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DE AMOR E DE SOMBRA / Isabel Aliende
DE AMOR E DE SOMBRA / Isabel Aliende

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DE AMOR E DE SOMBRA

 

                   OUTRA PRIMAVERA

 

             Só o amor com a sua cadência, nos torna tão inocentes.

                                 Violeta Parra

 

O primeiro dia de sol evaporou a humidade acumulada na terra durante o Inverno e aqueceu os frágeis ossos dos anciãos, que, assim, puderam passear pelos caminhos ortopédicos do jardim. Apenas o melancólico permaneceu na cama, porque era inútil levá-lo para o ar puro: os seus olhos só viam os próprios pesadelos e os ouvidos estavam surdos ao alvoroço dos pássaros. Josefina Bianchi, a actriz, vestida com o longo traje de seda que usara meio século antes para declamar Tchekov e levando consigo uma sombrinha para proteger a pele de porcelana trincada, caminhava devagar entre os canteiros que em pouco tempo se cobririam de flores e besouros.

-        Pobres rapazes - sorriu a octogenária ao perceber um ligeiro movimento nos miosótis, adivinhando assim a presença dos seus admiradores, aqueles que a amavam no anonimato e se escondiam na vegetação, para a espreitar quando passava.

O coronel deu uns passinhos miúdos, apoiado na cerca de alumínio que servia de suporte às suas pernas de algodão. Para festejar a Primavera que nascia e saudar a bandeira nacional, como fazia, sem falta, todas as manhãs, pusera no peito as medalhas de papelão e lata fabricadas para ele por Irene. Quando a agitação dos pulmões lho permitia, bradava ordens à tropa e mandava que os trémulos bisavôs se afastassem do Campo de Marte, onde a infantaria podia esmagá-los com o seu garboso passo de desfile e as botas envernizadas. A bandeira ondulou ao ar como uma invisível ave de rapina junto ao fio dos telefones e os seus soldados perfilaram-se direitos, olhando em frente, enquanto os tambores rufavam e vozes viris entoavam o sagrado hino que só os seus ouvidos escutavam. Foi interrompido por uma enfermeira em uniforme de batalha, silenciosa e dissimulada como em geral são essas mulheres, munida de um guardanapo para limpar-lhe a baba que corria pelas comissuras dos lábios e lhe molhava a camisa. Tentou oferecer-lhe uma condecoração ou uma promoção, mas ela deu meia volta e deixou-o depois de o ter, com o gesto suspenso, avisado de que, se emporcalhasse as calças, lhe daria três palmadas, porque estava farta de limpar porcaria alheia. De quem fala esta insensata?, perguntou-se o coronel, deduzindo que, sem dúvida, a enfermeira se referia à mais rica viúva do reino. Só ela usava cueiros no acampamento, devido a uma ferida de canhão que lhe deu cabo do sistema digestivo e a meteu para sempre numa cadeira de rodas, mas nem mesmo por isso era respeitada. Quando menos esperava, roubavam-lhe os ganchos e as fitas, pois o mundo está cheio de velhacos e trepaceiros.

-        Ladrões! Roubaram-me os chinelos! - gritou a viuva.

-        Cale-se, avó, os vizinhos podem ouvi-la - ordenou-lhe a enfermeira, movendo a cadeira para que ela ficasse ao sol.

A inválida continuou a vociferar acusações até ficar sem ar e teve que se calar para não morrer, mas mesmo assim

restaram-lhe forças para indicar com um dedo artrítico o sátiro que, às escondidas, abria a braguilha para mostrar o seu pénis deplorável às senhoras. Nenhuma delas se preocupava com o facto, a não ser uma pequena dama vestida de luto, que observava aquele figo seco com certa ternura. Estava apaixonada pelo seu dono e, à noite, deixava a porta do seu aposento aberta para que ele tomasse uma resolução.


-        Rameira! - resmungou a viúva abastada, mas não sem evitar um sorriso, porque, de repente, lembrou-se de tempos idos quando ainda tinha marido e este pagava com patacões de ouro o privilégio de ser recebido entre as suas largas coxas, o que acontecia com bastante frequência. Chegou a ter uma bolsa cheia, tão pesada que nenhum marinheiro podia carregá-la aos ombros.

-        Onde é que estão as minhas moedas de ouro?

-        De que está falando, avó? - respondeu distraída a empregada atrás da cadeira de rodas.

-        Roubaste-mas! Vou chamar a polícia!

-        Não me chateie, velha - respondeu a outra sem se alterar.

Tinham ajeitado o paralítico num banco, com as pernas agasalhadas com um xaile, sereno e digno apesar do seu rosto meio deformado, a mão inútil no bolso e um cachimbo vazio na outra, com uma jaqueta de uma elegância britânica, apesar de remendada com couro nos cotovelos. Esperava correspondência, por isso exigiu que o sentassem de frente para o portão, para ver Irene entrar e saber, ao primeiro olhar, se trazia carta para ele. Ao seu lado apanhava sol um velho triste com quem não falava porque eram inimigos, embora ambos tivessem esquecido o motivo da discórdia. Por engano, às vezes dirigiam-se a palavra sem obter resposta, mais por surdez do que por hostilidade.

Na sacada do segundo andar, onde o amor-perfeito ainda não dera folhas nem flores, apareceu Beatriz Alcántara de Beltrán. Vestia calças de camurça verde-escuras e blusa francesa do mesmo tom, combinando com a sombra das pálpebras e o anel de malaquite, maquilhada logo de manhã, fresca e tranquila depois de uma sessão de exercícios orientais para relaxar tensões e esquecer os sonhos da noite, segurando um copo de sumo para melhorar a digestão e limpar a pele. Respirou profundamente, notando a nova brandura do ar, e contou os dias que faltavam para a viagem de férias. O Inverno fora muito rigoroso e por isso perdera o bronzeado. Observou compenetrada o jardim aos seus pés, embelezado pelo despontar da Primavera, mas ignorou a luz nas pedras do muro e a fragância da terra molhada. A hera perene sobrevivera às últimas geadas, as telhas brilhavam ainda com o orvalho da noite, e o pavilhão dos hóspedes, com os seus artesoados e postigos de madeira, luzia desbotado e triste. Decidiu que mandaria pintar a casa. Com os olhos contava os velhos e revia os mínimos detalhes para garantir o cumprimento das suas ordens. Nenhum deles faltava, excepto aquele infeliz depressivo que continuava de cama, mais morto de angústia do que vivo. Atentou também nas enfermeiras, reparando nos aventais limpos e engomados, os cabelos presos e as sapatilhas de borracha. Sorriu satisfeita, pois tudo funcionava bem e tinha passado o perigo das chuvas, com o seu cortejo de epidemias, sem lhe levar cliente algum. Com um pouco de sorte, teria a renda assegurada por mais uns meses, já que até o doente mais debilitado poderia sobreviver todo o Verão.

Do seu observatório, Beatriz avistou a filha, Irene, entrando no jardim A Vontade de Deus. Verificou com desgosto que não utilizava a porta lateral de acesso ao andar particular e à escada do apartamento do segundo andar, onde tinham instalado a sua moradia. Fizera construir uma entrada à parte especialmente para não passar pelo lar dos idosos quando chegava ou saía de casa, porque a decrepitude a deprimia e preferia espreitá-la de longe. A filha, pelo contrário, não perdia a oportunidade de visitar os hóspedes, como se sentisse prazer na companhia deles. Parecia ter descoberto uma linguagem para vencer a surdez e a memória fraca. Agora mesmo circulava entre eles, distribuindo guloseimas moles por causa das dentaduras postiças. Observou-a aproximando-se do paralítico, mostrando-lhe uma carta,


ajudando-o a abri-la, porque ele não podia fazê-lo com a sua única mão sã. Viu-a a seu lado cochichando. Depois, deu um rápido passeio com outro senhor velho e, embora da sacada a mãe não ouvisse as suas palavras, imaginou que falavam do único tema que interessava o homem: o filho, a nora e o bebé. Irene dedicou a cada um deles um sorriso, um carinho, uns minutos do seu tempo, enquanto na sacada Beatriz pensava que nunca chegaria a entender essa jovem extravagante com quem tinha pouco em comum. De repente o avô lúbrico aproximou-se de Irene e colocou as duas mãos nos seus seios, apertando-os mais por curiosidade do que por lascívia. Ela deixou-se ficar imóvel por instantes, que, para a mãe, pareciam não ter fim, até que uma das enfermeiras percebeu a situação e correu para intervir. Porém, Irene

deteve-a com um gesto.

-        Deixe-o. Não faz mal a ninguém - sorriu.

Beatriz deixou o seu posto de observação mordendo os lábios. Dirigiu-se à cozinha, onde Rosa, a empregada, cortava as verduras para o almoço, embalada pela novela da rádio. Tinha o rosto redondo, moreno, sem idade, os seios fartos, a barriga mole, as coxas enormes. Era tão gorda que não podia cruzar as pernas nem lavar as costas sozinha. Como limpas o teu traseiro, Rosa?, perguntava-lhe Irene em miúda, maravilhada diante desse enorme volume acolhedor que a cada ano aumentava um quilo. Mas que ideias tens, criatura! Gordura é formosura, respondia Rosa, imutável, fiel ao seu costume de falar usando provérbios.

-        Irene preocupa-me - disse a patroa, sentando-se num tamborete e tomando lentamente o sumo.

Rosa não respondeu nada, mas desligou o rádio, convidando-a à confidência, e a senhora suspirou, tenho de falar com a minha filha, não sei no que anda metida, nem quem são esses vagabundos que lhe fazem companhia. Porque não vai ao clube jogar ténis e aproveita para conhecer jovens da sua própria categoria? Com a desculpa do trabalho, faz o que lhe apetece, o jornalismo sempre me pareceu um trabalho suspeito, próprio de gente baixa; se o noivo soubesse das coisas que acontecem a Irene, não aguentaria, porque a futura esposa de um oficial do Exército não se pode dar a esses luxos. Quantas vezes já lhe disse? E não me digam que cuidar da reputação está fora de moda, os tempos mudam, mas não tanto. Por outro lado, Rosa, agora os militares pertencem à melhor sociedade, não são como dantes. Estou cansada das extravagâncias de Irene, tenho muitas preocupações, a minha vida não é fácil, sabes bem como é. Desde que Eúsebio se foi embora, deixando-me com as contas bancárias bloqueadas e uma série de gastos dignos de uma embaixada, tenho de fazer milagres para me manter a um nível decente; mas tudo é muito difícil, os velhos são um peso, afinal de contas acho que dão mais dispêndio e cansaço do que lucros, custa muito fazê-los pagar a conta, sobretudo essa maldita viúva, sempre atrasada com a mensalidade. Este negócio não é, de facto, nenhuma maravilha. Não tenho ânimo para andar atrás da minha filha, cuidando para que ponha creme na cara e se vista como Deus manda, para não espantar o noivo. Já está em idade de cuidar de si sozinha, não te parece? Olha para mim, se não fosse a minha tenacidade, como estaria? Estaria como tantas das minhas amigas, com uma mapa de rugas e pés-de-galinha no rosto, com rugas e peles caídas por toda a parte. Em vez disso, mantenho o corpo dos vinte anos e a pele lisa.

Não, ninguém pode dizer que eu tenha uma vida ociosa, pelo contrário, os sobressaltos dão cabo de mim.

-        A senhora vive com o olho na fama e o rabo na miséria.

-        Porque não falas com a minha filha, Rosa? Acho que te dá mais atenção a ti do que a mim.


Rosa pousou a faca sobre a mesa e observou a patroa sem simpatia. Por princípio, estava sempre em desacordo com ela, sobretudo no que dizia respeito a Irene. Não aceitava críticas à sua menina, mas admitiu que, neste caso, a mãe tinha razão. Também lhe agradaria vê-la vestida com um véu vaporoso e flores virginais, saindo de braço dado com o capitão Gustavo Morante pela porta da igreja, entre duas alas de espadas erguidas, mas o seu conhecimento do mundo - adquirido através das novelas da rádio e da televisão mostrava-lhe quanto se sofre nesta vida e quantos imprevistos é preciso suportar antes de se atingir um final feliz.

-        Melhor deixá-la em paz, patroa. Aquele que nasce cigarra morre cantando. Além disso, Irene não terá uma vida longa, bem se vê nos seus olhos distraídos.

-        Mulher, por amor de Deus! Só dizes asneiras!

Irene entrou na cozinha, envolta num remoinho de folgadas saias de algodão e cabelos selvagens. Beijou as duas mulheres no rosto e abriu o frigorífico para ver o que havia. A mãe quase desatou num discurso improvisado, mas, num instante de lucidez, compreendeu que qualquer palavra era inútil, pois essa jovem com marcas de dedos no seio esquerdo estava tão longe dela como um astrónomo.

-        Chegou a Primavera, Rosa, está quase a florescer o não-me-esqueças - disse Irene com uma piscadela de cumplicidade que a outra soube interpretar, pois ambas estavam a pensar no recém-nascido que caíra da clarabóia.

-        Que há de novo? - perguntou Beatriz.

-        Tenho de fazer uma reportagem, mãe. Vou entrevistar uma espécie de santa. Dizem que faz milagres.

-        Que género de milagres?

-        Tira verrugas, cura a insónia e o soluço, reconforta a desesperança e faz chover - disse ela, rindo.

Beatriz suspirou, sem dar mostras de apreciar o humor da filha. Rosa voltou à tarefa de cortar cenouras e sofrer com a novela da rádio, enquanto resmungava que, quando há santos vivos, os santos mortos não fazem milagres. Irene saiu para mudar de roupa, pegar no gravador e esperar por Francisco Leal, que a acompanhava sempre no trabalho, para tirar fotografias.

 

Digna Ranquileo contemplou o campo e notou os indícios que anunciavam a mudança de estação.

-        Em breve, os animais irão ficar com cio e Hipólito partirá com o circo - murmurou, entre duas orações.

Acostumara-se a falar com Deus. Nesse dia, enquanto tratava do café da manhã, perdia-se em longas rezas e confissões. Os filhos tinham-lhe dito muitas vezes que esse costume evangélico provocava a zombaria de toda a gente. Porque não o fazia em silêncio e sem mover os lábios? Ela não lhes prestava atenção. Sentia o Senhor como uma presença física na sua vida, mais próximo e útil do que o marido, a quem só via durante o Inverno. Tratava de lhe pedir poucos favores, porque comprovara que os pedidos acabavam por desgostar os entes celestiais. Limitava-se a pedir conselho para as suas infinitas dúvidas e perdão pelos pecados seus e alheios, aproveitando para agradecer qualquer pequeno acontecimento benéfico: parou a chuva, passou a febre de Jacinto, amadureceram os tomates na horta. Contudo, há algumas semanas que importunava com frequência o Redentor, implorando por Evangelina.

-        Cura-a - rogava esta manhã, enquanto atiçava o fogo da cozinha e arrumava quatro tijolos para apoiar a grade de ferro sobre a lenha ardente. - Cura-a, meu Deus, antes que a levem para o manicómio.


Nunca, nem sequer diante da procissão de suplicantes que imploravam por um milagre, julgou que os ataques da filha fossem sintomas de santidade. Acreditava menos ainda em demónios excitadores, como asseguravam as comadres maldizentes, depois de verem na cidade um filme sobre exorcismos, em que a espuma na boca e os olhos perdidos eram sinais de Satanás. O seu senso comum, o contacto com a natureza e uma longa experiência de mãe de muitos filhos permitiam-lhe deduzir que aquilo era uma doença física e mental, sem nada de maléfico ou divino. Atribuía-o às vacinas recebidas durante a infância ou à chegada da menstruação. Sempre se opusera ao Serviço de Saúde, que ia de casa em casa agarrando as crianças escondidas nos arbustos da horta ou sob as camas. Embora esperneassem e ela jurasse que já tinham sido tratadas, mesmo assim procuravam-nas e aplicavam-lhes injecções sem piedade. Tinha a certeza de que esses líquidos se acumulavam no sangue, provocando alterações no organismo. Por outro lado, a menstruação constituía um acontecimento normal na vida de qualquer mulher, mas a algumas afogueava os humores e punha-lhes ideias perversas na mente. Qualquer dessas coisas podia ser a causa do terrível mal, mas de uma coisa tinha a certeza: a filha enfraqueceria, como acontece nas piores doenças, e se não se curasse num prazo razoável acabaria desenganada ou na cova. Outros filhos seus haviam morrido na infância, atacados por epidemias ou surpreendidos por acidentes irremediáveis. De qualquer maneira, acontecia em todas as famílias. Se fosse uma criancinha, não era lamentada, pois subia directamente às nuvens com os anjos, de onde intercedia pelos que ficavam na terra. Mas perder Evangelina parecia-lhe mais doloroso, já que devia responder por ela diante da sua verdadeira mãe. Não queria dar a impressão de que se tinha descuidado, porque as pessoas murmurariam nas suas costas.

Em sua casa, Digna era a primeira a levantar-se e a última a ir para a cama. Ao cantar do galo, já estava na cozinha arrumando a lenha sobre as brasas ainda mornas da noite anterior. A partir do momento em que punha a água do café a ferver, não voltava a sentar-se, sempre ocupada com as crianças, as lavagens, a comida, a horta, os animais. Os dias escoavam-se todos iguais, para ela, como um rosário de contas idênticas que determinavam a sua existência. Não conhecia o descanso e as únicas vezes em que descansava era para dar à luz. A sua vida era feita de rotinas encadeadas, sem variações, salvo as que as estações marcavam. Para ela, existia apenas trabalho e cansaço. O entardecer era o momento mais ameno do dia, quando pegava na costura, acompanhada pelo rádio a pilhas, e emigrava para um universo longínquo de que pouco entendia. O seu destino não parecia melhor nem pior do que outros. às vezes concluía ser mulher de sorte, porque ao menos Hipólito não se comportava como um camponês bruto, trabalhava no circo, era um artista, percorria estradas, via o mundo e, no regresso, contava factos admiráveis. Bebe os seus copos, não o nego, mas no fundo é bom, pensava Digna. Sentia-se muito desamparada na época de preparar os potreiros, semear, colher, mas esse marido itinerante tinha qualidades que compensavam. Só se atrevia a bater nela quando estava bêbado e só se Pradelio, o filho mais velho, não estivesse por perto, porque, diante do rapaz, Hipólito Ranquileo não lhe levantava a mão. Gozava de maior liberdade que outras mulheres, visitava as comadres sem pedir licença, podia assistir aos serviços religiosos da Verdadeira Igreja Evangélica e criava os filhos conforme a sua moral. Estava acostumada a tomar decisões e somente no Inverno, quando ele regressava ao lar, ela inclinava a cabeça,. baixava a voz e consultava-o antes de agir, por respeito. Mas também essa temporada tinha as suas vantagens, embora muitas vezes a chuva e a pobreza parecessem eternizar-se sobre a terra. Deitavam-se às cinco para economizar velas e, na quentura dos cobertores, podia apreciar quanto vale um homem.


Graças à sua profissão de artista, Hipólito não participou nos sindicatos rurais nem nas outras novidades do Governo anterior, de modo que, quando tudo voltou a ser como nos tempos ancestrais, deixaram-no em paz e não houve nada de funesto a lamentar. Filha e neta de camponeses, Digna era prudente e desconfiada. Nunca acreditou nas palavras dos assessores e, desde o começo, soube que a reforma agrária acabaria mal. Sempre o disse, mas ninguém lhe prestou atenção. A sua família teve mais sorte do que os Flores, os verdadeiros pais de Evangelina, e do que muitos outros trabalhadores da terra que perderam as esperanças e a vida nessa aventura de promessas e confusões.

Hipólito Ranquileo tinha virtudes de bom marido, era tranquilo, nada revoltado ou violento, ela não sabia de outras mulheres nem de vícios maiores. Todos os anos trazia um pouco de dinheiro para casa, além de algum presente, na maioria das vezes inútil, mas sempre bem-vindo, porque o importante é a intenção. Tinha um caracter galante. Nunca perdeu essa virtude como outros homens que, logo que se casam, tratam as mulheres como animais, dizia Digna, por isso ela lhe deu filhos, com alegria e até com certo prazer. Ao pensar nas carícias dele, ruborizava. O marido nunca a viu nua, o pudor antes de tudo, afirmava, mas isso não diminuía o encanto da sua intimidade. Enamorou-se pelas coisas belas que ele sabia dizer e decidiu ser sua esposa diante de Deus e do Registo Civil, por isso não deixou que ele a tocasse e chegou virgem ao casamento, tal como desejava que as suas filhas fizessem, assim as respeitariam e ninguém poderia criticá-las por serem cabeças-de-vento; mas aqueles eram outros tempos e agora é cada vez mais difícil cuidar das moças, mal a gente se descuida vão para o rio, mando-as à cidade comprar açúcar e perdem-se durante horas, preocupo-me em vesti-las com decência, mas elas levantam as saias, abrem os botões da blusa e pintam a cara. Ai, Senhor, ajuda-me a criá-las até ao casamento e então poderei descansar, que não se repita a desgraça da mais velha, perdoa-a, era muito jovem, e quase não se deu conta do que fazia, foi tão rápido para a pobrezinha, nem deu tempo de ela se deitar como os seres humanos, pariu de pé contra o salgueiro do fundo como as cadelas; protege as outras meninas para que não venha um desavergonhado aproveitar-se delas, porque desta vez o Pradelio matava-o; com o Jacinto já tive a minha parte de vergonha e sofrimento, pobre menino, ele não tem culpa da sua desonra.

Jacinto, o mais novo da família, era na realidade seu neto, fruto bastardo da sua filha mais velha e de um forasteiro que chegou no Outono, pedindo que o deixassem passar a noite na cozinha. Teve a sorte de nascer quando Hipólito percorria as aldeias com o circo e Pradelio cumpria o serviço militar. Desse modo, não houve, como teria cabimento, um homem para tirar desforra. Digna sabia o que devia fazer: agasalhou o recém-nascido, alimentou-o com leite de égua e mandou a mãe empregar-se como doméstica na cidade. Quando os homens voltaram, o facto estava consumado e tiveram de aceitá-lo. Depois, acostumaram-se à presença da criatura e acabaram por tratá-la como um outro filho. Não foi o único estranho criado no lar dos Ranquileo, pois antes de Jacinto outros foram acolhidos: órfãos perdidos que, por acaso, bateram à sua porta. Com o decorrer dos anos, esqueceram o parentesco e só ficou o costume e o carinho.


Como todas as manhãs, quando a aurora surgia atrás dos montes, Digna preparou o chá de mate para o marido e colocou a sua cadeira no cantinho perto da porta, onde o ar passava mais puro. Queimou uns torrões de açúcar e pôs dois em cada púcaro, a fim de preparar a infusão de poejo para os filhos mais velhos. Humedeceu o pão do dia anterior e colocou-o sobre as brasas, coou o leite dos meninos e, numa frigideira de ferro, enegrecida pelo uso, misturou alguns ovos e cebola.

 

Quinze anos haviam passado desde o dia do nascimento de Evangelina no hospital de Los Riscos, mas Digna podia lembrar-se dele como se tivesse ocorrido recentemente. Tendo parido tantas vezes, deu à luz com rapidez e, tal como fazia sempre, apoiou-se sobre os cotovelos para ver o bebé sair-lhe do ventre, comprovando a semelhança com os outros filhos: o cabelo liso e escuro do pai e a pele branca que a fazia sentir-se orgulhosa. Por isso, quando lhe levaram uma criança enrolada em trapos e reparou numa penugem ruiva cobrindo-lhe o crânio quase calvo, soube com toda a certeza que não era a sua. O seu primeiro impulso foi repeli-la e protestar, mas a enfermeira estava com pressa, negou-se a escutar os motivos, pôs-lhe o volume nos braços e desapareceu. A menina começou a chorar e Digna, com um gesto antigo como a história, abriu a camisola e levou-a ao peito, enquanto comentava com as vizinhas, na sala comum da maternidade, que certamente havia um erro: essa não era a sua filha. Quando acabou de amamentá-la, levantou-se com alguma dificuldade e foi explicar o problema à parteira do andar, porém esta retorquiu que ela estava enganada, nunca acontecera nada disso no hospital, isso de trocar crianças ia contra o regulamento. Acrescentou que certamente estava mal dos nervos e, sem mais delongas, injectou-lhe um líquido no braço. Depois mandou-a de volta para a cama. Horas depois, Digna Ranquileo despertou com a gritaria de outra parturiente, no extremo oposto da sala.

- Trocaram-me a menina! - gritava.

Alarmados com o escândalo, acudiram enfermeiras, médicos e até o director do hospital. Digna aproveitou para expor também o seu problema da forma mais delicada possível, porque não desejava ofender. Explicou que trouxera ao mundo uma criança morena e lhe entregaram outra de cabelo amarelo, sem a menor semelhança com os seus filhos. Que pensaria o marido ao vê-la?


O director do estabelecimento mostrou-se indignado: ignorantes, sem consideração, em vez de agradecerem por serem bem atendidas armam-me uma desordem. As duas mulheres preferiram calar-se e esperar uma oportunidade melhor. Digna estava arrependida de ter ido ao hospital e acusava-se pelo acontecido. Até então, todos os seus filhos tinham nascido em casa, com a ajuda de Mamita Encarnación, que acompanhava a gravidez desde os primeiros meses e aparecia à véspera do parto, permanecendo até que a mãe pudesse ocupar-se dos seus afazeres. Trazia as suas ervas para fazer parir rápido, as tesouras bentas pelo bispo, os panos limpos e fervidos, as compressas cicatrizantes, os bálsamos para os mamilos, as estrias e os rompimentos, a linha para costurar e uma indiscutível sabedoria. Enquanto preparava o ambiente para a criança que vinha a caminho, falava sem parar para entreter a doente com os mexericos locais e outras histórias que inventava e cuja finalidade era encurtar o tempo e minorar o sofrimento. Essa mulher pequena, ágil, envolta num aroma permanente de fumo e alfazema, ajudava a nascer quase todos os bebés da região há mais de vinte anos. Nada exigia pelos préstimos, mas vivia desse ofício, porque os agradecidos passavam diante do seu rancho, deixando ovos, fruta, lenha, aves, uma lebre ou uma perdiz da última caçada. Mesmo nas piores épocas de miséria, quando se perdiam as colheitas e o ventre dos animais secava, não faltava o necessário no lar de Mamita Encarnación. Conhecia todos os segredos da natureza relativos ao acto de nascer e também alguns infalíveis sistemas para abortar com ervas ou tocos de vela, que só utilizava em casos de reconhecida justiça. Se os seus conhecimentos falhavam, empregava a intuição. Quando finalmente a criança abria caminho para a luz, cortava o cordão umbilical com as tesouras milagrosas para lhe dar força e saúde, em seguida examinava-a dos pés à cabeça para ter a certeza de que nada havia de estranho na sua constituição. Se descobria uma deficiência, prenúncio de uma vida de sofrimento ou de um peso para os outros, abandonava o recém-nascido à sua sorte, mas se tudo estava na ordem de Deus agradecia aos Céus e tratava de iniciá-lo nas vicissitudes da vida com um par de palmadas. Fazia com que a mãe ingerisse borragem para expulsar o sangue negro e os maus humores, óleo de rícino para limpar o intestino e cerveja com gemas cruas para garantir abundância de leite. Durante três ou quatro dias, encarregava-se da casa, cozinhava, varria, servia a comida para a família e cuidava da ninhada de crianças. Fora assim em todos os partos de Digna Ranquileo, mas quando nasceu Evangelina a parteira estava na prisão por exercício ilegal da medicina e não pôde atendê-la. Por essa razão, e tão-só por isso, Digna recorreu ao hospital de Los Riscos, onde se sentiu tratada pior que um condenado. Ao entrar puseram-lhe um adesivo com um número no pulso, rasparam-lhe as partes intimas, lavaram-na com água fria e desinfectante, sem considerarem a possibilidade de lhe secarem o leite para sempre, colocaram-na numa cama sem lençóis, com outra mulher em idênticas condições. Depois de lhe mexerem, sem pedirem licença, em todos os orifícios do corpo, fizeram-na dar à luz debaixo de uma lâmpada, à vista de quem quisesse bisbilhotar. Suportou tudo sem um suspiro, mas quando saiu dali com uma filha que não era a sua nos braços e com as vergonhas pintadas de vermelho como uma bandeira, jurou não voltar a pôr os pés num hospital para o resto da vida.

Digna acabou de fritar os ovos mexidos com cebola e chamou a família para a cozinha. Cada um apareceu com a sua cadeira. Quando as crianças começavam a andar, ela designava-lhes um assento próprio, pessoal e inviolável, única posse na pobreza comunitária dos Ranquileo. Mesmo a cama era partilhada e a roupa era guardada em grandes cestos de vime, de onde, todas as manhãs, a família retirava o necessário. Nada tinha dono.


Hipólito Ranquileo sorvia ruidosamente o mate e mastigava vagarosamente o pão, devido aos dentes ausentes e aos outros que lhe dançavam nas gengivas. Parecia saudável, embora nunca se mostrasse forte, mas agora estava envelhecendo, os anos precipitaram-se de súbito sobre ele. Isso era atribuído pela mulher à vida errante do circo, sempre vagueando sem rumo fixo, comendo mal, pintando o rosto com esses indecentes cosméticos permitidos por Deus às perdidas da rua, mas danosos a uma pessoa decente. Em poucos anos, o garboso moço que aceitou por noivo converteu-se nesse homenzinho encolhido com um rosto apergaminhado à força de fazer caretas, em que o nariz parecia uma bilha, que tossia de mais e caía dormindo no meio de uma conversa. Nos meses de frio e de inactividade forçada, costumava divertir as crianças vestindo os atavios de palhaço. Sob a máscara branca e a enorme boca vermelha aberta em gargalhada permanente, a mulher via os sulcos do cansaço. Como já estava um tanto decrépito, tornava-se cada vez mais difícil para ele conseguir trabalho, e ela cultivava a esperança de vê-lo estabelecido no campo, ajudando-as nas tarefas. Agora impunha-se o progresso à força e as novas disposições pesavam como fardos nos ombros de Digna. Os camponeses também tinham de adaptar-se à economia de mercado. A terra e os seus produtos entravam na livre concorrência, cada um prosperava de acordo com os seus rendimentos, iniciativa e eficiência empresarial e até os índios iletrados padeciam o mesmo destino, com grandes vantagens para aqueles que possuiam dinheiro, pois podiam comprar por centavos ou arrendar por 99 anos as propriedades dos agricultores pobres, como os Ranquileo. Mas ela não queria abandonar o lugar onde tinha nascido e criado os filhos para ir viver numa qualquer aldeola agrícola modernaça. Aí os patrões contratavam todos os dias a mão-de-obra necessária, evitando problemas com os rendeiros. Isso representava a pobreza dentro da pobreza. Ela queria que a família trabalhasse os seis palmos de terra da sua herança, mas cada vez se tornava mais difícil defender-se das grandes empresas, especialmente sem o arrimo de um homem que a ajudasse em tantos trabalhos pesados.

Digna Ranquileo sentiu pena do marido. Reservara para ele a melhor porção do guisado, os maiores ovos, a lá mais suave para tecer os seus coletes e meias. Preparava-lhe ervas para os rins, para despertar as ideias, para purificar o sangue e ajudar o sono, mas era evidente que, apesar dos seus esforços, Hipólito envelhecia. Nesse momento dois meninos brigavam pelos restos dos ovos mexidos e ele observava-os indiferente. Em tempos normais, teria intervindo à bofetada para separá-los, mas agora só tinha olhos para Evangelina, seguia-a com o olhar como se temesse vê-la transformada num monstro como os do circo. A essa hora a menina era uma a mais no monte de crianças friorentas e despenteadas. Nada no seu aspecto indicava o que aconteceria dentro de algumas horas, exactamente ao meio-dia.

- Cura-a, Deus meu - repetiu Digna, cobrindo o rosto com o avental, para que não a vissem falando sozinha.

 

A manhã anunciava-se tão tranquila que Hilda sugeriu que tomassem o café da manhã na cozinha, aquecida apenas pelo calor do fogão, mas o marido lembrou-lhe que tinha de ter cuidado com os resfriados, pois em menina sofrera dos pulmões. Segundo o calendário, era Inverno ainda, mas, pela cor das madrugadas e o canto das cotovias, adivinhava-se a chegada da Primavera. Precisavam de economizar combustível. Eram tempos de carestia, mas, tendo em conta a fragilidade da mulher, o professor Leal insistia em acender o aquecedor a querosene. O velho aparelho circulava pelos aposentos de dia e de noite, acompanhando o trânsito daqueles que viviam ali.

Enquanto Hilda arrumava as louças, o professor Leal, com casaco, cachecol e pantufas, saiu para o pátio para colocar grãos nos comedouros e água fresca nas vasilhas. Notou os minúsculos brotos na árvore e imaginou que em pouco tempo os galhos se encheriam de folhas, como uma verde cidadela para abrigar os pássaros migratórios. Gostava de vê-los voar livremente tanto como odiava as gaiolas, porque considerava imperdoável aprisioná-los só para se dar ao luxo de tê-los diante dos olhos. Também nas minúcias era consequente com os seus princípios anarquistas: se a liberdade é o primeiro direito do homem, com maior razão devia sê-lo para as criaturas nascidas com asas nas costas.

Francisco, seu filho, chamou-o da cozinha, avisando que o chá estava servido e que José chegara para uma visita; O professor apressou-se, porque não era comum recebê-lo tão cedo num sábado, solicitado sempre pela interminável tarefa de socorrer o próximo. Viu-o sentado à mesa e reparou pela primeira vez que começava a perder cabelo na nuca.

- Qual é o problema, filho? Aconteceu alguma coisa? - perguntou, tocando-lhe no ombro.

- Nada, velho. Estou com vontade de tomar um café decente feito pela mãe.


Era o mais robusto e rude da família, o único sem os ossos grandes e o nariz aquilino dos Leal. Parecia um pescador meridional e na sua aparência nada denunciava a delicadeza de alma que o caracterizava. Entrou no seminário logo a seguir ao secundário e essa decisão não surpreendeu ninguém, excepto o pai, porque desde menino que assumia atitudes de jesuíta e passou a infância vestindo-se de bispo com as toalhas de banho e brincando a rezar missa. Não havia explicação para esses pendores, porque na sua casa ninguém praticava abertamente a religião e a mãe, embora se confessasse católica, não ia à missa desde que casara. A consolação do professor Leal perante a decisão do filho era que não usava batina mas calças de operário, não vivia no convento mas numa povoação operária e estava mais próximo dos trágicos sobressaltos deste mundo do que dos mistérios eucarísticos. José vestia uma calça herdada do irmão mais velho, uma camisa desbotada e uma camisola de lã grossa feita pela mãe. Tinha as mãos calosas, devido às ferramentas de canalizador, com que custeava os seus gastos.

-        Estou a organizar cursos de cristandade - disse num tom irónico.

-        Bem vejo - respondeu Francisco com conhecimento de causa, porque trabalhavam juntos num consultório gratuito da paróquia e estava informado sobre as actividades do irmão.

- Ai, José, não te metas em política - suplicou Hilda. - Queres que te prendam de novo, meu filho?

A última preocupação de José Leal era com a sua própria segurança. Não lhe faltava o ânimo para aguentar todos os infortúnios alheios. Carregava sobre os ombros um peso insuportável de dor e injustiça. Frequentemente censurava o Criador, que pusera à prova tão duramente a sua fé: se existia o amor divino, tanto sofrimento humano parecia um escárnio. Naquela árdua tarefa de alimentar pobres e amparar órfãos, perdeu o verniz eclesiástico adquirido no seminário, transformando-se definitivamente num ser rude, dividido entre a impaciência e a piedade. O pai distinguiu-o entre todos os filhos, porque podia ver a semelhança entre os seus próprios ideais filosóficos e o que qualificava de bárbara superstição cristã do filho. Isso reconfortou-o, acabou perdoando a vocação religiosa de José e deixou de queixar-se à noite com a cabeça afundada no travesseiro, para não preocupar a mulher, desabafando a vergonha de ter um padre na família.

-        Na realidade vim-te buscar - disse José, dirigindo-se a Francisco. - Tens de ir ver uma menina na aldeia. Foi violentada há uma semana e desde então ficou muda. Usa os teus conhecimentos de psicologia, porque Deus não dá conta de tantos problemas.

-        Hoje é impossível, tenho de ir com a Irene tirar umas fotografias, mas amanhã verei a criança. Quantos anos tem?

-        Dez.

-        Meu Deus! Que monstro pode fazer isso a uma pobre inocente? - exclamou Hilda.

-        O pai.

-        Basta, por favor! - ordenou o professor Leal. - Queres que a tua mãe fique doente?


Francisco serviu chá para todos e ficaram em silêncio por um instante, buscando um assunto de conversa para dissipar a angústia de Hilda. Apesar de ser a única mulher numa família de varões, conseguia impor a sua doçura e discrição. Não se lembravam de tê-la visto irritada. Na sua presença não havia rixas de meninos, gracejos picantes ou grosserias. Na infância, Francisco costumava ficar angustiado com a suspeita de que a mãe, submetida à rudeza da vida, poderia ir desaparecendo imperceptivelmente, até se sumir de vez, como a névoa. Corria então para o pé dela, abraçava-a, segurava-a pela roupa numa tentativa desesperada de reter a sua presença, o seu calor, o cheiro do avental, o som da voz. Havia passado muito tempo desde então, mas a ternura por ela ainda era o seu sentimento mais inabalável.

Apenas Francisco permaneceu na casa paterna depois de Javier ter casado e de José ter partido para o seminário. Ocupava o mesmo quarto de infância, com móveis de pinho e estantes atulhadas de livros. Certa vez pretendeu alugar uma casa sua, mas, no fundo, gostava da companhia da família e, por outro lado, não desejava causar uma dor desnecessária aos pais. Para eles existiam somente três razões para que um filho saísse de casa: a guerra, o casamento ou o sacerdócio. Depois acrescentariam outra: fugir da polícia.

A casa dos Leal era pequena, modesta, carente de pinturas e reparações. De noite rangia suavemente, como uma velha cansada e reumática. Fora desenhada pelo professor Leal muitos anos antes, pensando que as únicas coisas indispensáveis eram uma ampla cozinha onde passasse a vida e onde pudesse instalar uma impressora clandestina, um pátio para pendurar a roupa e sentar-se a olhar os pássaros, e quartos suficientes para pôr as camas dos filhos. O resto dependia da amplidão do espírito e da vivacidade do intelecto, dizia ele quando alguém reclamava do aperto ou da simplicidade. Ali se acomodaram, e houve espaço e boa vontade para os receber, os amigos na desgraça e os parentes vindos da Europa, fugindo da guerra. Tratava-se de uma família afectuosa. Em plena adolescência, quando já raspavam os bigodes, os rapazes ainda iam pela manhã à cama dos pais para ler o jornal e pedir a Hilda que lhes coçasse as costas. Quando os filhos mais velhos saíram de casa, os Leal sentiram que a casa ficara grande, viam sombras nos cantos e ouviam ecos no corredor, mas logo nasceram os netos e voltou o rebuliço habitual.

-        É preciso consertar o tecto e mudar as canalizações - dizia Hilda sempre que chovia ou aparecia uma nova goteira.

-        Para quê? Ainda temos a nossa casa em Teruel e quando o Franco morrer voltamos para Espanha - respondia o marido.

O professor Leal sonhava com o regresso à pátria desde o dia em que o barco o levou das costas europeias. Indignado contra o Caudilho, jurou não usar meias até sabê-lo enterrado, sem imaginar quantas décadas teria de esperar para cumprir o seu desejo. Tal promessa causou-lhe placas nos pés e alguns dissabores nas negociações profissionais. Em algumas ocasiões conversou com personagens importantes ou foi encarregado de fazer exames em colégios e ginásios, e os seus pés nus dentro dos grandes sapatos de sola de borracha removiam os preconceitos alheios. Mas era demasiado orgulhoso, e antes de dar explicações preferia ser considerado como um estrangeiro extravagante ou um miserável cujos rendimentos não chegavam para comprar meias. Na única oportunidade em que pôde ir com a família à montanha para desfrutar de perto a neve, permaneceu no hotel com os pés azuis e gelados como arenques.

- Calça as meias, homem. Não vês que o Franco nem sabe da tua promessa? - suplicou-lhe Hilda.

O professor fulminou-a com um olhar cheio de dignidade e continuou solitário perto da lareira. Uma vez morto o seu grande inimigo, calçou um par de meias vermelhas e brilhantes, que em si mesmas continham toda a sua filosofia existencial, mas não demorou meia hora e viu-se obrigado a descalçá-las. Passara muito tempo sem meias e já não as tolerava. Então, para disfarçar, jurou que continuaria a não as usar até à queda do general que governava com mão de ferro a sua pátria adoptiva.

- Ponham-mas quando estiver morto, caralho - dizia. Quero ir para o inferno com meias vermelhas!


Não acreditava no prolongamento da vida depois da morte, mas, nesse sentido, toda a cautela era pouca para o seu temperamento nobre. A democracia em Espanha não lhe devolveu o uso das meias nem o fez regressar, porque os filhos, os netos e as raízes americanas o retiveram. Nem a casa recebeu os consertos necessários. Depois do golpe militar, outras urgências ocuparam a família. Por causa das suas ideias políticas, o professor Leal foi inserido na lista dos indesejáveis e compelido a aposentar-se. Não perdeu o optimismo ao ver-se sem trabalho e com uma pensão reduzida, mas acertadamente resolveu imprimir na cozinha um folheto em que se oferecia para dar aulas de Literatura e distribui-o onde pôde. Os poucos alunos que arranjou conseguiram equilibrar um pouco o orçamento e assim puderam viver com simplicidade e ajudar Javier. O filho mais velho encontrava-se em sérias dificuldades económicas para manter a mulher e três filhos. O nível de vida dos Leal baixou, como aconteceu com tantos do seu meio. Prescindiram dos concertos, do teatro, dos livros, dos discos e de outros requintes que tornam o quotidiano mais agradável. Mais tarde, quando se tornou evidente que também Javier não encontraria trabalho, o pai decidiu construir duas divisões e um banheiro no pátio para acolhê-lo mais a família. Nos fins-de-semana, os três irmãos reuniam-se para assentar tijolos sob as ordens do professor Leal, que ia buscar os seus conhecimentos a um manual de construção comprado num saldo de livros velhos. Como nenhum deles tinha experiência nesse ofício e faltavam várias folhas ao manual, o resultado que se podia prever, uma vez concluída a obra, é que seria uma construção de paredes tortas, disfarçadas com uma trepadeira. Javier opôs-se até ao fim à ideia de viver a expensas dos pais. Por herança, possuía um carácter orgulhoso.

- Onde comem três, comem oito - disse Hilda sem alterar a habitual circunspecção. Quando tomava uma decisão, geralmente era inapelável.

-        São tempos muito ruins, filho, temos de nos ajudar - acrescentou o professor Leal.


Mal-grado os problemas, sentia-se satisfeito com a sua vida e teria sido completamente feliz se não o atormentasse, desde a sua primeira juventude, a devastadora paixão revolucionária que lhe determinou o carácter e a existência. Dedicou boa parte da sua energia, tempo e rendimentos a divulgar os princípios ideológicos que defendia. Formou os três filhos na sua doutrina, ensinou-os desde pequenos a trabalhar com a impressora clandestina da cozinha e foi com eles distribuir panfletos às portas das fábricas, a um passo da polícia. Hilda estava sempre a seu lado nas reuniões sindicais, levando consigo as agulhas incansáveis nas mãos e a lã, dentro de uma sacola, no colo. Enquanto o marido discursava para os camaradas, ela perdia-se num mundo secreto, saboreando lembranças, bordando afectos, recriando as suas melhores nostalgias, completamente alheia ao tumulto das discussões políticas. Ao longo de um amplo e suave processo de depuração, conseguiu expurgar a maior parte das penas passadas e só guardava as evocações felizes. Nunca falava da guerra, dos mortos que enterrara, do seu acidente ou da longa marcha para o exílio. Quem a conhecia atribuía essa memória selectiva ao golpe que lhe partira a cabeça na juventude, mas o professor Leal podia interpretar os pequenos sinais e suspeitava que ela não esquecera nada. Simplesmente, não desejava incomodar com os pesares de outros tempos, por isso não os mencionava, anulando-os com o silêncio. A mulher tinha-o acompanhado por todos os caminhos durante tanto tempo que não podia recordar a vida sem ela. Ia a seu lado com passo firme nas manifestações de rua. Criaram os filhos em intima colaboração. Ajudou os mais necessitados, acampou a céu aberto nas noites de greve e amanheceu costurando roupa alheia por encomenda, quando não atingia o salário capaz de manter a família. Com o mesmo entusiasmo, seguiu-o para a guerra e para o exílio, levou-lhe comida quente ao cárcere quando foi detido e não perdeu a calma no dia em que lhe penhoraram os móveis, nem o bom humor quando dormiam tremendo de frio, na coberta de terceira classe de um navio de refugiados. Hilda aceitava todas as extravagâncias do marido - e não eram poucas - sem perturbar a sua própria paz, porque tanta vida compartilhada não fizera senão aumentar o amor que sentia por ele.

Há muito tempo, numa pequena aldeia de Espanha, entre colinas abruptas e vinhedos, ele tinha-a pedido em casamento. Ela respondeu que era católica e pretendia continuar a sê-lo, que não tinha nada de pessoal contra Marx, mas não suportaria o seu retrato na cabeceira da cama e que os seus filhos seriam baptizados para evitar o risco de que morressem pagãos e fossem parar ao limbo. O professor de Lógica e Literatura era comunista fervoroso e ateu, mas tinha intuição e compreendeu que nada faria mudar de opinião essa jovem corada e frágil com olhos brilhantes, por quem, com toda a certeza, estava apaixonado. Por isso, o melhor era negociar um pacto. Combinaram casar-se pela Igreja, única forma legal de fazê-lo nessa época, que os filhos receberiam os sacramentos, mas iriam para escolas leigas, que caberia a ele dar nome aos varões e ela às meninas e que seriam enterrados num túmulo sem cruz, com um epitáfio de conteúdo pragmático, redigido por ele. Hilda aceitou, porque esse homem delgado com mãos de pianista e fogo nas veias era o que sempre tinha desejado por companheiro. Ele cumpriu a sua parte do acordo com a escrupulosa honestidade que o caracterizava, mas Hilda não mostrou a mesma rectidão. No dia do nascimento do primogénito, o marido estava longe, na guerra, e, quando pôde ir visitá-los, o menino já tinha sido baptizado Javier, como o seu avô. A mãe mostrou-se consternada, mas não era altura para brigas. Contudo, ele decidiu apelidá-lo de Víadimir, primeiro nome de Lenine. Nunca pôde fazê-lo, porque quando o chamava desse modo a mulher perguntava-lhe a que diabo se referia e, por outro lado, a criança olhava-o com uma expressão de espanto e não respondia. Pouco antes do parto seguinte, Hilda despertou certa manhã contando um sonho: dava à luz um menino e deviam chamá-lo José. Exaltados, discutiram durante algumas semanas, até chegar à solução justa: José Ilich. Depois, lançaram uma moeda ao ar para decidir que nome usariam e Hilda ganhou, o que já não era culpa dela, mas da sorte, a quem não agradava o segundo nome do líder revolucionário. Anos mais tarde nasceu o último filho e nessa época o professor Leal perdera parte do seu entusiasmo pelos soviéticos, de forma que se livrou de lhe chamarem Ulianov. Hilda deu-lhe o nome de, Francisco em honra ao santo de Assis, poeta dos pobres e dos animais. Talvez por isso, por ser o mais novo e tão parecido com o pai, foi favorecido com uma ternura especial. O menino retribuiu o amor total da mãe com um perfeito complexo de Édipo, que perdurou até à adolescência, quando as alterações hormonais o levaram a compreender que existiam outras mulheres neste mundo.

Nesse sábado, pela manhã, Francisco acabou o chá, pôs aos ombros a maleta com o equipamento fotográfico e despediu-se da família.

-        Protege-te, o vento da moto é terrível - disse a mãe.

-        Deixa-o em paz, mulher, já não é uma criança - reclamou o marido, e os filhos sorriram.

 


Nos primeiros meses após o nascimento de Evangelina, Digna Ranquileo lamentou a sua desventura e suspeitou de um castigo do Céu por ter recorrido ao hospital em vez de ficar em casa. Parirás com dor, dizia claramente a Bíblia e assim lhe recordara o reverendo. Mas logo compreendeu o quanto são insondáveis os desígnios do Senhor. Essa criatura ruiva de olhos claros talvez significasse algo no seu destino. Com a ajuda espiritual da Verdadeira Igreja Evangélica, aceitou a provação e dispôs-se a amar essa menina, apesar das suas manhas. Lembrava-se com frequência da outra, a que foi levada pela comadre Flores e que por justiça lhe pertencia. O marido consolava-a dizendo que parecia mais saudável e forte e com certeza se criaria melhor com a outra família.

Os Flores são proprietários de um bom pedaço de terra. Por lá dizem que irão comprar um tractor. São mais cultos, pertencem ao Sindicato Agrícola - argumentava Hipólito anos atrás, antes de a desgraça se abater sobre a casa dos Flores.

Depois do parto, as duas mães tentaram reclamar as respectivas filhas, afirmando que as viram nascer e que se deram conta do erro pela cor dos cabelos, mas o director do hospital não quis falar do assunto e ameaçou-as com prisão, por lançarem calúnias contra a instituição. Os pais sugeriram simplesmente que trocassem as meninas e ficassem em paz, mas elas não queriam fazê-lo ilegalmente. Decidiram, com carácter provisório, ficar com a que tinham nos braços até que se esclarecesse a confusão perante a autoridade. Porém, depois de uma greve do Serviço de Saúde e de um incêndio no Registo Civil, onde o pessoal foi substituído e desapareceram os arquivos, perderam a esperança de obter justiça. Optaram por criar as filhas alheias como se fossem as próprias. Embora vivessem a pouca distância, tinham poucas oportunidades de se encontrar, pois levavam vidas muito isoladas. Desde o início, concordaram em chamar-se mutuamente comadres e dar às crianças o mesmo nome de baptismo, para que se por acaso recuperassem o nome legitimo não tivessem necessidade de se acostumar a um novo. Também lhes contaram a verdade logo que chegaram à idade de compreender, porque de todo o modo saberiam mais cedo ou mais tarde. Toda a gente na região conhecia a história das Evangelinas trocadas e não faltaria quem estivesse disposto a levar o mexerico até ao conhecimento das meninas.

Evangelina Flores tornou-se uma típica camponesa morena, de olhos agudos, amplos quadris e seios opulentos, bem plantada nas pernas grossas e torneadas. Era forte e de temperamento alegre. Aos Ranquileo coube uma criatura chorona, lunática, frágil e difícil de cuidar. Hipólito dispensava-lhe um tratamento especial, com respeito e admiração pela sua pele rosada e pelo cabelo tão claro, tão raros na família. Quando ele estava em casa, vigiava de forma austera os meninos, para que não fossem exceder-se com essa menina que não era do próprio sangue. Por duas vezes surpreendeu Pradelio fazendo-lhe cócegas, tocando-a disfarçadamente, beijando-a, e para tirar-lhe o desejo de incomodá-la aplicou-lhe umas surras que por pouco não o mandavam para o outro mundo, porque, diante de Deus e dos homens, Evangelina devia ser como uma irmã. No entanto, Hipólito permanecia em casa somente durante alguns meses e, no resto do ano, nada podia fazer para que fossem acatadas todas as suas ordens.


Desde que fugira com um circo aos treze anos, Hipólito Ranquileo exerceu sempre esse ofício e jamais se interessou por outro. A mulher e os filhos diziam-lhe adeus quando começava o bom tempo e floresciam os barracões remendados. De terra em terra percorria o país para apresentar as suas habilidades em cansativas representações fugazes e festivas para gente pobre. Realizava múltiplas tarefas sob a tenda. No começo, actuou como trapezista e saltimbanco, mas, com o correr dos anos, perdeu o equilíbrio e a destreza. Depois, fez uma breve incursão como domador de algumas feras lamentáveis que o deixavam cheio de piedade, arrasando-lhe os nervos. Por fim conformou-se com as funções de palhaço. A sua vida, igual à de qualquer camponês, dependia do regime das chuvas e da luz do sol. Nos meses frios e húmidos, a sorte não sorria para os circos pobres e ele hibernava para o seu lar, mas com a chegada da Primavera despedia-se dos seus e partia sem escrúpulos, deixando à mulher o cuidado dos filhos e das lidas do campo. Ela dirigia melhor esses assuntos, porque tinha nas veias a experiência de várias gerações. A única vez que ele foi à aldeia com o rendimento da colheita, para comprar roupa e provisões para o ano inteiro, embebedou-se e roubaram-lhe tudo. Durante meses, faltou açúcar na mesa dos Ranquileo e ninguém teve sapatos novos, e por isso ele preferia delegar as actividades comerciais na esposa. Ela também preferia assim. Desde o início da sua vida de casada assumiu a responsabilidade da família e da lavoura. Era habitual vê-la inclinada sobre o tanque da roupa ou sobre o sulco do arado, rodeada por um enxame de crianças de várias idades penduradas na sua saia. Depois Pradelio cresceu e ela julgou que ele lhe daria ajuda em tanto trabalho. Porém, Pradelio, aos quinze anos, era o rapagão mais alto e mais forte jamais visto por ali e por isso a todos pareceu natural que, mal concluído o serviço militar, ingressasse na polícia.

Ao cair das primeiras chuvas, Digna Ranquileo levava a sua cadeira para o corredor e punha-se a perscrutar a curva da estrada. As mãos, sempre ocupadas, teciam cestos de vime ou ajeitavam a roupa dos meninos, ao passo que os seus olhos, atentos, distraíam-se de vez em quando para observar o caminho. De repente, um dia qualquer, aparecia a pequena figura de Hipólito com a sua mala de papelão. Assim surgia, finalmente materializado, o motivo da sua nostalgia, aproximando-se a passos cada vez mais vagarosos, mas sempre terno e brincalhão. O coração de Digna vibrava, tal como acontecera pela primeira vez há muitos anos, quando o conheceu na bilheteira de um circo ambulante, com a sua indecorosa libré verde e dourada e a exaltada expressão dos seus olhos negros, convidando o público a entrar para o espectáculo. Nessa altura tinha um rosto agradável, porque a máscara de palhaço ainda não se tinha colado à sua pele. A sua mulher nunca pôde recebê-lo com naturalidade. Uma impetuosidade de adolescente oprimia-lhe o peito e logo queria lançar-se ao seu pescoço para ocultar as lágrimas. Porém, os meses de separação exacerbavam o seu pudor e afinal saudava-o com um gesto contido, de olhos baixos, ruborizada. O seu homem estava ali, regressara, tudo seria diferente durante um certo tempo, porque ele se esmerava em remediar ausências. Nos meses seguintes ela invocaria os espíritos benéficos da sua Bíblia para que a chuva não parasse, imobilizando o calendário num Inverno sem fim.


Em compensação, para os filhos o regresso do pai era um acontecimento menor. Um dia, quando chegavam da escola ou da lida nos potreiros, encontravam-no sentado na sua cadeira de braços de vime junto à porta, com o mate na mão, mimetizado na cor do Outono, como se nunca se tivesse despegado desses campos, dessa casa, das parreiras com seus cachos secando nos galhos, dos cães deitados no pátio. Os meninos percebiam os olhos turvos de impaciência da mãe, a vivacidade dos seus gestos para atender ao marido, vigiando com inquietação esses encontros para evitar impertinências. O respeito pelo pai é o pilar da família, assim está no Antigo Testamento, por isso é proibido chamar-lhe Tony Chalupa e tão-pouco se pode falar de seu ofício de palhaço, não façam perguntas, esperem que ele lhes conte quando tiver vontade. Durante a juventude, quando Hipólito era disparado por um canhão de um extremo ao outro da lona, aterrando sobre a rede com o fragor da pólvora e um sorriso inquieto, passado o espanto os filhos podiam sentir-se orgulhosos dele, porque voava como um gavião. Mais tarde Digna proibiu-os de irem ao circo ver a decadência do pai com as suas tristes piruetas, preferia que conservassem na memória essa imagem airosa e não se envergonhassem das suas roupas grotescas de palhaço velho, abatido e humilde, soltando gases, falando em falsete e rindo sem razão. Quando o circo passou por Los Riscos, arrastando um urso desgrenhado e chamando os habitantes com buzinadas, para que assistissem ao grandioso espectáculo internacional aclamado por todos os públicos, Digna negou-se a levar os meninos, com medo dos palhaços, todos iguais em aparência e todos como Hipólito. No entanto, na intimidade do lar, ele vestia o disfarce e pintava o rosto, mas não para dar cambalhotas indecentes ou contar piadas grosseiras, mas para diverti-los com as suas histórias fantasmagóricas: a mulher barbada, o homem-gorila, tão forte que conseguia arrastar um camião com um arame preso nos dentes, o engole-fogo, capaz de engolir uma tocha acesa com querosene, mas incapaz de apagar uma vela com os dedos, a anã albina galopando à garupa de uma cabra, o trapezista que caiu de cabeça do mastro mais alto e salpicou o respeitável público com os seus miolos.

- O cérebro dos cristãos é igual ao das vacas - explicava Hipólito ao finalizar a trágica anedota.

Os filhos não se cansavam de ouvir sempre as mesmas histórias, sentados em círculo à volta do pai. Diante dos olhos maravilhados da família, que escutava as suas palavras suspensas no tempo, Hipólito Ranquileo recuperava toda a dignidade perdida em funções de meia-tigela, onde era alvo de zombarias.

Nalgumas noites de Inverno, enquanto os meninos dormiam, Digna tirava a mala de papelão escondida debaixo da cama e, à luz de uma vela, examinava a roupa de trabalho do marido, tornava a pregar os enormes botões vermelhos, cerzia rasgões aqui e pregava remendos estratégicos ali, lustrava com cera de abelha os descomunais sapatos amarelos e tecia em segredo as meias listradas. Havia nesses pequenos trabalhos a mesma ternura arrebatada dos seus breves encontros amorosos. No silêncio nocturno os pequenos sons ampliavam-se, a chuva batia nas telhas e a respiração dos filhos nas camas vizinhas era tão nítida que a mãe podia adivinhar-lhes os sonhos. O casal abraçava-se sob os cobertores, sufocando os suspiros, envoltos no calor de uma discreta conspiração amorosa. Bem diferente dos outros camponeses, casaram-se apaixonados e por amor geraram filhos. Por isso, nem mesmo nas épocas mais difíceis de seca, terramoto ou inundações, quando a panela estava vazia, lamentaram a chegada de outra criança. Os filhos são como as flores, e o pão, diziam, uma bênção de Deus.


Hipólito Ranquileo aproveitava a permanência em casa para levantar cercas, juntar lenha, consertar ferramentas e remendar o telhado, quando diminuía a chuva. Com as poupanças das viagens circenses e a venda de mel e porcos a família mantinha-se bem, graças a uma estrita economia. Nos bons anos não faltava alimento, mas mesmo nas melhores épocas o dinheiro revelava-se muito escasso. Não se jogava nada fora nem se perdia coisa alguma. Os mais novos recebiam a roupa dos mais velhos, e continuavam a usá-la até ao dia que os esfarrapados tecidos já não suportavam mais remendos e estes se desmanchavam como crostas secas. As camisolas de lã desfaziam-se até à última fibra, lavava-se a lã e tornava-se a tecê-la. O pai fabricava alpargatas para todos e a mãe não dava tréguas às agulhas e à máquina de costura. Não se sentiam pobres como outros camponeses, porque eram donos da terra herdada dos avós, tinham os seus animais e ferramentas de lavoura. Por vezes, no passado, tinham recebido crédito agrícola e, por certo tempo, acreditaram na prosperidade, mas depressa as coisas voltaram ao antigo ritmo. Viviam à margem da ilusão de progresso que atingia o resto do país.

- Ouça-me, Hipólito, deixe de observar Evangelina - sussurrou Digna para o marido.

- Talvez hoje não lhe volte o ataque - disse ele.

- Volta sempre. Nada podemos fazer.

A família terminou o café da manhã e dispersou-se, cada um retirando a sua cadeira. De segunda a sexta-feira, os mais novos caminhavam até à escola: uma meia hora de marcha rápida. Na época do frio, a mãe entregava a cada criança uma pedra aquecida no fogo para que a pusesse no bolso, pois assim manteriam as mãos aquecidas. Também lhes dava um pão e dois torrões de açúcar. Antes, quando distribuíam leite na escola, utilizavam o açúcar para adoçá-lo, mas há alguns anos chupavam-no como rebuçados no recreio. Essa meia hora de caminho vinha a ser uma bênção, pois voltavam para casa quando a crise da irmã já tinha passado e já não se viam peregrinos. Mas esse dia era um sábado e por isso estariam presentes, e de noite Jacinto molharia a cama na angústia de um qualquer pesadelo. Evangelina deixara de ir à escola desde que tinham começado os primeiros sinais. A mãe recordava com exactidão o princípio da desgraça. Ocorrera no mesmo dia da convenção das rãs, mas ela estava certa de que esse episódio não tinha relação alguma com a enfermidade da menina.

Uma certa manhã, muito cedo, foram vistas duas gordas e soberbas rãs observando a paisagem perto do cruzamento do caminho de ferro. Pouco a pouco chegaram muitas mais, provenientes de todas as bandas, das pequenas de tanque, médias de poço, brancas dos canais, cinzentas dos rios. Alguém deu o grito de alarme e toda agente correu a ver os animais. Mas os batráquios formaram filas compactas e começaram a andar ordenadamente. No caminho juntaram-se-lhes outras e logo se formou uma multidão verde dirigindo-se para a estrada. A notícia espalhou-se e chegaram curiosos a pé, a cavalo, de autocarro, comentando aquele prodígio jamais visto antes. O enorme mosaico vivo ocupou o asfalto da principal estrada para Los Rios, obrigando a parar os veículos que circulavam àquela hora. Um camião imprudente tentou avançar, deslizando sobre os cadáveres estripados e capotando perante o entusiasmo dos meninos, que se apoderaram avidamente da mercadoria espalhada pelos matagais. A polícia sobrevoou a zona de helicóptero, comprovando que havia duzentos e setenta metros de estrada cobertos de rãs, tão próximas umas das outras que se assemelhavam a um brilhante tapete de musgo. A notícia foi difundida pela rádio e em pouco tempo chegaram os jornalistas da capital, acompanhados por um especialista chinês das Nações Unidas, que garantia ter visto um fenómeno semelhante aquando da sua infância, em Pequim. O estrangeiro desceu de um automóvel escuro com chapa oficial, cumprimentou à esquerda e à direita e a multidão aplaudiu-o, naturalmente porque o confundiu com o director do orfeão. Depois de observar por alguns minutos aquela multidão gelatinosa, o oriental concluiu que não havia motivo para alarme, pois tratava-se unicamente de uma convenção de rãs. Foi o que disse à imprensa e, como era época de pobreza e desemprego, zombaram do caso, dizendo que, à falta de um maná, Deus enviava rãs do céu para que o seu povo eleito as cozinhasse com alho e coentros.

Quando Evangelina teve o ataque, os participantes na convenção tinham já dispersado e os operadores da televisão estavam a retirar os seus equipamentos das árvores. Era meio dia, os ares luziam de limpos, lavados pela chuva. Dentro de casa, Evangelina permanecia sozinha e, no pátio, Digna e o seu neto Jacinto davam os restos aos porcos. Depois de darem uma olhadela ao espectáculo, compreenderam que não havia nada para ver, pois não passava de uma asquerosa assembleia de bichos. Por isso voltaram às suas tarefas. Um grito agudo e o estrépito de louça quebrada significava que algo de estranho estava a acontecer dentro de casa. Viram Evangelina de costas no chão, apoiada nos calcanhares e na nuca, dobrada para trás como um arco, deitando espuma pela boca e cercada de louça partida.

A mãe, espantada, recorreu ao primeiro remédio que lhe ocorreu: esvaziou-lhe em cima um balde de água fria, o que, longe de acalmá-la, aumentou os sinais alarmantes. A espuma tornou-se uma barba rósea quando a jovem começou a morder a língua. Depois, revirou os olhos, que se perdiam no infinito. Até que, estremecendo em convulsões, encheu aquela casa de angústia e odor a excrementos. A tensão foi tão violenta que as grossas paredes de adobe pareciam vibrar, como se um secreto tremor percorresse as suas entranhas. Digna Ranquileo abraçou Jacinto, tapando-lhe os olhos para que não enxergasse aquela coisa do Diabo.

A crise durou poucos minutos e deixou Evangelina extenuada, a mãe e o irmão aterrorizados e a casa virada do avesso. Quando chegaram Hipólito e os outros filhos, que andavam na convenção das rãs, já tudo passara, a menina repousava na sua cadeira e a mãe recolhia as louças quebradas.

-        Foi picada por uma aranha vermelha - diagnosticou o pai quando lhe contaram.

-        Já a revistei dos pés à cabeça. Picada não e...

- Então deve ser epilepsia.

Mas Digna conhecia a natureza dessa doença e sabia que não produz danos no mobiliário. Nessa mesma tarde decidiu levar Evangelina até dom Simón, o curandeiro.

-        É melhor levá-la a um médico - aconselhou Hipólito.

-        Sabe muito bem qual é a minha opinião sobre os hospitais e os doutores - retorquiu a mulher, certa de que, se havia remédio para a menina, dom Simón o conheceria.

Nesse sábado fazia cinco semanas desde o primeiro ataque, e até então nada tinham podido fazer para aliviá-la. Ali estava Evangelina ajudando a mãe a lavar as vasilhas, enquanto passava a manhã e se aproximava o temido meio-dia.

-        Prepara as vasilhas para a água com farinha, minha filha - ordenou Digna.

Evangelina começou a cantar enquanto alinhava os recipientes de alumínio e ferro sobre a mesa. Em cada um colocou duas colheres de farinha torrada e um pouco de mel. Mais tarde acrescentaria água fria para oferecer aos visitantes que chegavam na hora do transe, na esperança de beneficiarem com algum milagre de somenos importância.

-        A partir de amanhã não lhes dou coisa alguma - resmungou Digna. - Vamos arruinar-nos.

-        Não fale desse modo, mulher, pense que as pessoas vêm por dedicação. Um pouco de farinha não nos deixa mais pobres - replicou Hipólito, e ela baixou a cabeça, porque ele era o homem e o homem tinha sempre razão.

Digna estava prestes a chorar. Percebeu que os nervos começavam a falhar e foi buscar umas flores de tília para preparar um chá calmante. As últimas semanas tinham sido um calvário. A mulher forte e resignada, que aguentara tantas faltas e aflições, tantos trabalhos e canseiras da maternidade sem uma queixa, sentia-se soçobrar perante aquela estranha feitiçaria que lhe dominava a casa. Estava certa de ter feito tudo para curar a filha, chegando mesmo a ir ao hospital e violando assim a jura de nunca mais lá pôr os pés. Mas tudo fora em vão.

 

Ao tocar a campainha da casa, Francisco desejou que Beatriz Alcántara não aparecesse. Sentia-se rejeitado na sua presença.


-        Este é Francisco Leal, mãe, um companheiro - apresentou-o Irene pela primeira vez, vários meses atrás.

- Colega, hem? - respondeu a senhora, incapaz de suportar as implicações revolucionárias da palavra "companheiro".

A partir desse encontro ambos souberam o que podiam esperar reciprocamente, mas esforçavam-se por ser amáveis, menos por gostarem um do outro do que pelos hábitos das boas maneiras. Beatriz depressa ficou a saber que Francisco era descendente de emigrantes espanhóis sem fortuna, pertencentes a essa casta de intelectuais assalariados dos bairros de classe média. Rapidamente concluiu que a sua profissão de fotógrafo, mais a mochila e a motocicleta não eram indícios de boémia. O jovem parecia ter ideias claras e estas não coincidiam com as suas. Irene dava-se com gente bastante estranha. Não a contrariava, visto que de qualquer maneira se revelava inútil fazê-lo, mas opôs-se como pôde à amizade com Francisco. Não gostava de ver Irene em alegre camaradagem com ele, unidos pelos fortes laços do trabalho compartilhado, e muito menos imaginar as consequências que isso podia ter para o noivado com o capitão. Considerava-o perigoso, porque até ela mesma se sentia atraida pelos olhos escuros, pelas mãos grandes e pela voz serena do fotógrafo.

Francisco, por sua vez, percebeu ao primeiro olhar os preconceitos de classe e a ideologia de Beatriz. Limitou-se a dar-lhe um tratamento cortês e distante, lamentando que fosse a mãe da sua melhor amiga.

Ao ver a casa, sentiu-se uma vez mais cativado pelo largo muro que cercava a propriedade, construído com pedras redondas do rio, orladas por essa diminuta vegetação nascida com a humidade do Inverno. Uma discreta placa de metal anunciava "Lar dos Anciãos" e, mais abaixo, acrescentava um nome adequado ao senso de humor de Irene: "A Vontade de Deus". Atraía-o sempre o contraste entre o jardim bem cuidado, onde em breve floresceriam dálias, glicínias, rosas e gladíolos numa explosão de perfume e cor, e a decrepitude dos habitantes do primeiro andar da mansão convertida em residência de idosos. Na parte superior tudo era harmonia e bom gosto. Ali estavam os tapetes orientais, os móveis primorosos, as obras de arte adquiridas por Eusebio Beltrán antes de desaparecer. A casa era semelhante a outra do mesmo bairro, mas, devido à necessidade, Beatriz tinha introduzido algumas modificações, mantendo sempre dentro do possível a mesma fachada, para que, vista da rua, se apresentasse tão senhorial como as residências vizinhas. Nesse sentido era muito cuidadosa. Não queria mostrar que negociava com velhos, mas sim que exercia um papel de benfeitora, pobrezinhos, aonde iriam parar senão cuidássemos deles?


Usava a mesma prudência quando se referia ao marido. Preferia acusá-lo de ter partido sem rumo conhecido na companhia de alguma mulherzinha a manifestar dúvidas noutro sentido. Na verdade, suspeitava que a sua ausência não era devida a uma aventura amorosa, mas sim que as forças da ordem o tinham eliminado por descuido ou o tinham metido por engano nalguma prisão, como se dizia que tinha acontecido a tanta gente nos últimos anos. Não foi a única a acolher esses negros pensamentos. De início, as suas relações olhavam-na com desconfiança e cochichavam nas suas costas que Eusebio Beltrán caíra nas mãos das autoridades, porque, sem dúvida, escondia algum pecado: poderia ser um comunista infiltrado entre as pessoas decentes, como outros que conheciam. Beatriz não podia aceitar as ameaças e os gracejos de mau gosto que ouvia ao telefone, as mensagens anónimas deixadas debaixo da porta, nem a inesquecível ocasião em que despejaram pilhas de lixo na sua cama. Nessa noite ninguém se encontrava em casa, porque Rosa também tinha saído. Quando ela e a filha voltaram do teatro, tudo estava em ordem e só estranharam o silêncio da cadela. Irene começou a procurá-la chamando-a pelos aposentos e Beatriz ia atrás dela acendendo as luzes. Estupefactas, viram então sobre as camas montes de restos, latas vazias, cascas imundas, papéis manchados com excrementos. Encontraram Cleo fechada num armário, aparentemente morta, e assim permaneceu quinze horas até recuperar do soporífero. Nessa noite Beatriz sentou-se a olhar para aquela indescritível confusão e para a merda em cima da cama, sem compreender o significado da provocação. Não era capaz de imaginar quem poderia ter levado sacos de porcaria para a sua casa, aberto a porta com uma gazua, dado narcótico à cadela e aviltado tudo desse modo. Mas, naquela época, ainda não existia o lar dos velhos do primeiro andar e, além de Rosa e do jardineiro, não dispunham de mais pessoal de serviço.

-        Não fales disto a ninguém, filha. É um insulto, uma desonra - chorou Beatriz.

-        Não penses mais nisso, mãe. Não percebes que é obra de um louco? Não te preocupes.

Mas Beatriz Alcántara sabia que esse ultraje tinha alguma coisa a ver com o marido e por isso mais uma vez o amaldiçoou. Lembrou-se precisamente da tarde em que Eusebio Beltrán a abandonou. Naqueles dias andava obcecado com o negócio das ovelhas para os muçulmanos e com o matadouro filantrópico que o levou à ruína. Tinham completado mais de vinte anos de casados e a paciência de Beatriz estava esgotada. Já não suportava a sua indiferença, as múltiplas infidelidades, o escandaloso esbanjamento de dinheiro em aviõezinhos prateados, cavalos de corrida, esculturas eróticas, banquetes em restaurantes, mesas de jogo e presentes caros para outras mulheres. Ao entrar na idade madura, Eusebio não acalmara. Pelo contrário, os defeitos acentuaram-se. Com as têmporas encanecidas e rugas à volta dos olhos, cresceu o seu desejo de aventuras. Arriscava o capital em empreendimentos insensatos, desaparecia durante semanas em viagens exóticas, seguindo até aos confins do continente uma ecologista nórdica, fazendo a travessia solitária do oceano numa jangada impelida por ventos imprevisíveis. A sua simpatia cativava toda a gente menos a esposa. Numa das suas tremendas discussões, ela descontrolou-se e humilhou-o com uma enxurrada de insultos e censuras. Eusebio Beltrán era homem de bons modos e tinha aversão por qualquer forma de violência. Ergueu a mão pedindo tréguas e, com um sorriso, avisou que ia comprar cigarros. Partiu discretamente e nunca mais souberam dele.

- Fugiu das dívidas - especulava Beatriz quando não lhe chegava o argumento de que se apaixonara por outra mulher.


Não deixou rasto algum da sua passagem. O cadáver também não foi encontrado. Nos anos seguintes, Beatriz adaptou-se à sua nova situação, fazendo esforços exagerados para simular uma vida normal diante das suas relações. Silenciosa e solitária, percorreu hospitais, prisões e consulados perguntando por ele. Aproximou-se de alguns amigos das altas esferas e iniciou averiguações secretas com uma agência de detectives, mas ninguém conseguiu encontrá-lo. Por último, cansada de deambular de repartição em repartição, decidiu pedir ajuda ao Vicariato. No seu meio social, recorrer ao Vicariato era coisa tão malvista que nem a Irene contou a sua decisão. Essa dependência do Arcebispado era considerada um antro de padres marxistas e leigos perigosos, que se dedicavam a ajudar os inimigos do regime. Constituía a única organização em pé de guerra contra o Governo, dirigida pelo Cardeal, que punha o invencível poder da Igreja ao serviço dos perseguidos, sem parar para perguntar qual era a sua cor política. Até ao dia em que precisou de ajuda, Beatriz sempre afirmou com arrogância que as autoridades deviam eliminar do mapa essa instituição e encarcerar o Cardeal e os seus acólitos insurrectos. Porém, o seu intento resultou inútil, porque nem no Vicariato lhe puderam dar notícias do ausente. Parecia que o seu marido fora arrebatado por um vendaval de esquecimento.

A incerteza abalou o sistema nervoso de Beatriz. As amigas recomendaram-lhe cursos de ioga e de meditação oriental para amenizar o sobressalto em que vivia. Quando, com uma certa dificuldade, se punha de cabeça para baixo e com os pés para cima, com respiração abdominal e concentrando a mente no Nirvana, conseguia esquecer os problemas, mas a verdade é que não podia manter-se nessa posição todo o dia e, nos momentos em que pensava em si mesma, surpreendia-se perante a ironia da sua sorte. Convertera-se na esposa de um desaparecido. Muitas vezes dissera que ninguém se sumia no país e que os desaparecidos eram mentiras antipatrióticas. Quando via as mulheres desfiguradas desfilando todas as quintas-feiras na praça, com os retratos dos familiares presos ao peito, afirmava que eram pagas pelo ouro de Moscovo. Jamais imaginou poder encontrar-se um dia na mesma situação dessas mães e esposas que procuravam os seus. Sob o aspecto legal, não era viúva nem o seria antes de passados dez anos, altura em que a lei lhe forneceria o atestado de óbito do marido. Não pôde dispor dos bens deixados por Eusebio Beltrán nem controlar os escorregadios sócios que se evaporaram com as acções das suas empresas. Permaneceu na mansão, simulando aparências de duquesa, mas sem dinheiro para manter a rotina de senhora de bairro rico. Acossada pelas despesas, esteve a um passo de espalhar gasolina pela casa, para que fosse destruída pelas chamas e pudesse receber o seguro. Até que Irene teve a subtil ideia de obter rendimentos com o andar inferior.

- Agora que tantas famílias partem para o estrangeiro e não podem levar os avós, acredito que lhes faríamos um favor ficando com eles. Além disso, poderíamos juntar uma pequena renda - sugeriu Irene.

Assim fizeram. O primeiro andar foi dividido em compartimentos de forma a incluir vàrios aposentos, instalaram novas banheiras e passarelas nos corredores para dar apoio à velhice e segurança às pernas fracas, cobriram os degraus com plataformas para deslizar as cadeiras de rodas e distribuíram altifalantes com música ambiente, para acalmar desgostos e aliviar o desânimo, sem pensarem sequer que podia ser música para ouvidos surdos.

Beatriz e a filha acomodaram-se no andar superior com Rosa, que estava ao seu serviço desde tempos imemoriais. A mãe decorou

o lar com o melhor que tinha, rejeitando todos os objectos sem valor, e começou a viver das rendas pagas pelos pacientes de A Vontade de Deus. Se as dificuldades batiam à porta com muita insistência, usava da máxima discrição e lá ia vender um quadro, um objecto de prata ou alguma jóia das muitas que comprara para se vingar dos presentes que o marido dava às amantes.


Irene lamentava que a mãe ficasse aflita com problemas tão vulgares. Propunha que fossem viver para um lugar mais modesto e que toda a casa fosse dotada de condições para abrigar mais hóspedes, com o que poderiam cobrir folgadamente as suas despesas. Porém, Beatriz preferia matar-se com trabalho e fazer toda a espécie de malabarismos para não mostrar que estava arruinada. Abandonar a casa teria sido um reconhecimento público de pobreza. Mãe e filha divergiam muito na apreciação da vida. E também discordavam quanto a Eusebio Beltràn. Beatriz considerava-o um patife capaz de cometer trapaças, bigamia ou outra traição que o obrigasse a escapulir-se com o rabo entre as pernas, mas quando emitia essas opiniões Irene ficava que nem uma fera. A jovem adorava o pai, recusava-se a acreditar que ele estivesse morto e muito menos a aceitar os seus defeitos. Não lhe importavam as razões que o teriam levado a desaparecer do mundo conhecido. O seu afecto por ele era incondicional. Na memória mantinha uma imagem de homem elegante, o seu perfil aristocrata, um carácter invulgar, mesclado de bons sentimentos e exaltadas paixões que o isentava da impostura. Aqueles traços excêntricos horrorizavam Beatriz, mas Irene lembrava-os com a maior ternura.

Eusebio Beltrán fora o último filho de uma abastada família de agricultores, tratado pelos irmãos como um irresponsável sem remédio, devido à sua tendência para o esbanjamento e à sua imensa alegria de viver, em contraste com a avareza e a melancolia da família. Assim que morreram os pais, os irmãos repartiram a herança, deram-lhe a parte que lhe cabia e não quiseram mais saber dele. Eusebio vendeu as suas terras e partiu para o estrangeiro, onde durante vários anos esbanjou tudo o que tinha até ao último centavo em devaneios principescos, como era de prever numa vocação leviana. Voltou repatriado num navio de carga, o que bastava para desacreditá-lo definitivamente aos olhos de qualquer jovem casadoura, mas Beatriz Alcántara deixou-se seduzir pelo seu porte aristocrático, pelo nome de família e pelo ambiente que o rodeava. Beatriz pertencia a uma família da classe média e desde menina não tinha outra ambição senão ascender na escala social. Como capital tinha a beleza dos seus traços, a dissimulação de maneiras e algumas frases mal construídas em inglês e francês, mas ditas com tanto desembaraço que parecia dominar esses idiomas. Um verniz de cultura permitia-lhe fazer boa figura nos salões e o modo como cuidava de si permitiu-lhe um prestígio de mulher elegante. Eusebio Beltrán estava praticamente arruinado e tinha decaído em muitos aspectos da sua vida, mas confiava que se trataria apenas de uma crise passageira, pois estava convicto de que as pessoas com linhagem dispõem sempre de recursos para sair de apuros. Além disso, era radical. A ideologia dos radicais, nessa época, podia resumir-se em poucas palavras: ajudar os amigos, incomodar os inimigos e fazer justiça nos outros casos. Os amigos ajudaram-no e passado pouco tempo jogava já golfe no clube mais privado, dispunha de uma assinatura no teatro e de um camarote no hipódromo. Ajudado pelo seu encanto e por um certo ar de nobre britânico, conseguiu sócios para todo o tipo de empresas. Começou a viver com opulência porque lhe parecia estúpido não agir desse modo e casou-se com Beatriz Alcántara porque tinha queda para mulheres belas. A segunda vez que a convidou para sair, Beatriz perguntou-se sem rodeios quais eram as suas intenções, porque não queria perder tempo. Acabava de fazer vinte e cinco anos e não podia gastar meses e meses em namoros inúteis, pois o que lhe interessava era conseguir um marido. Esta franqueza divertiu muito Eusebio, mas quando ela se negou a exibir-se novamente na sua companhia compreendeu que falava a sério. Bastou-lhe um minuto para ceder ao impulso de pedi-la em casamento e a vida não lhe chegou para o lamentar. Tiveram uma filha, Irene, herdeira da ligeireza angelical da avó paterna e do constante bom humor do pai. Enquanto a menina crescia, Eusebio Beltrán realizou diversos negócios, alguns rentáveis e outros totalmente inoportunos. Era um homem dotado de uma imaginação ilimitada e a melhor prova disso foi a sua máquina para deitar abaixo os cocos. Um dia leu numa revista que a colheita manual onerava o custo desse fruto. O nativo tinha de sucessivamente trepar à palmeira, tirar o coco e voltar a descer. Subindo e descendo, perdia-se tempo e alguns caíam mesmo lá de cima, o que provocava custos imprevistos. Estava decidido a encontrar uma solução. Passou três dias fechado no escritório, atormentado com o problema dos cocos, que, diga-se de passagem, não conhecia nem de perto nem de longe, porque nas suas viagens nunca fora aos trópicos e, na sua casa, não se consumiam alimentos exóticos. Mas procurou informações. Estudou o diâmetro e o peso do fruto, o clima e o terreno adequados para o cultivo, a época da colheita, o tempo de maturação e outros pormenores. Em seguida foi visto durante muitas horas a traçar planos e, de tanta dedicação, resultou a invenção de uma máquina capaz de colher um número surpreendente de cocos por hora. Foi ao Registo fazer a patente daquela torre inclinada provida de um braço retráctil, perante as gargalhadas dos familiares e amigos, que também não conheciam os cocos no seu estado natural e apenas os tinham visto enfeitando os turbantes das bailarinas de mambo, ou ralados nos pastéis de casamento. Eusebio Beltrán garantiu então que, um dia, a sua máquina de derrubar cocos serviria para alguma coisa, e o tempo, de facto, veio a dar-lhe razão.

Essa época foi um verdadeiro calvário para Beatriz e para o marido. Eusebio quis enfrentar a situação e separar-se para sempre dessa esposa que o fustigava e perseguia com a cantilena humilhante, mas ela recusou, sem mais motivos que o desejo de atormentá-lo e impedi-lo de realizar um novo enlace com qualquer uma das suas rivais. Argumentava que era preciso dar a Irene um lar em condições. Se quiserem dar essa dor à minha filha, terão de passar sobre o meu cadáver, dizia. O marido esteve prestes a fazê-lo, mas preferiu comprar a sua liberdade. Por três ocasiões ofereceu uma soma elevada para que pudesse ir em paz e outras tantas ela aceitou, mas, no último momento, quando os advogados tinham tudo preparado e só faltava a assinatura comprometedora, arrependia-se. As inúmeras batalhas que travaram fortaleceram o ódio. Por isto e por mil razões sentimentais Irene não chorava o pai. Fugira sem dúvida para se libertar das suas amarras, das dívidas e da mulher.

No momento em que Francisco Leal tocou à porta da sua casa, Irene saiu para recebê-lo acompanhada por Cleo, que latia aos seus pés. A jovem levava para a viagem um casaco pelos ombros, um lenço na cabeça e o gravador.

- Sabes onde vive a santa? - perguntou ele.

- Em Los Riscos, a uma hora daqui.

Deixaram a cadela em casa, subiram para a moto e partiram. A manhã estava luminosa, tépida, sem nuvens.

Atravessaram toda a cidade, as ruas sombrias do bairro chique entre árvores frondosas e mansões senhoriais, a zona cinzenta e ruidosa da classe média e os longos cordões de miséria. à medida que a moto avançava, Francisco Leal sentia Irene apoiada nas suas costas e era nela que pensava. A primeira vez que a viu, onze meses antes da Primavera fatídica, julgou que tinha saído de um conto de piratas e princesas, parecendo-lhe, na verdade, um milagre que ninguém mais o tivesse percebido. Naquela altura andava à procura de um trabalho que nada tivesse a ver com sua profissão. O seu consultório particular estava sempre vazio, produzindo muita despesa e nenhum lucro. Por outro lado, tinha sido suspenso do seu cargo na Universidade, pois a Escola de Psicologia, considerada um foco de ideias perniciosas, fora fechada. Durante meses percorreu liceus, hospitais e indústrias, sem qualquer resultado senão um crescente desânimo, até se convencer de que os anos de estudo e o doutoramento no estrangeiro de nada serviam na nova sociedade. E não era porque de repente tivessem sido resolvidas as carências humanas e o país estivesse povoado de gente feliz, mas sim porque os ricos não sofriam de problemas existenciais e os restantes, embora precisassem, e muito, não podiam pagar o luxo de um tratamento psicológico. Cerravam os dentes e aguentavam calados.


A vida de Francisco Leal, cheia de bons augúrios na adolescência, ao completar os vinte anos parecia um fracasso aos olhos de qualquer observador imparcial e, com mais razão, aos seus. Durante algum tempo encontrou consolo e força no seu trabalho na clandestinidade, mas depressa se tornou indispensável contribuir para o orçamento da família. A escassez em casa dos Leal descambava em pobreza. Dominou os nervos até verificar que todas as portas pareciam fechadas para ele; porém, uma noite, perdeu a serenidade e desatou em pranto na cozinha, onde a mãe preparava o jantar. Ao vê-lo nesse estado, Hilda secou as mãos no avental, retirou o molho do fogo e abraçou-o como quando ele era menino.

- A psicologia não é tudo, meu filho. Limpa o nariz e procura outro trabalho - disse.

Até então, Francisco nunca tinha pensado em mudar de profissão, mas as palavras de Hilda apontaram-lhe novos caminhos. Rapidamente fugiu à compaixão que mostrava por si mesmo e examinou as suas capacidades, a fim de escolher alguma que fosse produtiva e que também lhe agradasse. Para começar, escolheu a fotografia, onde teria pouca concorrência. Comprara anos antes uma máquina japonesa com todos os seus acessórios e considerou que chegara a hora de lhe limpar o pó e de a utilizar. Numa pasta reuniu alguns trabalhos realizados, escarafunchou na lista telefónica para ver onde oferecer o seu trabalho, e foi assim que entrou para uma revista feminina.

A redacção ocupava o último andar de um vetusto edifício com o nome do fundador da editora gravado no pórtico com letras douradas. Na época do auge cultural, quando se tentou integrar toda a gente na festa do conhecimento e no vício da informação e se vendia mais papel impresso que pão de trigo, os donos decidiram decorar o local, de forma a adaptarem-se ao delirante entusiasmo que sacudia o país. Começaram pelo andar inferior, atapetando de parede a parede, colocando lambris de madeiras nobres, substituindo o mobiliário arruinado por secretárias de alumínio de cristal, tirando janelas para abrir clarabóias, fechando escadas para cavar espaços para fixar os cofres, colocando olhos electrónicos que abriam e fechavam as portas por artes mágicas. Os andares do edifício estavam convertidos num labirinto, quando subitamente mudaram as regras dos negócios. Os decoradores nunca chegaram ao quinto andar, que conservou os seus móveis de cor indefinida, as máquinas pré-históricas, as estantes do arquivo e as inconsoláveis goteiras do tecto. Estas modestas instalações pouco tinham a ver com o semanário de luxo ali editado. Usavam todas as cores do arco-íris sobre papel acetinado, capas onde sorriam rainhas da beleza com pouca roupa e atrevidas reportagens feministas. No entanto, devido à censura dos últimos anos, punham tarjas negras sobre os seios nus e empregavam eufemismos para designar conceitos proibidos, como aborto, cu e liberdade.


Francisco Leal conhecia a revista porque algumas vezes fora comprá-la para a mãe. Apenas se lembrava do nome de Irene Beltrán, um a jornalista que escrevia com bastante audácia, mérito raro naqueles tempos. Por isso, ao chegar à recepção, pediu para falar com ela. Conduziram-no a um amplo recinto iluminado por uma grande janela, de onde se via ao longe o vulto imponente da serra, soberba guardiã da cidade. Viu quatro mesas de trabalho onde se encontravam outras tantas máquinas de escrever e, ao fundo, um guarda-roupa com trajes de tecidos vistosos. Um indivíduo efeminado vestido de branco penteava uma jovem, enquanto outra aguardava a sua vez, sentada imóvel como um ídolo, absorta na contemplação da sua própria beleza. Indicaram-lhe Irene Beltrán, e mal a viu de longe sentiu-se atraído pela expressão do seu rosto e pela estranha cabeleira revolta sobre os ombros. Irene chamou-o com um sorriso coquete, e de mais não precisou para concluir que essa jovem lhe podia roubar mesmo os pensamentos, porque ela correspondia a uma imagem idealizada nas suas leituras de infância e nos sonhos da adolescência. Quando se aproximou, tinha perdido já todo o atrevimento e permaneceu de pé diante dela, perturbado, incapaz de afastar a visão desses olhos acentuados pela maquilhagem. Soltou finalmente a língua e apresentou-se.

- Procuro trabalho - disse de sopetão, pondo sobre a mesa a pasta com os exemplares fotográficos.

- Está na Lista Negra? - perguntou ela abertamente, sem baixar a voz.

- Não.

- Então poderemos falar. Espere-me lá fora e quando terminar vou ter consigo.

Francisco saiu, evitando secretárias e malas abertas no chão, de onde saíam estolas e casacos de peles como o rescaldo de um safari recente. Tropeçou em Mario, o cabeleireiro, que se abeirou dele enquanto escovava uma peruca de cabelos claros e o informou, de passagem, que nesse ano as ruivas estavam na moda. Esperou na recepção um momento que lhe pareceu bastante breve, pois foi-se distraindo com o desfile incomum de modelos em roupa íntima, meninos levando contos para um concurso infantil, um inventor decidido a tornar conhecido o seu urofluxómetro, novíssimo instrumento para medir a direcção e a intensidade do jacto de urina, um casal aflito com perturbações passionais à procura do Consultório do Amor e uma senhora de cabelo azeviche que se apresentou como especialista em horóscopos e profecias. Ao vê-lo, deteve-se surpreendida, como se o tivesse visto numa premonição.

- Leio no seu rosto: você viverá uma grande paixão! - exclamou.

Francisco rompera com a sua última noiva havia vários meses e estava decidido a manter-se afastado de qualquer incerteza amorosa. Ficou para ali sentado, como um estudante de castigo, sem saber o que dizer e sentindo-se ridículo. A mulher percorreu-lhe a cabeça com dedos experimentados, examinou-lhe as palmas das mãos e, como era de prever, declarou-o Sagitário, embora devesse ter ascendente Escorpião, porque estava marcado pelos signos do sexo e da morte. Sobretudo da morte.

Por fim, a pitonisa desapareceu, para alívio de Francisco, o qual nada entendia do zodíaco e desconfiava da quiromancia, da adivinhação e de outros delírios. Pouco depois apareceu Irene Beltrán e pôde então vê-la de corpo inteiro. Vestia uma saia bem comprida de tecido artesanal, blusa de algodão cru, um cinto de várias cores que lhe apertava bem a cintura e uma bolsa de couro atulhada que nem um saco de carteiro. Estendeu-lhe a mão pequena, de unhas curtas, com anéis em todos os dedos e pulseiras de bronze e prata que chocalhavam no pulso.

- Gosta de comida vegetariana? - perguntou e, sem esperar resposta, pegou-lhe pelo braço e conduziu-o escadas abaixo, porque os elevadores estavam parados, como muitas outras coisas na editora.

Ao sair à rua, o sol bateu em cheio no cabelo de Irene e Francisco achou que nunca vira nada tão extraordinário. Não pôde evitar o impulso de estender os dedos para tocá-lo. Ela sorriu, habituada a despertar admiração numa latitude geográfica em que o cabelo dessa cor era incomum. Ao chegar à esquina, parou, tirou um envelope selado e meteu-o na caixa do correio.

- É para alguém que não tem quem lhe escreva - disse enigmática.


Dois quarteirões mais à frente, depararam com um pequeno restaurante, lugar de reunião de macrobióticos, espíritas, boémios, estudantes e doentes de úlcera gástrica. A essa hora estava cheio, mas ela era cliente habitual. O dono saudou-a pelo nome, conduziu-os a um canto e acomodou-os numa mesa de madeira com toalha quadriculada. Sem demora, o almoço foi servido, acompanhado de sumos e de um pão escuro salpicado de passas e nozes. Irene e Francisco saborearam os alimentos, lentamente, estudando-se com o olhar. Mas depressa ficaram à vontade e ela começou a falar do seu trabalho na revista, onde escrevia sobre hormonas poderosas, enfiadas como balas no braço para evitar a concepção, máscaras de algas marinhas para apagar os vestígios da idade na pele, amores de príncipes e princesas das casas reais da Europa, desfiles de moda extraterrestre ou pastoril, segundo os caprichos de cada temporada em Paris, e outros temas de variado interesse. De si mesma disse que vivia com a mãe, uma velha criada e a cadela Cleo. Acrescentou que o pai tinha saído quatro anos antes para comprar cigarros, desaparecendo para sempre das suas vidas. Não mencionou o noivo, o capitão do Exército Gustavo Morante. Francisco viria a saber da existência dele muito depois.

De sobremesa serviram-lhes papaias em calda, colhidas nas temperadas regiões do Norte. Irene acariciou-as com o olhar e a colher, gozando a espera. Francisco compreendeu que a jovem, tal como ele, respeitava certos prazeres terrenos. Irene não terminou a sobremesa, deixando um pedaço no prato.

- Assim, mais tarde, posso saboreá-lo com a memória - explicou. - E agora fale-me de si...

Em poucas palavras, porque a sua tendência natural e os requisitos da sua profissão o induziam a ser lacónico e, por outro lado, a escutar com atenção, contou-lhe que passara algum tempo sem encontrar emprego como psicólogo e precisava de trabalhar em qualquer profissão digna. A fotografia parecia uma boa possibilidade, mas não queria transformar-se num desses mendigos amadores que se oferecem para casamentos, baptizados e aniversários, pelo que recorria à revista.

- Amanhã vou entrevistar umas prostitutas, quer fazer uma experiência comigo? - perguntou Irene.

Francisco aceitou de imediato, afastando uma sombra de tristeza do seu espírito, ao verificar que realmente era mais fácil ganhar a vida a carregar no obturador do que pondo ao serviço do próximo a sua experiência e os conhecimentos duramente obtidos nos anos de estudo.

Quando trouxeram a conta, Irene abriu a bolsa para tirar dinheiro, mas Francisco tinha recebido o que o seu pai chamava uma rigorosa educação de cavalheiro, porque o cortês não impede o revolucionário. Correu a pegar na conta, ignorando os avanços das feministas e das suas campanhas de igualdade e surpreendendo desfavoravelmente a jovem jornalista.

- Não tem trabalho, portanto deixe-me pagar - alegou. Nos meses seguintes este seria um dos seus poucos motivos de discussão.

Imediatamente Francisco Leal teve o primeiro indício dos inconvenientes da sua nova profissão. No dia seguinte acompanhou Irene à zona quente da cidade, convencido de que ela estabelecera contactos prévios. Mas não foi assim. Chegaram ao bairro dos bordéis ao anoitecer e trataram de percorrer as ruas com um tal ar de perdidos que muitos clientes potenciais abordaram a jovem perguntando-lhe o preço. Depois de observar um pouco, Irene aproximou-se de uma morena que estava parada a uma esquina, sob as luzes multicolores dos anúncios de néon.

Desculpe, por favor, você é puta?


Francisco preparou-se para defendê-la, no caso justificado de que a outra lhe desse com a mala, mas nada disso aconteceu; pelo contrário, a mulata inflou os peitos como dois globos prisioneiros numa blusa prestes a rebentar e sorriu, alegrando a noite com o brilho de um dente de ouro.

- às suas ordens, filha - respondeu.

Irene tratou de lhe explicar as razões por que se encontravam ali e a prostituta ofereceu a sua colaboração com essa boa vontade que as pessoas costumam ter para com a imprensa. Isso atraiu a curiosidade das suas companheiras e de alguns transeuntes. Em poucos minutos formou-se um grupo, provocando um certo congestionamento. Francisco sugeriu que desimpedissem a rua antes que chegasse alguma patrulha, como acontecia quando se reuniam mais de três pessoas sem autorização da polícia. A mulata levou-os até ao Mandarim Chinês, onde continuou a amena conversa com a matrona e as outras mulheres da casa, enquanto os clientes aguardavam pacientemente e até aceitavam participar na entrevista, desde que respeitassem o seu anonimato.

Francisco não tinha o costume de formular perguntas íntimas fora do seu consultório e sem fins terapêuticos, e por isso corou quando Irene Beltrán se pôs a fazer um extenso interrogatório: quantos homens por noite, que preços faziam, os preços especiais para estudantes e velhos, seus males, tristezas e humilhações, a idade da reforma e quanto atingia a percentagem dos chulos e dos polícias. Nos seus lábios, esta investigação ganhava uma alva aparência de inocência. Ao acabar o trabalho, estava já de muito boas relações com as damas da noite e Francisco chegou a temer que ela se decidisse a mudar para o Mandarim Chinês. Mais tarde apercebeu-se que agia sempre assim, pondo a alma em tudo que fazia. Nos meses seguintes viu-a quase a adoptar uma criança, quando fez um trabalho sobre órfãos, atirar-se de um avião atrás de pára-quedistas e desmaiar de terror numa mansão assombrada depois de padecerem horas de pavor.

A partir dessa noite, acompanhou-a em quase todos os seus passos como jornalista. As fotografias melhoraram o orçamento dos Leal e significaram uma mudança na vida de Francisco, que se enriqueceu com novas andanças. Em contraste com a frivolidade e o brilho efémero da revista, estava a dura realidade do consultório na povoação onde vivia o seu irmão José e onde atendia três vezes por semana os mais desesperados, com a sensação de ajudar muito pouco, porque não havia consolo para tanta miséria. Na editora, ninguém suspeitou do novo fotógrafo. Parecia um homem tranquilo.        Nem sequer Irene soube da sua vida secreta, embora alguns indícios ligeiros lhe estimulassem a curiosidade. Seria bem mais tarde, ao passar a fronteira das sombras, que descobriria a outra face desse amigo amável e de poucas palavras. Nos meses seguintes, a sua relação tornou-se mais forte. Não podiam prescindir um do outro, inventavam pretextos variados para não se separarem. Compartilhavam os dias, surpreendidos com as afinidades que os uniam. Gostavam da mesma música, liam os mesmos poetas, preferiam o vinho branco seco, riam em uníssono, comoviam-se com as mesmas injustiças e mostravam-se tímidos pelas mesmas razões. Irene estranhava que Francisco às vezes desaparecesse por um ou mais dias, mas ele evitou as explicações e ela teve de aceitar o facto sem fazer perguntas. Esse sentimento era semelhante ao de Francisco quando ela estava com o noivo, mas nenhum dos dois admitia que se tratava de ciúme.

 

Digna Ranquileo consultou dom Simón, conhecido em toda a região pelos seus conhecimentos medicinais, muito superiores aos dos médicos do hospital. As doenças, dizia, são de dois tipos:


curam-se sozinhas ou não têm remédio. No primeiro caso, podia aliviar os sintomas e abreviar a convalescença, mas se lhe aparecia um paciente incurável mandava-o para o doutor de Los Riscos, salvando assim o seu prestigio e lançando ao mesmo tempo dúvidas sobre a medicina tradicional. Digna deu com ele descansando numa cadeira de vime à porta da casa, a três quarteirões da praça do povoado. Coçava mansamente a barriga e conversava em voz alta com um papagaio que fazia equilíbrio no espaldar.

- Trago-lhe aqui a minha menina - disse Digna, com um rubor de pudor nas faces.

- Esta não é a Evangelina trocada? - saudou impávido o curandeiro.

Digna concordou. O homem ergueu-se lentamente e convidou-as a entrar em sua casa. Entraram num amplo aposento, envolto em penumbra, atulhado de frascos, ramagens secas, ervas penduradas no tecto e orações impressas pregadas na parede; parecia muito mais o esconderijo de um náufrago do que o consultório de um cientista, como ele gostava de ser chamado. Garantia ser médico graduado no Brasil e a quem duvidasse mostrava um diploma imundo, com assinaturas floreadas e bordas com anjos dourados. Uma cortina de tule isolava um canto do quarto. Enquanto Digna relatava os pormenores da sua desgraça, ele escutava com os olhos meio revirados, em aplicada concentração. Dava umas olhadelas, de soslaio, para Evangelina, esmiuçando os vestígios de arranhões na sua pele, a palidez do rosto, apesar de gretado pelo frio, e as sombras violáceas sob os olhos. Conhecia esses sintomas, mas para estar completamente seguro ordenou-lhe que fosse para trás da cortina e tirasse toda a roupa.

- Vou examinar esta ranhosa, senhora Ranquileo - disse, colocando o papagaio sobre a mesa e seguindo Evangelina.

Depois de a examinar minuciosamente e de a fazer urinar numa pequena bacia, para estudar a natureza dos seus fluidos, dom Simón corroborou as suas suspeitas.

- Deitaram-lhe mau-olhado.

- Isto tem cura, dom Simón? - perguntou Digna Ranguileo espantada.

- Sim, tem, mas temos de descobrir quem fez isto para comba ter o mal, percebe?

- Não.

- Veja quem é que odeia a menina e avise-me para que eu possa ajudá-la.

- Ninguém odeia a Evangelina, dom Simón. É uma menina inocente. Quem pode querer-lhe mal?

- Algum homem despeitado ou uma mulher ciumenta - sugeriu o curandeiro, que espiava os minúsculos seios da paciente.

Evangelina desatou a chorar desconsolada e a sua mãe, irada, deu-lhe um safanão, pois vigiava a filha atentamente, estava certa de que não mantinha relações amorosas e muito menos iria imaginar alguém interessado em fazer-lhe mal. Além disso, Digna perdera parte da confiança em dom Simón desde que soubera como a sua mulher o enganava, porque, concluiu ponderadamente, a sua sabedoria não devia ser assim tanta, já que era a única pessoa da aldeia que ignorava os seus próprios cornos. Duvidou do diagnóstico, mas não quis cometer uma indelicadeza. Com muitos rodeios, pediu algum medicamento, para não sair dali com as mãos a abanar.

- Receite à menina algumas vitaminas, dom Simón, para ver se passa. Quem sabe se além do mau-olhado tem peste inglesa...

Dom Simón entregou-lhe um punhado de comprimidos de fabrico caseiro e folhas trituradas num almofariz e reduzidas a pó.

- Dissolva isso em vinho e faça com que ela tome duas vezes ao dia. Também é preciso que lhe ponha compressas de mostarda e meta-a em água fria. Não se esqueça das infusões de castanha doce. São sempre boas para estes casos.

- E com isso passam-lhe os ataques?


- Baixa-lhe a quentura do ventre, mas enquanto estiver com mau-olhado não melhorará. Se lhe der outro ataque, traga-ma para eu lhe fazer umas rezas.

Três dias depois, mãe e filha regressaram para intensificar o tratamento, porque Evangelina tinha uma crise diária, sempre perto do meio-dia. Desta feita o curandeiro agiu energicamente. Levou a paciente para trás do tule, despiu-a com as próprias mãos e lavou-a dos pés à cabeça com uma mistura composta de cânfora, azul-de-metileno e água benta em partes iguais, detendo-se com especial atenção nas zonas mais afectadas pelo mal: calcanhares, seios, costas e umbigo. A fricção, o susto e a esfregadela daquelas mãos pesadas tingiram a pele da jovem de uma ténue cor celeste e provocaram-lhe uma violenta agitação nervosa, que por pouco não a levou ao desmaio. Por sorte, ele dispunha de um xarope de agrimónia para tranquilizar a doente, deixando-a desfalecida e trémula. Depois das rezas, entregou à mãe uma longa lista de recomendações e várias ervas medicinais: álamo-tremedor contra o desassossego e a ansiedade, chicória para a autocompaixão, genciana para evitar o desânimo, tojo contra o suicídio e o pranto, azevinho para prevenir o ódio e a inveja, pinheiro para curar o remorso e o pânico. Mandou que ela enchesse um recipiente com água de nascente, colocasse dentro as folhas e flores e as deixasse repousar à luz do dia durante quatro horas antes de fervê-las em fogo brando. Lembrou-lhe que para a impaciência amorosa dos inocentes deve-se pôr pedrapume nos seus alimentos e evitar que compartilhe a cama com outros membros da família, porque a quentura contagia, como o sarampo. Finalmente, entregou-lhe um frasco de pastilhas de cálcio e um sabão desinfectante para o banho diário.

Durante essa semana a menina emagreceu, ficou com o olhar turvo e as mãos trémulas, andava com o estômago revolto e os ataques continuavam. Então, vencendo a sua natural resistência, Digna Ranquileo levou-a ao hospital de Los Riscos, onde um jovem médico recém-chegado da capital, que utilizava termos científicos e nunca ouvira falar de tolhimentos, cãibras febris e muito menos de mau-olhado, garantiu-lhe que Evangelina padecia de histeria. Aconselhou-lhe que não ligasse ao caso e que esperasse, pois o fim da adolescência apaziguaria certamente os seus nervos. Receitou-lhe um tranquilizante capaz de derrubar um touro e avisou que, se esses chiliques de louca não passassem, teriam de mandá-la ao hospital psiquiátrico da capital, onde lhe devolveriam o juízo com choques eléctricos. Digna perguntou se era a histeria que causava a dança da loiça nos armários, o lúgubre latido dos cães, a ruidosa chuva de pedras no tecto e a vibração dos móveis, mas o doutor preferiu não entrar em tais profundidades e limitou-se a recomendar-lhe que pusesse as louças em lugar seguro e amarrasse os animais no pátio.

De início o medicamento mergulhou Evangelina num sono profundo, parecido com a morte. Só com muito esforço e paciência conseguiam abrir-lhe os olhos para a alimentarem. Metiam-lhe na boca um bocado de comida e depois respingavam-lhe a cara com água fria para que se lembrasse de mastigar e engolir. Tinham de acompanhá-la à retrete, pois temiam vê-la cair, vencida pelo sono. Estava sempre deitada e quando os pais a colocavam de pé dava alguns passos bêbados e caía no chão roncando. Este sono profundo só era interrompido ao meio-dia pelo transe do costume, único momento em que espevitava, revelando alguma vitalidade. Em menos de uma semana os comprimidos receitados no hospital deixaram de lhe produzir efeito e entrou numa fase de mutismo e tristeza que a mantinha quieta e insone tanto de dia como de noite. Então a mãe decidiu enterrar as pílulas num profundo buraco da horta, onde não pudessem ser encontradas por nenhum ser vivo.


Desesperada, Digna Ranquileo recorreu a Mamita Encarnación, a qual, depois de acentuar claramente que a sua especialidade eram os partos e as gravidezes e, de modo algum, os arrebatamentos provocados por outras causas, lá aceitou examinar a jovem. Uma manhã foi a casa de Digna, assistiu ao transe lunático e verificou com seus próprios olhos que a tremura dos móveis e o comportamento inquieto dos animais não eram mentiras, mas sim a pura verdade.

- Esta menina precisa de um homem - opinou.

Semelhante afirmação ofendeu os Ranquileo. Não podiam aceitar que uma menina decente, criada como sua própria filha, de quem trataram com particular esmero e que fora preservada do contacto até com os irmãos, ficasse alvoroçada como as cadelas. A parteira fez que não com a cabeça, ignorando tais argumentos, e insistiu no seu diagnóstico. Recomendou mantê-la sempre ocupada com muito trabalho, para que assim se prevenissem males maiores.

- O ócio e a castidade produzem melancolia. De qualquer modo, têm de casá-la, porque esse turbilhão não vai passar sem um macho.

Escandalizada, a mãe não seguiu o conselho, mas cumpriu a recomendação de manter a menina ocupada, com o que lhe devolveu a alegria e o sono, mas não conseguiu diminuir a intensidade das crises.

Rapidamente os vizinhos ficaram a saber destas extravagâncias e começaram a bisbilhotar em redor da casa. Os mais atrevidos circulavam desde cedo para ver o fenómeno de perto e trataram de achar para ele alguma aplicação prática. Alguns sugeriram que Evangelina comunicasse com as almas do Purgatório durante o ataque, adivinhasse o futuro ou acalmasse a chuva. Digna compreendeu que, se o caso passasse ao domínio público, viriam pessoas de todas as partes para lhe pisar a horta, sujar o pátio e zombar da filha. Nessas condições Evangelina nunca encontraria um homem com suficiente valor para casar com ela e dar-lhe os filhos de que tanto precisava. Como nada podia esperar da ciência, resolveu fazer uma visita ao seu pastor evangélico no barracão anilado que servia de templo aos seguidores de Jeová. Ela era membro activo da pequena congregação protestante e o ministro recebeu-a com toda a cortesia. Contou-lhe sem omitir pormenores a infelicidade que lhe oprimia o lar, esclarecendo que evitara que a filha tivesse qualquer contacto pecaminoso, incluindo os olhares dos irmãos e do pai adoptivo.

O reverendo escutou o relato com grande atenção. Ajoelhou e, durante longos minutos, mergulhou em meditação, pedindo uma luz ao Senhor. De seguida, abriu a Bíblia ao acaso e leu o primeiro versículo que lhe apareceu: ""olofernes esteve muito alegre por causa dela e bebeu vinho sem conta, mais do que nunca em sua vida havia tomado". Satisfeito, interpretou a resposta de Deus ao problema da sua serva Ranquileo.

-O seu marido abandonou o álcool,irmã?

- O senhor sabe que isso é impossível.

-        Há quantos anos lhe aconselha a abstinência?

-        Não pode deixá-lo, tem o vinho bem metido no sangue.

-        Diga-lhe que se aproxime da Verdadeira Igreja Evangélica, podemos ajudá-lo. Viu algum bêbado entre nós?


Digna relatou-lhe as tão reiteradas razões que justificavam a fraqueza do marido. O caso remontava ao terceiro filho, que morrera ao nascer. Sem dinheiro para comprar um caixão, Hipólito colocou o anjinho numa caixa de sapatos, meteu-a debaixo do braço e partiu rumo ao cemitério. No caminho, teve de afogar a dor com uns copos até perder a noção de si mesmo. Tempos depois recuperou os sentidos, estirado num lamaçal. A caixa desaparecera e, embora tenha percorrido toda a região à procura, nunca conseguiu encontrá-la.

-        Imagine os pesadelos que ele teve, reverendo. Ainda sonha com isso, meu pobre Hipólito. Acorda a gritar, porque o filho o está a chamar do Limbo. Sempre que se lembra recorre à garrafa. Por isso se embebeda, e não por vício ou maldade.

-        O alcoólatra tem sempre uma desculpa na ponta da língua. Evangelina é um clarim de Deus. Através da sua enfermidade, Ele está a pedir ao seu marido que desista do vício antes que seja tarde.

-        Com todo o respeito, reverendo, se o Senhor me permite escolher, prefiro ver o Hipólito solenemente bêbado e a minha filha sem ganir como um cachorro e sem falar com voz de macho.

-        Pecado de soberba, irmã! Quem és tu para indicar a Jeová a forma de conduzir os nossos miseráveis destinos?

Levado pelo seu fervor, a partir desse dia o pastor apresentou-se com frequência em casa dos Ranquileo, acompanhado por alguns devotos membros da sua congregação, para ajudar a jovem com o poder da oração comunitária. Mas passou outra semana e Evangelina não dava mostras de melhoras. Um dos intrusos, que deambulava inquieto na hora do ataque, descobriu a forma de tirar algum proveito. Tropeçou numa cadeira e apoiou-se acidentalmente na cama onde a menina se contorcia. No dia seguinte desapareceram as verrugas que lhe empedravam a mão. Sem demora correu o boato do milagre e os visitantes aumentaram de forma assustadora, na certeza de obter uma cura durante o transe. Alguém reavivou a história das Evangelinas trocadas no hospital, o que contribuiu para

o prestígio do milagre. Então, o reverendo considerou a questão fora do alcance dos seus conhecimentos e sugeriu que se levasse a doente ao padre católico, cuja Igreja, por ser mais antiga, possuía maior experiência com os santos e suas obras.

Na paróquia, o padre Cirilo escutou a história contada pelos Ranquileo e recordou Evangelina como a única do seu curso que não fizera a primeira comunhão na escola porque a mãe pertencia às fileiras hereges dos protestantes. Era uma das ovelhas do seu rebanho arrebatadas pela fanfarra de bombo e pratos dos evangélicos, mas, fosse como fosse, ele não podia negar-lhe o seu conselho.

-        Rezarei pela criatura. A misericórdia do Senhor é infinita e talvez nos ajude, apesar de vocês estarem afastados da Santa Igreja.

-        Obrigado, padre, mas além das orações não me poderia exorcizá-la? - sugeriu Digna.


O sacerdote persignou-se, assustado. Essa ideia devia ser do seu rival protestante, pois aquela camponesa não podia ser versada em tais matérias. Nos últimos tempos, o Vaticano não via com bons olhos esses ritos e até evitara mencionar o Demónio, como se fosse melhor ignorá-lo. Ele tinha provas irrefutáveis da existência de Satanás, o devorador de almas, e por isso mesmo não se sentia propenso a enfrentá-lo com cerimónias improvisadas. Por outro lado, se tais práticas chegassem aos ouvidos do seu superior, o manto do escândalo obscureceria definitivamente a sua velhice. No entanto, por uma questão de senso comum, sabia que a sugestão permite frequentemente proezas inexplicáveis e talvez uns padre-nossos e umas aspersões de água benta acalmassem a doente. Disse à mãe que isso seria o suficiente, rejeitando como pouco provável uma possessão demoníaca. O exorcismo não podia ser aplicado àquele caso. Tratava-se de vencer o próprio Diabo, e um pároco com pouca saúde e solitário, perdido numa aldeia rural, não representava um rival apropriado para as forças do Maligno, caso fosse essa a causa dos sofrimentos de Evangelina. Mandou que eles se reconciliassem com a Santa Igreja Católica, porque essas desgraças costumavam acontecer àqueles que desafiavam Nosso Senhor com seitas impias. Mas Digna vira os patrões em cumplicidade com o padre dentro do confessionário da paróquia, entre arrependimentos e cochichos, espiando os camponeses e denunciando-os por pequenos furtos. Por isso desconfiava do catolicismo, considerando-o aliado dos ricos e inimigo dos pobres, em aberta rebelião contra os mandamentos de Jesus Cristo, que pregou o contrário.

Desde então também o padre Cirilo aparecia no lar dos Ranquileo quando o permitiam as múltiplas ocupações e as pernas cansadas. Da primeira vez, as suas firmes convicções ficaram abaladas perante o espectáculo da jovem fustigada pelo estranho mal. A água benta e os sacramentos não aliviavam os sintomas, mas como também não os agravavam deduziu naturalmente que o Diabo nada tinha a ver com o escândalo. Uniu-se ao reverendo protestante no mesmo empenho espiritual. Concordaram em tratá-lo como uma doença mental e de modo algum como expressão divina, porque os grosseiros milagres atribuidos à menina se revelavam indignos de serem tomados em consideração. Juntos, combateram a superstição e, depois de examinarem o caso, concluíram que o desaparecimento de algumas verrugas, que quase sempre se curam sozinhas, a melhoria do clima, normal nessa época, e a duvidosa sorte nos jogos de azar não eram suficientes para justificar essa aura de santidade. Mas os enérgicos argumentos do pároco e do pastor não detiveram a romaria. Entre os visitantes que apareciam para pedir favores as opiniões dividiram-se: alguns sustentavam a origem mística da crise, outros atribuíam-na ao simples malefício satânico. É histeria, alegavam em coro o protestante, o padre, a parteira e o médico do hospital de Los Riscos, mas ninguém lhes quis dar ouvidos, entusiasmados que estavam com aquela dádiva de prodígios irrisórios.

 

Abraçada à cintura de Francisco, com o rosto encostado ao tecido áspero do seu casaco e o cabelo desfeito pelo vento, Irene imaginava voar sobre um dragão alado. Para trás ficavam as últimas casas da cidade. A estrada avançava entre campos orlados de álamos transparentes e, ao longe, divisavam-se as montanhas envoltas na neblina azul da distância. Montava na garupa, perdida em fantasias trazidas da infância, galopando pelas dunas de um conto oriental. Gozava a velocidade, o estremecimento sísmico entre as pernas, o tremendo rugido atravessando a pele. Pensava na santa que ia visitar, no título da reportagem, na disposição em quatro páginas com fotografias a cores. Não se ouvia falar em milagreiros desde o aparecimento do Iluminado, vários anos antes, que se deslocava de norte a sul curando chagas e ressuscitando mortos. Havia, isso sim, uma série enorme de possessos, gente com espíritos, malditos e loucos, como a menina que cuspia girinos, o velho agourento de terramotos e o surdo-mudo que com o olhar paralisava as máquinas, tal como ela própria pôde verificar quando o entrevistou por sinais e depois não conseguiu pôr o seu relógio a funcionar. Porém, à parte esta luminosa personagem, ninguém se ocupou durante muito tempo com prodígios benéficos para a humanidade. Cada dia se tornava mais difícil encontrar notícias atraentes para a revista. Parecia que nada de interessante acontecia no pais e, quando acontecia, a censura proibia a sua publicação. Irene meteu as mãos sob o casaco de Francisco para aquecer os dedos entorpecidos.


Sentiu-lhe o peito delgado, nervos e ossos, tão diferente do de Gustavo, uma massa compacta de músculos exercitados pela esgrima, o judo, a ginástica e as cinquenta flexões que fazia todas as manhãs na tropa, porque não exigia dos seus homens nada que ele mesmo não fosse capaz de realizar. Sou como um pai para eles, um pai severo, mas justo, dizia. Ao fazerem amor na penumbra dos hotéis, tirava a roupa, orgulhoso do seu porte e desfilava nu pelo aposento. Ela amava esse corpo bronzeado pelo sal e pelo vento, curtido pelo esforço físico, elástico, duro, harmonioso. Observava-o complacente e acariciava-o um tanto distraída, mas com admiração. Onde estaria ele nesse momento? Talvez nos braços de outra mulher. Embora por carta lhe jurasse fidelidade, Irene conhecia a natureza impulsiva do noivo e podia visualizar escuras mulatas gozando com ele. Quando esteve no Pólo, a situação foi diferente, porque com aquele frio glacial e sem mais companhia que os pinguins e sete homens treinados para esquecer o amor, a castidade era obrigatória. Mas a jovem estava certa de que nos trópicos a vida do capitão decorria de modo diferente. Sorriu ao verificar o pouco caso que fazia de tudo isso e tentou recordar, sem conseguir, quando é que teria sentido ciúmes do noivo pela última vez.

O ruído do motor fê-la lembrar-se de uma canção da Legião Espanhola que Gustavo Morante cantarolava com frequência:

 

Sou um homem a quem a sorte feriu com garras aguçadas.

Sou o noivo da Morte

que estreitei com um abraço forte

e o seu amor foi a minha bandeira.

 

Foi uma má ideia cantá-la diante de Francisco, porque a partir de então este começou a chamar a Gustavo "o Noivo da Morte". Irene não se ofendeu com isso. Na verdade, pensava pouco no amor e não punha em causa a sua longa relação com o oficial, aceitava-a como uma coisa natural escrita no seu destino desde a infância. Ouvia tantas vezes dizer que Gustavo Morante era o seu par ideal que acabou por acreditar sem se deter para analisar os seus sentimentos. Era sólido, estável, viril, firmemente radicado na sua realidade. Irene achava-se um cometa navegando ao vento e, assustada com a sua própria revolução interior, às vezes cedia à tentação de pensar em alguém que lhe refreasse os impulsos; mas esses estados de ânimo duravam pouco. Quando meditava sobre o seu futuro tornava-se melancólica, por isso preferia viver desmedidamente enquanto fosse possível.

Para Francisco a relação de Irene com o noivo era apenas a conjunção de duas solidões e de muitas ausências. Dizia que, se tivessem oportunidade de ficarem juntos durante algum tempo, ambos compreenderiam que só os unia a força do hábito. Nesse amor faltava a urgência, os encontros eram agradáveis e demasiado longas as separações. Acreditava que, no fundo, Irene desejava prolongar o noivado até ao fim dos seus dias, para viver em liberdade condicional, encontrando-o de vez em quando para umas tropelias sem consequências. Era patente que o casamento a assustava, e por isso inventava pretextos para o adiar, como se adivinhasse que, uma vez casada com aquele príncipe destinado ao generalato, teria de renunciar às saias esvoaçantes, às pulseiras ruidosas e à vida agitada.


Nessa manhã, enquanto a motocicleta riscava prados e colinas em direcção a Los Riscos, Francisco pensava no pouco tempo que faltava para o regresso do Noivo da Morte. Com a sua chegada tudo mudaria. Desapareceria a felicidade dos últimos meses, quando teve Irene para si, adeus aos sonhos turbulentos, às surpresas quotidianas, à ansiedade de esperá-la e à risada por vê-la metida em empreendimentos absurdos. Teria de ser muito mais cuidadoso, falar só o trivial e evitar qualquer acto suspeito. Até então tinham compartilhado uma serena cumplicidade. Irene parecia passear pelo mundo em estado de inocência, sem detectar os pequenos sinais da sua vida dupla, pelo menos nunca fazia perguntas. Na presença dela prescindia de medidas de precaução, mas a chegada de Gustavo Morante obrigá-lo-ia a ser mais prudente. A relação com Irene era para ele tão preciosa que queria mantê-la intacta. Não queria limitar a sua amizade com omissões e mentiras, mas compreendia que isso acabaria por ser inevitável. Enquanto conduzia a motocicleta, desejou poder prolongar esse passeio até ao limite do horizonte, onde não os alcançasse a sombra do capitão, atravessar o país, o continente e outros mares com Irene abraçada à sua cintura. A viagem pareceu-lhe rápida. Ao meter por um estreito atalho, apareceram extensos trigais que, nessa época, brilhavam como uma penugem verde sobre os campos. Suspirou com um pouco de tristeza, porque tinham chegado ao seu destino. Sem dificuldade encontraram o lugar onde vivia a santa, surpreendidos com tanta solidão e silêncio, porque esperavam pelo menos uma romaria de curiosos para ver o fenómeno.

-        Estás certa de que é aqui? Certíssima.

-        Então deve ser fraca santa, porque não se vê ninguém.

à sua frente surgiu uma casa de camponeses pobres, com paredes de adobe caiadas, cobertas de telhas descoradas, um corredor diante da porta e uma única janela em toda a construção. à frente estendia-se um espaçoso pátio cercado por uma videira sem folhas, como um arabesco de galhos secos e torcidos, de onde assomavam os primeiros rebentos pressagiando a sombra do Verão. Divisaram um poço, um barraco de tábuas que parecia uma latrina e, pouco mais à frente, uma simples edificação quadrada que servia de cozinha.

Vários cães de diferentes tamanhos e pêlo, ladrando furiosos, correram para receber os visitantes. Irene, acostumada ao trato com os animais, caminhava no meio da matilha, falando com eles como se fossem velhos conhecidos. Francisco, em contrapartida, mostrou-se receoso, recitando para os seus botões o verso mágico aprendido na infância para esconjurar os perigos: "Pára animal feroz, deita o teu rabo no chão, que antes de ti nasceu Deus, ó cão enorme"; mas era evidente que o sistema da sua amiga funcionava melhor, porque, enquanto ela avançava tranquila, a ele rodearam-no mostrando as presas. Estava disposto a distribuir pontapés pelos focinhos quentes,

quando apareceu um menino de poucos anos com uma vara, espantando aos gritos os guardiães. Com a gritaria surgiram da casa outras pessoas: uma mulher corpulenta de aparência rude e resignada, um homem com o rosto rugoso semelhante a uma castanha pilada e alguns meninos de idades variadas.

É aqui que vive Evangelina Ranquileo? - perguntou Irene.

- Sim, mas os milagres são ao meio-dia.

Irene explicou que eram jornalistas atraídos pela intensidade dos boatos. A família, vencendo a timidez,

convidou-os a entrar em casa, seguindo a inalterável tradição de hospitalidade dos habitantes daquela terra.

 


Passado pouco tempo, chegaram os primeiros visitantes, que se instalaram no pátio dos Ranquileo. à luz da manhã, Francisco focou Irene enquanto falava com a família, de modo a apanhá-la num momento de distracção, pois não gostava de posar para a máquina. As fotografias enganam o tempo, suspendendo-o num pedaço de papel onde a alma não cabe, dizia. O semblante limpo e o entusiasmo davam à jovem o aspecto de uma criatura do bosque. Circulava na propriedade dos Ranquileo com a liberdade e a confiança de quem tivesse nascido ali, falando, rindo, ajudando a servir os refrescos, evitando os cães que balançavam a cauda entre as pernas. Os meninos seguiam-na, assombrados com o seu estranho cabelo, com a roupa extravagante, o riso constante e o encanto dos seus pequenos gestos.

Apareceram então alguns evangelistas com as suas guitarras, flautas e bombos, começando a entoar salmos sob a direcção do reverendo, um homenzinho de jaqueta lustrosa e chapéu de funeral.

O coro e os instrumentos desafinavam de modo plangente, mas ninguém, excepto Irene e Francisco, parecia notá-lo. Há várias semanas que os ouviam e já tinham os ouvidos acostumados. Apareceu também o padre Cirilo, arquejando, por ter ido de bicicleta da igreja até à casa dos Ranquileo. Sentado sob a parreira, perdido em divagações melancólicas ou em orações decoradas, cofiava a barba branca, que, de longe, parecia um ramalhete de açucenas preso ao peito. Talvez tivesse compreendido que O rosário de Santa Gemita tocado pelas mãos do papa se revelava tão ineficaz nesse caso como os cânticos do colega protestante ou as pílulas multicoloridas do médico de Los Riscos. De vez em quando, consultava o relógio de bolso para verificar a pontualidade do transe. Outras pessoas, atraídas pela possibilidade dos milagres, permaneciam silenciosas sob o beiral da casa, em cadeiras espalhadas pela sombra. Algumas conversavam pausadamente sobre a próxima semeadura ou alguma distante partida de futebol escutada no rádio sem nunca mencionarem a razão que as tinha conduzido até ali, por respeito aos donos da casa ou por vergonha.

Evangelina e a mãe recebiam as visitas, oferecendo água fresca com farinha torrada e mel. Nada no aspecto da menina parecia anormal. Tinha um ar tranquilo, faces enrubescidas e um sorriso tonto num rosto de maçã. Estava contente por ser o centro das atenções daquela pequena audiência.

Hipólito Ranquileo demorou bastante tempo a juntar os cães e a amarrá-los às árvores. Ladravam de mais. Depois aproximou-se de Francisco para lhe explicar a necessidade de matar uma das cadelas, porque parira no dia anterior e tinha devorado os filhotes, facto tão grave como uma galinha cantando com voz de galo. Certas falhas da natureza devem ser eliminadas pela raiz, para evitar contágios com outras criaturas. Nessa matéria ele era muito cuidadoso.

Estavam assim quando o reverendo se plantou no centro do pátio e iniciou a plenos pulmões um discurso apaixonado. Os presentes escutaram-no para não ofenderem, embora fosse evidente que todos menos os evangelistas se sentiam desconcertados. "Alta de preços! Carestia da vida! Este é um problema conhecido. Para resolvê-lo há muitos meios: cárcere, multa, greve, etc. Qual é o cerne do problema? Qual é a causa? Como é a bola de fogo que inflama a cobiça do homem? Há por trás disso uma tendência perigosa para o pecado da concupiscência, o apetite desordenado pelos prazeres terrenos. Isso aliena o homem do Santo Deus, produz um desequilíbrio humano, moral, económico e espiritual, desencadeia a ira do Senhor Todo-Poderoso. Os nossos tempos são como os de Sodoma e Gomorra, o homem caiu nas trevas do erro e agora colhe a sua quota de castigos por ter virado as costas ao Criador. Jeová envia-nos as suas advertências para que nos lembremos e nos arrependamos dos nossos asquerosos pecados..."

- Desculpe, reverendo, posso servir-lhe um refresco? - interrompeu-o Evangelina, cortando-lhe a inspiração para enumerar novas faltas.

Uma das discípulas protestantes, vesga e perneta, aproximou-se de Irene para lhe explicar a sua teoria sobre a filha dos Ranquileo: "Belzebu, príncipe dos demónios, meteu-se no corpo dela, escreva isso na sua revista, menina. Gosta de incomodar os cristãos, mas o Exército da Salvação é mais forte e vencerá. Escreva isso na sua revista, não se esqueça."


O padre Cirilo escutou as últimas palavras, pegou Irene pelo braço e levou-a para o lado.

-        Não lhe dê importância. Esses evangélicos são muito ignorantes, filha. Não seguem a verdadeira fé, mas têm algumas boas qualidades, isso não se pode negar. Sabe que são abstémios? Até os alcoólatras contumazes deixam de beber nessa seita, por isso os respeito. Mas o Diabo nada tem a ver com isto. A menina perdeu o juízo, é tudo.

-        E os milagres?

-        De que milagres fala? Não acreditará nessas mentiras!

Minutos antes do meio-dia Evangelina Ranquileo abandonou o pátio e entrou em casa. Tirou a blusa, soltou as tranças e sentou-se numa das três camas do quarto. Lá fora, todos se calaram, aproximando-se do corredor para observar através da porta e da janela. Irene e Francisco seguiram a menina até dentro de casa, e enquanto ele adaptava a máquina à penumbra ela preparava o gravador.

O lar dos Ranquileo tinha chão de terra, tão calcado, molhado e repisado que adquirira a consistência do cimento. Os escassos móveis eram de madeira vulgar sem polimento, havia algumas cadeiras e bancos de vime, uma mesa rústica de fabrico artesanal e, como único adorno, uma imagem de Jesus com O coração em chamas. Uma cortina separava o dormitório das meninas. Os rapazes dispunham de alguns colchões no chão num quarto anexo com entrada independente; assim evitavam a promiscuidade entre irmãos. Tudo estava escrupulosamente limpo, cheirava a menta e tomilho, um ramo de cardealinas escarlates num jarro dava alegria à janela e, sobre a mesa, estendia-se uma toalha de algodão. Nesses elementos simples, Francisco encontrou uma profunda percepção estética e decidiu que mais tarde tiraria algumas fotografias para a sua colecção. Nunca pôde fazê-lo.

Ao meio-dia, Evangelina caiu sobre a cama. O corpo estremeceu-lhe e um profundo, longo e terrível gemido percorreu-a dos pés à cabeça, como um impulso amoroso. Começou a agitar-se convulsivamente e arqueou-se para trás num esforço sobre-humano. No seu rosto desfigurado apagou-se a expressão de menina simples que tinha pouco antes. De súbito, envelheceu muitos anos. Um esgar de êxtase, dor ou luxúria marcou-lhe as feições. A cama tremeu e Irene, apavorada, percebeu que também a mesa, a dois metros de distância, adquiria movimento próprio sem a mediação de qualquer força conhecida. O susto foi maior que a curiosidade e chegou-se a Francisco em busca de protecção, tomou-o pelo braço e apertou-o firme, sem tirar os olhos do espectáculo demente que se desenrolava sobre o leito. Porém, Francisco afastou-a suavemente de forma a poder manobrar a câmara. Lá fora, os cães ganiam num interminável lamento de catástrofe, fazendo coro com os cânticos e as rezas. As jarras de latão dançavam no armário e estranhos golpes açoitavam o telhado como se estivesse a cair uma bátega de pedras. Um tremor contínuo sacudia a cimalha sobre as vigas do beiral, onde a família guardava as provisões, as sementes e as ferramentas de lavoura. De cima caiu uma chuva de arroz que escapara dos sacos, aumentando a sensação de pesadelo. Evangelina Ranquileo contorcia-se sobre a cama, vítima de indecifráveis alucinações e urgências misteriosas. O pai, obscuro, desdentado, com a sua patética expressão de palhaço triste, observava, abatido, do umbral, sem se aproximar. A mãe permanecia ao lado da cama com os olhos marejados, pretendendo talvez escutar o silêncio de Deus. Dentro e fora da casa a esperança apoderava-se dos peregrinos. Aproximaram-se um por um de Evangelina, na expectativa de um milagre, mesmo que humilde.

-        Seca os meus futúnculos, santinha.

-        Faz com que não levem o meu João ao recrutamento.


-        Deus te salve, Evangelina, és cheia de graça, cura as hemorróidas do meu marido.

-        Dá-me um sinal, que número jogo na lotaria?

-        Pára a chuva, serva de Deus, antes que as sementes vão para o caralho.

Aqueles que tinham acorrido estimulados pela fé ou simplesmente por desespero desfilavam em ordem, parando um instante junto à jovem para fazer o pedido e depois afastavam-se transfigurados pela confiança de que a Divina Providência iria favorecê-los por intermédio da santa.

Ninguém ouviu o camião da Guarda chegar.

Ouviram ordens e, antes que pudessem reagir, os militares irromperam por ali dentro, ocupando o pátio e a casa, de armas empunhadas. Afastaram as pessoas aos empurrões, escorraçaram os meninos aos gritos, golpearam com as coronhas aqueles que se colocaram à frente e ocuparam a casa com as suas vozes de comando.

-        Cara na parede! Mãos na nuca! - gritou um homem maciço com torso taurino que dirigia o grupo.

Todos obedeceram, menos Evangelina Ranquileo, imperturbável no seu transe, e Irene Beltrán, imobilizada no lugar, tão surpreendida que nem conseguiu mexer-se.

-        Os documentos! - gritou um sargento com cara de índio.

-        Sou jornalista e ele é fotógrafo! - disse Irene com voz firme, indicando o amigo.

Revistaram Francisco rispidamente pelos lados, axilas, entrecoxas e sapatos.

-        Vira-te - ordenaram-lhe.

O oficial, a quem mais tarde identificaram como o tenente Juan de Dios Ramírez, aproximou-se e encostou-lhe o cano da metralhadora às costas.

-        O teu nome!

-        Francisco Leal.

-        Que merda fazem aqui?

-        Nenhuma merda, uma reportagem - interrompeu Irene.

- Não estou a falar contigo!

-        Mas eu sim, meu capitão - sorriu ela, elevando o tom com ironia.

O homem vacilou, pouco acostumado à impertinência de um civil.

-        Ranquileo! - bradou.

Nesse momento destacou-se entre a tropa um gigante moreno, de expressão parva, armado com uma espingarda, que se perfilou diante do superior.

-        Esta é a tua irmã? - o tenente indicou Evangelina, que estava no outro mundo, perdida em turva cópula com Os espíritos.

-        Afirmativo, meu tenente! - respondeu o outro, rígido, os calcanhares unidos, o peito erguido, o olhar para a frente, o rosto de granito.


Nesse instante uma nova e mais violenta chuva de pedras invisíveis sacudiu o tecto. O oficial lançou-se de bruços para o chão e os seus homens imitaram-no. Estupefactos, os outros viram-nos rastejar sobre os cotovelos e os joelhos até ao pátio, onde se puseram de pé apressadamente e correram em ziguezague para ocupar as suas posições. Do tanque de lavar, o tenente começou a disparar em direcção à casa. Era o sinal esperado. Os soldados, enlouquecidos, excitados por uma violência incontrolável, accionaram os gatilhos e em poucos segundos o céu acumulou-se de ruídos, gritos, prantos, latidos, cacarejos, uma rajada de pólvora. Os que estavam no pátio atiraram-se para o chão e alguns procuraram refúgio no açude e atrás do arvoredo. Os evangélicos tentaram salvar os instrumentos musicais e o padre Cirilo pôs-se debaixo da mesa, apertando o rosário de Santa Gemita e implorando em voz alta pela protecção do Senhor dos Exércitos.

Francisco Leal percebeu que os projécteis passavam perto da janela e alguns chocavam contra as grossas paredes de adobe como uma lufada de presságios tenebrosos. Pegou Irene pela cintura e lançou-a ao chão, cobrindo-a com o seu corpo. Sentiu-a estremecer entre os seus braços e não soube se asfixiava sob o seu peso ou se estava aterrorizada. Assim que se dissipou a gritaria e o espanto, levantou-se e correu para a porta, certo de encontrar meia dezena de mortos pelo tiroteio, mas o único cadáver que se lhe deparou foi o de uma galinha estripada pelas cargas de fogo. Os soldados estavam sufocados, possuidos pela loucura, exaltados pela sensação de poder. Os vizinhos e curiosos estavam estendidos pelo chão, cobertos de pó e barro, os meninos choravam e os cães soltavam-se das amarras, ladrando desesperados. Francisco sentiu Irene passar a seu lado como um meteoro e, antes que pudesse detê-la, ela parou frente ao tenente com os braços na cintura, com uma voz estranha.

-        Selvagens! Animais! Não têm respeito? Não vêem que podem matar alguém?

Francisco correu para ela, convencido de que lhe meteriam uma bala entre os olhos, mas verificou, assombrado, que o oficial estava a rir.

-        Não fiques nervosa, boneca, disparámos para o ar.

-        Porque me trata por tu? E antes de mais, que fazem vocês aqui? - repreendeu-o Irene sem poder controlar os nervos.

-        Ranquileo contou-me o caso da irmã e eu disse-lhe: "Lá onde fracassam os padres e os doutores, triunfam as Forças Armadas." E por isso estamos aqui. Vamos a ver se a pequena continua a espernear quando a levarmos para a choça!

Caminhou a passos largos em direcção à casa. Irene e Francisco seguiram-no como autómatos. O que ocorreu em seguida ficaria para sempre nas suas memórias. Recordá-lo-iam como uma sucessão de imagens mortificantes e desconexas.

O tenente Juan de Dios Ramírez aproximou-se da cama de Evangelina. A mãe fez tenção de detê-lo, mas ele arredou-a. Não lhe toque!, chegou a gritar a mulher, mas foi tarde, porque o oficial esticara já a mão e pegara na doente pelo braço.

De súbito, inexplicavelmente, o punho de Evangelina saltou disparado, acertando em cheio no rosto corado do militar, batendo-lhe no nariz com tal força que o arremessou ao chão. Como uma bola inútil, o capacete do tenente rolou sob a mesa. A jovem tinha perdido a rigidez, os olhos já não se retorciam nem soltava espuma pela boca. Aquela que pegou no tenente Ramírez pela farda sem o menor esforço, que O suspendeu no ar e o atirou para fora de casa, sacudindo-o como a um traste, era a doce menina de quinze anos e ossos frágeis que pouco antes servia farinha torrada com mel debaixo da parreira. Só a sua força portentosa denunciava o estado anormal em que se encontrava. Irene reagiu rapidamente. Tirou a máquina das mãos de Francisco e começou a fotografar sem se preocupar com o foco, na expectativa de que algumas fotografias ficassem bem, apesar da repentina mudança na intensidade de luz entre as sombras do interior e a reverberação do meio-dia lá fora.


Através da lente, Irene viu Evangelina arrastar o tenente até ao centro do pátio e lançá-lo displicentemente a poucos metros dos protestantes, que continuavam a tremer, agachados no chão. O oficial tentou levantar-se, mas ela aplicou-lhe uns golpes certeiros na nuca, deixando-o sentado, e uns pontapés sem raiva, ignorando os soldados que a rodeavam apontando as armas, mas sem se atreverem a disparar, paralisados pelo assombro. A rapariga pegou então na metralhadora que Ramírez segurava contra o peito e atirou-a para longe. Foi cair num lamaçal, onde se afundou perante o focinho impassível de um porco, que a farejou antes de a ver desaparecer tragada pela lama.

Nesse momento Francisco Leal tomou consciência da situação e lembrou-se dos seus estudos de psicologia. Aproximou-se de Evangelina Ranquileo e, com suavidade, mas também com firmeza, deu-lhe dois toques no ombro, chamando-a pelo nome. A jovem pareceu regressar de uma longa viagem sonâmbula. Baixou a cabeça, sorriu acanhadamente e foi sentar-se sob a parreira, enquanto Os soldados corriam para recuperar a metralhadora, limpar-lhe a lama, procurar o capacete, socorrer o superior,

pô-lo de pé, sacudir-lhe a roupa, como se sente, meu tenente? E o oficial, pálido, trémulo, afastou-os aos empurrões, colocou o capacete e empunhou a arma, sem encontrar no seu vasto repertório de obscenidades a mais adequada para a ocasião.

Imóveis, aterrorizados, todos esperaram algo atroz, alguma tenebrosa loucura ou flagelo final que acabasse com eles; que os alinhassem contra a parede e os fuzilassem sem mais, ou pelo menos os colocassem a coronhadas no camião e os fizessem desaparecer em algum precipício das montanhas. Mas depois de uma bem longa vacilação, o tenente Juan de Dios Ramírez deu meia volta e dirigiu-se para a saída.

-        Retirar, bando de cretinos - gritou, e os seus homens seguiram-no.

Pradelio Ranquileo, o irmão mais velho de Evangelina, desfigurado e com uma expressão de estupor no rosto moreno, foi o último a obedecer e só reagiu ao escutar o motor do camião. Trepou, correndo, pela parte traseira, junto com os seus companheiros. Então o oficial lembrou-se das fotografias, deu uma ordem e o sargento fez meia volta e correu na direcção de Irene, arrancou-lhe a máquina fotográfica, tirou o rolo de filme e expô-lo à luz. Em seguida atirou a máquina por cima do ombro como se fosse uma lata de cerveja vazia.

Os soldados partiram e reinou um silêncio total no pátio dos Ranquileo. Estavam atónitos, como acontece nos pesadelos. De repente a voz de Evangelina rompeu o feitiço.

-        Posso servir-lhe outro refresco, reverendo?

E então respiraram, puderam movimentar-se, recolher as suas coisas e dispersar com ar envergonhado.

-        Deus nos proteja! - suspirou o padre Cirilo, sacudindo a batina empoeirada.

-        E nos ampare! - acrescentou o pastor protestante, pálido como a cera.

Irene recuperou a máquina. Era a única que sorria. Passado o susto, só recordava o aspecto grotesco do que aconteceu, imaginava o título da reportagem e interrogava-se se a censura permitiria mencionar o nome do oficial que recebera a pancadaria.

-        Má ideia teve o meu filho de trazer a guarda - opinou Hipólito Ranquileo.


Pouco depois, Irene e Francisco regressaram à cidade. A jovem levava apertado contra o peito um grande ramo de flores, presente dos meninos Ranquileo. Estava de bom humor e parecia ter esquecido o incidente, como se não tivesse nem a menor consciência do perigo passado. A única coisa que aparentemente lhe desagradava era a perda do filme, sem o qual era impossível publicar a notícia, pois ninguém acreditaria em semelhante história. Consolava-se pensando que podiam voltar no domingo seguinte para tirar outras fotografias de Evangelina durante o transe. A família convidara-os a voltar, porque tinha planeado matar um porco, que era uma festa anual que reunia uma porção de vizinhos numa comezaina desmedida. Francisco, em compensação, passou toda a viagem acumulando indignação, e ao deixar Irene à porta de sua casa mal se podia conter.

-        Porque estás tão aborrecido, Francisco? Não aconteceu nada, só umas balas para o ar e uma galinha morta. É tudo - riu ela ao despedir-se.

Até então ele havia procurado mantê-la alheia às misérias irreparáveis, à injustiça e à repressão que diariamente presenciava e eram temas de conversa habituais entre os Leal. Considerava extraordinário que Irene navegasse inocente naquele mar de escolhos que afogava o país, ocupada somente com o pitoresco e o anedótico. Surpreendia-se ao vê-la pairando, sem se poluir no ar das suas boas intenções. Aquele injustificado optimismo, aquela limpa e fresca vitalidade da sua amiga revelavam-se balsâmicos para os tormentos que ele padecia por não poder mudar as coisas. Nesse dia, entretanto, teve a tentação de pegá-la pelos ombros e sacudi-la até lhe assentar os pés na terra e lhe abrir os olhos para a verdade. Mas ao contemplá-la junto ao muro de pedra da sua casa, com os braços carregados de flores silvestres para os seus velhos e o cabelo revolto pela viagem na motocicleta, pensou que aquela criatura não fora feita para as realidades sórdidas. Beijou-a na cara, o mais próximo possível da boca, desejando com paixão permanecer a seu lado eternamente, para a proteger das sombras. Cheirava a ervas e tinha a pele fria. Entendeu que amá-la era o seu inexorável destino.

 

                                   AS SOMBRAS

 

                     A terra tépida guarda ainda os últimos segredos.

                                       Vicente Huidobro

 

Desde que trabalhava na revista, Francisco sentia que a sua vida era um constante sobressalto. A cidade estava dividida por uma invisível fronteira que tinha de atravessar com frequência. No mesmo dia fotografava primorosos vestidos de musselina e rendas, atendia uma menina violada pelo pai na aldeia do seu irmão José e ia ao aeroporto entregar a última relação de vitimas a um mensageiro desconhecido, depois de declarar a contra-senha. Tinha um pé na ilusão imposta e outro na realidade secreta. Em cada ocasião tinha de adequar o seu estado de ânimo às exigências do momento, mas ao terminar o dia, no silêncio da sua casa, revia os acontecimentos e concluía que, no turbilhão do desafio diário, o mais conveniente era não pensar de mais, para evitar que o medo ou o ódio o paralisassem. Então a imagem de Irene crescia na sombra, até ocupar todo o espaço ao seu redor.

Na noite de quarta-feira sonhou com um campo de margaridas. Normalmente não se lembrava dos sonhos, mas as flores eram tão frescas que despertou com a certeza de ter estado a correr ao ar livre. A meio da manhã encontrou a astróloga na editora, a mulher de cabelo azeviche obstinada em adivinhar a sua sorte.

- Posso ler nos teus olhos: vens de uma noite de amor - disse-lhe assim que se cruzou com ele na escada do quinto andar. Francisco convidou-a a tomar uma cerveja e, à falta de outros sinais cósmicos para a ajudar nas suas predições, contou-lhe o sonho. Segundo ela, as margaridas eram sinal de boa sorte, pelo que, inevitavelmente, alto de agradável lhe aconteceria nas próximas horas.

- Isto era um consolo, filho, porque tens o dedo da morte a apontar para ti - acrescentou, mas já o dissera tantas vezes que o mau agouro já não conseguia assustá-lo.


Francisco ficou com mais respeito pela astróloga, porque, pouco depois, cumpriu-se o bom presságio: Irene chamou-o a sua casa, para lhe pedir que a convidasse para jantar, porque desejava ver os Leal. Quase não tinham estado juntos durante a semana. A editora de moda quis tirar uma série de fotografias na Academia Militar, o que manteve Francisco muito atarefado. Nessa estação usavam-se os vestidos românticos de laços e folhos e a editora pretendia contrastá-los com o pesado equipamento de batalha e com os homens de uniforme. Por sua vez, o comandante pensou aproveitar a ocasião para dar uma imagem simpática das Forças Armadas e abriu as portas da Academia, depois de multiplicar as medidas de segurança. Francisco e o resto da equipa passaram vários dias no recinto militar, no fim dos quais já não sabia se lhe repugnavam mais os hino patrióticos e as cerimónias marciais ou as três rainhas da beleza que posavam para as suas lentes. à entrada e à saída eram submetidos a uma revista minuciosa. Numa confusão de terramoto, viravam do avesso as maletas, remexendo entre as roupas, sapatos e perucas, metiam as mãos em toda a bagagem, procurando, com máquinas electrónicas, qualquer indício suspeito. As raparigas iniciavam o dia já enfadadas e passavam o tempo resmungando. Mario, o elegante e discreto cabeleireiro, sempre vestido de branco, tinha a missão de transformá-las para cada foto. Secundavam-no dois ajudantes recém-iniciados nas mariquices, que revoluteavam como pirilampos à sua volta. Francisco tratava das máquinas e dos filmes, esforçando-se por manter a serenidade mesmo quando lhe velavam o rolo de filme, arruinando o trabalho de um dia.

Esta comitiva ambulante provocava alguns transtornos na disciplina da Academia, surpreendendo os que não estavam acostumados a tal espectáculo. Os soldados não ficaram excitados com as rainhas, mas sim com os ajudantes, que Os comiam com os olhos, para desconsolo do mestre cabeleireiro. Mario não tinha humor para a grosseria e há muito que tinha superado qualquer tendência para a promiscuidade. Pertencia a uma família de onze filhos de um mineiro de carvão. Nasceu e cresceu numa aldeia cinzenta em que O pó da mina cobria tudo como um manto informe e mortal e impregnara os pulmões dos habitantes, transformando-os em sombras de si mesmos. Estava destinado a seguir os passos do pai, avô e irmãos, mas não sentia forças para se arrastar pelas entranhas da terra, furando a rocha viva, nem para enfrentar a rudeza do trabalho mineiro. Possuía dedos delicados e um espírito inclinado à fantasia, que o pai castigava com muitos açoites. Porém, esses remédios drásticos não alteraram os seus modos efemininados nem desviaram o rumo da sua natureza. O menino aproveitava qualquer descuido para se entregar aos prazeres solitários que provocavam a impiedosa chacota dos outros; juntava pedras do rio para polir pelo prazer de ver as suas cores brilharem; percorria a triste paisagem procurando folhas secas para as dispor em composições artísticas; comovia-se até às lágrimas diante de um pôr de Sol, almejanto eternizá-lo numa frase poética ou numa pintura que conseguia imaginar, mas que se sentia incapaz de realizar. Só a mãe aceitava essas extravagâncias sem ver nelas sinais de perversão, antes a evidência de uma alma diferente. Para o salvar das impiedosas sovas do pai, levou-o à paróquia para ser ajudante do sacristão, na esperança de dissimular a sua doçura de mulher entre as batinas da missa e as oferendas de incenso. Mas o menino esquecia os latinórios, distraído com as partículas douradas que flutuavam nos feixes de luz dos vitrais. O padre ignorou essas divagações e ensinou-lhe aritmética, a ler e escrever e alguns rudimentos indispensáveis de cultura. Aos quinze anos conhecia praticamente de cor os poucos livros da sacristia e outros que o turco do armazém lhe emprestava na mira de o atrair ao seu quarto atrás da loja e de lhe revelar os mecanismos do prazer entre homens. Quando o pai teve conhecimento dessas visitas, levou-o à força ao bordel do acampamento, acompanhado pelos dois irmãos mais velhos. Esperaram a vez com mais uma dezena de homens, impacientes para gastarem o salário de sexta-feira. Só Mario deu pelas cortinas imundas e desbotadas, o cheiro de urina e creolina, a aparência de infinito abandono daquele lugar. Só ele se comoveu perante a tristeza dessas mulheres extenuadas pelo uso e pela carência de amor. Ameaçado pelos irmãos, procurou comportar-se como um macho com a prostituta que lhe coube, mas a ela bastou-lhe um olhar para adivinhar que àquele rapaz estava destinada uma vida de escárnio e solidão. Sentiu compaixão ao vê-lo tremer de repugnância perante o seu corpo nu e pediu que Os deixassem a sós para poder fazer o seu trabalho em paz. Quando os outros saíram, fechou a porta à chave, sentou-se a seu lado sobre a cama e pegou-lhe na mão.

-        Isto não se pode fazer à força - disse ela a Mario, que chorava apavorado. - Vai para longe, filho, onde ninguém te conheça, porque aqui ainda te matam.

Em toda a sua vida não recebeu melhor conselho. Enxugou as lágrimas e prometeu não voltar a chorar por uma virilidade que no fundo não desejava.

-        Se não te apaixonares, podes ir longe - despediu-se a mulher depois de tranquilizar o pai, salvando assim o menino de mais uma surra.


Nessa noite, Mario falou com a mãe e contou-lhe o sucedido. Ela pôs-se a procurar no mais fundo do seu armário, retirou um pequeno embrulho de notas enrugadas e colocou-o na mão do filho. Com esse dinheiro, Mario apanhou um comboio para a capital, onde conseguiu empregar-se num salão de beleza, que limpava de alto a baixo em troca de comida e um colchão para passar a noite no mesmo local. Estava deslumbrado. Não imaginava que existisse um mundo assim: tons claros, perfumes delicados, vozes agradáveis, frivolidade, calor, ócio. Olhava nos espelhos as mãos das profissionais sobre as cabeleiras e ficava maravilhado. Aprendeu a conhecer a alma feminina vendo as mulheres sem hipocrisia. à noite, sozinho no salão, treinava penteados com as perucas e experimentava sombras, pós, lápis no seu próprio rosto, exercitando-se na arte da maquilhagem. Assim foi descobrindo como tornar mais belo um rosto só com cores e pincéis. Passado pouco tempo, permitiram-lhe que atendesse algumas clientes novas e, em poucos meses, cortava cabelo como ninguém e as senhoras mais exigentes solicitavam os seus serviços. Era capaz de transformar uma mulher de aspecto insignificante fazendo-lhe um penteado diáfano e recorrendo ao artifício dos cosméticos sabiamente aplicados, mas, sobretudo, conseguia dar a cada uma a certeza de que era atraente, porque, em última instância, a beleza mais não é que uma atitude. Começou a estudar com afinco e a praticar com audácia, ajudado por um instinto infalível capaz de o conduzir sempre à melhor solução. Era solicitado por noivas, modelos, actrizes e embaixatrizes europeias. Algumas senhoras ricas e influentes da cidade abriram-lhe as portas e, pela primeira vez, o filho do mineiro pôs os pés em tapetes persas, bebeu chá em porcelana transparente e apreciou o brilho da prata lavrada, as madeiras polidas, os delicados cristais. Aprendeu rapidamente a distinguir os objectos de valor legítimo e decidiu que não se conformaria com menos, porque o seu espírito abominava qualquer forma de vulgaridade. Ao penetrar nos meios artísticos e culturais, percebeu que já não poderia voltar atrás. Deu asas à sua veia criativa e à visão para os negócios e em poucos anos era dono do salão de beleza mais prestigiado da capital e de uma pequena loja de antiguidades, que ocultava tráficos discretos. Converteu-se em perito de obras de arte, móveis finos, artigos de luxo, consultado pelas pessoas de melhor posição. Estava sempre ocupado e com pressa, mas nunca se esqueceu de que a primeira oportunidade para triunfar lhe tinha sido oferecida pela revista em que trabalhava Irene Beltrán. Por isso, quando o chamavam para um desfile ou reportagem de moda e beleza, abandonava todos os outros afazeres e apresentava-se equipado com a sua célebre maleta mágica, onde guardava os instrumentos de trabalho. Chegou a ter tanta influência que, nas grandes festas de sociedade, as senhoras mais ousadas, maquilhadas por ele, mostravam com orgulho a sua assinatura na face esquerda como uma tatuagem de beduína.

Quando conheceu Francisco Leal, Mario era um homem de


meia-idade, com um nariz fino e recto, obtido com uma operação plástica, delgado e erecto à força de dietas, exercícios e massagens, bronzeado com luz ultravioleta, impecavelmente vestido com a melhor roupa inglesa e italiana, culto, refinado e famoso. Vivia em ambientes únicos e, sob pretexto de adquirir antiguidades, viajava para regiões distantes. Levava uma vida de aristocrata, mas não repudiava as suas origens modestas, e sempre que tinha oportunidade de falar do seu passado na aldeia mineira fazia-o com orgulho e bom humor. Essa simplicidade cativava a simpatia daqueles que não lhe perdoariam fingir uma linhagem inexistente. Em ambientes mais fechados, nos quais só se penetrava pelo nome de família ou pelo muito dinheiro, Mario impôs-se com o seu gosto extravagante e a sua capacidade de se relacionar apropriadamente com as pessoas. Nenhuma reunião importante era considerada um êxito sem a sua presença. Jamais voltou à casa familiar para ver o pai ou os irmãos, mas todos os meses enviava um cheque para a mãe, a fim de lhe proporcionar algum bem-estar e ajudar as irmãs a estudarem uma profissão, instalarem um negócio ou casarem com um dote. As suas inclinações sentimentais eram discretas, sem estridências, como tudo na sua vida. Quando Irene o apresentou a Francisco Leal, só um leve brilho nas pupilas denunciou o que sentira. Irene apercebeu-se e por isso gracejava com o amigo, dizendo-lhe que tivesse cuidado com os avanços do cabeleireiro, senão ainda acabava com um brinco na orelha e falando com voz de soprano. Duas semanas depois estavam no estúdio a trabalhar com as novas maquilhadoras da estação, quando apareceu o capitão Gustavo Morante à procura de Irene. Ao ver Mario, a expressão do seu rosto mudou. O oficial sentia uma repulsa violenta por homens efeminados e não gostava que a noiva se movesse num ambiente em que se tropeçava com O que ele qualificava de degenerados. Distraído, pondo brilho dourado nas faces de uma linda modelo, Mario apercebeu-se instintivamente da aversão alheia e, com um sorriso, estendeu a mão ao capitão. Gustavo cruzou os braços, olhando-o com um desprezo infinito, e atirou-lhe que não se misturava com maricas. Um silêncio glacial impôs-se no estúdio. Irene, os ajudantes, as modelos, todos ficaram suspensos, desconcertados. Mario empalideceu e uma sombra desolada pareceu velar-lhe as pupilas. Então Francisco Leal deixou a câmara, avançou lentamente e pôs a sua mão no ombro de Gustavo.

-        Sabe porque não quer tocá-lo, capitão? Porque você tem medo dos seus próprios sentimentos. Talvez na rude camaradagem dos seus quartéis haja muita homossexualidade - disse no seu tom habitual, pausado e amável.


Antes que Gustavo Morante chegasse a dar-se conta da gravidade da afirmação e a reagir de acordo com a sua maneira de ser, Irene interveio, pegando o noivo pelo braço e arrastando-o para fora da sala. Mario nunca esqueceria esse incidente. Dali a poucos dias convidou Francisco para jantar. Vivia no último andar de um edifício de luxo. O apartamento estava decorado a branco e preto, num estilo sóbrio, moderno, original. Entre as linhas geométricas do aço e do cristal, havia três ou quatro móveis barrocos muito antigos e tapetes de seda chinesa. Sobre o fofo tapete que cobria parte do soalho ronronavam dois gatos angora e, perto da lareira acesa com toros de pinho, dormitava um cão preto e lustroso. Adoro os animais, disse Mario ao recebê-lo. Francisco reparou num balde de prata com gelo onde esfriava uma garrafa de champanhe ao lado de duas taças, notou a penumbra suave, sentiu o aroma da madeira e o incenso queimando num perfumador de bronze, escutou o jazz nos altifalantes e compreendeu que era o único convidado. Por uns instantes teve a tentação de dar meia volta e sair, para não alimentar nenhuma esperança no seu anfitrião, mas acabou por ser mais forte o desejo de não o magoar e de conquistar a sua amizade. Olharam-se nos olhos e invadiu-o um sentimento feito de compaixão e simpatia. Francisco procurou entre os seus melhores sentimentos o mais adequado para oferecer a esse homem que, timidamente, lhe entregava o seu amor. Sentou-se a seu lado no sofá de seda crua e aceitou a taça de champanhe, recorrendo à sua experiência profissional para navegar nessas águas desconhecidas sem cometer uma imprudência. Foi uma noite inesquecível para ambos. Mario contou-lhe a sua vida e, da forma mais delicada, insinuou a paixão que o atormentava. Pressentia uma negativa, mas estava demasiado emocionado para poder calar as suas emoções, pois nunca um homem o cativara desse modo. Francisco combinava a força e a segurança virís com a rara qualidade da doçura. Para Mario não era fácil apaixonar-se e desconfiava dos arrebatamentos exaltados, que lhe tinham causado tantos dissabores no passado, mas desta vez estava disposto a atirar-se de cabeça. Francisco também falou de si mesmo e, sem necessidade de o dizer abertamente, deu-lhe a entender a possibilidade de compartilharem uma sólida e profunda amizade, mas jamais um amor. Durante essa noite descobriram interesses comuns, riram, ouviram música e beberam toda a garrafa de champanhe. Num arrebatamento de confiança proibido pelas mais elementares normas de prudência, Mario falou do horror que sentia pela ditadura e da sua vontade em combatê-la. O seu novo amigo, capaz de descobrir a verdade nos olhos alheios, contou-lhe então o seu segredo. Quando se despediram, pouco antes do toque de recolher, estreitaram firmemente as mãos, selando assim um pacto solidário.

A partir desse jantar, Mario e Francisco não só partilharam o trabalho na revista, mas também a acção clandestina. O cabeleireiro não voltou a insinuar nenhuma inquietação que desonrasse a camaradagem. Adoptava uma atitude aberta e Francisco chegou a duvidar de que tivesse falado como o fez na memorável noite. Irene integrou-se no pequeno grupo, embora a deixassem à margem de qualquer acção clandestina, porque pertencia por nascimento e educação ao lado contrário, nunca manifestara inclinações pela política e, além disso, era noiva de um militar.

Nesse dia, na Academia Militar, a tolerância de Mario esgotou-se. às medidas de segurança, ao calor e ao mau humor colectivo juntavam-se os requebros dos ajudantes perante a tropa.

- Acabo por despedi-los, Francisco. Estes dois idiotas não têm classe nem poderão tê-la. Devia tê-los despedido quando os surpreendi abraçados nos sanitários da editora.

Francisco Leal também estava aborrecido, principalmente porque não via Irene há vários dias. Durante toda a semana os seus horários não coincidiram e, por isso, quando ela lhe telefonou para anunciar a sua visita, ficou desesperado para a ver.

Na casa dos Leal prepararam a recepção com cuidado. Hilda cozinhou um dos seus guisados predilectos e o professor comprou uma garrafa de vinho e um ramo das primeiras flores da estação, porque apreciava a rapariga e sentia a sua presença como uma brisa límpida que varria o tédio e as preocupações. Convidaram também os outros filhos, José e Javier, mais a família, porque gostavam de reuni-los pelo menos uma vez por semana.

Francisco acabava de revelar um rolo de filmes na casa de banho, que lhe servia de laboratório, quando ouviu Irene chegar. Pendurou as tiras de negativos, secou as mãos, saiu fechando a porta à chave para proteger o seu trabalho da curiosidade dos sobrinhos e correu a recebê-la. O odor da cozinha invadiu-o como uma carícia. Escutou claras vozes infantis e supôs que todos estivessem na sala de jantar. Então deu com Irene e sentiu-se tocado pela sorte, porque no tecido do seu vestido havia margaridas impressas e no cabelo, em tranças, prendera as mesmas flores. Era a síntese do seu sonho e de todos os bons presságios da astróloga.

 

Hilda entrou na sala de jantar com uma travessa fumegante nas mãos e um coro de exclamações recebeu-a entusiasmado.

Dobrada! - suspirou Francisco sem vacilar, pois teria reconhecido o aroma de tomate e louro mesmo nas profundezas do mar.

- Odeio dobrada! Parece toalha! - grunhiu um dos meninos.


Francisco pegou num pedaço de pão, mergulhou-o no molho apetitoso e levou-o à boca, enquanto a mãe servia os pratos ajudada pela nora. Só Javier parecia alheio ao rebuliço. O irmão mais velho permanecia calado e ausente, entretido a mexer num barbante. Nos últimos tempos distraia-se a fazer nós. Nós de marinheiro, de pescador, de vaqueiro, nós de arreio, de anzol, de estribo, nós de gancho, de chave, de mastro, que armava e desarmava com uma tenacidade incompreensível. Ao princípio os filhos observavam-no fascinados, mas depois aprenderam a imitá-lo e o barbante perdeu todo o interesse para eles. Acostumaram-se a ver o pai ocupado com a sua mania, um vício inocente, que em nada afectava os outros. A única queixa provinha da mulher, que suportava as suas mãos calejadas pelo atrito e o maldito barbante enrolado junto à cama durante a noite, como uma serpente doméstica.

- Não gosto de dobrada! - repetiu o menino.

- Então come sardinhas - sugeriu a avó.

- Não! Têm olhos!

O padre deu uma pancada com o punho na mesa, fazendo tremer a panela. Todos ficaram quietos.

- Basta! Comes O que te serviram. Sabes quantas pessoas só têm um púcaro de chá e um pão duro por dia? No meu bairro os meninos desmaiam de fome na escola! - exclamou José.

Hilda tocou-lhe no braço, num gesto de súplica, para que se acalmasse e se abstivesse de mencionar os famintos da sua paróquia, porque corria o risco de estragar a refeição da família e o fígado do pai. José baixou a cabeça, confuso perante a sua própria fúria. Anos de experiência não tinham aplacado por completo os seus arrabatamentos nem a obsessão pela igualdade entre os semelhantes. Irene quebrou a tensão fazendo um brinde pelo guisado e todos a acompanharam, celebrando o seu odor, a textura e o sabor, mas sobretudo a sua origem proletária.

- É uma pena que Neruda não tenha uma ode à dobradinha - observou Francisco.

- Mas tem uma ao ensopado de congro, queres ouvi-la? - ofereceu o pai, entusiasmado. Foi calado por uma vaia cerrada.


O professor Leal já não se ofendia com essas brincadeiras. Os filhos tinham crescido ouvindo-o recitar de cor e lendo em voz alta os clássicos, mas só o mais novo se deixou contagiar pelo seu fervor literário. Francisco tinha um temperamento menos exuberante e preferia canalizar os seus prazeres para a leitura disciplinada e a composição de versos secretos, deixando ao pai o privilégio de declamar quando lhe apetecesse. Mas já nem os filhos nem os netos o toleravam. Só Hilda, na intimidade de um qualquer entardecer, lhe pedia para fazê-lo. Nessas ocasiões deixava o tricot para escutar atentamente as palavras com a mesma expressão maravilhada do seu primeiro encontro, e calculava os muitos anos de amor partilhados com esse homem. Quando rebentou a guerra civil em Espanha eram jovens, estavam apaixonados. Apesar de o professor Leal considerar a guerra obscena, partiu para a frente de combate com os republicanos. Hilda pegou numa trouxa de roupa, fechou a porta da casa sem olhar para trás e foi de aldeia em aldeia seguindo os seus passos. Desejavam estar juntos quando os surpreendesse a vitória, a derrota ou a morte. Dois outonos depois nasceu o primeiro filho, num refúgio improvisado entre as ruínas de um convento. O pai não pôde tê-lo nos braços nas três semanas seguintes. Em Dezembro do mesmo ano, pelo Natal, uma bomba destruiu o lugar em que Hilda e o menino se hospedavam. Ao sentir o estrépito que precedeu a catástrofe, Hilda correu para agarrar a criança contra o peito, dobrou-se como um livro fechado e assim protegeu a vida do menino, enquanto o tecto desabava sobre ela. Retiraram o bebé ileso, mas a mãe tinha uma profunda fractura no crânio e um braço partido. Durante algum tempo, o marido perdeu-lhe o paradeiro, mas de tanto a procurar acabou por encontrá-la num hospital de campanha, onde jazia prostrada sem se lembrar do seu nome, a memória apagada, sem passado nem futuro, com o menino preso ao peito. No fim da guerra, o professor Leal decidiu partir para França, mas não lhe permitiram que tirasse a doente do asilo em que convalescia e teve de sequestrá-la durante a noite. Colocou-a sobre duas pranchas em cima de quatro rodas, pôs o recém-nascido no seu braço são, amarrou-os com um cobertor e arrastou-os pelos caminhos de tristeza que conduziam ao exílio. Cruzou a fronteira com uma mulher que não o reconhecia e cujo único sinal de entendimento era cantar para o filho. Ia sem dinheiro, não contava com amigos e coxeava devido a uma ferida de bala na coxa, que não o impediu de ter um passo rápido quando teve de pôr os seus a salvo. Como único objecto pessoal levava uma velha régua de cálculo herdada do seu pai, que lhe servira na reconstrução de edifícios e no traçado de trincheiras no campo de batalha. Do outro lado da fronteira, a polícia francesa aguardava a interminável caravana de derrotados. Separaram os homens e levaram-nos detidos. O professor Leal debatia-se como um demente para explicar a situação e foi necessário conduzi-lo à coronhada com os outros para um campo de concentração.

Um carteiro francês encontrou o carrinho numa estrada. Aproximou-se com receio ao ouvir o choro da criança, tirou a manta e viu uma jovem com a cabeça vendada, um braço ao peito e no outro um bebé de poucas semanas chorando de frio. Levou-os para casa e ele e a mulher trataram de ajudá-los. Por intermédio de uma organização de quakers ingleses dedicada à beneficência e à protecção dos refugiados, localizou o marido da sua hóspede numa praia cercada de arames, onde os homens passavam o dia inactivos olhando o horizonte e dormiam de noite enterrados na areia à espera de melhores dias.


Leal estava a um passo de ficar louco de angústia pensando em Hilda e no filho. Quando ouviu da boca do carteiro que estavam a salvo, baixou a cabeça e, pela primeira vez na sua vida adulta, chorou por muito tempo. O francês aguardou olhando para o mar, sem dizer uma palavra ou fazer um gesto adequado para O consolar. Ao despedir-se notou que ele tremia, tirou o casaco, entregou-lho ruborizado, e assim iniciaram uma amizade que haveria de durar meio século. Ajudou-o a conseguir um passaporte, a legalizar a sua situação e a sair do campo de refugiados. Enquanto isso, a sua mulher dedicou a Hilda toda a espécie de cuidados. Era uma pessoa prática e combateu a amnésia com um método de sua própria autoria. Como não sabia espanhol, utilizava um dicionário para dar nome aos objectos e sentimentos, um a um. Sentava-se durante horas a seu lado e tinha a paciência de percorrê-lo inteiro de A a Z, repetindo cada palavra até ver brilhar a compreensão nos olhos da doente. A pouco e pouco, Hilda foi recuperando a memória perdida. O primeiro rosto que se desenhou na névoa foi o do marido, depois recordou o nome do filho e, finalmente, como uma torrente vertiginosa, vieram-lhe à mente os acontecimentos do passado, a beleza, o valor, os amores, o sorriso. Talvez tenha sido nesse momento que tomou a decisão de seleccionar as suas recordações e apagar todas as raízes da nova etapa que iniciava, porque intuiu a necessidade de empregar todas as suas forças no seu novo destino de emigrante. Era melhor eliminar as nostalgias dolorosas, a pátria, os parentes e amigos deixados para trás, dos quais não falou mais. Pareceu esquecer a casa de pedra e, nos anos seguintes, era inútil que seu marido a mencionasse. Dava a impressão de tê-la suprimido por completo, como a muitas outras evocações. Por outro lado, nunca mais teve a lucidez necessária para perceber o presente e planear o futuro, encarando a sua nova vida com uma certeza cheia de entusiasmo.

No dia em que os Leal embarcaram para Outros confins da terra o carteiro e a mulher, vestindo O traje domingueiro, foram ao cais' despedir-se. Os olhos de Hilda e do marido não se despegavam das suas pequenas figuras, quando o barco se distanciou no mar alto Até ao momento em que a costa da Europa se esfumou na distância, todos os viajantes permaneceram na popa cantando canções republicanas com a voz cortada pelo pranto, menos Hilda, firme na proa, com o menino no regaço, interrogando o futuro.

Os Leal percorreram os caminhos do desterro, adaptaram-se à pobreza, procuraram trabalho, fizeram amigos e instalaram-se no outro extremo do mundo, vencendo a paralisia inicial daqueles que perdem as suas raízes. Ganharam uma nova força nascida do sofri mento e da necessidade. Para se apoiarem nas dific'uldades contaram com um amor a toda a prova, muito mais do que outros possuem. Quarenta anos passados, mantinham ainda correspondência com o carteiro francês e a mulher, porque os quatro conservaram o coração generoso e a mente esclarecida.

Nessa noite, à mesa, o professor estava em completa euforia A presença de Irene Beltrán estimulava a sua eloquência. A jovem ouvia-o falar sobre a solidariedade com a fascinação de um menino perante um teatro de marionetas, porque aqueles discursos exaltados estavam muito distantes do seu mundo. Enquanto ele apostava nos melhores valores da humanidade, ignorando milhares de anos de história que demonstram o contrário, certo de que basta uma geração para criar uma consciência superior e uma sociedade melhor desde que se criem as condições indispensáveis, ela, extasiada, deixava esfriar a comida no prato. O professor afirmava que o poder é perverso e que quem o detinha era a escória da humanidade, porque na disputa social só triunfavam os mais violentos e sanguinários. Era necessário, por isso mesmo, combater qualquer forma de governo e deixar os homens livres num sistema igualitário.

Os governos são intrinsecamente corruptos e devem ser suprimidos. Garantem a liberdade dos ricos baseada na propriedade e escravizam os Outros na miséria.

- Para quem fugiu de uma ditadura e agora vive noutra, o ódio à autoridade é um inconveniente grave - observou José, um tanto entediado, porque passara anos ouvindo a mesma Oratória inflamada.


Com o tempo, os filhos deixaram de levar a sério o professor Leal e trataram somente de evitar que cometesse loucuras. Durante a sua infância tiveram de secundá-lo mais de uma vez, mas logo que atingiram a idade adulta abandonaram-no mais aos seus discursos e não voltaram a mexer na impressora da cozinha nem a comparecer em reuniões políticas. Depois da invasão soviética da Hungria, em 1956, nem o pai voltou ao Partido, porque a desilusão quase o matou. Durante alguns dias caiu numa depressão alarmante, mas depressa a confiança no destino da humanidade regressou ao seu espírito, levando-o a superar o desencanto e a aplacar as dúvidas que o martirizavam. Sem renunciar aos seus ideais de justiça e igualdade, decidiu que a liberdade é o primeiro direito, tirou os retratos de Lenine e Marx da sala e colocou um de Mikhail Bakunin. A partir de agora sou anarquista, anunciou. Nenhum dos seus filhos entendeu O que ele queria dizer e durante algum tempo acreditaram que se tratava de uma seita religiosa ou de um agrupamento de loucos. Essa ideologia, fora de moda e varrida pelos ventos do pós-guerra, não os incomodava. Acusavam-no de ser o único anarquista do país e possivelmente tinham razão. Depois do golpe militar, para protegê-lo dos seus próprios excessos, Francisco retirou uma peça indispensável da impressora. Era necessário impedir por qualquer meio que continuasse a reproduzir as suas opiniões e a distribuí-las pela cidade, como fizera em ocasiões anteriores. Mais tarde, José convenceu-o de que era melhor desfazer-se daquela velharia inútil e levou a máquina para a aldeia, onde, uma vez reparada, limpa e lubrificada, serviu para copiar as anotações da escola durante o dia e os boletins de solidariedade à noite. Essa feliz precaução salvou o professor Leal quando, numa batida, a polícia política revistou o seu bairro casa por casa. Teria sido difícil explicar a presença de uma impressora na cozinha. Os filhos tentavam esclarecer o pai, explicando-lhe que as acções isoladas e disparatadas acarretavam mais danos que benefícios à causa da democracia, mas ao menor descuido ele voltava ao perigo, movido pelos seus ardentes ideais.

-        Tenha cuidado, pai - suplicavam-lhe ao tomarem conhecimento das palavras de ordem lançadas contra a Junta Militar das varandas do edifício dos Correios.

-        Estou muito velho para andar com o rabo entre as pernas - retorquia impassível o professor.

-        Se te acontece alguma coisa, meto a cabeça no forno e morro asfixiada - avisava Hilda, sem levantar a voz nem deixar cair a concha da sopa. O marido suspeitava que cumpriria o prometido, o que lhe incutia um mínimo de prudência, mas nunca a suficiente. Hilda, por sua vez, combatia a ditadura com métodos singulares. A sua acção incidia directamente no General, segundo ela possuído por Satanás, a própria encarnação do mal. Pensava que era possível derrubá-lo através da oração sistemática e da fé ao serviço da sua causa. Com este objectivo assistia a reuniões místicas duas vezes por semana. Ali se encontrava com um grupo cada vez maior de almas piedosas e firmes no seu propósito de acabar com o tirano. Era um movimento nacional para fazer um rosário em corrente. No dia fixado, à mesma hora, reuniam os crentes de todas as cidades do país, das povoações mais distantes, das aldeias esquecidas pelo progresso, das prisões e até dos barcos no alto mar, para realizar um tremendo esforço espiritual. A energia assim canalizada esmagaria estrondosamente o General e seus sequazes. José não estava de acordo com esses desvarios perigosos e teologicamente errados, mas Francisco não rejeitava a possibilidade de que esse Original processo desse bom resultado, porque a sugestão opera prodígios e, se o General soubesse dessa arma formidável para O eliminar, talvez sofresse uma síncope e desse a alma ao Criador. Comparava a actividade da mãe com os estranhos acontecimentos na casa dos Ranquileo e concluía que, em épocas de repressão, surgem soluções quiméricas para Os problemas mais triviais.

-        Deixe as orações, Hilda, e dedique-se ao vudu, que tem uma base mais científica - brincava o professor Leal.

Tanto a família troçou dela que decidiu ir às reuniões de ténis e fato de treino, levando o livro de orações escondido debaixo da roupa. Dizia que ia passear ao parque, mas continuava imperturbável a sua árdua tarefa de combater a autoridade a golpes de rosário.


Na mesa dos Leal, Irene seguia com atenção as palavras do dono da casa, fascinada pelo seu sonoro sotaque espanhol, que muitos anos de vida sul-americana não tinham suavizado. Ao vê-lo gesticular apaixonado, com os olhos brilhantes e fervoroso nas suas convicções, sentia-se transportada ao século passado, a um obscuro sótão de anarquistas onde se preparava uma bomba rudimentar para atirar contra uma carruagem real. Entretanto, Francisco e José conversavam à parte sobre o caso da menina violada que ficou muda, enquanto Hilda e a nora tratavam do jantar e dos meninos. Javier comia muito pouco e não participava na conversa. Ficara desempregado há mais de um ano e, entretanto, o seu carácter tinha mudado, tornando-se sombrio, prisioneiro da sua angústia. A família habituou-se aos seus longos silêncios, aos seus olhos vazios de qualquer curiosidade, à sua barba mal aparada e deixou de instigá-lo com demonstrações de simpatia e preocupação, que ele rejeitava. Apenas Hilda insistia nos gestos solícitos e em perguntar-lhe, a cada instante, por onde andam os teus pensamentos, meu filho.

Por fim, Francisco conseguiu interromper o monólogo do pai e contou à família a cena de Los Riscos, quando Evangelina sacudiu o oficial como um espanador. Para realizar tal façanha, opinou Hilda, é preciso estar protegido por Deus ou pelo Diabo, mas o professor Leal defendeu que a jovem era só o produto anormal desta sociedade decadente. A pobreza, o conceito de pecado, o desejo sexual reprimido e o isolamento eram a causa do seu mal. Irene riu, convencida de que a única que fizera um diagnóstico correcto era Mamita Encarnación e que o mais prático seria encontrar um parceiro para ela e deixá-los na montanha para que fizessem como as lebres. José concordou e, quando os meninos quiseram saber pormenores sobre as lebres, Hilda desviou a atenção para a sobremesa, os primeiros damascos da estação, assegurando que em nenhum país da terra havia fruta tão saborosa. Essa era a única forma de nacionalismo tolerada pelos Leal e o professor não perdeu a oportunidade de deixá-lo claro.

-        A humanidade deve viver num mundo unido, onde se misturem as raças, línguas, costumes e sonhos de todos os homens. O nacionalismo repugna à razão. Não beneficia os povos em nada. Só serve para que em seu nome se cometam os piores abusos.

-        Que tem isso a ver com os damascos? - perguntou Irene, completamente perdida do rumo da conversa.

Foi risada geral. Qualquer assunto podia terminar em manifesto ideológico, mas, por sorte, os Leal ainda não tinham perdido a capacidade de ironizarem sobre si mesmos. Depois da sobremesa serviram um aromático café trazido por Irene. No final da refeição a jovem lembrou a Francisco a matança do porco na casa dos Ranquileo no dia seguinte. Despediu-se, deixando à sua passagem um rasto de bom humor que envolveu toda a gente, excepto O taciturno Javier, tão absorto na sua desesperança e nos seus nós que não dava por que ela existisse.

-        Casa-te com ela, Francisco.

-        Tem noivo, mãe.

-        Decerto que vales muito mais - respondeu Hilda, incapaz de um juízo imparcial quando se tratava dos seus filhos.

 


Quando conheceu o capitão Gustavo Morante, Francisco já amava tanto Irene que nem se preocupou em ocultar o seu desgosto; nem ele mesmo reconhecia essa emoção arrebatada como amor e, ao pensar nela, fazia-o em termos de pura amizade. Desde o primeiro encontro que se detestavam com cortesia, um pelo desprezo do intelectual em relação às fardas e o outro pelo mesmo sentimento ao inverso. O oficial saudou-o com um breve cumprimento sem lhe estender a mão e Francisco notou o seu tom sobranceiro, que, desde o início, marcava a distância, embora se mostrasse mais simpático quando falava com a noiva. Não existia outra mulher para o capitão. Cedo a escolheu para companheira, adornando-a com todas as virtudes. Para ele não contavam as emoções fugazes nem as aventuras de um dia, inevitáveis durante Os longos períodos de ausência exigidos pela sua profissão, que o afastavam dela. Nenhuma outra relação deixou sedimento no seu espírito ou recordação na sua carne. Amava Irene havia muito tempo, quando, ainda crianças, brincavam na casa dos avós, e despertaram juntos para as primeiras inquietações da puberdade. Francisco Leal tremia ao pensar nessas brincadeiras de primos.

Morante tinha o hábito de se referir às mulheres como senhoras, para marcar assim a diferença entre esses seres etéreos e o rude universo masculino. O seu comportamento social caracterizava-se por modos um tanto cerimoniosos, quase pedantes, que contrastavam com a forma rústica e cordial como tratava os companheiros de armas. O seu ar de campeão de natação tornava-o atraente. A única vez em que se calaram as máquinas de escrever no quinto andar da editora foi quando ele apareceu na sala de redacção à procura de Irene, bronzeado, musculoso, soberbo. Encarnava a essência do guerreiro. As jornalistas, as paginadoras, as impassíveis modelos e até os homossexuais desviaram os olhos do trabalho e, imóveis, fitaram-no. Avançou sem um sorriso e, com ele, marcharam os grandes soldados de todos os tempos, Alexandre, Júlio César, Napoleão e as hostes de celulóide dos filmes de guerra. O ar electrizou-se num fundo, denso e quente suspiro. Foi a primeira vez que Francisco o viu e, para seu grande pesar, sentiu-se impressionado com aquela presença poderosa. Imediatamente, no entanto, invadiu-o um mal-estar que atribuiu à aversão que sentia pelos militares, pois não podia admitir que fossem ciúmes vulgares. Normalmente tê-lo-ia disfarçado, porque Os sentimentos mesquinhos o envergonhavam, mas não conseguiu resistir à tentação de lançar confusão no espírito de Irene e, nos meses seguintes,


referiu-lhe com frequência a sua opinião sobre o estado catastrófico do país desde que as Forças Armadas tinham abandonado os quartéis para usurpar o Poder. Irene justificava o Golpe com os argumentos fornecidos pelo noivo; porém, Francisco rebatia, alegando que a ditadura não resolvera nenhum problema, só agravara os existentes e criara outros, mas a repressão impedia que se conhecesse a verdade. Puseram uma tampa hermética sobre a realidade e deixaram que fermentasse um cozinhado atroz, acumulando tanta pressão que, quando estourasse, não haveria máquinas de guerra nem soldados suficientes para o controlar. Irene ouvia distraída. Os seus problemas com Gustavo eram de outra ordem. Ela não se adaptava ao modelo de esposa de um oficial de alta patente e estava certa de que não o seria nunca, mesmo que se virasse do avesso como uma meia. Imaginava que, se não se tivessem conhecido desde a infância, jamais se teria apaixonado por ele e, possivelmente, nem sequer teriam tido oportunidade de se encontrarem, porque os militares vivem em círculos fechados e preferem casar-se com as filhas dos seus superiores ou com as irmãs dos seus companheiros, educadas para noivas inocentes e esposas fiéis, embora nem sempre as coisas acabassem assim. Por alguma razão faziam o juramento de que avisariam um camarada caso a mulher o enganasse, obrigando-o a tomar medidas antes que O acusassem ao Alto Comando, o que equivalia à ruína de uma carreira por motivo de cornos. Ela considerava monstruoso esse costume. De início Gustavo dizia que era inadmissível avaliar homens e mulheres pela mesma bitola, não só do ponto de vista da moral do Exército, mas também ao nível da moral de qualquer família decente, porque existem diferenças biológicas incontestáveis e uma tradição histórica e religiosa que nenhum movimento de libertação feminina conseguiria apagar. Isso poderia acarretar grandes prejuízos à sociedade, dizia. Mas Gustavo gabava-se de não ser machista, como a maioria dos seus amigos. A convivência com Irene e um ano de estada no Pólo Sul depuraram-lhe as ideias e poliram as asperezas da sua formação, acabando por levá-lo a compreender a injustiça dessa dupla moral. Apresentou a Irene a alternativa honesta de ser fiel, visto que a liberdade amorosa para ambos lhe parecia uma invenção despropositada dos povos nórdicos. Austero para consigo mesmo, tal como era para com os outros, rigoroso na palavra empenhada, apaixonado e normalmente exausto pelo exercício físico, cumpria a sua parte do contrato, em circunstâncias normais. Durante as separações prolongadas lutava contra os impulsos da sua natureza empregando a força do seu espírito, escravo de uma promessa. Sofria moralmente quando cedia à tentação de uma aventura. Não lhe era possível viver muito tempo em castidade, mas mantinha o coração ilibado, como um tributo à sua noiva eterna.


Para Gustavo Morante, o Exército era uma vocação absorvente. Ingressou na carreira deslumbrado com a vida rude, com a segurança de um futuro estável e também pelo gosto do comando e pela tradição familiar. O pai e o avô tinham sido generais. Aos vinte e um anos distinguiu-se como o aluno com melhores notas no seu ano e foi campeão de esgrima e natação. Especializou-se em artilharia e realizou o seu desejo de comandar a tropa e treinar recrutas. Quando Francisco Leal o conheceu, acabava de voltar da Antárctida, onde passara doze meses isolado sob céus imutáveis, tendo por horizonte a abóbada de um céu mercurial, iluminado por um sol ténue durante seis meses sem noite e vivendo mais meio ano numa escuridão permanente. Podia comunicar por rádio com Irene uma vez por semana, a penas quinze minutos, que aproveitava para lhe pedir satisfação de todos Os seus actos, doente de ciúmes e solidão. Seleccionado pelo Alto Comando entre muitos candidatos pela firmeza de carácter e pelas condições físicas, viveu com mais sete homens nesse imenso território desolado, evitando temporais que levantavam ondas negras, altas como montanhas, defendendo os seus mais preciosos tesouros: os cães esquimós e os depósitos de combustível, a trinta graus abaixo de zero, movimentando-se como uma máquina para combater o frio sideral e a nostalgia irremediável, com a única e sagrada missão de manter tremulando a bandeira nacional naquelas paragens esquecidas. Tentava não pensar em Irene, mas nem o cansaço nem o gelo, nem os comprimidos do enfermeiro para atenuar o desejo conseguiam apagar do seu coração a tépida lembrança da mulher. Distraía-se caçando focas nos meses de Verão para as armazenar na neve até ao Inverno, e matava o tempo procedendo a observações meteorológicas, medindo marés, a velocidade do vento, oitavos de nuvens, temperatura e humidade, fazendo prognósticos de tempestades, lançando globos-sondas para adivinhar as intenções da natureza mediante cálculos trigonométricos. Atravessou momentos de euforia e outros de depressão, mas nunca caiu nos vícios do pânico e da desilusão. O isolamento e o contacto com essa magnífica terra gelada temperaram-lhe o carácter e o espírito, obrigando-o à reflexão. Dedicou-se à leitura e ao estudo da História, dando ao seu pensamento uma nova dimensão. Quando o amor o afligia, escrevia cartas para Irene num estilo diáfano como a paisagem branca que o rodeava, mas não podia enviá-las, porque o único meio de transporte era o barco que iria buscá-lo no final do ano. Por fim regressou, mais magro, com a pele quase escura pela reverberação da neve e as mãos calejadas, louco de ansiedade. Consigo trazia duzentos e noventa envelopes fechados e ordenados em estrita ordem cronológica, que pôs no colo da noiva. Esta mostrou-se distraída e fugaz, mais interessada no seu trabalho de jornalista do que em mitigar a impaciência amorosa do namorado, e de modo nenhum inclinada a ler aquele monte de correspondência atrasada. De qualquer modo, partiram, por alguns dias, para uma discreta estação balnear, onde viveram uma paixão desmedida e o capitão pôde recuperar o tempo perdido em tantos meses de castidade imposta. Com aquela tão prolongada ausência, Gustavo pensava obter dinheiro suficiente para se casar com ela, porque nessas regiões inóspitas ganhava seis vezes O soldo normal da sua patente. Sentia-se na obrigação de oferecer a Irene casa própria, móveis modernos, electrodomésticos, automóvel e rendimentos certos. Era inútil que ela manifestasse desinteresse por essas coisas e sugerisse que, em vez do casamento, vivessem uns tempos juntos de forma a poderem verificar se as suas afinidades eram mais fortes que as diferenças. Ele não tinha a mínima intenção de fazer testes desse género, prejudiciais à sua carreira. Uma família estável era um factor importante quando examinassem o seu processo de promoção a major. Por outro lado, nas Forças Armadas, o celibato era visto com desconfiança depois de certa idade. Entretanto, ignorando as vacilações da filha, Beatriz Alcántara preparava ardorosamente o casamento. Percorria lojas à cata de baixelas inglesas pintadas à mão com motivos de pássaros, jogos de toalhas holandesas de linho bordado, roupa íntima de seda francesa e outros mimos para o enxoval da sua única filha. Quem engomará estas coisas quando eu me casar, mãe?, lamentava-se Irene ao ver as rendas da Bélgica, as sedas do Japão, os linhos da Irlanda, as lãs da Escócia e outros tecidos finos, vindos de regiões distantes.

Ao longo de toda a sua carreira Gustavo foi sempre nomeado para quartéis de província, mas ia à capital ver Irene quando lhe era possível. Nessas alturas ela não se encontrava com Francisco embora houvesse trabalho urgente na revista. Perdia-se com o noivo a dançar na penumbra das discotecas, de mãos dadas em teatros e parques, enamorados em hotéis discretos, onde matavam tantos desejos adiados. Francisco ficava inquieto. Trancava-se no seu quarto a ouvir as sinfonias preferidas e comprazia-se com a sua própria tristeza. Um dia, sem conseguir reprimir as palavras, cometeu a asneira de perguntar à jovem quais eram os limites da sua intimidade com o Noivo da Morte. Ela riu-se até mais não poder. Não vais pensar que sou virgem na minha idade, respondeu, sem lhe deixar sequer o benefício da dúvida. Pouco tempo depois, Gustavo Morante foi enviado para o Panamá, por vários meses, para uma escola de oficiais. O seu contacto com Irene limitava-se a cartas apaixonadas, conversas telefónicas a longa distância e presentes enviados em aviões militares. O fantasma sempre presente desse namorado tenaz explica, de certo modo, a razão por que Francisco dormiu com Irene, uma noite, como se fosse um irmão. Quando se lembrava disso, dava um tabefe no rosto, pasmado com O seu procedimento.

Uma dada ocasião, ficaram até altas horas na editora preparando uma reportagem. Dispunham do material e tinham de elaborá-lo para o dia seguinte. As horas voaram, não se deram conta de que os outros empregados iam saindo e de que começavam a apagar-se as luzes em todas as salas. Sairam para comprar uma garrafa de vinho e qualquer coisa para comer. Como gostavam de trabalhar com música, puseram um concerto no gravador e, entre flautas e violinos, o tempo foi passando sem que se lembrassem do relógio. Terminaram muito tarde e só então, através da janela, lhes chegou o silêncio e a escuridão da noite. Não se sentia nem o menor sinal de vida, parecia uma cidade deserta, abandonada depois de um cataclismo que tivesse apagado qualquer vestígio humano, como nas histórias de ficção científica. Até o ar parecia opaco e imóvel. O toque de recolher, murmuraram em uníssono, sentindo-se presos, porque era impossível circular pelas ruas a essa hora. Francisco bendisse a sua sorte, pois podia ficar com ela mais tempo. Irene adivinhou a angústia da mãe e de Rosa e correu ao telefone para lhes explicar a situação. Depois de beberem o resto do vinho, escutarem o concerto duas vezes e falarem de mil coisas, estavam mortos de cansaço e ela sugeriu que descansassem no divã.


A casa de banho do quinto andar da editora era uma divisão ampla e com múltiplas funções, pois servia de vestiário para as modelos mudarem a roupa, de sala de maquilhagem, porque tinha um grande espelho bem iluminado, e até para fazer café, graças a um fogão onde se aquecia a água. Era o único lugar privado e íntimo da revista. Num canto havia um sofá esquecido desde épocas antigas. Tratava-se de um móvel grande, forrado de brocado vermelho, cheio de buracos por onde apareciam as molas enferrujadas, destoando da sua dignidade fim-de-século. Era utilizado em casos de enxaqueca, para chorar males de amor e outras penas menores, ou simplesmente para descansar, quando a pressão do trabalho se tornava insuportável. Ali estivera quase a esvair-se em sangue uma secretária por causa de um malfadado aborto, ali confessaram a sua paixão os ajudantes de Mario e ali mesmo este os surpreendeu sem calças sobre o desbotado tapete episcopal. Nesse mesmo divã se recostaram Irene e Francisco cobertos com os casacos. Ela adormeceu imediatamente, mas ele permaneceu acordado até de manhã, atormentado por emoções contraditórias. Não desejava aventurar-se numa relação, que sem dúvida abalaria os fundamentos da sua vida, com uma mulher que estava do outro lado da barricada. Sentia-se irremediavelmente atraído por ela, na presença dela exacerbavam-se todos os seus sentidos e o seu espírito enchia-se de alegria. Irene divertia-o, fascinava-o. Sob uma aparência volúvel, inconsciente e até cândida, Irene guardava uma essência sem mácula, como o coração de um fruto aguardando O tempo de maturação. Pensou também em Gustavo Morante e no que este representava para Irene. Tinha receio de que a jovem o repudiasse e, por isso, não quis arriscar a sua amizade. Uma vez proferidas, as palavras não podem ser suprimidas. Recordando mais tarde os seus sentimentos naquela noite inesquecível, chegou à conclusão de que não se atreveu a insinuar o amor que sentia, porque Irene não partilhava da sua inquietação. Dormiu tranquila nos seus braços e não lhe passou pela mente sequer a suspeita de ter perturbado Francisco profundamente. Irene vivia aquela amizade serenamente, sem nenhum indício de atracção amorosa, e ele preferiu não a violentar, aguardando que o amor a dominasse suavemente, tal como lhe tinha acontecido a ele. Sentia-a encolhida no sofá, respirando sossegadamente no sono, a longa cabeleira como um arabesco escuro cobrindo-lhe o rosto e os ombros. Manteve-se imóvel, controlando até o ar que respirava, para que ela não se apercebesse da sua palpitante e terrível excitação. Por um lado, lamentava ter aceite esse acordo tácito de irmandade que lhe atava as mãos há alguns meses e desejava lançar-se como um desesperado à conquista do seu corpo, e por outro reconhecia a necessidade de controlar uma emoção capaz de afastá-lo dos propósitos que guiavam aquela etapa da sua vida. Paralisado pela tensão e pela ansiedade, mas disposto a prolongar esse instante para sempre, ficou a seu lado até ouvir os primeiros ruídos da rua e ver a luz da aurora na janela. Irene despertou sobressaltada e, por um momento, não percebeu em que lugar se encontrava, mas logo se levantou num repente, molhou a cara com água fria e saiu correndo para casa, deixando Francisco abandonado como um órfão. A partir desse dia, contava a quem a quisesse ouvir que tinham dormido juntos, o que, pensava Francisco, no sentido figurado da expressão, era, infelizmente, falso.

 


O domingo amanheceu com o céu vibrante de claridade e o ar turvo e espesso, numa antecipação do Verão. Na violência há poucos progressos e, para matar porcos, utilizava-se o mesmo método de tempos primitivos. Irene chamou àquilo cerimónia pitoresca, porque nunca vira nem uma galinha morrer e só conhecia os porcos no seu estado natural. Ia disposta a realizar uma reportagem para a revista, tão entusiasmada com o seu projecto que nem mencionou Evangelina e os seus ataques fulgurantes, como se se tivesse esquecido deles. A Francisco pareceu-lhe estar a passar por uma paisagem desconhecida. Nessa semana desabrochou a Primavera, tornou-se nítido o verde dos campos, floresceram as acácias, essas árvores encantadas que, de longe, parecem cobertas de abelhas e, de perto, enjoam com a incrível fragrância dos seus cachos amarelos, os espinheiros e as amoras encheram-se de pássaros e o ar vibrava com o zumbido dos insectos. Quando chegaram à propriedade dos Ranquileo estava a começar o trabalho. Os donos da casa e os visitantes movimentavam-se em redor de uma fogueira e os meninos corriam gritando, rindo e tossindo com o fumo, os cães montavam guarda, impacientes e alegres, perto dos tachos, pressentindo os despojos do festim. Os Ranquileo receberam os recém-chegados com demonstrações de cortesia, mas Irene notou de imediato um véu de tristeza nos seus rostos. Sob a aparência cordial detectou a aflição, mas não teve tempo de perguntar nem de comentá-la com Francisco, porque nesse momento trouxeram O porco arrastado. Era um animal enorme, criado para O consumo da família; todos os outros eram vendidos no mercado. Um indivíduo experiente seleccionava-o poucos dias após ter nascido, introduzindo-lhe a mão na garganta para verificar a ausência de grãos, garantindo assim a qualidade da carne.

Durante meses era alimentado com cereais e verduras, O que não sucedia com os outros, que eram cevados com restos. Isolado, cativo e imóvel, aguardava que se cumprisse O seu destino, enquanto criava abundante banha e presuntos tenros. Naquele dia, o animal percorreu pela primeira vez os duzentos metros que separavam o seu curral do altar do sacrifício, cambaleando desesperado sobre as patas curtas, cego à luz, surdo de pavor. Ao vê-lo, Irene não conseguiu imaginar como matariam esse volume de carne tão pesado como três homens robustos.

Junto à fogueira tinham feito uma mesa com tábuas grossas sobre dois barris. Ao chegar a vítima, Hipólito Ranquileo aproximou-se com um machado erguido e aplicou-lhe um golpe seco na fronte com a parte posterior do instrumento. O porco caiu no chão aturdido, mas não O suficiente, porque os seus berros se perderam no eco dos montes, fazendo tremer os beiços dos cães, que arfavam de impaciência. Vários homens amarraram-lhe as patas e, com grande dificuldade, içaram-no sobre a mesa. Então, agiu o entendido. Era um homem que tinha nascido com o dom de matar, rara condição que quase nunca se acha nas mulheres. Era capaz de acertar no coração com um só movimento mesmo com Os olhos fechados, pois não era o conhecimento anatómico que o guiava, mas sim a intuição do verdugo. Para sacrificar o animal, tinha vindo de longe, especialmente convidado, porque, se a coisa não era feita com perícia, os queixumes de agonia podiam dilacerar os nervos de todos os moradores da região. Pegou num facão com cabo de osso e afiada lâmina de aço, empunhou-o com as duas mãos, como um sacerdote asteca, e cravou-o no pescoço do porco, conduzindo-o sem vacilar ao centro da vida. O porco bramiu desesperado e um jorro de sangue quente brotou da ferida, salpicando Os que estavam perto, formando uma poça que os cães lamberam. Digna aproximou um balde para recolhê-lo e, em poucos segundos, estava cheio. Flutuava no ar um odor adocicado de sangue e medo.


Nesse instante Francisco notou que Irene não estava a seu lado e, ao procurá-la com o olhar, descobriu-a inerte no chão. Os outros também a viram e um coro de gargalhadas celebrou o desmaio. Inclinou-se sobre ela e sacudiu-a para a forçar a abrir os olhos. Quero-me ir embora daqui, suplicou assim que pôde falar, mas Francisco insistiu para ficarem até ao fim. Tinham ido para isso. Recomendou que aprendesse a controlar os nervos ou então que mudasse de ofício, isso de se descontrolar podia transformar-se num hábito, e recordou-lhe a casa assombrada onde bastou o rangido de uma porta para que ela desfalecesse lívida nos seus braços. Estava ele a troçar de Irene quando cessaram os gemidos do animal. Verificando que o porco estava bem morto, Irene levantou-se.

Mas a lide continuava. Derramaram água a ferver sobre o cadáver e rasparam-lhe o pêlo com um ferro, deixando a pele brilhante, rosada e limpa como a de um recém-nascido, depois cortaram-no de cima a baixo, e começaram a esvaziar as vísceras e a cortar o toucinho diante dos olhos fascinados das crianças e dos cães molhados de sangue. As mulheres lavaram no açude muitos metros de tripas, depois tornaram a enchê-las para O preparo das morcelas e tiraram do caldo em que cozinhavam um bocado para reanimar Irene. A jovem vacilou perante aquela sopa de vampiros onde flutuavam coágulos escuros, mas comeu-a para não fazer desfeita às anfitriãs. De facto, era deliciosa e tinha nítidas propriedades terapêuticas, pois em poucos minutos Irene recuperou a cor das faces e a energia. Passaram o resto do dia tirando fotografias, comendo e bebendo vinho de uma garrafa, enquanto em grandes tambores de lata era derretida a gordura. O toucinho flutuava torrado na banha, tiravam-no com grandes peneiras e serviam-no com pão. Cozinharam o fígado e o coração e ofereceram-nos também aos convidados. Ao entardecer todos cabeceavam, os homens devido ao álcool, as mulheres por cansaço, as crianças de sono e os cães enfastiados pela primeira vez na vida. Então Irene e Francisco lembraram que Evangelina não aparecera durante todo o dia.

-        Onde está Evangelina? - perguntaram a Digna Ranquileo. Ela baixou a cabeça e não respondeu.

-        O seu filho, o guarda, como se chama? - perguntou Irene intuindo que algo de anormal tinha acontecido.

-        Pradelio del Carmen Ranquileo - respondeu a mãe, e o púcaro tremeu-lhe nas mãos.

Irene pegou-lhe pelo braço e conduziu-a delicadamente para um canto afastado do pátio, a essa hora envolto em penumbra. Francisco quis segui-las, mas ela deteve-o com um sinal, certa de que a sós Digna teria oportunidade de estabelecer uma sólida cumplicidade feminina. Sentaram-se em duas cadeiras de palha frente a frente. à ténue luz do crepúsculo, Digna Ranquileo viu o pálido rosto de Irene, devorado por uns olhos estranhos delineados com lápis negro, o cabelo agitado pela brisa, essa roupa vinda de outras épocas

e as missangas barulhentas nos seus pulsos. Percebeu que, apesar do aparente abismo que as separava, podia contar-lhe a verdade, porque afinal eram irmãs, como no fundo o são todas as mulheres.

No domingo anterior, durante a noite, quando todos dormiam na casa, o tenente Juan de Dios Ramirez e o seu subalterno, o que velara os filmes, tinham voltado.

-        O sargento é Faustino Rivera, filho do meu compadre Manuel Rivera, o do lábio fendido - explicou Digna a Irene.


Rivera permaneceu à entrada, mantendo os cães à distância, enquanto o tenente entrava no quarto pontapeando os móveis e proferindo ameaças com a arma na mão. Colocou a família, ainda mal acordada, alinhada contra a parede e, de seguida, arrastou Evangelina para o jipe. A última coisa que os pais viram dela foi a brusca agitação da combinação branca na escuridão, quando a empurravam para o jipe. Durante algum tempo, ouviram os seus gritos chamando-os. Esperaram até ao amanhecer com o peito oprimido e, ao ouvirem o canto dos primeiros galos, cavalgaram até à Polícia. O cabo de guarda recebeu-os depois de uma longa espera e comunicou-lhes que a filha passara a noite numa cela, mas de manhã cedo fora libertada. Perguntaram por Pradelio e foram informados da sua transferência para outra zona.

-        Desde então nada sabemos da menina e também não temos notícias de Pradelio - disse a mãe.

Procuraram Evangelina na aldeia, percorreram uma a uma as casas dos camponeses da região, pararam as camionetas na estrada para perguntar aos motoristas se a tinham visto, interrogaram o pastor protestante, o pároco, O curandeiro, a parteira e quantos encontraram no caminho, mas ninguém foi capaz de lhes dar uma pista. Andaram por todo o lado, desde o rio ao cume dos montes, sem que a encontrassem, o vento tinha arrastado o seu nome por atalhos e caminhos e, ao fim de cinco dias de inútil peregrinação, compreenderam que fora engolida pela violência. Então, vestiram roupa de luto e foram a casa dos Flores contar a triste notícia. Iam envergonhados porque, na sua casa, Evangelina só conhecera o infortúnio e seria melhor para ela ter sido criada com a verdadeira mãe.

-        Não diga isso, comadre - replicou a senhora Flores. - Não vê que a desgraça não poupa ninguém? Lembre-se de que há anos perdi o meu marido e os meus quatro filhos, levaram-nos, roubaram-nos, tal como fizeram com a Evangelina. Era o destino dela, comadre. Não é sua a culpa, mas minha, porque tenho no sangue a má sorte.

Evangelina Flores, de quinze anos, robusta e saudável, ouviu as duas mulheres de pé atrás da cadeira da mãe adoptiva. Tinha o mesmo rosto sereno de Digna Ranquileo, as suas mãos quadradas e as ancas largas, mas não se sentia sua filha, porque os braços da outra a embalaram na infância e foram os seus seios que a amamentaram ao nascer. No entanto, por alguma razão intuiu que a desaparecida era mais do que uma irmã, era ela mesma trocada, era a sua vida a vida que a outra estava vivendo e seria a sua própria morte a que mataria Evangelina Ranquileo. Talvez nesse instante de lucidez, Evangelina Flores tenha pela primeira vez assumido o fardo que mais tarde a conduziria pelo mundo clamando por justiça.

Tudo isto Digna partilhou com Irene e, quando acabou de falar, apagavam-se as últimas faíscas da fogueira e a noite ocupava o horizonte. Era hora de partir. Irene Beltrãn prometeu-lhe que procuraria a filha na capital e deu-lhe a sua morada, para o caso de haver notícias. Despediram-se com um abraço.

Nessa noite Francisco notou algo de diferente nos olhos da jovem, não encontrou o sorriso nem O à-vontade de sempre.

Notou-lhe nos olhos um tom escuro e triste, como o das folhas secas de eucalipto. Então Francisco compreendeu que Irene perdia a inocência e já nada poderia impedi-la de entrever a verdade.

Os dois amigos percorreram os lugares do costume, perguntando por Evangelina Ranquileo com mais tenacidade do que esperança. Não estavam sós nessas diligências. Nos centros de prisioneiros, nos quartéis de polícia, no sector proibido do Hospital Psiquiátrico, onde só entravam os torturados irrecuperáveis em camisas-de-forças e os médicos dos corpos de segurança, Irene Beltrán e Francisco Leal tinham a seu lado muitos outros que conheciam melhor o caminho do calvário e os guiavam. Ali, como em todos os locais onde se entranha o sofrimento, estava presente a solidariedade humana como um bálsamo para aliviar o infortúnio.

-        E a senhora, quem procura? - perguntou Irene.

-        Ninguém, filha. Passei três anos atrás do rasto do meu marido, mas agora sei que descansa em paz.

-        Porque vem então?

-        Para ajudar uma amiga - respondeu, indicando outra mulher.


Tinham-se conhecido há vários anos e juntas percorreram todos os lugares possíveis, batendo às portas. Uma teve melhor sorte, e ao menos soube que o marido já não precisava dela, mas a outra continuava a sua peregrinação. Como deixá-la só? Além disso, estava acostumada a esperar e a sofrer humilhações, disse, toda a sua vida girava à volta das horas de visita e dos formulários, conhecia os meandros para se conseguir comunicar com os presos e obter informações.

-        Evangelina Ranquileo Sánchez, de quinze anos, detida para interrogatório em Los Riscos, nunca mais apareceu.

-        Não a procurem mais, certamente acabaram com ela.

-        Vão ao Ministério da Defesa. Há lá novas listas.

-        Voltem na próxima semana a esta mesma hora.

-        às cinco horas, há troca de guarda, perguntem pelo Antonio, ele é boa pessoa e pode dar-lhes notícias.

-        O melhor é começar pelo Necrotério, assim não perdem tempo.

José Leal tinha experiência disto, porque muita da sua energia se esgotava nesses vaivéns. Lançou mão dos seus conhecimentos de padre, a fim de os conduzir a locais onde outros nunca tinham entrado sozinhos. Acompanhou-os ao Necrotério, um velho edifício cinzento com um aspecto de abandono e mau agouro, adequado para a casa dos mortos. Nele iam terminar os indigentes, os cadáveres anónimos dos hospitais, os mortos em brigas de bêbados ou assassinados impunemente, as vítimas de acidentes de trânsito e, nos últimos anos, homens e mulheres com os dedos cortados por altura das falanges, atados com arames e com o rosto queimado a maçarico ou desfigurado a golpes, de identificação quase impossível, cujo destino final era uma tumba sem nome no pátio 29 do Cemitério Geral. Para entrar, era preciso uma autorização do Comissariado, mas José ia lá frequentemente e os empregados já o conheciam.

O seu trabalho no Vicariato consistia precisamente em averiguar a sorte dos desaparecidos. Enquanto os advogados voluntários tentavam sem êxito um recurso legal para os proteger, no caso de ainda estarem vivos, ele e os outros sacerdotes cumpriam com a macabra burocracia de remexer entre os mortos, comparando-os com as fotografias na esperança de os reconhecerem. Muito raramente se conseguia salvar algum com vida, mas com a ajuda divina os padres confiavam poder entregar às famílias os despojos, para que lhes dessem sepultura.

Advertido pelo irmão de que iriam procurar no Necrotério, Francisco implorou a Irene que não entrasse, mas encontrou nela uma nova determinação, nascida do desejo de conhecer a verdade, que a impeliu a acompanhá-los. Francisco era um homem habituado ao horror, devido à sua experiência em hospitais e manicómios, mas, ao sair daquele lugar, sentiu-se transtornado e assim continuou por muito tempo; por isso imaginava como não se sentiria Irene. As câmaras frigoríficas não comportavam tantos corpos e, como não podiam acomodá-los sobre as mesas, amontoavam-nos em armazéns antes destinados a outros usos. O ar cheirava a formol e humidade. As salas amplas, sujas, com as paredes manchadas, permaneciam na sombra. Só uma lanterna iluminava de vez em quando os corredores, os escritórios decrépitos e os espaçosos depósitos. A desesperança reinava naquele lugar e quem ali passava o dia ficava contagiado pela indiferença, esgotada já a sua capacidade de compaixão. Cada qual cumpria as suas funções manipulando a morte como mercadoria vil, convivendo tão intimamente com ela que esqueciam a vida. Viram empregados lanchando sobre as mesas de autópsia, outros ouvindo programas desportivos do rádio indiferentes aos despojos tumefactos ou jogando às cartas nos depósitos do sótão, onde aguardavam os cadáveres do dia.


Revistaram as dependências uma a uma, parando nas mulheres, que eram poucas e estavam nuas. Francisco sentiu a boca cheia de saliva e a mão de Irene tremendo na sua. A jovem estava pálida, com os olhos esbugalhados, deslizando muda, gelada, como num pesadelo inacabável, tão impressionada que parecia flutuar numa neblina pestilenta. Não conseguia compreender essa visão de inferno e nem mesmo a sua imaginação desenfreada poderia entender tamanho assombro.

Francisco não retrocedia no momento de enfrentar a violência, era um elo dessa longa cadeia humana que se movia na clandestinidade e conhecia os subterrâneos da ditadura. Ninguém suspeitava do seu tráfico de asilados, de mensagens, de dinheiro proveniente de fontes misteriosas, de nomes, documentos e provas acumuladas para enviar para O exterior, no caso de que, algum dia, alguém decidisse escrever a história de tudo aquilo. Mas a repressão não o tocara ainda, conseguia deslizar roçando-a apenas à beira do abismo. Só uma vez, por casualidade, lhe apanharam o dinheiro e o roubaram. Ao voltar do consultório, quando ainda trabalhava como psicólogo, deparou-se-lhe uma patrulha que fazia parar Os transeuntes. Pensou numa revista corriqueira e estendeu os documentos, mas duas mãos que nem garras puxaram-no da moto e cravaram-lhe uma metralhadora no peito.

-        De joelhos, panasca!

Não era o único em situação crítica. Dois meninos em idade escolar estavam de joelhos no chão, e obrigaram-no a pôr-se ao lado deles. Dois soldados apontaram-lhe as armas e outro agarrou-o pelo cabelo e cortou-lho rente. Anos depois ainda lhe parecia impossível recordar esse episódio sem um espasmo de impotência e indignação, embora com o tempo percebesse que era muito pouco importante, comparado com outros factos. Tentou argumentar com os soldados, mas só ganhou uma coronhada nas costas e vários cortes no couro cabeludo. Nessa noite voltou para casa cuspindo raiva, humilhado como nunca estivera.

-        Avisei-te de que andavam a cortar os cabelos, filho - chorou a mãe.

-        A partir deste momento deixa crescer de novo o cabelo, Francisco, porque é preciso Opor-nos a isto de todas as formas possíveis - resmungou o pai, furioso, esquecendo a sua própria aversão aos cabelos compridos nos homens. Assim o fez, certo de que voltariam a tosquiá-lo, mas uma contra-ordem acabou por deixar os cabeludos em paz.


Irene Beltrán viveu até então protegida, numa redoma de angelical ignorância, não por inércia ou estupidez, mas por ser essa a norma no seu meio. Como a sua mãe e tantos outros da mesma classe social, refugiava-se no mundo ordenado e agradável do bairro chique, das praias privativas, das pistas de esqui, dos Verões no campo. Tinham-na educado para negar as evidências desfavoráveis, rejeitando-as como sinais enganadores. Viu uma vez parar um automóvel e vários homens lançarem-se sobre um transeunte, fazendo com que entrasse à força no veículo; sentiu de longe o fumo das fogueiras queimando livros proibidos; adivinhou as formas de um corpo humano boiando nas turvas águas do canal. Certas noites ouvia a marcha das patrulhas e o barulho dos helicópteros zumbindo no céu. Baixou-se para socorrer na rua alguém desmaiado de fome. O furacão do ódio rondava-a, mas não chegava a envolvê-la, defendida como estava pelo alto muro atrás do qual fora criada. Porém, a sua sensibilidade estava viva e, quando tomou a decisão de entrar no Necrotério, deu um passo que afectaria toda a sua existência. Nunca tinha visto um morto de perto até esse dia em que viu tantos para povoar os seus piores sonhos. Parou em frente de um enorme depósito frigorífico para observar uma jovem de pele clara, pendurada num gancho ao lado de outras. à distância parecia-se com Evangelina Ranquileo, mas ao aproximar-se não a reconheceu. Aterrorizada, notou profundos sulcos no seu corpo, o rosto queimado, as mãos amputadas.

-        Não é Evangelina, não olhe para ela - pediu Francisco, afastando a amiga, abraçando-a, arrastando-a para a porta, transtornado como ela.

 

Embora a ida ao Necrotério tivesse durado apenas meia hora, ao sair Irene Beltrán já não era a mesma. Algo ficara irremediavelmente dilacerado na sua alma. Francisco percebeu-o antes mesmo que ela falasse e procurou ansiosamente ajudá-la. Convidou-a a subir para a motocicleta e dirigiu-se a toda a velocidade para o campo.

Iam muitas vezes lanchar juntos para aquele lugar. O almoço no campo acabou com as discussões a propósito de quem pagaria a conta no restaurante e, ao mesmo tempo, ambos gozavam o ar livre no esplendor desse parque. às vezes passavam pela casa de Irene para levar Cleo. A jovem temia que, de tanto conviver com velhos e vaguear pelos caminhos da residência geriátrica, a cadela perdesse o instinto e se tornasse idiota, e por isso parecia-lhe acertado fazê-la correr um pouco. Nas primeiras viagens o pobre animal estava aterrorizado, com as orelhas baixas e os olhos apavorados, escondido entre os dois na moto, mas com o tempo começou a gostar e enlouquecia de entusiasmo ao ruído de qualquer motor. Era uma cadela sem pedigree, com manchas de várias cores, herdeira da vivacidade e da astúcia legadas pelos seus antepassados bastardos. Estava unida à sua dona por uma pacífica lealdade. Os três sobre a moto, pareciam que estavam a executar um número de feira, Irene com as suas saias arrepanhadas, o xaile, as pulseiras, o longo cabelo ao vento, a cadela no meio e Francisco mantendo em equilíbrio a cesta da comida.

Aquele enorme parque natural, encravado no centro da cidade, era de fácil acesso, mas poucos o frequentavam e muitos nem sequer davam pela sua existência. Francisco sentia-se senhor do lugar e utilizava-o quando queria fotografar paisagens: doces colinas sedentas no Verão, caneleiras douradas e carvalhos selvagens onde se aninhavam os esquilos no Outono, fundo silêncio de ramos nus no Inverno. Na Primavera, o parque despertava palpitante, iluminado por mil verdes diferentes, com miríades de insectos entre as flores, todas as suas fontes prenhes, as raízes ansiosas, a seiva transbordando as veias ocultas da natureza. Passavam uma ponte sobre o arroio e começavam a subir por um caminho sinuoso, rodeado de jardins de espécies exóticas. à medida que subiam emaranhavam-se os arbustos, apagavam-se os caminhos e impunha-se uma multidão de suaves bétulas com as primeiras folhas do ano, os maciços pinheiros sempre verdes, os delgados eucaliptos, as faias vermelhas. O calor do meio-dia evaporava o orvalho da manhã e desprendia-se do solo uma ligeira névoa, velando a paisagem. No cimo tinham a sensação de ser os únicos habitantes daquele lugar encantado. Conheciam recantos recônditos, sabiam localizar os sítios perfeitos para observar a cidade a seus pés. às vezes, quando em baixo a névoa se tornava mais densa, o sopé da colina desaparecia sob uma espuma consistente e podiam imaginar que estavam numa ilha cercada de farinha. Em compensação, nos dias claros divisavam a interminável faixa prateada de tráfego e até eles chegava o burburinho como uma torrente longínqua. Em certos lugares a folhagem era tão cerrada e tão intenso o perfume vegetal que chegavam a sentir uma perturbadora embriaguez. Ambos escondiam essas fugidas ao parque como um segredo precioso. Sem terem combinado previamente, evitavam mencioná-las: tratava-se de preservar a sua intimidade.


Ao deixar o Necrotério, Francisco pensou que só a espessa vegetação do parque, a humidade da terra e a fragância do húmus poderiam distrair Irene do clamor de tantos mortos. Conduziu-a até ao cimo e procurou um recanto afastado e na sombra. Sentaram-se sob um salgueiro perto do arroio, que corria saltitante entre as pedras. Os galhos da árvore caíam à sua volta, formando uma cabana de ramos. Encostados ao nodoso tronco, deixaram-se ficar em silêncio, sem se tocarem, mas tão próximos na sua emoção que pareciam habitar um mesmo ventre. Derrotados pela consternação, absortos nos seus pensamentos, sentiam a proximidade um do outro como um bálsamo. O fluir das horas, a brisa do sul, o rumor da água, os pássaros amarelos e o aroma da terra devolveram-lhes lentamente o sentido da realidade.

- Devíamos voltar à editora - disse Irene finalmente.

-        Devíamos.

Mas não se moveram. Irene colheu uns talos de erva e levou-os à boca, mordendo-os para chupar a seiva. Voltou-se, fitou o amigo e ele sumiu-se nos seus olhos nublados. Sem pensar, Francisco atraiu-a para si e procurou a sua boca. Foi um beijo casto, tépido, leve, mas teve o efeito de um abalo telúrico nos seus sentidos. Cada um percebeu a pele do outro, nunca antes tão nítida e próxima, a tensão das mãos, a intimidade de um contacto ansiado desde o começo dos tempos. Um calor palpitante invadiu-lhes os ossos, as veias, a alma, algo que não conheciam ou tinham esquecido por completo, pois a memória da carne é frágil. Tudo desapareceu ao seu redor. Para eles apenas contavam os seus lábios unidos, dando e recebendo. Na verdade, foi apenas um beijo, a sugestão de um contacto esperado e inevitável, mas ambos estavam certos de que este seria o único beijo que poderiam recordar até ao fim da vida e, entre todas as carícias, a única que lembrariam com saudade. Sabiam que, alguns anos depois, ainda evocariam com nitidez o contacto húmido e cálido dos seus lábios, o odor do mato fresco e a tormenta que ia nos seus espíritos. Aquele beijo durou como um suspiro. Quando Francisco abriu os olhos, a jovem estava de pé, recortada contra o precipício, com os braços cruzados. Ambos respiravam agitados, ardentes, suspensos no seu próprio tempo. Ele não se mexeu, dominado por uma emoção nova e absoluta em relação àquela mulher, já para sempre ligada ao seu destino. Pareceu-lhe escutar um levíssimo soluço e compreendeu a luta desencadeada no coração de Irene: amor, lealdade, dúvidas. Vacilou entre o desejo de abraçá-la e o temor de a pressionar. Assim passaram longos momentos de silêncio. Irene voltou-se por fim e, aproximando-se devagar, ajoelhou-se a seu lado. Francisco rodeou-a pela cintura e aspirou o perfume da sua blusa e a leve, profunda, insinuação do seu corpo.

- Gustavo esperou por mim toda a vida. Casarei com ele.

-        Não acredito - sussurrou Francisco.

A tensão foi desaparecendo a pouco e pouco. Irene tomou entre as suas mãos a cabeça morena do amigo e fitou-o. Sorriram aliviados, divertidos, trémulos, seguros de que não pretendiam uma aventura fugaz, porque tinham sido feitos para compartilhar a existência como um todo e assumir juntos o desafio de se amarem para sempre.

A tarde acabava e a verde catedral do parque estava a ficar sombria. Eram horas de voltar. Desceram como uma lufada de vento montados na motocicleta. A tenebrosa visão dos cadáveres nunca se lhes apagaria da alma, mas, nesse momento, sentiam-se felizes.


O calor do beijo não os abandonou durante muitos dias e encheu as suas noites de fantasmas delicados, deixando uma recordação na pele, como uma queimadura. A alegria daquele encontro deixava-os nas nuvens, levava-os a rir sem motivo aparente, despertava-Os sobressaltados a meio do sono.

Tocavam-se os lábios com as pontas dos dedos e cada um recordava nitidamente a forma da boca do outro. Irene pensava em Gustavo e nas novas verdades que aprendera. Desconfiava que, como qualquer oficial das Forças Armadas, também Gustavo devia ter a sua quota-parte no exercício do poder, uma vida secreta que nunca partilhara com ela. Havia dois seres diferentes naquele corpo atlético tão conhecido. Pela primeira vez teve medo dele e desejou que nunca regressasse.

 

Javier enforcou-se na quinta-feira. Nessa tarde, como fazia todos os dias, saiu para procurar trabalho e não voltou. Muito cedo a mulher pressentiu a desgraça, muito antes de ter motivos para começar a preocupar-se. Quando caiu a noite, pôs-se a esperá-lo na soleira da porta com os olhos fixos na rua. Então, o clamor da tragédia tornou-se-lhe insuportável: correu ao telefone e chamou os sogros e quantos amigos conhecia, mas não conseguiu uma única notícia do marido. Interrogando a penumbra durante um tempo infinito, chamando-o com o pensamento, surpreendeu-a O toque de recolher, esperou que passasse a escuridão da noite e os seus olhos viram o novo dia amanhecer. As crianças ainda não tinham acordado quando a patrulha da polícia parou à porta da sua casa. Tinham encontrado Javier Leal pendurado numa árvore, no parque infantil. Nunca falara de suicídio, não se despediu de ninguém, não deixou palavras de adeus, mas ela sabia desde o primeiro momento que ele se tinha matado, pois compreendera finalmente o sentido dos nós da corda que sem cessar torcia e retorcia.

Francisco retirou o cadáver e tratou do funeral do irmão. Enquanto realizava a árdua burocracia da morte, não lhe saía da ideia a imagem de Javier, numa mesa do Instituto Médico, repousando sob a luz gelada das lâmpadas fluorescentes. Tentava analisar as razões desse fim brutal e adaptar-se à ideia de que o companheiro de toda a sua vida, o amigo incondicional, o protector, já não estava neste mundo. Lembrou-se das lições do pai: o trabalho como fonte de orgulho. Nem mesmo durante as férias sabiam o que era o ócio. Em casa da família Leal, até mesmo nos dias festivos, agiam como se estivessem a fazer algo útil. A família viveu momentos difíceis, mas nunca pensou recorrer à caridade, mesmo que ela viesse de quem tivessem socorrido anteriormente. Ao ver todos os caminhos fechados, a Javier só restou aceitar a ajuda do pai e dos irmãos. Por isso preferiu despedir-se em silêncio. Francisco recordou lembranças distantes, quando o irmão mais velho era um menino justiceiro como o pai e sentimental como a mãe. Unidos e solidários, cresceram três filhos, três contra o mundo, três do mesmo clã, respeitados no pátio do colégio porque cada um era protegido pelos outros e qualquer ofensa sofria desagravo imediato. José, o segundo, era o maior, forte e pesado, mas o mais temido era Javier, por causa da sua coragem e destreza dos punhos. Teve uma adolescência tumultuosa


até se apaixonar pela primeira mulher que lhe chamou a atenção. Casou-se com ela e foi-lhe fiel até à noite fatal. Honrou o seu nome: leal com ela, com a família, com os amigos. Amava o trabalho de biólogo e queria ser professor, mas as circunstâncias encaminharam-no para um laboratório comercial, onde, em poucos anos, chegou a altas funções, porque o seu sentido da responsabilidade era animado por uma imaginação fértil, que lhe permitia antecipar-se aos mais ousados projectos da ciência. No entanto, estas condições de nada lhe serviram quando foram feitas as listas das pessoas proscritas pela Junta Militar. A sua actividade no sindicato pesou como um estigma aos olhos das novas autoridades. Primeiro vigiara-no, depois hostilizaram-no e finalmente despediram-no. Ao ver-se sem aquele trabalho e sem ilusão de conseguir outro, Javier iniciou o seu calvário. Deambulava pela vida, consumido pelas noites de insónia e pelos dias de humilhações. Batera a muitas portas, esperara, correra e respondera aos anúncios de jornais, e no fim do caminho via-se esmagado pelo desespero. Sem trabalho, perdeu a pouco e pouco a sua identidade. Estava disposto a aceitar qualquer oferta, mesmo que o salário fosse muito baixo, pois precisava urgentemente de se sentir útil. Como desempregado, era um marginal, um ser anónimo, ignorado por todos porque já não produzia, e essa era a medida do valor humano no mundo em que lhe coube viver. Nos últimos meses abandonou os sonhos, renunciou aos seus objectivos, acabou por se considerar um pária. Os filhos não compreendiam o seu mau humor e a melancolia permanentes; também eles procuravam uma ocupação, lavando automóveis, carregando sacos no mercado ou realizando qualquer tarefa para melhorar o orçamento familiar. No dia em que o seu filho mais novo colocou sobre a mesa da cozinha umas moedas ganhas passeando cães de ricos pelo parque, Javier Leal encolheu-se como um animal acossado. Desse momento em diante não voltou a olhar ninguém nos olhos e mergulhou num total desespero. Faltava-lhe ânimo mesmo para se vestir e frequentemente passava uma boa parte do dia metido na cama. As mãos tremiam-lhe porque começou a beber às escondidas, sentindo-se culpado por gastar assim o dinheiro essencial para a família. Aos sábados fazia um esforço para se apresentar em casa dos pais limpo e com um aspecto normal, para não angustiar mais a família, mas não conseguia apagar do olhar aquela expressão desolada. A relação com a mulher deteriorou-se, porque em tais circunstâncias o amor esgota-se. Precisava de apoio, mas ao mesmo tempo a qualquer assomo de compaixão reagia com fúria. De início ela não acreditou que não existisse nenhum emprego disponível, mas depois, ao saber dos milhares de desempregados, calou-se e começou a fazer turnos a dobrar. O cansaço desses meses esgotou a juventude e a beleza, que ainda eram as suas únicas posses, mas não chegou a lamentá-lo, porque usava toda a sua energia para evitar a fome dos filhos e o desamparo do marido. Não pôde impedir que Javier se perdesse na solidão. A apatia envolveu-o como um manto, eliminando a noção do tempo presente, esmigalhando as suas forças e despojando-o do seu valor. Agia como uma sombra. Deixou de se sentir um homem quando viu o seu lar desmoronar-se e percebeu que o amor definhava nos olhos da mulher. Num momento que a família não pôde prever por estar demasiado próxima, a sua vontade sofreu um abalo definitivo. Renunciou ao desejo de viver e tomou a decisão de dormir o sono final.

A tragédia atingiu a família Leal como uma machadada. Hilda e o professor envelheceram de repente e a sua casa encheu-se do silêncio. Mesmo os pássaros, amigos do alvoroço, pareceram calar-se no pátio. Apesar da rígida condenação da Igreja Católica em relação aos suicidas, José oficiou a missa pelo descanso da alma do irmão. Pela segunda vez o professor pôs os pés num templo, a primeira tinha sido para casar, e nessa ocasião sentia uma imensa alegria. Desta feita, porém, imensa só a tristeza. Durante toda a cerimónia permaneceu de pé, com os braços cruzados e a boca cerrada numa linha fina, louco de angústia. A mulher rezava rendida, aceitando a morte do filho como mais uma prova do destino.


Irene assistiu ao funeral estupefacta, sem conseguir entender a causa de tanta desgraça. Permaneceu calada ao lado de Francisco, abatida pelo pesadelo dessa família que chegara a amar como sua. Conhecia-os joviais, exultantes, risonhos. Ignorava que viviam a dor consigo mesmos, dignamente. Talvez devido à ascendência espanhola, o professor Leal podia expressar todas as paixões menos essa que lhe dilacerava a alma. Os homens não choram senão por amor, dizia. Os olhos de Hilda, pelo contrário, humedeciam-se por qualquer emoção: ternura, riso, nostalgia, mas o sofrimento tornava-a dura como cristal. Houve poucas lágrimas no funeral do seu filho mais velho.

Sepultaram-no num pequeno lote de terreno adquirido à última hora. Os ritos revelaram-se improvisados e confusos, porque nunca até então tinham pensado nas exigências da morte. Como todos os que amam a vida, sentiam-se imortais.

- Não voltaremos para Espanha, mulher - decidiu o professor Leal quando as últimas pás de terra cobriram a urna. Pela primeira vez em quarenta anos admitiu que tinha raízes naquele solo.

A viúva de Javier Leal foi do cemitério para o seu apartamento, colocou os seus poucos pertences numas caixas de papelão, pegou nos filhos pela mão e despediu-se. Partiam para o Sul, para a província onde nascera, porque lá a vida era menos dura e contava com O apoio dos irmãos. Não queria que os filhos crescessem à sombra do pai ausente. Os Leal despediram-se da nora e dos netos, acompanharam-nos abatidos à estação, viram-nos subir para o comboio e perder-se na distância, sem acreditarem que em tão poucos dias perdiam também aquelas crianças que tinham ajudado a crescer. Não valorizavam nenhum bem material, a sua confiança no futuro estava depositada na família. Nunca tinham imaginado que envelheceriam longe dos seus.

Da estação o professor voltou para casa e, sem tirar o casaco nem a gravata de luto, sentou-se numa cadeira sob a cerejeira do quintal, com os olhos perdidos. Segurava nas mãos a sua velha régua de cálculo, único objecto salvo do naufrágio da guerra e que levara para a América. Teve-a sempre perto de si, sobre a mesa de cabeceira, e só permitia que os meninos brincassem com ela quando pretendia dar-lhes uma recompensa. Os três aprenderam a usá-la deslizando as suas peças para fazer operações com os números e o professor negou-se a substitui-la quando foi ultrapassada pelos progressos da electrónica. Era um tubo telescópico de bronze com minúsculos números pintados na superfície, obra de artesãos do século passado. Ali sentado sob a árvore, olhando as paredes de tijolo que ele mesmo erguera para abrigar o seu filho Javier, o professor Leal permaneceu quieto muitas horas. Nessa noite Francisco levou-o quase à força para a cama, mas não pôde obrigá-lo a comer. No dia seguinte foi o mesmo. Ao terceiro, Hilda secou as lágrimas, reuniu a força sempre presente no seu íntimo, e dispôs-se a lutar pelos seus uma vez mais.

- O mal do teu pai é que não acredita na alma, Francisco. Por isso sente que perdeu Javier - disse.


Da cozinha podiam ver através da janela o professor na sua cadeira, mexendo na régua de cálculo. Com um suspiro, Hilda guardou o almoço no frigorífico sem sequer o provar, levou outra cadeira para o quintal e sentou-se sob a cerejeira com as mãos sobre a saia, pela primeira vez desde tempos imemoriais sem as ocupar com o tricot ou a costura, e assim ficou imóvel durante horas. Ao anoitecer, Francisco suplicou-lhes que comessem qualquer coisa, mas não obteve resposta. Com grande dificuldade, levou-os para o quarto e obrigou-os a meter-se na cama, onde ficaram em silêncio, com os olhos abertos, desolados, como dois velhos perdidos. Beijou-os no rosto, apagou a luz e desejou com toda a sua alma que um sono profundo os aliviasse da angústia. Ao levantar-se na manhã seguinte, deu com eles de novo sentados sob a árvore, com a roupa amarrotada, sem se terem lavado nem comido, mudos. Apelou para todos os seus conhecimentos para controlar o impulso de sacudi-los. Paciente, ficou a vigiar, deixando-os chegar ao fundo da dor.

A meio da tarde, o professor Leal levantou os olhos e fitou Hilda.

-        O que é que tens, mulher? - perguntou com a voz enfraquecida pelos quatro dias de silêncio.

- O mesmo que tu.

O professor compreendeu. Conhecia-a bem e soube que se deixaria morrer se ele o fizesse, porque, depois de amá-lo sem interrupção durante tantos anos, não lhe permitiria partir só.

-        Está bem - disse, levantando-se com dificuldade e estendendo-lhe a mão.

Entraram devagarinho em casa, apoiando-se mutuamente. Francisco aqueceu a sopa e a vida voltou à sua rotina.

 

Tentando esquecer a dor que se vivia na casa de Francisco, Irene Beltrán pegou no automóvel da mãe e partiu sozinha para Los Riscos, decidida a encontrar Evangelina por sua conta e risco. Prometera a Digna ajudá-la na busca e não tinha a mínima intenção de dar uma impressão de ligeireza. Parou apenas quando chegou a casa dos Ranquileo.

- Não procure mais, menina. A terra tragou-a - disse a mãe com a resignação de quem já tinha suportado muitas dores.

No entanto, Irene estava disposta a remover céu e terra, se fosse necessário, para achar a rapariga. Mais tarde, ao recordar esses dias, perguntava para si mesma O que a teria empurrado até à zona das sombras. Desde o princípio, suspeitou que tinha nos dedos a ponta de um fio e que, ao esticá-lo, desenredaria uma interminável meada de horror. Sentia que essa santa de milagres duvidosos era a fronteira entre o seu mundo ordenado e a obscura região nunca antes pisada. Pensando nisso, chegou à conclusão de que não só foi impelida pela curiosidade própria do seu carácter e da sua profissão, mas ainda por algo que se assemelhava à vertigem. Pressentiu um fosso insondável e não pôde resistir à tentação do abismo.

O tenente Juan de Dios Ramírez recebeu-a sem demora no seu escritório. Pareceu-lhe menos robusto do que quando o conheceu naquele domingo fatídico em casa dos Ranquileo e deduziu que o tamanho de um homem dependia da sua atitude. Ramírez mostrou-se quase amável. Vestia a farda sem o correame, tinha a cabeça descoberta e não estava armado. As mãos estavam inchadas, vermelhas, cheias de frieiras, que é mal de pobres. Era impossível que não reconhecesse Irene, pois bastava ver uma só vez o seu cabelo em desalinho e os seus vestidos extravagantes para que qualquer pessoa se lembrasse dela. Por isso, não tentou disfarçar e manifestou-lhe sem preâmbulos o seu interesse por Evangelina Ranquileo.

-        Foi detida para um breve interrogatório de rotina - disse o oficial. - Passou aquela noite aqui e no outro dia foi-se embora cedo.

Ramírez secou o suor da fronte. Fazia calor no escritório.

-        Mandaram-na para a rua sem roupa?

-        A cidadã Ranquileo tinha sapatos e um poncho.

-        Vocês arrancaram-na da cama durante a noite. É uma menor. Porque não a devolveram aos pais?

- Não tenho de discutir consigo os procedimentos da polícia - respondeu secamente o tenente.

-        Prefere fazê-lo com o meu noivo, o capitão do Exército Gustavo Morante?

-        Em que é que está a pensar? Eu só presto contas ao meu superior imediato!


Mas Ramirez vacilou. Entre a pele e os ossos tinha inculcado o princípio da fraternidade militar; acima das pequenas rivalidades entre os regimentos, estavam os interesses sagrados da pátria e os não menos sagrados interesses da farda; tinham de defender-se do cancro oculto que crescia e se multiplicava no próprio seio do povo; por isso devia-se desconfiar sempre dos civis, como medida de precaução, e ser leal aos camaradas de armas, como medida estratégica. As Forças Armadas devem ser monolíticas, tinham-lhe dito e redito mil vezes. Também influiu no seu espírito a evidente superioridade da classe social da jovem, porque se acostumara a respeitar a mais alta autoridade do dinheiro e do poder e ela devia possuir ambos, já que ousava interrogá-lo com tal desembaraço, tratando-o como se fosse seu empregado. Procurou no Livro da Guarda e mostrou-o. Lá estava de facto a entrada no quartel de Evangelina Ranquileo Sánchez, de quinze anos, detida a fim de prestar declarações sobre um acontecimento não autorizado na propriedade de sua família e agravos físicos na pessoa do oficial Juan de Dios Ramírez. Em baixo acrescentava-se que, devido a uma crise de choro, tinham decidido cancelar o interrogatório. Assinava o cabo da guarda Ignacio Bravo.

-        Apostava que foi para a capital. Queria empregar-se como doméstica, como a irmã mais velha - disse Ramírez.

-        Sem dinheiro e quase nua, tenente? Não lhe parece um pouco estranho?

-        Essa badarneca estava meio louca.

-        Posso falar com o irmão dela, Pradelio Ranquileo?

-        Não. Foi transferido para outra zona.

-        Para onde?

-        Essa informação é confidencial. Estamos em estado de guerra interna.

Irene compreendeu que não conseguiria mais nada por aquela via e, como ainda era cedo, foi à aldeia dar uma volta a fim de falar com algumas pessoas. Queria saber o que pensavam dos militares em geral e do tenente Ramírez em particular, mas ao ouvirem tais perguntas as pessoas viravam a cabeça sem dizer palavra e retiravam-se O mais rápido possível. Anos de regime autoritário tinham imposto a discrição como norma de sobrevivência. Enquanto esperava que um mecânico consertasse O pneu do automóvel, Irene sentou-se num café perto da praça. A Primavera surgia bem nítida no voo nupcial dos pardais, no passo requebrado das galinhas com o seu séquito de pintainhos, no tremor das raparigas sob os vestidos de percal. Uma gata prenha entrou no bar e com dignidade deitou-se debaixo da sua mesa.

Nalguns momentos da sua vida Irene sentiu-se dotada da força da intuição. Acreditava escutar os sinais do futuro e supunha que O poder da mente podia determinar certos acontecimentos. Foi essa a explicação que encontrou para o facto de o sargento Faustino Rivera ter aparecido no mesmo lugar escolhido por ela para comer. Quando mais tarde contou a Francisco, este expôs uma teoria mais simples: era o único restaurante de Los Riscos e a essa hora o sargento estava com sede. Irene viu-o entrar suando, aproximar-se do balcão para pedir cerveja, e reconheceu logo o seu rosto indígena, maçãs do rosto salientes, olhos oblíquos, pele rija, dentes grandes e iguais. Vestia uniforme e levava o gorro de serviço na mão. Lembrou o pouco que sabia dele pela boca de Digna Ranquileo e decidiu usá-lo a seu favor.

-        Você é o sargento Rivera? - saudou.

-        às suas ordens.

-        Filho de Manuel Rivera, o de lábio fendido?

-        Ele mesmo, para servi-la.


Dali em diante a conversa seguiu um curso fácil. A jovem convidou-o para beber na sua mesa e, logo que o viu acomodado com outra cerveja na mão, fez dele sua presa. Ao terceiro copo era evidente que o guarda aguentava mal o álcool e ela resolveu conduzir o assunto conforme lhe interessava. Começou por

adulá-lo dizendo-lhe que tinha nascido para ocupar cargos de responsabilidade, qualquer um podia ver isso, ela mesmo o tinha notado na casa dos Ranquileo, quando controlou a situação com a autoridade e o sangue-frio de um verdadeiro chefe, enérgico e eficiente, não como o oficial Ramírez.

-        O tenente é sempre assim tão imprudente? Olhe que se pôs a disparar! Eu assustei-me muito...

-        Dantes não era assim. Não era mau homem, isso lhe garanto -     respondeu o sargento.

Conhecia-o como a palma da sua mão, porque estava sob as suas ordens há muito tempo. Ao concluir o curso da Escola de Oficiais, Ramirez reunia as virtudes de um bom militar: elegante, intransigente, cumpridor. Conhecia de cor os códigos e regulamentos, não admitia falhas, verificava o brilho dos sapatos, puxava os botões para comprovar se estavam firmes, exigia dos seus subalternos muita seriedade no serviço e era obsessivo com a higiene. Vigiava pessoalmente a limpeza das latrinas e todas as semanas perfilava os homens nus, a fim de detectar as doenças venéreas e os piolhos. Inspeccionava com lupa as partes íntimas, e os que estivessem com contágio tinham de aguentar remédios drásticos e múltiplas humilhações.

-        Não o fazia por maldade, menina, mas para nos ensinar a ser gente. Creio que nessa época o meu tenente tinha bom coração.

Rivera lembrava-se do primeiro fuzilamento como se estivesse a presenciá-lo. Fora cinco anos antes, a poucos dias do pronunciamento militar. Ainda fazia frio e naquela noite choveu sem parar; uma catarata caiu do céu para banhar o mundo e deixou o quartel limpo, cheirando a musgo e humidade. Ao amanhecer, parou a chuva, mas a paisagem parecia marcada pela recordação das águas e entre as pedras brilhavam os charcos como pedaços de cristal. Ao fundo do pátio estava o pelotão, e o tenente Ramírez, muito pálido, dois passos à frente. Dois guardas carregaram o prisioneiro, sustendo-o pelos braços, porque não conseguia manter-se em pé. De início, Rivera não se deu conta do estado em que O preso se encontrava e acreditou que estava acobardado, como outros que, depois de andarem por aí a praticar a subversão para foder a pátria, desmaiavam no momento de pagar pelas culpas, mas em seguida observou-o melhor e reparou que se tratava do tipo a quem tinham rebentado com as pernas. Tinham de erguê-lo no ar para evitar que os seus pés batessem contra o empedrado. Faustino Rivera olhou para o seu superior e adivinhou-lhe os pensamentos, porque nalgumas noites de guarda tinham falado de homem para homem, superando as hierarquias, para analisarem as causas do levantamento militar e as suas consequências. O país estava dividido pelos ricos antipatrióticos, que debilitaram a nação, convertendo-a em presa fácil dos inimigos externos, dizia o tenente Ramirez. O primeiro dever de um soldado é zelar pela segurança. Por isso tomaram o Poder, para devolver à pátria a sua força, varrendo de passagem os inimigos internos. Rivera repudiava a tortura, considerando-a o pior dessa guerra suja em que estavam metidos, não fazia parte da sua profissão, não lhe fora ensinada, revolvia-lhe as tripas. Era muito diferente dar uns pontapés num delinquente comum, como parte da rotina, de martirizar sistematicamente um prisioneiro. Porque é que esses desgraçados se calavam? Porque não falavam ao primeiro interrogatório, evitando tanto sofrimento inútil? Afinal todos confessavam ou morriam, como esse que iam fuzilar.

-        Pelotão! Atirem...!

-        Meu tenente - sussurrou a seu lado Faustino Rivera, então um simples primeiro-cabo.


-        Ponha o prisioneiro contra o muro, primeiro!

-        Mas, meu tenente, ele não consegue suster-se.

-        Sente-o então!

-        Onde, meu tenente?

-        Tragam uma cadeira, caralho! - E a voz fraquejou-lhe.

Faustino Rivera virou-se para o homem à sua esquerda, repetiu a ordem e o outro foi buscar a cadeira. Porque não o põem no chão e o matam como a um cão antes que clareie o dia e possamos ver as caras uns dos outros. Para quê tanta demora?, pensou inquieto, pois a cada momento havia mais luz no pátio. O prisioneiro levantou os olhos e fixou os militares um por um, com o seu olhar assustado de agonizante, detendo-se em Faustino. Reconheceu-o, sem dúvida, pois decerto teriam jogado à bola algumas vezes no mesmo campo, e ali estava o outro de pé sobre os charcos gelados com uma espingarda na mão, que lhe pesava como uma canga, enquanto ele aguardava a morte. Até que chegou a cadeira e o tenente ordenou que o amarrassem ao espaldar, porque cambaleava como um espantalho. O cabo aproximou-se com um lenço.

-        Não me tape os olhos, soldado - disse o prisioneiro, e o outro baixou a cabeça envergonhado, desejando que o oficial desse a ordem depressa, que aquela guerra acabasse de vez, que tudo v'oltasse ao normal e ele pudesse passear pela rua em paz, cumprimentando como dantes os camponeses.

-        Apontem! ..! - gritou o tenente.

Finalmente, pensou o primeiro-cabo. O homem que ia morrer cerrou as pálpebras por um segundo, mas voltou a abri-las para ver o céu. Já não tinha medo. O tenente vacilou. Desde que lhe tinham sido comunicado o fuzilamento andava consumido, martelava na sua mente uma voz antiga, vinda da infância, talvez de algum professor ou do confessor no colégio de padres: todos os homens são irmãos. Mas isso não é verdade, não é irmão quem semeia a violência, além do que a pátria está primeiro e o mais são tretas, e se não os matamos são eles que nos matam, assim dizem os coronéis, ou matas ou morres, é a guerra, estas coisas têm de fazer-se, aperta as calças e não tremas, não penses, não sintas e sobretudo não olhes para a cara dele, porque se olhares estás fodido.

-        Fogo!

A descarga sacudiu o ar e ficou a vibrar no ambiente gelado. Um pardal da madrugada voou aturdido. O cheiro da pólvora e o ruído pareciam eternizar-se, mas lentamente fez-se outra vez silêncio. O tenente abriu os olhos: o prisioneiro estava na cadeira olhando para ele, erecto, sereno. Havia sangue fresco na massa informe das suas calças, mas estava vivo e o seu rosto era diáfano à luz do amanhecer. Estava vivo e esperava.

-        O que é que se passa, primeiro? - perguntou em voz baixa o oficial.

-        Dispararam para as pernas, meu tenente - respondeu Faustino Rivera. - Os rapazes são da região, conhecem-se, como podem matar um amigo?

-        E agora?

-        Agora cabe-lhe a si, meu tenente.

Mudo, o oficial acabou por compreender, enquanto o pelotão aguardava observando o orvalho que se evaporava entre as pedras. Também o fuzilado esperava no outro extremo do pátio, sangrando lentamente.

-        Não lhe tinham contado, meu tenente? Todos sabem disso. Não. Ninguém lhe tinha contado. Na Escola de Oficiais fora


treinado para lutar contra os países vizinhos ou contra qualquer filho da puta que invadisse o território nacional. Também o treinaram para combater os meliantes, para os perseguir sem piedade e dar-lhes caça sem trégua, de modo que os homens decentes, as mulheres e as crianças pudessem caminhar tranquilos pela rua. Essa era a sua missão. Mas ninguém lhe disse que teria que dar cabo de um homem amarrado para fazê-lo falar, não lhe ensinaram nada disso, e agora o mundo estava a virar-se do avesso e ele tinha de ir dar o tiro de misericórdia naquele infeliz que nem sequer se queixava. Não. Ninguém lho tinha dito.

Dissimuladamente, o primeiro-cabo roçou-lhe o braço para que o pelotão não desse pela vacilação do chefe.

-        O revólver, meu tenente - sussurrou.

Sacou a arma e cruzou o pátio. O eco surdo das botas sobre o pavimento ressoou nas entranhas dos homens. Ficaram frente a

frente, o tenente e o prisioneiro, olhando-se nos olhos. Tinham a mesma idade. O oficial levantou o braço, apontando para a têmpora, e apoiou o revólver com as duas mãos para dominar o tremor. O céu já claro do dia foi a última coisa que o condenado viu quando a descarga lhe perfurou a cabeça. O sangue cobriu-lhe o rosto e o peito, salpicando o uniforme limpo do oficial.

O soluço do tenente ficou no ar, vibrando com o tiro, mas só Faustino Rivera o ouviu.

-        Ânimo, meu tenente. Dizem que isto é como a guerra. A primeira vez custa, mas depois a gente acostuma-se.

-        Vá para o caralho, primeiro!

O cabo tinha razão. De facto, com o correr dos dias e das semanas, passaria a ser muito mais fácil para eles matar pela pátria do que morrer por ela.

O sargento Faustino Rivera acabou de falar e enxugou o suor do pescoço. Na névoa da embriaguez mal distinguia as feições de Irene Beltrán, mas podia apreciar a harmonia dos seus traços. Viu as horas no relógio e teve um sobressalto. Tinha passado duas horas a falar

com aquela mulher e, se não fosse estar atrasado para o turno, ainda lhe diria umas quantas coisas mais. Ouvia-o com atenção e interessava-se pelas suas anedotas, não como essas senhorecas fingidas que torcem o nariz quando um macho mete uns copos no bandulho, não senhor, uma verdadeira fêmea, é o que parece, bem feita e com ideias na cabeça, embora um pouco seca. Também não tem umas mamas por aí além e é fraca de ancas, não tem muito para um gajo se agarrar na hora da verdade.

-        O meu tenente não era um mau homem, menina. Mas ficou outro quando lhe deram poder e não teve de prestar mais contas a ninguém - concluiu, ajeitando-se no uniforme e levantando-se.

Irene esperou que ele desse meia volta e desligou o gravador escondido na mala sobre a cadeira. Deu os últimos pedaços de carne à gata, pensando em Gustavo Morante e perguntando-se se o seu noivo já alguma vez teria cruzado um pátio com a arma na mão para dar um tiro de misericórdia num prisioneiro. Apagou essas imagens, irritada, procurando evocar o rosto bem barbeado e os olhos claros de Gustavo, mas só lhe veio à mente o perfil de Francisco Leal quando se inclinava, ao seu lado, na mesa de trabalho, o seu olhar negro brilhando de compreensão, o jeito infantil da sua boca ao sorrir e o outro gesto, angustiado e duro, quando o feria a evidência da maldade alheia.


A Vontade de Deus estava profusamente iluminada, com as cortinas dos salões abertas e música no ar, porque era dia de visita e os parentes e amigos dos idosos vinham cumprir mais um encontro piedoso. Ao longe, o andar térreo parecia um transatlântico ancorado por engano nos jardins. Os hóspedes e as visitas passeavam pela coberta, apanhando o fresco da noite ou repousando nas poltronas do terraço como fantasmas mirrados, almas de outros tempos, falando sozinhos, alguns mastigando o ar, outros talvez lembrando épocas distantes ou procurando num recanto da memória os nomes dos amigos, bem como dos filhos e netos ausentes. Nessa idade o inventário do passado é como entrar num labirinto, e por vezes não se consegue reconhecer um lugar, um acontecimento, um ser querido e situá-lo na névoa. As enfermeiras, com os seus uniformes brancos, deambulavam silenciosas, agasalhando pernas lassas, distribuindo comprimidos para a noite, servindo chá aos pensionistas e refrescos aos demais. De invisíveis altifalantes escapavam os acordes juvenis de uma mazurca de Chopin, sem relação alguma com o vagaroso ritmo interior dos moradores da casa.

A cadela correu ligeira quando Francisco e Irene entraram no jardim.

-        Cuidado, não pises o canteiro de miosótis - recomendou ela, convidando o amigo a abordar o navio e levando-o até aos viajantes do passado.

Irene tinha o cabelo preso com uma fita, o que lhe descobria a curva da nuca, vestia uma longa túnica de algodão e, pela primeira vez, não pusera as chocalhantes pulseiras de cobre e bronze. Algo na sua atitude surpreendeu Francisco, algo que não soube precisar. Observou-a enquanto passeava entre os idosos, risonha e cortês com todos, especialmente com aqueles que estavam apaixonados por ela. Cada um vivia um presente cercado de nostalgia. Irene indicou-lhe o paralítico, incapaz de segurar uma lapiseira entre os dedos rígidos e que por isso lhe ditava as suas cartas. Escrevia aos camaradas de meninice, a noivas de há muito tempo, a parentes enterrados há várias décadas, mas ela não enviava essa correspondência dolorosa, para não sofrer o desencanto de vê-la devolvida pelo correio, por ausência do destinatário. Inventava respostas e enviava-as ao velho para lhe evitar a dor de se saber só neste mundo. Apresentou também a Francisco um velho demente que nunca recebia visitas. O homem tinha os bolsos cheios de quentes tesouros, de que cuidava com extremado esmero: imagens descoradas de raparigas em flor, cartões amarelados onde se insinuava um seio mal tapado, uma perna atrevida em que brilhava uma liga de cintas e rendas. Aproximaram-se da cadeira de rodas da viúva mais rica do reino. A mulher vestia um traje surrado, um xaile comido pelo tempo e pela traça, uma luva só, da primeira comunhão. Penduradas na cadeira havia bolsas plásticas repletas de bugigangas e sobre o seu colo uma caixa com botões, que ela contava e recontava para se certificar de que não faltava nenhum. Intrometeu-se um coronel com medalhas de latão para lhes dizer, com sussuros asmáticos, que uma bala de canhão tinha pulverizado meio corpo dessa heróica mulher. Sabe que juntou um saco de moedas de ouro honestamente ganhas por ser dócil para com o marido? Imagine, jovem, que incapaz não devia ser ele para pagar pelo que podia ter grátis; eu aconselho os meus recrutas a que não gastem o pré com as putas, porque as mulheres abrem as pernas com prazer quando vêem um uniforme, digo-o por experiência própria; eu, no entanto, até tenho mulheres de mais. Antes que Francisco pudesse decifrar aqueles mistérios, aproximou-se um homem alto e muito magro, com uma expressão trágica no rosto, a perguntar pelo filho, pela nora e o seu bebé. Irene falou-lhe à parte, em segredo, depois conduziu-o até um grupo animado e permaneceu a seu lado até vê-lo mais sereno. Explicou a Francisco que o velho tinha dois filhos. Um estava exilado do outro lado do planeta, e só podia comunicar com O pai através de cartas cada vez mais distantes e frias, porque a ausência é tão adversa como a passagem do tempo. O outro tinha desaparecido com a mulher e uma criança de meses. O avô não teve a sorte de perder a razão e ao primeiro descuido fugia para a rua na ânsia de procurá-los. Irene quis levá-lo a abandonar as suposições atrozes e a aceitar uma dor mais real, assegurando-lhe ter provas de que nenhum deles era vivo. No entanto, ele não punha de parte a hipótese de ver um dia aparecer o menino, porque se falava de crianças salvas através do tráfico de órfãos. Alguns já dados como mortos surgiam de repente em países distantes adoptados por famílias de outras raças, ou eram localizados em instituições de caridade tantos anos depois que nem sequer se lembravam de ter tido pais. à força de mentiras piedosas, Irene conseguiu evitar que fugisse sempre que o jardim ficava sem vigilância, mas não pôde impedi-lo de gastar os sonos em tormentos irremediáveis e a vida indagando todos os indícios e ansiando por ver os túmulos dos seus. Indicou também a Francisco dois velhos pálidos e enrugados balançando numa cadeira de ferro forjado, que mal conheciam os seus próprios nomes, mas que tiveram a sorte de se apaixonarem, apesar da tenaz oposição de Beatriz Alcántara, que considerava aquele idílio uma depravação intolerável dos costumes. Onde já se viu um casal de velhos decrépitos andar para aí aos beijos às escondidas? Irene, pelo contrário, defendia o direito a essa última felicidade e desejava para todos os hóspedes a mesma sorte, porque o amor salvá-los-ia da solidão, a pior condenação da velhice, por isso deixa-os em paz, mãe, faz de conta que não vês a porta que ela deixa aberta à noite, nem faças essa cara quando os encontrares juntos de manhã, fazem amor, porque não, embora o médico diga que na sua idade é impossível.

E por último apresentou a Francisco uma senhora que descansava no terraço, olha bem para ela, é Josefina Bianchi, a actriz, ouviste falar dela? Francisco viu uma mulher pequena que sem dúvida tinha sido muito bela e que, de certo modo, continuava a sê-lo. Estava de roupão e chinelos, porque o seu relógio marcava a hora de Paris, o que implicava uma diferença de várias horas e duas estações. Sobre os seus ombros descansava uma velha estola de pele de raposa, com patéticos olhos de vidro e melancólicas caudas.

-        Uma vez Cleo pegou na estola e quando a conseguimos apanhar parecia que lhe tinha passado um comboio por cima - disse Irene segurando a cadela.


A actriz guardava baús com roupas antigas das suas peças favoritas, jóias sem uso há meio século, que limpava com frequência para exibir diante dos olhos estupefactos dos seus amigos do lar. Desfrutava plenamente de todas as suas faculdades, cultivava ainda um ar sedutor e mantinha todo o seu interesse pelo que se passava no mundo, lia os jornais e de vez em quando ia ao cinema. Irene distinguia-a entre os demais e as enfermeiras tratavam-na com deferência, chamando-lhe senhora e não avó. Para consolo dos seus últimos dias, nunca perdera a sua inesgotável imaginação e, entretida com as suas próprias fantasias, não dispunha de tempo e ânimo para se ocupar com as pequenas coisas da existência. Nas suas lembranças não havia caos, armazenava-as em perfeita ordem e sentia-se feliz ao remexê-las. Nesse aspecto tinha melhor sorte do que o resto dos velhos, aos quais a falta de memória apagava episódios do passado e criava o pânico de não os ter vivido. Josefina Bianchi tinha a seu favor uma vida fecunda e a sua maior felicidade consistia em recordá-la com precisão de notário. Lamentava apenas as oportunidades desprezadas, a mão que não estendeu, as lágrimas retidas, as bocas que não chegou a beijar. Teve vários maridos e muitos amantes, viveu aventuras sem medir consequências, dissipou o seu tempo com alegria, pois esteve sempre convicta de que morreria com cem anos. Preparou o futuro com um sentido prático, escolhendo ela mesma o lar de idosos quando compreendeu que não poderia viver sozinha, e incumbiu um advogado de administrar as suas economias, de forma a ter garantido o bem-estar até ao fim dos seus dias. Sentia por Irene Beltrán um carinhoso afecto, porque na juventude tivera o cabelo dessa mesma cor fogosa e divertia-se imaginando que a jovem era sua bisneta, ou ela mesma na época do esplendor. Abria os baús repletos de tesouros, mostrava-lhe o álbum da sua celebridade e dava-lhe a ler cartas de apaixonados. Tinham feito um pacto secreto: no dia em que eu sujar as cuecas ou não puder pintar os lábios, ajuda-me a morrer, filha, implorou Josefina Bianchi. Como é natural, Irene assumiu a promessa.

-        A minha mãe está fora, vamos jantar sozinhos - disse Irene, conduzindo Francisco ao segundo andar pela escada interna.

O andar superior estava em penumbra e silêncio, porque não chegavam lá as luzes do térreo. Já não se ouviam os altifalantes da Vontade de Deus. A essa hora as visitas despediam-se, os hóspedes voltavam aos seus quartos e o sossego da noite apoderava-se da casa com as suas sombras peculiares. Rosa, gorda e magnífica, recebeu-os no vestíbulo com um sorriso aberto. Sentia carinho por esse jovem moreno que a cumprimentava com entusiasmo, brincava com ela e era capaz de rolar pelo chão abraçado à cadela. Sentia-o muito mais próximo e familiar do que Gustavo Morante, embora sem dúvida não fosse um bom partido para a menina. Desde que O conhecera, vira-lhe sempre as mesmas calças cinzentas de veludo, os mesmos sapatos com sola de borracha. Enfim, uma lástima. "Bem vestido, bem recebido", pensava, mas em seguida corrigia com o provérbio contrário: "O hábito não faz o monge."

-        Acenda as luzes, Irene - recomendou, antes de se escapulir para a cozinha.

A sala estava decorada com sobriedade, tapetes persas, quadros modernos e alguns livros de arte em estratégica desordem. Os móveis pareciam cómodos e a profusão de plantas refrescava o ambiente. Francisco acomodou-se no sofá, pensando na casa dos pais, onde o único luxo era um aparelho de música, enquanto Irene abria uma garrafa de vinho rosé.

-        O que é que vamos celebrar? - perguntou ele.

-        A sorte de estarmos vivos - respondeu Irene sem sorrir.

Observou-a em silêncio, confirmando que alguma coisa tinha mudado nela. Viu-a servir os copos com mão vacilante, um gesto triste no rosto sem maquilhagem. Com a intenção de ganhar tempo e saber O que se passava com ela, Francisco procurou entre os discos, e a voz inconfundível de Gardel chegou-lhes através de cinquenta anos de história. Escutaram em silêncio, de mãos dadas, até que Rosa entrou, anunciando que o jantar estava servido na sala.

-        Espera aqui, não te mexas - pediu Irene, e saiu apagando as luzes.

Voltou passados instantes com um candelabro de cinco velas, uma aparição vinda de outro século, com a ampla túnica branca e o resplendor do castiçal lançando pinceladas metálicas na sua pele. Solene, guiou Francisco pelo corredor até uma divisão que fora outrora um enorme quarto e estava agora transformada em sala de jantar. Os móveis eram muito grandes para as dimensões da sala, mas o gosto apurado de Beatriz Alcántara vencera o obstáculo, pintando as paredes de vermelho pompeano, em dramático contraste com o cristal da mesa e os estofos brancos das cadeiras. O único quadro era uma natureza-morta da escola flamenga: cebolas, alhos, uma escopeta apoiada num canto e três faisões miseráveis pendurados pelas patas.

-        Não olhes muito para o quadro, ou terás pesadelos - recomendou Irene.

Francisco regozijou-se silenciosamente com a ausência de Beatriz e do Noivo da Morte, satisfeito por se encontrar a sós com Irene.


-        E agora, conta-me porque estás triste.

-        Porque até agora vivi num sonho e tenho medo de despertar.

 

Irene Beltrán fora uma menina mimada, filha única de pais abastados, protegida do contacto com o mundo e mesmo das inquietações do coração. Afagos, mimos, carícias, colégio inglês feminino, universidade católica, muito cuidado com as notícias da imprensa e da televisão, há tanta maldade e violência, o melhor é afastá-la dessas coisas, sofrerá mais tarde, é inevitável, mas deixemos que tenha uma infância feliz, dorme minha menina, que a mãezinha cuida de ti. Cães de raça, jardins, cavalo no clube, esqui no Inverno e praia todo o Verão, aulas de dança para que aprenda a caminhar com graça e elegância, porque esta menina não anda, pula, e estatela-se contra os móveis como uma contorcionista; deixa-a em paz, Beatriz, não a atormentes. É preciso, temos de educá-la: radiografia da coluna, limpeza de pele, psicólogo, porque na terça-feira sonhou com areias movediças e acordou aos gritos. A culpa é tua, Eusebio, educá-la mal com presentes de amancebada, perfumes franceses, blusas de renda, jóias impróprias para uma menina da sua idade. A culpada és tu, Beatriz, por seres tão frívola e curta de entendimento. Irene veste aqueles trapos para te agredir, como disse o psicólogo. Tanto esmero a educá-la, realmente, e olha o que nos acontece, uma rapariga extravagante que goza com tudo e abandona a pintura e a música para se dedicar ao jornalismo, essa profissão não me agrada, é um ofício de vadios, sem futuro e até perigoso. Ora, mulher, mas ao menos conseguimos que seja feliz: tem o riso fácil e o coração generoso, com um pouco de sorte viverá feliz até que se case e depois, quando tiver de enfrentar a dura tarefa de viver, poderá dizer ao menos que os pais lhe proporcionaram muitos anos de felicidade. Mas fugiste, Eusebio, maldito sejas, abandonaste-nos antes que ela acabasse de crescer e agora estou perdida, a desgraça entranha-se-me por todos os poros, goteja, afoga-me, já não consigo detê-la e cada dia é mais difícil proteger Irene de todo o mal, amém. Vês os seus olhos? Sempre os teve errantes, por isso Rosa acredita que não viverá muito tempo, parece estar a despedir-se. Repara nos olhos dela, Eusebio, já não são os de antes, encheram-se de sombras como se assomassem a um abismo. Onde estás, Eusebio?

Irene apercebeu o ódio enorme dos pais antes que eles mesmos o suspeitassem. Nas noites da sua infância permanecia acordada ouvindo as suas intermináveis discussões, com o olhar fixo no tecto do quarto e uma ansiedade indescritível nos ossos. Tirava-lhe o sono o murmúrio interminável da mãe choramingando em longas confidências ao telefone com as amigas. O som


chegava-lhe deformado pelas portas fechadas e pela sua própria angústia. Não penetrava no sentido das palavras, mas a sua imaginação dava-lhes um significado. Sabia que falava do pai. Não dormia até ouvir o seu automóvel entrar na garagem e a chave na fechadura, então o desassossego desvanecia-se, respirava satisfeita, fechava as pálpebras e mergulhava no sono. Ao entrar no seu quarto para lhe dar o último beijo do dia, Eusebio Beltrán encontrava a filha dormindo e retirava-se tranquilo, acreditando que ela era feliz. Quando a menina começou a decifrar os pequenos sinais, percebeu que um dia ele acabaria por partir, como finalmente aconteceu. O pai era um transeunte da vida, sempre de passagem. Permanecia de pé vagueando de um lado para o outro, incapaz de se aquietar, os seus olhos perdiam-se na distância, mudava de assunto bruscamente, a meio de uma conversa, perguntava e não ouvia as respostas. Só diante dela ganhava contornos definidos. Irene era o único ser que na verdade amava e só ela o reteve durante alguns anos. Esteve a seu lado nos momentos memoráveis do seu destino de mulher, comprou-lhe o primeiro soutien, as meias de nylon, os sapatos de salto e contou-lhe como são feitas as crianças, surpreendente história, pois Irene não conseguia imaginar duas pessoas que se odiavam como os seus pais fazendo aquilo para trazê-la ao mundo.

Com o tempo deu-se conta de que esse homem a quem adorava podia ser déspota e cruel. Fustigava constantemente a mulher, apontando-lhe qualquer vestígio de ruga, o quilo a mais na cintura, notaste como te olha o motorista, Beatriz? Agradas ao proletário, querida. Colocada entre ambos, Irene servia de árbitro nas suas intermináveis agressões. Porque não fazem as pazes e comemoramos comendo pastéis?, implorava. O seu coração inclinava-se a favor do pai, porque a relação com a mãe estava maculada de rivalidades. Beatriz observava-a nas suas formas femininas e fazia contas à sua própria idade. Que não cresça, por Deus!

A menina depressa despertou para os anseios da vida. Aos doze anos aparentava menos, mas já a abalavam confusões interiores, ânsias de aventura. Estas emoções atormentadas perturbavam-lhe o sono e punham febre nos seus dias. Leitora ávida e de tudo, apesar dos olhos perscrutadores da mãe censurando-a, lançava mão de qualquer livro ao seu alcance, e os que não podia mostrar diante de Beatriz lia-os à meia-noite sob os lençóis, à luz de uma lanterna eléctrica. Foi assim que ganhou uma cultura superior ao habitual para uma pessoa do seu meio, suprindo com fantasias românticas o que a experiência lhe negava.

Eusebio Beltrán e a mulher estavam de viagem no dia em que o recém-nascido caiu da clarabóia. Fora há muitos anos, mas tanto Rosa como Irene nunca o esqueceram. O motorista foi buscar a menina ao colégio e deixou-a à porta do jardim, porque tinha outras obrigações. Chovera o dia todo e a essa hora o céu invernoso tinha a cor do chumbo fundido. Começavam a acender-se as luzes da rua. Irene assustou-se ao ver a sua casa na penumbra, nenhuma luz brilhava, tudo estava em silêncio. Abriu com a sua chave e estranhou que Rosa não estivesse à espera dela como de costume nem atordoasse o silêncio com o folhetim das seis. Pousou os livros na mesa da entrada e avançou pelo corredor sem acender a luz. Um vago e tenebroso pressentimento impeliu-a para a frente. Deslizou colada às paredes nas pontas dos pés, chamando Rosa com toda a força do seu pensamento. A sala estava vazia, também a sala de jantar e a cozinha. Sem se atrever a continuar, ficou de pé escutando o ruído de um tambor no seu peito, tentada a permanecer imóvel sem sequer respirar, até ao regresso do motorista. Procurou raciocinar, pensando que nada havia a temer, talvez a ama estivesse lá fora ou tivesse subido ao sótão. Como nunca tinha estado só em casa, o desconcerto em que se achava impedia-a de pensar com clareza. à medida que os minutos corriam foi-se agachando até se encolher


completamente num canto. Ao sentir frio nos pés deu-se conta de que o aquecimento não estava ligado, e então presumiu que algo de grave se tinha passado, porque Rosa nunca descuidava os seus deveres. Decidida a descobrir a verdade, avançou com pezinhos de lã até que ouviu o primeiro gemido. Todas as suas fibras vibraram, o medo desapareceu e a curiosidade guiou os seus passos até ao sector dos empregados, onde lhe era proibido entrar. Ali se encontravam as máquinas de água quente, a lavandaria e o quarto de passar, a adega dos licores e a despensa. Ao fim do corredor era o quarto de Rosa, de onde vinha um choro sufocado. Para lá se dirigiu com os olhos muito abertos e a ansiedade latejando nas têmporas. Não enxergou nenhuma luz através da porta e a sua fantasia logo criou cenas de horror. As leituras proibidas vieram-lhe à ideia com uma carga de espanto e violência: bandidos dentro de casa e Rosa atirada para cima da cama com o peito aberto num longo corte; ratos carnívoros que tinham fugido do sótão estavam a devorá-la; Rosa, amarrada de pés e mãos, era violada por um louco, tal como lera num folhetim que o motorista lhe tinha emprestado. Porém, ao entrar, deparou com uma cena que nunca teria imaginado.

Irene moveu o trinco com cautela e empurrou a porta lentamente. Introduziu a mão, apalpou a parede à procura do interruptor e acendeu a luz. Perante os seus olhos ofuscados pela luz súbita, apareceu Rosa, a sua imensa e amada Rosa, desfalecida sobre uma cadeira com a saia repuxada na cintura, com as pernas grossas e morenas enfiadas em meias de lá até aos joelhos manchados de sangue. A cabeça caía-lhe para trás e o rosto era um destroço de sofrimento. No chão, entre os seus pés, jazia uma massa avermelhada enrolada numa grande tripa azul retorcida.

Ao vê-la, Rosa fez o gesto de baixar a roupa para cobrir o ventre e tentou em vão recompor-se.

-        Rosa! O que é que te aconteceu?

-        Vá-se embora, menina! Saia daqui!

A menina aproximou-se da ama, cingiu-a com os braços, limpou-lhe o suor da face com o avental do colégio e cobriu-lhe o rosto de beijos.

-        De onde saiu este bebé? - perguntou finalmente.

-        Caiu de cima, da clarabóia - respondeu Rosa, mostrando uma entrada de ar no tecto. - Caiu de cabeça e morreu, por isso está cheio de sangue.

Irene inclinou-se para observá-lo e verificou que não respirava. Não lhe pareceu necessário explicar que percebia alguma coisa daquilo e podia determinar com exactidão que se tratava de um feto de seis ou sete meses, de aproximadamente um quilo e meio de peso, do sexo masculino, com uma coloração azul, devido à falta de oxigénio, provavelmente morto ao nascer. A única coisa que a surpreendeu foi não ter percebido antes a gravidez, mas atribuiu‑o à abundância de carnes da ama, que bem podia disfarçar um inchaço entre as formas roliças.

‑        Que fazemos, Rosa?

‑        Ai, menina! Ninguém deve saber disto. Jure‑me que nunca dirá a ninguém!

‑        Juro.

‑        Vamos atirá‑lo para o lixo.

‑        É uma pena acabar assim, Rosa. O pobre não tem culpa por ter caído da clarabóia. Porque não o enterramos?

Assim fizeram. Mal a mulher se pôde levantar, lavar‑se e mudar de roupa, puseram a criatura dentro de um saco das compras, que fecharam com fita adesiva. Esconderam a pequena numa saca de plástico até à noite e, depois de se certificarem de que o motorista dormia, levaram‑na para o jardim para a enterrar. Cavaram um buraco fundo, colocaram lá o pacote com o seu triste conteúdo, cobriram‑no cuidadosamente, calcaram a terra e dedicaram‑lhe uma oração. Dois dias depois Irene comprou uma muda de miosótis e plantou‑a no lugar onde dormia o recém‑nascido que caiu da clarabóia. A partir de então sentiram‑se unidas por uma cumplicidade profunda, um segredo que nenhuma das duas revelou durante muitos anos, até o acharem tão natural que acabou por extravasar casualmente nas suas conversas. Ninguém na casa se preocupou em averiguar do que se tratava. Cada novo jardineiro era encarregado pela menina de tratar dos miosótis, e na Primavera, quando apareciam as pequenas flores, cortava‑as para fazer um ramo que deixava no quarto da ama.


Brincando com o seu primo Gustavo, Irene descobriu pouco tempo depois que os beijos sabiam a fruta e que as mais inábeis e inexperientes carícias podiam incendiar os sentidos. Escondiam‑se para se beijarem, despertando o desejo adormecido. Chegaram à máxima intimidade, só passados alguns verões, por temor das consequências e contidos pela rigidez do rapaz, a quem tinham inculcado a ideia de que há duas classes de mulheres: as decentes, para casar, e as outras, para se pôr nelas. A prima pertencia às primeiras. Não sabiam evitar uma gravidez e só mais tarde, quando a rude vida do quartel instruiu o jovem sobre os ofícios dos homens e a sua moral ganhou uma certa flexibilidade, é que puderam amar‑se sem medo. Durante os anos seguintes amadureceram juntos. O casamento seria somente uma formalidade para quem já tinha comprometido o futuro.

Apesar do noivo e do prodigioso encontro com o amor, para ela o centro do universo continuou a ser o pai. Conhecia as suas virtudes e os seus grandes defeitos. Surpreendeu‑o em inúmeras traições e mentiras, viu‑o cobarde e dissipador, viu como seguia outras mulheres com olhos de cão no cio. Não cultivava ilusões a respeito dele, mas amava‑o profundamente. Uma tarde, estava Irene a ler no seu quarto quando o sentiu perto e, antes de levantar os olhos, soube que era uma despedida. Viu‑o de pé na soleira e teve a impressão de que era só o seu fantasma, pois já não estava ali, tinha‑se apagado, como sempre temera que acontecesse.

‑        Saio por um momento, filha ‑ disse Eusebio, beijando‑a na cara.

‑        Adeus, pai ‑ respondeu Irene, certa de que ele não voltaria. Assim foi. Passaram‑se quatro anos, mas por um subtil mecanismo de compensação ela não o deu por morto como os outros. Sabia que estava vivo e isso dava‑lhe uma certa tranquilidade, porque também podia imaginá‑lo feliz vivendo uma nova vida; no entanto, os ventos de violência que agora abalavam o seu mundo enchiam‑na de dúvidas. Temia por ele.

 

Os dois amigos acabaram de jantar. As suas figuras recortavam‑se contra as paredes da sala, projectando sombras enormes que a luz trémula das velas fazia oscilar. Quase sussurravam as palavras, para preservar a intimidade desse momento. Irene contou a Francisco o triste caso da matança filantrópica e ele concluiu que já nada nessa família podia surpreendê‑lo.

‑        Tudo começou quando o meu pai conheceu o enviado da Arábia ‑ disse.

O homem tinha sido encarregado de comprar ovinos pelo seu Governo. Apresentaram‑no a Eusebio Beltrán numa recepção da embaixada e imediatamente se tornaram amigos, porque ambos sentiam o mesmo imperioso ímpeto em relação às mulheres belas e às festas animadas. Depois do banquete, o pai de Irene convidou‑o a prolongar a folia em casa de uma mulher, onde continuaram a comemorar com champanhe e raparigas mercenárias, culminando com uma bacanal estrondosa, que teria mandado para o inferno outros com menos força. Acordaram no dia seguinte com o estômago nauseado e o pensamento confuso, mas depois de um duche e de uma substancial e picante sopa de amêijoas começaram a ressuscitar. Abstémio, como bom muçulmano que era, o árabe suportou mal a ressaca e durante horas foi preciso dar‑lhe companhia e conforto, com remédios naturais, massagens de cânfora e compressas frias na testa. Ao entardecer, eram irmãos, tinham vertido em confidências os segredos das suas vidas. Então o estrangeiro sugeriu a Eusebio que tratasse de aproveitar o negócio relacionado com cordeiros, porque ali havia toneladas de dinheiro para quem soubesse ganhá‑lo.


‑        Nunca vi uma ovelha ao natural, mas, se são semelhantes às vacas ou às galinhas, não terei dificuldade ‑ riu‑se Beltrán.

Assim começou um negócio que o levaria à ruína e ao esquecimento de si mesmo, como vaticinou a mulher muito antes de ter argumentos para o prever. Partiu para o extremo sul do continente, onde proliferavam os rebanhos, e montou um matadouro e um armazém‑frigorífico, investindo no projecto grande parte do seu capital. Quando tudo estava pronto, do coração das terras árabes foi enviado um religioso muçulmano para vigiar os trabalhos, de modo a que decorressem rigorosamente de acordo com as leis do Alcorão. A cada ovelha morta rezava uma oração olhando para Meca e verificava se o animal era degolado com um só golpe e sangrado da forma higiénica prescrita por Maomé. Uma vez santificados, limpos e congelados, os animais eram expedidos por via aérea para o seu último destino. Nas primeiras semanas o procedimento foi levado a cabo com o devido rigor, mas depressa o imã perdeu o entusiasmo inicial. Faltava‑lhe o estímulo. Ninguém à sua volta compreendia a importância das suas funções, ninguém falava a sua língua ou lera o Livro Santo. Pelo contrário, estava rodeado de rufiões estrangeiros que, enquanto ele salmodiava em árabe, se riam nas suas barbas e faziam gestos obscenos numa troça interminável. Debilitado pelo clima austral, pela nostalgia e pela incompreensão cultural, não tardou em cair em profundo quebranto. Eusebio Beltrán, sempre prático, sugeriu que, para o trabalho não parar, ele registasse as orações num gravador de pilhas. A partir desse momento o agravamento do estado do imã foi visível. O seu mal‑estar assumiu proporções alarmantes, deixou de ir ao matadouro, foi vencido pelo ócio, o jogo, o sono e o vício do licor, tudo isso proibido pela sua religião, mas ninguém é perfeito, como lhe dizia o patrão para o consolar quando o encontrava carpindo a sua miséria.


As ovelhas partiam duras e frias como pedras lunares, sem que ninguém soubesse que não perdiam as suas impurezas pela jugular e que o gravador entoava boleros e rancheiras, em vez das obrigatórias orações muçulmanas. O caso não teria tido grandes consequências se o Governo árabe não tivesse enviado, sem aviso prévio, um comissário para controlar o sócio sul‑americano. No próprio dia em que este visitou o lugar dos factos e verificou a forma como eram violados os preceitos do Alcorão, ficou desfeito o repentino negócio dos cordeiros, e Eusebio Beltrán viu‑se sozinho com um místico maometano em plena crise de arrependimento, mas sem nenhum desejo de voltar à pátria naquele momento, mais um monte de ovelhas congeladas sem mercado para venda, porque a sua carne não era apreciada no país. Foi então que veio ao de cima toda a magnanimidade do seu carácter. Transferiu‑se com a mercadoria para a capital e percorreu os bairros pobres num camião, distribuindo‑a de graça às pessoas mais necessitadas. Estava certo de que a sua iniciativa seria imitada por outros grossistas, que, estimulados na sua generosidade, doariam também parte dos seus produtos aos desvalidos. Chegou a sonhar com uma corrente solidária formada por padeiros, vendedores de hortaliça, proprietários de peixarias e armazéns, fabricantes de massas, arroz e caramelos, importadores de chá, café e chocolate, fabricantes de conservas, licores e queijos, numa palavra, quantos industriais e comerciantes existissem cederiam parte dos seus lucros para mitigar a fome evidente dos marginalizados, viúvas, órfãos, desempregados e outros desventurados. Mas nada disso aconteceu. Os talhantes qualificaram o gesto de palhaçada e os restantes ignoraram‑no pura e simplesmente. Como, apesar de tudo, continuou a sua cruzada com entusiasmo, foi ameaçado de morte por lhes arruinar o negócio e o prestígio de honrados comerciantes. Puseram a correr que era comunista, o que acentuou a depressão nervosa de Beatriz Alcántara, que possuia força suficiente para suportar as extravagâncias do marido, mas não para resistir ao impacte dessa perigosa acusação. Eusebio Beltrán distribuía pessoalmente pernas e quartos dianteiros de carneiro, num veículo com grandes cartazes impressos de cada lado e um altifalante anunciando a sua iniciativa. Num instante viu‑se assediado pela polícia e assassinos mercenários. Os empresários concorrentes estavam decididos a acabar com ele. Atacaram‑no com ameaças de assaltos e de morte, e enviaram à mulher bilhetes anónimos de uma infâmia incrível. Quando o camião do "Matadouro Filantrópico" apareceu na televisão e a fila de miseráveis se transformou numa multidão que não podia ser controlada pelos guardiães da ordem pública, Beatriz Alcántara perdeu o que lhe sobrava de paciência e vomitou‑lhe tudo o que acumulara ao longo de uma vida de rancores. E Eusebio desapareceu para não mais voltar.

‑        Nunca me preocupei pelo meu pai, Francisco. Estava certa de que tinha fugido da minha mãe, dos credores e das malditas ovelhas, que começaram a apodrecer sem encontrar destino, mas agora duvido de tudo isso ‑ disse Irene.

Sentia medo à noite, quando em sonhos lhe apareciam os corpos lívidos da morgue, Javier Leal pendurado como um fruto grotesco, na acácia do parque infantil, as intermináveis filas de mulheres perguntando pelos seus desaparecidos, Evangelina Ranquileo em camisa de dormir e descalça chamando das sombras e, entre tantos fantasmas estranhos, via também o pai, afogado em pântanos de ódio.

‑        Talvez não tenha fugido, talvez o tenham morto ou então está preso, como acredita a minha mãe ‑ suspirou Irene.

‑        Não há razão para que um homem da sua posição seja vítima da polícia.

‑        A razão nada tem a ver com os meus pesadelos nem com o mundo em que vivemos.

Nesse momento entrou Rosa anunciando a presença de uma mulher que perguntava por Irene. Digna Ranquileo, assim se chamava.

Digna carregava em si todo o peso do tempo e os seus olhos tinham perdido a cor de tanto olhar para o caminho e esperar. Pediu desculpa por se apresentar a uma hora tão tardia e explicou que era o desespero que a trazia, pois não sabia a quem recorrer. Como não podia deixar os filhos sós, era‑lhe impossível viajar durante o dia, mas nessa noite Mamita Encarnación tinha‑se oferecido para lhes fazer companhia. Devido à boa vontade da parteira, lá pôde apanhar a camioneta para a capital. Irene deu‑lhe as boas‑vindas, levou‑a para a sala e ofereceu‑lhe jantar, mas ela só aceitou uma chávena de chá. Sentou‑se na beira da cadeira com as pálpebras baixas, apertando contra o colo uma bolsa negra muito sovada. Usava um xaile sobre os ombros e a sua saia de lã apertada mal cobria as meias enroladas à altura dos joelhos. Eram evidentes os seus esforços para vencer a timidez.

‑        Soube alguma coisa de Evangelina?

A mãe negou com a cabeça e depois de uma longa pausa disse que a dava por perdida, toda a gente sabia que procurar os desaparecidos era tarefa que nunca tinha fim. Não vinha por ela, mas por Pradelio, o filho mais velho. Baixou a voz, falando num sussurro quase inaudível.

‑        Está escondido ‑ confessou.


Tinha fugido da Guarda. Devido ao estado de guerra, a deserção podia dar pena de morte. Noutros tempos, para abandonar a Polícia exigia‑se apenas um mero processo burocrático, mas agora os guardas faziam parte das Forças Armadas e tinham o mesmo compromisso dos soldados no campo de batalha. A situação de Pradelio Ranquileo era perigosa. Se o caçassem acabaria mal, assim o entendeu a mãe ao vê‑lo que nem um animal acossado. Hipólito, o seu marido, era quem tomava as decisões importantes na família, mas fora‑se embora com o primeiro circo que armara o seu toldo na região. Bastou‑lhe ter escutado o chamamento do bombo que anunciava espectáculo para pegar na mala com os objectos da sua profissão, integrar‑se no grupo de palhaços e partir em digressão pelas aldeias, onde era difícil localizá‑lo. Digna também não se atrevera a falar do seu problema a outras pessoas. Não soube o que fazer durante alguns dias, até que se lembrou da sua conversa com Irene Beltrán e do interesse da jornalista pelo infortúnio que se abatia sobre o lar dos Ranquileo. Pensou nela como no único ser a quem podia recorrer.

‑        Tenho de fazer com que Pradelio saia do país ‑ murmurou.

‑        Porque desertou?

A mãe não o sabia. Uma noite, viu‑o chegar pálido, desfigurado, com o uniforme em farrapos e o olhar de um louco. Negou‑se a falar. Vinha faminto e durante muito tempo comeu vorazmente, metendo à boca tudo o que encontrou na cozinha: cebolas cruas, nacos enormes de pão, carne seca, fruta e chá. Quando se sentiu saciado, apoiou os braços na mesa, escondeu entre eles a cabeça e, extenuado, dormiu como uma criança. Digna velou por ele enquanto dormia. Por mais de uma hora permaneceu a seu lado, observando‑o numa tentativa de adivinhar o longo percurso que o tinha conduzido àquele estado de esgotamento e medo. Ao despertar, Pradelio não quis ver os irmãos, para evitar que, num descuido, pudessem denunciá‑lo. A sua intenção era fugir para a cordilheira, onde nem os abutres o encontrariam. Aquela visita tinha como único propósito despedir‑se da mãe e dizer‑lhe que não voltariam a vê‑lo, porque tinha uma missão e pensava cumpri‑la mesmo que lhe custasse a vida. Depois aproveitaria o Verão para atravessar a fronteira por uma passagem na montanha. Digna Ranquileo não lhe fez perguntas, pois conhecia o filho: não partilharia o seu segredo nem com ela nem com ninguém. Limitou‑se a lembrar‑lhe que tentar passar sem guia essas montanhas infinitas, mesmo com bom clima, era uma loucura, porque muitos perdem‑se nos despenhadeiros até serem surpreendidos pela morte. Depois a neve cobre‑os e desaparecem até ao Verão seguinte, quando algum viajante topa com os ossos. Sugeriu‑lhe que aguardasse escondido até que se cansassem de o procurar ou então que fosse para o Sul, onde seria mais fácil escapar pelas montanhas baixas.

‑        Deixe‑me em paz, mãe. Farei o que tenho a fazer e depois fujo como puder ‑ interrompeu‑a Pradelio.

Partiu para a montanha guiado por Jacinto, seu irmão mais novo, que conhecia as montanhas como ninguém. Escondeu‑se no cimo, alimentando‑se de lagartixas, roedores, raízes e da pouca comida que de vez em quando o menino lhe levava. Digna resignou‑se a vê‑lo cumprir o seu destino, mas quando o tenente Ramírez percorreu a região, casa por casa, à sua procura, ameaçando os que o acobertassem e oferecendo recompensas pela sua captura, e quando o sargento Faustino Rivera lhe apareceu uma noite, pela calada, em casa, vestido à paisana, para a avisar em segredo que, se conhecia o paradeiro do fugitivo, lhe dissesse que iam lançar uma batida pela serra até o encontrarem, a mãe percebeu que não podia esperar mais tempo.

‑        O sargento Rivera é quase da família, por isso tinha a obrigação de me avisar ‑ esclareceu Digna.


Para uma camponesa cuja existência decorrera sempre no lugar onde tinha nascido e que só conhecia as aldeias mais próximas, a ideia de que um filho seu fosse para outro país parecia‑lhe tão irrealizável como escondê‑lo no fundo do mar. Não lhe era possível imaginar o tamanho do mundo para além das fronteiras dos montes delineados no horizonte, mas suspeitava que a terra se estendia para regiões onde se falavam outras línguas e onde viviam pessoas de raças diferentes em climas surpreendentes. Aí era fácil perder o rumo certo e ser tragado pela má sorte, mas ir era melhor do que morrer. Ouvira falar dos exilados, tema frequente nos últimos anos, e esperava que Irene pudesse conseguir asilo para Pradelio. A jovem tentou explicar‑lhe as insuperáveis dificuldades dessa ideia. Nem pensar em tentar enganar a guarda armada, saltar uma cerca e pôr‑se a salvo numa embaixada, pois nenhum diplomata daria protecção a um desertor das Forças Armadas, que fugia por razões desconhecidas. A única solução era entrar em contacto com os homens do Cardeal.

‑        Posso recorrer ao meu irmão José - ofereceu finalmente Francisco, com pouca vontade de pôr em perigo a sua organização, introduzindo um militar no segredo, embora se tratasse de um pobre guarda perseguido pelos seus próprios companheiros. ‑ A Igreja tem misteriosos caminhos de salvação, mas exigirá saber a verdade. Por isso, tenho de falar com o seu filho.

Digna explicou‑lhe que Pradelio se tinha refugiado numa caverna da cordilheira, a uma altitude onde era difícil respirar, e para lá chegar teria de subir por um despenhadeiro de cabras, tentando aguentar‑se entre pedras e arbustos. Não era uma excursão fácil, o caminho seria longo e duro para alguém que não estava acostumado a escalar.

‑        Tentarei ‑ disse Francisco.

‑        Se tu vais, também eu irei ‑ decidiu Irene.

Nessa noite a mulher deitou‑se timidamente na cama que Irene improvisou para ela e passou as horas fitando o céu limpo com um olhar atónito. No dia seguinte partiram os três para Los Riscos no automóvel de Beatriz, depois de Irene ter enchido um saco com provisões para Pradelio. Francisco deu‑lhe a entender que seria difícil subir a montanha carregando com aquele tremendo fardo, mas ela olhou‑o com um ar brincalhão e ele não insistiu.

No caminho, Digna contou‑lhes tudo o que sabia sobre a nefasta sorte de Evangelina, desde o instante em que o tenente e o sargento a conduziram para o jipe na noite daquele domingo infelizmente inesquecível. Os gritos da menina dispersaram‑se pelo campo, atraindo para ela as sombras, até que um bofetão a obrigou a fechar a boca e a deixar de espernear. Na guarda, o cabo viu‑os chegar, mas não se atreveu a fazer perguntas sobre a prisioneira, limitando‑se a olhar para outro lado. No último instante, quando o tenente Ramírez com uma bofetada a fez saltar, levando‑a depois pelo ar até ao seu gabinete, o sargento sentiu pena e atreveu‑se a pedir‑lhe que tivesse alguma consideração por ela, porque estava doente e era irma de um homem do quartel. Porém, o tenente não lhe deu tempo para continuar e fechou a porta, prendendo a ponta da combinação branca da menina, que para ali ficou como uma pomba ferida. Ouviu‑se um choro por um momento e depois caiu o silêncio.


Essa foi uma noite interminável para o sargento Faustino Rivera. Não dormiu porque sentia o coração revoltado. Entreteve‑se a conversar com o cabo da guarda, deu umas voltas para verificar se estava tudo em ordem e depois foi‑se sentar sob o beiral das cocheiras, a fumar os seus ásperos cigarros negros, sentindo a brisa morna da estação, o cheiro longínquo dos espinheiros em flor e o outro, mais forte, do esterco fresco dos cavalos. Era uma noite estrelada e clara, coberta por um silêncio imenso. Sem saber ao certo por que esperava, permaneceu ali várias horas até ver aparecer os primeiros sinais da aurora, perceptíveis para os que vivem em contacto com a natureza e estão acostumados a madrugar. Exactamente às quatro e três minutos, como disse a Digna Ranquileo e repetiu mais tarde, sem que as ameaças pudessem calar‑lhe a boca, viu sair o tenente Juan de Dios Ramirez com uma carga nos braços. Apesar da distância e da penumbra, não duvidou que se tratava de Evangelina. O oficial cambaleava um pouco, mas não de bêbado, posto que nunca bebia nas horas de serviço. O cabelo da jovem pendia quase até ao chão e, ao passar pela vereda de cascalho que levava ao parque de estacionamento, as pontas arrastavam‑se pelas pedras. Donde estava, Rivera ouviu a respiração agitada do oficial e percebeu que não era por causa do esforço, porque o frágil corpo da prisioneira pouco pesava para ele, gordo, musculoso, habituado ao exercício. Resfolegava porque estava nervoso. Viu‑o deixar a menina sobre a plataforma de cimento usada para descarregar os alimentos e provisões. As luzes de segurança giraram toda a noite no alto da torre para prevenir possíveis ataques, iluminando ao passar o rosto infantil de Evangelina. Tinha os olhos fechados, mas talvez estivesse viva, porque pareceu ao sargento que chorava. O tenente dirigiu‑se então para a camioneta branca, subiu para o assento do motorista e pôs o motor em marcha, recuando lentamente até ao local onde deixara a menina. Baixou‑se, ergueu‑a e colocou‑a na parte posterior do veículo, precisamente quando o jorro de luz do projector varria a cena. Antes que o oficial a cobrisse com uma lona, Faustino Rivera viu Evangelina deitada de lado, com o rosto coberto pelos cabelos e os pés nus aparecendo entre as franjas do poncho. O tenente correu depois para o edifício, desapareceu atrás da porta da cozinha e passado um minuto regressou com uma pá e um aguilhão, que colocou ao lado da jovem. Em seguida subiu para a camioneta e dirigiu‑se para a saída. O guarda do portão reconheceu o chefe, saudou‑o com firmeza e abriu os pesados portões. A camioneta desapareceu na estrada em direcção ao norte.

O sargento Faustino Rivera aguardou, consultando o relógio entre dois cigarros, acocorado na sombra da cavalariça. Procurava caminhar de um lado para o outro para desinchar as pernas, mas, a dada altura, vencido pelo sono, cabeceou apoiado contra a parede. Dali podia ver a guarita, onde o cabo Ignacio Bravo espantava o tédio masturbando‑se, sem desconfiar da sua presença próxima. Ao amanhecer, a temperatura desceu e o frio sacudiu‑lhe a sonolência. Eram seis horas e o horizonte já estava tingido pela aurora quando a camioneta voltou.

O sargento Faustino Rivera escreveu tudo o que presenciara na caderneta ensebada que andava sempre consigo. Tinha a mania de anotar os factos importantes e os triviais, sem imaginar que isso lhe custaria a vida poucas semanas mais tarde. Observou do seu esconderijo o oficial que descia do veículo, ajeitando as correias e a cartucheira da arma e dirigindo‑se para o edifício. O sargento aproximou‑se então da camioneta, apalpou as ferramentas e verificou que havia terra fresca presa nos cantos. Não sabia o significado daquilo nem o que teria feito o oficial durante a sua ausência, assim o disse claramente a Digna Ranquileo, mas podia adivinhar qualquer coisa.

 

O automóvel conduzido por Francisco Leal parou na propriedade dos Ranquileo. Apareceram logo todas as crianças a saudar a mãe e os visitantes, porque nesse dia nenhum deles tinha ido à escola. Atrás deles surgiu Mamita Encarnación com o seu peito de pomba, o penteado escuro preso com ganchos e as pernas curtas pintalgadas de varizes, uma velha formidável que atravessara impávida os desastres da vida.

‑        Entrem e descansem, vou ‑lhes servir chá ‑ disse.


Jacinto levou‑os até Pradelio. Era o único que conhecia o esconderijo do irmão e tinha compreendido a necessidade de manter esse segredo a custo da sua própria vida. Selaram os dois cavalos da família Ranquileo, o menino e Irene montaram uma égua e Francisco outro animal, duro de focinho e bastante nervoso. Havia muito tempo que não montava a cavalo e sentia‑se inseguro. Podia cavalgar sem estilo, mas com firmeza, graças ao facto de que, na sua infância, ia muitas vezes à propriedade de um amigo, onde se familiarizara com a equitação. Irene, pelo contrário, revelou‑se uma amazona, porque na época de desafogo económico dos pais teve o seu próprio cavalo.

Partiram em direcção à cordilheira, subindo por um caminho difícil e solitário. Ninguém passava por ali em tempos normais e o matagal quase o apagara. Pouco depois, Jacinto indicou‑lhes que não poderiam seguir com os animais; teriam de subir entre as pedras, procurando as saliências da encosta para se firmarem. Amarraram os animais a umas árvores e começaram a subida a pé, ajudando‑se uns aos outros nos declives escarpados. A mochila com as latas de conserva pesava como um canhão nos ombros de Francisco. Chegou a ter vontade de exigir a Irene que a levasse uns metros, dada a sua obstinação em trazê‑la, mas teve dó ao vê‑la arquejando como uma moribunda. Tinha as palmas das mãos feridas devido às rochas e a calça rasgada no joelho. Transpirava e a cada instante perguntava quanto faltava para chegar. O menino respondia sempre o mesmo: ali, na volta da lomba. E assim continuaram por muito tempo sob um sol inclemente, cansados e sedentos, até que Irene se declarou incapaz de dar um só passo mais que fosse.

‑        A subida não é nada. Espere quando for para descer ‑ observou Jacinto.

Olharam para baixo e ela deu um grito. Tinham subido como cabritos por uma ladeira cortada a pique, segurando‑se a qualquer moita que surgisse entre as irregularidades do terreno. Muito longe, adivinhavam‑se as manchas escuras das árvores onde tinham deixado os cavalos.

‑        Nunca conseguirei descer daqui. Tenho vertigens... ‑ murmurou Irene, inclinando‑se atraida pelo precipício que se estendia aos seus pés.

‑        Se pudeste subir, também podes descer ‑ garantiu‑lhe Francisco.

‑        Anime‑se, é já ali, na volta da lomba - acrescentou o menino. Irene viu‑se a balançar no pico de um monte, gemendo de pavor, e então a sua capacidade para gracejar com tudo acabou por triunfar. Reuniu forças, pegou na mão de Francisco e anunciou que estava disposta a prosseguir. Pensando ir buscá‑lo mais tarde, deixaram o saco com as provisões no caminho e Francisco, livre de um peso que lhe comprimia os músculos, pôde ajudar Irene. Vinte minutos depois chegaram a uma curva do monte, de onde surgiram de repente as sombras de matagais altos e o alívio de um mísero fio de água descendo entre as pedras. Compreenderam que Pradelio tivesse escolhido aquele refúgio por causa da nascente, sem a qual seria impossível sobreviver naqueles áridos montes. Inclinaram‑se por sobre a água para molharem o rosto, o cabelo e a roupa. Quando ergueu os olhos, Francisco viu primeiro as botas gastas, depois as calças de tecido verde e em seguida o torso nu avermelhado pelo sol. Por último enfrentou o rosto moreno de Pradelio del Carmen Ranquileo, que lhes apontava a sua arma de serviço. A barba tinha‑lhe crescido e, como algas submarinas, os seus cabelos eriçaram‑se, transformados numa massa pelo pó e pelo suor.

- Foi a mãe que os mandou. Vêm para te ajudar ‑ disse Jacinto.


Ranquileo baixou o revólver e ajudou Irene a levantar‑se. Levou‑os para uma caverna sombria e fresca com a entrada dissimulada por arbustos e rochas. Irene e Francisco estiraram‑se no chão, enquanto o menino conduzia o irmão à procura da mochila deixada para trás. Apesar dos seus poucos anos e de uma figura esquálida, Jacinto estava tão animado como no início da caminhada. Durante muito tempo, Irene e Francisco ficaram sós. Ela adormeceu num instante. Tinha o cabelo húmido e a pele queimada. Um insecto pousou no seu colo e avançou até à cara, mas não o sentiu. Francisco tentou espantá‑lo com a mão e roçou com os dedos o rosto da sua amiga, suave e quente como uma fruta de Verão. Admirou a harmonia dos seus traços, os reflexos do cabelo, o abandono do seu corpo no sono. Desejou tocá‑la, inclinar‑se para lhe sentir a respiração, balançá‑la nos seus braços e protegê‑la dos pressentimentos que o atormentavam desde o início da aventura, mas acabou também por ser vencido pela fadiga e adormeceu. Não ouviu chegar os irmãos Ranquileo e quando lhe tocaram no ombro despertou sobressaltado.

Pradelio era um gigante. Chamava a atenção a sua enorme ossatura, inexplicável numa família de pessoas tão pequenas como era a sua. Sentado na gruta, abrindo reverente a mochila para extrair os seus tesouros, acariciando um pacote de cigarros numa antecipação do prazer de fumar, parecia uma criatura desproporcionada. Emagrecera muito, tinha as faces encovadas e profundas olheiras marcavam‑lhe os olhos, dando‑lhe um aspecto de velhice prematura. Tinha a pele curtida pelo sol da montanha, os lábios gretados e os ombros feridos com peladuras e bolhas. Recurvado naquela pequena abóbada aberta na rocha viva, parecia um pirata extraviado. Mexia nas coisas com muita cautela, com umas mãos que pareciam duas garras de unhas roídas e sujas, como se temesse destruir o que tocava. Perturbado pelo seu próprio físico, parecia ter crescido de repente, sem tempo para se habituar às suas próprias dimensões, incapaz de calcular o tamanho e o peso das suas extremidades, chocava contra o mundo em permanente busca de uma postura adequada. Viveu naquela estreita guarida durante muitos dias, alimentando‑se de lebres e ratos que caçava à pedrada. A única visita era Jacinto. Fazia passar o tempo com a caça, sem utilizar a arma, porque precisava dela para as emergências. Construiu uma funda, e a fome aperfeiçoou‑lhe a pontaria para matar pássaros e roedores a boa distância. Um cheiro azedo num canto da gruta indicava o lugar onde amontoava as penas e as peles secas das suas vítimas, para não deixar vestígios do lado de fora. Para fugir ao tédio dispunha de algumas histórias de cowboys enviadas pela mãe, que fazia durar o máximo possível, pois constituíam a única diversão naqueles lentos dias. Sentia‑se como o sobrevivente de um cataclismo, tão solitário e desesperado que, por momentos, recordava com melancolia as paredes da sua cela no quartel.

‑        Não devia ter desertado ‑ disse Irene, sacudindo a modorra em que tinha caído.

‑        Se me apanham, fuzilam‑me. Tenho de me ir embora. Tem de me dar asilo.

‑        Entregue‑se, e não o fuzilarão...

‑        Seja como for, estou fodido.

Francisco explicou‑lhe as dificuldades para obter asilo no seu caso. Ao cabo de tantos anos de ditadura, já ninguém saía do país por essa via. Sugeriu‑lhe que se escondesse durante algum tempo, enquanto ele tentava obter documentos falsos a fim de o enviar para outra província, onde começaria vida nova. Irene pensou que tinha ouvido mal, porque não conseguia imaginar Francisco traficando com papéis falsos. Pradelio abriu os braços num gesto sem esperança e compreenderam que, com aquela estatura de cipreste e aquele rosto de fugitivo, era impossível que passasse despercebido aos olhos da polícia.


‑        Diga‑nos porque desertou ‑ insistiu Irene.

‑        Por Evangelina, a minha irmã.

E então, a pouco e pouco, procurando as palavras nas águas paradas do seu silêncio habitual, perdendo‑se nas suas longas pausas, Pradelio contou a horrível história. O que o gigante não queria dizer, Irene perguntou‑lhe insistentemente nos olhos. E o que calou puderam adivinhá‑lo pelo rubor das faces, pelo brilho das lágrimas, pelo tremor das suas grandes mãos.

 

Quando começaram a circular os boatos sobre Evangelina e o estranho mal que atraía os curiosos e lhe dava a ela má fama, colocando‑a na mesma categoria dos loucos do hospício, Pradelio Ranquileo perdeu o sono. De todos os membros da sua família ela foi, desde o início, a mais querida, e esse sentimento crescera com o tempo. Nada o comovia tanto como ensinar os primeiros passos a essa criatura delgada, pequena, com o cabelo ruivo, tão diferente dos Ranquileo. Quando nasceu, ele era um menino de pouca idade, muito alto e robusto, acostumado a trabalhos de adulto e a assumir as responsabilidades do pai ausente. Não conhecia o carinho nem a ternura. Digna passava a vida grávida ou amamentando o último que nascera, o que não a impedia de trabalhar a terra e fazer os serviços da casa, mas precisava de alguém em quem se apoiar. Confiava no filho mais velho e conferia‑lhe autoridade perante os outros filhos. Apesar de ainda muito jovem, cumpria esse papel e nem mesmo quando o pai voltava deixava de exercê‑lo por completo. Uma vez atreveu‑se a enfrentá‑lo durante uma bebedeira para impedir que se excedesse com Digna. Só isso lhe faltava para ser um homem. Pradelio despertou ao ouvir um choro ténue, saltou da cama e apareceu atrás da cortina que separava o canto onde dormiam os pais. Viu Hipólito com a mão levantada e a mãe encolhida deitada no chão, tapando a boca para não acordar os meninos com os seus gemidos. Presenciara já cenas similares e, no fundo, considerava os homens com o poder de castigar a mulher e os filhos, mas nessa ocasião não pôde resistir e um véu de ira cegou‑o. Sem reflectir, lançou‑se sobre o pai, batendo‑lhe e insultando‑o, até que Digna lhe suplicou que parasse, porque a mão levantada contra os próprios pais converte‑se em pedra. No dia seguinte, Hipólito amanheceu com o corpo cheio de equimoses. O filho sentia dores devido ao esforço, mas nenhum dos seus membros se petrificara, ao contrário do que dizia a tradição popular. Foi a última vez que Hipólito usou de violência contra a sua família.


Pradelio del Carmen Ranquileo sempre soube que Evangelina não era sua irmã. Todos a tratavam como se o fosse, mas ele viu‑a com olhos diferentes desde pequena. Com o pretexto de ajudar a mãe, lavava‑a, embalava‑a, dava‑lhe de comer. A menina adorava‑o, aproveitando qualquer ocasião para se pendurar no seu colo, meter‑se na sua cama, encolher‑se nos seus braços. Como um cão fraldiqueiro, seguia‑o por toda a parte, perseguia‑o com perguntas, queria ouvi‑lo contar histórias e só dormia embalada pelas suas canções. Para Pradelio, as brincadeiras com Evangelina estavam carregadas de ansiedade. Apanhou muitas tareias por apalpá‑la, pagando assim a culpa. Culpa pelos sonhos húmidos, onde ela o chamava com gestos obscenos, culpa por observá‑la escondido quando ela se agachava para urinar entre os matos, culpa por segui‑la à casinha na hora do banho, culpa por inventar brincadeiras proibidas nas quais se escondiam longe dos demais, acariciando‑se até se cansarem. Com esse instinto de sedução comum a todas as mulheres, a menina aceitava o segredo compartilhado com o irmão mais velho e também agia em sigilo. Usava de uma mescla de inocência e impudor, de sedução e recato, para enlouquecê‑lo, para manter os seus sentidos em carne viva e conservá‑lo prisioneiro. A repressão e a vigilância dos pais não fizeram mais que alimentar o calor que abrasava o sangue de Pradelio adolescente. Esse facto levou‑o a procurar prostitutas muito cedo, porque não ficava satisfeito com os solitários prazeres dos rapazes. Evangelina ainda brincava com bonecas quando ele já sonhava em possuí‑la, imaginando que o ímpeto da sua masculinidade podia atravessá‑la como uma espada. Sentava‑a nas suas pernas para a ajudar nos trabalhos da escola e, enquanto procurava a resposta dos problemas do caderno, sentia OS ossos derretidos e algo quente e viscoso ardendo‑lhe nas veias; as forças abandonavam‑no, perdia o juízo e até sentia que a vida lhe fugia, por causa do odor a fumo do seu cabelo e a lixívia da sua roupa, do suor do seu pescoço, do peso do corpo dela em cima do seu; pensava que não aguentaria sem uivar como um cão no cio, sem pular para cima dela para a devorar, sem correr aos álamos e pendurar‑se pelo pescoço num galho, para pagar com a morte o crime de amar a irmã com paixão infernal. A menina pressentia tudo aquilo e agitava‑se sobre os seus joelhos, pressionando, esfregando, roçando, até senti‑lo gemer afogado, apertar os nós dos dedos contra a borda da mesa, pôr‑se rígido, e os dois eram envolvidos por um picante e doce aroma. Esses jogos continuaram por toda a infância.

Pradelio Ranquileo saiu de casa aos dezoito anos para prestar o serviço militar e não voltou.

‑        Fui‑me embora para não manchar as mãos com a minha irmã

‑        confessou a Irene e Francisco na gruta da montanha.


Quando acabou a tropa, alistou‑se logo na Polícia. Evangelina sentiu‑se frustrada, perdida, sem compreender a razão daquele abandono, perturbada por inquietações que não sabia expressar e que irromperam no seu coração muito antes do desenvolvimento das suas glândulas. Foi assim que Pradelio fugiu ao destino de agricultor pobre, a uma menina que começava a ser mulher e às lembranças de uma infância atormentada pelo incesto. Nos anos seguintes, o seu corpo ganhou dimensões definitivas e a alma, essa, ganhou alguma paz. As mudanças políticas contribuíram para o seu amadurecimento e mitigaram a tentação de Evangelina, porque de um dia para o outro deixou de ser um insignificante guarda rural e passou a assumir o poder. Encontrou medo nos olhos dos outros e isso agradou‑lhe. Sentiu‑se importante, forte, autoritário. Na noite anterior ao golpe militar tinham‑no informado de que o inimigo tencionava eliminar os soldados para instaurar uma tirania soviética. Sem dúvida que eram adversários perigosos e hábeis, porque até então ninguém se tinha apercebido desses planos sangrentos, excepto os comandantes das Forças Armadas, sempre vigilantes em relação aos interesses nacionais. Se eles não se impusessem, o país cairia numa guerra civil ou seria ocupado pelos Russos, explicou‑lhe o tenente Juan de Dios Ramírez. A acção oportuna e destemida de cada soldado, e Ranquileo era um deles, salvou o povo de um destino fatal. Por isso me sinto orgulhoso por vestir o uniforme, embora algumas coisas não me agradem, cumpro as ordens sem fazer perguntas, porque, se cada soldado começa a discutir as decisões dos superiores, tudo se torna um disparate e a pátria vai para o caralho. Coube‑me prender muitas pessoas, não posso negá‑lo, inclusivamente conhecidos e amigos como os Flores. São um tanto velhacos esses Flores, metidos no Sindicato Agrícola. Pareciam boas pessoas e ninguém teria imaginado que pensavam assaltar o quartel, uma ideia absurda, como pode ter ocorrido essa loucura a Antonio Flores e aos seus filhos? Eram pessoas inteligentes e com instrução. Por sorte os patrões das herdades vizinhas avisaram o meu tenente Ramírez e ele pôde agir a tempo. Foi muito duro para mim prender os Flores. Mas lembro‑me dos gritos da Evangelina trocada quando levámos os homens da sua família. Causou‑me dó porque é minha verdadeira irmã, tão Ranquileo como eu. Sim, houve muitos prisioneiros nessa época. Obriguei vários a falar, metendo‑os nas cavalariças amarrados pelos pés e pelas mãos, espancando‑os sem compaixão, fuzilámos também, e outras coisas que não posso dizer porque são segredos militares. O tenente tinha confiança em mim, tratava‑me como a um filho; eu respeitava‑o e admirava‑o, era um bom chefe e encarregava‑me de missões especiais, para as quais não servem os fracos nem os tagarelas como o sargento Faustino Rivera, que à primeira cerveja perde a cabeça e começa a falar como uma velha. O tenente disse‑me muitas vezes: Ranquileo, chegarás muito longe porque és calado que nem um túmulo. E valente também. Calado e valente, as melhores virtudes de um soldado.

No exercício da autoridade, Pradelio perdeu o terror dos seus próprios pecados e pôde iludir o fantasma de Evangelina, excepto durante as visitas à sua casa. Então a rapariga voltava a agitar‑lhe o sangue com carícias de menina tonta, mas já não parecia uma criança, tinha a atitude manifesta de uma mulher. No dia em que a viu arqueada para trás, em convulsões, gemendo numa paródia grotesca do acto sexual, recomeçaram de chofre os quentes tormentos quase esquecidos. Para apagá‑la da sua ideia planeou recursos desesperados, banhos prolongados de água gelada ao amanhecer e bílis de frango com vinagre, para ver se o frio nos ossos e o ardor nas tripas lhe devolviam o juízo, mas tudo foi inútil. Por fim contou tudo ao tenente Juan de Dios Ramírez, a quem o unia uma velha cumplicidade.

- Eu encarrego‑me desse problema, Ranquileo - afirmou‑lhe o oficial depois de ouvir a esquisita história. ‑ Agrada‑me que os meus homens me contem as suas preocupações. Ages bem confiando em mim.

 

No mesmo dia do escândalo em casa dos Ranquileo, o tenente Ramírez ordenou a prisão de Pradelio na cela dos incomunicáveis. Não lhe deu explicações. O soldado ali ficou muitos dias a pão e água sem conhecer a causa do seu castigo, embora soubesse que estava relacionado com o comportamento tão pouco delicado da irmã. Ao pensar nisso não podia evitar um sorriso. Parecia‑lhe incrível que essa menina insignificante como um verme, mirrada, sem seios como as mulheres, mas apenas duas ameixas apontando entre as costelas, tivesse levantado o tenente no ar, sacudindo‑o como rebotalho diante dos seus subalternos. Chegou a pensar que sonhara com essa cena; talvez a fome, a solidão e o desespero o estivessem transtornando, talvez aquilo nunca tivesse acontecido. Mas então porque estaria preso? Era a primeira vez que uma coisa daquelas lhe acontecia, nem sequer durante o serviço militar sofrera uma humilhação semelhante. Tinha sido um recruta exemplar e um bom guarda durante muitos anos. Ranquileo, dizia o tenente, o uniforme deve ser o teu único ideal, tens de defendê‑lo e confiar nos superiores. Assim fez sempre. O oficial ensinou‑o a dirigir carros da Guarda e transformou‑o no seu motorista. Ás vezes iam juntos beber cerveja e visitar as putas de Los Riscos, como dois bons amigos. Por isso se atreveu a contar‑lhe os ataques da irmã, as pedras caindo sobre o tecto, a dança da loiça e a confusão dos animais. Contou tudo sem imaginar que, com uma dezena de homens armados, iria invadir a casa dos seus pais e que Evangelina o ridicularizaria, atirando‑o para o chão do pátio.

Ranquileo sentia‑se bem no seu trabalho. Era uma alma simples e que dificilmente tomava decisões, preferia obedecer calado e era‑lhe mais fácil pôr a responsabilidade dos seus actos em mãos alheias. Gaguejava e roía as unhas até à raiz, deixando os dedos que nem cotos ensanguentados.

‑        Antes não as roía ‑ desculpou‑se perante Irene e Francisco.



Na rude vida militar sentia‑se muito mais feliz do que em casa dos pais. Não queria voltar ao campo. Nas Forças Armadas tinha encontrado uma carreira, um destino e outra família. Tinha uma resistência de touro para aguentar os turnos, realizar os mais duros treinos e cumprir as noites de guarda. Era um bom camarada, capaz de ceder a sua ração a um que estivesse com mais fome e a manta a algum com mais frio. Aguentava sem reclamar os chistes mais pesados, não perdia o bom humor, sorria complacente quando zombavam da sua ossatura de cavalo e da sua avultada masculinidade. Também se riam da sua ansiedade para executar as tarefas, do respeito reverente que mostrava pela sagrada instituição militar, do seu sonho de dar a vida pela bandeira, como um herói. De repente tudo isso se desmoronou. Não sabia por que ia passando. O seu único contacto com o mundo exterior consistia nalgumas palavras sussurradas pelo sujeito encarregado de lhe levar a comida. Algumas vezes ofereceu‑lhe cigarros e prometeu‑lhe uma história de cowboys ou revistas desportivas, embora não tivesse luz para lê‑las. Nesses dias aprendeu a viver de murmúrios, de esperanças, de pequenos truques para enganar o tédio. Pondo a funcionar todos os seus sentidos, procurava participar de alguma forma na vida dos lá de fora; no entanto, por vezes sentia tamanha solidão que pensava estar morto. Ouvia atentamente os ruídos do lado de fora, sabia quando rendiam a guarda, contava os veículos que entravam e saíam do pátio, afinou o ouvido para reconhecer as vozes e os passos desfigurados pela distância. Procurava dormir para passar o tempo de prisão, mas a inactividade e a angústia espantavam‑lhe o sono. Um homem de menor porte poderia estirar‑se e fazer alguns exercícios naquele espaço reduzido, mas Ranquileo estava metido numa camisa‑de‑forças. Os piolhos do colchão alojavam‑se‑lhe na cabeça e multiplicavam‑se com rapidez. As lêndeas picavam‑no nas axilas e no púbis, obrigando‑o a coçar‑se até sangrar. Dispunha de um balde para fazer as necessidades e, quando estava cheio, o fedor constituía o seu pior suplício. Pensou que o tenente Ramirez lhe estivesse a fazer um teste. Talvez quisesse confirmar a sua resistência e a têmpera do seu carácter antes de o incumbir de uma missão especial. Por isso não usou o recurso de apelação, a que tinha direito nos três primeiros dias. Procurou manter‑se calmo, não se deixar ir abaixo, não chorar nem gritar, como faziam quase todos os presos incomunicáveis. Quis dar um exemplo de força física e moral, para que o oficial apreciasse as suas qualidades, e demonstrar‑lhe que, mesmo nas situações mais extremas, não fraquejava. Tentou passear em círculos, para evitar as cãibras e desinchar os músculos, mas era impossível porque a cabeça tocava no tecto e, se esticasse os braços, batia nas paredes. Naquela cela tinham chegado a meter seis prisioneiros, mas por muito poucos dias, nunca tantos como ele, e além disso não eram presos comuns, mas inimigos da nação, agentes soviéticos, traidores, dissera o tenente com toda a clareza. Habituado ao exercício e ao ar livre, essa imobilidade forçada do corpo invadia‑lhe também a mente; enjoava‑se, esquecia nomes e lugares, via sombras monstruosas. Para não enlouquecer cantava a meia voz. Gostava de fazê‑lo, embora em tempos normais a timidez o impedisse. Evangelina gostava de ouvi‑lo e permanecia em silêncio, com os olhos fechados, como se ouvisse vozes de sereias, canta mais, canta mais... Durante o cativeiro pôde pensar muito nela, recordar nitidamente cada um dos seus gestos e a cumplicidade do desejo proibido que compartilharam desde crianças. Deixava a imaginação voar e punha o rosto da irmã na memória das suas mais ousadas experiências. Era ela quem se abria como uma melancia madura, vermelha, suculenta, morna, ela é que suava essa fragrância penetrante de mariscos, ela é que o mordia, o arranhava, o chupava, gemia, agonizava de arrebatamento e prazer. Era na sua carne compassiva que mergulhava até perder o alento e tornar‑se esponja, medusa, estrela‑do‑mar. Podia ficar muitas horas trocando carícias com o fantasma de Evangelina, mas sobravam sempre muitas mais. Entre aquelas paredes, o tempo estava suspenso num instante eterno. Em certos momentos chegou ao limite da loucura e pensou rebentar a cabeça contra a parede até que a poça de sangue passasse por baixo da porta e alertasse o guarda, para ver se ao menos o transferiam para a enfermaria. Uma tarde estava quase decidido a fazê‑lo, quando apareceu o sargento Faustino Rivera. Abriu a tranca da porta de ferro, passou‑lhe cigarros, fósforos, chocolate.

‑        Os meninos mandam‑te lembranças. Vão comprar para ti velas e revistas para te entreteres, estão preocupados contigo e querem falar com o tenente para ver se suspende o castigo.

‑        Porque me mantêm aqui?

‑        Não sei. Talvez por causa da tua irmã.

‑        Estou bem fodido, sargento.

‑        Assim parece. A tua mãe veio perguntar por ti e também por Evangelina.

‑        Evangelina? Que lhe aconteceu?

‑        Não sabes?

‑        Que aconteceu à minha irmã? ‑ gritou Pradelio, esmurrando a porta como um doido.

‑        Eu não sei nada. Não grites porque se me apanham aqui vou pagar muito caro, Ranquileo. Não fiques desesperado, sou teu parente e vou‑te ajudar. Voltarei em breve ‑ disse o sargento, virando costas num repente.

Ranquileo caiu no chão e quem passou pelo pátio pôde escutar um choro de homem que deixaria abalada qualquer consciência. Os seus amigos nomearam uma comissão para interceder junto do oficial, mas não decidiram nada. O mal‑estar propagou‑se entre os soldados, que murmuravam nas retretes, nos corredores, na sala de armas, mas o tenente Juan de Dios Ramírez ignorou‑os. Então Faustino Rivera, o mais prudente, decidiu pôr as coisas no seu lugar. Dois dias mais tarde aproveitou a cumplicidade da noite e a ausência momentânea do oficial para se aproximar da cela dos presos incomunicáveis. O vigia viu‑o chegar e adivinhou imediatamente as suas intenções. Ajudou‑o fingindo que dormia, porque também ele considerava injusto aquele castigo. Sem se preocupar com o barulho ou que alguém o visse, o sargento pegou na chave pendurada num prego na parede e dirigiu‑se para a porta de ferro. Tirou Ranquileo da cela, passou‑lhe a roupa e a arma regulamentar com seis balas, conduziu‑o à cozinha e ele próprio o serviu com ração dupla. Depois entregou‑lhe uma quantia quotizada pela tropa e, num Jipe, foi deixá‑lo o mais longe possível do quartel. Os que os viram olharam para o lado e não quiseram saber de pormenores. Um homem tem o direito de vingar a sua irmã, disseram.


Arrastando‑se de noite e escondendo‑se imóvel nos campos durante o dia, Pradelio Ranquileo passou quase uma semana sem se atrever a pedir ajuda, porque imaginava a raiva do tenente ao descobrir a sua fuga e sabia que os guardas não poderiam desobedecer às ordens de procurá‑lo no céu e na terra. Oculto nas sombras, esperou até que a impaciência e a fome o conduzisse por fim a casa dos pais. O sargento Rivera já lá tinha estado e contara a Digna o mesmo que a ele, por isso não tiveram necessidade de falar do caso. A vingança é assunto de machos. Rivera tinha‑lhe dito, ao despedir‑se, que procurasse a irmã, mas na verdade o que queria dizer era que a vingasse, disso Pradelio estava certo. Tinha a certeza da morte de Evangelina. Não dispunha de provas, mas conhecia bastante bem o tenente para poder imaginar o sucedido.

‑        Será difícil cumprir o meu dever, porque se desço deste monte matam‑me ‑ disse a Francisco e Irene na gruta.

‑        Porquê?

‑        Guardo um segredo militar.

‑        Se quer a nossa ajuda, deve dizê‑lo.

‑        Nunca o direi.

Estava muito agitado, transpirava, mordia as unhas, havia nos seus olhos um brilho de pavor, passava as mãos pelo rosto como se desejasse espantar horrendas lembranças. Sem dúvida tinha muito mais para dizer, mas estava manietado pelos tremendos laços do silêncio. Balbuciou que seria melhor morrer de vez, pois não tinha escapatória possível. Irene tentou tranquilizá‑lo: não devia desesperar, encontrariam uma forma de ajudá‑lo, era questão de esperar algum tempo. Francisco vislumbrava naquela história vários aspectos obscuros e sentia uma desconfiança instintiva; mas pensava nos seus contactos, procurando alguma solução para lhe salvar a vida.

‑        Se o tenente Ramírez matou a minha irmã, eu sei onde escondeu o corpo ‑ disse Pradelio no último momento. ‑ Conhecem a mina abandonada de Los Riscos?

Calou‑se bruscamente, arrependido do que tinha dito, mas, pela expressão do seu rosto e pelo tom da sua voz, Francisco compreendeu que não falava de uma possibilidade, mas sim de uma certeza. Tinha‑lhes dado uma pista.

Ia a tarde a meio quando se despediram e iniciaram a descida, deixando Ranquileo abatido, ruminando ideias de morte. Descer a montanha foi tão difícil como subi‑la, especialmente para Irene, que tremia só de olhar para o abismo, mas que não parou até chegar ao lugar onde tinham deixado os cavalos. Aí respirou aliviada, olhou para a cordilheira e pareceu‑lhe impossível ter subido até àqueles cumes abruptos, esfumados pela cor do céu.

‑        Basta por hoje. Voltarei depois com algumas ferramentas para ver o que há nessa mina ‑ decidiu Francisco.

‑        E eu contigo ‑ disse Irene.

Olharam‑se e compreenderam que ambos aceitavam chegar ao limite daquela aventura, que podia conduzi‑los à morte e mais além.

 


Beatriz Alcántara avançou pisando com altivez o linóleo brilhante do aeroporto, seguindo o carregador que lhe levava as malas azuis. Usava um vestido decotado de linho cor de tomate e tinha os cabelos presos na nuca, porque não arranjara ânimo para um penteado mais esmerado. Duas grandes pérolas barrocas nas orelhas faziam sobressair o tom de açúcar queimado da sua pele e o brilho dos olhos escuros iluminados por um novo bem‑estar. Várias horas de voo num assento incómodo, tendo como vizinha uma freira galega, não lhe tinham retirado a alegria do seu último encontro com Michel. Sentia‑se outra mulher, rejuvenescida, leve. O orgulho de quem se crê bela dava ao seu andar um ritmo insolente. à sua passagem os homens voltavam‑se e nenhum suspeitava da sua verdadeira idade. Ainda podia usar tranquilamente decotes, sem sinais delatores no peito nem flacidez nos braços, as pernas tinham contornos suaves e a linha das costas mantinha a sua altivez. O ar do mar tinha dado um ar festivo ao seu rosto, dissimulando a pinceladas as finas rugas das pálpebras e da boca. Apenas as mãos, com manchas e rugas apesar dos unguentos mágicos, tinham as marcas da passagem do tempo. Estava satisfeita com o seu corpo. Considerava‑o obra sua e não da natureza, porque era o produto acabado da sua enorme força de vontade, o resultado de anos de dieta, exercícios, massagens, relaxação ioga e progressos da cosmetologia. Enchia a mala de ampolas de óleo para os seios, colagénio para o colo, loções e cremes à base de hormonas para a pele, extracto de placenta e vison para os cabelos, cápsulas de geleia real e pólen da eterna juventude, máquinas, escovas e esponjas vegetais para a elasticidade dos tecidos. É uma luta perdida, mãe, a idade é inexorável e a única coisa que podes conseguir é atrasar um pouco as evidências. Vale a pena tanto esforço? Quando se estendia ao sol nas areias mornas de alguma praia tropical, tendo apenas como roupa um triângulo de pano no sexo, e se comparava com mulheres vinte anos mais jovens, sorria orgulhosa. Sim, filha, vale a pena. As vezes, ao entrar num salão, percebia que havia no ar muita inveja e não menos desejo, então sabia que os seus esforços davam resultado. Mas era sobretudo nos braços de Michel que ganhava a certeza de que o seu corpo constituía um capital rentável, pois proporcionava‑lhe o maior prazer.

Michel encarnava o seu luxo secreto, a confirmação da sua própria estima, a causa da sua mais íntima vaidade. Era tão novo que podia passar por seu filho, alto, de ombros largos e estreitos quadris de toureiro, o cabelo alourado pelo excesso de sol, os olhos claros, um acento doce no falar e toda a sabedoria necessária na hora do amor. A vida ociosa, o desporto e a ausência de obrigações imprimiam um sorriso permanente no seu rosto e davam‑lhe um apetite folgação para o prazer. Vegetariano, abstémio, inimigo do fumo, sem quaisquer pretensões intelectuais, obtinha os seus maiores prazeres nas diversões ao ar livre e nos encontros amorosos. Doce, terno, simples e sempre de bom humor, vivia noutra dimensão, como um arcanjo caído na terra por engano. Agia de forma engenhosa para que a sua vida fosse umas férias eternas. Conheceram‑se numa praia de palmeiras vergadas e, quando se enlaçaram para dançar pela primeira vez na penumbra do hotel, compreenderam

que era inevitável um encontro mais intimo. Na mesma noite, Beatriz abriu‑lhe a porta do seu quarto, sentindo‑se como uma adolescente. Estava um tanto receosa porque temia que descobrisse pequenos sinais reveladores da sua idade, que tivessem passado despercebidos apesar da sua implacável vigilância, mas Michel não lhe deu tempo para tais inquietações. Acendeu a luz disposto a conhecê‑la por completo, enquanto a beijava com lábios experientes e a despia de todos os enfeites: as pérolas barrocas, os anéis de brilhantes, as pulseiras de marfim, até a deixar nua e vulnerável. Ela pôde então suspirar tranquila, porque na expressão dos olhos do amante teve a confirmação da sua beleza. Esqueceu a passagem dos anos, o desgaste da luta e o aborrecimento que outros homens tinham semeado no seu espírito. Compartilharam uma relação alegre, a que não chamaram amor.


A proximidade de Michel excitava Beatriz ao ponto de fazê‑la esquecer todas as preocupações. Aquele homem tinha o poder sobrenatural de eliminar com os seus beijos os velhos decrépitos da Vontade de Deus, as extravagâncias da sua filha e as dificuldades económicas. Junto dele só existia o presente. Aspirava o seu cheiro de animal jovem, a sua respiração nítida, o suor da sua pele lisa, os vestígios salgados do mar no seu cabelo. Acariciava‑lhe o corpo, o pêlo áspero do peito, vibrava com a suavidade das faces acabadas de barbear, a força do seu abraço, a firmeza renovada do seu sexo. Nunca tinha sido amada nem possuída assim. A relação com o marido enchera‑se de rancores acumulados e rejeições involuntárias, e os seus amantes ocasionais eram homens mais velhos que supriam a falta de vigor com artes de simulação. Não queria nem por nada lembrar‑se dos seus cabelos ralos, dos corpos flácidos, dos cheiros desagradáveis a fumo e a bebida, dos pénis estimulados, dos presentes mesquinhos, das promessas inúteis. Michel não mentia. Nunca disse amo‑te, mas apenas agradas‑me, sinto‑me bem ao teu lado, quero fazer amor contigo. Era pródigo na cama, devotado a dar‑lhe alegria, a satisfazer‑lhe os caprichos, a inventar novos desejos.

Michel representava o lado oculto e mais luminoso da sua existência. Era impossível compartilhar aquele segredo, porque ninguém teria compreendido a sua paixão por um homem muito mais jovem. Podia imaginar os comentários das suas amigas: Beatriz perdeu o juízo por um rapaz, um estrangeiro que certamente a explora e que lhe extorquirá todo o dinheiro, devia sentir vergonha na sua idade. Ninguém acreditaria na ternura e no riso partilhados, na sua amizade, em que ele nunca pedia nada e não aceitava presentes. Reuniam‑se duas vezes por ano em qualquer lugar do mapa para viver alguns dias de ilusão e regressar depois com o corpo agradecido e o ânimo excitado. Beatriz Alcántara retomava as rédeas do trabalho, assumia as suas tarefas e voltava às relações elegantes com os seus pretendentes habituais, viúvos, divorciados, maridos infiéis, sedutores endémicos que lhe dispensavam atenções especiais mas não lhe comoviam o coração.

Passou a porta envidraçada que separava o sector restrito do aeroporto e do outro lado viu a filha confundida com a multidão. Acompanhava‑a aquele fotógrafo que nos últimos meses andava sempre com ela, como se chamava ele? Não pôde impedir um esgar de desgosto ao ver Irene com um aspecto tão pouco cuidado. Ao menos quando usava a sua roupa de cigana demonstrava alguma originalidade, mas com aquelas calças amarrotadas e o cabelo apanhado em rabo‑de‑cavalo parecia uma professora rural. Ao aproximar‑se percebeu outros sinais inquietantes, mas não conseguiu determiná‑los. Tinha um ar de tristeza nos olhos, um ricto ansioso na boca, mas não pôde fazer mais perguntas, na azáfama de colocar as malas no automóvel e seguir para casa.

‑        Trouxe roupa muito fina para o teu enxoval, filha.

‑        Talvez não chegue a usá‑la.

‑        Que queres dizer? Aconteceu alguma coisa ao teu noivo?


Beatriz observou Francisco Leal de soslaio e esteve quase a lançar um comentário mordaz, mas decidiu calar‑se até poder estar a sós com Irene. Respirou fundo e de imediato exalou o ar em seis tempos, relaxando os músculos do peito e esvaziando o seu espírito de toda a agressividade, de forma a colocar‑se em sintonia positiva, como lhe ensinara o professor de ioga. Logo que se sentiu melhor, pôde gozar o belo espectáculo da cidade na Primavera, as ruas limpas, as paredes acabadas de pintar, as pessoas simpáticas e disciplinadas, tinha de se agradecer às autoridades, tudo sob controlo e muito bem vigiado. Observou as montras das lojas a abarrotar de produtos estrangeiros nunca antes consumidos no país, os luxuosos edifícios com piscinas rodeadas de palmeiras anãs nos terraços, caracóis de cimento abrigando lojas de fantasia para os caprichos dos novos‑ricos e altas muralhas ocultando a região da pobreza, onde a vida era vivida fora da ordem do tempo e das leis de Deus. Perante a impossibilidade de eliminar a miséria, passou a ser proibido mencioná‑la. As notícias da imprensa eram tranquilizadoras, viviam num reino encantado. Eram completamente falsos os boatos sobre mulheres e crianças assaltando padarias, acossadas pela fome. As más notícias só provinham do exterior, onde o mundo se debatia com problemas irremediáveis que não diziam respeito à benemérita pátria. Pelas ruas circulavam automóveis japoneses tão delicados que pareciam inúteis e as enormes motocicletas pretas com tubos cromados dos executivos; em todas as esquinas havia cartas de publicidade oferecendo apartamentos únicos para gente especial, as viagens de Marco Polo a crédito e os últimos progressos da electrónica. Proliferavam os locais de diversão com as luzes acesas e as portas vigiadas até ao recolher. Comentava‑se a opulência, o milagre económico, os recursos estrangeiros atraídos em torrente pelas mercês do regime. Os descontentes eram qualificados de antipatriotas, pois a felicidade era obrigatória. De acordo com uma lei de segregação não escrita, mas por todos conhecida, havia dois países no mesmo território nacional, um da elite dourada e poderosa e outro da massa marginalizada e silenciosa. É o custo social, diziam os jovens economistas da nova escola, e os meios de comunicação papagueavam isso mesmo a todo o instante.

O automóvel parou num semáforo, e três indivíduos andrajosos aproximaram‑se para limpar o pára‑brisas, oferecer figuras religiosas, pacotes de agulhas ou simplesmente para pedir esmola. Irene e Francisco trocaram um olhar, porque ambos estavam a pensar no mesmo.

‑        Cada dia há mais pobres ‑ disse Irene.

‑        Vais começar também com essa cantilena? Em toda a parte há mendigos. O que acontece é que aqui as pessoas não querem trabalhar, este é um país de preguiçosos ‑ rebateu Beatriz.

‑        Não há trabalho para todos, mãe.

‑        Que queres? Que não haja diferença entre os pobres e as pessoas decentes?

Irene corou, sem se atrever a olhar para Francisco, mas a mãe continuou, imperturbável, a sua ladainha.

‑        Esta é a etapa da transição, em breve virão tempos melhores. Ao menos temos ordem, não? Além do mais, a democracia conduz ao caos, assim o disse mil vezes o nosso general.

Fizeram o resto do trajecto em silêncio. Ao chegarem a casa, Francisco levou as malas até ao segundo andar, onde Rosa aguardava com as luzes acesas. Agradecida por tantas atenções, Beatriz convidou‑o para jantar. Era o seu primeiro gesto cordial e ele aceitou de imediato.

‑        Sirva depressa a comida, Rosa, porque temos uma surpresa na Vontade de Deus ‑ disse Irene.

A seu pedido, Beatriz tinha comprado na viagem alguns presentes para os velhos e o pessoal de serviço. Irene comprou pastéis e preparou ponche de frutas para comemorarem. Depois do jantar desceram ao primeiro andar, onde os hóspedes esperavam vestidos com a melhor roupa, as enfermeiras exibiam aventais engomados e as primeiras flores da estação transbordavam dos jarros para dar as boas‑vindas à patroa.


Josefina Bianchi, a actriz, anunciou que os presentearia com uma representação teatral. Francisco captou uma piscadela de Irene, compreendeu que esta estava a par do segredo e quis‑se ir embora antes que fosse tarde, porque sofria com o ridículo alheio, mas Irene não lhe deu tempo para improvisar uma desculpa. Obrigou‑o a sentar‑se junto de Rosa e da mãe, nas cadeiras do terraço, e desapareceu com Josefina para dentro da casa. Esperaram alguns minutos, particularmente incómodos para Francisco. Beatriz fazia comentários banais sobre os lugares que tinha visitado, enquanto as enfermeiras punham as cadeiras diante da grande janela da sala de jantar. Os hóspedes foram‑se acomodando, agasalhados com pulôveres e mantas, porque a idade avançada gela os ossos e nem mesmo uma noite tépida de Primavera consegue suavizar o frio senil. Apagaram‑se os focos de luz do jardim, os acordes de uma antiga sonata inundaram o ar e abriram‑se as cortinas. Por um instante Francisco vacilou entre o pudor que o impelia a fugir e o feitiço daquele espectáculo inusitado. Diante dos seus olhos surgiu um cenário banhado de luz, como um aquário na escuridão. O único mobiliário do amplo espaço vazio era um sofá de brocado amarelo junto a um candeeiro de pé com um quebra‑luz de pergaminho, que formava um círculo de ouro no qual se destacava uma figura intacta do passado, um espírito do século dezanove. A princípio não reconheceu Josefina Bianchi e acreditou que era Irene, pois naquele rosto tinham‑se esfumado os estragos do tempo. Languidez, sedução na harmonia de cada um dos seus gestos. Vestia um figurino sumptuoso, com enfeites plissados e rendas cor de marfim, descorado, enrugado, mas esplêndido, apesar da cinza dos anos e da passagem por arcas e baús. à distância sentia‑se o suave crepitar da seda. Mais que sentada, a actriz parecia flutuar com a agilidade de um insecto, esbatida, sensual, eternamente feminina. E antes que Francisco se recompusesse da surpresa, parou a música nos altifalantes e a Dama das Camélias deixou ouvir a sua voz sem idade. Nesse momento, ele deixou de resistir e abandonou‑se à magia da representação. Aos seus ouvidos chegava a tragédia da cortesã, o seu longo lamento sereno, por isso mais comovente. Com uma das mãos, ela afastava o amante invisível e com um gesto da outra chamava‑o, suplicava a sua presença, acariciava‑o. Os velhos pareciam imobilizados nas suas recordações, distantes e silenciosos. As empregadas, desconcertadas por aquela mulher tão frágil e leve, que um sopro podia transformar em pó, sentiam o peito opresso. Ninguém conseguia escapar àquela magia.

Francisco sentiu no ombro a mão de Irene, mas foi incapaz de se virar, seduzido como estava pelo espectáculo. Quando um acesso de tosse, que fazia parte da peça ou era consequência da velhice, pôs fim às palavras da imortal namorada, os olhos ardiam‑lhe a ponto de chorar. Invadido pela melancolia, não conseguiu aplaudir como os outros. Levantou‑se e foi até ao fundo do jardim para o lugar mais sombrio, seguido pela cadela, que pulava aos seus pés. Dali observou a lenta movimentação dos velhos e das enfermeiras, que bebiam ponche e abriam os presentes com dedos titubeantes, enquanto aquela Margarite Gautier, de repente envelhecida cem anos, procurava o seu Amand Duval segurando numa mão um leque de penas e na outra um pastel de creme. Fantasmas que deslizavam por entre as cadeiras e vagueavam pelos caminhos orlados de toldos, o perfume intenso dos jasmins, o resplendor amarelo das lâmpadas, tudo contribuía para uma sensação de sonho. O ar da noite parecia saturado de presságios.

Irene procurou‑o, e ao vê‑lo aproximou‑se sorrindo. Então notou a expressão que lhe marcava o rosto e percebeu as emoções que o arrebatavam. Encostou a cabeça ao peito de Francisco e o seu cabelo indómito acariciou‑lhe a boca.

‑        Em que pensas?


Pensava nos pais. Dentro de alguns anos chegariam à idade dos hóspedes da Vontade de Deus, que, como eles, tinham trazido filhos ao mundo e lutado sem descanso para lhes dar apoio. Nunca imaginaram que terminariam os seus dias e que esperariam pela morte com o conforto de mãos mercenárias. Os Leal viviam como um clã desde sempre, partilhando pobreza, alegria, sofrimento e esperança, ligados por laços de sangue e de responsabilidade. Restavam ainda muitas famílias assim; talvez os velhos que nessa noite presenciavam a actuação de Josefina Bianchi não fossem muito diferentes dos seus pais; porém, estavam sós. Eram as vítimas esquecidas do vento que dispersara as pessoas para todas as direcções, os rejeitados da diáspora, os que ficaram para trás sem espaço próprio, sem um lugar nos novos tempos. Não conservavam netos perto para cuidar ou ver crescer, filhos para ajudar na tarefa de viver, não tinham um jardim para plantar sementes nem um canário que cantasse ao entardecer. A sua ocupação era evitar a morte pensando sempre nela, antecipando‑a, temendo‑a. Francisco jurou para si mesmo que isso nunca aconteceria aos seus pais. Repetiu a promessa em voz alta, com os lábios ocultos no cabelo de Irene.

 

                           DOCE PÁMIA

 

Quando viajo, a nossa extensa terra viaja comigo. E, apesar de longe, continua vivendo no meu ser a essência longitudinal da minha pátria.

                                   Pablo Neruda

 

Tempos depois, Irene e Francisco, ao pensarem em que exacto momento o rumo das suas vidas mudou por completo, indicariam aquela funesta segunda‑feira em que entraram na mina abandonada de Los Riscos. Mas talvez tivesse sido antes, naquele domingo em que conheceram Evangelina Ranquileo, ou naquela tarde em que prometeram a Digna ajudá‑la a procurar a menina perdida, ou, quem sabe, talvez os seus caminhos estivessem traçados desde o princípio e não tivessem outra saída senão percorrê‑los.

Partiram para a mina na motocicleta ‑ mais prática em terrenos escarpados do que o automóvel ‑, levando algumas ferramentas, uma garrafa térmica com café quente e o equipamento fotográfico, sem dizerem a ninguém qual o objectivo da viagem, ambos dominados pela sensação de estarem a cometer uma insensatez. A partir do instante em que decidiram penetrar, à noite, num campo desconhecido para abrir a mina, os dois sabiam que a temeridade podia custar‑lhes a vida.

Estudaram o plano até o conhecerem de cor e terem a certeza de que podiam chegar ao seu destino sem fazer perguntas que levantassem suspeitas. Nada havia de perigoso naquela planície de suaves colinas, mas ao meterem pelos caminhos escarpados dos montes, onde as sombras caíam a pique muito antes do pôr do Sol, a paisagem tornou‑se agreste e solitária e o eco devolveu‑lhes os pensamentos, ampliados pelo grito longínquo da águia. Inquieto, Francisco percebeu então a imprudência de arrastar Irene para uma aventura cujo desfecho ignorava.

‑ Não me levas a parte nenhuma, sou eu quem te leva ‑ gracejou ela, e talvez tivesse razão

Um letreiro roído pela ferrugem, mas ainda legível, anunciava que a zona estava sob vigilância e que a passagem era proibida. Uns fios de arame farpado cercavam o acesso com aspecto ameaçador e, por um momento, os jovens tiveram a tentação de invocar esse pretexto para recuarem, mas de imediato abandonaram os subterfúgios e procuraram uma abertura na teia de arames para passarem com a moto. O aviso e a cerca contribuíram para confirmar o pressentimento de que ali havia algo a descobrir. Como tinham planeado, a noite caía no preciso momento em que atingiam o seu destino, facilitando assim o secretismo das suas idas e vindas. A entrada da mina era um fosso no alto do monte, como uma boca muda gritando sem voz. Estava encoberta com pedras, terra batida e uma mistura de alvenaria. Tiveram a impressão de que ninguém circulava por aquelas paragens há anos. A solidão tinha‑se instalado para ficar, apagando os vestígios do atalho e a lembrança da vida. Esconderam a motocicleta sob um matagal e em seguida percorreram o lugar em todas as direcções para se certificarem de que não havia vigilância. A inspecção tranquilizou‑os, porque não viram rastos humanos nos arredores, só uma cabana abandonada ao vento e ao mato, a uns cem metros da mina. Metade do tecto tinha sido levada pelo vento, uma parede jazia no solo e a vegetação invadia o interior, cobrindo tudo como um tapete de pasto silvestre. Tanto deserto e esquecimento num lugar próximo de Los Riscos e da estrada pareceu‑lhes bastante estranho.

‑        Tenho medo ‑ sussurrou Irene.

‑        Eu também.


Abriram a garrafa térmica e beberam um longo gole de café, que lhes reconfortou o corpo e a alma. Brincaram com a ideia de que tudo aquilo era um jogo e tentaram contagiar‑se um ao outro com a crença de que nada de mal lhes podia acontecer, protegidos como estavam por algum espírito benfeitor. Era uma clara noite de luar e depressa se acostumaram à penumbra. Pegaram na picareta e na lanterna e dirigiram‑se para a furna. Nunca tinham visto uma mina por dentro e imaginavam que se tratava de uma caverna aberta na terra, a uma imensa profundidade. Francisco recordou que a tradição proibia a presença de mulheres nas minas, porque provocavam desastres subterrâneos, mas Irene ignorou a superstição, decidida a seguir em frente de qualquer modo.

Francisco atacou a entrada com a ferramenta. Tinha pouca habilidade para trabalhos rudes, mal sabia usar a picareta e compreendeu que o trabalho seria mais longo do que o previsto. Irene não tentou ajudá‑lo: sentou‑se numa rocha, agasalhada no seu casaco de malha, defendendo‑se da brisa que corria livremente pelos montes. Qualquer som esquisito a punha em sobressalto. Temia a presença de animais, ou, pior ainda, de soldados espreitando nas imediações. Ao princípio procuraram não fazer o menor ruído, mas depressa tiveram de se conformar com o inevitável, porque o golpe do ferro contra as pedras propagava‑se pelos montes próximos, produzia o eco e repetia‑o mil vezes. Se houvesse patrulhamento na zona, como indicava o aviso, não teriam escapatória possível. Ao fim de meia hora, Francisco tinha os dedos arroxeados e as palmas das mãos cheias de bolhas, mas o seu esforço levara ao aparecimento de uma abertura, a partir da qual puderam remover à mão o material solto Irene ajudou‑o, e num instante conseguiram abrir uma grande brecha, pela qual podiam entrar.

‑        As senhoras primeiro ‑ brincou Francisco, indicando o buraco.

Como resposta, ela entregou-lhe a lanterna e retrocedeu dois passos. O jovem introduziu a cabeça e os braços na abertura ilumi nando a cavidade. Uma rajada de ar fétido golpeou‑lhes o nariz. Francisco esteve prestes a desistir, mas pensou que, se tinha chegado àquele ponto, não ia desistir sem mais nem menos. Uma luz recortou um círculo e nas trevas apareceu uma abóbada estreita cavada nas duras entranhas do monte, da qual partiam dois túneis estreitos,, bloqueados com escombros. Não se parecia nada com o que tinham imaginado. Ainda existiam andaimes

de madeira para evitar os desmoronamentos na época da exploração do minério, mas o tempo tinha‑os carcomido e estavam tão podres

que alguns aguentavam-se por milagre e bastaria um sopro para

acabar com aquele falso equilíbrio. Iluminou o interior para reconhecer o terreno antes de introduzir o resto do corpo. Um vulto fugaz roçou‑lhe os braços e de repente Deu um grito, mais surpreendido que assustado. A lanterna ccaiu‑lhe das mãos. De fora, Irene ouviu e, temendo algo atroz, pegou‑lhe pelas pernas e começou a puxá‑lo com toda a força.

‑        Que aconteceu? ‑ perguntou com o coração na boca.

‑        Nada, só um rato.

‑        Vamos embora daqui! Isto não me agrada nada...

‑        Espera, vou espreitar lá para dentro.


Francisco passou através do buraco, fazendo deslizar o corpo e tentando evitar as pedras pontiagudas, e desapareceu tragado pela boca do monte. Irene viu a negra abertura envolver o amigo e teve um sobressalto de angústia, apesar de a razão lhe dizer que os perigos não estavam dentro da mina, mas fora. Se fossem surpreendidos, podiam contar com uma bala na nuca e uma discreta sepultura ali mesmo. Muita gente morria por motivos menos graves. Lembrou‑se das histórias de fantasmas que Rosa lhe contava: o diabo escondido nos espelhos para assustar as mulheres vaidosas; o papão carregando um saco cheio de crianças raptadas; Os cães com escamas de crocodilo no lombo e unhas de bode; homens de duas cabeças espreitando pelos cantos para apanharem as meninas que dormem com as mãos debaixo dos lençóis. Histórias cruéis, que lhe provocavam pesadelos, mas que tinham um tal fascínio que não podia deixar de escutá‑las, e pedia a Rosa que as contasse, tremendo de medo desejosa de tapar os ouvidos e fechar os olhos para não saber e, ao mesmo tempo, ansiosa por averiguar todos os detalhes: se o demónio anda nu, se o papão cheira mal, se os cãezinhos fraldiqueiros também se transformam em bestas pavorosas, se os bicéfalos entram nos quartos protegidos pela imagem da Virgem. Nessa noite, diante do buraco da mina, Irene voltou a sentir essa mescla de espanto e atracção de épocas remotas, quando a ama a aterrorizava com as suas fábulas. Por fim, decidiu‑se a seguir Francisco e meteu‑se através da abertura com facilidade, pois era pequena e ágil. Precisou apenas de alguns segundos para se habituar à penumbra. O cheiro pareceu‑lhe insuportável, como se aspirasse um veneno letal. Tirou o lenço de cigana que levava amarrado à cintura e cobriu metade do rosto.

Os dois amigos percorreram a caverna, acabando por descobrir duas passagens. A da direita parecia fechada só com escombros e terra solta, ao passo que a outra estava murada com um trabalho de alvenaria. Optaram pela mais simples e começaram a retirar as pedras e a terra da primeira. Enquanto tiravam as pedras, a pestilência aumentava e amiúde tinham de pôr a cabeça de fora, pelo orifício da entrada, para respirarem um pouco de ar puro, que lhes chegava limpo e são como um jorro de água fresca.

‑ O que procuramos exactamente? ‑ perguntou Irene quando sentiu arder as mãos esfoladas.

‑ Não sei ‑ respondeu Francisco, e continuaram a trabalhar em silêncio, porque a vibração das vozes fazia balançar os andaimes apodrecidos.

A apreensão apoderou‑se de ambos. Fitavam por cima do ombro o espaço negro sobre as suas costas, imaginavam olhos que os observavam, sombras movediças, sussurros provenientes das profundezas. Ouviam ranger as velhas madeiras e sentiam entre os pés as corridas furtivas dos ratos. O ar era denso e pesado.

Irene agarrou numa rocha e puxou‑a com todas as suas forças para que ela se desprendesse. Forcejou um pouco, conseguiu arrancá‑la e colocou‑a a seus pés, aparecendo uma brecha escura junto à luz da lanterna. Sem pensar, pôs a mão para tactear o interior, e nesse instante um grito terrível brotou das suas entranhas e sacudiu a abóbada, ressoando contra as paredes num eco surdo e estranho que não reconheceu como a sua própria voz. Abraçou‑se a Francisco, que a protegeu, levando‑a para um canto contra a parede, no momento em que uma viga se soltava do tecto, caindo com estrépito. Permaneceram abraçados, com os olhos fechados, quase sem respirar por um tempo eterno, e, quando por fim voltou o silêncio e desapareceu o pó levantado pelo desmoronamento, puderam recuperar a lanterna e verificar que a entrada estava livre. Sem largar Irene, Francisco dirigiu a luz para o local onde tinha removido a rocha e então surgiu o primeiro achado dessa cova repleta de horrores. Era uma mão humana, ou melhor, o que restava dela.


Arrastou Irene para fora da mina e apertou‑a contra o seu peito, obrigando‑a a respirar fundo o ar puro da noite. Quando a sentiu mais tranquila, trouxe o termo e serviu‑lhe café. Estava transtornada, muda, trémula, incapaz de segurar a chávena. Francisco deu‑lhe de beber como a um doente, acariciou‑lhe o cabelo, tentou acalmá‑la, explicando que tinham encontrado o que procuravam. Certamente tratava‑se de Evangelina Ranquileo e, se bem que fosse macabro, não continha nenhuma ameaça: tratava‑se apenas de um cadáver. Embora as palavras carecessem de significado para ela, demasiado impressionada para reconhecer nelas o seu próprio idioma, a cadência da voz acalmou‑a, consolando‑a um pouco. Muito depois, quando ficou mais calma, Francisco decidiu acabar o trabalho.

‑        Espera‑me aqui. Volto à mina por alguns minutos, podes ficar sozinha?

A jovem concordou em silêncio e, encolhendo as pernas como uma criança, afundou o rosto entre os joelhos, procurando não pensar, não ouvir, não ver, nem sequer respirar, presa da maior angústia, enquanto ele regressava à sepultura, levando a máquina fotográfica e o lenço amarrado no rosto.

Francisco conseguiu tirar pedras e remover a terra, até descobrir o corpo completo de Evangelina Ranquileo Sánchez. Reconheceu‑a pelo tom claro do cabelo. Um poncho tapava‑lhe as pernas, estava descalça e vestia qualquer coisa que parecia ser uma combinação ou uma camisa de dormir. Encontrava‑se em tal estado de deterioração, transformada numa massa podre de que os vermes se nutriam, fermentando na sua própria desolação, que Francisco teve de fazer um esforço terrível para controlar as náuseas e seguir adiante. Não era homem que se descontrolasse com facilidade: tinha realizado experiências profissionais com cadáveres e conseguia dominar o estômago, mas até então nunca tinha estado perante um tal espectáculo. A sordidez do ambiente, o cheiro pestilento e o temor acumulado contribuíam para que ele perdesse a serenidade. Não conseguia respirar. A toda a velocidade, tirou várias fotografias sem se preocupar com o enquadramento nem medir a distância, apressado porque, a cada flash de luz branca, a náusea se lhe atravessava na garganta. Tirou as fotografias o mais rápido possível e tratou de fugir do sepulcro. Finalmente ao ar livre, soltou a máquina e a lanterna e deixou‑se cair por terra de joelhos, com a cabeça baixa, procurando descontrair‑se e controlar as convulsões do estômago. Tinha o cheiro colado à pele como uma peste e gravada na sua retina a imagem de Evangelina desfazendo‑se de podre, numa última aflição. Irene teve de ajudá‑lo a levantar‑se.

‑        Que fazemos agora?

‑        Fechamos a mina, e depois veremos ‑ decidiu ele mal conseguiu libertar a voz da garra ardente que lhe oprimia o peito.

Amontoaram as mesmas pedras na abertura, trabalhando depressa, aturdidos e nervosos, como se ao fechá‑la pudessem apagar o seu conteúdo e retroceder no tempo até ao momento em que ainda ignoravam a verdade e podiam permanecer ingénuos ao lado luminoso da realidade, longe daquele achado. Francisco deu a mão a Irene e conduziu‑a para a cabana, único refúgio visível na colina.

 


A noite estava agradável. Na luz pura do luar esfumava‑se a paisagem, perdiam‑se os perfis dos montes e dos grandes eucaliptos envoltos na sombra. A cabana erguia‑se sobre a colina, com contornos pouco nítidos na suave penumbra, brotando da terra como um fruto. Em comparação com a mina, o interior da cabana pareceu aos dois jovens tão acolhedor como um ninho. Deitaram‑se a um canto, sobre a erva agreste, fitando o céu estrelado, em cuja abóbada infinita brilhava uma lua de leite. Irene deixou cair a cabeça sobre o ombro de Francisco e chorou toda a sua angústia. Ele rodeou‑a com um braço e assim ficaram muito tempo, talvez horas, buscando na quietude e no silêncio algum alívio depois do que tinham descoberto, forças para o que teriam de suportar. Descansaram juntos, escutando o rumor brando das folhas dos arbustos movidas pela brisa, o grito próximo das aves nocturnas e o secreto movimento das lebres nos pastos.

A pouco e pouco, foi‑se afrouxando o nó que oprimia o espírito de Francisco. Percebeu a beleza do céu, a suavidade da terra, o cheiro intenso do campo, o contacto de Irene contra o seu corpo. Adivinhou‑lhe os contornos e apercebeu‑se do peso da sua cabeça no seu braço, da curva do seu quadril contra o seu, dos cabelos acariciando‑lhe o peito, da impalpável delicadeza da sua blusa de seda, tão fina como a textura da sua pele. Lembrou‑se do dia em que a tinha conhecido, quando o seu sorriso o deslumbrou. Amava‑a desde então, e todas as loucuras que o conduziram àquela caverna eram só pretextos para chegar finalmente ao instante precioso em que a teria só para ele, próxima, abandonada, vulnerável. Sentiu o desejo crescer como uma onda imparável, poderosa. O ar prendeu‑se‑lhe no peito e o seu coração lançou‑se num frenético galope. Esqueceu o noivo tenaz, Beatriz Alcântara, o incerto destino e todos os obstáculos que existiam entre os dois. Irene seria sua porque assim estava escrito desde o começo do mundo.

Ela notou a mudança na sua respiração, ergueu o rosto e fitou‑o. à ténue claridade da lua cada um adivinhou o amor nos olhos do outro. A morna proximidade de Irene envolveu Francisco como um manto misericordioso. Fechou as pálpebras e atraiu‑a a si, procurando os seus lábios, abrindo‑os num beijo absoluto, carregado de promessas, síntese de todas as esperanças, longo, húmido, cálido beijo, desafio à morte, carícia, fogo, suspiro, lamento, soluço de amor. Percorreu a sua boca, bebeu‑lhe a saliva, respirou a sua respiração, disposto a prolongar aquele momento até ao fim dos seus dias, sacudido pelo furacão dos sentidos, certo de até então ter existido apenas para viver aquela noite maravilhosa, na qual se afogaria para sempre na mais profunda intimidade dessa mulher. Irene mel e sombra, Irene papel‑de‑arroz, pêssego, espuma, ai, Irene, a espiral das tuas orelhas, o odor do teu colo, as pombas das tuas mãos, Irene, sentir este amor, esta paixão que nos queima na mesma fogueira, sonhando‑te acordado, desejando‑te dormindo, vida minha, minha mulher, minha Irene. Não soube quanto mais lhe disse nem o que ela sussurrou nesse murmúrio sem fim, nessa torrente de palavras ao ouvido, nesse rio de gemidos e arrebatamento de quem faz amor amando.


Numa centelha de entendimento, ele compreendeu que não devia ceder ao impulso de rolar com ela sobre a terra, tirando‑lhe a roupa com violência, despedaçando a que a cobria, na urgência do delírio. Temia que a noite fosse muito curta, e também a vida, para esgotar aquele vendaval. Com lentidão e um certo embaraço, porque as mãos lhe tremiam, abriu um por um os botões da blusa e descobriu o côncavo quente das suas axilas, a curva dos ombros, os seios pequenos e a nudez dos mamilos, tal como os tinha imaginado ao senti‑los contra as costas quando viajavam de moto, ao vê‑la inclinada sobre a mesa de paginação, ao estreitá‑la no abraço de um beijo inolvidável. Na concavidade das suas mãos aninharam‑se por fim duas andorinhas tímidas e secretas, nascidas à medida das suas mãos, e a pele da jovem, azul de lua, estremeceu. Levantou‑a pela cintura, ela de pé e ele ajoelhado, procurou‑lhe o calor oculto dos seios, fragrância de madeira, amêndoa e canela; desatou‑lhe as tiras das sandálias e viu os seus pés de menina, que acariciou, reconhecendo‑os, porque os tinha sonhado inocentes e leves. Abriu‑lhe o fecho das calças e baixou‑as, pondo a nu o puro caminho do seu ventre, a sombra do umbigo, a longa linha das costas, que percorreu com dedos incendiados, as coxas firmes cobertas de uma intangível penugem dourada. Viu‑a nua contra o infinito e com os lábios traçou caminhos, cavou túneis, subiu colinas, andou por vales, e assim desenhou mapas necessários à sua geografia. Ela ajoelhou‑se também e ao mover a cabeça balançaram as escuras mechas sobre os seus ombros, confundindo‑se na cor da noite. Quando Francisco se despiu foram como o primeiro homem e a primeira mulher antes do segredo original. Não havia espaço para outros, a fealdade do mundo ou a iminência do fim estavam muito longe, só existia a luz daquele encontro.

Irene nunca amara assim ninguém, ignorava aquela entrega sem barreiras, temores ou reservas, não se lembrava de ter sentido tanto prazer, comunicação profunda, reciprocidade. Maravilhada, descobria a forma nova e surpreendente do corpo do amigo, o seu calor, o sabor, o aroma, explorava‑o conquistando‑o palmo a palmo, semeando‑o de carícias acabadas de inventar. Nunca vivera com tanta alegria a festa dos sentidos, eu dou‑me a ti, possui‑me, recebe‑me, porque assim, do mesmo modo, tu dás‑me a mim, eu possuo‑te, eu recebo‑te. Ocultou o rosto no peito dele, aspirando o calor da sua pele, mas ele afastou‑a brandamente, para poder fitá‑la. O espelho negro e brilhante dos olhos dela devolveu a sua própria imagem, embelezada pelo amor retribuído. Passo a passo, percorreram os caminhos de um rito imorredouro. Ela acolheu‑o e ele abandonou‑se, descendo às águas dos seus mais privados jardins, antecipando‑se cada um ao ritmo do outro, avançando para o mesmo fim. Francisco sorriu de absoluta felicidade, porque tinha encontrado a mulher perseguida nas suas fantasias desde a adolescência e buscada em cada corpo ao longo de muitos anos: a amiga, a irmã, a amante, a companheira. Longamente, sem pressa, na paz da noite, habitou nela, detendo‑se no limiar de cada sensação, saudando o prazer, possuindo ao mesmo tempo que se entregava. Muito depois, quando sentiu vibrar o corpo de Irene como um delicado instrumento e um fundo suspiro saiu da boca dela para alimentar a sua, uma formidável represa explodiu‑lhe no ventre e a força dessa torrente sacudiu‑o, inundando Irene de águas felizes.

Permaneceram intimamente unidos num repouso tranquilo, descobrindo a plenitude do amor, respirando e palpitando em uníssono, até que a intimidade renovou o desejo. Ela sentiu‑o crescer de novo dentro de si e procurou‑lhe os lábios num beijo interminável. Com o céu por testemunha, arranhados pelas pedras, cobertos de pó e folhas secas amassadas na desordem do amor, movidos por uma febre inesgotável, por uma desmedida paixão, brincaram sob a lua, até que a alma os deixou em suspiros e suores e morreram, por último, abraçados, com os lábios colados, sonhando o mesmo sonho. Tinham iniciado uma inexorável viagem.

Despertaram com as primeiras luzes da manhã e o alvoroço dos pardais, deslumbrados com o encontro dos corpos e a cumplicidade dos espíritos. Então lembraram‑se do cadáver da mina e recuperaram o sentido da realidade. Com a coragem do amor compartilhado, mas ainda trémulos e assombrados, vestiram‑se, subiram para a motocicleta e dirigiram‑se para a casa dos Ranquileo.

 


Inclinada sobre o tanque de madeira, a mulher lavava a roupa, esfregando‑a com uma escova. Com os pés largos firmemente plantados sobre uma tábua para não pisar o barro, as mãos pesadas trabalhando com energia, esfregava, torcia e depois colocava os trapos num balde, onde se amontoavam para depois serem enxaguados na água corrente do açude. Encontrava‑se só, porque a essa hora os meninos estavam na escola. O Verão insinuava‑se nos frutos maduros, na exaltação das flores, no calor das sestas e nas borboletas brancas voando em todas as direcções como lenços arrastados pela brisa. Bandos de pássaros invadiam os campos, unindo os seus trinados ao rumor contínuo das abelhas e dos moscardos. De nada disso Digna se apercebia, com os braços mergulhados no tanque, alheia a tudo menos ao seu duro labor. O barulho da moto e o coro dos cães despertaram‑lhe a atenção. Ergueu os olhos. Viu a jornalista e o seu inseparável companheiro, o da máquina fotográfica, avançarem pelo pátio, ignorando os latidos. Secou as mãos ao avental e foi ao encontro deles sem sorrir, porque muito antes de olhá‑los nos olhos adivinhara as más notícias. Irene Beltrán apertou‑a num abraço tímido, única forma de condolência que lhe ocorreu. A mãe entendeu imediatamente. Não houve lágrimas nos seus olhos, acostumados a tão variadas dores. Contraiu a boca num gesto desolado e um suspiro rouco escapou‑lhe do peito antes que pudesse impedi‑lo. Tossiu para ocultar essa debilidade e, afastando uma mecha de cabelo da testa, indicou aos jovens que a seguissem para dentro da casa. Sentaram‑se os três em volta da mesa e durante alguns minutos ficaram em silêncio, até que Irene reuniu as palavras para lhe contar o sucedido.

‑        Creio que a encontramos... ‑ murmurou.

E contou‑lhe o que tinham visto na mina, sem referir os pormenores mais chocantes e deixando no ar a dúvida de que esses restos poderiam ser de outra pessoa. Mas Digna excluiu essa esperança, porque há muitos dias que aguardava as provas da morte da filha. Sabia‑o pelo pesar que lhe tragava o coração desde a noite em que a tinham levado e pelo conhecimento que acumulara em tantos anos de ditadura.

‑        Nunca devolvem os que levam ‑ disse.

‑        Isto não tem nada a ver com a política, é um crime comum - respondeu Francisco.

‑        É a mesma coisa. Foi o tenente Ramirez quem a matou e ele é dono da lei. Que posso eu fazer?

Também Irene e Francisco suspeitavam do oficial. Pensavam que tinha detido Evangelina para se vingar de alguma maneira da humilhação por que tinha passado perante os olhos de tantas testemunhas. Talvez pretendesse retê‑la só alguns dias, mas não se deu conta da fragilidade da prisioneira e excedeu‑se no castigo. Quando viu os prejuízos, mudou de ideias e decidiu esconder o corpo na mina e falsificar o Livro da Guarda para se proteger de qualquer investigação. Mas isso eram só conjecturas. Havia um longo caminho a percorrer até ao fundo daquele segredo. Enquanto os jovens se lavavam no açude, Digna Ranquileo preparou‑lhes uma refeição. Ocupada nos gestos rituais de avivar o fogo, ferver a água e dispor pratos e copos, sufocava a tristeza. Sentia um grande pudor perante as suas próprias emoções.

Quando sentiram o cheiro do pão quente, Irene e Francisco compreenderam o apetite que tinham, porque já não comiam desde o dia anterior. Saborearam a comida devagar. Olhavam‑se para se reconhecerem, sorriam lembrando a festa que tinham vivido, tocavam‑se as mãos em mútua promessa. Apesar da tragédia que os envolvia, tinha‑se instalado neles uma paz egoísta, como se tivessem finalmente encaixado as peças do puzzle das suas vidas e pudessem por fim vislumbrar os seus destinos. Acreditavam estar a salvo de todo o mal, amparados pelo encanto daquele novo amor.

‑        É preciso avisar Pradelio para que não continue à procura da irmã ‑ sugeriu Digna.

‑        Eu vou à montanha. Espera‑me aqui, descansa um pouco e faz companhia à dona Digna ‑ decidiu Francisco.


Depois de comer, deu um beijo a Irene e partiu na motocicleta. Lembrava‑se do caminho e chegou sem dificuldade ao local onde tinham deixado os cavalos, quando foram com Jacinto pela prineira vez. Deixou aí a moto, entre as árvores, e começou a subir a pé. Confiava no seu sentido de orientação para encontrar o refúgio sem muitos desvios, mas logo se deu conta de que não seria assim tão fácil, porque nesses dias o aspecto da paisagem tinha mudado. Os primeiros calores do Verão fustigavam as encostas dos montes, queimando a vegetação e antecipando a sede da terra. As cores tornavam‑se pálidas, descoradas. Francisco não reconheceu os pontos de referência que guardara na memória e deixou‑se guiar pelo instinto. A meio do caminho, parou angustiado, certo de ter perdido o runio, porque lhe parecia já ter passado mais de uma vez pelo mesmo lugar. Se não fosse por estar a subir, teria jurado que girava em círculos. Estava esgotado pela tensão acumulada nos últimos dias e pela noite anterior na mina. Evitava, sempre que possível, pôr á prova os nervos com acções impulsivas. No seu trabalho clandestino tinha de escolher perigos e correr riscos, mas preferia fazer planos meticulosos e limitar‑se a eles. Não lhe agradavam os sobressaltos. No entanto, sentia que já era inútil fazer cálculos, porque a sua vida estava a transformar‑se num caos. Estava acostumado a sentir a violência suspensa no ar como um gás sub‑reptício que, com a nais leve faísca, podia explodir num interminável incêndio, mas, como tantos outros na mesma situação, não pensava nisso. Procurava organizar a sua vida dentro de uma certa normalidade. Mas ali, na solidão da montanha, compreendeu que tinha passado uma fronteira invisível e abordara uma nova e terrível dimensão.

Cerca do meio‑dia, o calor tornou‑se abrasador. Não havia nenhuma vegetação que oferecesse protecção. Aproveitou uma saliência nas rochas e encostou‑se um pouco, procurando normalizar o ritmo do seu coração. Caralho, seria melhor voltar antes que caísse para ali extenuado. Enxugou o suor do rosto e continuou a subida, cada vez com mais lentidão e maiores pausas. Por fim, viu um fio de água insignificante que descia turvo entre as pedras e lançou um suspiro de alívio, porque estava certo de que o rasto da nascente o levaria até ao refúgio de Pradelio Ranquileo. Molhou a cabeça, sentindo o ardor do sol na pele. Subiu os últimos metros, encontrou a nascente do arroio e procurou a gruta entre os matagais, chamando Pradelio aos gritos. Ninguém respondeu. O lugar estava seco, a terra gretada e os arbustos cobertos de um pó que dava a toda a paisagem uma cor de argila velha. Afastando alguns ramos, encontrou a abertura da gruta e não precisou de entrar para saber que estava deserta. Percorreu as cercanias sem encontrar vestígios do fugitivo e imaginou que devia ter partido há vários dias, porque não havia restos de comida nem marcas no chão varrido pelo vento. Dentro da gruta encontrou latas vazias e alguns livros de cowboys com as páginas amareladas e ensebadas, únicos indícios de que ali tinha estado alguém. Tudo quanto o irmão de Evangelina tinha deixado encontrava‑se em cuidadosa ordem, como seria de esperar de uma pessoa habituada à disciplina militar. Reviu aqueles pobres pertences, à procura de algum sinal, de alguma mensagem. Não havia indícios de violência e deduziu que os soldados não o tinham encontrado; sem dúvida Pradelio tinha conseguido ir‑se embora a tempo, talvez tivesse descido ao vale e procurado afastar‑se da zona ou então ter‑se‑ia aventurado através da cordilheira com o objectivo de alcançar a fronteira.


Francisco Leal sentou‑se na gruta e folheou os livros. Eram edições populares de bolso, com ilustrações incipientes, compradas a vendedores de livros usados ou em bancas de revistas. Sorriu perante o alimento intelectual de Pradelio Ranquileo: o Cavaleiro Solitário, Hopalong Cassidy e outros heróis do Oeste norte‑americano, defensores míticos da justiça, protectores dos oprimidos contra os opressores. Recordou a conversa que tinham tido durante o encontro anterior, o orgulho desse homem pela arma que levava à cintura. O revólver, as correias, as botas eram os mesmos dos heróis daquelas historietas, os elementos mágicos que podem converter um tipo insignificante no senhor da vida e da morte, que podem dar‑lhe um lugar neste mundo. Tão importantes eram para ti, Pradelio, que, quando tos tiraram, só a certeza da tua inocência e a esperança de os recuperar te permitiram continuar vivendo. Eles fizeram‑te acreditar que tinhas poder, martelaram‑te o cérebro com o barulho de altifalantes no quartel, deram‑te ordens em nome da pátria, e assim te puseram nas mãos a tua dose de culpa, para que não possas lavar as mãos e permaneças para sempre atado pelos laços do sangue, pobre Ranquileo.


Sentado na gruta, Francisco Leal recordou a sua própria emoção da única vez que pegou numa arma. Tivera uma adolescência sem grandes problemas, mais interessado pela leitura do que pela militância política, o que era uma reacção contra a impressora clandestina e os inflamados discursos libertários do pai. No entanto, ao terminar o liceu, um grupúsculo extremista tinha‑o recrutado, atraindo‑o com o sonho de uma revolução. Muitas vezes retrocedeu na memória para se interrogar sobre o fascínio da violência, essa vertigem irresistível para a guerra e a morte. Com a idade de dezasseis anos partiu para o Sul com uns guerrilheiros novatos para se treinar para uma insurreição incerta e para uma Grande Marcha sem rumo definido. Sete ou oito rapazes, mais precisados de ama do que de espingarda, formavam aquela esquálida tropa, sob o comando de um chefe três anos mais velho, o único que sabia as regras do jogo. Francisco não se sentia imbuido do desejo de aplicar as teorias de Mão na América Latina, porque nem sequer se dera ao trabalho de lê‑las, mas sim de uma simples e vulgar ânsia de aventura. Queria afastar‑se da tutela dos pais. Disposto a provar que já era um homem, abandonou certa noite a casa sem dizer adeus, levando na mochila uma faca de explorador, um par de meias de lã e um caderno para escrever versos. A família procurou‑o até na polícia e quando por fim conseguiu encontrar‑lhe o rasto não pôde consolar‑se com semelhante desgraça. O professor Leal fechou a boca e caiu em forte melancolia, ferido na alma pela ingratidão daquele filho que partira sem explicações. A mãe vestiu o hábito da Virgem de Lourdes, pedindo ao Céu a devolução do seu preferido. Para ela, que cuidava do seu aspecto e se submetia à moda para subir ou descer as saias, acrescentar pinças ou tirar pregas, aquilo deve ter significado um sacrifício enorme. O professor, que a princípio se dispôs a pôr em prática a sua experiência pedagógica e a esperar, sereno, o regresso espontâneo de Francisco, ao vê‑la com a túnica branca e o cordão celeste de Lourdes, perdeu a paciência. Num impulso incontrolável, arrancou a túnica e o cordão do corpo da mulher, vociferando contra a barbárie e ameaçando ir‑se embora de casa, do país e da América se ela voltasse a apresentar‑se com aquele vestuário ridículo. Depois, esqueceu os pruridos, reuniu toda a sua fúria e partiu em busca do filho perdido. Durante dias percorreu os atalhos dos jumentos, indagando junto de cada sombra com que se cruzava, e à medida que avançava de aldeia em aldeia, de montanha em montanha, acumulava iras e fazia planos para dar ao rapaz a única tareia da sua vida. Por fim, alguém sugeriu que nos bosques se ouviam de vez em quando tiros de espingarda e que costumavam aparecer por ali alguns jovens sujos a mendigar comida e a roubar galinhas, mas na verdade ninguém pensava que se tratasse do primeiro esboço de um projecto revolucionário para todo o continente, mas somente uma seita religiosa herege de vaga inspiração hindu, como outras já vistas nessas paragens. Tais descrições bastaram ao professor Leal para encontrar o acampamento dos guerrilheiros. Ao vê‑los cobertos de farrapos, sujos e cabeludos, comendo feijão em lata e sardinhas salgadas, treinando com uma espingarda da Primeira Guerra Mundial, picados das vespas e outros insectos da montanha, passou‑lhe de repente toda a raiva e invadiu‑o a compaixão sempre presente no seu espírito. Uma disciplinada militância política levava‑o a considerar a violência e o terrorismo como um erro estratégico, sobretudo num país em que se podia alcançar a mudança social por outros meios. Estava convencido de que os grupelhos armados não tinham a menor oportunidade de sucesso. Aqueles jovens apenas conseguiriam a intervenção do exército regular para os massacrar. A revolução, dizia, deve provir do povo que desperta, toma consciência dos seus direitos e da sua força, que assume a liberdade e se põe em marcha, mas nunca de sete meninos burgueses brincando às guerras.

Francisco estava de cócoras junto a uma pequena fogueira aquecendo água, quando viu aparecer entre as árvores uma figura irreconhecível. Era um velho com um fato preto e gravata, coberto de pó e espinhos, com uma barba de três dias e o cabelo em desalinho, com uma pequena mala preta numa mão e na outra um galho seco para se apoiar. O rapaz ergueu‑se surpreendido, à sua volta os seus companheiros imitaram‑no. Então deu‑se conta de quem era. Lembrava‑se do pai como um homenzarrão impressionante, com olhos apaixonados e vozeirão de orador, mas de modo algum como o ser gasto e triste que avançava coxeando, as costas encurvadas, os sapatos cheios de terra.

‑        Pai! ‑ chegou a dizer antes que um soluço lhe cortasse a voz.

O professor Leal, deixando cair o rústico bastão e a mala, abriu‑lhe os braços. O filho pulou por cima da fogueira, passou correndo diante dos estupefactos camaradas e abraçou‑se ao pai, verificando então que já não podia refugiar‑se no seu peito, porque media meia cabeça mais e era muito mais forte.

- A tua mãe está à tua espera.

‑        Eu vou.

Enquanto o rapaz procurava as suas coisas, o professor aproveitou a ocasião para dirigir um discurso aos outros, argumentando que se queriam uma revolução deviam proceder de acordo com certas normas e nunca de forma improvisada.

‑        Não improvisamos, somos da linha chinesa ‑ disse um.

‑        Estão loucos. O que serve para os Chineses não funciona aqui ‑ respondeu o professor categoricamente.

Anos depois, aqueles mesmos jovens iriam pelas montanhas, serras e florestas distribuindo balas e palavras de ordem asiáticas em aldeolas esquecidas pela história americana. Mas disso o professor não podia suspeitar quando levou o filho do acampamento. Os rapazes viram‑nos afastar‑se abraçados e encolheram os ombros.

Durante a viagem de comboio de regresso a casa, o pai manteve‑se silencioso, observando Francisco. Ao chegarem à estação, disse‑lhe em poucas palavras o que lhe ia no coração.

‑        Espero que isto não se repita. De futuro aplico‑te uma correada por cada lágrima da tua mãe, não te parece justo?

‑        Parece, pai.

No fundo, Francisco estava satisfeito por regressar ao lar. Pouco depois, curado definitivamente da tentação guerrilheira, mergulhou nos textos de psicologia, fascinado por aquele jogo de ilusionismo, de ideias contidas dentro de outras e estas por sua vez noutras contidas, num desafio sem fim. Sentiu‑se absorvido também pela literatura e ficou seduzido com a obra dos escritores latino‑americanos, dando‑se conta de que vivia num país minúsculo, uma mancha no mapa, imerso num vasto e prodigioso continente onde o progresso chegava com séculos de atraso: terra de furacões, terra de


motos, rios extensos como mares, selvas tão fechadas que nelas não penetra a luz do sol; um solo em cujo húmus eterno se arrastam animais mitológicos e vivem seres humanos imutáveis desde a origem do mundo; uma geografia desengonçada onde se nasce com uma estrela na testa, sinal do maravilhoso, região encantada de tremendas cordilheiras onde o ar é subtil como um véu, desertos absolutos, escuros bosques e serenos vales. Continente onde se misturam todas as raças no crisol da violência: índios emplumados, viajantes de nações distantes, negros andarilhos, chineses vindos de contrabando em caixotes de maçãs, turcos equivocados, raparigas de fogo, frades, profetas e tiranos, todos lado a lado, os vivos e os fantasmas daqueles que ao longo dos séculos pisaram essa terra bendita por tantas paixões. Em todos os lugares estão os homens e as mulheres americanas, padecendo nos canaviais, tremendo de febre nas minas de estanho e prata, perdidos sob as águas, buscando pérolas e sobrevivendo, apesar de tudo, nas prisões.

Ansiando por outras vivências quando terminou o curso, Francisco decidiu aperfeiçoá‑lo com estudos no estrangeiro, o que surpreendeu um pouco os pais. No entanto, aceitaram financiá‑lo e tiveram a delicadeza de calar as suas advertências sobre a perversidade que espreita os jovens quando viajam sós. Passou alguns anos fora, ao cabo dos quais obteve um doutoramento e um aceitável domínio do inglês. Para subsistir lavava pratos num restaurante e fotografava pequenas festas nos bairros de emigrantes.

Entretanto, o seu país encontrava‑se em plena ebulição política e no ano em que regressou tinha ganho as eleições um candidato socialista. Apesar dos prognósticos pessimistas e das conspirações que o espreitavam, sentou‑se na cadeira presidencial perante o perfeito estupor da Embaixada americana. Francisco nunca tinha visto o pai tão feliz.

‑ Vês, filho? A espingarda não é necessária.

‑        Tu és anarquista, velho. O teu partido não está no Governo

‑        brincava Francisco.

‑ Isso são subtilezas! O importante é que o povo tem o poder e nunca lho poderão tirar.

Como sempre, estava na Lua. No dia do golpe militar, julgou que se tratava apenas de um grupo de conspiradores que seriam dominados rapidamente pelas Forças Armadas, leais à Constituição e à República. Muitos anos depois, continuava esperando a mesma coisa. Combatia a ditadura com métodos extravagantes. Em pleno auge da repressão, quando até de estádios e de escolas se serviram para enclausurar milhares de prisioneiros políticos, o professor Leal imprimiu algumas folhas na cozinha, subiu ao último andar do edifício dos Correios e lançou‑as para a rua. Soprava um vento favorável e a sua missão foi coroada de êxito, porque algumas folhas foram aterrar no Ministério da Defesa. O texto continha certas opiniões que lhe pareceram apropriadas ao momento histórico:

 


A educação dos militares, desde o soldado raso até às mais altas patentes, converte‑os necessariamente em inimigos da sociedade civil e do povo. Mesmo o seu uniforme, com todos esses adornos ridículos que diferenciam os regimentos e os postos, todas essas palermices infantis que ocupam uma boa parte da sua existência e os fariam parecer palhaços se não se mostrassem sempre ameaçadores, tudo isso os separa da sociedade. Esses atavios e as incontáveis cerimónias pueris, em que passam o tempo sem outro objectivo senão o de se treinarem para a matança e a destruição, seriam humilhantes para homens que ainda conservassem o sentimento da dignidade humana. Os militares não morrem de vergonha porque, através de uma sistemática perversão das ideias, transformaram aquele objectivo em motivo de vaidade. A obediência passiva é a sua maior virtude. Submetidos a uma disciplina despótica, acabam por sentir horror em relação a todos os que vivem livremente. Querem impor à força a disciplina brutal, a ordem estúpida de que eles mesmos são vítimas.

Não se pode amar o serviço militar sem detestar o povo.

Bakunin

 

Se lhe tivesse ocorrido um segundo pensamento ou consultado alguém mais experiente, o professor Leal teria percebido que era um texto demasiado extenso para ser lançado pelos ares, porque antes que alguém conseguisse ler metade já a polícia o teria prendido. Mas era tanta a sua admiração pelo pai do anarquismo que nada disse dos seus planos. A mulher e os filhos inteiraram‑se do sucedido às vinte e quatro horas, quando a imprensa, a rádio e a televisão difundiram um comunicado militar, que ele recortou para conservar no seu álbum.

 

                 COMUNICADO Número 19

  1. Ficam advertidos os cidadãos para o facto de que as Forças Armadas não tolerarão manifestações públicas de nenhum tipo.
  2. O cidadão Bakunin, signatário de um panfleto lesivo à sagrada honra das Forças Armadas, deverá apresentar‑se voluntariamente até às 16 horas e 30 minutos de hoje no Ministério da Defesa.
  3. A sua não comparência significará que se coloca à margem do disposto pela Junta Militar, com as consequências previsíveis.

 

Nesse mesmo dia, os três irmãos decidiram retirar a impressora da cozinha, para evitar que o pai caísse nas armadilhas do seu apaixonado idealismo. A partir de então procuraram dar-lhe poucos motivos de inquietação. Nenhum lhe contou as suas actividades na oposição, mas não puderam impedir que, quando levaram preso José com vários padres e freiras do Vicariato, o professor Leal se sentasse na Praça de Armas com uma carta nas mãos: Neste momento estão a torturar o meu filho. Se Javier e Francisco não chegassem a tempo para agarrá-lo pelo braço e levá-lo dali, ter-se-ia regado de gasolina e ardido como um bonzo diante dos olhos dos que se juntaram compadecidos.

Francisco entrou em contacto com grupos organizados para fazer sair fugitivos por uma fronteira e introduzir membros da oposição pela outra. Mobilizava dinheiro para ajudar os sobreviventes escondidos e para comprar alimentos e remédios, recolhia informações que enviava para o estrangeiro escondidas em sandálias de frades e perucas de bonecas. Cumpriu algumas missões impossíveis:

fotografou parte dos arquivos confidenciais da polícia política e microfilmou os bilhetes de identidade dos torcionários, crendo que algum dia esse material contribuiria para se fazer justiça. Só compartilhou esse segredo com José, que não queria ouvir nomes, endereços nem outros pormenores, porque já tinha verificado como era difícil manter silêncio perante certas pressões.


Por estarem unidos na cumplicidade de tarefas afins, Francisco pensou no irmão quando estava na gruta de Pradelio Ranquileo. Lamentou não ter solicitado a sua ajuda antes. Se o fugitivo se embrenhara na região silenciosa das montanhas, não encontrariam a sua pista; e se descera ao vale para fazer vingança e viesse a ser preso, seria impossível socorrê-lo.

Francisco sacudiu o cansaço, molhou a roupa para se refrescar e empreendeu a descida, com o calor da tarde pesando como um fardo sobre a sua cabeça, cego por instantes com os pontos multicolores que dançavam diante dos seus olhos. Por fim, chegou ao lugar onde havia deixado a moto e ali encontrou Irene, que o aguardava. A sua amiga, demasiado impaciente para o esperar em casa dos Ranquileo, interceptou'o primeiro carro de hortaliças que viu passar e pediu que a levassem. Abraçaram-se ansiosos. Irene conduziu-o até à sombra benéfica das árvores, onde tinha preparado o chão, retirando os gravetos. Ajudou-o a encostar-se e, enquanto ele descansava, procurando dominar o tremor das pernas, ela limpou-lhe o suor com um lenço, partiu um melão, presente de Digna, e deu-lhe de comer, cortando com os dentes os pedaços e colocando-lhos na boca com um beijo. A fruta estava morna e demasiado doce, mas a ele pareceu-lhe que cada bocado era um remédio excelente, capaz de anular a fadiga e combater o desalento. Quando do melão sobravam apenas as cascas mordidas, Irene molhou o lenço numa poça e limparam-se. Sob o sol impiedoso das três horas renovaram as promessas sussurradas na noite anterior, acariciando-se com uma sabedoria recente.

Apesar da felicidade desse amor tão jovem, Irene não conseguia apagar a visão da mina.

-        Como é que Pradelio soube onde estava o corpo da irmã? - interrogava-se.

Na realidade, Francisco não tinha pensado nisso nem lhe pareceu o momento adequado para fazê-lo. Sentia-se extenuado e o seu único desejo era dormir alguns minutos para afastar o aturdimento, mas ela não lhe deu tempo. Sentada, com as pernas cruzadas como um faquir, falava depressa, saltando de uma ideia para outra, como sempre fazia. Precisamente nesse detalhe, acreditava ela, encontrava-se a chave de alguns mistérios fundamentais. Enquanto Francisco reunia forças e tentava desanuviar a mente, ela navegava pelo tema, levantando dúvidas e buscando respostas, até concluir enfaticamente que Pradelio Ranquileo conhecia a mina de Los Riscos porque já lá tinha estado antes com o tenente Juan de Dios Ramirez. Deviam utilizá-la para esconder qualquer coisa. O soldado sabia que era um lugar seguro e imaginava que o seu superior voltaria a usá-lo em caso de necessidade.

-        Não entendo nada - disse Francisco com o olhar de um sonámbulo surpreendido em plena caminhada.

- É muito simples. Vamos à mina e cavamos o outro túnel. Talvez tenhamos uma surpresa.


Mais tarde, Francisco recordaria esse momento com um sorriso, porque enquanto o círculo de terror se fechava sobre eles o sentimento que o dominava era o desejo de abraçar Irene. Esquecendo os mortos que começavam a brotar do solo como ervas daninhas e o medo de serem presos ou assassinados, a sua mente deixava-se dominar pelo inesgotável desejo de fazer amor. Mais importante do que esclarecer o lance intrincado por onde avançavam às apalpadelas, parecia-lhe ser melhor procurar um lugar confortável para brincar com ela; mais poderosa que o cansaço, o calor e a sede, era a urgência de estreitá-la entre os seus braços, rodeá-la, cheirá-la, senti-la dentro da sua própria pele, possuí-la entre as árvores, ali mesmo junto à estrada, à vista de quem calhasse passar. Por sorte, Irene tinha as ideias mais lúcidas. Tens febre, disse-lhe quando ele tentou estendê-la na relva. Puxando-o pela roupa, conduziu-o até à moto e convenceu-o a partir, montando atrás, abraçada à sua cintura, soprando-lhe ordens peremptórias e palavras de intimidade ao ouvido, até que a trepidação do veículo e a luz branca do sol atenuaram os ímpetos passionais do amigo e lhe devolveram a calma habitual. E assim se dirigiram novamente à mina de Los Riscos.

Era noite quando Irene e Francisco chegaram a casa dos Leal. Hilda acabava de preparar uma tortilha de batatas e o intenso aroma do café feito no momento impregnava a cozinha. Retirada a impressora, aquela ampla divisão mostrou pela primeira vez as suas proporções reais e todos puderam apreciar a sua beleza: os velhos móveis de madeira com tampo de mármore, o frigorífico antiquado e, ao centro, a mesa de mil e uma utilidades onde se reunia a família. No Inverno constituía o lugar mais quente e aconchegado do mundo. Ali, junto à máquina de costura, ao rádio e à televisão, encontravam a luz e o calor de uma estufa a querosene, do forno e do ferro de engomar. Para Francisco não existia lugar melhor. As mais gratas recordações da sua infância tinham-se passado naquele canto, jogando, estudando, falando horas ao telefone com alguma noiva de tranças escolares, enquanto a mãe, então muito jovem e bela, se entregava aos seus afazeres cantarolando árias da Espanha distante. Cheirava sempre a ervas frescas e condimentos para temperar guisados e tomatadas.

Misturavam-se numa deliciosa harmonia ramos de alecrim, folhas de louro, dentes de alho, bolbos de cebola, com as fragrâncias mais subtis da canela, o cravo de cheiro, a baunilha, o anis e o chocolate para fazer no forno bolos e biscoitos.

Quando chegaram, Hilda estava a coar umas colheradas de autêntico café, presente de Irene Beltrán. A ocasião merecia que se tirasse do armário as pequenas chávenas de porcelana da sua colecção, todas diferentes e tão delicadas como suspiros. O aroma que vinha da cafeteira foi a primeira coisa que os jovens perceberam ao abrir a porta e foi ele que os guiou ao coração da casa.


Ao entrar, Francisco sentiu-se envolvido pelo calor do ambiente, o mesmo calor da sua infância, quando era um menino magro e frágil, vítima das brincadeiras grosseiras das outras crianças mais fortes e pouco piedosas. Operado com poucos meses de nascido devido a uma anomalia congénita numa perna, a mãe foi para ele o pilar da meninice, criando-o à sombra das suas saias, amamentando-o para além do período normal e carregando-o às costas, nos braços ou apoiado nos quadris como um apêndice do seu próprio corpo, até que os ossos do menino sararam de todo e ele pôde finalmente desenvencilhar-se sozinho. Chegava do colégio arrastando a pesada pasta da escola e antecipando a alegria do encontro com a mãe na cozinha, onde ela o aguardava com o lanche e um tranquilo sorriso de boas-vindas. Essa lembrança deixou um vestígio imorredouro no seu espírito e, ao longo da sua existência, sempre que precisava de recuperar a segurança da infância, reconstruia na memória todos os pormenores da cozinha, símbolo da presença absoluta do amor materno. Naquela noite teve a mesma sensação ao vê-la mexendo a frigideira com a tortilha e cantarolando a meia voz. O pai estava inclinado sobre os seus cadernos, corrigindo provas, iluminado pela lâmpada do tecto.

O aspecto dos recém-chegados alarmou o casal. Os jovens estavam extenuados, com a roupa amarrotada e suja, uma estranha expressão no olhar.

- O que é que vocês têm? - perguntou o professor.

- Encontrámos um túmulo clandestino. Há muitos cadáveres lá dentro - respondeu Francisco.

- Porra! - exclamou o pai, dizendo pela primeira vez um palavrão em frente da mulher.

Hilda levou o pano da cozinha à boca e abriu de pasmo os redondos olhos azuis, ignorando a asneira do marido.

-        Virgem Santíssima! - foi a única coisa que conseguiu balbuciar.

-        Creio que são vitimas da polícia - disse Irene.

-        Desaparecidos?

- Pode ser - disse Francisco, tirando da mala alguns rolos de filme e colocando-os sobre a mesa. - Tirei algumas fotografias.

Hilda persignou-se com um gesto automático. Irene desabou sobre uma cadeira, no limite da sua resistência, enquanto o professor Leal passeava a passos largos sem encontrar no seu amplo e exaltado vocabulário palavras adequadas. Tinha predisposição para a grandiloquência, mas desta feita emudecia.

Irene e Francisco contaram o ocorrido. Chegaram à mina de Los Riscos a meio da tarde, fatigados e famintos, mas dispostos a investigar a fundo, aferrados à esperança de que, uma vez resolvidos os enigmas, poderiam voltar à normalidade e amarem-se tranquilos. à plena luz do dia, o lugar nada tinha de sinistro, mas a lembrança de Evangelina obrigou-os a aproximarem-se com cautela. Francisco quis entrar só, mas Irene estava decidida a vencer a repugnância e a ajudá-lo a abrir a segunda passagem para acabarem depressa e saírem dali quanto antes. Removeram com facilidade os escombros e as pedras da entrada, rasgaram o lenço em dois pedaços, amarraram-nos aos seus rostos para se protegerem do insuportável fedor e entraram na primeira câmara. Não foi necessário acender a lanterna.

O sol entrava pela brecha, iluminando com luz difusa o corpo de Evangelina Ranquileo, que Francisco cobriu com o poncho para que Irene o não visse.


A jovem teve de se apoiar na parede para manter o equilíbrio. As pernas ficaram-lhe lassas. Tentou pensar no jardim da sua casa quando floresciam os miosótis sobre o túmulo do recém-nascido que caíra da clarabóia, ou nas frutas maduras empilhadas em grandes cestas nos dias de feira. Francisco implorou-lhe que saísse, mas ela conseguiu dominar o estômago e, tirando do chão um pedaço de ferro, atacou a fina camada de cimento que fechava o túnel. Ele seguiu-a na tarefa com a picareta. A massa de alvenaria devia ter sido feita por mãos inexperientes, porque ao menor esforço desmanchava-se em finas partículas. à pestilência juntou-se o ar rarefeito pelo pó e cimento suspensos numa nuvem densa, mas não recuaram, porque a cada martelada consolidavam a certeza de que atrás daquele obstáculo algo os esperava, uma verdade oculta desde há longo tempo. Dez minutos mais tarde desenterraram pedaços de pano e alguns ossos. Era um tórax de homem coberto com uma camisa de cor clara e um casaco azul. Enquanto a poeira assentava um pouco, acenderam a lanterna para examinar OS ossos e comprovar, sem lugar para dúvidas, a sua procedência humana. Bastou martelar um pouco mais nos escombros para rolar a seus pés um crânio com uma mecha de cabelo ainda preso na testa. Irene não pôde resistir mais e saiu da mina tropeçando, enquanto Francisco continuava cavando sem pensar, como uma máquina silenciosa. Foram surgindo novos despojos e então compreendeu que tinham encontrado um túmulo cheio de cadáveres, enterrados sabe-se lá há quanto tempo, a julgar pelo estado em que se encontravam. Os restos brotavam da terra misturados com roupas enroladas e manchadas com uma substância escura e oleosa. Antes de se retirar, Francisco tirou algumas fotografias, com toda a tranquilidade e precisão, como se se movesse em sonhos, porque já tinha passado a fronteira do seu próprio assombro. O extraordinário acabou por lhe parecer natural e encontrou uma certa lógica na situação, como se a violência tivesse estado ali à sua espera desde sempre. Aqueles mortos, surgidos da terra com as mãos descarnadas e a testa perfurada por uma bala, aguardavam-no há muito, chamando-o sem cessar, mas até então não tinha tido ouvidos para os escutar. Transtornado, surpreendeu-se falando em voz alta para lhes explicar o seu atraso, com o sentimento de ter faltado a um encontro marcado. Do lado de fora, Irene chamou-o, devolvendo-lhe o sentido da realidade. Saiu da mina arrastando a alma.

Fecharam a entrada, deixando-a aparentemente como a tinham encontrado. Durante alguns minutos descansaram aspirando o ar puro a plenos pulmões, apertando as mãos e ouvindo as pulsações desenfreadas dos seus corações. A respiração agitada e o tremor dos corpos recordavam-lhes que pelo menos eles continuavam com vida.

O sol escondeu-se atrás dos montes e o céu ganhou uma cor de petróleo. Subiram para a motocicleta e partiram rumo à cidade.

- E agora, que faremos? - perguntou o professor Leal quando terminaram o relato.


Durante muito tempo discutiram a melhor forma de enfrentar o problema, rejeitando a ideia de recorrerem à lei, pois isso seria como enfiar o pescoço num laço corrediço. Partiam do pressuposto de que Pradelio Ranquileo sabia que a irmã estava na mina, porque ele mesmo tinha utilizado aquele lugar para esconder os outros crimes. Avisar as autoridades podia significar que também Irene e Francisco desapareceriam em poucas horas e a mina de Los Riscos cobrir-se-ia com novas pás de terra. Justiça era apenas um termo esquecido, que quase já não se empregava, porque tinha contornos subversivos, como a palavra liberdade. Os militares tinham impunidade para todos os seus actos, o que ocasionava contratempos ao próprio Governo, porque cada sector das Forças Armadas dispunha de um sistema de segurança, além da polícia política, convertida em poder máximo do Estado, à margem de todo o controlo. O zelo profissional dos que se ocupavam dessas funções produzia erros lamentáveis e perda de eficiência. Acontecia frequentemente dois ou três grupos disputarem o mesmo prisioneiro para o interrogarem por motivos opostos. Chegavam mesmo a confundir os agentes infiltrados, e os membros do mesmo bando acabavam por se liquidar uns aos outros.

- Meu Deus! Como lhes sucedeu caírem nessa mina? - suspirou Hilda.

- Fizeram o que deviam. Agora é preciso ver como sairão desta enrascada - retorquiu o professor.

- A única coisa de que me lembro é denunciar o caso através da imprensa - sugeriu Irene, pensando nas poucas revistas da oposição que ainda circulavam.

- Amanhã levo as fotografias - decidiu Francisco.

- Não vais longe. Eles matam-vos aos dois na primeira esqúma - asseverou o professor Leal.

Mas todos concordaram que a ideia não era exagerada. A melhor solução consistia em gritar a notícia ao vento, fazê-la correr mundo, atiçando consciências e sacudindo até os próprios fundamentos da pátria. Então Hilda, usando o seu incontestável senso comum, lembrou-lhes que a Igreja era a única entidade de pé, todas as outras organizações tinham sido dissolvidas e varridas pela repressão. Com a sua ajuda havia uma oportunidade de fazer o impossível, de abrir a mina sem perder a vida nessa tentativa. Concordaram em deixar o segredo nas mãos do Cardeal.

Francisco conseguiu um taxi para levar Irene a casa antes do recolher, pois já não restavam à jovem forças para se firmar no assento traseiro da moto. Ele deitou-se tarde, porque teve de revelar os filmes. Dormiu mal, dando voltas desesperadas na cama, vendo nas sombras o rosto de Evangelina cercada de ossos amarelados soando como castanholas. Gritou em sonhos e despertou com Hilda ao seu lado.

- Fiz-te chá de tília, filho, bebe.

- Acho que preciso de uma coisa mais forte...

-        Cala-te e obedece, que para isso tens mãe - ordenou-lhe ela sorrindo.

Francisco sentou-se na cama, soprou a infusão e começou a bebê-la a goles lentos, enquanto ela o observava sem disfarçar.

- Porque me olhas tanto, mãe?

- Não me contaste tudo o que aconteceu ontem. Tu e Irene fizeram amor, desmente-me se podes.

- Que chata! Tens de te meter em tudo?

- Tenho direito a saber.

- E eu estou velho para te prestar contas - riu Francisco.


- Olha, quero-te prevenir que ela é uma jovem decente. Espero que tenhas boas intenções com ela, ou então não te largo. Estás a perceber? E agora acaba a tília, e se tens a consciência limpa dormirás como um santo - concluiu Hilda enquanto arrumava os cobertores.

Francisco viu-a sair, depois de deixar a porta aberta para ouvir se ele a chamasse, e sentiu a mesma ternura da infância, quando aquela mulher se sentava na sua cama para o acariciar meigamente até que adormecesse. Passaram-se muitos anos desde então, mas continuava a tratá-lo com a mesma impertinente solicitude, esquecendo-se de que ele já tinha de se barbear duas vezes ao dia, que estava já doutorado em Psicologia e que podia levantá-la do chão com um só braço. Troçava dela, mas não fazia nada para alterar aqueles irreprimíveis hábitos carinhosos. Sentia-se dono de um privilégio e esperava gozá-lo enquanto fosse possível. A relação entre ambos, iniciada no instante da gestação e fortalecida pelo reconhecimento dos mutuos defeitos e virtudes, era uma dávida preciosa que esperavam prolongar para além da morte de qualquer um dos dois. No resto da noite dormiu profundamente e ao despertar lembrava-se dos sonhos. Decidiu tomar um longo duche quente, tomou café preparado com os últimos vestígios do café importado e partiu com as fotografias no bolso para a aldeia onde vivia o irmão.

José Leal era canalizador. Quando não estava a trabalhar com o maçarico e a chave-inglesa, mantinha-se ocupado com múltiplas actividades na comunidade de pobres onde tinha escolhido viver, de acordo com a sua incurável vocação de servir o próximo. Vivia num bairro populoso e extenso, invisível da estrada, fechado por muralhas e uma ala de álamos apontando para o céu com os galhos nus, pois nem a vegetação crescia sadiamente naquele sítio. Atrás daquele discreto biombo havia ruas de pó e calor tórrido no Verão, de lodo e chuva no Inverno, moradias construídas com material de refugo, imundície, roupa estendida, lutas entre cães. Agrupados às esquinas, os homens ociosos queimavam o tempo, enquanto os meninos disputavam a sucata e as mulheres lutavam para combater a deterioração. Era um mundo de escassez e penúria, onde o único consolo seguro era a solidariedade. Aqui ninguém morre de fome, porque, ao chegar ao limite do desalento, há sempre uma mão amiga, dizia José Leal para explicar as panelas comuns nas quais um grupo de vizinhas deixava o que cada um podia dar para a sopa de todos. Os parentes viviam ao pé das famílias, porque eram mais pobres que os pobres e não possuíam sequer um tecto. Nos refeitórios dos meninos, a Igreja distribuía uma porção de comida diária aos mais pequenos. Tantos anos vendo o mesmo não tinham endurecido os sentimentos do padre perante a fila de crianças acabadas de lavar e pentear, esperando a sua vez para entrar no barracão, onde as aguardavam os pratos de alumínio colocados sobre longas mesas, enquanto os irmãos mais velhos, a quem não chegava a caridade, vadiavam esperando alguma sobra. Duas ou três mulheres encarregavam-se de cozinhar os alimentos obtidos pelos padres à custa de súplicas e ameaças espirituais. Além de servirem as rações, elas vigiavam para que as crianças comessem a sua parte, porque muitas escondiam a comida e o pão para levar para casa, onde o resto da família mais não comia que umas couves encontradas nas lixeiras do mercado e um osso fervido várias vezes para dar ao caldo um parco sabor.


José vivia numa barraca de madeira semelhante a tantas outras, embora mais ampla, porque também prestava serviços de oficina para atender aos problemas temporais e espirituais desse rebanho desolado. Francisco, tal como um advogado e um médico, ia lá muitas vezes prestar auxílio aos moradores, tentar resolver conflitos, doenças e desesperanças. Frequentemente sentiam-se inúteis, porque não havia solução para o mar de tragédias que tinham de enfrentar.

Francisco encontrou o irmão pronto para sair, vestido com calças de operário e a pesada mala de ferramentas. Depois de verificar que estavam sós, Francisco abriu a bolsa. Enquanto o padre observava as fotografias, tornando-se por instantes mais pálido, Francisco contou-lhe a história, começando por Evangelina Ranquileo e os seus ataques de santidade, que ele conhecia mais ou menos quando ajudou a procurá-la no Necrotério, e terminando no momento em que a seus pés rolaram os restos cujas imagens tinha na mão. Só omitiu o nome de Irene Beltrán, para mantê-la à margem das consequências.

José Leal escutou até ao fim e depois permaneceu muito tempo em silêncio, o olhar fixo no chão, em atitude de meditação. O irmão adivinhou que estava a tentar controlar-se. Na sua juventude qualquer forma de abuso, injustiça ou maldade provocava-lhe como que uma corrente eléctrica, cegando-o de ira. Os anos de sacerdócio e a têmpera do seu carácter tinham-lhe dado forças para dominar esses arrebatamentos e, com um metódico exercício da humildade, aceitar o mundo como uma obra imperfeita na qual Deus põe as almas à prova. Por fim ergueu o rosto. As suas faces tinham recuperado a serenidade e a voz soou-lhe tranquila.

- Vou falar com o Cardeal - disse.

 

-        Deus nos ampare nesta batalha que vamos travar - disse o Cardeal.

- Assim seja - acrescentou José Leal.


O prelado pegou uma vez mais nas fotografias com as pontas dos dedos, observando os trapos sujos, as órbitas sem olhos, as mãos decepadas. Para quem não o conhecia, o Cardeal revelava-se sempre uma surpresa. à distância, nos actos públicos, nos écrans de televisão e quando dizia missa na catedral, com os paramentos bordados em ouro e prata e a sua corte de ajudantes, parecia esbelto e elegante. Mas na realidade era um homem baixo, robusto, rústico, com pesadas mãos de camponês, que falava muito pouco e quase sempre em tom áspero, mais por timidez do que por indelicadeza. O seu temperamento silencioso era notório na presença de mulheres e em reuniões sociais, mas no exercício do seu trabalho não dava mostras disso. Tinha poucos amigos, pois a experiência tinha-lhe ensinado que no seu cargo a reserva é uma virtude indispensável. Os poucos que conseguiam penetrar no círculo da sua intimidade asseguravam que possuía um carácter afável, próprio das pessoas do campo. Provinha de uma numerosa família do interior. Da casa dos pais guardava a recordação de esplêndidos almoços, a enorme mesa onde se sentava uma dezena de irmãos, os vinhos envelhecidos, engarrafados no pátio e guardados durante anos nas adegas. Ficara-lhe para sempre o gosto pelas suculentas sopas de legumes, os pastéis de milho, os cozidos de galinha, as sopas de mariscos e sobretudo os doces caseiros. As freiras que serviam na sua residência esmeravam-se para copiar as receitas da sua mãe e para mandar para a sala de jantar os mesmos pratos da sua infância. Embora não se vangloriasse de ter ganho a amizade do bispo, José Leal conhecia-o através do seu trabalho no Vicariato, onde com frequência tinham estado em contacto, unidos pelo mesmo desejo compassivo de levar a solidariedade humana aonde o amor divino parecia ausente. Na presença dele experimentava, cada vez mais, o desconcerto do primeiro encontro, porque na sua ideia conservava a imagem de um homem de porte distinto, diferente daquele velho maciço com mais aspecto de aldeão do que de príncipe da Igreja. Sentia por ele uma grande admiração, mas procurava não a manifestar, porque o Cardeal não tolerava nenhuma forma de adulação. Muito antes que o resto do país pudesse apreciá-lo na sua verdadeira dimensão, José Leal tinha provas da coragem, da vontade e da astúcia que mais tarde demonstrou ao enfrentar a ditadura. Nem a campanha de hostilidade, nem os padres e freiras presos, nem as advertências de Roma conseguiram desviá-lo dos seus propósitos. O chefe da Igreja assumira o encargo de defender as vitimas da nova ordem, pondo a sua formidável organização ao serviço dos perseguidos. Se a situação se revelava perigosa, mudava de estratégia, aconselhado por dois mil anos de prudência e conhecimento do poder. Assim evitava um confronto aberto entre os representantes de Cristo e os do General. Por vezes dava a impressão de recuar, mas logo se percebia que era só uma manobra política de emergência. Não se desviava um palmo da sua tarefa de amparar viúvas e órfãos, socorrer presos, contar mortos e substituir a justiça pela caridade onde era necessário. Por essas e muitas outras razões, José considerou-o a única esperança para desenterrar o segredo de Los Riscos.

Nesse momento estavam no escritório do Cardeal. Sobre a pesada mesa de madeira antiga destacavam-se as fotografias banhadas pela luz que entrava em torrentes através dos vidros. Da sua cadeira, o visitante podia apreciar da janela o límpido céu de Primavera e as copas das árvores centenárias. O escritório estava decorado com móveis escuros e estantes com livros. Nas paredes nuas só havia uma cruz de arames farpados, enviada de presente pelos presos de um campo de concentração. Numa mesa com rodas estava servido o chá em grandes chávenas de louça branca, acompanhado por folhados e marmelada provenientes do convento das carmelitas. José Leal bebeu o último gole de chá e juntou as fotografias, colocando-as dentro da sua mala de canalizador. O Cardeal carregou num botão e imediatamente apareceu o seu secretário.

-        Por favor, avise hoje mesmo as pessoas desta lista - ordenou, entregando-lhe uma folha onde, com a sua bonita caligrafia, anotara uma série de nomes. O secretário saiu e o prelado voltou-se para José. - Como soube esta história, padre Leal?


-        Já lhe disse, Eminência. É um segredo de confissão - sorriu José, dando a entender que não queria falar disso.

-        Se a polícia decidir interrogá-lo, não aceitará essa resposta.

-        Correrei esse risco.

-        Espero que não seja necessário. Sei que você foi detido algumas vezes, não é assim?

-        Sim, Eminência.

-        Não deve chamar a atenção. Prefiro que para já não vá a essa mina.

-        Estou interessado nisto e gostaria de ir até ao fim, se o senhor mo permitir - respondeu José corando.

O velho olhou-o de forma inquisitiva durante alguns segundos, procurando descobrir os seus motivos mais profundos. Há anos que trabalhava com ele e considerava-o um elemento valioso dentro do Vicariato, onde era necessário gente forte, valente e de coração generoso, como aquele homem vestido de operário que segurava no colo uma mala cheia de maldade. A correcta visão do sacerdote convenceu-o de que não agia impelido pela curiosidade ou pela soberba, mas na ânsia de encontrar a verdade.

-        Tenha cuidado, padre Leal, não só pelo senhor, mas também pela posição da Igreja. Não desejamos uma guerra com o Governo, compreende?

-        Perfeitamente, Eminência.

-        Venha esta tarde à reunião que convoquei. Se Deus o permitir amanhã você abrirá essa mina.

O Cardeal levantou-se da cadeira e acompanhou o visitante até à porta, caminhando lentamente com a mão apoiada no braço musculoso desse homem que, como ele, tinha escolhido a dura missão de amar o próximo mais do que a si mesmo.

- Vá com Deus - despediu-se o velho, apertando-lhe a mão com energia, antes que José esboçasse o gesto de beijar-lhe o anel.

Ao anoitecer reuniu-se no escritório do Cardeal um grupo de pessoas escolhidas. O facto não passou despercebido aos olhos da polícia política e dos corpos de segurança do Estado, que informaram o General em pessoa, mas não se atreveram a impedi-la, devido a Instruções precisas para evitarem conflitos com a Igreja, caralho, estes padres malditos metem-se onde ninguém os manda, porque não se ocupam só da alma e nos deixam a nós o governo? Mas deixem-nos, que não seja mais alguma embrulhada, disse o General furioso, e averiguem que diabo estão eles tramando, para que apliquemos o curativo antes da ferida, antes que esses desgraçados comecem a disparar pastorais do púlpito para foder a pátria e não haja outro remédio senão dar-lhes uma lição, embora isso não me trouxesse nenhum benefício, eu sou católico, apostólico, romano e praticante. Não quero guerras com Deus.


Não souberam o que se discutiu na reunião, apesar dos microfones comprados em terras bíblicas, que, embora colocados a três quarteirões de distância, conseguiam captar até os suspiros e arfares dos casais apaixonados em quartos de hotéis longínquos; apesar de toda a gente ter os telefones sob escuta, porque os ouvidos do General queriam ouvir mesmo a mais sussurrada das intenções sussurradas na vasta prisão do território nacional; apesar dos agentes infiltrados na própria residência episcopal, disfarçados de exterminadores de baratas, distribuidores de armazéns, jardineiros e convertidos até em coxos, cegos e epilépticos, instalados à porta pedindo esmola e bênção à passagem das batinas. Os corpos de segurança esmeraram-se, mas só ficaram a saber que durante muitas horas permaneceram para lá da porta fechada as pessoas desta lista, meu General, e logo saíram do escritório para entrar na sala de jantar, onde serviram caldo de marisco, vitela assada com batatas sauté, e de sobremesa uma... Vá para o caralho, coronel, não me dê receitas de cozinha, diga-me antes de que falaram! Não fazemos a menor ideia, meu general, mas se for caso disso podemos interrogar o secretário. Não seja imbecil, coronel!

à meia-noite, as pessoas citadas despediram-se à porta da residência do Cardeal, ante o olhar atento da polícia postada descaradamente na rua. Todos sabiam que a partir daquele momento as suas vidas corriam perigo, mas ninguém vacilou, estavam habituados a caminhar à beira do abismo. Há anos que trabalhavam para a Igreja. Com excepção de José Leal, todos eram leigos e alguns tão ateus que nunca tinham tido qualquer contacto com a religião até ao golpe militar, quando se uniram no inevitável compromisso de resistir na sombra. Depois de ficar só, o Cardeal apagou as luzes e dirigiu-se para o seu quarto. Tinha mandado embora cedo o secretário e todo o pessoal de serviço, porque não lhe agradava que pernoitassem. Os anos tinham-lhe encurtado o sono e preferia recolher-se tarde, passando as vigílias no escritório, entregue ao trabalho. Percorreu a casa, verificando se as portas estavam fechadas e as janelas cerradas, porque desde a última explosão de uma bomba no seu jardim tomava algumas precauções. Rejeitou a oferta do General de colocar na residência uma equipa de

guarda-costas e recusou também a ideia de um grupo de jovens voluntários católicos para velar pela sua segurança. Estava convencido de que se vive até à hora marcada, e nem um instante a mais ou a menos. Por outro lado, dizia, os representantes da Igreja não podem sair pelo mundo em carros blindados e com coletes à prova de bala como os políticos, os chefes da Mafia e os tiranos. Se tivesse êxito qualquer dos atentados contra a sua pessoa, logo outro prelado ocuparia o seu lugar para prosseguir com a obra. Isso dava-lhe uma grande tranquilidade.

Entrou no quarto, fechou a pesada porta de madeira, tirou a roupa e vestiu o pijama. Nesse momento sentiu o cansaço e o peso da responsabilidade assumida, mas não se permitiu nenhuma dúvida. Ajoelhou-se no seu genuflexório, afundou a cabeça entre as mãos e falou com Deus tal como fazia em cada instante da sua vida, com a certeza profunda de ser ouvido e encontrar resposta para as suas interrogações. Deus ouvia-o sempre.

A voz do Criador demorava na resposta ou


manifestava-se através de tortuosos caminhos, mas nunca emudecia de todo. Durante muito tempo esteve mergulhado na oração, até que sentiu os pés gelados e a carga dos anos esmagando-lhe as costas. Lembrou-se de que já não estava em idade de exigir tanto esforço dos ossos e entrou na cama com um suspiro satisfeito, porque o Senhor tinha aprovado as suas decisões.

 

A quarta-feira amanheceu ensolarada como dia de pleno Verão. A comissão chegou a Los Riscos em três automóveis, dirigida pelo bispo auxiliar e guiados por José Leal, que tinha assinalado o caminho num mapa, de acordo com as instruções do irmão. Os jornalistas, os representantes de organismos internacionais e os advogados eram observados à distância pelos agentes do General, que desde a noite anterior não os largavam.

Irene queria ir como enviada da revista, mas Francisco impediu-a. Eles não tinham qualquer protecção, como acontecia com o resto da comitiva, cuja posição oferecia uma certa segurança. Se fossem relacionados com a descoberta dos cadáveres, não haveria esperança de saírem com vida e isso poderia acontecer-lhes; ambos estiveram presentes quando Evangelina suspendeu pelos ares o tenente Ramírez, viram-nos rondar perguntando pela jovem desaparecida e mantiveram contacto com a família Ranquileo.

Nas proximidades da mina, os carros pararam. José Leal foi o primeiro a arremeter contra os escombros da entrada, aproveitando os seus braços de urso e o seu treino em trabalhos pesados. Os outros imitaram-no, e em poucos minutos fizeram um buraco enquanto à distância os corpos de segurança comunicavam por rádio para informar que os suspeitos estavam a violar a mina fechada apesar dos avisos de advertência, esperamos instruções, meu general, câmbio e desligo. Limitem-se a observar, tal como lhes ordenei, e não intervenham, aconteça o que acontecer, não se metam com eles, câmbio e desligo.

Decidido a tomar a iniciativa, o bispo auxiliar foi o primeiro a entrar na mina. Não era ágil, mas conseguiu contorcer-se como um mangusto para introduzir as pernas e depois deslizar o resto do corpo para o interior. A pestilência bateu-lhe como uma pancada, mas apenas quando os seus olhos se acostumaram à penumbra e divisou os restos de Evangelina Ranquileo lançou a exclamação que atraiu os demais. Ajudaram-no a sair, puseram-no de pé e conduziram-no até à sombra das árvores, para que recuperasse o fôlego. Entretanto, José Leal improvisou tochas de papel de jornal enrolado, sugeriu que todos cobrissem os rostos com lenços e conduziu-os um a um à sepultura, onde, quase ajoelhados, cada um dos presentes pôde ver o corpo em decomposição da menina e o túnel de ossos entrelaçados, cabelos, farrapos. Bastava remover um pouco as pedras para que rolassem novos restos humanos. Ao saírem, ninguém se sentiu capaz de falar. Trémulos, lívidos, olhavam-se, tentando compreender a dimensão do achado. José Leal foi o único com ânimo suficiente para fechar a entrada, pensando nos cães que podiam farejar entre os ossos ou nos autores desses crimes, que, advertidos pelo buraco aberto e sabendo-se descobertos, fizessem desaparecer as provas, precaução inútil, porque a duzentos metros, dentro de um furgão, a polícia os espiava com binóculos trazidos da Europa e máquinas de raios infra-vermelhos chegadas dos Estados do Norte, o que permitiu ao coronel tomar conhecimento do conteúdo da mina quase ao mesmo tempo que o bispo auxiliar; mas as instruções do meu general são claríssimas: não se metam com os padres, esperem que dêem o próximo passo para ver a que merda se propõem, depois de tudo são tão-só alguns mortos desconhecidos.

A comissão regressou logo à cidade e, depois de jurar não fazer comentários, dispersou-se até à tarde, quando devia reunir-se de novo com o Cardeal para prestar-lhe contas da sua missão.

Nessa noite, a luz do Arcebispado permaneceu acesa até ao amanhecer, diante da confusão dos espiões empoleirados nas árvores da rua com os seus aparelhos adquiridos no Próximo Oriente para ver na escuridão através das paredes, mas ainda não sabemos a que se propõem, meu general, já começou o toque de recolher e continuam falando e tomando café, se o senhor nos ordena entramos, revistamos e prendemos toda a gente, que diz? Homens, não sejam idiotas!

Ao amanhecer, os visitantes dispersaram e o prelado despediu-se deles à porta. Só ele se considerava tranquilo, porque a sua alma estava em paz e não conhecia o medo. Deitou-se um instante e, depois do dejejum, telefonou para o presidente do Supremo Tribunal a fim de solicitar que recebesse com a maior brevidade possível três enviados seus, portadores de uma carta de grande importância. Uma hora depois, o sobrescrito estava na mão do juiz, que desejava encontrar-se noutro extremo do mundo, longe dessa bomba-relógio que inevitavelmente explodiria:

 

               Senhor Presidente do Supremo Tribunal

               Meritíssimo Juiz.

Senhor Presidente: Há dias, uma pessoa comunicou a um sacerdote, sob segredo de confissão, ter conhecimento e provas da existência de vários cadáveres que se encontravam num lugar cuja localização lhe indicou. Esse sacerdote, autorizado por quem o informava, levou o caso ao conhecimento das autoridades eclesiásticas.

Com o objectivo de verificar a informação, no dia de ontem uma comzssão integrada pelos abaixo assinados, pelos directores das revistas Acontecer e Semana, assim como funcionários do Instituto dos Direitos Humanos, deslocou-se ao lugar indicado. Trata-se de uma antiga mina, actualmente abandonada, na encosta dos montes próximos da localidade de Los Riscos.

Chegados ao lugar, depois de removermos as pedras e a terra que tapavam a boca da mina, comprovámos a existência de restos humanos que teriam pertencido a um número indeterminado de pessoas. Verificada essa circunstância, interrompemos a nossa inspecção do lugar, pois o nosso objectivo consistia somente em apreciar a seriedade da denúncia recebida e não podíamos avançar mais numa tarefa inerente à investigação judicial.

No entanto, consideramos que as características do lugar e a localização dos restos cuja existência constatámos tornam verosímil a informação sobre a eventual existência de um elevado número de vítimas.

 

O alarme público que podem provocar estas circunstâncias induziu-nos a comunicá-las à mais alta autoridade judicial do país, a fim de que o Excelentíssimo Tribunal adopte as medidas necessárias para uma rápida e exaustiva investigação.

Com a maior consideração, somos

               Álvaro Urbaneja (bispo auxiliar)

               Jesús Valdovinos (vigário episcopal)

               Eulogio García de la Rosa (advogado).

 

O juiz conhecia o Cardeal. Adivinhou que não se tratava de uma escaramuça, mas que estava disposto a travar batalha. Nesse caso, devia estar certamente com todos os ases na manga, pois era demasiado astuto para cair na asneira de lhe colocar aquele monte de OSSOS nas mãos e intimá-lo a aplicar a lei sem estar muito seguro. Não era preciso grande experiência para concluir que os autores dos crimes tinham actuado apoiados pelo sistema repressivo, e por isso a Igrej a intervinha sem confiar na Justiça. Enxugou o suor da testa e do pescoço, pegou nos comprimidos para a falta de ar e a taquicardia, temendo que tivesse chegado a sua hora da verdade depois de tantos anos a distribuir a justiça de acordo com as instruções do General, de tantos anos perdendo expedientes e enredando os advogados do Vicariato num emaranhado burocrático, de tantos anos fabricando leis com efeito retroactivo para delitos acabados de inventar; teria sido melhor retirar-me a tempo, aposentar-me quando ainda parecia possível fazê-lo com dignidade, ir cultivar as minhas rosas em paz e passar à história sem esta carga de culpas e vergonhas que não me deixam dormir e me perseguem durante o dia a cada deslize, embora não o tenha feito por ambição pessoal, mas para servir a pátria, como o General me pediu poucos dias depois de assumir o Poder; mas agora é tarde, essa maldita mina abre-se aos meus pés como o meu próprio túmulo e esses mortos não poderão ser calados como tantos outros se o Cardeal decidiu intervir; devia ter-me retirado no dia do pronunciamento militar, quando bombardearam o Palácio dos Presidentes, prenderam os ministros, dissolveram o Congresso e os olhos do mundo esperavam que alguém aparecesse para defender a Constituição; nesse mesmo dia devia ter ido para casa, alegando que estava velho e doente, devia ter feito isso em vez de me colocar às ordens da Junta de Comandantes e lançar a perseguição nos meus próprios tribunais.

O primeiro impulso do presidente do Supremo Tribunal foi chamar o Cardeal e propor-lhe um acordo, mas depressa compreendeu que o assunto ultrapassava a sua capacidade de negociação. Pegou no telefone, marcou o número secreto e falou directamente com o General.

 


Cravaram um círculo de ferro, cascos e botas em volta da mina de Los Riscos, mas isso não chegou para impedir que o boato voasse incontrolável de boca em boca, de casa em casa, de vale em vale, até que por todo o lado se soube e uma profunda comoção sacudiu a pátria. Os soldados mantiveram à distância os curiosos, tal como fizeram com os jornalistas e com os observadores das potências estrangeiras, atraidos pelo escândalo daquele massacre. Ás oito da manhã de sexta-feira, o pessoal do Departamento de Investigações, com máscaras e luvas de borracha, procedeu à retirada das terríveis provas, por ordem do Supremo Tribunal, que por sua vez a tinha recebido do General: abram a maldita mina, retirem esse monte de mortos e garantam à opinião pública que castigaremos os culpados, depois veremos, as pessoas têm memória curta. Chegaram numa camioneta com grandes sacos de plástico amarelo e uma equipa de pedreiros para remover os escombros. Anotaram tudo rigorosa e ordenadamente: um corpo humano do sexo feminino em avançado estado de decomposição, coberto com uma manta escura, um sapato, restos de cabelo, ossos de um membro inferior, uma omoplata, um úmero, vértebras, um tronco com os membros superiores, umas calças, dois crânios, um completo e outro sem mandíbula, uma peça dentária com obturações de metal, mais vértebras, restos de costelas, um tronco com pedaços de roupa, camisas e meias de diversas cores, uma crista ilíaca e várias ossaturas mais, tudo isto enchendo 38 sacos devidamente lacrados, numerados e transportados para a camioneta. Tiveram de fazer várias viagens para levá-los ao Instituto Médico. O ministro que se deslocou ao local contou por alto catorze cadáveres, a julgar pelo número de cabeças encontradas, mas não pôs de parte o temerário facto de que, cavando com mais cuidado, aparecessem outros corpos ocultos sob sucessivas camadas de tempo e terra. Alguém brincou de forma macabra com o caso, sugerindo que, se escavassem um pouco mais, surgiriam esqueletos de conquistadores, múmias de incas e fósseis de Cro-Magnon, mas ninguém se riu, porque a inquietação se tinha apoderado de todos os espíritos.

Desde cedo começaram a chegar as pessoas, aproximando-se até ao limite marcado pelas espingardas. Primeiro apareceram as viúvas e os órfãos da região, cada um com um trapo negro atado no braço esquerdo em sinal de luto. Mais tarde vieram os outros, quase todos camponeses da localidade de Los Riscos. Por volta do meio-dia chegaram os autocarros dos bairros periféricos da capital. A aflição flutuava no ar como uma antecipação de tormenta, imobilizando os pássaros no seu voo. Aguardaram muitas horas sob um sol lívido que esfumava os contornos das coisas e as cores do mundo, enquanto os sacos iam sendo carregados. à distância, tentavam reconhecer um sapato, uma camisa, uma mecha de cabelos. Os que possuíam melhor vista passavam a informação aos restantes: apareceu outro crânio, este tem cabelo branco, poderia ser o compadre Flores, lembram-se dele? Agora estão a ensacar outro corpo, mal ensacam um, já estão a retirar outro, dizem que levam os restos para o Necrotério e que aí poderemos olhá-los de perto, mas isso quanto custa? Não sei, mas com certeza temos de pagar algo, cobram dinheiro para reconhecermos os nossos próprios mortos? Não, homem, isso deve ser grátis...


Durante toda a tarde foi-se juntando gente até crescer uma multidão sobre a colina, ouvindo o som das pás e picaretas cavando a terra, o vaivém da camioneta oficial, o movimento de polícias, funcionários e advogados, os protestos dos jornalistas que não receberam autorização para entrar. Ao pôr do Sol elevou-se um coro de vozes para cantar uma canção fúnebre. Houve quem armasse uma barraca de mantas improvisada, disposto a ficar ali por tempo indeterminado, mas os guardas correram-no à coronhada antes que outros imitassem a ideia. Isso foi pouco antes de aparecer o Cardeal, que passou a barreira de soldados no carro do Arcebispado, ignorando os sinais para que parasse, desceu do veículo e dirigiu-se a passos largos para a camioneta, onde contou os sacos com olhos implacáveis, enquanto o ministro improvisava explicações. Quando partiu a última carga de sacos de plástico amarelo e a polícia ordenou que se limpasse a zona, já a noite tinha caído. As pessoas moviam-se na escuridão, iniciando o regresso. Contavam uns aos outros o seu drama particular, verificando que todas as desgraças eram semelhantes.

No dia seguinte, nas dependências do Instituto Médico, reuniram-se pessoas vindas de todas as partes do país, na esperança de identificarem os seus mortos, mas impediram-lhes a passagem até nova ordem, como indicou o General, porque uma coisa é desenterrar cadáveres e outra, muito diferente, exibi-los para que toda a gente os veja, como se isto fosse uma feira, o que é que essa cambada pensa, abafe o caso, coronel, antes que a minha paciência se esgote.

- E que fazemos com a opinião pública, os diplomatas e a imprensa, meu General?

- O costume, coronel. Na guerra não se muda de estratégia. É preciso aprender com os imperadores romanos...

Na rua do Vicariato sentaram-se centenas de pessoas empunhando os retratos dos seus entes perdidos, murmurando sem cessar: onde estão? Enquanto isso, um grupo de padres operários e freiras de calças compridas jejuava na catedral, apoiando o clamor de indignação que percorria o país. No domingo, foi lida nos púlpitos a pastoral redigida pelo Cardeal e, pela primeira vez em tão longo e sombrio tempo, as pessoas atreveram-se a virar-se para o vizinho e a chorar com ele. Juntavam-se a comentar os casos, multiplicados até perder a conta. Organizaram uma procissão para rezar pelas vítimas e antes que as autoridades se dessem conta do ocorrido uma multidão incontrolável avançou pelas ruas, transportando bandeiras e cartazes onde pediam liberdade, pão e justiça. Começou com ténues fios humanos brotando das zonas periféricas. Foram-se juntando a pouco e pouco, engrossaram fileiras, apertaram-se em compacta massa e foram cantando, a plena voz, hinos religiosos e palavras de ordem políticas, há tantos anos silenciadas que pareciam esquecidas para sempre. O povo aglomerou-se nas igrejas e nos cemitérios, únicos lugares em que até então a polícia não entrava com o seu arsenal de guerra.

Que fazemos com eles, meu general?

- O costume, coronel - respondeu ele das profundidades do bunker.


Entretanto, a televisão insistia com os seus habituais programas de variedades, concursos, sorteios e filmes de amor e comédias. Os jornais apresentavam os resultados dos jogos de futebol e o noticiário mostrava o chefe supremo da nação cortando a fita da praxe, na inauguração de uma nova agência bancária. Porém, em poucos dias, a notícia do achado da mina e as fotografias dos cadáveres circulavam já por todo o mundo, através dos telexes. As agências noticiosas apoderaram-se delas e enviaram-nas para os respectivos países de origem, onde foi impossível sufocar por mais tempo o escândalo, apesar da censura e das explicações mirabolantes das autoridades. Todos viram na televisão o engravatado locutor lendo a versão oficial: eram terroristas executados pelos seus próprios sequazes; mas ninguém duvidou que se tratava de prisioneiros políticos assassinados. O horror foi comentado entre pilhas de couves e fruta nos mercados, entre alunos e professores nas escolas, entre os operários nas fábricas e até nos fechados salões da burguesia, onde para alguns foi uma surpresa descobrir que algo andava mesmo muito mal no país. O murmúrio temeroso, que durante tantos anos se tinha escondido atrás das portas e das janelas fechadas, pela primeira vez saiu para a rua, transformado em grito, transformado em coro, e esse lamento, aumentado pelos mil e um casos novos surgidos à luz do dia, abalou todos os espíritos. Só os mais indolentes puderam, uma vez mais, ignorar os sinais e continuar impassíveis. Assim aconteceu com Beatriz Alcántara.

Na segunda-feira, à hora do café, Beatriz encontrou a filha lendo o jornal na cozinha e reparou nos seus braços cobertos de manchas.

-       Tens peste!

-        E alergia, mãe.

-        Como sabes?

-       Disse-me Francisco.

- Agora os fotógrafos fazem diagnósticos! Onde iremos nós parar?

Irene não respondeu e a mãe observou de perto as manchas, concluindo que na verdade não pareciam contagiosas e talvez aquele tipo tivesse razão: era só uma erupção provocada pela Primavera. Mais sossegada, pegou numa parte do jornal para dar uma olhadela e imediatamente deparou com o título enorme que encabeçava a primeira página: "Desaparecidos! Ah! Ah! Ah!". Bebeu o sumo de laranja um tanto surpreendida, porque mesmo para uma pessoa como ela o caso era chocante. No entanto, estava farta de ouvir por todo o lado a história de Los Riscos e aproveitou a oportunidade para a comentar com Rosa e com a filha: factos como aquele eram lógicos numa guerra como a que os patrióticos militares travavam contra o cancro marxista, em todas as batalhas existem baixas, o melhor é esquecer o passado e construir o futuro, esquecer tudo e recomeçar do zero, não falar mais de desaparecidos, dá-los simplesmente como mortos e resolver de uma vez por todas os problemas legais.

- Porque é que não fazes o mesmo com o pai? - perguntou Irene, esfregando as mãos.


Beatriz ignorou o sarcasmo. Estava a ler o artigo em voz alta: "O importante é avançar no caminho do progresso, procurando cicatrizar as feridas e superar animosidades, para o que a busca de cadáveres em nada contribui. Graças às acções empreendidas pelas Forças Armadas, foi possível programar a nova etapa que a nação está a viver. O período de emergência, felizmente superado, caracterizou-se pelo exercício de amplíssimas faculdades da autoridade estabelecida, que actuava a diversos níveis com todo o poder necessário para impor a ordem e restabelecer a convivência cívica."

- Estou totalmente de acordo - acrescentou Beatriz. - Para que serve essa ânsia de identificar os corpos da mina e procurar culpados? Isso aconteceu há vários anos, são mortos antigos.

Finalmente as pessoas gozavam de bem-estar, podiam comprar o que muito bem lhes apetecia, não como antes, quando tinham de fazer bicha até para um miserável frango, agora era fácil encontrar criadas e acabou a efervescência socialista, tão prejudicial no passado. O povo devia era trabalhar mais e falar menos de política. Tal como disse de forma brilhante o coronel Espinoza e ela repetia de cor: "Lutemos juntos por este país tão lindo, que tem um sol tão lindo, coisas tão lindas e uma liberdade tão linda."

Rosa virou-lhe as costas e foi lavar a loiça e Irene sentiu aumentar o ardor em todo o corpo.

-        Não coces, ficas com feridas e quando Gustavo chegar pareces uma leprosa.

-        Gustavo voltou ontem à noite, mãe.

-        Ah! E porque é que não me disseste nada? Quando é que se casam?

-        Nunca - respondeu Irene.

Beatriz ficou com a chávena a meio caminho entre o pires e os lábios. Conhecia a filha o suficiente para saber quando é que as suas decisões eram irrevogáveis. O brilho que Irene tinha nos olhos e o tom da sua voz levaram-na a concluir que o motivo da alergia não era um problema amoroso, mas de outra espécie. Pensou no que acontecera nos últimos dias e deduziu que algo de anormal estava a suceder na vida de Irene. Não tinha os horários habituais, desaparecia durante o dia e voltava arrasada de fadiga e com o automóvel coberto de pó, tinha abandonado as suas saias de cigana e as velharias de pitonisa para se vestir como um rapaz, comia pouco e a meio da noite acordava aos gritos; no entanto, Beatriz estava longe de relacionar esses sinais com a mina de Los Riscos. Quis averiguar mais, mas a jovem terminou de pé o café e saiu dizendo que ia fazer uma reportagem fora da cidade e não voltaria antes de anoitecer.

-        A culpa é do fotógrafo, tenho a certeza! - exclamou Beatriz quando a filha saiu.

-        Para onde o coração se inclina, o pé caminha - respondeu Rosa.

-        Comprei-lhe um enxoval de luxo e agora vem-me com aquela novidade. Tantos anos de namoro com Gustavo, para se zangarem à última hora.

-        Não há mal que não venha por bem, minha senhora.

-        E eu não te aguento, Rosa! - gritou-lhe Beatriz, batendo com a porta.


Rosa nada disse do que tinha visto na noite anterior, quando o capitão regressou depois de tantos meses de ausência e a menina Irene o recebeu como a um desconhecido, bastou-me olhar-lhe para a cara para perceber que o melhor seria dizer adeus ao vestido de noiva e aos meus planos de criar meninos ruivos de olhos azuis durante a velhice. O homem põe e Deus dispõe. Se a mulher oferece a face para que o seu noivo não a beije na boca, até um cego pode ver que já não sente amor; se o leva ao salão, senta-se o mais distante possível e fica a olhá-lo em silêncio, é porque pensa dizer-lhe ali mesmo sem rodeios, tal como teve de ouvi-lo o capitão: sinto muito, mas não caso contigo porque amo outro; assim disse ela e ele calado, coitado, até dava dó, ficou muito vermelho e tremia-lhe o queixo como uma criança prestes a chorar, vi-o pela fresta da porta entreaberta e não o fiz por curiosidade, Deus me livre, se não tenho o direito de conhecer os problemas da minha menina, como poderei ajudá-la? Não foi em vão que cuidei dela e lhe quis mais que a própria mãe. Fiquei com o coração apertado quando vi o rapaz sentado na beira do sofá com os pacotes embrulhados em papel de presente, com o cabelo acabadinho de cortar, sem saber o que fazer àquele amor que durante tanto tempo andou a juntar para dar a Irene; bom moço, parece, alto e elegante como um príncipe, bem vestido como sempre ele anda, direito como um cabo de vassoura, um verdadeiro cavalheiro, mas de pouco lhe vale a pinta de galanteador, porque a menina não repara nessas coisas e muito menos agora que está apaixonada pelo fotógrafo; camarão que dorme a corrente o leva, Gustavo não devia tê-la deixado sozinha por tantos meses. Que eu não percebo estes casais modernos, no meu tempo não havia tanta liberdade e era tudo como devia ser: a mulher calada e na sua casa. As noivas esperavam bordando lençóis e não andavam empoleiradas nas traseiras das motos de outros homens; isso devia ter alertado o capitão em vez de partir para a viagem tão tranquilo, eu percebi desde o princípio e até lhe disse: ausências dão esquecimentos; mas ninguém fez caso, olharam-me com dó, como se eu fosse uma estúpida, mas não tenho nem um cabelo de tonta, mais sabe o Diabo por ser velho do que por ser Diabo. Acho que Gustavo percebeu que estava frito, não havia nada a fazer, aquele amor estava morto e enterrado. As mãos dele suavam quando pôs os presentes sobre a mesa da sala, perguntou se aquela decisão era definitiva, ouviu a resposta e foi-se embora sem olhar para trás e sem perguntar o nome do rival, como se no fundo soubesse que não podia ser outro senão Francisco Leal. Amo outro, foi tudo o que Irene disse, e deve ter sido o suficiente, porque bastou para despedaçar um noivado que durava há não sei quantos anos. Amo outro, disse a minha menina, e os seus olhos brilharam com uma luz que nunca neles antes tinha visto.

 


Ao cabo de uma semana, a notícia de Los Riscos deu lugar a outras, varrida pela ânsia de alimentar a curiosidade do público com tragédias novas. Tal como previa o General, o escândalo começava a ser esquecido, já não ocupava a primeira página dos jornais e só aparecia nalgumas revistas da oposição de circulação restrita. Perante um tal estado de coisas, Irene decidiu procurar provas e acrescentar pormenores ao caso para manter vivo o interesse, na esperança de que o clamor popular fosse mais forte do que o medo. Revelar quem eram os assassinos e descobrir os nomes dos cadáveres converteu-se para ela numa obsessão. Sabia que um passo em falso ou um qualquer azar significariam a morte, mas estava disposta a impedir que os crimes fossem abafados pelo silêncio da censura e a cumplicidade dos juizes. Apesar da promessa feita a Francisco Leal de que se manteria na sombra, sentiu-se dominada pela sua própria exaltação.

Quando Irene telefonou ao sargento Faustino Rivera para o convidar a almoçar, sob pretexto de uma reportagem sobre acidentes nas estradas, sabia perfeitamente que riscos corria. Por isso mesmo partiu sem avisar ninguém, com a sensação de dar um passo temerário mas inelutável. A longa pausa do sargento para responder ao telefonema mostrou, de forma clara, que desconfiava que era só uma desculpa para abordar outros temas, mas também para ele os mortos da mina constituíam um pesadelo que queria compartilhar.

Combinaram o encontro a dois quarteirões da praça da aldeia, no mesmo bar onde se tinham encontrado antes. O cheiro do carvão e da carne assada invadia as ruas próximas. Na porta, encostado sob um beiral de telhas, o sargento esperava vestido à paisana. Irene teve alguma dificuldade em reconhecê-lo, mas ele lembrava-se perfeitamente dela e acenou-lhe. Vangloriava-se de ser um bom observador, acostumado a reter os mínimos detalhes, virtude indispensável na sua profissão de polícia. Reparou nas mudanças ocorridas na aparência da jovem e começou a pensar onde estariam as pulseiras escandalosas, as saias largas e a acentuada maquilhagem que tanto o chocaram quando a conheceu. A mulher que tinha à sua frente, com o cabelo preso numa trança, calças de cotim e uma enorme bolsa pendurada ao ombro, pouca ou nenhuma semelhança tinha com a outra. Sentaram-se a uma mesa discreta ao fundo do pátio, sob a sombra de densos amores-perfeitos.

Durante a sopa, que Irene nem provou, o sargento referiu algumas estatísticas sobre as vítimas dos acidentes de viação na região, sem deixar de examinar a anfitriã pelo canto dos olhos. Reparou na sua impaciência, mas não lhe deu qualquer oportunidade para desviar a conversa para o caminho desejado até estar bem certo das suas intenções. O aparecimento de um leitão dourado e encoscorado, repousando num leito de batatas sautê, com uma cenoura no focinho e ramos de salsa nas orelhas, trouxe à memória de Irene o porco cevado na casa dos Ranquileo e uma onda de náusea subiu-lhe na garganta. Os sobressaltos do seu estômago atormentavam-na desde o dia em que entrara na mina. Mal levava alguma coisa à boca, voltava a ver o corpo em decomposição, a sentir o inesquecível fedor, a estremecer com o mesmo espanto daquela noite. Agradeceu aquele momento de silêncio e procurou afastar os olhos dos bigodes manchados de banha quente e dos enormes dentes do seu convidado.

-        Suponho que está a par dos mortos da mina de Los Riscos - disse por fim, procurando uma forma directa de abordar o assunto.

-        Afirmativo, menina.

-        Dizem que um deles é Evangelina Ranquileo.


O homem bebeu mais um copo de vinho e levou à boca outro pedaço de leitão. Ela pressentiu que tinha a situação sob controlo, porque se Faustino Rivera não tivesse intenção de falar teria recusado a entrevista. O facto de estar ali era prova suficiente do seu interesse em colaborar. Deu-lhe tempo para mastigar alguns bocados e em seguida pôs em acção os seus truques de jornalista e a sua sedução natural, para obrigá-lo a soltar a língua.

-        Alguém tem de foder os revoltosos, perdoe-me a menina esta maneira de falar. Essa missão cabe-nos a nós e é uma grande honra cumpri-la. Os civis revoltam-se por dá cá aquela palha, temos de desconfiar deles e aplicar-lhes mão pesada, como disse o meu tenente Ramírez. Mas não se trata de matar sem legalidade, porque isso seria uma carnificina.

-        E não foi, sargento?

Não, ele não concorda, são calúnias dos traidores da pátria, infâmias dos soviéticos para desprestigiar o Governo do meu general, é o cúmulo prestar atenção a esses boatos; uns quantos cadáveres encontrados no fundo de uma mina não significa que todos os militares sejam assassinos; ele não nega a existência de alguns fanáticos, mas não é justo atribuir a culpa a todos e, além disso, é melhor haver alguns abusos do que as Forças Armadas voltarem aos quartéis, abandonando o país nas mãos dos políticos.

-        Sabe o que aconteceria se o meu general caísse, que Deus não o permita? Os marxistas levantavam-se e passavam à faca todos os soldados mais as mulheres e os filhos. Eles marcaram-nos. Matavam-nos a todos. Esta é a paga por cumprirmos o nosso dever.

Irene ouvia-o em silêncio, mas em pouco tempo a sua paciência esgotou-se e decidiu encurralá-lo de uma vez por todas.

-        Ouça, sargento, deixe-se de rodeios. Porque não me diz o que tem na ideia?

Então o homem, como se estivesse esperando por esse sinal, pôs de parte as defesas e repetiu-lhe o que tinha contado a Pradelio Ranquileo sobre o destino da irmã e falou-lhe das suas suspeitas em voz alta. Rememorou a madrugada fatídica, quando o tenente Juan de Dios Ramirez voltou ao quartel depois de levar a prisioneira. Nesse dia faltava uma bala no seu revólver. Era obrigatório informar o cabo de plantão quando eram usadas as armas de serviço, para registar no livro especial do armamento. Nos primeiros meses depois do pronunciamento militar, explicou o sargento, os registos ficaram desorganizados, pois era impossível dar conta de cada munição disparada pelas espingardas, carabinas e revólveres da Guarda, mas logo que as coisas normalizaram voltaram à antiga rotina. Por isso, quando o tenente teve de dar uma explicação, disse que tinha morto um cão raivoso. Por outro lado, escreveu no Livro da Guarda que a menina tinha sido posta em liberdade às sete da manhã, retirando-se por sua vontade.

-        O que não é verdade, menina, conforme consta da minha caderneta de anotações - acrescentou o sargento com a boca cheia de comida, passando-lhe uma pequena agenda de capa ensebada. - Olhe, está aqui tudo, também acrescentei que nos víamos hoje e escrevi a nossa conversa de há duas semanas, lembra-se? Não me esqueço de nada, está tudo aqui.


Ao pegar na caderneta, Irene teve a impressão de que pesava como uma pedra. Observou-a aterrorizada, entendendo claramente o alcance dos seus pressentimentos. Quase esteve para lhe implorar que a destruísse, mas achou por bem afastar essa ideia, esforçando-se por agir de forma razoável. Nos últimos dias tinha sentido várias vezes esses inexplicáveis impulsos, que a levavam a duvidar do seu próprio juízo.

O sargento contou-lhe que o tenente Ramírez tinha assinado a sua declaração e ordenado ao cabo Ignacio Bravo que fizesse o mesmo. Nada disse quanto a ter levado Evangelina Ranquileo durante a noite, nem os seus homens lho perguntaram, porque conheciam de sobra a sua inclinação para o mal e não queriam ir parar à solitária, como Pradelio.

-        Era um bom rapaz, o Ranquileo - disse o sargento.

-        Era?

-        Dizem que morreu.

Irene Beltrán afogou uma exclamação de desalento. A notícia dava-lhe cabo dos planos. O seu passo seguinte era encontrar-se com Pradelio Ranquileo e convencê-lo a apresentar-se diante dos tribunais. Era talvez a única testemunha do que tinha acontecido em Los Riscos disposta a depor contra o tenente e a explicar os assassínios, porque o seu desejo de vingar a irmã podia vencer o medo das consequências. O sargento repetiu o boato de que Pradelio caíra de um barranco da montanha, embora, a bem da verdade, ele não estivesse certo, pois ninguém tinha visto o cadáver. Ao iniciar a segunda garrafa de vinho, Rivera já tinha esquecido toda a prudência, e por isso desatou a desfiar as suas suspeitas, primeiro vem a pátria, mas neste caso a pátria não está em jogo e a justiça vem antes, digo eu, embora me ameacem, perca a minha carreira e acabe a lavrar a terra como os meus irmãos. Estou decidido a ir até ao fim, irei ao Supremo, jurarei sobre a bandeira e a Bíblia, contarei a verdade à imprensa. Por isso anotei tudo na minha caderneta: a data, a hora, todos os pormenores. Tenho-a sempre debaixo da camisola, gosto de senti-la contra o peito e até durmo com ela porque uma vez quiseram-ma roubar. Estas anotações valem ouro, menina, são as provas que outros quiseram apagar, mas, já disse, eu nunca me esqueço. Mostro-a ao juiz se for preciso, porque Pradelio e Evangelina merecem justiça, eram meus parentes.


O sargento pode imaginar o que aconteceu na noite do desaparecimento de Evangelina como se estivesse a ver um filme. O tenente Ramírez conduz a camioneta assobiando, assobia sempre quando está nervoso; talvez vá a pensar no caminho, embora conheça bem a região e saiba que àquela hora não passam carros na estrada. É um motorista prudente. Quatro ou cinco minutos depois de passar o portão e de se despedir com um gesto do cabo Ignacio Bravo, de guarda à porta, chega à estrada principal, e dirige-se para norte. Alguns quilómetros adiante, mete-se no caminho para a mina, um caminho ruim, sem pavimento e cheio de buracos, por isso a camioneta fica suja e as rodas cheias de barro. Escolhe um lugar apropriado para parar o mais perto possível da mina. Não apaga as luzes porque precisa das duas mãos livres e a lanterna seria incómoda. Vai à parte de trás, tira a lona e vê a silhueta da menina. Decerto sorri com aquele jeito torcido que os seus subalternos conhecem e temem. Afasta o cabelo do rosto de Evangelina e aprecia-lhe o perfil, o pescoço, os ombros, os seios de rapariguinha. Pensa que, apesar dos hematomas e das feridas, deve estar bonita, como todas as jovens sob as estrelas. Sente um calor conhecido entre as pernas e respira agitadamente, ri-se astuto, que besta que eu sou, murmura.

-        Desculpe a minha franqueza, menina - interrompeu Faustino Rivera, chupando os últimos ossos do almoço.

O tenente Juan de Dios Ramírez toca no peito da jovem. Verifica talvez que ainda respira. Tanto melhor para ele, tanto pior para ela. O sargento parece estar a ver com os seus próprios olhos, quando o tenente, maldito seja, saca a arma e a coloca sobre a caixa de ferramentas junto à lanterna, desaperta o cinturão de couro e o fecho das calças e se lança sobre ela com uma violência inútil, pois não encontra resistência. Penetra-a apressadamente, esmagando-a contra o chão metálico da camioneta, apertando, arranhando, mordendo a menina, esmagada sob o volume dos seus oitenta quilos, as correias do uniforme, as pesadas botas, recuperando assim o orgulho de macho que ela lhe tinha arrebatado naquele domingo no pátio da sua casa. O sargento Rivera pensa nisso e fica como louco, porque tem uma filha da mesma idade de Evangelina. Ao acabar, descansa certamente sobre a prisioneira, até reparar que ela não faz o menor movimento, não se queixa e tem os olhos abertos, fixos no céu, assombrados com a própria morte. Então ajeita-lhe a roupa, pega nela pelos pés e puxa-a para o chão. Procura a lanterna e a arma, dirige o facho de luz para a cabeça, aproxima o cano do revólver e, depois de soltar o dispositivo de segurança, dispara à queima-roupa, recordando aquela manhã distante em que com um gesto semelhante deu o tiro de misericórdia no seu primeiro fuzilado. Com o pau e a pá desimpede a entrada da mina, leva o cadáver enrolado no poncho, mete-o de qualquer maneira na mina, arrastando-o até ao túnel da direita, cobre-o com escombros e pedras e vai-se embora. Antes de partir fecha a entrada da mina, com o pé espalha a terra para cobrir a mancha escura e os pedaços de matéria mole salpicados no lugar do disparo e percorre cuidadosamente o lugar até encontrar a cápsula da bala, que guarda no bolso da farda para prestar contas no controlo de munições, de acordo com o regulamento. Nesse instante inventa a história do cão raivoso. Dobra a lona, coloca-a na parte posterior da camioneta, junta as ferramentas, ajeita o revólver na cartucheira e lança uma última espreitadela em volta para verificar se há vestígios da sua acção. Sobe para a camioneta e dirige-se para a estrada rumo à Guarda. Assobia.

-        Como lhe disse, menina, assobia sempre quando está nervoso

- rematou o sargento Rivera. - Admito não ter provas de tudo o que contei, mas poderia jurar pela memória da minha santa mãe, que em paz descanse, que as coisas aconteceram mais ou menos assim.

-        Quem são os outros mortos da mina? Quem os matou?

-        Não sei. Pergunte aos camponeses da região. Por aqui desapareceram muitos. Vá até à família Flores...

-        Está certo de que se atreve a repetir em juízo tudo o que disse?


-        Sim. Estou certo. A perícia balística e a autópsia de Evangelina provarão que tenho razão.

Irene pagou a conta, disfarçadamente colocou o gravador na mala e despediu-se do seu convidado. Ao apertar-lhe a mão, sentiu o mesmo mal-estar irracional que a invadira ao pegar na caderneta. Não conseguiu olhá-lo nos olhos.

O sargento Faustino Rivera não chegou a prestar declarações perante o juiz, porque nessa mesma noite foi atropelado por uma camioneta branca que se pôs em fuga. Morreu instantaneamente. A única testemunha presente, o cabo Ignacio Bravo, assegurou que tudo se tinha passado muito depressa e que nem tivera tempo para reparar na matrícula nem no motorista. A caderneta, essa, nunca apareceu.

 

Irene procurou a casa dos Flores. Era de madeira e folha de zinco, igual a todas as outras das redondezas. A propriedade fazia parte de um antigo loteamento de agricultores pobres que tinham recebido alguns hectares de terra durante a reforma agrária, hectares que depois lhes foram retirados, ficando eles apenas com as pequenas hortas familiares. O longo caminho que cruzava o vale, unindo os lotes, tinha sido feito pelos camponeses com a participação de toda a comunidade, incluindo velhos e crianças, que ajudaram carregando pedras. Por esse mesmo caminho entraram os veículos militares, invadindo uma por uma toda as casas. Alinharam os homens numa fila interminável, escolheram ao acaso um em cada cinco e, como exemplo, fuzilaram-nos, dispararam contra os animais, incendiaram as cavalariças; deixando atrás de si um rasto de sangue e destroços. Nesse lugar eram raras as crianças, porque em muitos lares faltava o homem há vários anos. Os poucos nascimentos eram celebrados com emoção e as crianças recebiam os nomes dos mortos, para que ninguém pudesse esquecê-los.

Ao chegar, Irene acreditou que a casa se encontrava desabitada, tal era o seu aspecto desolado e triste. Chamou para ver se estava alguém, mas nem sequer um latido de cão lhe respondeu. Ia-se já embora, quando surgiu entre as árvores uma mulher cinzenta, confundida com a paisagem, informando-a de que a senhora Flores e a filha estavam no mercado, onde vendiam hortaliças.


A poucos passos da praça de Los Riscos erguia-se o mercado como uma explosão de bulício e cor. Irene procurou entre as pilhas de fruta da época, pêssegos, melões, melancias, atravessou labirintos de verduras frescas, montanhas de batatas e milho verde, bancas de esporas, estribos, montarias e chapéus de palha, fileiras de cerâmica vermelha e preta, gaiolas de galinhas e coelhos, no meio de um tumulto de pregões. Mais adentro estavam as barracas de carne, presuntos, peixe, mariscos, toda a espécie de queijos, um desenfrear de cheiros e sabores. Percorreu-o lentamente, em todas as direcções, experimentando-o com o olhar, cheirando essas fragrâncias da terra e do mar, parando para provar uma das primeiras uvas, um morango maduro, uma ostra viva na sua concha de madrepérola, um suave pastel folhado preparado pelas mesmas mãos que o vendiam. Fascinada, pensou que nada de terrível poderia acontecer num mundo onde florescia uma abundância como aquela. Mas então encontrou, por fim, Evangelina Flores e lembrou-se do motivo por que se encontrava ali.

A moça era tão parecida com Digna Ranquileo que Irene se sentiu imediatamente à vontade com ela, como se já a conhecesse e houvesse tido oportunidade de estimá-la. Como sua mãe e todos os seus irmãos, tinha o cabelo liso e negro, a pele clara e os olhos grandes, muito escuros. De pernas curtas, estrutura robusta, enérgica e saudável, movimentando-se com vitalidade, falava com segurança e simplicidade, acentuando as palavras com largos gestos das mãos. Diferenciava-se da mãe, Digna Ranquileo, no carácter jovial e na serenidade para emitir opiniões sem temor. Parecia mais velha, muito mais madura e desenvolvida que a outra Evangelina, a que ocupou o seu destino por engano e morreu em seu lugar. O sofrimento acumulado nos seus quinze anos de vida, longe de marcá-la com a resignação, dotou-a de brios. Ao sorrir, aquele rosto de feições rudes transformava-se e resplandecia. Era suave e carinhosa com a mãe adoptiva, a quem tratava com ar protector, como se desejasse preservá-la de novas dores. Juntas tomavam conta de um minúsculo lugar, onde vendiam os produtos da sua horta.

Sentada num tamborete de vime, Evangelina contou a sua história. A sua família foi mais castigada que outras porque pouco depois da primeira batida a polícia lhes caiu em cima. Nos anos posteriores, os filhos sobreviventes comprovaram como era inútil procurar os que lhes foram levados e como era perigoso falar deles. Mas a rapariga possuía uma alma indómita. Ao saber da descoberta dos corpos da mina de Los Riscos, teve a esperança de conseguir notícias do pai e dos irmãos adoptivos; por isso recebeu a jornalista desconhecida e se pôs a falar. A mãe, ao contrário, manteve-se afastada e em silêncio, observando Irene com desconfiança.

- Os Flores não são meus pais, mas criaram-me; por isso gosto deles como se o fossem - explicou a jovem.


Podia estabelecer a data da aparição da desgraça na sua vida. Um dia de Outubro, cinco anos antes, entrou pelo caminho do loteamento um jipe da Guarda e estacionou diante da casa. Iam prender Antonio Flores. A Pradelio Ranquileo coube cumprir a ordem. Bateu à porta vermelho de vergonha, porque a essa família o uniam os laços do destino, tão fortes como os do sangue. Respeitosamente, explicou que se tratava de um interrogatório de rotina, permitiu que o prisioneiro se prevenisse com um pulôver e, sem tocá-lo, conduziu-o até ao veículo. A senhora Flores e os filhos puderam ver o patrão do vinhedo Los Aromos sentado ao lado do motorista e estranharam, porque nunca haviam tido problemas com ele, nem sequer durante a tumultuosa época da reforma agrária; por isso não podiam imaginar o motivo daquela denúncia. Depois que levaram Antonio Flores, acudiram os vizinhos para consolar a família, e a casa encheu-se de gente. Houve muitas testemunhas quando, meia hora depois, apareceu uma camioneta repleta de guardas armados. Desceram com movimentos de combate e gritos de ataque, para prender os quatro irmãos mais velhos. Espancados, meio aturdidos, arrastados, foram postos no veículo, e deles não restou senão uma nuvem de pó no caminho. Os que viram o que ocorreu ficaram atónitos diante das demonstrações de brutalidade, porque nenhum dos irmãos tinha antecedentes políticos e o seu único erro conhecido consistia em se terem filiado no Sindicato. Um deles nem sequer vivia na região, trabalhava como operário da construção na capital e nesse dia visitava os pais. Os camponeses pensaram que houvera engano e ficaram sentados à espera que os devolvessem. Podiam identificar os guardas, conheciam todos pelos seus nomes, tinham nascido na região e frequentado a mesma escola. Pradelio Ranquileo não fazia parte do segundo grupo e pensaram que o tinham deixado a vigiar Antonio Flores na Guarda. A ele se dirigiram mais tarde para lhe fazerem algumas perguntas, fora do período de serviço, mas não conseguiram esclarecer nada, porque era impossível sacar uma palavra que fosse ao filho mais velho dos Ranquileo.

-        Até esta altura tínhamos uma vida tranquila. Éramos gente de trabalho e nada nos faltava. O meu pai tinha um bom cavalo e estava a fazer economias para comprar um tractor. Mas a Guarda caiu-nos em cima e tudo mudou - disse Evangelina Flores.

-        A desgraça tem-se no sangue - murmurou a senhora Flores, pensando nessa mina maldita onde talvez houvesse seis dos seus.


Elas tinham-nos procurado. Durante meses fizeram a peregrinação obrigatória daqueles que seguiam o rasto dos seus desaparecidos. Foram de um lugar para outro, perguntando inutilmente, e só receberam o conselho de que era melhor considerá-los mortos e assinar uma declaração legal, pois assim teriam direito ao abono de orfandade e viuvez. Pode encontrar outro marido, senhora, a senhora ainda é bem apessoada, diziam-lhe. Os trâmites eram demorados, incómodos e caros. Consumiram todas as suas economias e endividaram-se. Os papéis perdiam-se nos gabinetes da capital e com o passar do tempo a sua esperança foi-se esfumando como um desenho antigo. Os filhos que ficaram vivos tiveram de abandonar a escola e procurar trabalho nas propriedades vizinhas, mas não os aceitavam porque estavam marcados. Juntaram os seus míseros bens e partiram por caminhos vários em busca de outros lugares onde ninguém soubesse do seu infortúnio. A família dispersou-se e, com o correr dos anos, só ficou com a senhora Flores uma menina trocada. Evangelina tinha dez anos quando lhe prenderam o pai e os irmãos adoptivos. Cada vez que fechava os olhos, voltava a ver esse instante, quando os arrastaram sangrando. Perdeu o cabelo, emagreceu, caminhava enquanto dormia e parecia flutuar idiotizada quando estava acordada, atraindo a troça das outras crianças da escola. Achando ser conveniente tirá-la daquele lugar cheio de más recordações, a senhora Flores mandou-a para outra aldeia, para a casa de um tio, próspero comerciante de lenha e carvão, que podia oferecer-lhe melhores condições de vida, mas a menina não pôde suportar a falta de amor e o seu estado piorou. Levaram-na de volta ao que restava do seu lar. Por um longo tempo nada houve que a animasse, mas quando completou doze anos e teve a primeira menstruação repeliu definitivamente a tristeza, amadureceu de repente e uma manhã despertou feita mulher. Foi sua a ideia de vender o cavalo e montar uma barraca de hortaliças no mercado de Los Riscos e foi também sua a decisão de não continuar enviando comida, roupa e dinheiro por intermédio dos militares aos seus parentes perdidos, já que não havia a mínima prova de que estivessem vivos. A jovem trabalhava dez horas por dia vendendo e transportando hortaliças e fruta e nas seis restantes, antes de cair extenuada na cama, estudava nos cadernos preparados pela professora como um favor especial. Não voltou a chorar e começou a falar no passado em relação ao pai e aos irmãos, para a pouco e pouco habituar a mãe à ideia de que nunca mais os veria.

Quando abriram a mina, ela estava atrás dos soldados com o fumo negro atado no braço, perdida na multidão. Viu de longe os grandes sacos amarelos e apertou os olhos para distinguir algum indício. Alguém lhe falou da impossibilidade de identificar os restos sem um estudo das arcadas dentárias e de cada pedaço de osso ou de roupa encontrados, mas ela estava segura de que, se pudesse

vê-los de perto, o coração dir-lhe-ia se eram eles.

-        Pode levar-me aonde eles agora estão guardados? - pediu a Irene Beltrán.

- Farei o possível, mas não é fácil.

-        Porque é que não nos devolvem os nossos mortos? Só queremos um túmulo para que descansem em paz, para colocar flores, rezar, acompanhá-los no dia de todos os mortos...

-        Sabes quem prendeu o teu pai e os teus irmãos? - perguntou Irene.

-        O tenente Juan de Dios Ramírez e nove homens do seu batalhão - respondeu sem vacilar Evangelina Flores.

 

Trinta horas depois da morte do sargento Faustino Rivera, Irene foi baleada à porta da editora. Saía do trabalho, já tarde, quando um automóvel estacionado no passeio em frente pôs o motor em marcha, acelerou e passou a seu lado como um vento fatídico, disparando uma rajada de metralhadora antes de se perder no trânsito. Irene sentiu um golpe terrível no coração e não percebeu o que tinha acontecido. Desmaiou sem um grito. Toda a sua alma ficou como que vazia e a dor paralisou-a. Teve um instante de lucidez, durante o qual conseguiu sentir o sangue crescendo à sua volta, num charco incontrolável, e logo de seguida mergulhou no sono.

O porteiro e outras testemunhas do facto também foram apanhados desprevenidos. Ouviram os disparos e não souberam identificá-los, pensaram numa explosão de motor ou na passagem de um avião, mas quando a viram cair correram para socorrê-la. Dez minutos mais tarde, Irene era levada numa ambulância com as sirenas ligadas e as luzes acesas. Tinha inúmeras perfurações de bala no ventre, por onde lhe fugia a vida aos borbotões.


Francisco Leal soube do sucedido por casualidade, duas horas mais tarde, quando ligou para a sua casa para convidá-la para jantar, porque havia vários dias que não se encontravam a sós e o amor já o afogava. A chorar, Rosa deu-lhe a notícia. Foi a noite mais longa da sua vida. Passou-a sentado junto a Beatriz num banco do corredor da clínica, frente à porta dos cuidados intensivos, onde a mulher que amava deambulava perdida nas sombras da agonia. Depois de várias horas na sala de operações, ninguém imaginava que sobreviveria. Ligada a meia dezena de tubos e cabos, aguardava a morte.

Os cirurgiões tinham feito um corte longitudinal e percorrido as vísceras, descobrindo, depois de cada ponto, um novo orifício para coser. Ministraram-lhe litros de sangue e soro, envenenaram-na com antibióticos e por fim crucificaram-na sobre uma cama com o suplício permanente das sondas, mantendo-a desaparecida na névoa da inconsciência para que suportasse o seu martírio. Com a cumplicidade do médico de serviço, compadecido com tanta dor, Francisco pôde vê-la por alguns minutos. Estava nua, transparente, flutuando na luz difusa e branca da sala, com um aparelho respiratório ligado a um tubo traqueal, cabos que a uniam a um monitor cardíaco onde um sinal imperceptível mantinha a esperança, várias agulhas nas veias, tão pálida como o lençol, com duas luas roxas no sítio dos olhos e uma massa compacta de ligaduras no ventre, por onde surgiam os tentáculos dos drenos abdominais. Um grito mudo irrompeu no peito de Francisco e aí permaneceu por muito tempo.

-        A culpa é sua! Desde que você surgiu na vida da minha filha é que começaram os problemas! - acusou-o Beatriz logo que o viu.

Estava destroçada, fora de si. Francisco teve por ela um impulso de simpatia, porque pela primeira vez a via sem artifícios, em carne viva, sólida, humana, doída, próxima. Beatriz deixou-se cair num banco e chorou até secar todas as lágrimas. Não entendia o que acontecera. Desejava crer que era um acto de delinquência comum, como lhe assegurou a polícia, porque não suportava a ideia de que pudessem perseguir a filha por razões políticas. Não tinha a menor ideia sobre a sua participação na descoberta dos corpos na mina e não queria imaginá-la envolvida em assuntos suspeitos contra a autoridade. Francisco foi buscar duas chávenas de chá e sentaram-se juntos a bebê-las em silêncio, unidos pela mesma sensação de naufrágio.

Como tantas outras durante o Governo anterior, também Beatriz Alcántara tinha saido à rua batendo panelas em sinal de protesto. Foi favorável ao golpe militar porque lhe parecia mil vezes preferível a um regime socialista e, quando lançaram o bombardeamento aéreo contra o velho Palácio dos Presidentes, abriu uma garrafa de champanhe para celebrar. Ardia de fervor patriótico, mas o seu entusiasmo não a atingiu a ponto de doar as jóias ao fundo de reconstrução nacional, pois temia que elas servissem para enfeitar as mulheres dos coronéis, como diziam as más-línguas. Acomodou-se ao novo sistema como se tivesse nascido nele e aprendeu a não mencionar o que era melhor não saber. A ignorância era-lhe indispensável para a paz da alma. Nessa noite nefasta, na clínica, Francisco esteve quase para lhe falar de Evangelina Ranquileo, dos mortos de Los Riscos, dos milhares de vítimas e da sua própria filha, mas sentiu dó dela. Não quis aproveitar aquele momento em que estava transtornada para lhe destruir os esquemas que até então a tinham sustentado. Limitou-se a fazer perguntas sobre Irene, sobre os seus anos de infância e adolescência, alegrando-se com as pequenas histórias, solicitando pormenores, com a curiosidade dos apaixonados por tudo o que se refere à pessoa amada. Falaram do passado e, entre confidências e lágrimas, as horas foram passando.

Duas vezes durante aquela noite de tormentos, Irene esteve tão perto da morte que devolvê-la ao mundo dos vivos foi uma proeza. Enquanto os médicos se desdobravam à sua volta para lhe reactivar o coração com descargas eléctricas, Francisco Leal sentiu que a razão o abandonava e que recuava à idade mais antiga, à caverna, à escuridão, à ignorância, ao terror. Viu forças maléficas arrastando Irene para as sombras e pensou, desesperado, que só a magia, o acaso ou uma intervenção divina impediriam a sua morte. Desejou rezar, mas as palavras aprendidas na infância pela boca da mãe não lhe vieram à memória. Transtornado, tentou salvá-la através da força da sua paixão. Exorcizou a fatalidade com a recordação do prazer, opondo às trevas da agonia a luz do encontro que os unira. Implorou por um milagre, para que a sua própria saúde, o seu sangue, a sua alma passassem para ela e a ajudassem a viver. Repetiu o seu nome mil vezes, suplicando que não se desse por vencida e continuasse lutando, falou-lhe em segredo do banco do corredor, chorou abertamente e sentiu-se extenuado, naquela noite que parecia não ter fim, esperando-a, procurando-a, desejando-a, amando-a, recordando as suas sardas, os seus pés inocentes, o orgulho que lhe ia nos olhos, o aroma da roupa, a seda da pele, a linha da cintura, o cristal do sorriso e o tranquilo abandono com que repousava nos seus braços depois do prazer. E assim ficou como um louco, murmurando entre dentes e sofrendo sem remédio, até que apareceram as luzes da aurora, a clínica despertou, ouviu os ruídos das portas a abrirem-se, os elevadores, os passos das sapatilhas, os instrumentos batendo nas bandejas metálicas e o som do seu próprio coração desenfreado; sentiu então a mão de Beatriz Alcántara na sua e lembrou-se de que ela estava ali. Olharam-se extenuados. Ela tinha o rosto desfeito, nada restava da sua maquilhagem e eram visíveis as finas cicatrizes da cirurgia plástica, os olhos estavam inchados, o cabelo escorrido de suor e a blusa amarrotada.

-        Você gosta dela? - perguntou.

-        Muito - respondeu Francisco Leal.

Então abraçaram-se. Por fim descobriam uma linguagem comum.

Três dias andou Irene Beltrán pelas fronteiras da morte, no fim dos quais emergiu da inconsciência, suplicando com o olhar que a deixassem lutar com os seus próprios meios ou morrer com dignidade. Tiraram-lhe o aparelho respiratório e a pouco e pouco foram-se estabilizando o ar nos pulmões e o ritmo do sangue nas veias. Então transferiram-na para um quarto onde Francisco Leal pôde ficar a seu lado. Irene sentia-se imersa no torpor das drogas, perdida na bruma dos pesadelos, mas reconhecia-o e, quando ele se afastava, chamava-o com voz débil e desvalida como um recém-nascido.


Nessa tarde, Gustavo Morante apareceu na clínica. Soubera do sucedido ao ler a página dos crimes, onde foi publicada a notícia com muito atraso, no meio de outros factos sangrentos, atribuindo o atentado a delinquentes comuns. Só Beatriz Alcántara se aferrou a essa versão do caso, assim como considerou que a invasão da sua casa era uma extravagância da polícia. O capitão, no entanto, não teve dúvidas. Conseguiu licença para sair do quartel onde se encontrava e ir visitar a antiga noiva. Apresentou-se vestido à civil, obediente a uma recomendação do Alto Comando, que não desejava fardas na rua, para evitar a impressão de um país ocupado. Bateu à porta do quarto e Francisco abriu, surpreendido por vê-lo. Mediram-se com os olhos, averiguando cada um as intenções do outro, até que um suspiro da doente os atraiu precipitadamente para o seu lado. Irene estava imóvel sobre a cama alta, como uma donzela de mármore branco esculpida no seu próprio sarcófago. Só a folhagem viva do seu cabelo mantinha alguma luz. Tinha os braços marcados pelas agulhas e pelas sondas, respirava mal, tinha os olhos fechados e através das pálpebras luziam-lhe umas sombras escuras. Gustavo Morante sentiu um choque de horror, que o percorreu dos pés à cabeça e o fez estremecer, ao ver aquela mulher, cuja vivacidade o apaixonara, reduzida a um pobre corpo tão dilacerado que parecia diluir-se no ar irreal do quarto.

- Viverá? - balbuciou.

Há muitos dias e noites que Francisco Leal a acompanhava, e tinha-se já habituado a decifrar os mais leves sinais de melhoras: contava-lhe os suspiros, media-lhe os sonos, observava-lhe os gestos fugazes. Estava eufórico porque ela respirava sem a ajuda de uma máquina e podia mover com alguma facilidade as pontas dos dedos, mas deu-se conta de que para o capitão - ausente quando ela agonizava - aquela visão era um golpe desapiedado. Esqueceu por completo que o outro era um oficial do Exército e só conseguiu vê-lo como um homem que sofria pela mulher que também ele amava.

- Quero saber o que aconteceu - pediu Morante, inclinando a cabeça, alterado.


E Francisco Leal contou-lhe tudo, sem omitir a sua própria participação na descoberta dos cadáveres, esperando que o amor por Irene superasse a lealdade do uniforme. No mesmo dia do atentado, vários homens armados invadiram a casa da jovem, revirando tudo o que encontraram à sua passagem, desde os colchões, que abriram com facas, até aos frascos de cosméticos e às louças, que atiraram para o chão. Levaram-lhe o gravador, as notas das reportagens, a agenda e uma lista de moradas. Antes de partirem, dispararam contra a cadela, abandonando-a agonizante num charco de sangue. Beatriz não estava lá, porque nesse momento velava a filha moribunda no corredor da clínica. Rosa tentou detê-los, mas recebeu uma coronhada no peito, que a deixou sem voz e sem ar, até que partiram. Então envolveu a cadela com o avental e embalou-a para que morresse acompanhada. Os homens fizeram uma revista rápida na Vontade de Deus, semeando o pânico entre os hóspedes e as enfermeiras, mas retiraram-se apressadamente ao compreender que aqueles velhos aterrorizados estavam à margem da vida e portanto também da política. Na manhã seguinte invadiram a sede da revista e vasculharam tudo o que se encontrava no gabinete de Irene Beltrán, incluindo a fita da sua velha máquina de escrever e o papel químico usado. Francisco contou também ao capitão o caso de Evangelina Ranquileo, a morte sem explicação do sargento Rivera, o desaparecimento de Pradelio e da família Flores, os massacres dos camponeses, sobre o tenente Juan de Dios Ramírez e tudo o mais que lhe veio à cabeça, pondo de lado a prudência, que carregava como uma segunda pele há vários anos. Esvaziou a raiva acumulada durante tanto tempo de silêncio e escancarou-lhe a outra face do Governo - a que o oficial não via porque estava do lado de lá -, sem esquecer os torturados, os mortos, os pobres irremediáveis e os ricos repartindo entre si a pátria como um negócio mais, enquanto o capitão, pálido e mudo, escutava o que jamais teria tolerado que se dissesse na sua presença.

Na mente de Morante, as palavras de Francisco entrechocavam-se violentamente com outras aprendidas nos cursos de guerra. Pela primeira vez estava perante as vítimas do regime, não entre os que exerciam o poder absoluto, os mesmos que agora o feriam mais do que nunca, porque feriram aquela mulher que adorava, agora imóvel entre os lençóis, a mulher cuja imagem abalava a sua alma como um sino repicando sem vida. Nunca a deixara de amar nem um só momento, ao longo de toda a sua vida, e nunca a amou tanto como naquele momento, quando afinal já a tinha perdido. Recordou os anos em que cresceram juntos e os seus planos de casar e de a fazer feliz. Silenciosamente, foi-lhe dizendo tudo aquilo que não tivera oportunidade de lhe dizer antes. Censurou-lhe a falta de confiança nele. Porque não lhe contou? Ele tê-la-ia ajudado, e com as suas próprias mãos teria aberto o maldito túmulo, não só pelo desejo de a acompanhar, mas também pela honra das Forças Armadas. Esses crimes não podiam ficar impunes, porque então a sociedade iria para o diabo e não faria sentido ter pegado em armas para derrubar o Governo anterior, acusando-o de ilegalidade, se eles mesmos exerciam o poder fora de toda a lei e de toda a moral. Os responsáveis por essas irregularidade são alguns oficiais que deviam ser castigados, mas a pureza da instituição está intacta, Irene, nas nossas fileiras há muitos homens como eu, dispostos a lutar pela verdade, a remover escombros até tirar todo o lixo e a morrer pela pátria se for necessário. Traíste-me, amor, talvez nunca me tenhas amado como eu a ti e por isso me deixaste sem me dar oportunidade de provar que não sou cúmplice dessas barbaridades, tenho as mãos limpas, sempre agi com boas intenções, tu conheces-me; estive no Pólo Sul durante o Golpe, o meu trabalho são os computadores, os planos, os arquivos confidenciais, a estratégia, nunca disparei a arma de serviço a não ser nos treinos de tiro. Acreditava que o país precisava de uma pausa política, de ordem e disciplina para vencer a miséria. Como poderia imaginar que o povo nos odeia?


Disse-to muitas vezes, Irene, este processo é duro, mas venceremos a crise. Embora eu já não esteja tão seguro, talvez tenha chegado a hora de voltar aos quartéis e restabelecer a democracia. Onde estava eu que não vi a realidade? Porque não me contaste tudo a tempo? Não faz sentido apanhares uma rajada de balas para me abrires os olhos, não tinhas que me deixar, deixando-me este amor desmedido e a vida futura para a viver sem ti. Desde pequena perseguias a verdade, por isso te amo tanto e por isso mesmo, agora, para aqui estás, morrendo, calada.

O capitão ficou longo tempo observando Irene. A luz da janela dissipou-se e o quarto mergulhou suavemente na penumbra, desenhando o contorno das coisas e transformando a jovem numa mancha leve sobre a cama. Morante despedia-se dela convencido de que nunca amaria ninguém como a amara a ela, reunindo forças para a tarefa a enfrentar. Inclinou-se para lhe beijar os lábios gretados, detendo-se na carícia, gravando na memória aquele rosto, atormentado, sentindo o cheiro dos medicamentos que lhe sufocavam o outro cheiro da pele, adivinhando a forma delicada do seu corpo, roçando aqueles cabelos rebeldes. Quando saiu, o Noivo da Morte tinha os olhos secos, o olhar duro e o coração resoluto. Amá-la-ia para sempre e não voltaria a vê-la nunca mais.

- Não a deixem só, porque eles hão-de aparecer para acabar com ela. Já não posso protegê-la. É preciso tirá-la daqui e escondê-la - foi tudo o que disse.

- Está bem - respondeu Francisco.

Apertaram a mão com firmeza, longamente.

 

As melhoras de Irene foram muito lentas, dava a impressão de que nunca conseguiria recuperar totalmente, tinha dores horríveis. Francisco cuidava do seu corpo com o mesmo empenho com que antes lhe dava prazer. Não se afastava do seu lado durante o dia e à noite deitava-se num sofá junto à cama. Normalmente tinha o sono tranquilo e pesado, mas naqueles dias aperfeiçoou o ouvido como um animal furtivo. Despertava imediatamente se intuia alguma mudança na respiração, um movimento, um queixume.

Nessa semana deixaram de alimentá-la pelas veias e já pôde comer um prato de sopa. Francisco deu-lhe a comida às colheradas, com a alma desfeita. Ao notar a sua ansiedade, ela sorriu como não sorria há muito tempo, com aquele gesto sedutor que o cativara desde o instante em que a conhecera. Louco de alegria, saiu brincando pelos corredores da clínica, correu para a rua, ziguezagueou entre os automóveis e deixou-se cair sobra a relva da praça. Rompido o dique da emoção contida durante tantos dias, ria e chorava abertamente perante o olhar assombrado de amas e aposentados que a essa hora passeavam ao sol. A mãe foi ter com ele para compartilhar aquela felicidade. Hilda passava muitas horas tricotando silenciosa junto à doente e habituando-se a pouco e pouco à ideia de que também o filho mais novo partiria, porque a vida nunca mais voltaria a ser a mesma para ele nem para a mulher que amava. Por seu lado, o professor Leal levou os seus concertos para Irene e enchia-lhe o quarto com música, tentando devolver-lhe a alegria de viver. Visitava-a todos os dias e sentava-se contando-lhe histórias felizes, sem nunca mencionar a guerra de Espanha, a sua passagem pelo campo de concentração, a dureza do exílio nem outros temas penosos. O carinho que sentia por ela levava-o até tolerar Beatriz Alcántara, sem nunca perder o bom humor.


Pouco tempo depois, Irene deu alguns passos, apoiada em Francisco. A palidez do rosto era o espelho do seu mal-estar, mas pediu que lhe reduzissem os calmantes, porque precisava de recuperar a clareza de pensamento e o interesse pelo mundo.

Francisco já conhecia Irene tão bem como a si mesmo. Naquelas longas noites de insónia, contaram um ao outro as suas vidas. Não lhes sobrou nem uma recordação do passado, nem um sonho do presente, nem um plano para o futuro, tudo foi compartilhado. Entregaram um ao outro todos os segredos, abandonaram-se para além dos limites físicos, oferecendo-se também o espírito. Ele lavava-a com uma esponja, massajava-a com água-de-colónia, penteava-lhe os cabelos para desenredar os mais rebeldes, mudava-a de posição para lhe pôr lençóis novos, dava-lhe de comer, adivinhava-lhe os mínimos desejos. Em cada pequeno serviço, em cada gesto, em cada olhar, recebia-a e fazia-a sua. Nunca percebeu nela um resquício de pudor, dava-lhe sem reservas o corpo atormentado pelas misérias da enfermidade. Irene precisava dele como do ar e da luz, reclamava-o, parecia-lhe natural tê-lo a seu lado dia e noite. Se ele saía do quarto, ela fixava os olhos na porta, à espera. Se uma dor a incomodava, procurava a mão dele e murmurava o seu nome, pedindo ajuda. Abriram os dois todas as comportas do corpo e da alma, e isso criou entre ambos um vínculo indissolúvel, que os ajudava a suportar o medo, o medo que se imiscuíra nas suas vidas como uma presença maldita.

Logo que Irene teve autorização para receber visitas, apareceram os seus amigos da revista. Não podia faltar a astróloga, envolta numa túnica teatral, com as suas negras mechas caindo sobre os ombros e um misterioso frasco de presente.

- Esfreguem-na dos pés à cabeça com este unguento. É um remédio infalível contra a debilidade do corpo - recomendou.

Foi inútil explicar-lhe que a causa da prostração eram balas de metralhadora. Insistiu em culpar o zodíaco: Escorpião atrai a morte. De nada serviu lembrar-lhe que Irene não era desse signo.

à clínica acorreram jornalistas, gráficos, desenhadores, rainhas de beleza e também a senhora da limpeza, com saquinhos de chá e um pacote de açúcar para a doente. Nunca tinha posto os pés numa clínica particular e pensou que era preciso levar alimentos, julgando que ali os doentes passavam fome, como nos hospitais dos pobres.

- Assim até dá gosto morrer, menina Irene - exclamou a mulher, deslumbrada perante o quarto ensolarado, as flores sobre a mesa e a televisão.


Os hóspedes da Vontade de Deus em condições de se movimentar revezaram-se para correr a vê-la, acompanhados pelas enfermeiras. A ausência da jovem foi sentida na casa geriátrica como uma prolongada falta de luz. Os velhos adoeceram à espera dos seus bombons, das suas cartas, das suas brincadeiras. Ficaram a par da desgraça, mas alguns esqueceram-na imediatamente, porque não podiam reter as más notícias em mentes tão fugidias. Josefina Bianchi foi a única a compreender exactamente o ocorrido. Insistiu em ir com frequência à clínica, levando sempre um mimo para Irene: uma flor do jardim, um antigo xaile dos seus baús, um verso escrito com a sua elegante letra inglesa. Aparecia flutuando em tules pálidos ou rendas estrangeiras, perfumada de rosa, diáfana como um fantasma de outro tempo. Surpreendidos, os médicos e os enfermeiros paravam com o trabalho para a verem passar.

Um dia depois de Irene ter sido alvejada, a notícia chegou por caminhos secretos aos ouvidos de Mario. Apresentou-se imediatamente para oferecer a sua ajuda. Foi o primeiro a aperceber-se de que a clínica estava vigiada. Dia e noite, um automóvel de vidros escuros postava-se na rua e, perto da entrada do edifício, rondavam impassíveis os agentes da polícia secreta, inconfundíveis nas suas novas aparências feitas de blue jeans, camisa desportiva e blusão de couro falso em que espreitavam as armas. Apesar da sua presença, Francisco atribuiu o atentado a grupos paramilitares ou ao próprio tenente Ramírez, porque, se houvesse uma ordem oficial para eliminar Irene, simplesmente teriam entrado ao pontapé nas portas, até mesmo na sala de cirurgia, para a matarem. Em contrapartida, aquela vigilância dissimulada indicava que não se podiam dar ao luxo de agir acintosamente e preferiam aguardar o momento oportuno para acabarem o serviço. Mario tinha ganho experiência com as suas tarefas clandestinas e tratou de elaborar um plano de fuga para Irene no próprio instante em que ela se pudesse levantar.

Mas Beatriz Alcântara insistia que as rajadas que quase lhe mataram a filha se destinavam a outra pessoa.

- São coisas da ladroagem - dizia. - Quiseram matar um delinquente e as balas feriram a Irene.

Passou dias a telefonar para as suas relações a fim de lhes dar a sua versão dos factos. Não desejava que ficasse a pairar a menor dúvida sobre a filha. Aproveitou para lhes dar notícias do marido, a quem por fim, depois de vários anos de busca e tantos tormentos íntimos, os detectives tinham conseguido localizar na vasta extensão do mundo. Eusebio Beltrán, farto da enorme mansão, das censuras da mulher, da carne de ovelha e das pressões dos credores, partiu nessa tarde e, depois de andar um pouco, compreendeu que ainda lhe restavam muitos anos de vida e que não era tarde para recomeçar. Seguindo o impulso do seu espírito aventureiro, partiu para as Caraíbas com um pseudónimo e pouco dinheiro no bolso, mas o cérebro cheio de ideias magníficas. Por um tempo viveu como um cigano e em certos momentos chegou a temer que a febre do esquecimento o tragasse. No entanto, o seu bom olfacto para detectar fortuna transformou-o num homem rico devido à máquina de colher cocos. Esse aparelho extravagante, que tão pouco tinha de científico quando o desenhou, entusiasmou um empresário local. Em pouco tempo as regiões tropicais ficaram cheias de apanha-cocos, sacudindo palmeiras com os seus tentáculos articulados, e Beltrán pôde usufruir novamente daqueles luxos perturbadores a que estava acostumado e que só os ricos podem comprar. Era feliz. Passou a viver com uma mulher trinta anos mais nova, morena e bem fornecida de nádegas, sempre disposta ao prazer e ao riso.


- Legalmente esse desgraçado continua a ser meu marido. Se for preciso, tiro-lhe até o ar que respira, para isso é que servem os bons advogados - assegurava Beatriz Alcântara às amigas, mais preocupada em encontrar uma armadilha para aquele inimigo fugidio do que com a saúde da filha. Sentia-se satisfeita por provar que Eusebio Beltrán era um desavergonhado, mas de modo algum um esquerdista, como afirmavam os seus caluniadores.

Beatriz não andava a par dos acontecimentos do país porque na imprensa só lia as notícias agradáveis. Não soube que tinham identificado os cadáveres da mina de Los Riscos através do estudo das arcadas dentárias e de outros sinais específicos. Pertenciam a camponeses da região, presos pelo tenente Ramírez pouco depois do golpe militar, e a Evangelina Ranquileo, a quem atribuíam pequenos milagres. Ignorou o clamor do público, que sacudiu a nação apesar da censura e que percorreu os dois hemisférios, pondo outra vez em primeiro plano o tema dos desaparecidos sob as ditaduras latino-americanas. Foi a única que, ao escutar de novo o bater das panelas, ressoando em diferentes bairros da cidade, acreditou que estavam a apoiar a acção dos militares, como nos tempos do Governo anterior, incapaz de compreender que o povo se valia do mesmo recurso contra os que o inventaram. Quando ouviu comentar que um grupo de juristas defendia os familiares dos mortos numa acção contra o tenente Ramírez e os seus homens por delitos de invasão, sequestro, pressões ilegítimas e homicídios qualificados, apontou o Cardeal como responsável por essa monstruosidade e comentou que o Papa deveria destituí-lo, porque o campo de actuação da Igreja deve ser só espiritual, não podendo de forma nenhuma o clero imiscuir-se nos sórdidos acontecimentos terrenos.

- Acusam esse pobre tenente dos assassínios, Rosa, mas ninguém se lembra que ele nos ajudou a libertar-nos do comunismo comentou a senhora, essa manhã, na cozinha.

- Mais cedo ou mais tarde, quem as faz paga-as - respondeu Rosa, imperturbável, enquanto observava pela janela as primeiras flores dos miosótis.

 


Levaram a tribunal o tenente Juan de Dios Ramírez e vários homens da sua unidade. Novamente os crimes de Los Riscos foram notícia nos jornais, porque, pela primeira vez desde o golpe militar, compareciam diante de um juiz membros das Forças Armadas. Um suspiro de alivio percorreu o país de ponta a ponta, as pessoas imaginaram uma brecha na monolítica organização que exercia o poder e sonharam com o fim da ditadura. Entretanto, o General, imperturbável, lançava a primeira pedra do Monumento dos Salvadores da Pátria, abafando as suas intenções ocultas atrás dos óculos escuros. Não respondia às cautelosas perguntas dos repórteres e fazia um gesto de menosprezo se o assunto era mencionado na sua presença. Quinze cadáveres numa mina não justificavam tanto escarcéu, e quando surgiram outras denúncias e apareceram novos túmulos, valas comuns nos cemitérios, sepulcros nos caminhos, sacos no litoral arrastados pelas ondas, cinzas, esqueletos, pedaços humanos e até corpos de crianças com uma bala entre os olhos, acusadas de mamarem em peito materno doutrinas estrangeiras, lesivas da soberania nacional e dos mais altos valores da família, da propriedade e da tradição, encolheu os ombros tranquilamente, porque a Pátria vem antes de tudo o mais e a História que me julgue.

- E que fazemos com a confusão que estão a armar, meu general?

-        O costume, coronel - respondeu do sauna, três pisos abaixo da terra.

A declaração do tenente em juízo foi publicada em grandes títulos de primeira página e ajudou Irene Beltrán a recuperar de repente o desejo de viver e de lutar.

O chefe da Guarda de Los Riscos afirmou perante o tribunal que, pouco depois do Pronunciamento, o patrão da propriedade Los Aromos acusou a família Flores de constituir um perigo para a segurança nacional, porque estava ligada a um partido de esquerda. Eram activistas e planeavam um ataque ao quartel, por isso fui prendê-los, Excelência. Prendi cinco membros dessa casa e mais nove indivíduos por culpas diversas, desde a posse de armas ao consumo de marijuana. Orientei-me com uma lista encontrada em poder de Antonio Flores. Também descobri um mapa do quartel da Guarda, prova das suas más intenções. Interrogámos os presos de acordo com os procedimentos habituais e obtivemos a sua confissão: tinham recebido instrução terrorista de agentes estrangeiros infiltrados no país pelas fronteiras marítimas, mas foram incapazes de revelar pormenores e os seus testemunhos parecem-me contraditórios, o senhor sabe como essa gente é, Excelência. Concluímos o interrogatório depois da meia-noite e então ordenei que os mandassem para o estádio da capital, usado nessa época como campo de prisioneiros. No último momento, um dos presos pediu para falar comigo e assim soube que os suspeitos tinham incorrido no delito de ocultar armas numa mina abandonada. Meti-os no camião e levei-os ao lugar indicado. Quando o caminho se tornou intransitável, descemos com os activistas com os braços amarrados, sob rigorosa vigilância, e fizemos a marcha a pé. Ao avançar na escuridão, fomos vítimas de um repentino ataque com armas de fogo proveniente de diferentes pontos, não tendo eu outra alternativa senão ordenar aos meus homens que se defendessem. Não posso dar muitos pormenores porque estava escuro. Só lhe posso assegurar que houve uma abundante troca de tiros durante vários minutos, findos os quais cessou o tiroteio e pude reorganizar os soldados. Começámos a procurar os presos, pensando que se teriam escapado, mas vimo-los por terra, todos mortos, espalhados aqui e ali. Não posso determinar se morreram por causa dos nossos projécteis ou dos dos agressores. Depois de meditar, resolvi fazer o mais acertado, a fim de evitar represálias contra os meus homens e suas famílias. Escondemos os corpos na mina e acto continuo fechámos a entrada com escombros, pedras e terra. Não efectuámos nenhuma obra de alvenaria, de modo que sobre esse tema nada posso declarar. Uma vez fechada a entrada, concordámos em guardar segredo. Aceito a minha responsabilidade como chefe do grupo e devo esclarecer que não houve feridos entre o pessoal a meu cargo, somente arranhões de pouca monta, por nos arrastarmos em terreno escarpado. Ordenei que se fizessem diligências nos arredores, em busca dos agressores, mas não lhes encontrámos o rasto nem cápsulas de balas. Admito ter faltado à verdade ao escrever no meu relatório que os prisioneiros tinham sido enviados para a capital, mas repito que o fiz para proteger os meus homens de uma eventual vingança. Nessa noite faleceram catorze indivíduos. Surpreende-me que mencionem também uma cidadã supostamente chamada Evangelina Ranquileo Sánchez. Ela esteve detida na Guarda de Los Riscos durante algumas horas, mas foi posta em liberdade, como consta do Livro da Guarda. É tudo o que posso dizer, senhor juiz.

Esta versão do ocorrido gerou tanto no tribunal como na opinião pública a mesma incredulidade. Como era impossível que fosse aceite sem ser posta a ridículo, o juiz declarou-se incompetente e o julgamento passou para um tribunal militar.

 

Entre os seus lençóis de convalescente, Irene Beltrán viu apagarem-se as possibilidades de castigar os culpados e pediu a Francisco que fosse imediatamente à Vontade de Deus.

-        Leva este recado meu para Josefina Bianchi - suplicou a jovem. - Ela tem uma coisa importante que eu lhe dei para guardar. Se não a levaram na invasão, ela tem-na ainda e há-de dar-ta.

Mas ele não queria deixá-la sozinha e perante a sua insistência contou-lhe que os vigiavam. Até esse momento tinha-lho ocultado, para não a assustar mais, mas percebeu que ela já o sabia, pois não deu sinais de surpresa. No seu intimo, Irene tinha aceitado a morte como uma possibilidade próxima e compreendia que seria difícil iludi-la. Só quando apareceram Hilda e o professor Leal para substitui-lo junto à enferma é que Francisco partiu para visitar a velha.

Rosa recebeu-o com muito custo, porque tinha três costelas partidas. Tinha emagrecido e sentia-se cansada. Conduziu-o através do jardim e a meio caminho indicou-lhe a terra ainda revolvida onde tinha enterrado Cleo, perto do túmulo do menino que caíra da clarabóia.

Josefina Bianchi encontrava-se no seu quarto, recostada nos almofadões. Vestia uma camisa de amplas mangas trabalhadas com bilros e festões, uma mantilha primorosa nos ombros e uma faixa na nuca sustentando-lhe o cabelo de neve. Ao alcance da sua mão havia um espelho de prata lavrada e uma bandeja cheia de frascos com pó-de-arroz, pincéis de pele de marta, cremes de diáfanas tonalidades, aspersórios de pena de cisne e ganchos de osso de tartaruga. Estava a maquilhar-se, tarefa delicada, que cumpria há sessenta e tantos anos, sem falhar um só dia. Na clara luz da manhã, o seu rosto surgia como uma máscara japonesa na qual um pulso vacilante acabava de marcar o traço púrpura da boca. As pálpebras tremiam-lhe, azuis, verdes, prateadas, sobre a alva superfície empoada. Por breves instantes a velha actriz não reconheceu Francisco, mergulhada num sonho remoto, talvez entre as bambolinas de um teatro antes de subir o pano numa noite de estreia. Os olhos perdidos no passado vacilaram e lentamente o seu espírito regressou ao presente. Sorriu e duas fileiras de perfeitos dentes artificiais rejuvenesceram-lhe a expressão.


Durante os meses de amizade com Irene, Francisco aprendeu a conhecer as peculiaridades dos velhos, e assim descobriu que o afecto é a única chave para se comunicar com eles, porque a razão é um labirinto onde se perdem facilmente. Sentou-se na beira da cama e acariciou a mão de Josefina Bianchi, integrando-se no seu tempo interior. Era inútil apressá-la. Pôs-se a evocar a época esplêndida da sua vida, quando a plateia se enchia de admiradores e no camarim resplandeciam os ramos de flores, quando percorria o continente em digressões tumultuosas e eram necessários cinco carregadores para subir e descer a sua bagagem dos barcos e dos comboios.

- O que é que aconteceu, entretanto? Onde estão o vinho, os beijos, o riso? Onde estão os homens que me amaram? E as multidões que me aplaudiram?

- Tudo está aqui, na sua memória, Josefina.

- Sou velha, mas não sou idiota. Percebo que estou só.

Reparou na mala da máquina fotográfica e quis posar para deixar uma recordação sua quando estivesse morta. Enfeitou-se com colares de falsos diamantes, laços de veludo, véus cor de malva, o leque de plumas e um sorriso de outro século. Manteve a postura por uns minutos, mas cansou-se depressa, fechou os olhos e recostou-se, respirando com dificuldade.

- Quando é que Irene volta?

- Não sei. Mandou-lhe este recado. Diz que a senhora guarda uma coisa dela.

A velha pegou no papel com os seus dedos de renda e apertou-o contra o peito sem o ler.

- És o marido de Irene?

- Não, sou o namorado - respondeu Francisco.

- Menos mal! Então a ti posso-te dizer. Irene é como um pássaro, não tem o sentido da permanência.

- Eu tenho o suficiente para os dois - riu Francisco.

Ela concordou em entregar-lhe as três fitas gravadas que tinha escondidas numa carteira de baile, bordada com missangas. Irene nunca foi capaz de explicar por que razão as confiou à actriz. A única razão para fazê-lo foi um impulso de generosidade. Não podia saber que tentariam assassiná-la e que lhe invadiriam a casa e o gabinete de trabalho à procura das fotos, mas suspeitava do seu valor como prova. Passou-as à velha na intenção de a converter em cúmplice de algo que ainda não era um mistério e de dar assim um sentido à sua vida. Foi um gesto espontâneo como tantos outros que fazia em relação aos hóspedes da Vontade de Deus, da mesma forma que celebrava aniversários inexistentes, organizava jogos, inventava representações teatrais, dava presentes ou escrevia cartas de familiares imaginários. Certa noite visitou Josefina Bianchi e encontrou-a triste, murmurando que preferia morrer, pois já não tinha amor e ninguém precisava dela. O seu corpo tinha-se deteriorado no último Inverno e ao ver-se indisposta e envelhecida caía em frequentes depressões, embora nunca lhe faltassem a prudência e a memória. Irene quis dar-lhe qualquer coisa que desviasse a sua atenção da solidão e que a atraisse para outros interesses, e por isso entregou-lhe as fitas, avisando-a da sua importância e pedindo-lhe que as escondesse. Esta missão encantou a velha senhora. Enxugou as lágrimas e prometeu manter-se viva e saudável para a ajudar. Acreditava que guardava um segredo de amor. Assim, o que começara como uma brincadeira acabou por consolidar um propósito, e as gravações não só se salvaram da curiosidade de Beatriz Alcántara, como também da inspecção da polícia.

-        Diga a Irene que venha. Prometeu ajudar-me na hora da minha morte - disse Josefina Bianchi.

-        Não chegou ainda esse momento. A senhora pode viver muito mais, está sã e forte.

-        Escuta, meu filho, vivi como uma senhora e assim quero morrer. Sinto-me um pouco cansada. Preciso de Irene.

- Não poderá vir agora.

- O mal da velhice é que ninguem a respeita, tratam-na como a crianças teimosas. Vivi a vida à minha maneira. Nada me faltou. Para que é que me hei-de privar de uma morte limpa?

Francisco beijou-lhe as mãos com carinho e respeito. Ao sair viu os hóspedes no jardim, ajudados pelas enfermeiras, decrépitos, solitários nas cadeiras de rodas, com os seus xailes de lã e as suas mesquinharias, surdos, quase cegos, mumificados, sobrevivendo apenas muito longe do presente e da realidade. Aproximou-se para se despedir. O coronel, com as medalhas de latão penduradas ao peito, saudava como sempre a bandeira nacional flutuando nos ares só para os seus olhos. A viúva mais pobre do reino apertava no colo uma caixa de lata com algum mísero tesouro. O paralítico continuava à espera do correio por força do hábito, embora no fundo tivesse adivinhado desde o princípio que Irene inventava as respostas para o alegrar, enquanto ele fingia acreditar nas suas mentiras piedosas para não a embaraçar. Quando ela deixou de ir à Vontade de Deus, ficou sem nenhum sonho para sonhar. Outro velho interpelou Francisco já à porta.

- Olha, jovem, agora que estão a abrir túmulos, acreditas que aparecerão o meu filho, a minha nora e o bebé?

Francisco Leal não soube que resposta dar e fugiu daquele mundo patético dos velhos.

 

As fitas gravadas por Irene Beltrán continham as suas conversas com Digna e Pradelio Ranquileo, o sargento Faustino Rivera e Evangelina Flores.

- Leva-as ao Cardeal para que as usem no julgamento dos guardas - pediu a Francisco.

- A tua voz está nelas, Irene. Se te identificam, será a condenação à morte.

- Eles matam-me de qualquer modo, se puderem. Deves entregá-las.

- Antes tenho de te pôr a salvo.

- Então chama Mario, porque esta tarde saio daqui.


Ao anoitecer apareceu o cabeleireiro com a sua célebre maleta mágica e fechou-se com eles no quarto da clínica. Primeiro que tudo, cortou-lhe e pintou-lhe o cabelo, depois alterou-lhe o arco das sobrancelhas, por fim ensaiou lentes, maquilhagens, bigodes e toda a espécie de artifícios da sua profissão, até os transformar em seres diferentes. Os jovens olharam-se assombrados, sem se reconhecerem sob aquelas máscaras, sorrindo incrédulos, porque, com a nova aparência, dir-se-ia que teriam de aprender a amar-se desde o princípio.

- Podes andar, Irene? - perguntou Mario.

- Não sei.

- Terás de fazê-lo sem ajuda. Vamos, menina, ponha-se de pé...

Irene desceu lentamente da cama sem aceitar o braço dos amigos. Mario tirou-lhe a camisa de dormir, reprimindo uma exclamação ao ver o ventre coberto de adesivos e as manchas vermelhas de desinfectante no peito e nos músculos. Extraiu da sua poderosa maleta um recheio de espuma plástica para simular uma gravidez e amarrou-o aos ombros e entrepernas, porque ela não teria conseguido levá-lo atado à cintura. Em seguida enfiou-lhe um vestido de mamã,

cor-de-rosa, calçou-lhe sandálias de salto baixo e despediu-se com um beijo de boa sorte.

Pouco depois Irene e Francisco saíram da clínica sem chamar a atenção do pessoal, que os tinha atendido durante tanto tempo, passaram frente ao automóvel de vidros escuros estacionado na rua, caminharam sem pressa até à esquina e aí entraram para o automóvel do cabeleireiro.

-        Vão esconder-se em minha casa até que possam viajar - determinou Mario.

Conduziu-os ao apartamento, abriu a porta de bronze e cristal, afastou os gatos angora, ordenou ao cão que ficasse a um canto e inclinou-se com uma graciosa reverência, para lhes dar as boas-vindas, mas não chegou a completar o gesto, porque Irene caiu sobre o tapete sem um suspiro. Francisco ergueu-a nos braços e seguiu o seu anfitrião até ao quarto que lhes fora destinado, onde uma cama larga com delicados lençóis de seda acolheu a doente.

- Arriscas a vida por nós - disse Francisco comovido.

- Preparei café, bem precisamos - respondeu Mario saíndo.

Irene passou vários dias recuperando forças naquele ambiente refinado e tranquilo, onde Mario e Francisco se revezavam para cuidar dela. O dono da casa quis distraí-la com leituras frívolas, jogos de cartas e as intermináveis histórias acumuladas ao longo da sua vida, histórias do salão de beleza, dos seus amores, das viagens e dos tormentos que passou na época em que era apenas o filho repudiado de um mineiro. Quando notou que Irene gostava dos animais, instalou no seu quarto o cão preto e os gatos, mudando de assunto se ela perguntava por Cleo, porque não queria que ela soubesse do seu triste fim. Cozinhou para Irene dietas de doente, velou pelo sono e auxiliou Francisco nos curativos. Fechou as janelas do apartamento, correu as pesadas cortinas, escondeu os jornais e desligou a televisão para que a desordem do exterior não a perturbasse. Se soavam as sirenas dos carros da polícia, passavam zumbindo os helicópteros como pássaros pré-históricos, soavam ao longe as batidas de panelas ou o tiroteio das metralhadoras, aumentava o volume da música para que não os ouvisse. Dissolvia barbitúricos na sopa para a obrigar a descansar e abstinha-se de mencionar na sua presença os acontecimentos que abalavam a paz de opereta da ditadura.


Foi Mario que deu a Beatriz Alcântara a notícia de que a filha já não estava na clínica. Pretendia explicar-lhe a necessidade de tirá-la do país para lhe salvar a vida, mas à primeira frase percebeu a sua incapacidade para se encarregar da situação. Beatriz vivia num mundo irreal, onde tais desgraças tinham sido anuladas por decreto. Preferiu dizer-lhe que Irene e Francisco tinham partido para gozarem umas breves férias, história inverosímil, dado o estado de saúde da jovem, mas a mãe acreditou porque qualquer pretexto lhe servia. Mario observou-a sem piedade, irritado perante aquela mulher egoísta, indiferente, refugiada numa elegância de ritos e fórmulas, nesse salão hermético onde não entravam os rumores do descontentamento. Imaginou-a à deriva numa jangada, com os seus velhos esquecidos e decrépitos num mar imóvel. Como eles, Beatriz estava fora da realidade, tinha perdido o seu lugar neste mundo. A infima segurança de que dispunha podia desmoronar-se num instante, engolida pelo furacão furioso dos novos tempos. A imagem esbelta afundada em sedas e camurça pareceu-lhe falsa, como que reflectida num espelho de feira. Saiu sem se despedir.

Fiel ao seu hábito, Rosa aguardava atrás da porta, escutando a conversa. Fez-lhe sinais para segui-la à cozinha.

- Que aconteceu à minha menina? Onde está?

- Está em perigo. Teremos de ajudá-la para que parta daqui.

- Exilada?

- Sim.

- Que Deus a cuide e proteja! Voltarei a vê-la algum dia?

- Quando cair a ditadura, Irene voltará.

- Dê-lhe isto da minha parte - suplicou Rosa, entregando-lhe um pequeno pacote. - É terra do seu jardim, para que a acompanhe para onde for. E, por favor, diga-lhe que os miosótis já têm flor...

 

José Leal acompanhou Evangelina Flores para reconhecer os restos do pai e dos irmãos. Irene tinha-lhe falado dela e pediu-lhe ajuda, porque estava certa de que a menina precisaria. Assim foi. No pátio do Departamento de Investigações, sobre as largas mesas de madeira rústica, tinham despejado o conteúdo dos sacos amarelos: roupa rasgada, pedaços de ossos, mechas de cabelo, uma chave oxidada, um pente. Evangelina Flores percorreu lentamente a terrível exposição, indicando em silêncio cada despojo conhecido: o colete azul, o sapato gasto, a cabeça com poucos dentes. Parou três vezes diante de cada um dos seus até comprovar que os cinco se encontravam ali, nenhum faltava. Só o suor que lhe empapava a blusa revelava o tremendo esforço que lhe custava cada passo. A seu lado estavam o padre, sem se atrever a tocá-la, e dois funcionários do tribunal tomando notas. Por último, a jovem leu e assinou a declaração com mão firme e saiu do pátio a passos largos, com a cabeça erguida. Na rua, depois de ouvir o portão fechar-se nas suas costas, recuperou por breves instantes o seu aspecto de menina camponesa. José Leal abraçou-a.

- Chora, que te faz bem - disse-lhe.


- Chorarei depois, padre. Agora tenho muito que fazer - respondeu e, contendo as lágrimas com a mão, partiu depressa.

Dois dias depois foi citada pelo Tribunal Militar para testemunhar sobre os supostos assassinos. Apresentou-se com a roupa de trabalho e um fumo negro atado ao braço, o mesmo que usara quando abriram a mina de Los Riscos e a sua intuição lhe disse que tinha chegado a hora de vestir luto. O julgamento foi à porta fechada. Não lhe permitiram a companhia da sua mãe, de José Leal, nem do advogado do Vicariato designado pelo Cardeal. Um soldado conduziu-a por um amplo corredor, onde o eco dos passos vibrava como um som de igreja, até à sala de sessões do tribunal. Era um enorme recinto bem iluminado, sem outro adorno a não ser uma bandeira e um retrato a cores do General com a faixa presidencial atravessada no peito.

Evangelina avançou sem mostrar temor, até ficar diante do alto estrado dos oficiais. Olhou-os um por um directamente nos olhos e com voz clara repetiu a história que tinha contado a Irene Beltrán, sem que as intimidações conseguissem mudar a sua versão. Indicou sem vacilar o tenente Juan de Dios Ramirez e cada homem que participara na prisão dos familiares, porque, apesar de ter passado tanto tempo, ela tinha-os gravados a fogo na memória.

- Pode retirar-se, cidadã. Permanecerá à disposição deste tribunal. Não pode abandonar a cidade - ordenou o coronel.

O mesmo soldado guiou-a até à saída. José Leal esperava-a e juntos começaram a andar pela rua. O sacerdote deu-se conta de que um automóvel os seguia e, como estava preparado para essa eventualidade, pegou na jovem pelo braço e correu com ela, empurrando-a, arrastando-a, misturando-se com a multidão. Procurou refúgio na primeira igreja que apareceu no caminho e dali entrou em contacto com o Cardeal.

Evangelina Flores foi arrancada às garras da repressão e levada para fora do país nas sombras da noite. Tinha uma missão a cumprir. Nos anos seguintes esqueceu os campos serenos onde nasceu, e foi pelo mundo denunciando a tragédia da sua pátria. Apresentou-se na Assembleia das Nações Unidas, em conferências de imprensa, em debates de televisão, em congressos, em universidades, por toda a parte, para falar dos desaparecidos e para impedir que o esquecimento apagasse esses homens, mulheres e crianças tragados pela violência.

Uma vez identificados os cadáveres de Los Riscos, os familiares imploraram que os devolvessem para os sepultarem com decência, mas isso foi-lhes negado porque o Poder temia a desordem pública. Não desejava mais distúrbios. Então os parentes dessas e doutras vítimas aparecidas em novos túmulos clandestinos fecharam-se na catedral, puseram-se diante do altar-mor e anunciaram uma greve de fome até que atendessem os seus pedidos. Tinham perdido o medo e sem vacilações arriscavam a vida, a última coisa que lhes restava, porque já os tinham despojado de tudo o mais.

- Que significa essa loucura, coronel?

- Perguntam pelos seus desaparecidos, meu general.

- Diga-lhes que não estão nem vivos nem mortos.


- E que fazemos com os grevistas, meu general?

- O costume, coronel, não me chateie com asneiras.

A polícia tentou tirá-los do templo com jactos de água e gases lacrimogéneos, mas o Cardeal postou-se à porta com outras pessoas que jejuavam em sinal de solidariedade, enquanto observadores da Cruz Vermelha, da Comissão dos Direitos do Homem e da imprensa internacional fotografavam a cena. Ao fim de três dias, a pressão tornou-se insustentável e o clamor da rua atravessou os muros do bunker presidencial. De muito má vontade, o General ordenou a devolução dos corpos; no entanto, no último momento, quando as famílias aguardavam com grinaldas de flores e cirios acesos, por ordem superior os carros funerários desviaram a rota, entraram disfarçadamente pela porta traseira do cemitério e esvaziaram os sacos numa vala comum. Só o cadáver de Evangelina Ranquileo Sánchez, ainda no Necrotério, em processo de autópsia, pôde ser recuperado pelos pais. Levaram-no à paróquia do padre Cirilo, onde recebeu uma sepultura modesta. A menina teve ao menos um túmulo e não lhe faltaram flores frescas, porque os camponeses da região confiavam nos seus pequenos milagres.

A mina de Los Riscos transformou-se em lugar de peregrinação. Uma interminável fila encabeçada por José Leal acorreu em romaria. Iam a pé, cantando hinos religiosos e palavras de ordem rebeldes, levando cruzes, tochas e os retratos dos seus mortos. No dia seguinte o Exército fechou o lugar com uma alta cerca de arame farpado e um portão de ferro, mas nem as cercas cheias de farpas pontiagudas nem os soldados postados com ninhos de metralhadoras puderam impedir as procissões. Então usaram cargas de dinamite para apagar a mina da paisagem, pretendendo eliminá-la também da História.

Francisco e José Leal entregaram as gravações de Irene ao Cardeal. Sabiam que, assim que elas chegassem às mãos do Tribunal Militar, a jovem seria identificada e presa. Por isso deviam pô-la em lugar seguro o mais depressa possível.

-        Quantos dias precisam para fugir? - perguntou o prelado.

- Uma semana, até que possa caminhar sem ajuda.

Combinaram assim. O Cardeal mandou reproduzir as fitas e sete dias depois distribuiu as cópias pela imprensa e entregou os originais ao promotor. Quando quiseram eliminar as provas, já era tarde, porque as entrevistas apareciam publicadas nos jornais e davam volta ao mundo, levantando uma vaga de repúdio unânime. No estrangeiro, o nome do General foi escarnecido e os seus embaixadores apanhavam com chuvas de tomates e ovos podres sempre que apareciam em público. Desafiada por tanto alvoroço, a justiça militar declarou culpados de homicídio o tenente Juan de Dios Ramírez e os seus homens que participaram na chacina, baseando-se nos seus testemunhos contraditórios, nas provas de laboratório para determinar o modo como ocorreram os factos e nas gravações de Irene Beltrán. A jornalista foi intimada a prestar declarações em repetidas oportunidades e a polícia política procurou-a com o máximo empenho, mas não conseguiu encontrá-la.


A satisfação provocada pela sentença durou só algumas horas, até que os culpados fossem postos em liberdade, amparados por um decreto de amnistia improvisado à última hora. O furor popular traduziu-se em manifestações de rua tão violentas que nem sequer as tropas de choque do Exército conseguiram controlar a população insurrecta nas ruas. Diante do monumento em construção dos Salvadores da Pátria, o povo soltou um enorme porco enfeitado com divisas, faixa em diagonal, capa de gala e quépi de general. O animal correu espavorido pelo meio da multidão, que cuspia nele, chutava-o e insultava-o diante dos olhos furibundos dos soldados, que usaram de toda a sua destreza para apanhar o porco e resgatar os sagrados emblemas assim desprezados, e finalmente acabaram por matá-lo a tiro, entre gritos, cacetadas e ulular de sirenas. Do animal não restou senão um grande cadáver humilhado num charco de sangue negro onde navegavam as insígnias, o quépi e a capa de tirano.

O tenente Ramirez foi promovido a capitão. Circulava satisfeito por todo o lado, com a consciência tranquila, até que soube que pelos caminhos do sul vagueava um gigante coberto de farrapos, faminto e com olhos de louco, à procura do assassino da irmã. Ninguém lhe presta atenção, é um louco, diziam. Mas o oficial conhecia a vingança que lhe pendia sobre a cabeça e perdeu o sono. Não haveria paz para ele enquanto Pradelio Ranquileo estivesse vivo.


Longe da capital, num quartel de província, Gustavo Morante seguia atentamente os acontecimentos, informava-se e punha o seu plano em marcha. Quando colheu todas as provas da ilegitimidade do regime, mobilizou-se em segredo face aos seus companheiros de armas. Tinha perdido as ilusões, convencido de que a ditadura não era uma etapa final no caminho da injustiça. Não suportava mais o aparelho repressivo que servira com lealdade, pensando estar a servir os interesses da pátria. O terror, longe de levar à ordem, como lhe tinham ensinado nos cursos para oficiais, havia semeado um ódio cuja colheita seria fatalmente mais e mais violência. Os seus anos de carreira militar proporcionaram-lhe um profundo conhecimento da instituição e decidiu utilizá-lo para derrubar o General. Considerava que essa tarefa cabia aos oficiais jovens. Acreditava não ser o único a sentir essas inquietações, porque o fracasso económico, a acentuada desigualdade social, a brutalidade do sistema e a corrupção das autoridades levavam outros militares a reflectir. Estava convencido de que havia outros como ele, desejosos de lavar a imagem das Forças Armadas e tirá-las do fosso em que se encontravam. Um homem menos audaz e apaixonado talvez tivesse alcançado um tal objectivo, mas Morante tinha tanta urgência em obedecer aos impulsos do seu coração que cometeu o erro de subestimar a polícia de informação, cujos tentáculos conhecia de sobra. Foi preso e sobreviveu 72 horas. Nem os maiores peritos em tortura conseguiram obrigá-lo a confessar os nomes dos outros implicados na rebelião, e por isso condenaram-no e, como exemplo, o seu cadáver foi simbolicamente fuzilado pelas costas ao amanhecer. Apesar das precauções, a história transpirou. Quando Francisco Leal soube do ocorrido, pensou com respeito no Noivo da Morte. Se nas fileiras do Exército existem homens assim, comentou, ainda há esperança. A insurreição não poderá ser sempre controlada, crescerá e multiplicar-se-á dentro das casernas, até que as balas consigam esmagá-la. Então os soldados hão-de unir-se ao povo e, da dor assumida e da violência superada, poderá surgir uma nova pátria.

- Sonhas, filho! Embora haja militares como esse Morante, na sua essência as Forças Armadas não mudam. O militarismo já causou muitos males à humanidade. Tem de ser eliminado - respondeu-lhe o professor Leal.

 

Finalmente, Irene Beltrán começou a movimentar-se normalmente. José Leal obteve passaportes falsos para ela e Francisco, nos quais colocaram as fotografias dos seus novos rostos. Estavam irreconhecíveis. Ela tinha o cabelo curto, pintado, e lentes de contacto que lhe alteravam a cor dos olhos. Ele usava um farto bigode e óculos. A princípio olharam-se surpreendidos, mas rapidamente se habituaram aos disfarces e ambos esqueceram os rostos por que se tinham apaixonado. Francisco deu consigo tentando lembrar-se do tom do cabelo de Irene, que tanto o fascinara. Tinha chegado o momento de abandonarem o mundo conhecido e fazerem parte dessa imensa vaga itinerante própria do seu tempo: desterrados, emigrantes, exilados, refugiados.

Na véspera da partida, o casal Leal foi despedir-se dos fugitivos. Mario preparou o jantar trancado na cozinha durante horas, sem permitir que ninguém participasse no seu trabalho. Adornou a mesa com flores e frutas, colocou a melhor baixela, disposto a atenuar um pouco a tragédia que a todos envolvia. Escolheu música discreta, acendeu velas, pôs o vinho no frigorífico, fingindo uma euforia que estava muito longe de sentir. Mas era impossível fugir ao tema da próxima separação e dos perigos que espreitavam o casal logo que pusesse os pés fora do refúgio.

- Quando passarem a fronteira, filhos, creio que devem ir para a nossa casa em Teruel - disse de repente Hilda Leal, para surpresa de todos, porque pensavam que essa recordação era uma das muitas apagadas pela amnésia.

Mas ela não esquecera rigorosamente nada.

Falou-lhes da sombra imensa do maciço de Albarracín recortado no crepúsculo, semelhante às montanhas a cujos pés se estendia a pátria adoptiva; dos vinhedos nus, tristes e retorcidos no Inverno, reunindo seiva para a explosão da uva no Verão; dessa natureza seca e abrupta rodeada de montanhas, e da casa que um dia deixara para seguir o seu homem para a guerra, nobre e tosca casa de pedra, madeira e telhas, pequenas janelas aferrolhadas, uma alta chaminé com pequenas lajes de cerâmica mudéjar incrustradas na parede como olhos observando através do tempo. Recordava com precisão o cheiro da lenha quando acendia o lume ao entardecer, a fragrância dos jasmins e a hortelã-pimenta debaixo da janela, a frescura da água do poço, a grande arca da roupa, as cobertas de lã sobre as camas. à evocação seguiu-se um longo silêncio, como se o seu espírito se tivesse mudado para o antigo lar.


- A casa ainda é nossa. Está à vossa espera - disse por fim, suprimindo com estas palavras a distância e todo o tempo que havia passado.

Francisco pensou no destino caprichoso que obrigara os pais a abandonarem a terra natal para se exilarem e que tantos anos depois o levaria talvez de volta pelo mesmo motivo. Imaginou-se a abrir a porta, com o mesmo gesto empregado pela mãe quase meio século antes para fechá-la, e sentiu que durante todo esse tempo tinham andado em círculos. O pai adivinhou-lhe os pensamentos e falou do significado que para eles teve deixar a terra natal e procurar outros horizontes; precisaram de coragem para enfrentar os sofrimentos, para cair, para ir buscar novo ânimo, para voltarem a levantar-se vezes sem conta, para se adaptarem e sobreviverem entre estranhos. Instalaram-se firmes e decididos em cada lugar que pisaram, embora fosse por uma semana ou um mês, pois nada esgota tanto a força interior como o transitório.

-        Só terão o presente. Não percam energias chorando pelo passado ou sonhando com o amanhã. A nostalgia desgasta e aniquila, é o vício dos desterrados. Devem estabelecer-se como se fosse para sempre, é preciso ter-se o sentido da permanência - concluiu o professor Leal, e o filho recordou as mesmas palavras ouvidas da boca da velha actriz.

O professor chamou Francisco de lado. Estava muito comovido, abraçou-o com olhos de aflição, tremia. Tirou do bolso um pequeno objecto e deu-lho, envergonhado: era a régua de calcular, o único bem que poderia simbolizar o desamparo e a dor dessa separação.

-        É só uma recordação, filho. Não serve para calcular a vida - disse com voz rouca.

Na verdade, sentia isso. No final do longo caminho da sua vida, dava-se conta da inutilidade dos seus cálculos. Nunca imaginara ver-se um dia cansado e triste, com um filho no túmulo, outro no exílio, os netos distantes numa aldeia perdida e José, o único que ficara perto dele, ameaçado pela polícia política. Francisco lembrou-se dos velhos da Vontade de Deus e inclinou-se para lhe dar um beijo na testa, desejando veementemente que estivesse ao seu alcance desviar os desígnios da fatalidade, para que os pais não morressem solitários.

Ao notar os animos em baixo, Mario decidiu servir o jantar. De pé, em volta da mesa, os olhos húmidos e as mãos crispadas, levantaram juntos os copos.

-        Brindo por Irene e Francisco. A sorte os acompanhe, filhos - disse o professor Leal.

- E eu brindo para que o amor deles cresça dia a dia - acrescentou Hilda sem olhar para eles, para não mostrar a dor que lhe ia na alma.

Durante um instante fizeram um esforço para parecerem alegres, louvaram a comida refinada e agradeceram as atenções daquele nobre amigo, mas logo o desalento se estendeu como uma sombra, arrasando-os a todos. Na sala de jantar só se ouvia o som dos talheres e do cristal.

Hilda, sentada ao lado do filho mais querido, fitava-o, gravando para sempre na memória os traços do seu rosto, a expressão do seu olhar, as finas rugas em redor dos olhos, a forma comprida e firme das suas mãos. Sustentava entre os dedos a faca e o garfo, mas o seu prato estava intacto. Severa com a sua própria dor, continha as lágrimas, mas não podia ocultar a aflição. Francisco cingiu com um braço os ombros da mãe e beijou-a, tão emocionado como ela.

- Se algo de mal te acontecer, filho, não poderei resistir - sussurrou Hilda ao seu ouvido.

- Nada de mal há-de acontecer, mãe, fique tranquila.

- Quando nos veremos de novo?

- Em breve, estou certo. Até então estaremos juntos em espírito, como sempre estivemos...

O jantar terminou sem efusões. Permaneceram sentados na sala, olhando-se, sorrindo sem alegria, até que a proximidade do recolher marcou o instante da despedida. Francisco guiou-os até à porta. A essa hora a rua estava vazia e silenciosa, as portas fechadas, nenhuma luz nas janelas vizinhas, as suas vozes e os seus passos produziam um eco surdo que vibrava como mau presságio naquele recinto desolado. Tinham de se apressar para chegar a tempo a casa. Tensos, calados, abraçaram-se pela última vez. Pai e filho uniram-se num longo e forte abraço, cheio de mudas promessas e advertências. Logo Francisco sentiu a mãe entre os seus braços, pequena e frágil, aquele rosto adorado perdido no seu peito, o pranto por fim transbordando, as suas mãos delgadas apertando-lhe convulsas o casaco, presa a ele como uma criança desesperada. José separou-a, obrigando-a a dar meia volta e a andar sem olhar para trás. Francisco viu afastarem-se pela rua sombria as figuras dos pais, vacilantes, vulneráveis, tolhidas. A do irmão, pelo contrário, pareceu-lhe sólida e decidida, a de um homem que conhecia os seus riscos e que assumia um destino. Quando se perderam na esquina, um rouco soluço de adeus atravessou-lhe o peito e todas as lágrimas reprimidas nessa terrível noite desaguaram de súbito nos seus olhos.

Sentou-se no limiar da porta com o rosto entre as mãos, sacudido pela mais profunda tristeza. Ali o encontrou Irene, e em silêncio sentou-se a seu lado.


Francisco Leal nunca procurou contar quantos desesperados ajudara durante esses anos. De início actuava sozinho, mas a pouco e pouco formou-se à sua volta um círculo de amigos incondicionais, todos unidos no mesmo empenho de esconder perseguidos, asilá-los quando fosse possível ou levá-los através da fronteira por diversos caminhos. Ao princípio aquilo foi para ele só um trabalho humanitário e de certa forma inelutável, mas com o tempo transformou-se numa paixão. Evitava os riscos com uma emoção confusa, mistura de raiva e de feroz alegria. Sentia a impetuosidade dos jogadores, uma provocação constante ao destino, mas nem mesmo nos momentos em que precisava de mais audácia abandonava as suas virtudes de homem cauteloso, porque sabia que qualquer excesso se pagava com a vida. Planeava cada acção até ao mínimo pormenor e procurava efectuá-la sem surpresas, o que lhe permitiu sobreviver à beira do abismo mais tempo do que outros. A polícia política não tinha a mínima suspeita sobre a pequena organização. Mario e José trabalhavam muitas vezes com ele. Quando prendiam o padre, interrogavam-no apenas pelas suas actividades no Vicariato e no bairro onde vivia, pois, a esse nível, eram públicas a sua luta pela justiça e a coragem com que enfrentava as autoridades. O notável cabeleireiro, por sua vez, tinha uma aparência tão falsa quanto excelente. Ao seu salão de beleza acorriam as esposas dos coronéis, e com alguma frequência uma limusina blindada ia buscá-lo e conduzia-o ao palácio subterrâneo, onde o esperava a Primeira Dama, nos seus aposentos de fausto e ouropéis. Aconselhava-a na escolha do vestuário e das jóias, criava novos penteados, com que acentuava a altivez do poder, e dava a sua opinião sobre a ráfia romana, o mármore faraónico e as lâmpadas de cristal cortado, trazidos do estrangeiro para decorar a mansão. às recepções de Mario compareciam as personagens destacadas do regime e, por trás dos biombos Coromandel da sua loja de antiguidades promoviam-se transacções com jovens bem dotados para os prazeres proibidos. A polícia política cumpria a ordem de protegê-los nos contrabandos, nos tráficos, mananciais de discretos vícios, sem imaginar que o distinto estilista se ria dela mesmo a um palmo do seu nariz.

Francisco tinha dirigido o seu grupo em tarefas difíceis, mas nunca pensara que um dia o utilizaria para salvar a sua própria vida e a de Irene.

 

Eram oito da manhã quando chegou uma camioneta carregada de plantas exóticas e árvores anãs para os terraços de Mario. Três empregados vestidos com calções, capacetes e máscaras de fumigação descarregaram filodendros dos trópicos, camélias em flor e laranjeiras chinesas, depois ligaram as mangueiras aos tanques de insecticida e começaram a desinfectar as plantas, cobrindo os rostos com as máscaras protectoras. Enquanto um se instalou de vigia no corredor, a um sinal do dono da casa os outros dois tiraram a roupa de trabalho. Irene e Francisco vestiram-se com elas e cobriram os rostos com as máscaras, desceram sem pressa até à rua, onde os esperava o motorista, e partiram sem que ninguém desse por eles. Gastaram algum tempo dando umas voltas pela cidade, de um táxi para outro, até serem recolhidos numa esquina por uma velhota que encarnava a própria inocência e que entregou as chaves e os documentos de um pequeno automóvel.

-        Até aqui vamos bem. Como te sentes? - perguntou Francisco, sentando-se ao volante.

-        Muito bem - respondeu Irene, pálida como névoa.


Sairam da cidade pela estrada do sul. O plano consistia em localizar uma passagem da montanha e passar a fronteira antes que o cerco da repressão se fechasse inexoravelmente sobre eles. O nome e a descrição de Irene Beltrán já estavam nas mãos da polícia, de uma ponta a outra do território nacional, e sabiam que nas ditaduras vizinhas também não estariam a salvo, porque trocavam informações, presos e cadáveres. Nessas transacções, às vezes sobravam mortos por um lado e bilhetes de identidade por outro, o que gerava grande confusão quando era preciso reconhecer as vítimas. Assim, houve presos num país que apareciam assassinados noutro, com um nome alheio, e parentes que recebiam um desconhecido para dar sepultura. Embora também do outro lado contassem com ajuda, Francisco sabia que deveriam dirigir-se depressa para qualquer democracia do continente ou alcançar o objectivo final, a mãe-pátria, como os que fugiam da América acabaram por chamar à Espanha.

Fizeram o caminho em duas etapas, porque Irene estava ainda muito débil e não suportaria tantas horas imóvel, enjoada, dolorida, meu pobre amor, emagreceste durante as últimas semanas, perdeste o tom dourado das tuas sardas ao sol, mas estás tão linda como sempre, apesar de te terem cortado o teu longo cabelo de rainha. Não sei como ajudar-te, quem me dera poder ser eu a carregar com o teu sofrimento, as tuas incertezas; maldita sorte, que nos leva aos tropeções com o medo preso nas entranhas. Irene, se eu pudesse devolver-te aos tempos despreocupados quando passeávamos com a Cleo pelas colinas, quando nos sentávamos sob as árvores a observar a cidade aos nossos pés, enquanto bebíamos vinho no pico do mundo, sentindo-nos livres e eternos; não podia imaginar então que hoje estaria a conduzir-te por esta interminável estrada, suspensos a cada ruído, vigiando, desconfiando. Desde o instante terrível em que aquela rajada de balas quase te partiu em duas, não encontro repouso nem desperto nem a dormir, Irene, tenho de ser forte, enorme, invencível, para que nada possa afectar-te, para te manter protegida da dor e da violência. Quando te vejo assim, vencida pela fadiga, apoiada no encosto, abandonada aos solavancos do carro, com os olhos fechados, uma ansiedade tremenda oprime-me o peito, ânsias de cuidar de ti, temor de te perder, desejos de permanecer a teu lado para sempre e de te defender de todo o mal, velar pelo teu sono, dar-te dias felizes...

Ao anoitecer, pararam num pequeno hotel do interior. A fraqueza da jovem, os seus passos vacilantes e aquela aparência sonâmbula que lhe penetrara nos ossos comoveram o gerente, que os acompanhou até ao quarto e insistiu em servir-lhes alguma comida. Francisco tirou a roupa a Irene, ajustou as ligaduras que levava como protecção e ajudou-a a deitar-se. Trouxeram uma sopa e um copo de vinho quente com açúcar e canela, mas ela não pôde nem olhá-los, estava extenuada. Francisco estendeu-se a seu lado e ela fechou os braços em volta do corpo dele, encostou a cabeça ao seu ombro, deu um profundo suspiro e mergulhou imediatamente no sono. Ele não se moveu, sorrindo na escuridão, feliz como sempre que estavam juntos. A intimidade que compartilhavam há algumas semanas continuava a parecer-lhe um prodígio. Conhecia aquela mulher nos seus mais subtis segredos, não tinham mistério para ele os seus olhos altivos, que se tornavam selvagens no prazer e que humedeciam agradecidos ao realizar o inventário do seu amor, tantas vezes a percorrera que a podia desenhar de memória e estava seguro de que até ao final da sua vida poderia evocar essa suave e firme geografia; mas cada vez que a tinha entre os seus braços dominava-o a mesma emoção sufocada do primeiro encontro.


No dia seguinte, Irene amanheceu tão bem-disposta que parecia ter passado a noite brincando, mas toda a sua boa vontade não chegou para disfarçar a cor de cera da sua pele e as olheiras de doente à volta dos olhos. Francisco serviu-lhe um café abundante, para ver se recuperava um pouco as forças, mas ela quase nem o provou. Estava a olhar pela janela, assistindo aos sinais do fim da Primavera. Depois de ter estado tanto tempo no país da morte, a vida tinha ganho para ela outro valor. Percebia maravilhada os contornos do mundo e agradecia as pequenas coisas de cada dia.

Como teriam de enfrentar muitas horas de viagem, resolveram partir cedo. Atravessaram uma terra cheia de luz e movimento. Passaram por um intenso trânsito de carroças de couves, vendedores ambulantes de aves, bicicletas e autocarros aos solavancos, carregados até ao tecto. Soaram os sinos da paróquia, e duas velhas vestidas de preto dos pés à cabeça avançaram pela rua com os seus véus póstumos e os seus livros de viúvas. Uma fila de crianças da escola passou com a professora em direcção à praça, cantando cavalinho branco leva-me daqui, leva-me para a minha terra, onde eu nasci. No ar ondeavam um odor delicado de pão acabado de cozer e um coro de cigarras e pardais. Tudo estava limpo, ordenado, tranquilo, as pessoas ocupadas nos seus afazeres quotidianos, num clima de paz. Por um momento duvidaram do seu próprio juízo. Talvez fossem vítimas de um delírio, de uma atroz fantasia, e na realidade nenhum perigo os ameaçasse. Perguntaram-se se não estariam fugindo das suas próprias sombras. Bastou-lhes lembrarem-se dos documentos falsos que queimavam nos seus bolsos, dos seus rostos transformados e do clamor da mina. Não, de facto não estavam dementes. O mundo é que perdera a razão.

Tantas horas rodaram por aqueles caminhos eternos que perderam a capacidade de ver a paisagem, e ao fim do dia tudo lhes parecia igual. Sentiam-se como um par de náufragos astrais. Só as barreiras da polícia nos postos da estrada interrompiam a viagem. Sempre que mostravam os papéis, sentiam o medo como uma descarga eléctrica que os deixava suados e lassos. Os guardas olhavam distraídos as fotografias e faziam-lhes sinal para seguir. Num posto, porém, obrigaram-nos a descer, detiveram-nos dez minutos, fazendo perguntas peremptórias, revistaram o carro por todos os lados e quando Irene estava prestes a gritar, certa de que tinham sido apanhados, o sargento autorizou-os a continuar.

- Tenham cuidado, nesta região há terroristas - recomendou-lhes.

Por longo tempo não conseguiram falar. Nunca tinham sentido o perigo tão perto e tão claro.

- O pânico é mais forte do que o amor e o ódio - concluiu Irene, estupefacta.


A partir desse momento enfrentaram o medo com ironia, gracejando para afastarem inquietações inúteis. Francisco adivinhou que essa era a única cautela de Irene. Ela desconhecia qualquer forma de timidez ou vergonha, entregava-se às suas emoções limpidamente, no pleno uso da sua liberdade. Mas no seu íntimo existia um reduto de extremo pudor. Envergonhava-se perante fraquezas que lhe pareciam intoleráveis nos outros e inadmissíveis nela. Esse terror descoberto no seu próprio espírito enchia-a de vergonha e procurava ocultá-lo também aos olhos de Francisco. Era um temor profundo, absoluto, que em nada se parecia com o susto primário que algumas vezes enfrentou e do qual se defendia com o riso. Não fingia coragem perante aqueles pavores simples, como a matança de um porco ou o ranger de uma porta numa casa assombrada, no entanto envergonhava-se desse sentimento novo que se lhe colara à pele, invadindo-a, fazendo-a gritar enquanto dormia e estremecer acordada. Por momentos era tão forte a impressão de pesadelo que não estava certa se vivia sonhando ou se sonhava que estava vivendo. Era nesses instantes fugazes, quando deixava entrever o limiar da sua vergonha, do seu medo, que Francisco mais a amava.

Abandonaram finalmente a estrada principal e meteram-se pelos caminhos das montanhas, até alcançarem um velho estabelecimento termal, que em épocas passadas tinha sido célebre pelas suas águas milagrosas, mas que a farmacopeia moderna mergulhara no esquecimento. O edifício conservava a memória de um passado esplendoroso, quando no inicio do século abrigava famílias distintas e estrangeiros vindos de longe em busca de saúde. O abandono não destruíra o encanto dos amplos salões com balaustradas e frisos dos seus móveis antigos, das lâmpadas de bronze e dos cortinados de franjas e pompons. Arranjaram-lhes um quarto com uma cama enorme, um roupeiro, uma mesa e duas cadeiras. A electricidade era cortada a uma certa hora e depois era preciso circular com velas. Ao pôr do Sol a temperatura descia bruscamente, como acontece sempre nas grandes altitudes, e então acendiam lareiras com aromáticos troncos de espinheiro. Pelas janelas entrava um odor picante e áspero de folhas secas e esterco queimados no pátio. Além deles e do pessoal administrativo, os hóspedes eram pacientes afligidos por diversos males ou aposentados em tratamento. Tudo ali era lento e suave, desde os passos dos hóspedes deslizando pelos corredores até ao som ritmado das máquinas bombeando água e argila medicinal para as grandes piscinas de mármore e ferro. Durante o dia, uma fila de gente esperançada na cura subia pela borda de um despenhadeiro até às emanações vulcânicas, apoiando-se em bengalas, envoltos em lençóis pálidos, como espíritos remotos. Mais acima, nas faldas do vulcão, brotavam açudes de água quente e colunas de espesso vapor sulfuroso, onde os enfermos se sentavam, perdidos na bruma. Ao entardecer soava uma campainha no hotel e o seu vibrante apelo ressoava nos recantos da montanha, nos precipícios, nas grutas ocultas. Era sinal de regresso para os reumáticos, os artríticos, os ulcerados, os hipocondríacos, os alérgicos e os doentes de velhice. As refeições eram servidas a horas certas numa ampla sala de jantar onde cantavam as correntes de ar e passeavam os odores da cozinha.

-        O único problema é que não estamos em lua-de-mel observou Irene, encantada com o lugar, temendo que o seu contacto aparecesse demasiado depressa para os levar através da fronteira.


Esgotados pela fadiga da viagem, abraçaram-se num longo abraço sobre o leito nupcial que lhes coube em sorte e perderam imediatamente a noção do tempo. Despertou-os a primeira luz de uma madrugada radiante. Francisco verificou aliviado que Irene estava com muito melhor aspecto, anunciando mesmo que tinha uma fome de marinheiro. Vestiram-se depois de fazerem amor com muita alegria, apesar da parcimónia, e saíram para apanhar o ar da cordilheira. Muito cedo começava o movimento impassível dos hóspedes em direcção às termas. Enquanto os outros tratavam da sua cura, os jovens usaram as horas disponíveis para se amarem com beijos furtivos e promessas eternas. Amaram-se passeando pelos ásperos atalhos do vulcão, amaram-se sentados sobre o húmus fragrante do bosque, amaram-se em sussurros entre as enevoadas espirais amarelas dos vapores vulcânicos, até que ao meio-dia apareceu um montanhês com rústicas botas de pele, poncho preto e chapéu de aba, levando três montadas e uma má notícia.

-        Encontraram a vossa pista. Têm de partir agora mesmo.

-        Quem prenderam? - perguntou Francisco, temendo pelo irmão, por Mario ou por qualquer outro amigo.

-        Ninguém. O gerente do hotel onde estiveram ontem à noite desconfiou de vocês e comunicou à polícia.

-        Podes montar a cavalo, Irene?

-        Sim - sorriu ela.

Francisco enrolou uma faixa firme ao redor da cintura dela, para que suportasse melhor o bambolear da cavalgada. Acomodaram a bagagem e iniciaram a marcha em fila indiana por um caminho pouco visível que conduzia a uma passagem remota entre dois postos de fronteira, antiga rota de contrabandistas, já esquecida. Quando os vestígios desapareceram de todo, engolidos pela natureza indómita, o guia orientou-se por sinais talhados nas árvores. Não era a primeira vez - nem seria a última - que usava aquela via tortuosa para salvar perseguidos. Os bosques de lariços, as emaranhadas tepas e os carvalhos vigiavam a passagem dos viajantes, e nalguns locais a sua folhagem tocava-se no alto, formando uma impenetrável cúpula verde. Avançaram durante horas sem parar. Em todo o trajecto não passaram por nenhum ser humano; era uma solidão húmida, fria, constante, um labirinto vegetal, pelo qual iam como únicos viajantes. Depressa surgiram as grandes manchas de neve deixadas pelo Inverno. Penetraram nas nuvens baixas e durante algum tempo envolveu-os uma espuma etérea que apagava o mundo. Ao deixarem o nevoeiro, surgiu de repente diante dos seus olhos o majestoso espectáculo da cordilheira ondulando até ao infinito com os seus picos cor de amora, os vulcões coroados de brancura, os barrancos e quedas de água, cujas paredes de gelo se derretiam no Verão. De vez em quando divisavam uma cruz marcando o lugar onde algum viajante perdera a vida, abatido pela desolação, e aí o montanhês persignava-se, reverente, num anseio de alívio para o espírito.


à frente cavalgava o guia, atrás ia Irene e fechava a fila Francisco, sem tirar os olhos da sua amada, alerta a qualquer sinal de fadiga ou dor, mas a jovem não dava mostras de cansaço. Deixava-se levar pelo passo sereno da mula, os olhos perdidos na prodigiosa natureza que a rodeava, a alma em lágrimas. Estava a despedir-se do seu país. Junto ao peito, sob a roupa, levava a bolsinha com terra do seu jardim que Rosa lhe enviara para plantar miosótis do outro lado do mar. Pensava no alcance da sua perda. Não voltaria a percorrer as ruas da sua infância nem a ouvir o doce acento da língua nativa; não veria o perfil dos seus montes ao entardecer nem a embalaria o canto dos seus rios; não teria o aroma do manjericão na cozinha nem da chuva evaporando-se no tecto da sua casa. Não só perdia Rosa, a mãe, os amigos, o trabalho e o passado. Perdia a sua pátria.

- Meu país..., meu país... - soluçou. Francisco apressou o seu cavalo e, pondo-se a seu lado, pegou-lhe na mão.

Ao cair a escuridão, decidiram acampar para passar a noite, porque não se podia avançar sem luz naquele dédalo de colinas, de ladeiras escarpadas, de tremendos despenhadeiros e profundidades insondáveis. Não se atreveram a acender uma fogueira, temendo que houvesse patrulhas nas proximidades da fronteira. O guia dividiu com eles a carne salgada e seca, a bolacha dura e a aguardente dos seus alforges. Abrigaram-se o melhor possível com os pesados ponchos e encolheram-se entre os animais, abraçados como três irmãos, mas mesmo assim o frio penetrou-lhes nos ossos e na alma. Tremeram a noite inteira sob um céu de luto, de cinza, de negro gelo, rodeados de sussurros, de suaves sibilos, das infinitas vozes do bosque.

Por fim amanheceu. A aurora avançou como uma flor de fogo e lentamente recuou a escuridão. O céu clareou e a enevoada beleza da paisagem surgiu diante deles como um mundo acabado de nascer. Puseram-se de pé, sacudiram o orvalho das mantas, movimentaram os membros entorpecidos e beberam o resto da aguardente. Era preciso voltar à vida.

- Ali está a fronteira - disse o guia, indicando um ponto na distância.

-        Então separamo-nos aqui - decidiu Francisco. - Do outro lado haverá amigos à nossa espera.

-        Devem passar a pé. Sigam as marcas das árvores, que não se hão-de perder, é um caminho seguro. Boa sorte, companheiros...

Despediram-se com um abraço. O guia partiu com os animais e os dois jovens iniciaram a caminhada até à linha invisível que dividia aquela imensa cadeia de montanhas e vulcões. Sentiam-se pequenos, sós e vulneráveis, dois navegantes desolados num mar de cumes e nuvens, num silêncio lunar; mas sentiam também que o seu amor tinha ganho uma nova e formidável dimensão e seria a única fonte de ânimo e vigor no exílio.

à luz dourada do amanhecer, pararam para ver a terra que era sua pela última vez.

- Voltaremos? - murmurou Irene.

- Voltaremos - respondeu Francisco.

E nos anos que se seguiram, essa palavra seria a marca única dos seus destinos: voltaremos, voltaremos...

 

                                                                                Isabel Aliende  

 

                      

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