de que havia um cadáver no carro de Jordan.
- Queres dizer que alguém telefonou ao J.D. da casa do MacKenna?
- É precisamente o que estou a dizer-te.
- Mas eu telefonei ao professor - interveio Jordan. - Quando cheguei a Serenity. Ele deu-me o número do seu telefone. Essa chamada há de aparecer no registo.
- E quanto às chamadas de telemóvel? - perguntou Noah aos agentes distritais.
Foi Street quem respondeu:
- Não conseguimos encontrar qualquer registo de um telemóvel em nome dele. Jordan, se me der o número para que telefonou, poderemos descobrir alguma coisa.
- Fomos mais além e pedimos a dois colegas que examinassem o carro do MacKenna. Aposto que só vão encontrar as suas impressões digitais - adiantou Chaddick. - O Joe Davis está com trabalho até aos cabelos, mas não quer pedir-nos ajuda. Queres que o forcemos a aceitar a nossa intervenção? Podíamos encarregar-nos do caso e fazer com que vocês os dois pudessem sair daqui.
Noah abanou a cabeça.
- Por enquanto, não. - Olhou para Jordan e reavaliou a situação. - Não sei. Talvez fosse boa ideia tirá-la daqui.
Jordan sabia onde ele queria chegar e decidiu abortar essa intenção à nascença.
- vou ficar aqui contigo, Noah. Além disso, prometi ao chefe Davis que iria ficar mais um dia. Tanto quanto sabemos, ele pode decidir prender-me.
- Ele não vai fazer tal coisa, e se eu julgar que...
- Não é assunto que eu queira discutir - declarou Jordan. - vou ficar aqui! - Para reforçar a sua decisão, olhou fixamente para Noah.
154
- Éigual ao irmão - comentou Chaddick, com um sorriso.
- É muito mais bonita - afirmou Noah. Depois de agradecer aos dois colegas pela sua ajuda e de prometer manter-se em contacto com eles, abriu a porta do carro para que Jordan entrasse, contornou o automóvel e foi sentar-se no lugar do condutor. - Vamos dar uma volta.
- Boa ideia - concordou Jordan. - Se tivéssemos tempo, gostava de ir a Bourbon para comprar outro telemóvel.
- Não podes viver sem telemóvel durante mais alguns dias?
- Não estás a compreender. É o meu PDA, a minha câmara, a minha agenda, o meu GPS e, mais importante do que tudo isso, o meu acesso à Internet e o meu e-mail. E também posso enviar textos, fotografias ou vídeos por via eletrónica.
- E sabes o que também podes fazer com ele? Chamadas telefónicas.
Jordan riu-se.
- Isso também. E depois de comprar um telemóvel queria passar pela esquadra para falar com os detetives e saber o que aconteceu ao meu computador portátil.
- O Nick já falou com eles. Dizem que não o viram.
- Isso não faz sentido. Estava no carro que aluguei. No assento ao meu lado. A Maggie Haden também deve tê-lo visto, quando vasculhou a minha mala, à procura de documentos de identificação. Aposto que ficou com ele. Ela voltou ao parque de estacionamento do supermercado, depois de me trancar na cela. Pode ter ficado com ele.
- Vamos continuar a procurá-lo, mas para já vamos encontrar-nos com o Joe Davis na casa do MacKenna, lembras-te?
- Depois de ele falar com o xerife Randy - recordou Jordan.
- Surpreende-me que não tenhas insistido em estar presente.
- Estou mais interessado no irmão do xerife. Entregou-lhe uma folha de bloco do motel onde anotara dois endereços.
- Que é isto?
- Pensei que podíamos tentar encontrar o J.D. Ver, por exemplo, se está em casa.
- E se estiver?
Noah pôs o carro em marcha e engatou a mudança.
155
- Gostava de o cumprimentar.
- De o cumprimentar?
- Só para ser educado, minha querida.
- E o outro endereço? O que é?
- O endereço da nossa velha amiga Maggie Haden.
- Porque queres ir a casa dela?
- Consegui a matrícula do carro do J.D. Ele tem uma carrinha vermelha. Pode estar com a Maggie. Disseste-me que ela teve casos com os dois irmãos Dickey.
Jordan acionou o botão do ar condicionado.
- E se ele lá estiver?
- Veremos.
- Importas-te que eu dê uma vista de olhos? - perguntou ela, enquanto pegava no sobrescrito que Chaddick entregara a Noah. - Gostava de consultar os extratos bancários.
- Está bem. E, já agora, soma todos os depósitos em dinheiro - sugeriu Noah.
- Se foram cinco mil dólares de duas em duas semanas durante seis meses, isso perfaz sessenta mil dólares.
Depois de somar todos os depósitos, verificou que o total ascendia, afinal, a noventa mil dólares.
- Nos últimos dois meses de vida, os depósitos aumentaram de volume e de frequência. Donde pode ter vindo esse dinheiro?
- Essa é uma pergunta que vale noventa mil dólares.
- Em que julgas tu que ele estava envolvido? Em drogas? Em jogo? Não me pareceu ser esse tipo de pessoa.
- E qual é o tipo de pessoa que joga? Ele era do tipo de mentir acerca de receber uma herança?
- Tens razão.
- Lê-me as indicações para chegar a casa do Dickey.
Jordan fez o que ele pediu, descobriu Hampton Street e depois disse-lhe:
- Vira à direita, na próxima transversal.
Em seguida, voltou às suas especulações.
- O professor disse-me que alterara os seus planos e que ia partir para a Escócia mais cedo do que inicialmente projetara.
- E mais alguma coisa?
156
- Ao jantar, ficou bastante nervoso quando se apercebeu de como o restaurante estava cheio de gente. Pensei que talvez fosse claustrofóbico.
Noah abrandou a velocidade.
- Ali está a casa do Dickey, na esquina.
Era uma casa térrea, nem maior nem menor do que qualquer uma das outras da rua, mas notoriamente a mais bonita de todas. Fora recentemente pintada de cinzento-escuro e as persianas pretas também haviam recebido uma nova camada de tinta. O telhado era novo e o jardim achava-se bem tratado. Havia até um canteiro de malmequeres em flor ao longo dos arbustos da entrada.
- Não pode ser a casa dele. É bonita demais - comentou Jordan.
- É a morada que o agente Street me forneceu. É, de certeza, a casa do Dickey. Ao que parece, quando não está a bater em mulheres, cuida do jardim.
A carrinha de Dickey não se achava estacionada no carreiro de cascalho.
- Não estavas à espera de o encontrar em casa, pois não? - perguntou Jordan.
- Não, mas queria ver onde ele vive. Gostava muito de poder dar uma vista de olhos ao interior da casa.
- Também eu - murmurou Jordan, embora admitisse que aquela afirmação poderia metê-la em sarilhos. - Nem sequer podemos espreitar pelas janelas, porque as persianas estão corridas. - Mordeu o lábio inferior. - Pergunto a mim própria se o meu portátil não estará ali dentro.
A sua voz soara com tal severidade que Noah teve de fazer um esforço para não se rir.
- Doçura, tens de deixar de pensar nele.
- No meu computador? Não posso. Tenho de o recuperar.
Noah não a compreendia. Ela programara o computador, mudara-lhe todos os chips, ampliara-lhe a memória. Toda a sua vida estava dentro dele.
- Se perdesses a tua pistola, como te sentirias se eu te dissesse que não fizesses caso e arranjasses outra nova?
O computador portátil de Jordan era obviamente um assunto delicado. Noah não insistiu.
157
- Dá-me as indicações para chegar a casa da Haden.
Só tiveram de percorrer dois quarteirões. A casa era exatamente como Jordan já esperava: de aspeto severo e pouco convidativo, O jardim apresentava uma combinação de poeira, cascalho e ervas daninhas. Tal como a de Dickey, a casa de Haden não dispunha de garagem e não havia carros nem carrinhas no carreiro de acesso.
- Não tenho desejo algum de olhar para o interior desta casa - comentou Noah. - O mais provável é a mulher dormir num caixão.
- com o meu computador portátil.
- Jordan, a sério: tens de acalmar-te um pouco. A polícia anda à procura dele.
Noah tinha razão. Estava, de facto, a mostrar-se obcecada.
- Talvez a Haden tenha feito as malas e saído da cidade.
- Duvido que tenha partido. Não, ela não vai ceder tão facilmente. Tinha demasiado poder para abdicar dele sem dar luta.
- Mas deve saber que não é possível recuperar o cargo - sugeriu Jordan.
- O mais provável é ter ido para um lugar qualquer onde possa forjar uma estratégia que obrigue o conselho a nomeá-la de novo chefe da polícia.
Noah virou na esquina seguinte e rumou de volta ao centro da cidade.
- Onde queres comer?
- Só há um lugar aonde ir. O restaurante do Jaffee. Há outros, claro, mas se comermos noutro lugar qualquer, o Jaffee virá a saber, porque toda a gente fala seja do que for.
- E que importa que ele venha a saber??
- Ficará magoado - e Jordan não estava a brincar.
- E a ti, que te importa...?
- Ele foi muito amável comigo - afirmou Jordan - e eu simpatizo com ele. Além disso, gostaste da comida, não é verdade?
Noah assentiu.
- Bom, está bem. Vamos ao restaurante do Jaffee.
Conduziu de volta ao motel e estacionou no parque das traseiras. Jordan levou consigo o sobrescrito que Chaddick lhes entregara e dirigiram-se a pé para o restaurante. Quando passaram pela Lloyds Garage, Jordan sentiu um calafrio.
158
- Durante algum tempo, julguei que o Lloyd tinha assassinado o professor e metera o corpo num carro. Por isso estava tão nervoso. Não sei qual seria a motivação do Lloyd, mas acreditava que o chefe Davis acabaria por descobrir. E agora o Lloyd está morto. Queres ouvir a minha nova teoria?
Noah sorriu.
- Claro.
- O Lloyd deve ter visto o assassino enfiar o corpo do professor no meu carro. Não achas que foi isso que aconteceu?
- Pode ter sido.
- Não pareces muito entusiasmado, mas sei o que estás a pensar. Porque é que o assassino não matou logo o Lloyd? Por que razão esperou? Julgo que não sabia, a princípio, que o Lloyd o tinha visto, mas, se tiver sido assim, como veio a descobrir?
Noah não teve de responder a nenhuma das perguntas. Jordan encarregou-se disso ela própria. Colocava as perguntas, trabalhava-as na sua mente e acabava por encontrar o que ela considerava uma explicação plausível.
O restaurante de Jaffee estava quase vazio. Havia apenas uns homens de negócios a beberricarem chá gelado, enquanto discutiam as notícias do dia. Um deles era Kyle Heffermint, o homem que Jordan encontrara na agência de seguros.
- Conheces algum daqueles homens? - perguntou Noah, quando passaram pela janela da frente.
- Só um. O Kyle Heffermint - respondeu Jordan. - Gosta de impressionar quem o ouve.
Noah não tinha disposição para aturar alguém cuja única aspiração a ser famoso era nomear alguém que o fosse realmente.
- Não gosto desse tipo de gente - fez notar, quando abriu a porta para dar passagem a Jordan.
O grupo deixou de falar, quando Jordan e Noah passaram pela sua mesa. Ela endereçou um sorriso a Kyle, quando este a saudou com um aceno de cabeça, e continuou a marcha em direção à sua mesa no canto. Angela acolheu-os com o seu habitual chá gelado, enquanto os homens continuavam a observá-los. A empregada pôs a mão na anca, fitou-os por cima do ombro e depois voltou-se para Jordan.
- Não lhes ligue - aconselhou. - Estão só a discutir as novidades do dia.
159
- E porque estão a mirar-me? - inquiriu Jordan.
- Antes de mais, porque você é digna de ser vista - replicou Angela -, e, em segundo lugar, porque faz parte das notícias do dia. Todos ouvimos dizer que você descobriu o corpo do Lloyd e tudo o resto.
- Parece que eu trouxe uma praga a Serenity.
- Bom, não diria tanto. Tem o hábito de encontrar gente morta, nada mais do que isso. É como nos filmes. Conhece aquele em que um miúdo fala com os mortos? Só que estes não falam consigo. Algum de vocês está com disposição para comer carne, hoje? O Jaffee está a preparar hambúrgueres e também um grande ensopado de vaca.
Angela havia regressado à cozinha para ir buscar os hambúrgueres encomendados, quando Kyle se encaminhou para a mesa de Jordan. A luz que se refletiu na fivela do seu cinto, tão grande como a grelha de um Cadillac, denunciou a sua aproximação.
- Olá, Jordan.
- Olá, Kyle. É bom voltar a vê-lo.
- Quem é o seu amigo?
Jordan apresentou Kyle a Noah. Apertaram as mãos e Kyle voltou-se de novo para ela.
- Ouvi dizer que vai ficar mais algum tempo na cidade, Jordan. Acha que podemos jantar juntos, logo à noite?
- Desculpe, mas não. Fiz planos com o Noah. No entanto, agradeço-lhe na mesma.
Ele não insistiu.
- Jordan, soube o que lhe aconteceu e devo confessar-lhe que não saberia o que fazer se alguma vez encontrasse um cadáver no meu carro. E veja o que lhe aconteceu. Encontrou dois cadáveres. Deve constituir um qualquer recorde, não acha? - perguntou, arqueando uma sobrancelha.
Enquanto Kyle falava com ela, Noah pousou o braço nas costas da cadeira de Jordan. De cada vez que Kyle pronunciava o nome dela, Noah afagava uma madeixa do seu cabelo.
- Agente Clayborne, sou capaz de ter umas informações de interesse para si. Por acaso passei de carro em frente da Lloyds Garage na noite passada e vi que havia luz no escritório. Disse para comigo que era muito estranho que alguém estivesse no escritório a altas horas da noite, porque o Lloyd não trabalhava até tarde.
160
- Viu o Lloyd? - perguntou Jordan.
- Vi a sombra de um homem, Jordan, mas não creio que fosse ele. Só a vi por um ou dois segundos. A sombra não parecia ser tão alta nem tão entroncada como ele. - Ergueu ambas as sobrancelhas e inquiriu: - Esta informação é útil para si, agente Clayborne?
- É, sim - disse Noah.
- Jordan, gostava muito de voltar a vê-la, acredite. Há um...
Noah interrompeu-o, antes que ele pudesse proferir outra palavra.
- Ela tem planos comigo.
Jordan tentou minimizar a rudeza de Noah.
- Obrigada pela sua atenção.
Assim que Kyle se afastou, ela sussurrou:
- Foste grosseiro para com ele. Que te passou pela cabeça?
- Nada, Jordan. Nada.
Ela riu-se.
- Já te disse que ele gosta de impressionar quem o ouve.
- Tem um fraquinho por ti - declarou Noah, sem sorrir. - Na realidade, parece que metade dos homens que encontraste desde que estás em Serenity têm um fraquinho por ti.
Noah afastou-lhe uma madeixa do rosto e os seus dedos afloraram-lhe delicadamente a face.
Jordan conteve a respiração. Ele mal lhe havia tocado e ela reagira a esse toque. Sempre julgara ser imune ao charme de Noah, mas começava a sentir-se preocupada por ver que não era.
- Por mim? - respondeu, em tom incrédulo. - Não sou eu a grande atração da terra... tu é que és. Na esquadra, a Carrie quase se pôs em bicos dos pés para despertar a tua atenção. E que dizer da Amélia, com as suas garrafas de cerveja e os seus bolinhos de canela? Está louquinha por ti.
- Eu sei - admitiu ele, com um sorriso -, mas creio que tu também.
Jordan recuou.
- Ouve lá! Nem todas as mulheres caem de joelhos à tua frente.
Demasiado tarde, apercebeu-se exatamente do que dissera. Sabia que ele não ia deixar passar aquela oportunidade.
- Ah, sim? - riu-se ele. - É uma bela fantasia. Achas que alguma vez...?
161
- Nunca!
As faces de Jordan tornaram-se vermelhas. Ficava-lhe bem corar, pensou Noah. Adorava vê-la embaraçada porque era então que ela mostrava o seu outro lado, o lado que era vulnerável, meigo e inocente. Era muito bonita, não havia dúvida, e todos os homens de Serenity pareciam ter-se apercebido disso.
Por que razão isso o incomodava tanto? Não era do tipo ciumento e não tinha motivos para o ser. Jordan era uma boa amiga, nada mais do que isso. Sendo assim, porquê aquele sentimento de mal-estar, sempre que estava junto dela? Como podia explicar aquilo que não entendia? Uma coisa sabia. Não lhe agradava a ideia de que um homem se aproximasse dela.
Oh! raios. Desejava-a.
162
CAPÍTULO DEZANOVE

Jordan deu uma vista de olhos ao registo das chamadas telefónicas do professor, enquanto almoçavam.
- Julguei que estavas com fome - disse Noah. - Mal tocaste na tua comida.
- Este hambúrguer dava para alimentar uma família de seis pessoas. Comi até me fartar. - Mudou o rumo da conversa para assuntos mais importantes. - Telefonei ao professor MacKenna quando cheguei à cidade. Este não é o mesmo número para que fiz a chamada. E lembro-me de a Isabel me contar que ela e o professor conversavam frequentemente acerca do clã MacKenna. O número dela também não consta aqui.
- Aposto que só utilizava telemóveis descartáveis - opinou Noah. - Impossíveis de detetar. - Desde que se mudou para Serenity, a vida do professor tornou-se indetetável.
Jordan pegou numa batata frita e estava prestes a trincá-la, quando mudou de ideias. Apontando a batata para Noah, discorreu:
- E porque se mudou ele para Serenity? O que o levou a escolher esta cidadezinha? Por ser um lugar isolado? Ou por se achar próxima de algo de ilegal em que ele estava envolvido? Sabemos que aquilo que andava a fazer, fosse lá o que fosse, era ilegal. Quem é que consegue obter depósitos de noventa mil dólares em dinheiro?
Noah pegou na batata frita e meteu-a na boca.
Jordan ponderou as várias hipóteses possíveis e acrescentou:
- E manifesto que quem matou aqueles dois homens está determinado a manter-me aqui. Não concordas? - Antes que ele pudesse responder, rematou: - Se assim não fosse, porque apareceriam ambos os cadáveres nos meus carros?
163
Noah adorava observar-lhe o rosto, enquanto ela raciocinava em voz alta. Ficava tão animada e entusiasmada. Sabia que nos dois últimos anos se tornara bastante cínico, mas, na sua profissão, ficar calejado era só uma questão de tempo. Aprendera a não se envolver demasiado e a não esperar fosse o que fosse, mas ainda não descobrira bem como desligar-se do seu trabalho.
- Sabes do que precisamos? - perguntou Jordan.
Noah assentiu com a cabeça.
- De um suspeito.
- Exatamente. Vem-te alguém à mente?
- O J.D. Dickey está em primeiro lugar na lista - retorquiu Noah.
- Porque sabia que o cadáver se encontrava no meu carro.
- Sim - disse ele. - Pedi ao Street que efetuasse uma pesquisa. O J.D. cumpriu uma pena pesada.
Contou a Jordan o que fora apurado em relação a J.D. acrescentando que explicara a Joe Davis que se este não localizasse J.D. em breve e o interrogasse, Noah tirava-lhe o caso das mãos.
- Queres dizer com isso que vais ficar em Serenity, Noah?
- Quero dizer que os agentes Chaddick e Street tomarão a seu cargo a investigação. Este é o distrito deles - lembrou-se de acrescentar. - E tu e eu vamos embora.
- Vais voltar logo ao trabalho com o doutor Morganstern ou tirar uns dias de férias e ir até casa?
- Não tenho casa - revelou Noah. - Vendi o rancho, depois de o meu pai morrer.
- Então, onde é a tua casa, atualmente?
Noah sorriu.
- Aqui e ali, conforme calha.
- Hum, hum! - fez ela. - Aí vem a tropa.
Jaffee e Angela encaminhavam-se para a sua mesa. Jordan sabia o que eles queriam: saber todos os pormenores macabros da descoberta do cadáver de Lloyd no porta-bagagens. Por sorte, Noah foi salvo de ter de responder a centenas de perguntas porque recebeu entretanto um telefonema do chefe Davis.
- Temos de ir - informou.
Apressou-se a pagar a conta e ambos já iam a sair do restaurante, quando Angela ainda chamou a atenção de Jordan para lhe mostrar o polegar erguido.
164
- Ela ainda não descobriu que posso vê-la, refletida na janela - comentou Noah, com uma risada.
- Vamos ter com o Joe? - perguntou Jordan, apressando-se a juntar-se a Noah.
- Ele disse daqui a vinte minutos. O que nos dá tempo suficiente para ir levar as caixas a casa do MacKenna.
- E porquê?
- Porque é onde o Joe quer que fiquem. Provavelmente por a esquadra ser tão pequena. Não há espaço para as guardar até ele as poder examinar.
- Não sei que pensa ele encontrar naqueles papéis - disse Jordan. - São apenas o resultado de pesquisas históricas.
- Mesmo assim, precisa de os examinar.
- Importas-te de parar por momentos no supermercado, a caminho da casa do professor?
Noah nada objetou e, quando transportaram as duas primeiras caixas para o carro, Jordan enfiou as últimas duzentas e tal folhas que ainda não haviam sido fotocopiadas na sua mala, levando para o automóvel a terceira caixa vazia.
Mal entrou no supermercado, os clientes apressaram-se a afastar-se dela. Juntaram-se em magotes, olhando-a de longe e trocando palavras ciciadas entre si. Pôde ouvir uma mulher dizer:
- É ela.
Jordan arvorou um sorriso e continuou a andar, em direção à fotocopiadora. Ali havia fila - uma mulher e dois homens à espera da sua vez -, mas, assim que a viram, afastaram-se. Jordan sentia-se mortificada. Noah achava divertida a atenção que despertava, mas ela não. Afinal de contas, não fizera nada de mal. Fez esse comentário, mal regressaram ao carro.
- É um facto que as pessoas têm propensão a morrer, quando tu andas por perto - gracejou ele.
- Só duas é que morreram. - Jordan suspirou. - Oh, meu Deus, ouviste o que acabo de dizer? Só duas. Tornei-me insensível à morte de dois homens. Que aconteceu à minha compaixão? Eu costumava ter alguma.
Acabou de separar os originais do professor das fotocópias que tirara e entregou os primeiros a Noah.
- Podes fazer o favor de colocar estes papéis na caixa vazia?
- Estás com medo de abrir o porta-bagagens, não é assim?
165
- Não, claro que não. Mas, por favor, faz o que te pedi.
Na verdade, não tinha medo, disse a si própria. Só se sentia retraída. No entanto, não queria admiti-lo. Enfiou as fotocópias na sua mala, pousou-a no chão e sentou-se no banco da frente.
De súbito, sentiu-se cansada e indisposta.
- O Nick já deve ter regressado a Boston - comentou, quando Noah se sentou ao volante.
Antes de responder, Noah ligou o motor.
- Estou certo de que vai telefonar, quando chegar a casa.
- E, quando o fizer, vais contar-lhe o que se passou com o Lloyd? - perguntou ela para, logo em seguida, responder a si própria: - Claro que vais.
- Não queres que lhe conte?
- Não me importo. Só não quero que ele se meta noutro avião para vir até cá. Também sei que vai contar ao resto da família, inclusivamente aos meus pais, e eles já têm tanto...
- Com que se preocupar - completou Noah. - Jordan, não faz mal nenhum que eles, de vez em quando, se preocupem contigo.
Jordan não fez qualquer comentário. Em vez disso, observou a paisagem desoladora, através da janela. Os jardins da rua que percorriam não haviam suportado o calor. Todos os canteiros exibiam zonas de relva queimada, ervas daninhas e poeira.
De que tinha vindo à procura quando rumara a Serenity? O seu irmão e Noah haviam-na desafiado a sair da sua zona privada de conforto, mas ela não teria dado importância às suas sugestões se, sobretudo, não estivesse tão descontente consigo própria.
A sua vida era tão organizada, tão regulada... tão mecânica. Sabia o que desejava: queria deslumbramento. O problema é que ele não existia. Pelo menos, para ela. Precisava de regressar a casa e de deixar de ter pensamentos tão idiotas. A sua vida achava-se planificada, estruturada. Fora sempre assim e era disso que ela precisava. Tudo voltaria ao seu lugar, assim que voltasse a Boston.
Só que havia um pequeno problema.
Noah apercebeu-se da sua expressão desanimada.
- Que se passa?
- Nunca vou sair desta cidade, pois não?
166
CAPÍTULO VINTE

O professor MacKenna havia vivido numa pacata rua sem saída, a cerca de quilómetro e meio da Main Street. Era um lugar deprimente. Não havia árvores nem arbustos nem relva para amenizar as feias fachadas das casas antigas, muitas das quais estavam a necessitar de reparação urgente.
O chefe Joe Davis achava-se à espera de Noah e de Jordan. Tinha a parte da frente da camisa ensopada em suor. Quando eles se encaminharam para a porta da frente, o chefe puxou do lenço e limpou a parte de trás do pescoço.
- Está à espera há muito tempo? - perguntou Noah.
- Não, só há uns dois minutos, mas está um calor dos diabos. Desculpe-me, minha senhora, por esta linguagem na sua presença. - Abriu a porta e prosseguiu: - Devo avisá-los de que lá dentro ainda está mais quente. O MacKenna mantinha todas as janelas fechadas e as persianas corridas e, tanto quanto pude aperceber-me, nunca ligou o ar condicionado. Está instalado numa das janelas, mas não se acha ligado à tomada. - Manteve a porta aberta e advertiu: - Vejam bem onde põem os pés. Houve alguém que pôs a casa de pantanas.
Jordan teve de fazer um esforço para não se engasgar, quando entrou na sala de estar. A atmosfera estava impregnada de um cheiro a peixe frito misturado com uma espécie de odor metálico.
Toda a casa não devia ter mais do que setenta e cinco metros quadrados. Havia pouca mobília. Um sofá de tecido aos quadrados em tão mau estado que Jordan considerou que o professor o devia ter encontrado ao abandono numa qualquer rua - estava encostado à parede fronteira a uma janela panorâmica tapada com uma
167
cortina branca. À frente do sofá via-se uma mesinha de madeira de carvalho. Também havia uma outra pequena mesa redonda com um candeeiro cujo abajur estava inclinado. A um canto, sobre um caixote, havia um velho televisor Philips.
Jordan não saberia dizer se na sala havia ou não um tapete. O chão estava coberto por jornais, alguns amarelados pelo tempo e, por toda a parte, havia também blocos de notas rasgados e livros com folhas soltas. Algumas das pilhas atingiam trinta centímetros de altura.
Avançaram através daquele lixo até chegarem à sala de jantar, situada no outro lado. A única peça de mobiliário era uma grande secretária. O professor servira-se de uma cadeira de madeira, articulada, mas alguém a lançara contra a parede. Agora, jazia no chão, feita em pedaços.
Numa ficha múltipla sobre a secretária estavam ligados cinco carregadores de telemóveis, mas estes tinham desaparecido. Jordan quase tropeçou numa extensão. Noah agarrou-a pela cintura, antes que ela batesse com a cabeça na secretária.
- Cuidado! - exclamou Joe.
Jordan assentiu com a cabeça, enquanto se afastava de Noah em direção à cozinha desprovida de luz. O cheiro tornava-se cada vez mais forte e até mais enjoativo. Havia pratos sujos no lava-louças, um festim para as baratas que corriam pelo balcão, e lixo a transbordar do saco de plástico que o professor utilizara como caixote, junto da porta traseira. Dentro do saco, o lixo estava já em decomposição.
Jordan virou-se e voltou a atravessar a sala de jantar, dirigindo-se ao corredor. Num dos lados, havia uma casa de banho - surpreendentemente limpa, tendo em consideração o estado em que se encontrava o resto da casa -, e no outro, um pequeno quarto. As gavetas da cómoda tinham sido arrancadas do lugar e encontravam-se espalhadas pelo soalho. O colchão e o estrado de molas da cama de casal também haviam sido virados e achavam-se ambos rasgados a golpes de navalha.
Noah apareceu atrás dela, olhou para aquela confusão durante alguns segundos e depois virou-se e regressou à sala de jantar.
- Achas que quem vandalizou a casa encontrou aquilo de que andava à procura? - perguntou-lhe Jordan, seguindo atrás dele.
- Pode ter sido mais do que uma pessoa - alvitrou Joe.
168
- Que está em falta, Jordan? - perguntou Noah.
- Além de produtos de limpeza? O computador do professor.
- Exatamente - confirmou Noah.
- Os cabos ainda cá estão - fez notar Joe. - Vêm-nos? No chão, por trás da secretária. E vejam todos aqueles carregadores de telemóveis. Aposto que os do professor eram indetetáveis.
Jordan julgou ter visto alguma coisa a mover-se por baixo de um dos jornais, talvez um rato. Não entrou em pânico. Esteve quase, mas controlou-se.
- vou lá para fora... apanhar ar fresco.
Não esperou que lhe dessem permissão. Mal chegou ao passeio, esfregou os braços e experimentou um frémito, ao pensar que um daqueles insetos podia ter-se enfiado por baixo da sua roupa.
Noah e Joe vieram para o exterior, passados dez minutos. Quando Noah passou por ela, sussurrou-lhe:
- O rato assustou-te, não foi, doçura?
Jordan desejaria que Noah, por vezes, não fosse tão observador.
- Ouve, Jordan, queres abrir o porta-bagagens? - perguntou Noah, já postado por trás do automóvel.
- Não tem graça nenhuma! - ripostou ela.
O sorriso de Noah era prova do contrário. Depois de abrir a mala, voltou-se para Joe.
- Tem a certeza de que quer armazenar as caixas nesta casa? Em breve, vão estar cobertas de bichos.
- vou fechá-las muito bem - declarou Joe. - Dois dos meus adjuntos irão ajudar-me a revistar tudo o que houver na casa, incluindo o conteúdo das caixas, folha a folha. Não sei aquilo que procuramos, mas, com sorte, podemos topar com alguma coisa interessante.
De súbito, Jordan recordou-se de um pormenor.
- Tenho uma pen que o professor me deu para levar comigo. Vai precisar dela?
- vou precisar de tudo o que possa dar-nos pistas a respeito do professor - retorquiu ele. - Providenciarei para que depois lhe seja devolvida.
Pegou numa das caixas e começou a encaminhar-se para a casa.
- Creio que, quando tivermos acabado de vistoriar tudo isto, enviarei as caixas a um parente do falecido. Se porventura conseguirmos descobrir algum - acrescentou.
169
- Ele pertence ao clã dos MacKenna - informou Jordan -; mas não acredito que algum membro reclame o seu espólio. Ele parecia ser doido varrido.
Logo a seguir, sentiu-se desconfortável por haver dito tal coisa a respeito de um morto, mas estava a ser sincera. Joe parou na soleira da porta.
- Teve oportunidade de ler todos estes papéis?
- Não, não tive. Li apenas algumas histórias de cada uma das caixas.
Noah abriu a porta para ela entrar e entregou-lhe as chaves do carro.
- Liga o ar condicionado. Volto já.
- Pareces zangado.
- Não estou zangado, mas apenas irritado. Tenho sido bastante paciente, o que, como bem sabes, não é fácil para mim, mas desta vez consegui, não te parece?
Jordan não sorriu, embora tivesse vontade de o fazer.
- É verdade.
- Sei que o Joe falou com o xerife Randy Dickey, mas ainda não me disse nada a esse respeito. Isso significa que fez qualquer acordo com ele. Por isso...
- Então, calma...
- Estou farto de ter paciência. Entra no carro.
Naquele momento, Joe saiu de casa. Noah dirigiu-se para ele, enquanto Joe fechava a porta.
- Esqueceu-se de me contar o que o Randy Dickey tinha a dizer? - perguntou-lhe.
- Não, não me esqueci. Julguei que talvez pudéssemos falar disso mais tarde, enquanto bebemos umas cervejas.
- Conte-me agora.
- Você tem de compreender. Até ao momento em que o irmão saiu em liberdade condicional, o Randy estava a fazer um bom trabalho como xerife. As pessoas andavam satisfeitas com o seu desempenho. Só que o J.D. é um homem exaltado e o Randy gostaria de conceder-lhe uma segunda oportunidade para se redimir. Eu concordei com ele.
- Você não tem autoridade para isso.
- Tenho, sim - replicou Joe. - A menos que a Jordan apresente queixa contra o J.D. pelo murro que ele lhe deu, não há nada
170
que você ou ela possam fazer contra ele. Não estou a querer contrariá-lo; só estou a explicar-lhe como são as coisas. É, como já Jisse anteriormente, tenho de viver nesta cidade e isso implica darme bem com as autoridades desta terra. O xerife Randy pode tornar-me a vida num inferno. Não importa que atue noutra jurisdição. Mesmo assim, pode fazê-lo.
- Ah, sim? Mas que bom xerife.
- Não foi isso que eu quis dizer. Ele pediu-me apenas um favor, nada mais.
- E se você não lhe fizer esse favor, ele vai tornar a sua vida num...?
- Está bem, está bem! - exclamou Davis, erguendo as mãos. - Eu sei o que disse. No entanto, o J.D. é irmão dele repetiu. - E voltará à prisão num ápice, se a Jordan apresentar queixa contra ele. Se não o fizer, o Randy ficará em dívida para comigo.
- Julguei que você não queria manter-se no seu cargo a título definitivo.
Joe pareceu ficar envergonhado.
- A minha mulher disse-me que não devo permitir que o meu ego interfira na questão. Já antes fui preterido, mas agora sou eu o chefe - afirmou - e podem convencer-me a manter-me no cargo, se for essa a vontade do conselho.
- Quero falar com o Randy.
- Falei-lhe nisso e ele está de acordo.
- Está de acordo? - Noah sentia o sangue começar a fervilhar. - Onde está ele, neste momento?
- Quer saber a verdade?
- Não, Joe, quero que me minta!
- Vá lá, não vale a pena irritar-se. O Randy anda à procura do irmão. Acredito que ele não sabe onde se encontra o J.D. e contou-me que o preocupa pensar que o J.D. tenha cometido algum ato tresloucado.
- O J.D. já ultrapassou os limites da loucura.
- Há de acabar por aparecer e, quando o fizer, o Randy vai trazê-lo para falar connosco e resolver o assunto.
- Resolver o assunto? O J.D. é suspeito numa investigação de homicídio.
- Mas não é uma investigação minha - acentuou Joe.
171
Noah ignorou aquela afirmação.
- O prazo não se alterou, Joe. O Randy tem de apresentar o J.D. até amanhã.
- E se ele não o encontrar?
- Encontrá-lo-ei eu. ,
172
CAPÍTULO VINTE E UM

Pela primeira vez na sua triste vida, J.D. sentia realmente medo. Havia-se metido num atoleiro tão profundo que não sabia se alguma vez conseguiria sair dele.
O problema era o patrão. O homem aterrorizava-o. Bastava fitá-lo de certa maneira para que J.D. sentisse gelar-se-lhe o sangue. Havia visto aquele olhar, quando estivera preso. Os condenados a prisão perpétua, que não tinham nada mais a perder, exibiam a mesma atitude. Matar ou ser morto. Era o que significava aquele olhar.
Cal ensinara-o a manter-se afastado de tais homens e, em ocasiões inumeráveis, protegera-o deles. Ninguém era capaz de contrariar Cal - pelo menos, ninguém no seu juízo perfeito.
Mas agora Cal não podia protegê-lo. J.D. estava entregue a si próprio e o seu patrão não era diferente dos assassinos de que se havia escondido na prisão. Adotava a mesma atitude e era mais impiedoso do que a maioria deles. J.D. vira-o pegar no professor e atirá-lo contra a parede, como se fosse um brinquedo. Não era tanto a sua força que o aterrorizava, mas a expressão dos olhos, capaz de espremer a vida de um homem. J.D. sabia que aquele olhar iria assombrar os seus pesadelos para o resto da vida.
A ganância levara o tal MacKenna a ser morto e também fizera de J.D. o cúmplice voluntário de um assassino. Agora era tarde demais para se arrepender. Estava naquele atoleiro e podia sentir a terra a cair sobre si.
O patrão obrigara J.D. a livrar-se do cadáver e ordenara-lhe que mantivesse a mulher na cidade até descobrir o que ela sabia. J.D. só conseguira pensar numa maneira de o fazer, incriminando-a
173
por homicídio. Depois, o irmão mantê-la-ia presa na cadeia. Fora esse, pelo menos, o plano de J.D.; mas tudo caíra por terra, quando a mulher descobrira o corpo no porta-bagagens, na altura em que se encontrava na jurisdição errada. Sabia que se havia excedido, quando a vira empunhar o telemóvel, mas então só pensara em tirar-lho das mãos. Não, não era verdade. Nem sequer pensara. Se o tivesse feito, nunca a teria esmurrado.
Como um tolo, julgara que Maggie arranjaria as coisas como ele pretendia. Afinal de contas, ela era chefe da polícia e J.D. sabia que ela faria o que ele lhe dissesse.
Um azar nunca vem só, costumava dizer Cal. J.D. compreendia agora o que ele queria dizer com aquilo. Maggie não podia fazer fosse o que fosse, depois de ser despedida. O seu poder esfumara-se e, como se essa infelicidade não bastasse, a tal mulher Buchanan tinha ligações com o FBI.
Ficara com medo de falar ao patrão do irmão da mulher e do outro agente do FBI que andava colado a ela como um mau perfume a um casaco novo.
Felizmente para J.D. o patrão já sabia do FBI. Dissera a J.D. que, por muitos agentes do FBI que houvesse na cidade, ele, J.D. tinha de mantê-la em Serenity até o patrão poder estar sozinho com ela, para lhe arrancar o que ela sabia. A maneira como proferira a palavra "arrancar" levara J.D. a querer fugir dali. Agora, contudo, era tarde demais para o fazer. Muito tarde. O incidente com Lloyd havia-se encarregado disso.
Não tinha sido por coincidência que J.D. fora ter com Lloyd no momento em que o mecânico estava a meter as suas coisas no carro para sair da cidade. Maggie havia-o alertado de que a tal Jordan Buchanan andava a contar a quem a quisesse ouvir que Lloyd agira de maneira tremendamente suspeita, quando ela fora buscar o automóvel de aluguer. Chegara até a sugerir que Lloyd sabia que o corpo se achava na mala do carro.
J.D. só pretendera falar com Lloyd para descobrir o que ele vira no dia anterior, mas mal Lloyd se apercebera da sua presença, tinha entrado em casa, tentando barricar-se lá dentro.
- Só quero falar contigo, Lloyd - gritara-lhe.
- Vai-te embora ou chamo o xerife - berrara Lloyd. - Não estou a brincar! vou chamá-lo.
174
- Esqueceste-te de onde vives?
- Que queres dizer com isso?
- Vives em Jessup County, estúpido, e isso quer dizer que, se chamares o xerife, será o meu irmão que atenderá a chamada. E sabes bem que ele fará tudo o que eu lhe pedir - mentiu.
Lloyd soltou uma praga.
- É assim mesmo! - gritou J.D. - Deixa-me entrar para termos uma conversa. Vou ser paciente e esperar aqui até te decidires. Não quero fazer-te mal, Lloyd.
- Fizeste mal àquele outro homem.
- Não, não fiz. Juro que não fiz. Quando o encontrei, ele já estava morto. Alguém... não vou dizer quem... disse-me para o pôr no carro da mulher. Foi só isso que eu fiz.
- Se acreditar em ti, deixas-me sair da cidade? - perguntou Lloyd. - Só até as coisas acalmarem e aquele homem do FBI se ir embora?
- É isso exatamente o que eu esperava que fizesses, ou seja, que saísses da cidade até o FBI se ir embora.
- Então, para que precisas de vir aqui dentro?
- Não preciso - declarou J.D. - E digo-te mais uma coisa. Se quiseres, podes telefonar-me e dizer-me onde estás escondido. Se não for muito longe daqui, mando-te uma rapariga das mais bonitas para te fazer companhia. Ela vai passar uma noite, pelo menos, a cuidar de ti. Posso dar-te...
- Está bem, eu telefono-te - exclamou Lloyd, entusiasmado com a ideia.
J.D. sabia que Lloyd estava a observá-lo pela vigia da porta, por isso não sorriu. Convencido de que o mecânico não iria chamar o chefe Davis nem o xerife, regressou tranquilamente à sua carrinha. Depois, guiou até à esquina, desligou o motor e ficou à espera que Lloyd partisse, para ir atrás dele.
Não o havia assassinado. Limitara-se a fazer uma chamada para contar ao patrão onde podia encontrar Lloyd. No que a si próprio dizia respeito, J.D. não fizera nada de mal. Limitara-se aprestar uma informação.
175
CAPÍTULO VINTE E DOIS

A churrascaria e bar Cripple Creek detinha o recorde oficial de toda a região no que tocava ao número de cabeças de animais penduradas nas paredes. Havia até duas cascáveis empalhadas a pender das vigas. Em tempos idos, tinha havido mais ainda, mas as ventoinhas do teto haviam-lhes causado estragos e os clientes não gostavam muito que lhes chovessem do teto bocados de pele de serpente, enquanto se encontravam a beber.
O agente Street tinha dado a Noah as indicações necessárias para chegar ao bar, sugerindo que ele e Jordan não olhassem para a decoração, e prometera-lhes que a piza do Cripple Creek era a melhor de todo o estado. O chefe de cozinha, explicara, era proveniente de Chicago.
A fachada fazia lembrar uma cabana de troncos de árvore, suficientemente grande para acomodar Paul Bunyan (1). O interior lembrou a Jordan uma estação de esqui. Os tetos altos e abertos, com as suas vigas expostas, tal como o varandim sobranceiro à pista de dança, eram feitos de madeira de pinho, com os nós bem à vista. A atmosfera estava saturada do cheiro a pinheiro fornecido pelos ambientadores e uma banda medíocre, localizada numa pequena plataforma elevada a um canto, tocava canções country.
Como se fosse a coisa mais natural do mundo, Noah segurou a mão de Jordan e puxou-a atrás de si, enquanto abria caminho por entre a multidão.

(1) Lenhador do folclore norte-americano, por norma representado ou descrito como um gigante. (N. do t.)
176
O agente Street encontrava-se numa espécie de cabina, na parte traseira da sala. Noah esperou que Jordan deslizasse pelo banco corrido, antes de se sentar a seu lado.
- Que tem para nos contar, agente Street? - perguntou Jordan.
- Por favor, trata-me por Bryce - solicitou ele.
Preparava-se para responder à pergunta de Jordan quando o empregado apareceu para tomar nota das bebidas.
- Não estás em serviço, não é assim? - perguntou Bryce a Noah.
- Oficialmente, não estou de serviço há já dois dias. Estou a prestar ajuda a uma pessoa amiga.
- Então, vais querer uma cerveja.
- Claro - assentiu Noah. - E tu, Jordan?
- Uma Coca-Cola Light seria bem-vinda.
Mal o empregado se afastou, Bryce começou:
- Obtive várias informações acerca dos irmãos Dickey. Quanto ao Randy, nada de especial, mas o J.D. teve problemas com a lei, por várias vezes. Envolveu-se em brigas, mas uma delas, num bar, levou-o à prisão.
Noah ficou à espera de ouvir algo que fosse novidade.
- O mais interessante - prosseguiu Bryce - é que o antigo companheiro de cela do J.D. um tipo chamado Calvin Mills, ainda está a cumprir uma pena de vinte anos, por assassínio. O Cal, como é chamado, trabalhou para uma empresa de segurança. Era perito em equipamento de vigilância e conhecia os mecanismos mais modernos. Gostava de ir até casa várias vezes ao dia, e de escutar as conversas da mulher ao telefone.
- Não confiava nela - depreendeu Jordan.
- E, como veio a revelar-se tinha boas razões para isso - comentou Bryce. - Certa tarde, estacionou o carro e ouviu-a numa conversa bastante íntima com um homem que conhecera no emprego. Mais tarde, ele contou à polícia que talvez fosse capaz de perdoar à mulher aquela escapadela, se ela não tivesse feito troça do seu... equipamento. - Lançou um rápido olhar a Jordan, antes de prosseguir: - Segundo ele contou, a mulher referira-se à sua... virilidade... como uma "salsicha de cocktail".
- Isso deve tê-lo deixado furioso - admitiu Noah, recostando-se. - E então matou-a, não é assim?
177
- Exatamente - corroborou Bryce. - Felizmente para ele, o juiz era um homem, por isso o Cal não foi condenado a tantos anos de prisão como se arriscava a apanhar.
Noah assentiu com a cabeça.
- O juiz foi compreensivo.
Jordan não poderia dizer se ele estava a falar a sério ou a gracejar.
- O homem matou a mulher.
- Sim, já sei - retorquiu Noah -, mas, mesmo assim, não se pode troçar do equipamento de um homem.
Bryce não podia estar mais de acordo. Só quando Noah lhe piscou o olho é que Jordan compreendeu que ele estava a provocá-la.
Chegaram as bebidas. Depois de pedirem duas pizas especiais da casa, Bryce continuou:
- O Cal ensinou ao J.D. tudo o que sabia acerca de vigilância. Interessou-se verdadeiramente por ele. Um dos guardas disse que o Cal se vê a si próprio como uma espécie de guru da tecnologia.
- Descobriu alguma coisa acerca das finanças do J.D? - perguntou Jordan.
- Descobri, sim - replicou Bryce. - Nos últimos seis meses, fez uma grande quantidade de depósitos em dinheiro, mas, ao contrário do MacKenna, os depósitos do J.D. nunca foram superiores a mil dólares, de cada vez.
- Chantagem. Era o que ele andava a fazer - deduziu Jordan. - Anda a escutar as conversas das pessoas e depois faz chantagem com elas.
- É também o que eu penso - concordou Bryce.
- Gostava de entrar na casa dele - declarou Noah.
- Pois sim, mas sem um mandado não podes fazê-lo.
Bryce entregou as suas anotações a Noah e informou:
- Tens aí tudo o que consegui descobrir até agora. Se precisares de mais alguma coisa, é só pedir.
- Obrigado - disse Noah. - Fico-te muito grato pela tua ajuda.
- Foi um prazer - replicou Bryce. - Tive muito gosto em finalmente poder trabalhar contigo. Tu e o Nick Buchanan constituem praticamente figuras lendárias na agência. Ouvi falar de alguns dos vossos casos e a vossa carreira é admirável.
178
A expressão de Noah tornou-se mais sombria.
- Gostaria que fosse melhor. Nem todos os casos têm o desfecho que gostaríamos.
Bryce demonstrou a sua compreensão com um assentir de cabeça.
- Eu sei, mas alguns foram bem-sucedidos. Ouvi falar do que fizeram no caso Bains em Dálias. Durante algum tempo, não se falou de outra coisa. Mais recentemente, também me disseram que a Jenna Bains está este ano a frequentar um curso universitário.
Os olhos de Noah iluminaram-se e sorriu.
- Sim, está a sair-se muito bem.
Jordan seguira a conversa com grande interesse.
- Quem é a Jenna Bains? - perguntou.
Foi Noah quem respondeu:
- Uma miúda que não merecia sofrer o que sofreu.
Bryce reparou na expressão perplexa de Jordan, depois de ouvir aquela vaga resposta de Noah, e adiantou:
- A Jenna Bains é uma miúda cujos pais morreram, quando ainda era muito nova, e foi mandada para casa de um tio, seu único parente, que era traficante de crack. As coisas correram muito mal em casa do tio. Ele passava a maior parte do tempo na cadeia e apareceram uns tipos que se apoderaram do negócio. A Jenna passou dois anos com essa escumalha. Quando não a mantinham fechada num cubículo, serviam-se dela como escrava. Por fim, as autoridades tomaram conhecimento do tráfico de drogas e intervieram, mas infelizmente o cabecilha do gangue foi informado com antecedência e fugiu antes da rusga. Levou com ele a Jenna como refém. Foi nessa altura que o Noah e o seu irmão foram chamados. O tipo manteve a Jenna em seu poder durante mais de dois meses e andou sempre de um lado para o outro, de tal maneira que foi difícil localizá-lo. Finalmente, conseguiram seguir-lhe a pista até um prédio de apartamentos abandonado. Ouvi dizer que, quando lá chegaram, ela levara tanta tareia que se encontrava incapaz de dizer grande coisa.
Olhou para Noah, a fim de obter a sua comprovação. Uma Parte da ira passada voltou à superfície e Noah acrescentou:
- Ela estava tão aterrorizada que parecia ter perdido a razão. Agarrou-se a mim com quanta força tinha e tudo o que pôde dizer foi: "Não se vá embora! Não se vá embora!"
179
Bryce voltou a olhar para Jordan e continuou:
- Quando teve alta do hospital, os serviços sociais quiseram intervir, mas o Noah conseguiu que fosse acolhida por uma família maravilhosa.
- Eram meus amigos - explicou Noah. - Sabia que ela ia ficar em boas mãos. Só não queria vê-la apanhada pelo sistema, antes de ter outra oportunidade.
- Bom, pelo que ouvi dizer, um anónimo está a pagar-lhe os estudos. E consta que esse anónimo és tu.
Noah não respondeu à afirmação de Bryce.
- A Jenna é boa rapariga. Quer ser professora.
- Foi uma boa ação tua - elogiou-o Bryce.
Noah reagiu àquele cumprimento com um encolher de ombros.
- Muita gente teria feito o mesmo.
A conversa foi interrompida pela chegada das pizas. Jordan só conseguiu comer uma fatia, mas, enquanto devoravam o resto, Bryce e Noah continuaram a falar acerca dos irmãos Dickey.
Jordan recostou-se no assento de madeira e ficou a ouvi-los, mas não estava realmente a escutar o que os dois homens diziam. Olhava, isso sim, para Noah. Sempre soubera que era muito dedicado ao seu trabalho e também conhecera o seu lado folgazão, mas era evidente que não conhecia tudo a seu respeito.
Noah acabou de beber a sua cerveja e pediu uma garrafa de água. Jordan ficou a observá-lo, enquanto ele cruzava os braços e encostava os cotovelos ao tampo da mesa, ouvindo, interessado, as sugestões de Bryce acerca da investigação. Tinha um perfil adorável, pensou ela. E quando sorria...
Oh! céus. Sabia o que estava a acontecer. Onde estava Kate quando mais precisava dela? Kate seria capaz de lhe incutir algum bom senso, mas não se achava ali, e Jordan apercebeu-se subitamente de que estava a meter-se num grande sarilho. Começara a tornar-se fã de Noah Clayborne.
Perguntou a si própria o que sentiria se ele a beijasse. Se lhe tocasse... se a abraçasse...
- Jordan, estás pronta?
A pergunta sobressaltou-a.
- Pronta para quê?
- Para nos irmos embora - disse Noah.
180
- Sim, claro que sim. Foi um prazer, Bryce - disse Jordan, com um sorriso. - Sei que anda a fazer muito trabalho de campo, nas suas horas livres, e quero manifestar-lhe que fico muito agradecida pela sua ajuda.
- Não tem que agradecer. É irmã do Nick.
Saíram juntos, os três. A porta, Bryce despediu-se.
- Quando disseste que termina o prazo?
- Amanhã ao meio-dia - respondeu Noah. - Se até lá não tiver falado com os dois irmãos Dickey, tomas tu conta do caso.
- Acho bem.
Durante o regresso ao motel, Jordan manteve-se em silêncio. Noah olhou para ela e perguntou-lhe se estava bem.
- Estou ótima - respondeu ela.
No entanto, não estava. Dentro de si, reinava a mais colossal confusão. Só conseguia pensar em Noah. Precisava de controlar-se, de regressar ao seu estado normal. Não mais pensamentos tresloucados a respeito dele. Não mais fantasias acerca do que seria dormir com ele. "Não vás por aí", recomendava a si própria. Apesar disso, quanto mais recomendava à sua mente que não ficasse obcecada, mais pensava nele.
Ioga, aí estava do que precisava. Quando chegasse ao motel, tomaria um duche rápido, vestiria o pijama e depois sentar-se-ia no meio da cama na posição do lótus. Respiraria fundo e poria ordem no seu espírito. E ele não iria mais intrometer-se nos seus pensamentos. Seria ela a comandá-los e não ele.
- Que se passa contigo? - perguntou Noah.
- Porque julgas que se passa alguma coisa comigo?
Noah começou a rir.
- Estás a fulminar-me com o olhar, doçura.
Jordan arranjou uma desculpa esfarrapada, e virou o rosto para a janela, posição que manteve até chegarem ao motel.
Transportou a mala de rodas até ao seu quarto e, abruptamente, estacou. A porta do quarto de Noah achava-se aberta. A cama estava preparada para ele se deitar e havia chocolates em cima da almofada. Na cama de Jordan, pelo contrário, ninguém tocara.
- Surpreende-me que a Amélia não esteja à tua espera, metida na tua cama.
Noah sorriu, ao entrar no quarto.
- Ela não é o meu género de mulher.
181
Jordan gostaria de lhe perguntar qual era o seu tipo de mulher, mas pegou no pijama e encaminhou-se para a casa de banho.
Quando acabou de tomar duche e de lavar a cabeça, sentiu-se melhor e com os pensamentos mais ordenados. Chegou mesmo a secar o cabelo.
Enquanto puxava os cobertores e o lençol para trás, viu Noah de telemóvel colado à orelha. De vez em quando, ria-se. Julgou que talvez estivesse a falar com Nick. Acabara de se instalar na cama com a pilha de fotocópias quando Noah irrompeu pelo quarto.
- O Nick quer que ligues para o seu telemóvel. No entanto, espera uns dois minutos. Ele tinha o Morganstern em espera. - Entregou-lhe o seu telemóvel. - vou tomar um duche. Não abras a porta a ninguém, seja pelo que for. Compreendeste?
- Sim.
Ele já entrara na casa de banho quando Jordan se lembrou que não lhe perguntara se havia contado ao irmão o que acontecera a Lloyd. Claro que contara. Por outro lado, porém, podia ter deixado que fosse ela a transmitir a novidade. Não queria que Nick voltasse a Serenity. Se tudo corresse bem, ela estaria de regresso a Boston no dia seguinte.
Depois de organizar o resto das fotocópias, ligou ao irmão. Nick atendeu ao segundo toque, e não perdeu tempo com saudações, mas avançou:
- Com que então descobriste outro cadáver!
182
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Jordan estava sentada na cama, a ler mais outro relato impressionante de uma sangrenta batalha entre os Buchanan e os MacKenna. Cada clã fizera apelo aos seus aliados e fora para a guerra na esperança de aniquilar o outro. Estava tão absorta na história que nem se apercebeu de que Noah, de pé na ombreira da porta, a observava.
Noah ordenou a si próprio que desse meia-volta e regressasse ao seu quarto, mas não conseguiu convencer o seu corpo a mover-se. Jordan atraía-o, mas não compreendia porquê. Adorava estar junto dela, a falar-lhe, a ouvir as suas estapafúrdias histórias e teorias e também adorava vê-la sorrir. O seu dote mais espantoso era a capacidade de fazê-lo rir. Nenhuma outra mulher o fizera sentir-se daquela maneira.
E era tão diabolicamente bonita, admitiu. Mesmo quando como naquele mesmo instante - usava óculos. Não sabia porque o excitavam tanto, mas o certo é que o faziam. Se não os tivesse usado quando se encontrara com ela em Nathans Bay, teria olhado por cima da sua cabeça para não ser distraído. Certa vez, o Dr. Morganstern havia notado o estado em que ele ficava e tecera um comentário a propósito. Agora, perguntava a si próprio se o chefe soubera que Jordan o atraía, antes mesmo de ele se aperceber disso.
Quando havia ela deixado de ser apenas a irmã mais nova de um colega e se transformara na mulher espantosamente sexy que ele queria levar para a cama?
Sabia o que tinha a fazer, antes de avançar um passo no quarto de Jordan. Não se importava minimamente com as consequências.
183
Quase não fez barulho, enquanto caminhava para a cama dela. Colocou a pistola e o coldre na mesa de cabeceira e sentou-se a seu lado.
Jordan ergueu os olhos e sorriu. Noah parecia muito desinibido com as suas Levis usadas e a T-shirt de um cinzento pálido. Ficou a vê-lo pôr-se à vontade. Noah encostou ambas as almofadas à cabeceira da cama e deu-lhes dois murros para as moldar ao seu jeito. com um sonoro bocejo, pôs as mãos no peito e fechou os olhos.
- Sentes-te confortável? - perguntou ela.
Noah não abriu os olhos e pediu:
- Lê-me uma história.
- Esta é muito brutal.
- Gosto de histórias brutais.
- Não me admira - provocou-o Jordan. - Não é referida a data exata, mas esta guerra supostamente teve lugar algures entre os anos 1300 e 1340. Laird MacKenna proclamou que os Buchanan haviam roubado outro tesouro do seu clã. Este tesouro era uma porção de terra perto da fortaleza dos MacKenna que o laird acreditava que haviam ter-lhe sido doadas.
- Quem dera essa terra aos Buchanan?
Jordan sacudiu a cabeça.
- Não diz. Laird MacKenna remoeu durante meses a fio o facto. E então, certa tarde no princípio do outono, um jovem Buchanan foi capturado nas terras dos MacKenna.
"Laird MacKenna decidiu manter o rapaz em seu poder, como refém, para obter um resgate. Se os Buchanan lhe entregassem a tal porção de terra, devolver-lhes-ia o jovem. Era esse, pelo menos, o seu plano até alguns dos guerreiros MacKenna, levados pelo seu entusiasmo, terem morto o rapaz. É assim que está escrito - acentuou Jordan. - Pretendiam torturá-lo, mas queriam mantê-lo vivo.
- Os Buchanan já tinham aceitado entregar a terra aos MacKenna antes de o rapaz ser morto?
- Não tiveram tempo para concordar ou não com a proposta. Quando vieram a saber que um dos seus jovens fora assassinado, juntaram as suas hostes e partiram para a guerra. Andavam sempre em luta com os MacKenna, mas daquela vez era diferente. Laird
184
MacKenna sabia que os Buchanan iriam querer vingar-se na sua própria pessoa e convocou todos os seus aliados. Não é mencionado o número dos clãs mas três deles aparecem nomeados.
- E os Buchanan?
Jordan lançou um olhar mais para baixo na folha que tinha à sua frente.
- Só pediram o auxílio de um clã aliado. Não sei ao certo se só tinham um aliado ou se só precisavam dele. Foi o clã MacHugh. Só à menção do nome MacHugh o terror instalou-se no clã MacKenna. Os MacHugh eram conhecidos por serem desumanos e indestrutíveis. Eram muito mais impiedosos do que os Buchanan. Pelo menos é o que consta destes papéis.
"A batalha teve lugar num campo perto de Hunter Point. Os Buchanan e os MacHugh estavam em grande inferioridade numérica e os MacKenna acreditaram estupidamente que lhes seria fácil chacinar os dois clãs inimigos.
Jordan sentiu as costas doerem-lhe. Recostou-se e ficou apoiada ao ombro de Noah.
Sempre com a folha na mão, prosseguiu:
- Os MacKenna e os seus aliados enganavam-se lamentavelmente quanto ao facto de as probabilidades penderem a seu favor. O clã MacHugh não demonstrou qualquer compaixão. Afinal de contas, os MacKenna haviam assassinado uma criança. Os Buchanan tão-pouco demonstraram compaixão - acrescentou Jordan.
- Quando tudo acabou, havia bocados de corpos espalhados pelo campo de batalha e a própria terra estava empapada em sangue. Ainda hoje, aquele sítio é conhecido como "campo sangrento".
- E o que aconteceu aos MacKenna? - perguntou Noah.
- O que restava do clã pôs-se em fuga - relatou Jordan. - Voltaram no dia seguinte, para recolherem os seus mortos e lhes darem sepulturas dignas de guerreiros, mas não havia cadáveres à vista. Tinham desaparecido todos. Consequentemente, não pôde realizar-se qualquer cerimónia sagrada adequada ao enterro de guerreiros.
- Vieram alguma vez a encontrar os corpos?
- Não - replicou Jordan. Inclinou-se para ele, apoiada num cotovelo, e fitou-o, olhos nos olhos. - Naquele tempo, se um guerreiro não recebia a cerimónia fúnebre adequada, não podia aceder ao paraíso. Ver-se-ia condenado a vaguear no "outro mundo" por toda a eternidade, solitário e esquecido para todo o sempre.
185
- Quantos foram mortos? Consta aí o número?
- Não - respondeu ela -, mas, se esta história for verdadeira, já imaginaste o que seria caminhar ao longo do campo...? Num campo ensopado em sangue, para apanhar partes de corpos? Um braço aqui, uma perna ali...
- Uma cabeça...
Jordan esboçou um esgar.
- Sinto-me contente por não ter vivido naquela época.
- Não sei - comentou Noah. - Talvez tivesse algumas vantagens. Não teríamos de informar um criminoso dos seus direitos nem de ver um juiz deixá-lo em liberdade por um pormenor formal. Naquele tempo, quando se sabia que alguém era culpado de um crime, a comunidade livrava-se dele. Tão simples como isso. Sabes que mais? Se a história tem alguma ponta de verdade, não interessa saber quantos guerreiros foram mortos no campo de batalha. Não há número que justifique o assassínio de uma criança.
Noah continuava de olhos fechados, por isso não fazia mal que ela o observasse, porque ele não iria perceber. Ele era tão sexy, tão musculoso. Jordan teve de fazer um esforço para desviar os olhos. Aquilo não iria dar a parte alguma, disse a si própria. Mas o certo é que o desejava. Ele ia destroçar-lhe o coração e deixá-la devastada, advertiu a si própria. Não, obrigada.
Não era uma das suas fãs. Não, decididamente não era. A verdade é que já havia ultrapassado essa fase. Estava, isso sim, a apaixonar-se por ele.
Entrando subitamente em pânico, apressou-se a pôr as pernas fora da cama, pegou nas fotocópias e levou-as até à mesa. Arrumou-as junto da maleta e voltou para a cama.
- Noah - chamou-o num sussurro, enquanto lhe tocava, ao de leve, no ombro. - Não adormeças aqui. - Noah não respondeu e ela voltou a tocar-lhe no ombro. - Quero deitar-me.
Estava disposta a tocar-lhe com mais força, quando ele levantou a mão e lhe agarrou o pulso. Antes que ela pudesse reagir, Noah puxou-a para cima de si. Abraçou-a e fê-la rolar até ficar de costas. O joelho dele forçou-a a abrir as pernas e, apoiando-se nos cotovelos, olhou para baixo, a fim de observar o seu rosto corado.
O coração de Jordan batia descompassadamente. Manteve-se imóvel, à espera de ver o que Noah iria fazer. "Não me largues", pensou, frenética.
186
- Não me largues.
- Não te largo, linda.
Jordan fechou os olhos e gemeu.
- Disse-o em voz alta, não foi?
Noah tirou-lhe delicadamente os óculos e o seu peito rijo roçou-lhe os seios, quando ele se inclinou para colocar os óculos na mesa de cabeceira junto da sua pistola. Quando ele começou a beijar-lhe um dos lados do pescoço, Jordan sentiu frémitos correrem-lhe ao longo dos braços e das pernas. O hálito de Noah era suave e quente de encontro à sua pele. Quando ele lhe beijou o lóbulo da orelha, Jordan experimentou uma sensação de desejo que lhe chegou até aos dedos dos pés.
- Isto não é boa ideia - sussurrou, enquanto inclinava a cabeça para o lado, a fim de lhe facilitar o acesso. Ergueu os braços, acariciou-lhe a nuca e passou-lhe os dedos pelo cabelo. Queria que ele a beijasse na boca.
Noah soergueu-se.
- Queres que pare?
Jordan fez de conta que prestava a maior atenção ao assunto.
- Não - respondeu, enquanto erguia a cabeça e beijava o queixo de Noah. - Só estava a dizer que não é boa ideia.
Arrependeu-se de dizer aquilo, receando que ele recobrasse a razão e deixasse de lhe tocar. Necessitava e queria desesperadamente que Noah a abraçasse e fizesse amor com ela.
- Jordan? - A voz de Noah era um murmúrio rouco. Oh, céus, ele ia parar. Jordan engoliu em seco.
- Sim?
- Abre a tua boca para eu te beijar.
Não se mexeu. Ficou à espera que ela tomasse a decisão.
Do pensamento de Jordan escapou-se todo e qualquer sentimento de culpa ou de preocupação pelas consequências dos seus atos. Na sua mente só havia lugar para Noah. Fitou os seus belos olhos azuis e lentamente puxou-o para si.
Era o encorajamento de que ele precisava. A sua boca enfiou-se na dela, num beijo que era simultaneamente doce, quente e exigente. E maravilhoso. Cedo, porém, isso não lhe bastou. A doçura da boca de Jordan fê-lo ansiar por mais. A língua de Noah insinuou-se e esfregou-se na dela. Levou algum tempo a explorar a boca de Jordan até isso já não ser o bastante. Apertou-a com mais força e o beijo tornou-se ainda mais profundo.
187
Noah era impetuoso e julgava ser dele toda a iniciativa até sentir que Jordan estava a puxar-lhe pela T-shirt. Quereria que ele parasse? com um grunhido, ergueu a cabeça.
- Diz-me o que queres - murmurou, com voz rouca.
- Tudo - sussurrou ela. - Quero que tires tudo.
O brilho ardente nos seus olhos fê-lo estremecer. Passou-lhe o polegar pelos lábios húmidos.
- Sabes bem.
- Como açúcar?
- Melhor ainda.
Puxou a T-shirt de Jordan até acima dos seios e puxou a sua, ao mesmo tempo, mas os cotovelos e as suas mãos meteram-se de permeio. De repente, sentia-se ansioso e a ferver, como se fosse a sua primeira vez. Sabia como agradar a uma mulher - Deus sabia como havia aperfeiçoado a sua técnica, com o correr dos anos -, mas aquilo era diferente. Jordan era diferente. A urgência de fazer amor com ela causava-lhe dor. Nunca se sentira assim, até então.
A sua T-shirt foi a primeira a sair mas a dela seguiu-se de imediato. Jordan não se mostrava envergonhada ou hesitante. Tocava-lhe nas costas, nos ombros, nos braços. Noah podia sentir o coração dela a bater e, quando lhe tocou nos seios, ela arqueou as costas e gemeu suavemente.
As pernas de Jordan moviam-se incessantemente contra as de Noah. Ele beijou-lhe o lado do pescoço e lentamente fez descer a cabeça, sem pressas para a excitar e atormentar. A sua língua acariciou-lhe a clavícula, e quando por fim chegou aos seios notou como todo o corpo de Jordan se retesava.
Com todo o vagar, começou a pô-la louca. Jordan não fazia ideia de que os seus seios fossem tão sensíveis, mas de cada vez que a língua de Noah lhes tocava, ela perdia mais um pouco do seu controlo.
Ele estava também a perder o controlo. Respirou fundo, estremeceu e beijou-a apaixonadamente. Tinha até as mãos a tremer. Voltou a beijá-la - rudemente, rapidamente - e depois afastou-se dela.
- Volto já... - Outro beijo rápido e rolou para o lado. - Quero proteger-te.
O coração de Jordan batia, acelerado. Mal ele se levantou, pegou na almofada e apertou-a contra o peito. Bastara um beijo,
188
pensou, para se derreter. Soltou um suspiro. Não restavam dúvidas de que Noah sabia beijar. Nenhum outro homem a fizera sentir-se daquela maneira.
A cama vergou-se, quando Noah regressou. Tirou-lhe a almofada das mãos e ela não o impediu de o fazer. Deitou-se de costas, de olhos fixos nos dele. As mãos de Noah dirigiram-se para a cintura de Jordan e lentamente puxaram-lhe para baixo os calções, atirando-os ao chão. Já despira as calças, e quando se posicionou entre as coxas de Jordan e se colocou sobre ela, o contacto do seu corpo fê-la esquecer-se de respirar.
As mãos de Jordan acariciaram as costas de Noah suavemente, como uma pena, até a boca dele voltar a ocupar a sua. O toque dela tornou-se mais intenso e frenético. Apertou-lhe os ombros, pedindo-lhe que deixasse de atormentá-la.
- Noah...
Não sabia se tinha gritado ou sussurrado o nome dele. A mão de Noah introduziu-se entre as suas coxas, quase a enlouquecendo. Ele sabia exatamente onde tocar e quanta pressão exercer. Jordan contorceu-se nos seus braços, suplicando-lhe que a possuísse.
Ansiava desesperadamente sentir cada centímetro do seu corpo, sentir-se envolvida pelo seu calor. A respiração de Noah tornou-se mais ofegante e isso excitou-a ainda mais. Iria morrer, se ele prolongasse aquele tormento.
Noah demorou o mais que pôde, desejando dar-lhe tanto prazer quanto ela estava a dar-lhe. A reação de Jordan tornou impossível dilatar a espera. Sabia que ela estava pronta. As unhas de Jordan cravaram-se nos seus ombros e ela arqueava o corpo de encontro ao seu. A boca de Noah cobriu a sua, e ele agitava-se entre as coxas dela, afundando-se lentamente no seu calor húmido. Ela era tão apertada e estava tão quente que ele gemeu de puro prazer. Permaneceu inteiramente imóvel dentro dela, ofegando quando sussurrou o seu nome.
Quando ele a possuiu, Jordan gritou. O êxtase era arrebatador.
- Ah! Jordan. - suspirou ele. - Porra!
Jordan não queria deixá-lo respirar. Cada nervo do seu corpo implorava alívio. Ergueu os joelhos para o receber mais profundamente e começou a mover-se.
Oh! como queria agradar-lhe, enlouquecê-lo tanto como ela estava. Mordeu-lhe o ombro, beijou-lhe a boca e depois o pescoço.
189
Agora, estava a ofegar. Noah retirou-se para, logo a seguir, voltar a penetrar mais fundo e as lágrimas afloraram aos olhos de Jordan entontecida pela intensidade do que sentia dentro de si. Os movimentos de Noah tornaram-se mais enérgicos, mais impetuosos mais exigentes. Era maravilhoso.
Mesmo nos assomos de paixão mais intensa, Noah fora sempre capaz de controlar as suas reações e de gerir o seu ritmo, mas não conseguia dominar o que estava a acontecer-lhe agora. O seu corpo batia no dela repetidamente e Noah não conseguia impor-lhe menos ritmo. Jordan estava igualmente desvairada. A tensão crescia dentro dela, prestes a explodir, ansiosa por realização.
Dentro dela rolavam ondas sucessivas de sensações. Nunca experimentara nada igual. Deixou-se arrastar, como o carrinho de uma montanha-russa a precipitar-se para o solo, com os nervos à flor da pele e as vagas de prazer a correrem-lhe por todo o corpo.
Noah beijou-a e depois enterrou-lhe o rosto entre o pescoço e o ombro, sussurrando novamente:
- Porra.
Era um palavrão... e, no entanto, para Jordan foi como se ele tivesse dito algo de muito delicado.
Noah estava a resfolegar contra a sua orelha. Ou seria ela quem resfolegava? Aquele homem deixava-o fora de si.
Jordan não queria soltar-se dele. Nunca.
Noah rolou para o lado e puxou-a contra si. Segurou-a e acariciou-a, agora suavemente. Nenhum deles falou por ambos estarem satisfeitos de momento. Os minutos foram passando e Jordan acabou por adormecer nos braços dele.
A meio da noite, acordou. Noah continuava a seu lado.
190
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Um estrépito avassalador despertou Jordan do sono profundo em que estava mergulhada. De um salto, sentou-se na cama, receando que o motel tivesse sido rachado ao meio. A escuridão era total. Entontecida e mal refeita, não conseguiu compreender o que se passava.
Um outro raio caiu sobre o telhado e fez estremecer a cama. Jordan deu outro salto. Depois relaxou. Era apenas uma tempestade. O clarão de um relâmpago iluminou a janela, logo seguido por outro estrondo. O rádio com relógio, na mesinha de cabeceira, indicava cinco horas da manhã. Era demasiado cedo para se levantar.
A trovoada inquietou-a. Parecia tornar-se cada vez mais violenta. A chuva batia contra o vidro da janela, como se alguém estivesse desesperadamente a querer entrar no quarto, e o vento tornou-se mais forte e começou a uivar.
Estaria a aproximar-se algum tornado? Nunca se vira ameaçada por nenhum, mas havia visto alguns no canal da meteorologia. Iria soar alguma sirene de alerta? Disporia Serenity de algum sistema de alerta? Afastou dos olhos uma madeixa de cabelo e tentou não pensar em tal coisa.
Um trovão voltou a explodir e o estrondo ricocheteou pelo quarto. Até mesmo as tempestades eram maiores no Texas, pensou.
- Não é nada - murmurou Noah. - Volta a dormir.
Delicadamente, fê-la reclinar-se, pôs-lhe o braço em redor da cintura e puxou-a para si até as costas de Jordan ficarem comprimidas contra o seu peito.
Voltar a dormir? Impossível. Estava inteiramente nua e na cama com Noah. Dormir era a última coisa que lhe vinha à mente.
191
A recordação de como haviam feito amor encheu-lhe o espírito Oh, céus, tivera relações sexuais com Noah... uma e outra vez. Soltou um suspiro abafado. Fora extraordinário... e perturbante... e perfeito, mas também implicara uma descoberta pasmosa. Quem havia de dizer que o sexo era uma coisa tão maravilhosa? Ela decerto não o havia sabido até àquela noite com Noah. Só de pensar na forma como ele lhe tocara, fazia o seu corpo estremecer... e ansiar por mais.
Parecera-lhe a coisa mais natural deste mundo adormecer nos seus braços. Sentira-se tão protegida e em segurança. E amada, admitiu. Sentira-se amada. Se ser amada por Noah, nem que fosse só por uma noite, era uma fantasia, não queria privar-se de a realizar. Que mal podia fazer-lhe? Era uma mulher adulta. Sabia proteger-se.
Recordou todas as coisas maravilhosas que haviam acontecido, as diversas maneiras como tinham feito amor e o seu coração começou a bater mais depressa. Noah era um amante voraz. Não havia nada que não quisesse fazer ou não a levasse a fazer. Não se mostrara absolutamente nada tímido perante ela e provara-o repetidas vezes. Por volta das duas horas despertara-a... ou fora ela quem o despertara? Não acreditava que houvesse uma polegada do seu corpo que Noah não houvesse beijado ou em que não tivesse tocado.
Ao que parecia, também ela era insaciável. Nos braços dele, convertera-se numa mulher selvagem. Depois de ter conhecido Noah, jamais poderia esquecê-lo.
Rolou para o lado e beijou-lhe a base do pescoço, deixando que os lábios sentissem o latejar da veia. Adorava o cheiro de Noah - tão sexy, tão masculino - e o gosto da sua pele quente. Voltou a beijá-lo. Parecia não lhe ter produzido qualquer reação até ao momento em que começou a acariciá-lo. A sua boca e as pontas dos seus dedos correram ao longo do peito de Noah, circundaram-lhe o umbigo e seguiram mais para baixo.
- Queres dar cabo de mim - gemeu Noah. Queria dizer com aquilo que ela parasse? Afastou-se.
- Queres...?
- Oh! sim, quero.
Noah fê-la deitar-se de costas e cobriu-a com o seu corpo. Beijou-a sofregamente e mostrou-lhe quanto a desejava. A maneira
192
como fizeram amor foi tão impetuosa como a tempestade que desabava lá fora.
Plenamente saciada, Jordan deixou-se cair em cima dele e adormeceu.
Eram nove horas da manhã quando ele a abanou para a despertar. Ela virou-se para o beijar, abriu os olhos e viu-o ir-se embora. Já estava totalmente vestido.
- Despacha-te, Jordan - disse-lhe. - Temos de ir.
Nem um beijo. Nem uma palavra carinhosa. Nem sequer um "bom dia". Ficou a vê-lo desaparecer no seu quarto e rolou até ficar de costas na cama, a olhar para o teto. Porque não a havia ele beijado?
"Não vás por aí", recomendou a si própria. "Não permitas que o que aconteceu esta noite se torne parte de algo muito maior... como apaixonares-te perdidamente por um homem que nunca, mas nunca, se envolveria num relacionamento duradouro." Aquela noite havia sido impressionante, mas as coisas tinham tendência a modificar-se à luz do dia.
Resmungou em voz alta, enquanto esticava os braços e se forçava a levantar-se e a caminhar, aos tropeções, até à casa de banho.
A meio do duche, a sua mente aclarou-se. Noah mostrara-se decididamente enfastiado. De facto, a sua atitude raiara a indiferença. Pensou nisso, enquanto secava o cabelo. Dissera-lhe para se despachar, mas nada mais. Nem sequer lhe explicara aonde iam. Iriam sair da cidade? Vestiu uma saia e uma blusa justas de um azul pálido. Oxalá saíssem da cidade. Precisava de afastar-se de Serenity e daquele homem, antes que ficasse tão emocionalmente dependente que se tornasse naquilo que mais desprezava: uma fã de Noah Clayborne, aferrada a ele. Nunca permitiria que isso acontecesse. Depois de aplicar um protetor solar, um pouco de maquilhagem e de passar batom nos lábios, a sua resolução era firme. Pegou no estojo das lentes de contacto e regressou ao quarto. Noah estava a falar ao telefone.
Esperou à porta que ele acabasse a chamada.
- Aonde vamos? Devo fazer as malas e pagar a conta do motel?
Noah abanou a cabeça e não a fitou, enquanto afivelava a correia do coldre e punha nele a pistola.
- Vamos encontrar-nos com o xerife Randy, às dez horas. - explicou. - Faremos o check-out quando regressarmos.
193
- Deixa-me só ir buscar a chave e os meus óculos.
- Ainda estão na mesinha de cabeceira - informou ele. Aquele comentário foi a sua mais aproximada referência ao facto de haver dormido na cama dela. Não iria obter mais qualquer palavra de Noah sobre o assunto.
- Estás pronta? - perguntou.
Pegou na chave do seu quarto e dirigiu-se para a porta.
Jordan pegou na mala de mão e meteu as suas coisas dentro dela. Como podia Noah mostrar-se tão emocionalmente indiferente em relação ao que se passara naquela noite? E como estava ela tão emocionalmente afetada por isso? Podia sentir o seu coração a destroçar-se, mas fez apelo às suas forças e seguiu atrás dele.
Sabia o que Kate diria, que era apenas a diferença entre os homens e as mulheres. Talvez tivesse razão, mas isso não importava. O comportamento de Noah feria-a e a sua atitude não só demonstrava insensibilidade como era também profundamente maldosa. Grande imbecil! Pronto, agora já se sentia melhor. Pusera a culpa em quem a tinha. Era Noah quem tinha um problema e não ela. Quando atravessou a porta, lançou-lhe um olhar ríspido, de sobrancelhas franzidas. Noah não pareceu aperceber-se de que ela não estava de bom humor, ou, se tal aconteceu, não o referiu.
Desprezando o protocolo, tomaram o pequeno-almoço num café quase miserável no lado oriental da cidade. Tudo ali parecia gorduroso, até mesmo o sumo de laranja. Jordan escolheu uma torrada e chá quente. Noah, pelo seu lado, tomou um pequeno-almoço abundante, à medida do Texas.
Jordan mordiscava a torrada, olhando para ele por cima da mesa.
- Estás chateada? - perguntou Noah. ; Ela assentiu lentamente com a cabeça.
Noah sorriu.
- Vais dizer-me porquê ou tenho de adivinhar?
- Fizemos amor esta noite. Várias vezes.
Por pouca sorte, fez esse comentário enfático no preciso momento em que a empregada depositava a conta em cima da mesa. A mulher de meia-idade e farta cabeleira soltou uma risada abafada como se fosse uma adolescente. Jordan sentiu-se envergonhada e pôde sentir-se a corar. O sorriso de Noah alargou-se de orelha
194
a orelha e os seus olhos dardejaram. Estava a divertir-se à grande com a atrapalhação de Jordan. Assim que a empregada se afastou - sem dúvida para ir contar às colegas o que ouvira à desavergonhada da mesa três -, Noah confirmou:
- Sim, fizemos.
Jordan recostou-se na cadeira.
- Muito bem.
- Muito bem? - repetiu ele.
Jordan assentiu.
- Era só o que eu queria. Uma confirmação.
Pela sua parte, era assunto encerrado. Dobrou o guardanapo, colocou-o em cima da mesa, consultou o relógio e disse:
- Temos de nos apressar. São quase dez horas.
O cozinheiro estava a olhar para ela pelo postigo, tal como as duas empregadas, por trás do balcão. Jordan manteve a cabeça erguida, ao sair do café.
Jordan sabia que Noah não percebia a razão por que ela necessitava do seu reconhecimento de tudo o que se havia passado naquela noite, mas isso não lhe importava. A partir daquele momento, as coisas entre eles iam voltar a ser como anteriormente. Ele seria o amigo e colega do seu irmão e ela uma monótona mas decididamente feliz mulher que vivia metida dentro do seu casulo confortável.
Noah tinha acabado de tomar lugar ao volante, quando notou a testa franzida e o olhar carregado de Jordan.
- Que se passa contigo?
- Acabo de ter uma revelação.
- Ah, sim? Qual?
- Estava a pensar em áreas privadas de conforto... a minha zona privada de conforto. Sabes, aquela área que disseste ser monótona e segura.
- E monótona e segura. Lembro-me de o ter dito.
- E estive a pensar. Que faltava à minha vida chata?
- Sexo.
"Sim, isso também", admitiu a si própria.
- Além de sexo - disse, contrariada.
- Divertimento? Alegria? Sexo escaldante?
Jordan estava a ficar exasperada.
195
- Já disseste "sexo" - recordou.
- Pois - replicou ele.
Ignorando o sarcasmo, Jordan continuou:
- Vou dizer-te o que faltava. Cadáveres, Noah. Nunca houve cadáveres na minha zona privada de conforto.
196
CAPÍTULO VINTE E CINCO

J.D. costumava gabar-se ao irmão de que, se não quisesse que ninguém o encontrasse, ninguém o encontraria. Conhecia todos os melhores refúgios em Serenity e arredores.
Randy também conhecia alguns dos esconderijos de J.D. mas não todos. Por exemplo, J.D. nunca falara ao irmão da mina abandonada que descobrira acidentalmente no ano anterior, quando seguira por um atalho para atravessar a propriedade de Eli Whitaker. Sabia que estava a entrar em propriedade privada, mas como o Eli não a rodeara com uma cerca, J.D. considerou que não haveria problema, muito especialmente se não o contasse a ninguém.
A mina convertera-se no seu refúgio secreto. Quando lá se encontrava, estava a pregar uma partida a Eli e isso fazia-o sentir-se contente. Não achava bem que Eli se apoderasse de todas as melhores propriedades rurais e tivesse assim tanto dinheiro.
A moradia secundária de J.D. não era grande coisa, mas mesmo assim gostava dela. Tivera de instalar dois sacos de dormir e levar para lá uma geleira, que periodicamente enchia de gelo e de cervejas. Além disso, os únicos acessórios eram duas lanternas e pilhas novas. Não queria ficar sem luz de noite, quando lia as suas revistas masculinas. Tinha orgulho em declarar que nunca lia os textos. Tudo aquilo que queria e de que precisava era olhar para as mulheres nuas.
Acalentara até a ideia de levar até lá duas raparigas do Lux para passar um bom bocado. No entanto, não o fizera. Gostava de ter um lugar secreto que só ele conhecesse.
O local era perfeito. A mina achava-se suficientemente longe de Serenity para que ninguém se lembrasse dela, mas, por outro
197
lado, suficientemente perto para ter rede no telemóvel. Nos dois últimos dias tinha tido de estar disponível de dia e de noite para a hipótese de o patrão precisar de alguma coisa.
Por várias vezes, pensou em telefonar a Randy para saber se havia algum mandado de captura emitido em seu nome, mas, sempre que começara a marcar o número, mudara de ideias. Não estava disposto a ouvir outra descompostura. Além disso, o patrão conseguiria descobrir se fora ou não emitido algum mandado para a sua captura.
Tinha bons conhecimentos em toda a cidade e, quando muito, bastar-lhe-ia fazer um ou dois telefonemas para apurar se aquela ordinária chamada Buchanan havia decidido queixar-se dele.
Por sorte, o telemóvel que roubara da casa do professor MacKenna tinha o número colado na parte de trás. O patrão era a única pessoa que o conhecia.
J.D. estava a ficar ansioso, à espera de notícias dele, que não só saberia se a polícia andava à sua procura, como também era dia de pagamento e o dinheiro seria bem-vindo.
Deu um salto, quando o telemóvel tocou.
- Sim?
- Vou a caminho - disse-lhe o patrão.
- Da casa? - perguntou J.D.
Seguiu-se uma longa pausa.
- Sim. Foi lá que combinámos encontrar-nos.
- Sim, senhor. vou já partir.
- Lembra-te de estacionar a pelo menos três quarteirões de distância. Depois segue a pé.
- Com certeza - prometeu J.D. - Recorda-se de que hoje é dia de pagamento?
- Claro que sim. Temos muitas coisas a resolver, antes que caia a noite.
- Eu sei - replicou J.D. - Soube alguma coisa acerca do mandado?
- Ainda não.
- O novo chefe de polícia não vai permitir que dois assassínios fiquem por resolver. Estive a pensar em dois nomes. Se houvesse maneira de os incriminar...
- Já tenho alguém em mente para arcar com a culpa, mas para isso preciso da tua ajuda. Talvez possamos pôr uma pedra no assunto, dentro de uma semana.
198
- Eu sabia que você ia encontrar uma solução. É tão sabido neste género de coisas.
- Tenho muita prática. E agora despacha-te. Temos trabalho a fazer.
199
CAPÍTULO VINTE E SEIS

Quando Jordan e Noah chegaram à esquadra, o xerife Randy encontrava-se no gabinete do chefe Davis, tentando andar de um lado para o outro em frente da secretária. Todavia, por o gabinete ser tão pequeno, só conseguia dar dois passos em cada direção.
Noah fez Jordan ficar atrás dele, quando entrou. "Não quer dar outra oportunidade ao J.D. de me esmurrar", pensou ela.
Só que J.D. não estava à vista. Ao vê-los, Joe acenou-lhes.
- Entrem - convidou.
Noah não quis perder tempo com apresentações.
- Onde está o seu irmão?
- Não sei onde ele está - declarou Randy. - Juro-lhe que o procurei por toda a parte. Deixei-lhe pelo menos cinco mensagens no telefone de casa e duas vezes mais no telemóvel, dizendo-lhe que devia apresentar-se e que não lhe aconteceria mal algum porque Miss Buchanan acedera a não apresentar queixa... - Tentou olhar para lá de Noah. - É verdade, não é assim, Miss Buchanan? O Joe disse-me que não vai apresentar queixa.
Muito embora Noah tapasse quase a ombreira da porta, Jordan conseguiu colocar-se a seu lado.
- Sim, é verdade.
- Obrigado - disse o xerife. - Eu tento fazer o melhor que posso para levar o J.D. a tomar boas decisões, mas é uma luta inglória.
Parecia estar a ser sincero e a mostrar-se contrito. Jordan, de súbito, sentiu pena dele. Devia ser terrível tentar manter na linha aquele irmão tão propenso a esmurrar alguém.
200
Randy voltou a dirigir-se a Noah:
- Sei que ele cometeu um disparate, mas é meu irmão e é a única família que tenho. Juro que tentei sempre ajudá-lo a seguir em frente e a manter-se afastado de sarilhos. Julguei que, agora, seguia no caminho certo. Ia acabar com o Lux, o que era um passo bastante positivo.
A Noah isso pouco importava.
- Como ficou ele a saber que havia um cadáver no porta-bagagens do carro da Jordan?
- Ele disse-me que recebeu uma denúncia no telemóvel.
- Quero saber exatamente o que ele lhe disse.
- Tínhamos combinado ir à pesca e eu passei por casa dele para o ir buscar. Ele apareceu a correr e contou-me que havia recebido a denúncia.
- E quem a fez? - perguntou Noah. - Ele disse-lhe de quem provinha essa denúncia?
- De uma mulher - respondeu Randy. - Levei muito tempo até conseguir arrancar-lhe essa informação. No entanto, não quis dar-me o seu nome. Ele explicou-me que tinha de a proteger, que lho prometera. Para ser sincero, não sei se ele estava ou não a dizer a verdade. - Acrescentou, com fervor: - Espero que sim.
Parecendo abatido, Randy encostou-se à secretária e prosseguiu:
- O J.D. anda sempre à procura de uma grande proeza. Acalenta o sonho inviável de comprar um rancho. Não sabe nada acerca de gerir um rancho, mas não se importa com isso. Julga que é muito esperto, o que não é verdade, e é por isso que se mete em sarilhos. Cometeu alguns atos estúpidos e tem um temperamento irascível, não há dúvida, mas não seria capaz de matar fosse quem fosse.
- Ele foi preso por matar alguém - fez notar Joe.
- Foi numa rixa de bar e não foi ele quem a iniciou. Teve pouca sorte. - A má sorte parece persegui-lo, não acha? - comentou Joe.
- Tenho os adjuntos do xerife a passar o campo a pente fino, a procura dele - disse a Noah. De súbito, apercebeu-se da presença de Jordan. - Onde estão as minhas boas maneiras? Jordan, entre e sente-se.
201
- Estou bem aqui - replicou ela.
- Muito bem. Noah, estive a pensar na tal mulher que o J.D. disse ter-lhe telefonado. É coisa que a Maggie Haden seria capaz de fazer. Não a poria de lado.
- Pensei nessa possibilidade - interveio Randy. - Depois de eu me casar, aferrou-se ao J.D. e tornou-se realmente odienta.
- Sempre foi odienta - disse Joe. - Só que você não o notava.
Randy encolheu os ombros.
- Também ando à procura dela. O seu telemóvel está ligado diretamente ao voice mail, e não tem atendedor de chamadas em casa.
- Porque quer entrar em contacto com ela? - perguntou Joe.
Randy olhou para o chefe de polícia, por cima do ombro.
- Porquê? Porque pode saber onde se encontra o J.D. Só por essa razão é que voltarei a falar com ela. - Pôs-se de pé. - Tenho de regressar ao meu gabinete. Vou continuar à procura do J.D. mas se você e o Joe o encontrarem, telefonem-me imediatamente. Estou preocupado com ele.
Noah afastou-se para permitir que Randy saísse. O xerife encaminhou-se para a porta, hesitou por um ou dois segundos, voltando-se depois e olhando para Noah.
- Posso falar consigo, a sós?
- Com certeza - anuiu Noah.
Seguiu atrás de Randy até ao carro deste. Os dois homens conversaram por alguns minutos.
Joe atendeu uma chamada, enquanto Jordan esperava pelo regresso de Noah.
- Onde está a Carrie? - perguntou ela, quando ele pousou o auscultador. - Está de folga?
- Não, voltou para a cadeia - informou Joe. - Devem mandar-me amanhã uma substituta, mas até lá as chamadas que não posso atender são encaminhadas para Bourbon.
Uma vez que a sala não era suficientemente grande para outra cadeira, Jordan encostou-se à ombreira da porta.
- Porque é que ela voltou para a cadeia? Não estava em regime de liberdade condicional?
- É verdade - adiantou o chefe. Afastou alguns papéis em cima da secretária e apoiou os cotovelos no tampo. - Foi um dos
202
últimos atos vingativos da Maggie. Telefonou para a prisão e deu uma péssima nota à Carrie. Disse que era incompetente.
- E acha que ela era incompetente?
Joe abanou a cabeça.
- Tinha dificuldade em aprender a lidar com o computador, mas era suficientemente boa a atender chamadas e a tomar nota dos recados.
- Então, porque não pede que ela regresse?
- A Maggie também a acusou de roubar material de escritório, mas não acredito nisso.
- Joe, tem de fazer alguma coisa.
- Estou a tentar - declarou ele.
"Não o suficiente", pensou Jordan.
Assim que Noah voltou à esquadra, Jordan contou-lhe o que se passava com Carrie. Não teve de pedir-lhe que fizesse algo por ela porque sabia que ele iria tomar essa iniciativa.
- Não há muito mais que possamos fazer aqui - adiantou Noah a Joe. - Por isso, vamos buscar as nossas coisas ao motel, pagar a conta e metermo-nos à estrada. Quero levar a Jordan ao aeroporto para regressar a Boston. Se precisar de mais alguma coisa...
- Mas você volta, não é verdade?
- Os agentes Chaddick e Street dar-lhe-ão uma ajuda, se precisar. Só tem de pedir.
Apertando a mão de Noah, Joe acrescentou:
- Gostava que ficasse na cidade, mas compreendo que queira partir, a fim de retornar à sua vida e às suas funções. - Voltou-se para Jordan. - A seu tempo, haverá um julgamento. Nessa altura, terá de voltar a Serenity.
- E fá-lo-ei - prometeu Jordan.
Sentiu-se inundada por uma sensação de alívio, quando saíram da esquadra. Finalmente, ia sair de Serenity.
Não levaram muito tempo a arrumar as malas. Noah tencionava colocá-las no carro para depois pagar a conta a Amélia Ann. Uma chamada telefónica alterou-lhe os planos.
- Noah, fala o Joe. A casa do MacKenna está a arder.
203
CAPÍTULO VINTE E SETE

- Santo Deus, que está a acontecer?
A voz de Joe soava trémula, ao formular esta interrogação. Juntamente com Jordan e Noah, encontrava-se no passeio, em frente da pequena casa que MacKenna tomara de arrendamento, assistindo ao incêndio devastador que a consumia.
Enfiou as mãos nos bolsos e prosseguiu:
- Esta noite, tivemos uma grande chuvada. Devia ter ensopado aquele teto e mantê-lo húmido por muito tempo, mas pelos vistos não o fez. Vejam como a casa arde. - Sacudiu a cabeça. - Nunca vi um incêndio devastar uma casa tão depressa.
"Outra tempestade seria bem-vinda", pensou Jordan. com a mão a proteger-lhe os olhos, perscrutou o céu. Não havia uma nuvem à vista. O sol resplandecente incidia sobre eles impiedosamente. Como de costume, o sol do deserto era quente e implacável.
- Não, de facto nunca vi nada assim - murmurou Joe.
Embora não restassem dúvidas no seu espírito de que se tratava de fogo posto, ele ainda queria e precisava de confirmação.
- Vejam como arde. Os quatro cantos a arderem desta forma. É como se tivesse sido bombardeada com gasolina. - Joe forçou-se a desviar os olhos do incêndio para fitar Noah. - Sei que isso é da competência do comandante dos bombeiros, mas aposto que ele vai dizer que se trata de fogo posto. Não concorda?
- Tudo aponta nesse sentido - concordou Noah, sem hesitação. - E diria que foi utilizado um combustível muito potente para iniciar o fogo e mantê-lo tão forte.
204
- Nunca havia visto uma casa arder tão depressa - repetiu Joe, manifestamente impressionado. - Mas não entendo. Porquê deitar fogo à casa? Os detetives e os membros da equipa científica de Bourbon vasculharam a casa de cima a baixo e quaisquer indícios que tenham encontrado foram já metidos em sacos de plástico e levados para o laboratório. Vocês também a visitaram. Viram o que restava. Só papéis velhos e móveis em mau estado. Viram alguma coisa que merecesse ser queimada? Pela minha parte, não vi nada.
Joe deu um passo atrás, a fim de poder encarar Jordan, que se encontrava ao lado de Noah.
- Lamento o que aconteceu àquelas caixas cheias de papéis. Eu sei que você esperava poder entrar na sua posse.
Jordan não corrigiu o erro de Joe. Ele esquecera-se decerto de que ela tirara fotocópias. Ou isso ou julgava que ainda lhe faltava tirar algumas fotocópias, mas pouco importava. Os papéis com os resultados das pesquisas do professor iriam parar aos seus herdeiros, e de qualquer forma já não precisava deles.
- Não acredito que alguém se desse ao trabalho de pegar fogo a uma casa para se ver livre de uns velhos relatos históricos - concluiu Joe.
Jordan observou os bombeiros. Haviam desistido de salvar a casa do professor e concentravam os seus esforços na tentativa de impedir que o incêndio alastrasse à casa contígua. Se o vento se levantasse, todo o quarteirão podia ser consumido pelas chamas.
- Tem a certeza de que todos os vizinhos se encontram a salvo? - inquiriu Jordan.
Joe assentiu afirmativamente.
- Só a velha Mistress Scott nos causou problemas. Não permitiu que se aproximassem dela para a ajudar a descer os degraus. Um dos bombeiros teve de pegar nela, para a tirar da casa, mas ela não parou de gritar e de se debater. Sabe o que a ouvi dizer? Que não queria perder a novela na televisão.
- Porque não o deixou aproximar-se?
- Acha que nunca ninguém faz por ela o suficiente. É mesmo insuportável. Um dia chama o xerife Randy e, no dia seguinte chama-me a mim, sempre a queixar-se de qualquer coisa. Não se importa com a jurisdição a que pertence. Se alguém passar pelo
205
jardim da frente ou pelo das traseiras, fica possessa. Chama-lhe invasão de propriedade". Há dias, chamou-me porque uns miúdos haviam pisado as flores em frente da sua casa. - Apontou para a direita. - A casa dela é a segunda a contar da do MacKenna. Agora, digam-me: pode-se chamar flores àquelas ervas daninhas?
Noah queria-o de volta ao que interessava.
- Falou com os vizinhos? Perguntou-lhes se viram alguém rondar a casa do MacKenna?
- Ainda não interroguei todos - admitiu Joe. - Só aqui cheguei alguns minutos antes de vocês e andei atarefado a tirar toda a gente das casas próximas. Vou agora começar os interrogatórios. Não se importa de me ajudar nessa tarefa? - Encaminhou-se para o magote de gente que se apinhava na esquina, mas, a breve trecho, parou. - Estou assoberbado de trabalho - lastimou-se. - Não tenho experiência suficiente e não posso estar em todo o lado ao mesmo tempo. Acho que agora seria bem-vinda a ajuda dos seus amigos do FBI. Porque não os chama já?
"Já não era sem tempo", pensou Noah.
- Tenho muito gosto em fazê-lo - disse.
Fez a chamada de imediato, antes que Joe pudesse mudar de ideias. Chegou ao voice mail de Chaddick e deixou-lhe uma mensagem, pedindo que lhe telefonasse.
Enquanto se dirigiam ao grupo de vizinhos, Jordan perguntou:
- Onde estão os adjuntos? Já sei que o xerife de Grady está no Havai, mas não se pediu o auxílio dos adjuntos?
- E estão a ajudar - replicou Joe. - Neste momento, andam a passar duas jurisdições a pente fino, à procura do J.D. Pode estar escondido num milhar de sítios, mas eles prosseguirão o trabalho até o encontrarem e trazerem para ser interrogado.
Os vizinhos do professor MacKenna estavam ansiosos por contar o que sabiam, mas infelizmente nenhum vira nada de extraordinário. Uma mulher apercebera-se de uma carrinha de limpeza de alcatifas passar pela rua, mas tinha a certeza de que se encaminhara para o quarteirão seguinte.
Mrs. Scott dispunha de informações, mas de cada vez que Joe tentava falar com ela, virava-lhe as costas e olhava para o ar. Foi Noah quem teve de a aplacar. Bastou-lhe um par de sorrisos e um olhar compassivo, para que ela desatasse numa arenga excitada a respeito das suas flores.
206
- com efeito, vi alguém - disse ela. - Vi aquele desprezível rapaz dos Dickey a cortar caminho pelo meu jardim das traseiras. Vi-o perfeitamente. Eu estava na minha cozinha, a fazer um sumo Kool-aid porque gosto de beber o meu Kool-aid, enquanto assisto aos meus programas favoritos na televisão. - Fez uma pausa para lançar uma mirada ajoe, antes de continuar: - Foi então que vi o mais novo dos Dickey a esgueirar-se. Levava consigo qualquer coisa com uma asa grande, uma espécie de bidão de gasolina. Estava já disposta a abrir a porta das traseiras para lhe gritar que saísse da minha propriedade, mas ele desapareceu, antes que eu pudesse abrir o segundo ferrolho. Não se passaram cinco minutos quando ouvi gritar que estava a arder alguma coisa e as pessoas começaram a dar pancadas na porta da frente da minha casa. Por isso, levantei-me da minha cadeira de repouso e subi o volume de som do televisor, para conseguir ouvir o programa.
Voltou a lançar um olhar carregado a Joe.
- Tem a certeza de que era o J.D.? - perguntou Joe.
- Tenho a certeza de que não estou a falar consigo - ripostou Mrs. Scott. - No entanto, se a pergunta me for feita por este gentil cavalheiro, direi que sim, que era o Julius Dickey. Pude ver perfeitamente aquela enorme fivela do cinto que ele usa. Era ele.
Joe e Noah agradeceram aos diversos vizinhos e começaram a descer a rua. Jordan ficou para trás, a falar com algumas mulheres. Ao notar que ela não se achava junto dele, Noah virou-se e viu Mrs. Scott a brandir um dedo em frente do rosto de Jordan. Voltou para trás, a fim de lhe dizer que era tempo de se irem embora.
- Irmos embora desta rua ou de Serenity? - perguntou Jordan, depois de se despedir das vizinhas de MacKenna.
Para ser sincero, Noah não sabia. Embora estivesse ansioso por sair da cidade e se ver dentro de um avião, de regresso a Boston, Jordan achava-se no centro de toda aquela loucura e até ele perceber a razão pela qual o assassino decidira implicá-la no caso e mantê-la em Serenity, não ia deixá-la sozinha nem por um segundo. Ocorreu-lhe até que nunca mais ia querer afastar-se dela.
Sacudiu a cabeça para tentar aclarar as ideias.
- Sabes como Mistress Scott me tratou?
207
Noah abrandou o passo.
- Como?
- "Você aí".
Noah sorriu.
- E então?
- Então, queria saber por que razão "você aí" - ou seja, eu - tinha vindo a Serenity.
- E que lhe disseste?
- Que viera para provocar o caos.
- Boa resposta.
- Ela disse ainda que "Serenity costumava ser um lugar tranquilo".
- Até tu chegares à cidade.
- Também queria saber quando me vou embora. Creio que planeia manter-se dentro de casa, fechada a sete chaves, até eu partir.
Noah soltou uma gargalhada.
- Vai ser dentro em breve - prometeu. - Dentro de duas horas, estaremos na estrada. O Joe pediu-me que eu ficasse até o Chaddick e o Street chegarem. Está com os nervos à flor da pele. É um caso importante e ele não quer cometer disparates. Sei que estás pronta para partir...
- Estou... em conflito comigo própria - disse ela, com alguma hesitação.
- Ah, sim? Como?
- Quero ir-me embora, mas também queria descobrir como, quem e porquê. E tenho a impressão esquisita de que as respostas se encontram mesmo à frente do meu nariz.
- Quando houver um desenlace, vais ficar a saber pela televisão ou pelos jornais.
A referência a jornais fê-la pensar em papel, desencadeando algo na sua memória, mas tão vago que não conseguiu determinar o que era.
- Depois de me deixares no aeroporto, vais regressar aqui?
- Doçura, não vou deixar-te em parte alguma.
Puxou-a em direção ao carro. Jordan olhou por cima do ombro e viu Joe parado no meio da rua, a falar com um bombeiro.
- Então, quais são os teus planos? - perguntou.
- vou regressar a Boston contigo. Por muito que queira ajudar o Joe, não vou voltar a Serenity. Além disso, esta não é a minha
208
zona de atuação. Agora é o Chaddick quem está à frente das operações, ou estará, assim que me retribuir a chamada, e ele sabe bem o que tem a fazer. Já anda nisto há bastante tempo e tem enorme experiência.
Quando chegaram junto do carro, Noah entregou-lhe as chaves.
- Liga o motor e põe o ar condicionado a funcionar. Volto já.
Jordan sentou-se ao volante, ligou o motor e ajustou o manípulo do ar condicionado. Espreitou Noah pelo retrovisor lateral. Ele e Joe estavam agora a falar com o bombeiro. Em seguida, Joe tirou o telemóvel do bolso e fez uma chamada, enquanto Noah regressava ao automóvel. Vinha a abanar a cabeça e parecia frustrado. Encaminhou-se para o assento do passageiro, mas Jordan deslizou para esse lado e fez-lhe sinal para que fosse ele a guiar. O suor escorria pelo pescoço de Noah. Jordan ligou a ventoinha e ajustou os ventiladores de maneira a que incidissem sobre ele.
- Porque é que não queres guiar? - perguntou Noah.
- Por causa do trânsito - declarou ela. - Detesto conduzir no meio do trânsito.
Levou-lhe uns segundos a aperceber-se do que dissera. Noah riu-se.
- E que trânsito há em Serenity? Três ou quatro carros à tua frente?
- Está bem. É que detesto conduzir. - Antes que ele pudesse tecer qualquer comentário, perguntou: - Que se passou?
- O Joe vai obter um mandado para entrar na casa do J.D. Neste momento está a falar com o juiz, em Bourbon.
- Quero ir contigo - declarou Jordan. - Aposto que vou lá encontrar o meu computador portátil. E se isso acontecer...
- O quê? Que vais fazer?
- Qualquer coisa - retorquiu ela. - Tenho lá tudo...
- Estás preocupada por alguém ter acesso às informações privadas?
- Não - disse ela. - Está tudo encriptado. Ninguém poderá ter acesso aos meus ficheiros.
- Então, porque estás tão preocupada?
- Sei que com as informações e dados apropriados, posso desvendar tudo isto.
Noah olhava pela janela.
209
- Quanto tempo vai ele levar a entrar naquele maldito carro e dirigir-se à casa do J.D.?
- Diria que cinco segundos.
O cálculo de Jordan apoiava-se no facto de Joe vir a correr em direção a eles.
- Já está assinado! - gritou a Noah. - Mas nem era preciso. Um vizinho do J.D. acaba de telefonar-me para dizer que a porta de casa está escancarada."
No momento seguinte, iam a caminho.
- Não devia avisar-se o xerife Randy?
Noah encolheu os ombros.
- Deixo isso a cargo do Joe.
Jordan mexeu-se, como se aquele assunto a incomodasse.
- O xerife mudou totalmente de atitude. Na esquadra mostrou-se quase... humilde, mas no parque de estacionamento do supermercado, quando viu o irmão bater-me, foi bastante odioso.
- Anda numa roda-viva para tentar manter o irmão afastado de sarilhos. Ele sabe...
- Sabe o quê?
- Que o J.D. é um caso perdido. No entanto, compreendo a sua lealdade. É irmão dele.
- E o J.D. porventura demonstrou qualquer lealdade? Aposto que não. A vida do xerife Randy seria bem melhor se o irmão estivesse na cadeia. - Jordan esfregou os braços como se tivesse sentido um súbito arrepio. - Se por acaso o J.D. estiver em casa, toma cuidado. Há nos seus olhos um laivo de loucura. Não sei como explicá-lo. Ele é detestável... e arrepiante.
- Mal posso esperar por me encontrar com ele. Também sei ser bastante detestável.
- Lembra-te de que ele é considerado inocente até se provar a sua culpa.
- Ele bateu-te. É disso que eu me lembro.
Joe virou para o carreiro que conduzia à casa de J.D. Noah seguiu atrás dele.
- Tu ficas aqui à espera... E mantém a porta fechada - ordenou Noah.
Atuou rapidamente. Tirou a pistola do coldre, empunhou-a, mantendo-a junto ao corpo, e foi ter com Joe à porta da casa.
210
- Entre primeiro. Eu cubro-o e sigo atrás de si.
O coração de Jordan falhou um batimento quando Noah, de pistola em punho, entrou na casa. Disse a si própria que tudo ia correr bem. Noah era um agente federal, treinado para se proteger. Ouvira falar de várias situações muito complicadas em que estivera metido e tinha cicatrizes que as comprovavam. Ele sabia o que estava a fazer. Sair-se-ia bem. Assentiu com a cabeça para reforçar esses pensamentos. No entanto, por vezes ocorriam acidentes esquisitos e havia surpresas inesperadas... algumas delas nada boas.
Como diria a sua mãe, estava ela própria a pôr-se nervosa. Logo a seguir, Noah saiu da casa e tudo acabou em bem. A casa de J.D. era tão pequena que lhe haviam bastado poucos minutos para ter a certeza de que não havia ninguém lá dentro.
Jordan destrancou a porta do carro para que ele pudesse entrar. Mal se sentou, Noah disse-lhe:
- Parece que o J.D. saiu às pressas e nem teve tempo de fechar bem a porta. Espera até veres...
Joe interrompeu-o, saindo da casa a correr e gritando:
- Encontraram o J.D.!
211
CAPÍTULO VINTE E OITO

E iam três.
J.D. Dickey foi encontrado no meio das cinzas. Os bombeiros descobriram o que restava dele debaixo de um monte de escombros ainda a arder, junto do que fora a porta das traseiras da casa do professor. Nos trabalhos de rescaldo, andavam a molhar as últimas brasas, quando localizaram os seus restos. A única razão que os levou a ter a certeza de que se tratava de J.D. foi a vistosa fivela do seu cinto. Os rebordos haviam derretido, mas as iniciais em pedras incrustadas continuavam legíveis.
Jordan ficou sentada no carro, em frente das ruínas fumegantes da casa, observando Noah. Ele estava no jardim fronteiro a falar com o agente Chaddick e com Joe, enquanto aguardavam a chegada dos peritos forenses do FBI. De vez em quando, Noah lançava uma mirada ao carro, para ver se estava tudo bem com Jordan.
Três cadáveres numa semana. O professor MacKenna, Lloyd e agora J.D. Dickey. A bazófia de que Serenity era um lugar seguro e pacífico para se viver fora lançada às urtigas. E a cidade culpava Jordan Buchanan. Afinal de contas, ela era o único elo entre os assassínios e o incêndio. Jordan não ficaria surpreendida se os habitantes de Serenity aparecessem no seu quarto de motel, armados com forquilhas e de tochas na mão, para a expulsarem da cidade.
Ainda tinha nos ouvidos as acusações da velha Mrs. Scott. Nunca houvera qualquer homicídio, antes de ela chegar à cidade... nunca houvera um incêndio como o que consumira a casa de MacKenna. Ah! e nunca houvera porta-bagagens cheios de cadáveres, antes de Jordan chegar à cidade.
As estatísticas não mentem. Era mais do que um surto de azar. Era uma maldição de proporções bíblicas. Até mesmo ela gostaria
212
de fugir de si própria. Jordan sabia que essa superstição não era lógica. Mas nada naquela situação tinha qualquer ponta de lógica. Só uma coisa era certa: desde que Jordan se encontrara com o professor, tornara-se numa praga.
Era impossível prever o que ia passar-se a seguir, mas, enquanto esperava por Noah, Jordan tentou fazer exatamente isso. Foi um exercício frustrante porque não tinha dados suficientes e as horripilantes imagens dos últimos dias não paravam de interferir nos seus pensamentos. Para voltar a pensar de forma clara, precisava de apagar essas imagens do seu espírito. Estendeu o braço para o banco de trás, pegou numa pasta com as pesquisas de MacKenna e começou a ler.
Noah lançou um olhar na sua direção e viu-a de cabeça baixa, a percorrer uma folha. Tinha-lhe dito que ficasse no carro, porque não queria que ela visse os restos incinerados de J.D. Julgava que nunca iria esquecer-se da reação de Jordan. Parecera ficar surpresa, perguntando-lhe muito calmamente:
- Porque diabo julgas tu que quero ver um cadáver queimado? Na verdade, porquê?
Era um espetáculo macabro. E, enquanto nem Noah nem Chaddick foram minimamente afetados por aquela visão, Joe estava a ter dificuldade em mostrar-se sereno. O seu rosto ficara de um cinzento como Noah jamais havia visto e não parara de emitir sons entrecortados como se fosse vomitar. Noah ficou com pena dele.
- Joe, vai sentir-se melhor se não olhar para ele.
- Eu sei, mas é como num acidente de viação. Não quero olhar, mas mesmo assim não consigo deixar de o fazer.
Chaddick ficou exasperado.
- Você é um polícia - lembrou a Joe. - Se deparar com um desastre, o seu dever é olhar, não é assim?
- Sabe bem o que eu quero dizer.
Um dos bombeiros aproximou-se deles, vindo do jardim da frente. Chamava-se Miguel Moreno e era um bombeiro reformado de Houston que, já de idade avançada, decidira comprar um rancho. Fora ele quem treinara os voluntários e por isso se mostravam tão bem organizados, rápidos a responder à chamada e eficientes. Desde que tomara o treino a seu cargo, nem um só dos seus homens
213
sofrera qualquer ferimento. Já havia percorrido os escombros por várias vezes, e agora estava pronto para revelar a Noah o que pensava.
- Não há dúvidas de que foi o J.D. quem ateou o incêndio, mas aposto que ele não sabia como o combustível em seu redor era tão volátil. Se o soubesse, decerto não lhe teria pegado fogo quando ainda estava dentro de casa.
Joe deu alguns passos para se afastar do corpo calcinado.
- O J.D. pode ter ateado acidentalmente o fogo cedo demais - sugeriu. - É assim que vejo o caso: ele introduz-se na casa, rega tudo muito bem e pensa que pode sair pelo mesmo caminho, ou seja, pela porta das traseiras. Quando chegasse ao exterior, atiraria algo a arder para dar início ao incêndio. Talvez um trapo ensopado em querosene ou um jornal enrolado a que pegaria fogo.
Moreno acenou com a cabeça.
- É possível - disse. - Bastava uma faísca para tudo ficar envolto em chamas.
- Qualquer coisa podia causar uma faísca - adiantou Joe, agora ansioso por partilhar com os outros as suas teorias. - Pode ser que, quando abriu a porta para sair, a fricção das suas botas no metal da soleira tenha provocado uma chispa... Seria o suficiente.
- Só um perito em fogo posto pode determinar com rigor o que aconteceu - disse Moreno. - Já pediu a vinda a Serenity de algum desses peritos, agente Chaddick?
- Claro que sim - replicou o agente. - Joe, acha que pode ocupar-se disto com o Moreno? Conservar a área interdita a estranhos até à chegada da minha equipa? Quero ir à casa do Dickey juntamente com o Noah.
- Posso tratar de tudo - garantiu Joe. - O agente Street descobriu alguma coisa de interesse?
- Só o saberei quando lá chegar.
Joe seguiu atrás de Noah.
- Noah, pode conceder-me um segundo?
- Sim. Que pretende? - disse Noah, voltando-se.
- Acha que os agentes vão manter-me à margem, agora que tomaram a ocorrência a seu cargo? - perguntou, em voz baixa.
- Não quero intrometer-me no seu caminho, mas... - Terminou a frase com um encolher de ombros.
214
Noah apontou para Chaddick.
- Porque não vai já tirar isso a limpo?
Joe parecia embaraçado, quando fez a pergunta ao agente. Chaddick, o mais diplomático dos dois agentes, lançou um olhar a Noah, antes de responder:
- Sei que ouviu contar muitas histórias a nosso respeito. Que somos uns brutamontes e passamos por cima das autoridades locais, quando tomamos a nosso cargo uma ocorrência. Provavelmente, muitas dessas histórias são verdadeiras - acrescentou, com um sorriso. - Não gostamos que as autoridades locais interfiram no nosso trabalho, mas o Noah disse-me que esta ocorrência é diferente. Você, eu e o Street trabalharemos em conjunto.
Joe apressou-se a assentir, em concordância.
- Fico-lhe muito grato - assegurou. - É uma grande oportunidade para eu aprender com os peritos.
Arrumado aquele assunto, Noah regressou ao seu carro. Os vidros das janelas estavam descidos e podia ver Jordan a ler algumas folhas, enquanto beberricava o líquido de uma garrafa, líquido esse que era, sem dúvida, água morna. Pobre Jordan! Havia esperado um ror de tempo que ele acabasse o que tinha a fazer, mas não se queixara nem tentara apressá-lo.
Jordan viu-o aproximar-se e apressou-se a reunir as folhas que havia espalhado no assento.
Sentia tanto calor que julgava estar prestes a sofrer uma insolação. Não quisera manter o motor em marcha durante tanto tempo, por isso desligara-o e rezara para que uma brisa ligeira viesse dispersar o calor do sol.
A certa altura, apesar das ordens de Noah, saíra do carro por momentos e fora sentar-se à sombra de uma nogueira, mas os olhares da multidão que se apinhara do outro lado da rua levaram-na a sentir-se pouco à vontade. Sussurrando umas para as outras, as pessoas não tiravam os olhos dela. Quem podia saber o que diziam? Provavelmente falavam em cobrirem-na de pez e de penas ou de a queimarem na fogueira.
Quando ela e Noah haviam deixado a casa de J.D. a caminho da casa do professor, Jordan propusera regressar ao motel e esperar lá por ele. Bastaria que ele lhe telefonasse para ela regressar com o carro. Noah, porém, não aceitara essa hipótese. Não a queria longe da sua vista e, pelo tom firme da sua voz, Jordan compreendera que seria inútil insistir.
215
Noah sentou-se ao volante, pôs o motor em marcha e ligou o ar condicionado. Em seguida, voltou-se para ela. Jordan tinha o rosto vermelho. Havia prendido o cabelo no alto da cabeça, mas tinha a nuca empapada em suor. As suas roupas estavam coladas às curvas do seu corpo e a pele brilhava. Parecia, ao mesmo tempo, terrivelmente bela e esgotada, o que o levou a sentir-se envergonhado do que estava prestes a fazer-lhe.
- Como te sentes? - perguntou.
- Bem - respondeu ela. - Estou bem.
- Não queria pedir-te isto, mas tenho de voltar à casa do Dickey. Quero dar uma vista de olhos para...
Jordan interrompeu-o.
- Não faz mal. Não tens de dar-me explicações. Precisas de o fazer e eu sinto-me bem, a sério.
Não o pressionou para a levar ao motel por saber que ele ia recusar novamente. Insistira para que ela ficasse junto de si e, se isso podia ajudá-lo a fazer o seu trabalho, estava disposta a colaborar.
Noah não se apercebeu das horas até ao momento em que estacionou o carro em frente da casa de J.D. O dia estava a fugir ao seu controlo. Nem queria acreditar no tempo que passara na casa de MacKenna e sabia que ia passar tanto ou mais tempo na busca à residência de J.D.
Parou atrás do carro de Chaddick e disse:
- Talvez tenhamos de passar outra noite na cidade.
- Eu sei.
- Não te importas?
- Não, não me importo - assegurou-lhe Jordan. - Podemos partir logo de manhãzinha.
Quantas vezes pensara naquilo?
Chaddick, que já entrara na casa, apareceu à porta da frente e chamou-o:
- Vais adorar isto.
Noah assentiu, antes de se virar para Jordan.
- Se quiseres, podes vir comigo, mas não mexas em nada.
216
CAPÍTULO VINTE E NOVE

Noah nunca vira tanto equipamento de vigilância desde que estivera em Quântico.
O agente Street estava pasmado.
- Sabes, pelo que me disseram deste tipo, eu tinha-o classificado como um idiota. Mas agora... - Percorreu com os olhos o quarto com todo aquele arsenal de espionagem. - Alguns destes aparelhos são bastante sofisticados e difíceis de manipular. Ao que parece, ele sabia o que andava a fazer.
- E que andava ele a fazer, ao certo? - Jordan, que permanecera perto da porta, observava os aparelhos que Chaddick havia tirado de uma caixa e colocado no soalho.
Street lançou a Noah um par de luvas, antes de responder à pergunta de Jordan. Apontando para o que parecia uma minúscula antena parabólica, explicou:
- Isto é um microfone parabólico que permite ouvir conversas a pelo menos trezentos metros de distância.
Noah aproximou-se para observar melhor.
- Tem incorporado um gravador e uma entrada para ligar um cabo - referiu.
- Pergunto a mim própria quantas conversas privadas terá ele escutado - comentou Jordan.
- Não se limitava a escutar - adiantou Street. - Esperem até ver a sua coleção de vídeos. Tinha câmaras instaladas num quarto daquele motel sórdido que geria e filmava os clientes com as raparigas. Provavelmente, vamos encontrar as câmaras nos detetores de fumo ou nos candeeiros do teto.
Chaddick assentiu em concordância.
217
- Já viste alguns desses vídeos?
- Só um - respondeu o colega. - De boa qualidade. A imagem nem sequer apresenta granulações. - Falava como um técnico. - Excelente material.
- Formidável - sussurrou Jordan. Estar no interior da casa de J.D. levava-a a sentir que podia apanhar uma doença qualquer.
- Examina estes binóculos. - Noah pegou neles e observou-os. - Têm um amplificador incorporado. Alta tecnologia.
- É verdade - concordou Chaddick. - O J.D. podia ver e ouvir, ao mesmo tempo.
- E gravar - acrescentou Street. - Parte desta aparelhagem é totalmente nova. As pilhas nem sequer foram tiradas das embalagens. Diria que estava a preparar-se para montar um negócio muito rentável. É manifesto que se dedicava à chantagem. E com todo este equipamento, devia ter uma lista com os clientes, não lhes parece? De outra forma, como podia ir tomando nota dos pagamentos?
- É possível - discorreu Chaddick. - Encontraste algumas agendas ou documentos?
Street abanou a cabeça.
- Segundo creio, registou tudo no computador.
Chaddick pareceu ficar atónito.
- Ele tinha um computador? Onde está?
- No cubículo que existe por trás da cozinha. Não reparaste nele?
- Ainda não vi senão estes aparelhos.
Jordan não estava a prestar grande atenção à conversa. Estava, isso sim, a pensar nos depósitos em numerário que J.D. efetuara na sua conta bancária. O professor depositava elevadas quantias em dinheiro na conta, mas J.D. nunca depositara mais de mil dólares de cada vez. Estaria só a começar o negócio? E onde ia arranjar o dinheiro para comprar aquele género de equipamento? Devia ser muito caro.
Encaminhou-se para a janela e olhou para a rua, enquanto tentava imaginar que relação existia entre o professor e J.D.
Depois de Noah haver examinado o conteúdo da última caixa, pôs-se em pé e perguntou a Street se tinha tempo de ir com ele para lhe mostrar o computador.
- Liguei-o mas não consigo entrar em nenhum ficheiro. O acesso está bloqueado. Temos de levá-lo connosco para que um
218
dos nossos peritos se ocupe dele. Pode ser coisa para levar bastante tempo.
Noah sorriu.
- Talvez não. - Voltou-se para o lado da janela e disse: Jordan, não te importas de pôr aquele computador operacional para nós?
Jordan fitou-o por cima do ombro.
- com prazer - declarou, satisfeita por poder mostrar-se útil. - Por acaso não é um portátil, não? - não pôde impedir-se de perguntar.
- Doçura, não chegámos já a acordo quanto ao teu portátil?
Jordan sorriu.
- Foi só por perguntar.
- Julga que pode fazê-lo? - quis saber Street.
- Creio que sim.
Seguiu atrás de Noah até ao cubículo. O computador era de modelo recente e Jordan ficou impressionada. Carrie contara-lhe que na cadeia lhe haviam proposto aulas de informática, mas que ela não se mostrara interessada. Talvez na prisão em que fora encarcerado, J.D. tivesse recebido proposta idêntica. E, se assim fosse, tudo apontava para que a tivesse aceitado.
Noah colocou uma cadeira em frente do teclado para que ela se sentasse.
- Ao trabalho.
Jordan levou apenas uns segundos até chegar aos ficheiros de J.D. Abri-los ia levar-lhe mais tempo.
- Chama-me, quando conseguires acesso - disse-lhe Noah.
Regressou à sala de estar com Chaddick. Street manteve-se atrás de Jordan, vendo os seus dedos voar sobre as teclas. Símbolos e números apareceram no monitor. Street não sabia o que Jordan estava a fazer, mas ela sabia e isso é que importava.
Jordan perdeu a noção do tempo, enquanto se concentrava no monitor e no trabalho que estava a executar. Finalmente, conseguiu ter acesso.
- Já entrei! - exclamou.
Um ficheiro estava a abrir-se quando Noah colocou as mãos nos seus ombros.
- Que conseguiste?
- Uma lista - respondeu ela. Aproximou o rosto do monitor. - Ele mantinha registos.
219
Pondo-se de pé, Jordan afastou-se para que Street pudesse sentar-se. Tinha as costas a doer e viu que estava a escurecer. Durante quanto tempo ficara ali sentada? Inclinou-se para trás e estirou os braços.
Chaddick estava debruçado sobre a secretária.
- Isso diz-nos alguma coisa?
- Diria que sim - replicou Street. - Só apanhei ainda nomes próprios, nenhumas datas mas dias da semana, pecadilhos, pagamentos e alguns sítios. - Começou a rir. - Digo-vos uma coisa: se toda esta gente vive em Serenity, a cidade é um autêntico viveiro de atividade.
- Quem figura na lista? - perguntou Noah.
- Tenho uma Charlene que pagou quatrocentos dólares a uma sexta-feira numa agência de seguros.
- Charlene? Porque pagou ela quatrocentos dólares ao J.D.? - perguntou Jordan. Street sorriu.
- Ele tinha um vídeo dela na cama com alguém.
- com o seu noivo?
Os três agentes fitaram-na ao mesmo tempo, e Jordan apercebeu-se de como a pergunta fora estúpida. Se Charlene tivesse sido filmada a fazer amor com o noivo, não haveria motivo para chantagem.
- Está bem, estou cansada - reconheceu Jordan. - Ela atraiçoou o noivo. - De súbito, foi acometida por um acesso de cólera. - E dei-lhe eu um serviço de porcelana! Da Vera Wang!
Chaddick voltou a olhar para o monitor.
- Já andava a pagar há algum tempo - acrescentou Street.
- Ao que parece, não se importava de o fazer.
- com quem andava ela a dormir? - inquiriu Jordan. Não, não me diga. Não quero saber. Sim, quero. com quem era?
- Com um sujeito chamado Kyle...
Jordan levou a mão ao pescoço.
- Não me diga que era com o Kyle Heffermint!
Noah achou hilariante a reação de Jordan. Aproximou-se dela e rodeou-lhe a cintura com o braço.
- É o que diz que conhece toda a gente, não é? E andava atrás de ti.
220
- Esse mesmo - confirmou ela.
- Há também um Steve N. - continuou Street.
- Pode ser Steve Nelson - avançou Noah. - Conheci-o no restaurante. Dirige uma agência de seguros.
- É o patrão da Charlene - acrescentou Jordan.
Street sorriu, novamente.
- Não é só isso.
- Oh, Deus do céu, ela não andava também a dormir com o Steve. Ou andava? Não, não posso acreditar.
- Quer ver o vídeo?
- Oh, santo Deus! Andava. E o Steve é casado.
- Exatamente - comentou secamente Noah. - Por isso é que pagava, para manter o relacionamento secreto.
- vou imprimir isto - disse Street, fazendo mover o rato sobre o tapete. - Em duplicado. Tu ficas com uma das cópias, Noah.
- Uma coisa posso dizer-lhes. Antes de sair de Serenity, quero encontrar-me com essa tal Charlene - declarou Chaddick.
Noah ouviu um carro parar no exterior. Dirigiu-se à sala de estar e espreitou pela janela.
- A equipa dos peritos acaba de chegar.
- Ótimo - comentou Street. - Podem levar tudo isto com eles.
Dirigiu-se à impressora, pegou nas cópias e entregou a Noah um dos conjuntos.
- Vamos embora amanhã de manhã - disse-lhe Noah. - Se precisares de alguma coisa, entra em contacto comigo. E, por favor, mantém-me ao corrente de tudo o que se passar.
Jordan estava ansiosa por sair da casa de J.D. Dickey. Quando já rodavam pela estrada, desabafou:
- Julgamos que conhecemos certa pessoa e depois descobrimos que ela é uma tarada sexual.
- Mas tu não conhecias bem a Charlene, pois não? Acabaste de a conhecer - contrapôs Noah.
- É verdade, mas mesmo assim é triste.
- A menos que consigas lembrar-te de outro restaurante, tenho a impressão de que temos de voltar ao do Jaffee. Estás de acordo?
- Isso depende - retorquiu Jordan. - Ele também figura na lista?
221
Noah soltou uma gargalhada.
- Queres consultá-la?
- Fá-lo tu.
Noah encostou ao passeio, estacionou e percorreu rapidamente a lista. Viu o nome de Amélia Ann e perguntou a si próprio como reagiria Jordan se viesse a sabê-lo.
- Não há nenhum Jaffee - declarou. Jordan suspirou.
- Ainda bem.
Noah lembrou-se do dia cansativo que ela tivera.
- És uma autêntica mulher de armas, sabias?
Fitou-a por um longo instante e depois estendeu a mão, agarrou-a pela nuca e puxou-a para si.
- Que... - começou ela a dizer.
A boca de Noah pressionou firmemente a de Jordan. Ela não estava à espera daquele beijo, mas abriu instintivamente os lábios para dar passagem à língua dele. Noah tirou vantagem disso e o beijo tornou-se mais profundo. Não gostava de ficar por meias-medidas. O beijo não durou muito, mas foi intenso e apaixonado. Quando ele voltou a endireitar-se, o coração de Jordan batia desalmadamente. Deixando-se cair para trás no assento, tentou recobrar o fôlego.
Não parecia que Noah estivesse a ter o mesmo problema. Meteu as mudanças e seguiu em frente.
- Está a apetecer-me peixe - declarou. - E uma cerveja gelada.
Não fez qualquer referência ao beijo, não lhe agradeceu nem sequer comentou: "Foi bom, não foi?" Noah olhou para ela.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou, sabendo perfeitamente que sim. Jordan fitou-o. - Estás com um ar irritado.
"Que achas?", pensou ela, limitando-se, contudo, a dizer em voz alta:
- Não, não se passa nada.
- Ótimo.
- Só estava a perguntar a mim própria como podes ser tão descontraído... tão blasé.
- Descontraído e blasé são duas coisas diferentes.
222
- Então, és as duas. Acabas de beijar-me.
Pronto, tinha-o dito, e agora o assunto estava em discussão.
- Hum, claro que sim.
- Só isso? "Claro que sim"?
Dissera aquilo em tom indignado e Noah sorriu. Jordan ficava linda, quando se exaltava.
- Que querias tu que eu dissesse?
Só podia estar a divertir-se à sua custa. Sabia exatamente o que ela queria que ele dissesse. Que o beijo tivera um significado. Que era algo importante para ele. Mas, ao que parecia, não era. Noah havia beijado inúmeras mulheres. Que significara para ele aquele beijo? Mais um entre milhares?
Jordan pensou em recordar-lhe a noite intensa que haviam passado juntos. Também poderia salientar que, naquela manhã, ele atuara como se não tivesse acontecido nada de extraordinário. E também sabia que se, em resposta, Noah lhe perguntasse que pretendia Jordan que ele lhe tivesse dito, era bem capaz de imitar J.D. e de lhe dar um murro que o pusesse inconsciente.
Apostava que isso iria levá-lo a recordar-se.
No entanto, embora, de momento, essa cena fosse para ela uma fantasia tentadora, o certo é que a violência nunca era uma solução aceitável.
Pararam num sinal vermelho e Noah olhou para ela.
- Em que estás a pensar agora, doçura? Pareces perplexa.
- Violência - ripostou ela, de imediato. - Estava a pensar em violência.
Noah pensou que nunca sabia o que ia sair da boca de Jordan.
- E então?
- A violência nunca é uma solução. Foi isso que o meu pai e a minha mãe nos ensinaram, à Sidney e a mim.
- E quanto aos teus irmãos?
- Eles andaram sempre em despique uns com os outros. Creio que foi por isso que tiveram tanto êxito no desporto. Podiam enfrentar os atletas da equipa adversária.
- E então, como te livravas tu das tuas tendências agressivas? - quis saber Noah, genuinamente interessado.
- Partia coisas.
- Ah, sim?
223
- Não era por vandalismo - explicou ela. - Partia coisas para poder voltar a consertá-las. Era... uma experiência instrutiva.
- Deves ter posto a cabeça em água aos teus pais.
- É provável - admitiu ela. - No entanto, foram muito pacientes comigo e, ao fim de algum tempo, habituaram-se.
- E que coisas partias tu?
- Deves ter presente que eu era uma miúda, por isso é claro que comecei com coisas pequenas. Uma torradeira, uma ventoinha velha, um cortador de relva...
- Um cortador de relva?
Noah sorriu.
- Para o meu pai, ainda é uma recordação desagradável. Certa tarde, chegou mais cedo do trabalho e descobriu todas as peças do cortador de relva, incluindo as porcas e os parafusos, espalhadas pelo caminho de acesso à nossa casa. Não ficou nada contente.
Noah estava a ter dificuldade em visualizar Jordan com óleo na cara e nas mãos, a reparar o cortador de relva. Hoje em dia era muito feminina. Não conseguia imaginar tal cena.
- Conseguiste consertar o cortador?
- com a ajuda dos meus irmãos, coisa de que, aliás, não precisava. Na semana seguinte, o meu pai trouxe para casa um velho computador avariado. Disse-me que eu podia ficar com ele, mas tive de prometer-lhe que nunca mais tocaria em cortadores de relva e outros aparelhos nem em automóveis.
- Em automóveis?
- Nunca mexi em nenhum. Não me interessavam. E desde que tive o meu computador...
- Descobriste a tua verdadeira vocação.
- Creio que sim. E tu? Como eras, em miúdo? Já andavas com pistolas?
- Era bastante irascível - respondeu Noah. - Creio que tive a minha quota-parte de brigas, mas, afinal, vivíamos no Texas - lembrou-lhe - e isso implicava jogar futebol americano no liceu. Tive êxito e acabei por conseguir uma bolsa de estudo para frequentar a universidade. Durante esse período, fui sempre um estudante exemplar. - Nem sequer Noah podia dizer uma tão grande mentira com ar sério. - Nessa altura, não gostava de normas nem de regulamentos.
- E continuas a não gostar.
224
- Pois, acho que não.
- És um rebelde - concluiu Jordan.
- É o que o doutor Morganstern me chama.
- Posso perguntar-te uma coisa?
Noah desviou o carro para o parque de estacionamento por trás do Home Away from Home Motel.
- Claro. Que queres saber?
- Alguma vez tiveste alguma relação que durasse mais do que uma ou duas semanas? Estiveste ligado realmente a uma mulher, mesmo que fosse por pouco tempo?
Noah não levou um segundo sequer a responder.
- Não.
Se a forma abrupta como respondera e o tom enfático com que o fizera representavam uma tentativa para encerrar o assunto, estava muito enganado.
- Deus do céu! És a sensibilidade personificada.
Noah estacionou o carro e abriu a porta.
- Fica a saber, doçura, que no meu corpo não há um único osso sensível.
Estava enganado, mas Jordan não ia contradizê-lo.
- E tu? - perguntou Noah. - Já alguma vez tiveste uma relação duradoura?
Antes que Jordan pudesse responder, Noah contornou o automóvel e abriu a porta do seu lado. Pegando-lhe na mão, encaminhou-se para a rua. O parque era mal iluminado por um candeeiro no extremo oposto e o único som que se ouvia era o da noite que os envolvia.
Noah parou por um momento e fitou-a nos olhos.
- Eu sei bem como tu és, Jordan Buchanan.
- E fazes o favor de dizer-me como é que eu sou?
- Não.
E mais não disse. Assunto encerrado.
225
CAPÍTULO TRINTA

- Aviso-te de que, se o restaurante do Jaffee estiver cheio de gente, entro pela porta das traseiras e como na cozinha.
Noah fez a pergunta óbvia:
- Porquê?
Jordan fitou-o como se a resposta fosse evidente.
- Não quero ser submetida a outro interrogatório. E tão-pouco quero toda a gente a olhar para mim, enquanto estou a comer. Faz mal à digestão.
- As pessoas são curiosas, nada mais do que isso - ponderou Noah. - Tens de admiti-lo, lindinha. És notícia.
- Oh! sim, sou notícia - disse Jordan. - Desde que aqui cheguei, três homens morreram. Se tiveres em conta o número de vezes que aqui vim, o número de habitantes e o número de mortes inesperadas e depois considerares a hipótese de uma anomalia estatística...
- Que, em teu parecer, deves ser tu.
- Exatamente. Sou eu que constituo o desvio dos meus cálculos.
- Claro que sim - confirmou ele, em tom jocoso.
- Por tudo isso, só pode chegar-se a uma conclusão.
- E que é...?
- Eu desencadeei uma epidemia.
Noah pôs-lhe o braço em redor dos ombros e puxou-a para si.
- Assim é que é, lindinha - disse, arrastando as palavras.
- Não tem piada nenhuma.
- Acho que sim, doçura.
Jordan suspirou. Não podia acreditar como se irritava tão rapidamente, nos últimos dias.
226
- Está certo. É possível que esteja a ser pouco razoável, o que, diga-se de passagem, é totalmente alheio à minha maneira de ser. Sou sempre razoável. Mas aqui... dá a impressão de que não consigo pensar direito.
"Sobretudo quando estou perto de ti", acrescentou mentalmente.
Dobraram a esquina e atravessaram a rua. O restaurante de Jaffee encontrava-se mesmo à frente deles e Jordan pôde ver, lá dentro, alguns clientes, mas a maioria das mesas estava vazia.
- Entramos, comemos e saímos. De acordo?
- Parece ser uma maravilhosa experiência para jantar. Podemos sentar-nos a uma mesa ou comemos em pé? - inquiriu Noah, enquanto abria a porta.
Angela mostrou-se muito satisfeita por os ver.
- Olá, Jordan - exclamou.
- Olá, Angela. Lembras-te do Noah?
- Claro que me lembro - replicou Angela, sorrindo. Têm a mesa à vossa espera. Com todos os acontecimentos deste dia, devem estar a morrer de fome. - Anotou a encomenda de bebidas e acrescentou: - Chegaram mesmo a tempo. Estava prestes a retirar as toalhas da mesa.
- Poucos clientes? - perguntou Jordan.
- É sempre assim, nas noites de póquer - explicou. - Fechamos uma hora mais cedo para que o Jaffee possa ficar com a cozinha limpa. Ele detesta chegar atrasado ao póquer.
Noah dirigiu-se à casa de banho para lavar as mãos. Quando regressou, as bebidas já se encontravam em cima da mesa e Angela estava à sua espera.
- Detesto ter de pedir que se apressem - declarou ela - e prometo que podem estar aqui o tempo que quiserem, depois de encomendarem os vossos pratos, mas o Jaffee gostaria de começar já a prepará-los.
Fez algumas sugestões e, mal eles escolheram a comida, correu para a cozinha.
Jordan sentiu-se mais descontraída. Os ocupantes da última mesa tinham saído e ela e Noah eram agora os únicos clientes do restaurante. Nem Angela nem Jaffee vieram interrompê-los. Noah ergueu a sua garrafa de cerveja.
227
- À nossa última noite em Serenity!
Jordan hesitou, antes de erguer o seu copo de água gelada.
- Espero bem que seja a nossa última noite em Serenity.
Noah bebeu um longo trago.
- Se houver mais algum assassínio, vão ter de mudar o nome da cidade. Serenity deixará de ser um nome apropriado.
Jordan sorriu.
- Creio que me excedi. Estava certa de que iríamos ficar rodeados novamente por uma multidão, a fazer toda a espécie de perguntas acerca do incêndio e do J.D. Afinal temos o restaurante por nossa conta e vamos jantar em paz. Tivemos sorte, não achas?
Noah retribuiu o sorriso, mas não teceu comentários. Angela andava atarefada a dobrar as toalhas das mesas, mas ele notou que a bandeja que ela acabara de colocar em cima de uma das mesas estava cheia de baralhos de cartas. Era patente que o restaurante de Jaffee era o local onde ia haver noite de póquer. Noah perguntou a si próprio quanto tempo levaria Jordan a aperceber-se disso.
Jordan não prestava qualquer atenção ao que Angela andava a fazer. A sua mente estava concentrada na lista que o agente Street havia compilado.
- Que vai acontecer àquelas gravações feitas pelo J.D.? - inquiriu, em voz baixa. - Irão ser tornadas públicas?
- Provavelmente não.
- Sabes o que não compreendo? Toda a gente parece conhecer a vida dos demais. Por isso, como foi a Charlene capaz de manter escondido o seu pequeno passatempo?
Noah soltou uma gargalhada.
- Passatempo? Nunca lhe tinha ouvido chamar tal coisa.
- Como puderam todas as pessoas da lista manter secretas as suas atividades extracurriculares?
Noah encolheu os ombros.
- Se quiseres muito alguma coisa, acabarás por imaginar uma maneira de a conseguires.
Jordan inclinou a cabeça e fitou-o, com curiosidade.
- Já quiseste tanto alguma coisa que estivesses disposto a arriscar tudo para a obter?
Noah fitou-a por longos momentos e redarguiu, com voz calma.
228
- Sim, claro que sim.
A conversa terminou quando Angela voltou, a fim de levar para a cozinha os pratos vazios. Jaffee apareceu para os saudar e também para perguntar a Jordan se não se importava de dar uma breve mirada a Dora.
Noah levantou-se ao mesmo tempo que ela.
- Quem é a Dora? - inquiriu.
- Um computador - explicou Jordan. - Volto já. Acaba a tua bebida.
- Eu faço-lhe companhia - prometeu Angela. - Quer outra cerveja?
- Não, obrigado. Quando começa o póquer?
- Daqui a um quarto de hora, mais ou menos. Os homens devem começar a chegar dentro em breve. Olhe. O Dave Trumbo está a sair do seu Suburban e traz o Eli Whitaker com ele. São sempre os primeiros a chegar. São muito amigos - acrescentou.
- O Eli é o homem mais rico de Serenity. Dizem alguns que pode bem ser o homem mais rico do Texas. - Pôs uma das mãos na nuca e prosseguiu: - Aposto que está a perguntar a si próprio de onde lhe veio tanto dinheiro. Ninguém sabe ao certo, mas todos especulam. Julgo que talvez tenha herdado uma fortuna. No entanto, nenhum de nós se atreve a fazer-lhe perguntas. É raro vir à cidade. Gosta de ficar em casa. É bastante tímido e o Dave é precisamente o contrário. Diz que nunca encontrou ninguém de quem não gostasse.
- Não há mulheres que joguem póquer?
- Claro que sim - replicou Angela -, mas não gostamos de jogar com os homens. Eles são muito competitivos e, ao contrário de nós, não gostam de fazer visitas. Temos a nossa noite de póquer. Ali vem o Steve Nelson. Não me lembro se o conheceu ou não, na noite passada. Dirige a única agência de seguros das redondezas.
Jordan estava sentada em frente do computador de Jaffee, sem se ter apercebido de que os jogadores de póquer haviam começado a chegar. Sozinho na sua mesa, Noah interrogou-se se ela conseguia ouvir a algazarra que se instalara. Não levou muito tempo até o restaurante ficar cheio.
Jordan resolveu rapidamente o mais recente problema desencadeado por Jaffee. Ele tinha confundido dois comandos distintos.
229
Enquanto ouvia os homens a conversar, concentrou-se na árdua tarefa de fazer Jaffee compreender o erro que havia cometido para que não o repetisse.
- Lembre-se disto - recomendou-lhe. - A Dora não morde.
Jaffee limpou as mãos numa toalha e assentiu com a cabeça.
- Mas se causar outro problema...
Jordan tranquilizou-o.
- Pode telefonar-me ou enviar-me um e-mail.
Fez-lhe algumas sugestões para eliminar erros, mas, ao ver a expressão vidrada dos seus olhos, apercebeu-se de que ele não havia compreendido uma só palavra do que lhe dissera. Ficou com a sensação de que ia receber diariamente mensagens suas, durante algum tempo. Esse pensamento fê-la sorrir, enquanto regressava à sua mesa. A noite, afinal de contas, ia ser relaxante. Era o que parecia. O seu maior dilema, de momento, era a sobremesa. Ia ou não comer sobremesa? O ruído interferiu com os seus pensamentos, estacou na soleira da porta, ao deparar com a multidão.
Noah viu-a entrar na sala e considerou impagável a expressão do seu rosto.
Correu um murmúrio pelo grupo e todos os olhos se fixaram nela, quando avançou lentamente para a mesa.
- Que se passa? - murmurou.
- É a noite de póquer.
- Aqui? A noite de póquer é no restaurante? Pensei que... isto é, presumi... Achas que podemos partir já?
- Será difícil. ;
- Podíamos escapulir-nos pelas traseiras.
Noah abanou a cabeça. ;
- Escapulir-nos não me parece solução adequada.
Jordan compreendeu o que ele queria dizer, quando se voltou. Todos os homens estavam de pé e os que ainda não lhe tinham sido apresentados esperavam que tal acontecesse.
Jaffee assumiu esse encargo. Havia tantos que Jordan não conseguiu reter metade dos nomes. Cada um disse-lhe "Olá". Depois de feitas as apresentações, bombardearam-na com perguntas.
Não quiseram saber apenas notícias do incêndio e da terrível morte de J.D. Também lhe solicitaram o relato de como havia descoberto o professor e depois Lloyd no porta-bagagens do
230
carro. Jordan não ficaria surpreendida se algum lhe pedisse uma reconstituição. Respondeu a todas as perguntas - a algumas, por duas vezes - para satisfazer a curiosidade mórbida dos presentes, foi até capaz de rir-se e, entre duas perguntas, Dave, vendedor inato, tentou vender-lhe um automóvel novo.
Noah também foi bombardeado com a sua quota-parte de perguntas.
- O Joe pensa que foi o J.D. quem matou os outros dois? quis saber Jaffee.
- Ele é muito esperto - interveio Dave. - Aposto que já pensou nisso.
- Ouvi dizer que o J.D. tinha desaparecido - adiantou um homem chamado Wayne.
- O Joe tinha provas suficientes para o prender? - perguntou Dave.
- Isso agora já não interessa. O J.D. está morto - recordou Steve Nelson. - Diga-me, agente Clayborne, você e o Joe já fizeram uma busca à casa do J.D.?
Noah mal pôde evitar um sorriso. Sabia bem o que preocupava Steve. Queria saber se J.D. conservava gravações.
- Sim, já o fizemos. Tudo o que lá existia foi levado por dois outros agentes do FBI. No entanto, não havia grande coisa.
Steve não tinha cara adequada ao jogo de póquer. Noah conseguiu ver o alívio expresso nos seus olhos e compreendeu a razão de ser daquele alívio. Vira o nome de Steve na lista não só por ter dormido com Charlene, mas também por causa de umas quantas práticas de seguros bastante questionáveis.
- Julga que alguma vez viremos a saber por que razão o J.D. matou aqueles homens? - quis saber Dave.
- O Joe vai informar-nos, assim que o apurar - declarou Steve, com convicção.
- Tenho pena do Randy Dickey. Tinha-se tornado um xerife decente. É um duro golpe para ele. Creio que o J.D. era toda a sua família - acentuou Dave.
Noah notou que Eli Whitaker, de pé entre os demais, estava a seguir a conversa mas pouco dizia.
- A que atividade se dedica, Eli? - perguntou-lhe.
- Crio cavalos e tenho algumas cabeças de gado - respondeu Eli.
231
- De que raça?
- O gado é sobretudo da raça longhorn - foi a resposta. - Parece ser o mais resistente para uma região como esta.
Noah continuou a formular perguntas acerca dos negócios de Eli. Dentro em pouco, distanciaram-se ambos dos outros e mantiveram uma conversa acerca da vida num rancho.
Dave esboçou um sorriso sarcástico.
- Nunca vi o Eli falar tanto com um recém-chegado.
Os outros homens assentiram, concordando com o comentário. Steve voltou-se de novo para Jordan.
- Sei que vocês os dois não estão aqui há muito tempo, mas não os considero como forasteiros. Trouxeram uma boa dose de animação à nossa cidade. Quando é que pensam deixar Serenity?
- Amanhã - respondeu Jordan.
- Tive muito prazer em conhecê-los - afirmou Dave.
- Acho que já foram ambos bombardeados com perguntas mais do que suficientes para uma noite - interveio Jaffee, dirigindo-se a todos os presentes. - O melhor será cada um ir buscar a sua bebida ao bar para depois nos sentarmos.
Enquanto os homens, na sua maioria, se espalharam pela sala, Dave e Eli, juntamente com Jaffee, dirigiram-se a Jordan para formularem as suas despedidas.
- Vou sentir saudades suas - afirmou Jaffee. - E lamento que tenha perdido os seus documentos da pesquisa. Ouvi dizer que os deixou na casa do professor. Teve tanto trabalho a tirar fotocópias para depois as ver destruídas pelas chamas...
- É lamentável. Não nos disse que veio expressamente de Boston para obter os resultados dessa pesquisa? - perguntou Dave.
- Quer dizer que ardeu tudo? - inquiriu Eli. Jordan finalmente conseguiu tomar a palavra.
- Ainda tenho as fotocópias. Não estavam na casa que ardeu e já havia despachado grande parte delas para minha casa, quando os originais foram destruídos. Se o Joe e os dois agentes encarregados da investigação quiserem consultá-las, terei de lhas enviar.
- Ora aí está uma boa notícia - declarou Jaffee. - A sua viagem não foi em vão. O jantar é por conta da casa e não pense sequer em protestar. A Dora e eu agradecemos-lhe do fundo do coração toda a sua ajuda. Espero sinceramente que volte, um dia, para nos visitar.
232
Abraçou-a, despedindo-se, e apertou a mão de Noah.
- Se qualquer um de vocês precisar de um carro novo, pensem em mim. Eu próprio o levarei até Boston - adiantou Dave.
- E é bem capaz de o fazer - exclamou Eli, enquanto se encaminhava para a sua mesa.
Noah deixou uma gratificação avultada para Angela e escoltou Jordan até à porta, por entre um coro de despedidas.
Nenhum dos dois proferiu palavra até chegarem ao outro quarteirão. Foi Jordan quem quebrou o silêncio.
- Hum. Noite de póquer. Não me parece.
Noah riu-se.
- Nunca tinha visto essa expressão no teu rosto... A que exibiste quando viste tanta gente junta.
- A noite não foi assim tão má. Tivemos um excelente jantar, sem interrupções, e encontrámos alguns cavalheiros encantadores - comentou Jordan. - Encantadores... e interessantes - acrescentou, assentindo com a cabeça.
- Sabes o que é mais interessante?
- O quê?
- Metade daqueles cavalheiros encantadores constar da lista.
233
CAPÍTULO TRINTA E UM

Jordan estava no chuveiro, a livrar-se do calor do dia e a ensaboar o cabelo com um champô que cheirava a alperce, quando descobriu abruptamente que não queria regressar a casa. Logo a seguir, pôs de lado tão ridícula ideia. Claro que queria voltar a casa.
Desejava retomar a sua vida organizada, não era assim? Quando vendera a sociedade, obtivera um lucro fabuloso, mas agora tinha de decidir que fazer com ele. Havia acalentado a ideia de investir parte desse dinheiro na conceção de um novo processador informático que fosse capaz de lidar com os mais complicados softwares multimédia em simultâneo. Chegara mesmo a visualizar o protótipo e o seu design. Havia apenas um problema com esse grande projeto capaz de fazer estremecer, de novo, os grandes gigantes de Silicon Valley. Não queria realizá-lo. Que outrem aparecesse com um outro projeto que fizesse o mundo girar cada vez mais depressa.
Não querer voltar ao universo da informática não foi a única revelação surpreendente que lhe assaltou o espírito. Também já não sentia pressa alguma de comprar outro computador portátil e outro telemóvel. No passado, haviam sido como apêndices dela própria, mas já não se sentia dependente do portátil e começava a achar delicioso não ter de atender chamadas no telemóvel de cinco em cinco minutos. Decididamente, estar incontactável tinha os seus encantos.
- Começo a meter medo a mim própria - sussurrou.
Que estava a acontecer-lhe? Era como se estivesse a metamorfosear-se em alguém completamente diferente. Talvez ter ficado no carro, sob um calor a rondar os quarenta graus, enquanto esperava
234
que Noah examinasse os escombros do incêndio, houvesse feito qualquer coisa ao seu cérebro. O calor devia tê-lo derretido. Ou os duches que tomara desde que chegara a Serenity lhe tivessem lavado as células cerebrais, levando-as consigo para o esgoto.
Estava desidratada pela exposição ao sol, era o que era.
Vestiu a T-shirt e os calções e lavou os dentes. com a escova de dentes a sair-lhe da boca, limpou o espelho e mirou-se nele. Tinha a pele cheia de manchas e de sardas. Que beleza a sua, sobretudo vestida com aquele pijama unissexo.
Pousou a escova de dentes, pegou num frasco da loção especial de Kate e abriu a porta. Nunca se preocupara com a sua aparência, mas agora tudo estava de pernas para o ar.
Jordan sabia qual era realmente o seu problema. Até àquele momento, recusara-se a admiti-lo. Noah. Òh, sim, era ele o seu problema. Fora ele quem modificara tudo e Jordan não sabia o que fazer para o impedir.
Preocupar-se não ia melhorar a situação. Uma mulher esperta teria corrido, tão depressa quanto possível, na direção oposta, mas Jordan concluiu que não era suficientemente esperta, porque naquele momento só conseguia pensar em voltar para a cama com ele.
Precisava de uma distração para deixar de pensar só em sexo. Tomou a decisão de se enroscar na cama com as folhas de pesquisa do professor para ler outra história horripilante cheia de carnificinas, decapitações, mutilações e superstições. Isso deveria produzir o efeito desejado, afastando Noah do seu espírito.
Onde estavam os seus óculos? Julgava tê-los deixado junto da caixa das lentes de contacto na casa de banho, mas não se encontravam ali. Atravessou o quarto em direção à secretária e bateu com um dedo do pé na perna de uma cadeira. A gemer, foi ao pé-coxinho e vasculhou o interior da mala de mão.
- Noah - disse. - Viste...?
- Estão em cima da mesa - disse ele através da porta entre os dois quartos, que se achava aberta.
Como soubera Noah o que ela pretendia? Saberia ler os pensamentos? Os óculos achavam-se exatamente onde ele dissera.
- Como sabias...?
- Ias com os olhos semicerrados - respondeu ele, antes que ela completasse a pergunta - e tropeçaste na cadeira...
235
- Não estava a ver por onde ia.
Noah riu-se.
- Não podias ver por onde ias.
Jordan apercebeu-se de gotas de água nas lentes e voltou à casa de banho. Julgou ouvir alguém bater à porta e pediu:
- Noah, podes ir abrir?
Poucos segundos depois, ouviu a voz de uma mulher, vinda do quarto de Noah. As batidas tinham sido na porta dele e não na sua. Cheia de curiosidade, limpou as lentes às pressas, pôs os óculos e voltou ao quarto. Oh! formidável. Noah estava a ser alvo de serviço especial e personalizado. Amélia Ann estava a abrir-lhe a cama. Noah achava-se recostado na ombreira, a observar, mas, quando ouviu Jordan, mirou-a por cima do ombro e piscou-lhe o olho.
Estava a receber um tratamento preferencial. Só para ele; para Jordan, não. Não conseguiu desviar os olhos de Amélia Ann, no outro quarto. A mulher estava vestida como uma empregada de bar de alterne: calções justos e muito curtos, sapatos de salto de agulha, que deixavam os dedos à mostra, e uma blusa com grande decote que, ao que parece, se esquecera de abotoar. Estava decididamente a oferecer-se a Noah. A maneira como se debruçava sobre a cama, enquanto alisava os lençóis, chegava a ser cómica, mas Jordan não sentia vontade de rir. O comportamento de Amélia Ann era escandaloso.
Resmungando entre dentes, Jordan girou sobre si própria e puxou a colcha da cama. Colocou-a a um canto e depois deixou cair uma resma de folhas em cima da cama, agarrou numa garrafa de água e sentou-se, disposta a ler.
O telefone do quarto retiniu. Era a sua irmã, Sidney.
- Nunca vais adivinhar onde estou.
- Não estou disposta a adivinhar. Diz-me tu - replicou Jordan.
- Não tens no telefone a indicação do número de quem te fala?
- Ligaste para o telefone do motel, Sidney. Devias saber que não tem indicador do número de quem me liga.
- Estou em Los Angeles, rodeada de caixas, uma vez que não posso registar-me no dormitório da universidade senão daqui a semana e meia. Estou enfiada num hotel. Na verdade, é um hotel bem agradável - admitiu. - Foi o paquete quem trouxe as minhas bagagens para o quarto.
236
- Julgava que a mãe ia contigo para aí, na próxima semana. Porque foste mais cedo?
- Tudo mudou de repente - disse Sidney. - Passei a noite com a minha amiga Christy e quando cheguei a casa, na manhã seguinte, a mãe já tinha tudo preparado para eu apanhar o avião. Foi como se não pudesse esperar nem mais um minuto para se ver livre de mim. Creio que estava a pô-la maluca com as minhas preocupações acerca do pai.
- Então agora estás entregue a ti própria.
- O que é formidável. Estou a dar muito trabalho ao serviço de quartos, mas que mais posso fazer, se não consigo lugar no dormitório da universidade? Espero que o pai não tenha um ataque quando receber a conta do cartão de crédito.
- E como está o pai?
- Está bem, creio. Sabes como ele é. As ameaças de morte não parecem afetá-lo. A mãe, porém, já é outra história. Está de rastos, mas tenta não o mostrar. Toda a gente anda stressada por causa deste julgamento.
- Já há alguma indicação de quando terminará? - perguntou Jordan.
- Não - respondeu Sidney. - Os guarda-costas do pai assentaram arraiais em Nathans Bay. Para onde quer que olhemos, lá estão eles. É como se nos recordassem constantemente de que há quem deseje a morte do pai.
- As ameaças vão cessar, assim que seja proferida a sentença.
- Como podes estar tão segura disso? É o que muita gente leva o tempo todo a dizer, mas, francamente, Jordan, este é um caso de crime organizado. É... um caso muito sério.
Jordan apercebeu-se da ansiedade que havia na voz de Sidney.
- Eu sei.
- E se aquele homem horrível for condenado, a sua família e os seus comparsas não irão continuar a perseguir o pai? E, se ele não for condenado, não irá o campo oposto...
Jordan interrompeu-a.
- Vais ficar maluca se continuares a pensar dessa maneira. Deves ter esperança de que tudo corra o melhor possível.
- É mais fácil de dizer do que de fazer - replicou a irmã. - Fiquei satisfeita por vir para Los Angeles mais cedo. Estava a tornar as coisas piores para a mãe. Agora, tem de preocupar-se com a Laurant... e o Nick anda bastante assustado.
237
- Espera aí. De que estás a falar? Que se passa com o Nick e a Laurant?
- Com o Nick não se passa nada. A preocupação é por causa dela. Julgava que sabias...
- Que sabia o quê? - perguntou Jordan, com impaciência.
- A Laurant começou com dores de parto, dores bastante fortes, e o médico obrigou-a a ser internada num hospital. Não pode ter o bebé já. Só está com seis meses.
- Quando é que isso aconteceu?
- O Nick levou-a ontem para o hospital. Eu já vinha a caminho de Los Angeles.
Jordan perguntou a si própria se havia falado a Nick desde então. Não conseguia lembrar-se.
- Foi por isso que o Nick regressou mais cedo a casa. O Noah é que ficou junto de ti, não é verdade? Teria sido horrível se o Nick se encontrasse tão longe, quando a Laurant começou a ter problemas.
- Pobre Laurant. Que diz o médico?
- Não sei - respondeu Sidney. - A mãe disse-me que ela está a soro. Fizeram diminuir a frequência das contrações, mas não conseguiram fazê-las cessar por completo. Ouve, quando regressas? A mãe gostaria decerto de poder contar com o teu apoio, nas circunstâncias atuais. Manténs sempre a calma e a descontração, em todas as ocasiões. Nada consegue enervar-te.
"Isso era dantes", pensou Jordan. Graças a Noah, agora qualquer coisa a enervava.
Pelo canto do olho, viu Noah encaminhar-se para ela e depressa perdeu a sua linha de raciocínio. Ele trazia vestidas calças de ganga e uma T-shirt lavada. Colocou a pistola e o coldre na mesinha de cabeceira e estendeu-se na cama, a seu lado.
- Jordan? Não ouviste o que eu disse? Perguntei-te quando vais voltar.
- O quê? Ah!... Eu... - Pois sim. Nunca se enervava. - Amanhã - balbuciou. Noah havia estendido o braço e estava a puxá-la para si. - De manhã cedo. Vamos partir de manhã cedo. É um longo caminho até ao aeroporto de Austin. - Afastou a mão de Noah e virou-se. De testa franzida, apontou-lhe um dedo à cara e sussurrou: - Para!
- Paro o quê? - perguntou Sidney. .
238
- Nada, não é nada. Tenho de desligar.
- Espera. Achas que devo tomar um avião e regressar a casa? - perguntou Sidney. - Talvez pudesse ajudar a...
- Não, não! Fica onde estás. Não há nada que pudesses fazer lá em casa. Telefono-te assim que chegar.
- Não desligues. Ainda não te perguntei como estás.
Noah estava a acariciar-lhe o pescoço, causando-lhe frémitos.
- Estou bem, obrigada - conseguiu assegurar à irmã.
- Já descobriram o tarado que andou a meter cadáveres no teu carro?
- Já, sim. Amanhã telefono-te. Adeus. Não te preocupes.
Desligou, antes que Sidney pudesse alongar a conversa. A seguir, voltou-se para enfrentar Noah.
- Estavas a perturbar-me...
Foi tudo quanto foi capaz de dizer, antes de voltar a perder o fio do raciocínio. Noah estava a tirar a T-shirt. Tinha um corpo admirável. Os antebraços eram tão musculosos e os...
Mentalmente, sacudiu o seu entorpecimento.
- Que estás tu a fazer?
- A pôr-me à vontade.
Jordan segurou-lhe as mãos, quando ele tentou tirar as calças de ganga.
- Pelo amor de... Amenos que penses meter-te debaixo dos lençóis, sugiro que não tires as calças.
- Ficaste envergonhada? - Noah pareceu desconcertado perante tal possibilidade. - Doçura, tu viste e tocaste em todo...
- Lembro-me perfeitamente do que fiz - interrompeu-o Jordan, soltando uma gargalhada. - Não tens inibições nenhumas, pois não? Aposto que poderias caminhar todo nu ao longo da Newbury Street, em Boston, sem qualquer problema.
Noah sorriu.
- Depende.
- De quê?
- De ser verão ou inverno.
Jordan revirou os olhos.
- É um grande atrevimento da tua parte julgares que podes entrar pelo meu quarto dentro e dormir comigo.
Noah ajustou as almofadas por trás da sua cabeça.
239
- Não estava a pensar em dormir, pelo menos para já. Então? Queres que me vá embora?
Era uma pergunta de fácil resposta.
- Não.
Inclinou-se para ele, pousou a mão no seu peito quente e beijou-o. Em seguida, beliscou-lhe o ombro e sentou-se na cama.
- Sei que falaste com o Nick - acusou-o. - Porque não me disseste o que estava a passar-se?
Noah pareceu ficar surpreendido.
- A Sidney contou-te? Julgava que não sabia. A tua mãe obrigou-a a sair mais cedo de Boston para que ela não descobrisse.
- O Nick devia ter-me telefonado.
- O Nick não queria que ficasses preocupada e sabia que virias a ficar a par da situação, quando regressasses a Boston.
Jordan sentou-se sobre os calcanhares.
- Ficar a par do quê?
Noah franziu a testa.
- Espera aí! Que foi exatamente que a Sidney te contou?
- Não. Quero ouvir primeiro a tua versão.
- Houve alguém que entrou na casa dos teus pais e deixou uma mensagem para o teu pai na biblioteca. Estava presa à parede por um punhal.
- Quando é que ele a encontrou?
Noah detestou ter de lho dizer.
- Não foi ele. Foi a tua mãe. - Soltou um suspiro e acrescentou: - Fosse quem fosse que deixou a mensagem, fê-lo durante a noite. A tua mãe descobriu-a na manhã seguinte, antes de o teu pai descer.
Jordan imaginou um qualquer maníaco, armado com um punhal, a esgueirar-se pela casa e a subir as escadas. Arrepiou-se.
- Onde estavam os guarda-costas? A dormir?
- Boa pergunta - replicou Noah. - Eram dois. Um no exterior e outro dentro de casa. Nenhum deles ouviu ou viu nada.
Jordan sentiu o estômago às voltas.
- O homem podia ter ido até ao quarto. E a Sidney...
- Não estava lá - adiantou Noah. - Estava na casa de uma amiga.
Jordan assentiu com a cabeça.
240
- Eles podem chegar ao meu pai se quiserem, não é?
- Não. Os teus irmãos intervieram e conseguiram que fossem reforçadas as medidas de segurança. Mais ninguém vai conseguir aproximar-se dele com tanta facilidade.
Jordan não acreditava nisso.
- Que dizia a mensagem?
- Não me lembro bem.
- Diz-me! - intimou ela.
- Jordan, não passou de uma tática para amedrontar o teu pai.
- Quero saber o que dizia a mensagem, Noah! Diz-me!
- Está bem... - retorquiu Noah, com relutância. - A mensagem dizia: "Mantemo-nos vigilantes e à espera."
241
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Jordan não conseguia abrandar a angústia que sentia pela sua família. Não parava de imaginar a mãe e o pai adormecidos na sua cama, enquanto um implacável assassino deambulava pela casa. O que tornava a situação ainda mais inquietante era o facto de haver dois guarda-costas profissionais de atalaia e o intruso ter sido capaz de passar por eles sem que o detetassem.
Tomando-a nos braços, Noah prestou-lhe ouvidos enquanto ela ponderava todas as hipóteses possíveis: o que podia ter acontecido, o que não acontecera e o que era possível que acontecesse no futuro. Ouvira tudo aquilo da boca de Nick, que havia ficado furioso quando soubera do assalto à casa dos pais.
- Também já sabias o que aconteceu à Laurant, não é verdade? - perguntou Jordan. Noah não respondeu com a rapidez que ela julgava adequada e insistiu: - Não é verdade?
- Ai! Para de me beliscar. Sim, já sabia.
- Então, porque não me disseste?
Noah segurou-lhe a mão, antes que ela pudesse beliscá-lo novamente.
- O Nick não queria que eu te dissesse.
- Deixa-me adivinhar. Ele não queria que eu ficasse preocupada.
- Exatamente.
Com uma sacudidela, Jordan libertou a mão, afastou-se dele e sentou-se na cama.
- O meu pai, a Laurant... Que outros segredos guardas tu?
- Que eu saiba, nenhum - declarou Noah. - E não te vai fazer bem ficares toda exaltada por causa disso.
242
A atitude calma de Noah não lhe agradou.
- Pois bem, já estou exaltada por causa disso.
- Não sejas tão severa para com o teu irmão. O Nick só estava a tentar proteger-te.
- Não o defendas.
- Estou só a dizer que o Nick achou que já tinhas preocupações de sobra. Ele pensava pôr-te ao corrente de tudo, quando regressasses a Boston. E a Laurant está bem.
- Está no hospital. E isso não é estar bem.
- Está a receber toda a assistência de que precisa.
Jordan sacudiu a cabeça.
- Se fosses meu irmão e eu te escondesse qualquer coisa, como te sentirias?
Noah olhou-a de soslaio.
- Doçura, se eu fosse teu irmão, teríamos um problema bastante maior com que nos preocupar.
Para mostrar o que queria dizer, a sua mão deslizou sob a T-shirt de Jordan e enfiou-se por baixo do elástico dos seus calções.
- Está bem, não foi um bom exemplo - admitiu Jordan, começando a recolher as folhas. - É que detesto segredos - murmurou.
- Ah, sim? Mas também sabes guardá-los muito bem.
Parecia zangado. Surpreendida pela brusca mudança de atitude de Noah, Jordan perguntou-lhe:
- Que queres dizer com isso? Eu não guardo segredos.
- Queres falar-me acerca dessa pequena cicatriz num dos lados do teu seio direito?
Fazer de conta que não sabia ao que ele se referia provavelmente não daria grande resultado. Se bem o conhecia, Noah era bem capaz de lhe tirar a T-shirt para mostrar de que estava a falar.
- E que tem isso?
- Segundo creio lembrar-me, alguém me disse que foste submetida a uma intervenção cirúrgica.
- Isso foi... há muito tempo - balbuciou Jordan, tentando pensar numa maneira de sair do beco sem saída em que se metera. ?- Não foi nada de importante.
- Faço-te uma pergunta: não descobriste um caroço no seio?
- Era um caroço muito pequeno.
243
Ignorando a interrupção, Noah prosseguiu:
- E não foste ao hospital, ficaste internada e foste submetida à operação, sem contar nada à tua família?
Jordan respirou fundo.
- Sim, mas foi só uma coisa de rotina... uma biopsia...
- Não interessa. Não quiseste que ninguém ficasse preocupado contigo, não é assim? Imagina que havia dado para o torto. Imagina que um procedimento de rotina dava lugar a uma cirurgia mais complicada.
- Foi a Kate quem me levou ao hospital. Ela teria contado a todos.
- E achas que agiste de forma sensata?
- Não - admitiu Jordan. - O que fiz foi errado. Estava aterrorizada. E contá-lo fosse a quem fosse tornava o meu medo ainda mais real.
Por estranho que isso pudesse parecer, Noah compreendeu. Pegou-lhe na mão e abanou-a.
- Vou dizer-te uma coisa. Se alguma vez me pregares uma partida como essa, vai ser o cabo dos trabalhos.
Pensar na possibilidade de ela lhe esconder algo de tão importante era o suficiente para o pôr fora de si.
- Não haverá mais segredos - prometeu Jordan.
- Espero bem que não.
Jordan tentou levantar-se.
- Onde vais? - perguntou ele.
- Pensava ler, mas não estou com disposição de enfrentar velhas querelas entre clãs.
Noah puxou-a para trás.
- Lê-me alguma coisa. Uma batalha, por exemplo - sugeriu. - Isso vai descontrair-te.
- Só um homem é capaz de pensar que ouvir narrar uma batalha sangrenta pode ser relaxante.
Decidiu diverti-lo. Aproximou-se mais dele, encostou-se ao seu peito e colocou a resma de folhas no regaço. Noah olhou-a por cima do ombro.
- Até onde já chegaste?
- Não sei ao certo. Escolhi histórias de cada século. Quando regressar a casa, irei forçar-me a ler todas.
- Para que tens de forçar-te? Se acreditas que nenhuma delas é verdadeira...
244
- Está bem, quero lê-las todas. E depois farei eu a minha própria pesquisa. Quero descobrir a verdade. - E acrescentou: Tenho a certeza de que há resquícios de verdade em algumas das histórias. Na sua maioria, foram transmitidas de pais para filhos.- Entregou-lhe o maço. - Escolhe tu.
Ficou a vê-lo percorrer as folhas.
- Espera - disse, enquanto pegava numa delas. - Acabo de ver... Aqui está, outra vez.
Puxou a folha e mostrou-a a Noah.
- Vês? Na margem. O professor escreveu outra vez a mesma data: 1284. Vi-a na margem de duas outras folhas. E que é isto? Uma coroa? Um castelo? 1284 deve ter sido o ano em que começou a querela entre os dois clãs, não achas?
- Talvez - admitiu ele. - Os algarismos estão bem marcados, como se ele os tivesse delineado várias vezes para os engrossar, a fim de não os esquecer.
- Oh! não. Ele não precisaria de escrever a data mais de uma vez. Se o que ele me contou a propósito da sua memória for verdadeiro, não precisaria de fazer quaisquer notas na margem. Lembrar-se-ia. Creio que os deve ter gatafunhado distraidamente, enquanto pensava em qualquer outra coisa.
- Espera aí. Que te contou ele acerca da sua memória?
- Gabarolices - respondeu Jordan. - Disse que tinha uma memória fenomenal. Nunca se esquecia de uma cara ou de um nome, por muito tempo que passasse. Ele coligiu estes relatos para os ordenar, a fim de que outras pessoas pudessem lê-los mais tarde, mas memorizara todos os pormenores. Proclamou ser um leitor voraz. Quando não conseguia ler diretamente os jornais, lia-os na Internet.
Noah recordou-se de todos os jornais que juncavam o soalho da sala de estar do professor. ;.
- Passa os olhos pelo resto das folhas - sugeriu - para ver se há outros esboços ou outras datas.
Jordan não encontrou mais nenhuns no seu maço, mas Noah descobriu dois no fundo do maço que ele próprio consultava.
- Que te parece isto? - perguntou, apontando para algo desenhado ao alto da margem de uma folha.
- Talvez seja um cão ou um gato... com essa grande juba, um leão. Aposto que é um leão.
245
O último desenho encontrado por Noah foi mais fácil de reconhecer. Outra coroa. Um desenho bastante mal feito de uma coroa inclinada para o lado.
- Sabes o que eu penso? - disse. - O tal professor MacKenna era maluco.
- Devo admitir que era algo excêntrico e que vivia obcecado pelo seu trabalho.
- Acho que inventou tudo isto.
Jordan abanou a cabeça.
- Pois eu não. Talvez seja eu que estou maluca, mas creio que há realmente um tesouro escondido.
Noah continuou a folhear a resma.
- Algumas das histórias não estão datadas.
- Talvez as datas possam ser deduzidas. Pelo nome de alguém que seja mencionado... ou por uma nova arma, como uma besta. Isso permitir-nos-ia chegar a um período histórico aproximado, mas o resto são apenas suposições.
- Lê esta - e Noah entregou-lhe o maço de folhas que examinara e recostou-se.
Como se fosse a coisa mais natural deste mundo, puxou-a para si e pôs o braço em redor da sua cintura.
Jordan começou a ler em voz baixa mas clara e pausada.

"O nosso amado rei está morto e neste momento de terrível mágoa, os clãs andam envolvidos em batalha após batalha para conquistar o poder e assumir o controlo dos rivais. Temos um pretendente que quer ser rei e luta por governar. A agitação política é constante.
A cobiça criou raízes nos corações dos nossos chefes. Não sabemos como isto irá terminar, e tememos pelos nossos filhos. Não há campo por onde se passe que não esteja empapado em sangue, nenhuma caverna onde possam encontrar refúgio os nossos velhos e os nossos jovens. O caminho à nossa frente é desolador. Fomos testemunhas de crimes de morte e de infidelidades. E, agora, de traição.
Os MacDonald estão em guerra com os MacDougal, e a costa ocidental é o seu campo de batalha. A sul, os Campbell lutam contra os Ferguson, e a leste corre o sangue dos MacKeye e dos Sinclair. Não há qualquer lugar que constitua um refúgio.
No entanto, é a traição a norte que mais receamos. Os MacKenna dispõem de novos aliados vindos do outro lado do mundo para os ajudarem a destruir os Buchanan, seus inimigos.
246
Laird MacKenna não se mostra interessado em roubar a terra dos Buchanan e forçar os guerreiros a aceitá-lo como governante, embora saibamos que algo assim nunca poderá vir a ocorrer. Não, talvez no passado tenha sido esse o intento dos MacKenna, mas agora já não. O que o laird quer é destruir todos os Buchanan, sejam homens, mulheres ou crianças. A sua cólera é extrema e feroz.
Embora nunca devêssemos falar abertamente de tal coisa, nem mesmo num sussurro, acreditamos que Laird MacKenna fez um pacto maléfico com o rei de Inglaterra. O rei enviou-lhe um emissário seu, um jovem príncipe vindo da corte de um domínio distante que, atualmente, é governado pelo rei. Uma testemunha, um dos nossos, assistiu ao seu encontro secreto, e acreditamos que o que diz é verdade, dado tratar-se de um homem de Deus.
O rei quer dispor de uma cabeça de ponte no Norte e tem os olhos postos na terra dos Buchanan, dada a sua localização nas Terras Altas. Uma vez conquistada a terra, os seus soldados avançarão para sul e para leste. Conquistará a Escócia, um clã de cada vez, e, quando todos estiverem sob o seu domínio, reunirá um exército maciço que se dirigirá para norte, até à terra dos gigantes.
O príncipe contou ao laird que o rei ouvira falar da animosidade existente entre os Buchanan e os MacKenna e, embora considere que a destruição dos Buchanan, com a sua ajuda, já seria recompensa suficiente, está disposto a valorizar o pacto, concedendo ao laird um título e um tesouro em prata. O tesouro, só por si, elevaria o laird acima de todos os outros clãs, porque possui um poder místico. Sim, com esse tesouro, o laird tornar-se-ia invencível. Disporía do poder que tanto almeja e teria a sua vingança contra os Buchanan.
A cobiça apossou-se do laird, que não conseguiu recusar este pacto diabólico. Convocou os seus aliados, mas não lhes revelou fosse o que fosse acerca do seu encontro com o emissário do rei nem do pacto que com ele celebrara. Engendrou uma história de infidelidade e de assassínio e pediu aos seus aliados que fossem para a guerra com ele.
Também tememos a ira dos Buchanan, mas não podemos permitir tal carnificina e decidimos que um de nós vá até junto do seu laird e lhe revele este conluio. Não cremos que o rei de Inglaterra deva ter poder na nossa terra. Laird MacKenna pode querer vender a sua alma, mas nós não afaremos.
Com grande apreensão, o nosso corajoso amigo Harold foi, sozinho, falar com laird Buchanan. Quando vimos que não voltava, julgámos que os Buchanan o tinham matado. Harold, contudo, não foi
247
molestado. Regressou ao nosso convívio, mas, se o seu corpo estava incólume, o terror perturbara a sua mente, porque declarou-nos que o havia visto. Harold viu o fantasma. Um leão no meio do nevoeiro."

Noah interrompeu Jordan.
- Ele viu o quê?
- Harold viu o fantasma. Viu o leão no meio do nevoeiro - repetiu Jordan.
Noah sorriu.
- Um leão na Escócia?
- Talvez seja uma figura de retórica - alvitrou. - Afinal de contas, houve um Ricardo Coração de Leão.
- Continua a ler - pediu Noah.

"Laird Buchanan convocou os seus aliados? - perguntámos-lhe.
- Não -foi a resposta. - Enviou mensageiros para o norte para chamar um guerreiro. Nada mais do que isso.
- Então, irão todos morrer.
- Sim, irão morrer - disse um outro. - O rei de Inglaterra está tão certo da sua vitória que enviou uma legião de soldados..."

Noah interrompeu-a de novo.
- Uma legião? Francamente. Sabes quantos homens isso representava?
- Noah, já li referências a um fantasma e a um leão no nevoeiro. Que diferença faz uma legião?
Noah soltou uma gargalhada.
- Tens razão.
- Queres que eu continue ou não?
- Continua - disse ele. - Prometo não voltar a interromper-te.
- Onde ia eu? Ah, sim, na legião.
Acomodou-se e retomou a leitura.

"O rei de Inglaterra está tão certo da sua vitória que enviou uma legião de soldados escoltar o tesouro de Laird MacKenna. Também ordenou a esses soldados que se juntassem aos MacKenna na batalha contra os Buchanan. Laird MacKenna acaba de receber essa notícia. Não pode impedir o avanço das tropas inglesas e sabe que os seus aliados se voltarão contra si, quando descobrirem que fez um pacto com o rei. Não irão combater ao lado de um só soldado inglês.
248
Jordan deixou cair a folha.
- Ele fê-lo de propósito.
- Quem fez o quê? - perguntou Noah.
- O rei. Enviou soldados, sabendo que os aliados dos MacKenna se voltariam contra o seu laird. Também sabia que viriam a saber do pacto. Os clãs ficariam a saber que laird MacKenna unira forças com o rei. Em troca de prata. Que tremenda traição.
- E acabaram por se matar uns aos outros.
- Sim - confirmou Jordan. - Precisamente o que o rei pretendia. Como pôde laird MacKenna acreditar que o rei de Inglaterra iria cumprir a sua palavra?
- Cobiça. Ficou cego pela cobiça. E conseguiu o tesouro? - quis saber Noah.
Jordan voltou a pegar nas folhas.
- A vitória pertenceu aos Buchanan.
- Estava a torcer por eles - disse Noah, arrastando as palavras. - Eram a parte mais fraca. Além disso, estou na cama com uma Buchanan. Tenho de ser leal para com eles.
Jordan não comentou aquela tirada. Voltou a ler e logo a seguir parou.
- Oh! não. Não vou ler esta descrição da batalha. Basta que saibas que houve uma grande quantidade de membros cortados e de cabeças separadas dos corpos. Os poucos soldados ingleses que sobreviveram regressaram a Inglaterra. Quem me dera saber qual era o rei.
- O que aconteceu ao laird dos MacKenna?
Jordan consultou outra folha, antes de responder:
- Ah, aqui está. O laird dos MacKenna perdeu o seu tesouro e a promessa de um título feita pelo rei.
- E de que título se tratava?
- Não sei. Mas perdeu-o. Viveu em ignomínia até ao resto dos seus dias. E agora ouve isto: o seu clã culpou os Buchanan. Aposto que o professor MacKenna conseguia dar a volta ao texto para também ele culpar os Buchanan.
- De quê?
- Sei lá. Talvez de tudo: dos soldados ingleses, do tesouro...
- O laird deve ter tido muito trabalho para distorcer os factos e levar o seu clã a acreditar nele.
Jordan concordou.
249
- Nesta lenda há de tudo: cobiça, traição, encontros secretos, crimes de morte e, sem dúvida, infidelidade. Há infidelidades na história, mas saltei essas partes.
- Poucas coisas mudaram com o passar dos séculos. A história repete-se naquela lista do J.D. que o Street imprimiu. Infidelidade, cobiça, traição. Não há pecado que não se encontre naquela lista.
- Espero que estejas a exagerar. Sei que a Charlene andou a atraiçoar o noivo, mas há sempre alguém diferente dos outros. Posso ver a lista?
Noah aprestava-se já para sair da cama, mas Jordan puxou-o para trás.
- Deixa lá. Não preciso de vê-la. Diz-me só: a Amélia Ann consta da lista?
- Consta, sim. No entanto, por nada que seja ilegal. Recebeu tratamento a uma doença sexualmente transmissível e o J.D. soube disso. Ela pagou-lhe cem dólares para que ele não contasse à filha. Podia ter sido pior.
- Cem dólares talvez fosse muito dinheiro para ela. Não queria que a filha ficasse desapontada com o seu comportamento. Podia ser pior.
- E é pior. Lembras-te dos vídeos que o Street encontrou na casa do J.D.?
- Lembro, sim.
- Não foram só as suas vítimas que ele filmou. Também gostava de assistir a algumas das suas próprias escapadelas sexuais. E um desses vídeos tem a etiqueta "Amélia Ann".
Jordan fitou-o, boquiaberta.
- Estás a falar a sério? A Amélia e o J.D.? - Deu algum tempo para digerir a novidade e depois acrescentou: - Isso significa que foi o J.D. quem lhe transmitiu a tal doença, não é verdade?
- É bem possível - adiantou Noah.
- Espero que a Candy nunca venha a descobrir. Que se passa com a gente desta cidade? Nunca ouviram falar de televisão por cabo?
- Minha querida, o sexo destrona a televisão por cabo, a qualquer hora do dia ou da noite.
Jordan abanou a cabeça.
- Isso não está certo. Nada certo.
250
Tinha a sua conta das vidas secretas e sórdidas dos habitantes de Serenity. Juntou as folhas, pô-las de parte e voltou para a cama. Noah estava de olhos fechados.
- Noah.
- Hum.
- Sentes-te atraído por mulheres que usam calções muito curtos e sapatos com salto de agulha?
Noah apoiou-se no cotovelo e mirou-a.
- A que propósito vem essa pergunta? Quem é que usa calções muito curtos e sapatos com saltos de agulha?
- A Amélia Ann.
- Ah, sim?
- Oh! por favor. Não me digas que não reparaste.
- Ela não é o meu género.
Jordan sorriu e estendeu o braço por cima do peito de Noah para apagar a luz.
- Boa resposta - disse ainda.
251
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

- Não posso acreditar que esteja a admiti-lo, mas digo-te que vou sentir saudades de Serenity.
Noah e Jordan iam a passar em frente do restaurante de Jaffee, quando ela fez aquele comentário. O céu começava a clarear, envolvendo-os numa suave luminosidade dourada. O Jaffees Bistro não abriria senão dali a algumas horas.
- E de que vais sentir saudades, mais concretamente?
- Passei por uma experiência capaz de alterar toda uma vida.
Noah não foi capaz de resistir e comentou:
- O sexo foi assim tão bom?
Exasperada, Jordan sacudiu a cabeça.
- Não era a isso que estava a referir-me. Mas, por falar em sexo...
- Esta noite foi fantástica, não achas? Deixaste-me esgotado.
Não fora só bom, pensou ela. Fora extraordinário, incrível e maravilhoso, mas, se lho dissesse, a arrogância de Noah ficaria incontrolável.
- Para de tentares fazer-me corar. Não vai dar resultado - advertiu.
Noah não a contradisse. E, no entanto, Jordan enganara-se. Estava a dar resultado. A prova é que ela já corara.
- Qual foi a experiência capaz de alterar a tua vida?
- Creio que foi mais uma decisão. Apercebi-me de que tenho sido uma escrava da tecnologia e isso vai mudar. Há mais coisas na vida do que conceber computadores maiores, melhores e mais rápidos... - O suspiro que soltou foi prolongado e profundo. - Quero algo mais da vida.
252
Noah esboçou um sorriso.
- É bom sabê-lo.
- A primeira coisa que vou fazer, quando chegar a casa, é elaborar uma lista de tudo aquilo que quero. Cozinhar é a primeira de todas - declarou, assentindo com a cabeça. - vou inscrever-me num curso de culinária. Acabou-se a comida já pronta a levar para casa.
- Com que então, uma lista?
- Exatamente.
A viagem até ao aeroporto de Austin foi demorada e deu-lhes tempo para falarem acerca de uma grande variedade de tópicos. Um desses tópicos foram as diferenças na educação de cada um deles. Noah era filho único, enquanto Jordan fazia parte de uma "grande ninhada", como ela chamava aos seus irmãos e irmãs. Noah nunca se apercebera da importância de dispor do seu próprio espaço porque sempre o tivera por inteiro. Jordan contou-lhe como aspirara a conseguir um pouco de privacidade. A sua principal queixa era, contudo, a de ser alvo constante das diabruras dos irmãos. Noah riu-se quando ela lhe contou as partidas que eles haviam pregado a ela e à meia-irmã, quando eram mais novas. Disse para consigo que crescer numa família tão numerosa era uma bênção dos céus - uma festa constante.
Ocasionalmente, ocorriam pausas na conversa, mas Jordan sentia-se tão à vontade com ele que não sentiu necessidade de preencher os silêncios com banalidades. Já rolavam havia duas horas antes de ela ter finalmente a coragem de lhe pedir que explicasse um comentário que Noah fizera anteriormente e que estava a inquietá-la.
- Lembras-te de dizeres que sabias o que se passava comigo? Que querias dizer com isso?
Noah lançou-lhe um olhar de soslaio.
- Tens a certeza de que queres mesmo saber? Não podia ser assim tão mau.
- Tenho.
- Conheço-te há já muito tempo e sei como a tua mente funciona, especialmente no que respeita a homens. Gostas de deter o controlo. Gostas de controlar tudo e todos.
- Isso não é verdade!
Noah ignorou aquela negativa.
253
- Muito em especial, gostas de controlar os homens com quem sais. Conheci alguns deles, doçura, e sei do que estou a falar. Preferes os mais fracos. No entanto, assim que te apercebes de que podes pisá-los à vontade, já não os queres. Aposto que nem chegaste a dormir com nenhum deles. Talvez seja por isso que os escolhes: para não te envolveres numa relação. Tenho ou não razão?
- Não, não tens - insistiu Jordan. - Gosto de homens sensíveis.
- Mas foste para a cama comigo. E eu não sou nada sensível.
- Fazes com que eu pareça terrível - lastimou-se ela.
- Não és terrível, és uma querida. Uma querida mandona.
- Não quero controlar ninguém - declarou Jordan, com veemência.
- A mim, isso não me preocupa. Nunca irás controlar-me.
Jordan cruzou os braços.
- E porque pensas que quereria eu fazer tal coisa? E não te atrevas a dizer que não consigo conter-me.
- Estás a ficar exaltada. Ora! :, i
- Por falar em sexo... - começou ela.
- O que tem?
- Pois muito bem - continuou Jordan. - Proponho que aquilo que aconteceu entre nós em Serenity fique em Serenity. Vamos decerto dar de caras um com o outro, de vez em quando, em Nathans Bay. Tu irás pescar com um dos meus irmãos, eu estarei de visita à minha família, e não quero que te sintas pouco à vontade... - Interrompeu-se, quando se apercebeu do que estava a dizer. - Está bem, já sei que não vais sentir-te pouco à vontade, mas não quero que te inquietes por eu me sentir pouco à vontade. - Estava a meter os pés pelas mãos. - Compreendes o que estou a tentar dizer-te?
- Compreendo - retorquiu Noah. - Porque estás tão preocupada...?
- Pois estou - interrompeu-o Jordan. - A minha pergunta é esta: fica combinado?
- Se isso te faz feliz...
- Fica combinado?
- Está bem.
254
Jordan julgou que talvez fosse forçado selarem o acordo com um aperto de mão, mas ficou contente por haver resolvido aquela questão. Não ia ser muito difícil fazer de conta que nada de extraordinário entre eles havia acontecido. Ela era perita em fazer de conta. Até conseguia fazer de conta que não se apaixonara por ele... Ou não?
255
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Quando Jordan chegou a casa, já passava bastante da meia-noite. Noah levou-lhe as malas até ao apartamento que ocupava num prédio com fachada de arenito pardo, vistoriou todas as dependências para ter a certeza de que tudo estava como devia ser e deu-lhe um beijo de despedida e foi-se embora sem sequer olhar para trás.
"Já está noutra", pensou Jordan. E ela precisava de fazer o mesmo.
Quando caiu na cama, adormeceu de imediato e desfrutou de um sono profundo. De manhã, ao abrir os olhos, procurou instintivamente Noah, mas ele não estava a seu lado. Sentindo-se desorientada e algo entontecida, afastou o cobertor e o lençol, vestiu o seu roupão preferido, já bastante usado, e arrastou os pés até à cozinha. Carregou no PLAY do atendedor de chamadas quando passou por ele e, enquanto preparava uma chávena de chá quente, ouviu as mensagens. As quarenta e nove que se achavam gravadas.
Três delas eram de Jaffee. Queria saber que importância tinha a tecla delete porque a premira acidentalmente quando tentava guardar algumas das suas receitas e perdera todas elas. Fazia votos para que pudesse reavê-las. Poderia ela enviar-lhe um e-mail a dizer-lhe o que devia fazer?
"O correio eletrónico está a funcionar perfeitamente", explicava Jaffee. "Não dei cabo dele, por isso receberei a sua resposta. Já lhe deixei duas outras mensagens telefónicas, esta é a terceira, e julgo que nem sequer terá ainda chegado a casa. Por favor, consulte as mensagens no seu computador, logo que possa."
Que importância tinha a tecla DELETE? Jordan sorriu. Havia pessoas que precisavam realmente de treino intensivo na utilização
256
de computadores. Jaffee era uma delas. Telefonar-lhe-ia mais tarde. Depois de escutar e apagar o resto das mensagens, levou a chávena de chá para o outro lado da sala de estar, enroscou-se numa cadeira em frente da janela que dava para o rio Charles e ficou a olhar para nada em particular.
O amor não era uma coisa maravilhosa, como se apregoava. Por quanto mais tempo iria sentir-se deprimida? Uma vez que nunca amara ninguém como amava Noah, não sabia fazer esse cálculo. Esperava que a primeira fase do sentimento de saudade por Noah seria sentir pena de si mesma; sentimento esse por que estava agora a passar.
Sem pressa de se vestir, ficou em pijama até meio da tarde. Por volta das três horas, captou de passagem a sua imagem no espelho e estremeceu. Por isso, resolveu ir tomar um duche e vestir-se.
Nick telefonou-lhe, logo após ela ter posto as lentes de contacto.
- Ia agora mesmo telefonar-te - disse ela. - Como está a Laurant? Não quero ligar para o hospital porque não desejo incomodá-la, se estiver a dormir. Ela já tem visitas?
- A Laurant está bem - informou Dick. - O médico quer mantê-la no hospital por mais um dia, pelo menos, e eu estou a restringir ao mínimo o número de visitantes para que ela possa repousar.
- Hoje, não irei visitá-la - disse Jordan. - Dá-lhe um beijo da minha parte e diz-lhe que irei visitá-la amanhã.
- Prepara-te para responder a uma infinidade de perguntas - avisou-a Nick.
Oh, céus, que saberia Laurant?
- Porquê? - perguntou com nervosismo. - Que perguntas? Porque quer a Laurant fazer-me perguntas?
Apercebeu-se de que não podia parecer mais culpada. Será que Nick o tinha notado?
- Jordan, que se passa contigo?
Claro que tinha notado.
- Que se passa comigo? - replicou. - Nada de importante. Só estava a pensar que perguntas me quererá a tua mulher fazer.
- Oh! não sei. Talvez queira saber qualquer coisa acerca daqueles cadáveres que encontraste - comentou Nick, em tom sarcástico.
257
- Ah! sim. Os cadáveres. - Parecia impossível ter-se esquecido deles. - Então, está bem. vou responder às suas perguntas.
- Estás zangada comigo? É por isso que ficaste tão suscetível?
Grandes dotes de detetive, os do seu irmão!
- Hum, é verdade.
- Diz-me porquê.
- Sabes bem porquê - retorquiu, para ganhar tempo.
- Foi porque me vim embora de Serenity, não é? com o Noah, ficaste em boas mãos, mas eu sou teu irmão e devia ter ficado a teu lado. Tenho razão, não é assim? é por isso que estás zangada comigo.
Jordan considerou que ia arder no purgatório só por causa daquela mentira.
- Sim, é por isso.
- O doutor Morganstern ordenou-me que regressasse a Boston e não me sinto culpado por fazer o meu trabalho. Além disso, eu estava cá quando a Laurant começou a ter contrações. Precisava de estar ao pé dela.
- Está bem. Eu perdoo-te.
- Que decisão tão rápida.
- Fizeste o que devias fazer - tartamudeou Jordan. - Agora tenho de desligar. Está alguém à porta. Até logo.
Havia realmente alguém à porta. Era um carteiro que vinha entregar-lhe as caixas que ela despachara por correio azul e via aérea. Depois de as levar para o interior do apartamento e de as empilhar em frente da porta, junto do bengaleiro, dirigiu-se ao computador e ligou-o. Queria ver os e-mails que recebera, antes de enviar uma mensagem a todos os seus correspondentes, informando-os de que ia ter de desligar o computador durante algum tempo. Não diria por quanto tempo.
Levou-lhe todo o resto da tarde e parte da noite a pôr em dia todo o correio eletrónico. Ainda não havia telefonado a Jaffee. Tomou mentalmente nota para o fazer na manhã seguinte.
O jantar de Jordan foi constituído por um saco de pipocas feitas no micro-ondas. Estendeu-se no sofá e, com o comando, percorreu os canais de televisão, procurando manter Noah afastado do seu espírito. No entanto, ele não deixava de lhe vir à mente. Que teria feito Noah durante o dia? E que estaria a fazer, naquele momento?
258
- Oh! isto tem de parar.
Decidida a pensar em outra coisa que não fosse em Noah, passou em revista outros aspetos da sua viagem ao Texas, tão cheia de ocorrências. Uma deslocação inocente convertera-se numa calamidade de que resultara a morte de três homens e uma cidade voltada do avesso. Se tivesse sido avisada antecipadamente do que ia enfrentar, nunca acreditaria que tal fosse possível. Havia ainda tantas perguntas por responder! Esperava que os agentes Chaddick e Street fossem capazes de chegar ao fundo da questão e conseguissem concluir rapidamente as investigações.
Toda aquela intriga, todos aqueles logros acumulados eram suficientes para pôr a cabeça à roda fosse a quem fosse, pelo que se concentrou em analisar cada questão de per si, começando pelo professor MacKenna.
A sua história acerca de uma herança não passara de uma mentira. Era óbvio que se mudara para Serenity por causa do dinheiro que andava a receber. Mas de onde provinham aqueles depósitos em dinheiro? Teriam J.D. e o professor trabalhado juntos? Teria J.D. assassinado o professor por ter vindo a saber que ele andava a atraiçoá-lo? O professor fazia depósitos de cinco mil dólares, enquanto J.D. se limitava a depositar quantias irrisórias. com o seu temperamento exaltado, J.D. podia bem tê-lo assassinado.
E depois o próprio J.D. havia perecido num incêndio, ao tentar evitar mais problemas.
Isto, se trabalhassem em conjunto. Nesse caso, ficaria resolvido grande parte do mistério, mas o que Jordan não conseguia determinar era o porquê de tal associação. O professor era um sujeito bizarro, um solitário. Não se dava bem com os outros. Sendo assim, por que razão se ligara a J.D.?
Não fazia sentido.
Ponderou uma outra possibilidade. O astuto chantagista que era J.D. descobrira o dinheiro que o professor andava a receber de um incógnito terceiro e tentara fazer chantagem com ele. No entanto, o amalucado professor não queria ser alvo de chantagem. Se MacKenna ameaçasse J.D. de ir contar o caso à polícia, J.D. sabia que iriam mandá-lo de regresso à cadeia. Não podia arriscar-se a tal coisa, matando o professor a fim de o calar para sempre.
259
Alguma coisa, contudo, não encaixava naquela hipótese. Jordan considerou como bem provável que o professor também andasse metido em algo de ilegal.
Onde fora o professor MacKenna obter tanto dinheiro? Era essa a pergunta que dava direito ao grande prémio.
Por vezes, é preciso parar de pensar acerca de um problema para que a solução ocorra ao espírito. Jordan adormeceu, enquanto esperava que isso acontecesse. Continuava à espera quando acordou, na manhã seguinte. Por volta do meio-dia, desistiu. Não estava acostumada a semelhante fracasso na resolução de qualquer problema. Foi obviamente mais uma novidade desagradável que teve de enfrentar.
Levando na mão as chaves do carro, já abrira a porta para ir visitar Laurant, quando o telefone tocou.
- Jordan? Daqui fala o agente Chaddick. Tenho novidades interessantes para lhe transmitir. Encontrámos o seu computador portátil.
- Ah, sim? Onde estava?
- No eBay.
- Como?
- A Maggie Haden tinha-o em seu poder. Estava a tentar vendê-lo no eBay. Creio que ela pode dizer adeus a qualquer hipótese de retomar a carreira.
Jordan não tivera ainda tempo de digerir aquela notícia, quando Chaddick acrescentou:
- Desculpe mas tenho de atender esta chamada. Volto a ligar-lhe mais tarde.
Jordan deixou-se cair numa cadeira. Maggie Haden. Aquela descarada... aquela...
O telefone voltou a tocar.
- Jordan. É de novo o agente Chaddick. Ouça. Tenho mais novidades. Não muito boas.
- O que é? - perguntou ela, vacilante.
- Acabo de receber o relatório preliminar da autópsia do J.DDickey. Foi um homicídio.
Todas as anteriores conjeturas de Jordan caíram por terra. Agora, tinha de enfrentar uma realidade nova e mais preocupante: o assassino continuava à solta.
260
CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Paul Newton Pruitt não ia permitir que ninguém destruísse a sua nova vida. Havia trabalhado arduamente para conseguir chegar aonde chegara e não ia agora fugir e esconder-se para começar tudo de novo. Desta vez, não.
Tinha percorrido uma longa caminhada. Atualmente, o homicídio não o perturbava. Primeiro, fora aquele desprezível escocês; depois, o idiota chapado de Lloyd; por fim, J.D. o seu devotado mas estupidamente ambicioso ajudante.
Não sentira quaisquer escrúpulos em matar cada um deles. E tão-pouco quaisquer remorsos. Pruitt já matara anteriormente e aprendera uma preciosa lição. Faria fosse o que fosse para se proteger a si próprio.
Julgara que havia encontrado o bode expiatório perfeito na pessoa de J.D. E o facto de ter colocado os cadáveres no carro de Jordan Buchanan concedera-lhe mais tempo. Depois, livrar-se de J.D. apagaria o último elo com ele próprio, Pruitt.
Ou assim julgara.
Tinha sido o primeiro a conhecer os resultados da autópsia de J.D. Não devia ter restado nada do seu corpo que pudesse ser examinado, mas o certo é que restara. O crânio fraturado denunciara-o e a morte acidental de J.D. achava-se agora classificada como homicídio.
Apoderar-se das cópias dos documentos do professor MacKenna tornara-se crucial.
261
CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Nos últimos dias, Noah estivera absorvido em seminários, juntamente com o Dr. Morganstern, e detestara cada minuto do tempo gasto. Não era o tipo de agente que assiste a seminários e referira-o várias vezes, muito embora as suas queixas não fossem de qualquer importância para o seu chefe.
Morganstern queria um orçamento maior. O programa de desaparecidos que criara alguns anos antes fora um enorme sucesso. com a sua impressionante folha de serviços, Noah e Nick eram a melhor propaganda que o chefe podia desejar para expandir o programa.
Cada seminário acabava com um período de perguntas e respostas. Na ausência de Nick, todas as perguntas foram dirigidas a Noah. Se Nick estivesse presente, isso ficaria a seu cargo. Era muito mais diplomata e refinado. No entanto, com a mulher, Laurant, no hospital, Nick conseguira dispensa do seminário.
Grande felizardo.
Ao fim do segundo dia, Noah mal conseguia comportar-se bem com os demais assistentes. Sentado com o Dr. Morganstern numa mesa situada ao fundo de um comprido corredor, aguardava o início do próximo seminário. Notou que Morganstern se mostrava descontraído, mas, por aquela altura, Noah já aprendera que nada era capaz de o perturbar.
O venerando Dr. Peter Morganstern insistira para que Nick e Noah o tratassem pelo nome próprio, mas eles só o faziam quando se achavam a sós com ele.
Noah sussurrou:
262
- Ouça, Pete, quero perguntar-lhe uma coisa. Julga que ainda irá conseguir um orçamento maior quando eu começar a abater gente a tiro? É que se tiver de assistir a mais uma interminável palestra de outro conferencista chato, juro por Deus que vou acabar por dar um tiro em alguém... e depois outro a mim próprio. E talvez o mate também a si por me ter obrigado a vestir um fato e a pôr gravata.
- Como psiquiatra, fui treinado para detetar insinuações subtis e o mais natural seria que me sentisse alarmado...
- Insinuações subtis! - e Noah soltou uma gargalhada.
Pete sorriu.
- No entanto, como sinto o mesmo a propósito dos conferencistas, não vou ficar preocupado, muito embora alguns dos seus comentários, aquando da última cavaqueira, me tenham deixado um tanto inquieto.
Noah sabia que "cavaqueira" era o código de que Morganstern se servia para se referir às suas conversas privadas. Como psiquiatra, o objetivo de Morganstern era penetrar na mente de Noah para ficar seguro de que ele não ia perder as estribeiras. O bom doutor arranjava sempre maneira de o conseguir.
- Anda preocupado comigo? - perguntou-lhe Noah.
- Nem pouco mais ou menos. Como foi a sua viagem até ao Texas?
Noah encolheu os ombros.
- Consegui mantê-la viva. E é tudo. Creio que já ouviu falar de tudo quanto se passou.
- Já, sim.
- Os agentes Chaddick e Street tomaram conta da investigação.
- Como tinha de ser - comentou Pete. - É a sua jurisdição.
- Detestei largar aquilo da mão - admitiu Noah.
- E quanto à Jordan?
- O que tem? - inquiriu asperamente Noah.
Pete ergueu uma sobrancelha.
- Pergunto a mim próprio como lidou ela com o stresse.
- Bem. Muito bem. - Havia uma ponta de orgulho na voz de Noah.
263
- A Jordan sempre ocupou um lugar muito especial no meu coração. Eu e a minha mulher não costumamos escolher favoritos entre aqueles que são das nossas relações, mas, se o fizéssemos...
E acrescentou:
- Ela tem um enorme coração, não é verdade?
- É, sim - disse Noah, em voz baixa.
- Já voltou a falar com ela, desde que regressou?
- Não.
A brusquidão da resposta não passou despercebida a Pete, mas não proferiu palavra. Pegou num lápis e fê-lo rodar entre os dedos, enquanto esperava que o seu subordinado falasse. Não levou muito tempo.
- Que pretende de mim? - perguntou Noah.
Pete permaneceu em silêncio. Frustrado, Noah inquiriu:
- Anda à caça de quê?
- Notei que tem andado crispado, desde que voltou do Texas - comentou Pete. - Gostava de saber porquê.
- Julguei que já o havia explicado de forma bastante clara. Detesto seminários.
- Mas não é essa a razão da sua ansiedade, pois não?
- Que diabo, Pete! Ansiedade? Está a brincar comigo?
Pete voltou a sorrir.
- Quando estiver disposto a contar o que está a passar-se consigo, Noah, venha falar comigo.
Estava a libertá-lo do anzol. Noah podia ter-se levantado e ido para mais longe, mas não o fez. Reclinou-se na cadeira almofadada e, enquanto observava Pete a gatafunhar qualquer coisa no seu bloco, meditou acerca do nervosismo que o assaltara nos últimos dias.
- Que está para aí a desenhar? - perguntou, passado um minuto.
Pete também estava absorto, a pensar em qualquer coisa. Durante uns segundos, olhou para os rabiscos que traçara.
- Não tenho a certeza. É capaz de ser um calendário. - Assentiu com a cabeça. - O meu subconsciente deve estar a querer ajudar-me a recordar uma data.
- Vocês, os psiquiatras, acreditam mesmo que esses rabiscos têm um significado qualquer, não é?
- Eu não - retorquiu Pete -, mas um esboço ou rabisco persistente, recorrente... Sim, examiná-lo-ia com atenção. -
264
Consultou o relógio. - Não creio que tenhamos de assistir à última palestra.
Noah experimentou sensação idêntica à do condenado à morte que recebe no último minuto a notícia da comutação da pena. Lado a lado com Pete, encaminhou-se para o parque de estacionamento subterrâneo. Quando chegaram ao terceiro piso, Pete foi numa direção e Noah, na outra.
Pete tinha já as chaves na mão e estava a abrir a porta do carro, quando ouviu Noah chamá-lo. Por cima do tejadilho, exclamou:
- Que é, Noah?
- O que o levou a decidir manter-me a mim em Serenity, mandando o Nick regressar? Havia alguma reunião ou alguma revisão de um caso a que o Nick devesse estar presente? Ou foi por outra razão?
- O que acha? - disse Pete, com um sorriso, enquanto deslizava para o assento do condutor e fechava a porta do carro.
Noah deixou-se ficar num canto da garagem, vendo Pete afastar-se. A verdade quase o fez cair por terra. Fora manipulado... ele que era supostamente um agente bem treinado, astuto e a quem não escapava fosse o que fosse. Boa perspicácia a sua, não havia dúvida!
- Filho da mãe! - exclamou, em surdina.
Pete prepara-lhe a cama! Noah nunca havia considerado a hipótese de o psiquiatra ter agido com segunda intenção. Era incrível! Quando soubera da situação em que se achava Jordan em Serenity, Pete decidira, de imediato, ser astuto. Deixaria Noah com ela e mandaria Nick regressar.
- Filho da mãe! - voltou a dizer, entre dentes. Pete tinha andado a armar-se em casamenteiro.
Do seu carro, Noah telefonou a Nick. Quando o colega atendeu, Noah pôde ouvir em fundo a sua filha de dois anos, Samantha.
- Vou ao hospital para saber notícias da tua mulher - disse a Nick.
- De caminho, vem buscar-me - pediu Nick. - Sam, larga isso! - Noah ouviu um estrondo e depois um suspiro de Nick. - Juro por Deus que não sei como a Laurant consegue. As negociações para libertar reféns são uma brincadeira quando comparadas com tentarmos fazer-nos compreender por uma criança de dois anos.
265
O trânsito estava intenso, mas isso era normal em Boston. Noah recordou-se de Serenity, onde quase não havia trânsito mas havia homicídios e caos.
Nick estava à sua espera no alpendre da sua casa, com a pequena e bonita Sam ao colo. Uma morena espampanante ficou com a bebé, quando Nick parou o carro no carreiro de acesso.
- É uma nova babysitter? - perguntou. - Nunca a tinha visto antes.
- É uma substituta - explicou Nick.
- A Sam gosta dela?
- Gosta, sim. - Nick aguardou por um minuto e perguntou, admirado: - Não vais perguntar-me se é casada? Não, não é. Queres o seu número de telefone?
Noah sacudiu a cabeça.
- Não é o meu tipo.
Nick, se bem que feliz no casamento e fiel ao amor da sua vida, havia decerto notado como a babysitter era atraente.
- Como é possível que ela não seja o teu tipo?
- Não é e pronto - retorquiu Noah. - Nick, dá a impressão de que não dormes há um mês. É a Sam que não te deixa dormir?
- Não. Leio-lhe uma história e ela adormece e não acorda durante toda a noite. Sou eu que tenho problemas. É esquisito. Quando estou fora da cidade, a ocupar-me de algum caso, durmo muito bem, mas quando fico em casa preciso da Laurant a meu lado. Só que agora não a tenho, e por isso não consigo dormir.
Noah compreendia o que Nick queria dizer. Também ele não dormira muito, desde que regressara a casa.
- Tens alguma sugestão a fazer? - perguntou Nick.
- Tenho, sim. Deixa de te portares como se fosses uma menina.
Nada do que Noah dizia conseguia incomodar Nick, muito provavelmente por serem tão parecidas as personalidades e o sentido de humor de ambos.
- Como correu o seminário? - quis saber Nick, com ar sério. Sabia quanto Noah detestava tudo aquilo que mesmo remotamente estivesse ligado à burocracia. - Tive muita pena de não poder assistir.
- Tens muita piada!
266
Nick soltou uma gargalhada, inquirindo depois:
- Não tens nada a dizer sobre o veredicto do júri no caso que o meu pai está a julgar?
- O quê? Já há veredicto?
- É notícia em todos os telejornais. Considerado culpado de todas as acusações.
- Estive nas palestras e não ouvi nada. O teu pai deve ter ficado aliviado. Quanto tempo levou o júri a deliberar?
- Só umas duas horas. E as boas notícias não ficam por aí. Um dos detetives contou-me que andam à caça do primo do sujeito por ter entrado na casa de Nathans Bay.
- Têm a certeza disso?
- A certeza suficiente para o meterem na cadeia.
Ainda iam a falar do caso, quando Noah estacionou o carro no parque subterrâneo do hospital.
- O teu pai vai ficar feliz por se ver livre dos guarda-costas. Sei que estavam a deixá-lo com os nervos em franja por o seguirem sempre para onde quer que ele fosse - comentou Noah.
- Aposto que já os dispensou.
Noah tirou o casaco e a gravata e deixou-os dentro do carro. Enquanto caminhava, arregaçou as mangas da camisa.
Uma loura alta e de pernas esculturais vinha em sentido contrário. Abrandou o passo, como que à espera de uma reação, sorriu para Noah, lançou um olhar à pistola que ele trazia nas costas e seguiu o seu caminho.
Nick apercebeu-se de que Noah nem reparara na loura. Nem sequer afrouxara a marcha.
- Passa-se alguma coisa contigo? - perguntou-lhe.
- Eu vi-a - e Noah encolheu os ombros, - Mais uma vez, não é o meu tipo.
O elevador ficava do outro lado da sala de urgências. Nick carregou no botão.
O telemóvel de Noah tocou. Consultou o nome que apareceu no visor.
- É o Chaddick - disse, enquanto abria a tampa do telemóvel.
Uma enfermeira e um segurança fitaram-no, de sobrolho franzido. A enfermeira apontou para a parede e abanou a cabeça. Um letreiro junto dos botões do elevador dizia que eram proibidos os
267
telemóveis. Também havia um letreiro com o desenho de um telemóvel e uma cruz vermelha pintada por cima.
- Sim - exclamou Noah.
O agente federal foi direto ao assunto.
- Noah? Daqui fala o Chaddick. A morte do J.D. Dickey foi atribuída a homicídio.
Noah soltou um palavrão, em voz alta. O segurança encaminhou-se na sua direção e Noah puxou do distintivo do FBI e manteve-o erguido, enquanto escutava as explicações de Chaddick. O segurança recuou.
Noah fechou o telemóvel no preciso momento em que a porta do elevador se abria. A sua mente fervilhava. Havia uma dúzia de suspeitos na lista de chantagem de J.D. e Serenity ficava a mais de mil e seiscentos quilómetros de distância. Mesmo assim, Noah habituara-se a prestar atenção aos seus instintos. De súbito, sentia-se inquieto.
Havia um assassino à solta. Onde estaria Jordan?
268
CAPÍTULO TRINTA E SETE

Jordan acabou por decidir comprar um telemóvel, idêntico ao que J.D. Dickey havia atirado ao chão, antes de a esmurrar. Poderia ter optado por um modelo mais recente, mas já dispunha de um carregador instalado na sua secretária e de um cabo de ligação no seu carro e ambos só serviam para o modelo antigo.
Disse para consigo que não estava de novo a resvalar para as suas antigas andanças tecnológicas. Estava tão-somente a ser esperta. Um telemóvel era um instrumento de segurança, especialmente quando fazia jogging ou conduzia numa autoestrada. Se alguma coisa lhe acontecesse, o auxílio dependia apenas de uma chamada telefónica - desde que, obviamente, tivesse rede.
Conservou o mesmo número de telemóvel. Quando regressou a casa, depois de efetuar a compra, ligou imediatamente o aparelho ao computador para o configurar. Quando acabou de mudar de roupa, lavar os dentes e aplicar um pouco de maquilhagem, o novo telemóvel estava totalmente operacional e levou-o consigo. ;
O horário das visitas no hospital terminaria dentro de noventa minutos. Para evitar o trânsito mais intenso no seu caminho para lá, Jordan enfiou por tantas ruas transversais quanto pôde. Infelizmente, muitos outros automobilistas tiveram a mesma ideia.
Deixou o carro num lugar de estacionamento da garagem subterrânea do hospital adjacente à entrada para a sala de urgências. Achava-se bem iluminada e havia gente a entrar e a sair. A entrada para ambulâncias ficava junto das portas automáticas.
No exterior, em frente da entrada, encontrava-se sentada uma enfermeira, a comer uma tablete de chocolate, o que levou Jordan a lembrar-se do famoso bolo de chocolate de Jaffee. Ainda não lhe
269
havia telefonado. Há quanto tempo estava ele à espera de que o fizesse? Tirou o telemóvel da mala e verificou que tinha rede. Talvez fosse melhor fazê-lo mais tarde. Se Jaffee tivesse uma quantidade de perguntas a fazer-lhe acerca do seu computador, a chamada iria prolongar-se por muito tempo e o horário de visitas estava prestes a chegar ao fim. Jordan não podia deixar de ir ver Laurant. Mesmo assim, prometeu a si própria que, mal saísse do hospital, telefonaria a Jaffee.
Ao entrar no quarto particular de Laurant, no quinto andar, Jordan foi surpreendida por ver reunida uma pequena multidão. O seu pai acabara de chegar e estava a depositar um beijo na face de Laurant, sua nora. Nick também se encontrava ali, estirado numa poltrona e meio adormecido.
E havia ainda Noah, encostado à janela, à espera de falar com o juiz Buchanan, que acabara de se virar para ele. Noah tinha os braços cruzados e parecia perfeitamente descontraído. Jordan perguntara a si própria como se sentiria, quando voltasse a vê-lo e aconteceu exatamente tal como havia imaginado: uma dor pungente no coração.
Embora aliviado por vê-la, Noah enraiveceu-se. Por onde diabo tinha ela andado? Nick dissera-lhe que Jordan vinha a caminho do hospital, mas ela tinha levado imenso tempo a lá chegar. Teria feito um desvio pelo New Hampshire?
A espera havia sido agonizante. Telefonara-lhe para casa, ouvindo apenas o atendedor de chamadas. Se Jordan dispusesse de um maldito telemóvel, havia a possibilidade de a apanhar, enquanto ela vinha a caminho e ficaria a saber se estava a salvo. Era o facto de não saber que estava a consumi-lo por dentro.
Jordan abraçou o pai e acariciou a mão de Laurant. Uma vez que Nick parecia estar a dormir, não fez o mesmo com ele. Sem saber ao certo o que ia dizer a Noah, Jordan encarou-o finalmente e esboçou um sorriso.
- Olá.
Não era uma saudação muito imaginativa, mas foi tudo o que lhe veio à cabeça. "É bom voltar a ver-te" teria sido outra opção, mas graças a Deus não havia proferido essas palavras.
Noah endireitou o corpo.
- Temos de conversar.
270
A sua saudação também não fora nada calorosa. Parecia falar como um sargento que se dirige a um recruta. Pegando-lhe na mão, Noah encaminhou-se para a porta.
- Volto já - disse ela aos outros, por cima do ombro.
Noah puxou-a até meio do corredor e só depois parou, fitando-a.
- Ouve...
- Sim? - Jordan falou em voz tão baixa como ele.
- Estás bem?
Jordan não soube que responder. Dizer a verdade estava fora de questão. Perguntou a si própria como reagiria Noah, se ela lhe revelasse que não, que não estava nada bem, que se sentia desfeita por causa dele.
- Ora, já sabes como as coisas são... - disse, para ganhar tempo.
Noah franziu a testa e ficou à espera.
- O que me querias dizer? - perguntou Jordan.
- Falei com o Chaddick.
De súbito, Jordan esqueceu-se do acanhamento que sentira na presença de Noah.
- Também eu. Imagina! Ficaste tão espantado como eu?
- Bom, fiquei surpreendido - declarou ele.
- Aquela bruxa! - exclamou Jordan, indignada.
- O quê?
- Aquela maldita bruxa da Haden! E no eBay, ainda por cima. Como podia pensar que não seria apanhada?
- Jordan, de que estás tu a falar?
- Do meu computador. A Maggie Haden estava a tentar vendê-lo no eBay.
Noah baixou a cabeça.
- Doçura, tens de concentrar-te no mais importante. O Chaddick não te disse? A morte do J.D. Dickey foi provocada. Foi um homicídio.
- Sim, já sei. E tens razão. É isso o mais importante. Pensei bastante no assunto, mas pareço sempre chegar a mais perguntas do que respostas. Quem julgas tu que está por detrás disso?
- Não sei - confessou Noah. - Graças à lista do J.D. o que não falta são suspeitos. No entanto, quero dizer-te uma coisa: não vou deixar de me preocupar com a tua segurança até este
271
caso estar definitivamente encerrado e o assassino se encontrar atrás das grades.
- Serenity fica muito longe daqui, Noah. Não precisas de preocupar-te comigo. Lá no Texas encontrava-me no sítio errado, no momento errado.
- Faz-me um favor, está bem? - replicou Noah. - Tem cuidado. Está bem?
- Sim, está bem.
- E arranja um maldito telemóvel.
A que propósito vinha aquilo?
- És um querido - sussurrou Jordan, voltando atrás dele para o quarto de Laurant.
O pai estava a contar a Nick e a Laurant uma história divertida acerca de uma das suas "sombras", nome que ele dera ao contingente de guarda-costas com que andara durante os últimos meses. Jordan ficou feliz por ver o pai de novo a rir-se. Os vincos do seu rosto haviam diminuído e dava a impressão de que um enorme peso lhe fora tirado de cima dos ombros.
Quando Nick levantou a questão da falha de segurança em Nathans Bay, o juiz desvalorizou-a, louvando os agentes pela sua dedicação e profissionalismo. Admitiu, contudo, que ficara satisfeito por se ver livre deles.
A conversa foi interrompida quando o médico de Laurant apareceu, no decurso da ronda da tarde pelos seus doentes. Todos os que se encontravam no quarto ficaram contentes quando o ouviram dizer que estava muito satisfeito com os resultados da medicação e dos exames. As contrações de Laurant haviam cessado. Se nada de anormal ocorresse durante a noite, ela poderia regressar a casa já na manhã seguinte. Depois de prometer ir a casa deles no dia seguinte, para ajudar a tomar conta de Sam, Jordan partiu, poucos minutos antes de terminar a hora das visitas.
Noah seguiu-a até ao corredor, gritando-lhe:
- Espera por mim! vou acompanhar-te até ao carro.
- Tenho de fazer um telefonema que já devia ter feito - declarou Jordan, puxando do telemóvel. Ergueu-o e acrescentou: - Como podes ver, já comprei um "maldito telemóvel".
Noah sorriu.
- Ótimo. Faz lá a tua chamada, mas espera por mim lá em baixo, na entrada para as urgências.
272
- Combinado - disse ela.
- O teu pai também vai sair, e eu descerei com ele - acrescentou Noah.
Jordan entrou no elevador, voltou-se e Noah ficou a ver a porta fechar-se, interpondo-se entre eles.
Lá fora, Paul Pruitt esperava pacientemente por Jordan. Afundado no assento, em frente do volante, certo de que ninguém podia aperceber-se da sua presença, considerou ter escolhido o local ideal. O seu carro de aluguer encontrava-se bem posicionado entre dois outros carros. Arrumara-o em marcha-atrás para assegurar uma fuga rápida.
Não iria demorar muito tempo. No assento ao seu lado, pronta a disparar, encontrava-se a pistola.
Havia passado todo o dia à espera. Durante grande parte da tarde, estacionara no fundo da rua onde estava situado o apartamento de Jordan. Antes disso, tinha identificado o carro dela, parado em frente do edifício onde morava, por isso ficara a saber que ela se achava em casa. O seu plano era esperar que ela saísse de casa. Então, Pruitt forçaria a entrada no apartamento para se apossar do que pretendia. Não se importava com o tempo de espera. Tanto podia esperar uma hora como doze. Para ele era coisa que não tinha importância.
Havia delineado a sua estratégia com todo o cuidado. Uma vez dentro do apartamento de Jordan, apoderar-se-ia de todas as fotocópias que ela despachara nos correios de Serenity. Para esse efeito, trouxera consigo um monte de grandes caixas de cartão. Depois de apanhar todas as folhas, partiria, desaparecendo com ele todas as provas que podiam ser usadas contra Paul Pruitt.
Pensara em deixar o apartamento de pernas para o ar, a fim de dar a impressão de que se tratara de um mero assalto, mas acabara por perceber que tal plano era insensato. Por que razão iria um assaltante roubar folhas de uma pesquisa?
Que Jordan desse voltas à cabeça na tentativa de compreender porque haviam sido roubadas. Sem aquelas fotocópias, ela nunca descobriria. E Pruitt poderia gozar a sua nova e esplêndida vida.
Infelizmente, o seu plano sofrera um revés, quando Pruitt conseguira entrar no apartamento de Jordan. Atravessava a sala de estar,
273
quando o telefone tocara. O atendedor de chamadas entrara de imediato em funcionamento. O pai de Jordan estava a telefonar para dizer que se encontraria com ela no St. James Hospital e lhe lembrar que o quarto de Laurant era o nº 538.
Bom, pensara, ela ia a caminho do St. James Hospital. Não sabia quem era a tal Laurant, mas isso não tinha importância. Planeava estar já bem longe quando Jordan regressasse e descobrisse o roubo.
Tivera sorte ao reparar no bloco de notas em cima da mesa que havia ao centro da sala. Ao ver o que estava escrito nele, ficara sem pinga de sangue. Ali, a meio da folha, a pulsar como se fosse um letreiro luminoso, achava-se um número: 1284. E, em redor dele, havia uma quantidade de pontos de interrogação.
Ela andava perto... perto demais. Arrancara a folha do bloco e ficara a contemplá-la, com o cérebro a trabalhar desalmadamente. Mais uma vez, tudo se alterara. Mas, também, uma vez mais, sabia o que tinha de ser feito.
O pai dela... sim, o seu pai, o juiz Buchanan, estava no hospital. Era uma oportunidade única. Paul Pruitt havia feito pesquisas suficientes acerca de Jordan Buchanan para ficar a saber quem era o pai dela, e de imediato reconhecera o nome, quando o ouvira no noticiário. Era impossível não ficar a saber. Os media andavam a saturar as ondas hertzianas e não só com informações a respeito do veredicto proferido no processo judicial do momento e do juiz que presidira à audiência. Os repórteres também haviam referido as ameaças de morte que o juiz tinha recebido. De modo que, se Pruitt o programasse com a necessária precisão, poderia fazer crer que o alvo fora o juiz e não a sua filha Jordan.
E ali estava ele, sentado no carro, num parque exterior, com excelente vista para as portas do hospital. Se a sorte o bafejasse, a qualquer momento o juiz ia sair por uma delas, com a filha a seu lado.
De súbito, Paul Pruitt endireitou-se no assento. Seria ela? Sim... Era Jordan Buchanan que vinha a sair da porta.
Pruitt estendeu o braço e pegou na pistola, à espera do momento próprio.
Depois de passar pela porta das urgências para entrar no parque de estacionamento subterrâneo, Jordan pegou no telemóvel
274
e ligou para o serviço de informações, a fim de saber o número de Jaffee. Consultou o relógio, subtraiu uma hora e ficou certa de que Jaffee devia estar no restaurante. l Sabia que o assistente podia fazer a ligação, mas desejava registar o número no telefone para o caso de pretender telefonar de novo a Jaffee. Remexeu a mala, à procura de um pedaço de papel e de uma caneta. Entalando o telemóvel entre o ombro e a orelha, esperou, com a caneta apoiada no papel, que lhe fosse dito o número. Havia dois bancos, um de cada lado do pilar de cimento. Encontravam-se ambos vazios. Encaminhou-se para o que ficava mais longe da entrada. As luzes fluorescentes por cima da porta corrediça da entrada incomodavam-lhe os olhos, e um dos tubos estava a piscar e emitia um ligeiro zunido.
Quando o assistente lhe dizia o número de telefone de Jaffee, saíram dois enfermeiros a falar em voz alta com o condutor de uma ambulância, o que obrigou Jordan a pedir ao assistente que repetisse o número. Apressou-se a anotá-lo.
Sentou-se no banco, enquanto esperava que atendessem a chamada.
- Estou? - disse a voz de Angela.
Jordan tapou a outra orelha com a mão para evitar o ruído em seu redor.
- Olá, Angela.
- Jordan? Olá, Jordan! Como está? O Jaffee vai ficar contente por falar consigo. Anda muito preocupado com a Dora.
- É hora de grande movimento no restaurante? Posso telefonar mais tarde.
- Estamos fechados. Hoje, praticámos um horário reduzido. O Jaffee preparou um bolo de chocolate com o triplo do tamanho e foi levá-lo à casa do Trumbo, em Bourbon. Suzanne, a mulher B do Trumbo, recebe hoje a reunião mensal do clube de brídege.
- Tenho pena de não poder falar com o Jaffee. Diga-lhe, por favor, que lhe telefonarei amanhã.
- Oh, não, não espere até amanhã. Pode encontrá-lo na casa dos Trumbo. A mulher do Jaffee é um dos membros do clube de brídege, por isso o Jaffee levou-a consigo a Bourbon e vai ficar à espera para a trazer de regresso a casa. É o que acontece todos os meses. Leva com ele um grande bolo de chocolate que a Suzanne serve a todos e uma garrafa de uísque irlandês Baileys para o Dave o adicionar ao café. Uma vez que tem de guiar na viagem de regresso,
275
o Jaffee diz sempre que bebe o seu café sem lhe juntar uísque. Deve estar sentado na cozinha do Dave Trumbo, por isso pode telefonar-lhe para casa dos Trumbo. Sei que ele ficará desiludido se não falar consigo esta noite.
Jordan prometeu telefonar de imediato a Jaffee. Ia desligar, mas Angela não estava disposta a despedir-se tão cedo.
- Ouviu o que andam a dizer? Que o J.D. foi assassinado?
- Sim, já sei - replicou Jordan.
- Não posso dizer que sinta pena dele. No entanto, as pessoas começaram a agir de forma estranha, quando o souberam. Habitualmente, quando notícias destas correm na cidade, o restaurante fica a abarrotar. Toda a gente quer aqui vir para tagarelar sobre o caso... tal como fizeram quando foram encontrados os corpos daquele professor e do Lloyd. Lembra-se? O restaurante ficou cheio de gente. No entanto, ninguém apareceu para falar da morte do J.D. Dá a impressão de que ficaram escondidos dentro de casa.
- Tenho a certeza de que devem estar assustados. Até que se prenda alguém...
- Compreendo o que quer dizer. Até agora, tínhamos um assassino maluco à solta na cidade e, claro, toda a gente andava em pânico. No entanto, agora há algo mais.
- Não entendo o que quer dizer...
- De repente, ninguém me olha de frente. É como se todos se sentissem embaraçados ou coisa semelhante. Fui ao supermercado, comprar diversas coisas para o restaurante, e vi a Charlene a fazer compras. Dirigi-me a ela para a cumprimentar, pois tinha notado que me havia visto, mas que fez ela? Deixou o carrinho cheio de artigos no meio do corredor e saiu disparada do supermercado. Ia com a cara toda vermelha. Depois, falei com Mistress Scott. Acontecera-lhe coisa idêntica na loja de ferragens, mas com ela foi o Kyle Heffermint que não a quis encarar e se sumiu do estabelecimento. Gostava de saber o que está a acontecer - suspirou Angela.
O que estava a acontecer eram os vídeos. Era evidente que Charlene e os outros constantes da lista não tinham a certeza de que as outras pessoas da cidade não tivessem ouvido falar das suas aventuras, deduziu Jordan. Não restavam dúvidas de que deviam ter entrado em pânico.
276
- Tudo isso parece muito estranho - disse.
- Penso o mesmo - replicou Angela. - Agora, desligue e telefone ao Jaffee... Ah antes que o faça: pergunto a mim própria...
- O quê?
- Estava a pensar em si e no Noah e no belo casal que ambos formam. Pergunto a mim própria se decidiu viver com ele.
A pergunta apanhou Jordan inteiramente desprevenida.
- Não sei...
- O Noah é um bom partido. Você, porém, também é. O Jaffee disse-me ter a certeza de já ter visto a sua fotografia numa dessas revistas de vida ao ar livre.
Destinar-se-ia aquilo a ser um elogio? Teria Jaffee julgado tê-la visto na capa da Revista dos Lenhadorest? Jordan riu-se.
- Não terá sido porventura na Glamour!
Estava a brincar, mas Angela falava muito a sério.
- Você é do género Ralph Lauren, não sabe?
- Obrigada, mas...
Angela interrompeu-a.
- O que eu digo é verdade. Só lhe peço, Jordan, que não cometa o mesmo disparate que eu cometi. Não fique à espera de um homem durante dezoito anos. E se ele não percebe o que tem à frente, nunca irá perceber.
com aquelas palavras, Angela finalmente desligou. Jordan procurou outro pedaço de papel dentro da sua mala e voltou a ligar para as Informações. Remoeu os comentários de Angela, enquanto ficou a aguardar que o assistente lhe desse o número de telefone de Dave Trumbo.
Por trás dela, a porta de vidro abriu-se, dando passagem a uma mulher que trazia uma cesta com flores murchas. Jordan olhou em redor e descobriu o pai a sair do elevador, no fundo do corredor. Noah vinha atrás dele.
- Encontrei dois números para Dave Trumbo - disse por fim o assistente. - Um em nome da Dave Trumbo Motors no nº 9818 da Frontage Road, e o outro em nome de Dave Trumbo, no nº 1284 da Royal Street.
- Quero o número da residência... Espere! Pode repetir, por favor, essa segunda morada, na Royal Street? Disse 1284?
- Exatamente. O número 1284 da Royal Street. O número de telefone é...
277
Jordan ficou tão atónita que deixou cair o telemóvel no regaço. Dave Trumbo, vendedor de automóveis, vivia no nº 1284 da Royal Street.
"Espera até o Noah saber disto", pensou Jordan, enfiando o telemóvel na mala, pondo-se em pé de um salto. Ouviu-se um estrondo de um escape, forte e penetrante. Um bocado de cimento do pilar saltou. Jordan desviou-se de modo a escapar aos fragmentos. O escape do carro rugiu de novo e Jordan sentiu um embate terrível, vindo de trás. Pneus chiaram e Jordan viu, como através de uma névoa, o carro passar por ela, em alta velocidade. Pelo canto do olho, teve a visão fugidia do condutor, enquanto as suas pernas se dobravam.
Tudo acontecia em câmara lenta: Noah a empurrar o pai, a correr para ela, aos berros, enquanto tirava a pistola do coldre.
Os olhos de Jordan fecharam-se quando o seu corpo bateu no pavimento.
278
CAPÍTULO TRINTA E OITO

O hospital fora encerrado. Ninguém podia sair ou entrar, até ser levantado o estado de alerta. Havia polícias a impedir toda e qualquer entrada e as urgências tinham sido temporariamente desviadas para outra unidade hospitalar. A polícia procedia também a uma intensa busca na garagem e em todos os andares para se assegurar de que não havia outros atiradores escondidos.
A tentativa de homicídio de um juiz federal constituía notícia de grande relevo e havia equipas de televisão postadas em redor do hospital. Todas elas competiam entre si para obter entrevistas com alguém que pudesse contar o que havia acontecido.
Constava que a filha do juiz Buchanan se encontrava em estado crítico. Um dos repórteres especulou em frente das câmaras que se Jordan não se encontrasse a poucos metros do pessoal de emergência teria morrido, esvaída em sangue.
Aquilo era algo que a família Buchanan não tinha qualquer necessidade de ouvir. Os seus membros encontravam-se reunidos na sala de espera das cirurgias, falando em voz baixa e andando de um lado para o outro, enquanto esperavam que Jordan saísse do bloco operatório.
Dois polícias montavam guarda à porta e haviam deixado bem claro que não iam perder de vista o juiz Buchanan até serem substituídos pelos seus guarda-costas. Dois destes vinham já a caminho do hospital.
O juiz Buchanan tinha envelhecido vinte anos desde que vira a filha cair no chão. Noah atirara-o contra uma parede para o afastar da linha de tiro. O juiz ouvira-o gritar "Para o chão! Atire-se para o chão!", enquanto corria na direção de Jordan. Nunca
279
iria esquecer a expressão de Noah, quando ele se ajoelhara ao lado de Jordan. Parecia arrasado.
A mãe de Jordan estava sentada ao lado do marido, de mão apertada na dele. Corriam-lhe lágrimas pelo rosto.
- Um de nós tem de telefonar à Sidney - disse ela. - Não quero que ela saiba pelos noticiários o que aconteceu. Já alguém telefonou ao Alec? Ao Dylan? Onde está o padre Tom?
- Vai a caminho de Holy Oaks - anunciou-lhe o juiz.
- É preciso ligar-lhe. Ele vai querer saber o que se passou. E precisamos aqui de um padre.
- Ela não vai morrer - gritou, zangado, Zachary, o filho mais novo do juiz.
Noah afastara-se dos membros da família. Não queria falar com ninguém. Agora, era-lhe impossível falar. De pé, em frente da janela mais distanciada dos outros, olhava sem ver para a noite que caíra. Sentia dificuldade em respirar e era-lhe impossível pensar. Estava num estado de ira contida. Sangue... tanto sangue! Sentira Jordan escorregar-lhe entre as mãos.
Aquela espera era horrenda. Já havia sido ferido e lembrava-se da dor tremenda que sentira, mas essa dor não era nada comparável à que estava agora a experimentar. Se a perdesse... Oh! Deus do céu!.. Não podia perdê-la... Não poderia viver sem ela...
Nick descera de elevador até ao quarto de Laurant para lhe dizer o que havia acontecido. A mulher estava a dormir profundamente, por isso resolvera não a acordar. Antes de voltar a sair do quarto, desligou a ficha do televisor e disse à enfermeira de serviço que não mencionasse a cena de tiros à paciente. Bastaria saber no dia seguinte o que acontecera.
Quando Nick regressou à sala de espera do bloco operatório, deparou com Noah em pé e sozinho. Foi ter com ele.
E a espera continuou.
Passados vinte minutos, o cirurgião, Dr. Emmett, entrou na sala. Trazia um sorriso nos lábios e estava a despir a bata.
- A Jordan está a portar-se muito bem - anunciou. - A bala atravessou-lhe a caixa torácica e ela perdeu sangue, mas estou esperançado numa rápida recuperação.
O juiz apertou a mão do médico e agradeceu-lhe efusivamente.
- Quando poderemos vê-la? - perguntou.
- Agora encontra-se a recuperar e está já a despertar da anestesia. Permito que um de vós a vá ver, mas só por um minuto.
280
Ela precisa de repouso. - O cirurgião encaminhou-se para a porta e acrescentou: - Se alguém quiser vir comigo...
O juiz não se mexeu, mas disse:
- Noah?
- Diga, senhor.
- Se ela estiver acordada, dá-lhe um beijo da nossa parte.
Nick teve de dar um empurrão a Noah para o pôr em movimento. A notícia de que Jordan iria recuperar deixara Noah sem forças, devido ao alívio que sentira. Seguiu atrás do médico, ao longo do corredor.
- Um minuto apenas - recomendou o Dr. Emmett. - Quero que ela durma.
Jordan era a única paciente no recobro. Uma enfermeira estava a inspecionar o saco do soro. Quando viu Noah, afastou-se para o deixar passar.
Jordan tinha os olhos fechados.
- Ela tem dores? - perguntou.
- Não - respondeu a enfermeira. - Há momentos em que recobra a consciência.
Noah permaneceu de pé, ao lado da cama, contentando-se em vê-la dormir. Pôs a mão em cima da de Jordan e pôde sentir o seu calor. A cor estava a regressar-lhe à face.
Inclinou-se, beijou-a na testa e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Amo-te, Jordan. Ouviste? Amo-te e nunca te deixarei.
- Noah... - A voz de Jordan não era mais do que um murmúrio rouco. Quando disse o nome dele, não abriu os olhos.
Noah não tinha a certeza de ter ouvido bem o que ela dissera, por isso tentou sossegá-la.
- Amo-te. Vais ficar bem. A operação já terminou e agora estás a recuperar. Precisas de repouso. Dorme, doçura.
Jordan tentou erguer a mão e as suas sobrancelhas enrugaram-se, como se tentasse franzi-las.
- Agora dorme - sussurrou ele de novo, acariciando-lhe delicadamente o cabelo.
- Ele disparou contra mim.
Se bem que fraca, a sua voz era surpreendentemente clara.
- Sim, dispararam contra ti, mas vais ficar boa.
Jordan lutou para abrir os olhos, mas as pálpebras estavam demasiado pesadas.
281
- Eu vi-o.
Voltou a ficar inerte. Noah esperou. Ela tinha-o visto? Vira o homem que a alvejara? Saberia o que estava a dizer? Jordan voltou a murmurar:
- Vi-o.
A sua voz quase se extinguiu. Noah inclinou-se sobre ela e colocou o ouvido perto da sua boca. As palavras saíram débeis, mas lentas e cadenciadas.
- Ele tentou matar-me. Dave... Trumbo.
Depois, voltou a cair num sono profundo.
282
CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Teria Jordan plena consciência do que dissera? Ou estaria a delirar por efeito das drogas que ainda atuavam no seu organismo? Noah ficou à espera ao lado da cama. De cada vez que ela despertava, Noah pedia-lhe que repetisse quem havia visto.
A resposta foi sempre a mesma: Dave Trumbo.
Agora tinha os olhos abertos e Noah pôde ver que sentia dores.
- Tem de a deixar dormir - advertiu a enfermeira. - Já está aqui há quinze minutos. É demasiado tempo.
- Ela está a sofrer - disse Noah, angustiado.
- Eu sei. Ia precisamente dar-lhe qualquer coisa. É importante mantê-la sem dores. Irá dormir até amanhã. Por essa altura, já terá sido transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos.
A enfermeira injetou morfina no soro. Noah esperou até ela acabar de fazê-lo, para perguntar:
- Será que ela teve consciência do que disse?
- Duvido - respondeu a enfermeira. - O que a maioria dos doentes diz não faz qualquer sentido. E amanhã não vai lembrar-se de nada.
Noah voltou a beijar Jordan e saiu para o corredor. Nick achava-se encostado à parede, à sua espera.
- Não sei o que deva fazer - disse Noah. - Não consigo pensar...
- A Jordan vai ficar boa. Respira fundo, Noah. Vai correr tudo bem.
Nick não percebera.
- Sim, sei que vai ficar boa, mas agora o problema não é esse. Ela disse-me uma coisa e não sei se deva acreditar nela ou não.
283
- Que te disse ela?
- Que viu o homem que a alvejou - replicou Noah. - Ela está bastante fraca, mas repetiu-o por várias vezes, e sempre da mesma maneira. A voz estava a ficar mais nítida, e ela parecia mais desperta. Digo-te: acredito que ela viu o filho da mãe. Ouvi o carro a chiar ao sair do parque de estacionamento, mas cheguei tarde demais para o ver.
- Não sei se podes acreditar em alguma coisa que ela tenha dito. Está sob o efeito da anestesia e dos medicamentos...
Noah passou os dedos pelo cabelo, muito agitado.
- A enfermeira contou-me que ouve os doentes dizerem coisas disparatadas, mas mesmo assim...
- Tens de esperar até que a Jordan desperte realmente. Está com tantas dores que vão ter de a manter sob sedativos durante vinte e quatro horas, pelo menos. Vai passar-se algum tempo até ficar lúcida.
Noah abanou a cabeça.
- Ela viu-o e disse-me quem era: Dave Trumbo. É o sujeito que vende carros em Bourbon. Um tipo importante tanto em Serenity como nas redondezas. Não creio que o tenhas conhecido.
- Porque é que um vendedor de carros viria até Boston, tão longe, para matar a Jordan?
- Não sei, mas aposto que não o faria a menos que julgasse que ela poderia relacioná-lo com os três homicídios de Serenity. Não vou esperar até ela ficar livre dos sedativos.
- Não podes ainda considerá-lo suspeito. Imagina que não é mais do que uma alucinação da Jordan. Tens de obter mais dados, antes de correr atrás dele.
Noah meneou a cabeça.
- É o Trumbo.
- É fácil sabê-lo. Telefona-lhe para casa. Se ele responder, ficarás a saber que não passa de um delírio da Jordan.
Nick obteve o número de telefone através das Informações. Teve o cuidado de bloquear a identificação da chamada e entregou o telemóvel a Noah.
Foi a mulher de Trumbo quem atendeu.
Noah adotou um tom de voz adocicado.
- Boa noite. Daqui fala o Bob. Peço desculpa por telefonar tão tarde.
284
- Oh! não é tarde - disse a mulher.
- Posso falar com o Dave? Ele disse-me que lhe telefonasse, se tivesse algum problema com o carro. Por mais que faça, não consigo fazer parar o alarme.
- Lamento, Bob, mas o Dave não está. Encontra-se em Atlanta, a participar numa grande exposição de automóveis. Pode dar-me o seu número de telefone? Vou entrar em contacto com o meu marido para lhe pedir que ele lhe telefone.
- É muito urgente. Não sei se consegue ouvir, mas o alarme do carro está aos berros lá fora, a acordar toda a vizinhança. Sabe onde é que ele está hospedado, em Atlanta?
- Não, não sei. Que pena! Ele telefonou-me há minutos. No entanto, estava com tanta pressa que não deu para termos uma grande conversa. Por isso, não fiquei a saber o nome do hotel. O meu marido pensava regressar a casa amanhã, mas disse-me que havia surgido qualquer coisa e que iria ficar mais tempo em Atlanta. E se falasse ao encarregado do serviço pós-venda? Tenho a certeza de que ficará encantado por poder ajudá-lo. Posso dar-lhe o número dele.
- Fico-lhe muito grato, mas creio que posso eu mesmo tratar do caso. Espero que o Dave esteja a passar bem em Atlanta. Boa noite.
Noah desligou, olhou para Nick e exclamou:
- Aquele filho da mãe está aqui. A mulher disse que está numa exposição de carros em Atlanta, mas ele está aqui, Nick.
Caminharam pelo corredor, em direção à sala de espera.
- Que sabes acerca do Dave Trumbo? - perguntou Nick.
- É um vendedor de automóveis. E é tudo quanto sei dele, à exceção de duas outras coisas: não está em casa e não disse à mulher onde está hospedado em Atlanta.
- Precisamos de mais do que isso para ir atrás dele. Pode estar de férias com a amante ou até a participar na exposição. Vou arranjar alguns agentes para o procurarem em Atlanta. Podem ir à exposição assim que ela abra, amanhã de manhã.
Noah assentiu com a cabeça. Nick acalmara-o.
- Está bem - disse. - Temos de ver o que conseguimos apurar acerca desse tal Trumbo. Telefona ao Chaddick e conta-lhe o que aconteceu. Vê se ele descobre algumas pistas para localizar o sujeito. E diz-lhe que arranje maneira... uma maneira discreta... de obter as impressões digitais do Trumbo.
285
- Achas que estão registadas no sistema?
- É isso que temos de descobrir. Quero conhecer tudo o que se sabe acerca dele.
Nick assentiu.
- vou inserir o nome dele no sistema e ver o que descubro no computador - disse Nick. - com uma chamada, ficaremos a saber os seus antecedentes.
- O teu pai ainda aqui está? - perguntou Noah.
- Está, sim. Porquê?
- Quero pôr a Jordan sob vigilância vinte e quatro horas por dia, e também que continue a constar que se mantém em estado crítico. O teu pai tem de ficar a saber que o plano de ação passa por ela permanecer em estado crítico.
- Muito bem. E que mais?
- É preciso encontrar o Trumbo. Se a Jordan sabe alguma coisa que o liga aos homicídios, ele vai tentar matá-la novamente.
286
CAPÍTULO QUARENTA

Nick havia ocupado uma das salas de espera do hospital e transformara-a em posto de comando para todos os favores possíveis que estava a solicitar. Tirou Pete Morganstern da cama para que este efetuasse alguns telefonemas, por saber que o eminente psiquiatra podia obter informações muito mais depressa do que ele ou Noah.
Noah também se achava ao telefone. Ligara para o Texas e Chaddick não o desiludira. Noah não sabia como o agente conseguira, mas entrara no escritório de Trumbo e trouxera consigo diversos objetos que estava certo de terem as impressões digitais de Trumbo. Um desses objetos era uma chávena com a dedicatória
AO MELHOR PAI DO MUNDO.
Chaddick fez o ponto da situação a Noah, enquanto se dirigia para o laboratório.
- Devo obter algum resultado dentro de duas horas... Espero bem que dentro de duas horas - acentuou. - Como está a Jordan?
- Bem. A dormir - informou-o Noah.
- A situação aqui está em polvorosa - comentou Chaddick.
- O Street vai a caminho da sede. Fará uma pesquisa no computador acerca do Trumbo e logo veremos o que consegue encontrar.
Havia agora pelo menos quatro agentes a pesquisar os volumosos ficheiros informáticos do FBI, mas foi o Dr. Morganstern quem primeiro revelou a Noah a estranha notícia.
- A vida do Dave Trumbo começou há quinze anos. Segundo os registos, ele não existia anteriormente. Novo número da Segurança Social, novo nome, tudo novo.
- Terá vindo do Programa de Proteção de Testemunhas?
287
- Talvez - concordou Morganstern. - Estão à espera de saber mais. As suas impressões digitais permitiriam certamente poupar-nos muito tempo. Há alguma possibilidade...?
Noah contou-lhe o que Chaddick havia feito.
- Ele telefona assim que souber alguma coisa. Aposto que as impressões digitais do sujeito se encontram registadas no nosso sistema.
Noah foi ter com Nick e explicou-lhe o que Morganstern tinha descoberto. Nick não ficou surpreendido. Recebera de outra fonte a mesma informação, havia pouco tempo.
Com intervalos de poucos minutos, Noah ia ver Jordan para se assegurar de que ela estava a dormir profundamente. Familiarizara-se de tal maneira com os aparelhos de monitorização que já não precisava de perguntar como estava o seu corpo a reagir ao traumatismo. Mantinha estáveis a respiração e a tensão arterial. O bater ritmado do coração de Jordan reconfortava-o.
Não pregou olho durante toda a noite. Quando voltou a visitar Jordan, por volta das sete horas da manhã, verificou que estavam a transferi-la para um quarto particular.
- É o primeiro passo depois da Unidade de Cuidados Intensivos - anunciou-lhe a enfermeira. - Ela está a reagir muito bem. Depois de a instalarmos no quarto, pode ficar sentado a seu lado.
Eram excelentes notícias. Ia a sair do quarto quando a enfermeira o chamou.
- Desculpe... Agente Clayborne?
- Sim?
- O estado da doente deve continuar a ser referido como crítico?
- Exatamente.
A enfermeira pareceu ficar preocupada.
- Receio que a notícia se espalhe. Há sempre alguém que transmite a informação aos media. Acontece sempre.
Noah concordou.
- Estou só a procurar conseguir mais algum tempo.
Estava ansioso por averiguar quem era Trumbo, antes de a notícia chegar aos media.
Nick havia mudado de opinião desde a noite anterior. Agora queria divulgar por todos os meios o rosto e o nome de Trumbo.
288
Noah conteve-o.
- Com toda a certeza, mudou de identidade há quinze anos. Pode voltar a fazê-lo - fez notar. - E ficaríamos sem saber se e quando virá de novo atrás da Jordan. Temos de aguardar, até o Chaddick ter mais notícias. Sabemos ambos que o tipo anda a esconder-se por qualquer motivo, por isso as impressões digitais hão de aparecer em algum arquivo.
Noah andou de um lado para o outro, durante algum tempo. Acabou por entrar no novo quarto, branco e estilizado, de Jordan. Ficou aos pés da cama, a observá-la, de mãos enfiadas nos bolsos.
Nick apareceu, passado um minuto.
- Homem, estás com pior aspeto do que ela - murmurou. Notaram ambos que Jordan sorrira. Só durou um instante, mas foi um sorriso.
- Ouviste-nos, Jordan? - perguntou Noah. Ela voltou a sorrir, tornando depois a adormecer. O juiz Buchanan encontrava-se à soleira da porta.
- Como está ela? - perguntou.
- Está bem - tranquilizou-o Noah.
- Vou sentar-me a seu lado durante algum tempo - declarou o juiz. com todo o cuidado para não fazer barulho, pegou numa cadeira e colocou-a junto da cama. - Vão descansar um pouco - ordenou a ambos, embora sabendo que nenhum deles iria fazê-lo. Nick voltou-se para sair do quarto, atrás de Noah, quando o juiz o chamou.
- Nicholas.
- Sim, pai.
O juiz levantou-se e saiu para o corredor a fim de não incomodar a filha.
- A tua mulher quer falar contigo.
- Já acordou? - perguntou Nick, surpreendido. Apressou-se a olhar para o relógio. - Já passa das sete? Julguei que era mais cedo... Perdi praticamente quatro horas. A Laurant sabe do que aconteceu à Jordan?
- Sabe, sim. Estava a ver as notícias quando eu e a tua mãe entrámos no quarto.
- Mas eu desliguei o fio do televisor...
- Ao que parece, alguém voltou a ligá-lo. A tua mãe está sentada a seu lado, e ambas querem uma informação atualizada acerca
289
do estado da Jordan. Dentro em pouco, vou trocar de lugar com a tua mãe. Ela também quer ficar um pouco ao pé da Jordan.
Nick dirigiu-se às escadas para ir ter com Laurant, enquanto Noah se encaminhava para a sala de espera, a fim de telefonar a Chaddick. Fizera uma chamada para ele de meia em meia hora. O mais provável era estar a pôr-lhe a cabeça em água, mas Noah não se importava com isso. Deixaria de o atormentar quando obtivesse a informação de que precisava.
O Dr. Morganstern apareceu à porta da sala. Noah levou o dedo indicador aos lábios para lhe pedir que esperasse até Chaddick atender a chamada.
- Pronto, já sei o nome dele - anunciou Chaddick, ofegante.
- Quem é ele?
- Paul Newton Pruitt.
Noah repetiu o nome para que Morganstern o ouvisse.
- Já ouviste falar dele? - inquiriu Chaddick.
- Não. Continua - ordenou.
- Para começar, está morto há quinze anos. Sim, eu sei, ele não está morto - apressou-se a acrescentar Chaddick. - Estou a dizer-te o que li. O Pruitt estava ligado a um gangue. Testemunhou contra outro membro do gangue, um tipo chamado Chernoff. Ray Chernoff. com certeza já ouviste falar do Chernoff. O depoimento do Pruitt valeu-lhe três condenações a prisão perpétua. O Pruitt permaneceria sob custódia cautelar, a fim de depor em dois outros julgamentos, sendo depois colocado no Programa de Proteção de Testemunhas.
- O que aconteceu? - perguntou Noah, enquanto esfregava a nuca para aliviar a tensão.
- O Pruitt desapareceu - continuou Chaddick. - Foi isso que aconteceu. Os agentes encarregados do caso descobriram sangue no seu apartamento. Bastante sangue e todo esse sangue era dele. Depois de uma demorada investigação, concluíram que fora assassinado por um dos associados do Chernoff. Também chegaram à conclusão de que nunca iriam encontrar o corpo.
- Ele fingiu a sua própria morte e começou nova vida.
- E, até agora, com assinalável êxito - acrescentou Chaddick.
- O julgamento do Chernoff foi muito badalado? - perguntou Noah.
290
- Claro que sim.
- Com muitas câmaras de televisão?
- Nem por isso, segundo me lembro. Tentaram manter o processo afastado dos media para proteção das testemunhas, mas já sabes como as coisas são. Porquê?
- A Jordan contou-me que o professor MacKenna se gabava de nunca esquecer uma cara. Quase que aposto que o professor viu o Pruitt e o reconheceu! - exclamou Noah.
- Os depósitos em dinheiro! O MacKenna estava a exercer chantagem sobre ele. Que raio! - murmurou Chaddick. - Parece que o J.D. fazia chantagem sobre metade da população de Serenity. Não consigo imaginar por que razão o professor o fazia, mas parece que também ele tinha uma atividade marginal bastante lucrativa.
Noah deixou-se cair no sofá e inclinou-se para a frente.
- É o que parece.
- Diz-me uma coisa: toda a gente vai andar atrás do sujeito. Vai ser assediado por uma multidão de agentes que querem participar neste caso. E se o gangue do Chernoff souber disto, também vai pôr-se à caça do Pruitt. Só espero que ainda não tenha saído de circulação.
- Não - replicou Noah. - Ele continua por aqui.
- Tens a certeza? - Chaddick não esperou por uma confirmação. - vou apanhar o próximo avião para Boston. Também eu quero participar neste caso. Eu falei com o Trumbo, quer dizer, com o Pruitt. Que raio, cheguei a apertar-lhe a mão!
- Estás a falar a sério? Vens até cá?
- Com certeza. Espera por mim, antes de o matares. Combinado?
Na verdade, tinha piada Chaddick julgar que Noah ia encontrar Pruitt e matá-lo. Mas, de facto, era precisamente isso que Noah tencionava fazer.
291
CAPÍTULO QUARENTA E UM

Teria conseguido ou não completar o trabalho? Jordan Buchanan iria morrer ou sobreviver? Por ironia, a vida de Pruitt também se achava em jogo. Se ela sobrevivesse, teria de voltar para concluir o trabalho, mas, se morresse, podia regressar à sua família e ao seu negócio.
Jordan Buchanan ainda se encontrava em estado crítico. Telefonara duas vezes para o hospital, durante a noite, a fim de obter informações atualizadas. No segundo telefonema, conseguira ligação à Unidade de Cuidados Intensivos, sendo informado por uma eficiente mas apressada enfermeira de que Jordan Buchanan não havia recobrado ainda a consciência.
Hospedara-se num motel medíocre perto do aeroporto, esperando pelo desenlace. Só conseguira dormir durante umas duas horas, mantendo-se em frente do televisor, sintonizado nos canais informativos. O primeiro noticiário da manhã do Canal 7 transmitira uma reportagem sobre o juiz Buchanan e a sua impressionante carreira como magistrado. Noutro canal regional vira a entrevista gravada a uma matrona de cabelo louro oxigenado e sobrancelhas pintadas que jurara ter assistido à cena de tiros. Mostrara-se muito animada, descrevendo o que havia sucedido. Ia a sair do hospital quando os disparos tinham começado. Insistira que, se tivesse saído um minuto mais tarde, teria sido ela a vítima, em vez da pobre filha do juiz federal. Contou ao entrevistador que ia a passar por trás de uma ambulância, em direção ao seu carro, quando ouvira o primeiro tiro.
O seu relato do tiroteio fora uma invenção. Proclamara ter visto dois homens a disparar contra o juiz, um deles debruçado da
292
janela do passageiro de um Chevrolet de último modelo. Quando o carro dobrara a esquina, tanto o condutor como o outro homem tinham disparado. Logisticamente, o que ela relatara era impossível. Se tivesse havido dois homens e ambos houvessem feito uso das suas armas, um deles teria estado a disparar contra os carros estacionados no parque.
O repórter que realizara a entrevista não se apercebera dessa incongruência. Com uma voz que exprimia falsa compaixão, dissera à mulher:
- Deve ter sido aterrador. Viu cair a filha do juiz Buchanan? Lembra-se de quantos foram os disparos? Viu os homens? E poderia identificá-los?
- Não - respondera a mulher.
Fora a única vez durante a entrevista em que se mostrara nervosa. Não, não conseguiria identificar nenhum dos homens. Tinham as caras tapadas e usavam capuzes.
E assim por diante. Quanto mais simpatia e interesse demonstrava o entrevistador, mais a história da mulher se empolava e ficava mais fabulosa. De forma patética, aproveitava ao máximo o seu momento de glória. Desejosa de agradar e de impressionar, sorria para a câmara e continuava a acrescentar pormenores ao seu relato.
A boa notícia para Pruitt era que todos os noticiários começavam da mesma maneira: a tentativa de assassínio de um juiz federal.
Era uma suposição automática e ninguém a punha em dúvida. Que mais podia ser? Tinha havido ameaças de morte contra o juiz. Claro que era ele o alvo a abater e a filha não passara de uma vítima inocente que se encontrava ali.
Pruitt, contudo, ainda precisava de destruir as fotocópias da pesquisa. Ia comprar uma trituradora de papel numa loja de equipamentos de escritório. Já percorrera a lista telefónica e encontrara diversas que se encontravam a pelo menos trinta quilómetros do hospital. Planeava regressar depois ao hotel e passar a tarde a destruir as folhas e a encher sacos de plástico com os restos da trituração. Quando acabasse, lançaria os sacos para o contentor do lixo que ficava nas traseiras do hotel e teria o problema resolvido.
Aquele estúpido homenzinho quase havia destruído a sua vida. Pruitt não sentira nem sombra de remorsos por o ter assassinado. O filho da mãe andava a fazer chantagem com ele e merecera morrer.
293
Era patente que o idiota não havia imaginado a que extremo Pruitt era capaz de ir para se proteger a si próprio.
"Como o destino é capaz de nos pregar partidas", pensou Pruitt. Fora o que acontecera. Alguém entrara na sala de exposição de carros para dar uma vista de olhos, enquanto o seu próprio automóvel se encontrava em reparação na oficina contígua. Vira então Pruitt - como explicara mais tarde, quando lhe telefonara com voz disfarçada - e reconhecera-o pela reportagem televisiva que vira aquando do julgamento de Chernoff. O homem gabara-se de nunca esquecer qualquer rosto e o de Pruitt era particularmente memorável. Durante o julgamento, Pruitt fora levado a uma sala de audiências para testemunhar contra o patriarca da família Chernoff. Tentara tapar a cabeça, enquanto entrava apressadamente no edifício, mas, não obstante a tentativa dos agentes para manter o seu rosto afastado dos media, as câmaras haviam conseguido alguns bons planos.
Ao testemunhar, revelando segredos da família, Pruitt infringira o código de honra, mas haviam-lhe prometido uma amnistia e a sua liberdade valia bem qualquer preço que por ela tivesse de pagar. Trabalhara como cobrador e executor para a família Chernoff e fornecera nomes ao promotor. Também declarara sob juramento que o seu patrão, Ray Chernoff, havia assassinado a própria mulher, Marie Chernoff. Os pormenores que Pruitt fornecera acerca do crime tinham sido tão circunstanciados que o júri acreditara nele. Quando esse crime fora acrescentado a todos os outros, Chernoff vira-se condenado a várias penas de prisão perpétua.
Grande parte do que Pruitt contara aos jurados era verdade. Fora bastante preciso a propósito dos homicídios ordenados pelo patrão, quando um "cliente" se recusava a colaborar. Só havia distorcido uns quantos factos importantes. Mentira ao dizer que ele próprio, Pruitt, nunca matara ninguém. E também mentira quando afirmara ter visto Ray esfaquear mortalmente a mulher. Na verdade, fora ele, Paul Pruitt, quem matara Marie Chernoff. Aproveitara a oportunidade e atribuíra o crime a Ray Chernoff.
Depois de proferido o veredicto, Ray tivera de ser retirado da sala, aos gritos, jurando que havia de vingar-se de Pruitt.
Matar Marie fora a coisa mais difícil que Pruitt jamais fizera, e ainda hoje pensava nela. Oh! como a amara.
294
Tinha sido muito mulherengo, antes de a haver encontrado numa festa de Natal. Mal pusera os olhos nela, ficara apaixonado. Deram início à sua relação naquela mesma noite. Em todos os encontros secretos ulteriores, dissera-lhe que a amaria para sempre.
Só que a doce Marie começara a mostrar-se consumida por um sentimento de culpa. Encontrava-se com ele e abria-lhe as pernas, mas logo a seguir vestia-se e ia à igreja acender uma vela pelo pecado de adultério que cometera. Passado algum tempo, já nem isso fora bastante. Dissera a Pruitt que queria pôr termo à relação e revelar o seu pecado ao marido e pedir o seu perdão. Pruitt lembrava-se de haver pegado na faca e de se encaminhar para ela. Não pretendia matá-la, apenas assustá-la um pouco, levando-a a entender que ambas as suas vidas teriam chegado ao fim, se ela confessasse tudo ao marido. Marie, todavia, ficara histérica e ele não conseguira conter-se. Chorara, enquanto a matava.
Justificara o seu ato dizendo a si próprio que não havia outra saída. Ray talvez perdoasse a Marie a sua infidelidade, mas decerto nunca iria perdoar a Pruitt. Afinal de contas, tudo se reduzira a matar ou ser morto.
Com Ray Chernoff fora de circulação, Pruitt pensou que talvez tivesse uma oportunidade, mas as coisas não haviam corrido bem. Embora Chernoff se encontrasse atrás das grades, ainda tinha muitos contactos no exterior e a promessa de proteção governamental não passava de uma balela. Mesmo que o levassem para outro lugar, seria vigiado. Não, tinha ele próprio de tratar do assunto. Durante várias semanas, vivera em permanente sobressalto, e certo dia, ao chegar a casa, vira uma sombra nas escadas. Não lhe restaram dúvidas de que o homem escondido no andar superior estava de pistola em punho e à sua espera. Pruitt fugira e escondera-se num bar, ao fundo da rua, até o perigo passar. Depois, regressara cautelosamente ao apartamento e fizera o que tinha a fazer. Para todo o mundo, Paul Pruitt havia morrido nesse dia.
Durante os últimos quinze anos, a sua vida fora uma mentira. Tivera muito cuidado. Ao fim de dez anos, começara a descontrair. Havia partido para tão longe quanto fora possível, instalando-se numa pequena cidade do Texas. Arranjara um emprego como vendedor de carros em Bourbon e, decorrido algum tempo, acabara por ser o proprietário do negócio. Conseguira até arranjar
295
uma esposa que não lhe fizera muitas perguntas. Quando lhe sugeriram que fizesse publicidade para divulgar o negócio, recusara. Nunca mais queria ter uma câmara a filmá-lo. Sentia-se satisfeito tal como estava e onde estava. Tinha dinheiro suficiente para se considerar importante. Talvez se tivesse deixado levar pelo seu ego em uma ou duas circunstâncias. Gostava que as pessoas olhassem para ele. Obtivera um certo respeito naquela parte do mundo, enquanto Dave Trumbo, e apreciava o facto de as pessoas ficarem contentes por o verem, quando aparecia.
A chamada do homem desconhecido que o reconhecera constituíra uma ameaça de lhe retirar tudo isso. Depois da primeira mensagem, tentara descobrir a identidade desse homem. De cada vez que punha as notas no sobrescrito de papel manilha e o endereçava para outra caixa postal, tratava de averiguar quem era o chantagista, mas, de todas as vezes que lhe ligava, o homem misterioso indicava-lhe um endereço diferente. Pruitt chegara mesmo a esconder-se junto de uma das caixas postais, à espera de ver quem viria buscar o sobrescrito em que havia previamente feito um sinal com um marcador amarelo-fluorescente. Passara dois longos dias e outras tantas noites sentado dentro de um carro, numa rua de Austin, de binóculos no regaço, à espera da oportunidade de vislumbrar o filho da mãe. Quando, daquela vez, ninguém aparecera para recolher o dinheiro, regressara a Bourbon. O pedido de dinheiro aumentara no mês seguinte e Pruitt ficara ainda mais em pânico.
Fora J.D. quem pusera termo àquilo. Pruitt nunca se encontrara com J.D. mas ouvira falar dele. Sabia que estivera preso e que o seu irmão era o xerife de Jessup County. Era forçado a admitir que J.D. tivera a coragem de entrar no seu escritório, fechar a porta atrás de si e dizer-lhe calmamente que podia ajudá-lo a resolver o seu pequeno problema.
"Que problema?", lembrava-se Pruitt de haver perguntado.
J.D. pusera as cartas na mesa. Explicara que passara a dedicar-se a uma nova atividade que considerava bastante lucrativa: a chantagem. Antes que Pruitt pudesse reagir perante tal confissão, J.D. erguera as mãos e assegurara-lhe que não iria exercer chantagem sobre ele, nem sequer planeava fazê-lo no futuro.
O que J.D. queria era trabalhar para ele. Pruitt recordava-se da conversa, quase palavra por palavra. J.D. contara-lhe como passava
296
dias e noites a percorrer a vizinhança e a escutar conversas com o seu equipamento de escuta. Se ouvia algo de interessante, tomava nota. Por vezes, chegava até a entrar num quarto para aí instalar um microfone ou uma câmara. Descobrira que gravar sexo em vídeo lhe permitia ganhar muito dinheiro. Alguns dos habitantes de Serenity tinham hábitos sexuais assaz peculiares. J.D. dera a Pruitt alguns exemplos.
J.D. levara algum tempo até chegar ao problema de Pruitt, mas este não se importara com isso. Ficara fascinado pelo que estivera a ouvir. Por fim, J.D. abordara a questão da chantagem que estava a ser exercida sobre Pruitt. Explicara que estava estacionado na rua em que o homem residia e ouvira o que ele dissera a Pruitt através de um dos telemóveis que possuía. Não sabia o que Pruitt havia feito, mas presumia que talvez tivesse uma relação extraconjugal ou até que estivesse envolvido em algo mais grave como, por exemplo, não declarar ao fisco algum dinheiro que recebia no seu negócio de venda de automóveis. J.D. afirmara que não lhe interessava o que Pruitt houvesse feito, mas que iria ajudá-lo a livrar-se do chantagista. Podia forçá-lo a sair da cidade. E fá-lo-ia se Paul o colocasse na sua lista de pagamentos mensais para resolver problemas futuros. Sugeriu até que seria como um advogado sob avença.
Pruitt apressara-se a dar o seu acordo. Aliviado por J.D. não ter qualquer pista sobre a sua verdadeira identidade, decidira de imediato forçar J.D. a ajudá-lo a livrar-se do chantagista. Em seguida, Pruitt livrar-se-ia ele próprio de J.D.
Quando J.D. lhe fornecera o nome do professor, não fazia a mínima ideia de que estava a proferir a sentença de morte de MacKenna. Pruitt dissera a J.D. que queria falar com MacKenna antes que J.D. o assustasse para o levar a sair da cidade. Pedira a J.D. que fosse ter com ele a casa de MacKenna, muito embora J.D. não soubesse que o professor ia ser morto.
Pruitt recordou-se da boa gargalhada que soltara quando revelara a J.D. que este era agora cúmplice de um homicídio e que tinha de desfazer-se do cadáver do professor.
J.D. ficara aterrado. Pruitt não se importara com isso. Dissera-lhe que cumprisse as suas ordens e tudo correria bem. A primeira prioridade era desfazer-se do corpo.
297
Retrospetivamente, Pruitt apercebia-se de que devia ter sido mais específico. Devia ter compreendido como J.D. era estúpido. Abanou a cabeça quando pensou nisso. J.D. julgara ser muito esperto ao enfiar o corpo do professor no carro de Jordan Buchanan por ela ser uma forasteira na cidade. Acreditou que podia deitar-lhe as culpas para cima e tudo ficaria resolvido.
J.D. porém, nunca esperara que Lloyd o tivesse visto, enquanto entalava o corpo do professor no porta-bagagens. E tão-pouco esperara que Pruitt - ou Dave, como ele o conhecia - fosse fazer o necessário para calar a boca do linguareiro Lloyd. Na verdade, J.D. não havia pensado muito fosse no que fosse. Nunca pensara, decerto, que Dave Trumbo iria matá-lo.
Paul Pruitt cruzou as mãos no peito e inclinou-se para trás. Teria sido muito mais simples para todas as pessoas envolvidas no caso se J.D. tivesse levado o cadáver do professor para o deserto e o enterrasse ali. Em vez disso, J.D. tentara armar-se em esperto.
Pruitt adormeceu a perguntar ainda a si próprio se havia matado J.D. quando o atingira por trás com um golpe na cabeça. Ou teria J.D. ficado apenas atordoado, acabando por sentir o fogo a devorar-lhe a carne?
298
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Com almofadas entaladas à sua volta, Jordan achava-se sentada na cama - embora com assistência médica -, quando Noah foi visitá-la, a hora já avançada da tarde.
Pareceu-lhe de novo pálida, coisa que Noah referiu à enfermeira, depois de esta haver tirado a temperatura de Jordan.
- Bom, hoje já se levantou e deu alguns passos - disse a enfermeira, em tom jovial. - Por isso, deve estar esgotada.
Jordan mostrava-se mais lúcida, de cada vez que a via. Aproveitou o ensejo para insistir:
- Por favor, posso beber água?
A enfermeira sacudiu energicamente a cabeça.
- Nem pensar. Por enquanto, não pode ingerir seja o que for. vou buscar uma toalha húmida e talvez uns cubos de gelo.
Que podia ela fazer com uma toalha molhada? Noah esperou até a enfermeira sair do quarto, torneou a cama e tocou delicadamente na mão de Jordan.
- Como te sentes?
- Como se tivesse levado um tiro.
Parecia aborrecida.
- Pois bem, foi mesmo isso o que aconteceu, doçura.
Que grande compaixão a dele! A mãe de Jordan ficara sentada ao lado da sua cama, durante a maior parte da manhã e, de cada vez que Jordan abrira os olhos, vira a mãe a limpar as lágrimas do rosto, perguntando o que podia fazer para que ela se sentisse melhor. Também levara o tempo todo a chamar-lhe "minha pobre querida". Noah, porém, seguira o caminho oposto, atuando como se levar um tiro não fosse algo de grave. Jordan preferia muito mais esse comportamento.
299
- Aposto que estás ansioso por retomar a tua vida do costume - disse a Noah.
Parecia sentir pena dele. Os olhos de Jordan fecharam-se por uns segundos e ela não viu a expressão exasperada de Noah.
- Não adormeças ainda - disse ele.
- Isso é uma novidade. Todos os outros que vieram visitar-me insistiram comigo, por várias vezes, para que eu dormisse.
- Lembras-te do que me disseste quando recobraste os sentidos?
Jordan fitou-o, com expressão preocupada.
- Falei muito?
- Não muito - replicou Noah, rindo-se. - No entanto, disseste alguma coisa acerca dos tiros.
Os olhos dela abriram-se mais, quando lhe regressou a memória.
- Sim... O Dave Trumbo tentou matar-me. - Depois, como se tivesse assimilado o que havia dito, prosseguiu: - Por que razão me alvejou? Que lhe fiz eu? - Pensou por um minuto e adiantou, sarcasticamente: - Talvez quisesse que eu comprasse um dos carros que tem para venda.
Fechou os olhos e tentou raciocinar. Sabia que tinha de dizer qualquer coisa a Noah, mas não conseguia recordar-se do que era.
- Tu não lhe fizeste nada - assegurou-lhe Noah. - Agora, podes dormir. Falaremos novamente, mais tarde.
Noah pegou na cadeira, colocou-a perto da cama e sentou-se. Sentia-se extenuado. Se pudesse, ao menos, descansar um minuto...
- Ainda não percebeste? Eu já.
A voz de Jordan interrompeu os seus devaneios. Abriu os olhos e viu-a sorrir.
- O quê?
?- A data, 1284, E a coroa.
- De que estás a falar?
- As folhas de pesquisas do MacKenna. Lembras-te?
- Lembro-me, sim.
- A data não é uma data.
Saberia Jordan que estava a dizer coisas sem sentido?
- Ah, sim? - retorquiu ele, à falta de melhor.
300
- É o endereço do Trumbo. O número 1284 da Royal Street. É lá que ele vive. Por isso, porque não vais lá buscá-lo para eu ter uma pequena conversa com ele?
Noah sorriu. Jordan estava a voltar a ser como sempre fora, com toda a força.
- Nem consigo acreditar que não tenha pensado nisso há mais tempo. Mas tenho desculpa, pois estava a ler tudo aquilo como uma pesquisa histórica. E sabes que mais?
- O quê? Diz.
- O Trumbo viu. Só assim pode ter sabido.
- O que é que ele viu?
- Quando o encontrei pela primeira vez, estava no restaurante do Jaffee e tinha uma grande quantidade de folhas espalhadas em cima da mesa. Ele chamou-lhes "o meu trabalho de casa". Não pode ter deixado de ver. - Sentia a boca seca e doía-lhe a garganta. Engoliu saliva e declarou: - O Trumbo viu a data, 1284, e uma coroa. O que acabava de ver era a sua morada nos apontamentos do MacKenna, com o seu número e a coroa a simbolizar a rua onde mora. Nós ainda não o sabíamos. As caixas que eu despachei de Serenity... estão no meu apartamento. Deve haver naquelas folhas mais informações que o incriminem. Devias lá mandar alguém. Agora constituem provas.
Noah fez de imediato uma chamada para Nick.
- Já vai gente a caminho - assegurou a Jordan.
- Vão precisar da minha chave.
- Não, não precisam dela. Sabem como entrar. Agora descansa.
- Então ainda não lhe deitaste a mão?
- Ainda não. Mas hei de fazê-lo.
As pálpebras de Jordan desceram e Noah ficou à espera, fazendo votos para que ela adormecesse antes que lhe acontecesse o mesmo.
Uma hora mais tarde, Nick teve de sacudi-lo para o despertar.
- Estão à nossa espera.
Noah pôs-se em pé de um salto, levando instintivamente a mão ao coldre da pistola.
- Que...
- Acorda. Estão à nossa espera - repetiu Nick.
301
- Fala mais baixo. Ainda vais acordar a Jordan.
Nick riu-se.
- Ela já está acordada. Tu é que estavas a dormir. Temos estado a conversar, há mais de dois minutos.
Só depois de se pôr em pé Noah se apercebeu de que o juiz Buchanan e Zachary, o irmão mais novo de Jordan, também se encontravam no quarto. Nick fez sinal a Noah para que o acompanhasse até ao exterior. Noah conseguiu deter-se a tempo, antes de ordenar a um juiz federal que não cansasse a própria filha.
Nick encaminhou-se para os elevadores.
- Tenho más notícias - disse. - O Pruitt conseguiu entrar no apartamento da Jordan e levou as fotocópias.
- Porra! - exclamou Noah, amaldiçoando a sua própria estupidez. - Porque não mandei lá alguém há mais tempo?
- Porque a Jordan levou um tiro. Ela é a tua prioridade... e também a minha.
Noah soltou um suspiro profundo. Não podia deixar-se ir abaixo. Mais do que nunca, precisava de se manter alerta. Para o bem de Jordan.
- Preciso de cafeína.
- O Pete está à nossa espera no refeitório. A comida é má, mas precisas de comer qualquer coisa. Eu já comi e era horrível.
- Que bela publicidade! Mal posso esperar!
O elevador estava a demorar muito, por isso enfiaram pelas escadas. O Dr. Morganstern achava-se sentado, sozinho, na mesa do canto. Noah pegou numa água tónica e foi ter com ele.
Em frente de Pete encontrava-se uma salada intacta. Viu Noah olhar para ela e disse:
- Lembra-me os dias que passei na escola de medicina. - Com uma careta de nojo, pôs o prato para o lado. - Vamos ao que interessa: há vários agentes que gostavam de tomar conta deste caso. Estão ansiosos por descobrir o Pruitt e querem apanhá-lo vivo.
- Espere aí - interpôs Nick. - Pensam conceder-lhe a liberdade, se ele testemunhar contra outros associados do Chernoff?
- Para ser sincero, não sei. Mostraram-se bastante evasivos.
- O Pruitt matou três pessoas em Serenity e tentou matar uma quarta, e essa quarta pessoa era a Jordan. Nem pensar em conceder impunidade a um pulha desse calibre! - ripostou Nick.
302
- Não é a nós que cabe tal decisão...
- É a nós, sim! - E o tom de voz de Noah não admitia réplica.
Nick apoiou-o.
- Tens toda a razão.
O Dr. Morganstern não se serviu da sua autoridade para os contradizer.
- Também concordo com vocês - disse.
- Onde estão esses agentes? - perguntou Nick.
- No outro lado da cidade, à espera de autorização.
- De autorização para quê?
Pete suspirou.
- Para se tornar público que andamos atrás do Pruitt.
- Isso é uma loucura! - protestou Noah. - O homem vai desaparecer e nunca mais o encontramos!
- E que propões tu? - perguntou Pete. - Planearam tudo de maneira errada.
- Estou à espera da tua opinião.
- O Pruitt julga que por agora se encontra a salvo. No entanto, não sabe o que há naquelas folhas nem tão-pouco se possuímos mais informações a seu respeito.
- Como podes ter a certeza do que ele pensa?
- Porque ainda anda por aqui. Toda a gente está à sua procura e ele não emergiu à superfície. O Pruitt é cauteloso. A Jordan contou-me que tinha as folhas espalhadas em cima da mesa e à frente do Pruitt, com a indicação do seu número e rua bem à vista. O Pruitt pode suspeitar de que, nas pesquisas do professor, existem outras informações que o incriminam.
- Ele julga que ainda pode resolver o problema - acrescentou Nick.
- Exatamente, e está a meio caminho de o conseguir - prosseguiu Noah. - Assaltou o apartamento da Jordan e levou as fotocópias consigo.
- E agora? - inquiriu Morganstern.
- A Jordan - respondeu Noah. - O Pruitt está à espera de saber se ela se recompõe ou não.
O Dr. Morganstern tamborilou com os dedos na mesa.
- Se divulgarmos o nome do Pruitt, vamos perdê-lo para sempre.
303
- Exatamente - confirmou Noah, enquanto Nick assentia em concordância.
- Não podemos permitir que isso aconteça. Tens algum plano? - perguntou Morganstern.
Noah ficou satisfeito por Morganstern fazer aquela pergunta.
- Tenho, sim, senhor. Vamos preparar-lhe uma armadilha.
- Onde? - quis saber Nick.
- Vou atrair o Pruitt de volta ao apartamento da Jordan - replicou Noah. - No entanto, temos de preparar tudo com a maior rapidez.
Nick sorriu, mas Pete Morganstern franziu a testa e inquiriu:
- E como vais conseguir tal coisa?
- Só tenho de fazer um telefonema - replicou Noah. - É quanto basta.
304
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS

- Angela, daqui fala Noah Clayborne.
- Oh! santo Deus. Noah! - Do outro lado, Angela ficara manifestamente surpreendida com aquele telefonema. Noah ouviu um pequeno estrondo e perguntou a si próprio se a empregada não havia deixado cair algum dos pratos de Jaffee. - Coitado! Como está? Ficámos desolados pelo que aconteceu à Jordan. Como está ela? Ouvimos dizer que o seu estado era crítico.
- Sim - confirmou Noah. - Estou a tentar... manter a esperança. EE difícil.
- Oh! sei bem que é difícil. Estamos todos a rezar por ela. E por si também.
- Ainda não recobrou os sentidos - afirmou Noah. Olhou para o seu bloco de apontamentos e riscou a primeira de várias informações que queria transmitir a Angela.
- Ainda não? Lamento imenso. Gostava muito de poder fazer qualquer coisa.
- A razão do meu telefonema...
- Sim? - perguntou Angela, com voz ansiosa.
- Sabe, entregaram-me os seus pertences... Ia procurar o telemóvel da Jordan na sua mala para o desligar, quando vi uma anotação feita por ela própria para se lembrar de telefonar ao Jaffee. Para o restaurante. Não sei... Talvez o tenha feito. Se assim tiver acontecido, o Jaffee foi provavelmente a última pessoa...
Noah fez uma pausa, quando a sua voz se extinguiu. Riscou a segunda linha. Estaria a exagerar? Angela parecia acreditar no que lhe dissera.
- Não. A Jordan não chegou a falar com o Jaffee. Falou comigo - e Angela engoliu em seco. - Provavelmente fui a última
305
pessoa com quem ela falou. Parecia estar feliz e contente. Disse-me que ia telefonar ao Jaffee, mas não chegou a fazê-lo.
- Sim - adiantou Noah. - Deve ter sido quando tudo aconteceu. O assassino tentou atingir o pai, mas a Jordan interpôs-se. Culpo-me a mim próprio - rematou, com voz triste.
- Santo Deus, porque se culpa a si próprio? - quis saber Angela.
- A Jordan estava à espera de que eu fosse ter com ela e eu perdi a noção do tempo, íamos regressar ao apartamento dela. Estava tão excitada. Queria mostrar-me... - A sua voz extinguiu-se, uma vez mais.
- Queria mostrar-lhe o quê? - apressou-o Angela.
- Ouviu falar daqueles papéis de que ela tinha fotocópias?
- Ouvi, sim. Ela falou-me numa qualquer pesquisa histórica.
- Isso mesmo. No entanto, contou-me que, quando andava à procura de uma informação no computador, descobriu algo que tinha grande vontade de mostrar-me, algo que não tinha nada a ver com História. No entanto, não chegou a dizer-me o que era.
Riscou outra linha e continuou:
- Julguei que ela talvez o tivesse contado ao Jaffee, mas, uma vez que não chegou a falar com ele, tenho de lá ir eu próprio, dentro de algum tempo, para ver se descubro o que era. Agora não. Não quero deixar o hospital. Não me encontrava a seu lado, quando foi alvejada, mas vou estar junto dela, quando acordar, por muito tempo que isso leve a acontecer. Poderemos procurar juntos a tal informação no computador, quando ela melhorar. Seja o que for que ela descobriu, terá de esperar.
Quando a conversa terminou, Noah pousou o telefone e virou-se para Nick.
- A notícia está dada e vai começar a espalhar-se.
- Quanto tempo levará a chegar ao Pruitt?
- Uma hora, talvez duas, no máximo.
A rede fora estendida. Dois agentes vigiavam a entrada para o prédio do apartamento de Jordan e outros dois estavam de vigia à porta das traseiras. Os quatro achavam-se bem escondidos. Pruitt podia passar por qualquer deles, sem o notar.
306
Noah e Nick encontravam-se dentro do carro de Nick estacionado ao fim do quarteirão e dois outros agentes também se achavam de vigia num outro carro parado no lado oposto. Um terceiro veículo, com mais dois agentes federais, estacionara numa passagem entre prédios. Assim que Pruitt começasse a descer a rua, seria cercado. Se descesse a rua.
Estavam à espera havia mais de duas horas. Nick insistia em que mudassem de posição e fossem aguardar dentro do apartamento de Jordan.
- Podíamos apanhá-lo em frente do computador. Tudo estaria já a postos para lhe saltarmos em cima. Não gostarias de passar uns dois minutos com ele? Eu, pelo meu lado, ficaria encantado.
Noah rejeitou aquele plano.
- É má ideia.
- Então, muito bem. Caímos sobre o sujeito, assim que ele abrir a porta do apartamento.
- Isso não iria resultar. Também é má ideia.
Nick soltou um suspiro.
- Porquê? Já te disse que podíamos saltar-lhe...
Noah começou a rir.
- Agora deste em saltador?
- O elemento-surpresa - explicou Nick, com cara de pau.
- Pois. Por muito que compreenda a tua ânsia de saltar sobre o Pruitt, não vou deixar que fiques à espera dele lá em cima.
Nick tirou do bolso uma maçã. Limpou-a na manga e trincou uma boa porção.
- Já te falei do incêndio na casa de MacKenna? - perguntou Noah.
Nick trincou outro pedaço de maçã, antes de responder:
- Disseste-me que ardeu toda.
- Não foi só arder, Nick. Aquele incêndio foi nuclear. Devias tê-lo visto. Foi como se a casa tivesse implodido. Ficou reduzida a cinzas em poucos minutos. Se bem que tenha continuado em brasa por muito tempo.
- Lamento ter perdido esse espetáculo.
- Foi o Pruitt quem ateou o fogo. Ele sabe como se servir de produtos químicos.
- Os vizinhos da Jordan já foram evacuados, não é verdade?
- Já, sim - respondeu Noah.
307
Ficaram em silêncio durante alguns minutos. O único som era o de Nick a mastigar a maçã.
- Que pena não podermos saltar-lhe em cima - disse ele.
- Vem aí alguém. - Noah e Nick ouviram um sussurro excitado nos auriculares.
- Estou a vê-lo. É ele - disse outro agente.
- Tens a certeza de que é ele? - perguntou o primeiro.
- Um fato preto, de jogging, com capuz... em pleno agosto. É ele. Vem a andar devagar.
O vulto dobrou a esquina e ficou à vista de Noah, que se inclinou sobre o volante para melhor o observar.
- Traz alguma coisa com ele? Sim, traz. Que será? - perguntou Nick, que olhou para Noah e concluiu: - Será que premeditou outro incêndio?
O homem desviou-se para o prédio de Jordan e subiu os degraus de acesso.
- Não podemos deixá-lo entrar. Temos de o apanhar na rua - exclamou o agente que se encontrava mais perto do homem. - Avancem! - gritou.
- Esperem! - ordenou Noah, mas já demasiado tarde.
Três agentes demasiado zelosos saltaram para a rua, de armas em punho. Dois deles apontaram as pistolas à cara do homem, enquanto o terceiro agarrava na caixa que ele deixara cair.
Noah e Nick precipitaram-se para o local.
- Não é ele! - berrou Noah, exaltado.
- Que me querem? Não fiz nada de mal! - balbuciou o homem. Pouco mais do que adolescente, tinha a barba por fazer e o cabelo parecia não ver champô havia um mês. - Tenham cuidado com essa caixa. Tem qualquer coisa de muito delicado. Não devem abaná-la.
O rapaz estava tão assustado que mal conseguia pronunciar as palavras.
- Que há na caixa? - rosnou um dos agentes.
- Não sei. Um tipo deu-me cem dólares para a entregar à namorada. Devia deixá-la à porta dela. Acreditem em mim. Palavra que não fiz nada de mal.
Noah voltou-se e correu de regresso ao seu carro. Nick seguiu-lhe na peugada, enquanto gritava aos agentes:
- Chamem a brigada de minas e armadilhas! - Apontou para um dos agentes. - Compreendeste?
308
- Sim, senhor.
Nick enfiou-se no carro, enquanto Noah punha o motor em marcha.
- Telefona para o hospital. Temos de saber como está a Jordan - gritou Noah. - Só para termos a certeza.
Contornou a esquina sobre duas rodas. Carregando no acelerador, Noah pôs a sirene em funcionamento.
- Achas que o Pruitt quis enganar-nos? - perguntou Nick, enquanto percorriam a alta velocidade as ruas de Boston.
- Não há maneira de o saber. O Pruitt pode ter enviado aquele rapaz para fazer o trabalho sujo e estar de regresso ao Texas ou pode ter mais alguma coisa escondida na manga. Seja qual for o seu plano, temos de ter a certeza de que a Jordan não faz parte dele.
309
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO

Precisava de tempo para fazer as coisas como devia ser. Naquele momento, o mensageiro que Pruitt havia arranjado estava a colocar a caixa, envolta em papel de embrulho, no lado de fora da porta de Jordan. "Fogo líquido", era assim que qualificava a sua mistura especial. Tinha dado magníficos resultados na casa de MacKenna. E ia produzir de novo resultados excelentes. Havia suficientes produtos químicos naquela caixa para atirar com o andar superior do prédio de apartamentos até à estratosfera e queimar até ao chão tudo quanto restasse do edifício. Talvez fosse excessivo, pensou, mas não teria mais de preocupar-se com a possibilidade de, por qualquer razão, o computador de Jordan Buchanan se encontrar ainda operacional.
Regulara o temporizador e tinha exatamente uma hora, antes de se produzir a explosão. Precisava de chegar a Jordan, antes disso. Mal o seu apartamento fosse pelos ares, a polícia e o FBI formigariam à sua volta, no hospital. Por essa altura, saberiam já que fora Jordan o alvo intencional dos disparos. No entanto, se Pruitt pudesse chegar até ela, ninguém ficaria a saber porquê.
Abençoada a bisbilhotice das cidades pequenas. Pruitt havia acabado de chegar ao motel, com a trituradora de papel nas mãos, quando recebera um telefonema da sua mulher, Suzanne. Esta acabara de o saber da boca da mulher de Jaffee, Lily - que o ouvira de Jaffee, que, por sua vez, o ouvira de Angela - que a vida de Jordan Buchanan estava presa por um fio. Era triste que algo tão trágico tivesse acontecido a uma mulher tão nova - e tão simpática. Aonde irá parar o mundo em que vivemos? Três pessoas mortas
310
em Serenity e agora aquela adorável jovem, já bastante traumatizada, regressava a Boston e era alvejada por um qualquer maníaco que queria vingar-se do pai. E aquele simpático agente do FBI, Noah Clayborne, que estivera com ela em Serenity, afinal era mais do que um amigo. Telefonara a Angela e mal conseguira falar, tão destroçado estava. Angela dissera-lhe que recebera a última chamada de Jordan, antes de ela ser baleada. Angela contara ainda que o pobre Noah Clayborne parecia completamente desfeito. Dava a ideia de que a pobre Jordan não ia conseguir salvar-se, mas ele andava em busca de um raio de esperança. Estava a tentar ter pensamentos positivos, planeando o regresso a casa de Jordan, quando saísse do hospital. A última coisa que Jordan lhe dissera fora que havia qualquer coisa naqueles papéis que fora buscar a Serenity. Estava impaciente pelo momento em que lhe pudesse mostrar uma informação surpreendente que havia guardado no seu computador - algo que ela descobrira nos papéis que o falecido professor lhe facultara. Ela era uma espécie de génio dos computadores, segundo toda a gente dizia. Agora, porém, talvez Noah nunca viesse a saber o que Jordan quisera revelar-lhe. Era tudo tão triste...
Suzanne continuara a pairar, mas a mente de Pruitt disparara, sem prestar mais atenção ao que ela dizia. Que outras informações teria Jordan encontrado nas notas do professor MacKenna? Que guardara ela no computador? Talvez já houvesse deduzido toda a trama.
Entrou no hospital sem que ninguém o notasse. Baixou a cabeça e pôs os olhos no chão para o caso de haver câmaras de vigilância apontadas para ele. Não se preocupava que o reconhecessem. A polícia andava à procura de gânguesteres relacionados com o caso de crime organizado que fora julgado pelo juiz Buchanan, não era assim? E mesmo que Jordan pudesse identificar Dave Trumbo, não iria vê-lo de perto até ser já demasiado tarde.
O pessoal de segurança tão-pouco lhe prestou grande atenção. Não havia, aliás, razão para isso. Tinha parado num grande supermercado onde era possível comprar tudo, desde pasta de dentes a peças de automóveis e uniformes de várias profissões. Havia escolhido um par de luvas e outro equipamento apropriado. O hospital era um grande complexo e havia tantos médicos e enfermeiros nos corredores que ninguém prestou atenção a Pruitt.
311
As portas do elevador abriram-se mal carregou no botão e subiu, sozinho, até ao quinto piso, enquanto treinava mentalmente o que devia dizer se fosse intercetado por uma enfermeira. Assim que saiu do elevador, pôs-se a examinar os números afixados ao lado das portas, à procura daquele que lhe fora dado quando, anteriormente, telefonara para o serviço informativo do hospital. Uma seta indicou-lhe que o quarto de Jordan Buchanan ficava para lá da esquina, à direita do corredor. Dobrou a esquina e parou. Em frente da porta encontrava-se postado um polícia em uniforme. Pruitt mudou de direção e, ao mesmo tempo, de plano.
Não havia previsto a presença de um guarda, o que fora um descuido da sua parte. Claro que o pai dela quisera reforçar a segurança.
De regresso ao elevador, consultou o quadro de serviços e secções do hospital que se encontrava na parede. Carregou no botão do segundo piso, onde ficava situada a Radiologia. Não havia ninguém à vista quando saiu para o corredor deserto. Bastaram-lhe duas chamadas de telemóvel para obter o nome do cirurgião e do interno que tinham a paciente a seu cargo. Depois, telefonou para o quinto piso e disse à enfermeira que o Dr. Emmett havia pedido mais radiografias a Jordan Buchanan.
Pelo tom da sua voz, percebia-se que a enfermeira era nova e inexperiente. Não fez quaisquer perguntas. Limitou-se a pousar o telefone para chamar de imediato a Radiologia, transmitindo-lhe a ordem verbal do médico.
Pruitt ouviu o servente receber a chamada. Por sorte, era uma tarde de pouco movimento, e a Radiologia não tinha doentes. Mesmo assim, Pruitt teve de esperar dez minutos até que o servente louro se dirigisse lentamente até ao elevador para ir buscar Jordan. com um iPod no bolso da camisa e minúsculos auriculares a penderem-lhe das orelhas, o homem trauteava uma canção irreconhecível.
Pruitt gostava do isolamento do seu esconderijo. Havia quartos escuros, corredores ainda mais escuros e secretárias vazias. Não tinha de preocupar-se com a possibilidade de surgir alguém que o importunasse.
Deu uma vista de olhos ao andar da Radiologia e descobriu um refúgio perfeito num cubículo situado logo a seguir às portas de vaivém que davam acesso à sala de raios X.
312
Iria o guarda acompanhar Jordan na sua deslocação até à Radiologia? Quase de certeza. Pruitt tinha de tratar dele, em primeiro lugar. Aparecer por trás e golpeá-lo com força. Enquanto o polícia caísse ao chão, tirar-lhe-ia a arma. A menos que o servente com o iPod também estivesse por perto. Pruitt projetava deixar Jordan inconsciente e depois ir à procura do técnico de raios X. Se isso não fosse possível, teria de tratar também dele. Não seria difícil e não causaria muito barulho. Mantinha bem presente as técnicas que utilizara para subjugar e manter em silêncio os seus antigos clientes. Era curioso como aquelas coisas nunca se apagavam da memória.
Por trás da porta de vaivém, encontravam-se diversos cubículos em que os pacientes se despiam e envergavam batas, antes dos exames. Cada um deles tinha portas que se fechavam automaticamente. Havia batas limpas arrumadas nas prateleiras dos cubículos e - vejam só! - uma barra metálica com cabides de plástico.
Pruitt pensara que teria de forçar a entrada no cubículo dos utensílios para descobrir qualquer coisa que pudesse utilizar para golpear o guarda, mas aquela barra de metal serviria para esse efeito. Levou apenas alguns minutos a desatarraxar parafusos com o auxílio de uma moeda de dez cêntimos. com certa de trinta centímetros de comprimento, a barra tinha o diâmetro e o peso suficientes para o fim que pretendia. E acomodava-se perfeitamente na sua mão.
Puxou a porta do cubículo para dentro, deixando uma nesga aberta para poder ver Jordan chegar na sua cadeira de rodas. Havia reparado em algo que lhe serviria de aviso. Quando, do outro lado, era acionado o botão que abria a porta de vaivém, deste lado acendiam-se luzes.
Os seus olhos habituaram-se à escuridão. Não saberia dizer quanto tempo se passou até ouvir vozes. Passado um minuto, as luzes acenderam-se e ele ouviu o ruído surdo da porta que se abria lentamente para dentro.
"Não te precipites", recomendou a si próprio. Tinha de agir no momento próprio.
Então, eles surgiram. Primeiro, viu Jordan e, logo a seguir, o servente empurrando a cadeira de rodas. O guarda vinha atrás o que era uma sorte. Era o último, mas seria o primeiro a abater.
313
Com a barra metálica bem segura na mão, Pruitt abriu lentamente a porta do cubículo e saiu para o corredor. O guarda não o ouviu aproximar-se. Pruitt bateu-lhe com força na base do pescoço e apossou-se da sua arma, enquanto o guarda caía no chão.
O servente conseguiu ouvir o ruído que se sobrepôs à música do iPod e deu uma reviravolta, de olhos espantados.
- EhL. Que...?
Também ele caiu ao chão. A barra atingiu-o num dos lados do rosto, mesmo por cima da orelha. Foi tudo tão rápido que ele nem teve tempo de se agachar. O corpo do servente tombou sobre Jordan, fazendo-a saltar da cadeira de rodas e cair ao chão.
Pruitt, com um pontapé, afastou a cadeira de rodas do seu caminho e sacou da pistola. Os seus olhos eram frios, perversos, quase demoníacos. Jordan disse para consigo que ia ser a última coisa que veria, antes de morrer. Soltou um grito e encolheu-se, tentando proteger-se.
De súbito, Noah irrompeu pela porta, com estrépito. Pruitt mal teve tempo de virar a cabeça, antes que uma bala da pistola de Noah lhe atravessasse o ombro. Fez um movimento na direção de Jordan, mas Noah, com outra bala, atingiu-o no peito e Pruitt caiu ao solo, com uma expressão de surpresa no rosto agonizante. Tentou ainda erguer a sua arma, mas Noah voltou a disparar. A detonação foi ensurdecedora e repercutiu-se pelo corredor vazio.
Jordan desmaiou, com esse eco nos ouvidos.
314
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO

Jordan encontrava-se enroscada no sofá, no jardim de inverno, fingindo que estava adormecida para que a mãe deixasse de apaparicá-la. Já a havia tapado com uma manta felpuda e ameaçava ir buscar um cobertor ainda mais pesado.
As janelas estavam abertas e uma agradável brisa refrescava o ar. Jordan podia ouvir as ondas do mar a rebentar na praia. A casa dos pais em Nathans Bay achava-se rodeada pela água, em três dos seus lados. No inverno, os vidros das janelas ficariam cobertos com uma película de gelo. No verão, vinha do mar uma brisa fresca que constituía um bem recebido alívio nos raros dias húmidos ou quentes.
Era um lugar encantador para se visitar, mas Jordan ansiava por regressar a casa.
Sentia-se um fardo para a mãe, causando-lhe permanente preocupação. Sentia a falta da sua cama e também da cadeira perto da janela.
E, acima de tudo, sentia a falta de Noah. Desde aquela noite terrível no hospital em que ele a transportara nos braços, levando-a de volta ao seu quarto, sentia a falta dele.
Noah e Nick andavam por fora, a tratar de um caso que lhes fora atribuído. Laurant dissera a Jordan que Nick, desde que partira, telefonara todas as noites para saber dela. Haviam já decorrido quatro dias, mas Laurant esperava que Nick regressasse no dia seguinte. Jordan não lhe perguntara por Noah. Tudo havia acabado e ele regressara à sua vida habitual. O que acontecera em Serenity...
Suspirou. Se não se levantasse e tentasse fazer algo de produtivo, desataria a chorar. Seria o bastante para a mãe enfiar Jordan na
315
cama, com uma enfermeira a seu lado, vinte e quatro horas por dia.
Ainda sentia dores nas costelas e fez um esgar, quando se levantou. Leah, a governanta, estava a arrumar pratos na cozinha.
- Eu posso fazer isso - ofereceu-se Jordan.
- Não, não. A senhora tem de descansar.
- Leah, eu sei que você tem boas intenções, mas estou farta de ouvir dizer que tenho de descansar.
- Perdeu muito sangue. Mistress Buchanan disse que a senhora não pode cansar-se.
Jordan apercebeu-se do número de pratos empilhados e seguiu atrás de Leah, em direção à sala de jantar. A mesa retangular ocupava a maior parte do espaço, com seis cadeiras de cada lado e duas em cada uma das extremidades.
- Ora, deixa ver. A Laurant e o Nick vão ficar aqui - disse Leah, contando em voz alta. - com a filha, a Sam - continuou.
- Vou trazer a cadeira alta de bebé, depois de a limpar bem. E o Michael também virá. E, é claro, o Zachary, O Alec e o Ryan chegarão no próximo fim de semana.
- Então, só haverá pessoas da família - comentou Jordan.
- Como o Zachary costuma trazer consigo colegas da faculdade, habituei-me a pôr mais alguns pratos na mesa.
Jordan perguntou novamente se podia ajudá-la, mas Leah despachou-a energicamente. Jordan subiu para o seu velho quarto, no andar de cima. Agora, os pais serviam-se dele para as visitas.
Tivera notícias de Kate e de Dylan. Haviam regressado à Carolina do Sul e Kate queria que Jordan fosse até lá, para recuperar. Jordan ainda não havia decidido se devia ou não aceitar esse convite. Sentia-se tão agitada e aborrecida...
Passou o que restava da tarde a ler, no seu quarto. Por sorte, a polícia fora encontrar intactas as fotocópias da pesquisa do professor MacKenna no assento traseiro do carro que Pruitt havia alugado em Boston. Agora, Jordan tinha acesso às fontes da pesquisa, de modo a testar a validade das histórias do professor.
Ao pôr do Sol, Michael subiu ao andar superior e foi ter com ela. Chegou mesmo a sugerir pegar-lhe ao colo para que descesse as escadas.
- O tempo oficial da minha convalescença já chegou ao fim - anunciou ela durante o jantar. - E já não quero mais ser apaparicada.
316
- Que bom, minha querida - disse a mãe, com voz meiga.
- Já comeste o bastante?
Jordan riu-se.
- Já, sim. Obrigada.
- O Nick está no jardim de inverno. Porque não vais dar-lhe as boas-vindas?
Jordan encaminhou-se para lá, mas estacou, ao ouvir gargalhadas. Conhecia aquele riso. Noah encontrava-se ali, com o seu irmão.
Deu um passo atrás, parou, refletiu sobre o assunto e deu outro passo atrás. De súbito, apercebeu-se de que se fizera silêncio na sala de jantar. Não admirava. Quando olhou para trás, viu que todos os membros da família estavam inclinados para a frente, a observá-la atentamente. Agora, tinha de ir ao jardim de inverno para dar as boas-vindas. Respirou fundo.
Nick estava estirado no sofá e Noah sentado numa poltrona. Ambos bebiam cerveja.
- Olá, Nick. Olá, Noah.
Ambos riram.
- Olá - disse Nick.
- Olá, Jordan. Como estás?
- Bem, estou bem. Vemo-nos mais tarde - replicou Jordan, voltando-se para regressar à sala.
- Jordan! - chamou-a Noah.
Virou-se. Noah estava a pousar a sua cerveja em cima da mesa.
- Sim?
Noah levantou-se e encaminhou-se para ela.
- Lembras-te do nosso acordo?
- Sim, claro.
- Que acordo? - inquiriu Nick.
- Não interessa - replicou Jordan. - O que tem, Noah?
- Que acordo? - voltou Nick a perguntar.
- Quando partimos de Serenity, eu e a Jordan combinámos que cada um regressaria à sua vida - explicou Noah.
- Tinhas de lhe contar? - exclamou Jordan, abespinhada.
- Tinha, sim, porque ele perguntou.
- Se me dão licença... - disse Jordan, rodando novamente sobre si própria.
317
- Jordan! - chamou-a Noah, outra vez. E, de novo, Jordan estacou.
- Sim?
Noah avançava lentamente para ela.
- Como eu estava a dizer... acerca daquele acordo que fizemos... - Parou em frente de Jordan. - Não vai dar resultado.
Jordan abriu a boca para ripostar, mas não encontrou palavras.
- Que queres tu dizer?
- O acordo fica sem efeito, é isso que quero dizer. Não iremos viver vidas separadas.
- Vou deixá-los a sós para não perturbar a vossa privacidade - adiantou Nick, levantando-se do sofá.
- Não precisamos de privacidade - insistiu Jordan.
- Precisamos, sim - contrapôs Noah.
- Porquê?
- Porque quero ficar sozinho contigo para te dizer como te amo.
Jordan experimentou a sensação de ficar sem fôlego.
- Tu... Não, espera. Tu amas todas as mulheres, não é assim?
Nick fechou a porta atrás de si.
Noah apertou Jordan nos seus braços e sussurrou-lhe ao ouvido todas as palavras que tinha guardado no coração. Levantou-lhe delicadamente o queixo e beijou-a.
- E tu também me amas, não é verdade, doçura?
Todas as defesas de Jordan se desvaneceram.
- Amo, sim.
- Casa comigo.
- E se o fizer?
- Farás de mim o homem mais feliz deste mundo.
- Noah, se casarmos, não poderás ter mais aventuras amorosas.
- Ora aí está. Nunca deixas de exprimir as tuas opiniões. Não quero nenhuma outra mulher. Quero-te só a ti. Só a ti.
- Posso prescindir de muitas outras coisas, mas não vou largar os computadores - avisou-o Jordan.
- E porque iria eu exigir tal coisa?
- Por causa da minha zona privada de conforto. Lembras-te do sermão que me impingiste?
- Está bem, lembro-me. Mas fez-te sair do teu apartamento, não foi?
318
- E entrar na tua cama - acrescentou ela. - Sabes o que decidi? vou criar um programa que possa ser compreendido por uma criança de quatro anos. Depois, hei de descobrir uma maneira de pôr computadores nas escolas e nos centros comunitários que não têm recursos para os comprar. Se uma criança começar cedo a lidar com computadores, será para ela como uma segunda natureza. A tecnologia veio para ficar e eu quero escrever com ela o futuro.
Noah assentiu em concordância.
- É um bom começo. Um programa simples. Estou certo de que o Jaffee vai gostar de ouvir isso.
- Por falar no Jaffee... Ontem, telefonei à Angela. Disse-me que o restaurante ficou a abarrotar, desde que souberam do Trumbo. Toda a cidade anda a comentar a notícia.
- Ultimamente, tiveram muito com que se entreter. O Chaddick contou-me que a notícia caiu como uma bomba e fez esquecer a lista do J.D. Ele e o Street estão prestes a dar o caso como encerrado.
Jordan partilhou mais algumas ideias com Noah, e depois ficou a ouvi-lo falar do seu trabalho. Era muito stressante, mas, sempre que era bem-sucedido, isso marcava a diferença. Os fracassos constituíam um rude golpe para ele. Queria e precisava de, nesses casos, regressar ao lar para que Jordan o reconfortasse.
Sentou-se no sofá e puxou-a para o seu colo.
- Preciso de me pôr de joelhos?
Jordan sorriu.
- Amar-te não é coisa fácil.
- Casa comigo.
- És arrogante e egoísta... - Fez uma pausa. -... e meigo e carinhoso e divertido e adorável...
- Aceitas casar comigo?
- Sim, aceito casar contigo.
Noah beijou-a apaixonadamente. Ao aperceber-se de como não desejava parar, afastou-se e comentou:
- Creio que vais querer um anel.
- Claro.
- E lua de mel.
Jordan acariciou-lhe o pescoço com a ponta do nariz.
- Queres dizer antes ou depois do casamento?
- Depois.
319
- Na Escócia. Temos de passar a lua de mel na Escócia. Podíamos ficar em Gleneagles, e depois seguir de carro para as Terras Altas.
- À procura do tesouro?
- Não preciso de o procurar. Sei onde se encontra.
- Ah, sim? Conseguiste descobrir tudo a respeito dessa rivalidade entre os clãs?
- Consegui - gabou-se Jordan.
- Então conta-me - pediu Noah.
- Tudo começou com uma mentira... - principiou ela.

 

 

                                                                  Julie Garwood

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades