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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEAD IN THE FAMILY / Charleine Harris
DEAD IN THE FAMILY / Charleine Harris

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Depois de aguentar tortura e a perda de entes queridos durante uma curta, mas mortal Guerra de Fadas, Sookie Stackhouse está ferida e com raiva. O único ponto positivo na sua vida é o amor que ela acha que sente pelo vampiro Eric Northman. Mas ele está sendo avaliado pelo novo Rei Vampiro por conta de seu relacionamento.
E com as implicações políticas dos Metamorfos aparecendo e começando a ser sentidas, a conexão de Sookie com o bando de Shreveport arrasta ela para o debate. O pior de tudo, apesar da porta para as Fadas ter sido fechada, ainda existem algumas Fadas no lado humano — e uma delas esta irritada com Sookie. Muito, muito irritada.

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— ME SINTO MAL por deixá-la assim — disse Amelia. Seus olhos estavam inchados e vermelhos. Eles estiveram daquele jeito, várias vezes, desde o funeral de Tray Dawson. 
— Você tem que fazer o que precisa fazer — respondi, dando-lhe um sorriso radiante. Pude ler a culpa, a vergonha e a onipresente dor girando na mente de Amelia numa bola de escuridão. — Já estou bem melhor — assegurei. Escutei-me balbuciando animadamente, mas não conseguia parar. — Estou caminhando bem, e os buracos estão todos preenchidos. Vê o quanto está melhor? — Puxei o cós do jeans para lhe mostrar o local que foi arrancado a mordidas. As marcas de dentes mal eram perceptíveis, embora a pele não estivesse lisa e fosse visivelmente mais pálida que a carne ao redor. Se eu não tivesse tomado uma grande dose de sangue vampiro, a cicatriz teria parecido uma mordida de tubarão. 
Amelia olhou e desviou o rosto rapidamente, como se não suportasse ver a evidência do ataque. 
— Só que Octavia fica me mandando e-mails, dizendo que preciso voltar para casa e aceitar o julgamento do conselho das bruxas, ou o que restou dele — ela disse numa torrente. — E preciso verificar todos os consertos em minha casa. E já que há alguns turistas novamente, e pessoas voltando e reconstruindo, a loja esotérica reabriu. Posso trabalhar lá em meio-período. Além disso, apesar de amar você e amar viver aqui, desde que Tray morreu... 
— Acredite, eu entendo. — Já tivemos aquela conversa algumas vezes. 
— Não estou culpando você — disse Amelia, tentando encontrar meus olhos. 
Ela realmente não me culpava. Já que podia ler sua mente, eu sabia que estava me dizendo a verdade. Mesmo eu não me culpava totalmente, um tanto para minha surpresa. 
Era verdade que Tray Dawson, namorado de Amelia e Lobisomem, foi morto enquanto agia como meu guarda-costas. Era verdade que solicitei um guarda-costas da matilha Lobi mais próxima, porque eles me deviam um favor e minha vida precisava ser protegida. Contudo, eu presenciei a morte de Tray Dawson pelas mãos de uma fada brandindo uma espada, e sabia quem era responsável. 
Então não me sentia exatamente culpada. Mas sentia luto por perder Tray, além de todos os outros horrores. Minha prima Claudine, uma fada puro-sangue, também morreu na Guerra Fae, e já que foi minha verdadeira fada-madrinha, sentia sua falta de muitas formas. Ela esteve grávida. 
Eu tinha um bocado de dor e remorso de todos os tipos, físicos e mentais. Enquanto Amelia carregava uma pilha de roupas para baixo, eu fiquei em seu quarto, me recompondo. Então firmei os ombros e levantei uma caixa cheia de artigos de banheiro. Desci as escadas lenta e cuidadosamente, e abri caminho até seu carro. Ela se voltou após depositar as roupas sobre as caixas já guardadas no porta-malas. 
— Você não devia estar fazendo isso! — ela disse, toda ansiosa de preocupação. — Ainda não está curada. 
— Eu estou bem. 
— Dificilmente. Você sempre se sobressalta quando alguém entra no cômodo e a surpreende, e posso notar que seus pulsos doem — disse. Ela pegou a caixa e deslizou-a para o banco traseiro. — Você ainda se apóia na perna esquerda e ainda dói quando chove. Apesar de todo aquele sangue vampiro. 
— O sobressalto vai melhorar. Com o passar do tempo, não estará tão fresco e vívido em minha mente — disse a Amelia (se telepatia me ensinou algo, era que pessoas podiam enterrar as memórias mais sérias e dolorosas, se lhes desse tempo e distração suficiente). — O sangue não é simplesmente de qualquer vampiro. É sangue de Eric. Coisa forte. E meus pulsos estão bem melhores. 
Eu não mencionei que meus nervos estavam à flor da pele como serpentes agitadas nesse momento, o resultado de terem sido amarrados bem apertados durante várias horas. A Dra. Ludwig, médica do sobrenatural, disse que os nervos — e pulsos — eventualmente voltariam ao normal.
— Sim, falando em sangue... — Amelia respirou fundo e se blindou para dizer algo que sabia que eu não gostaria. Já que ouvi antes de ela de fato falar, fui capaz de me preparar. — Você pensou em... Sookie, você não me perguntou, mas acho melhor não tomar mais o sangue de Eric. Quero dizer, sei que ele é seu homem, mas tem que pensar nas conseqüências. Às vezes, as pessoas são transformadas por acidente. Não é uma questão matemática. 
Embora apreciasse a preocupação de Amelia, ela ultrapassara território particular. 
— Nós não compartilhamos — respondi. Muito. — Ele só toma um golinho de mim durante, você sabe... o momento feliz. — Esses dias, Eric estava tendo muito mais momentos felizes do que eu, infelizmente. Eu ficava esperando que a magia da cama retornasse; se um homem podia realizar cura sexual, esse sujeito era Eric. 
Amelia sorriu, o que foi meu objetivo.
— Pelo menos... — Ela se virou sem terminar a sentença, mas estava pensando, Pelo menos você sente vontade de fazer sexo. 
Eu não sentia vontade de fazer sexo tanto quanto devia continuar tentando apreciar, mas definitivamente não queria discutir isso. Minha habilidade de deixar o controle de lado, que é a chave para um bom sexo, foi eliminada da existência durante a tortura. Eu estive absolutamente indefesa. Só podia desejar me recuperar nessa área também. Sabia que Eric podia sentir minha falta de prazer. Ele perguntou diversas vezes se eu tinha certeza de que queria fazer sexo. Em quase todas às vezes, eu disse sim, funcionando na base da teoria da bicicleta. Sim, eu caí. Mas estava sempre disposta a tentar pedalar novamente. 
— Então, como está indo o relacionamento? — ela disse. — Tirando o sexo. — Cada coisinha estava no carro de Amelia. Ela estava protelando, temendo o momento de realmente entrar no carro e ir embora. 
Era somente orgulho que me impedia de gritar com ela. 
— Acho que estamos indo muito bem — respondi num grande esforço para soar animada. — Ainda não tenho certeza do que sinto ao contrário do que o vínculo me faz sentir. 
Era bom ser capaz de falar sobre minha conexão sobrenatural com Eric, assim como da velha e normal atração homem-mulher. Mesmo antes dos ferimentos durante a Guerra Fae, Eric e eu estabelecemos o que os vampiros chamavam de vínculo de sangue, já que compartilhamos diversas vezes. Eu podia sentir a localização geral de Eric e seu humor, e ele podia sentir o mesmo de mim. Ele sempre estava vagamente presente no fundo de minha mente — como um ventilador ou um filtro de ar ligado para providenciar um pequeno zumbido que ajudava a dormir (era bom para mim que Eric dormisse o dia todo, porque podia ficar sozinha pelo menos parte do dia. Talvez ele se sentisse do mesmo modo quando eu ia para cama à noite?). Não era como se eu ouvisse vozes em minha cabeça nem nada — pelo menos, não mais do que o habitual. Mas se me sentisse feliz, eu tinha que verificar para ter certeza de que era eu e não Eric quem estava feliz. 
A mesma coisa para a raiva; Eric era perito em raiva, raiva controlada e cuidadosamente depositada, especialmente nos últimos tempos. Talvez ele estivesse pegando isso de mim. Eu mesma estava bem cheia de raiva nesses dias. 
Esqueci completamente de Amelia. Entrei em meu próprio canal de depressão. Ela me tirou dele. 
— Isso é simplesmente uma grande desculpa — disse acidamente. — Qual é, Sookie. Você o ama ou não. Não evite pensar a respeito, colocando toda a culpa no vínculo. Blá blá blá. Se você odeia tanto o vínculo, por que não explorou como pode se livrar dele? — Ela percebeu a expressão em meu rosto e a irritação desapareceu por completo. — Você quer que eu pergunte a Octavia? — ela perguntou num tom mais suave. — Se alguém sabe, é ela. 
— Sim, eu gostaria de descobrir — respondi após um instante. Respirei fundo. — Você está certa, eu acho. Ando tão deprimida que evito tomar qualquer decisão, ou agir sobre aquelas que já tomei. Eric é um espécime único. Mas eu o acho... um pouco dominador. 
Ele possuía uma personalidade forte e estava acostumado a ser o maior peixe do lago. Ele também sabia que tinha tempo infinito diante dele. Eu não. Ele ainda não tocara no assunto, mas cedo ou tarde, faria. 
— Dominador ou não, eu o amo — continuei. Nunca disse em voz alta. — E acho que essa é a questão. 
— Acho que sim. — Amelia tentou sorrir para mim, mas foi uma tentativa dolorosa. — Escute, continue pensando a respeito, o negócio do autoconhecimento. — Ela parou por um instante, a expressão congelada num meio-sorriso. — Bom, Sook, é melhor cair na estrada. Meu pai está esperando. Ele vai se meter na minha vida no minuto em que eu chegar à Nova Orleans. 
O pai de Amelia era rico, poderoso e não acreditava no poder dela. Ele estava muito errado ao não respeitar sua bruxaria. Amelia nasceu com o potencial para o poder, como toda verdadeira bruxa. Assim que ela tivesse mais algum treino e disciplina, ela seria realmente assustador-assustadora de propósito, não por causa da natureza drástica de seus erros. Eu esperava que sua conselheira, Octavia, tivesse um programa em vista para desenvolver e treinar o talento de Amelia. 
Depois que acenei para Amelia no pátio, o sorriso largo sumiu de meu rosto. Sentei-me nos degraus da varanda e chorei. Não precisava de muito para chorar ultimamente, e a partida de minha amiga foi apenas o gatilho agora. Havia tanto sobre o que chorar. Minha cunhada, Crystal, foi assassinada. O amigo de meu irmão, Mel, foi executado. Tray, Claudine e Clancy o vampiro foram mortos no cumprimento do dever. Já que Crystal e Claudine estavam grávidas, isso acrescentava mais duas mortes à lista. 
Provavelmente isso devia me fazer ansiar pela paz acima de tudo. Mas, ao invés de me tornar a Gandhi de Bon Temps no coração, eu sustentava a noção de que desejava que muitas pessoas estivessem mortas. Não fui diretamente responsável pela maioria das mortes ocorridas em minha esteira, mas fui assombrada pela sensação de que nenhuma delas teria acontecido se não fosse por mim. Em meus momentos mais sombrios — e esse era um deles — eu imaginava se minha vida valia o preço que foi pago. 
 
Meu primo Claude encontrava-se sentado na varanda da frente quando levantei numa manhã viva e nublada, alguns dias depois da partida de Amelia. 
Claude não era tão habilidoso em esconder a presença como meu bisavô Niall. Porque Claude era fae, eu não conseguia ler sua mente — mas percebia que estava lá, se isso não era um modo obscuro demais para se expressar. Levei meu café até a varanda, embora o ar estivesse frio, porque tomar a primeira xícara de café na varanda foi uma de minhas coisas favoritas antes de eu... antes da Guerra Fae. 
Eu não via meu primo há semanas. Não o vi durante a Guerra Fae, e ele não entrou em contato desde a morte de Claudine. 
Trouxe uma caneca extra para Claude e entreguei a ele. Ele aceitou em silêncio. Considerei a possibilidade de ele jogá-la em meu rosto. Sua presença inesperada me surpreendeu. Eu não tinha ideia do que esperar. A brisa levantou seus longos cabelos pretos, jogando-os como fitas de ébano ondulantes. Os olhos caramelo estavam vermelhos. 
— Como ela morreu? — ele disse. 
Sentei-me no primeiro degrau. 
— Eu não vi — falei, inclinando-me sobre os joelhos. — Estávamos naquele velho prédio que a Dra. Ludwig usava como hospital. Acho que Claudine estava tentando deter as outras fadas de chegarem ao corredor para entrar no quarto onde eu me escondia com Bill, Eric e Tray. — Olhei para Claude para me certificar de que ele conhecia o lugar, e ele assentiu. — Tenho certeza de que foi Breandan quem a matou, porque uma das agulhas de tricô dela estava enfiada em seu ombro quando ele invadiu nosso quarto. 
Breandan, o inimigo de meu bisavô, também foi príncipe dos fae. Breandan acreditou que os humanos e os fae não deviam se relacionar. Ele acreditou naquilo ao ponto do fanatismo. Ele queria que os fae se abstivessem completamente de incursões ao mundo humano, apesar das enormes apostas financeiras no comércio mundano e nos produtos que produziam... produtos que os ajudavam a se misturar no mundo moderno. Breandan odiou especialmente os ocasionais amantes humanos, uma indulgência fae, e odiou as crianças nascidas como resultado de tais ligações. Ele quis os fae separados, fechados em seu próprio mundo, relacionando-se apenas com sua própria raça. 
Estranhamente, foi o que meu bisavô acabou decidindo fazer após derrotar as fadas que acreditavam nessa política de apartheid. Após toda a matança, Niall concluiu que a paz entre os fae e a segurança dos humanos só podia ser alcançada se os fae se fechassem em seu mundo. Breandan conseguiu seu objetivo com a própria morte. Em meus piores momentos, achei que a decisão final de Niall tornou a guerra toda desnecessária.
— Ela estava defendendo você — disse Claude, me trazendo de volta ao presente. Não havia nada em sua voz. Nenhuma acusação ou raiva, nenhuma pergunta. 
— Sim. — Aquilo foi parte do trabalho dela, me defender, sob ordens de Niall. 
Dei um longo gole no café. A caneca de Claude permaneceu intocada no braço do balanço na varanda. Talvez Claude estivesse se perguntando se devia me matar. Claudine foi sua última gêmea sobrevivente. 
— Você sabia sobre a gravidez — disse finalmente. 
— Ela me contou pouco antes de ser morta. — Larguei minha caneca e abracei os joelhos. Esperei pelo golpe final. No começo, não me importei tanto, o que foi ainda mais horrível. 
Claude disse: — Soube que Neave e Lochlan capturaram você. É por isso que está mancando? — A mudança de assunto me pegou desprevenida. 
— Sim — falei. — Eles me tiveram por algumas horas. Niall e Bill Compton os mataram. Só para que você saiba — foi Bill quem matou Breandan, com a pá de ferro de minha avó. — Embora a pá de jardinagem estivesse no galpão de ferramentas da minha família durante décadas, eu a associava a vovó. 
Claude permaneceu sentado, belo e ilegível, durante um longo tempo. Ele nunca me encarou diretamente nem bebeu o café. Quando alcançou alguma conclusão interior, ele se levantou e partiu, caminhando pelo pátio na direção da Rodovia Hummingbird. Eu não sabia onde seu carro foi estacionado. Pelo que sabia, ele podia ter vindo caminhando desde Monroe, ou voado num tapete mágico. Entrei em casa, caí de joelhos do lado de dentro da porta e chorei. Minhas mãos tremiam. Meus pulsos doíam. 
Durante o tempo todo em que conversamos, esperei que ele agisse. Percebi que queria viver. 
 
JB disse: — Levante o braço até em cima, Sookie! — Seu belo rosto estava vincado de concentração. Segurando o peso de dois quilos, levantei devagar o braço esquerdo. Deus do céu, como doía. O mesmo com o direito. 
— Okay, agora as pernas — disse JB, quando meus braços tremeram com o esforço. JB não era um fisioterapeuta licenciado, mas personal trainer, então possuía experiência prática em ajudar pessoas a superarem várias lesões. Talvez ele nunca tenha encarado uma variedade como a minha, já que fui mordida, cortada e torturada. Mas não tive que explicar os detalhes a JB, e ele não notaria que minhas lesões eram longe de serem típicas de um acidente de carro. Eu não queria nenhuma especulação em Bon Temps sobre meus problemas físicos — então eu fazia visitas ocasionais à Dra. Amy Ludwig, que parecia suspeitosamente com uma hobbit, e consegui a ajuda de JB du Rone, que era um bom treinador, mas burro como uma caixa de pedras. 
A esposa de JB, minha amiga Tara, encontrava-se sentada num dos bancos de musculação. Estava lendo O que Esperar Quando Está Esperando. Tara, com quase cinco meses de gravidez, estava determinada a ser a melhor mãe possível. Já que JB estava disposto, mas não era brilhante, Tara assumiu o papel do Parente Mais Responsável. Ela ganhara dinheiro para gastar no colegial como babá, o que lhe dava alguma experiência em cuidado infantil. Ela franzia o cenho ao virar as páginas, um olhar familiar para mim durante nossos anos escolares. 
— Você já escolheu um médico? — eu disse, após terminar meus exercícios de pernas. Meus quadris gritavam, particularmente do lado esquerdo ferido. Estávamos na academia onde JB trabalhava, depois do expediente, porque eu não era um membro. O chefe de JB concordou com o arranjo temporário para manter JB feliz. JB era uma enorme vantagem para a academia; desde que começou a trabalhar, as novas clientes femininas aumentaram em porcentagem considerável. 
— Acho que sim — disse Tara. — Havia quatro escolhas nessa área, e nós entrevistamos todos. Tive minha primeira consulta com o Dr. Dinwiddie, aqui em Clarice. Sei que é um hospital pequeno, mas não sou de alto risco e é tão perto. 
Clarice ficava a apenas alguns quilômetros de Bon Temps, onde todos nós morávamos. Era possível chegar à academia de minha casa em menos de vinte minutos. 
— Ouvi coisas boas a respeito dele — respondi, a dor em meus quadris fazendo as coisas girarem em minha cabeça. Minha testa começou a suar frio. Eu costumava pensar em mim como uma mulher em forma e, na maior parte, fui feliz. Agora havia dias em que tudo que conseguia fazer era sair da cama e ir trabalhar. 
— Sook — disse JB — veja o peso aqui. — Ele sorria para mim. 
Pela primeira vez, eu registrei que fiz dez extensões com quatro quilos a mais do que estava acostumada. Retribuí o sorriso. Não durou muito, mas eu sabia que tinha feito algo bom. 
— Talvez você seja nossa babá de vez em quando — disse Tara. — Ensinaremos o bebê a chamá-la de Tia Sookie. 
Eu seria uma tia honorária. Poderia tomar conta de um bebê. Eles confiavam em mim. Me descobri planejando o futuro. 
 
Passei a noite seguinte com Eric. Como acontecia pelo menos três ou quatro vezes por semana, eu acordei ofegando, aterrorizada, completamente à deriva. Abracei-me a ele como se a tempestade fosse me levar a não ser que Eric fosse minha âncora. Eu já estava chorando quando acordei. Não foi a primeira vez que isso aconteceu, mas dessa vez ele chorou comigo, lágrimas sangrentas manchando a brancura de seu rosto de um modo alarmante. 
— Não — implorei. Eu vinha tentando arduamente agir como antes quando estava com ele. Obviamente, ele sabia que não era assim. Esta noite, eu pude sentir sua resolução. Eric tinha algo a dizer, e diria mesmo se eu quisesse ou não ouvir. 
— Eu senti seu medo e sua dor aquela noite — ele disse, numa voz sufocada. — Mas não pude ir até você. 
Finalmente, ele estava me contando algo que estive esperando para saber.
— Por que não? — falei, tentando muito manter a voz controlada. Isso parecia incrível, mas estive tão abalada que não ousei perguntar. 
— Victor não me deixou ir — ele disse. Victor Madden era o chefe de Eric; ele foi nomeado por Felipe de Castro, Rei de Nevada, para supervisionar o reino conquistado da Louisiana. 
Minha reação inicial à explicação de Eric foi de amargo desapontamento. Ouvi essa história antes. Um vampiro mais poderoso do que eu mandou fazer; a desculpa de Bill para voltar para sua criadora, Lorena, revisitado. 
— Certo — respondi. Virei e deitei de costas para ele. Senti a fria, arrepiante tristeza da desilusão. Decidi que vestiria minhas roupas para voltar à Bon Temps, assim que reunisse a energia. A tensão, a frustração, a raiva em Eric estavam me esgotando. 
— O pessoal de Victor me acorrentou com prata — Eric disse atrás de mim. — Me queimou totalmente. 
— Literalmente — tentei não soar tão cética quanto me sentia. 
— Sim, literalmente. Eu sabia que algo estava acontecendo com você. Victor estava no Fangtasia naquela noite, como se soubesse de antemão que devia estar lá. Quando Bill ligou para me contar que você foi capturada, consegui ligar para Niall antes que três membros do pessoal de Victor me acorrentassem à parede. Quando — protestei — Victor disse que não podia permitir que eu escolhesse lados na Guerra Fae. Disse que não importava o que acontecesse com você, eu não podia me envolver. 
A fúria fez Eric ficar em silêncio por um longo momento. Fluiu através de mim como um jato ardente, gelado. Ele continuou a história num tom sufocado. 
— Pam também foi presa e isolada pelo grupo de Victor, embora eles não a tenham acorrentado. — Pam era a segunda-em-comando de Eric. — Já que Bill estava em Bon Temps, ele foi capaz de ignorar as mensagens telefônicas de Victor. Niall encontrou Bill em sua casa para rastreá-la. Bill ouviu falar de Lochlan e Neave. Todos nós ouvimos. Sabíamos que o tempo se esgotaria para você. 
Eu ainda estava de costas para Eric, mas ouvia mais do que sua voz. Dor, raiva, desespero. 
— Como você conseguiu escapar das correntes? — perguntei na escuridão. 
— Lembrei a Victor que Felipe lhe prometeu proteção, prometeu pessoalmente. Victor fingiu não acreditar em mim. — Senti a cama se mover quando Eric se jogou contra os travesseiros. — Alguns dos vampiros eram fortes e honrados o bastante para lembrar que juraram lealdade a Felipe, não Victor. Embora não tenham desafiado Victor na cara, eles deixaram Pam ligar para nosso novo rei pelas costas. Quando conseguiu falar com Felipe, ela explicou que você e eu havíamos nos casado. Então exigiu que Victor pegasse o telefone e falasse com Felipe. Victor não ousou recusar. Felipe ordenou a Victor que me soltasse. — Alguns meses atrás, Felipe de Castro se tornou Rei de Nevada, da Louisiana e do Arkansas. Ele era poderoso, velho e muito astuto. E me devia um grande favor. 
— Felipe puniu Victor? — A esperança permanece eterna. 
— Essa é a questão — disse Eric. Em algum lugar ao longo do tempo, meu namorado Viking leu Shakespeare1. — Victor declarou que esqueceu temporariamente de nosso casamento. 
Mesmo que até eu tentasse esquecer às vezes, isso me deixou zangada. Victor esteve sentado bem lá no escritório de Eric, quando eu entreguei a faca cerimonial — ignorando totalmente que minha ação constituía um casamento em estilo vampiro. Posso ter sido ignorante, mas Victor certamente não. 
— Victor disse ao nosso rei que eu estava mentindo numa tentativa para salvar minha amante humana dos fae. Ele disse que vidas vampiras não deviam ser perdidas no resgate a uma humana. Disse a Felipe que não acreditou em mim e em Pam quando dissemos que Felipe prometeu sua proteção depois de você salvá-lo de Sigebert. 
Rolei para encarar Eric, e um feixe de luz da lua vindo da janela pintou-o com sombras escuras e prateadas. Em minha breve experiência com o poderoso vampiro que se colocou numa posição de grande domínio, Felipe não foi absolutamente nenhum tolo. 
— Incrível. Por que Felipe não matou Victor? — perguntei. 
— Eu pensei muito a respeito, é claro. Acho que Felipe tem que fingir que acredita em Victor. Acho que Felipe percebe que ao deixar Victor como seu tenente encarregado de todo o estado da Louisiana, ele inflamou as ambições de Victor ao ponto da indecência. 
Era possível olhar para Eric objetivamente, eu descobri, enquanto pensava no que ele disse. Minha confiança me deixou encrencada no passado, e eu não ia chegar perto demais do fogo dessa vez sem uma consideração cuidadosa. Uma coisa era curtir risadas com Eric ou ansiar pelos momentos em que nos enroscávamos no escuro. Outra coisa era
                                              
 1 No original, “There’s the rub” cita uma frase da peça Hamlet de Shakespeare, “Therein lies the rub...”
confiar nele com emoções mais frágeis. Eu realmente não estava confiando agora.
— Você estava zangado quando veio ao hospital — falei indiretamente. Quando acordei na velha fábrica que a Dra. Ludwig usava como hospital de campanha, meus ferimentos eram tão dolorosos que achei que morrer fosse mais fácil do que viver. Bill, que me salvou, foi envenenado pela mordida com dentes de prata de Neave. Sua sobrevivência foi um ponto de interrogação. O mortalmente ferido Tray Dawson, o amante lobisomem de Amelia, agüentou o suficiente para morrer pela espada quando as forças de Breandan invadiram o hospital. 
— Enquanto você esteve com Neave e Lochlan, eu sofri com você — ele disse, encontrando diretamente meus olhos. — Senti dor com você. Sangrei com você— não apenas porque estamos atados, mas por causa do amor que tenho por você. 
Arqueei uma sobrancelha cética. Não pude evitar, embora pudesse sentir que ele falava sério. Eu simplesmente estava disposta a acreditar que Eric teria vindo me ajudar mais rápido, se pudesse. Estava disposta a acreditar que ele ouviu o eco de horror em meu momento com os torturadores fae. Mas minha dor, sangue e terror foram apenas meus. Ele pode ter sentido, mas de um lugar distante. 
— Eu acredito que você teria estado lá se pudesse — respondi, sabendo que minha voz estava bem calma. — Eu realmente acredito nisso. Sei que você os teria matado. — Eric apoiou-se num cotovelo e a mão grande pressionou meu rosto contra seu peito. 
Eu não pude negar que me senti bem depois que ele resolveu me contar. No entanto, não me senti melhor como esperava, embora agora soubesse por que ele não veio quando gritei por ele. Nem conseguia entender por que demorou tanto para me contar. 
Impotência era um estado que Eric não encontrava com freqüência. Eric era sobrenatural, incrivelmente forte e um grande lutador. Mas não era um super-herói e não podia superar vários membros determinados de sua própria raça. E percebi que me deu um bocado de sangue quando ele próprio estava se curando das correntes de prata. 
Finalmente, algo dentro de mim relaxou com a lógica de sua história. Acreditei de coração nele, não apenas em minha cabeça.
Uma lágrima vermelha caiu em meu ombro nu e escorreu. Enxuguei-a com meu dedo, colocando-o sobre seus lábios — devolvendolhe a dor. Eu tinha um bocado de minha própria dor. 
— Acho que precisamos matar Victor — falei, e seus olhos encontraram os meus. 
Eu finalmente consegui surpreender Eric. 
 
— Então — disse meu irmão. — Como pode perceber, eu e Michele ainda estamos nos vendo. 
Ele se encontrava de costas para mim, virando os bifes na grelha. Eu estava sentada numa cadeira dobrável, observando o enorme lago e seu cais. Era uma bela noite, fresca e exuberante. De fato me sentia contente sentada ali, observando-o trabalhar; estava apreciando ficar com Jason. Michele estava dentro de casa fazendo uma salada. Pude ouvi-la cantando Travis Tritt. 
— Fico feliz — respondi, e estava sendo sincera. Era a primeira vez em meses que me via num cenário particular com meu irmão. Jason passou por seu próprio momento difícil. Sua esposa afastada e o filho não-nascido morreram de forma horrível. Ele descobrira que seu melhor amigo esteve apaixonado por ele, de modo doentio. Mas ao observá-lo lidar com a churrasqueira, ouvindo sua namorada cantarolar dentro de casa, entendi que Jason era um grande sobrevivente. Ali estava meu irmão, saindo novamente, satisfeito com a perspectiva de comer um bife, a caçarola de purê de batata que eu trouxe e a salada que Michele estava fazendo. Eu tinha que admirar a determinação de Jason em encontrar prazer na vida. Meu irmão não era um bom exemplo de muitas formas, mas eu dificilmente podia acusá-lo. 
— Michele é uma boa mulher — falei em voz alta. 
Ela era — embora talvez não do modo como nossa avó teria usado o termo. Michele Schubert era absolutamente franca sobre tudo. Não era possível envergonhá-la, porque ela não faria nada que não estivesse disposta a fazer. Operando no mesmo princípio de total revelação, se Michele tivesse queixa contra você, você saberia. Ela trabalhava numa oficina concessionária da Ford como organizadora e recepcionista. Era um tributo à sua eficiência ainda trabalhar para o exsogro (de fato, ele costumava dizer que gostava mais dela do que do próprio filho, alguns dias). 
Michele saiu até o cais. Ela vestia jeans e camisa pólo com logotipo da Ford que usava no trabalho, e o cabelo escuro estava preso num nó na cabeça. Michele gostava de maquiagem pesada nos olhos, bolsas grandes e saltos altos. Ela se encontrava descalça agora. 
— Ei, Sookie, você gosta de molho caseiro? — ela perguntou. — Também temos mostarda de mel. 
— Caseiro está ótimo — falei. — Precisa de ajuda? 
— Não, tudo bem. — O celular de Michele tocou. — Droga, é Papa Schubert de novo. Aquele homem não consegue encontrar nem o traseiro com as mãos. 
Ela voltou para dentro da casa, o telefone no ouvido. 
— Mas eu me preocupo sobre colocá-la em perigo — disse Jason, na voz tímida que usava quando perguntava minha opinião a respeito de algo sobrenatural. — Quero dizer... aquela fada, Dermot, que se parece comigo. Você sabe se ele ainda está por perto? 
Ele se virou para me encarar. Estava inclinado sobre o anteparo do cais que foi acrescentado à casa que minha mãe e meu pai construíram quando esperavam Jason. Mamãe e papai não conseguiram apreciar por mais do que uma década. Eles morreram quando eu tinha sete anos e, quando Jason ficou velho o suficiente para morar sozinho (em sua opinião), ele se mudou da casa de vovó para esta. Houve muitas festas selvagens por dois ou três anos, mas ele se estabilizou. Esta noite ficou claro para mim que suas perdas recentes o deixaram mais sóbrio. 
Dei um gole em minha garrafa. Eu não era uma grande bebedora — via muita indulgência no trabalho — mas foi impossível declinar uma cerveja gelada nessa noite brilhante. 
— Também desejava saber onde Dermot está — respondi. Dermot era o irmão fraterno de nosso avô metade-fada Fintan. — Niall se fechou em Fairy com todas as outras fadas que quiseram se juntar a ele, e estou cruzando os dedos para que Dermot esteja lá. Claude ficou aqui. Eu o vi algumas semanas atrás. 
Niall era nosso bisavô. Claude era neto através do casamento de Niall com outra fada pura. 
— Claude, o stripper. 
— O dono de um clube de strip, que tira a roupa na noite das mulheres — eu corrigi. — Nosso primo também é modelo de capas de romances também. 
— É, aposto que as garotas desmaiam quando ele passa. Michele tem um livro com ele num traje de gênio na capa. Ele deve adorar cada minuto disso. — Jason definitivamente soava invejoso. 
— Aposto que sim. Sabe, ele é um pé no saco — falei, e ri com surpresa. 
— Você o vê muito?
— Só uma vez, desde que me machuquei. Mas quando peguei a correspondência ontem, ele mandou alguns ingressos grátis para a noite das mulheres no Hooligans. 
— Você acha que vai encontrá-lo de novo? 
— Ainda não. Talvez quando eu... estiver num humor melhor. 
— Acha que Eric se importaria por você ver outro sujeito pelado? — Jason estava tentando me mostrar o quanto mudou com sua referência casual ao meu relacionamento com um vampiro. Bom, pontos para meu irmão pela “disposição”. 
— Não tenho certeza — falei. — Mas eu não ia assistir outros sujeitos tirando a roupa sem deixar Eric saber antes. Daria chance para ele dar sua opinião. Você contaria a Michele se fosse a um clube para assistir mulheres tirarem a roupa? 
Jason riu. — Pelo menos, eu mencionaria só para ouvir o que ela tem a dizer. — Ele colocou os bifes numa bandeja e gesticulou para as portas de vidro deslizantes. — Estamos prontos — disse, e abri a porta para ele. Eu arrumei a mesa antes e agora servi o chá. Michele colocou a salada e a caçarola de batata na mesa, e trouxe da despensa molho para o bife. Jason adorava bifes grossos. 
Com um enorme garfo de churrasco, Jason colocou um bife em cada prato. Alguns minutos depois, estávamos todos comendo. Era uma atmosfera familiar, nós três. 
— Calvin veio à concessionária hoje — disse Michele. — Está pensando em trocar sua velha picape. — Calvin Norris era um bom homem com um bom emprego. Tinha uns quarenta anos e carregava muitas responsabilidades nos ombros. Era o líder de meu irmão, o macho dominante na comunidade pantera centrada no pequeno vilarejo de Hotshot. 
— Ele ainda está namorando Tanya? — perguntei. Tanya Grissom trabalhava na Norcross, assim como Calvin, mas às vezes preenchia a vaga no Merlotte’s quando uma das outras garçonetes não podia trabalhar. 
— Sim, ela está morando com ele — disse Jason. — Eles brigam com freqüência, mas acho que está ficando. 
Calvin, líder dos lobi-panteras, se esforçava para não se envolver em assuntos vampiros. Ele já tinha um bocado com que lidar desde que os Lobis se revelaram. Declarou-se de dupla-natureza no dia seguinte no intervalo do trabalho. Agora que a notícia se espalhou, Calvin conseguiu ainda mais respeito. Ele possuía uma boa reputação na área de Bon Temps, mesmo se a maioria das pessoas que moravam em Hotshot fosse recebida com alguma suspeita já que a comunidade era tão isolada e peculiar. 
— Por que você não se revelou como Calvin? — perguntei. Era um pensamento que nunca ouvi na cabeça de Jason. 
Meu irmão pareceu pensativo, uma expressão que parecia meio curiosa nele. — Acho que simplesmente não estou pronto para responder algumas perguntas — ele disse. — É uma coisa pessoal, a mudança. Michele sabe e isso é tudo que importa. — Michele sorriu para ele. 
— Estou realmente orgulhosa de Jason — ela disse, e era suficiente. — Ele se mostrou a altura quando se transformou em pantera. Não é como se não pudesse evitar. Está tirando o melhor partido disso. Sem lamentos. Ele dirá às pessoas quando estiver pronto. 
Jason e Michele simplesmente estavam me surpreendendo de todas as formas. 
— Eu nunca disse nada a ninguém — assegurei. 
— Nunca achei que você diria. Calvin diz que Eric é uma espécie de chefe vampiro — disse Jason, pulando para um assunto diferente. 
Eu não falo sobre política vampira de modo algum com nãovampiros. Simplesmente não é uma boa ideia. Mas Jason e Michele compartilharam comigo, e eu queria retribuir. 
— Eric possui algum poder. Mas tem um novo chefe, e as coisas andam sensíveis. 
— Você quer falar a respeito? — Eu podia notar que Jason estava incerto quanto a ouvir qualquer coisa que eu escolhesse contar, mas se esforçava para ser um bom irmão. 
— Melhor não — respondi, e vi seu alívio. Até Michele ficou contente em dar atenção ao seu bife. — Mas tirando a relação com outros vampiros, Eric e eu estamos bem. Sempre existem concessões nos relacionamentos, certo? — Embora Jason tivesse sua cota de relacionamentos ao longo dos anos, ele aprendeu sobre concessões apenas recentemente. 
— Andei conversando com Hoyt novamente — Jason disse, e entendi a importância. Hoyt, sombra de Jason durante anos, se afastou de meu irmão por um tempo. A noiva de Hoyt, Holly, que trabalhava comigo no Merlotte’s, não era uma grande fã de Jason. Fiquei surpresa por ele ter seu melhor amigo de volta, e ainda mais por Holly ter concordado com esse reatamento. 
— Eu mudei um bocado, Sookie — disse meu irmão, como se (dessa vez) estivesse lendo minha mente. — Quero ser um bom amigo para Hoyt. Quero ser um bom namorado para Michele. — Ele olhou sério para ela, pousando a mão sobre a dela. — Quero ser um irmão melhor. Somos tudo o que restou. Exceto pela relação com as fadas, e quero esquecê-las o mais rápido possível. — Ele olhou para o prato, embaraçado. — Eu mal consigo acreditar que vovó traiu vovô. 
— Eu andei pensando a respeito — falei. Vinha lutando com a mesma descrença. — Vovó realmente queria filhos e isso não aconteceria para ela e vovô. Estava achando que talvez ela tenha sido enfeitiçada por Fintan. Fadas podem confundir sua cabeça, como os vampiros. E você sabe como eles são bonitos.
— Claudine com certeza era. E acho que para as mulheres, Claude é bem bonitão. 
— Claudine realmente ajustava já que se passava por humana. — Claudine, gêmea de Claude, tinha 1.80m de uma beleza estonteante. 
— Vovô não era lá grande coisa no quesito aparência. 
— É, eu sei. — Nos encaramos em silêncio, percebendo o poder da atração física. Então dissemos ao mesmo tempo: — Mas vovó? — E não conseguimos evitar a risada. Michele se esforçou para manter o rosto sério, mas finalmente não conseguiu esconder o sorriso de nós. 
Já era bem difícil pensar em seus pais fazendo sexo, mas seus avós? Totalmente errado. 
— Agora que estou pensando em vovó, estava querendo lhe perguntar se posso pegar aquela mesa que ela guardou no sótão — disse Jason. — A mesa entalhada2 que fazia par com a poltrona da sala? 
— Claro, passe lá para pegar qualquer hora — eu disse. — Provavelmente continua no mesmo lugar onde foi colocado no dia em que ela pediu para levá-la ao sótão. 
Eu fui embora logo depois, com minha caçarola quase vazia, algumas sobras de churrasco e um coração animado. 
Certamente não pensei que jantar com meu irmão e a namorada fosse lá grande coisa, mas quando cheguei em casa aquela noite, dormi direto até de manhã, pela primeira vez em semanas. 
                                              
 2 No original, pie-crust table, é uma mesa redonda com bordas talhadas em formato de torta. 
 
— Aí está — disse Sam. Tive que me esforçar para ouvi-lo. Alguém colocou “Bad Things”3 de Jace Everett para tocar, e simplesmente o bar inteiro estava cantando junto. — Você sorriu três vezes esta noite. 
— Você está contando minhas expressões faciais? — Larguei minha bandeja e lancei-lhe um olhar. Sam, meu chefe e amigo, é um verdadeiro metamorfo; ele pode se transformar em qualquer coisa de sangue quente, eu acho. Não lhe perguntei sobre lagartos, cobras e insetos. 
— Bom, é ótimo ver esse sorriso de novo — ele disse. Ele reorganizou algumas garrafas na prateleira, só para parecer ocupado. — Senti falta. 
— É ótimo sentir vontade de sorrir — falei. — A propósito, gostei do corte de cabelo. 
Sam passou a mão na cabeça, embaraçado. Seu cabelo estava curto e abraçava seu crânio como um gorro dourado-avermelhado. 
— O verão está chegando. Achei que podia ser bom. 
— Provavelmente será. 
— Você já começou a tomar banho de sol? — Meu bronzeado era famoso. 
— Ah, sim. — De fato, comecei bem cedo nesta primavera. No primeiro dia em que coloquei meu traje de banho, todo o inferno irrompeu. Eu matei uma fada. Mas isso foi passado. Deitei ontem e nada aconteceu. Embora confesse não ter levado o rádio para fora, porque queria ter certeza de que podia ouvir se algo estivesse me espionando. Mas não houve nada. De fato, tive uma hora incrivelmente pacífica
                                              
 3 Para quem não sabe, é a música tema de abertura da série de TV True Blood, baseada nos livros de Sookie Stackhouse.
 
deitada sob o sol, observando uma borboleta flutuar de vez em quando. Uma das roseiras de minha tatara-tataravó estava desabrochando e o perfume curou algo dentro de mim. — O sol simplesmente me faz sentir ótima — respondi. 
De repente, lembrei que um fae me contou que eu descendia de fadas do céu, ao invés de fadas da água. Eu não sabia nada a respeito, mas imaginei se meu amor pelo sol era algo genético. 
Antoine gritou: — Pedido pronto! — e corri para buscar os pratos. 
Antoine se estabeleceu no Merlotte’s e todos nós esper{vamos que ele mantivesse o emprego de cozinheiro. Esta noite ele se movimentava ao redor da pequena cozinha como se tivesse oito braços. O card{pio do Merlotte’s era o mais b{sico — hambúrgueres, tiras de frango, salada com tiras de frango em pedaços, batatas fritas com chili, fritas com picles — mas Antoine dominou com incrível rapidez. Agora em seus cinqüenta anos, Antoine saiu de Nova Orleans depois de ficar no Superdome durante o Katrina. Eu respeitava Antoine por sua atitude positiva e a determinação de recomeçar após perder tudo. Ele também era bom para D’Eriq, que o ajudava com a preparação da comida e limpava as mesas. D’Eriq era um doce, mas devagar. 
Holly estava trabalhando esta noite e, enquanto servia rapidamente os drinques e pratos, parava perto de Hoyt Fortenberry, seu noivo, empoleirado numa banqueta no balcão. A mãe dele ficava simplesmente feliz ao ficar com o filhinho de Holly nas noites em que Hoyt queria passar tempo com ela. Era difícil olhar e reconhecê-la como a Wiccan gótica rabugenta que foi numa fase da vida. Seu cabelo estava em seu tom castanho-escuro natural e cresceu quase na altura do ombro, a maquiagem era leve e ela sorria o tempo todo. Hoyt, o melhor amigo de meu irmão novamente já que resolveram as diferenças, parecia um homem mais forte agora que tinha Holly para apoiá-lo. 
Olhei para Sam, que acabava de atender o celular. Sam estava passando um bocado de tempo naquele telefone ultimamente, e suspeitei que estivesse vendo alguém também. Eu podia descobrir se olhasse dentro de sua cabeça por tempo suficiente (embora os de dupla-natureza fossem mais difíceis de ler do que simples humanos comuns), mas me esforcei para ficar afastada dos pensamentos de Sam. É simplesmente grosseiro explorar as ideias das pessoas com quem se importa. Sam sorria enquanto falava, e era bom vê-lo — pelo menos temporariamente — despreocupado. 
— Você tem visto o Vampiro Bill? — Sam perguntou quando o ajudei a fechar uma hora mais tarde. 
— Não. Não o tenho visto há um bom tempo — falei. — Me pergunto se Bill está me evitando. Passei na casa dele algumas vezes, deixei um engradado de TrueBlood e um bilhete de agradecimento por tudo que fez quando veio me resgatar, mas ele nunca ligou ou apareceu. 
— Ele veio aqui algumas noites atrás quando você estava de folga. Acho que você devia lhe fazer uma visita — disse Sam. — Não vou dizer mais nada. 
 
Numa bela noite mais tarde naquela semana, eu remexi o armário, procurando pela minha maior lanterna. A sugestão de Sam de que eu precisava ver Bill persistia em mim, então depois que voltei para casa do trabalho, resolvi atravessar o cemitério até a casa de Bill. 
O Cemitério Doce Lar é o mais antigo cemitério de Renard Parish. Não há muito espaço sobrando para os mortos, então existe um daqueles novos “locais de enterro” com l{pides no chão na parte sul da cidade. Eu detesto. Mesmo com o solo irregular, as árvores crescidas e algumas cercas caindo em alguns pontos, para não dizer nada das lápides antiqüíssimas, eu adoro o Doce Lar. Jason e eu brincamos ali quando crianças, sempre que conseguíamos escapar da atenção de vovó. 
O caminho através dos memoriais e árvores até a casa de Bill era uma segunda natureza, desde a época em que ele foi meu primeiro namorado. Os sapos e insetos estavam começando sua cantoria de verão. O ruído só aumentaria com o clima quente. Lembrei de D’Eriq me perguntando se eu não tinha medo de morar perto do cemitério, e sorri comigo mesma. Não tinha medo dos mortos debaixo da terra. Os mortos andando e falando eram muito mais perigosos. Cortei uma rosa para colocar sobre o túmulo de minha avó. Tinha certeza que ela sabia que eu estava lá e pensava nela. 
Havia uma fraca lâmpada acesa na velha casa dos Compton, que foi construída quase na mesma época da minha. Apertei a campainha. A não ser que Bill estivesse perambulando pela floresta, eu tinha certeza que ele estava em casa, já que o carro se encontrava ali. Mas tive que esperar um tempo até a porta se abrir rangendo. 
Ele acendeu a luz da varanda e eu tentei não ofegar. Ele parecia horrível.
Bill foi envenenado por prata durante a Guerra Fae, graças aos dentes de Neave. Ele recebeu quantidades maciças de sangue desde então — dos colegas vampiros, mas eu observei com alguma inquietação que sua pele ainda estava cinzenta ao invés de branca. Seus passos vacilavam, e a cabeça pendia um pouco para frente como a de um homem velho. 
— Sookie, entre — ele disse. Até sua voz não parecia tão forte quanto antes. Apesar das palavras educadas, eu não sabia dizer como ele realmente se sentia sobre minha visita. Não consigo ler mentes vampiras, uma das razões pelas quais me senti tão atraída por Bill no início. Pode imaginar como é embriagador o silêncio depois de uma ininterrupta troca indesejável. 
— Bill — eu disse, tentando soar menos chocada do que me sentia. — Você está se sentindo melhor? Esse veneno em seu organismo... está desaparecendo? 
Eu podia jurar que ele suspirou. Ele gesticulou para que o seguisse até a sala de estar. As lâmpadas estavam apagadas. Bill acendera velas. Contei oito. Imaginei o que ele esteve fazendo, sentado sozinho sob as luzes tremeluzentes. Escutando música? Ele adorava seus CDs, particularmente Bach. 
Me sentindo distintamente preocupada, sentei no sofá, enquanto Bill ocupava sua poltrona favorita do outro lado da mesa de centro baixa. Ele estava bonito como sempre, mas seu rosto carecia de animação. Estava nitidamente sofrendo. Agora eu soube por que Sam quis que eu o visitasse. 
— Você está bem? — ele perguntou. 
— Estou bem melhor — disse cuidadosamente. Ele viu o que eles fizeram de pior comigo. 
— As cicatrizes, a... mutilação? 
— As cicatrizes estão lá, mas mais leves do que eu esperava. Os pedaços que faltavam foram preenchidos. Eu tenho uma espécie de covinha nessa coxa — respondi, dando um tapinha no joelho esquerdo. — Mas tenho um bocado de coxa disponível. — Tentei sorrir, mas sinceramente estava preocupada demais para conseguir. — Você está melhorando? — perguntei de novo, hesitante. 
— Não estou pior — ele disse. Deu de ombros, numa levantada mínima.
— Por que a apatia? — falei. 
— Eu não sinto vontade de fazer mais nada — Bill contou, após uma pausa comprida. — Não estou mais interessado em meu computador. Não sinto inclinação para trabalhar nos acréscimos e subtrações do banco de dados. Eric manda Felicia para embalar os pedidos e despachá-los. Ela me dá um pouco de sangue enquanto está aqui. — Felicia era a bartender do Fangtasia. Ela não era vampira há muito tempo. 
Vampiros podiam sofrer de depressão? Ou o envenenamento por prata era o responsável?
— Não há ninguém que possa ajudá-lo? Quero dizer, ajudá-lo a se
curar?
Ele sorriu de modo sardônico. — Minha criadora — ele respondeu. — Se pudesse beber de Lorena, eu teria me curado completamente agora. 
— Bem, é uma pena. — Não podia deixá-lo saber que isso me incomodava. Eu matei Lorena. Sacudi meus sentimentos. Ela precisou ser morta, e agora estava feito. — Ela criou outros vampiros? 
Bill pareceu levemente menos apático. — Sim, criou. Ela tem outra criança viva. 
— Bom, isso ajudaria? Ter sangue desse vampiro? 
— Eu não sei. Pode ajudar. Mas eu não vou... não posso procurá
la. 
— Você não sabe se ajudaria ou não? Vocês precisam de um livro de regras com Dicas Práticas ou algo parecido. 
— Sim — ele disse, como se nunca tivesse ouvido tal ideia. — Sim, de fato precisamos. 
Eu não ia perguntar a Bill por que ele estava tão relutante em contatar alguém que podia ajudá-lo. Bill era um homem teimoso e persistente, e eu não seria capaz de convencê-lo do contrário, depois que tomava uma decisão. Permanecemos sentados em silêncio por um instante. 
— Você ama Eric? — disse Bill, de repente. Os profundos olhos castanhos estavam fixos em mim com a total atenção que teve grande papel na atração que tive por ele quando nos conhecemos. 
Todos que eu conhecia estavam fixados em meu relacionamento com o xerife da Área Cinco? 
— Sim — respondi com firmeza. — Eu o amo. 
— Ele diz que ama você? 
— Sim. — Não desviei os olhos. 
— Desejo que ele morra algumas noites — disse Bill. 
Estávamos sendo realmente francos esta noite. 
— Há muito disso acontecendo. Eu mesma não sentiria falta de algumas pessoas — admiti. — Penso a respeito quando lamento pessoas com quem me importei e que morreram, como Claudine, vovó e Tray. — E eles estavam apenas no topo da lista. — Então acho que sei como se sente. Mas eu — por favor, não deseje coisas ruins para Eric. — Perdi tanto quanto podia suportar de pessoas importantes em minha vida. 
— Quem você quer morto, Sookie? — Havia uma fagulha de curiosidade em seus olhos. 
— Eu não vou lhe contar. — Lancei um sorriso fraco. — Você pode tentar atender meu desejo. Como fez com Tio Bartlett. 
Quando descobri que Bill matou o irmão de minha avó, que me molestou — foi quando devia ter me afastado e fugido. Minha vida teria sido diferente? Mas era tarde demais agora. 
— Você mudou — ele disse.
— Com certeza, mudei. Achei que ia morrer durante algumas horas. Fui ferida como nunca antes. E Neave e Lochlan apreciaram tanto. Aquilo acendeu algo dentro de mim. Quando você e Niall os mataram, foi como a resposta para a maior prece que já fiz. Suponho que seja uma Cristã, mas na maior parte dos dias não sinto que possa sequer presumir dizer que sou a mesma. Restou um bocado de raiva em mim. Quando não consigo dormir, penso nas outras pessoas que não se importaram com quanta dor ou problemas me causaram. E penso no quanto seria bom se morressem. 
O fato de poder contar a Bill sobre essa minha terrível parte secreta era a medida do quanto era próxima dele. 
— Eu te amo — ele disse. — Nada que faça ou diga mudará isso. Se me pedisse para enterrar um corpo por você— ou produzir um corpo — eu faria sem escrúpulos. 
— Temos uma história ruim entre nós, Bill, mas você sempre terá um lugar especial em meu coração. — Encolhi por dentro ao ouvir a frase batida saindo de minha própria boca. Mas às vezes clichês são verdadeiros; isso era a verdade. — Eu dificilmente me sinto merecedora por você se importar tanto comigo — admiti. 
Ele abriu um sorriso. 
— Quanto a você ser merecedora, não acho que se apaixonar tenha algo a ver com merecimento do objeto de amor. Mas eu questiono sua avaliação. Considero-a uma boa mulher, e acho que sempre tentará ser a melhor pessoa possível. Ninguém pode ser... despreocupada e alegre... depois de chegar tão perto da morte como aconteceu com você. 
Levantei-me para partir. Sam quis que eu visse Bill, para entender sua situação, e fiz isso. Quando Bill levantou-se para me observar seguir para a porta, notei que não tinha a velocidade incrível de outrora. 
— Você vai viver, certo? — eu perguntei, subitamente assustada. 
— Acho que sim — ele disse, como se não fizesse qualquer diferença de uma forma ou de outra. — Mas por via das dúvidas, me dê um beijo. 
Coloquei um braço ao redor de seu pescoço, aquele sem a lanterna, e deixei-o pousar seus lábios nos meus. A sensação, o cheiro dele, desencadeou muitas recordações. Permanecemos abraçados pelo que pareceu um longo tempo, mas ao invés de ficar excitada, fiquei mais calma. Estava estranhamente consciente da minha respiração — lenta e firme, quase como a respiração de alguém dormindo. 
Pude notar que Bill parecia melhor quando me afastei. Minhas sobrancelhas se arquearam. 
— Seu sangue de fada me ajuda — disse. 
— Sou apenas um oitavo fada. E você não tomou nada. 
— Proximidade — disse brevemente. — O toque de pele contra pele. — Seus lábios se curvaram num sorriso. — Se fizéssemos amor, eu estaria bem mais próximo da cura.
Besteira pensei. Mas não posso dizer que aquela voz fria não afetou algo em minha parte sul numa momentânea pontada de desejo. 
— Bill, isso não vai acontecer — respondi. — Mas você devia pensar em rastrear aquela outra criança vampira de Lorena. 
— Sim — ele disse. — Talvez. — Os olhos escuros estavam curiosamente luminosos; podia ser um efeito do envenenamento ou a luz das velas. Eu sabia que ele não faria esforço para procurar a outra vampira de Lorena. Qualquer fagulha que minha visita tenha inspirado nele já estava morrendo. 
Sentindo-me triste, preocupada e também minimamente contente — ninguém pode dizer que não é lisonjeador ser tão amada, porque é— fui para casa através do cemitério. Toquei a lápide de Bill por hábito. Enquanto caminhava cuidadosamente pelo terreno desigual, pensei nele naturalmente. Ele foi um soldado confederado. Sobreviveu à guerra apenas para sucumbir a um vampiro depois de voltar para sua esposa e filhos, um fim trágico para uma vida dura. 
Fiquei completamente feliz de novo por ter matado Lorena. 
Ali estava algo que eu não gostava a meu respeito: percebi que não me sentia mal quando matava um vampiro. Algo por dentro continuava insistindo que eles já estavam mortos, e que a primeira morte foi a mais importante. Quando matei um humano que detestava, minha reação foi muito mais intensa. 
Então pensei, imagino que ficaria feliz por evitar dor ao invés de pensar que devia me sentir pior sobre eliminar Lorena. Detestei tentar imaginar o que era melhor moralmente, porque isso frequentemente não combinava com minha reação interna. 
A questão toda daquele auto-exame foi que eu matei Lorena, que podia ter curado Bill. Ele foi ferido quando veio em meu resgate. Claramente, eu tinha uma responsabilidade. Tentei imaginar o que fazer. 
No momento em que percebi que estava sozinha no escuro e devia estar mortalmente receosa (pelo menos, de acordo com D’Eriq), eu cheguei ao meu quintal bem-iluminado. Talvez me preocupar com a vida espiritual fosse uma distração bem-vinda da recordação da tortura física. Ou talvez estivesse me sentindo melhor porque fiz algo bom para alguém; abracei Bill e aquilo o fez se sentir melhor. 
Quando fui para a cama naquela noite, consegui deitar de lado em minha posição favorita, ao invés de virar e remexer, e dormi sem sonhos — pelo menos, nada que pudesse lembrar de manhã. 
Durante a semana seguinte, apreciei um sono sem problemas e, como resultado, comecei a me sentir mais como antigamente. Foi gradual, mas perceptível. Não pensei numa forma de ajudar Bill, mas comprei-lhe um novo CD (Beethoven) e coloquei onde ele encontraria quando saísse de seu esconderijo diurno. Outro dia, mandei-lhe um cartão virtual. Só para que soubesse que estava pensando nele. 
Cada vez que via Eric, sentia-me um pouco mais animada. E finalmente, tive meu próprio orgasmo, um momento tão explosivo que foi como se estivesse guardando para um feriado. 
— Você... você está bem? — Eric perguntou. Os olhos azuis me fitaram, e ele tinha um meio-sorriso, como se não tivesse certeza se devia estar aplaudindo ou chamando uma ambulância. 
— Eu estou muito tudo bem — sussurrei. Dane-se a gramática. — Estou tão bem que posso escorregar da cama e cair derretida no chão. 
Seu sorriso tornou-se mais confiante. — Então foi bom para você? Melhor do que tem sido? 
— Você sabia que...? 
Ele arqueou uma sobrancelha. 
— Bem, é claro que sabia. Eu só... tinha algumas questões que precisavam ser trabalhadas. 
— Eu sabia que não podia ser minha forma de fazer amor, minha esposa — disse Eric e, apesar das palavras convencidas, sua expressão era definitivamente aliviada. 
— Não me chame de sua esposa. Sabe que nosso assim chamado casamento é apenas estratégia. E voltando à sua afirmação anterior. Um Sr. Amor, Eric. — Eu tinha que lhe dar o crédito devido. — O problema da falta de orgasmo estava em minha cabeça. Agora foi corrigido. 
— Você está me passando conversa fiada, Sookie — ele murmurou. — Mas vou lhe mostrar um Sr. Amor. Porque acho que você pode sentir de novo. 
E como se revelou, eu pude.
 
EU ADORO A PRIMAVERA por todos os motivos óbvios. Adoro as flores desabrochando (o que acontece cedo aqui na Louisiana); adoro os pássaros cantando; adoro os esquilos correndo em meu quintal. 
Adoro o som de lobisomens uivando à distância. 
Não, só estou brincando. Mas o falecido e lamentado Tray Dawson me contou uma vez que a primavera é a estação favorita dos lobisomens. Existem mais presas, então a caçada termina rapidamente, deixando mais tempo para comer e se divertir. Já que estive pensando nos lobisomens, não foi surpresa ter notícias de um. 
Naquela ensolarada manhã no meio de abril, eu me encontrava sentada na varanda da frente com meu segundo copo de café e uma revista, ainda usando calça de pijama e camiseta de Super-Mulher, quando o líder da matilha de Shreveport ligou em meu celular. 
— Hmph — falei, quando reconheci o número. Abri o telefone. — Alô — disse cautelosamente. 
— Sookie — disse Alcide Herveaux. Eu não via Alcide há meses. Ele subiu à posição de líder de matilha no ano anterior numa única noite de dano. — Como está? 
— Certeira como chuva — respondi quase séria. — Feliz como um mexilhão. Afinada como violino. — Observei um coelho saltar sobre os trevos e o gramado a seis metros de distância. Primavera. 
— Você ainda está saindo com Eric? Ele é a razão do bom humor? 
Todos queriam saber. — Ainda estou saindo com Eric. Isso ajuda com certeza a me manter feliz. 
Na verdade, como Eric vivia me dizendo, “sair” era um termo errado. Embora não pensasse em mim como alguém casada já que simplesmente entreguei uma faca cerimonial (Eric usou minha ignorância como parte de sua estratégia mestra), os vampiros pensavam. Um casamento vampiro-humano não é exatamente um pacto humano de “amar, honrar e obedecer”, mas Eric esperava que o casamento me valesse algumas vantagens no mundo vampiro. Desde então, as coisas foram muito bem, de acordo com mentes vampiras. Isto é, tirando o enorme fora de Victor ao não deixar Eric vir em minha ajuda quando eu estava morrendo — Victor realmente precisava morrer. 
Afastei meus pensamentos daquela direção sombria com a determinação da longa prática. Viu? Assim era melhor. Agora eu pulava da cama todos os dias com (quase) meu velho vigor. Eu até fui à igreja no último domingo. Positivo! 
— O que está acontecendo, Alcide? — perguntei. 
— Tenho um favor a pedir — disse Alcide, não totalmente para minha surpresa. 
— O que posso fazer por você? 
— Podemos usar sua terra para nossa corrida de lua cheia amanhã à noite?
Me forcei a parar pra pensar sobre o pedido ao invés de responder “sim” automaticamente. Estou aprendendo com a experiência. Eu tinha o terreno livre que os Lobisomens precisavam; aquela não era a questão. Ainda sou dona de vinte incríveis acres ao redor da casa, embora minha avó tenha vendido a maior parte da fazenda original quando encarou a carga financeira de criar a mim e meu irmão. Apesar de o Cemitério Doce Lar tomar parte do terreno entre minha casa e de Bill, haveria lugar suficiente — especialmente se Bill não se importasse em permitir o acesso às suas terras também. Lembrei que a matilha já esteve aqui uma vez antes. 
Revirei a ideia para enxergá-la de todos os ângulos. Não conseguia ver qualquer impedimento óbvio. 
— Você é bem-vindo — respondi. — Acho que devia verificar com Bill Compton também. — Bill não respondeu a nenhum dos meus pequenos gestos de preocupação. 
Vampiros e lobisomens não são inclinados a camaradagem, mas Alcide é um homem prático. — Ligarei para Bill essa noite então — disse. — Você tem o número dele? 
Eu dei o número. — Por que vocês não estão indo para o seu terreno, Alcide? — perguntei por pura curiosidade. Ele me contou numa conversa casual que a matilha Presas Longas celebrava a lua cheia numa fazenda dos Herveaux ao sul de Shreveport. A maioria das terras dos Herveaux foi deixada intocada para as caçadas da matilha. 
— Ham ligou hoje para me dizer que havia um pequeno grupo de únicos acampados perto do riacho. 
“Únicos”, os de uma só natureza, são como os Lobis de duplanatureza chamam os humanos normais. Eu conhecia Hamilton Bond de vista. Sua fazenda era adjacente ao terreno dos Herveaux, e Ham cultivava alguns acres para Alcide. A família Bond pertenceu à matilha Presas Longas por tanto tempo quanto os Herveaux. 
— Eles têm sua permissão para acampar lá? — perguntei. 
— Eles disseram a Ham que meu pai sempre lhes deu permissão para pescar lá na primavera, então não pensaram em me pedir. Pode ser verdade. Mas não lembro deles. 
— Mesmo que estejam dizendo a verdade, é bem grosseiro. Deviam ter ligado para você — falei. — Eles deviam ter perguntado se era conveniente para você. Quer que eu fale com eles? Posso descobrir se estiverem mentindo. — Jackson Herveaux, o falecido pai de Alcide, não pareceu o tipo de homem que casualmente permitia que pessoas usassem suas terras em base regular. 
— Não, obrigado, Sookie. Detesto lhe pedir outro favor. Você é uma amiga da matilha. Devíamos tomar conta de você, não o contrário. 
— Não se preocupe com isso. Podem vir para cá. E se você quiser que eu conheça esses supostos amigos de seu pai, posso fazer isso. 
Eu estava curiosa sobre o aparecimento deles na fazenda Herveaux tão próximo da lua cheia. Curiosa e desconfiada. Alcide respondeu que pensaria a respeito da situação dos pescadores e agradeceu pelo menos umas seis vezes por dizer sim. 
— Nada demais — falei, e esperava estar dizendo a verdade. Finalmente, Alcide sentiu que agradeceu o suficiente e nós desligamos. 
Fui para dentro com meu copo de café. Não sabia que estava sorrindo até olhar no espelho da sala. Admiti a mim mesma que estava ansiosa pela chegada dos lobos. Seria agradável sentir que não estava sozinha no meio da floresta. Patético, hein? 
Apesar de nossas poucas noites juntos serem boas, Eric ainda passava um bocado de tempo lidando com assuntos vampiros. Eu estava ficando um pouco cansada daquilo. Bom, nem tanto. Se você é o chefe, devia ser capaz de tirar um tempo de licença, certo? Era uma das vantagens de ser chefe. 
Mas algo estava acontecendo com os vampiros; infelizmente eu estava familiarizada com os sinais. Nesse momento, o novo regime já devia estar firme no lugar, e Eric devia estar completamente estabelecido em sua nova posição no esquema das coisas. Victor Madden devia estar totalmente ocupado em Nova Orleans com a administração do reinado, já que era o representante de Felipe na Louisiana. Eric devia ter sido deixado administrando a Área Cinco de seu próprio modo eficiente. 
Mas os olhos azuis de Eric ficavam brilhantes e duros como aço quando o nome de Victor aparecia. Os meus provavelmente ficavam também. Como as coisas estavam agora, Victor possuía poder sobre Eric, e não havia muito que pudéssemos fazer a respeito. Perguntei a Eric se achava que Victor podia se declarar insatisfeito com sua performance na Área Cinco, uma possibilidade aterrorizante. 
— Estou guardando documentação para provar o contrário — disse Eric. — E a mantenho em vários lugares. — As vidas de todo pessoal de Eric, e talvez a minha, dependiam de Eric plantar seus pés firmemente no novo regime. Eu sabia que muita coisa dependia de Eric tornar sua posição invulnerável, e sabia que não devia reclamar. Nem sempre é fácil se sentir do modo como devia.
Ao todo, alguns uivos ao redor da casa seriam uma boa mudança. Pelo menos seria algo novo e diferente. 
Quando fui trabalhar aquele dia, contei a Sam sobre o telefonema de Alcide. Verdadeiros metamorfos são raros. Já que não existem outros nessa área, Sam ocasionalmente passa tempo com alguns que possuem duas formas.
— Ei, por que você não vem até em casa também? — sugeri. — Você podia se transformar em lobo, certo, já que é um metamorfo puro? Então podia se misturar. 
Sam recostou-se contra a velha cadeira giratória, feliz por ter uma desculpa pra parar de preencher formulários. Sam, que tem trinta, é três anos mais velho do que eu. 
— Estou saindo com alguém da matilha, então pode ser divertido — ele disse, considerando a ideia. Mas sacudiu a cabeça após um momento. — Isso seria como ir a uma reunião da NAACP4 com a cara pintada de preto. Ser uma imitação diante da coisa verdadeira. É por isso que nunca saí com as panteras, apesar de Calvin dizer que eu seria bemvindo. 
— Oh — respondi, me sentindo embaraçada. — Não pensei nisso. Desculpe. — Imaginei com quem ele estava saindo, mas de novo, não era da minha conta. 
— Ah, não se preocupe com isso. 
— Eu o conheço há anos e devia saber mais a seu respeito — falei. — Isto é, sua cultura. 
— Minha própria família ainda está aprendendo. Você sabe mais do que eles. 
Sam se revelou quando os Lobis o fizeram. A mãe dele se revelou na mesma noite. Sua família passou por momentos difíceis lidando com a revelação. De fato, o padrasto de Sam atirou na mãe dele, e agora estavam se divorciando — nenhuma grande surpresa ali.                                                
 4 National Association for the Advancement of Colored People – ONG de direitos civis que luta em prol das minorias étnicas nos Estados Unidos.
— O casamento de seu irmão ainda está em pé? — perguntei. 
— Craig e Deidra estão na fase do aconselhamento. Os pais dela estão bem aborrecidos por ela se casar com alguém cuja família possui membros como eu e mamãe. Eles não compreendem que quaisquer filhos que Craig e Deidra tenham simplesmente não podem se transformar em animais. Apenas o primogênito de um casal metamorfo puro. — Ele deu de ombros. — Mas acho que eles vão se sair bem. Só estou esperando que eles marquem a nova data. Você ainda está disposta a ir comigo? 
— Claro — eu disse, embora tenha sentido uma pontada de desconforto ao me imaginar contando a Eric que sairia do estado com outro homem. Na época em que prometi ir com Sam, minha situação com Eric não era considerada um relacionamento. — Você acha que levar uma Lobi como sua acompanhante seria ofensivo para a família de Deidra? 
— Verdade seja dita — respondeu Sam — a Grande Revelação em Wright não foi muito bem para os de dupla-natureza, como aconteceu em Bon Temps. 
Eu sabia através dos jornais locais que Bon Temps teve sorte. Seus cidadãos simplesmente pestanejaram quando os Lobis e outros metamorfos anunciaram sua existência, pegando uma página do livro vampiro. 
— Me avise sobre o que acontecer — falei. — E venha à minha casa amanhã, se mudar de ideia sobre correr com a matilha. 
— O líder da matilha não me convidou — disse Sam, sorrindo. 
— A proprietária da terra convidou. 
Não conversamos mais a respeito pelo resto de meu turno, então imaginei que Sam encontraria outra coisa para fazer em sua época de lua. A transformação mensal na realidade dura três noites — três noites quando todos os dupla-natureza, se puderem, correm pelas florestas (ou ruas) em sua forma animal. A maioria dos duplos — aqueles nascidos com a condição — pode mudar em outras vezes, mas a época de lua... é especial para todos, inclusive aqueles que possuem natureza extra por serem mordidos. Existe uma droga que se pode tomar e que inibe a transformação; Lobis no serviço militar, entre outros, tem que usá-la. Mas todos detestam fazer isso, e entendi que não é divertido ficar perto deles nessas noites. 
Felizmente para mim, o dia seguinte era minha folga semanal. Se tivesse que voltar do bar tarde da noite, a curta distância entre o carro e a casa podia ser um pouco inquietante com lobos soltos. Não tenho certeza de quanta consciência humana permanece quando os Lobis se transformam, e nem todos os membros da matilha de Alcide são meus amigos pessoais. 
Já que estaria em casa, a perspectiva de receber os Lobis era mais ou menos despreocupante. Quando a companhia está vindo caçar em sua floresta, não há preparativos a serem feitos. Não é preciso cozinhar ou limpar a casa. Contudo, ter companhia exterior era uma boa motivação para completar algumas tarefas no quintal. 
Desde que era outro lindo dia, coloquei um de meus biquínis, vesti tênis e luvas e me preparei para o trabalho. Galhos, folhas e pinhas foram para a fornalha, junto com alguns restos de arbustos. Certifiqueime de que todas as ferramentas do jardim estivessem guardadas no galpão, trancadas. Desenrolei a mangueira e reguei as plantas que arrumei perto dos degraus dos fundos. Verifiquei a fechadura da tampa na enorme lata de lixo. Comprei-a especificamente para manter os guaxinins longe do lixo, mas um lobo poderia ficar interessado também. 
Passei uma tarde agradável, perambulando sob o sol, cantarolando baixinho sempre que o ânimo se elevava.
No começo do anoitecer, os carros começaram a chegar. Fui até a janela. Notei que os Lobis foram atenciosos o suficiente quanto ao tráfego; havia várias pessoas em cada veículo. Mesmo assim, meu pátio ficaria bloqueado até de manhã. Eu conhecia alguns membros da matilha, e reconheci poucos de vista. Hamilton Bond, que cresceu com Alcide, parou e permaneceu em sua caminhonete, falando ao celular. 
Meus olhos foram atraídos para uma moça magra e exuberante que gostava de moda espalhafatosa, aquilo que eu achava ser roupas da MTV. Notei-a pela primeira vez no bar Pêlo do Cachorro em Shreveport, e ela recebera a tarefa de executar os inimigos feridos depois que a matilha de Alcide venceu a Guerra dos Lobisomens; acho que o nome dela era Jannalynn. Também reconheci duas mulheres que foram membros da matilha agressora; elas se renderam ao fim da luta. Agora se juntaram aos ex-inimigos. Um rapaz havia se rendido também, mas ele podia ser qualquer um da dúzia que perambulava inquieta pelo meu pátio. 
Finalmente, Alcide chegou com sua familiar caminhonete. Havia duas outras pessoas sentadas na cabine. O próprio Alcide é alto e robusto, como os Lobis tendem a ser. É um homem atraente. Ele tem cabelos pretos, olhos verdes e, obviamente, é muito forte. Alcide normalmente é bem educado e atencioso — mas possui seu lado durão, com certeza. Ouvi rumores através de Sam e Jason que, desde que ascendeu como líder da matilha, aquele lado durão foi posto à prova. Notei que Jannalynn fez um esforço especial para estar na porta da caminhonete quando Alcide saiu. 
A mulher que saiu logo atrás dele tinha uns vinte e poucos anos e possuía bons quadris sólidos. Ela usava o cabelo castanho preso num pequeno coque, e a regata camuflada me mostrou que era musculosa e em boa forma. Naquele momento, Camuflada olhava ao redor do pátio como se fosse uma avaliadora do fisco. O homem que saiu pela outra porta era um pouco mais velho e bem mais severo. 
Às vezes, mesmo não sendo telepata, é possível dizer só de olhar uma pessoa que ele teve uma vida dura. Era o caso desse homem. O modo como se movia me disse que estava alerta para encrenca. Interessante. 
Observei-o porque ele precisava de vigilância. Ele tinha cabelos castanhos escuros na altura dos ombros que flamejavam ao redor da cabeça numa nuvem de caracóis. Me descobri olhando-o com inveja. Eu sempre desejei ter cabelos assim. Depois que superei minha inveja do cabelo, notei que tinha a pele morena como sorvete de café. Embora não fosse tão alto quanto Alcide, ele tinha ombros compactos num corpo agressivamente musculoso. 
Se eu tivesse um alarme de “Ruim até o Osso” no caminho de tijolos da entrada, ele teria tocado assim que Caracóis colocou os pés ali. — Perigo, Will Robinson5 — falei em voz alta. Eu nunca vi Camuflada ou Caracóis antes. 
                                              
 5 Bordão do seriado Perdidos no Espaço (Lost in Space) da década de 60.
 
Hamilton Bond saiu da caminhonete e veio se juntar ao pequeno grupo, mas não subiu os degraus da varanda para ficar ao lado de Alcide, Caracóis e Camuflada. Ham ficou para trás. Jannalynn juntou-se a ele. A matilha Presas Longas parecia estar expandindo suas fileiras e reorganizando a hierarquia. 
Quando atendi a batida na porta, eu tinha meu sorriso de anfitriã a postos. O biquíni teria enviado a mensagem errada (Nham, nham, disponível!), então vesti um jeans cortado e camiseta do Fangtasia. Abri a porta telada. 
— Alcide! — eu disse, feliz de verdade por vê-lo. Trocamos um breve abraço. 
Ele parecia terrivelmente quente, já que todas as minhas experiências de abraços recentes foram com Eric que tinha temperatura abaixo da ambiente. Senti uma espécie de torrente emocional e percebi que, embora Camuflada estivesse sorrindo para mim, nosso abraço não foi uma visão bem-vinda para ela. — Hamilton! — falei. Assenti para ele, já que não estava numa distância para abraço. 
— Sookie — disse Alcide — alguns membros novos para você conhecer. Esta é Annabelle Bannister. — Eu nunca conheci ninguém que parecesse menos com uma “Annabelle” do que esta mulher. Apertei sua mão, é claro, e disse que era um prazer conhecê-la. — Você conhece Ham e encontrou também Jannalynn, eu imagino? — disse Alcide, inclinando a cabeça para trás. 
Assenti para os dois aos pés da escada. 
— E este é Basim al Saud, meu novo segundo em comando — disse Alcide. Era pronunciado “Bah-SEEM”, e Alcide falou o nome como se me apresentasse pessoas árabes o tempo todo. Muito bem. 
— Como vai, Basim — eu disse. Estendi a mão. Um dos significados do segundo, eu sabia, era a pessoa assustar todos os outros como o inferno e Basim parecia bem qualificado para o serviço. De modo relutante, ele estendeu a própria mão. Eu apertei, imaginando o que captaria dele. Lobos frequentemente são difíceis de ler por causa da natureza dupla. Certamente, não captei quaisquer pensamentos específicos: apenas um borrão confuso de desconfiança, agressão e luxúria. 
Engraçado, era quase parecido com o que estava captando da mal-nomeada Annabelle. — Há quanto tempo estão em Shreveport? — perguntei educadamente. Olhei Annabelle e Basim para incluir ambos na pergunta. 
— Seis meses — disse Annabelle. — Me transferi da matilha Matadores de Alces na Dakota do Sul. — Então ela era da Força Aérea. Ela esteve aquartelada na Dakota do Sul e então foi designada para a Base da Força Aérea Barksdale em Bossier City, adjacente a Shreveport. 
— Estou aqui há dois meses — disse Basim. — Estou aprendendo a gostar. — Embora parecesse exótico, ele tinha apenas um vago traço de sotaque, e seu inglês era muito mais exato do que o meu. Julgando estritamente pelo corte de cabelo, ele definitivamente não estava nas forças armadas. 
— Basim deixou sua antiga matilha em Houston — Alcide respondeu facilmente — e ficamos felizes por ele ter se tornado um de nós. — “Nós” não incluía Ham Bond. Eu podia não ser capaz de ler a mente de Ham tão claramente quanto se fosse humano, mas ele não era um grande fã de Basim. Tampouco Jannalynn, que parecia tratar Basim com luxúria e ressentimento. Havia um bocado de luxúria flutuando sobre a matilha esta noite. Olhando para Basim e Alcide, não era tão difícil entender. 
— Divirtam-se aqui esta noite, Basim, Annabelle — respondi, antes de me virar para Alcide. — Alcide, minha propriedade se estende por talvez um acre além do riacho a leste, cerca de cinco acres ao sul até uma estrada de terra que conduz a um poço de óleo, e norte ao redor dos fundos do cemitério. 
O líder da matilha assentiu. 
— Liguei para Bill ontem à noite, e ele concordou em nos deixar atravessar sua floresta. Ele não vai estar em casa até o amanhecer, então não vamos incomodá-lo. E quanto a você, Sookie? Vai para Shreveport esta noite ou ficar em casa? 
— Estarei aqui. Se precisar de mim para alguma coisa, apenas apareça na porta. — Sorri para todos. 
Annabelle pensou, Nem um pouco provável, Loira. 
— Mas vocês podem precisar do telefone — eu disse a ela, sobressaltando-a. — Ou primeiros-socorros. Afinal, Annabelle, nunca se sabe o que pode encontrar. — Apesar de começar sorrindo, não havia sorriso em meu rosto quando terminei. Pessoas deviam se esforçar para serem educadas. 
— Obrigado de novo pelo uso de seu terreno. Vamos seguir para a floresta — disse Alcide rapidamente. A escuridão descia constante e pude ver os outros Lobis caminhando para a cobertura das árvores. Uma das mulheres levantou a cabeça e deu vivas. Os olhos de Basim já estavam mais redondos e dourados. 
— Tenham uma boa noite — respondi, enquanto me afastava e trancava a porta telada. 
Os três Lobis desceram os degraus. A voz de Alcide flutuou no ar. Ele dizia, — Eu disse que ela era telepata — para Annabelle enquanto atravessavam o pátio até as árvores, seguidos por Ham. Jannalynn subitamente começou a correr para a margem da floresta, ela estava ansiosa para se transformar. Mas foi Basim quem se virou para me olhar, enquanto eu fechava a porta de madeira. Era o tipo de olhar que se recebia dos animais no zoológico. 
E então ficou completamente escuro. 
Os Lobis foram um pouco decepcionantes. Eles não fizeram tanto barulho quanto achei que fariam. Fiquei em casa, é claro, totalmente trancada, e fechei as cortinas, o que não era algo habitual. Afinal, eu morava no meio da floresta. Assisti televisão, li um pouco. Mais tarde, enquanto escovava os dentes, escutei uivos. Achei que veio de bem longe, provavelmente da margem leste de minha propriedade. 
Pela manhã bem cedo, assim que o amanhecer irrompeu, eu acordei por causa do barulho de motores de carros. Os Lobis estavam partindo. Eu quase voltei a dormir, mas percebi que tinha que levantar para ir ao banheiro. Depois que cuidei disso, fiquei um pouco mais acordada. Segui silenciosamente pelo corredor até a sala e espiei através do vão das cortinas. Ham Bond saía da margem das árvores, meio esfarrapado. Ele conversava com Alcide. Suas caminhonetes eram os únicos veículos restantes. Annabelle apareceu momentos depois. 
Enquanto observava a luz da manhã cair sobre a grama orvalhada, os três Lobis atravessaram lentamente o gramado, com as roupas da noite anterior, mas carregando os sapatos. Eles pareciam exaustos, mas felizes. As roupas não estavam ensangüentadas, porém seus rostos e braços se encontravam salpicados. Tiveram uma caçada bem-sucedida. Tive um calafrio de Bambi, mas reprimi. Isso era um pouco diferente de sair às cegas com um rifle. 
Alguns segundos depois, Basim emergiu da floresta. Sob a luz fraca, ele parecia uma criatura silvestre, com os cabelos selvagens cheios de pedaços de folhas e gravetos. Havia algo antigo a respeito de Basim al Saud. Tive que me perguntar como ele se tornou lobisomem na Arábia com lobos inexistentes. Enquanto eu observava, Basim afastou-se da árvore e veio até minha varanda. Ele bateu, leve e firme. 
Contei até dez e abri a porta. Tentei não olhar para o sangue. Era possível notar que ele lavou o rosto no riacho, mas esqueceu do pescoço. 
— Srta. Stackhouse, bom dia — Basim disse, cortês. — Alcide diz que devo lhe contar que outras criaturas passaram por sua propriedade. 
Senti a ruga entre meus olhos ao franzir o cenho. — De que tipo, Basim?
— Pelo menos um era fada — ele disse. — Possivelmente mais do que um, mas com certeza era isso. 
Aquilo era incrível por pelo menos seis razões. — Essas trilhas... ou traços... são frescos? Ou velhos em algumas semanas? 
— Muito frescos — disse. — E o cheiro de vampiro é forte também. É uma mistura ruim.
— São notícias desagradáveis, mas algo que eu precisava saber. Obrigada por me contar. 
— E há um corpo. 
Eu o encarei, mantendo o rosto imóvel. Tenho um bocado de prática em não mostrar o que estou pensando; qualquer telepata tem que ser bom nisso.
— Quanto tempo tem o corpo? — perguntei, quando tive certeza de que minha voz estava sob controle. 
— Cerca de um ano e meio, talvez um pouco menos. — Basim não estava dando tanta importância ao fato de encontrar um corpo. Ele simplesmente me informava que estava lá. — Está bem longe, enterrado bem fundo. 
Eu não disse nada. Deus do céu, devia ser Debbie Pelt. Desde que Eric recuperou a memória daquela noite, isso foi algo que nunca perguntei: onde ele enterrou o corpo depois que eu a matei. 
Os olhos escuros de Basim me examinaram com grande atenção. — Alcide quer que você ligue se precisar de ajuda ou conselho — disse finalmente. 
— Diga a Alcide que agradeço o oferecimento. E obrigada novamente por me informar. 
Ele assentiu e logo depois já estava a meio caminho da caminhonete, onde Annabelle se encontrava sentada com a cabeça apoiada no ombro de Alcide.
Acenei com a mão para eles, enquanto Alcide ligava o motor, e fechei a porta firmemente assim que partiram. 
Eu tinha muito no que pensar.
 
FUI PARA A COZINHA, ansiando por café e uma fatia da cuca de maçã que Halleigh Bellefleur me trouxe no bar no dia anterior. Era uma boa mulher e eu fiquei realmente feliz por ela e Andy estarem esperando um bebê. Ouvi dizer que a avó de Andy, a velha Sra. Caroline Bellefleur, não cabia em si de prazer e eu não duvidei nem por um momento. Tentei pensar nas coisas boas, como o bebê de Halleigh, a gravidez de Tara e a última noite que passei com Eric; mas as perturbadoras notícias dadas por Basim ocuparam a manhã toda. 
De todas as ideias que tive, ligar para o escritório do xerife de Renard Parish foi a que usou menos meu cérebro. Não havia como lhes dizer por que estava preocupada. Os Lobis tinham se revelado, e não havia nada de ilegal sobre deixá-los caçar em minha terra. Mas eu não conseguia me imaginar contando ao Xerife Dearborn que um Lobi disse que fadas andaram cruzando minha propriedade. 
E outra coisa. Pelo que eu sabia até esse momento, todas as fadas, exceto meu primo Claude, foram barradas do mundo humano. Pelos menos, todas as fadas na América. Nunca me perguntei sobre aqueles em outros países, e agora fechei os olhos e estremeci com minha própria estupidez. Meu bisavô Niall fechou todos os portais entre o mundo fae e o nosso. Ao menos foi isso que ele disse que faria. E presumi que todos se foram, exceto Claude que viveria entre humanos tanto quanto eu o conhecia. Então como podia existir uma fada perambulando pela minha floresta? 
E a quem eu podia pedir conselhos nessa situação? Não podia simplesmente ficar de braços cruzados e não fazer nada. Meu bisavô esteve procurando o renegado mestiço Dermot até o momento em que fechou o portal. Eu precisava encarar a possibilidade de que Dermot, que era simplesmente insano, foi deixado no mundo humano. Como quer que tenha acontecido, tinha que acreditar que a proximidade de um fae de minha casa não podia ser algo bom. Precisava conversar com alguém sobre isso. 
Eu podia confiar em Eric, já que era meu amante, ou Sam, porque era meu amigo, ou até Bill, porque suas terras faziam limite com as minhas e também ficaria preocupado. Ou eu podia conversar com Claude, ver se ele podia me dar qualquer ideia sobre a situação. Sentei à mesa com meu café e um pedaço de cuca, distraída demais para ler ou ligar o rádio para ouvir as notícias. Terminei um copo e comecei outro. Tomei banho, de modo automático, fiz a cama e todas as tarefas matutinas habituais. 
Finalmente, me sentei diante do computador que trouxe da casa de minha prima Hadley no apartamento em Nova Orleans, e verifiquei os e-mails. Não sou metódica a respeito disso. Conheço poucas pessoas que poderiam me mandar um e-mail, e eu simplesmente não tenho o hábito de olhar o computador todos os dias. 
Eu tinha várias mensagens. Não reconheci o endereço de retorno do primeiro. Movi o mouse para clicar nele. Uma batida na porta dos fundos me fez pular como um sapo. 
Empurrei a cadeira. Após um segundo de hesitação, peguei a espingarda do armário na sala. Então segui até a porta e espiei através do novo olho mágico. — Falando no diabo — murmurei. 
Esse dia simplesmente estava cheio de surpresas, e não eram nem dez da manhã. Larguei a espingarda e abri a porta. 
— Claude — eu disse. — Entre. Quer beber algo? Eu tenho Coca, café e suco de laranja. 
Notei que Claude tinha uma grande mochila pendurada nos ombros. Pela aparência sólida, a sacola estava cheia de roupas. Não lembrava de tê-lo convidado para uma festa do pijama. 
Ele entrou, parecendo sério e meio infeliz. Claude esteve na casa antes, mas não com freqüência, e deu uma olhada em minha cozinha. Acontece que a cozinha era nova porque a antiga foi incendiada, então eu tinha aparelhos domésticos brilhantes e tudo ainda parecia pouco usado e uniforme. 
— Sookie, eu não consigo mais ficar sozinho em nossa casa. Posso ficar com você por um tempo, prima? 
Tentei catar meu queixo do chão antes que ele notasse o quanto fiquei chocada — primeiro porque Claude confessou que precisava de ajuda; segundo, confessou para mim; e terceiro porque Claude queria ficar na mesma casa comigo quando normalmente pensava em mim no mesmo nível de um besouro. Sou humana e mulher, então tenho duas desvantagens no que diz respeito a Claude. Além disso, é claro, havia toda a questão sobre Claudine morrer em minha defesa. 
— Claude, — falei, tentando soar apenas solidária — sente-se. Qual é o problema? — Fitei a espingarda, inexplicavelmente feliz por têla ao alcance. 
Claude lançou-lhe apenas um olhar casual. Após um momento, ele largou a mochila e simplesmente ficou ali parado, como se não conseguisse pensar no que fazer em seguida. 
Parecia surreal estar sozinha em minha cozinha com meu primo fada. Embora aparentemente tenha escolhido continuar vivendo entre humanos, ele dificilmente era caloroso e animado a respeito deles. Claude, apesar de fisicamente lindo, era indiscriminadamente imbecil, tanto quanto observei. Mas ele alterou cirurgicamente as orelhas para parecer humano, então não precisava gastar energia fingindo uma aparência humana. E pelo que eu sabia, as conexões sexuais de Claude sempre foram com homens humanos. 
— Você ainda está morando na casa que compartilhou com suas irmãs? — Era uma casa simples de três quartos em Monroe.39 
— Sim. 
Okay. Eu estava procurando por um pouco mais de informação sobre a questão. 
— Os bares não estão o mantendo ocupado? 
Entre ser o dono e administrar dois clubes de strip — Hooligans e um novo lugar da qual tomou posse — e dançar no Hooligans pelo menos uma vez por semana, imaginava que Claude estaria ocupado e satisfeito. Já que era lindo à enésima potência, ele fazia um bocado de dinheiro em gorjetas, e os serviços ocasionais de modelo aumentavam sua renda. Claude podia fazer até a vovó mais séria babar. Estar no mesmo aposento com alguém tão bonito deixavam as mulheres entusiasmadas... até ele abrir a boca. Além disso, ele não precisava mais compartilhar o lucro do clube com a irmã. 
— Estou ocupado. E não sinto falta de dinheiro. Mas sem a companhia de minha própria espécie... sinto-me faminto. 
— Você está falando sério? — falei sem pensar, então quis me chutar. Mas Claude precisar de mim (ou alguém, ao que importa) parecia tão improvável. Seu pedido para ficar comigo era totalmente inesperado e indesejável. 
Mas minha avó me repreendeu mentalmente. Eu estava olhando para um membro da família, um dos poucos ainda vivos e/ou acessíveis para mim. O relacionamento com meu bisavô Niall terminou quando ele se retirou para Fairy e fechou a porta atrás dele. Apesar de Jason e eu termos resolvido nossas diferenças, meu irmão conduzia sua própria vida. Minha mãe, meu pai e avó estavam mortos, minha tia Linda e minha prima Hadley estavam mortas e eu raramente via o filhinho de Hadley. 
Fiquei completamente deprimida no espaço de um minuto. 
— Eu tenho fada suficiente em mim para ser de alguma ajuda para você? — Foi tudo que pude pensar em dizer. 
— Sim — ele disse simplesmente. — Já me sinto melhor. — Isso parecia um eco esquisito da minha conversa com Bill. Claude deu um meio-sorriso. Se ele parecia incrível quando estava infeliz, era divino quando sorria. — Já que você esteve na companhia de fadas, isso acentuou sua essência. A propósito, eu tenho uma carta para você. 
— De quem? 
— Niall. 
— Como isso é possível? Achei que o mundo fae se encontrava fechado agora. 
— Ele tem seus meios — Claude respondeu evasivo. — Ele é o único príncipe agora, e muito poderoso. 
Ele tem seus meios. — Humph — resmunguei. — Está bem, vamos ver.
Claude tirou um envelope de dentro da mochila. Era de cor camurça e selado com uma gota de cera azul. Havia um pássaro com as asas abertas em vôo impresso na cera. 
— Então existe correspondência fada — falei. — E você pode mandar e receber cartas? 
— Essa carta, de qualquer forma. 
Faes eram muito bons em ser evasivos. Soprei ar, irritada. Peguei uma faca e deslizei-a sob o selo. O papel que tirei do envelope tinha uma textura bem curiosa. 
“Querida bisneta,” começava. “Há coisas que não pude dizer e muitas coisas que não pude fazer por você antes que meus planos desabassem em guerra.” 
Okay. 
“Essa carta está escrita na pele de um dos elfos da água que afogou seus
pais.” 
— Eca! — gritei, largando a carta sobre a mesa da cozinha. 
Claude surgiu ao meu lado num instante. — Qual é o problema? — ele perguntou, olhando ao redor da cozinha como se esperasse ver um troll aparecendo. 
— Isso é pele! Pele! 
— No que mais Niall escreveria? — Ele parecia genuinamente surpreso. 
— Eeeeca! — Até para mim, eu soava meio fresca. Mas francamente... pele? 
— Está limpo — disse Claude, nitidamente esperando que isso resolvesse meu problema. — Foi processado. 
Cerrei os dentes e estendi a mão para a carta de meu bisavô. Respirei profunda e firmemente. Na verdade, o... material não exalava cheiro algum. Reprimindo o desejo de colocar luvas de cozinha, forcei minha concentração na leitura. 
“Antes de eu deixar seu mundo, certifiquei-me para que um de meus agentes humanos falasse com várias pessoas que podem ajudá-la a evitar o escrutínio do governo humano. Quando vendi a companhia farmacêutica que possuímos, usei a maior parte do lucro para assegurar sua liberdade.” 
Eu pisquei, porque meus olhos estavam meio úmidos. Ele podia não ser um típico bisavô, mas nossa, fez algo maravilhoso por mim. 
— Ele subornou alguns oficiais do governo para impedir o FBI? Foi o que ele fez? 
— Não tenho ideia — Claude disse, dando de ombros. — Ele me escreveu também para informar que eu tinha trezentos mil dólares extras em minha conta no banco. Além disso, Claudine não tinha feito um testamento, já que ela não... 
Esperava morrer. Ela esperara criar o filho com um amante fada que eu nunca conheci. Claude se recompôs e disse numa voz vacilante: — Niall produziu um corpo humano e um testamento, então eu não tenho que esperar anos para provar sua morte. Me deixou quase tudo. Ela disse isso ao nosso pai, Dillon, quando apareceu para ele como parte de seu ritual de morte.
Fadas contavam aos parentes que faleceram, após se transformarem na forma espiritual. Imaginei por que Claudine apareceu para Dillon ao invés do irmão, e perguntei a Claude, me expressando com o maior tato possível. 
— O mais velho recebe a visão — Claude respondeu rigidamente. — Nossa irmã, Claudette, apareceu para mim já que eu era mais velho do que ela por um minuto. Claudine fez seu ritual de morte para nosso pai, já que era mais velha do que eu. 
— Então ela disse a seu pai que queria que você ficasse com a parte dela dos clubes? — Claude tinha muita sorte por Claudine ter informado outra pessoa sobre os desejos dela. Imaginei o que aconteceria se o fae mais velho da linhagem tivesse que fazer o ritual. 
Guardei essa pergunta para mais tarde. 
— Sim. A parte dela da casa. O carro. Embora eu já tenha um. — Por alguma razão, Claude parecia embaraçado. E culpado. Por que diabos ele pareceria culpado? 
— Como você consegue dirigir? — perguntei, distraída. — Já que fadas têm problemas com ferro? 
— Eu uso luvas invisíveis sobre a pele exposta — ele disse. — Coloco-as depois do banho. E adquiri um pouco mais de tolerância a cada década vivendo no mundo humano. 
Voltei para a carta. “Há mais coisas que posso fazer por você. Eu a informarei. Claudine lhe deixou um presente.” 
— Oh, Claudine me deixou algo também? O quê? — Fitei Claude, que não pareceu exatamente satisfeito. Acho que ele sabia do conteúdo da carta com certeza. Se Niall não tivesse revelado o legado de Claudine, Claude poderia não tê-lo feito. Fadas não mentem, mas também nem sempre dizem toda a verdade. 
— Ela lhe deixou o dinheiro da conta dela — disse resignado. — Contém os ganhos da loja de departamentos e parte dela nos lucros dos clubes.
— Ah... foi muito gentil da parte dela. — Pisquei algumas vezes. Eu tentava não tocar minha poupança e minha conta corrente não estava muito saudável porque perdi um bocado de trabalho recentemente. Além disso, minhas gorjetas sofreram porque andei bem deprimida. Garçonetes sorridentes faturavam mais do que as tristes.
Com certeza eu podia usar algumas centenas de dólares. Talvez pudesse comprar algumas roupas novas, e realmente precisava de um novo vaso sanitário para o banheiro do corredor. 
— Como se faz uma transferência dessas? 
— Você vai receber um cheque do Sr. Cataliades. Ele está cuidando da herança. 
O Sr. Cataliades — se tinha primeiro nome, eu nunca ouvi — era um advogado e também (principalmente) demônio. Ele administrava os assuntos legais de vários sobrenaturais na Louisiana. Senti-me sutilmente melhor quando Claude disse o nome dele, porque sabia que o Sr. Cataliades não tinha nenhum desentendimento comigo. 
Bem, eu tinha que me decidir sobre a proposta de Claude de morarmos juntos. 
— Deixe-me dar um telefonema — falei, apontando para a cafeteira. — Se quiser mais, eu posso fazer. Está com fome? 
Claude sacudiu a cabeça. 
— Então, depois que eu ligar para Amelia, você e eu precisamos ter uma conversinha. — Fui ao telefone em meu quarto. Amelia acordava mais cedo do que eu, porque meu emprego me mantinha acordada até tarde. Ela atendeu o celular no segundo toque. 
— Sookie — ela disse, e não soou tão triste quanto antecipei. — O que houve?
Eu não conseguia pensar num modo casual para fazer a pergunta. 
— Meu primo gostaria de ficar aqui por um tempo — falei. — Ele podia usar o banheiro perto do meu quarto, mas se ficar no andar de cima, nós teríamos um pouco mais de privacidade. Se você for voltar a qualquer momento, obviamente ele vai colocar as coisas dele no quarto de baixo. Eu só não queria que você voltasse para descobrir alguém dormindo em sua cama.
Houve um longo silêncio. Me firmei. 
— Sookie — ela disse. — Eu te amo. Sabe disso. E adoro morar com você. Ter um lugar para ir depois daquele negócio com Bob foi uma dádiva do céu. Mas agora estou presa em Nova Orleans por um tempo. Eu simplesmente... estou no meio de um bocado de coisas. 
Eu esperava isso, mas ainda assim foi um momento difícil. Eu realmente não esperava que ela voltasse. Esperava que ela se curasse mais rápido em Nova Orleans — e de fato ela não mencionara Tray. Parecia que mais coisas estavam acontecendo além do luto. 
— Você está bem? 
— Sim — ela disse. — E estou treinando mais com Octavia. — Octavia, sua mentora na bruxaria, voltou para Nova Orleans com seu amor perdido. — Além disso, eu finalmente fui... julgada. Tenho que cumprir a penalidade pela — você sabe — coisa com Bob.
A “coisa com Bob” era o modo de Amelia se referir | transformação acidental de seu amante num gato. Octavia retornou Bob a sua forma humana, mas ele naturalmente não ficou feliz com Amelia, tampouco Octavia. Embora Amelia estivesse treinando sua arte, magia de transformação claramente estava além de suas habilidades. 
— Então eles não vão chicoteá-la nem nada, certo? — perguntei, tentando soar como se estivesse brincando. — Afinal, não é como se ele tivesse morrido. 
Apenas perdeu uma grande parte da vida e o Katrina, inclusive a capacidade de informar a família que sobreviveu. 
— Alguns deles me chicoteariam se pudessem. Mas não é assim que as bruxas agem. — Amelia tentou rir, mas não foi convincente. — Como penalidade, eu tenho que fazer, tipo, serviço comunitário. 
— Como catar lixo ou aconselhar crianças? 
— Bem... misturar poções e fazer bolsas de ingredientes comuns para que eles tenham à mão. Trabalhar horas extras na loja esotérica e matar galinhas para rituais de vez em quando. Fazer um bocado de trabalho braçal. Sem pagamento. 
— Que droga — eu disse, porque dinheiro quase sempre é um assunto sensível para mim. Amelia nascera rica, mas eu não. Se alguém me priva de renda, eu fico furiosa. Tive um momento fugaz imaginando quanto Claudine possuíra na conta do banco, e a abençoei por pensar em mim. 
— É, bom, o Katrina varreu os clãs de Nova Orleans. Perdemos alguns membros que nunca voltarão, então não recebemos mais suas contribuições e eu nunca uso dinheiro de meu pai para o clã. 
— Então, a questão é? — falei. 
— Eu tenho que ficar aqui. Não sei se poderei voltar a Bon Temps. E realmente sinto muito sobre isso, porque gostei de verdade de morar com você. 
— Igualmente. — Respirei fundo, determinada a não parecer desamparada. — E quanto as suas coisas? Não que tenha muita coisa por aqui, mas mesmo assim. 
— Vou deixar aí por enquanto. Tenho tudo que preciso aqui, e o resto é seu para usar como quiser até que eu possa fazer arranjos para pegar. 
Conversamos mais um pouco, mas dissemos tudo de importante. Esqueci de perguntar se Octavia encontrou um jeito de dissolver o vínculo de sangue de Eric comigo. Provavelmente eu não estava muito interessada na resposta. Desliguei, sentindo-me triste e feliz ao mesmo tempo: feliz por Amelia estar pagando o débito com seu clã e por se encontrar mais alegre do que esteve em Bon Temps após a morte de Tray, e triste porque achava que ela não voltaria. Após um momento de despedida silenciosa, fui até a cozinha para dizer a Claude que o andar de cima era todo dele.
Depois que absorvi seu sorriso satisfeito, segui para outra questão. Eu não sabia como tocar no assunto, então por fim simplesmente fiz a pergunta. 
— Você esteve em minha floresta nos fundos da casa? 
O rosto dele ficou absolutamente inexpressivo. 
— Por que eu faria isso? — perguntou. 
— Não perguntei sobre sua motivação. Perguntei se você esteve lá. — Eu reconheço subterfúgios quando ouço. 
— Não — ele disse. 
— São más notícias. 
— Por quê? 
— Porque os Lobis me contaram que uma fada esteve lá muito recentemente. — Mantive os olhos fixos nos dele. — E se não é você, quem poderia ser? 
— Não sobraram muitas fadas — disse Claude. 
De novo, evasivas. — Se existem outras fadas que não chegaram a tempo antes do portal ser fechado, você podia andar com eles — falei. — E não precisaria ficar comigo, com minha pequena quantidade de sangue de fada. No entanto, aqui está você. E em algum lugar em minha floresta existe outra fada. — Examinei sua expressão. — Não o vejo entusiasmado sobre rastrear quem quer que seja. Do que se trata? Por que você não corre até lá, descobre a fada, faz amizade e fica feliz? 
Claude desviou os olhos. — O último portal a se fechar era em sua floresta — ele respondeu. — Provavelmente não está completamente fechado. E eu sei que Dermot, seu avô, estava do lado de fora. Se Dermot é a fada que os Lobis sentiram, ele não ficaria feliz em me ver. 
Achei que teria mais coisas a dizer, mas ele parou por ali. 
Havia um bocado de más notícias e outras piores se evitasse a questão. Ainda suspeitava de seus objetivos, mas Claude era da família, e eu tinha uma preciosa pequena família restando. 
— Está bem — eu disse, abrindo uma gaveta da cozinha onde guardava bugigangas. — Aqui está uma chave. Vamos ver como isso se desenrola. A propósito, eu tenho que ir trabalhar à tarde. E nós temos que conversar. Você sabe que eu tenho um namorado, certo? — Eu já estava me sentindo meio embaraçada. 
— Quem você está vendo? — Claude perguntou, com uma espécie de interesse profissional. 
— Ah, bom... Eric Northman. 
Claude assobiou. Ele pareceu tanto admirado quanto cauteloso. 
— Eric passa a noite? Preciso saber se ele vai pular em mim. — Claude soava como se aquilo não fosse totalmente indesejável. Mas a questão pertinente era que fadas são realmente embriagadoras para vampiros, como erva-de-gato para gatos. Eric teria problemas para se dominar e não morder se Claude estivesse por perto. 
— Isso provavelmente acabaria mal para você — respondi. — Mas acho que, com um pouco de cuidado, podemos lidar com isso. — Eric raramente passava a noite em minha casa porque gostava de estar em Shreveport antes do amanhecer. Ele tinha tanto trabalho a fazer durante a noite que achava melhor acordar em Shreveport. Eu tenho um esconderijo onde um vampiro pode ficar em relativa segurança, mas não é exatamente luxuoso, não como a casa de Eric. 
Eu estava mais preocupada com a possibilidade de Claude trazer homens estranhos para minha casa. Eu não queria encontrar alguém que não conhecia quando estivesse a caminho da cozinha em minha camisola. Amelia teve alguns convidados passando a noite, mas foram pessoas que eu conhecia. Respirei fundo, esperando que o que eu estava prestes a dizer não soasse homofóbico. 
— Claude, não é que eu não queira que você se divirta — falei, desejando que esta conversa tivesse terminado. Admirei a desembaraçada aceitação de Claude ao fato de que eu possuía vida sexual, e só desejava ter a mesma desenvoltura. 
— Se eu quiser fazer sexo com alguém que você não conhece, eu o levo para minha casa em Monroe — disse Claude, com um pequeno sorriso maroto. Ele podia ser perspicaz quando queria, eu notei. — Ou aviso com antecedência. Tudo bem? 
— Claro — respondi, surpresa com a complacência fácil de Claude. Mas ele disse todas as palavras certas. 
Eu relaxei um pouco enquanto mostrava onde ficavam os objetos de cozinha estratégicos, dava-lhe algumas dicas sobre a lavadora e a secadora e dizia que o banheiro do corredor era todo dele. Então o conduzi até o andar de cima. Amelia se esforçara para melhorar um dos pequenos quartos, e decorou o outro como uma sala de descanso. Ela levara o laptop consigo, mas a TV ainda estava lá. Verifiquei para me certificar de que a cama estava feita com lençóis limpos, e o armário com as coisas de Amelia foi esvaziado na maior parte. Apontei a porta do sótão, no caso de ele precisar guardar qualquer coisa. Claude o abriu e entrou. Olhou o espaço sombreado e apertado. Gerações de Stackhouses guardaram coisas que achavam que precisariam um dia, e admito que estava um pouco abarrotado e caótico. 
— Você precisa fazer uma limpeza aqui — ele disse. — Você pelo menos sabe o que tem aqui dentro? 
— Entulhos da família — eu disse, olhando com algum desânimo. Eu simplesmente nunca consegui me forçar a mexer nas coisas desde que vovó morreu. 
— Eu te ajudo — Claude declarou. — Será meu pagamento por oferecer o quarto.
Abri a boca para responder que Amelia me dava dinheiro, mas então refleti novamente que ele era da família. 
— Isso seria ótimo — falei. — Embora ainda não saiba se já estou preparada. — Meus pulsos latejaram esta manhã, apesar de estarem definitivamente melhores do que antes. — Há outros serviços ao redor da casa que estão além da minha capacidade, se você não se importar de me dar uma mão. 
Ele se inclinou. — Eu ficaria encantado — disse. 
Esse era um lado diferente daquele Claude que eu conhecia e depreciava. 
Dor e solidão pareciam ter acordado algo no belo fae; ele parecia ter percebido que tinha que mostrar um pouco de gentileza para outras pessoas se quisesse receber o mesmo em retorno. Claude parecia entender que precisava dos outros, especialmente agora que suas irmãs se foram. 
Eu estava um pouco mais à vontade com nosso arranjo no momento em que saí para o trabalho. Escutei Claude se movimentando no andar de cima por um tempo, e então ele desceu com os braços cheios de produtos de cabelo para arrumar no banheiro. Eu já tinha colocado toalhas limpas para ele. Ele pareceu satisfeito com o banheiro, que era bem à moda antiga. Mas Claude já vivia numa época anterior ao encanamento interno, então talvez visse isso de uma perspectiva diferente. Sinceramente, ouvir outra pessoa na casa relaxou algo profundo dentro de mim, uma tensão que eu nem sabia que sentia. 
— Oi, Sam — eu disse. Ele estava atrás do balcão quando entrei pela porta dos fundos, onde deixei minha bolsa e coloquei um avental. O Merlotte’s não estava muito movimentado. Holly, como sempre, conversava com seu Hoyt, que se demorava com o lanche. Com sua camiseta do Merlotte’s, Holly usava shorts xadrez rosa e verde ao invés do preto de regra. 
— Está bonita, Holly — exclamei, e ela me deu um sorriso radiante. Enquanto Hoyt sorria, Holly estendeu a mão para mostrar o anel novo em folha. 
Soltei um gritinho e a abracei. — Oh, isso é maravilhoso! — respondi. — Holly, é tão lindo! Então, vocês já escolheram uma data? 
— Provavelmente será no outono — Holly disse. — Hoyt tem que trabalhar longas horas durante a primavera e o verão. É sua época mais movimentada, então imaginamos que talvez em outubro ou novembro. 
— Sookie — disse Hoyt, a voz ficando baixa e o rosto mais solene. — Agora que Jason e eu fizemos as pazes, vou pedir que ele seja meu padrinho. 
Lancei um rápido olhar para Holly, que nunca foi uma grande fã de Jason. Ela ainda sorria, e se eu podia detectar as ressalvas que ela tinha, Hoyt não podia.
— Ele vai ficar emocionado — respondi. 
Tive que me apressar para fazer as rondas em minhas mesas, mas sorri enquanto trabalhava. Imaginei se eles fariam uma cerimônia à noite. Então Eric poderia ir comigo. Isso seria ótimo! Me transformaria de “pobre Sookie que nem mesmo tem compromisso” para “Sookie que trouxe o sujeito bonitão ao casamento.” Então pensei num plano alternativo. Se fosse um casamento diurno, eu podia levar Claude comigo! Ele parecia exatamente com um modelo de capa de romance. Ele foi modelo de capa de romance (já leu A Dama e o Cavalariço ou O Casamento Picante de Lorde Darlington? Uau!). 
Infelizmente eu estava consciente de que pensava no casamento estritamente com relação aos meus próprios sentimentos... mas não havia nada mais triste do que ser uma velha solteirona num casamento. Percebi que era tolice me sentir como se estivesse na prateleira aos vinte e sete anos. Mas perdi algum tempo precioso e estava cada vez mais consciente do fato. Várias amigas do colegial tinham se casado (algumas mais do que uma vez) e algumas estavam grávidas — como Tara, que estava entrando pela porta com uma camiseta extragrande. Dei um aceno para dizer que conversaria com ela assim que pudesse, levando um chá gelado para a Dra. Linda Tonnesen e um Michelob para Jesse Wayne Cummins. 
— O que foi, Tara? — Inclinei-me para lhe dar um abraço pelo pescoço. Ela desabou numa mesa. 
— Preciso de uma Coca Diet sem cafeína — disse. — E preciso de um cheeseburger. Com muita batata-frita e picles. — Ela parecia feroz. 
— Claro — respondi. — Vou pegar a Coca e fazer seu pedido imediatamente. 
Quando voltei, ela bebeu o copo inteiro. — Vou me arrepender em cinco minutos, porque terei que ir ao banheiro — ela disse. — Tudo que faço é comer e fazer xixi. — Tara tinha círculos enormes nos olhos, e sua aparência não era boa. Onde estava o brilho de gravidez da qual eu tanto ouvia falar? 
— Quanto tempo ainda falta? 
— Três meses, uma semana, e três dias. 
— O Dr. Dinwiddie deu uma data exata! 
— JB simplesmente não consegue acreditar no quanto eu estou gorda — disse Tara, revirando os olhos. 
— Ele disse isso? Com essas palavras? 
— É. Sim. Ele disse. 
— Céus. Aquele rapaz precisa de uma ou duas lições na hora de se expressar. 
— Prefiro que ele mantenha a boca completamente fechada.
Tara casou-se com JB sabendo que cérebro não era o ponto forte dele, e estava colhendo o resultado, mas eu queria muito que fossem felizes. Eu não podia dizer, “Você fez sua cama, agora deite nela.” 
— Ele te ama — eu disse, tentando soar tranqüilizadora. — Ele é
só...  — JB — disse. Ela encolheu os ombros e reuniu um sorriso. 
Então Antoine gritou que meu pedido estava pronto e a expressão ávida no rosto de Tara me disse que ela estava mais concentrada na comida do que na falta de tato do marido. Ela voltou ao Tara’s Togs como uma mulher mais feliz e cheia. 
Assim que escureceu, eu liguei para Eric no meu celular enquanto estava no banheiro das senhoras. Eu detestava agir furtivamente durante o horário de Sam pra ligar para meu namorado, mas precisava do apoio.
Agora que tinha o número, eu não precisava telefonar para o Fangtasia, o que era bom e ruim. Eu nunca sabia quem atenderia ao telefone e não sou favorita universalmente entre os vampiros de Eric. Por outro lado, sentia falta de conversar com Pam, a segunda-em-comando de Eric. Pam e eu de fato éramos quase amigas. 
— Estou aqui, minha amada — disse Eric. Era difícil não estremecer quando ouvia sua voz, mas a atmosfera do banheiro das senhoras no Merlotte’s não era nem um pouco apelativo em luxúria. 
— Bem, eu estou aqui também, obviamente. Escute, eu realmente preciso falar com você — disse. — Aconteceram algumas coisas. 
— Você está preocupada. 
— Sim. Há uma boa razão. 
— Tenho uma reunião em trinta minutos com Victor — disse Eric. — Você sabe como provavelmente pode ser tenso. 
— Eu sei. E sinto muito incomodá-lo com meus problemas. Mas você é meu namorado, e parte de ser um namorado é ouvir. 
— Seu namorado — ele disse. — Isso soa... estranho. Não ajo como um. 
— Que droga, Eric! — Eu estava irritada. — Não quero ficar aqui no banheiro discutindo terminologia! Qual era a questão? Você vai ter tempo livre mais tarde ou não? 
Ele riu. — Sim, para você. Pode dirigir até aqui? Espere, vou mandar Pam buscá-la. Ela estará em sua casa a uma em ponto, tudo bem? — Eu teria que correr para casa então, mas chegaria a tempo. 
— Está bem. E avise Pam para que... bom, diga-lhe para não se distrair com nada, ouviu? 
— Oh, certamente, ficarei feliz em passar essa mensagem muito específica — disse Eric. E desligou. Ele não era muito bom com despedidas, como a maioria dos vampiros. 
Este seria um dia muito longo.
 
PARA MINHA SORTE, todos os fregueses foram embora cedo, então pude fazer minhas tarefas de encerramento em tempo recorde. Gritei “Boa noite!” por sobre o ombro e corri pela porta dos fundos até meu carro. Quando estacionei atrás de casa, notei que o carro de Claude não estava lá. Então ele provavelmente ainda estava em Monroe, o que simplificava a questão. Corri para trocar de roupa e retocar a maquiagem, e no momento em que passava batom, Pam bateu na porta de trás. 
Pam estava parecendo especialmente ela mesma esta noite. Os cabelos louros estavam absolutamente lisos e brilhantes, e o terninho azul-claro parecia uma joia vintage. Ela usava meias-calças riscadas na parte de trás e se virou para mostrar. 
— Nossa — falei, o que era a única resposta possível. — Você está linda. — Ela colocava meu vestido vermelho e a blusa vermelha e branca no chinelo. 
— Sim — ela disse com satisfação considerável. — Estou. Ah... — Ficou totalmente imóvel. — Estou sentindo cheiro de fada? 
— Está, mas não há uma aqui agora, então se controle. Meu primo Claude esteve aqui hoje. Ele vai ficar morando comigo por um tempo. 
— Claude, o lindo imbecil de dar água na boca? 
A fama de Claude o precedia. 
— Sim, esse Claude. 
— Por quê? Por que ele vai ficar com você? 
— Ele está solitário — respondi. 
— Você realmente acredita nisso? — Os olhos castanho-claros de Pam se arquearam incrédulos. 
— Bom... sim, acredito. — Por que outra razão Claude ia querer ficar em minha casa, o que era inconveniente para seu trabalho? Ele certamente não queria entrar em minhas calças e não pediu dinheiro emprestado. 
— Isso é intriga de fada — disse Pam. — Você é uma tola por se envolver. 
Ninguém gosta de ser chamada de tola. Pam ultrapassou os limites, mas “diplomacia” não era seu nome do meio. 
— Pam, já chega — eu disse. Deve ter soado sério, porque ela me encarou por quinze segundos inteiros. 
— Eu a ofendi — disse, embora não parecesse que a ideia lhe causava dor. 
— Sim, ofendeu. Claude sente falta das irmãs. Não sobraram quaisquer fadas com quem fazer intriga, desde que Niall fechou o portal ou porta, ou quê diabos ele fechou. Sou a mais próxima que Claude tem da sua espécie — o que é uma pena, já que só tenho uma gotinha de fada em mim. 
— Vamos embora — disse Pam. — Eric está esperando. 
Mudar de assunto quando não tinha mais nada a dizer era outra característica de Pam. Tive que sorrir e sacudir a cabeça. 
— Como foi a reunião com Victor? — perguntei. 
— Seria uma coisa boa se Victor tivesse um acidente infeliz. 
— Você realmente está falando sério? 
— Não. Na verdade, desejo que alguém o mate. 
— Eu também. — Nossos olhos se encontraram e ela deu um rápido aceno. Estávamos em sincronia com relação a Victor. 
— Eu desconfio de cada afirmação dele — ela disse. — Questiono cada decisão. Acho que ele está a fim de tomar a posição de Eric. Ele não quer mais ser o emissário do rei. Quer esculpir seu próprio território. 
Imaginei um Victor com garras peludas remando numa canoa pelo Rio Vermelho com uma donzela índia sentada estoicamente ao seu lado. Dei risada. Enquanto entrávamos no carro de Pam, ela me fitou sombriamente. 
— Eu não entendo você — ela disse. — De verdade. — Seguimos pela Rodovia Hummingbird e viramos para o norte. 
— Por que ser um xerife na Louisiana seria um passo acima de ser emissário de Felipe, que tem um reino abastado? — perguntei seriamente, para compensar o terreno perdido. 
— “Melhor reinar no inferno do que servir no céu6” — disse Pam. Eu sabia que ela estava citando alguém, mas nem imaginava quem era. 
— A Louisiana é o inferno? Las Vegas é o céu? — Eu quase podia acreditar que algum vampiro cosmopolita consideraria a Louisiana menos do que desejável como residência permanente, mas Las Vegas — divino? Acho que não. 
— Só estou dizendo. — Pam deu de ombros. — É hora de Victor sair de debaixo do polegar de Felipe. Eles estão juntos há muito tempo. Victor é ambicioso. 
— É verdade. Qual você acha que é a estratégia de Victor? Como acha que ele planeja desentocar Eric? 
— Ele vai tentar desacreditá-lo — respondeu Pam sem vacilar. Ela realmente andou pensando a respeito. — Se Victor não conseguir fazer isso, ele tentará matar Eric — mas não fará de modo direto, em combate. 
— Ele tem medo de lutar com Eric? 
— Sim — disse Pam, sorrindo. — Acredito que sim. — Alcançamos a interestadual e seguimos em direção oeste para Shreveport. — Se Victor o desafiasse, Eric teria o direito de me mandar primeiro. Eu adoraria lutar com Victor. — Suas presas cintilaram de leve sob a luz do painel no carro. 
                                              
 6  “Better to reign in hell than serve in heaven”, ditado do escritor inglês John Milton, citada no livro “Paraíso Perdido” (Paradise Lost). 
 
— Victor tem um segundo no comando? Ele o mandaria? 
Pam inclinou a cabeça para um lado. Ela parecia pensar a respeito enquanto ultrapassava um caminhão. 
— Seu segundo é Bruno Brazell. Ele estava com Victor na noite em que Eric se rendeu a Nevada — ela disse. — Barba curta, brinco? Se Eric permitisse que eu lutasse com ele, Victor poderia mandar Bruno. Ele é impressionante, eu lhe garanto. Mas eu o mataria em cinco minutos ou menos. Pode apostar sua grana nisso. 
Pam, que foi uma jovem dama da classe média vitoriana com um lado selvagem secreto, libertou-se ao se tornar vampira. Eu nunca perguntei a Eric por que escolheu Pam para a transformação, mas estava convencida de que foi porque Eric detectou sua ferocidade interior. 
Num impulso, eu perguntei: — Pam? Alguma vez imaginou o que teria acontecido com você se não tivesse se encontrado com Eric? 
Houve um longo silêncio, ou pelo menos pareceu longo para mim. Me indaguei se ela estava zangada ou triste com a chance perdida de ter marido e filhos. Imaginei se ela olhava para o passado ansiando pelo relacionamento sexual com seu criador, Eric, que (como a maioria das relações vampiro-vampiro) não durou muito, mas certamente foi bem intenso. 
Finalmente, quando estava prestes a me desculpar pela pergunta, Pam disse: — Acho que nasci para isso. — A luz fraca do painel iluminou seu rosto perfeitamente simétrico. — Eu teria sido uma esposa deprimente, uma mãe terrível. A parte minha que tenho usado para cortar as gargantas dos meus inimigos teria surgido se permanecesse humana. Eu não teria matado ninguém, suponho, porque isso não estava em minha lista de coisas a fazer quando humana. Mas eu teria feito minha família muito infeliz; pode ter certeza disso. 
— Você é uma ótima vampira — falei, já que não conseguia pensar em mais nada para dizer. 
Ela concordou. — Sim, eu sou. 
Não conversamos novamente até chegarmos à casa de Eric. Curiosamente, ele comprara um lugar numa comunidade fechada com um código rigoroso de prédios. Eric gostava da segurança diurna no portão e a guarda. E gostava da casa de pedra. Não havia muitos subsolos em Shreveport, porque o nível da água é alto demais, mas a casa de Eric ficava numa ladeira. Originalmente, o andar de baixo foi uma entrada para o pátio dos fundos. Eric tirou a porta e colocou uma parede sólida, então tinha um ótimo lugar para dormir. 
Até termos um vínculo de sangue, eu nunca estive na casa de Eric.
Às vezes era excitante estar tão unida a Eric, e outras vezes me fazia sentir encurralada. Embora mal conseguisse acreditar, o sexo ficou ainda melhor agora que eu tinha me recuperado, pelo menos em grande parte, do ataque. Nesse momento, sentia como se cada molécula de meu corpo zumbisse porque estava perto dele. 
Pam tinha um controle remoto para abrir a porta da garagem e usou-o agora. A porta subiu, revelando o carro de Eric. A não ser pelo brilhante Corvette, a garagem era impecável: sem cadeiras de jardim, sem sacos de semente de grama ou latas de tinta meio vazias. Sem escadas, lonas ou botas de caça. Eric não precisava de nenhum desses equipamentos. A vizinhança possuía gramados, belos gramados, com jardineiras rigidamente plantadas e cultivadas — mas um serviço de jardinagem aparava cada folhinha de grama, podava cada arbusto, varria cada folha. 
Pam fechou a porta da garagem assim que entramos. A porta da cozinha se encontrava trancada, e ela usou a chave para que pudéssemos passar da garagem para a cozinha. Uma cozinha é um bocado inútil para um vampiro, embora uma pequena geladeira seja necessária para o sangue sintético, e um microondas é conveniente para aquecê-lo na temperatura ambiente. Eric comprou uma cafeteira para mim e mantinha um pouco de comida no freezer para qualquer humano que estivesse na casa. Ultimamente, essa humana era eu. 
— Eric! — chamei, quando entramos pela porta. Pam e eu tiramos os sapatos, uma das regras na casa de Eric. 
— Ah, vá cumprimentá-lo de uma vez! — disse Pam, quando olhei para ela. — Tenho que guardar alguns TrueBlood e Life Support. 
Atravessei a cozinha estéril até a sala de estar. As cores da cozinha eram suaves, mas a sala ecoava a personalidade de Eric. Embora isso não se refletisse com freqüência em seu vestuário, Eric abrigava um amor por cores fortes. Na primeira vez em que estive na casa dele, a sala de estar me surpreendeu completamente. As paredes eram azul safira, o teto e o assoalho um puro e cintilante branco. 
A mobília era uma coleção eclética de peças que o atraíam, tudo estofado em tons de jóias, com alguns padrões complexos — vermelhoescuro, azul, amarelo cítrico, verdes jade e esmeralda, topázio dourado. Já que Eric é um homem grande, todas as peças eram grandes: pesadas, robustas e cobertas de almofadas. 
Eric surgiu na porta do escritório da casa. Quando o vi, cada gota de hormônio que eu tinha ficou alerta. Ele é bem alto, tem cabelos longos e dourados, e os olhos são tão azuis que a cor praticamente fica evidente na brancura de seu rosto, um rosto audaz e masculino. Não há nada de efeminado em Eric. Ele usa jeans e camisetas, principalmente, mas já o vi de terno. A Revista GQ saiu perdendo quando Eric decidiu que seus talentos residem na construção de um império empresarial ao invés de uma carreira de modelo. Esta noite ele estava sem camisa, com os pêlos esparsos e dourado-escuros descendo até a cintura do jeans e cintilando contra sua palidez. 
— Pule — disse Eric, estendendo as mãos e sorrindo. Eu ri. Dei uma corrida e pulei. Eric me pegou, suas mãos agarrando minha cintura. Ele me levantou até minha cabeça tocar o teto. Então me baixou para um beijo. Rodeei seus quadris com minhas pernas, os braços ao redor de seu pescoço. Ficamos perdidos um no outro por um longo momento. 
Pam disse: — De volta a terra, garota macaca. O tempo está passando. 
Notei que ela culpava a mim, não Eric. Afastei-me e lhe dei um sorriso especial. 
— Venha, sente-se e me conte qual é o problema — ele disse. — Você quer que Pam saiba também? 
— Sim — respondi. Imaginei que ele lhe contaria de qualquer
forma. 
Os dois vampiros se sentaram de lados opostos no sofá vermelhoescuro, e eu sentei diante deles no sofá dourado e vermelho. Na frente dele havia uma grande mesa de centro quadrada, de madeira embutida e pés com entalhes elaborados. A mesa estava coberta de coisas que Eric vinha desfrutando recentemente: o manuscrito de um livro sobre Vikings que lhe pediram para aprovar, um pesado isqueiro de jade (apesar de ele não fumar) e uma linda tigela de prata com interior esmaltado em azulescuro. Eu sempre achava suas escolhas interessantes. Minha própria casa era meio... cumulativa. Na verdade, eu não escolhi nada, exceto os armários da cozinha e eletrodomésticos — mas a casa era a história de minha família. A casa de Eric era a história dele. 
Deslizei um dedo sobre o entalhe da madeira. 
— Anteontem — eu comecei — recebi um telefonema de Alcide Herveaux. 
Eu não imaginava que os dois vampiros reagissem às minhas notícias. Foi mínimo (a maioria dos vampiros não é dada a expressões extravagantes), mas definitivamente estava lá. Eric inclinou-se para frente, me convidando a seguir com o relato. Eu obedeci, contando que também conheci alguns dos novos membros da matilha Presas Longas, incluindo Basim e Annabelle. 
— Eu vi esse Basim — disse Pam. Olhei para ela um pouco surpresa. — Ele veio ao Fangtasia certa noite com outra lobisomem nova... essa Annabelle, a mulher de cabelo castanho. Ela é a nova... transa de Alcide. 
Embora tivesse suspeitado, ainda foi meio espantoso para mim. 
— Ela deve ter encantos ocultos — respondi, antes de pensar. 
Eric levantou uma sobrancelha. 
— Não é alguém que você acha que Alcide escolheria, minha amada?
— Eu gostava de Maria-Star — falei. Como tantas outras pessoas que conheci nos últimos dois anos, a namorada anterior de Alcide encontrou um fim terrível. Eu chorei por ela. 
— Mas antes disso, ele teve um longo relacionamento com Debbie Pelt — disse Eric, e tive que lutar para controlar o rosto. — Pode se notar que Alcide é católico em seus prazeres — Eric continuou. — Ele teve uma quedinha por você, não? — O leve sotaque de Eric fez a frase fora de moda soar exótica. — De uma verdadeira cadela, para um estonteante talento, para uma doce fotógrafa e uma garota durona que não se importa de visitar um bar vampiro. Alcide tem um gosto bem variado em mulheres. 
Isso era verdade. Eu nunca pensei daquela forma antes. 
— Ele mandou Annabelle e Basim até o clube para um propósito. Você tem lido os jornais ultimamente? — Pam perguntou. 
— Não — eu disse. — Tenho gostado de não ler os jornais. 
— O Congresso está pensando em aprovar uma lei exigindo que todos os lobisomens e metamorfos se registrem. A legislação e questões os envolvendo recairiam então sobre o Escritório de Assuntos Vampiros, assim como as leis e processos pertinentes a nós, morto-vivos, fazem agora. — Pam parecia bem aborrecida. 
Eu quase disse, “Mas isso não est{ certo!” Então compreendi como isso soaria — como se eu pensasse que estava tudo bem exigir que os vampiros se registrassem, mas Lobis e metamorfos não devessem. Graças a Deus não abri a boca. 
— Não é surpresa, os Lobis estarem furiosos com isso. De fato, o próprio Alcide me contou que acha que o governo tem mandado gente para espionar sua matilha, sendo que a ideia é dar algum tipo de relatório secreto ao pessoal no Congresso que está considerando o projeto. Ele não acredita que somente sua matilha esteja sendo visada. Alcide tem bom senso. — Eric soava aprovador. — Mas ele acredita que está sendo vigiado. 
Agora entendia por que Alcide andou tão preocupado sobre pessoas acampando em suas terras. Ele suspeitou que eles não eram o que pareciam ser. 
— Seria terrível pensar que seu próprio governo está o espionando — falei. — Especialmente quando pensou em si mesmo como um cidadão normal durante a vida toda. — A enormidade do impacto desse projeto de lei ainda estava sendo absorvida. Ao invés de ser um cidadão respeitado e rico em Shreveport, Alcide (e os outros membros de sua matilha) se tornaria... um estrangeiro ilegal. — Onde eles teriam que se registrar? As crianças ainda vão à escola com todas as outras? E quanto aos homens e mulheres na Base da Força Aérea Barksdale? Depois de todos esses anos! Vocês realmente acham que a lei tem chance de ser aprovada? 
Pam disse: — Os Lobis acreditam que sim. Talvez seja paranóia. Talvez tenham ouvido algo através dos membros do Congresso que tem dupla-natureza. Talvez saibam de algo que nós ignoramos. Alcide mandou essa Annabelle e Basim al Saud para contar que podem estar no mesmo barco conosco em breve. Eles queriam saber a respeito da representante local do EAV, que tipo de mulher é, como eles podiam lidar com ela. 
— Quem é a representante? — perguntei. Me senti ignorante e mal-informada. Obviamente devia saber disso, já que estava intimamente envolvida com um vampiro. 
— Katherine Boudreaux — disse Pam. — Ela gosta um pouco mais de mulheres do que de homens, como eu. — Pam deu um sorriso dentuço. — Ela também adora cães. Tem uma amante fixa, Sallie, com quem compartilha a casa. Katherine não está interessada em ter um caso por fora e é incorruptível. 
— Pelo que entendi, você tentou. 
— Tentei interessá-la sexualmente. Bobby Burnham tentou o suborno. — Bobby era o assistente diurno de Eric. Nós nos detestávamos imensamente. Respirei fundo. 
— Bom, eu realmente estou feliz por saber de tudo isso, mas meu verdadeiro problema veio depois que os Lobis usaram minha terra. 
Eric e Pam me fitaram agudamente com grande atenção, de repente. 
— Você deixou os Lobis usarem sua propriedade para a corrida mensal?
— Bem, sim. Hamilton Bond disse que havia pessoas acampadas nas terras dos Herveaux, e agora que escutei o que Alcide lhes contou — e imagino por que ele não me contou tudo isso — percebo por que não queria correr em seu próprio terreno. Suponho que achou que os campistas fossem agentes do governo. Como a nova agência seria chamada? — perguntei. Não seria EAV, seria? Se o EAV ainda só “representava” vampiros. 
Pam deu de ombros. — A legislação sendo votada no Congresso propõe que se chame Escritório de Assuntos Vampiros e Sobrenaturais. 
— Volte ao assunto, amada — disse Eric. 
— Está bem. Bom, quando estavam indo embora, Basim veio até a porta e me contou que sentiu o cheiro de pelo menos uma fada e algum outro vampiro viajando através de minhas terras. E meu primo Claude diz que não é a fada. 
Houve um momento de silêncio. 
— Interessante — disse Eric. 
— Muito estranho — disse Pam. 
Eric percorreu com os dedos o manuscrito sobre a mesa de centro, como se isso pudesse lhe dizer quem esteve se arrastando pela minha propriedade. 
— Eu não conheço as credenciais desse Basim, exceto que foi expulso da matilha em Houston e Alcide o aceitou. Não sei por que foi expulso. Espero que seja por algum transtorno. Vamos verificar o que Basim lhe contou. — Ele se virou para Pam. — Aquela nova garota, Heidi, diz que é rastreadora. 
— Vocês têm uma nova vampira? — perguntei. 
— Essa foi mandada por Victor. — A boca de Eric se fechou numa linha sombria. — Mesmo supostamente em Nova Orleans, Victor está administrando o estado com mão de ferro. Ele mandou Sandy, que devia ser a ligação, de volta para Nevada. Desconfio que Victor tenha achado que não tinha controle suficiente sobre ela. 
— Como ele pode manter Nova Orleans firme se viaja pelo estado tanto quanto Sandy fazia? 
— Estou presumindo que deixa Bruno Brazell encarregado — disse Pam. — Acho que Bruno finge que Victor está em Nova Orleans, mesmo quando não está. O resto do pessoal de Victor não sabe onde ele está na metade do tempo. Já que matou todos os vampiros de Nova Orleans que pôde encontrar, temos que confiar na informação do nosso único espião que sobreviveu ao massacre. 
É claro que eu queria mudar de direção e discutir o espião — quem seria tão corajoso e imprudente para espionar por Eric debaixo do nariz do inimigo? Mas eu tinha que me ater ao assunto principal, que era a vileza do novo chefão regente da Louisiana. 
— Então Victor gosta de estar nas trincheiras — falei, e Eric e Pam me fitaram inexpressivos. Vampiros mais velhos nem sempre entendem força de expressão. — Ele gosta de ver e fazer por si mesmo, ao invés de confiar na cadeia de comando — expliquei. 
— Sim — disse Pam. — E a cadeia de comando pode ser bem dura e literal, sob Victor. 
— Pam e eu estávamos conversando sobre Victor no carro enquanto vínhamos para cá. Me pergunto por que Felipe de Castro escolheu Victor para ser seu representante na Louisiana? — Victor na realidade pareceu legal nas duas vezes em que eu o encontrei cara-a-cara, o que apenas demonstrou que não se pode julgar um vampiro por suas boas maneiras e sorriso. 
— Há duas vertentes de pensamento quanto a isso — disse Eric, esticando as longas pernas diante dele. Tive um lampejo de como aquelas longas pernas pareciam esticadas sobre lençóis amarrotados, e forcei minha mente a voltar ao assunto de discussão atual. 
Eric me deu um sorriso com presas (ele sabia o que eu estava sentindo) antes de continuar. 
— Uma é que Felipe quer Victor o mais longe possível dele. Acredito que Felipe sente que, se der a Victor um grande naco de carne vermelha, ele não ficará tentado a agarrar o bife inteiro. 
— Enquanto alguns outros — disse Pam — acham que Felipe simplesmente escolheu Victor porque ele é muito eficiente. Que a devoção de Victor a Felipe é provavelmente sincera.
— Se a primeira teoria estiver correta — disse Eric — não existe confiança perfeita entre Felipe e Victor. 
— Se a segunda teoria estiver correta — disse Pam — e agirmos contra Victor, Felipe matará todos nós. 
— Estou entendendo a ideia — respondi, olhando da Primeira Teoria (jeans sem camisa) para Segunda Teoria (conjunto vintage bonitinho). — Detesto parecer egoísta de verdade, mas o primeiro pensamento que me surge à cabeça é esse. Já que Victor não deixou que você viesse me ajudar quando precisei de você— e, a propósito, sei que lhe devo muito, Pam — isso significa que Victor não está honrando a promessa, não? Felipe prometeu que estenderia sua proteção à mim, o que devia ter feito, porque salvei a vida dele, certo? 
Houve uma pausa significativa enquanto Eric e Pam consideravam minha pergunta. 
— Acho que Victor vai se esforçar para não lhe fazer mal abertamente, até e se decidir tentar se tornar o novo rei — disse Pam. — Se Victor decidir agarrar a realeza, todas as promessas feitas por Felipe serão palavras sem significado. — Eric assentiu em concordância. 
— Isso é simplesmente ótimo. — Provavelmente soei petulante e egoísta, porque era assim que me sentia. 
— Isso tudo assumindo que não encontremos um modo de matálo primeiro — disse Pam em voz baixa. 
E ficamos em silêncio por um longo tempo. Havia algo que me arrepiava, não importa o quanto concordasse que Victor devia morrer, sobre nós três falando a respeito de assassiná-lo. 
— E você acha que essa Heidi, que supostamente é uma grande rastreadora, está aqui em Shreveport para ser os olhos e ouvidos de Victor? — perguntei rapidamente, tentando afastar o arrepio que tomou conta de mim. 
— Sim — respondeu Pam. — A menos que esteja aqui para ser os olhos e ouvidos de Felipe, para que ele possa se manter informado sobre o que Victor anda fazendo na Louisiana. 
Ela tinha aquele olhar agourento no rosto, aquele que dizia que colocaria suas cartas vampiras em jogo. Você não ia querer que Pam te olhasse desse jeito quando seu nome entrasse na conversa. Se eu fosse Heidi, tomaria cuidado para manter o nariz limpo. “Heidi”, que me fazia pensar em tranças e vestidos longos, parecia um nome bem alegre para uma vampira.
— Então o que devo fazer a respeito do aviso da matilha Presas Longas? — falei, para trazer a discussão de volta ao problema original. — Você vai mandar Heidi até minha casa para tentar rastrear a fada? Tenho que lhe dizer mais uma coisa. Basim sentiu o cheiro de um corpo, que não era fresco, enterrado bem fundo em minha propriedade.
— Ah — disse Eric. — Opa. — Eric se virou para Pam. — Nos dê um tempo a sós. 
Ela assentiu e foi para a cozinha. Ouvi a porta dos fundos se fechar. 
Eric disse: — Sinto muito, amada. A menos que você tenha enterrado outra pessoa em sua propriedade e escondeu de mim, esse corpo é de Debbie Pelt. 
Era o que eu temia. — O carro está lá também? 
— Não, o carro foi afundado num lago cerca de dezesseis quilômetros ao sul do seu terreno. 
Aquilo era um alívio. — Bom, pelo menos foi um lobisomem quem encontrou — eu disse. — Suponho que não tenhamos que nos preocupar a respeito, a não ser que Alcide possa identificar o cheiro dela. Eles não vão cavar o corpo. Não é assunto deles. — Debbie era exnamorada de Alcide quando tive a infelicidade de conhecê-la. Não quero reviver a história, mas ela tentou me matar primeiro. Levei um tempo, mas superei a angústia por sua morte. Eric esteve comigo naquela noite, mas não em seu juízo perfeito. E esta já é outra história. 
— Venha cá — disse Eric. Seu rosto tinha minha expressão favorita, e fiquei duplamente feliz por vê-la porque não queria mais pensar em Debbie Pelt. 
— Hmmm. O que você vai me dar se eu for? — Lancei um olhar questionador. 
— Acho que você sabe muito bem o que vou lhe dar. Acho que vai adorar que eu dê. 
— Então... você não gosta? 
Antes que eu pudesse piscar, ele estava de joelhos diante de mim, separando minhas pernas e se inclinando para me beijar. 
— Eu acho que você sabe como me sinto — ele disse num sussurro. — Estamos vinculados. Acredita que não estou pensando em você enquanto trabalho? Quando abro os olhos, penso em você, em cada parte de você. — Seus dedos ficaram ocupados e eu ofeguei. Isso era direto, mesmo para Eric. — Você me ama? — perguntou, os olhos fixos nos meus. 
Isso era um pouco difícil de responder, especialmente se considerasse o que seus dedos faziam. 
— Eu amo estar com você, estejamos ou não fazendo sexo. Oh, Deus, faça isso de novo! Eu amo seu corpo. Amo o que fazemos juntos. Você me faz rir e eu amo isso. Gosto de observá-lo fazer qualquer coisa. — Eu o beijei, longa e demoradamente. — Gosto de vê-lo se vestir. Gosto de vê-lo se despir. Gosto de ver suas mãos quando está fazendo isso comigo. Oh! — Estremeci dos pés à cabeça de prazer. Quando tive um momento para me recuperar, murmurei: — se eu fizesse a mesma pergunta, o que você responderia?
— Eu diria exatamente a mesma coisa — disse Eric. — E acho que isso significa que eu a amo. Se isso não é amor verdadeiro, é o mais próximo que alguém consegue. Consegue ver o que faz comigo? — Ele não precisava realmente indicar. Era um bocado óbvio. 
— Isso parece doloroso. Você gostaria que eu cuidasse? — perguntei no tom de voz mais calmo que consegui manejar. 
Em resposta, ele simplesmente rosnou. Trocamos de lugar num instante. Ajoelhei-me diante de Eric e suas mãos descansaram em minha cabeça, acariciando. Eric era um sujeito proporcional, e essa era uma parte de nossa vida sexual que eu tinha que trabalhar. Mas achei que estava ficando muito boa nisso, e ele parecia concordar. Suas mãos puxaram meus cabelos após um ou dois minutos, e eu fiz um pequeno ruído de protesto. Ele soltou e agarrou o sofá. Ele soltou um gemido, do fundo da garganta. 
— Mais rápido — disse. — Agora, agora! — Ele fechou os olhos e sua cabeça inclinou-se para trás, as mãos abrindo e fechando espasmodicamente. Eu adorava ter esse poder sobre ele; era outra coisa que amava. De repente, ele disse algo num idioma antigo, suas costas se arquearam, e eu me movi com propósito crescente, engolindo tudo o que ele me dava. E tudo isso com a maior parte de nossas roupas postas. 
— Isso foi amor suficiente para você? — ele perguntou, a voz lenta e sonhadora. 
Subi no colo dele e enrosquei os braços ao redor de seu pescoço para um interlúdio de aconchego. Agora que recuperei meu prazer no sexo, me sentia frouxa como um pano de prato após uma sessão com Eric; mas esta era minha parte favorita, embora me fizesse sentir muito “revista feminina” para admitir. 
Enquanto permanecemos sentados e abraçados, Eric me contou sobre a conversa que teve com um vampirófilo e rimos. Contei-lhe sobre como a Rodovia Hummingbird andava ruim enquanto o local era repavimentado. Suponho que esse seja o tipo de coisa sobre a qual se conversa com alguém que ama; imagina-se que eles se importem com assuntos triviais, já que são coisas importantes para você. 
Infelizmente, eu sabia que Eric tinha mais negócios a resolver noite afora, então respondi que voltaria para Bon Temps com Pam. Às vezes eu ficava em sua casa, lendo enquanto ele trabalhava. Não é fácil arranjar tempo a sós com um líder e empresário que acorda só durante as horas de escuridão. 
Ele me deu um beijo como lembrança. 
— Mandarei Heidi até sua casa, provavelmente na noite depois de amanhã — disse. — Ela irá verificar o que Basim disse ter farejado em sua floresta. Me avise se tiver notícias de Alcide. 
Quando Pam e eu deixamos a casa de Eric, começou a chover. A chuva deixou o ar meio frio, e eu liguei o aquecedor no carro de Pam. Não faria nenhuma diferença para ela. Dirigimos em silêncio por um tempo, cada uma imersa nos próprios pensamentos. Observei os limpadores do pára-brisa se moverem de um lado para outro. 
Pam disse: — Não contou a Eric sobre o fae ficando com você. 
— Oh, céus! — Cobri os olhos com a mão. — Não, não contei. Havia tanto sobre o que falar que esqueci completamente. 
— Você percebe que Eric não vai gostar de outro homem morando na mesma casa com a mulher dele. 
— Outro homem que é meu primo e também gay. 
— Mas bonitão e stripper. — Pam me lançou um olhar. Ela estava sorrindo. Os sorrisos de Pam são um tanto desconcertantes. 
— Pode tirar a roupa o quanto quiser — se você não gosta da pessoa para quem está olhando enquanto ela se despe, não vai acontecer — respondi acidamente. 
— Eu meio que entendo essa afirmação — ela disse após um momento. — Mas mesmo assim, ter um homem tão atraente na mesma casa... não é bom, Sookie. 
— Você está me gozando, certo? Claude é gay. Ele não só gosta de homens, como gosta deles com barba por fazer e manchas de óleo nas calças jeans. 
— O que isso quer dizer? — disse Pam. 
— Significa que ele gosta de sujeitos do tipo operários que fazem trabalho braçal. Ou usam os punhos. 
— Ah. Interessante. — Pam ainda tinha um ar de desaprovação. Ela vacilou por um instante, então disse: — Eric não teve ninguém como você durante um longo, longo tempo, Sookie. Acho que ele é sério suficiente para manter o compromisso, mas você tem que considerar as responsabilidades dele. Esta é uma época perigosa para o grupo original restante, desde que Sophie-Anne encontrou sua morte final. Nós, vampiros de Shreveport, pertencemos duplamente a Eric, já que foi o único xerife sobrevivente do antigo regime. Se Eric cair, todos nós cairemos. Se Victor conseguir desacreditar Eric ou invadir sua base aqui em Shreveport, todos nós morreremos. 
Eu não admiti a situação para mim mesma em termos tão extremos. Eric não soletrou, tampouco. 
— É tão ruim assim? — falei, me sentindo entorpecida. 
— Ele é homem suficiente para querer parecer forte diante de você, Sookie. Sinceramente, Eric é um grande vampiro, e muito prático. Mas não tem sido prático atualmente — não quando diz respeito a você. 
— Você está dizendo que Eric e eu não devemos mais nos ver? — perguntei diretamente. Embora geralmente ficasse muito feliz por mentes vampiras serem fechadas para mim, às vezes eu achava isso frustrante.
Estava acostumada a saber mais do que queria sobre como as pessoas pensavam e se sentiam, ao invés de imaginar se estava certa. 
— Não, não exatamente. — Pam pareceu pensativa. — Eu detestaria vê-lo infeliz. E você também — acrescentou, como reflexão. — Mas se ficar preocupado com você, ele não vai reagir do mesmo modo que reagiria — como devia... 
— Se eu não estivesse envolvida na questão. 
Pam não disse nada por um tempo. Então respondeu: — Acho que a única razão para Victor não tê-la seqüestrado para ameaçar Eric é porque se casou com você. Victor ainda está tentando cobrir o traseiro fazendo tudo de acordo com as regras. Não está pronto para se rebelar abertamente contra Felipe. Ele ainda vai tentar mostrar justificativas por tudo que fizer. Está na corda bamba com Felipe agora porque quase a deixou morrer. 
— Talvez Felipe faça o trabalho por nós — falei. 
Pam ficou pensativa. — Isso seria o ideal — disse. — Mas teremos que esperar para ver. Felipe não fará nada precipitado quando se trata de matar seu tenente. Isso deixaria seus outros tenentes preocupados e incertos. 
Sacudi a cabeça. — Isso é ruim. Não acho que Felipe se incomodaria tanto em matar Victor. 
— E incomodaria você, Sookie? 
— Sim, me incomodaria. — Embora não tanto quanto devia. 
— Então se você fizesse isso numa torrente de raiva caso Victor estivesse te atacando, isso seria preferível a planejar um modo de matá-lo quando ele não pudesse responder efetivamente? 
Okay, colocando desse jeito minha atitude não fazia muito sentido. Percebia que se estava disposta a matar alguém, planejando, desejando matar, usar de evasivas sobre as circunstâncias era ridículo. 
— Não devia fazer diferença — respondi em voz baixa. — Mas faz. Contudo, Victor tem que ir. 
— Você mudou — Pam disse, após um pequeno silêncio. Ela não pareceu surpresa, horrorizada ou enojada. Para falar a verdade, ela não soava feliz. Era mais como se tivesse notado que eu mudei o corte de cabelo.
— Sim — respondi. Observamos mais um pouco a chuva cair. 
De repente, Pam disse: — Veja! — Havia um lustroso carro branco parado no acostamento da interestadual. Não entendi por que Pam estava tão agitada até que notei que o homem inclinado contra o carro tinha os braços cruzados sobre o peito numa atitude de completa despreocupação, apesar da chuva. Assim que passamos ao lado do carro, um Lexus, a figura acenou uma mão lânguida para nós. Estávamos sendo paradas. 
— Merda — disse Pam. — É Bruno Brazell. Temos que parar. — Ela seguiu pelo acostamento e parou diante do carro. — E Corinna — disse, soando amarga. Olhei pelo espelho retrovisor e vi uma mulher sair do Lexus.
— Eles estão aqui para nos matar — disse Pam em voz baixa. — Não posso matar os dois. Você tem que ajudar. 
— Eles vão tentar nos matar? — Eu realmente estava assustada. 
— É a única razão na qual consigo pensar para Victor mandar duas pessoas numa missão de uma só — ela disse. Soava calma. Pam obviamente estava pensando muito mais rápido do que eu. — Hora do show! Se a paz pode ser mantida, precisamos mantê-la, pelo menos por hora. Aqui. — Ela pressionou algo em minha mão. — Tire da bainha. É um punhal de prata. 
Lembrei da pele cinzenta de Bill e o modo lento como ele se movia após o envenenamento por prata. Estremeci, mas estava zangada comigo mesma pelo melindre. Tirei o punhal de seu estojo de couro. 
— Nós temos que sair, hein? — falei. Tentei sorrir. — Okay, hora do show.
— Sookie, seja corajosa e impiedosa — disse Pam, abrindo a porta e desaparecendo de vista. Enviei uma última onda de amor na direção de Eric como forma de adeus, enquanto enfiava o punhal no cós da saia em minhas costas. Saí do carro na escuridão chuvosa, estendendo as mãos para mostrar que estavam vazias. 
Fiquei ensopada em segundos. Prendi o cabelo atrás das orelhas para que não atrapalhassem meus olhos. Apesar dos faróis do Lexus estarem acesos, estava muito escuro. A única outra luz vinha dos faróis que passavam de ambos os lados da interestadual, e do bem iluminado caminhão que parou a um quilômetro e meio. Do contrário, estávamos no meio do nada, um trecho anônimo de estrada dividida, com floresta dos dois lados. 
Os vampiros podiam enxergar bem melhor do que eu. Mas eu sabia onde todos se encontravam, porque usei meu outro sentido e captei seus cérebros. Vampiros são registrados como buracos para mim, pontos quase negros na atmosfera. É um rastro negativo. 
Ninguém falou, e o único ruído era da chuva tamborilando nos carros. Eu não conseguiria ouvir um veículo se aproximando. 
— Oi, Bruno — falei, soando animada de um jeito maluco. — Quem é sua amiga? 
Caminhei até ele. Na estrada, um carro passou a toda velocidade em direção oeste. Se o motorista nos avistou, provavelmente parecia que dois bons samaritanos pararam para ajudar pessoas com problemas no carro. Humanos vêem o que querem ver... o que esperam ver. 
Agora que estava perto de Bruno, pude notar que os cabelos castanhos curtos estavam emplastrados em sua cabeça. Vi Bruno uma única vez antes, e ele estava com a mesma expressão séria no rosto que usou na noite em que se viu em meu pátio, pronto para se aproximar e incendiar minha casa comigo dentro. Bruno era um sujeito do tipo sério do mesmo modo que eu sou uma mulher animada. Uma posição defensiva. 
— Olá, Srta. Stackhouse — disse Bruno. 
Ele não era mais alto do que eu, mas era um homem robusto. A vampira que Pam chamou de Corinna surgiu à direita de Bruno. Corinna era — foi — afro-americana, e a água escorria pela ponta dos cabelos complexamente trançados. As gotas faziam com que as tranças se grudassem, num som que eu simplesmente captava sob o tamborilar da chuva. Ela era alta e magra, e acrescentara saltos de dez centímetros à altura. Apesar de usar um vestido que provavelmente foi bem caro, o conjunto todo sofria com a torrente de água. Ela parecia um rato afogado bem elegante. 
Já que afinal estava quase descontrolada de alarme, eu comecei a rir. 
— Você tem um pneu furado ou algo assim, Bruno? — perguntei. — Não consigo imaginar o que mais você estaria fazendo aqui no meio do nada sob uma chuva torrencial. 
— Estava esperando por você, cadela. 
Eu não tinha certeza de onde Pam estava, e não conseguia usar o cérebro para procurá-la. — Olhe o linguajar, Bruno! Não acho que me conheça bem o suficiente para me chamar assim. Suponho que vocês têm alguém vigiando a casa de Eric. 
— Temos. Quando vimos vocês duas saindo juntas, pareceu uma boa hora para cuidar de algumas coisas. 
Corinna ainda não tinha falado, mas olhava ao redor preocupada, e percebi que ela não sabia para onde Pam tinha ido. Eu sorri. 
— Pela minha vida, não sei por que vocês estão fazendo isso. Parece que Victor devia ficar contente por ter alguém tão esperto como Eric trabalhando para ele. Por que não pode apreciar isso? — E nos deixar em paz? 
Bruno se aproximou um passo de mim. A luz era fraca demais para que eu divisasse a cor de seus olhos, mas podia notar que ele ainda parecia sério. Achei estranho que Bruno perdesse tempo me respondendo, mas qualquer coisa que nos desse mais tempo era bom. 
— Eric é um grande vampiro. Mas nunca irá se curvar a Victor, não de verdade. E está acumulando seu próprio poder num ritmo que deixa Victor ansioso. Ele tem você, para começar. Seu bisavô pode ter se afastado, mas quem pode afirmar que não vai voltar? E Eric pode usar sua habilidade estúpida sempre que quiser. Victor não quer que Eric tenha essa vantagem. 
Então Bruno colocou suas mãos ao redor de meu pescoço. Ele se moveu tão rápido que provavelmente eu não podia ter reagido, e eu soube vagamente acima da pulsação em meus ouvidos que houve uma súbita e violenta comoção acontecendo à minha esquerda. Estendi a mão para trás pra pegar o punhal, mas caímos abruptamente sobre o matagal alto e molhado na beira do acostamento, e chutei diversas vezes, empurrando, tentando ficar por cima. 
Eu meio que exagerei porque começamos a rolar pelo escoadouro. Era uma pena, porque estava enchendo de água. Bruno não podia se afogar, mas eu com certeza sim. Puxando o ombro com a força de meu esforço, eu arranquei a faca do vestido quando virei para cima e, enquanto rolávamos mais uma vez, vi manchas escuras diante dos olhos. Sabia que essa era minha última chance. Apunhalei Bruno sob as costelas. 
E o matei.
 
PAM ARRANCOU O CORPO de Bruno de cima de mim e o rolou pelo curso d’{gua através do escoadouro. Ela me ajudou a ficar de pé. 
— Onde você estava? — grasnei. 
— Me livrando de Corinna — disse a Pam de mente literal. Ela apontou o corpo junto ao carro branco. Felizmente, o cadáver estava do lado oculto da vista de algum raro transeunte. Sob a luz fraca era difícil ter certeza, mas acreditei que Corinna já estivesse começando a se decompor. Nunca vi antes um vampiro morto na chuva. 
— Achei que Bruno fosse um grande lutador. Por que você não cuidou dele? 
— Eu lhe dei a faca — disse Pam, me dando uma boa imitação de surpresa. — Ele não tinha uma. 
— Certo — tossi e, cara, isso fez minha garganta doer. — Então o que fazemos agora? 
— Vamos dar o fora daqui — Pam respondeu. — Vamos esperar que ninguém tenha notado meu carro. Acho que apenas três veículos passaram desde que estacionamos. Com a chuva e a visibilidade ruim, se os motoristas forem humanos, nós temos uma boa chance de que ninguém se lembre de ter nos visto. 
Nesse instante, já estávamos de volta ao carro de Pam. 
— Não seria melhor se movêssemos o Lexus? — falei, sussurrando as palavras. 
— Que boa ideia — disse Pam, dando um tapinha em minha cabeça. — Acha que pode dirigir? 
— Para onde? 
Pam pensou por um instante, o que era bom, porque eu precisava de tempo para me recuperar. Encontrava-me totalmente ensopada e trêmula, e me sentia horrível. 
— Victor não saberá o que aconteceu? — perguntei. Eu parecia não conseguir parar de fazer perguntas. 
— Talvez. Ele não foi corajoso suficiente para agir pessoalmente, então terá que aceitar as conseqüências. Perdeu dois de seus melhores membros e não tem nada para mostrar. — Pam estava apreciando muito aquilo.
— Acho que temos que sair daqui agora mesmo. Antes que mais pessoal dele venha checar ou algo do gênero. — Eu com certeza não estava preparada para lutar de novo.
— É você quem fica fazendo perguntas. Acho que Eric estará aqui em breve; é melhor eu ligar e mantê-lo afastado — disse Pam. Ela parecia vagamente preocupada. 
— Por quê? — Eu teria adorado que Eric aparecesse para tomar conta dessa situação, sinceramente. 
— Se alguém está vigiando a casa e ele pular no carro para dirigir nesta direção e vir resgatá-la, será uma clara indicação de que somos responsáveis pelo que aconteceu a Bruno e Corinna — disse Pam, nitidamente exasperada. — Use o cérebro, Sookie! 
— Meu cérebro está todo ensopado — respondi, e se soei um pouco rabugenta, não achava que era grande coisa, nada incrível. 
Mas Pam já estava apertando um botão na discagem rápida do celular. Pude ouvir Eric gritar quando atendeu ao telefone. Pam disse: — Cale a boca e eu explico. É claro que ela está viva. — Houve silêncio. Pam resumiu a situação em poucas frases essenciais e concluiu com: — Vá para algum lugar razoável depressa. De volta ao bar para atender alguma crise. A lavanderia 24 horas para pegar seus ternos. Ao mercado para pegar TrueBlood. Não os conduza para cá. 
Após um ou dois grunhidos, Eric aparentemente viu a razão no que Pam dizia. Eu não conseguia ouvir sua voz com clareza, apesar de ele ainda estar conversando com ela. 
— A garganta dela ficará com um hematoma — disse Pam, impaciente. — Sim, ela mesma matou Bruno. Está bem, direi a ela. — Pam se virou para mim. — Ele está orgulhoso de você — disse, meio desgostosa. 
— Pam me deu a faca — grasnei. Sabia que podia me ouvir. 
— Mas foi ideia de Sookie mover o carro — disse Pam, com o ar de alguém que seria justa se isso a incomodasse. — Estou tentando pensar num lugar onde largá-lo. A parada de caminhões terá câmeras de segurança. Acho que deixaremos num acostamento bem longe da saída de Bon Temps. 
Foi o que fizemos. Pam tinha algumas toalhas no porta-malas e colocou-as no banco do carro de Bruno. Pam cutucou suas cinzas para recuperar as chaves do Lexus e, após olhar o painel, imaginei que podia dirigi-lo. Segui Pam por quarenta minutos, fitando ansiosamente a placa para Bon Temps ao passarmos por ela. Parei no acostamento assim que Pam o fez. Seguindo suas instruções, deixei as chaves no carro, limpei o volante com as toalhas (que estavam úmidas pelo contato comigo), e então corri para o carro de Pam, subindo. Ainda chovia, a propósito. 
Então tivemos que voltar para minha casa. Até lá, todas as minhas juntas estavam doendo e sentia o estômago um pouco enjoado. Finalmente, finalmente, estacionamos em minha porta dos fundos. Para meu espanto, Pam inclinou-se e me abraçou. 
— Você se saiu muito bem — ela disse. — Você fez o que precisava ser feito. — Dessa vez, ela não pareceu estar rindo de mim secretamente.
— Espero que tudo isso tenha valido a pena — respondi, soando realmente desanimada e exausta. 
— Ainda estamos vivas, então valeu a pena — Pam disse. 
Eu não podia discutir com isso, embora algo dentro de mim quisesse. Saltei do carro e cambaleei pelo quintal molhado. A chuva finalmente tinha parado. 
Claude abriu a porta dos fundos, assim que eu a alcancei. Abriu a boca para dizer algo, mas quando percebeu minha condição, fechou-a novamente. Fechou a porta para mim e ouvi trancá-la. 
— Vou tomar um banho — falei — e então ir para a cama. Boa noite, Claude. 
— Boa noite, Sookie — ele respondeu bem baixinho, e então se calou. Apreciei isso mais do que podia dizer. 
Quando fui trabalhar no dia seguinte às onze, Sam tirava o pó de todas as garrafas no bar. 
— Bom dia — ele disse, me encarando. — Você parece que passou pelo inferno. 
— Obrigada, Sam. Bom saber que eu estou ótima. 
Sam ficou vermelho. 
— Desculpe, Sookie. Você sempre parece ótima. Eu só estava pensando... 
— Nos círculos enormes em meus olhos? — Estiquei a pele de minhas bochechas, fazendo uma terrível careta em seu benefício. — Eu realmente voltei tarde ontem à noite. — Tive que matar alguém e remover seu carro. — Tive que ir até Shreveport para ver Eric. 
— Negócios ou prazer? — E baixou a cabeça, claramente não acreditando que dissera aquilo. — Desculpe, Sookie. Minha mãe diria que acordei com o pé esquerdo na diplomacia hoje. 
Dei-lhe um meio abraço. 
— Não se preocupe. Todo dia é assim para mim. E eu tenho que me desculpar com você. Sinto muito pela ignorância sobre os problemas legais que os metamorfos e Lobis estão enfrentando agora. — Definitivamente era hora de entender a imagem geral. 
— Você teve boas razões para se concentrar em si mesma nas últimas semanas — disse Sam. — Não sei se eu conseguiria me recuperar do modo como você fez. Estou realmente orgulhoso de você. 
Eu não sabia o que dizer. Olhei para o bar e peguei um pano para polir uma fileira. 
— Se precisar de mim para começar uma petição ou ligar para meu representante estadual, simplesmente diga — falei. — Ninguém devia fazê-lo se registrar em lugar algum. Você é americano. Nascido e criado.
— É como eu me vejo. Não é como se fosse diferente do que sempre fui. A única diferença é que agora as pessoas sabem a respeito. Como foi a corrida da matilha? 
Eu quase tinha esquecido daquilo. — Parece que eles se divertiram, pelo que eu pude notar — respondi cautelosamente. — Conheci Annabelle e o sujeito novo, Basim. Por que Alcide está reforçando as fileiras? Você ouviu alguma coisa sobre o que está acontecendo na matilha Presas Longas? 
— Bom, eu te contei que venho saindo com uma delas — ele disse, desviando o olhar para as garrafas atrás do balcão, como se estivesse tentando encontrar uma ainda empoeirada. Se esta conversa continuasse no mesmo estilo, o bar inteiro estaria impecável. 
— Quem é ela? — Já que era a segunda vez que ele a mencionava, imaginei que estava tudo bem perguntar. 
Sua fascinação pelas garrafas foi transferida para a caixa registradora. 
— Ah, Jannalynn. Jannalynn Hopper. 
— Ah — falei, de forma neutra. Estava tentando me dar um tempo para deixar o rosto calmo e receptivo. 
— Ela estava lá na noite em que lutamos com a matilha que tentou dominá-los. Ela, hã... cuidou dos inimigos feridos. 
Aquilo era um eufemismo extremo. Ela quebrou crânios com os punhos cerrados. Tentando provar que não era o Dia Nacional da Falta de Tato em minha casa, eu disse: — Ah, sim. A, hã, garota magrinha. Aquela bem jovem. 
— Ela não é tão jovem quanto parece — disse Sam, evitando o fato óbvio de que a idade dela não era a questão principal que alguém teria com Jannalynn. 
— Certo. Quantos anos ela tem? 
— Vinte. Um. 
— Ah, bom, ela é uma garota e tanto — respondi solenemente. Forcei um sorriso nos lábios. — Sério, Sam, não estou julgando sua escolha. — Não muito. — Jannalynn realmente é muito... dinâmica. 
— Obrigado — ele disse, desanuviando a expressão. — Ela me telefonou depois da guerra da matilha. Ela é chegada em leões. — Sam havia se transformado num leão aquela noite, o melhor lutador. Ele daria um magnífico rei das feras. 
— Então, há quanto tempo vocês estão saindo? 
— Andamos conversando por um tempo, mas saímos pela primeira vez há umas três semanas talvez. 
— Bem, isso é ótimo — respondi. Me fiz relaxar e sorrir mais naturalmente. — Tem certeza que você não precisa de permissão da mãe dela? 
Sam jogou em mim o pano de tirar pó. Eu peguei e atirei de volta.
— Vocês dois podem parar de brincar? Eu tenho que falar com Sam — disse Tanya. Ela entrou sem que eu a ouvisse. Ela nunca seria minha melhor amiga, mas era uma boa trabalhadora e estava disposta a vir duas noites por semana depois que saía do trabalho diurno na Norcross. 
— Querem que eu saia? — perguntei. 
— Não, tudo bem. 
— Desculpe, Tanya. Do que precisa? — Sam perguntou, sorrindo. 
— Preciso que você mude meu sobrenome no cheque de pagamento — disse Tanya. 
— Você mudou seu nome? — Devo ter sido extra devagar nesse dia. Mas Sam teria dito se fosse o caso; ele pareceu tão inexpressivo quanto eu. 
— Sim, eu e Calvin cruzamos a linha estadual até o Arkansas e fomos ao cartório para nos casar — ela disse. — Sou Tanya Norris agora. 
Sam e eu fitamos Tanya em silêncio atônito. 
— Parabéns! — respondi sincera. — Sei que vocês serão muito felizes. — Não tinha certeza sobre Calvin ser feliz, mas pelo menos consegui dizer algo gentil. 
Sam me imitou também, com todas as palavras certas. Tanya nos mostrou a aliança, um grande anel de ouro, e depois que foi à cozinha para mostrar a Antoine e D’Eriq, foi embora tão abruptamente quanto chegou, de volta ao trabalho na Norcross. Ela mencionou que se registraram na Target e no Wal-Mart para algumas coisas de que precisavam, então Sam correu até o escritório e pegou um relógio de parede para lhes dar como presente de todos os funcionários do Merlotte’s. Ele colocou um jarro no balcão para nossas contribuições, e eu joguei uma nota de dez dólares. 
Pouco depois, o pessoal começou a chegar para o almoço e eu fiquei ocupada. 
— Eu nunca tive oportunidade de lhe fazer algumas perguntas — falei a Sam. — Talvez depois que eu deixar o trabalho? 
— Claro, Sook — ele respondeu, e começou a encher copos de chá gelado. Era um dia quente. 
Depois que servi drinques e comida por cerca de uma hora, fiquei surpresa ao ver Claude entrando pela porta. Mesmo com roupas amarrotadas que obviamente catou do chão para vestir, ele parecia lindo de tirar o fôlego. Prendera os cabelos num rabo de cavalo frouxo... não estava nada mal. Isso era quase o suficiente para detestá-lo, de verdade. 
Claude aproximou-se como se viesse ao Merlotte’s todos os dias... e como se seu ato gentil e diplomático da noite passada nunca tivesse acontecido. 
— O aquecedor de água não está funcionando — disse. 
— Oi, Claude. Bom te ver — respondi. — Você dormiu bem? Fico feliz. Eu dormi bem também. Acho melhor você fazer algo a respeito do aquecedor de água, hein? Se quiser tomar banho e lavar suas roupas. Lembra que eu pedi ajuda para lidar com algumas coisas que não posso fazer? Você podia chamar Hank Clearwater. Ele veio em casa antes. 
— Posso ir dar uma olhada — disse uma voz. Virei-me para ver Terry Bellefleur parado atrás de mim. Terry é veterano da guerra do Vietnã e tinha algumas cicatrizes terríveis — do tipo que são e não são visíveis. Era muito jovem quando foi para a guerra. Voltou muito velho. Os cabelos castanho-avermelhados estavam ficando grisalhos, mas ainda eram grossos e compridos o suficiente para trançar. Eu sempre me dei bem com Terry, que conseguia fazer qualquer coisa no quintal ou em casa, com relação a consertos. 
— Eu com certeza apreciaria — falei. — Mas não quero tirar vantagem, Terry. — Ele sempre foi gentil comigo. Ele limpou os escombros da minha cozinha incendiada para que os construtores pudessem começar a trabalhar na nova, e eu tive que insistir para que recebesse pagamento justo por isso. 
— Sem problema — ele murmurou, olhando para as velhas botas de trabalho. Terry sobrevivia com um cheque mensal do governo e vários serviços curiosos. Por exemplo, ele vinha ao Merlotte’s tanto tarde da noite quanto pela manhã bem cedo para limpar as mesas e banheiros, e lavar o chão. Ele sempre dizia que se manter ocupado o deixava em forma, e era verdade que Terry ainda era forte. 
— Sou Claude Crane, primo de Sookie. — Claude estendeu a mão para Terry. 
Terry murmurou o próprio nome e pegou a mão de Claude. Seus olhos encontraram os de Claude. Os olhos de Terry eram inesperadamente belos, de um rico castanho-dourado e com muitos cílios. Eu nunca tinha notado. Percebi que nunca pensei em Terry como um homem. 
Depois do aperto de mão, Terry pareceu surpreso. Quando encarava algo fora da trilha normal, Terry geralmente reagia mal; a única questão era o grau. Mas naquele momento, ele parecia mais perplexo do que assustado ou zangado. 
— Ah, você quer que eu vá dar uma olhada agora? — Terry perguntou. — Tenho algumas horas livres. 
— Isso seria maravilhoso — disse Claude. — Quero o meu banho, e quero bem quente. — Ele sorriu para Terry. 
— Cara, eu não sou gay — disse Terry, e a expressão no rosto de Claude foi impagável. Nunca vi Claude pasmo antes. 
— Obrigada, Terry, com certeza eu apreciaria — falei rapidamente. — Claude tem uma chave e o deixará entrar. Se tiver que comprar alguma peça, simplesmente me dê o recibo. Sabe que posso pagar. — Eu poderia ter que transferir algum dinheiro da poupança para minha conta corrente, mas ainda tinha o que eu considerava meu “dinheiro vampiro” seguramente depositado no banco. E o Sr. Cataliades me mandaria o dinheiro da pobre Claudine também. Algo dentro de mim relaxava toda vez em que pensava naquele bocado de dinheiro. Equilibrei-me num limite frágil de pobreza tantas vezes que eu estava acostumada, e saber da existência daquele dinheiro no banco era um grande alívio para mim. 
Terry concordou e saiu pela porta dos fundos até a picape. Cutuquei Claude com uma reprimenda. — Aquele homem é muito frágil — falei. — Teve uma guerra ruim. Apenas lembre disso. 
O rosto de Claude ficou levemente ruborizado. — Vou lembrar — disse. — Eu mesmo já estive em guerras. — Ele deu outro rápido roçar em minha bochecha para mostrar que se recuperou do golpe no orgulho. Pude sentir a inveja de cada mulher no bar me atingindo. 
— Estarei em Monroe na hora em que você chegar em casa, eu imagino. Obrigado, prima. 
Sam aproximou-se do meu lado assim que Claude saiu pela porta. — Elvis deixou o prédio — ele disse secamente. 
— Não, eu não o vejo há algum tempo — respondi, definitivamente no piloto automático. Então me recompus. — Desculpe, Sam. Claude é uma figura e tanto, não? 
— Não tenho visto Claudine há algum tempo. Ela é bem mais divertida — disse Sam. — Claude parece ser... mais do gênero típico das fadas. — Havia uma pergunta no tom de voz. 
— Nós não veremos mais Claudine — respondi. — Pelo que sei, não veremos nenhuma fada, exceto Claude. As portas estão fechadas. Seja lá como isso funciona. Embora pense que ainda há um ou dois perambulando ao redor de minha casa. 
— Há um bocado de coisas que você não tem me contado — ele disse. 
— Precisamos nos atualizar — concordei. 
— Que tal esta noite? Depois que você terminar? Terry deve voltar e fazer alguns consertos por aqui, mas Kennedy está escalada para tomar conta do bar. — Sam pareceu um pouco preocupado. — Espero que Claude não tente fazer outra investida em Terry. O ego de Claude é grande como um celeiro, e Terry é tão... nunca se sabe como ele vai aceitar esse tipo de coisa.
— Terry é um homem adulto — recordei Sam. Claro, eu estava tentando me assegurar. — Ambos são. 
— Claude não é nem um pouco homem — disse Sam. — Apesar de ser masculino. 
Foi um grande alívio quando notei Terry voltar uma hora mais tarde. Ele parecia absolutamente normal, não estava atrapalhado, zangado, nem nada. 
Eu sempre tentei me manter fora da cabeça de Terry, porque podia ser um lugar bem assustador. Terry ficava bem contanto que mantivesse o foco numa coisa de cada vez. Ele pensava um bocado nos seus cães. Ficava com um dos filhotes da última ninhada de sua cadela, e estava treinando o mais novinho (de fato, se um cão fosse ensinado a ler, Terry seria o homem a conseguir isso). 
Depois que trabalhou na maçaneta frouxa do escritório de Sam, Terry sentou-se em uma de minhas mesas, pedindo salada e chá doce. Depois que peguei seu pedido, Terry silenciosamente me entregou um recibo. Teve que comprar uma peça nova para o aquecedor. 
— Está tudo consertado agora — disse. — Seu primo conseguiu seu banho quente. 
— Obrigada, Terry — respondi. — Vou lhe dar algo pelo tempo e pelo trabalho. 
— Sem problema — disse Terry. — Seu primo cuidou disso. — Voltou a atenção para sua revista. Ele trouxera uma cópia de Caça e Pesca da Louisiana para ler enquanto esperava pela comida. 
Preenchi um cheque para Terry por causa da peça e lhe entreguei quando levei a comida. Ele assentiu e guardou o cheque no bolso. Já que o horário de Terry significava que nem sempre estava disponível para substituir, Sam contratara outro bartender para que pudesse ter algumas noites de folga regularmente. A nova bartender, que trabalhava há duas semanas, era realmente bonita de modo grande. 
Kennedy Keyes tinha 1,75m fácil; mais alta do que Sam, com certeza. Ela tinha o tipo de boa aparência que se associa às beldades tradicionais: cabelos castanhos na altura dos ombros com discretas mechas louras, grandes olhos castanhos, um sorriso branco e reto que era o sonho molhado de um ortodontista. Sua pele era perfeita, as costas retas e se graduara na Universidade do Sul do Arkansas com um diploma em psicologia. 
Ela também esteve presa. 
Sam perguntou se ela queria um emprego quando ela apareceu para almoçar um dia depois de ter saído da cadeia. Ela nem mesmo perguntou o que faria antes de dizer sim. Ele lhe deu instruções básicas de atendimento em bar e ela estudou durante todos os momentos livres até dominar uma quantidade incrível de drinques. 
— Sookie! — ela disse, como se fossemos melhores amigas desde a infância. Esse era o jeito de Kennedy. — Como você está? 
— Bem, obrigada. E você? 
— Feliz como um mexilhão. — Ela inclinou-se para verificar a quantidade de sodas no refrigerador de vidro, atrás do balcão. — Precisamos de algumas A&W — disse. 
— Já trago. — Peguei as chaves de Sam e fui até o depósito para procurar o engradado de cerveja. Peguei duas caixas com seis unidades. 
— Eu não quis dizer que você devia trazer. Eu podia ter pego! — Kennedy sorriu para mim. Seu sorriso parecia perpétuo. — Agradeço. 
— Sem problema.
— Eu pareço mais magra, Sookie? — ela perguntou esperançosamente. Virou-se um pouco para mostrar o traseiro e me fitou por sobre o ombro. 
O problema de Kennedy não parecia ser o fato de que esteve na cadeia, mas sim de ter engordado lá. A comida foi um lixo, ela me contou, e rica em carboidratos. — Mas sou uma comedora emocional — dissera, como se isso fosse algo terrível. — E fiquei realmente emocional na cadeia. — Desde que voltou para Bon Temps, ela andou ansiosa por voltar às suas medidas de beldade. Ela ainda continuava linda. Simplesmente havia mais aparência para olhar. 
— Você está linda como sempre — respondi. Procurei ao redor por Danny Prideaux. Sam pedia que Danny viesse quando Kennedy trabalhava à noite. Esse arranjo devia durar um mês, até Sam ter certeza de que as pessoas não tirariam vantagem de Kennedy. 
— Sabe — ela disse, interpretando meu olhar — eu posso me cuidar sozinha. 
Todo mundo em Bon Temps sabia que Kennedy podia se cuidar, e esse era o problema. Sua reputação podia constituir um desafio para certos homens (certos homens imbecis). 
— Sei que pode — respondi tranquilamente. 
Danny Prideaux era a garantia. 
E ali surgiu ele pela porta. Ele era mais alto que Kennedy por alguns centímetros e possuía alguma mistura racial que eu não conseguia identificar. Danny tinha pele cor oliva escura, cabelos castanhos curtos e rosto largo. Saiu do exército há um mês e ainda não tinha se decidido quanto a uma carreira de qualquer espécie. Trabalhava meio-período no depósito de suprimentos para construtoras. Tinha disposição suficiente para ser leão-de-chácara durante algumas noites por semana, especialmente desde que começou a cuidar de Kennedy o tempo todo. Sam saiu do escritório para dizer boa noite e informar Kennedy sobre os fregueses cujos cheques foram devolvidos, então ele e eu saímos juntos pela porta dos fundos.
— Vamos à Lanchonete Crawdad — ele sugeriu. Aquilo pareceu bom para mim. Era um velho restaurante perto da esquina do tribunal. 
Como todos os negócios na área ao redor da praça, a parte mais antiga de Bon Temps, a lanchonete possuía história. Os proprietários originais foram Perdita e Crawdad Jones, que abriram o restaurante nos anos 40. Quando Perdita se aposentou, ela vendeu o negócio para o marido de Charlsie Tooten, Ralph, que largou o emprego na fábrica de processamento de frango para administrá-lo. O acordo foi que Perdita daria todas as suas receitas a Ralph se ele concordasse em manter o nome do lugar. Quando a artrite de Ralph o forçou a se aposentar, ele vendeu a Lanchonete Crawdad para Pinkie Arnett com a mesma condição. Então gerações de fregueses tiveram a garantia de comer o melhor pudim de pão do estado, e os herdeiros de Perdita e Crawdad Jones apontavam-no com orgulho. 
Contei a Sam esse pedaço da história local depois que pedimos o bife grelhado à moda da casa com feijões verdes e arroz. 
— Graças a Deus, Pinkie tem a receita do pudim de pão e, quando é época de tomates verdes, eu quero vir toda noite para comê-los fritos — disse Sam. — Como está sendo morar com seu primo? — Ele espremeu a rodela de limão em seu chá. 
— Ainda não sei direito. Ele só mudou algumas coisas e não tivemos muito tempo juntos. 
— Você já o viu tirar a roupa? — Sam riu. — Quero dizer, profissionalmente? Eu certamente não conseguiria fazer isso num palco com pessoas olhando. 
Fisicamente, não havia nada que o impedisse. Já vi Sam pelado quando ele se transformou da forma animal para humana. Nham. 
— Não, sempre planejei ir com Amelia, mas desde que ela voltou para Nova Orleans, eu não andei com humor para clube de strip. Você devia pedir um emprego para Claude em suas noites de folga — respondi, sorrindo. 
— Ah, claro — ele disse sarcástico, mas pareceu satisfeito. 
Conversamos sobre a partida de Amelia por um tempo e então perguntei a Sam sobre sua família no Texas. 
— O divórcio de minha mãe aconteceu — disse. — Claro, meu padrasto ficou na cadeia desde que atirou nela, então ela não o vê há meses. Até agora, imagino que a principal diferença para ela seja a parte financeira. Está recebendo a pensão militar do meu pai, mas não sabe se o emprego na escola estará esperando ou não quando o verão terminar.
Eles contrataram uma substituta para o resto do ano escolar, depois que ela levou o tiro, e estão enrolando sobre aceitar minha mãe de volta. 
Antes de levar um tiro, a mãe de Sam foi recepcionista/secretária numa escola primária. Nem todo mundo estava tranqüilo a respeito de ter uma mulher que se transformava num animal trabalhando no mesmo escritório com eles, embora a mãe de Sam fosse a mesma mulher de antes. Eu estava perplexa com essa atitude. 
A garçonete trouxe nossos pratos e uma cesta de pãezinhos. Suspirei de prazer antecipado. Isso era bem melhor do que cozinhar para mim mesma. 
— Alguma notícia sobre o casamento de Craig? — perguntei, quando consegui me afastar um pouco do bife grelhado. 
— Eles terminaram o aconselhamento de casal — disse, dando de ombros. — Agora os pais dela querem que tenham aconselhamento genético, o que quer que isso seja.
— Que loucura. 
— Algumas pessoas simplesmente acham que qualquer coisa diferente é ruim — disse Sam, enquanto passava manteiga em seu segundo pãozinho. — E não é como se Craig pudesse se transformar. 
Como o primogênito de um casal metamorfo puro, apenas Sam sentia o chamado da lua. 
— Sinto muito. — Sacudi a cabeça. — Sei que a situação está sendo difícil para todos em sua família. 
Ele concordou. — Minha irmã Mindy aceitou muito bem. Ela me deixou brincar com os filhos na última vez em que a vi, e vou tentar ir ao Texas para o Quatro de Julho. A cidade dela tem um grande show de fogos de artifício e toda a família vai. Acho que será divertido. 
Sorri. Eles tinham sorte por ter Sam na família — era o que eu achava. 
— Sua irmã deve ser muito esperta — respondi. Comi um pedaço enorme de bife com molho branco. Era divino. 
Ele riu. — Escute, já que estamos falando sobre família — disse. — Você está pronta para me contar como está indo? Você me contou sobre seu bisavô e o que aconteceu. Como estão seus ferimentos? Não quero parecer como se estivesse esperando que me conte tudo que acontece em sua vida. Mas sabe que me importo. 
Eu mesma hesitei um pouco. Mas parecia certo contar a Sam, então tentei lhe dar um resumo das últimas semanas. — E JB vem me ajudando com alguma terapia física — acrescentei. 
— Você caminha como se nada tivesse acontecido, a não ser que fique cansada — ele observou. 
— Há algumas partes ruins em minha coxa esquerda, onde a carne foi realmente... está bem, não vou falar disso. — Fitei meu guardanapo por um minuto ou dois. — Cresceu de volta. Na maior parte. Existe uma espécie de covinha. Tenho algumas cicatrizes, mas não são terríveis. Eric não parece incomodado. — Na verdade, ele tinha uma ou duas cicatrizes da vida humana, apesar de mal serem visíveis contra a brancura de sua pele. 
— Você, hã, está lidando bem com isso? 
— Tenho pesadelos às vezes — confessei. — E tenho alguns momentos de pânico. Mas não vamos mais falar a respeito. — Dei para ele meu sorriso mais radiante. — Olhe só para nós depois de todos esses anos, Sam. Estou morando com uma fada, tenho um namorado vampiro, você está saindo com uma lobisomem que esmaga crânios. Algum dia nós teríamos pensado em dizer isso no primeiro dia em que vim trabalhar no Merlotte’s? 
Sam inclinou-se para frente e por um instante colocou a mão dele sobre a minha, então a própria Pinkie veio até a mesa para perguntar se gostamos da comida. Apontei para meu prato quase vazio.
— Acho que pode se dizer que sim — respondi, sorrindo para ela. Ela retribuiu. Pinkie era uma mulher grande que nitidamente gostava da própria comida. Alguns fregueses novos entraram e ela se afastou para recebê-los. 
Sam tirou a mão e voltou para sua comida de novo. 
— Eu desejava... — Sam começou, e então fechou a boca. Passou a mão pelo cabelo louro-avermelhado. Desde que cortara bem curto, parecia mais arrumado do que o normal até que o despenteava. Ele largou o garfo e notei que conseguiu terminar quase toda sua comida também. 
— O que você desejava? — perguntei. Com a maioria das pessoas, eu teria medo de pedir que completassem a frase. Mas Sam e eu éramos amigos há anos. 
— Desejava que você encontrasse a felicidade com outra pessoa — ele disse. — Eu sei, eu sei. Não é da minha conta. Eric realmente parece se importar com você, e você merece isso. 
— Ele se importa — respondi. — Ele é o que eu consegui e seria realmente ingrata se não estivesse feliz com isso. Nós nos amamos. — Dei de ombros, de modo autodepreciativo. Sentia-me desconfortável com o rumo da conversa. 
Sam assentiu, embora um sorriso irônico no canto de sua boca tenha me dito, sem nem ouvir seus pensamentos, que Sam não achava Eric digno de merecimento. Fiquei feliz por não poder ouvir todos os seus pensamentos claramente. Eu achava que Jannalynn era igualmente imprópria para Sam. Ele não precisava uma mulher do tipo feroz que faria qualquer-coisa-pelo-líder-da-matilha. Ele precisava ficar com alguém que o achasse o melhor homem do mundo. 
Mas eu não disse nada. 
Não se pode dizer que não sou diplomática. 
Era terrivelmente tentador contar a Sam o que aconteceu na noite anterior. Mas eu simplesmente não podia. Não queria envolver Sam em merda vampira mais do que ele já estava envolvido, o que era bem pouco. Ninguém precisava de coisas assim. Obviamente, fiquei preocupada o dia todo com a conclusão desses eventos. 
Meu celular tocou enquanto Sam pagava sua metade da conta. Olhei para o aparelho. Pam estava ligando. Meu coração pulou até a garganta. Saí para fora da lanchonete. 
— O que foi? — perguntei, soando tão ansiosa quanto realmente me sentia.
— Olá para você também. 
— Pam, o que aconteceu? — Eu não estava com humor para brincadeiras. 
— Bruno e Corinna não apareceram hoje para trabalhar em Nova Orleans — disse Pam solenemente. — Victor não ligou para cá porque, é claro, não havia nenhuma boa razão para eles virem aqui.
— Eles encontraram o carro? 
— Ainda não. Tenho certeza que a patrulha rodoviária deixou um aviso hoje, pedindo que os proprietários venham e o retirem. É o que fazem, eu observei. 
— Sim. É o que eles fazem. 
— Nenhum corpo vai aparecer. Especialmente depois do aguaceiro da noite passada, não haverá vestígios. — Pam soava convencida a respeito. — Ninguém poderá nos culpar. 
Eu permaneci ali, com o telefone no ouvido, na calçada vazia de minha pequena cidade, com um poste a apenas alguns metros de distância. Eu raramente me senti mais solitária. 
— Desejava que tivesse sido Victor — respondi, do fundo do coração. 
— Você quer matar mais alguém? — Pam pareceu levemente surpresa. 
— Não, eu quero que isso termine. Quero que tudo fique bem. Não quero mais nenhuma morte. 
Sam saiu do restaurante atrás de mim e ouviu a aflição em minha voz. Senti sua mão sobre meu ombro. 
— Eu tenho que ir, Pam. Mantenha-me informada. 
Desliguei o telefone e virei-me para encarar Sam. Ele parecia preocupado e a luz brilhando sobre sua cabeça lançava sombras profundas em seu rosto. 
— Você está com problemas — ele disse. 
Eu só pude me manter em silêncio. 
— Sei que você não pode falar a respeito, mas se sentir que precisa, sabe onde eu estou — disse. 
— Você também — falei, porque imaginei que, com uma namorada como Jannalynn, Sam podia estar numa posição tão ruim quanto a minha.
 
O TELEFONE TOCOU quando eu estava no banho, sexta-feira de manhã. Já que possuía uma secretária eletrônica, eu ignorei. Ao estender a mão para minha toalha com os olhos fechados, senti-a ser enfiada em minha mão. Com um ofego, abri os olhos para ver Claude parado ali em toda sua glória. 
— Ligação para você — ele disse, entregando o telefone portátil da cozinha. E saiu. 
Levei-o ao ouvido automaticamente. — Alô? — respondi baixinho. Não sabia no que pensar primeiro: eu ver Claude nu, Claude me ver nua, ou o fato de que éramos parentes e estávamos nus no mesmo aposento. 
— Sookie? Você parece esquisita — disse uma voz masculina vagamente familiar. 
— Ah, eu só fiquei surpresa — respondi. — Sinto muito... quem está falando? 
Ele riu, e foi um caloroso som amigável. — Aqui é Remy Savoy, o pai de Hunter — disse. 
Remy foi casado com minha prima Hadley, que agora estava morta. O filho deles, Hunter, e eu tínhamos uma conexão, uma conexão que precisávamos explorar. Eu vinha querendo ligar para Remy a fim de marcar uma data para mim e Hunter, e agora me repreendi por adiar. 
— Espero que esteja ligando para dizer que posso ver Hunter nesse fim de semana? — falei. — Tenho que trabalhar no domingo à tarde, mas tenho o sábado de folga. Isto é, amanhã. 
— Isso é ótimo! Eu ia perguntar se podia levá-lo aí hoje, e talvez deixá-lo passar a noite. 
Era um bocado de tempo para se passar com uma criança que eu não conhecia; mais importante, uma criança que não me conhecia. 
— Remy, você tem planos especiais ou algo assim? 
— Sim. A irmã de meu pai faleceu ontem, e eles marcaram o funeral para amanhã de manhã às dez. Mas o velório é esta noite. Detesto levar Hunter para um velório e um funeral... especialmente considerando, você sabe, seu... problema. Pode ser bem difícil para ele. Sabe como é... eu nunca consigo ter certeza do que ele vai dizer. 
— Eu entendo. — Era verdade. Um telepata em idade pré-escolar é difícil de se ter por perto. Meus pais teriam apreciado a delicadeza de Remy.
— Que idade Hunter tem agora? 
— Cinco, ele acabou de fazer aniversário. Fiquei preocupado sobre a festa, mas foi tudo bem.
Respirei fundo. Eu disse que ajudaria com o problema de Hunter. — Está bem, posso ficar com ele esta noite. 
— Obrigado. Quero dizer, realmente agradeço. Vou levá-lo quando sair do trabalho hoje. Tudo bem? Passamos por aí lá pelas cinco e meia? 
Eu sairia do trabalho lá pelas cinco, dependendo de minha substituta chegar na hora e do movimento de minhas mesas. Dei a Remy o número de meu celular. 
— Se eu não estiver em casa, ligue para meu celular. Chego aqui assim que puder. O que ele gosta de comer? 
Conversamos sobre a rotina de Hunter por alguns minutos, e então desliguei. Até lá, fiquei seca, mas meu cabelo estava pendurado em mechas úmidas. Depois de poucos minutos com o secador, fiquei pronta para conversar com Claude, assim que me vi seguramente vestida com as roupas de trabalho. 
— Claude! — gritei no começo da escadaria. 
— Sim? — Ele parecia totalmente despreocupado. 
— Desça aqui! 
Ele apareceu no topo das escadas, com uma escova de cabelo na mão. — Sim, prima? 
— Claude, a secretária eletrônica teria atendido o telefonema. Por favor, não entre em meu quarto sem bater e, especialmente, não entre em meu banheiro sem bater! — Eu definitivamente usaria a tranca da porta daqui para frente. Acho que nunca a usei antes. 
— Você é puritana? — Ele parecia genuinamente curioso. 
— Não! — Mas após um segundo, eu respondi: — Talvez se for comparada a você, sim! Gosto da minha privacidade. Eu decido quem pode me ver pelada. Você entendeu o ponto? 
— Sim. Objetivamente falando, você tem belos pontos. 
Achei que o topo de minha cabeça explodiria. — Eu não esperava isso quando lhe disse que podia ficar comigo. Você gosta de homens. 
— Ah, sim, definitivamente prefiro homens. Mas consigo apreciar a beleza. Eu visitei o outro lado da cerca. 
— Eu provavelmente não o teria deixado ficar aqui se soubesse disso — respondi. 
Claude deu de ombros, como se dissesse, “Não fui esperto por esconder de você, então?” 
— Escute — eu disse, e então parei, porque me sentia desconcertada. Não importa as circunstâncias, ver Claude pelado... Bom, sua primeira reação não seria raiva, tampouco. — Vou lhe dizer algumas coisas, e quero que leve isso a sério. 
Ele esperou com a escova na mão, parecendo apenas educadamente atento.
— Número um. Eu tenho um namorado, ele é vampiro, não estou interessada em enganá-lo, e isso inclui ver outros sujeitos nus... em meu banheiro — falei rapidamente, pensando em números dois de qualquer espécie. — Se não pode respeitar isso, você precisa ir embora e terá que ir chorando o caminho todo para casa. Número dois. Vou ter companhia esta noite, uma criancinha de quem eu estou cuidando e é melhor você agir de modo apropriado perto dele. Entende o que eu quero dizer? 
— Sem nudez, ser gentil com a criança humana. 
— Correto. 
— A criança é sua? 
— Se ele fosse meu, eu o estaria criando, pode apostar sua grana nisso. Ele é de Hadley. Ela era uma prima, filha de minha tia Linda. Ela foi, hã, a namorada de Sophie-Anne. Sabe, a antiga rainha? E mais tarde, se tornou vampira. Esse garotinho, Hunter, é o filho que Hadley teve antes de tudo isso acontecer com ela. O pai dele irá trazê-lo. 
Claude tinha parentesco com Hadley? Sim, claro, portanto Hunter tinha também. Mencionei isso. 
— Eu gosto de crianças — disse Claude. — Vou me comportar. E sinto muito por tê-la aborrecido. — Ele tentou parecer arrependido. 
— Engraçado, você não parece arrependido. Nem um pouco. 
— Estou chorando por dentro — ele respondeu, dando um sorriso maroto. 
— Ah, pelo amor de Deus — falei, me virando para completar a rotina do banheiro sozinha e não observada. 
Acalmei-me no momento em que saí para o trabalho. Afinal, pensei, Claude provavelmente viu incontáveis pessoas nuas em sua época. A maioria dos sobrenaturais não considerava a nudez grande coisa. O fato de que Claude e eu éramos parentes distantes — meu bisavô era avô dele — não faria qualquer diferença para ele; na verdade, não faria qualquer diferença para a maioria dos sobrenaturais. Então, falei a mim mesma decididamente, nada demais. 
Quando tive um momento de lentidão no trabalho, liguei para o celular de Eric e deixei uma mensagem dizendo que estava esperando cuidar de uma criança naquela noite. “Se você puder vir, ótimo, mas queria que soubesse de antemão que alguém estar{ aqui,” falei na caixa postal de voz. Hunter daria um acompanhante eficaz. Então pensei em meu novo colega de quarto no andar de cima. “Além disso, acho que esqueci de lhe contar algo na outra noite, e provavelmente você não vai gostar muito. E mais, sinto sua falta.” Houve um bip. O tempo de minha mensagem tinha acabado. Bom... ótimo. Não sabia o que diria em seguida. 
A rastreadora, Heidi, devia chegar a Bon Temps esta noite. Parecia ter se passado um ano desde que Eric decidiu mandá-la para verificar minha propriedade. Fiquei um pouco preocupada quando pensei em sua chegada. Remy acharia que Hunter comparecer a um funeral era tão ruim se soubesse quem mais estaria passando por minha casa? Eu estava sendo irresponsável? Estava colocando a criança em risco? 
Não, era paranóia pensar assim. Heidi estava vindo fazer um reconhecimento em minha floresta. 
Eu tinha jogado fora minha preocupação insignificante no momento em que me preparava para ir embora do Merlotte’s. Kennedy tinha chegado para trabalhar para Sam novamente, porque ele fizera planos para levar a garota Lobi, Jannalynn, para os cassinos em Shreveport e jantar. Esperava que ela realmente fosse boa para Sam, porque ele merecia. 
Kennedy estava se contorcendo diante do espelho atrás do balcão, tentando perceber uma perda de peso. Olhei para minhas próprias coxas. Jannalynn era realmente bem magra. De fato, eu a chamaria de esquelética. Deus foi generoso comigo no departamento peitos, mas Jannalynn possuía seios pequenos como damascos que exibia usando bustiês e regatas sem sutiã. Ela demonstrava atitude (e altura) usando sapatos fantásticos. Eu estava usando tênis básicos. Suspirei. 
— Tenha uma boa noite! — Kennedy me disse radiante, e eu endireitei os ombros, sorri e acenei um adeus com os dedos. 
A maioria das pessoas achava que o grande sorriso e as boas maneiras de Kennedy eram fingidos. Mas eu sabia que Kennedy era sincera. Ela fora treinada pela mãe de concurso de beleza a manter um sorriso no rosto e palavras gentis nos lábios. Tinha que admirá-la; Danny Prideaux não a perturbava nem um pouco e eu sentia que ele deixava a maioria das garotas bem nervosas. Danny, que foi criado para esperar que o mundo o derrubasse portanto era melhor dar o primeiro soco, levantou um dedo para mim imitando o adeus de Kennedy. Ele tinha uma coca-cola diante dele, porque não bebia em serviço. Parecia contente
em jogar Mario Kart em seu Nintendo DS, ou simplesmente sentar no bar para observar Kennedy trabalhando. 
Por outro lado, muitos homens ficariam nervosos ao trabalhar com Kennedy já que cumpriu pena por homicídio culposo. Algumas mulheres ficariam também. Mas eu não tinha problema com ela. Estava feliz por Sam ter lhe dado uma chance. Não que eu aprove assassinato — mas algumas pessoas simplesmente imploram para serem mortas, não? Depois de tudo pelo que passei, eu simplesmente era forçada a admitir que me sentia desse modo. 
Cheguei em casa uns cinco minutos antes de Remy aparecer com Hunter. Tive tempo suficiente só para tirar as roupas do trabalho, jogá-las no cesto e vestir um par de shorts e camiseta antes de Remy bater na porta da frente. 
Olhei através do olho mágico antes de abrir, na teoria de que era melhor estar segura do que arrependida.
— Oi, Remy! — falei. Ele estava no começo dos trinta, um homem tranqüilo de boa aparência com cabelos castanho-claros grossos. Estava usando roupas apropriadas para uma visita noturna num funeral caseiro: calças caqui, camisa listrada branca e marrom, mocassins polidos. Ele pareceu mais confortável no jeans e camisa flanela que usou na primeira vez quando o conheci. Olhei para seu filho. Hunter crescera desde a última vez em que o vi. Ele tinha cabelos escuros e olhos como os da mãe, Hadley, mas era cedo demais para dizer com quem se pareceria quando crescesse. 
Agachei-me e disse, Oi, Hunter. Não falei nada em voz alta, mas sorri para ele. 
Ele quase tinha esquecido. Seu rosto se iluminou. Tia Sookie!, disse. Prazer inundou sua mente, prazer e entusiasmo. — Eu tenho um caminhão novo — disse em voz alta, e eu ri. 
— Você vai mostrar para mim? Entrem, vocês dois, vamos instalá-lo. 
— Obrigado, Sookie — disse Remy. 
— Eu pareço com a mamãe, pai? — Hunter perguntou. 
— Por quê? — Remy estava espantado. 
— É o que Tia Sookie diz. 
Remy estava acostumado a pequenos choques como esse agora, e sabia que ficaria ainda pior. 
— Sim, você se parece com sua mãe, e ela era bonita — Remy lhe disse. — Você é um rapazinho de muita sorte, filho. 
— Eu não quero parecer uma menina — disse Hunter, duvidoso. 
— Não parece. Nem um pouco — respondi. — Hunter, seu quarto fica bem aqui. — Indiquei a porta aberta. — Eu costumava dormir nesse quarto quando era criança — falei. 
Hunter olhou ao redor, alerta e cauteloso. Mas a cama de solteiro com sua colcha branca, os móveis antigos e o tapete junto à cama eram todos familiares e não ameaçadores. — Onde você vai ficar? — ele perguntou. 
— Bem aqui, do outro lado do corredor — falei, abrindo a porta de meu quarto. — É só chamar que eu virei correndo. Ou você pode vir subir na cama comigo, se ficar com medo à noite. 
Remy permaneceu parado, observando o filho absorver tudo aquilo. Eu não sabia com que freqüência o garotinho passava a noite longe do pai; raramente, pelos pensamentos que captava da cabeça do garoto. 
— O banheiro fica bem ao lado do seu quarto, vê? — apontei. Ele olhou para dentro do aposento fora de moda com a boca aberta. — Sei que parece diferente do seu banheiro em casa — falei, respondendo seus pensamentos. — Essa é uma casa velha, Hunter. — A banheira com pés em formato de garras e os azulejos pretos e brancos não eram algo que se via nas casas de aluguel e apartamentos onde Remy e Hunter moraram desde o Katrina.
— O que tem lá em cima? — Hunter perguntou. 
— Bom, um primo meu está ficando lá. Ele não está em casa agora e volta tão tarde que você pode não vê-lo. O nome dele é Claude. 
Posso subir lá em cima e dar uma olhada? 
Talvez amanhã possamos subir juntos. Vou lhe mostrar os quartos onde pode entrar e os quartos que Claude está usando. 
Relanceei o olhar e vi Remy virando a cabeça de Hunter para mim, não sabendo se ficava aliviado ou preocupado por eu poder conversar com seu filho de um modo que ele não podia. 
— Remy, está tudo bem — respondi. — Eu cresci e ficou mais fácil. Sei que isso será difícil, mas pelo menos Hunter é um garoto esperto com um corpo saudável. Seu pequeno problema é apenas... menos direto do que da maioria das outras crianças. 
— É um bom modo de se olhar para isso. — Mas a preocupação de Remy não diminuiu. 
— Quer beber alguma coisa? — perguntei, incerta sobre o que fazer com Remy agora. Hunter me perguntou silenciosamente se podia desfazer a mala, e eu lhe disse — do mesmo jeito — que fosse em frente. Ele já tinha descarregado uma mochila cheia de brinquedos no chão do quarto. 
— Não, obrigado. Eu tenho que ir. 
Era desagradável perceber que assustei Remy do mesmo modo que seu filho assustava outras pessoas. Remy podia precisar de minha ajuda, e eu percebia que me achava uma mulher bonita, mas também notava que lhe dava arrepios. 
— O velório é em Red Ditch? — perguntei. 
Era a cidade onde Remy e Hunter moravam. Ficava a cerca de uma hora e meia de viagem a sudeste de Bon Temps. 
— Não, em Homer. Então fica meio que no caminho. Se você tiver algum problema, apenas ligue no celular e eu posso pegá-lo a caminho de casa. Do contrário, vou passar a noite em Homer, ir ao funeral amanhã às dez, ficar para o almoço na casa de meu primo logo depois e pegar Hunter à tarde, se for conveniente para você. 
— Vamos ficar bem — eu disse, o que era uma total bravata de minha parte. Eu não tomava conta de crianças desde que estive com os pequenos de minha amiga Arlene há muito tempo atrás. Não queria pensar a respeito; amizades que terminam amargamente sempre são tristes. Aquelas crianças provavelmente me odiavam agora. — Tenho vídeos que podemos assistir, um ou dois quebra-cabeças, e até alguns livros para colorir. 
— Onde? — Hunter perguntou, olhando ao redor como se esperasse ver a Toys “R” Us7. 
— Diga tchau para seu pai e nós iremos procurar por eles — falei. 
— Tchau, pai — disse Hunter, acenando uma mão casual para
Remy. 
Remy pareceu pasmo. 
— Quer me dar um abraço, campeão? 
Hunter estendeu os braços, Remy o apanhou e girou. Hunter riu. Remy sorriu por sobre o ombro da criança. 
— Esse é meu garoto — disse. — Seja bonzinho para sua tia Sookie. Não esqueça os modos. Te vejo amanhã. — Ele soltou Hunter. 
— Está bem — disse Hunter simplesmente. 
Remy tinha esperado um grande rebuliço, já que nunca ficou afastado do garoto por tanto tempo. Ele olhou para mim e então sacudiu a cabeça com um sorriso. Estava rindo de si mesmo, o que achei ser uma boa reação. Imaginei quanto tempo duraria a aceitação calma de Hunter. 
— Vou ficar bem — ele disse, e percebi que estava lendo minha mente e interpretando o pensamento de seu próprio jeito. Embora tenha tido essa experiência antes, ela foi filtrada através da sensibilidade de um adulto, e nos divertimos combinando nossa telepatia para ver o que acontecia. Hunter não estava filtrando e reorganizando meus pensamentos como alguém mais velho faria. 
Depois de abraçar o filho novamente, Remy partiu relutantemente. Hunter e eu encontramos os livros de colorir. Acontece que ele gostava de colorir mais do que qualquer coisa no mundo. Deixeio sentado à mesa da cozinha e voltei minha atenção na preparação do
                                              
 7  Cadeia de lojas exclusivas de brinquedos.
 
jantar. Eu poderia ter feito uma refeição improvisada, mas imaginei que algo que exigisse um pouco mais de atenção seria melhor na primeira vez em que ele ficava comigo. 
Você gosta de Hamburger Helper8?, perguntei silenciosamente. Ele levantou os olhos, e mostrei-lhe a caixa. 
Eu gosto, disse Hunter, reconhecendo a embalagem. Ele pareceu voltar a prestar atenção na cena de tartaruga e borboleta que estava pintando. A tartaruga era verde e marrom, cores aprovadas de tartaruga, mas Hunter caprichou na borboleta. Era magenta, amarelo, azul e verde esmeralda... e ainda não terminara. Notei que se ater às linhas não era o principal objetivo de Hunter. O que estava tudo bem. 
Kristen costumava fazer Hamburger Helper, ele me contou. 
Kristen foi namorada de Remy. Remy me contou que os dois romperam por causa da incapacidade dela de aceitar o dom especial de Hunter. Não tão surpreendente, Kristen veio a acreditar que Hunter era assustador. Os adultos acharam que eu era uma criança esquisita também. Embora compreendesse isso agora, na época foi doloroso. 
Ela estava com medo de mim, disse Hunter, levantando a cabeça por um segundo. Eu podia entender aquele olhar. 
Ela simplesmente não entende, falei. Não existem muitas pessoas como nós. 
Eu sou o único outro? 
Não. Eu conheço outro, um rapaz. Ele é adulto. Vive no Texas. 
Ele está bem? 
Eu não tinha certeza do que significava “bem” para Hunter, até que olhei seus pensamentos mais um pouco. O garotinho pensava no pai e em outros homens que admirava — homens que tinham empregos, esposas ou namoradas, homens que trabalhavam. Homens normais. 
                                              
 8  Comida semi-pronta, tipo macarrão instantâneo, ao qual se acrescenta carne de hambúrguer.
 
Sim, respondi. Ele encontrou um jeito de ganhar com isso. Trabalha para vampiros. Não se pode ouvir vampiros. 
Eu nunca conheci um. Verdade? 
A campainha tocou. — Volto num minuto — disse a Hunter, e segui rapidamente até a porta da frente. Usei o olho mágico. Meu visitante era uma jovem vampira — provavelmente Heidi, a rastreadora. Meu celular tocou. Tirei-o do bolso. 
— Heidi deve estar aí — disse Pam. — Ela veio até a porta? 
— Rabo de cavalo castanho, olhos azuis, alta? 
— Sim. Pode deixá-la entrar. 
Isso tudo era bem oportuno. Abri a porta num segundo. — Oi. Entre — falei. — Sou Sookie Stackhouse. — Dei passagem. Não me ofereci para apertar sua mão; vampiros não fazem isso. 
Heidi assentiu para mim e entrou na casa, lançando um rápido olhar ao redor, como se examinar os arredores abertamente fosse grosseiro. 
Hunter apareceu correndo na sala, parando abruptamente ao ver Heidi. Ela era alta e ossuda, e possivelmente muda. No entanto, agora Hunter podia testar minhas palavras. — Heidi, esse é meu amigo Hunter — falei, esperando pela reação de Hunter. 
Ele estava fascinado. Tentava ler os pensamentos dela, se esforçando ao máximo. Encontrava-se encantado com o resultado, com seu silêncio. 
Heidi se agachou. — Hunter, você é um belo garotinho — ela disse, para meu alívio. Sua voz tinha um sotaque que associei com Minnesota. — Você vai ficar com Sookie por muito tempo? — Seu sorriso revelou dentes um pouco mais compridos e afiados do que a maioria dos humanos, e achei que Hunter podia ficar com medo. Mas ele a fitou com genuína fascinação. 
Você veio jantar com a gente?, ele perguntou a Heidi. 
Em voz alta, por favor, Hunter, falei. Ela é diferente dos humanos, mas também não é como nós. Lembra-se? 
Ele me olhou como se estivesse com medo de eu estar zangada. Sorri para ele e assenti. 
— Vai jantar com a gente, Srta. Heidi? 
— Não, obrigada, Hunter. Estou aqui para ir até a floresta e procurar uma coisa que perdemos. Não vou mais incomodá-los. Meu chefe pediu que me apresentasse a você e então fizesse meu trabalho. — Heidi endireitou-se, sorrindo para o garotinho. 
De repente, vi uma armadilha diante de mim. Eu era idiota. Como podia ajudar o garoto se não o educava? Não a deixe saber que você pode ouvir coisas, Hunter, falei à criança. Ele olhou para mim, os olhos incrivelmente parecidos com os de minha prima Hadley. Ele pareceu um pouco assustado. 
Heidi olhava de Hunter para mim, obviamente sentindo que algo estava acontecendo sem que ela pudesse compreender. 
— Heidi, espero que encontre algo — falei rapidamente. — Me informe antes de ir embora, por favor. — Não apenas queria saber se ela encontraria algo, como queria saber quando sairia de minha propriedade. 
— Isso deve levar não mais do que duas horas — ela disse. 
— Desculpe não ter dito “Bem-vinda | Louisiana” — falei. — Espero que não tenha se incomodado demais ao mudar para cá de Las Vegas. 
— Posso voltar a pintar? — Hunter perguntou. 
— Claro, querido — respondi. — Estarei lá num minuto. 
— Tenho que ir ao banheiro — Hunter exclamou, e ouvi a porta do banheiro se fechar. 
Heidi disse: — Meu filho tinha a idade dele quando fui transformada. 
Sua afirmação foi tão abrupta, a voz tão neutra, que levei um momento para absorver o que ela me contou. 
— Sinto muito — respondi, falando sério. 
Ela deu de ombros. — Foi há vinte anos atrás. Ele é adulto agora. É viciado em drogas em Reno. — Sua voz ainda soava neutra e sem emoção, como se estivesse falando do filho de uma estranha. 
Muito cautelosamente, eu disse: — Você o viu? 
— Sim — ela disse. — Eu o vi. Pelo menos vi antes que meu antigo — empregador — me mandasse para cá. 
Eu não sabia o que dizer, mas ela ainda se encontrava parada ali, então me aventurei a fazer outra pergunta. — Você o deixa vê-la? 
— Sim, às vezes. Chamei uma ambulância certa vez quando o vi ter uma overdose. Outra noite, eu o salvei de um viciado em sangue vampiro que ia matá-lo. 
Uma massa de pensamentos trovejou em minha cabeça, e todas foram desagradáveis. Ele sabia que a vampira o vigiando era sua mãe? E se tivesse uma overdose durante o dia, quando ela estava morta para o mundo? Como ela se sentiria se não estivesse lá na noite em que a sorte dele finalmente acabasse? Ela não poderia estar sempre presente. Era possível ele ter se tornado viciado porque a mãe ficava aparecendo quando devia estar morta? 
— Nos velhos tempos — eu disse, porque tinha que dizer algo — os criadores “vampiros” deixavam a {rea com os novos vampiros assim que eram transformados, para mantê-los afastados dos parentes que podiam reconhecê-los. — Eric, Bill e Pam me contaram isso. 
— Fiquei longe de Las Vegas durante uma década, mas voltei — disse Heidi. — Meu criador precisava de mim lá. Ser parte do mundo não é tão maravilhoso para nós como é para nossos líderes. Acho que Victor me mandou trabalhar para Eric na Louisiana para me afastar de meu filho. Eu não seria útil para eles, disseram, enquanto os problemas de Charlie estivessem me distraindo. Mas, de qualquer forma, minha habilidade em rastreamento foi descoberta apenas porque estava procurando o homem que vendeu drogas ruins para Charlie. 
Ela sorriu um pouco, e eu soube que tipo de fim aquele homem encontrou. Heidi era extremamente arrepiante. 
— Agora vou para os fundos de sua propriedade ver o que posso descobrir. Eu a informo quando terminar. — Assim que saiu pela porta, ela desapareceu na floresta tão rápido que, no momento em que fui para os fundos da casa para ver, se fundiu às árvores. 
Eu tive um bocado de conversas estranhas, e tive conversas dolorosas — mas com Heidi foram ambos. Felizmente, tive alguns minutos para me recuperar enquanto servia nossos pratos e monitorava Hunter lavando as mãos. 
Fiquei feliz em descobrir que o garoto esperava dizer uma prece antes de comer, e inclinamos nossas cabeças juntos. Ele gostou de seu Hamburger Helper, dos feijões verdes e morangos. Enquanto comíamos, Hunter me contou tudo sobre o pai, a propósito de conversa. Eu tinha certeza que Remy ficaria horrorizado se ouvisse a disposição de Hunter em contar tudo. Fiz o possível para não rir. Acho que a discussão teria sido estranha para qualquer um, porque metade dela foi falada e outra metade aconteceu em nossas mentes. 
Sem que eu precisasse lembrá-lo, Hunter levou seu prato à pia. Prendi a respiração até ele deslizá-lo cuidadosamente sobre o balcão. 
— Você tem um cachorro? — ele perguntou, olhando ao redor como se um pudesse se materializar. — Nós sempre damos os restos para o cachorro. — Lembrei do cãozinho preto que vi correndo no quintal da casinha de Remy em Red Ditch. 
Não, eu não tenho, respondi. 
Você tem um amigo que se transforma em cachorro?, ele disse, os olhos arregalados de espanto. 
— Sim, tenho — falei. — Ele é um bom amigo. — Não contei com Hunter captando aquilo. Isso era bem complicado. 
— Meu pai diz que eu sou esperto — disse Hunter, parecendo duvidoso. 
— Com certeza você é — falei. — Sei que é difícil ser diferente, porque eu também sou. Mas cresci e fiquei bem.
Mas você parece meio preocupada, disse Hunter. 
Concordei com Remy. Hunter era um garotinho esperto. 
Eu estou. Foi difícil para mim, crescer, porque ninguém entendia por que eu era diferente. As pessoas não acreditavam. Sentei numa cadeira junto à mesa e puxei Hunter para meu colo. Fiquei preocupada com o fato de ele achar desconfortável ser tocado, mas pareceu contente por sentar ali. As pessoas não querem saber que alguém consegue ouvir o que elas estão pensando. Elas não têm nenhuma privacidade quando pessoas como nós estão perto. 
Hunter não entendeu exatamente “privacidade”, então conversamos sobre o conceito por um tempo. Talvez aquilo fosse demais para a cabeça de uma criança de cinco anos — mas Hunter não era comum. 
Então a coisa na floresta está dando privacidade?, Hunter perguntou. 
O quê? Eu sabia que reagi com ansiedade e consternação demais porque Hunter pareceu aborrecido também. Não se preocupe com isso, querido, falei. Não, ele não é problema. 
Hunter pareceu tranqüilo o suficiente para que eu sentisse que era hora de mudar de assunto. Sua atenção estava vagando, então o soltei. Ele começou a brincar com os bloquinhos que trouxe na mochila, transportando-os do quarto até a cozinha com seu caminhão de carga. Pensei em lhe dar alguns Legos como presente de aniversário atrasado, mas ia verificar com Remy primeiro, receber sua aprovação. Fiquei escutando Hunter enquanto lavava os pratos. 
Descobri que ele estava interessado em sua anatomia como a maioria das crianças de cinco anos, e achava engraçado que tivesse que ficar de pé para fazer xixi enquanto eu tinha que sentar, e não gostara de Kristen porque ela não gostava dele de verdade. Ela fingia, ele me contou, exatamente como se soubesse que eu estava ouvindo. 
Eu estava de costas para Hunter na pia, mas não fazia qualquer diferença em nossa conversa, o que foi outra sensação estranha. 
Você sabe quando eu estou ouvindo sua cabeça?, perguntei surpresa. 
Sim, faz cócegas, Hunter me contou. 
Isso era porque ele era tão jovem? Teria feito “cócegas” em minha cabeça também, se tivesse encontrado outro telepata quando tinha a idade dele? Ou Hunter era singular entre os telepatas? 
— Aquela mulher que apareceu na porta estava morta? — Hunter perguntou. Ele ficou de pé e correu até a mesa para ficar ao meu lado enquanto eu secava a frigideira. 
— Sim — respondi. — Ela é uma vampira. 
— Ela vai morder? 
— Não vai morder você ou eu — falei. — Acho que às vezes morde pessoas se elas dizem que está tudo bem. — Cara, eu estava preocupada com essa conversa. Era como conversar sobre religião com uma criança sem saber a preferência dos pais. — Acho que você disse que nunca conheceu um vampiro antes? 
— Não, senhora — ele respondeu. Comecei a dizer a Hunter que não precisava me chamar de “senhora”, mas então parei. Quanto melhor fosse sua educação, mais fácil o mundo seria para ele. — Também nunca conheci ninguém como aquele homem na floresta. 
Dessa vez, ele teve minha atenção total e me esforcei para que não percebesse meu alarme. Quando estava prestes a lhe fazer perguntas cuidadosas, ouvi a porta telada da varanda dos fundos se abrir, mas olhei pela janelinha para ter certeza. Sim, era a vampira. 
— Terminei — ela disse, quando atendi. — Vou embora. 
Notei que Hunter não correu para a porta como fez da outra vez. Porém, estava atrás de mim; senti seu cérebro zumbindo. Ele não estava exatamente assustado, mas ansioso, como a maioria das crianças fica com o desconhecido. Mas estava definitivamente contente por não conseguir ouvi-la. Eu senti prazer quando descobri que os cérebros vampiros eram silenciosos para mim também. 
— Heidi, você descobriu alguma coisa? — perguntei hesitante. Algumas coisas podiam não ser apropriadas para os ouvidos de Hunter. 
— Os rastros fae em sua floresta são frescos e pesados. São dois cheiros. Eles se cruzam. — Ela respirou fundo, aparentemente com prazer. — Adoro cheiro de fada à noite. Melhor do que gardênias. 
Desde que presumi que ela detectou o fae que Basim mencionou, isso não foi uma grande revelação. Mas Heidi disse que definitivamente havia dois faes. Eram más notícias. Confirmava o que Hunter também dissera.
— O que mais encontrou? — Dei um passo para trás, para que ela pudesse ver Hunter atrás de mim e fizesse afirmações de acordo. 
— Nenhum deles é a fada que senti aqui em sua casa. — Não eram boas notícias. — Claro, senti o cheiro de vários lobisomens. Também senti um vampiro — acho que é Bill Compton, apesar de tê-lo encontrado só uma vez. Há um c-a-d-á-v-e-r antigo. E um c-a-d-á-v-e-r novo enterrado a leste de sua casa, numa clareira junto ao riacho. A clareira fica perto de uma ameixeira selvagem. 
Nada disso era tranqüilizante. O c-a-d-á-v-e-r antigo, bom, já esperava por isso, e sabia quem era (passei um instante desejando que Eric não tivesse enterrado Debbie em minha propriedade). E se Bill era o vampiro perambulando pela floresta, tudo bem... apesar de me preocupar com ele andando por aí a noite toda ao invés de tentar construir uma nova vida para si mesmo. 
O novo cadáver era um verdadeiro problema. Basim não dissera nada a respeito. Alguém enterrou um corpo em minha propriedade nas duas últimas noites, ou Basim simplesmente não mencionou por alguma razão? 
Eu estava encarando Heidi enquanto pensava, e ela finalmente arqueou as sobrancelhas. 
— Está bem, obrigada — respondi. — Agradeço por seu tempo. 
— Cuide bem do pequenino — ela disse, atravessando a varanda e saindo pela porta. Não a ouvi chegar ao carro, mas não esperava. Vampiros podem ser bem silenciosos. Ouvi o motor sendo ligado e ela se foi. 
Já que sabia que meus pensamentos podiam preocupar Hunter, me forcei a pensar em outras coisas, o que era mais difícil do que parecia. Não teria que fazer isso por muito tempo; notei que meu pequeno hóspede estava ficando cansado. Ele fez o estardalhaço esperado sobre ir para a cama, mas não protestou tanto quando eu lhe disse que primeiro podia tomar um longo banho na fascinante banheira antiga. 
Enquanto Hunter mergulhava, brincava e fazia ruídos, eu fiquei no banheiro, olhando uma revista. Me certifiquei para que realmente ficasse limpo entre navios afundados e patos de corrida. 
Decidi que não lavaríamos seu cabelo. Imaginei que seria uma provação, e Remy afinal não me dera quaisquer instruções sobre lavar cabelos. Puxei o tampão. Hunter gostou de verdade do ruído da água enquanto escorria pelo ralo. Resgatou os patos antes que eles se afogassem, o que o tornou um herói. — Sou o rei dos patos, Tia Sookie — ele cantarolou. 
— Eles precisam de um rei — respondi. Eu sabia o quanto patos eram estúpidos. Vovó teve alguns por um tempo. Supervisionei o uso da toalha de Hunter e o ajudei a vestir o pijama. Lembrei-o de usar o banheiro novamente, então ele escovou os dentes, não muito bem. 
Quarenta e cinco minutos depois, após uma ou duas histórias, Hunter estava na cama. A pedido dele, deixei a luz do corredor acesa e a porta meio aberta. 
Descobri que estava exausta e sem clima para meditar sobre as revelações de Heidi. Não estava acostumada a cuidar de uma criança, embora Hunter tivesse sido bem fácil, especialmente para um pequenino que estava ficando com uma mulher que não conhecia bem. Esperava que estivesse gostando de conversar comigo através do cérebro. Também esperava que Heidi não o tivesse assustado muito. 
Não me concentrei em sua macabra pequena biografia, mas agora que Hunter tinha dormido, me descobri pensando na história dela. Era uma terrível pena que ela tivesse que voltar para Nevada durante o período de vida do filho. Na verdade, agora ela provavelmente parecia ter a mesma idade do filho, Charlie. O que acontecera ao pai do garoto? Por que o criador dela exigiu seu retorno? Quando foi transformada, os vampiros ainda não tinham se revelado para a América e o resto do mundo. Discrição foi primordial. Tive que concordar com Heidi. “Sair do caixão” não resolveu todos os problemas dos vampiros, e criou alguns novos.
Eu teria quase preferido não saber da triste história que Heidi carregava. Naturalmente, já que era produto de minha avó, tal desejo me fez sentir culpada. Não devíamos sempre estar preparados para ouvir as histórias tristes dos outros? Se eles querem contar, não era nossa obrigação ouvir? Agora sentia que possuía um relacionamento com Heidi, baseada em sua tristeza. Isso era um verdadeiro relacionamento? Havia algo solidário de minha parte da qual ela gostou, algo que trouxe aquela história à tona? Ou ela rotineiramente contava aos novos conhecidos sobre o filho, Charlie? Eu mal podia acreditar nisso. Compreendi que a presença de Hunter desencadeou suas confidências. Eu sabia (apesar de não querer admitir para mim mesma) que, se Heidi permanecesse tão distraída com a questão do filho viciado, uma noite ele receberia a visita de alguém cruel. Depois disso, ela seria capaz de concentrar toda sua atenção nos desejos do seu empregador. Estremeci. Embora achasse que Victor não hesitaria um segundo em fazer tal coisa, me perguntei, Eric faria — ou podia fazer isso? Já que até eu podia me indagar, sabia que a resposta era sim. 
Por outro lado, Charlie dava um ótimo refém para assegurar o bom comportamento de Heidi. Por exemplo: “Se você não espionar Eric, faremos uma visita a Charlie.” Mas se isso mudasse... Toda essa reflexão sobre Heidi era um meio de evitar uma questão mais imediata. Quem era o cadáver fresco em minha floresta e quem o plantou lá? 
Se Hunter não estivesse ali, eu teria telefonado para Eric. Teria pedido para ele trazer uma pá e vir me ajudar a desenterrar o corpo. Era o que um namorado devia fazer, certo? Mas eu não podia deixar Hunter sozinho na casa e teria me sentido horrível se pedisse a Eric para ir sozinho até a floresta, mesmo sabendo que ele não teria se importado. Na verdade, ele provavelmente teria mandado Pam. Suspirei. Parecia impossível me livrar de um problema sem conseguir outro.
 
ÀS SEIS DA MANHÃ, Hunter subiu em minha cama. — Tia Sookie! — ele disse no que provavelmente achou ser um sussurro. Só daquela vez, usar sua comunicação mental teria sido melhor. Mas, naturalmente, ele decidiu falar em voz alta. 
— Hmm? — Isso tinha que ser um sonho ruim. 
— Tive um sonho esquisito ontem à noite — Hunter me contou. 
— Hein? — Talvez um sonho dentro do sonho. 
— Esse homem alto veio no meu quarto. 
— É? 
— Ele tinha cabelo comprido como de uma moça. 
Apoiei-me nos cotovelos e fitei Hunter, que não parecia assustado. 
— É? — falei, o que foi pelo menos levemente coerente. — De que
cor? 
— Amarelo — disse Hunter, depois de pensar um pouco. Repentinamente, percebi que a maioria das crianças de cinco anos podia ter dificuldade na identificação de cores. 
Oh-oh. 
— Então o que ele fez? — perguntei. Lutei para ficar sentada. O céu lá fora começava a clarear. 
— Ele só olhou para mim e sorriu — disse Hunter. — Então entrou no armário.
— Uau — respondi inadequadamente. Eu não tinha certeza (isto é, até o anoitecer), mas parecia que Eric estava no esconderijo secreto em meu armário e morto para o dia. 
— Tenho que ir fazer xixi — disse Hunter, deslizando para fora da cama para correr até meu banheiro. Escutei-o dar a descarga um minuto depois e então lavar as mãos — ou pelo menos, abrir a torneira por um segundo. Desabei novamente nos travesseiros, pensando tristemente nas horas de sono que eu fatalmente perderia. Por pura força de vontade, saí da cama em minha camisola azul e vesti um roupão. Calcei os chinelos e, depois que Hunter saiu do meu banheiro, entrei. 
Alguns minutos mais tarde, nós estávamos na cozinha com as luzes acesas. Fui diretamente à cafeteira, e encontrei um recado preso nela. Reconheci a letra imediatamente, e as endorfinas inundaram meu organismo. Ao invés de incrédula por estar acordada e me mexendo tão absurdamente cedo, me senti feliz por estar compartilhando desse momento com meu priminho. 
O recado, escrito num dos blocos que eu mantinha por perto para fazer listas de compras, dizia, 
“Minha amada, cheguei perto demais do amanhecer para acordá-la, apesar de ficar tentado. Sua casa está cheia de homens estranhos. Uma fada no andar de cima e uma criancinha no andar de baixo — mas, contanto que não haja um nos aposentos de minha dama, eu posso suportar. Preciso falar com você quando acordar.” 
Estava assinado com um grande rabisco, “ERIC”. 
Deixei o recado de lado, tentando não me preocupar com a necessidade urgente de Eric em falar comigo. Comecei a fazer o café para me animar, então tirei a chapa e liguei-a na tomada. 
— Espero que goste de panquecas — disse a Hunter, e seu rosto se iluminou. 
Ele largou o copo de suco de laranja sobre a mesa com um baque e derramou o líquido. No momento em que eu estava prestes a lhe lançar um longo olhar, ele ficou de pé e pegou uma toalha de papel. Ele cuidou da mancha com mais vigor do que atenção ao detalhe, mas apreciei o gesto. 
— Eu adoro panquecas — disse. — Você sabe fazer? Elas não saem do freezer? 
Escondi um sorriso. — Não. Eu posso fazer. — Levou uns cinco minutos para misturar a massa e até lá a chapa ficou quente. Coloquei um pouco de bacon primeiro, e a expressão de Hunter ficou extasiada. 
— Eu não gosto deles moles — ele disse, e prometi que seriam crocantes. Era como eu gostava também. 
— Isso tem um cheiro maravilhoso, prima — disse Claude. Ele se encontrava parado na porta, os braços estendidos, parecendo tão bem quanto alguém pode parecer de manhã tão cedo. Usava uma camiseta marrom da Universidade da Louisiana em Monroe e shorts pretos de ginástica. 
— Quem é você? — Hunter perguntou. 
— Sou o primo de Sookie, Claude. 
Ele tem cabelo comprido como de uma moça também, disse Hunter. 
Mas ele é um homem, igual ao outro. — Claude, este é meu outro primo, Hunter — eu disse. — Lembra que eu disse que ele viria para uma visita?
— A mãe dele era... — Claude começou, e eu sacudi a cabeça. 
Claude podia ter dito qualquer tipo de coisa. Podia dizer “a bissexual” ou “aquela que o albino, Waldo, matou no cemitério em Nova Orleans”. Tudo isso teria sido verdade, e Hunter não precisava ouvir. 
— Então somos todos primos — falei. — Você estava dando a dica de que queria tomar o café da manhã conosco, Claude? 
— Sim, estava — ele respondeu graciosamente, servindo-se de café do bule sem me perguntar. — Se houver o suficiente para mim também. Esse jovenzinho parece ser capaz de comer um bocado de panquecas. 
Hunter ficou encantado com a ideia, e ele e Claude começaram a competir sobre o número de panquecas que conseguiam comer. Fiquei admirada por Claude estar tão à vontade com Hunter, embora o fato de estar conquistando a criança sem esforço não fosse surpresa para mim. Claude era profissional em ser charmoso. 
— Você mora aqui em Bon Temps, Hunter? — Claude estava perguntando. 
— Não — respondeu Hunter, rindo do absurdo de tal ideia. — Eu moro com meu pai. 
Okay, aquilo era o suficiente para compartilhar. Eu não queria ninguém sobrenatural sabendo a respeito de Hunter, entendendo o que o tornava especial. 
— Claude, você podia pegar calda e melaço? — falei. — Está ali na despensa. 
Claude localizou a despensa e trouxe Log Cabin e Brer Rabbit9. Ele até abriu os potes para que Hunter pudesse cheirar e escolher o que queria com suas panquecas. Coloquei panquecas na chapa e fiz mais café, tirei alguns pratos do armário e mostrei a Hunter onde ficavam os garfos e facas para que pudesse arrumar a mesa. 
Éramos uma pequena e estranha unidade familiar: dois telepatas e uma fada. Durante a conversa do café, tive que ocultar o que cada um era do outro e realmente foi um desafio. Hunter me disse em silêncio que Claude devia ser um vampiro, porque ele não podia ouvir seus pensamentos, e eu tive de dizer a Hunter que havia outras pessoas que não podíamos ouvir também. Mencionei que Claude não podia ser um vampiro porque era dia, e vampiros não podiam sair durante o dia. 
— Tem um vampiro no armário — Hunter contou a Claude. — Ele não pode sair de dia. 
— Qual armário? — Claude perguntou a Hunter. 
— Aquele no meu quarto. Você quer vir olhar? 
— Hunter — eu disse — a última coisa que qualquer vampiro quer é ser perturbado durante o dia. Eu o deixaria em paz. 
— Seu Eric? — Claude perguntou. Ele estava entusiasmado com a ideia de Eric estar na casa. Droga. 
— Sim — respondi. — Sabe que é melhor não ir até lá, certo? Quer dizer, não preciso ser dura com você, certo? 
Ele sorriu para mim. — Você, dura comigo? — disse zombeteiramente. — Rá. Sou fae. Mais forte do que qualquer humano. 
                                              
 9  Marcas de calda e melaço respectivamente.
 
Comecei a dizer, “Então como pode eu ter sobrevivido à guerra entre os fae quando tantas fadas não conseguiram?” Graças a Deus, eu não disse. No minuto seguinte, soube como foi bom ter engolido aquelas palavras, porque percebi pelo rosto de Claude que ele lembrou muito bem quem morreu. Eu sentia falta de Claudine também, e disse isso. 
— Vocês estão tristes — Hunter disse, certeiro. E estava captando tudo, o que não devia estar ouvindo. 
— Sim, estávamos lembrando da irmã dele — falei. — Ela morreu e sentimos sua falta. 
— Como minha mãe — ele disse. — O que é fay? 
— Sim, como sua mãe. — Algo assim. Só no sentido de que ambas estavam mortas. — E um fae é uma pessoa especial, mas não vamos falar sobre isso agora. 
Não precisava ser telepata para perceber o interesse e curiosidade de Claude e, quando ele se levantou para seguir para o corredor e usar o banheiro, eu fui logo atrás. Com certeza, os passos de Claude diminuíram e detiveram-se diante da porta aberta do quarto que Hunter usara. 
— Continue andando — eu disse. 
— Não posso dar uma espiada? Ele nunca vai saber. Ouvi falar do quanto ele é bonito. Só uma olhadinha? 
— Não — respondi, sabendo que era melhor eu ficar de olho naquela porta até Claude estar fora da casa. Só uma olhadinha, meu traseiro redondo e rosado. 
— O que tem seu traseiro, Tia Sookie? 
— Oops! Desculpe, Hunter. Eu disse uma palavra feia. — Não queria que Claude soubesse que só pensei. Escutei-o rir enquanto ele fechava a porta do banheiro. 
Claude ficou no banheiro por tanto tempo que eu tive que deixar Hunter escovar os dentes no meu. Depois que ouvi o rangido nas escadas e o som da televisão ligada, fui capaz de relaxar. Ajudei Hunter a se vestir, e então fui me trocar também, me maquiando com Hunter supervisionando atento o processo. Evidentemente, Kristen nunca deixou Hunter assistir o que ele considerava ser um procedimento fascinante. 
— Você devia vir morar com a gente, Tia Sookie — ele disse. 
Obrigada, Hunter, mas eu gosto de morar aqui. Eu tenho um emprego. 
Você pode conseguir outro. 
— Não seria a mesma coisa. Esta é minha casa, e eu adoro aqui. Não quero ir embora. 
Houve uma batida na porta da frente. Seria Remy chegando tão cedo assim para pegar Hunter? Mas foi outra surpresa total, uma desagradável. O Agente Especial Tom Lattesta encontrava-se na varanda. 
Hunter, naturalmente, correu para a porta tão rápido quanto conseguiu. Todas as crianças não são assim? Ele não achou que fosse o pai, porque não sabia exatamente quando Remy devia aparecer. Ele só quis descobrir quem era o visitante. 
— Hunter — falei, apanhando-o — este é um agente do FBI. Seu nome é Tom Lattesta. Consegue lembrar?
Hunter pareceu duvidar. Ele tentou dizer o nome desconhecido algumas vezes e finalmente conseguiu. 
— Bom trabalho, Hunter! — disse Lattesta. Estava tentando ser amigável, mas não era bom com crianças e soou falso. — Srta. Stackhouse, posso entrar por um minuto? — Olhei atrás dele. Ninguém mais. Achei que eles viajassem aos pares. 
— Acho que sim — respondi, sem entusiasmo. Não expliquei quem era Hunter, porque não era da conta de Lattesta, embora pudesse perceber que estava curioso. Ele também notou que havia outro carro estacionado lá fora. 
— Claude — chamei nas escadas. — O FBI está aqui — É bom informar companhias inesperadas de que mais alguém está em casa com você. 
A televisão foi silenciada, e Claude deslizou escada abaixo. Agora ele vestia uma camiseta de seda marrom dourada e calças caqui, parecendo o pôster de um sonho molhado. Até a orientação heterossexual de Lattesta não conseguiu se defender da onda de admiração aturdida. 
— Agente Lattesta, meu primo Claude Crane — eu disse, tentando não sorrir. 
Hunter, Claude e eu nos sentamos no sofá enquanto Lattesta ocupava a poltrona. Não lhe ofereci nada para beber. 
— Como está a Agente Weiss? — perguntei. A agente baseada em Nova Orleans trouxera Lattesta, de Rhodes, até minha casa na última vez e, durante o curso de vários eventos terríveis, ela levou um tiro. 
— Ela voltou ao trabalho — disse Lattesta. — Ainda está em função administrativa. Sr. Crane, acredito que não nos encontramos antes? 
Ninguém esquecia Claude. Obviamente, meu primo sabia disso muito bem. — Você não teve o prazer — disse ao homem do FBI. 
Lattesta passou um instante tentando absorver aquilo antes de sorrir. — Certo — disse. — Ouça, Srta. Stackhouse, vim aqui hoje para lhe informar que não é mais objeto de investigação. 
Fiquei atônita com o alívio que me varreu. Troquei um olhar com Claude. Deus abençoe meu bisavô. Imaginei quanto ele gastou, quantas cordas puxou, para tornar isso realidade. 
— Como aconteceu? — perguntei. — Não que vá sentir falta disso, entenda, mas tenho que me perguntar o que mudou. 
— Você parece conhecer pessoas poderosas — disse Lattesta, com uma inesperada ponta de amargura. — Alguém em nosso governo não quer que seu nome venha a público. 
— E você viajou até aqui na Louisiana para me dizer isso — falei, colocando descrença suficiente na voz para deixá-lo saber que achava aquilo uma mentira. 
— Não, vim para cá a fim de comparecer à audiência sobre o tiroteio.
Okay. Isso fazia mais sentido. — E você não tinha o número do meu telefone? Para ligar? Teve que vir até aqui para dizer que não vai mais me investigar pessoalmente? 
— Há algo errado a seu respeito — ele disse, e a fachada desapareceu. Era um alívio. Agora seu exterior combinava com o interior. — Sara Weiss sofreu algum tipo de... transtorno espiritual desde que a conheceu. Ela vai a sessões espíritas. Esta lendo livros sobre paranormalidade. O marido está preocupado com ela. O bureau está preocupado com ela. Seu chefe está em dúvida sobre colocá-la de volta ao trabalho de campo. 
— Sinto muito ouvir isso. Mas não vejo o que eu posso fazer a respeito. — Pensei por um minuto, enquanto Tom Lattesta me encarava com um olhar zangado. Estava tendo pensamentos raivosos também. — Mesmo que eu fosse até ela e dissesse que não posso fazer o que acha que posso, isso não ajudaria. Ela acredita no que quer. Eu sou o que sou. 
— Então você admite. 
Mesmo que eu não quisesse que o FBI me notasse, estranhamente, isso doeu. Imaginei se Lattesta estava gravando nossa conversa. 
— Admito o quê? — perguntei. Eu estava genuinamente curiosa para ouvir o que ele diria. Na primeira vez em que esteve em minha porta, ele foi um crente. Achou que eu era a chave para uma rápida ascensão no bureau.
— Admite que nem mesmo é um ser humano. 
Aha. Ele realmente acreditava nisso. Eu o enojava e repelia. Fiquei mais consciente do que Sam sentia. 
— Tenho a observado, Srta. Stackhouse. Fui afastado, mas posso conectá-la a qualquer investigação que diz respeito a você, e farei isso. Está errada. Vou embora agora, e espero que... — Ele não teve chance de terminar. 
— Não pense coisas ruins sobre minha Tia Sookie — disse Hunter, furioso. — Você é um homem mau. — Eu mesma não podia ter dito melhor, mas desejei pelo bem de Hunter que ele mantivesse a boca fechada. Lattesta ficou branco como um lençol. 
Claude riu. — Ele está com medo de você — disse a Hunter. Claude achou que era uma grande piada, e tive a sensação de que ele sabia o que Hunter faria desde o começo. 
Eu achava que o rancor de Lattesta podia constituir num perigo real para mim. 
— Agradeço por ter vindo me dar as boas notícias, Agente Especial Lattesta — falei, no tom de voz mais suave que consegui. — Tenha uma viagem segura de volta para Baton Rouge, Nova Orleans ou de onde quer que tenha vindo. 
Lattesta levantou-se e saiu pela porta antes que eu pudesse dizer outra palavra. Entreguei Hunter a Claude e o segui. Lattesta desceu os degraus até seu carro, remexendo os bolsos, antes de notar que eu estava atrás dele. Estava desligando um gravador de bolso. Ele virou-se para me dar um olhar raivoso. 
— Você usou uma criança — disse. — Isso é baixo. 
Fitei-o agudamente por um minuto. Então disse: — Você está preocupado que seu filhinho, com a idade de Hunter, tenha autismo. Tem medo de que essa audiência na qual irá comparecer vá mal para você e talvez a Agente Weiss. Está com medo porque reagiu a Claude. Pensa em pedir transferência para o EAV na Louisiana. Está zangado porque eu conheço pessoas que podem afastá-lo. 
Se Lattesta pudesse ter se pressionado no metal do carro, ele o teria feito. Fui tola por causa de meu orgulho. Devia tê-lo deixado ir embora sem uma palavra. 
— Eu desejava poder lhe contar quem me colocou fora dos limites para o FBI — falei. — Você teria borrado as calças. — Já que estava feito, certo? Virei-me e voltei para os degraus de minha casa. Um instante depois, ouvi o carro sair de meu pátio, provavelmente espalhando o belo cascalho. 
Hunter e Claude riam na cozinha, e eu os encontrei soprando bolhas com canudos na água da pia, que ainda tinha detergente. Hunter encontrava-se num banco que eu usava para alcançar as prateleiras altas dos armários. Foi uma inesperada imagem feliz. 
— Então, prima, ele foi embora? — Claude perguntou. — Bom trabalho, Hunter. Acho que existe um monstro do lago debaixo da água! 
Hunter soprou com mais força e gotas de água respingaram nas cortinas. Ele riu meio desenfreadamente. 
— Está bem, crianças, chega — respondi. Isso estava saindo do controle. Deixe uma fada sozinha com uma criança por alguns minutos e isso era o que acontecia. Relanceei o relógio. Graças a Hunter ter me acordado bem cedo, eram só nove horas. Eu não esperava que Remy viesse buscar Hunter até bem mais tarde. 
— Vamos ao parque, Hunter. 
Claude pareceu desapontado por parar a brincadeira, mas Hunter estava disposto a ir para algum lugar. Peguei meu taco de softball e uma bola e amarrei os tênis de Hunter. 
— Também estou convidado? — disse Claude, soando um pouco amuado. 
Fui pega de surpresa. — Claro, pode vir — respondi. — Isso seria ótimo. Talvez você deva ir em seu próprio carro, já que não sei o que faremos depois. — Meu primo egocêntrico realmente gostou de estar com Hunter. Eu nunca teria antecipado essa reação — e sinceramente, tampouco acho que ele tenha antecipado. Claude me seguiu em seu Impala enquanto eu dirigia até o parque.
Fui ao Parque Magnolia Creek, que se estendia de ambos os lados do riacho. Era mais bonito que o parquinho perto da escola primária. O parque não era grande coisa, é claro, já que Bon Temps não é exatamente uma cidadezinha próspera, mas tinha o equipamento recreativo padrão, uma pequena pista de caminhada, bastante área livre, mesas de piquenique e árvores. Hunter atacou o aparelho de ginástica como se nunca tivesse visto antes, e talvez não tenha. Red Ditch é menor e mais pobre do que Bon Temps. 
Descobri que Hunter podia subir como um macaco. Claude estava pronto para equilibrá-lo a cada movimento. Hunter teria achado aquilo irritante se eu fizesse. Não tinha certeza do por que devia ser, mas sabia que era verdade. 
Um carro estacionou enquanto eu tentava convencer Hunter a descer do aparelho para jogar bola. Tara desceu e se aproximou para ver o que estávamos fazendo. 
— Quem é seu amigo, Sookie? — ela exclamou. 
O top apertado que ela usava fazia Tara parecer um pouco maior do que quando veio ao bar para almoçar. Ela estava usando um short de pré-gravidez frouxo abaixo da barriga. Eu sabia que dinheiro extra não estava sobrando na família du Rone/Thornton ultimamente, mas esperava que Tara pudesse encontrar dinheiro no orçamento para comprar algumas roupas de maternidade de verdade daqui há algum tempo. Infelizmente, sua loja de roupas, o Tara’s Togs, não vendia roupas de maternidade. 
— Este é meu primo Hunter — falei. — Hunter, esta é minha amiga Tara. — Claude, que esteve sentado no balanço, escolheu aquele momento para saltar e se aproximar de onde estávamos. — Tara, este é meu primo Claude. 
Agora, Tara me conheceu a vida toda e conhecia todos os membros de minha família. Dei-lhe alguns pontos por aceitar aquela apresentação e dar a Hunter um sorriso amigável, que ela então estendeu para Claude. Deve tê-lo reconhecido — ela o viu em ação. Mas sequer pestanejou. 
— Com quantos meses você está? — Claude perguntou. 
— Pouco mais de três meses para dar à luz — disse Tara, suspirando. 
Acho que Tara se acostumou com relativos estranhos lhe fazendo perguntas pessoais. Ela me contou antes que todas as barreiras de conversa eram removidas quando se estava grávida. — As pessoas lhe perguntam qualquer coisa — dissera. — E as mulheres contam histórias de parto que fariam seus cabelos se arrepiarem. 
— Você quer saber o que vai ter? — Claude perguntou. 
Aquilo era fora dos limites. — Claude — eu disse, reprovadora. — É pessoal demais. — Fadas simplesmente não possuem o mesmo conceito de informação ou espaço pessoal que os humanos tinham.
— Peço desculpas — disse meu primo, muito insincero. — Achei que gostaria de saber antes de comprar as roupas. A cor das roupas dos bebês, eu acredito. 
— Claro — disse Tara abruptamente. — Qual é o sexo do bebê? 
— Ambos — ele respondeu com um sorriso. — Você vai ter gêmeos, um menino e uma menina. 
— Meu médico ouviu apenas uma pulsação — ela disse, tentando ser gentil ao dizer que ele estava errado. 
— Então seu médico é um idiota — Claude respondeu animado. — Você tem dois bebês, vivos e bem. 
Tara obviamente não sabia como reagir àquilo. — Eu o farei dar uma melhor olhada da próxima vez que o visitar — ela disse. — E direi a Sookie para avisá-lo do que ele diz. 
Felizmente, Hunter ignorara a maior parte daquela conversa. Tinha acabado de aprender como jogar a bola de softball no ar e pegá-la, e estava distraído pelo esforço de colocar meu bastão nas mãozinhas. 
— Você jogou beisebol, Tia Sookie? — ele perguntou. 
— Softball — respondi. — Pode apostar que joguei. Joguei no campo direito. Isso significa que eu ficava no campo e esperava para ver se a garota batendo acertaria a bola na minha direção. Então eu pegaria e lançaria ao arremessador, ou qualquer jogador que mais precisasse. 
— Sua tia Sookie foi a melhor fielder na história do Lady Falcons — disse Tara, agachando-se para conversar com Hunter olho no olho. 
— Bem, eu me diverti — falei. 
— Você jogou softball? — Hunter perguntou a Tara. 
— Não, eu ia torcer por Sookie — Tara respondeu, o que era a absoluta verdade, Deus a abençoe. 
— Aqui, Hunter — disse Claude, lançando uma bola fácil. — Vá pegar e jogue de volta para mim. 
A improvável dupla perambulou pelo parque, jogando a bola um para o outro com muito pouca exatidão. Eles estavam se divertindo um bocado. 
— Ora, ora, ora — disse Tara. — Você tem o hábito de arranjar família em lugares engraçados. Um primo? Onde você conseguiu um primo? Ele não é uma escapada secreta de Jason, certo? 
— Ele é filho de Hadley. 
— Oh... oh, meu Deus. — Os olhos de Tara se arregalaram. Ela examinou Hunter, tentando divisar alguma semelhança com as feições de Hadley. — Aquele não é o pai? Impossível. 
— Não — falei. — Aquele é Claude Crane, e é meu primo também. 
— Ele com certeza não é filho de Hadley — disse Tara, rindo. — E Hadley é a única prima que você teve da qual ouvi falar.
— Ah... foi uma espécie de pulada-de-cerca secreta — respondi. Era impossível explicar sem questionar a integridade de vovó. Tara viu como fiquei desconfortável com o tópico sobre Claude. 
— Como você e o louro alto estão se saindo? 
— Estamos indo bem — falei cautelosamente. — Não estou procurando em nenhum lugar. 
— Eu não diria isso! Nenhuma mulher certa da cabeça sairia com outra pessoa se pudesse ter Eric. Esperto e bonitão. — Tara soou um pouco melancólica. Bom, pelo menos JB era bonitão. 
— Eric pode ser chato quando quer. E falando de bagagem! — Tentei me imaginar enganando Eric. — Se eu tentasse ver outra pessoa, ele podia... 
— Matar esse alguém? 
— Ele com certeza não ficaria feliz — respondi, numa atenuação maciça. 
— Então, você quer me contar qual é o problema? — Tara pousou sua mão sobre a minha. Ela não é do tipo que fica tocando, então aquilo significava muito. 
— Verdade seja dita, Tara, não tenho certeza. — Eu tinha a esmagadora sensação de que algo estava errado, algo importante. Mas não conseguia definir o que podia ser. 
— Sobrenaturais? — disse. 
Dei de ombros. 
— Bem, eu tenho que voltar para a loja — ela disse. — McKenna abriu para mim hoje, mas não posso pedir que faça isso por mim o tempo todo. — Nos despedimos, mais felizes uma com a outra do que vínhamos sendo há um bom tempo. Percebi que precisava fazer um chá de bebê para Tara, e não conseguia imaginar por que isso não me ocorreu antes. Precisava começar a planejar. Se fizesse um chá surpresa e toda a comida sozinha... Oh, eu teria que contar às pessoas que Tara e JB estavam esperando gêmeos. Não duvidei da exatidão de Claude nem por um segundo. 
Pensei em ir até a floresta pessoalmente, talvez amanhã. Estaria sozinha então. Eu sabia que o nariz e os olhos de Heidi — e de Basim, ao que importa — eram bem mais exatos do que os meus, mas tive um irresistível impulso de ver o que podia encontrar. Mais uma vez, algo se acendeu no fundo de minha mente, uma memória que não era memória. Algo a ver com a floresta... com um homem ferido na floresta. Sacudi a cabeça para me livrar da nebulosidade e me dei conta de que não conseguia ouvir quaisquer vozes. 
— Claude — chamei. 
— Aqui! 
Atravessei um grupo de arbustos e vi a fada com o garotinho, divertindo-se no carrossel. É do que eu chamo, de qualquer forma. É circular, várias crianças podem ficar de pé nele, outras correm na beirada empurrando, e então é girado em círculo até o ímpeto ir embora. Claude empurrava rápido demais, e apesar de Hunter estar gostando, seu sorriso estava ficando um pouco tenso também. Eu podia notar o medo em seu cérebro, infiltrando-se no prazer. 
— Ei, Claude — falei, mantendo a voz calma. — É velocidade suficiente para uma criança. — Claude parou de empurrar, apesar de relutante. Ele mesmo estava se divertindo. 
Apesar de Hunter ter descartado meu aviso, pude notar que ficou aliviado. Ele abraçou Claude quando este lhe disse que tinha que ir para Monroe abrir seu clube. 
— Que tipo de clube? — Hunter perguntou, e eu tive que dar um olhar significativo a Claude e manter a mente em branco. 
— Te vejo mais tarde, camarada — a fada disse à criança, retribuindo o abraço. 
Era hora de um almoço adiantado, então levei Hunter ao McDonald’s como uma grande presente. O pai dele não mencionou qualquer proibição a fast food, e imaginei que só uma vez estava tudo bem. 
Hunter adorou seu Lanche Feliz, empurrando sobre a mesa o carrinho de brinquedo da embalagem até ficar absolutamente cansado, e então quis ir à área de lazer. Eu me encontrava sentada no banco o observando, esperando que a alegria dos túneis e do escorregador o entretecem por pelo menos uns dez minutos mais, quando outra mulher entrou pela porta da área cercada, arrastando um garoto da idade de Hunter. Embora praticamente ouvisse o pulsar agourento dos tambores, mantive o sorriso colado no rosto e esperei pelo melhor. 
Após alguns segundos de tratamento cuidadoso, os dois garotos começaram a gritar e correr juntos ao redor da pequena área de lazer e eu relaxei, porém cautelosamente. Arrisquei um sorriso para a mãe, mas ela meditava distante, e eu não precisava ler sua mente para notar que teve uma manhã ruim (descobri que sua secadora quebrou e ela não tinha condições de comprar outro por pelo menos dois meses). 
— É seu filho? — perguntei, tentando parecer animada e interessada. 
— Sim, o mais novo de quatro — ela disse, o que explicava o desespero sobre a secadora. — O resto deles está no treino da Liga Infantil de beisebol. As férias de verão estão chegando e eles vão ficar em casa por três meses. 
Oh. Eu não tinha nada para dizer. 
Minha relutante companhia afundou em seus próprios pensamentos sombrios, e eu me esforcei para ficar afastada. Foi uma luta, porque ela era como um buraco negro de pensamentos infelizes, meio que me sugando. Hunter aproximou-se e parou diante dela, fitando-a com fascinação boquiaberta. 
— Olá — disse a mulher, fazendo um grande esforço.
— Você quer fugir de verdade? — ele perguntou. 
Aquele definitivamente era um momento “ah, merda”. — Hunter, nós precisamos ir embora — falei rapidamente. — Agora venha. Estamos atrasados, atrasados! — Peguei Hunter e o carreguei, embora ele contorcesse e se agitasse em protesto (também era mais pesado do que parecia). 
Ele de fato me deu um chute na coxa, e eu quase o derrubei. A mãe na área de lazer estava nos encarando boquiaberta, e o garotinho dela parou na sua frente, perplexo com a partida abrupta do coleguinha de brincadeira. 
— Eu estava me divertindo! — Hunter gritou. — Por que temos que ir embora? 
Olhei-o direto nos olhos. 
— Hunter, fique quieto até chegarmos ao carro — falei, e cada palavra era séria. Carregá-lo pela lanchonete enquanto ele gritava chamara a atenção de todos, e não gostei disso. Notei algumas pessoas que eu conhecia, e haveria perguntas para responder mais tarde. Isso não era culpa de Hunter, mas não me fazia sentir nem um pouco melhor. 
Enquanto prendia seu cinto de segurança, notei que deixei Hunter ficar cansado e superexcitado demais, e tomei nota mentalmente para não fazer mais isso. Podia sentir seu pequeno cérebro praticamente subir e descer. Hunter me encarava como se estivesse magoado. 
— Eu estava me divertindo — ele disse novamente. — Aquele menino era meu amigo. 
Virei de lado para encarar seu rosto. — Hunter, você disse algo para a mãe dele que a deixou saber que é diferente. 
Ele era realista o bastante para admitir a verdade do que eu estava dizendo. — Ela estava brava de verdade — murmurou. — Mães deixam seus filhos.
A própria mãe o deixara. Pensei por um segundo sobre o que podia dizer. Decidi ignorar o tema sombrio aqui. Hadley abandonara Remy e Hunter, e agora estava morta e nunca mais voltaria. Eram fatos. Não havia nada que eu pudesse dizer para mudar. O que Remy quis que eu fizesse era ajudar Hunter a viver o resto de sua vida. 
— Hunter, isso é difícil. Eu sei. Passei pela mesma coisa. Você podia ouvir o que aquela mãe estava pensando, e então disse em voz alta. 
— Mas ela estava dizendo! Na cabeça! 
— Mas não em voz alta. 
— Era o que ela estava dizendo. 
— Na cabeça dela. — Ele agora só estava sendo teimoso. — Hunter, você é um rapazinho. Mas para tornar sua própria vida mais fácil, você tem que começar a pensar antes de falar. 
Os olhos de Hunter estavam arregalados e repletos de lágrimas. 
— Você tem que pensar e tem que manter a boca fechada.
Duas lágrimas enormes escorreram pelas bochechas rosadas. Oh, meu Deus. 
— Você não pode perguntar às pessoas sobre o que ouve em suas cabeças. Lembra quando conversamos sobre privacidade? 
Ele concordou uma vez, incerto, e então de novo com mais energia. Ele lembrava. 
— As pessoas — adultos e crianças — vão ficar zangadas de verdade com você se souberem que pode ler o que tem em suas cabeças. Porque as coisas na cabeça de alguém são particulares. Você não ia querer ninguém lhe dizendo que está pensando no quanto precisa fazer xixi. 
Hunter me fuzilou com o olhar. 
— Viu? Não se sente bem, não é? 
— Não — ele respondeu, rancoroso. 
— Quero que você cresça tão normal quanto puder — falei. — Crescer com essa condição é difícil. Você conhece alguma criança com problemas que todos podem ver? 
Após um minuto, ele concordou. — Jenny Vasco — disse. — Ela tem uma marca grande na cara. 
— É a mesma coisa, exceto que você pode esconder sua diferença, e Jenny não pode — falei. Eu estava me sentindo um bocado arrependida por Jenny Vasco. Parecia errado ensinar uma criancinha a ser dissimulada e discreta, mas o mundo não estava preparado para um telepata de cinco anos, e provavelmente nunca estaria. 
Me senti uma bruxa velha e malvada enquanto olhava o rosto infeliz, manchado de lágrimas. — Vamos para casa, lermos uma história — falei. 
— Você está zangada comigo, Tia Sookie? — disse ele, com uma dica de soluço. 
— Não — respondi, apesar de não estar feliz por ser chutada. Já que ele sabia disso, era melhor mencionar. — Não gostei quando me chutou, Hunter, mas não estou mais brava. Na verdade, estou brava com o resto do mundo, porque isso é difícil para você. 
Ele permaneceu em silêncio no caminho para casa. Entramos e sentamos no sofá, depois que ele foi ao banheiro, e peguei alguns livros da pilha que eu guardava. Hunter adormeceu antes que eu terminasse O Filhotinho Acanhado. 
Deitei-o gentilmente no sofá, tirei seus sapatos e peguei meu próprio livro. Li enquanto ele dormia. Levantei de vez em quando para fazer algumas pequenas tarefas. Hunter dormiu por quase duas horas. Achei essa hora incrivelmente pacífica embora pudesse ter sido simplesmente entediante, se não tivesse Hunter o dia todo. 
Depois que coloquei uma pilha de roupas na máquina e voltei à sala na ponta dos pés, parei junto ao garoto adormecido e o observei.
Se eu tivesse um filho, meu bebê teria o mesmo problema de Hunter? Esperava que não. Obviamente, se Eric e eu continuássemos nosso relacionamento, eu nunca teria um filho a não ser que fosse inseminada artificialmente. Tentei me imaginar perguntando a Eric como se sentiria a respeito de eu ser engravidada por um homem desconhecido, e tenho vergonha de dizer que tive que reprimir o riso. 
Eric era muito moderno em alguns aspectos. Ele gostava da conveniência de seu telefone celular, adorava portas automáticas na garagem e gostava de assistir ao noticiário na televisão. Mas inseminação artificial... acho que não. Ouvi sua opinião sobre cirurgia plástica e tive a forte sensação de que ele considerava isso na mesma categoria. 
— Qual é a graça, Tia Sookie? — disse Hunter. 
— Nada importante — falei. — Que tal algumas fatias de maçã e
leite? 
— Sem sorvete? 
— Bom, você comeu hambúrguer, batata frita e tomou Coca no almoço. Acho melhor ficarmos com as fatias de maçã. 
Coloquei o vídeo de Rei Leão enquanto preparava o lanche de Hunter, e ele se sentou no chão diante da TV enquanto comia. Hunter se cansou do filme (que obviamente viu antes) na metade em diante e, depois disso, ensinei-o a brincar de Candy Land10. 
Ele ganhou da primeira vez. No momento em que jogávamos pela segunda vez, houve uma batida. 
— Papai! — Hunter gritou, correndo para a porta. 
Antes que eu pudesse impedi-lo, ele abriu. Estava feliz por ele saber quem era o visitante, porque tive um momento ruim. Remy se encontrava ali parado vestido com camisa, calça social e sapatos de amarrar polidos. Parecia um homem diferente. Sorria para Hunter como se não visse a criança há dias. Num segundo, o garoto estava em seus
                                              
 10 Jogo de tabuleiro semelhante ao Ludo.
braços. Foi emocionante. Eles se abraçaram apertado. Senti um nó na garganta. 
Num segundo, Hunter contou a Remy sobre Candy Land, McDonald’s e Claude, e Remy ouviu com total atenção. Ele deu um rápido sorriso para dizer que me cumprimentaria num segundo, assim que a torrente de informação diminuísse. 
— Filho, quer juntar todas as suas coisas? Não deixe nada — Remy o avisou. Com um rápido sorriso em minha direção, Hunter correu para os fundos da casa. — Foi tudo bem? — Remy perguntou, no minuto em que Hunter ficou fora do alcance da voz. Embora Hunter nunca ficasse fora do alcance num sentido, teria que servir. 
— Sim, acho que sim. Ele foi tão bonzinho — eu disse, resolvendo manter o chute para mim mesma. — Tivemos um probleminha no parque do McDonald’s, mas acho que conduziu a uma boa conversa com ele.
Remy pareceu como se tivesse uma carga jogada de volta nos ombros. — Sinto muito sobre isso — disse, e eu podia — bom, ter me chutado. 
— Não, foi só algo normal, o tipo de coisa pela qual você o trouxe aqui para que eu pudesse ajudar — respondi. — Não se preocupe. Meu primo Claude esteve aqui e ele brincou com Hunter no parque, embora eu estivesse ali o tempo todo, é claro. — Não queria que Remy pensasse que larguei Hunter com uma pessoa qualquer. Tentei pensar em outra coisa para contar ao pai ansioso. — Ele comeu muito bem e dormiu tranqüilo. Não por tempo suficiente — falei, e Remy riu. 
— Sei o que quer dizer — respondeu. 
Comecei a contar a Remy que Eric estava dormindo no armário e que Hunter o viu por alguns minutos, mas tive a confusa sensação de que Eric seria informação demais. Já tinha introduzido a ideia de Claude, e Remy não ficou totalmente satisfeito em ouvir a respeito. Reação típica de pai, supus.
— Deu tudo certo no funeral? Nenhum despertar de última hora? — Nunca se sabe o que se pode perguntar sobre funerais. 
— Ninguém se jogou na cova ou desmaiou — disse Remy. — É tudo que posso esperar. Algumas discussões sobre uma mesa de jantar que todas as crianças queriam carregar de imediato para a caminhonete. 
Assenti. Ouvi muitos pensamentos ansiosos ao longo dos anos sobre heranças, e tive meus próprios problemas com Jason quando vovó morreu. 
— As pessoas nem sempre mostram o lado mais simpático quando a questão é divisão familiar — respondi. 
Ofereci uma bebida a Remy, mas ele declinou sorridentemente. Obviamente estava pronto para estar sozinho com o filho, e me inundou com perguntas sobre os modos de Hunter, que fui capaz de louvar, e os hábitos de alimentação, que pude admirar também. Hunter não era uma criança enjoada e isso era uma benção. 
Minutos depois, Hunter voltou à sala com todas as suas coisas, embora eu tenha feito uma rápida investigação e encontrado dois bloquinhos que escaparam da atenção. Já que ele gostou tanto do Filhotinho Acanhado, enfiei o livro em sua mochila para que ele apreciasse em casa. Após mais alguns agradecimentos e um inesperado abraço de Hunter, eles se foram. Observei a velha caminhonete de Remy descer a entrada. 
A casa pareceu estranhamente vazia. 
Claro, Eric estava dormindo ali embaixo, mas estaria morto por mais algumas horas, e eu sabia que podia acordá-lo somente em circunstâncias extremas. Alguns vampiros não conseguiam acordar durante o dia, mesmo se fossem incendiados. Afastei aquela memória, já que me fazia estremecer. 
Dei uma olhada no relógio. Tinha parte da tarde ensolarada para mim, e era meu dia de folga. 
Coloquei meu biquíni branco e preto e deitei na velha espreguiçadeira antes que pudesse dizer, “Banho de sol é ruim para você.”
 
NO MINUTO EM QUE O SOL SE PÔS, Eric saiu do compartimento sob o armário do quarto de hóspedes. Ele me pegou e beijou a fundo. Eu já tinha aquecido um pouco de TrueBlood e ele fez uma careta, mas tomou. 
— Quem é a criança? — ele perguntou. 
— Filho de Hadley — eu disse. Eric conheceu Hadley quando ela esteve com Sophie-Anne Leclerq, a agora-finalmente-falecida Rainha da Louisiana. 
— Ela foi casada com um vivo? 
— Sim, antes de conhecer Sophie-Anne — respondi. — Um cara bem simpático chamado Remy Savoy. 
— É dele o cheiro que eu sinto? Junto com um grande odor de
fada? 
Oh-oh. — Sim, Remy veio buscar Hunter esta tarde. Fiquei com ele porque Remy teve que ir a um funeral de família. Ele não achou que seria um bom lugar para levar uma criança. — Eu não mencionei o probleminha de Hunter. Quanto menos gente soubesse disso melhor, e isso incluía Eric. 
— E? 
— Eu pretendia lhe contar na outra noite — falei. — Meu primo Claude? 
Eric assentiu. 
— Ele perguntou se podia ficar aqui por um tempo, porque está solitário em sua casa com ambas as irmãs mortas. 
— Está deixando um homem viver com você. — Eric não parecia zangado — era mais como se demonstrasse zanga, sabe o que eu quero dizer? Havia somente uma pontinha em sua voz. 
— Acredite, ele não está interessado em mim como mulher — eu disse, embora tenha tido um lampejo culpado dele entrando em meu banheiro. — Ele gosta mesmo é de homens. 
— Sei que está totalmente consciente de como cuidar de uma fada que lhe causa problemas — disse Eric, após silêncio apreciável. 
Eu matei fadas antes. Particularmente, não queria ser lembrada disso. — Sim — respondi. — E se o faz sentir melhor, vou manter uma pistola d’{gua cheia de suco de limão na cabeceira de minha cama. — Suco de limão e ferro — as fraquezas das fadas. 
— Isso me faria sentir melhor — Eric disse. — É esse Claude que Heidi farejou em suas terras? Senti que você ficou preocupada e foi uma das razões pelas quais vim para cá ontem à noite. 
O vínculo de sangue estava trabalhando duro.
— Ela diz que nenhuma das fadas que rastreou é Claude — falei — e isso realmente me preocupa. Mas... 
— Me preocupa também. — Eric fitou a garrafa vazia de TrueBlood e então disse: — Sookie, há coisas que você deve saber. 
— Oh. — Eu estava prestes a lhe contar sobre o novo cadáver. Tinha certeza que ele conduziria a discussão sobre o corpo, se Heidi tivesse mencionado, e parecia bem importante para mim. Posso ter soado um pouco irritada por ser interrompida. Eric me lançou um olhar atravessado. 
Está bem, sou culpada, perdão. Eu devia estar ansiosa para ser bombardeada com informação que Eric sentia que me ajudaria a atravessar o campo minado das políticas vampiras. E houve noites em que teria ficado encantada em aprender mais sobre a vida de meu namorado. Mas esta noite, depois da tensão e do estresse incomum causados pelos cuidados com Hunter, o que eu queria era (novamente, perdão) contar-lhe sobre a crise do corpo-na-floresta e então ter uma boa e longa transa. 
Geralmente, Eric concordaria com esse programa. Mas não essa noite aparentemente. 
Sentamos de lados opostos na mesa da cozinha. Tentei não suspirar audivelmente. 
— Você se lembra da conferência em Rhodes, e como uma faixa de estados de norte a sul foram convidados — Eric começou. 
Eu assenti. Isso não parecia muito promissor. Meu cadáver era bem mais urgente. Para não mencionar o sexo. 
— Assim que nos aventuramos de um lado do Novo Mundo para outro, e a população branca viva migrou também — fomos os primeiros exploradores — um grande grupo nosso se encontrou para dividir as coisas, para governar melhor nossa própria população. 
— Existiam vampiros americanos nativos quando vocês vieram para cá? Ei, você esteve na expedição de Leif Ericson11? 
— Não, não minha geração. Curiosamente, havia alguns vampiros americanos nativos. E aqueles que estavam aqui eram diferentes de várias formas. 
Agora, isso era bem interessante, mas eu podia notar que Eric não ia parar e preencher as lacunas. 
— Na primeira reunião nacional, há cerca de trezentos anos atrás, houve muitos desentendimentos. — Eric parecia muito, muito sério. 
— Não, verdade? — Vampiros discutindo? Eu podia bocejar. 
E ele também não gostou do meu sarcasmo. Arqueou as sobrancelhas louras, como se dissesse, “Posso continuar e chegar ao ponto? Ou você me causar{ dor?” 
Estendi as mãos: — Continue. 
— Ao invés de dividirmos o país do modo como os humanos fariam, nós incluímos um pouco do norte e do sul em cada divisão.                                               
 11 Leif Ericson (970~1020) – considerado primeiro explorador europeu a chegar à América do Norte quase 500 anos antes de Cristóvão Colombo.
Achamos que manteria o grupo representante funcionando. Então a maior parte da divisão leste, que inclui a maioria dos estados costeiros, é chamada Clã Moshup por causa da figura mítica nativo-americana, e seu símbolo é uma baleia. 
Okay, talvez eu tenha parecido um pouco vidrada naquele ponto. — Veja na Internet — disse Eric, impaciente. — Nosso clã— os estados que se encontraram em Rhodes compõem esse — Amun, um deus do sistema egípcio, e nosso símbolo é uma pluma, porque Amun usava um cocar de penas. Lembra-se que todos nós usamos um pequeno alfinete de pluma lá? 
Ah. Não. Sacudi a cabeça. 
— Bem, foi uma conferência movimentada — Eric cedeu. 
Com as bombas, explosões e tudo mais. 
— A oeste fica Zeus, do sistema romano, e um raio é o símbolo,
claro. 
Certo. Concordei profundamente. Eric pode ter sentido que eu não estava exatamente atenta, naquele momento. Ele me deu um olhar severo. 
— Sookie, isso é importante. Como minha esposa, você deve saber disso. 
Eu nem ia entrar naquele assunto esta noite. — Está bem, vá em frente — falei. 
— O quarto clã, a divisão da Costa Oeste, é chamada Narayana, do hinduísmo antigo, e seu símbolo é um olho porque Narayana criou o sol e a lua de seus olhos. 
Pensei em coisas que gostaria de perguntar, como “Quem diabos sentou e escolheu esses nomes estúpidos?” Mas quando recapitulei as perguntas através do censor interno, cada uma soou mais desrespeitosa do que a outra. Falei: — Mas havia alguns vampiros na conferência em Rhodes — a conferência do Clã Amun — que deviam estar em Zeus, correto? 
— Sim, muito bom! Há visitantes nas conferências se eles têm interesses ocultos num tópico sob discussão. Ou se possuem um processo contra alguém naquela divisão. Ou vai se casar com alguém na divisão que esteja participando de uma conferência. 
Seus olhos se enrugaram nos cantos com o sorriso de aprovação. Narayana criou o sol dos olhos dele, eu pensei. Retribuí o sorriso. 
— Entendo — falei. — Então, como pode Felipe ter conquistado a Louisiana, já que somos Amun e ele é... Ah, Nevada é Narayana ou Zeus? 
— Narayana. Ele pegou a Louisiana porque não estava com tanto medo de Sophie-Anne quanto os outros. Ele planejou e executou com rapidez e precisão depois que o... conselho... governante do Clã Narayana aprovou seu plano. 
— Ele teve que apresentar um plano antes de vir para cima de nós?
— É o modo como é feito. Os reis e rainhas de Narayana não iriam querer seus territórios enfraquecidos se Felipe falhasse e SophieAnne conseguisse tomar Nevada. Então ele teve que traçar seu plano. 
— Eles não acharam que nós podíamos querer dizer algo sobre esse plano?
— Não é problema deles. Se somos fracos o suficiente para sermos conquistados, então eles consideram jogo justo. Sophie-Anne foi uma boa líder, e muito respeitada. Com a incapacidade dela, Felipe julgou que estávamos fracos o bastante para um ataque. O tenente de Stan no Texas vem lutando nos últimos meses, já que Stan saiu ferido em Rhodes, e tem sido difícil para ele manter o Texas. 
— Como eles saberiam o quanto Sophie-Anne estava ferida? A gravidade de Stan? 
— Espiões. Todos nós nos espionamos. — Eric deu de ombros (Grande coisa. Espiões). 
— E se um dos governantes em Narayana devesse um grande favor a Sophie-Anne e tivesse decidido lhe dar a dica sobre a tomada de posse? 
— Tenho certeza que alguns consideraram fazer isso. Mas com Sophie-Anne ferida tão gravemente, suponho que decidiram que as vantagens estavam com Felipe. 
Isso era pavoroso. — Como se pode confiar em alguém? 
— Eu não confio. Há duas exceções. Você e Pam. 
— Oh — respondi. Tentei imaginar como seria me sentir assim. — Isso é terrível, Eric. 
Achei que ele faria pouco caso. Mas, ao invés disso, ele me fitou sobriamente. — Sim. Não é bom. 
— Você sabe quem são os espiões na Área Cinco? 
— Felicia, é claro. Ela é fraca e não é segredo que deve estar sendo paga por alguém; provavelmente Stan no Texas, ou Freyda em Oklahoma. 
— Eu não conheço Freyda. — Encontrei Stan. — Texas está em Zeus ou Amun? 
Eric sorriu para mim. Eu era sua aluna brilhante. 
— Zeus — ele respondeu. — Mas Stan teve que participar da conferência porque estava se propondo a participar de um projeto imobiliário com Mississippi. 
— Ele certamente pagou por isso — falei. — Se eles têm espiões, nós também temos, certo? 
— É claro. 
— Quem? Não estou sentindo falta de alguém? 
— Você conheceu Rasul em Nova Orleans, eu acredito. 
Concordei. Rasul era do Oriente Médio e tinha senso de humor. — Ele sobreviveu ao ataque.
— Sim, porque concordou em se tornar um espião para Victor, portanto para Felipe. Eles o mandaram para Michigan. 
— Michigan? 
— Existe um grande enclave árabe por lá, e Rasul se encaixa bem. Ele diz que fugiu do ataque. — Eric fez uma pausa. — Sabe que a vida dele irá se encerrar se você contar isso a alguém. 
— Ah, dã. Não vou contar isso a ninguém. Primeiro, o fato de todos vocês chamarem suas pequenas fatias da América com nomes de deuses é tão... — Sacudi a cabeça. Incrível. Não tinha certeza de como chamar. Arrogante? Estúpido? Bizarro? — E outra coisa, eu gosto de Rasul. 
Achei muito esperto da parte dele aproveitar a chance de fugir das garras de Victor, não importa o que tenha concordado em fazer. 
— Por que, de repente, está me contando tudo isso? 
— Acho que você precisa saber o que está acontecendo ao seu redor, minha amada. — Eric nunca pareceu tão sério. — Ontem à noite, enquanto eu trabalhava, me descobri distraído com a ideia de que você pode sofrer por sua ignorância. Pam concordou. Ela queria lhe dar o histórico de nossa hierarquia há algumas semanas. Mas achei que o conhecimento a sobrecarregaria, e você já tem problemas suficientes com as quais lidar. Pam me lembrou que a ignorância podia matá-la. Valorizo você demais para deixar que a sua continue. 
Meu pensamento inicial foi de que eu realmente gostava daquela ignorância, e por mim estaria tudo bem se a conservasse. Então tive que me endireitar. Eric realmente estava tentando me incluir em sua vida e seus pormenores. E estava tentando ajudar a me familiarizar com seu mundo porque me considerava parte dele. Tentei me sentir calorosa e animada por isso. 
Por fim, eu disse: — Obrigada. — Tentei pensar em perguntas inteligentes para fazer. — Hã, está bem. Então os reis e rainhas de cada estado numa divisão em particular se reúnem para tomar decisões e se relacionar — o quê, a cada dois anos? 
Eric me fitava cautelosamente. Ele podia sentir que nem tudo estava bem na Sookielândia. 
— Sim — respondeu. — A não ser que haja alguma crise que necessite de uma reunião extra. Cada estado não é um reino separado.
Por exemplo, há um governante da cidade de Nova York e outro para o resto do estado. A Florida também é dividida. 
— Por quê? — Aquilo me surpreendeu. Até que meditei a respeito. — Ah, muitos turistas. Presas fáceis. População vampira abundante. 
Eric concordou. — A Califórnia é dividida em três — Sacramento, San Jose e Los Angeles. Por outro lado, as Dakotas do Sul e do Norte se tornaram um reino, já que a população é tão pequena.
Eu estava tendo a oportunidade de olhar as coisas através de olhos vampiros. Haveria mais leões onde as gazelas se reuniam perto da fonte de água. Poucas presas, poucos predadores. 
— Como os negócios de — bom, de Amun, digamos — são conduzidos entre essas reuniões bienais? — Tinha que aparecer algumas coisas no meio. 
— Quadro de avisos, principalmente. Se nós temos que nos encontrar pessoalmente, comitês de xerifes se reúnem, dependendo da situação. Se tivesse uma discussão com o vampiro de outro xerife, eu chamaria esse xerife, e se ele não estivesse preparado para me dar satisfações, seu tenente se encontraria com meu tenente. 
— E se isso não funcionar? 
— Chutaríamos a disputa escada acima, para a conferência. Entre os anos de reunião, existe um encontro informal, sem cerimônias ou celebrações. 
Eu podia pensar num bocado de perguntas, mas todas elas eram do tipo “e se”, e não havia qualquer necessidade imediata de eu saber as respostas. 
— Okay — respondi. — Bom, isso foi realmente interessante. 
— Você não parece interessada. Parece irritada. 
— Não era o que eu esperava quando descobri que você estava dormindo em minha casa. 
— O que esperava? 
— Esperava que você tivesse vindo para cá porque não podia esperar um minuto a mais para ter um fabuloso, estonteante sexo comigo. — E para o inferno com o cadáver, por enquanto. 
— Contei coisas para o seu próprio bem — Eric disse sóbrio. — Contudo, agora que isso foi feito, estou pronto como sempre para ter sexo com você, e certamente posso torná-lo estonteante. 
— Então vá direto ao assunto, querido. 
Com um movimento rápido demais para que eu percebesse, Eric tirou a camisa e, enquanto eu admirava a vista, as outras peças de roupa se seguiram. 
— Eu realmente tenho que persegui-la? — ele perguntou, as presas já expostas. 
Consegui chegar até a metade da sala antes que ele me pegasse. Mas ele me carregou para o quarto. 
Foi ótimo. Apesar da irritante ansiedade me incomodando, esse incômodo foi abafado com êxito durante satisfatórios quarenta e cinco minutos. 
Eric gostava de deitar apoiado no cotovelo, com a outra mão acariciando minha barriga. Quando reclamei, já que minha barriga não era completamente lisa e isso me fazia sentir gorda, ele riu com gosto.
— Quem quer um saco de ossos? — ele disse com absoluta sinceridade. — Não quero me machucar nas bordas agudas da mulher com quem estou deitando. 
Isso me fez sentir melhor do que qualquer coisa que ele tenha dito durante um longo tempo. 
— As mulheres... as mulheres eram mais sinuosas quando você foi humano? — perguntei. 
— Nem sempre tínhamos escolha sobre o quanto éramos gordos — Eric disse secamente. — Nos anos ruins, éramos ossos e pele. Em anos bons, quando podíamos comer, comíamos. 
Me senti sobressaltada. — Ah, desculpe. 
— Este é um maravilhoso século para se viver — disse Eric. — Pode se ter comida sempre que quiser. 
— Se você tem dinheiro para pagar por ela. 
— Oh, você pode roubar — disse. — A questão é, a comida está aqui para ser possuída. 
— Não na África. 
— Sei que pessoas ainda passam fome em várias partes do mundo. Mas cedo ou tarde, essa prosperidade se estenderá para todos os lugares. Só chegou aqui primeiro. 
Achei seu otimismo incrível. — Você realmente pensa assim? 
— Sim — respondeu simplesmente. — Trance meus cabelos para mim, está bem, Sookie? 
Peguei minha escova de cabelo e um elástico. Pode me chamar de boba, mas eu realmente gostava de fazer isso. Eric sentou-se no banco diante de minha penteadeira, e eu vesti um roupão que ele me deu, uma linda peça de seda pêssego e branca. Comecei a escovar os longos cabelos de Eric. Depois que ele disse não se importar, peguei um pouco de gel de cabelo e alisei as mechas louras para que não houvesse nenhum fio solto arruinando a aparência. Eu me demorei, fazendo a trança mais arrumada possível, e então prendi a ponta. Sem os cabelos flutuando ao redor do rosto, Eric parecia mais severo, porém simplesmente lindo. Suspirei. 
— O que é esse som vindo de você? — ele perguntou, virando de lado para ter vários ângulos diante do espelho. — Não está feliz com o resultado? 
— Acho que você está ótimo — falei. Apenas o fato de que ele podia me acusar de falsa modéstia me impedia de dizer, “Então que diabos você est{ fazendo comigo?” 
— Agora eu farei seu cabelo. 
Algo em mim se esquivou. Na noite em que fiz sexo pela primeira vez, Bill escovou meus cabelos até que a sensualidade do movimento se transformou num tipo bem diferente de sensualidade. — Não, obrigada — respondi brilhantemente.
Percebi que, de repente, me sentia muito estranha. Eric virou-se para me olhar. — O que está a deixando tão sobressaltada, Sookie? 
— Ei, o que aconteceu ao Alasca e o Havaí? — perguntei ao acaso. Ainda estava com a escova na mão e, sem querer, larguei-a. Ela caiu no assoalho de madeira com um baque. 
— O quê? — Eric fitou a escova e então meu rosto, um pouco confuso. 
— Em que seção eles ficam? Ambos são Nakamura? 
— Narayana. Não. O Alasca foi adicionado pelos canadenses. Eles têm seu próprio sistema. Havaí é autônomo. 
— Isso simplesmente não está certo. — Eu estava genuinamente indignada. Então lembrei que havia algo muito importante para dizer a Eric. — Suponho que Heidi tenha informado imediatamente depois que farejou minha terra? Ela contou sobre o corpo? — Minha mão se contorceu involuntariamente. 
Eric observava cada movimento meu, os olhos estreitos. — Nós já conversamos sobre Debbie Pelt. Se você realmente quiser, eu a tiro de lá. 
Estremeci por completo. Queria lhe dizer que o corpo era fresco. Comecei a fazer isso, mas de algum modo eu estava tendo problemas para formular a frase. Sentia-me tão peculiar. Eric inclinou a cabeça, os olhos fixos em meu rosto. 
— Você está se comportando de forma muito estranha, Sookie. 
— Você acha que Alcide pode saber pelo cheiro que o corpo era de Debbie? — perguntei. O que havia de errado comigo? 
— Pelo cheiro não — ele disse. — Um corpo é um corpo. Não retém o odor distinto que identifica uma pessoa em particular, especialmente após todo esse tempo. Está tão preocupada com o que Alcide pensa? 
— Não tanto quanto costumava — respondi, balbuciando. — Ei, ouvi hoje no rádio que um dos senadores de Oklahoma se revelou Lobisomem. Ele disse que se registraria em algum bureau do governo no dia em que arrancassem as presas de seu cadáver frio. 
— Acho que as repercussões disso irão beneficiar os vampiros — Eric disse com alguma satisfação. — Obviamente, nós sempre soubemos que o governo iria querer manter vigilância sobre nós. Agora parece que, se os Lobis vencerem a luta para serem livres de supervisão, nós podemos ser capazes de fazer o mesmo. 
— É melhor você se vestir — falei. Algo ruim aconteceria em breve, e Eric precisava de roupas. 
Ele virou e se examinou no espelho uma última vez. — Está bem — disse, um pouco surpreso. Ele ainda estava nu e magnífico. Mas naquele momento, eu não estava me sentindo nem um pouco desejosa. Sentia-me estridente, nervosa e preocupada. Parecia que aranhas subiam em minha pele. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. Tentei falar, mas descobri que não podia. Fiz meus dedos se moverem num gesto para que se apressasse. 
Eric me lançou um rápido olhar preocupado e, sem palavras, começou a procurar pelas roupas. Ele encontrou as calças e as vestiu. Mergulhei no chão, as mãos de ambos os lados da cabeça. Pensei que meu crânio se separaria da espinha. Solucei. Eric largou a camisa. 
— Pode me dizer o que está errado? — ele perguntou, agachando-se no chão ao meu lado. 
— Alguém está vindo — respondi. — Me sinto tão estranha. Alguém está vindo. Quase aqui. Alguém com seu sangue. — Percebi que senti um vago traço daquela mesma estranheza antes, quando confrontei a criadora de Bill, Lorena. Não tive um vínculo de sangue com Bill, ou pelo menos nada parecido com uma conexão como aquela que possuía com Eric. 
Eric ficou de pé num piscar de olhos, e ouvi um som profundo vindo de seu peito. Suas mãos estavam fechadas em punhos brancos. Fui aconchegada na cama, e ele ficou entre mim e a janela aberta. Num piscar de olhos, percebi que havia alguém do lado de fora. 
— Appius Livius Ocella — disse Eric. — Já faz centenas de anos. 
Deus do céu. O criador de Eric.
 
CONSEGUI VER UM HOMEM através das pernas de Eric, musculoso e cheio de cicatrizes, com olhos e cabelos escuros. Eu sabia que era baixo porque podia ver apenas sua cabeça e os ombros. Ele vestia jeans e uma camiseta do Black Sabbath. Não consegui evitar. Dei risada. 
— Você sentiu minha falta, Eric? — a voz romana possuía um acento que eu realmente não consegui definir, possuía tantas camadas. 
— Ocella, sua presença é sempre uma honra — Eric disse. 
Ri mais alto. Eric estava mentindo. 
— O que há de errado com minha esposa? — ele perguntou. 
— Os sentidos dela estão confusos — disse o vampiro mais velho. — Você tem meu sangue. Ela tem o seu. E minha outra criança está aqui. O vínculo entre todos nós está confundindo seus pensamentos e sensações. 
Não brinca. 
— Este é meu novo filho, Alexei — Appius Livius Ocella disse a Eric. 
Perscrutei através das pernas de Eric. O novo “filho” era um garoto com não mais do que treze ou quatorze anos. Na verdade, eu mal consegui ver seu rosto. Congelei, tentando não reagir. 
— Irmão — disse Eric, cumprimentando o novo parente. As palavras vieram calmas e frias. Eu levantaria agora. Não ia mais ficar ali encolhida. Eric me colocara num espaço bem pequeno entre a cama e a cômoda de cabeceira, com a porta do banheiro à minha direita. Ele não mudara sua postura defensiva. 
— Com licença — falei com um grande esforço, e Eric deu um passo a frente para me dar espaço, mantendo-se entre mim e seu criador e o garoto. Fiquei de pé, empurrando a cama para me endireitar. Ainda me sentia queimada. Fitei o senhor de Eric direto nos olhos escuros e líquidos. 
Por uma fração de segundo, ele pareceu surpreso. 
— Eric, você precisa ir até a porta e deixá-los entrar — eu disse. — Aposto que na verdade eles nem precisam de convite. 
— Eric, ela é rara — disse Ocella, em seu inglês com sotaque estranho. — Onde você a encontrou? 
— Estou convidando-o por cortesia, porque é o pai de Eric — respondi. — Eu simplesmente podia deixá-los lá fora. — Se não soei tão forte quanto desejava, pelo menos não parecia assustada. 
— Mas minha criança está nesta casa e, se ele é bem-vindo, eu também sou. Não sou? — As sobrancelhas pretas e grossas de Ocella se arquearam. Seu nariz... Bom, podia se perceber por que existia a expressão “nariz romano”. — Eu esperei para entrar por cortesia. Podíamos ter aparecido em seu quarto.
No instante seguinte, eles entraram. 
Não me dei ao trabalho de responder. Lancei um olhar para o garoto, cujo rosto era absolutamente inexpressivo. Ele não era um romano antigo. Era vampiro há um século, calculei, e parecia ter origem alemã. Os cabelos eram claros, curtos e bem cortados, seus olhos eram azuis e, quando encontrou os meus, inclinou a cabeça. 
— Seu nome é Alexei? — perguntei. 
— Sim — respondeu seu criador, enquanto o garoto permanecia mudo. — Este é Alexei Romanov. 
Apesar do garoto não reagir, tampouco Eric, eu tive um momento de completo horror. 
— Você não fez isso — falei ao criador de Eric, que tinha mais ou menos a minha altura. — Você não fez. 
— Tentei salvar uma das irmãs dele também, mas ela estava além de minhas possibilidades — disse Ocella, desolado. Seus dentes eram brancos e uniformes, embora não tivesse um ao lado do canino esquerdo.
Se perdesse dentes antes de se tornar um vampiro, eles não se regeneravam. 
— Sookie, o que foi? — Eric não estava entendendo, nem um pouco. 
— Os Romanov — eu disse, tentando manter a voz baixa, como se o garoto não pudesse me ouvir a uma distância de dezoito metros. — A última família real russa. 
Para Eric, a execução dos Romanov deve ter sido ontem, e talvez não muito importante na cronologia de mortes que experimentou em seus mil anos. Mas ele entendeu que seu criador fez algo extraordinário. Olhei para Ocella sem raiva ou medo por alguns segundos e vi um homem que, se descobrindo um proscrito solitário, procurou pela “criança” mais extraordinária que pôde encontrar. 
— Eric foi o primeiro vampiro que você criou? — perguntei a Ocella. 
Ele estava assombrado com o que ele via como minha atitude descarada. Eric teve uma reação forte. Ao sentir o medo dele fluir através de mim, compreendi que Eric teria que executar fisicamente qualquer coisa que Ocella o ordenasse a fazer. Antes, aquilo foi um conceito abstrato. Agora eu percebia que, se Ocella mandasse Eric me matar, ele seria forçado a fazê-lo. 
O romano decidiu me responder. — Sim, ele foi o primeiro que transformei com sucesso. Os outros que eu tentei trazer de volta — morreram. 
— Poderíamos, por favor, deixarmos meu quarto e irmos para a sala de estar? — falei. — Este não é o local adequado para receber visitas. — Viu? Eu estava tentando ser educada. 
— Sim, eu suponho — disse o vampiro mais velho. — Alexei? Onde você acha que é a sala de estar? 
Alexei se virou um pouco e apontou na direção certa.
— Então, é para onde nós iremos, meu caro — disse Ocella, e Alexei liderou o caminho. 
Tive um momento para fitar Eric, e sabia que meu rosto perguntava, “Que diabos est{ acontecendo aqui?” Mas ele parecia aturdido e indefeso. Eric. Indefeso. Minha cabeça rodopiava. 
Quando tive um segundo para pensar a respeito, fiquei bem nauseada, porque Alexei era uma criança e eu tinha total certeza de que Ocella possuía um relacionamento sexual com o garoto, assim como teve com Eric. Mas eu não era tola o suficiente para achar que podia deter isso ou que qualquer protesto de minha parte faria a menor diferença. De fato, estava longe de ter certeza se o próprio Alexei me agradeceria por intervir, quando lembrei de Eric me contando sobre o desesperador vínculo com seu criador durante os primeiros anos de sua nova vida como vampiro. 
Alexei estava há um longo tempo com Ocella agora, pelo menos em termos humanos. Eu não conseguia lembrar exatamente quando a família Romanov foi executada, mas achei que era mais ou menos em 1918 e, aparentemente, foi Ocella quem salvou o garoto de sua morte final. Então o que quer que constituísse o relacionamento deles, vinha durando mais de oitenta anos. 
Todos esses pensamentos passaram pela minha cabeça, um atrás do outro, enquanto seguíamos os dois visitantes. Ocella dissera que podia ter entrado sem aviso. Teria sido bom se Eric tivesse me contado. Eu podia notar o quanto ele desejara que Ocella nunca o visitasse, então estava disposta a dar um desconto a Eric... mas não conseguia evitar pensar que, ao invés de sua aula sobre o modo como vampiros dividiram meu país de acordo com a própria conveniência, teria sido mais prático me informar que seu criador podia aparecer em meu quarto. 
— Por favor, sentem-se — eu disse, depois que Ocella e Alexei sentaram-se no sofá. 
— Tanto sarcasmo — disse Ocella. — Você não irá nos oferecer hospitalidade? — Seu olhar me percorreu de cima a baixo, e apesar da cor de seus olhos serem luminosos e castanhos, eles eram totalmente frios. 
Tive um segundo para me dar conta do quanto estava feliz por ter vestido o roupão. Teria preferido comer Alpo12 a estar nua diante desses dois. 
— Não estou feliz com sua súbita aparição na janela de meu quarto — respondi. — Vocês podiam ter ido até a porta e batido, como pessoas de boa educação fazem. — Eu não estava dizendo nada que ele já não soubesse; vampiros são bons em interpretar pessoas e os vampiros mais antigos geralmente são melhores do que humanos em interpretar o que eles sentem. 
— Sim, mas então eu não teria uma visão tão charmosa. — Ocella deixou o olhar percorrer o corpo sem camisa de Eric quase de modo tangível. Alexei, pela primeira vez, mostrou uma emoção. Ele pareceu assustado. Estaria com medo de que Ocella o rejeitasse, jogasse-o fora à mercê do mundo? Ou estava com medo de que Ocella o mantivesse? 
Senti pena de Alexei do fundo do coração, e o temi tanto quanto. Ele estava tão indefeso quanto Eric. 
Ocella encarou Alexei com uma atenção que era quase assustadora. 
— Ele já está bem melhor — Ocella murmurou. — Eric, sua presença está lhe fazendo um bem enorme. 
Eu meio que imaginei que as coisas não podiam ficar mais delicadas, porém uma batida autoritária na porta dos fundos, seguido de um, — Sookie, você está aí? — me disse que a noite realmente podia ficar pior. 
Meu irmão, Jason, entrou sem esperar que eu atendesse. 
— Sookie, eu vi as luzes acesas quando estacionei, então imaginei que estivesse acordada — ele disse, e então parou abruptamente ao perceber quantas companhias eu tinha. E o que eram. — Desculpe pela interrupção, Sookie — disse lentamente. — Eric, como vai indo? 
                                              
Eric disse: — Jason, este é meu... este é Appius Livius Ocella, meu criador, e seu outro filho Alexei. — Eric pronunciou corretamente, “APpi-us Li-WEE-us Oh-KEL-ah. 
Jason assentiu para os dois recém-chegados, mas evitou olhar diretamente para o vampiro mais velho. Bom instinto. 
— Boa noite, O’Kelly. Oi, Alexei. Então você é o irmão mais novo de Eric, hein? Você é viking como ele? 
— Não — disse o garoto debilmente. — Sou russo. — O sotaque de Alexei era bem mais leve do que do romano. Ele examinou Jason com interesse. Esperava que ele não estivesse pensando em morder meu irmão. A questão sobre Jason, e o que o tornava tão atraente para as pessoas (particularmente mulheres), era que ele praticamente irradiava vida. Ele simplesmente parecia ter uma porção extra de vigor e vitalidade, e estava voltando com toda a força agora que a tristeza pela morte da esposa estava desaparecendo. Essa era a manifestação do sangue de fada em suas veias. 
— Bem, prazer em conhecer todos — disse Jason. Então ele parou de prestar atenção nos visitantes. — Sookie, vim buscar aquela mesinha de canto no sótão. Passei aqui antes para pegar, mas você estava fora e eu não tinha minha chave. — Jason mantinha uma chave da minha casa para emergências, assim como eu tinha uma da casa dele. 
Eu tinha esquecido que ele pediu a mesa quando jantamos juntos. Naquele momento, ele podia ter pedido meu conjunto dormitório e eu teria concordado só para afastá-lo do perigo. Respondi: — Claro, não preciso dela. Pode subir. Acho que não está tão longe da porta.
Jason pediu licença e todos os olhos o seguiram, enquanto subia as escadas. Eric provavelmente só estava tentando manter os olhos ocupados enquanto pensava, mas Ocella observou meu irmão com franca avaliação, e Alexei com uma espécie de anseio. 
— Vocês gostariam de um pouco de TrueBlood? — perguntei aos vampiros, através de dentes cerrados. 
— Acho que sim, se não vai se oferecer ou ao seu irmão — disse o antigo romano. 
— Não vou. — Girei para seguir até a cozinha. 
— Sinto sua raiva — disse Ocella. 
— Eu não ligo — respondi, sem me virar para encará-lo. Ouvi Jason descer as escadas, um pouco mais devagar agora que estava carregando a mesa. — Jason, quer vir comigo? — falei por sobre o ombro. 
Ele ficou mais do que feliz por deixar a sala. Embora fosse civilizado com Eric porque sabia que eu o amava, Jason não estava feliz na companhia de vampiros. Ele largou a mesa num canto da cozinha. 
— Sookie, o que está acontecendo aqui? 
— Venha ao meu quarto por um segundo — eu disse, depois de tirar as garrafas da geladeira. 
Me sentiria ainda melhor se vestisse mais roupas. Jason me seguiu. Fechei a porta assim que entramos no quarto. 
— Cuide da porta. Não confio naquele vampiro mais velho — falei, e Jason prestativamente virou as costas para cuidar da porta enquanto eu tirava o roupão, e vestia minhas roupas o mais rápido que consegui na vida. 
— Ei — disse Jason, e eu pulei. Voltei-me para ver que Alexei tinha aberto a porta e teria entrado se Jason não a estivesse segurando. 
— Sinto muito — disse Alexei. Sua voz era um fantasma do que foi certa vez. — Peço desculpas a você, Sookie, e você, Jason. 
— Jason, pode deixá-lo entrar. Pelo quê sente muito, Alexei? — perguntei. — Venha, vamos até a cozinha e lhe aqueço um pouco de TrueBlood. — Seguimos para a cozinha. Estávamos um pouco longe da sala de estar e havia uma chance de que Eric e Ocella não nos ouvissem. 
— Meu mestre nem sempre é assim. A idade dele o transforma. 
— Transforma no quê? Um total imbecil? Um sádico? Molestador de crianças? 
Um vago sorriso cruzou o rosto do garoto. — Às vezes, tudo isso — ele respondeu, sucinto. — Mas sinceramente, eu mesmo não tenho me sentido bem. É por isso que estamos aqui. 
Jason começou a parecer zangado. Ele gosta de crianças, sempre gostou. Apesar de Alexei poder matar Jason num segundo, Jason pensava em Alexei como uma criança. Meu irmão estava ficando furioso, de fato pensando em ir até a sala de estar para confrontar Appius Livius Ocella.
— Escute, Alexei, você não precisa ficar com esse sujeito se não quiser — disse Jason. — Você pode ficar comigo ou Sookie, se Eric não lhe arranjar um lugar. Ninguém vai fazê-lo ficar com alguém que não quer ficar. — Deus abençoe o coração de Jason, ele com certeza não sabia o que estava dizendo. 
Alexei deu um sorriso apagado que era simplesmente desolador. — De verdade, ele não é tão ruim. É um bom homem, acreditem, mas de uma época que vocês não podem imaginar. Acho que vocês estão acostumados a conhecer vampiros que estão tentando... se misturar. O Mestre não está tentando fazer isso. Ele fica bem mais feliz nas sombras. E eu devo ficar com ele. Por favor, não se incomodem, mas agradeço pela preocupação. Já estou me sentindo melhor agora que estou com meu irmão. Não sinto como se de repente fosse fazer algo... lamentável. 
Jason e eu olhamos um para o outro. Aquilo foi suficiente para nos deixar preocupados. Alexei olhou ao redor da cozinha como se raramente visse uma. Imaginei que isso provavelmente fosse verdade. 
Tirei as garrafas quentes do microondas e as agitei. Coloquei alguns guardanapos na bandeja com as garrafas. Jason serviu-se de uma Coca da geladeira. 
Eu não sabia o que pensar de Alexei. Ele desculpou-se por Ocella como se o romano fosse seu avô ranzinza, mas era claro que estava sob seu poder. É claro que estava; ele era filho de Ocella num sentido bem real. 
Era uma situação terrivelmente estranha, ter uma figura histórica sentada em sua sala de estar. Pensei nos horrores que ele experimentou, antes e depois de sua morte. Pensei em sua infância como o czarevich, e sabia que apesar da hemofilia, aquela infância deve ter possuído alguns momentos gloriosos. Eu não sabia se o garoto frequentemente ansiou pelo amor, devoção e luxo que o cercou do nascimento até a revolução, ou (considerando que foi executado junto com toda a família imediata) se era possível ele ver o fato de ser vampiro como um progresso ao invés de ser enterrado num fosso na floresta russa. Contudo, com a hemofilia, sua expectativa de vida naqueles dias teria sido bem curta de qualquer forma. 
Jason acrescentou gelo ao seu copo e olhou dentro do pote de biscoitos. Eu não guardava mais biscoitos, porque se o fizesse, eu os comeria. Ele fechou o pote com tristeza. Alexei assistia tudo que Jason fazia como se estivesse observando um animal que nunca viu antes. Ele notou que eu o observava. 
— Dois homens cuidaram de mim, dois marinheiros — disse, como se conseguisse ler as perguntas em minha cabeça. — Eles me carregavam para todos os cantos quando a dor era demais. Depois que o mundo virou de ponta cabeça, um deles abusou de mim quando teve a chance. Mas o outro morreu, simplesmente porque ainda era gentil comigo. Seu irmão me lembra um pouco dele.
— Sinto muito sobre sua família — respondi desajeitadamente, já que me sentia obrigada a dizer algo. 
Ele deu de ombros. 
— Fiquei feliz quando eles foram encontrados e receberam um enterro — disse. Mas quando vi seus olhos, eu sabia que as palavras eram uma camada fina de gelo sobre um fosso de dor. 
— Quem estava em seu caixão? — perguntei. Eu estava sendo indiscreta? O que mais havia para se falar? Jason olhava de Alexei para mim, perplexo. A ideia de história para Jason era lembrar do irmão embaraçoso de Jimmy Carter13. 
— Quando o grande túmulo foi encontrado, o Mestre sabia que eles logo encontrariam minha irmã e eu. Nós superestimamos os investigadores, talvez. Levou mais dezesseis anos. Mas nesse meio tempo, nós voltamos ao local onde eu fui enterrado. 
Senti meus olhos se encherem de lágrimas. O local onde eu fui enterrado... 
                                              
 13  Político americano, ex-presidente dos EUA.
 
Ele continuou: — Nós tivemos que providenciar alguns dos meus ossos para ele, porque descobrimos sobre o DNA então. Do contrário, é claro, podíamos ter encontrado um garoto da mesma idade... 
Eu realmente não conseguia pensar em nada sequer normal para dizer. 
— Então você tirou alguns de seus próprios ossos para colocar no túmulo — falei com a voz vacilante e trêmula. 
— Em etapas, ao longo do tempo. Tudo cresceu de volta — ele disse, tranqüilizador. — Tivemos que queimar meus ossos um pouco. Eles queimaram Maria e eu, e jogaram ácido sobre nós também. 
Finalmente, eu consegui perguntar: — Por que isso foi preciso? Colocar seus ossos lá? 
— O Mestre queria que eu descansasse — ele disse. — Não queria que ninguém me visse. Ele argumentou que, se meus ossos fossem encontrados, não haveria mais controvérsia. Obviamente, até lá ninguém esperava que eu estivesse vivo de qualquer forma, muito menos parecendo que vivia. Talvez não estivéssemos pensando claramente. Quando se fica afastado do mundo por tanto tempo... Durante os primeiros cinco anos após a revolução, eu fui visto por algumas pessoas que me reconheceram. O Mestre teve que cuidar deles. 
Aquilo também levou um minuto para ser absorvido. Jason parecia nauseado. Eu não estava tão atrás. Mas esse pequeno bate-papo já se prolongara o suficiente. Eu não queria que o “Mestre” pensasse que nós estávamos tramando contra ele.
— Alexei — Appius Livius chamou numa voz aguda. — Está tudo bem com você? 
— Sim, senhor — disse Alexei, apressando-se a voltar para o romano. 
— Jesus Cristo, Pastor da Judéia — falei, virando-me para carregar a bandeja de garrafas até a sala. Jason estava nitidamente infeliz, mas me seguiu.
Eric encontrava-se concentrado em Appius Livius Ocella como um balconista do 7-Eleven observa um cliente que pode ter uma arma.
Mas parecia ter relaxado uma fração, agora que teve tempo para se recuperar do choque da aparição de seu criador. Através do vínculo, senti uma onda de esmagador alívio vindo de Eric. Depois que pensei a respeito, acreditei ter compreendido. Eric estava aliviado além da razão pelo vampiro mais velho ter trazido um companheiro de cama com ele. Eric, que deu uma boa impressão de indiferença sobre seus muitos anos como companhia sexual de Ocella, teve um momento de relutância maníaca quando realmente viu seu criador novamente. Eric estava se recompondo e reafirmando novamente. Estava voltando a ser Eric, o xerife, de sua abrupta mudança para Eric, o novo vampiro e escravo sexual. 
Do modo como eu percebia, Eric nunca seria o mesmo novamente. Agora sabia o que ele temia. O que eu notava dele não era tanto o aspecto físico quanto mental; acima de tudo, Eric não queria estar sob controle de seu criador. 
Servi uma garrafa para cada um dos vampiros, cuidadosamente colocando-a sobre um guardanapo. Pelo menos eu não precisava me preocupar em servir salgadinhos como acompanhamento... a menos que Ocella decidisse que todos os três deviam se alimentar de mim. Nesse caso, eu não esperava sobreviver, e não haveria uma só maldita coisa que pudesse fazer a respeito. Isso devia me tornar um modelo de discrição. Eu devia estar determinada a permanecer sentada ali com os tornozelos cruzados e não deixar a conversa desanimar. 
Mas isso simplesmente me deixava furiosa. 
A mão de Eric se contraiu, e eu sabia que estava captando meu humor. Ele queria me dizer que suavizasse, esfriasse, que ficasse longe do radar. Ele podia não querer ficar sob o domínio de Ocella novamente, mas também amava o vampiro. Me forcei a recuar. Não tinha dado chance ao romano. Não o conhecia de verdade. Só sabia algumas coisas das quais não gostava sobre ele, e devia existir outras que eu gostaria ou admiraria. Se ele tivesse sido um verdadeiro pai para Eric, eu teria lhe dado um bocado de chances para provar seu valor. 
Imaginei com que nitidez Ocella podia sentir minhas emoções. Ele ainda estava sintonizado em Eric e sempre estaria, e Eric e eu estávamos atados. Mas parecia que meus sentimentos não eram transportados; o romano não olhou muito em minha direção. Baixei os olhos. Eu teria que aprender como ser furtiva, e depressa. Normalmente, eu era boa em esconder o que sentia, mas a proximidade do vampiro antigo e seu novo protégé, o sangue tão parecido com o de Eric, não me deixavam escapatória. 
— Não tenho certeza de como chamá-lo — eu disse, encontrando os olhos do romano. Estava tentando imitar o melhor tom social de minha avó. 
— Você pode me chamar de Appius Livius — disse — já que é esposa de Eric. Eric levou centenas de anos para merecer o direito de me chamar de Appius, ao invés de Mestre. Então séculos para ser capaz de me chamar de Ocella. 
Então apenas Eric podia chamá-lo de Ocella. Por mim tudo bem. Notei que Alexei ainda estava no est{gio de “Mestre”. Alexei encontravase sentado imóvel, como se tivesse tomado um forte tranqüilizante, seu sangue sintético largado sobre a mesa de centro diante dele com apenas um gole faltando. 
— Obrigada — eu disse, consciente de que não soava muito agradecida. Relanceei um olhar para meu irmão. Jason pensava que tinha uma boa ideia de como queria chamar o romano, mas eu dei uma pequena, porém definitiva sacudida de cabeça. 
— Eric, conte-me como tem passado ultimamente — disse Appius Livius. Ele soava genuinamente interessado. Sua mão estendeu-se para Alexei, e vi que acariciava as costas do garoto, como se Alexei fosse um filhotinho. Mas eu não podia negar que havia afeto no gesto. 
— Estou muito bem. A Área Cinco é próspera. Eu fui o único xerife da Louisiana a sobreviver à invasão de Felipe de Castro. — Eric conseguiu parecer trivial. 
— Como isso aconteceu? 
Eric deu ao vampiro mais velho um resumo da situação política com Victor Madden. Quando achou que Appius Livius estava informado sobre a situação de Felipe de Castro/Victor Madden, Eric lhe perguntou: — Como se deu o fato de estar tão perto para o resgate desse jovem rapaz? — Eric sorriu para Alexei. 
Essa seria uma história que valeria a pena ouvir, agora que escutei a narrativa horripilante de Alexei sobre “falsificar” seu túmulo. Enquanto Alexei Romanov permanecia sentado ao lado em silêncio reservado, Appius contou a Eric sobre o rastreamento que fez da família real russa em 1918. 
— Embora tenha esperado algo do gênero, tive que me mover muito mais rápido do que antecipei — disse Appius. Ele terminou sua garrafa de sangue. — A decisão para executá-los foi tomada tão rapidamente, conduzida em tal velocidade. Ninguém queria que os homens tivessem tempo para pensar duas vezes. Para muitos soldados, o que eles estavam fazendo era algo terrível.
— Por que você quis salvar os Romanov? — Eric perguntou, como se Alexei não estivesse ali. 
E Appius Livius riu. Deu uma grande risada. 
— Eu detestava os malditos Bolcheviques — disse. — E eu tinha um laço com o garoto. Rasputin vinha lhe dando meu sangue durante anos. Acontece que eu estava na Rússia; lembra-se do Massacre de São Petersburgo? 
Eric concordou. 
— De fato, lembro. Eu não o via há vários anos, e só tive um vislumbre seu então. — Eric falou a respeito do Massacre de São Petersburgo antes. Um vampiro chamado Gregory foi enlouquecido por uma mênade vingativa, e foram necessários vinte vampiros para derrubálo e então disfarçar os resultados. 
— Após aquela noite, quando tantos de nós trabalharam juntos para limpar a cena depois que Gregory foi subjugado, eu desenvolvi uma afeição pelos vampiros russos — e pelo povo russo também. — Ele mencionou o povo russo com um aceno gracioso de cabeça na direção de Jason e eu, como representantes da raça humana. — Os malditos Bolcheviques mataram tantos de nós. Eu sofri. As mortes de Fedor e Velislava foram particularmente difíceis. Ambos eram grandes vampiros, e tinham centenas de anos. 
— Eu os conheci — disse Eric. 
— Enviei-lhes uma mensagem para saírem antes de começar a procurar pela família real. Consegui rastrear Alexei porque ele tinha meu sangue. Rasputin sabia o que éramos. Sempre que a imperatriz o chamava para curar o garoto quando a hemofilia estava muito ruim, Rasputin me implorava por um pouco de sangue e o garoto se recuperava. Ouvi rumores de que estavam pensando em matar a família real e comecei a seguir o cheiro de meu sangue. Quando me dispus a salvá-los, pode imaginar como me sentia um cruzado! 
Ambos riram e subitamente entendi que os dois vampiros de fato viram as Cruzadas, os cavaleiros cristãos originais das Cruzadas. Quando tentei compreender o quanto eles eram velhos, o quanto testemunharam, quantas experiências tiveram e que quase ninguém caminhando pela terra recordaria, minha cabeça doeu. 
— Sook, você tem companhias bem interessantes — disse Jason. 
— Escute, sei que você quer ir, mas se puder ficar mais um tempinho, eu agradeceria — respondi. Eu não estava feliz por ter o criador de Eric e o pobre garoto Alexei aqui, e já que Alexei claramente estava feliz com Jason, sua presença podia ajudar a facilitar essa situação desconfortável. 
— Só vou colocar a mesa na caminhonete e ligar para Michele — ele disse. — Alexei, você quer vir comigo?
Appius Livius não se mexeu, mas ficou definitivamente tenso. Alexei olhou para o antigo romano. Após uma longa pausa, Appius Livius assentiu para o garoto. 
— Alexei, lembre-se dos bons modos — Appius Livius disse suavemente. Alexei agitou a cabeça. 
Tendo ganhado permissão, o czarevich da Rússia saiu com o operário de estrada para arrastar uma mesa até a traseira de uma caminhonete. Quando fiquei sozinha com Eric e seu criador, senti uma pontada de ansiedade. Na verdade, estava fluindo através do vínculo que eu tinha com Eric. Eu não era a única ali que estava preocupada. E a conversa pareceu se imobilizar. 
— Com licença, Appius Livius — falei cuidadosamente. — Já que esteve no império certo na época correta, imagino se você viu Jesus? 
O romano fitava o corredor, desejando que Alexei reaparecesse. 
— O carpinteiro? Não, eu não o vi — disse Appius, e pude notar que ele se esforçava para ser cortês. — O judeu morreu bem na época em que eu fui transformado. Como sei que vai entender, eu tinha muitas outras coisas para pensar. De fato, não ouvi falar de todo o mito até algum tempo depois, quando o mundo começou a mudar como resultado de sua morte. 
Aquilo teria sido realmente incrível, conversar com uma criatura que viu o Deus vivo... mesmo que o chamasse de “mito”. E voltei a temer o romano — não pelo que ele fez a mim ou Eric, ou até mesmo o que estava fazendo com Alexei, mas pelo que ele podia fazer com todos nós, se pensasse a respeito. Eu sempre tentei encontrar a bondade nas pessoas, mas o melhor que podia dizer de Appius era que tinha bom gosto ao escolher quem ele transformava em vampiros. 
Enquanto eu meditava, Appius explicava a Eric como foi conveniente o porão em Ekaterinburgo. Alexei tinha sangrado quase por completo dos ferimentos, então ele deu ao garoto um grande gole de seu sangue — movendo-se a supervelocidade e, portanto, invisível para o pelotão de execução. Então observou nas sombras enquanto os corpos eram jogados num poço. No dia seguinte, a família real foi desenterrada novamente já que os assassinos temiam o tumulto que podia se seguir às mortes dos Romanov. 
— Eu os segui no minuto em que o sol se pôs no dia seguinte — disse Appius. — Eles pararam para enterrá-los de novo. Alexei e uma de suas irmãs...
— Maria — Alexei disse suavemente, e eu pulei. Ele tinha reaparecido silenciosamente na sala de estar, parando ao lado do assento de Appius. — Era Maria. 
Houve silêncio. Appius parecia imensamente aliviado.
— Sim, é claro, querido menino — disse Appius, conseguindo soar como se ligasse. — Sua irmã Maria se foi completamente, mas havia uma minúscula centelha em você. 
Alexei colocou a mão sobre o ombro de Appius Livius, e este estendeu a mão para lhe dar palmadinhas. 
— Eles atiraram nele várias vezes — ele explicou a Eric. — Duas vezes na cabeça. Coloquei meu sangue direto nos buracos de bala. — Ele virou a cabeça para olhar o garoto atrás dele. — Meu sangue funcionou bem, já que você perdeu tanto do seu. — Era como se estivesse recordando épocas felizes. Nossa, cara. O romano virou-se para encarar a mim e Eric, sorrindo orgulhosamente. Mas eu podia ver o rosto de Alexei. 
Appius Livius realmente sentia que foi um salvador para Alexei. Eu não tinha tanta certeza de que Alexei estava totalmente convencido disso. 
— Onde está seu irmão? — Appius Livius perguntou subitamente, e eu fiquei de pé para ir procurá-lo. Somei dois mais dois e compreendi que o criador de Eric queria ter certeza de que Alexei não drenou Jason e o largou no pátio. 
Jason entrou na sala naquele momento, enfiando o telefone celular no bolso. Ele estreitou os olhos. Jason não era um sujeito do tipo que entendia sutilezas, mas podia notar quando eu estava infeliz. 
— Desculpe — disse. — Falando com Michele. 
— Hmmm — falei. Tomei uma nota mental de que Appius Livius estava preocupado sobre deixar Alexei sozinho com humanos, e sabia que isso devia me assustar um pouco. A noite estava se esvaindo, e eu tinha coisas para descobrir. — Eu detesto mudar de assunto, mas há algumas coisas que eu preciso saber. 
— O quê, Sookie? — Eric perguntou, me encarando diretamente pela primeira vez desde que o Velho Mestre aparecera. Ele estava despejando cautela no vínculo entre nós. 
— Só tenho algumas perguntas — respondi, sorrindo o mais docemente possível. — Vocês estavam nessa área há algum tempo? 
Encontrei os olhos escuros antigos de novo. De algum modo, era difícil compreender Appius totalmente. Descobri que não conseguia olhar para ele como um indivíduo coeso. Ele me arrepiava até os cabelos. 
— Não — ele disse suavemente. — Não estivemos. Viemos para cá da direção sudoeste, de Oklahoma, e acabamos de chegar na Louisiana. 
— Então vocês não saberiam nada a respeito de um novo corpo enterrado nos fundos do meu terreno? 
— Não, nada. Você gostaria que fôssemos desenterrá-lo? Desagradável, mas possível. Está querendo ver quem é? 
Foi uma oferta inesperada. Eric me olhava estranhamente. 
— Desculpe, querido — respondi. — Eu estava tentando lhe contar quando nossos convidados inesperados apareceram.
— Não é Debbie — ele disse. 
— Não, Heidi diz que há uma nova cova. Mas nós precisamos saber quem é, e precisamos descobrir quem o colocou lá. 
— Os Lobisomens — Eric disse instantaneamente. — Este é o agradecimento por deixá-los usar suas terras. Vou ligar para Alcide e teremos um encontro. 
Eric parecia positivamente satisfeito por ter uma chance de fazer algo como chefe. Sacou o celular e ligou para Alcide antes que eu pudesse dizer alguma coisa. 
— Eric — ele disse ao telefone para se identificar. — Alcide, nós precisamos conversar. — Ouvi o zumbido do outro lado da linha. Um momento mais tarde, Eric disse: — Isso não é bom, Alcide, e sinto muito por ouvir que está com problemas. Mas eu tenho outras preocupações. O que você fez nas terras de Sookie? 
Ah, titica. 
— Você devia vir aqui e ver, então. Acho que seu pessoal andou aprontando. Muito bem, então. Eu o verei em dez minutos. Estou na casa dela. 
Ele desligou, parecendo triunfante. 
— Alcide estava em Bon Temps? — perguntei. 
— Não, mas estava na interestadual e quase em nossa saída — Eric explicou. — Está voltando de uma reunião em Monroe. As matilhas da Louisiana estão tentando apresentar uma fronte unida ao governo. Já que nunca se organizaram antes, isso não vai funcionar. — Eric fungou, claramente desdenhoso. — Os Lobisomens sempre vêm — o que você disse outro dia sobre o FEMA14, Sookie? “um pouco tarde demais”, certo? Pelo menos, ele está perto e quando chegar aqui, nós chegaremos ao fundo da questão. 
Eu suspirei, tentando fazer isso discreta e silenciosamente. Não tinha percebido como as coisas iriam longe tão rápido. Perguntei a Eric, Appius Livius e Alexei se queriam mais TrueBlood, mas eles declinaram. Jason parecia entediado. Olhei para o relógio. 
— Receio que tenha lugar disponível para apenas um vampiro. Onde vocês todos planejam dormir, ao amanhecer? Só quero saber para o caso de precisar telefonar e encontrar um lugar. 
— Sookie — disse Eric gentilmente. — Eu levarei Ocella e seu filho até minha casa. Eles podem ficar lá nos caixões de hóspedes. 
Eric normalmente dormia em sua cama, porque seu quarto não tinha janelas. Havia alguns caixões no quarto de hóspedes, coisas lustrosas de fibra de vidro que pareciam caiaques, que ele mantinha guardado debaixo das camas. O maior problema sobre Alexei e Appius Livius ficarem com Eric era que, se eles estivessem lá, eu definitivamente ficaria por aqui. 
— Acho que sua querida adoraria vir durante o dia e enfiar uma estaca em nossos peitos — disse Appius Livius, como se fosse uma grande piada. — Se acha que consegue fazer, jovem mulher, você está convidada a tentar.
— Oh, absolutamente — respondi, totalmente insincera. — Eu não sonharia em fazer tal coisa ao pai de Eric. — No entanto, não era uma má ideia. Ao meu lado, Eric se contorceu; era um movimento engraçado, como um cachorro correndo enquanto dormia. 
— Seja educada — ele me disse, e não havia nenhum elemento de diversão em sua voz. Ele estava me dando uma ordem. 
Eu respirei fundo. As palavras para rescindir o convite de Eric para minha casa estavam na ponta da língua. Ele teria que ir embora e,
                                              
 14 Federal Emergency Management Agency – órgão federal norte-americano de defesa civil, acionado em situações de desastre ou crise nacional.
 
provavelmente, Appius Livius e Alexei também. Foi aquele “provavelmente” que me impediu. A ideia de ficar sozinha com Appius Livius mesmo por um segundo forjou a visão prazerosa dos três vampiros caminhando para fora. 
Provavelmente foi sorte para todos nós que a campainha tenha tocado então. Fiquei de pé como se um foguete tivesse me incendiado. Seria bom ter mais pessoas vivas por perto. 
Alcide estava usando um terno. Encontrava-se acompanhado por Annabelle, que usava um vestido verde escuro e sapatos de salto alto, e Jannalynn, o novo interesse de Sam. Jannalynn tinha senso de estilo, apesar do estilo me deixar atordoada. Ela estava com um vestido prata brilhante que mal cobria seus encantos e sandálias de salto alto da mesma cor, amarrados na frente. A sombra prata dos olhos, com contornos pesados, completava o look. Ela parecia ótima de um jeito assustador. Sam certamente saía com mulheres que eram extraordinárias de alguma forma e não tinha medo de personalidades fortes, o que era um pensamento que eu guardaria para mais tarde. Talvez fosse algo da dupla natureza? Alcide era do mesmo jeito. 
Dei um abraço no líder e disse olá para Annabelle e Jannalynn, que me deram curtos acenos. 
— Qual é esse problema que Eric informou? — Alcide dizia, enquanto eu abria espaço para que eles entrassem. Quando os Lobis perceberam que estavam numa sala com três vampiros, todos ficaram tensos. Eles esperaram apenas Eric. Quando fitei os vampiros, vi que todos se encontravam de pé também, e até Alexei estava alerta. 
Jason disse: — Alcide, que bom vê-lo. Senhoritas, vocês parecem ótimas esta noite. 
Eu pisei no acelerador. — Olá, todos! — respondi animada. — Foi tão gentil vocês terem vindo tão em cima da hora. Eric, você conhece Alcide. Alcide, este é um amigo de longa data de Eric, Appius Livius Ocella, que está visitando a cidade com seu, hã, protegido, Alexei. Eric, não sei se já conheceu as amigas de Alcide, Annabelle, novo membro da matilha, e Jannalynn, que está com os Presas Longas há anos. Jannalynn, nós nunca tivemos muita chance de conversar, mas é claro que Sam fala a seu respeito o tempo todo. E acho que todos vocês conhecem meu irmão, Jason. 
Uau. Parecia que eu tinha corrido uma maratona de apresentações. Já que vampiros não se apertam as mãos, isso concluía a cerimônia de abertura. Então convidei todos a se sentarem, enquanto oferecia drinques que ninguém aceitou. 
Eric começou a salva de tiros. 
— Alcide, um dos meus rastreadores verificou as terras de Sookie depois que Basim al Saud a avisou sobre os estranhos que ele farejou na floresta. Nosso rastreador encontrou um novo corpo enterrado lá. 
Alcide olhou para Eric como se ele tivesse começado a falar em idiomas. 
— Nós não matamos ninguém aquela noite — respondeu Alcide. — Basim contou a Sookie que farejamos um corpo antigo, uma ou duas fadas e um vampiro. Mas não mencionou um cadáver fresco. 
— No entanto, agora existe uma nova cova lá. 
— Não temos nada a ver com isso. — Alcide deu de ombros. — Estivemos lá três noites antes de seu rastreador farejar o cheiro de um novo corpo.
— Parece uma enorme coincidência, não? Um corpo nas terras de Sookie, logo depois que sua matilha esteve lá? — Eric parecia irritantemente razoável. 
— Talvez seja mais do que coincidência já existir um corpo nas terras de Sookie. 
Ah, cara, eu realmente não queria seguir nessa direção. 
Jannalynn estava praticamente rosnando para Eric. Era um olhar interessante, com a maquiagem nos olhos e tudo mais. Annabelle estava de pé com os braços levemente afastados do corpo, esperando para ver onde precisaria pular. 
Alexei fitava o espaço, o que parecia ser sua posição defensiva, e Appius Livius parecia simplesmente entediado. 
— Acho que todos devemos ir ver quem é — disse Jason inesperadamente. 
Olhei para ele com aprovação. Então lá fomos nós para a floresta, desenterrarmos um cadáver.
 
ALCIDE TROCOU OS SAPATOS por botas que tinha na caminhonete e tirou o paletó e a gravata. Jannalynn sabiamente tirou as sandálias de salto agulha e Annabelle os próprios sapatos mais modestos. Dei-lhes dois pares de tênis meus e ofereci a Jannalynn uma camiseta velha para cobrir seu brilhante vestido prateado e não dificultar na floresta. Ela vestiu-o pela cabeça. Até disse, “Obrigada”, apesar de não ter soado realmente agradecida. Procurei duas pás no galpão de ferramentas. Alcide pegou um, Eric o outro. Jason carregou um daqueles grandes holofotes tipo lanternas que catou da caixa de ferramentas em sua picape. A lanterna era em meu benefício. Os vampiros podiam enxergar perfeitamente bem no escuro, assim como os lobisomens também. Já que Jason era uma pantera, ele possuía excelente visão noturna. Eu era a cega no grupo. 
— Sabemos para onde estamos indo? — disse Annabelle. 
— Heidi disse que estava a leste, perto do riacho, numa clareira — respondi, e seguimos na direção leste. Eu fiquei tropeçando nas coisas e, depois de um tempo, Eric entregou a pá para Jason e agachou-se para que eu pudesse subir em suas costas. Escondi a cabeça atrás dele para que os galhos não atingissem meu rosto. Nosso progresso foi mais fácil depois disso.
— Sinto o cheiro — Jannalynn disse, de repente. Ela estava à frente de todos, como se sua missão na matilha fosse abrir caminho para o líder. Era uma mulher diferente no meio da floresta. Apesar de não conseguir ver muito bem, eu podia notar isso. Ela era rápida, segura e decidida. Lançou-se à frente e, após um instante, gritou: — Está aqui! 
Chegamos e a encontramos parada sobre uma faixa de terra na pequena clareira. Foi mexida recentemente, embora tenha sido feita uma tentativa para camuflar aquela perturbação. Eric me pousou no chão, e Jason girou a lanterna para o chão. 
— Não é...? — sussurrei, sabendo que todos ali podiam me ouvir. 
— Não — Eric respondeu, firme. — Recente demais. — Não era Debbie Pelt. Ela estava em outro lugar, numa cova mais antiga. 
— Só há um jeito de descobrir quem é — disse Alcide. Jason e Alcide começaram a cavar e, já que ambos eram bem fortes, foi rápido. Alexei aproximou-se e parou ao meu lado, e me ocorreu que aquele túmulo na floresta seria uma memória ruim para ele. Coloquei um braço ao redor dele como se ainda fosse humano, embora tenha notado Appius me dar um olhar zombeteiro. Os olhos de Alexei estavam pousados nos escavadores, especialmente Jason. Eu sabia que essa criança podia cavar o túmulo com as mãos nuas, mais rápido do que eles usando as pás, mas Alexei parecia tão frágil que era difícil pensar nele como sendo tão forte quanto os outros vampiros. Imaginei quantas pessoas cometeram aquele erro nas últimas décadas, e quantas morreram nas mãos pequenas de Alexei. 
Jason e Alcide faziam a terra voar. Enquanto trabalhavam, Annabelle e Jannalynn espreitaram ao redor da pequena clareira, provavelmente tentando captar tantos cheiros quanto pudessem. Apesar da chuva de duas noites atrás, podia existir algo nas áreas protegidas pelas árvores. Heidi não procurou por um assassino; esteve tentando fazer uma lista de quem cruzou minhas terras. Eu achava que as únicas criaturas que não perambularam por minha floresta foram humanos normais. Se os lobisomens estivessem mentindo, um deles podia ser o assassino. Ou podia ser um dos fae, que eram uma raça violenta, como tinha observado. Ou o matador podia ser Bill, já que Heidi achou que o vampiro que farejara era meu vizinho. 
Eu não senti o cheiro do corpo como os outros sentiram enquanto esteve debaixo da terra, já que meu olfato era apenas uma fração comparada à deles. Mas assim que a pilha de terra aumentou e o buraco foi ficando mais fundo, pude perceber que estava ali. Oh, céus, se pude. 
Levei a mão ao nariz, o que não ajudou nem um pouco. Não conseguia imaginar como os outros estavam suportando, já que seus sentidos eram bem mais afiados. Talvez eles também fossem mais práticos, ou simplesmente mais acostumados. 
Então ambos os escavadores pararam. — Ele está embrulhado — disse Jason. Alcide se inclinou e mexeu algo no fundo do buraco. 
— Acho que consegui desenrolar — disse Alcide após um instante. 
— Me passe a lanterna, Sookie — Jason disse, e eu a joguei para ele. Ele iluminou o buraco. — Não conheço esse homem — falou. 
— Eu conheço — respondeu Alcide numa voz estranha. Annabelle e Jannalynn aproximaram-se da beirada da cova imediatamente. Tive que me firmar para dar um passo a frente e olhar dentro do fosso. 
Reconheci-o instantaneamente. Os três Lobisomens lançaram as cabeças para trás e uivaram. 
— É o batedor da matilha Presas Longas — informei aos vampiros. Engoli em seco e tive que esperar um minuto antes de continuar. — É Basim al Saud. 
A passagem dos dias fez uma grande diferença, mas o reconheci de imediato. Aqueles caracóis que eu invejei, o corpo musculoso. 
— Merda — gritou Jannalynn, quando os uivos cessaram. 
E aquilo resumiu tudo. 
Quando os Lobis se acalmaram, havia um bocado sobre o que falar. 
— Eu só o encontrei uma vez — falei. — Obviamente, ele estava bem quando subiu na picape com Alcide e Annabelle. 
— Ele me contou o que farejou na propriedade e eu lhe disse para contar a Sookie — Alcide respondeu a Eric. — Ela tinha o direito de saber. Não conversamos sobre nada em particular no caminho de volta a Shreveport, conversamos, Annabelle? 
— Não — ela respondeu, e pude notar que estava chorando. 
— Eu o deixei no apartamento dele. Quando o chamei no dia seguinte para ir comigo numa reunião com nosso representante, ele disse que tinha que recusar porque ia trabalhar. Ele era designer de websites, e tinha uma reunião com um cliente importante. Não fiquei muito feliz por ele não poder ir, mas é claro, o cara tinha que se sustentar. — Alcide deu de ombros. 
Annabelle disse: — Ele não tinha que trabalhar naquele dia. 
Houve um momento de silêncio. 
— Eu estava no apartamento dele quando você ligou — ela disse, e percebi o esforço que gastava para manter a voz calma e nivelada. — Fiquei lá durante algumas horas. 
Uau. Revelação inesperada. Jason saiu da cova e nós trocamos olhares arregalados. Aquilo era como uma das “histórias” de vovó, as novelas que ela assistia religiosamente. 
Alcide rosnou. O uivo ritual para os mortos trouxera o lobo dentro dele à tona. 
— Eu sei — disse Annabelle. — E conversaremos sobre isso mais tarde. Aceitarei minha punição, eu mereço. Mas a morte de Basim é mais importante que o meu julgamento ruim. Este é meu dever, contar-lhe o que aconteceu. Basim recebeu um telefonema antes do seu, e não quis que eu ouvisse. Mas ouvi o suficiente para compreender que sua conversa era com alguém que estava o pagando. 
O rosnado de Alcide se intensificou. Jannalynn encontrava-se perto de sua irmã de matilha e o único modo como posso expressar é que ela apontava para Annabelle. Ela agachara-se levemente, as mãos curvadas como se garras estivessem prestes a brotar. Alexei se aproximara de Jason e, quando a tensão continuou aumentando, o braço de Jason pousou ao redor dos ombros do garoto. Jason estava tendo o mesmo problema meu para separar ilusão e realidade. 
Annabelle encolheu-se ao som vindo de Alcide, mas continuou. — Então Basim inventou uma desculpa para me tirar do apartamento e saiu. Eu tentei segui-lo, mas o perdi. 
— Você estava desconfiada — disse Jannalynn. — Mas não ligou para o líder da matilha. Não ligou para mim. Não ligou para ninguém. Nós a aceitamos e a fizemos membro de nossa matilha, e você nos traiu. — De repente, ela atingiu a cabeça de Annabelle com o punho, de fato saltando no ar para acertar o golpe. Simples assim, Annabelle caiu no chão. Eu ofeguei, e não fui a única. 
Mas fui a única quem notou que Jason se esforçava para segurar Alexei. Algo sobre a violência no ar descontrolara o garoto. Se ele fosse um pouco maior, Jason estaria no chão. Bati Eric no braço e virei a cabeça na direção da luta. Eric pulou para ajudar Jason a dominar o garoto, que lutou e rosnou nos braços deles. 
Houve silêncio na clareira escura por um momento enquanto todos observavam Alexei lutar com sua loucura. Appius Livius parecia profundamente triste. Ele abriu caminho entre o nó de membros e pousou os braços ao redor de sua criança. 
— Shhhh — disse. — Meu filho, fique parado. — E gradualmente, Alexei foi ficando quieto. 
A voz de Alcide estava bem perto de um estrondo quando disse: — Jannalynn, você é minha nova segunda. Annabelle, levante-se. Isso é assunto da matilha agora, e resolveremos numa reunião do bando. — Ele virou as costas para nós e começou a se mover. 
Os Lobis simplesmente sairiam da floresta e iriam embora. 
— Com licença — eu disse asperamente. — Há a pequena questão do corpo sendo enterrado em minha terra. Acho que existe algo bem significativo sobre isso. 
Os Lobis pararam de caminhar. 
Eric disse: — Sim. — A única palavra continha um bocado de peso. — Alcide, acredito que Sookie e eu precisamos estar em sua reunião de matilha.
— Apenas membros da matilha — Jannalynn respondeu bruscamente. — Nada de “únicos”, nem mortos. — Ela ainda era pequena como sempre foi, mas com sua promoção ao cargo de segunda, parecia mais dura e forte em espírito. Ela era uma coisinha cruel, sem dúvida. Achei Sam um bocado corajoso, ou tolo. 
— Alcide? — Eric disse em voz baixa. 
— Sookie pode trazer Jason, já que ele é de dupla-natureza — Alcide resmungou. — Ela é humana, mas amiga da matilha. Nada de vampiros. 
Eric olhou para meu irmão. — Jason, você acompanhará sua irmã? 
— Claro — disse Jason. 
Então estava combinado. Pelo canto do olho, eu vi Annabelle ficar de pé e se reorientar. Jannalynn dominou um golpe. 
— O que vocês vão fazer com o corpo? — perguntei a Alcide, que definitivamente estava indo embora. — Você quer que o enterremos de volta ou o quê? 
Annabelle deu um passo hesitante na direção de Jannalynn e Alcide. Aquela seria uma feliz viagem de volta a Shreveport. 
— Alguém virá buscá-lo esta noite — Jannalynn gritou sobre o ombro. — Então haverá atividade em sua floresta. Não fique alarmada. — Quando Annabelle olhou para trás, notei que o canto de sua boca sangrava. Senti os vampiros ficarem atentos. De fato, Alexei se afastou de Jason e a teria seguido se Appius Livius não mantivesse o aperto no garoto.
— Devemos cobri-lo? — perguntou Jason. 
— Se eles estão mandando uma equipe para buscá-lo, parece esforço desperdiçado — falei. — Eric, estou tão contente por você ter mandado Heidi. Do contrário... — pensei com esforço. — Escute, se ele foi enterrado em minhas terras era para que pudesse ser encontrado aqui, certo? Então não há como saber quando alguém dará a dica para vir procurá-lo. 
O único que parecia estar entendendo meu raciocínio era Jason, que disse: — Okay, nós temos que tirá-lo daqui. 
Eu sacudi as mãos no ar, estava tão ansiosa. 
— Temos que colocá-lo em outro lugar — falei. — Podíamos simplesmente deixá-lo no cemitério! 
— Não, perto demais — Jason disse. 
— Que tal o lago atrás de sua casa? — eu disse. 
— Não, droga! Os peixes! Eu nunca poderia comer aqueles peixes de novo. 
— Aaargh — respondi. Francamente! 
— Seus momentos com ela normalmente são assim? — Appius Livius perguntou a Eric, que foi esperto o suficiente para não responder. 
— Sookie — ele disse. — Não será agradável, mas acho que posso voar e carregá-lo, se puder sugerir um bom lugar para colocá-lo. 
Parecia que meu cérebro estava correndo através de um labirinto e chegando a todos os becos sem saída. De fato, eu soquei a lateral da cabeça para pensar em alguma ideia solta. Funcionou. 
— Claro, Eric. Deixe-o na floresta do outro lado da estrada na minha entrada. É um trecho pequeno, mas não existem casas. Os Lobis podem usar a entrada como ponto de referência quando vierem recuperálo. Porque alguém virá procurá-lo, e breve. 
Sem mais discussão, Eric pulou para dentro do buraco e enrolou o corpo de Basim no lençol ou o que quer que fosse o envoltório. Apesar de a lanterna me mostrar que seu rosto estava cheio de nojo, ele levantou o corpo em decomposição e saltou no ar. Ele sumiu num segundo. 
— Maldição — disse Jason, impressionado. — Legal. 
— Vamos tapar a cova — falei. Começamos a trabalhar, com Appius Livius observando. Obviamente não lhe ocorreu que sua ajuda tornaria o serviço muito mais rápido. Até Alexei jogou montes de terra, e pareceu se divertir ao fazer isso. Aquilo provavelmente era o mais próximo de atividade normal que o garoto de treze anos teve em algum tempo. 
Gradualmente, o buraco se encheu. Ainda parecia um túmulo. O czarevich despedaçou as beiradas com as mãos pequenas. Eu quase reclamei, mas então vi o que estava fazendo. Ele reconfigurou a depressão em formato de túmulo até parecer uma depressão irregular, talvez criada pela chuva ou um túnel de toupeira desabado. Ele sorriu para nós quando terminou, e Jason lhe deu tapinhas nas costas. Jason pegou um galho e passou pela área, então jogou folhas e ramos ao redor. Alexei se divertiu com aquela parte também. 
Finalmente, nós desistimos. Eu não conseguia pensar em mais nada para fazer. Imunda e assustada, coloquei uma das pás nos ombros e me preparei para abrir caminho através da floresta. Jason pegou a outra pá na mão direita, e Alexei pegou sua mão esquerda, como se fosse ainda mais jovem do que sua aparência infantil. Embora seu rosto estivesse neutro, meu irmão continuou de mãos dadas com o vampiro. Appius Livius afinal se fez útil ao nos conduzir através das árvores e da vegetação rasteira com alguma confiança. 
Eric encontrava-se na casa quando chegamos. Ele já tinha jogado as roupas no lixo e entrado no chuveiro. Sob outras circunstâncias, eu teria adorado juntar-me a ele, mas simplesmente era impossível me sentir sexy naquele momento. Sentia-me suja e asquerosa, mas ainda era a anfitriã, portanto aqueci mais TrueBlood para os dois visitantes vampiros e mostrei-lhes o banheiro do corredor no caso de eles desejarem se lavar. 
Jason veio à cozinha para dizer que estava partindo. 
— Me avise quando será a reunião — ele disse de modo submisso. — E eu tenho que informar tudo isso a Calvin, você sabe. 
— Eu entendo — respondi, cansada até a morte de política de todos os tipos. Imaginei se a América sabia no que estava se metendo quando considerou exigir que os dupla-natureza se registrassem. A América estava bem melhor sem ter que se envolver nessa merda. Políticas humanas já eram chatas o suficiente. 
Jason saiu pela porta dos fundos. Um segundo mais tarde, ouvi sua picape rugir e ir embora. Quase no mesmo instante em que Appius Livius e Alexei terminaram seus drinques, Eric saiu do quarto com roupas limpas (ele mantinha uma muda em minha casa), cheirando ao meu sabonete de damasco. Com seu criador por perto, Eric dificilmente teria intimidades comigo, presumindo que ele quisesse. Ele não estava agindo como meu namorado exatamente agora que seu pai se encontrava na casa. Podia haver várias razões para isso. Eu não gostava de nenhuma delas. 
Logo depois, os três vampiros partiram para Shreveport. Appius Livius agradeceu por minha hospitalidade de modo tão impassível que eu não tinha ideia se estava ou não sendo sarcástico. Eric estava mudo como uma pedra. Alexei, calmo e sorridente como se nunca tivesse enlouquecido, me deu um abraço frio. Eu tive dificuldade para aceitar com a mesma calma.
Três segundos depois que eles saíram pela porta, eu estava ao telefone. 
— Fangtasia, onde todos os seus sonhos sangrentos se tornam realidade — disse uma voz feminina entediada. 
— Pam. Escute.
— O telefone está em meu ouvido. Fale. 
— Appius Livius Ocella acabou de chegar. 
— Foda um zumbi! 
Eu não tinha certeza se tinha ouvido isso corretamente. 
— Sim, ele esteve aqui. Suponho que ele seja seu avô? De qualquer forma, ele tem um novo protegido consigo, e estão indo para a casa de Eric pra passar o dia. 
— O que ele quer? 
— Ele ainda não disse. 
— Como está Eric? 
— Muito afetado. Além disso, várias coisas aconteceram e ele contará a você. 
— Obrigada pelo aviso. Vou para a casa agora. Você é minha viva favorita.
— Oh. Bom... ótimo. 
Ela desligou. Imaginei que providências ela tomaria. Os vampiros e humanos que trabalhavam no clube noturno em Shreveport entrariam num frenesi de limpeza na casa de Eric? Eu só vi Pam e Bobby Burnham lá, embora tenha presumido que alguns outros funcionários iam de vez em quando. Pam mandaria alguns humanos dispostos a agir como lanchinhos noturnos? 
Eu estava nervosa demais para pensar em ir para a cama. O que quer que o criador de Eric estivesse fazendo aqui, não era algo que eu gostaria. E já sabia que a presença de Appius Livius era ruim para o nosso relacionamento. Enquanto estava no chuveiro — e antes de catar as toalhas molhadas que Eric deixou no chão — eu pensei seriamente. 
Tramas vampiras podem ser bem distorcidas. Mas tentei imaginar o significado da visita surpresa do romano. Certamente ele não apareceu na América, na Louisiana, em Shreveport, só para ficar em dia com as fofocas. 
Talvez ele precisasse de um empréstimo. Isso não seria tão ruim. Eric sempre poderia fazer mais dinheiro. Apesar de não ter ideia da situação financeira de Eric, eu tinha um pequeno pé-de-meia no banco já que o espólio de Sophie-Anne pagou o dinheiro que ela me devia. E o que quer que Claudine tenha depositado em sua conta bancária logo seria acrescentado. Se Eric precisasse, ele podia pegar. 
Mas e se dinheiro não fosse a questão? Talvez Appius Livius precisasse de um esconderijo porque ficou encrencado em algum lugar. Talvez alguns vampiros bolcheviques estivessem atrás de Alexei! Isso seria interessante. Eu podia ter esperança de que eles pegassem Appius... contanto que não fosse na casa de Eric. 
Ou talvez o criador de Eric tenha sido procurado por Felipe de Castro ou Victor Madden porque queriam algo da qual Eric não desistiu, e planejavam usar seu criador para puxar suas cordinhas.
Mas o meu cenário mais provável era: Appius Livius Ocella apareceu com seu “novo” brinquedinho só para mexer com a cabeça de Eric. Era a suposição na qual eu estava apostando meu dinheiro. Appius Livius era difícil de interpretar. Certos momentos, ele parecia bem. Ele parecia se importar com Eric e com Alexei. Quanto ao relacionamento do criador de Eric com Alexei — o garoto teria morrido se Appius Livius não tivesse intercedido. Dadas as circunstâncias — Alexei testemunhando o assassinato de toda sua família, dos criados e de seus amigos — ter deixado o czarevich morrer podia ter sido uma benção. 
Eu tinha certeza que Appius Livius estava fazendo sexo com Alexei, mas era impossível provar se o comportamento passivo de Alexei vinha do fato de que estava num relacionamento sexual indesejável ou se era por estar permanentemente traumatizado por ver a família levar múltiplos tiros. Estremeci. Me sequei e escovei os dentes, esperando conseguir dormir. 
Percebi que havia outro telefonema que eu devia fazer. Com grande relutância, liguei para Bobby Burnham, o assistente diurno de Eric. Bobby e eu nunca nos gostamos. Bobby tinha uma inveja esquisita de mim, embora não se sentisse nem um pouco atraído sexualmente por Eric. Na opinião de Bobby, eu desviava a atenção e a energia de Eric do foco apropriado, que era Bobby e as questões de negócios que administrava para Eric enquanto este dormia durante o dia. Eu não gostava de Bobby porque, ao invés de desgostar de mim em silêncio, ele ativamente tentava tornar minha vida mais difícil, o que era uma questão totalmente diferente. Porém, ambos concordávamos com relação a Eric. 
— Bobby, é Sookie. 
— Eu tenho identificador de chamadas. 
Sr. Teimoso. — Bobby, acho que você deve saber que o criador de Eric está na cidade. Quando for pegar suas instruções, tenha cuidado. 
Bobby normalmente era instruído pouco antes de Eric ir deitar durante o dia, a não ser que Eric ficasse em minha casa. Bobby demorou para responder — provavelmente tentando descobrir se eu estava pregando uma peça elaborada nele. 
— É provável que ele queira me morder? — ele perguntou. — O criador? 
— Eu não sei o que ele vai querer, Bobby. Só achei que devia lhe dar o aviso. 
— Eric não vai deixar ele me machucar — disse Bobby, confiante. 
— Apenas como informação geral — se esse sujeito diz “pule”, Eric tem que perguntar a que altura. 
— Não brinca — disse Bobby. Para ele, Eric era a criatura mais poderosa sob a lua. 
— Verdade. Eles têm que cuidar de seus criadores. Isso não é mentira.
Bobby tinha que ter ouvido essa notícia antes. Sei que existe uma espécie de website ou comunidade para assistentes humanos de vampiros. Tenho certeza que eles trocam todo tipo de dicas úteis sobre como lidar com seus empregadores. Qualquer que tenha sido a razão, Bobby não discutiu ou me acusou de tentar enganá-lo, o que era uma boa mudança. 
— Está bem — ele disse — Estou preparado para eles. Ele... que tipo de pessoa é o criador de Eric? 
— Ele não se parece mais com uma pessoa — respondi. — E tem um namorado de treze anos de idade que costumava ser da realeza russa. 
Após um longo silêncio, Bobby disse: — Obrigado. É bom estar preparado. 
Foi a coisa mais gentil que ele já me disse. 
— Por nada. Boa noite, Bobby — falei, e desligamos. Conseguimos ter uma conversa civilizada completa. Vampiros unindo a América! 
Vesti um pijama e subi na cama. Tinha que tentar dormir um pouco, mas levaria um bom tempo. Continuava vendo a luz da lanterna dançar sobre a clareira na floresta enquanto a terra era empilhada ao lado da cova de Basim. E via o rosto morto do Lobi. Mas, eventual e finalmente, as margens daquele rosto se nublaram e a escuridão deslizou sobre mim. 
Eu dormi profundamente até tarde no dia seguinte. No minuto em que acordei, sabia que alguém se encontrava na cozinha. Deixei meu sentido extra verificar e descobri que Claude estava fritando bacon e ovos. Havia café no bule e eu não precisava de telepatia para saber disso. Podia sentir o cheiro. O perfume da manhã. 
Depois de uma ida ao banheiro, cambaleei até o corredor e segui para a cozinha. Claude encontrava-se sentado à mesa, comendo, e eu podia ver que havia café suficiente para mim. 
— Tem comida — ele disse, apontando para o fogão. 
Peguei um prato e uma caneca, e me instalei para um bom começo de dia. Relanceei o relógio. Era domingo, e o Merlotte’s não abriria até de tarde. Sam estava experimentando abrir de modo limitado aos domingos de novo, embora todos os funcionários meio que esperassem que não fosse lucrativo. Enquanto Claude e eu comíamos num silêncio amistoso, percebi que me sentia maravilhosamente em paz porque Eric estava em seu sono diurno. Isso significava que não tinha que senti-lo andando por aí comigo. Seu problemático senhor e o novo “irmão” estavam longe também. Suspirei de alívio. 
— Eu vi Dermot ontem à noite — disse Claude. 
Merda. Bom, lá se ia a paz. 
— Onde? — perguntei. 
— Ele estava no clube. Encarando-me com desejo — disse Claude. 
— Dermot é gay?
— Não, acho que não. Ele não estava pensando em meu pau. Queria ficar perto de outra fada. 
— Eu com certeza esperava que ele tivesse ido embora. Niall disse para mim e Jason que Dermot ajudou a matar meus pais. Queria que ele tivesse ido para a terra dos fae quando estavam fechando. 
— Ele teria sido morto assim que fosse avistado. — Claude demorou-se ao dar um gole no café antes de acrescentar: — Ninguém no mundo fae compreende as ações de Dermot. Ele devia ter ficado ao lado de Niall desde o começo porque é um parente, meio-humano, e Niall queria poupar os humanos. Mas sua própria auto-aversão — ou pelo menos é o que posso imaginar — levou-o a ficar ao lado das fadas que realmente não o suportavam, e esse lado perdeu. — Claude pareceu infeliz. — Então Dermot cortou fora o próprio nariz para contrariar a cara. Adoro essa frase. Às vezes os humanos se expressam muito bem. 
— Você acha que ele ainda quer ferir meu irmão e eu? 
— Não acho que ele tenha pretendido algum dia feri-los — disse Claude, após meditar. — Acho que Dermot é louco, apesar de costumar ser um sujeito simpático anos atrás. Não sei se foi seu lado humano que enlouqueceu, ou o lado fae que absorveu toxinas demais do mundo humano. Nem consigo explicar a participação dele na morte de seus pais. O Dermot que eu costumava conhecer nunca teria feito tal coisa. 
Pensei em mencionar que pessoas realmente loucas podem ferir outros perto dele sem querer ou sem nem mesmo perceber que estão ferindo. Mas não o fiz. Dermot era meu tio-avô e, de acordo com todos que o conheceram, era quase idêntico ao meu irmão. Admiti a mim mesma que estava curiosa sobre ele. E indaguei-me sobre o que Niall disse a respeito de Dermot ter sido quem abriu as portas da picape para que meus pais pudessem ser puxados e afogados por Neave e Lochlan. O comportamento de Dermot, o pouco que observei, não combinava com o horror daquele incidente. Dermot pensaria em mim como uma parente? Jason e eu éramos fae o suficiente para atraí-lo? Eu tinha duvidado da afirmação de Bill quando disse que sentia-se melhor com minha proximidade, por causa do sangue de fada. 
— Claude, você pode perceber que não sou totalmente humana? Como sou registrada no medidor de fadas? — Faedar. 
— Se você estivesse numa multidão de humanos, eu poderia encontrá-la de olhos vendados e dizer que é minha parente — Claude disse sem hesitação. — Mas se estivesse no meio dos fae, eu a chamaria de humana. É um odor esquivo. A maioria dos vampiros pensaria “Ela cheira bem”, e gostariam de ficar perto de você. Seria o alcance disso. Assim que sabem que tem sangue de fada, eles podem atribuir o prazer a isso. 
Então Bill realmente podia ser reconfortado por meu toque de fada, pelo menos agora que sabia como identificar. Levantei-me para lavar o prato e me servir de outra caneca cheia de café, e de passagem peguei o prato vazio de Claude também. Ele não me agradeceu. 
— Agradeço que tenha cozinhado — falei. — Nós não conversamos sobre como vamos lidar com as despesas ou os mantimentos. 
Claude pareceu surpreso. — Não pensei nisso — ele disse. 
Bom, pelo menos isso era honesto. 
— Vou lhe contar como Amelia e eu fazíamos — falei e, em poucas frases, informei as normas. Parecendo um pouco aturdido, Claude concordou. 
Abri a geladeira. 
— Essas duas prateleiras são suas — eu disse — e o resto é meu. 
— Entendi — ele respondeu. 
Eu duvidava disso. Claude parecia que estava simplesmente tentando me dar a impressão que entendia e concordava. Havia uma boa chance de termos aquela conversa de novo. Quando ele subiu para o andar de cima, eu cuidei dos pratos — afinal, ele cozinhara — e depois que me vesti, pensei em ler por um tempo. Mas estava inquieta demais para me concentrar no livro. 
Ouvi veículos vindo pela entrada através da floresta. Olhei pela janela da frente. Dois carros de polícia. 
Eu tinha certeza que isso aconteceria. Mas meu coração afundou até os pés. Às vezes, eu detestava estar certa. Quem quer que tenha matado Basim, plantou o corpo em minha terra para me implicar na morte. 
— Claude — chamei pelas escadas. — Fique decente, se não estiver. A polícia está aqui. 
Claude, curioso como sempre, desceu pelas escadas em trote. Estava vestindo jeans e camiseta, como eu. Saímos até a varanda da frente. 
Bud Dearborn, o xerife (o xerife humano normal), encontrava-se no primeiro carro, e Andy Bellefleur e Alcee Beck estavam no segundo. O xerife e dois detetives — eu devia ser uma criminosa perigosa. 
Bud saiu lentamente do carro, o modo como fazia a maioria das coisas ultimamente. Eu sabia através de seus pensamentos que Bud era vítima crescente de artrite, e ele também tinha algumas dúvidas sobre sua próstata. O rosto amassado de Bud não deu qualquer dica sobre seu desconforto físico ao se aproximar da varanda, o cinto pesado estalando com todas as coisas penduradas nela. 
— Bud, o que foi? — eu perguntei. — Não que não esteja contente em vê-lo de forma alguma. 
— Sookie, nós recebemos um telefonema anônimo — disse Bud. — Como você sabe, a força policial não poderia resolver muita coisa sem dicas anônimas, mas eu pessoalmente não respeito uma pessoa que não diz quem é. 
Eu assenti.
— Quem é seu amigo? — perguntou Andy. Ele parecia cansado. Ouvi falar que a avó dele, que o criou, estava no leito de morte. Pobre Andy. Ele preferia estar lá do que aqui. 
Alcee Beck, o outro detetive, realmente não gostava de mim. Nunca gostou e sua antipatia encontrou algo bom na qual se basear — sua esposa foi atacada por um Lobi que estava tentando me pegar. Apesar de eu ter eliminado o sujeito, Alcee não me tinha em alta conta. Talvez ele fosse uma das raras pessoas repelidas por meu traço de sangue de fada, mas era mais provável que simplesmente não ligasse para mim. Não havia razão para tentar conquistá-lo. Dei-lhe um aceno de cabeça que ele não retribuiu. 
— Esse aqui é meu primo Claude Crane, de Monroe — respondi. 
— Qual é o parentesco? — Andy perguntou. Todos os três homens conheciam a meada de laços sanguíneos que atavam praticamente toda a comunidade. 
— É meio embaraçoso — disse Claude (nada envergonharia Claude, mas ele fingia bem). — Sou o que se chama um caso secreto. 
Dessa vez, eu fiquei grata por Claude carregar aquele peso. Baixei os olhos como se não conseguisse suportar falar a respeito da vergonha daquilo. 
— Claude e eu estamos tentando nos conhecer desde que descobrimos o parentesco — respondi. Pude ver aquele fato ser arquivado em suas mentes. — Por que todos estão aqui? — perguntei. — O que o informante anônimo disse? 
— Que você tem um corpo enterrado em sua floresta. — Bud desviou o olhar como se estivesse meio envergonhado de dizer algo tão ultrajante, mas eu sabia que não era assim. Após anos na força policial, Bud sabia exatamente o que os seres humanos podiam fazer, mesmo aqueles que pareciam os mais normais. Até jovens louras com peitos grandes. Talvez especialmente elas. 
— Você não trouxe nenhum cachorro farejador — Claude observou. Eu meio que esperava que Claude mantivesse a boca fechada, mas vi que não ia conseguir meu desejo. 
— Acho que uma busca física servirá — disse Bud. — A localização foi realmente específica (e cães farejadores eram caros para contratar, ele pensou). 
— Oh, meu Deus — falei, genuinamente espantada. — Como essa pessoa pode reivindicar não estar envolvida se sabe exatamente onde está o corpo? Eu não entendo. 
Esperava que Bud me contasse mais, mas ele não mordeu a isca. 
Andy deu de ombros. — Nós temos que olhar. 
— Vão em frente — eu disse, com absoluta confiança. Se tivessem trazido cães, eu estaria suando em bicas porque eles podiam farejar Debbie Pelt ou o antigo local de descanso de Basim. — Perdoem-me se eu simplesmente ficar aqui na casa enquanto vocês perambulam pela floresta. Espero que não peguem muitos carrapatos. — Carrapatos escondiam-se em arbustos e ervas-daninhas e, quando sentiam a química e o calor de corpos enquanto passavam, davam um salto de fé. Observei Andy enfiar as pontas das calças nas botas, e Bud e Alcee borrifarem repelente. 
Depois que os homens desapareceram na floresta, Claude disse: — É melhor você me contar por que não está com medo. 
— Nós mudamos o corpo de lugar ontem à noite — respondi, virando-me para sentar na escrivaninha onde instalei o computador que peguei do apartamento de Hadley. Deixe Claude engolir aquilo! Após alguns segundos, eu o escutei marchar escada acima. 
Já que tinha que esperar os homens saírem da floresta, era melhor eu checar meus e-mails. Um bocado de mensagens remetidas, a maioria delas inspiradoras ou patrióticas, por Maxine Fortenberry, mãe de Hoyt. Apaguei aquelas sem ler. Li um e-mail da esposa grávida de Andy Bellefleur, Halleigh. Era uma estranha coincidência, ouvir falar dela enquanto seu marido se encontrava nos fundos de minha casa numa busca inútil. 
Halleigh contava que estava se sentindo ótima. Simplesmente ótima! Mas Vovó Caroline estava piorando rápido, e Halleigh temia que Miss Caroline não vivesse para ver o nascimento do bisneto. Caroline Bellefleur era bem velha. Andy e Portia foram trazidos para a casa de Miss Caroline depois que seus pais morreram. Miss Caroline já era viúva a mais tempo do que esteve casada. Eu não tinha recordações do Sr. Bellefleur, e tinha certeza de que Portia e Andy não o conheceram muito bem. Andy era mais velho que Portia e ela era mais velha do que eu, então calculei que Miss Caroline, que foi a melhor cozinheira de Renard Parish e fazia o melhor bolo de chocolate do mundo, tinha pelo menos uns noventa anos. 
“Contudo,” Halleigh continuava, “ela quer encontrar a Bíblia da família mais do que qualquer coisa no mundo. Você sabe que ela sempre foi obcecada e agora quer encontrar aquela Bíblia, que está desaparecida há zilhões de anos. Tive um pensamento maluco. Ela acha que nossa família esteve conectada há muito tempo atrás a algum ramo dos Compton. Você poderia perguntar ao seu vizinho, Sr. Compton, se ele se importaria de procurar por aquela velha Bíblia? Parece muito improvável, mas ela não perdeu nada da personalidade, embora esteja fisicamente fraca.” 
Era um modo gentil de dizer que Miss Caroline estava mencionando aquela Bíblia com freqüência. Eu estava num dilema. Sabia que aquela Bíblia se encontrava na mansão Compton. E sabia que, depois que ela a examinasse, Miss Caroline descobriria que era uma descendente direta de Bill Compton. Como ela se sentiria a respeito daquilo era um enigma. Eu desejava mexer com sua visão do mundo quando a mulher estava em seu leito de morte?
Por outro lado... Ah, inferno, eu estava cansada de tentar equilibrar tudo e já tinha problemas suficientes com as quais me preocupar. Num momento de imprudência, passei o e-mail de Halleigh para Bill. Os e-mails entraram tarde em minha vida, e eu ainda não confiava totalmente neles. Mas pelo menos senti que passei a questão para Bill. Se ele escolhesse atender ao pedido, bem, okay. 
Depois que perambulei um pouco no eBay, maravilhando-me com as coisas que as pessoas tentavam vender, ouvi vozes no pátio. Dei uma olhada para ver Bud, Alcee e Andy tirando poeira e gravetos das roupas. Andy coçava uma picada no pescoço. 
Saí para fora. — Vocês encontraram um corpo? — perguntei-lhes. 
— Não, não encontramos — disse Alcee Beck. — Vimos que pessoas estiveram lá. 
— Bem, claro — falei. — Mas nenhum corpo? 
— Nós não iremos mais incomodá-la — Bud disse, sucinto. 
Eles foram embora numa nuvem de poeira. Observei-os partirem e estremeci. Sentia como se a guilhotina tivesse descido em meu pescoço e só não cortou minha cabeça fora porque a corda era curta demais. 
Voltei ao computador e enviei um e-mail para Alcide. Dizia apenas, “A polícia acabou de passar por aqui”. Imaginei que seria suficiente. Sabia que não teria notícias dele até que estivesse tudo pronto para que eu fosse para Shreveport. 
Fiquei surpresa pela demora de três dias para receber uma resposta de Bill. Esses dias foram notáveis apenas pelo número de pessoas de quem não tive notícias. Não ouvi falar de Remy, o que não foi tão extraordinário. Nenhum dos membros da matilha Presas Longas ligou, então só podia presumir que eles recuperaram o corpo de Basim do novo local de descanso e me informariam quando a reunião aconteceria. Se alguém veio até minha floresta e tentou descobrir por que o corpo de Basim desapareceu, eu não fiquei sabendo. E não tive notícias de Pam ou Bobby Burnham, o que era um pouco preocupante, mas mesmo assim... nada demais. 
O que me incomodou mais foi não ter notícias de Eric. Está bem, seu (criador, senhor, pai) mentor Appius Livius Ocella estava na cidade... mas céus. Entre as sessões de preocupação, procurei por nomes romanos e descobri que “Appius” era um prenome, seu nome comum. “Livius” era seu nome de família, passado de pai para filho, indicando que era um membro da família ou clã Livii. Ocella era seu cognome, então era para indicar em qual ramo particular dos Livii ele nasceu; ou pode ter sido dado como uma honra por seus serviços numa guerra (eu não tinha ideia de qual guerra podia ter sido). Como terceira possibilidade, se ele foi adotado por outra família, o cognome refletiria sua família de nascimento. Um nome dizia muito no mundo romano.
Eu perdi um bocado de tempo descobrindo tudo a respeito do nome de Appius Livius Ocella. Ainda não tinha ideia do que ele queria ou o que pretendia fazer ao meu namorado. E aquilo era uma coisa que eu precisava muito saber. Tenho que admitir, eu estava me sentindo bem emburrada, briguenta e rabugenta (procurei por algumas palavras enquanto estive online). Não era um bom ramalhete de emoções, mas eu parecia não conseguir progredir da sombria infelicidade. 
O primo Claude estava aparecendo raramente também. Avistei-o apenas uma vez durante aqueles três dias, e foi quando o ouvi atravessar a cozinha e sair pela porta dos fundos, e levantei-me a tempo de vê-lo entrar no carro. Isso parecia explicar por que eu fiquei tão contente por ver Bill em minha porta dos fundos quando o sol se pôs no terceiro dia depois que enviei o e-mail de Halleigh. Ele não parecia apreciavelmente melhor do que da última vez em que o vi, mas encontrava-se vestido de terno e gravata e o cabelo foi penteado cuidadosamente. A Bíblia estava debaixo de seu braço. 
Eu entendi por que ele estava tão arrumado, o que pretendia fazer. 
— Que bom — falei. 
— Venha comigo — ele disse. — Ajudará se você estiver lá. 
— Mas eles vão pensar... — Então me fiz calar a boca. Era indigno se preocupar a respeito dos Bellefleur presumirem que Bill e eu éramos um casal de novo, quando Caroline Bellefleur estava prestes a encontrar seu criador. 
— Isso seria tão terrível? — ele perguntou com simples dignidade. 
— Não, é claro que não. Tive orgulho de ser sua namorada — respondi e me virei para voltar ao quarto. — Por favor, entre enquanto eu troco de roupa. 
Eu tinha acabado o turno do almoço e da tarde, e vestira shorts e camiseta. Já que estava com pressa, mudei para uma saia preta acima do joelho e uma camisa branca justa que comprei em liquidação na Stage. Prendi um cinto de couro vermelho na cintura e calcei um par de sandálias vermelhas do fundo do armário. Afofei o cabelo e fiquei pronta. 
Viajamos em meu carro, que estava começando a precisar de um alinhamento. Não foi uma longa viagem até a mansão Bellefleur; não demorava muito para chegar a lugar algum em Bon Temps. Estacionamos no pátio diante da porta, mas enquanto dirigia, avistei vários carros na área de estacionamento nos fundos. Vi o carro de Andy e de Portia também. Havia um velho Chevette Chevy cinza estacionado meio discretamente na retaguarda, e imaginei se Miss Caroline possuía uma enfermeira em tempo integral. 
Caminhamos até as portas duplas. Bill não achou apropriado (“correto” foi a palavra que ele usou) ir pelos fundos e, sob as circunstâncias, eu tive que concordar. Bill caminhava lentamente e com esforço. Mais de uma vez, eu quis me oferecer para carregar a Bíblia pesada, mas sabia que ele não deixaria, então poupei o fôlego. 
Halleigh atendeu a porta, graças a Deus. Ela ficou espantada ao ver Bill, mas recuperou a pose rapidamente e nos cumprimentou. 
— Halleigh, o Sr Compton trouxe a Bíblia de família que a avó de Andy quer ver — respondi, no caso de Halleigh ter ficado temporariamente cega e não ter notado o enorme volume. Halleigh parecia meio desleixada. Os cabelos castanhos estavam uma bagunça e o vestido verde florido parecia quase tão cansado quanto seus olhos. Supostamente, ela veio até a casa de Miss Caroline depois do trabalho de professora na escola o dia todo. Halleigh obviamente estava grávida, algo que Bill não soubera, eu podia dizer pela expressão fugaz no rosto dele. 
— Ah — disse Halleigh, o rosto visivelmente relaxando de alívio. — Sr. Compton, por favor, entre. Vocês não têm ideia do quanto Miss Caroline se afligiu com isso. — Acho que a reação de Halleigh era um bom indicador de como Miss Caroline se afligiu. 
Entramos no vestíbulo juntos. O grande lance de escadas ficava a nossa frente à esquerda. Fazia uma curva graciosa para o segundo andar. Várias noivas locais tiraram suas fotografias naquela escadaria. Eu desci por ela com saltos altos e um vestido longo quando fui substituta de uma dama-de-honra doente no casamento de Halleigh e Andy. 
— Acho que seria muito bom se Bill pudesse dar a Bíblia a Miss Caroline — eu disse, antes que a pausa pudesse se tornar embaraçosa. — Existe um laço de família. 
Até os excelentes modos de Halleigh vacilaram. 
— Oh... que interessante. — Suas costas se enrijeceram, e vi Bill apreciar a curva de sua gravidez. Um vago sorriso curvou seus lábios por um segundo. — Tenho certeza de que está tudo bem — disse Halleigh, recuperando-se. — Vamos subir. 
Subimos as escadas atrás dela, e eu tive que lutar com o impulso de colocar a mão sob o cotovelo de Bill para ajudá-lo um pouco. Eu teria de fazer algo para ajudar Bill. Obviamente, ele não estava melhorando. Um pequeno medo infiltrou-se em meu coração. Caminhamos um pouco mais ao longo da galeria até a porta do quarto maior, que estava aberta alguns discretos centímetros. Halleigh entrou antes de nós. 
— Sookie e o Sr. Compton trouxeram a Bíblia de família — ela disse. — Miss Caroline, ele pode trazê-la? 
— Sim, é claro, faça-o entrar — disse uma voz fraca, e eu e Bill entramos. 
Miss Caroline era a rainha do quarto, sem dúvida. Andy e Portia encontravam-se de pé à direita da cama, e ambos pareceram preocupados e inquietos enquanto Bill me conduzia. Notei a ausência do marido de Portia, Glen. Uma mulher afro-americana de meia-idade estava sentada numa cadeira à esquerda da cama. Usava calças soltas e brilhantes, e uma alegre túnica que as enfermeiras aprovavam agora. A estampa fazia com que ela parecesse estar trabalhando na ala pediátrica. 
Porém, num quarto decorado em pêssego e creme, um pouco de cor era bem-vindo. A enfermeira era magra e alta, e usava uma peruca incrível que me lembrava um filme de Cleópatra. Ela acenou com a cabeça para nós quando nos aproximamos da cama. Caroline Bellefleur, que parecia a magnólia de aço que era, jazia apoiada em uma dúzia de travesseiros na cama de quatro colunas. Havia sombras de exaustão sob os olhos velhos, e as mãos curvavam-se em garras enrugadas sobre a colcha. Mas ainda havia uma centelha de interesse nos olhos enquanto nos observava. 
— Srta. Stackhouse, Sr. Compton, não os vejo desde o grande casamento — ela disse com óbvio esforço. Sua voz era fina como papel. 
— Foi uma bela ocasião, Sra. Bellefleur — disse Bill com quase igual esforço. Eu apenas concordei. Não cabia a mim empreender a conversa. 
— Por favor, sentem-se — disse a velha, e Bill puxou uma cadeira para perto da cama dela. Sentei alguns metros atrás. — Parece que essa Bíblia é grande demais para eu manejar agora — disse a senhora anciã, com um sorriso. — Foi tão gentil de sua parte trazê-la. Eu com certeza estive querendo vê-la. Ela se encontrava em seu sótão? Sei que não temos muitos vínculos com os Compton, mas certamente desejava encontrar esse velho livro. Halleigh foi muito gentil em verificar por mim. 
— Para falar a verdade, esse livro se encontrava em minha mesa de centro — respondeu Bill gentilmente. — Sra. Bellefleur — Caroline — meu segundo filho era uma menina, Sara Isabelle. 
— Oh, meu Deus — disse Miss Caroline, para indicar que ouvia. Ela não parecia saber para onde aquilo conduziria, mas estava definitivamente atenta.
— Embora não tenha descoberto isso até ler a página da família nesta Bíblia, depois que voltei para Bon Temps, minha filha Sarah teve quatro filhos, apesar de um bebê nascer morto. 
— Isso acontecia com freqüência naquela época — ela disse. 
Relanceei o olhar para os netos Bellefleur. Portia e Andy não estavam felizes por Bill estar ali afinal, mas também ouviam. Eles não me dispensaram sequer um olhar, o que na verdade estava tudo bem por mim. Embora estivessem perplexos com a presença de Bill, o foco de seus pensamentos era a mulher que os criou e o fato visível de que ela estava definhando. 
Bill disse: — A filha de minha Sarah foi chamada Caroline, em homenagem a avó... minha esposa. 
— Meu nome? — Miss Caroline pareceu lisonjeada, apesar de sua voz estar um pouco fraca.
— Sim, seu nome. Minha neta Caroline casou-se com um primo, Matthew Phillips Holliday. 
— Ora, esses são minha mãe e meu pai. — Ela sorriu, o que fez coisas drásticas ao seu conjunto de rugas. — Então você é... Mesmo? — Para meu espanto, Caroline Bellefleur riu. 
— Seu bisavô. Sim, eu sou. 
Portia engasgou como se estivesse sufocando com um percevejo. Miss Caroline desconsiderou totalmente a neta e não olhou para Andy— o que foi sorte, porque ele estava vermelho como um peru. 
— Ora, se isso não é engraçado — ela disse. — Estou enrugada como um lençol amarrotado e você liso como um pêssego fresco. — Ela estava genuinamente divertida. — Bisavô! 
Então um pensamento pareceu ter ocorrido à senhora moribunda. 
— Foi você quem arranjou aquele golpe de sorte oportuno que tivemos? 
— O dinheiro não podia ter sido mais bem usado — Bill disse galantemente. — A casa está linda. Quem viverá aqui depois que você morrer? 
Portia arfou, e Andy pareceu um pouco sobressaltado. Mas eu olhei para a enfermeira. Ela me deu um breve aceno de cabeça. A hora de Miss Caroline estava bem próxima, e a senhora tinha plena consciência disso. 
— Bem, acho que Portia e Glen ficarão aqui — disse Miss Caroline lentamente. Era evidente que estava se cansando rápido. — Halleigh e Andy querem ter o bebê na própria casa e eu não os culpo nem um pouco. Não vai me dizer que está interessado na casa? 
— Oh, não, eu tenho minha própria casa — Bill a assegurou. — E fiquei contente por dar a minha própria família os recursos para consertar esse lugar. Quero que meus descendentes continuem morando aqui através dos anos e tenham muitos momentos felizes neste lugar. 
— Obrigada — disse Miss Caroline, e agora sua voz mal era um sussurro. 
— Sookie e eu devemos ir — disse Bill. — Descanse sossegada agora. 
— Eu vou — ela disse e sorriu, embora seus olhos estivessem fechando. 
Levantei-me tão discretamente quando possível e deslizei para fora do quarto à frente de Bill. Achei que Portia e Andy poderiam querer dizer algumas coisas a Bill. Certamente, eles não queriam perturbar a avó, então seguiram Bill para fora até o corredor. 
— Você não estava saindo com outro vampiro agora? — Andy me perguntou. Ele não parecia sarcástico quanto costumava ser. 
— Eu estou — respondi. — Mas Bill ainda é meu amigo. 
Portia saiu brevemente com Bill, mas não porque o achava bonito nem nada. Eu tinha certeza que isso a deixou ainda mais embaraçada ao estender a mão para Bill. Portia precisava revisar a etiqueta vampira. Apesar de parecer um pouco surpreso, Bill aceitou o aperto de mão. 
— Portia — ele disse. — Andy. Espero que não achem isso embaraçoso demais. — Eu estava explodindo de orgulho de Bill. Era fácil perceber de onde Caroline Bellefleur herdou a graciosidade. 
Andy disse: — Eu não teria aceitado o dinheiro, se soubesse que vinha de você. — Ele evidentemente viera direto do trabalho, porque estava usando todo seu equipamento: o distintivo e as algemas presas no cinto, a arma no coldre. Ele parecia formidável, mas não era páreo para Bill, mesmo com Bill doente como estava. 
— Andy, sei que não é fã de presas. Mas você é parte de minha família, e sei que foi criado para respeitar os mais velhos. 
Andy pareceu completamente espantado. 
— Aquele dinheiro era para fazer Caroline feliz, e acho que fez — Bill continuou. — Então serviu ao seu propósito. Eu vim vê-la e falei sobre nosso relacionamento, e ela teve a Bíblia. Não vou mais sobrecarregá-los com minha presença. Peço que façam o funeral à noite para que eu possa comparecer. 
— Quem já ouviu falar de um funeral à noite? — disse Andy. 
— Sim, nós faremos isso. — Portia não soou calorosa e receptiva, mas parecia absolutamente determinada. — O dinheiro tornou seus últimos anos muito felizes. Ela adorou restaurar a casa em sua melhor forma, e adorou fazer nosso casamento aqui. A Bíblia é a cereja do bolo. Obrigada. 
Bill assentiu para ambos e, sem mais cerimônias, nós deixamos Belle Rive. 
Caroline Bellefleur, bisneta de Bill, faleceu nas primeiras horas da manhã. Bill sentou-se com a família durante o funeral, que foi realizado na noite seguinte, para profundo espanto da cidade. 
Sentei-me nos fundos com Sam. 
Não era ocasião para lágrimas; sem dúvida, Caroline Bellefleur tivera uma longa vida — uma vida não desprovida de tristezas, mas pelo menos cheia de momentos de compensadora felicidade. Ela possuíra poucos contemporâneos remanescentes e, aqueles que ainda estavam vivos, eram quase todos cambaleantes demais para virem ao funeral. 
A cerimônia pareceu bem normal até dirigirmos ao cemitério, que não possuía iluminação noturna — é claro — e eu ver que luzes temporárias foram colocadas ao redor do perímetro do túmulo no lote dos Bellefleur. Foi uma visão estranha. O pastor teve dificuldade em ler a missa até que um membro da congregação segurou a própria lanterna sobre a página. 
As luzes brilhantes na noite escura me recordaram desagradavelmente da recuperação do corpo de Basim al Saud. Era difícil pensar corretamente sobre a vida e o legado de Miss Caroline com todas as conjeturas sacudindo em minha cabeça. E por que ainda não aconteceu nada? Parecia que eu estava vivendo e esperando que a situação mudasse. Eu não tinha me dado conta de que estava apertando o braço de Sam até ele virar e me olhar com alarme. Forcei meus dedos a relaxarem e abaixei a cabeça para a oração. 
A família, ouvi dizer, ia oferecer um bufê em Belle Rive após a cerimônia. Imaginei se eles arranjaram o sangue favorito de Bill. 
Bill parecia horrível. Ele estava usando uma bengala diante do túmulo. Algo tinha que ser feito para encontrar sua irmã, já que ele não estava tomando nenhuma atitude. Se havia uma chance do sangue de sua parenta poder curá-lo, o esforço tinha que ser feito. 
Fui ao funeral com Sam e, já que minha casa ficava tão perto, disse a ele que voltaria caminhando do local do enterro. Enfiei uma pequena lanterna em minha bolsa e lembrei Sam que conhecia o cemitério como a palma da minha mão. Então quando todos os outros participantes foram embora, inclusive Bill, para Belle Rive e a ceia, esperei nas sombras até os empregados do cemitério começarem a encher o buraco de terra e andei através das árvores até a casa de Bill. 
Eu ainda tinha uma chave. 
Sim, sabia que estava sendo terrivelmente intrometida. E talvez estivesse fazendo a coisa errada. Mas Bill estava definhando e eu simplesmente não podia ficar sentada, deixando-o fazer aquilo. 
Destranquei a porta da frente e fui até o escritório de Bill, que foi a antiga sala de jantar dos Compton. Bill havia instalado todo seu equipamento de computador na mesa enorme, e arranjara uma cadeira giratória que comprou numa loja de artigos para escritório. Uma mesa menor servia como posto de correspondência, onde Bill preparava cópias de seu banco de dados vampiro para enviar aos compradores. Ele fazia propaganda pesada em revistas vampiras — Fang, é claro, e Dead Life, que aparecia em vários idiomas. O mais novo esforço de Bill em marketing envolvia contratar vampiros que falavam diversas línguas diferentes a fim de traduzir toda a informação para que ele pudesse vender edições em língua estrangeira de seu cadastro de vampiros mundial. 
Como eu lembrava da visita anterior, havia dúzias de cópias de CD do banco de dados em estojos sobre a mesa de correspondência. Verifiquei duas vezes para ter certeza de que peguei um em inglês. Não me faria nenhum bem ter um CD em russo. 
Obviamente, russo me lembrou de Alexei e pensar em Alexei recordou-me imediatamente do quanto estava preocupada/zangada/assustada a respeito do silêncio de Eric. 
Podia sentir minha boca se apertando numa expressão realmente desagradável enquanto pensava naquele silêncio. Mas eu tinha que prestar atenção no meu próprio probleminha agora, então saí da casa e tranquei a porta novamente, esperando que Bill não sentisse meu cheiro no ar. 
Atravessei o cemitério rapidamente como se fosse durante o dia. Quando me vi em minha própria cozinha, olhei ao redor por um bom esconderijo. Finalmente, considerei o armário de lençóis no banheiro do corredor um bom local, e enfiei o CD debaixo de uma pilha de toalhas limpas. Achei que nem mesmo Claude podia usar cinco toalhas antes de eu me levantar no dia seguinte. 
Verifiquei minha secretária eletrônica; verifiquei o celular, que não levei à cerimônia. Nenhuma mensagem. Me despi lentamente, tentando imaginar o que poderia ter acontecido a Eric. Decidi não telefonar para ele, não importa a razão. Ele sabia onde eu estava e como me alcançar. Pendurei meu vestido preto no armário, guardei os sapatos de salto pretos na sapateira e então vesti minha camisola de Piu-Piu, uma velha favorita. Então fui para a cama, louca de raiva. 
E assustada.
 
CLAUDE NÃO VOLTOU para casa na noite anterior. Seu carro não se encontrava nos fundos. Eu estava feliz por alguém ter tido sorte. Então disse a mim mesma para não ser tão miserável. 
— Você está indo bem — falei, olhando no espelho para acreditar. — Olhe para você! Ótimo bronzeado, Sook! — Eu tinha que trabalhar no turno do almoço então me vesti pouco depois de tomar o café da manhã. Recuperei o CD roubado de debaixo das toalhas. Eu pagaria Bill ou devolveria, disse a mim mesma virtuosamente. Eu não tinha roubado de verdade, se planejava pagar por ele. Algum dia. Olhei para o estojo de plástico transparente em minhas mãos. Imaginei quanto o FBI pagaria por isso. Apesar de todas as tentativas de Bill para se certificar de que apenas vampiros comprassem o CD, seria realmente incrível se ninguém tivesse conseguido. 
Então abri e coloquei-o em meu computador. Após uma rodagem preliminar, a tela se iluminou. “O Diretório Vampiro”, dizia em letras góticas vermelhas numa tela preta. Estereótipo, alguém? 
“Insira seu código de acesso”, a tela pediu. 
Oh-oh. 
Então lembrei que havia uma pequena etiqueta na parte de cima do estojo, e cavei o cesto de lixo. É, com certeza aquilo era um código. 
Bill nunca teria colocado o código na caixa se não acreditasse que sua casa era segura, e senti uma pontada de culpa. Eu não sabia que procedimento ele estabelecera, mas presumi que colocava o código num diretório quando enviava o disco para um feliz cliente. Ou talvez tenha colocado um código de “destruição” no papel, para tolos como eu, e a coisa toda explodiria em meu rosto. 
Fiquei contente por ninguém estar na casa depois que teclei o código e apertei Enter, porque caí de joelhos debaixo da escrivaninha. 
Nada aconteceu, exceto mais um pouco de rodagem, e imaginei que estava segura. Cambaleei de volta à cadeira. 
A tela estava me mostrando as opções. Eu podia procurar por país de residência, país de origem, nome ou último avistamento. Cliquei em “Residência” e a tela me pediu: “Qual país?” Eu podia escolher de uma lista. Depois que cliquei em “EUA”, tive outro pedido: “Qual estado?” E outra lista. Cliquei em “Louisiana” e então em “Compton”. Ali estava ele, numa fotografia moderna tirada em sua casa. Reconheci a cor da pintura na parede. Bill sorria rigidamente, e não parecia animado, com certeza. Imaginei quanto ele ganharia num serviço de encontros. Comecei a ler sua biografia. E com certeza, l{ no fim, eu li, “Criado por Lorena Ball da Louisiana, 1870”. 
Mas não havia lista para “irmãos” ou “irmãs”. 
Está bem, não seria assim tão fácil. Cliquei no nome audaz15 da criadora de Bill, a falecida e não lamentada Lorena. Eu estava curiosa sobre o que seu verbete diria, já que Lorena encontrara sua morte final, pelo menos até que descobrissem como ressuscitar cinzas. 
 “Lorena Ball”, dizia seu verbete numa única linha. Era bem apropriado, eu pensei, inclinando a cabeça enquanto olhava o resto. 
Transformada em 1788 em Nova Orleans... viveu principalmente no sul, mas retornou à Louisiana após a Guerra Civil... “encontrou o sol”, assassinada por pessoa ou pessoas “desconhecidas”. Humph. Bill sabia perfeitamente bem quem matou Lorena, e eu só podia ficar contente por ele não ter colocado meu nome na lista. Imaginei o que teria acontecido comigo se ele tivesse colocado. Viu, você acha que já tem o suficiente com que se preocupar, mas então pensa numa possibilidade que nunca imaginou e percebe que tem muito mais problemas. 
Okay, la vamos nós... “Criou Bill Compton (1870) e Judith Vardamon (1902)”. 
Judith. Então essa era a “irmã” de Bill. 
                                              
 15  Em inglês, “ball” é uma forma vulgar de se referir | coragem, ousadia, por exemplo “he had balls” – “ele teve culhões” ou “ele teve coragem”.
 
Depois de mais algumas clicadas e leitura, descobri que Judith Vardamon ainda estava “viva”, ou pelo menos esteve quando Bill andou compilando seu banco de dados. Ela morava em Little Rock. 
Além disso, descobri que podia lhe enviar um e-mail. Naturalmente, ela não seria obrigada a responder. Encarei minhas mãos e meditei seriamente. Pensei no quanto Bill parecia mal. Pensei em seu orgulho e no fato de que ainda não contatara essa Judith, embora suspeitasse que o sangue dela poderia curá-lo. Bill não era tolo, então havia uma boa razão para não ter ligado para essa outra criança de Lorena. Eu só não sabia o motivo. Mas se Bill decidiu que ela não devia ser contatada, ele sabia o que estava fazendo, certo? Ah, para o inferno com isso. 
Digitei seu endereço de e-mail. E movi o cursor para “assunto”. Digitei “Bill está doente”. Achei que aquilo parecia quase engraçado. Quase mudei, mas não o fiz. Movi o cursor para o texto do e-mail, cliquei novamente. Vacilei. Então escrevi, 
“Sou vizinha de Bill Compton. Não sei quanto tempo faz desde que você teve notícias dele, mas agora ele mora em seu antigo lar em Bon Temps, Louisiana. Bill foi envenenado por prata. Ele não pode se curar sem seu sangue. E não sabe que estou lhe mandando isso. Nós costumávamos sair juntos, e ainda somos amigos. Quero que ele melhore.” 
Assinei, porque “anônimo” não era meu estilo. 
Cerrei os dentes com força. Cliquei em Enviar. 
Apesar de querer ficar com o CD e examiná-lo, meu pequeno código de honra disse que eu tinha que devolver sem apreciá-lo, porque não paguei por ele. Então peguei a chave de Bill, coloquei o disco de volta no estojo de plástico e atravessei o cemitério. 
Fui mais devagar ao passar pelo lote dos Bellefleur. As flores ainda estavam amontoadas no túmulo de Miss Caroline. Andy se encontrava parado lá, fitando a cruz feita de cravos vermelhos. Achei terrível, mas essa definitivamente era uma ocasião para o pensamento contar mais do que o ato. Não achei que Andy estivesse registrando o que estava bem diante dele de qualquer forma. 
Parecia que a palavra “Ladra” estava queimada em minha testa. Eu sabia que Andy não ligaria se eu encostasse um caminhão na casa de Bill, carregasse toda a mobília e fosse embora. Era minha própria sensação de culpa que me atormentava. 
— Sookie — Andy disse. Não tinha percebido que ele me notara. 
— Andy — falei cautelosamente. Eu não tinha certeza de para onde essa conversa iria, e precisava ir logo para o trabalho. — Ainda estão com parentes na cidade? Ou eles foram embora? 
— Eles vão partir depois do almoço — disse. — Halleigh teve que cuidar de alguns preparativos para aula esta manhã, e Glen teve que ir para o escritório verificar a papelada. Isso tem sido difícil para Portia. 
— Acho que ela ficará contente quando as coisas voltarem ao normal. — Aquilo parecia seguro o suficiente. 
— É. Ela tem um escritório de advocacia para administrar. 
— A senhora que esteve tomando conta de Miss Caroline já tem outro emprego? — Enfermeiras confiáveis eram tão escassas quanto dente de galinha e muito mais valiosas. 
— Doreen? Sim, ela se mudou para a casa do Sr. DeWitt do outro lado do jardim. — Após uma pausa desconfortável, ele disse: — Ela me deu um puxão de orelha naquela noite, depois que vocês foram embora. Sei que não fui educado com... Bill. 
— Tem sido uma época difícil para vocês. 
— Eu só... fico zangado por estarmos recebendo caridade. 
— Vocês não estavam, Andy. Bill é sua família. Sei que deve parecer estranho, e sei que vocês não pensam muito em vampiros no geral, mas ele é seu tataravô e quis ajudar seu pessoal. Não o deixaria sem graça se ele tivesse lhe deixado o dinheiro e estivesse aqui debaixo da terra com Miss Caroline, deixaria? Bill simplesmente ainda está caminhando por aí. 
Andy sacudiu a cabeça, como se mosquitos estivessem voando por perto. Seu cabelo estava rareando, eu notei. 
— Sabe qual foi o último pedido de minha avó? 
Eu não conseguia imaginar. — Não — respondi.
— Ela deixou sua receita de bolo de chocolate para a cidade — ele disse e sorriu. — Uma maldita receita. E quer saber, estavam todos entusiasmados na redação do jornal quando levei aquela receita, como se fosse Natal e eu tivesse lhes levado um mapa para o corpo de Jimmy Hoffa. 
— Vai ser publicado no jornal? — Eu pareci tão emocionada quanto me sentia. Aposto que haveria pelo menos centenas de bolos de chocolate no forno quando o jornal saísse. 
— Viu, você também está toda entusiasmada — disse Andy, parecendo cinco anos mais jovem. 
— Andy, são ótimas notícias — assegurei. — Agora, se você me der licença, preciso devolver uma coisa. — E corri pelo resto do cemitério até a casa de Bill. Coloquei o CD, completo com sua pequena etiqueta, em cima da pilha de onde tirei e dei o fora. 
Eu me questionei duas, três, quatro e até cinco vezes. Trabalhei no Merlotte’s numa espécie de névoa, concentrando-me ferozmente em atender aos pedidos de almoço corretamente, ser rápida e responder instantaneamente a qualquer pedido. Meu outro sentido dizia que, apesar da eficiência, as pessoas não estavam contentes ao notar minha aproximação, e eu realmente não podia culpá-los. 
As gorjetas foram baixas. As pessoas prontamente perdoavam ineficiência, contanto que você sorrisse enquanto se descuidava. Elas não gostavam de mim séria e rápida. Eu podia perceber (só porque ele pensou com freqüência) que Sam supôs que tive uma briga com Eric. Holly achou que eu estava em meu período menstrual. 
E Antoine era um informante. 
Nosso cozinheiro andou perdido em seu próprio humor meditativo. Eu percebia o quanto ele normalmente era resistente à minha telepatia só quando se esquecia de ser. Eu estava esperando um pedido ficar pronto no balcão e observava Antoine enquanto ele virava um hambúrguer, e ouvi diretamente dele, Não vou sair do trabalho para encontrar aquele imbecil de novo, ele pode simplesmente ir se danar. Não vou dizer mais nada. Então Antoine, que vim a respeitar e admirar, colocou o hambúrguer sobre o pão e virou para o balcão com o prato. Ele encontrou diretamente meus olhos.
Ah, merda, ele pensou. 
— Deixe-me explicar antes de você fazer qualquer coisa — ele disse, e tive certeza de que era um traidor. 
— Não — respondi, me virando e indo direto até Sam, que estava atrás do balcão lavando copos. — Sam, Antoine é algum tipo de agente do governo — falei, bem baixinho. 
Sam não perguntou como eu sabia e não questionou minha afirmação. Sua boca se comprimiu numa linha dura.
— Conversaremos com ele mais tarde — ele disse. — Obrigado, Sook. — Agora eu me arrependia por não ter contado a Sam sobre o Lobi enterrado em minha propriedade. Aparentemente, sempre me arrependia quando não contava algo a Sam. 
Peguei o prato e levei-o à mesa correta sem encontrar os olhos de Antoine. 
Eu detestava minha habilidade em alguns dias mais do que em outros. Hoje era um destes dias. Me senti muito mais feliz (embora em retrospectiva, tenha sido uma felicidade tola) quando presumi que Antoine fosse um novo amigo. Imaginei se algumas das histórias que ele contou sobre o Superdome durante o Katrina foram verdadeiras, ou se foi tudo mentira também. Senti tanta simpatia por ele. E nunca suspeitei até agora que sua persona era falsa. Como aquilo era possível? 
Primeiro, eu não monitoro cada pensamento de cada pessoa. Em geral, bloqueio um bocado e especialmente tento muito ficar longe das cabeças de meus colegas de trabalho. Segundo, as pessoas nem sempre pensam sobre coisas críticas em termos explícitos. Um sujeito não pensa, creio que vou pegar o revólver debaixo do assento de minha picape e atirar na cabeça de Jerry por transar com minha esposa. Era mais provável que eu captasse uma impressão de raiva soturna, com insinuação de violência. Ou até uma projeção de como seria atirar em Jerry. Mas o tiro em Jerry podia não alcançar o estágio de planejamento específico no momento em que o atirador se encontrasse no bar, quando eu estava inteirada de seus pensamentos. 
E, principalmente, as pessoas não agiam sobre seus impulsos violentos, algo que eu não entendi até passar por alguns incidentes bem dolorosos enquanto crescia. Se passasse a vida tentando entender o histórico de cada pensamento que ouvia, eu não teria vida própria. 
Pelo menos eu tinha algo no que pensar além de imaginar que diabos estava acontecendo com Eric e a matilha Presas Longas. Ao fim de meu turno, me descobri no escritório de Sam, com ele e Antoine. 
Sam fechou a porta atrás de mim. Ele estava furioso. Eu não o culpava. Antoine estava zangado consigo mesmo, comigo, e defensivo com Sam. A atmosfera na sala era sufocante de raiva, frustração e medo. 
— Escuta, cara — disse Antoine. Ele estava de pé, encarando Sam. Ele o fazia parecer pequeno. — Só escuta, está bem? Depois do Katrina, eu não tinha lugar para morar e nada para fazer. Estava tentando encontrar trabalho e continuar seguindo em frente. Não consegui nem mesmo um maldito trailer da FEMA. As coisas estavam ruins. Então eu... eu peguei um carro emprestado para procurar alguns parentes no Texas. Eu ia largar num lugar onde os tiras pudessem encontrar para devolver ao dono. Sei que foi estúpido. Sei que não devia ter feito isso. Mas eu estava desesperado e fiz algo estúpido.
— No entanto, você não está na cadeia — Sam observou. Suas palavras eram como um chicote que mal atingia Antoine, tirando só um pouco de sangue. 
Antoine respirou pesadamente. 
— Não, não estou e vou dizer por quê. Meu tio é um lobisomem, numa das matilhas de Nova Orleans. Então eu sabia algo a respeito deles. Uma agente do FBI chamada Sara Weiss veio falar comigo na cadeia. Ela era legal. Mas depois que falou comigo uma vez, ela trouxe esse sujeito Lattesta, Tom Lattesta. Ele disse que estava baseado em Rhodes, e eu não conseguia imaginar o que estava fazendo em Nova Orleans. Mas ele contou que sabia tudo a respeito de meu tio, e sabia que todos vocês se revelariam cedo ou tarde, já que os vampiros fizeram isso. Ele sabia o que vocês eram, que existia outras coisas além de lobos. Sabia que haveria um bocado de pessoas que não gostariam de ouvir falar de outras que eram em parte animais e viviam com o resto de nós. Ele descreveu Sookie para mim. Disse que ela era algo estranho também, mas não sabia o quê. Ele me mandou para cá para vigiar, ver o que acontecia. 
Sam e eu trocamos olhares. Não sei o que Sam antecipara, mas isso era muito mais sério do que eu imaginei. Voltei atrás. 
— Tom Lattesta soube o tempo todo? — perguntei. — Quando ele começou a pensar que havia algo de errado comigo? — Foi antes de ele ver as fotografias do hotel explodido em Rhodes, que usou como razão para se aproximar de mim meses atrás? 
— Metade do tempo ele tem certeza de que você é uma fraude. Na outra, acha que você é algo sério. 
Virei para meu chefe. — Sam, ele apareceu em minha casa no outro dia. Lattesta. Disse que alguém próximo de mim, um dos grandes parentes — eu não queria ser mais específica diante de Antoine — arranjou para que ele se afastasse. 
— Isso explica por que ele estava tão zangado — disse Antoine, endurecendo o rosto. — Explica um bocado. 
— O que ele lhe disse para fazer? — perguntou Sam. 
— Lattesta disse que o roubo do carro seria esquecido contanto que eu ficasse de olho em Sam e em qualquer pessoa que não fosse totalmente humana e viesse ao bar. Ele disse que não podia tocar Sookie agora, e estava bem puto. 
Sam olhou para mim com uma pergunta no rosto. 
— Ele está sendo sincero — respondi. 
— Obrigado, Sookie — disse Antoine. Ele parecia abjetamente miserável. 
— Está bem — disse Sam, após olhar para Antoine por mais alguns segundos. — Você ainda tem um emprego.
— Sem... condições? — Antoine olhava para Sam incrédulo. — Ele espera que eu continue o vigiando. 
— Sem condições, mas um aviso. Se contar a ele mais alguma coisa além do fato de que estou aqui administrando esse negócio, você cai fora e, se conseguir pensar em algo para fazer com você, eu farei. 
Antoine pareceu fraco de alívio. 
— Farei meu melhor por você, Sam — ele disse. — Para falar a verdade, estou contente por tudo estar às claras. Isto tem pesado em minha consciência. 
— Haverá represália — eu disse, quando fiquei sozinha com Sam. 
— Eu sei. Lattesta cairá em cima dele com força, e Antoine ficará tentado a inventar algo para dizer. 
— Acho Antoine um bom sujeito. Espero não estar errada. — Já estive errada antes a respeito das pessoas. De forma bem grande. 
— É, espero que ele corresponda às nossas expectativas. — Sam sorriu para mim de repente. Ele possuía um grande sorriso e não pude evitar corresponder. — Às vezes é bom ter fé nas pessoas, dar-lhes outra chance. E nós dois ficaremos de olho nele. 
Concordei. — Okay. Bom, é melhor eu ir para casa. — Eu queria verificar meu celular e a secretária eletrônica também por recados. E meu computador. Estava ansiosa para que alguém me procurasse e tocasse. 
— Algum problema? — Sam perguntou. Ele estendeu a mão para me dar um tapinha experimental no ombro. — Algo que eu possa fazer? 
— Você é maravilhoso — respondi. — Mas só estou tentando atravessar uma situação ruim. 
— Eric não entrou em contato? — disse, prova de que Sam era um adivinho de primeira. 
— Sim — admiti. — E ele tem... parentes na cidade. Não sei que diabos está acontecendo. — A palavra “parentes” sacudiu minha cabeça. — Como estão as coisas com sua família, Sam? 
— O divórcio é sem culpa, está sendo consumado — ele respondeu. — Minha mãe está bem triste, mas vai melhorar com o tempo, eu espero. Algumas pessoas em Wright estão a esnobando. Ela deixou Mindy e Craig verem sua transformação. 
— Que forma ela escolheu? — Eu preferia ser um metamorfo do que um só animal, então poderia escolher. 
— Uma Scottie, eu acho. Minha irmã aceitou muito bem. Mindy sempre foi mais flexível do que Craig. 
Eu achava que mulheres quase sempre eram mais flexíveis do que os homens, mas não achei que precisava dizer isso em voz alta. Generalizações como aquelas podiam voltar para morder seu traseiro. 
— A família de Deidra se acalmou?
— Parece que o casamento voltou a ficar em pé a duas noites atrás — disse Sam. — A mãe e o pai dela finalmente entenderam que a “contaminação” não podia se espalhar para Deidra, Craig e os filhos, se tiverem algum. 
— Então você acha que o casamento vai acontecer? 
— Sim, acho. Você ainda irá a Wright comigo? 
Comecei a dizer, “Você ainda quer que eu va, mas aquilo seria desmedidamente melindroso, já que ele tinha acabado de perguntar. 
— Quando a data for combinada, você terá que perguntar ao meu chefe se posso tirar licença do trabalho — falei. — Sam, pode ser chato de minha parte persistir na pergunta, mas por que não está levando Jannalynn? 
Eu não estava imaginando o desconforto que emanava de Sam. — Ela... bom, hã... ela... só posso dizer que ela e minha mãe não se dariam bem. Caso a apresente à minha família, é melhor esperar até a tensão do casamento não fazer parte da questão. Minha mãe ainda está abalada com o tiro e o divórcio, e Jannalynn... não é uma pessoa calma. 
Na minha opinião, se estivesse saindo com alguém que você claramente estava embaraçado em apresentar à família, provavelmente estava saindo com a pessoa errada. Mas Sam não pediu minha opinião. 
— Não, ela certamente não é uma personalidade calma — falei. — E agora que possui aquelas novas responsabilidades, ela tem que ficar bem concentrada na matilha, eu suponho. 
— O quê? Que novas responsabilidades? 
Oh-oh. — Tenho certeza que ela vai lhe contar — respondi. — Imagino que não a vê há alguns dias, hein? 
— Não. Então nós dois estamos por baixo e largados — ele disse. 
Eu estava disposta a conceder que andei bem triste, e sorri para ele. 
— Sim, em grande parte — falei. — Com o criador de Eric na cidade e sendo mais assustador que Freddy Krueger, eu estou por conta própria, acho. 
— Se não tivermos notícias de nossas metades significativas, vamos sair amanhã à noite. Podemos jantar na Lanchonete Crawdad de novo — disse Sam. — Ou posso grelhar alguns bifes para nós. 
— Parece bom — eu disse. E apreciava a oferta. Vinha me sentindo meio à deriva. Jason aparentemente andava ocupado com Michele (e afinal, ele ficou na outra noite quando meio que esperava que desse o fora), Eric estava ocupado (aparentemente), Claude quase nunca se encontrava na casa e acordado quando eu estava acordada, Tara estava ocupada com a gravidez, e Amelia tinha tempo apenas para me mandar um e-mail ocasional. Embora não me importasse de ficar sozinha de tempos em tempos — de fato, gostava — eu vinha tendo tempo demais ultimamente. E ficar sozinha é bem mais divertido se for opcional.
Aliviada pela conversa com Antoine estar terminada, e imaginando que problemas Tom Lattesta podia causar no futuro, peguei minha bolsa da gaveta na escrivaninha de Sam e segui para casa. 
Era um belo fim de tarde quando estacionei nos fundos da casa. Pensei em me exercitar um pouco com ginástica em DVD antes de preparar o jantar. O carro de Claude não se encontrava ali. Não notei a picape de Jason, então fiquei surpresa ao vê-lo sentado nos degraus dos fundos. 
— Oi, mano! — exclamei enquanto saía do carro. — Escute, me deixe perguntar... — E então, captando sua assinatura mental, percebi que o homem sentado nas escadas não era Jason. Congelei. Tudo que podia fazer era encarar Dermot, meu tio-avô metade fae, e imaginar se ele veio me matar.
 
ELE PODIA TER me destruído umas sessenta vezes durante os segundos em que permaneci ali parada. Apesar do fato de não ter feito isso, eu ainda não queria tirar meus olhos dele. 
— Não tenha medo — disse Dermot, levantando-se com uma graça que Jason nunca poderia igualar. Ele se moveu como se suas juntas fossem máquinas bem lubrificadas. 
Eu respondi através de lábios entorpecidos: — Não consigo evitar. 
— Eu quero explicar — ele disse, aproximando-se. 
— Explicar? 
— Quero me aproximar de ambos — respondeu. Ele tinha invadido meu espaço pessoal até então. Seus olhos eram azuis como os de Jason, cândidos como de Jason, e realmente, seriamente, loucos. Não como os de Jason. — Eu estava confuso. 
— Sobre o quê? — Eu queria manter a conversa fluindo, com certeza, porque não sabia o que aconteceria quando ela parasse. 
— Sobre onde minha lealdade repousava — ele disse, inclinando a cabeça tão graciosamente quanto um cisne. 
— Claro. Fale-me a respeito. — Oh, se ao menos eu tivesse minha pistola d’{gua cheia de suco de limão na bolsa! Mas prometi a Eric que a colocaria na cabeceira de minha cama quando Claude veio morar comigo, então era onde ela estava. E a pá de jardinagem de ferro estava onde devia ficar, no galpão de ferramentas. 
— Eu vou — ele disse, perto o suficiente para que eu pudesse sentir seu cheiro. Ele cheirava maravilhosamente. Fadas sempre cheiram. — Sei que você conheceu meu pai, Niall. 
Concordei, num pequeno movimento. — Sim — respondi para deixar claro. 
— Você o ama? 
— Sim — respondi sem hesitação. — Amei. Eu amo. 
— Ele é fácil de amar; é charmoso — disse Dermot. — Minha mãe, Einin, também era linda. Não com o tipo de beleza das fadas, como Niall, mas bela de modo humano. 
— Foi o que Niall me disse — respondi. Eu estava abrindo caminho através de um campo minado naquela conversa. 
— Ele contou que as fadas da água assassinaram meu gêmeo? 
— Se Niall me contou que seu irmão foi assassinado? Não, mas fiquei sabendo. 
— Vi partes do corpo de Fintan. Neave e Lochlan o despedaçaram membro por membro.
— Eles também ajudaram a afogar meus pais — eu disse, prendendo o fôlego. O que ele diria? 
— Eu... — Ele lutou para falar, o rosto desesperado. — Mas eu não estava lá. Eu... Niall... — Era terrível observar Dermot lutando para falar. Eu não devia ter qualquer pena dele, já que Niall me contou sobre o papel de Dermot na morte de meus pais. Mas eu realmente não podia suportar sua dor. 
— Então como você terminou ficando do lado das forças de Breandan na guerra? 
— Ele disse que meu pai matou meu irmão — disse Dermot, desolado. — E acreditei nele. Duvidei de meu amor por Niall. Quando lembrei da tristeza de minha mãe depois que Niall parou de visitá-la, achei que Breandan devia estar certo e não devíamos nos misturar com os humanos. Nunca parecia terminar bem para eles. E odiava o que eu era, metade humano. Nunca me sentia à vontade em lugar algum. 
— Então você está se sentindo melhor agora? Sobre ser um pouco humano? 
— Adaptei-me a isso. Sei que minhas ações anteriores foram erradas, e sofri por meu pai não me deixar entrar em Faery. — Os grandes olhos azuis pareciam tristes. Eu estava ocupada demais tentando não tremer ao receber o impacto total. Inspira, expira. Calma, calma. 
— Então agora você acha que Jason e eu somos legais? Você não quer mais nos ferir? 
Ele colocou os braços ao meu redor. Aquela era época de “abraçar Sookie”, e ninguém me avisou. Fadas eram muito afetuosas e espaço pessoal não significava nada para elas. Eu teria gostado de dizer ao meu tio-avô que se afastasse. Mas não ousava. Não precisava ler a mente de Dermot para compreender que quase qualquer coisa podia afetá-lo, tão delicado era seu equilíbrio mental. Tive que reprimir toda minha resolução para manter a respiração calma e não tremer e sacudir. Sua proximidade e a tensão de estar em sua presença, a força enorme que zumbia através de seus braços, me levaram de volta a uma sombria cabana arruinada e as duas fadas psicóticas que realmente mereceram suas mortes. Meus ombros se sacudiram, e vi uma centelha de pânico nos olhos de Dermot. Calma. Fique calma.
Sorri para ele. Eu tinha um belo sorriso, as pessoas diziam, embora soubesse que era um pouco radiante demais, meio maluco. Contudo, aquilo combinava perfeitamente com a conversa. 
— A última vez que você viu Jason — eu disse e então não consegui pensar em como terminar. 
— Eu ataquei sua companhia. A besta que feriu a esposa de Jason. 
Engoli em seco e sorri mais um pouco.
— Provavelmente teria sido melhor se você tivesse explicado a Jason por que foi atrás de Mel. E não foi Mel quem a matou, sabe. 
— Não, foi minha própria raça quem a eliminou. Mas ela teria morrido de qualquer forma. Mel não a teria ajudado, você sabe. 
Não havia muito que eu pudesse dizer, porque seu relato do que aconteceu com Crystal foi exato. Notei que não consegui uma resposta coerente de Dermot sobre por que deixou Jason ignorando o crime de Mel. 
— Mas você não explicou a Jason — falei, inspirando e expirando — de modo bem calmo. Eu esperava. Pareceu-me que quanto mais eu tocava Dermot, mais calmos nós dois ficávamos. E Dermot estava nitidamente mais coerente. 
— Eu estava em grande conflito — ele respondeu sério, inesperadamente emprestando um jargão moderno. Talvez aquela fosse a melhor resposta que eu conseguiria. Decidi mudar de rumo. 
— Você quer ver Claude? — perguntei esperançosamente. — Ele está morando comigo agora, apenas temporariamente. Deve voltar mais tarde esta noite. 
— Eu não sou o único, sabe — Dermot me contou. Levantei a cabeça e encontrei seus olhos loucos. Entendi que meu tio-avô estava tentando dizer algo. Desejei a Deus que eu pudesse torná-lo racional. Por cinco minutos apenas. Afastei-me dele e tentei entender o que ele precisava. 
— Você não é a única fada deixada no mundo humano. Sei que Claude está aqui. Alguém mais está aqui também? — Eu teria apreciado minha telepatia por alguns minutos. 
— Sim. Sim. — Seus olhos imploravam para que eu compreendesse. 
Arrisquei uma pergunta direta. — Quem mais está desse lado de Faery?
— Você não quer encontrá-lo — Dermot me assegurou. — Tem que ser cuidadosa. Ele não pode decidir agora. Está ambivalente. 
— Certo. — Quem quer que fosse “ele” não era o único que possuía sentimentos confusos. Desejava conhecer a ferramenta certa para abrir a mente de Dermot. 
— Às vezes, ele está em sua floresta. — Dermot colocou as mãos em meus ombros e apertou gentilmente. Era como se ele estivesse tentando transmitir coisas para minha pele que não podia dizer diretamente. 
— Eu fiquei sabendo — respondi mal-humorada. 
— Não confie em outras fadas — Dermot disse. — Eu não devia. 
Foi como se uma lâmpada tivesse acendido em minha cabeça. — Dermot, houve uma magia jogada sobre você? Como um feitiço? 
O alívio em seus olhos era quase palpável. Ele concordou freneticamente.
— A não ser que estejam em guerra, fadas não gostam de matar outras fadas. Exceto Neave e Lochlan. Eles gostam de matar tudo. Mas eu não estou morto. Então existe esperança. 
Fadas podiam relutar em matar sua própria espécie, mas não se importavam em torná-los insanos, aparentemente. 
— Há algo que eu possa fazer para reverter esse feitiço? Claude pode ajudar?
— Claude possui pouca mágica, eu acho — disse Dermot. — Ele tem vivido como humano por tempo demais. Minha querida sobrinha, eu te amo. Como está seu irmão? 
Estávamos de volta à malucolândia. Deus abençoe o pobre Dermot. Abracei-o, seguindo um impulso. 
— Meu irmão está feliz, tio Dermot. Ele está saindo com uma mulher que combina com ele, e ela não vai aceitar qualquer merda, tampouco. O nome dela é Michele — como minha mãe, mas com um “L” ao invés de dois. 
Dermot sorriu para mim. Difícil dizer quanto ele estava absorvendo daquilo. 
— Coisas mortas amam você — disse Dermot, e me forcei a continuar sorrindo. 
— Eric o vampiro? Ele diz que ama. 
— Outras coisas mortas também. Estão atraídas por você. 
Esta não foi uma revelação bem-vinda. Dermot estava certo. Eu vinha sentindo Eric através de nosso vínculo, como sempre, mas havia outras duas presenças cinzentas comigo a cada momento ao anoitecer:
Alexei e Appius Livius. Estavam me drenando, e eu não tinha percebido até esse momento. 
— Esta noite — Dermot disse — você receberá visitas. 
Então agora ele era um profeta. — Boas? 
Ele deu de ombros. — É uma questão de gosto e conveniência. 
— Ei, tio Dermot? Você caminha por estas terras com muita freqüência? 
— Com medo demais do outro — ele respondeu. — Mas tento observá-la um pouco. 
Eu estava tentando decidir se aquilo era algo bom ou ruim quando ele desapareceu. Puf! Vi uma espécie de névoa e então mais nada. As mãos dele estavam em meus ombros e então não estavam mais. Presumi que a tensão de conversar com outra pessoa tinha sido demais para Dermot. 
Cara. Isso realmente foi muito estranho. 
Olhei ao redor, achando que poderia ver algum outro rastro de sua passagem. Ele podia até decidir voltar. Mas nada aconteceu. 
Não havia nenhum som exceto o rosnado prosaico de meu estômago, me lembrando que não tinha almoçado e que agora era hora do jantar. 
Entrei para dentro de casa com as pernas trêmulas e desabei à mesa. Conversa com um espião. Entrevista com uma fada insana. Ah, sim, telefonar para Jason e lhe dizer que voltasse a vigiar fadas. Era algo que podia fazer sentada. 
Depois daquela conversa, lembrei de buscar os jornais quando minhas pernas funcionaram novamente. Enquanto assava uma tortinha Marie Callender, li os jornais dos últimos dois dias. 
Infelizmente, havia um bocado de interesse na manchete. Houve um terrível assassinato em Shreveport, provavelmente com envolvimento de gangues. A vítima foi um jovem rapaz negro usando cores de gangue, que eram como uma seta brilhante para a polícia, mas ele não levou um tiro. Recebeu múltiplas facadas, então teve a garganta cortada. Eca. Soava mais pessoal do que matança de gangue para mim. Então, na noite seguinte, a mesma coisa aconteceu de novo, dessa vez com um garoto de dezenove anos que usava cores de gangue diferentes. Ele morreu da mesma forma terrível. Sacudi a cabeça diante da estupidez da morte de rapazes jovens pelo que considerava nada, e segui para uma história que achei eletrizante e muito preocupante. 
A tensão quanto à questão do registro de lobisomens estava aumentando. De acordo com os jornais, os Lobis eram a grande controvérsia. Os artigos mal mencionavam as outras criaturas de duplanatureza, apesar de eu conhecer pelo menos uma raposa, um morcego, dois tigres, um grupo de panteras e um metamorfo. Lobisomens, os dupla-natureza mais numerosos, estavam recebendo a maior parte das reações. E eles eram contra aquilo, como devia ser. 
“Por que eu devia me registrar, como se fosse um estrangeiro ilegal ou um cidadão morto?” Scott Wacker, um general do exército, era citado. “Minha família tem sido americana a seis gerações, todos no exército. Minha filha está no Iraque. O que mais vocês querem?” 
O governador de um dos estados do nordeste disse, “Nós precisamos saber quem é ou não um lobisomem. No caso de um acidente, os oficiais precisam saber, para evitar contaminação por sangue e para ajudar na identificação.” 
Mergulhei a colher na crosta para soltar um pouco do calor da torta. Meditei a respeito. Besteira, eu concluí. 
“É besteira”, o General Wacker respondeu no parágrafo seguinte. Então Wacker e eu tínhamos algo em comum. “Primeiro, nós voltamos para a forma humana quando morremos. Oficiais já usam luvas quando lidam com corpos. Identificação não é problema mais do que para os de natureza única. Por que devia?” 
É isso aí, Wacker.
De acordo com o jornal, o debate era feroz entre as pessoas nas ruas (inclusive algumas que não eram simples pessoas), membros do Congresso, pessoal militar e bombeiros, advogados peritos e eruditos constitucionais. 
Ao invés de pensar global ou nacionalmente, eu tentei avaliar o pessoal no Merlotte’s desde o anúncio. Os lucros despencaram? Sim, houve uma pequena redução no começo, logo depois que os fregueses assistiram Sam se transformar num cachorro e Tray se tornar um lobo, mas então as pessoas começaram a beber tanto quanto antes. 
Então aquela era uma crise criada, uma questão de nada? 
Não tanto quanto eu gostaria, decidi, após ler mais alguns artigos. 
Algumas pessoas realmente detestavam a ideia de que indivíduos que conheceram a vida toda possuíssem outro lado, uma vida misteriosa e ignota (essa não é uma ótima palavra? Esteve no calendário com a Palavra do Dia na semana passada) para o público em geral. Foi a impressão que tive antes, e ainda parecia verdadeira. Ninguém estava cedendo naquela posição; os Lobis ficavam zangados e o público ficava mais assustado. Pelo menos uma parte bem vocal do público. 
Houve manifestações e distúrbios em Redding, Califórnia e Lansing, Michigan. Imaginei se haveria distúrbios por aqui ou em Shreveport. Achei difícil de acreditar e doloroso de imaginar. Olhei o crepúsculo pela janela da cozinha, como se esperasse ver uma multidão de camponeses com tochas marchando para o Merlotte’s. 
Era uma noite curiosamente vazia. Não havia muito que limpar depois que comi, minha lavanderia estava em dia, e não havia nada na TV que eu quisesse assistir. Verifiquei meus e-mails; nenhuma mensagem de Judith Vardamon. 
Havia uma mensagem de Alcide. “Sookie, marcamos a reunião da matilha para segunda-feira às oito da noite em minha casa. Estamos tentando encontrar um shaman para o julgamento. Vejo você e Jason lá.” Já fazia quase uma semana desde que encontramos o corpo de Basim na floresta, e esta era a primeira notícia que eu tinha. O “um dia ou dois” da matilha se estendeu para seis. E isso significava que fazia um bom tempo desde que ouvi falar de Eric. 
Liguei para Jason novamente e deixei uma mensagem de voz em seu celular. Tentei não me preocupar com a reunião, mas todas as vezes em que estive com a matilha, algo violento acontecera. Pensei de novo no homem morto na cova da clareira. Quem o colocou ali? Provavelmente, o assassino quis o silêncio de Basim, mas o corpo não foi plantado em minha terra por acidente. 
Li por trinta minutos mais ou menos, então escureceu por completo e eu senti a presença de Eric, além da companhia diminuta, porém inegável, dos outros dois vampiros. Assim que eles acordaram, me senti cansada. Isso me deixou tão inquieta que rompi minha própria decisão.
Sabia que Eric percebia que eu estava infeliz e preocupada. Era impossível ele não saber disso. Talvez pensasse que, ao me manter afastada, estava me protegendo. Talvez ele não soubesse que seu criador e Alexei estavam em minha consciência. Respirei fundo e liguei para ele. O telefone tocou e o apertei contra o ouvido como se estivesse segurando o próprio Eric. Mas pensei, e não teria acreditado que isso era possível uma semana atrás, E se ele não atender? 
O telefone tocou e eu prendi a respiração. Após o segundo toque, Eric atendeu. — A reunião da matilha foi marcada — falei sem pensar. 
— Sookie — ele disse. — Você pode vir para cá? 
A caminho de Shreveport, indaguei-me umas quatro vezes pelo menos se estava fazendo a coisa certa. Mas concluí que, estando certa ou errada (em correr para ver Eric quando ele me pediu), era simplesmente uma questão inútil. Ambos estavam no fim da linha esticada entre nós, numa linha tecida de sangue. Ela forjava como nos sentíamos com relação ao outro a qualquer momento. Eu sabia que ele estava cansado e desesperado. Ele sabia que eu estava zangada, inquieta e magoada. No entanto, me indaguei. Se eu telefonasse e dissesse a mesma coisa, ele teria saltado no carro (ou no céu) e aparecido em minha porta? 
Estavam todos no Fangtasia, ele dissera. 
Fiquei chocada ao ver como havia poucos carros estacionados diante do único bar vampiro de Shreveport. O Fangtasia era uma enorme atração turística numa cidade que ostentava um aumento no turismo, e eu esperava que estivesse abarrotado. Havia quase a mesma quantidade de carros parados na área dos funcionários, nos fundos. Aquilo nunca acontecera antes. 
Maxwell Lee, um empresário afro-americano que por acaso era vampiro, estava de guarda na entrada traseira, e aquilo era novidade também. A porta dos fundos nunca foi especialmente protegida, porque vampiros tinham certeza que podiam cuidar de si mesmos. Contudo, ali estava ele, usando seu habitual terno de três peças, mas fazendo uma tarefa que normalmente teria considerado indigna. 
Ele não parecia ressentido; mostrava-se preocupado. 
Falei: — Onde eles estão? 
Ele virou a cabeça na direção do salão principal do bar. — Estou contente por você estar aqui — ele disse, e eu soube que a visita do criador de Eric não estava indo bem. 
Frequentemente ter visitas de fora da cidade é um incômodo, hein? Você os leva para ver as paisagens locais, tenta alimentá-los e mantê-los entretidos, mas então realmente deseja que eles partam. Não era difícil notar que Eric estava por um fio. Ele se encontrava sentado numa mesa cabine com Appius Livius Ocella e Alexei. Obviamente, Alexei parecia jovem demais para estar num bar, e isso aumentava o absurdo do momento.
— Boa noite — eu disse rigidamente. — Eric, você queria me ver? 
Eric afastou-se para perto da parede, então eu tive bastante espaço, e sentei ao seu lado. Appius Livius e Alexei me cumprimentaram, Appius com um sorriso tenso e Alexei mais à vontade. Quando estávamos todos reunidos, eu descobri que ficar tão perto deles relaxava o fio de tensão dentro de mim, o fio que nos atava juntos. 
— Senti sua falta — Eric disse tão baixo que, no começo, achei que tinha imaginado. 
Eu não mencionaria o fato de que ele não entrou em contato durante dias. Ele sabia disso. Precisei de todo meu autocontrole para engolir algumas escolhas de palavras. 
— Como eu estava tentando lhe dizer ao telefone, a reunião da matilha sobre Basim foi marcada para segunda à noite. 
— Onde e quando? — ele disse, e havia uma nota em sua voz que me informou que não estava num acampamento feliz. Bem, ele podia armar sua barraca bem ao lado da minha. 
— Na casa de Alcide. Aquela que era do pai dele. Às oito em
ponto. 
— E Jason vai com você? Sem dúvida? 
— Ainda não falei com ele, mas deixei um recado. 
— Você está zangada comigo. 
— Estou preocupada com você. — Eu não podia dizer nada do que sentia que ele já não soubesse. 
— Sim — disse Eric. Sua voz era vazia. 
— Eric é um excelente anfitrião — disse o czarevich, como se eu esperasse um relatório. 
Juntei um sorriso para oferecer ao garoto. — É bom ouvir, Alexei. O que vocês dois têm feito? Não acho que já tenham vindo a Shreveport antes. 
— Não — respondeu Appius Livius com seu curioso sotaque. — Não estivemos aqui para visitas. É uma simpática cidadezinha. Meu filho mais velho tem feito o melhor para nos manter ocupados e longe de encrencas. 
Okay, aquilo foi meio sarcástico. Podia notar pela tensão de Eric que ele não foi totalmente bem-sucedido na parte da agenda sobre “mantê-los longe de encrencas”. 
— O Mercado Mundial é divertido. Você pode conseguir coisas de todo o mundo lá. E Shreveport foi a capital dos Confederados por um tempo. — Céus, eu precisava fazer melhor do que isso. — Se vocês forem ao Auditório Municipal, podem ver o camarim de Elvis — falei animadamente. Imaginei se Bubba algum dia visitou o lugar para ver seu velho palco. 
— Eu tive um bom adolescente na noite passada — disse Alexei, igualando meu tom animado. Como se tivesse dito que ultrapassou o sinal vermelho. 
Abri a boca e nada saiu. Se eu dissesse a coisa errada, eu podia morrer ali mesmo.
— Alexei — eu disse, soando mais calma do que me sentia — você tem que tomar cuidado. É contra a lei por aqui. Seu criador e Eric podem sofrer por isso. 
— Quando estava com minha família humana, eu podia fazer o que quisesse — Alexei respondeu. Eu realmente não conseguia decifrar sua voz. — Eu estava tão doente, eles me mimavam. 
Eric se contraiu. 
— Certamente posso entender isso — falei. — Qualquer família ficaria tentada a fazer isso com uma criança doente. Mas já que agora está bem, e você teve um bocado de anos para amadurecer, sei que compreende que fazer exatamente o que quer não é um bom plano. — Pensei em pelo menos vinte outras coisas que podia ter dito, mas parei por ali. E foi algo bom. Appius Livius olhou diretamente em meus olhos e assentiu quase imperceptivelmente. 
— Eu não pareço adulto — disse Alexei. 
De novo, várias opções sobre o que podia dizer. O garoto — o velho, velho garoto — definitivamente esperava que eu respondesse. 
— Não, e é uma terrível pena o que aconteceu com você e sua família. Mas... 
E Alexei estendeu a mão e pegou a minha, mostrando-me o que aconteceu a ele e sua família. Vi o porão, a família real, o médico, a criada, encarando os homens que vieram matá-los, e ouvi os tiros e as balas encontrando seus alvos; ou no caso das mulheres não, já que as mulheres da realeza costuraram joias nas roupas para a fuga que nunca aconteceu. As joias salvaram suas vidas por poucos segundos, até que os soldados matassem cada indivíduo gemendo, sangrando e gritando. Sua mãe, seu pai, irmãs, o médico, a criada da mãe, o cozinheiro, o valete do pai... e seu cachorro. E após o tiroteio, os soldados vieram com baionetas. 
Achei que ia vomitar. Oscilei onde me encontrava sentada e o braço frio de Eric me rodeou. Alexei me soltou e nunca fiquei tão feliz por algo na vida. Eu não teria tocado a criança novamente por nada. 
— Você vê — Alexei disse triunfante. — Você vê! Eu devia ser livre para seguir meu próprio caminho. 
— Não — respondi. E fiquei orgulhosa por minha voz estar firme. — Não importa o quanto tenhamos sofrido, temos uma obrigação com os outros. Temos que ser generosos o suficiente para tentar viver da maneira certa, para que outros possam viver as próprias vidas sem jogar sujo contra elas. 
Alexei parecia rebelde. — É o que o Mestre diz também — ele murmurou. — Mais ou menos. 
— Mestre está certo — eu disse, apesar das palavras terem um gosto ruim em minha boca.
“Mestre” acenou para que a bartender se aproximasse. Felicia aproximou-se furtivamente da mesa. Ela era alta, bonita e tão gentil quanto um vampiro pode ser. Ela tinha cicatrizes recentes no pescoço. 
— O que posso lhes servir? — ela disse. — Sookie, posso lhe trazer uma cerveja ou...? 
— Um pouco de chá gelado seria ótimo, Felicia — eu disse. 
— E TrueBlood para todos vocês? — ela perguntou aos vampiros. — Ou temos uma garrafa de Royalty. 
Os olhos de Eric se fecharam, e Felicia percebeu seu erro. 
— Okay — ela disse rapidamente. — TrueBlood para Eric, chá para Sookie.
— Obrigada! — respondi, sorrindo para a bartender. 
Pam aproximou-se a passos largos da mesa. Ela arrastava o traje preto transparente que vestia no Fangtasia e estava mais próxima do pânico do que jamais vi. 
— Com licença — disse, inclinando-se na direção dos convidados. — Eric, Katherine Boudreaux está visitando o Fangtasia esta noite. Ela está com Sallie e um pequeno grupo. 
Eric parecia prestes a explodir. — Esta noite — ele disse, e as palavras disseram muito. — Com todo pesar, Ocella, devo pedir que você e Alexei voltem ao meu escritório. 
Appius Livius levantou-se sem mais explicações e Alexei, para minha surpresa, seguiu-o sem perguntas. Se Eric estivesse acostumado a respirar, eu diria que ele suspirou de alívio quando seus visitantes sumiram da vista dele. Disse algumas coisas em língua antiga, mas eu não soube qual era. 
Então uma loura corpulenta e atraente de uns quarenta anos surgiu à mesa, com outra mulher logo atrás. 
— Você deve ser Katherine Boudreaux — eu disse simpaticamente. — Sou Sookie Stackhouse, namorada de Eric. 
— Oi, docinho. Sou Katherine — ela disse. — Esta é minha companheira, Sallie. Estamos aqui com alguns amigos que estavam curiosos sobre meu trabalho. Tento visitar todos os estabelecimentos vampiros durante o ano, e não vínhamos ao Fangtasia há meses. Já que eu estou baseada aqui em Shreveport, devia tornar as visitas mais frequentes. 
— Estamos muito contentes por vocês estarem aqui — Eric disse tranquilamente. Ele soava normal. — Sallie, é sempre bom vê-la. Como estão os negócios tributários? 
Sallie, uma morena esbelta cujo cabelo estava começando a ficar grisalho, riu. 
— Os impostos estão prosperando, como sempre — ela disse. — Você devia saber, Eric, paga um bocado deles.
— É bom ver nossos cidadãos vampiros se dando bem com cidadãos humanos — Katherine disse sincera, olhando ao redor do bar, quase vazio que parecia não estar aberto. As sobrancelhas louras se contraíram de leve por um momento, mas foi o único sinal que a Srta. Boudreaux deu de que notou que os negócios de Eric iam mal. 
Pam disse: — Sua mesa está pronta! 
Ela estendeu a mão na direção de duas mesas que foram unidas para o grupo, e a agente estadual do EAV disse: — Com licença, Eric. Tenho que dar atenção aos meus acompanhantes. 
Após um banho de amabilidades e prazer-em-conhecê-los, nós finalmente ficamos sozinhos, se ficar sentado numa cabine no meio do bar pode contar como estar sozinhos. Pam recomeçou, mas Eric dispensou-a com um dedo levantado. Ele pegou uma de minhas mãos e descansou a testa na outra. 
— Pode me contar o que há com você? — indaguei bruscamente. — Isso é terrível. É difícil ter fé em nós quando eu não sei o que está acontecendo. 
— Ocella tinha alguns negócios a discutir comigo — disse Eric. — Alguns negócios indesejáveis. E como você viu, meu meio-irmão está doente.
— Sim, ele compartilhou isso comigo — respondi. Ainda era difícil de acreditar no que vi e sofri com a criança, através de suas memórias da morte de todos que amou. O czarevich da Rússia, único sobrevivente de um massacre, se beneficiaria de aconselhamento. Talvez ele e Dermot pudessem participar do mesmo grupo de terapia. — Não se atravessa algo assim e termina como o Sr. Saúde Mental, mas eu nunca experimentei nada parecido. Sei que deve ter sido um inferno para ele, mas tenho que dizer... 
— Você também não quer passar por isso — disse Eric. — Não está sozinha nisso. É mais claro para nós: Ocella, eu, você. Mas ele pode compartilhar isso com outras pessoas também. Não é tão detalhado para elas, me contaram. Ninguém quer essa lembrança. Nós todos carregamos um bocado das próprias lembranças ruins. Receio que ele não possa ser capaz de sobreviver como um vampiro. — Ele se deteve, girando a garrafa de TrueBlood sobre a mesa. — Aparentemente, é um desafio noturno contínuo para Alexei fazer as coisas mais simples. E não fazer com outros. Você ouviu a afirmação dele sobre o adolescente. Eu não quero entrar em detalhes. Porém... você tem lido os jornais ultimamente, os jornais de Shreveport? 
— Você está querendo dizer que Alexei pode ser o responsável por aqueles dois assassinatos? — Só conseguia ficar sentada ali, encarando Eric. — As facadas, as gargantas? Mas ele é tão pequeno e jovem.
— Ele é louco — disse Eric. — Ocella finalmente me contou que Alexei teve episódios como esse antes — não tão severos. Ele chegou a considerar, muito relutantemente, dar a Alexei a morte final. 
— Quer dizer colocá-lo para dormir? — falei, incerta de ter ouvido direito. — Como um cachorro? 
Eric olhou direto em meus olhos. 
— Ocella ama o garoto, mas não pode se permitir matar pessoas ou outros vampiros quando lhe convém. Tais incidentes chegam aos jornais. E se ele for pego? E se algum russo reconhecê-lo como resultado da notoriedade? O que isso faria ao nosso relacionamento com os vampiros russos? Mais importante, Ocella não pode ficar de olho nele o tempo todo. Por duas vezes, o garoto saiu sozinho. O que resultou em duas mortes. Em minha área! Ele vai estragar tudo que estamos tentando fazer aqui nos Estados Unidos. Não que meu criador ligue para minha posição nesse país — Eric acrescentou, um pouco amargo. 
Dei uma espécie de palmadinha pesada em sua bochecha. Não um tapa. Uma palmada pesada. 
— É, não vamos esquecer os dois homens mortos — falei. — Que Alexei assassinou, de modo doloroso e horrível. Quero dizer, eu percebo que tudo isso é sobre ele, seu criador e sua crença pessoal, mas não vamos perder tempo com os sujeitos que ele matou. 
Eric deu de ombros. Ele estava preocupado e não sabia o que fazer, e não se importava nem um pouco com a morte de dois humanos. Provavelmente estava grato por Alexei ter escolhido vítimas que não atrairiam muita simpatia e cujas mortes eram facilmente explicadas. Membros de gangues se matavam o tempo todo, afinal. Desisti de assinalar a questão. Em parte porque tive um pensamento — se Alexei era capaz de se virar contra a própria espécie, talvez nós pudéssemos conduzi-lo para Victor? Estremeci. Eu estava me dando arrepios. 
— Então seu criador trouxe Alexei até você, esperando que tivesse ideias brilhantes sobre como manter seu meio-irmão vivo, ensinálo a ter algum autocontrole? 
— Sim. É uma das razões pelas quais está aqui. 
— Appius Livius fazendo sexo com o garoto não pode estar ajudando a saúde mental de Alexei — respondi, já que simplesmente não conseguia não dizer. 
— Por favor, compreenda. Na época de Ocella, isso não era problema — disse Eric. — Alexei seria velho o suficiente, naquela época. E homens de certa posição eram livres para se satisfazer com pouca culpa ou questionamento. Ocella não pensa de forma moderna sobre tais coisas. Como vê, Alexei tornou-se tão... bom, eles não estão fazendo sexo agora.
Ocella é um homem honrado. — Eric soou muito absorto, sério, como se tivesse que me convencer da integridade de seu criador. E toda essa preocupação era com o homem que o assassinou. Mas se Eric admirava Ocella, respeitava-o, eu não tinha que fazer o mesmo? 
E me ocorreu que Eric não estava fazendo nada pelo irmão que eu não faria pelo meu. Então eu tive outro pensamento indesejável, e minha boca ficou seca. 
— Se Appius Livius não está fazendo sexo com Alexei, quem está? — perguntei em voz baixa. 
— Sei que isso é da sua conta, já que estamos casados — algo na qual eu insisti e você depreciou — Eric disse, e a amargura voltou em sua voz. — Só posso dizer que não estou fazendo sexo com meu criador. Mas eu faria se ele dissesse que desejava. Não teria escolha. 
Tentei pensar numa forma de desviar daquela conversa, escapar com alguma dignidade. — Eric, você está ocupado com suas visitas. — Ocupado de um jeito que nunca imaginei. — Vou àquela reunião na casa de Alcide segunda à noite. Contarei o que aconteceu, quando e se você ligar. Há algumas coisas que eu preciso que você saiba, se tiver oportunidade de vir à minha casa para conversarmos. — Como Dermot aparecendo em minha porta. Seria uma história que Eric ficaria interessado em ouvir, e Deus sabe que eu desejava contar. 
Mas agora não era o momento certo. 
— Se eles ficarem até terça-feira, irei vê-la não importa o que estejam fazendo — disse Eric. Soava um pouco mais como ele mesmo. — Faremos amor. Tenho vontade de lhe comprar um presente. 
— Parece uma grande noite para mim — respondi, sentindo uma onda de esperança. — Não preciso de presentes, só você. Então vejo-o na terça, sem falta. Foi o que disse, certo? 
— Foi o que eu disse. 
— Está bem então, até terça. 
— Eu te amo — Eric disse num tom esgotado. — E você é minha esposa, da única forma que importa para mim. 
— Amo você também — eu disse, ignorando a última parte de sua afirmação, porque não queria saber o que significava. Levantei-me para partir, e Pam surgiu ao meu lado para me acompanhar até o carro. Pelo canto do olho, eu vi Eric levantar e ir até a mesa dos Boudreaux para se certificar de que as importantes visitas estavam felizes. 
— Ele irá arruinar Eric se ficar — disse Pam. 
— Como? 
— O garoto vai matar de novo, e não será possível encobrirmos. Ele pode fugir se você é cego o suficiente. Ele tem que ser vigiado constantemente. Porém Ocella discute consigo mesmo sobre eliminar o garoto.
— Pam, deixe Ocella decidir — avisei. Achei que, já que estávamos sozinhas, eu podia tomar a grande liberdade de chamar o criador de Eric pelo nome pessoal. — Estou falando sério. Eric terá que deixá-lo matá-la, se você destruir Alexei. 
— Você se importa, não? — Pam ficou inesperadamente emocionada. 
— Você é minha amiga — eu disse. — É claro que me importo. 
— Somos amigas — disse Pam. 
— Sabe disso. 
— Isso não vai acabar bem — disse Pam, enquanto eu entrava no carro. 
Não consegui pensar em nada para dizer. Ela estava certa. 
Comi um pãozinho doce de canela quando cheguei em casa, só porque achei que merecia um. Estava tão preocupada que nem conseguia pensar em ir para a cama ainda. Alexei me deu seu próprio pesadelo pessoal. Nunca ouvi falar de um vampiro (ou qualquer outro ser, humano ou não) capaz de transmitir uma lembrança como aquela. Considerei peculiarmente horrível que Alexei fosse tão “dotado”, quando possuía uma memória tão ruim para compartilhar. Recapitulei a torturante provação da família real novamente. Podia entender por que o garoto era daquele jeito. Mas eu também entendia por que ele podia ser — colocado para dormir. 
Levantei-me da mesa, sentindo-me completamente exausta. Estava pronta para a cama. Mas meu plano foi alterado quando a campainha tocou. Era de se pensar que, vivendo numa área rural no fim de uma longa entrada através da floresta, eu teria um bocado de aviso quanto a visitas. Mas aquele nem sempre era o caso, especialmente com sobrenaturais. 
Eu não reconheci a mulher que vi pelo olho mágico, mas sabia que era uma vampira. Isso significava que ela não podia entrar sem ser convidada, então era seguro descobrir por que estava ali. Abri a porta, sentindo-me principalmente curiosa. 
— Oi, posso ajudá-la? — perguntei. 
Ela me olhou de cima a baixo. 
— Você é Sookie Stackhouse? 
— Sou. 
— Você me enviou um e-mail. 
Alexei explodira minhas células cerebrais. Eu estava devagar esta noite. 
— Judith Vardamon? 
— A própria. 
— Então Lorena era sua senhora? Sua criadora? 
— Era. 
— Por favor, entre — eu disse, dando espaço. Eu podia estar cometendo um grande erro, mas quase tinha desistido da esperança de Judith responder minha mensagem. Já que viera até aqui de Little Rock, achei que lhe devia alguma confiança. 
Judith arqueou as sobrancelhas e pisou no batente.
— Você deve amar Bill ou é tola — ela disse. 
— Nenhum dos dois, eu espero. Aceita um pouco de TrueBlood? 
— Agora não, obrigada. 
— Por favor, sente-se. 
Sentei-me na beirada da poltrona enquanto Judith ocupava o sofá. Achei incrível Lorena ter “feito” Bill e Judith. Queria fazer v{rias perguntas, mas não queria ofender ou irritar essa vampira, que já me fez um enorme favor. 
— Você conhece Bill? — eu disse, para iniciar a conversa que precisávamos ter. 
— Sim, eu o conheço. — Ela parecia cautelosa, o que era estranho quando meditei sobre o quanto era mais forte do que eu. 
— Você é a irmã mais nova? — Ela parecia ter uns trinta anos, ou pelo menos tinha quando morreu. Possuía cabelos castanho-escuros e olhos azuis, era baixa e agradavelmente arredondada. Era uma das vampiras menos ameaçadoras que já conheci, pelo menos superficialmente. E parecia estranhamente familiar. 
— Como é? 
— Lorena a transformou depois de Bill? Por que ela escolheu você? 
— Você foi amante de Bill por alguns meses, eu entendi? Lendo as entrelinhas de sua mensagem? — ela perguntou por sua vez. 
— Sim, eu fui. Estou com outra pessoa agora. 
— Como pode ele nunca ter lhe contado como conheceu Lorena? 
— Não sei. Escolha dele. 
— Muito estranho. — Ela pareceu abertamente desconfiada. 
— Você pode achar estranho até compreender — respondi. — Não sei por que Bill não me contou, mas ele não o fez. Se você quer me contar, ótimo. Conte. Mas não é realmente importante. O importante é que Bill não está melhorando. Ele foi mordido por uma fada com dentes de prata. Se ele tomar seu sangue, ele pode superar. 
— Bill lhe deu a dica de que devia me perguntar talvez? 
— Não, senhora, ele não deu. Mas eu detesto vê-lo sofrer. 
— Ele mencionou meu nome? 
— Hã. Não. Descobri sozinha para que pudesse entrar em contato com você. Me parece que, se você é de Lorena também, você deve saber que ele está sofrendo. Fiquei imaginando por que não apareceu antes. 
— Vou lhe dizer por quê. — A voz de Judith era agourenta. 
Ah, ótimo, outra história de dor e sofrimento. Eu sabia que não ia gostar dessa história. 
Estava certa.
 
JUDITH COMEÇOU SUA HISTÓRIA me fazendo uma pergunta. — Você já encontrou Lorena? 
— Sim — eu disse, e fiquei por ali. Evidentemente, Judith não sabia exatamente como conheci Lorena, que foi segundos antes de enfiar uma estaca no coração dela e encerrar sua longa e maldosa vida. 
— Então sabe que ela é cruel. 
Assenti. 
— Você precisa saber por que fiquei afastada de Bill durante todos esses anos, quando gosto tanto dele — disse Judith. — Lorena teve uma vida dura. Eu não necessariamente acreditaria em tudo que ela contou, mas ouvi a confirmação de algumas partes através de outros. — Judith não estava mais me vendo; ela olhava além de mim, o passado, eu acho. 
— Quantos anos ela tinha? — perguntei, só para manter a história fluindo. 
— Na época em que Lorena conheceu Bill, ela era vampira há várias décadas. Ela foi transformada em 1788 por um homem chamado Solomon Brunswick. Ele a encontrou num bordel em Nova Orleans. 
— Ele a conheceu da forma óbvia? 
— Não exatamente. Ele estava lá tomando sangue de outra prostituta, uma que se especializou nos desejos estranhos dos homens. Comparado a alguns de seus outros clientes, uma mordidinha não era algo tão extraordinário. 
— Solomon já era vampiro há muito tempo? — Eu estava curiosa a despeito de mim mesma. Vampiros como história viva... Bom, desde que saíram do caixão, eles acrescentavam muito aos cursos das faculdades. Leve um vampiro à sala de aula para contar a história dele ou dela, e você terá uma grande plateia. 
— Solomon era vampiro há vinte anos na época. Ele tornou-se um vampiro por acidente. Era uma espécie de cigano. Vendia potes e panelas, consertava objetos quebrados. Tinha outras mercadorias que eram difíceis de se encontrar na Nova Inglaterra: agulhas, linhas, bugigangas assim. Ele levava seu cavalo e a carroça de cidade em cidade e fazenda em fazenda, totalmente sozinho. Solomon encontrou um de nós quando acampava na floresta certa noite. Ele me contou que sobreviveu ao primeiro encontro, mas o vampiro seguiu-o durante a noite até o próximo acampamento e o atacou de novo. Esse segundo ataque foi crítico. Solomon foi um dos infelizes que foram transformados acidentalmente. Já que o vampiro que bebeu dele o deixou para morrer, ignorante da mudança — ou pelo menos, eu gosto de pensar assim — Solomon não recebeu treino e teve que aprender tudo sozinho. 
— Parece realmente terrível — eu disse e falava sério. 
Ela assentiu. — Deve ter sido. Ele seguiu para Nova Orleans para evitar pessoas que perguntavam por que não envelhecia. Foi onde encontrou Lorena. Depois que teve sua refeição, ele estava saindo pelos fundos quando a avistou no pátio escuro. Ela estava com um homem. O cliente tentou ir embora sem pagar e, num piscar de olhos, Lorena o agarrou e cortou sua garganta. 
Aquela parecia a Lorena que eu conheci. 
— Solomon ficou impressionado com sua selvageria e excitado com o sangue fresco. Ele agarrou o homem moribundo, drenou-o e, quando jogou o corpo no quintal da casa ao lado, Lorena ficou impressionada e fascinada. Ela queria ser como ele. 
— Isso parece com ela. 
Judith sorriu de leve. 
— Ela era analfabeta, mas persistente e uma tremenda sobrevivente. Ele era bem mais inteligente, mas possuía habilidades fracas para matar. Até então, ele descobriu algumas coisas, então foi capaz de transformá-la. Eles compartilharam sangue algumas vezes, e aquilo lhes deu coragem para procurar outros como nós, para aprender o que precisavam para viver bem, ao invés de simplesmente sobreviverem. Os dois treinaram para ser vampiros bem-sucedidos, testando os limites de suas novas naturezas, e formaram uma excelente equipe. 
— Então Solomon era seu avô, já que criou Lorena — eu disse biblicamente. — O que aconteceu depois disso? 
— Por fim, a rosa desabrochou — disse Judith. — Criadores e suas crianças ficam por mais tempo juntos do que um mero casal num relacionamento sexual, mas não para sempre. Lorena traiu Solomon. Ela foi flagrada com o corpo meio drenado de uma criança, mas conseguiu fingir bem convincentemente que era humana. Ela disse aos homens que a agarraram que foi Solomon quem matou a criança, que a fez levar o corpo, por isso estava coberta de sangue. Solomon quase não conseguiu sair vivo da cidade — eles se encontravam em Natchez, Mississippi. Ele nunca mais viu Lorena. Nunca conheceu Bill, tampouco. Lorena o encontrou depois da guerra entre os estados. Como Bill me contou mais tarde, certa noite Lorena estava perambulando nessa área. Era muito mais difícil permanecer escondida então, especialmente em áreas rurais. Não havia tantas pessoas para caçá-la, verdade, e havia pouca ou nenhuma comunicação. Mas estranhos eram visíveis e, com a população escassa, a escolha de presas era menor. A morte de um único indivíduo era mais notada. Um corpo tinha que ser escondido muito cuidadosamente, ou a morte meticulosamente planejada. Pelo menos não existiam muitas forças policiais organizadas.
Lembrei-me de não parecer enojada. Aquela informação não era novidade. Era assim que os vampiros viviam até alguns anos atrás. 
— Lorena viu Bill e a família dele através da janela de sua casa. — Judith desviou os olhos. — Ela se apaixonou. Por várias noites, ela escutou a família. Durante o dia, ela cavava um buraco na floresta e se enterrava. À noite, ela observava. E finalmente, decidiu agir. Ela percebeu — até Lorena percebeu — que Bill nunca a perdoaria se matasse seus filhos, então esperou até ele sair no meio da noite para descobrir por que o cachorro não parava de latir. Quando Bill saiu com seu rifle, ela veio por trás e o agarrou. 
Pensei em Lorena, tão perto de minha própria família, bem no meio da floresta... Ela podia ter vindo facilmente para a casa de meus tataravós, e a história de toda minha família teria sido diferente. 
— Ela o transformou naquela noite, enterrou e ajudou-o a ressuscitar três noites depois. 
Eu não conseguia imaginar como Bill deve ter se sentido destruído. Tudo desaparecendo num piscar de olhos: toda sua vida tirada, alterada e devolvida de forma terrível. 
— Suponho que ela o levou embora daqui — eu disse. 
— Sim, isso foi essencial. Ela arranjou uma morte para ele. Sujou uma clareira com o sangue dele e deixou ali a arma e farrapos de suas roupas. Ele me contou que parecia que uma pantera o atacara. Então eles viajaram juntos e, enquanto esteve atado a ela, odiou-a também. Ele sentia-se miserável com ela, mas ela permaneceu obcecada com ele. Após trinta anos, ela tentou fazê-lo feliz ao matar uma mulher que se parecia muito com sua esposa. 
— Oh, céus — eu disse, tentando não ficar enjoada. — É você, não? — Era por isso que o rosto dela era vagamente familiar. Eu vi as antigas fotografias da família de Bill. 
Judith assentiu. 
— Evidentemente, Bill me viu entrar na casa de uma vizinha, indo para uma festa com minha família. Ele me seguiu até em casa e observou, porque gostou da semelhança. Quando Lorena descobriu esse novo interesse, achou que Bill ficaria com ela se lhe providenciasse uma companhia. 
— Sinto muito — eu disse. — Realmente sinto muito, muito mesmo. 
Judith deu de ombros. 
— Não foi culpa de Bill, mas você entenderá por que tive que pensar a respeito antes de vir e responder sua mensagem. Solomon está na Europa agora, ou eu teria lhe pedido para vir comigo. Receio ver Lorena novamente, e estava com medo... medo de que ela estivesse aqui, medo de que tivesse pedido a ela para ajudar Bill também. Ou ela podia ter inventado essa história para me atrair para cá, pelo que eu sabia. Ela... ela está por perto?
— Ela está morta. Você não sabia? 
Os olhos azuis e redondos de Judith se arregalaram. Ela não podia ficar mais pálida, mas os olhos se fecharam por um longo tempo. 
— Eu senti uma forte pressão cerca de dezoito meses atrás... Foi a morte de Lorena? 
Assenti. 
— É por isso que ela não me chamou. Oh, isso é maravilhoso, maravilhoso! 
Judith parecia uma mulher diferente. 
— Acho que estou um pouco surpresa por Bill não ter entrado em contato com você para contar. 
— Talvez ele tenha achado que eu saberia. Crianças e criadores são atados. Mas eu não tinha certeza. Parecia bom demais para ser verdade. — Judith sorriu e pareceu subitamente bonita, mesmo com as presas. — Onde está Bill? 
— Atravessando a floresta. — Apontei na direção certa. — Em sua velha casa. 
— Vou conseguir encontrá-lo assim que estiver do lado de fora — ela disse alegremente. — Oh, estar com ele sem Lorena por perto! 
Ah. O quê? 
Antes parecia tudo bem para Judith se sentar e encher meus ouvidos, mas agora subitamente, ela estava pronta para ir embora como um gato escaldado. Fiquei ali sentada, estreitando os olhos e imaginando o que foi que eu fiz. 
— Vou curá-lo e tenho certeza que ele lhe agradecerá depois — ela disse, e senti que fui dispensada. — Bill estava lá quando Lorena morreu? 
— Sim — respondi. 
— Ele sofreu uma punição muito severa por matá-la? 
— Ele não a matou — falei. — Eu fiz isso. 
Ela congelou, me encarando como se de repente eu tivesse anunciado que era King Kong. Ela disse: — Eu lhe devo minha liberdade. Bill deve pensar muito bem de você. 
— Acredito que sim — eu disse. Para meu embaraço, ela inclinouse para beijar minha mão. Seus lábios eram frios. 
— Bill e eu podemos ficar juntos agora — disse. — Finalmente! Vejo-a em outra noite para dizer o quanto estou grata, mas agora tenho que ir até ele. — E ela saiu de minha casa, correndo através da floresta na direção sul, antes que eu pudesse dizer Jack Robinson. 
Senti como se um punho enorme tivesse atingido minha cabeça. 
Eu seria uma tola completa se não sentisse nada exceto alegria por Bill. Agora ele podia andar com Judith durante séculos, se quisesse. Com a duplicata da esposa que nunca envelheceria. Forcei-me a sorrir com alegria.
Quando parecer feliz não me deixava feliz, eu fazia vinte polichinelos, e então vinte flexões. Okay, assim é melhor, pensei, ao permanecer deitada de barriga no chão da sala. Agora estava envergonhada pelos músculos de meus braços estarem tremendo. Lembrei dos aquecimentos que a treinadora de softball das Lady Falcon nos obrigava a fazer, e eu sabia que a Treinadora Peterson chutaria meu traseiro se pudesse me ver agora. Por outro lado, eu não tinha mais dezessete anos. 
Enquanto virava para ficar de costas, eu considerei aquele fato sobriamente. Não era a primeira ocasião em que sentia a passagem do tempo, mas a primeira em que notava que meu corpo mudara para algo um pouco menos eficiente. Tinha que comparar isso com os vários vampiros que eu conhecia. Pelo menos 99 por cento deles tornaram-se vampiros no auge de suas vidas. Havia poucos que eram bem mais jovens como Alexei, e outros mais velhos como a Pitonisa Anciã, mas a maioria variava entre dezesseis a trinta e cinco anos no momento de suas primeiras mortes. Eles nunca teriam que se inscrever no Seguro Social ou Seguro Saúde. Nunca precisariam se preocupar com implantes nos quadris, câncer de pulmão ou artrite.
No momento em que alcançasse a meia-idade (se eu tivesse sorte, ja que minha vida era o que se chamava de “alto risco”), eu estaria diminuindo o ritmo de maneira perceptível. Depois disso, as rugas só aumentariam e se aprofundariam, minha pele pareceria solta sobre os ossos e mostraria uma ou duas manchas, e meus cabelos ficariam mais finos. Meu queixo ficaria flácido, assim como os peitos. Minhas juntas iam doer quando ficasse sentada por tempo demais numa só posição. Eu teria que usar óculos de leitura. 
Eu poderia desenvolver pressão alta. Ter uma artéria bloqueada. Meu coração podia bater irregularmente. Quando tivesse gripe, ficaria muito doente. Eu temia o mal de Parkinson, Alzheimer, um ataque cardíaco, pneumonia... os bichos-papões que se escondiam debaixo das camas dos velhos. 
E se eu dissesse a Eric que queria ficar com ele para sempre? Pressupondo que ele não gritasse e saísse correndo o mais rápido possível na direção contrária, assumindo que ele realmente me mudaria, tentei imaginar como era ser uma vampira. Eu veria todos os meus amigos envelhecerem e morrerem. Eu mesma dormiria no buraco-esconderijo no chão do armário. Se Jason se casasse com Michele, ela poderia não gostar se eu segurasse seus bebês. Eu sentiria vontade de atacar as pessoas, mordê-las; todas elas seriam McSangueburgueres para mim. Pensaria nas pessoas como comida. Fitei o ventilador no teto e tentei me imaginar querendo morder Andy Bellefleur ou Holly. Eca. 
Por outro lado, eu nunca mais ficaria doente a não ser que alguém atirasse em mim ou mordesse com prata, enfiasse uma estaca ou me colocasse debaixo do sol. Eu poderia proteger humanos frágeis do perigo. Poderia ficar com Eric para sempre... exceto pela parte onde casais vampiros geralmente não ficam juntos durante todo esse tempo. 
Está bem, eu poderia ficar com Eric durante alguns anos. Como eu ganharia a vida? Poderia pegar só o último turno no Merlotte’s, e isso depois que escurecesse se Sam me deixasse manter o emprego. E Sam também ficaria velho e morreria. Um novo proprietário podia não gostar de ter uma garçonete permanente que só podia trabalhar um turno. Podia voltar à escola, ter aulas noturnas ou aprender pelo computador, até ter algum tipo de diploma. No quê? 
Alcancei o limite de minha imaginação. Fiquei de joelhos e levantei do chão, me perguntando se estava imaginando uma leve rigidez nas juntas. 
O sono demorou a vir naquela noite, apesar do dia muito longo e muito assustador. O silêncio da casa era opressor. 
Claude voltou para casa tarde da noite, assobiando. 
Quando levantei na manhã seguinte, não brilhante, mas um bocado cedo, me sentia lenta e desanimada. Encontrei dois envelopes enfiados debaixo da porta da frente a caminho da varanda com meu café. O primeiro bilhete era do Sr. Cataliades e foi entregue pessoalmente às três da manhã por sua sobrinha Diantha, ela anotou no envelope. Sentiame arrependida por ter perdido a chance de conversar com Diantha, apesar de grata por ela não ter me acordado. Abri aquele envelope primeiro por pura curiosidade. 
“Cara Srta. Stackhouse,” o Sr. Cataliades escreveu. “Aqui está um cheque no valor da conta de Claudine Crane quando faleceu. Ela quis que ficasse com ele.” 
Direto ao ponto, o que era mais do que a maioria das pessoas vinha conversando comigo recentemente. Examinei o cheque e descobri que era de cento e cinqüenta mil dólares. 
— Oh, meu Deus — falei em voz alta. — Oh, meu Deus. — Larguei-o, porque meus dedos repentinamente perderam a força, e o cheque flutuou até o chão. Inclinei-me para recuperá-lo e li de novo para ter certeza de que não tinha me enganado. 
— Oh — falei. Fixei-me no clássico, porque dizer qualquer outra coisa parecia estar além de mim. Nem mesmo conseguia imaginar o que faria com tanto dinheiro. Estava além de mim também. Tinha que me dar um pouco de espaço até poder pensar naquela herança inesperada com qualquer plano racional. 
Levei aquele cheque incrível para dentro de casa e enfiei-o na gaveta, aterrorizada de que algo pudesse acontecer antes de levá-lo ao banco. 
Só quando tive certeza de que estava seguro, eu pensei em abrir o outro bilhete, que era de Bill. Voltei à cadeira da varanda e tomei um gole do café que esfriava. Rasguei o envelope.
“Querida Sookie — eu não queria assustá-la, batendo na sua porta às duas da manhã, então estou deixando isso para que leia durante o dia. Perguntei-me por que você esteve em minha casa na semana passada. Sabia que você viria e sabia que, cedo ou tarde, seu motivo se tornaria aparente. Seu coração generoso me deu a cura que eu precisava.” 
“Nunca pensei que veria Judith depois da última vez em que nos despedimos. Havia razões pelas quais não telefonei para ela ao longo dos anos. Entendo que ela lhe contou por que Lorena a escolheu para transformá-la numa vampira. Lorena não me perguntou antes de atacar Judith. Por favor, acredite nisso. Eu nunca condenaria alguém à nossa vida a menos que ela quisesse e dissesse.” 
Okay, Bill estava me dando crédito por algum pensamento complicado. Eu nunca sonhei em suspeitar que Bill tivesse pedido a Lorena para procurar uma companhia semelhante à falecida esposa. 
“Eu nunca teria coragem suficiente para procurar sozinho por Judith, com medo de que ela me odiasse. Estou tão contente por vê-la de novo. E o sangue dela, doado de livre vontade, já produziu uma grande cura em mim.” 
É isso aí! Aquela foi a principal questão. 
“Judith concordou em permanecer por uma semana para „colocarmos os assuntos em dia‟. Talvez possa se juntar a nós uma noite? Judith ficou muito impressionada com sua gentileza. Amor, Bill.” 
Forcei-me a sorrir sobre o pedaço de papel dobrado. Escreveria para ele de imediato, dizendo o quanto estava contente por ele estar melhor e por renovar o antigo relacionamento com Judith. Obviamente, não fiquei feliz quando ele saiu com Selah Pumphrey, uma corretora de imóveis humana, porque tínhamos rompido recentemente na época, e sabia que ele realmente não se importava com ela. Agora eu estava determinada a ficar feliz por Bill. Não seria uma daquelas pessoas terríveis que ficam todas raivosas quando o ex arruma uma substituta. Aquilo era hipócrita e egoísta ao extremo e eu esperava ser alguém melhor do que isso. Pelo menos estava determinada a mostrar uma boa imitação de tal pessoa. 
— Okay — eu disse à minha caneca de café. — Isso acabou bem. 
— Você não prefere conversar comigo do que com seu café? — Claude perguntou. 
Eu escutei pés rangendo nas escadas através da janela aberta e registrei que outro cérebro estava acordado e ativo, mas não previ que ele se juntaria a mim na varanda. 
— Você acordou tarde — eu disse. — Quer que eu pegue um copo de café para você? Fiz bastante.
— Não, obrigado. Vou tomar suco de abacaxi num minuto. É um lindo dia. — Claude estava sem camisa. Pelo menos estava vestindo calças folgadas com o Dallas Cowboys16 nele. Rá! Bem que ele queria! 
— É — falei, com uma notável falta de entusiasmo. Claude arqueou uma sobrancelha preta perfeitamente modelada. 
— Que bicho te mordeu? — ele perguntou. 
— Não, eu estou muito feliz. 
— Sim, posso ver a felicidade estampada em seu rosto. Qual é o problema, prima? 
— Recebi o cheque da herança de Claudine. Deus a abençoe. Foi tão generoso. — Encarei Claude, demonstrando toda minha sinceridade no rosto. — Claude, espero que não esteja zangado comigo. Simplesmente é... tanto dinheiro. Não tenho uma pista sequer do que fazer com ele. 
Claude deu de ombros. 
— Era o que Claudine desejava. Agora, me conte qual é o problema. 
— Claude, você terá que me desculpar se estou surpresa por se importar. Eu teria achado que você não dava a mínima para o que eu sentia. Agora você está sendo todo gentil com Hunter e oferecendo-se para me ajudar a limpar o sótão. 
— Talvez eu esteja desenvolvendo uma preocupação familiar por você. — Ele levantou uma sobrancelha. 
— Talvez os porcos voem. 
Ele riu. — Estou tentando ser mais humano — ele confessou. — Já que viverei minha longa existência entre humanos, aparentemente, estou tentando ser mais... 
— Agradável? — ofertei. 
                                              
 16  Time de futebol americano.
 
— Ai — ele disse, mas não estava realmente magoado. Sentir-se magoado implicava que se importava com minha opinião. E aquilo não era algo que podia ser aprendido, certo? — Por onde anda o namorado? — ele perguntou. — Eu simplesmente adoro o cheiro de vampiro pela casa. 
— Ontem à noite foi a primeira vez que o vi em uma semana. E não tivemos nenhum momento a sós. 
— Vocês dois brigaram? — Claude encostou o quadril no parapeito da varanda, e percebi que ele estava determinado a demonstrar que podia se interessar pela vida de alguém. 
Senti uma certa irritação. 
— Claude, estou tomando meu primeiro copo de café, não consegui dormir muito e tive alguns dias ruins. Poderia simplesmente dar o fora, ir tomar banho ou algo assim? 
Ele suspirou como se eu tivesse partido seu coração. 
— Está bem, eu consigo entender a dica — disse. 
— Isso não foi tanto uma dica quanto uma afirmação direta. 
— Oh, eu vou. 
Mas quando ele se endireitou e deu um passo na direção da porta, eu me dei conta de que tinha algo mais a dizer. 
— Eu retiro o que disse. Há algo sobre a qual precisamos conversar — falei. — Não tive a chance de contar que Dermot esteve aqui. 
Claude permaneceu ereto, quase como se estivesse preparado para disparar. 
— O que ele disse? O que queria? 
— Não tenho certeza do que ele queria. Acho que, como você, queria ficar perto de alguém com um pouco de sangue de fada. E ele queria me dizer que estava enfeitiçado. 
Claude empalideceu. 
— Com a magia de quem? Avô voltou através do portal? 
— Não — eu disse. — Mas uma fada poderia tê-lo enfeitiçado antes do portal se fechar? E acho que você deve saber que há outra fada puro-sangue deste lado do portal, ou portão, como quer que o chame. — Pelo que eu entendia dos costumes das fadas, não era possível me responder com uma mentira direta. 
— Dermot é louco — disse Claude. — Não tenho ideia do que ele fará em seguida. Se ele aproximou-se de você diretamente, deve estar sob extrema pressão. Sabe o quanto ele é ambivalente a respeito de humanos. 
— Você não respondeu minha pergunta. 
— Não — disse Claude. — Não respondi. E existe uma razão para isso. — Ele me deu as costas e olhou para o pátio. — Eu gosto de minha cabeça sobre os ombros. 
— Então há alguém por perto e você sabe quem é. Ou você sabe mais sobre jogar feitiços do que está admitindo? 
— Eu não vou falar a respeito. — E Claude entrou. Alguns minutos depois, escutei-o sair pelos fundos da casa e o carro dele passou ao seguir pelo caminho da Rodovia Hummingbird. 
Então eu ganhei uma porção valiosa de informação completamente inútil. Eu não podia convocar a fada, perguntar por que ele ou ela ainda se encontrava desse lado, quais eram suas intenções. Mas se tivesse que adivinhar, eu teria que dizer que tinha certeza de que Claude não estaria com tanto medo de uma doce fada querendo espalhar bondade e luz. E uma fada realmente legal não teria colocado algum feitiço no pobre Dermot que o tornasse tão confuso. 
Fiz uma ou duas orações, esperando recuperar meu bom humor habitual, mas não funcionou hoje. Provavelmente eu não estava fazendo orações com a disposição correta. Comunicar-se com Deus não era o mesmo que tomar uma pílula da felicidade — longe disso.
Coloquei um vestido e sandálias e fui ao túmulo de vovó. Ter uma conversa com ela geralmente me recordava o quanto foi sensata e sábia. Hoje, tudo em que eu conseguia pensar era na sua indiscrição totalmente descaracterística com um metade fada que resultou em meu pai e sua irmã, Linda. Minha avó fez (talvez) sexo com um mestiço de fada porque meu avô não podia lhe dar bebês. Então ela engravidou e deu à luz aos filhos, dois, e criou-os com amor. E enterrou ambos. 
Enquanto me agachava junto a lápide, olhando a grama que crescia sobre o túmulo, perguntei-me se devia tirar algum significado daquilo. Podia argumentar que vovó fez algo que não devia ter feito... para conseguir algo que não conseguiria ter... e depois que conseguiu, ela o perdeu da forma mais dolorosa imaginável. O que podia ser pior do que perder um filho? Perder dois filhos. 
Ou podia decidir que todo o acontecido foi completamente ao acaso, vovó fez o melhor que podia no momento em que teve que tomar uma decisão, e sua decisão simplesmente não funcionou por razões igualmente além de seu controle. Culpa constante ou constante inocência. 
Tinha que existir escolhas melhores. 
Eu fiz o melhor possível por mim. Coloquei um par de brincos e fui à igreja. A Páscoa terminara, mas as flores no altar da Igreja Metodista ainda estavam bonitas. As janelas se encontravam abertas porque a temperatura era agradável. Algumas nuvens juntavam-se a oeste, mas nada com que se preocupar nas poucas horas seguintes. Escutei cada palavra do sermão e cantei acompanhando os hinos, embora permanecesse num sussurro porque eu tinha uma voz terrível. Foi bom para mim; lembrou-me de vovó, minha infância, fé, vestidos limpos, almoço de domingo, geralmente um assado cercado de batatas e cenouras que vovó colocava no forno antes de sairmos de casa. Ela teria feito uma torta ou bolo também. 
A Igreja nem sempre é fácil quando você consegue ler as mentes de todos ao redor, e me esforcei para bloqueá-los, tendo meus próprios pensamentos numa tentativa de me conectar a parte da minha criação, a parte de mim que era boa, gentil e disposta a tornar-se melhor. 
Quando a missa terminou, eu conversei com Maxine Fortenberry, que estava no sétimo céu com os planos de casamento de Hoyt e Holly, vi Charlsie Tooten embalando o neto e conversei com meu agente de seguros, Greg Aubert, que tinha toda sua família consigo. Sua filha ficou vermelha quando a olhei, porque eu sabia de algumas coisas a seu respeito que lhe causavam remorso na consciência. Mas eu não estava julgando a garota. Todos nós nos comportamos mal de vez em quando. Alguns são pegos e outros não. 
Sam estava na igreja também, para minha surpresa. Eu nunca o vi ali antes. Pelo que eu sabia, ele nunca esteve em qualquer igreja de Bon Temps.
— Estou contente por vê-lo — eu disse, tentando não parecer espantada demais. — Você tem ido a outro lugar ou isso é um novo empreendimento? 
— Só achei que era hora — ele disse. — Primeiro, eu gosto da igreja. Além disso, uma época ruim está vindo para nós camaradas de dupla-natureza, e quero me certificar de que todos em Bon Temps saibam que eu sou um sujeito legal. 
— Eles teriam que ser tolos para não saber disso ainda — falei em voz baixa. — É bom vê-lo, Sam. — Eu me afastei porque algumas pessoas esperavam para conversar com meu chefe, e entendi que ele estava tentando ancorar sua posição na comunidade. 
Tentei não me preocupar com Eric ou qualquer outra coisa pelo resto do dia. Recebi uma mensagem de texto de um convite para almoçar com Tara e JB, e fiquei feliz por ter a companhia deles. Tara foi ao Dr. Dinwiddie para um cuidadoso exame e, com certeza, ele descobriu outra batida de coração. Ela e JB estavam espantados de um jeito alegre. Tara preparou frango com creme para colocar em biscoitos, fez um refogado de espinafre e salada de frutas. Eu me diverti na casinha deles, e JB verificou meus pulsos e disse que tinham quase voltado ao normal. Tara estava toda entusiasmada sobre o chá de bebê que a tia de JB estava planejando lhe dar em Clarice, e me assegurou que eu receberia um convite. Escolhemos uma data para seu chá em Bon Temps, e ela prometeu que faria uma lista de presentes online. 
Na hora em que cheguei em casa, achei melhor fazer uma faxina e lavei o capacho do banheiro também, pendurando-o no varal para secar. 
Enquanto estava lá fora, me certifiquei de pegar a pequena pistola d’{gua cheia de suco de limão e enfiei-a no bolso. Não queria ser pega de surpresa novamente. Eu simplesmente não conseguia imaginar o que fiz para merecer ter uma fada aparentemente hostil (julgando pela reação de Claude) perambulando por minha propriedade. 
Meu celular tocou enquanto voltava desanimada para dentro de casa. — Oi, mana — disse Jason. Ele estava fazendo churrasco. Eu podia ouvir o chiado. — Michele e eu estamos cozinhando. Você quer vir? Tenho bastante carne.
— Obrigada, mas eu almocei com JB e Tara. Vamos deixar para outro dia. 
— Está bem. Eu recebi seu recado. Amanhã às oito, certo? 
— Sim. Vamos para Shreveport juntos. 
— Claro. Pego você às sete em sua casa. 
— Até lá então. 
— Tenho que ir!
Jason não gosta de conversas longas ao telefone. Ele rompeu com garotas que queriam bater papo enquanto depilavam as pernas ou pintavam unhas.
Não é um bom comentário sobre minha vida se a perspectiva de uma reunião com um bando de lobisomens descontentes parecia algo divertido — ou pelo menos interessante. 
Kennedy estava atendendo o bar quando cheguei para trabalhar no dia seguinte. Ela me disse que Sam teve uma reunião final para olhar os livros com seu contador, que conseguiu uma prorrogação já que Sam andava tão atrasado com a papelada. 
Kennedy parecia tão bonita quanto sempre foi. Ela se recusava a usar o shorts que o resto de nós usava no clima quente, ao invés disso optando por calças caqui sob medida e um elegante cinto com sua camiseta do Merlotte’s. A maquiagem e os cabelos de Kennedy tinham qualidade de passarela. Olhei automaticamente para o banquinho habitual de Danny Prideaux. Vazio. 
— Onde está Danny? — perguntei, quando fui ao bar para pegar uma cerveja para Catfish Hennessy. Ele era chefe de Jason e meio que esperei ver Jason entrar para juntar-se a ele, mas Hoyt e alguns dos outros operários da estrada sentaram-se à mesa. 
— Ele teve que trabalhar em seu outro emprego hoje — disse Kennedy, tentando soar informal. — Eu aprecio Sam se certificar para que eu tenha proteção enquanto estou trabalhando, Sookie, mas realmente não acho que vá ter qualquer problema. 
A porta do bar bateu. 
— Estou aqui para protestar! — gritou uma mulher que parecia a avó de qualquer um. Ela tinha um cartaz e o hasteou. SEM COHABITAÇÃO COM ANIMAIS, dizia, e podia se notar que ela escreveu “cohabitação” enquanto olhava no dicion{rio; cada letra foi pintada cuidadosamente. 
— Chame a polícia primeiro — falei a Kennedy. — E então Sam. Diga-lhe para voltar não importa o que esteja dizendo. — Kennedy assentiu e virou-se para o telefone na parede. 
Nossa manifestante usava uma blusa azul e branca e calças vermelhas que provavelmente comprou na Bealls ou Stage. Tinha cabelos curtos com permanente e tingidos razoavelmente de castanho, usava óculos de aro de metal e um modesto anel de casamento no dedo artrítico. Apesar dessa aparência completamente comum, eu podia sentir os pensamentos dela queimando com fervoroso calor. 
— Senhora, precisa se retirar. Este prédio é propriedade particular — eu disse, não tendo ideia se essa era uma boa frase para dizer ou não. Nós nunca tivemos alguém protestando antes.
— Mas é um estabelecimento público. Qualquer um pode entrar — ela disse, como se fosse a autoridade. Não mais do que eu. 
— Não, não se Sam não quiser que entrem aqui e como representante dele estou lhe dizendo para sair. 
— Você não é Sam Merlotte ou esposa dele. Você é aquela garota que sai com vampiros — ela disse, venenosamente. 
— Sou a braço-direito de Sam neste bar — eu menti — e estou lhe dizendo para sair ou vou colocá-la para fora. 
— Coloque um dedo em mim e eu chamo a polícia — ela disse, sacudindo a cabeça. A raiva me inundou. Eu realmente não gosto de ameaças. 
— Kennedy — falei, e num segundo ela apareceu ao meu lado. — Eu diria entre nós que somos fortes o suficiente para pegar essa mulher e tirá-la do bar. O que você acha? 
— Concordo totalmente. — Kennedy encarou a mulher como se só estivesse esperando pelo sinal. 
— E você é aquela garota que atirou no namorado — disse a mulher, começando a parecer apropriadamente assustada. 
— Sou. Eu realmente fiquei zangada com ele e, no momento, estou bem furiosa com você — disse Kennedy. — Tire seu traseiro daqui e leve seu pequeno cartaz consigo, e faça isso agora mesmo. 
A coragem da velha desapareceu e ela saiu, lembrando no último momento de manter a cabeça levantada e as costas retas, já que era um dos soldados de Deus. Captei isso direto da cabeça dela. 
Catfish aplaudiu Kennedy, e alguns outros o imitaram, mas a maioria dos fregueses permaneceu sentada num silêncio aturdido. Então ouvimos a cantoria no estacionamento, e todos avançamos para as janelas. 
— Jesus Cristo, Pastor da Judéia — sussurrei. Havia pelo menos trinta manifestantes no estacionamento. 
A maioria era de meia-idade, mas avistei alguns adolescentes que deviam estar na escola, e reconheci alguns sujeitos que eu sabia estar no começo dos vinte. Eu meio que reconheci a maior parte da multidão. Eles freqüentavam a igreja “carism{tica” em Clarice, uma igreja que estava crescendo aos trancos e barrancos (se a construção fosse algum indicador). Na última vez em que passei pela frente, quando estava indo para a terapia física com JB, um novo prédio de atividades estava sendo levantado. 
Desejei que eles estivessem sendo ativos lá, no lugar onde pertenciam, ao invés de aqui. No momento em que eu estava prestes a fazer algo idiota (como sair até o estacionamento), dois carros-patrulha da polícia de Bon Temps estacionaram, as luzes piscando. Kevin e Kenya saíram. Kevin era esquelético e branco, e Kenya redonda e negra. Ambos eram bons policiais e se amavam ternamente... mas não oficialmente.
Kevin aproximou-se do grupo protestante com aparente confiança. Eu não consegui ouvir o que ele disse, mas todos se viraram para encará-lo e começaram a falar ao mesmo tempo. Ele levantou as mãos para uma palmada no ar num gesto de “para tras e fiquem quietos”, e Kenya deu a volta para vir por tras do grupo. 
— Talvez devêssemos sair lá fora? — disse Kennedy. 
Kennedy, eu notei, não estava acostumada a ficar sentada e deixar as coisas seguirem seu curso. Não havia nada de errado em ser ativa, mas aquela não era hora de intensificar um confronto no estacionamento, e era o que nossa presença faria. 
— Não, acho que precisamos ficar aqui — respondi. — Não há razão para jogarmos lenha na fogueira. — Olhei ao redor. Nenhum dos fregueses estava comendo ou bebendo. Todos olhavam pelas janelas. Pensei em pedir que se sentassem nas mesas, mas não havia motivo para pedir que fizessem algo que claramente não fariam, com tanto drama se desenrolando do lado de fora. 
Antoine veio da cozinha e parou ao meu lado. Ele olhou a cena por um longo momento. 
— Eu não tive nada a ver com isso — disse. 
— Nunca pensei que teria — falei surpresa. Antoine relaxou, até dentro da cabeça. — Isso é obra de alguma igreja doida. Eles estão protestando diante do Merlotte’s porque Sam possui dupla-natureza. Mas a mulher que veio aqui estava bem informada sobre mim e conhecia a história de Kennedy também. Espero que isso tenha sido só hoje. Eu detestaria ter que lidar com manifestantes o tempo todo. 
— Sam irá falir se isso continuar — disse Kennedy em voz baixa. — Talvez eu deva simplesmente me demitir. Não vai ajudar Sam o fato de eu trabalhar aqui. 
— Kennedy, não se ofereça para ser uma mártir — respondi. — Eles também não gostam de mim. Qualquer um que não acha que sou louca pensa que existe algo de sobrenatural em mim. Todos nós teríamos que nos demitir, de Sam para baixo. 
Ela me olhou penetrantemente para se certificar de que eu era sincera. Deu um rápido aceno de cabeça. Então olhou pela janela novamente e disse: — Oh-oh. 
Danny Prideaux estacionara seu Chrysler LeBaron 1991, uma máquina que ele considerava um pouco menos fascinante que Kennedy Keyes. Danny parou bem à margem da multidão, saiu e começou a correr na direção do bar. Eu simplesmente sabia que estava vindo verificar Kennedy. Ou ele tinha um rádio com freqüência da polícia no depósito de construção ou Danny ouviu a notícia de um freguês. Os tambores da floresta batiam rápida e furiosamente em Bon Temps. Danny estava usando uma regata cinza, jeans e botas, e os ombros largos cor de oliva brilhavam de suor. 
Enquanto ele se aproximava da porta, eu disse: — Acho que estou com água na boca. — Kennedy cobriu a boca com a mão para sufocar o ataque de riso. 
— É, ele parece ótimo — ela disse, tentando soar casual. Nós duas rimos.
Mas então o desastre se abateu. Um dos protestantes, zangado por ser dispensado do Merlotte’s, atingiu o capô do LeBaron com seu cartaz. Danny virou-se ao escutar o som. Ele imobilizou-se por um segundo, então seguiu a toda velocidade na direção do pecador que estragou a pintura de seu carro. 
— Ah, não — Kennedy disse, saindo como um raio do bar como se tivesse sido atirada com um estilingue. — Danny! — ela gritou. — Danny! Pare! 
Danny vacilou, virando a cabeça apenas uma fração para ver quem estava chamando-o. Com um salto que teria deixado um canguru orgulhoso, Kennedy estava ao lado dele, envolvendo-o com os braços. Ele fez um movimento impaciente, como para se livrar dela, e então pareceu se dar conta de que Kennedy, alguém que ele passava horas admirando, estava o abraçando. Ele permaneceu rígido, os braços caídos ao longo do corpo, aparentemente com medo de se mexer. 
Eu não saberia dizer o que Kennedy estava falando, mas Danny olhou para o rosto dela, completamente concentrado. Uma das manifestantes esqueceu de si mesma o suficiente para ter uma expressão de “Ahhh” no rosto, mas recuperou-se do lapso de humanidade e brandiu seu cartaz novamente. 
— Animais fora! Pessoas ficam! Queremos que o Congresso mostre o caminho! — um dos protestantes mais velhos, um homem com um bocado de cabelo branco, gritou enquanto eu abria a porta e saía. 
— Kevin, tirem eles daqui! — gritei. Kevin, cujo rosto pálido e magro estava vincado de linhas descontentes, tentava conduzir a pequena multidão para fora do estacionamento. 
— Sr. Barlowe — disse Kevin para o homem de cabelos brancos — o que está fazendo é ilegal, e eu poderia colocá-lo na cadeia. Eu realmente não quero ter que fazer isso. 
— Estamos dispostos a sermos presos por nossas crenças — o homem disse. — Não é mesmo, pessoal? 
Alguns dos membros da igreja não pareciam totalmente certos disso. 
— Talvez você esteja — disse Kenya — mas nós temos Jane Bodehouse em uma das celas agora. Ela está saindo de uma bebedeira e vomitando a cada cinco minutos. Acreditem, pessoal, vocês não querem ficar lá com Jane.
A mulher que havia entrado antes no Merlotte’s ficou meio verde. 
— Isto é propriedade particular — disse Kevin. — Vocês não podem fazer demonstrações aqui. Se não saírem desse estacionamento em três minutos, todos vocês serão presos. 
Foi mais como cinco minutos, mas a área ficou livre dos manifestantes quando Sam se juntou a nós no estacionamento para agradecer Kevin e Kenya. Já que não vi a picape dele se aproximar, seu aparecimento foi uma grande surpresa. 
— Quando foi que voltou? — eu perguntei. 
— A menos de dez minutos atrás — ele disse. — Sabia que se aparecesse, eles ficariam exaltados novamente, então estacionei na Rua da Escola e vim pelo caminho dos fundos. 
— Esperto — falei. O pessoal do almoço estava saindo do Merlotte’s, e o incidente j{ estava a caminho de se tornar uma lenda local. 
Apenas um ou dois fregueses pareciam aborrecidos; o resto considerou a manifestação um bom espetáculo. Catfish Hennessy deu uma palmadinha no ombro de Sam ao passar, e não foi o único a fazer um esforço extra para demonstrar apoio. Imaginei quanto tempo a atitude tolerante duraria. Se os manifestantes continuassem, muitas pessoas podiam decidir que vir aqui simplesmente não valia a encrenca. 
Eu não precisava dizer nada disso em voz alta. Estava estampado no rosto de Sam. 
— Ei — falei, atirando um braço ao redor de seus ombros. — Eles irão embora. Sabe o que devia fazer? Você devia ligar para o pastor daquela igreja. Todos eles são do Tabernáculo da Palavra Sagrada em Clarice. Você devia lhe dizer que gostaria de ir conversar com a igreja. Mostrar-lhes que é uma pessoa como outra qualquer. Aposto que funcionaria. 
Então percebi o quanto seus ombros estavam duros. Sam estava rígido de raiva. 
— Eu não devia dizer nada a ninguém — respondeu. — Sou um cidadão deste país. Meu pai esteve no exército. Eu estive no exército. Pago minha cota de impostos. E não sou uma pessoa como qualquer outra. Sou um metamorfo. E eles simplesmente precisam aceitar isso e engolir. — Ele se virou para entrar no bar. 
Eu me encolhi, apesar de saber que a raiva dele não era dirigida a mim. Enquanto observava Sam se afastar, lembrei a mim mesma que nada daquilo era a meu respeito. Mas não pude evitar sentir que tinha um interesse no resultado desse novo progresso. Eu não apenas trabalhava no Merlotte’s, mas a mulher que inicialmente entrou havia me apontado como parte do problema. 
Além disso, eu ainda achava que aproximar-se da igreja pessoalmente era uma boa ideia. Era razoável e civilizado. Sam não estava num humor razoável e civilizado, e eu podia compreender isso. Só não sabia onde ele colocaria sua raiva. 
Um repórter de jornal veio uma hora depois e entrevistou todos nós a respeito do “incidente”, como chamou. Errol Clayton era um sujeito de uns quarenta anos que escrevia a respeito de metade dos artigos no pequeno jornal de Bon Temps. Ele não era o dono, mas administrava-o com um orçamento sem dinheiro. Eu não possuía problemas com o jornal, mas obviamente muitas pessoas zombavam dele. O Clarim de Bon Temps frequentemente era chamado de Porcaria17 de Bon Temps. 
Enquanto Errol esperava Sam encerrar um telefonema, eu disse: — Deseja um drinque, Sr. Clayton? 
— Certamente gostaria de um chá gelado, Sookie — ele disse. — Como está aquele seu irmão? 
— Ele está indo bem. 
— Superando a morte da esposa? 
— Acho que ele se adaptou — respondi, o que cobria todo tipo de terreno. — Foi uma coisa terrível. 
— Sim, muito ruim. E foi bem aqui nesse estacionamento — disse Errol Clayton, como se eu pudesse ter esquecido. — E bem aqui nesse estacionamento o corpo de Lafayette Reynold foi encontrado. 
— Verdade também. Mas é claro que nada disso é culpa de Sam, ou teve algo a ver com ele. 
— Nunca prenderam ninguém pela morte de Crystal que eu recorde. 
Eu me virei para lançar um olhar duro a Errol Clayton. 
— Sr. Clayton, se veio aqui para causar problemas, pode ir embora agora. Precisamos que as coisas melhorem, não piorem. Sam é um bom homem. Ele frequenta o Rotary, coloca um anúncio no anuário do colegial, patrocina o time de beisebol no Clube de Moças e Rapazes toda primavera, e ajuda com os fogos de artifício do Quatro de Julho.
                                              
 17 Trocadilho no original entre Bugle (Clarim, corneta) e Bungle (Coisa mal-feita, estragada).
 
Além disso, ele é um ótimo chefe, um veterano, e um cidadão que paga os impostos. 
— Merlotte, você tem um fã-clube — disse Errol Clayton para Sam, que veio se postar atrás de mim. 
— Eu tenho uma amiga — Sam disse em voz baixa. — Tenho sorte suficiente de ter um bocado de amigos e um bom negócio. Com certeza, eu detestaria ver isso arruinado. — Ouvi uma desculpa na voz dele, e senti sua mão tocar meu ombro. Sentindo-me muito melhor, eu me afastei para fazer meu trabalho, deixando Sam para conversar com o jornalista. 
Não tive chance de conversar com meu chefe de novo antes de partir para casa. Tive que parar no mercado porque precisava de algumas coisas — Claude fez incursões em meu suprimento de batatas fritas e cereais também — e eu não estava só imaginando que o mercado estava cheio de pessoas ocupadas falando a respeito do que aconteceu durante o almoço no Merlotte’s. Havia silêncio toda vez que eu entrava num corredor, mas obviamente isso não fazia qualquer diferença para mim. Eu podia captar o que as pessoas estavam pensando. 
A maioria delas não compartilhava das crenças dos manifestantes. Mas o simples fato do incidente acontecer fez com que os moradores anteriormente indiferentes começassem a pensar sobre a questão das criaturas de dupla-natureza e sobre a legislação que propunha tirar alguns de seus direitos. 
E alguns concordavam totalmente com aquilo.
 
JASON FOI PONTUAL, e eu subi em sua caminhonete. Eu tinha trocado de roupa, vesti blue jeans e uma camiseta fina azul-clara que comprei na Old Navy. Dizia PAZ em letras douradas góticas. Esperava que não parecesse que eu estava insinuando. Jason, numa camiseta mais do que apropriada do New Orleans Saints, parecia pronto para qualquer coisa. 
— Oi, Sook! — Ele estava zumbindo de feliz antecipação. Ele nunca foi a uma reunião de lobisomens, é claro, e não tinha consciência do quanto eles podiam ser perigosos. Ou talvez tivesse, e era por isso que estava tão entusiasmado. 
— Jason, eu tenho que lhe contar algumas coisas sobre os encontros dos Lobisomens — falei. 
— Está bem — ele disse, um pouco mais sóbrio. 
Consciente de que soava mais como a irmã mais velha sabichona do que a irmã mais nova, dei-lhe uma pequena palestra. Contei a Jason que os Lobis eram sensíveis, orgulhosos e protocolares; expliquei como eles podiam renegar um membro da matilha; enfatizei o fato de que Basim era um novo membro a quem confiaram uma posição de grande responsabilidade. Por ele ter traído essa confiança, a matilha se tornaria ainda mais sensível, e eles podiam questionar o julgamento de Alcide por escolher Basim como batedor. Ele podia até ser desafiado. O julgamento da matilha quanto a Annabelle era impossível de prever. 
— Algo bem horrível pode acontecer com ela — avisei Jason. — Temos que engolir e aceitar. 
— Você está dizendo que eles podem punir fisicamente uma mulher porque ela enganou o líder da matilha com outro oficial membro? — disse Jason. — Sookie, você está falando comigo como se eu não possuísse dupla-natureza também. Acha que não sei de tudo isso? 
Ele estava certo. Foi exatamente o modo como eu estive o tratando. Respirei fundo. 
— Peço desculpas, Jason. Eu ainda penso em você como meu irmão humano. Nem sempre lembro que você é muito mais. Sinceramente, estou com medo. Já os vi matarem pessoas antes, como vi suas panteras matarem e mutilarem pessoas quando acharam que era justiça. O que me assusta não é que você faça isso, o que é ruim o suficiente, mas que eu venha a aceitar simplesmente como... o modo como se faz as coisas se possui dupla-natureza. Quando aqueles manifestantes estiveram no bar hoje, fiquei tão zangada por eles odiarem lobisomens e metamorfos sem realmente conhecerem nada a respeito deles. Mas agora estou imaginando como se sentiriam se de fato soubessem mais sobre como as matilhas funcionam; como vovó se sentiria se soubesse que eu estava disposta a assistir uma mulher, ou qualquer um, ser espancada e talvez morta pela infração de regras com as quais eu não vivo. 
Jason ficou em silêncio pelo que pareceu um longo tempo. 
— Acho que o fato de alguns dias terem se passado é uma coisa boa. Deu tempo a Alcide para esfriar. Espero que os outros membros da matilha tenham tido tempo para pensar também — ele disse finalmente. 
E eu sabia que era tudo que podíamos dizer a esse respeito, e talvez mais do que eu devia ter dito. Ficamos em silêncio por pouco tempo. 
— Você não pode ouvir o que eles estão pensando? — Jason perguntou. 
— Lobisomens puros são bem difíceis de ler. Alguns são mais difíceis do que outros. Obviamente, verei o que consigo captar. Posso bloquear um bocado quando me obrigo, mas se deixar a guarda baixa... — Dei de ombros. — Este é um caso onde eu quero saber tudo que puder assim que for possível. 
— Quem você acha que matou aquele sujeito na cova? 
— Eu andei pensando — respondi gentilmente. — Vejo três possibilidades principais. Mas a chave para que eu suspeite de todas as três é que ele foi enterrado em minha terra, e tenho que presumir que não foi por acaso. 
Jason concordou. 
— Okay, aqui vai. Talvez Victor, o novo vampiro líder da Louisiana, tenha matado Basim. Victor quer tirar Eric de sua posição, já que Eric é um xerife. É uma posição bem importante. 
Jason olhou para mim como se eu fosse idiota. 
— Posso não conhecer todos os títulos enfeitados e os pequenos apertos de mãos secretos — disse — mas reconheço alguém encarregado quando o vejo. Se você diz que esse Victor excede Eric em posição e o quer eliminado, eu acredito. 
Eu tinha que parar de subestimar a inteligência de meu irmão. 
— Talvez Victor pense que, se eu for presa por assassinato — já que alguém insinuou para a polícia que havia um corpo em minhas terras — Eric caia comigo. Talvez Victor pense que seria suficiente ao chefe dos dois para tirar Eric de sua posição. 
— Não teria sido melhor colocar o corpo na casa de Eric e chamar a polícia?
— É um bom ponto. Mas encontrar um corpo na casa de Eric significaria publicidade ruim para todos os vampiros. A outra ideia que eu tive foi que talvez o assassino seja Annabelle, que transava com Basim e Alcide. Talvez ela tenha ficado com ciúmes ou talvez Basim tenha dito que ia contar. Então ela o matou e, já que estiveram em minhas terras recentemente, pensou que fosse um bom lugar para enterrar um corpo.
— É um longo caminho para dirigir com um corpo no portamalas — disse Jason. Ele claramente ia agir como o advogado do diabo. 
— Claro, é fácil fazer buracos em todas as minhas ideias — respondi, soando exatamente como sua irmãzinha. — Uma vez que tenho todo o trabalho de vir com elas! Mas você está certo. Seria um risco que eu não desejaria correr — acrescentei, num nível mais maduro. 
— Alcide podia ter feito isso — disse Jason. 
— Sim. Podia. Mas você esteve lá. Pareceu para você— remotamente — que ele sabia que seria Basim? 
— Não — ele disse. — Achei que ele teve um choque enorme. Mas eu não estava olhando para Annabelle. 
— Eu também não. Então não sei como ela reagiu. 
— Então, teve quaisquer outras ideias? 
— Sim — respondi. — E essa é minha menos favorita. Lembra quando contei que Heidi a vampira sentiu cheiro de fadas em minha floresta? 
— Eu senti também — disse Jason. 
— Talvez eu devesse lhe pedir para verificar a floresta regularmente — falei. — Contudo, Claude disse que não era ele, e Heidi confirmou isso. Mas e se Basim viu Claude se encontrar com outra fada? Na área ao redor da casa, onde o cheiro de Claude seria natural? 
— Quando isso teria acontecido? 
— Na noite em que a matilha esteve em minha propriedade. Claude ainda não tinha se mudado, mas veio me ver. 
Pude ver Jason tentando imaginar a seqüência. 
— Então Basim a avisou sobre as fadas que rastreou, mas não contou que viu algumas? Não acho que isso se sustente, Sook. 
— Você está certo — admiti. — E nós ainda não sabemos quem seria a outra fada. Se existem duas, e uma delas não é Claude, e a outra é Dermot... 
— Sobra uma fada que desconhecemos. 
— Dermot está seriamente afetado, Jason. 
Jason disse: — Estou preocupado a respeito de todos eles. 
— Até Claude? 
— Veja, por que ele apareceu agora? Quando você tem outras fadas em sua floresta? Isso parece maluco quando você diz em voz alta, ou não? 
Eu ri. Só um pouco. — Sim, parece loucura. E eu entendi o que quis dizer. Não confio totalmente em Claude, mesmo que ele seja um pouco da família. Desejava não ter dito sim quando ele se mudou. Por outro lado, não acredito que ele deseje ferir você ou eu. E ele não é tão imbecil quanto eu pensei que fosse. 
Tentamos reunir mais algumas teorias sobre a morte de Basim, mas havia buracos demais em todas elas. O tempo passou até chegarmos. 
A casa para onde Alcide se mudou quando o pai morreu era uma enorme casa de tijolos de dois andares num grande terreno, realçada por uma impressionante paisagem. A — propriedade? mansão?— ficava numa ótima área de Shreveport, é claro. De fato, não ficava muito longe da vizinhança de Eric. Isso me incomodou, pensar em Eric tão perto de mim, mas com tantos problemas. 
A confusão do que eu estava sentindo através de nosso vínculo de sangue estava me deixando mais nervosa a cada noite. Havia tanta gente compartilhando daquele vínculo agora, tantos sentimentos seguindo de lá para cá. Esgotavam-me emocionalmente. Alexei era o pior. Ele era um garotinho muito morto, era o único modo como eu podia me expressar: uma criança presa numa tristeza permanente, uma criança que experimentou apenas vislumbres ocasionais de prazer e cor em sua nova “vida”. Após dias experimentando o que equivalia a um eco dele vivendo em minha cabeça, decidi que o garoto era como um carrapato sugando a vida de Appius Livius, Eric e agora eu. Ele chupava um pouco todos os dias. 
Aparentemente, Appius Livius estava tão acostumado com Alexei o drenando que aceitava isso como parte de sua existência. Talvez — possivelmente — o romano se sentisse responsável pelos problemas que Alexei causava, já que o transformara. Se essa era a convicção de Appius Livius, achei que estava absolutamente correto. Eu tinha certeza que trazer Alexei para Eric, achando que a presença do outro “filho” acalmaria a psicose de Alexei, era o último esforço para curar o garoto. E Eric, meu amante, foi pego no meio de tudo isso juntamente com todos os problemas que enfrentava com relação a Victor. 
Sentia-me cada vez menos uma pessoa boa ao longo dos dias. Enquanto caminhávamos pela entrada até a porta da frente de Alcide, admiti a mim mesma que desde a visita ao Fangtasia, me descobri desejando que todos eles morressem — Appius Livius, Alexei, Victor. 
Tive que guardar tudo aquilo numa gaveta mental, porque eu tinha que estar preparada para entrar numa casa cheia de Lobisomens. Jason colocou o braço ao redor de meus ombros e me deu um meio abraço. 
— Algum dia você terá que me explicar como nós podemos estar fazendo isso — ele disse. — Porque eu acho que esqueci. 
Eu ri, o que era a intenção dele. Estendi a mão para apertar a campainha, mas a porta se abriu antes que meu dedo fizesse contato. 
Jannalynn se encontrava ali num sutiã esportivo e shorts de corrida (ela sempre aparecia com escolhas de vestuário que me espantavam). O short de corrida mostrava inclinações côncavas nos ossos dos quadris, e eu suspirei. “Côncava” jamais foi uma palavra que usei em relação ao meu corpo.
— Adaptando-se ao novo trabalho? — Jason perguntou a ela, dando um passo à frente. Jannalynn tinha que escolher entre recuar ou bloquear o caminho dele, e ela escolheu recuar.
— Eu nasci para esse trabalho — disse a jovem Lobi. 
Eu tive que concordar. Jannalynn parecia adorar empregar violência. Ao mesmo tempo, imaginei que emprego ela poderia manter no mundo real. Ela atendia num bar em Shreveport, cuja proprietária era lobisomem, quando a vi pela primeira vez, e sabia que a dona daquele bar morrera na luta entre matilhas. 
— Onde está trabalhando agora, Jannalynn? — perguntei, já que não devia existir qualquer necessidade de manter isso em segredo que eu pudesse ver. 
— Eu administro o Pêlo do Cachorro. A posse ficou com Alcide, e ele sentiu que eu podia lidar com o trabalho. Tenho alguma ajuda — ela disse, o que foi uma confissão que me surpreendeu. 
Ham, com o braço ao redor de uma bela morena num vestido de verão, esperava no vestíbulo junto às portas abertas da sala de estar. Ele deu uma palmadinha em meu ombro e apresentou sua companhia como Patricia Crimmins. Eu a reconheci como uma das mulheres que se juntaram à matilha Presas Longas, em rendição após a guerra dos Lobisomens, e tentei me concentrar nela. Mas minha atenção ficava dispersando. 
Patricia riu e disse: — Um lugar e tanto, não? 
Eu assenti em silenciosa concordância. Nunca estive na casa antes, e meus olhos foram atraídos para as portas francesas do outro lado da grande sala. Havia luzes no enorme quintal, que não apenas era rodeada por uma cerca que devia ter uns dois metros, mas também se alinhava do lado de fora com aqueles ciprestes de crescimento rápido que despontavam como lanças. No meio do pátio havia uma fonte que daria um fácil bebedouro se você se transformasse em lobo. 
Havia um bocado de móveis em ferro forjado colocados ao redor da calçada de laje também. Uau. Eu sabia que os Herveaux eram abastados, mas isso era impressionante. A sala de estar por si só era bem “clube masculino”, tudo couro preto lustroso e painéis, e a lareira era tão grande quanto lareiras podem ser hoje em dia. Havia cabeças de animais penduradas nas paredes, o que achei meio divertido. 
Todos pareciam ter um drinque na mão, e localizei o bar no centro do maior aglomerado de lobisomens. Não avistei Alcide que, por causa da altura e presença, geralmente se destacava em qualquer multidão. 
Vi Annabelle. Ela encontrava-se de joelhos no centro da sala, embora não estivesse confinada de qualquer forma. Havia um espaço vazio ao seu redor.
— Não se aproxime — disse Ham em voz baixa, quando dei um passo à frente. Parei de imediato. 
— Pode conversar com ela mais tarde, provavelmente — Patricia sussurrou. Foi o “provavelmente” que me incomodou. Mas aquilo era questão da matilha, e eu estava no território deles.
— Vou pegar uma cerveja — Jason disse, após dar uma boa olhada na situação de Annabelle. — O que você quer, Sook? 
— Você precisa ir ao andar de cima — Jannalynn disse em voz baixa. — Não beba nada. Alcide tem uma bebida para você. — Ela virou a cabeça na direção das escadas à minha esquerda. Franzi as sobrancelhas, e Jason pareceu que ia protestar, mas ela sacudiu a cabeça novamente. 
Encontrei Alcide num estúdio no topo das escadas. Ele olhava pela janela. Havia um copo com um líquido amarelo sobre o mata-borrão na escrivaninha. 
— O que foi? — eu disse. Estava tendo uma sensação ainda pior a respeito dessa noite do que já tive anteriormente. Ele virou-se para me encarar. Os cabelos pretos ainda estavam uma bagunça, e ele podia ter se barbeado, mas asseio nada tinha a ver com o carisma que o rodeava como um casulo. Eu não sabia se o papel ressaltava o homem, ou se o homem amadurecera no papel, mas Alcide estava longe de ser o sujeito simpático e amistoso que conheci há dois invernos atrás. 
— Nós não temos mais um shaman — ele disse sem preâmbulos. — Não temos um há quatro anos. É difícil encontrar um lobisomem que esteja disposto a aceitar a posição, e você tem que ter talento até para considerar, de qualquer forma. 
— Okay — eu disse, esperando para ver onde ele estava indo. 
— Você é a mais próxima que temos. 
Se houvesse uma bateria ao fundo, ela começaria a tocar de modo agourento. 
— Eu não sou um shaman — respondi. — De fato, não sei o que é um shaman. E você não me tem. 
— É um termo que usamos para um curandeiro, homem ou mulher — disse Alcide. — Alguém com um dom para interpretar e aplicar magia. Soava melhor para nós do que “bruxo”. E desse modo, sabemos sobre quem estamos falando. Se tivéssemos um shaman na matilha, esse shaman beberia o negócio nesse copo e seria capaz de nos ajudar a determinar a verdade do que aconteceu a Basim, e o grau de culpa de todos os envolvidos. Então a matilha decidiria a justiça proporcional. 
— O que é? — perguntei, apontando para o líquido. 
— É o que sobrou do suprimento do último shaman. 
— O que é? 
— É uma droga — ele respondeu. — Mas antes que você saia, deixe-me dizer que o último shaman tomou várias vezes sem qualquer efeito nocivo duradouro. 
— Duradouro. 
— Bom, ele teve cãibras estomacais no dia seguinte. Mas foi capaz de voltar ao trabalho um dia depois disso.
— É claro, ele era um Lobi e capaz de comer coisas que eu não posso comer de qualquer forma. O que faria a você? Ou melhor, o que faria a mim?
— Isso lhe dá uma percepção diferente da realidade. Foi o que o cara me contou. E já que claramente eu não era material para shaman, foi tudo que ele disse. 
— Por que eu tomaria uma droga desconhecida? — perguntei, genuinamente curiosa. 
— Porque, do contrário, nós nunca chegaremos ao fundo disso — respondeu Alcide. — Agora mesmo, a única pessoa culpada que eu consigo ver é Annabelle. Ela pode ser culpada apenas de ter sido infiel a mim. Odeio isso, mas ela não merece morrer por isso. Mas se eu não puder descobrir quem matou Basim e o plantou em sua terra, acho que a matilha irá condená-la, já que é a única que esteve envolvida com ele. Acho que eu seria um bom suspeito de matar Basim por ciúmes. Mas poderia ter feito isso legalmente, e não teria culpado você. 
Eu sabia que aquilo era verdade. 
— Eles vão condená-la à morte — ele disse, batendo na tecla que teria maior efeito em mim. 
Eu era quase dura o suficiente para dar de ombros. Quase. 
— Não posso tentar fazer isso do meu jeito? — falei. — Pousando as mãos neles? 
— Você mesma me contou que é difícil captar um pensamento nítido dos Lobis. — Alcide respondeu, quase triste. — Sookie, eu esperei que fôssemos um casal um dia. Agora que sou líder da matilha e você está apaixonada por aquele imbecil do Eric, acho que isso nunca acontecerá. Achei que podíamos ter uma chance, porque você não podia ler meus pensamentos tão claramente. Já que sei disso, não acho que possa confiar no fato de você colocar as mãos neles e ter uma leitura exata. 
Ele estava certo. 
— Um ano atrás — eu disse — você não teria me pedido isso. 
— Um ano atrás — ele respondeu — você não teria hesitado em beber. 
Aproximei-me da mesa e engoli o líquido.
 
DESCI AS ESCADAS nos braços de Alcide. Já estava me sentindo um pouco tonta, tendo tomado uma droga ilegal pela primeira vez na vida. 
Eu era uma idiota. 
Contudo, era uma idiota cada vez mais aquecida e confortável. Um delicioso efeito colateral da bebida shaman foi que eu não consegui sentir Eric, Alexei e Appius Livius quase que imediatamente, e o alívio era incrível. 
Um efeito colateral menos agradável foi que eu não conseguia realmente sentir as pernas debaixo de mim. Talvez fosse por isso que Alcide estivesse mantendo o aperto firme em meu braço. Lembrei do que ele disse sobre sua antiga esperança de que fôssemos um casal um dia, e achei que seria bom beijá-lo e lembrar como era. Então me dei conta de que era melhor canalizar aquele calor e as sensações indistintas para descobrir as respostas dos quebra-cabeças diante de Alcide. Direcionei meus sentimentos, o que foi uma excelente decisão. Estava tão orgulhosa de minha excelência que podia ter rolado nela. 
O shaman provavelmente conheceu alguns truques para manter toda sua nebulosidade focada no assunto em questão. Fiz um enorme esforço para me aguçar. Na minha ausência, o grupo na sala de estar aumentou em número; a matilha toda estava ali. Eu podia sentir a totalidade, a plenitude. 
Olhares se voltaram para nós enquanto descíamos as escadas. Jason pareceu alarmado, mas lancei-lhe um sorriso reconfortante. Algo deve ter falhado, porque o rosto dele não se suavizou. 
A segunda em comando de Alcide postou-se junto da submissa Annabelle. Jannalynn inclinou a cabeça para trás e deu uma série de ganidos. Agora eu estava ao lado de meu irmão e ele me segurava. De algum modo, Alcide me deixou aos cuidados de Jason. 
— Céus — Jason murmurou. — Qual é o problema de acenar com a mão no ar ou tocar um triângulo? — Eu só podia supor que ganir não era um chamado para o orgulho das panteras. Por mim tudo bem. Sorri para Jason. Sentia-me praticamente a Alice no País das Maravilhas, depois que ela mordeu o cogumelo. 
Eu estava de um lado do espaço vazio ao redor de Annabelle, e Alcide do outro. Ele olhou ao redor para chamar a atenção da matilha. 
— Estamos aqui esta noite com dois visitantes para decidirmos o que fazer com Annabelle — ele disse sem preâmbulos. — Estamos aqui para julgarmos se ela teve algo a ver com a morte de Basim, ou se essa morte pode ser atribuída a outra pessoa.
— Por que há visitantes? — indagou uma voz feminina. Tentei encontrar o rosto, mas ela encontrava-se parada tão longe nos fundos que eu não consegui vê-la. 
Calculei que talvez houvesse umas quarenta pessoas na sala, com idades variando entre dezesseis (a mudança começava após a puberdade) e setenta anos. Ham e Patricia estavam à minha esquerda, a um quarto de distância do círculo. Jannalynn ficou junto de Annabelle. Os poucos membros que eu conhecia pelo nome estavam espalhados entre a multidão. 
— Ouçam atentamente — disse Alcide, olhando diretamente para mim. Está bem, Alcide, mensagem recebida. Fechei os olhos e escutei. Bem, isso era absolutamente incrível. Descobri que sabia quando o olhar dele pousava nos membros da matilha reunida através da onda de medo que se seguia. Eu podia ver o medo. Era amarelo escuro. — O corpo de Basim foi encontrado nas terras de Sookie — disse Alcide. — Foi plantado lá numa tentativa para culpá-la pela morte dele. A polícia veio fazer uma busca logo depois que o removemos. 
Houve uma onda geral de surpresa... de quase todo mundo. 
— Você mudou o corpo de lugar? — disse Patricia. Meus olhos se abriram. Por que Alcide escolheu manter aquilo em segredo? Porque foi um choque total para Patricia, e alguns outros, que o corpo ainda não estivesse na clareira. Jason se mexeu atrás de mim e largou a cerveja. Ele sabia que precisava ter as mãos livres. Meu irmão pode não ser um gênio intelectual, mas possuía bons instintos. 
Fiquei maravilhada com a esperteza de Alcide em armar a cena. Eu podia não captar os pensamentos dos Lobis tão claramente, mas suas emoções... Era disso que ele estava atrás. Agora que estava concentrada, focalizando as criaturas na sala, quase fora do corpo com a intensidade, eu vi Alcide como uma bola de energia vermelha, pulsante e magnética, e todos os outros lobisomens rodeando-o. 
Compreendi pela primeira vez que o líder da matilha era o planeta ao redor da qual todos os outros orbitavam no universo Lobi. Os membros da matilha eram vários tons de vermelho, violeta e rosa, as cores da devoção à ele. Jannalynn era uma flamejante listra de vermelho intenso, sua adoração fazendo-a quase tão brilhante quanto o próprio Alcide. Até Annabelle era um cereja pálido, apesar de sua infidelidade. 
Mas havia alguns pontos verdes. Estendi a mão diante de mim como se estivesse dizendo ao resto do mundo que parasse enquanto considerava essa nova interpretação da percepção. 
— Esta noite, Sookie é nossa shaman — a voz de Alcide trovejou à distância. Eu podia seguramente ignorar aquilo. Podia seguir as cores, porque elas traíam a pessoa. 
Verde, procure pelo verde. Embora minha cabeça permanecesse imóvel e meus olhos fechados, virei-os de modo a olhar as pessoas verdes.
Ham era verde. Patricia era verde. Olhei na outra direção. Havia mais um verde, mas ele flutuava entre amarelo claro e verde apagado. Rá! Ambivalente, disse a mim mesma sabiamente. Ainda não era um traidor, mas duvidava da liderança de Alcide. A imagem vacilante pertencia a um jovem macho, e descartei-o como insignificante. Olhei para Annabelle de novo. Ainda cereja, mas tremulando com âmbar enquanto o medo intenso irrompia através de sua lealdade. 
Abri os olhos. O que eu devia dizer — “Peguem eles, são verdes!”? Descobri que estava me movendo, flutuando através da matilha como um balão entre as árvores. Finalmente, fiquei diante de Ham e Patricia. Aqui era onde as mãos seriam úteis. Rá! Isso era engraçado! Ri um pouco. 
— Sookie? — disse Ham. Patricia se encolheu, soltando-se dele. 
— Não vá a lugar algum, Patrícia — eu disse, sorrindo. Ela recuou, pronta para correr, mas uma dúzia de mãos a agarraram e prenderam firmemente. 
Olhei para Ham e coloquei meus dedos em suas bochechas. Se eu tivesse pintura a dedo, ele teria parecido um índio de cinema a caminho da guerra.
— Tão invejoso — falei. — Ham, você disse a Alcide que havia pessoas acampadas no riacho e era por isso que a matilha precisava correr em minha floresta. Você convidou aqueles homens, não foi? 
— Eles... não. 
— Oh, entendo — eu disse, tocando a ponta de seu nariz. — Eu entendo. — Podia ouvir seus pensamentos tão claramente como se estivesse dentro de sua cabeça agora. — Então eles eram do governo. Estavam tentando reunir informação das matilhas Lobis na Louisiana e qualquer coisa ruim que elas pudessem ter feito. Eles pediram que você subornasse um oficial, o segundo em comando. Para descrever todas as coisas ruins que ele fez. Então eles poderiam empurrar aquele projeto de lei, aquele que exigia que todos vocês se registrassem como estrangeiros. Hamilton Bond — que vergonha! Você lhes disse para pressionarem Basim para contar as coisas que o fizeram ser chutado da matilha de Houston. 
— Nada disso é verdade, Alcide — disse Ham. Ele estava tentando parecer o Grande Homem Sério, mas para mim soava como um ratinho guinchando. — Alcide, eu o conheci durante a vida toda. 
— E você achou que Alcide o tornaria seu segundo — falei. — Ao invés disso, ele escolheu Basim, que já possuía um histórico como batedor. 
— Ele foi expulso de Houston — disse Ham. — Por isso era ruim. — A raiva irrompeu, pulsando em preto e dourado. 
— Eu perguntaria a ele e saberia a verdade, mas agora não posso, certo? Porque você o matou e o colocou debaixo da terra fria. — Na verdade, não era tão fria, mas senti que tinha direito a um pouco de licença artística.
Minha mente subia e descia, acima de tudo. Eu conseguia ver tanta coisa! Sentia-me um Deus. Isso era divertido. 
— Eu não matei Basim! Bom, talvez tenha matado, mas foi porque ele estava transando com a namorada de nosso líder! Eu não podia suportar tal deslealdade! 
— Biiip! Tente de novo! — Abanei os dedos sobre suas bochechas. Precisávamos saber de outra coisa, não? Outra pergunta tinha que ser respondida. 
— Ele se encontrou com a criatura em sua floresta em nossa noite de lua — Ham confessou. — Ele, eu não sei o que ele falou. 
— Que tipo de criatura? 
— Eu não sei. Um sujeito. Alguém... nunca vi nada como ele. Era realmente bonito. Como um astro do cinema ou algo assim. Ele tinha cabelos compridos, cabelos longos realmente claros, estava lá num minuto e desapareceu no outro. Ele falou com Basim enquanto Basim estava em sua forma de lobo. Basim estava sozinho. Depois que comemos o cervo, eu dormi do outro lado de alguns arbustos de loureiro. Quando acordei, eu os ouvi conversando. O outro sujeito estava tentando incriminá-la de algo porque você fez alguma coisa para ele. Eu não sei o quê. Basim ia matar alguém, enterrá-lo em sua terra e então chamar os tiras. Isso daria cabo de você, e então a fad... — A voz de Ham se interrompeu. 
— Você sabia que era uma fada — eu disse, sorrindo para Ham. — Sabia. Então decidiu fazer o serviço primeiro. 
— Não era algo que Alcide teria desejado que Basim fizesse, certo, Alcide?
Alcide não respondeu, mas estava pulsando como um foguete em minha visão periférica. 
— E você contou a Patricia. E ela ajudou — falei, acariciando seu rosto. Ele queria me fazer parar, mas não ousava. 
— A irmã dela morreu na guerra! Ela não conseguia aceitar sua nova matilha. Eu fui o único a ser gentil com ela, disse. 
— Ahh, você é tão generoso por ser gentil com uma bela mulher lobisomem — falei zombeteiramente. — Bom, Ham! Ao invés de Basim matar alguém e enterrá-lo, você matou Basim e o enterrou. Ao invés de Basim receber uma recompensa da fada, você achou que ganharia a recompensa. Porque fadas são ricas, certo? — Deixei minhas unhas afundarem em sua bochecha. — Basim queria o dinheiro para se livrar dos sujeitos do governo. Você queria o dinheiro só porque queria. 
— Basim tinha um débito de sangue em Houston — disse Ham. — Basim não teria falado com o pessoal anti-Lobi por nenhuma razão. Eu não posso morrer com essa mentira na alma. Basim queria pagar o débito que devia por matar um humano que era amigo da matilha. Foi um acidente, enquanto Basim estava em forma de lobo. O humano cutucou-o com uma enxada, e Basim o matou. 
— Eu sabia disso — respondeu Alcide. Ele não tinha falado até agora. — Eu disse a Basim que lhe emprestaria o dinheiro. 
— Suponho que ele queria conseguir sozinho — disse Ham, miseravelmente (miséria, eu descobri, era roxo escuro). — Ele achou que se encontraria com a fada novamente, descobriu exatamente o que a fada queria que ele fizesse, conseguir um corpo do necrotério ou o corpo de um bêbado em algum beco e plantar no terreno de Sookie. Isso satisfaria o desejo da fada. Nenhum mal seria feito. Mas, ao invés disso, eu decidi... — Ele começou a soluçar, e sua cor tornou-se um cinza desbotado, a cor da fé perdida.
— Onde você ia encontrá-lo? — eu perguntei. — Para pegar seu dinheiro? Que você mereceu, não estou dizendo o contrário. — Eu estava orgulhosa do quanto estava sendo justa. Justiça era azul, é claro. 
— Eu ia encontrá-lo no mesmo local em sua floresta — ele disse. — No lado sul junto ao cemitério. Mais tarde esta noite. 
— Muito bom — murmurei. — Não se sente melhor agora? 
— Sim — ele respondeu, sem traço de ironia na voz. — Eu me sinto melhor e estou pronto para aceitar o julgamento da matilha. 
— Eu não estou — Patricia chorou. — Eu escapei da morte na guerra das matilhas ao me render. Deixem que eu me renda novamente!
— Ela caiu de joelhos, como Annabelle. — Eu imploro perdão. Sou culpada apenas de amar o homem errado. — Como Annabelle. 
Patricia inclinou a cabeça e sua trança escura caiu sobre um ombro. Ela levou as mãos entrelaçadas ao rosto. Bela como uma pintura. 
— Você não me ama — disse Ham, genuinamente chocado. — Nós transamos. Você estava aborrecida com Alcide porque ele não a escolheu para ir pra cama. Eu estava aborrecido com Alcide porque ele não me escolheu como seu segundo. Isto é a soma total do que tínhamos em comum!
— As cores deles certamente estão ficando brilhantes agora — observei. A paixão da acusação mútua estava reanimando suas auras para algo inflamável. Tentei resumir para mim o que descobri, mas tudo ficou confuso. Talvez Jason pudesse me ajudar a entender mais tarde. Esse negócio de shaman era meio cansativo. Senti que logo seria depauperada, como se o fim de uma raça estivesse à vista. — Hora de decidir — falei, olhando para Alcide, cujo brilho vermelho ainda era firme. 
— Acho que Annabelle devia ser disciplinada, mas não expulsa da matilha — disse Alcide, e houve um coro de protesto. 
— Mate-a! — disse Jannalynn, o rostinho feroz determinado. Ela estava pronta para matar. Imaginei se Sam realmente compreendia no que se meteu ao sair com aquela coisa feroz. Ele parecia tão distante agora.
— Este é meu raciocínio — disse Alcide calmamente. O aposento silenciou enquanto a matilha escutava. — De acordo com eles, — e apontou para Ham e Patricia — a única culpa de Annabelle é moral, por dormir com dois homens ao mesmo tempo enquanto se dizia fiel a um. Nós não sabemos o que ela disse a Basim. 
Alcide dizia a verdade... pelo menos, a verdade como a via. Olhei para Annabelle e a vi por completo: a mulher disciplinada que estava na Força Aérea, a mulher prática que equilibrava a vida na matilha com o resto, a mulher que perdia toda sua praticidade e moderação quando a questão era sexo. Annabelle era um arco-íris de cores agora, nenhuma delas feliz, exceto pela vibrante linha branca de alívio por Alcide não planejar matá-la. 
— Quanto a Ham e Patricia. Ham é o assassino de um membro da matilha. Ao invés de um desafio aberto, ele escolheu o caminho da dissimulação. Isso exigiria punição severa, talvez a morte. Devemos considerar que Basim era um traidor — não apenas membro da matilha, mas segundo oficial, que estava disposto a negociar com alguém de fora, a tramar contra os interesses da matilha e contra o bom nome de uma amiga do bando — Alcide continuou. 
— Oh — eu murmurei para Jason. — Essa sou eu. 
— E Patricia, que prometeu ser leal à sua matilha, rompeu o voto — disse Alcide. — Então deve ser expulsa para sempre. 
— Líder, é misericordioso demais — Jannalynn disse veementemente. — Ham claramente merece a morte por sua deslealdade. Ham, pelo menos. 
Houve um longo silêncio, rompido por um zumbido de discussão crescente. Olhei ao redor da sala, vendo as cores da meditação (marrom, é claro) transformando-se em todos os tipos de tons enquanto as paixões aumentavam. Jason me rodeou com os braços por trás. 
— Você precisa se afastar disso — ele sussurrou, e eu pude ver suas palavras tornarem-se rosas e frisadas. Ele me amava. Coloquei uma mão sobre a boca para não rir em voz alta. Nós nos afastamos; um, dois, três, quatro, cinco passos. Então nos vimos no vestíbulo. 
— Precisamos ir embora — disse Jason. — Se eles vão matar duas garotas bonitas como Annabelle e Patricia, eu não quero ficar por perto para ver. Se não virmos nada, não teremos que testemunhar no tribunal, se isso acontecer. 
— Eles não vão discutir por muito tempo. Acho que Annabelle verá o dia de amanhã. Alcide deixará Jannalynn convencê-lo a matar Ham e Patricia — respondi. — As cores dele me dizem. 
Jason me fitou boquiaberto. 
— Eu não sei o que você tomou, fumou ou cheirou no andar de cima — ele disse — mas precisa sair daqui agora.
— Está bem — eu disse e, de repente, percebi que me sentia muito mal. 
Consegui chegar aos arbustos do lado de fora da casa de Alcide antes de vomitar. Esperei pela segunda onda de náusea antes de arriscar entrar na caminhonete de Jason. 
— O que vovó diria a respeito de eu ir embora antes de ver os resultados do que fiz? — perguntei a ele, triste. — Fui embora depois da guerra dos Lobis, quando Alcide estava celebrando sua vitória. Não sei como vocês panteras celebram, mas acredite, eu não quis ficar por perto quando ele fodeu um dos Lobis. Foi ruim o suficiente ver Jannalynn executar os feridos. Por outro lado... — Perdi a linha de raciocínio com outra onda de náusea, embora essa não tenha sido violenta. 
— Vovó diria que você não é obrigada a assistir pessoas se matando, e você não causou isso, foram eles — Jason respondeu rapidamente. Eu podia notar que meu irmão, apesar de solidário, não estava entusiasmado em me levar para casa com meu estômago tão turbulento. — Escute, posso simplesmente deixá-la na casa de Eric? — ele disse. — Sei que ele tem um ou dois banheiros e desse jeito minha caminhonete pode ficar limpa. 
Sob qualquer outra circunstância, eu teria recusado, já que Eric estava numa situação tão sobrecarregada. Mas eu me sentia trêmula e ainda estava vendo cores. Mastiguei dois antiácidos que peguei do portaluvas e enxagüei repetidamente a boca com uma Sprite que Jason tinha na caminhonete. Tive que concordar que seria melhor se eu pudesse passar a noite em Shreveport. 
— Posso voltar para buscá-la de manhã — Jason ofereceu. — Ou talvez o assistente diurno dele possa lhe dar uma carona para Bon Temps. 
Bobby Burnham ia preferir transportar uma carga de perus. 
Enquanto hesitava, eu descobri que agora que não estava cercada pelos lobisomens, sentia a tristeza fluindo através do vínculo de sangue. Foi a emoção mais forte e ativa que senti de Eric em dias. A miséria começou a aumentar enquanto a infelicidade e a dor física o dominavam. 
Jason abriu a boca para perguntar sobre o que tomei antes da reunião da matilha. 
— Leve-me até Eric — respondi. — Rápido, Jason. Algo está errado. 
— Lá também? — ele disse queixoso, mas nos arrancamos da entrada de Alcide. 
Eu estava praticamente tremendo de ansiedade quando paramos no portão para que Dan, o segurança, pudesse dar uma olhada em mim. Ele não reconheceu a caminhonete de Jason. 
— Estou aqui para ver Eric, e esse é meu irmão — eu disse, tentando agir normalmente. 
— Podem entrar — disse Dan, sorrindo. — Faz algum tempo.
Quando paramos na entrada de Eric, eu vi que a porta da garagem se encontrava aberta, embora a luz estivesse apagada. Na verdade, a casa estava em total escuridão. Talvez todos estivessem no Fangtasia. Não. Eu sabia que Eric estava ali. Simplesmente sabia. 
— Não gosto disso — falei, sentando-me um pouco mais ereta. Lutei contra os efeitos da droga. Apesar de estar um pouco mais normal depois do enjoo, eu ainda sentia que estive experimentando o mundo através de um véu.
— Ele não deixa aberto? — Jason perscrutou por cima do volante. 
— Não, ele nunca deixa aberto. E veja! A porta da cozinha também está aberta. — Saí da caminhonete e ouvi Jason sair pelo lado do motorista. 
As luzes da picape permaneciam automaticamente acesas por alguns segundos, então cheguei à porta da cozinha facilmente. 
Eu sempre batia na porta de Eric se ele não estivesse me esperando, porque nunca sabia quem estaria ali ou o que eles estariam conversando, mas dessa vez eu simplesmente empurrei a porta. Eu podia ver uma curta distância na cozinha por causa das luzes do carro. 
A estranheza fluía numa nuvem, aquela sensação misturada do sentido com o qual nasci e a camada extra de sentidos que a droga dava. Eu estava contente por Jason estar logo atrás de mim. Podia ouvir sua respiração, rápida demais e barulhenta. 
— Eric — eu disse, bem baixinho. 
Ninguém respondeu. Não havia som de qualquer espécie. 
Pisei na cozinha assim que as luzes da caminhonete de Jason se apagaram. Havia postes de luz na rua, e eles forneceram um brilho fraco. 
— Eric? — chamei. — Onde você está? — A tensão fazia minha voz estalar. Algo estava terrivelmente errado. 
— Aqui — ele disse do canto mais distante da casa, e meu coração se apertou. 
— Obrigada, Deus — eu disse, e minha mão se estendeu para o interruptor na parede. Acionei, inundando o aposento de luz. Olhei ao redor. 
A cozinha estava impecável como sempre. Então as coisas terríveis não aconteceram aqui. 
Arrastei-me da cozinha para a grande sala de estar de Eric. Soube imediatamente que alguém morrera ali. Havia manchas de sangue por todo lugar. Algumas ainda estavam frescas. Outras secaram. Ouvi Jason engolir o fôlego. 
Eric estava sentado no sofá, a cabeça entre as mãos. Não havia mais ninguém vivo na sala. Apesar do cheiro de sangue estar quase me sufocando, aproximei-me dele num segundo. 
— Querido? — eu disse. — Olhe para mim. 
Quando ele levantou a cabeça, eu pude ver o terrível corte em sua testa. Ele sangrava copiosamente através da ferida na cabeça. Havia sangue seco por todo seu rosto. Quando ele se endireitou, pude ver o sangue em sua camisa branca. O ferimento na cabeça estava se curando, mas o outro... 
— O que há debaixo da camisa? — falei. 
— Minhas costelas estão quebradas e expostas — ele disse. — Elas vão se curar, mas levará tempo. Você terá que empurrar para colocálas no lugar.
— Conte-me o que aconteceu — falei, tentando desesperadamente parecer calma. Obviamente, ele sabia que eu não estava. 
— Tem um cara morto aqui — Jason gritou. — Humano. 
— Quem é, Eric? — Acomodei seus pés descalços no sofá para que ele pudesse se deitar. 
— É Bobby — ele respondeu. — Tentei tirá-lo daqui a tempo, mas ele tinha tanta certeza de que podia fazer algo para me ajudar. — Eric soava incrivelmente cansado. 
— Quem o matou? — Eu nem escaneei para ver se havia outros seres nesta casa, e quase arfei diante de meu próprio descuido. 
— Alexei enlouqueceu — disse Eric. — Esta noite, ele deixou seu quarto quando Ocella veio até aqui para conversar comigo. Eu sabia que Bobby ainda estava na casa, mas simplesmente não pensei que ele estaria em perigo. Felicia e Pam estavam aqui também. 
— Por que Felicia estava aqui? — perguntei, porque Eric não chamava seus funcionários para vir até sua casa, como regra. Felicia, a bartender do Fangtasia, era a vampira mais inferior na cadeia de comando. 
— Ela estava saindo com Bobby. Ele tinha alguns papéis que eu precisava assinar, e ela só veio junto. 
— Então Felicia...? 
— Parte de resíduos vampiros aqui — Jason gritou. — Parece que o resto se desintegrou. 
— Ela encontrou sua morte final — Eric me disse. 
— Oh, eu sinto muito! — Abracei-o e, após um segundo, seus ombros relaxaram. Eu nunca tinha visto Eric tão derrotado. Mesmo na horrível noite em que fomos cercados pelos vampiros de Las Vegas e forçados a nos render para Victor, a noite em que achou que todos poderiam morrer, ele teve aquela centelha de determinação e força. Mas no momento, ele se encontrava literalmente dominado pela depressão, raiva e incapacidade. Graças ao seu maldito criador, cujo ego exigiu ressuscitar um garoto traumatizado. 
— Onde está Alexei agora? — perguntei, tornando minha voz tão vigorosa quanto possível. — Onde está Appius? Ele ainda se encontra vivo? — Para o inferno com a necessidade dos dois nomes. 
Achei que seria ótimo se Alexei fosse útil o bastante para matar o velho vampiro, me poupando da encrenca. 
— Eu não sei. — Eric soava completamente derrotado.
— Por que não? — Eu estava genuinamente chocada. — Ele é seu criador, meu chapa! Você saberia se ele morresse. Se andei sentindo vocês três durante uma semana, eu sei que você o sentiu com mais força ainda. 
Judith dissera que sentiu um puxão no dia da morte de Lorena, embora não tenha entendido o que significou. Eric vivera por tanto tempo, talvez de fato lhe causasse dor física se Appius morresse. Num instante, reverti completamente meu pensamento. Appius devia viver até Eric se recuperar dos ferimentos. 
— Você precisa sair daqui e ir procurá-lo! 
— Ele me pediu para não segui-lo quando foi atrás de Alexei. Ele não quer que todos morram. 
— Então você simplesmente vai ficar sentado em casa só porque ele disse? Quando não sabe onde eles estão ou o que estão fazendo, ou com quem estão fazendo? — Eu não sabia o que queria que Eric fizesse exatamente. A droga ainda estava fluindo em meu organismo, embora estivesse um pouco mais fraco — eu só estava vendo cores onde não devia, de vez em quando. Mas tinha muito pouco controle sobre meus pensamentos e minha fala. Simplesmente estava tentando fazer Eric agir como Eric. E queria que ele parasse de sangrar. E queria que Jason viesse empurrar os ossos de Eric de volta no lugar, porque eu podia vê-los protuberantes. 
— Ocella me pediu isso — disse Eric, me fuzilando com os olhos. 
— E daí se ele pediu? Isso não parece uma ordem direta para mim. Parece um pedido. Corrija-me se eu estou errada — falei, tão sarcasticamente quanto pude. 
— Não — Eric disse através de dentes cerrados. Podia sentir sua raiva aumentando. — Não foi uma ordem direta. 
— Jason! — eu gritei. Meu irmão apareceu, parecendo muito sombrio. — Por favor, empurre as costelas de Eric de volta no lugar — falei, outra frase que nunca achei que me ouviria dizer. 
Sem uma palavra, mas com a boca rígida, Jason pousou as mãos nas laterais da ferida aberta. Ele olhou para o nariz de Eric e disse: — Pronto? — Sem esperar resposta, ele empurrou. 
Eric fez um ruído terrível, mas notei que o sangramento parou e a cura foi iniciada. Jason fitou as próprias mãos vermelhas e saiu para procurar um banheiro. 
— Bem, e então? — eu disse, entregando a Eric uma garrafa aberta de TrueBlood que foi deixada sobre a mesa de centro. Ele fez uma careta, mas bebeu. — O que você vai fazer? 
— Mais tarde conversaremos sobre isso — ele disse, lançando-me um olhar.
— Por mim tudo bem! — Olhei feio para ele e saí por uma tangente irracional. — E enquanto faz a lista de coisas que devia estar fazendo, onde está a equipe de limpeza? 
— Bobby... — ele começou e então parou bruscamente. 
Bobby teria chamado a equipe de limpeza para Eric. 
— Está bem, que tal eu fazer essa parte — eu disse, me perguntando onde encontrar a agenda telefônica. 
— Ele mantinha uma lista de números importantes na gaveta da direita na escrivaninha em meu escritório — Eric disse em voz baixa. 
Encontrei o nome de um serviço de limpeza vampiro que ficava a meio caminho entre Shreveport e Baton Rouge, Fangster Limpeza. Já que era administrado por vampiros, estariam atendendo. Um homem atendeu o telefone imediatamente e eu descrevi o problema. 
— Chegaremos aí em três horas, se o proprietário da casa puder nos garantir um local de descanso seguro no caso do serviço demorar — ele disse. 
— Sem problema. — Não havia como saber onde estavam os dois outros vampiros residentes ou se eles sobreviveriam para voltar antes do amanhecer. Se voltassem, todos podiam dormir na grande cama de Eric ou no outro quarto escuro, se os caixões fossem necessários. Achei que havia um par feito de fibra de vidro guardado na área da lavanderia também. 
Agora o carpete e a mobília seriam limpos. Só tínhamos que nos certificar para que ninguém mais morresse esta noite. Depois que desliguei, me senti super-eficiente, mas estranhamente vazia, o que atribuí ao fato de ter esvaziado o estômago. Já que estava tão leve, eu flutuava ao caminhar. Okay, talvez eu ainda estivesse mais drogada do que pensei. 
Então subitamente me ocorreu — Eric dissera que Pam estava na casa também. Onde ela estava? 
— Jason — eu gritei — por favor, por favor — encontre Pam. 
Voltei para a sala mal-cheirosa, marchei até as janelas e as abri. Virei para encarar meu namorado que antes dessa noite foi muitas coisas: arrogante, de pensamento rápido, determinado, reservado e difícil, era apenas uma lista curta. 
Mas ele nunca foi indeciso, e nunca esteve desesperado. 
— Qual é o plano? — eu lhe perguntei. 
Ele estava parecendo um pouco melhor agora que Jason agira. Eu não conseguia mais ver nenhum osso. 
— Não existe um — disse Eric, mas pelo menos parecia culpado quanto a isso. 
— Qual é o plano? — perguntei novamente. 
— Eu lhe disse. Não bolei um plano. Não sei o que fazer. Ocella pode estar morto agora, se Alexei foi esperto o suficiente para armar uma cilada para ele. — As lágrimas sangrentas de Eric rolaram por seu rosto.
— Bzzzzt! — Imitei o som de uma campainha tocando. — Você saberia se Appius Livius estivesse morto. Ele é seu criador. Qual é o plano? 
Eric se colocou de pé, com apenas um leve estremecimento. Bom. Cutuquei seu orgulho. 
— Eu não tenho um! — ele rugiu. — Não importa o que eu faça, alguém vai morrer! 
— Sem um plano, alguém vai morrer. E você sabe disso. Alguém provavelmente está morrendo nesse segundo! Alexei é louco! Vamos arquitetar um plano. — Levantei as mãos no ar. 
— Por que você está cheirando estranho? — Ele finalmente percebeu a camiseta com PAZ. — Você cheira a lobisomens e drogas. E ficou doente. 
— Eu já passei pelo inferno esta noite — respondi, talvez exagerando um pouco. — E agora tenho que passar duas vezes, porque alguém tem que colocar seu traseiro viking na estrada. 
— O que eu devia fazer? — ele disse, num tom estranhamente razoável. 
— Então para você tudo bem se Alexei matar Appius? Quero dizer, com certeza por mim tudo bem, mas eu pensava que você discordaria. Acho que estava errada. 
Jason aproximou-se cambaleante. 
— Eu encontrei Pam — disse. Ele subitamente sentou-se numa poltrona. — Ela precisava de sangue. 
— Mas ela está se mexendo? 
— Bem mal. Ela está cortada, suas costelas foram chutadas para dentro, o braço esquerdo e a perna direita estão quebrados. 
— Oh, Deus — respondi, correndo para encontrá-la. Eu definitivamente não estive pensando direito por causa das drogas, ou ela teria sido minha prioridade principal assim que encontrei Eric vivo. Ela começou a se arrastar para a sala vindo do banheiro, onde Alexei evidentemente a prendera. Os cortes de faca eram os ferimentos mais óbvios, mas Jason acertara sobre os ossos quebrados. E isso depois de tomar o sangue de Jason. 
— Não diga nada — ela resmungou. — Ele me pegou de surpresa. Eu sou... tão... estúpida. Como está Eric? 
— Ele vai ficar bem. Posso ajudá-la a levantar? 
— Não — ela respondeu amarga. — Prefiro me arrastar pelo assoalho. 
— Cadela — eu disse, agachando-me para ajudá-la. Foi uma tarefa difícil, mas já que Jason doou tanto sangue a Pam, eu detestava lhe pedir ajuda. Cambaleamos até a sala de estar. 
— Quem teria pensado que Alexei podia fazer tanto estrago? Ele é tão frágil e você é uma grande lutadora. 
— Elogios — ela disse, a voz irregular — não são eficazes neste ponto. Foi minha culpa. O merdinha estava seguindo Bobby e eu o vi pegar uma faca da cozinha. Tentei encurralá-lo num canto enquanto Bobby saía da casa. Para dar a Ocella uma chance de acalmar o garoto. Mas ele veio para cima de mim. É rápido como uma cobra. 
Eu estava começando a duvidar que conseguiria levar Pam até o sofá. Eric levantou-se vacilante e rodeou-a com o braço. Entre nós, conduzimos Pam até o sofá que ele deixou vago. 
— Você precisa do meu sangue? — ele lhe perguntou. — Agradeço-a por fazer seu melhor para detê-lo. 
— Ele é meu parente também — disse Pam, recostando-se numa almofada com alívio. — Através de você, estou ligada àquele pequeno assassino. — Eric fez um gesto com o pulso. — Não, você precisa de todo o seu sangue se vai atrás dele. Estou me curando. 
— Já que tomou alguns goles de mim — disse Jason fracamente, com um eco da sua arrogância habitual. 
— Foi bom. Obrigada, pantera — ela disse, e achei que meu irmão havia dado um pequeno sorriso afetado; mas nesse instante, o celular dele tocou. Eu conhecia aquele ring tone; era de uma música que ele adorava, “We Are the Champions” do Queen. Jason tirou o celular do bolso e o abriu.
— Oi — ele disse, e então escutou. — Você está bem? — perguntou. 
Ele escutou mais um pouco. 
— Okay. Obrigado, querida. Fique dentro de casa, tranque as portas e não atenda até ouvir minha voz. Espere, espere! Até ouvir meu celular! Está bem? 
Jason desligou e fechou o celular. 
— Era Michele — disse. — Alexei acabou de aparecer em minha casa, me procurando. Ela atendeu a porta, mas quando viu que era um morto, não o convidou para entrar. Ele disse a ela que quer se aquecer em minha vida, o que quer que isso signifique. Ele me rastreou de sua casa até a minha pelo cheiro. — Jason pareceu embaraçado, como se estivesse com medo de ter esquecido de passar desodorante. 
— O velho foi atrás dele? — perguntei. Inclinei-me contra uma prática parede. Estava começando a me sentir realmente exausta. 
— Sim, um minuto depois. 
— O que Michele lhes disse? 
— Ela disse para irem até sua casa. Imaginou que, se eram vampiros, eles eram problemas seus. — Aquela era Michele, certo. 
Meu celular estava na caminhonete de Jason. Usei o dele para ligar para minha casa. Claude atendeu. 
— O que você está fazendo aí? — falei. 
— Nós fechamos às segundas — ele disse. — Por que você ligou se não queria que eu atendesse?
— Claude, há um vampiro muito ruim se dirigindo para a casa. E ele pode entrar, já esteve aí antes — falei. — Você tem que sair. Entre em seu carro e saia. 
A ruptura psicótica de Alexei mais a atração dos vampiros pelo fae Claude: Esta era uma combinação fatal. A noite aparentemente ainda não tinha acabado. Imaginei se terminaria. Por um terrível momento, vi um pesadelo infinito ao vagar de crise em crise, sempre um passo atrás. 
— Dê-me suas chaves, Jason — falei. — Você não está em condições para dirigir depois de sua doação de sangue, e Eric ainda está se curando. Eu não quero dirigir o carro dele. — Meu irmão pescou as chaves do bolso e jogou-as para mim, e fiquei grata por alguém não discutir. 
— Eu vou junto — disse Eric, levantando-se mais uma vez. Pam fechara os olhos, mas os abriu ao perceber que estávamos saindo. 
— Está bem — eu disse, já que aceitaria qualquer ajuda que pudesse conseguir. Até um Eric fraco era mais forte do que quase qualquer coisa. Contei a Jason sobre a equipe de limpeza que estava vindo, e então saímos pela porta até a caminhonete com Pam ainda reclamando que, se a carregássemos, ela se recuperaria no caminho. 
Eu dirigi, e dirigi rápido. Não havia razão para perguntar se Eric podia voar para chegar lá mais rápido, porque eu sabia que não podia. 
Eric e eu não conversamos no caminho. Ou tínhamos coisas demais a dizer, ou não havia o suficiente. Quando estávamos a cerca de quatro minutos de distância da casa, Eric curvou-se de dor. Não era dele. Recebi um resquício dela. Algo grande aconteceu. Entramos como um foguete pela entrada da minha casa menos de quarenta e cinco minutos depois de deixarmos Shreveport, o que era muito bom. 
A luz de segurança em meu pátio iluminava uma cena estranha. Uma fada de cabelos claros que eu nunca vi antes se encontrava posicionado na retaguarda de Claude. Aquele que eu não conhecia possuía uma espada longa e fina. Claude estava com duas de minhas facas de cozinha mais compridas, uma em cada mão. Alexei, que parecia estar desarmado, os rodeava como uma pequena máquina de matar branca. Ele estava nu e coberto de respingos, todos em tons de vermelho. Ocella jazia esparramado no cascalho. Sua cabeça estava coberta de vermelho escuro. Aquele parecia ser o tema da noite. 
Derrapamos numa parada e saímos da caminhonete de Jason. Alexei sorriu, então sabia que estávamos ali, mas não parou de circular. 
— Vocês não trouxeram Jason — ele falou alto. — Eu queria vê-lo. 
— Ele teve que dar muito sangue a Pam para impedir que ela morresse — eu disse. — Estava fraco demais. 
— Ele devia tê-la deixado morrer — Alexei disse, lançando-se sob a espada para dar um forte soco no estômago da fada desconhecida.
Embora Alexei tivesse uma faca, ele parecia estar se sentindo brincalhão. A fada brandiu a espada, mais rápido do que meus olhos podiam perceber, e arranhou Alexei, acrescentando outro fluxo ao sangue que já escorria de seu peito. 
— Pode parar, por favor? — perguntei. Eu cambaleei porque parecia ter gasto minha energia. Eric colocou o braço ao meu redor. 
— Não — disse Alexei numa voz aguda de menino. — O amor de Eric por você está fluindo através de nosso vínculo, Sookie, mas eu não consigo parar. Não me sentia tão bem há décadas. — Ele se sentia maravilhoso; eu podia sentir isso através do vínculo. Embora as drogas tivessem temporariamente amortecido, agora eu sentia nuances, e havia tal quantidade contraditória delas que era como estar parada sob um vento que ficava mudando de direção. 
Eric estava tentando nos conduzir até onde seu criador jazia. 
— Ocella — ele disse — está vivo? 
Ocella abriu um olho negro por trás da máscara de sangue. Ele disse: — Pela primeira vez em séculos, acho que desejava não estar. 
Acho que eu desejava que você não estivesse também, pensei, e o senti olhar para mim. — Ela me matará sem remorso, essa aí — disse o romano, quase soando divertido. No mesmo tom, falou: — Alexei rompeu minha coluna vertebral e, até que se cure, não serei capaz de me mexer. 
— Alexei, por favor, não mate as fadas — eu disse. — Esse é meu primo Claude, e não me restam muitos familiares. 
— Quem é o outro? — o garoto perguntou, dando um incrível salto para puxar o cabelo de Claude e passar sobre a outra fada, cuja espada não foi rápida o suficiente dessa vez. 
— Eu não tenho ideia — respondi. Comecei a acrescentar que ele não era amigo meu e provavelmente seria um inimigo, já que entendi que era aquele que conspirou com Basim, mas não queria ver mais ninguém morrendo... exceto possivelmente Appius Livius. 
— Eu sou Colman — a fada gritou. — Sou um fae do céu, e meu filho está morto por sua causa, mulher! 
Ah. 
Esse era o pai do bebê de Claudine. 
Quando os braços de Eric me soltaram, tive que lutar para ficar de pé. Alexei fez uma de suas corridas aceleradas até o círculo de lâminas, socando a perna de Colman com tanta força que a fada quase caiu. Perguntei-me se a perna de Colman quebrou. Mas enquanto Alexei estava perto, Claude conseguiu esfaqueá-lo por trás e feri-lo num ponto logo abaixo do ombro. Teria matado o garoto se ele fosse humano. 
Como aconteceu, Alexei quase escorregou no cascalho, mas conseguiu se equilibrar nos pés e seguir em frente. Vampiro ou não, o garoto estava se cansando. Eu não ousei desviar os olhos para ver o que Eric estava fazendo, onde se encontrava. 
Tive uma ideia. Sob aquele ímpeto, corri até a casa, embora não tenha conseguido fazê-lo em linha reta, tendo que parar para respirar a caminho dos degraus da varanda. 
Numa gaveta na mesinha de cabeceira se encontrava a corrente de prata que peguei há tanto tempo atrás quando os drenadores sequestraram Bill por causa de seu sangue. Agarrei a corrente, tornei a sair da casa com ela escondida na mão atrás das costas, e aproximei-me dos três combatentes — porém mais perto do dançante e rodopiante Alexei. Mesmo durante esse período curto em que saí, ele parecia ter ficado um pouco mais lento — mas Colman encontrava-se apoiado num joelho. 
Eu detestava meu plano, mas isso tinha que parar. 
Na vez seguinte em que o garoto passou, eu estava pronta com um bom comprimento da corrente que apertava com ambas as mãos. Levantei os braços e então baixei, parte da corrente pousando ao redor do pescoço de Alexei. Cruzei as mãos e puxei. Então Alexei caiu no chão gritando e, um instante depois, Eric estava lá com o galho de árvore que cortara. Ele levantou os braços e baixou. Um segundo depois disso, Alexei, o czarevich da Rússia, encontrou sua morte final. 
Eu ofeguei, porque estava exausta demais para chorar, e desabei no chão. As duas fadas gradualmente relaxaram suas posturas de luta.
Claude ajudou Colman a se levantar, e ambos colocaram as mãos um no ombro do outro. 
Eric permaneceu entre mim e as fadas, mantendo um olho vigilante sobre eles. Colman era meu inimigo, sem dúvida, e Eric estava sendo cauteloso. Tirei vantagem do fato de ele não estar olhando para mim para puxar a estaca de Alexei e engatinhar até o incapacitado Appius. Ele observou minha aproximação com um sorriso. 
— Eu quero matá-lo agora mesmo — eu disse baixinho. — Quero muito que esteja morto. 
— Já que você parou de falar comigo, sei que não fará isso. — Ele disse aquilo com total confiança. — Você também não ficará com Eric. 
Queria provar que ele estava errado de ambas as formas. Mas já houve tanta morte e sangue naquela noite. Eu vacilei. Então levantei o pedaço de galho. Pela primeira vez, Appius pareceu um pouco preocupado — ou talvez estivesse simplesmente resignado. 
— Não — Eric disse. 
Eu ainda podia ter feito aquilo se não houvesse súplica em sua voz. 
— Sabe o que você realmente poderia fazer para ajudar, Appius Livius? — indaguei. 
Houve um grito de Eric. Os olhos de Appius Livius se desviaram de mim e o senti dizer para me mover. Dei um impulso para o lado com cada grama de força restante em meu corpo. A espada destinada a mim atingiu Appius Livius em cheio, e era uma lâmina fae. O romano entrou em convulsão instantaneamente, enquanto a área ao redor do ferimento escurecia com chocante rapidez. Colman, que esteve olhando para sua vítima de assassinato acidental com olhos chocados, enrijeceu e seus ombros se inclinaram para trás. Ele começou a cair para frente, e notei que havia um punhal entre eles. Eric empurrou o trêmulo Colman para longe. 
— Ocella! — Eric gritou, terror em sua voz. De repente, Appius Livius se imobilizou. 
— Bem, certo — falei cansada, virando a cabeça pesada para ver quem arremessou a faca. Claude olhava as duas lâminas, ainda em suas mãos, como se esperasse ver uma desaparecer. 
Ficamos perplexos. 
Eric agarrou o Colman ferido e grudou em seu pescoço. Fadas são incrivelmente atraentes para vampiros — isto é, o sangue — e Eric tinha um grande motivo para matar essa fada. Ele não estava se contendo e era bem nojento. Os goles, o sangue escorrendo do pescoço de Colman, seus olhos vidrados... Ambos tinham os olhos vidrados, eu percebi. Os de Eric estavam cheios de sede de sangue, e os olhos de Colman estavam se tornando cheios de morte. Colman estava enfraquecido demais por causa dos vários ferimentos para lutar contra Eric. Eric ficava mais rosado a cada segundo. 
Claude aproximou-se mancando para sentar na grama ao meu lado. Ele largou as facas cuidadosamente no chão perto de mim, como se eu estivesse exigindo que as devolvesse. 
— Eu estava tentando convencê-lo a ir para casa — disse meu primo. — Só o vi uma ou duas vezes. Ele tinha um esquema elaborado para colocá-la numa prisão humana. Planejava matá-la até que a viu com a criança Hunter no parque. Ele pensou em eliminar a criança, mas mesmo com raiva não podia fazer isso. 
— Você se mudou para me proteger — eu disse. Aquilo era incrível, vindo de alguém tão egoísta como Claude. 
— Minha irmã amou você — disse Claude. — Colman gostava de Claudine e estava muito orgulhoso por ela tê-lo escolhido como pai de seus filhos.
— Imagino que ele era um dos seguidores de Niall. — Ele dissera que era uma das fadas do céu. 
— Sim. “Colman” significa “pombo”. 
Não fazia qualquer diferença agora. Eu sentia muito por ele. 
— Ele tinha que saber que nada que eu dissesse teria impedido Claudine de fazer o que ela considerava ser certo — falei. 
— Ele sabia — Claude admitiu. — Foi por isso que não conseguiu se convencer a matá-la, mesmo antes de ter visto a criança. É por isso que conversou com o lobisomem, tramou um plano tão indireto. — Ele suspirou. — Se Colman estivesse realmente convencido de que você causou a morte de Claudine, nada o teria impedido. 
— Eu o teria impedido — disse uma nova voz, e Jason saiu da floresta. Não, era Dermot. 
— Okay, você jogou a faca — respondi. — Obrigada, Dermot. Você está bem? 
— Eu espero... — Dermot olhou para nós, suplicante. 
— Colman o enfeitiçou — observou Claude. — Ao menos, acho que sim. 
— Ele disse que você não possuía muita magia — falei a Claude. — Ele me contou sobre o feitiço, tanto quanto podia contar. Achei que devia ter sido a outra fada, Colman, quem o lançou. Mas já que Colman está morto, eu teria pensado que o feitiço estaria quebrado. 
Claude franziu o cenho. — Dermot, então não foi Colman quem lançou o feitiço? 
Dermot afundou no chão diante de nós. 
— Tanto tempo atrás — ele disse, de modo implícito. Meditei sobre aquilo por um momento. 
— Ele foi enfeitiçado há muito tempo atrás — eu disse, finalmente sentindo uma pequena pontada de entusiasmo. — Você está dizendo que foi enfeitiçado meses atrás? 
Dermot segurou minha mão com sua esquerda e pegou a mão de Claude na direita. 
Claude disse: — Acho que ele quer dizer que esteve enfeitiçado por muito tempo. Talvez anos. — Lágrimas rolaram pelas bochechas de Dermot. 
— Eu aposto uma grana que foi Niall — respondi. — Ele provavelmente teve tudo planejado em sua cabeça. Dermot merecia, eu não sei, por ser rigoroso sobre a herança fada ou algo assim. 
— Meu avô é muito amoroso, mas não muito... tolerante — disse Claude. 
— Você sabe como eles desfazem feitiços nos contos de fadas? — falei. 
— Sim, eu ouvi falar que humanos leem contos de fadas — Claude respondeu. — Então, conte-me como eles quebram feitiços. 
— Nos contos de fadas, um beijo serve. 
— Fácil fazer — disse Claude e, como se tivéssemos praticado beijo sincronizado, nós nos inclinamos para frente e beijamos Dermot. 
E funcionou. Ele estremeceu por completo, então olhou para nós dois, a inteligência inundando seus olhos. Ele começou a chorar a sério e, após um momento, Claude ajoelhou-se e ajudou Dermot a levantar. 
— Vejo-a daqui a pouco — disse. E então conduziu Dermot para dentro da casa.
Eric e eu ficamos sozinhos. Ele tinha afundado sobre o traseiro a uma pequena distância dos três corpos em meu pátio. 
— Isto é positivamente Shakespeariano — falei, olhando ao redor para os restos e o sangue encharcando a terra. 
O corpo de Alexei já estava se desintegrando, mas muito mais lentamente do que de seu velho criador. Agora que Alexei encontrara sua morte final, os ossos patéticos em seu túmulo na Rússia também desapareceriam. Eric jogara o corpo da fada no cascalho, onde começou a se transformar em poeira, do modo como acontecia com as fadas. Era bem diferente da desintegração vampira, mas tão conveniente quanto. Percebi que não teria três corpos para esconder. Eu estava tão cansada da soma total de um dia verdadeiramente horrível que encontrei um momento feliz nas últimas poucas horas. Eric parecia e cheirava a algo saído de um filme de terror. Nossos olhos se encontraram. Ele desviou o rosto primeiro. 
— Ocella me ensinou tudo a respeito de ser um vampiro — disse Eric em voz bem baixa. — Ele me ensinou como me alimentar, como me esconder, quando era seguro misturar-se com humanos. Ele ensinou como fazer amor com homens, e mais tarde me libertou para fazer amor com mulheres. Ele me protegeu e amou. Causou-me dor por décadas. Ele me deu a vida. Meu criador está morto. — Ele falava como se mal acreditasse, não sabia como se sentir. Seus olhos demoraram-se na massa desintegrada de flocos que foi Appius Livius Ocella. 
— Sim — eu disse, tentando não soar feliz. — Ele está. E eu não o matei.
— Mas você teria — disse Eric. 
— Eu estava pensando a respeito — falei. Não havia razão para negar. 
— O que você ia pedir a ele? 
— Antes de Colman esfaqueá-lo? — Apesar de “esfaquear” dificilmente ser a palavra correta. “Transpassar” era mais exato. Sim, “transpassar”. Meu cérebro estava se movendo como uma tartaruga. — Bom — falei. — Eu ia dizer que ficaria feliz em deixá-lo viver se ele matasse Victor Madden para você. 
Eu surpreendi Eric, tanto quanto alguém arrasado como ele podia ser surpreendido. 
— Isso teria sido bom — ele respondeu lentamente. — Era uma boa ideia, Sookie. 
— É, bem. Não vai acontecer. 
— Você estava certa — Eric disse, ainda naquele tom bem lento. — Isso é igual ao fim de uma daquelas peças de Shakespeare. 
— Somos as pessoas que ficaram em pé. Viva a nós. 
— Estou livre — Eric disse. Ele fechou os olhos. Graças aos últimos traços da droga, eu podia praticamente observar o sangue de fada fluir por seu organismo. Podia ver seu nível de energia se elevando. Tudo fisicamente errado com ele tinha se curado, e agora com a torrente de sangue de Colman, ele estava se esquecendo da dor pelo irmão e por seu criador, e sentindo apenas o alívio de estar livre deles. — Sinto-me tão bem. 
Ele de fato inspirou o ar noturno, ainda poluído com os odores de sangue e morte. Ele parecia saborear o cheiro. 
— Você é minha querida — ele disse, os olhos azuis maníacos. 
— Fico feliz em ouvir isso — respondi, totalmente incapaz de sorrir. 
— Tenho que voltar para Shreveport e tratar de Pam, organizar as coisas que devo fazer agora que Ocella está morto — disse Eric. — Mas assim que eu puder, nós estaremos juntos de novo e compensaremos o tempo perdido. 
— Parece bom para mim — eu disse. Estávamos mais uma vez sozinhos em nosso vínculo, apesar de não ser tão forte quanto antes, porque não o renovamos. Mas eu não ia sugerir isso a Eric, não esta noite. Ele levantou o rosto, inspirou novamente e lançou-se para o céu noturno. 
Quando todos os corpos se desintegraram completamente, eu me levantei e entrei na casa, sentindo como se cada músculo de meus ossos pudesse desabar de cansaço. Disse a mim mesma que devia sentir certo grau de triunfo. Eu não estava morta; meus inimigos sim. Mas no vazio deixado pela droga, senti apenas certa satisfação sombria. Pude ouvir meu tio-avô e meu primo conversando no banheiro do corredor, e água correndo, antes de fechar a porta do meu próprio banheiro. Depois que tomei banho e fiquei pronta para a cama, abri a porta para o quarto e os encontrei esperando por mim. 
— Queremos deitar com você — disse Dermot. — Nós todos dormiremos melhor. 
Aquilo parecia incrivelmente esquisito e arrepiante para mim — ou talvez só tenha pensado que devia ser. Simplesmente estava cansada demais para discutir. Subi na cama. Claude ocupou um lado e Dermot o outro. Justo quando estava pensando que nunca seria capaz de dormir, que essa situação era estranha e errada demais, senti uma espécie de alegre relaxamento passar pelo meu corpo, uma espécie de conforto desconhecido. Eu estava com família. Estava com sangue.  E dormi.

 

 

                                                                                                    Charleine Harris

 

 

 

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