Esperei pelo vampiro durante anos, até que, um dia, ele entrou no bar. Desde que os vampiros começaram a “sair do caixão” (como se dizia, por gozação) quatro anos atrás, eu tinha a esperança de que algum deles aparecesse em Bon Temps. Tínhamos todas as minorias em nossa cidadezinha — por que não teríamos a mais nova, os mortos-vivos agora legalmente reconhecidos? Mas o norte caipira da Louisiana, na verdade, não era muito sedutor para vampiros, ao que parecia; por outro lado, Nova Orleans era um centro legítimo para eles — por causa daquela coisa toda de Anne Rice, certo? A distância entre Bon Temps e Nova Orleans não é assim tão grande, e todos que vinham ao bar diziam que, se você jogasse uma pedra numa esquina daqui, acertaria um lá. Embora fosse mais sensato não fazer isso. Mas eu esperava pelo meu próprio vampiro. Pode-se notar que não saio muito. E não é porque eu não seja bonita. Eu sou. Sou loura, de olhos azuis, tenho 25 anos, minhas pernas são fortes e meu peito é volumoso, e tenho uma cinturinha de vespa. Eu fico bem no uniforme de verão de garçonete que Sam estabeleceu para nós: calções pretos, camiseta branca, meias brancas, Nikes pretos. Mas eu tenho um inconveniente. É como eu tento definir esta coisa. Os fregueses de bar afirmam que sou louca. Em todo caso, o resultado é que eu quase nunca arranjo um namorado. Portanto, pequenas amabilidades fazem uma grande diferença para mim. E ele sentou-se numa de minhas mesas — digo, o vampiro. Saquei imediatamente o que ele era. Espantou-me que ninguém mais ao redor tivesse se virado para olhar. As pessoas não notavam! Mas, para mim, a pele dele tinha um pequeno brilho, e reconheci a sua condição no ato.
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A alegria foi tanta que eu poderia dançar, e de fato ensaiei um passo caminhando pelo bar. Sam Merlotte, meu chefe, ergueu o olhar da bebida que estava preparando e deu-me um sorrisinho. Apanhei minha bandeja e a toalha e rumei na direção da mesa do vampiro. Tinha a esperança de que meu batom estivesse ainda firme e que meu rabo-de-cavalo não tivesse saído do lugar. Eu sou meio ansiosa, e sentia meu sorriso puxando os cantos de minha boca para cima. Ele parecia perdido em seus pensamentos, e eu tive oportunidade de dar uma boa olhada nele de alto a baixo antes que erguesse os olhos. Ele tinha pouco menos que l,82m, calculei. Tinha cabelos castanho-escuros bem espessos, penteados diretamente para trás e chegando à gola de sua camisa, e suas longas costeletas pareciam curiosamente fora de moda. Naturalmente, era pálido; claro, ora, pois estava morto, se você acredita naquelas velhas histórias. A teoria politicamente correta, aquela que os vampiros defendiam em público, é que a criatura era vítima de um vírus que a deixava aparentemente morta por alguns dias e, portanto, alérgica à luz do sol, prata e alho. Os detalhes variavam conforme os jornais que você lesse. Eles andavam cheios de matérias sobre vampiros, ultimamente. De qualquer modo, seus lábios eram adoráveis, esculpidos com perfeição, e ele tinha sobrancelhas escuras e arqueadas. Seu nariz descia aquilino daquele arco, como o de um príncipe num mosaico bizantino. Quando ele por fim ergueu o olhar, vi que seus olhos eram mais escuros que seus cabelos, e o branco deles era incrivelmente branco. — Em que posso lhe servir? — eu perguntei, feliz além da conta. Ele arqueou as sobrancelhas. —Você tem sangue sintético engarrafado? — perguntou. — Não, lamento muito! Sam encomendou um pouco. Vai chegar na próxima semana. — Então, me sirva um pouco de vinho tinto, por favor — ele disse, e sua voz era fria e clara, como a água de um riacho deslizando sobre pedras. Eu dei uma grande risada. Era perfeito demais.
— Não ligue pra Sookie, senhor, ela é louca — disse uma voz familiar que vinha da mesa junto à parede. Toda a minha felicidade se desfez, embora eu pudesse sentir ainda o sorriso repuxando meus lábios. O vampiro olhava diretamente para mim, observando a vida que se esvaía do meu rosto. — Trago seu vinho num instante — eu disse, e me afastei, sem nem mesmo olhar para o rosto presunçoso de Mack Rattray. Ele vinha ao bar quase todas as noites, ele e sua mulher, Denise. Eu os chamava de Casal Rato. Tinham se esforçado ao máximo para me fazer mal desde que se mudaram para um trailer de aluguel em Four Tracks Corner. Eu alimentava a esperança de que se mudassem de Bon Temps tão repentinamente como tinham chegado. Quando apareceram pela primeira vez no bar de Sam Merlotte, eu ouvi suas idéias com má vontade — bem sei, foi baixeza de minha parte. Fiquei aborrecida como todo mundo, e embora eu passe a maior parte do tempo tentando bloquear as idéias que outras pessoas tentam enfiar em minha cabeça, às vezes eu as deixo entrar. Portanto, fiquei sabendo sobre os Rattrays algumas coisas que creio que mais ninguém sabia. Por exemplo, que tinham passado uns tempos na cadeia, embora eu não soubesse por quê. Outra coisa foi que li os pensamentos sujos que Mack Rattray tinha a meu respeito. E ouvi então, nos pensamentos de Denise, que ela abandonara um bebê que tivera havia alguns anos, um bebê que não era filho de Mack. E eles não eram de dar gorjeta, também. Sam encheu um copo com o vinho tinto da casa, olhando para a mesa do vampiro enquanto o punha sobre minha bandeja. Quando Sam voltou a olhar para mim, notei claramente que ele também sabia que nosso novo freguês era um morto-vivo. Os olhos de Sam são tão azuis quanto os do Paul Newman, em contraste com meus olhos azuis de um cinzento apagado. Sam é louro também, mas seu cabelo é encaracolado e seu tom de louro se aproxima a um vermelho-ouro cor de brasa. Ele está sempre um pouco queimado de sol, e embora pareça magro nas roupas que usa, eu o vi muitas vezes descarregar grandes pesos dos caminhões de transporte, e ele tem muita força em seus membros superiores. Eu nunca ouço os pensamentos de Sam. Porque ele é meu chefe. Tive que me demitir de vários de meus empregos anteriores porque descobria coisas que não queria saber sobre meus chefes. Mas Sam não fez comentário algum sobre o vampiro, ele apenas me passou o vinho. Examinei o copo para ter certeza de que estava radiosamente limpo e rumei de volta para a mesa do vampiro. — Seu vinho, senhor — eu disse cerimoniosamente, e coloquei o copo de forma cuidadosa na mesa, bem em frente a ele. Ele me olhou novamente, e eu encarei seus belos olhos, aproveitando a chance. — Espero que goste — eu disse orgulhosamente. Mack Rattray gritou atrás de mim: — Ei, Sookie! Precisamos de um outro jarro de cerveja aqui! Suspirei, resignada, e virei-me para levar o jarro vazio que estava na mesa dos Ratos. Denise estava em ótima forma nessa noite, notei, usando um traje de frente única e calções curtos, sua massa de cabelos castanhos arrumada na cabeça em elegantes emaranhados. Denise não era bonita, na verdade, mas era tão vistosa e confiante que a gente demorava um pouco para notar isso. Um pouquinho depois, para meu desgosto, notei que os Rattrays tinham se mudado para a mesa do vampiro. Estavam conversando com ele. Não pude ver se ele estava respondendo com entusiasmo, mas ele tampouco saiu da mesa. — Olhe para aquilo! — eu disse, com desagrado, para Arlene, minha colega de trabalho. Arlene é ruiva, sardenta e dez anos mais velha que eu, e foi quatro vezes casada. Ela tem dois filhos, e, de vez em quando, acho que me considera o terceiro.
— Cara nova no pedaço, hem? — ela disse, com pouco interesse. Arlene, atualmente, está namorando Rene Lenier, e embora eu não entenda o que viu nele, ela parece bem satisfeita. Eu acho que Rene foi seu segundo marido. — Oh, ele é um vampiro — eu disse, porque precisava compartilhar com alguém a minha grande satisfação. — É mesmo? Aqui? Bem, imagine só — ela disse, sorrindo um pouco para demonstrar que estava gostando de ver a satisfação que eu sentia. — Mas, benzinho, ele não deve ser muito brilhante, se está conversando com os Ratos. Por outro lado, Denise está se assanhando para o lado dele de um modo descarado. Depois do comentário de Arlene foi que me dei conta do fato; ela é muito melhor que eu para avaliar situações sexuais, devido à sua experiência no assunto, algo que não tenho. O vampiro estava faminto. Eu sempre fora informada de que o sangue sintético que os japoneses tinham criado mantinha os vampiros satisfatoriamente nutridos, mas não satisfazia realmente a sua fome, motivo pelo qual aconteciam uns “Incidentes Lamentáveis” de vez em quando. (Era o eufemismo vampírico para o sanguinário assassinato de um ser humano.) E ali estava Denise Rattray, mostrando a sua garganta, exibindo seu pescoço de ponta a ponta... que grande piranha! Meu irmão, Jason, entrou no bar, e deu uma voltinha para vir me dar um abraço. Ele sabe que as mulheres gostam de um homem que se mostra carinhoso com a família e gentil com os deficientes, portanto, ele me dar um abraço era uma dupla recomendação automática. Não que Jason precise de mais trunfos do que já tem. Ele é bonitão. Ele pode ser rude, também, mas a maior parte das mulheres parece querer ansiosamente ignorar isso. — Ei, mana, como vai a vovó? — Ela está bem, como sempre. Apareça pra vê-la. — Prometo que vou. Quem está disponível hoje?
— Verifique você mesmo. Percebi que, quando Jason começou a lançar olhares ao redor, houve um alvoroço entre as mulheres, que foram ajeitando seus cabelos, blusas e lábios. — Ei. Vejo a DeeAnne ali. Ela está livre? — Ela está com um caminhoneiro de Hammond. Ele foi ao banheiro. Tome cuidado. Jason sorriu para mim, e eu me espantei com o fato de as outras mulheres não notarem o egoísmo que havia naquele sorriso. Até a Arlene se aprumou em sua camiseta quando Jason entrou, e, depois de passar por quatro maridos, ela bem que devia saber analisar um pouco melhor os homens. A outra garçonete com quem eu trabalhava, Dawn, jogou seu cabelo para a frente e aprumou a sua espinha para que seus seios ficassem empinados. Jason lançou para ela um aceno amigável. Ela fez um ar de desprezo. Está louquinha pelo Jason, mas quer que seja ele a tomar a iniciativa. Fiquei realmente atarefada — todo mundo aparece no bar do Merlotte no sábado à noite por algumas horas — portanto, perdi meu vampiro de vista por uns momentos. Quando depois consegui uma brecha para dar uma olhada para ele, ainda estava conversando com Denise. Mack estava olhando para ele com uma expressão tão ávida que cheguei a ficar preocupada. Aproximei-me da mesa deles, olhando fixamente para Mack. Finalmente, deixei minha guarda baixar e escutei. Mack e Denise tinham sido presos precisamente por drenar vampiros. Apesar de profundamente irritada, carreguei automaticamente um jarro de cerveja e alguns copos para uma mesa de quatro pessoas que reclamavam, gritando. Desde que o sangue do vampiro fora tido como capaz de aliviar temporariamente os sintomas de algumas doenças e aumentar a potência sexual, mais ou menos como juntar prednisona e Viagra numa fórmula só, surgira um enorme mercado negro de sangue de vampiro genuíno, não-diluído. Onde há mercado, há fornecedores; nesse caso, deduzi, os fornecedores seriam aquele vil Casal Rato. Pegavam os vampiros numa armadilha e depois os drenavam, vendendo os pequenos frascos de sangue a mais ou menos 200 dólares cada. Tinha sido a droga mais procurada, ao menos nos últimos dois anos. Alguns consumidores enlouqueciam depois de beber puro sangue de vampiro, mas o problema não chegava a atrapalhar o mercado. Em geral, o sangue drenado não durava muito. Os drenadores deixavam os vampiros mortos com estacas ou simplesmente jogavam-nos a céu aberto. Quando o sol surgia, já era. De tempos em tempos, a gente lia sobre uma reviravolta quando os vampiros conseguiam escapar. Aí, eram os drenadores que morriam. Agora meu vampiro estava se levantando da mesa e saindo junto com os Ratos. Mack olhou para mim, e eu o vi claramente assustado com a expressão com que se deparou em meu rosto. Ele virou-se, dando de ombros para mim, como todo mundo. Isso me deixou furiosa. Realmente furiosa. O que é que eu deveria fazer, diante daquilo? Enquanto lutava comigo mesma, eles saíam pela porta. O vampiro acreditaria em mim se eu corresse atrás deles e lhe contasse a verdade? Ninguém acreditaria. E, se alguém acreditasse, me odiaria e teria horror de mim por ser capaz de ler os pensamentos ocultos nas mentes humanas. Arlene me pedira para ler a mente de seu quarto marido quando numa certa noite ele aparecera para pegá-la, porque achava com certeza que ele estava pensando em abandonála, e abandonar os filhos também, mas eu não a atendi porque queria manter a única amiga que eu tinha. E mesmo Arlene não fora capaz de me pedir diretamente, porque isso seria admitir que eu tinha este dom, esta maldição. As pessoas não queriam admitir o fato. Preferiam pensar que eu era louca. O que eu realmente quase me tornava, de vez em quando! Portanto, fiquei agitada, confusa e assustada, furiosa, e aí tive a certeza de que precisava entrar em ação. Eu fora picada por aquele olhar que Mack lançara sobre mim — como se eu fosse uma coisinha desprezível. Cruzei o bar na direção de Jason, e fui até onde ele estava tentando seduzir DeeAnne. Ela não demorava muito para ser seduzida, segundo se dizia. O caminhoneiro de Hammond estava com uma expressão fula da vida do outro lado. — Jason — eu disse com urgência. Ele virou-se para me dar um olhar de censura feroz. — Ouça, aquela corrente ainda está lá atrás da sua picape? — Nunca saio de casa sem ela — ele disse preguiçosamente, seus olhos esquadrinhando meu rosto à procura de sinais de algum problema. — Você vai brigar com alguém, Sookie? Sorri para ele, tão acostumada a soltar risadas que aquilo foi fácil. — Eu lhe asseguro que não — disse animadamente. — Ei, você está precisando de alguma ajuda? Afinal, ele era meu irmão. — Não, obrigada — eu disse, tentando parecer tranqüila. E fui rapidamente na direção de Arlene. — Ouça, preciso sair um pouquinho. Minhas mesas estão meio vazias, você pode dar uma olhada por mim? Eu não pensei que nunca tinha pedido uma coisa dessas a Arlene, embora a houvesse substituído muitas vezes. Ela, também, ofereceu-me ajuda. — Está tudo em ordem — eu disse. — Voltarei assim que puder. Se você cuidar de minha parte, prometo faxinar o seu trailer. Arlene fez um sinal afirmativo com sua cabeleira vermelha euforicamente. Apontei para a porta de serviço, para mim mesma, e fiz o que pude com meus dedos, para dizer a Sam que eu estava saindo. Ele assentiu. Mas não pareceu lá muito feliz. Portanto, fui me retirando, tentando fazer com que meus pés não fizessem muito barulho no cascalho. O estacionamento dos empregados fica nos fundos do bar, depois de uma porta que leva à despensa. O carro do cozinheiro estava ali, e também o de Arlene, o de Dawn e o meu. À minha direita, ao leste, a picape de Sam estava estacionada em frente a seu trailer. Eu saí da área de estacionamento de cascalho em direção à área de asfalto que cobria o estacionamento de fregueses, que era maior, no lado oeste do bar. Árvores cercavam a clareira onde ficava o bar de Merlotte, e as bordas do estacionamento eram, na maior parte, de cascalho. Sam o mantinha bem iluminado, e o clarão surrealista das luminárias altas do estacionamento fazia tudo parecer um tanto estranho. Eu vi o esburacado carro esporte vermelho do Casal Rato, por isso sabia que estavam por perto. Finalmente, encontrei o carro de Jason. Era preto com espirais de água-marinha e cor-de-rosa pintadas sob encomenda nos dois lados. Estava na cara que ele gostava de aparecer. Pulei pela porta de trás e me pus a fuçar em sua cama, à procura da corrente, um grosso colar de anéis que ele carregava consigo em caso de briga. Eu a enrolei e a carreguei presa ao meu corpo, para que não fizesse barulho. Refleti por um momento. O único lugar deserto no meio do caminho para o qual os Rattrays poderiam ter atraído o vampiro era o fim do estacionamento, onde as árvores chegam a despencar sobre os carros. Portanto, me movi furtivamente naquela direção, tentando me movimentar rápida e silenciosamente. Eu parava a todo momento e me punha a escutar. Logo ouvi um gemido e sons abafados de vozes. Serpenteei entre os carros, e localizei-os bem onde supunha que eles estariam. O vampiro estava jogado de costas no chão, a face contorcida de agonia, e o brilho de correntes irradiava de seus pulsos, chegando até os seus tornozelos. Prata. Já havia dois pequenos frascos de sangue no chão, ao lado dos pés de Denise, e, enquanto eu olhava, ela já preparava um novo coletor com a agulha. O torniquete abaixo do cotovelo do vampiro apertava cruelmente seu braço.
O casal estava de costas para mim, e o vampiro ainda não tinha me visto. Eu soltei a corrente enrolada e um bom pedaço dela se estendeu livremente. Quem eu deveria atacar primeiro? Os dois eram mesquinhos e viciosos. Lembrei-me da despedida desdenhosa de Mack e do fato que ele nunca tinha me deixado uma gorjeta. Mack primeiro. Eu nunca me envolvera numa briga. De algum modo, eu de fato estava esperando ansiosamente por uma ocasião assim. Saltei de trás da picape e balancei a corrente. Ela bateu com força nas costas de Mack, que estava ajoelhado junto à sua vítima. Ele gritou e levantou-se, imediatamente. Depois de lançar um olhar para trás, Denise começou a enfiar a terceira injeção. A mão de Mack desapareceu em sua bota e voltou com um brilho diferente. Ele tinha pegado uma faca. — Opa — eu disse, e dei uma risada para ele. — Sua piranha louca! — ele gritou. Sua voz soava como se ele estivesse ansioso por fazer uso daquela faca. Eu estava envolvida demais para manter minha guarda, e tive um claro vislumbre do que Mack queria fazer comigo. Isso me deixou realmente louca da vida. Eu fui na direção dele com plena intenção de ferilo o mais que pudesse. Mas ele estava preparado para me rechaçar e pulou para a frente com a faca enquanto eu balançava a corrente. Ele tentou cortar o meu braço e falhou. A corrente, ao enroscar, envolveu seu pescoço descarnado como uma amante. O grito de triunfo de Mack transformou-se num gorgolejo. Sua faca caiu e ele agarrou os elos da corrente com as duas mãos. Perdendo o fôlego, ele desabou no pavimento duro, puxando a corrente de minhas mãos. Bem, lá se foi a corrente do Jason. Eu me abaixei rapidamente e apanhei a faca de Mack, segurando-a de um modo que parecesse que eu sabia como usá-la. Enquanto isso acontecia, Denise se movia desajeitadamente, parecendo uma bruxa primária a se agitar nas zonas de luz e sombra das lâmpadas.
Ela interrompeu seus movimentos quando notou que eu estava com a faca de Mack. Ela zangou-se, rogou pragas e disse coisas terríveis. Esperei até que ela acabasse para dizer: — Cai fora. Já. Denise me olhou como se quisesse perfurar minha cabeça com seu ódio. Tentou apanhar os frascos de sangue, mas eu sibilei para que não mexesse neles. Daí, ela ergueu Mack. Ele ainda estava fazendo sons de engasgo e gorgolejo e segurando a corrente. Denise praticamente o arrastou para o carro e o empurrou para o lado do banco do carona. Puxando algumas chaves de seu bolso, ela entrou para sentar-se ao volante. Quando ouvi a máquina rugir, repentinamente percebi que os Ratos tinham agora uma outra arma nas mãos. Mais rápido do que tinha me movimentado até aquele momento, corri para erguer a cabeça do vampiro e disse a ele, ofegante: — Vamos, levante-se. Peguei-o por debaixo de seus braços e puxei-o com todas as minhas forças, e ele entendeu, firmou seus braços e fez força. Nós estávamos bem na linha das árvores quando o carro vermelho veio rugindo sobre nós. Denise falhou por um triz ao ter que desviar para evitar uma colisão com um pinheiro. Então ouvi o grande motor do carro dos Ratos recuar lá longe. — Caramba — eu suspirei, e me agachei junto ao vampiro porque meus joelhos já não agüentavam mais. Respirei fundo por uns momentos, tentando me recuperar. O vampiro se movimentou um pouquinho, e eu dei-lhe uma olhada. Para meu horror, vi pequenos feixes de fumaça saindo de seus pulsos onde a prata os ferira. — Oh, coitadinho — eu disse, furiosa comigo mesma por não ter notado isso a princípio. Ainda tentando recuperar o fôlego, comecei a soltar as finas amarras de prata, que pareciam fazer parte de uma longa corrente. — Pobre querido — eu murmurei, não parando para pensar senão mais tarde o quanto aquilo podia parecer incongruente. Tenho dedos ágeis, e soltei seus pulsos bem rapidamente. Pensava em como os Ratos teriam distraído o vampiro enquanto se preparavam para amarrá-lo, e eu me sentia avermelhar ao imaginar a cena. O vampiro aninhou os braços em seu peito enquanto eu me ocupava em desamarrar suas pernas. Seus tornozelos não tinham sido afetados, já que os drenadores não tinham se preocupado em subir suas calças jeans e colocar a prata direto sobre sua pele. — Lamento muito não ter chegado aqui mais depressa — eu disse, como pedido de desculpa. — Você vai se sentir melhor rapidinho, está bem? Quer que eu vá embora? — Não. Aquilo fez com que eu me sentisse muito bem, até que ele acrescentou: — Eles podem voltar, e eu não estou em condições de reagir ainda. Sua voz fria era desigual, mas eu não podia dizer com certeza se o ouvira ofegar. Fiz careta, e enquanto ele se recuperava, tomei algumas precauções. Sentei-me de costas para ele, dando-lhe alguma privacidade. Sei como é desagradável ter alguém nos olhando fixo quando estamos feridos. Eu me agachei no chão, mantendo um olho vigilante no estacionamento. Vários carros saíram, e outros chegaram, mas nenhum veio até nós pelo lado do mato. Pelo movimento do ar em torno de mim, percebi quando o vampiro se levantou. Ele não falou de imediato. Eu virei minha cabeça para a esquerda e olhei para ele. O vampiro estava mais perto do que eu pensava. Seus grandes olhos negros olhavam bem dentro dos meus. Seus caninos estavam retraídos; fiquei um pouco desapontada com isso. — Obrigado — ele disse friamente.
Portanto, não estava lá muito empolgado por ter sido salvo por uma mulher. Macho típico. Já que ele estava sendo tão ingrato, achei que podia fazer algo bem grosseiro, também, e decidi ouvir o que ele pensava, abrindo minha mente por completo para a escuta. E ouvi... absolutamente nada. — Oh — eu disse, ouvindo o choque em minha própria voz, mal sabendo o que dizia. — Eu não posso ouvir você. — Obrigado! — o vampiro disse, mexendo seus lábios com exagero. — Não... Ouvir você falar eu posso, mas não... — e, na minha excitação, fiz algo que comumente nunca faria, porque era atrevido, e pessoal, e revelava o quanto eu era esquisita. Virei-me para ele por completo e pus minhas mãos nos dois lados de seu rosto lívido, e olhei-o com firmeza. Eu o focalizei com todas as minhas forças. Nada. Era como alguém que tivesse sempre ouvido rádio, selecionando as estações que queria, e que de repente ligasse numa faixa que não podia captar. Era o próprio paraíso. Seus olhos iam ficando maiores e mais escuros, embora ele se mantivesse absolutamente imóvel. — Oh, me desculpe — eu disse, com uma voz embargada. Afastei minhas mãos e voltei a fazer vigilância do estacionamento. Comecei a tagarelar sobre Mack e Denise, pensando o tempo todo como seria maravilhoso ter um companheiro que eu não pudesse escutar a menos que ele quisesse falar em voz alta. Como seria belo seu silêncio. — ...então, pensei que seria melhor eu sair lá do bar para ver como você estava — eu concluí, sem ter idéia do que acabara de dizer. — Você veio aqui para me salvar. Foi corajoso da sua parte — ele disse numa voz tão sedutora que teria feito DeeAnne tirar tremendo suas calcinhas vermelhas de náilon.
— Vamos esquecer isso — eu disse com acidez, pondo a coisa bem terra-a-terra abruptamente. — Você não tem medo de ficar sozinha com um vampiro faminto? — ele perguntou, com alguma coisa ao mesmo tempo travessa e ameaçadora em sua voz. — Nenhum. — Você está supondo que, já que veio aqui para me salvar, está segura agora, que eu carrego um pouquinho de sentimentalismo depois desses anos todos? Vampiros geralmente ferram aqueles que confiam neles. Não temos valores humanos, como você sabe. — Um monte de seres humanos ferram os que confiam neles — eu repliquei. Posso ser muito prática. — Não sou uma tola completa. Ergui meu braço e virei meu pescoço. Enquanto ele se recuperava, eu passara as correntes do Casal Rato em volta deles. Ele tremeu visivelmente. — Mas vejo uma artéria suculenta em sua virilha — ele disse, depois de uma pausa para juntar as idéias e se fortalecer, a voz tão escorregadia como a de uma serpente que deslizasse. — Não me venha com sujeiras — eu disse a ele. — Não vou ouvir esse papo. Novamente olhamos um para o outro em silêncio. Tinha medo de nunca mais revê-lo; afinal, sua primeira visita ao bar do Merlotte não tinha sido exatamente bem-sucedida. Por isso, eu tentava absorver todos os detalhes da situação que pudesse; guardaria esse encontro como um tesouro e o lembraria por muito, muito tempo. Era raro, era um prêmio. Eu queria tocar a sua pele outra vez. Não me lembrava bem como ela era. Mas isso seria ultrapassar certo código de boas maneiras, e também seria talvez estimulá-lo a exercer manobras de sedução novamente. — Você gostaria de beber o sangue que eles recolheram? — ele perguntou inesperadamente. — Seria uma maneira de demonstrar minha gratidão a você.
Ele apontou para os frascos tamponados que estavam jogados no asfalto: — Meu sangue pode melhorar sua vida sexual e sua saúde. — Sou sadia como um cavalo — eu disse a ele, francamente. — E não tenho vida sexual de que possa falar. Faça com o sangue o que você achar melhor. — Você poderia vendê-lo — ele sugeriu, mas eu pensei que ele estava apenas querendo ver o que eu diria a respeito do assunto. — Eu nem tocaria nele — disse, ofendida. — Você é diferente — ele disse. — Que espécie de coisa você é? Ele parecia estar revolvendo em sua cabeça uma lista de possibilidades para detectar quem eu era, pelo jeito como olhava para mim. Para minha satisfação, eu não conseguia escutar nenhuma delas através de meu poder. — Bem. Sou Sookie Stackhouse, uma garçonete — eu disse a ele. — Qual é seu nome? — achei que poderia perguntar a ele sem parecer abusada. — Bill — ele disse. Antes que eu pudesse me conter, caí de costas com uma risada. — O vampiro Bill! — eu disse. — Pensei que poderia ser Antoine, ou Basil, ou Langford! Mas, Bill! Há muito tempo eu não ria tanto. — Bem, até mais, Bill. Tenho que voltar pro trabalho. Senti que o riso tenso retornava, ao pensar que tinha que voltar ao bar de Merlotte. Pus a mão no ombro de Bill e me levantei. Estava pesada como pedra, e fiquei em pé tão rapidamente que tive que me segurar para não cair. Examinei minhas meias para me certificar de que estavam no lugar exato, e olhei meu uniforme de alto a baixo para ver se havia sinais e rasgos resultantes da briga com os Ratos. Tirei o pó de minhas nádegas, já que estivera sentada no chão sujo, e acenei para Bill ao começar a me afastar em direção ao estacionamento.
Tinha sido uma noite estimulante, cheia de alimento para reflexão. Senti-me tão animada quanto meu sorriso quando me pus a refletir sobre isso. Mas Jason ficaria fulo da vida pela perda da corrente.
Depois do trabalho daquela noite, peguei o carro e fui para casa, que fica a apenas seis quilômetros e meio ao sul do bar. Jason havia saído (e DeeAnne também) quando eu voltara ao serviço, e isso fora outra coisa boa daquela noite. Eu estava repassando a noite mentalmente enquanto guiava meu carro em direção à casa de minha avó, onde eu morava. É logo antes do cemitério de Tall Pines, que fica ao fim de uma estreita estrada municipal de duas pistas. Meu tataravô tinha erguido a casa, e ele tinha idéias bem próprias sobre as questões de privacidade, portanto, para chegar a ela, você tinha que desviar-se da estrada municipal pegando um atalho único, percorrer o interior de algumas florestas, e aí parar numa clareira onde a casa ficava. Claro que ela não é nenhum marco histórico, já que a maioria de seus compartimentos antigos foi demolida e refeita ao longo dos anos, e claro que ela conta com eletricidade, encanamento e isolação, todos esses confortos modernos. Mas ainda tem um telhado de zinco que reluz, ofuscante, nos dias de sol. Quando o teto precisou ser refeito, quis colocar nele telhas comuns, mas minha avó não permitiu. Embora eu estivesse pagando pela reforma, a casa é dela; portanto, naturalmente, continuou sendo de zinco. Histórica ou não, vivo naquela casa desde os 7 anos, e eu a visitava muito antes disso, portanto, eu a amo. Era apenas o lar de uma velha e grande família, grande demais para Vovó e eu, suponho. Tinha uma frente ampla, coberta por uma varanda protegida por biombo, e era pintada de branco, sendo Vovó a completa tradicionalista que era. Entrei pela grande sala de visitas, cheia de uma mobília surrada que nos servia, e desci o corredor em direção ao quarto à esquerda, que era o maior da casa.
Adele Hale Stackhouse, minha avó, estava recostada em sua cama de cabeceira alta, com quase um milhão de travesseiros almofadando seus ombros descarnados. Ela estava usando uma camisola de noite com longas mangas, mesmo que a noite de primavera fosse bem quente, e a lâmpada ao lado da cabeceira ainda estava acesa. Havia um livro em seu colo. — Olá — eu disse. — Olá, querida. Minha avó é muito pequena e muito velha, mas seu cabelo é ainda abundante, e tão branco que quase tem o mais apagado dos matizes de verde. Ela o usa liso e preso durante o dia, mas à noite costuma deixá-lo solto ou trançado. Eu olhei para a capa do livro em seu colo. — A senhora está lendo Danielle Steele outra vez? — Oh, essa mulher sabe contar uma história. Os grandes prazeres de minha avó eram ler Danielle Steele, ver suas telenovelas (que ela chamava de suas “estórias”) e freqüentar reuniões dos vários clubes a que pertencera, ao que parecia, em toda a sua vida adulta. Seus clubes favoritos eram os dos Descendentes dos Mortos Gloriosos e da Sociedade de Jardinagem de Bon Temps. — Não está pensando no que foi que aconteceu comigo nesta noite? — eu lhe perguntei. — Quê? Arranjou um namorado? — Não — eu disse, esforçando-me por manter um sorriso no rosto. — Um vampiro apareceu lá no bar. — Ooh, ele tinha caninos afiados? Eu os tinha visto brilhando à luz das lâmpadas do estacionamento quando os Ratos estavam drenando-o, mas não havia necessidade de descrever a coisa para a Vovó. — Sim, mas estavam contraídos. — Um vampiro bem aqui em Bon Temps. — Vovó estava tão encantada quanto excitada. — Ele mordeu alguém no bar?
— Oh, não, Vó! Ele só ficou numa mesa lá e tomou um copo de vinho tinto. Bem, ele pediu um, mas não tomou. Eu acho que só queria um pouco de companhia. — Fico pensando onde ele estará morando. — Ele não parecia do tipo que conta uma coisa dessas para alguém. — Não — Vovó disse, refletindo um momento sobre aquilo. — Acho que não. Você gostou dele? Isso sim era uma pergunta difícil. Fiquei pensando nela um pouco. — Não sei. Ele era realmente interessante — eu disse, com cautela. — Eu gostaria mesmo de conhecê-lo. — Eu não me surpreendia com Vovó dizendo isso, porque ela realmente adorava novidades tanto quanto eu. Ela não era um desses reacionários que tinham concluído que os vampiros eram danações por vontade própria. — Mas é melhor eu dormir agora. Eu estava só esperando você chegar para apagar a minha luz. Eu me curvei para dar um beijo na Vovó, e disse: — Durma bem. Encostei sua porta à saída, e ouvi o som da lâmpada que ela apagou. Minha gata, Tina, surgiu do lugar qualquer em que estivesse dormindo para se esfregar em minhas pernas, e eu a peguei e a afaguei um pouquinho, antes de colocá-la do lado de fora, como era hábito de toda noite. Dei uma olhadinha no relógio de parede. Eram quase duas da madrugada, e a cama me chamava. Meu quarto era bem em frente ao quarto de Vovó. Quando o usei pela primeira vez, depois que meus pais morreram, Vovó trouxe a mobília da minha casa paterna, para que eu me sentisse mais à vontade. E ali continuava ela, a simples cama e o toucador pintados de branco, e a pequena cômoda. Acendi minha própria luz, fechei a porta e comecei a me despir. Eu tinha pelo menos cinco pares de calções pretos e muitas, muitas camisetas brancas, já que elas tendiam a ficar manchadas tão facilmente. Sem contar os muitos pares de meias brancas que estavam enrolados em minha gaveta.
Portanto, eu não tinha que fazer uma limpeza nessa noite. Eu estava cansada demais para tomar banho. Mas, escovei meus dentes e limpei a maquiagem do meu rosto, passei alguma mistura nutriente de pele, e soltei o meu cabelo. Arrastei-me para a cama usando minha camiseta favorita de dormir, com estampa de Mickey Mouse, que quase chega a meus pés. Deitei de lado, como sempre, e desfrutei do silêncio do quarto. A mente de todo mundo está quase apagada nas horas mortas da noite, e as vibrações se vão, e as intrusões não têm que ser repelidas. Dispondo de tal paz, só tive tempo para pensar nos olhos escuros do vampiro, e depois caí num sono profundo de exaustão.
No dia seguinte, pela hora do almoço, eu estava em minha espreguiçadeira de alumínio dobrável no pátio da frente, pegando um pouco de bronzeado. Eu vestia meu biquíni branco sem alça favorito, que estava um pouco mais folgado que no último verão, por isso eu estava tão satisfeita quanto excitada. Foi quando ouvi um veículo chegando pela estrada, e a picape de Jason com seus ornamentos cor-de-rosa e água-marinha irrompeu pouco além dos meus pés. Jason pulou do volante — será que eu disse que a picape era daquelas com pneus altos? — para se aproximar de mim. Estava usando suas roupas habituais de trabalho, calças e camisa caqui, e trazia sua faca na bainha, como a maior parte dos trabalhadores da estrada municipal. Só pelo modo como vinha andando, sabia que ele estava furioso. Coloquei meus óculos escuros. — Por que você não me contou que bateu nos Rattrays ontem à noite? — Meu irmão jogou-se sobre a cadeira de alumínio do pátio ao lado de minha espreguiçadeira. — Onde está a Vovó? — ele perguntou, atrasado. — Pendurando roupa lavada — eu disse.
Vovó usava a secadora de vez em quando, mas ela gostava na verdade era de pendurar as roupas úmidas ao sol. Claro que o varal ficava na parte dos fundos, onde os varais costumam ficar. — Ela está preparando bife à moda da terra e batatas-doces e feijões verdes que guardou do ano passado, para o almoço — acrescentei, sabendo que isso iria distrair um pouco a atenção de Jason. Esperava que a Vovó ficasse lá nos fundos. Não queria que ela ouvisse essa conversa. — Fale baixo — eu o alertei. — Rene Leiner não conseguiu esperar até eu chegar ao trabalho hoje cedo para vir me contar. Ele dirigia à frente do trailer dos Rattray ontem à noite para comprar alguma erva, e Denise dirigia como se quisesse matar alguém. Rene disse que ele quase foi morto, de tão louca de raiva que ela estava. Precisou que ele e Denise colocassem Mack no trailer, e eles levaram o cara para o hospital em Monroe. — Jason olhava para mim, ferozmente, de modo acusador. — Rene contou a você que Mack veio para cima de mim armado com uma faca? — eu perguntei, concluindo que atacar seria a melhor maneira de lidar com isso. Eu percebi que a bronca de Jason era em grande parte devido ao fato de que soubera a notícia pela boca de uma outra pessoa. — Se Denise contou a Rene, ele não me disse isso — Jason disse lentamente, e vi seu rosto bonito escurecer de raiva. — Ele foi para cima de você com uma faca? — Sim, não fiz mais que me defender — eu disse, bem prosaicamente. — E ele levou sua corrente. Tudo isso era verdade, mesmo que um pouco enviesada. — Eu voltei para lhe contar — continuei —, mas no momento em que cheguei ao bar, você tinha saído com a DeeAnne, e já que eu estava bem, não parecia necessário ir atrás de você. Eu sabia que você se sentiria obrigado a ir atrás dele se eu lhe contasse sobre a faca — acrescentei, diplomaticamente. Havia um monte de verdade a mais nessa história, já que Jason dá a vida por uma briga.
— Que diabo você estava fazendo lá? — ele perguntou, mas tinha relaxado, e eu sabia que estava engolindo a minha explicação. — Você sabia que, além de vender drogas, os Ratos são drenadores de vampiros? Agora ele estava fascinado. — Não... É mesmo? — Bem, um de meus fregueses ontem à noite era um vampiro, e eles estavam secando o cara no estacionamento do bar do Merlotte! Eu não pude suportar aquilo. — Tem um vampiro aqui em Bon Temps? — Tem, sim. Mesmo que você não queira um vampiro para seu melhor amigo, você não pode deixar gente escrota como os Ratos tirarem sangue dele. Não é como tirar gasolina de um carro. E eles iam deixar o cara lá no mato para morrer. Embora os Ratos não tivessem me revelado as suas intenções, eu apostava que fariam isso. Mesmo que eles o tivessem posto num lugar fechado para que sobrevivesse à luz do dia, um vampiro drenado levava no mínimo umas vinte horas para se recuperar, ao menos era o que alguém dissera lá no programa da Oprah. E isso se um outro vampiro cuidasse dele. — O vampiro estava no bar quando eu também estava lá? — Jason perguntou, fascinado. — Ã-hã. O cara de cabelos escuros que estava sentado com os Ratos. Jason riu de meu epíteto para os Rattrays. Mas ele não queria deixar de falar da noite anterior, ainda. — Como você sabia que era um vampiro? — ele perguntou, mas quando olhou para mim, notei que ele preferia ter mordido a língua a fazer essa pergunta. — Eu sabia, simplesmente — disse, em minha voz mais indiferente. — Certo. E, depois, ficamos os dois num silêncio embaraçoso.
— Homulka não tem um vampiro — Jason disse, pensativamente. Ergueu seu rosto para apanhar o sol, e eu percebi que tínhamos saído daquele terreno perigoso. — É verdade — eu concordei. Homulka era a cidade que Bon Temps amava odiar. Tínhamos sido rivais no futebol, no basquetebol e na significação histórica das gerações. — Nem Roedale tem — Vovó disse atrás de nós, e eu e Jason nos sobressaltamos. Em reconhecimento a Jason, digo que ele se levanta e dá um abraço toda vez que vê a avó. — Vó, a senhora tem comida o bastante no forno para mim? — Para você e mais dois — Vovó disse. Nossa avó sorria para Jason. Ela não era cega aos defeitos dele (ou aos meus), mas o amava. — Acabo de receber um telefonema de Everlee Mason. Ela estava me contando que você ficou grudado na DeeAnne ontem à noite. — Cara, oh, cara, a gente não pode fazer nada nesta cidade sem ser visto — Jason disse, mas ele não estava realmente irritado. — Aquela DeeAnne — Vovó disse, num tom de advertência, enquanto entrávamos todos em casa —, toda vez que alguém me fala dela, está grávida. Você tome cuidado para ela não engravidar de você, ou vai pagar por isso pelo resto de sua vida. Claro, deve ser a única maneira de eu conseguir alguns bisnetos! Vovó já estava com a comida pronta na mesa, portanto, assim que Jason tirou o chapéu, nós nos sentamos e fizemos a oração de graças. Então, Vovó e Jason começaram a fofocar um com o outro (embora chamassem a coisa de “ficar informados”) sobre o pessoal de nossa pequena cidade e paróquia. Meu irmão trabalhava para o Estado, supervisionando equipes de trabalhadores de estrada. Parecia-me que Jason passava o dia dirigindo uma picape estatal, cronometrando o trabalho, e pelas noites zoava com sua própria picape pela cidade. Rene era um dos trabalhadores daquelas turmas que Jason supervisionava, e os dois tinham freqüentado a escola juntos. Eles também circulavam bastante pela cidade com Hoyt Fortenberry. — Sookie, eu tive que recolocar o aquecedor de água quente na casa — Jason disse de repente. Ele mora na velha casa dos meus pais, aquela em que vivíamos quando eles morreram numa inundação causada por chuva repentina. Passamos a viver com a Vovó depois dessa tragédia, mas, quando Jason terminou seus dois anos de colégio e foi trabalhar para o Estado, ele voltou a morar na casa, que, no papel, é metade minha. — Você precisa de algum dinheiro pra pagar isso? — perguntei. — Não, eu tenho. Nós dois temos cada qual o seu salário, mas temos também uma pequena renda proveniente de um fundo estabelecido quando um poço de petróleo foi perfurado na propriedade de meus pais. Ele secou em poucos anos, mas meus pais e a Vovó fizeram prudentemente com que o dinheiro fosse investido. Poupou-nos de uma porção de sofrimentos, aquele reforço. Eu não sei como Vovó poderia ter-nos criado se aquele dinheiro não existisse. Ela estava determinada a não vender nenhum pedaço de terra, mas sua renda própria não vai além daquela fornecida pela previdência social. Essa é a razão pela qual não compro um apartamento. Se eu fizer compras morando com ela, isso lhe parecerá aceitável; mas se fizer compras, trouxer à sua casa e deixá-las na sua mesa e voltar para o meu próprio lar, parecerá caridade e a deixará fula da vida. — Que tipo de aquecedor você adquiriu? — perguntei a Jason, só para mostrar interesse. Ele estava ansioso por me contar aquilo; Jason é fanático por eletrodomésticos, e ele queria descrever sua pesquisa de compras do novo aquecedor de água em detalhes. Eu o ouvi com o máximo de atenção que pude dispensar. De repente, ele interrompeu a descrição. — Ei, Sook, você se lembra da Maudette Pickens?
— Claro — eu disse, surpresa. — Nós nos formamos na mesma turma. — Alguém matou Maudette em seu apartamento a noite passada. Vovó e eu ficamos de orelhas em pé. — Quando? — Vovó perguntou, espantada por ainda não ter sabido a novidade. — Eles acabaram de achá-la agora de manhãzinha em seu quarto. Seu chefe tentou telefonar para saber por que ela não tinha aparecido no serviço ontem e hoje e não teve resposta, daí foi para lá e acordou o zelador, e eles arrombaram o lugar. Vocês sabem que o apartamento dela é bem em frente ao de DeeAnne? Bon Temps conta com apenas um complexo de apartamentos digno de nota, um agrupamento em forma de U com três edifícios de dois andares, portanto, sabíamos exatamente o que a revelação de Jason significava. — Ela foi assassinada lá mesmo? Eu me sentia mal. Lembrava-me claramente de Maudette. Ela tinha queixo proeminente e bunda quadrada, cabelos bem pretos e ombros robustos. Ela sempre foi meio “devagar”, sem inteligência ou ambição. Pensei que me lembrava bem dela trabalhando no Grabbit Kwik, um posto de gasolina com uma loja de conveniência. — Sim, ela estava trabalhando lá faz pelo menos um ano, eu acho — Jason confirmou. — Como foi que isso aconteceu? — Minha avó tinha aquela expressão ansiosa, vê-se-conta-logo, com que as boas pessoas pedem notícias ruins. — Ela tinha umas marcas de vampiro nas...han...nas coxas — meu irmão disse, cabisbaixo, desviando os olhos para o prato. — Mas não foi isso que a matou. Ela foi estrangulada. DeeAnne me contou que Maudette gostava de freqüentar aquele bar de vampiros em Shreveport quando tinha uns dias de folga, daí, deve ter sido lá que ela pegou as marcas. Pode não ter sido o vampiro amigo de Sookie. — Maudette era uma vampiróíila? — Eu me sentia enjoada, imaginando a lenta, gordinha Maudette metida nos trajes negros exóticos que a turma dos vampirófilos gostava de usar. — Que negócio é esse? — perguntou Vovó. Ela devia ter perdido o programa de Sally-Jessy no dia em que o fenômeno fora abordado. — São homens e mulheres que andam por aí com os vampiros e gostam de ser mordidos. Tietes de vampiro. Eles não chegam a durar muito, eu acho, porque querem ser mordidos demais, e cedo ou tarde encontram um que morde além da medida. — Mas uma mordida não matou a Maudette. — Vovó queria ter certeza de que tinha entendido a coisa direito. — Não mesmo, foi estrangulamento — Jason estava terminando o seu almoço. — Você não põe gasolina sempre lá no posto Grabbit? — perguntei. — Claro. Eu e um monte de gente. — E você já não andou saindo com a Maudette, não? — Vovó perguntou. — Bem, de certo modo... — Jason disse, cautelosamente. Interpretei essa resposta como querendo dizer que ele levava Maudette para a cama quando não encontrava coisa melhor. — Espero que o xerife não queira interrogar você — Vovó disse, balançando a cabeça como se fazer o sinal de não tornasse a coisa menos provável. — O quê? — Jason estava ficando vermelho, parecendo defensivo. — Você vê Maudette no posto toda vez que vai lá abastecer, você sai com ela “de certo modo”, e daí ela aparece morta num apartamento que você já conhece bem — resumi.
Não era muita prova, mas era alguma coisa, e havia tão poucos homicídios misteriosos em Bon Temps que eu achava que todas as pedras acabariam sendo viradas na investigação da morte de Maudette. — Não sou o único que enche o tanque lá. Muitos caras passam pelo posto, e todos eles conhecem Maudette. — Sim, mas em que sentido? — Vovó perguntou rudemente. — Ela não era uma prostituta, era? Então, ela devia falar naturalmente dos sujeitos com quem saía. — Ela só gostava de se divertir, não era uma profissional. — Era bom da parte de Jason assumir a defesa de Maudette, considerando o que eu já sabia de sua natureza egoísta. Comecei a pensar melhor a respeito de meu grande irmão. — Acho que ela era um pouquinho solitária — ele acrescentou. Jason olhou para nós duas, então, e viu que estávamos surpresas e comovidas. — Falando de prostitutas — ele disse, impetuosamente —, tem uma lá em Monroe que é especializada em vampiros. Ela deixa um cara vigiando com uma estaca em caso de algum fugir. Ela bebe sangue sintético para manter seu fornecimento de sangue em dia. Foi uma bela mudança de assunto, e então Vovó e eu tentamos pensar em alguma pergunta que pudéssemos fazer sem parecermos indecentes. — Quanto será que ela cobra? — aventei, e quando ele nos falou dos números sobre os quais fora informado, nós duas engasgamos. Desde que tínhamos desviado do tópico do assassinato de Maudette, o almoço transcorreu como sempre, com Jason olhando para seu relógio de pulso e exclamando que tinha que sair bem na hora em que era preciso lavar a louça. Mas a mente de Vovó ficou ainda divagando sobre a questão dos vampiros, como descobri depois. Ela entrou em meu quarto mais tarde, quando eu estava me maquiando para sair para trabalhar.
— Quantos anos você calcula que o vampiro, esse que você conheceu, pode ter? — Não tenho idéia, Vó. Eu estava pondo o meu rimei, olhando com os olhos arregalados e tentando me manter imóvel para que o rimei não caísse neles, portanto, minha voz soou esquisita, como se eu estivesse fazendo um teste para um filme de horror. — Você supõe que... ele poderá lembrar-se da Guerra? Eu não precisava perguntar a que Guerra ela se referia. Afinal, Vovó era um membro privilegiado do clube dos Descendentes dos Mortos Gloriosos. — Pode ser que sim — eu disse, virando meu rosto de um lado para o outro para ter certeza de que meu blush estava no lugar. — Você acha que ele poderia vir aqui pra conversar sobre isso com a gente? Poderíamos marcar um encontro especial. — À noite — avisei-a. — Oh. Claro, teria que ser à noite. Os Descendentes habitualmente se encontravam ao meio-dia na biblioteca e levavam o almoço em lancheiras. Refleti sobre aquilo. Seria completamente grosseiro da minha parte dizer ao vampiro que ele tinha a obrigação de conversar com o clube de Vovó porque eu tinha salvo seu sangue dos Drenadores, mas quem sabe ele próprio não se ofereceria, se eu lhe desse umas indiretas? Eu não gostava da idéia, mas a poria em prática em consideração à minha avó. — Vou perguntar a ele na próxima vez que aparecer — prometi. — Será que, se não der, ele pode pelo menos vir conversar comigo e eu gravar as suas recordações? — Vovó disse. Eu ouvia a sua mente fazendo clique com a idéia do trunfo sensacional que aquilo seria para ela. — Seria tão interessante para os outros membros do clube — ela disse, caritativamente. Eu sufoquei um impulso de cair na risada.
— Vou sugerir isso a ele — eu disse. — Veremos. Quando eu saí, Vovó estava claramente já imaginando seus louros.
Eu não havia pensado na hipótese de Rene Lenier ter procurado Sam para contar a história da briga no estacionamento. No entanto, ele era um fuxiqueiro aplicado. Quando cheguei ao trabalho naquela tarde, presumi que a agitação que senti pelo ar era devido ao assassinato de Maudette. Descobri que não era bem assim. Sam empurrou-me para a despensa bem no momento em que eu acabara de entrar. Ele estava quicando de raiva e me deu uma bronca. Sam nunca tinha ficado bravo comigo, e rapidamente fiquei à beira de despencar a chorar. — E se você acha que um freguês não está a salvo, me informe, e eu é que cuidarei do assunto, não você — ele estava dizendo pela sexta vez, quando eu finalmente percebi que ele temera por minha vida. Captei essa idéia dentro dele antes de tomar a firme decisão de não “ouvi-lo”. Escutar os pensamentos de um chefe sempre leva ao desastre. Nunca me ocorrera pedir a Sam — ou quem mais que fosse — alguma espécie de ajuda. — E se você acha que alguém está sendo agredido em nosso estacionamento, seu próximo passo deve ser chamar a polícia, e não ficar lá parada feito uma sentinela — Sam bufou. Seu amável rosto, sempre corado, estava mais vermelho que nunca, e seus cabelos de caracóis dourados pareciam não ter sido penteados. — O.k. — eu disse, tentando manter minha voz impassível e mesmo meus olhos bem abertos para que as lágrimas não escorressem. — Você vai me demitir?
— Não! Não! — ele exclamou, parecendo ainda mais furioso. — Eu não quero perder você! — Ele agarrou meus ombros e me deu uma pequena sacudida. Daí, ficou a olhar para mim com aqueles grandes, intensos olhos azuis, e eu senti uma onda de calor emanando dele. Qualquer toque acelera minha percepção extra, tornando obrigatório que eu ouça o que a pessoa que me toca está pensando. Olhei bem diretamente em seus olhos por um longo momento, e depois fiquei em alerta, e pulei para trás enquanto suas mãos se afastavam. Fiz um giro e deixei a despensa, assustada. Tinha percebido duas coisas desconcertantes. Sam me desejava; e eu não podia ouvir seus pensamentos com tanta clareza quanto ouço os de outras pessoas. Eu recebia ondas de impressões do que ele estava sentindo, mas não pensamentos. Era como usar um anel que registrasse as emoções, mais do que recebê-las como um fax. Daí, o que fiz com as duas partes da informação? Absolutamente nada. Nunca tinha olhado para Sam como um homem que se levasse para a cama — ou ao menos que eu levasse — por uma porção de motivos. Mas o mais simples deles era que eu nunca olhava para ninguém dessa maneira, não porque eu não tenha hormônios — cara, como eu tenho hormônios! — mas eles estão constantemente reprimidos porque sexo, para mim, é um desastre. Você já imaginou saber tudo o que seu parceiro sexual está pensando naquele momento? Certo. Algo assim do tipo “Nossa, olha só essa mancha na pele... a bunda dela é meio grande... gostaria que ela se mexesse para a direita um pouco mais... por que ela não entende o lance e...?” Bem, você captou a idéia. Dá uma esfriada nas emoções, acredite. E, durante o sexo, simplesmente não há meio de manter a guarda mental em atenção. Outro motivo é que gosto de Sam como chefe, e gosto de meu emprego, que me mantém fora de casa e ativa e remunerada de tal modo que não vou me transformar na reclusa que minha avó teme que eu me torne. Trabalhar num escritório é difícil para mim, e o colégio foi simplesmente impossível por causa da pesada concentração que eu tinha que fazer. Simplesmente me exauria. Portanto, imediatamente, quis refletir sobre o ímpeto de desejo que eu sentira brotar nele. Não era como se ele me passasse uma cantada verbal ou me atirasse no chão da despensa. Eu senti seus sentimentos, e poderia ignorá-los, se escolhesse assim. Eu apreciava a delicadeza dessa questão, e me perguntava se Sam não teria me tocado de propósito, se na verdade não saberia o que eu era. Tomei cuidado para não ficar sozinha com ele, mas tenho que admitir que fiquei abalada naquela noite.
As duas noites seguintes foram melhores. Voltamos à nossa confortável relação de amizade. Eu estava aliviada. Eu estava desapontada. Eu estava pra lá de atarefada, correndo de um lado para outro, desde que o assassinato de Maudette incrementou o movimento comercial do bar. Toda espécie de boato se espalhava por Bon Temps, e a equipe do jornal de Shreveport dera uma pequena nota sobre a horrível morte de Maudette Pickens. Embora eu não tivesse comparecido ao funeral, minha avó foi, e disse que a igreja estava superlotada. Pobre Maudette sem graça, com suas coxas mordidas, ficou mais interessante morta do que fora em vida. Eu estava para tirar dois dias de folga, e me preocupava com perder o contato com o vampiro, Bill. Eu precisava retransmitir o pedido de minha avó. Ele não havia retornado ao bar, e comecei a me perguntar se retornaria mesmo. Mack e Denise não tinham voltado ao bar do Merlotte tampouco, mas Rene Lenier e Hoyt Fortenberry deixaram claro que eles tinham me ameaçado com coisas horríveis. Não posso dizer que estava seriamente alarmada. Criminosos desclassificados como os Ratos vagavam pela rodovias e parques nacionais da América, sem inteligência ou moral suficientes para estabelecerem uma existência produtiva. Eles nunca deixavam uma marca positiva no mundo, ou chegavam a formar um montinho relevante, a meu ver. E dei de ombros para as advertências de Rene. Mas ele adorava retransmiti-las. Rene Lenier era pequeno como Sam, e tinha uma cabeça cheia de cabelo espetado, negro, com mechas cinzentas. Rene vinha ao bar para beber uma cerveja e visitar Arlene porque (como ele ficava feliz de dizer a qualquer um que lá estivesse) ela era sua exesposa favorita. Ele tivera três. Hoyt Fortenberry era mais enigmático que Rene. Ele não era nem sombrio nem amável, nem grande nem pequeno. Parecia sempre animado e sempre dava gorjetas decentes. Admirava meu irmão Jason muito mais do que este merecia, em minha opinião. Fiquei feliz por Rene e Hoyt não estarem lá na noite em que o vampiro retornou. Ele sentou-se à mesma mesa. Agora que o vampiro estava realmente diante de mim, eu me senti um pouco inibida. Descobri que havia me esquecido do quase imperceptível brilho de sua pele. Eu exagerara na avaliação de sua estatura e das linhas claramente definidas de sua boca. — Em que posso servi-lo? — eu lhe perguntei. Ele ergueu os olhos em minha direção, e eu percebi que havia me esquecido, também, da profundeza de seus olhos. Ele não sorriu nem piscou; estava tão imóvel. Pela segunda vez, eu relaxei com seu silêncio. Quando eu baixava minha guarda, sentia meu rosto relaxar. Era tão bom como ser massageada (estou supondo). — O que você é? — ele me perguntou. Era a segunda vez que ele me fazia essa pergunta. — Sou uma garçonete — eu disse, de novo fazendo de conta que não entendera direito a pergunta. Eu sentia meu sorriso se repuxar novamente. Meu pouquinho de tranqüilidade desaparecera.
— Vinho tinto — ele pediu, e, se estava desapontado, não era possível detectar pela sua voz. — Claro — eu disse. — O sangue sintético deve chegar no caminhão de transporte de amanhã. Ouça, posso conversar com você depois do serviço? Tenho um favor a lhe pedir. — É claro. Tenho uma dívida com você. — E era bem claro que ele não se sentia satisfeito por isso. — Não é um favor para mim! — Eu estava ficando zangada. — É para a minha avó. Se você estiver em pé, bem, acho que você estará, quando eu sair do serviço a uma e meia, você não gostaria de encontrar-se comigo na saída dos empregados lá nos fundos do bar? — Fiz um sinal na direção mencionada, e meu rabo-de-cavalo caiu sobre meus ombros. Os olhos dele seguiram o movimento de meu cabelo. — Ficarei encantado. Eu não sabia se ele estava exibindo o tipo de cortesia que Vovó insistia que era o padrão dos tempos passados, ou se estava tirando um sarro de mim à moda antiga. Resisti à tentação de mostrar ou estalar a minha língua grosseiramente para ele. Girei em meus calcanhares e marchei de volta para o bar. Quando lhe trouxe o seu vinho, ele me deu uma gorjeta de vinte por cento. Logo após, olhei para a sua mesa apenas para constatar que ele havia desaparecido. Fiquei pensando se cumpriria a sua palavra. Arlene e Dawn saíram antes que eu estivesse pronta para ir, por uma razão ou outra; mas a razão mais forte foi que os porta-guardanapos em minha área ficaram quase vazios. Enquanto tirava minha bolsa do armário fechado do escritório de Sam, onde a guardo quando estou em serviço, eu me despedi do chefe. Eu o ouvia fazendo ruído na parte reservada aos homens, provavelmente tentando consertar o toalete estragado. Entrei no banheiro das mulheres por um segundo para examinar meu cabelo e maquiagem.
Quando cheguei lá fora, notei que Sam tinha desligado as luzes do estacionamento dos fregueses. Apenas a lâmpada de segurança do poste de eletricidade em frente ao trailer iluminava o estacionamento dos empregados. Para diversão de Arlene e Dawn, Sam tinha feito um quintalzinho e plantado pés de buxo em frente ao seu trailer, e elas estavam sempre provocando-o pelo caprichoso alinhamento de sua cerca viva. Eu achava aquilo bonito. Como sempre, o carro de Sam estava estacionado em frente ao seu trailer, e, por isso, meu carro era o único deixado no estacionamento. Eu avancei, olhando para todos os lados. Nada de Bill aparecer. Fiquei surpresa com o tamanho do desapontamento que sentia. Eu na verdade tinha esperado que ele fosse cortês, mesmo que seu coração (será que ele tinha um?) não estivesse nisso. “Talvez”, pensei sorrindo, “ele pulasse de uma árvore, ou aparecesse com um puf! em frente a mim, envolto numa capa preta com forro vermelho.” Mas, nada aconteceu. Assim, caminhei em direção ao meu carro. Esperava por uma surpresa, mas não por aquela que tive. Mack Rattray pulou de trás de meu carro e, num salto, se aproximou de mim o bastante para me atingir o queixo. Ele não hesitou nem um pouquinho, e eu fui parar no chão de cascalho como um saco de cimento. Soltei um grito quando caí, mas o chão tinha tirado todo o ar e alguma pele de mim, e eu estava muda, sem fôlego e desamparada. Então, vi Denise, via preparar sua bota pesada para dar um chute, e tinha acabado de me enrolar como uma bola quando os Rattrays começaram a me dar pontapés. A dor foi imediata, intensa e sem trégua. Lancei meus braços sobre meu rosto instintivamente, levando pancadas nos antebraços, nas pernas e nas costas. Acho que tinha certeza, durante os primeiros golpes, que eles parariam e vomitariam ameaças e insultos sobre mim e depois sumiriam.
Mas lembro-me do momento exato em que percebi que a verdadeira intenção deles era me matar. Podia ficar lá, passivamente, e tomar uma surra, mas não ia ficar para ser assassinada. Quando uma perna se aproximou, eu tomei fôlego, agarrei-a e lutei por minha vida. Eu tentava mordê-la, tentando ao menos deixar uma marca numa delas. Eu não tinha certeza nem de que perna eu estava mordendo. Então, por detrás de mim, ouvi um rosnado. Oh, não, eles tinham trazido um cachorro, foi o que pensei no ato. O rosnado era decididamente hostil. Se eu tivesse algum controle de minhas emoções, o cabelo teria se arrepiado em meu couro cabeludo. Levei um outro chute na espinha, e daí a surra parou. O último pontapé tinha feito alguma coisa pavorosa em mim. Eu ouvia meu próprio resfolegar, estertoroso, e um estranho som borbulhante que parecia provir de meus próprios pulmões. — Que diabo é aquilo? — Mack Rattray perguntou, e sua voz estava absolutamente aterrorizada. Eu ouvi o rosnado outra vez, mais próximo, bem às minhas costas. E de uma outra direção, ouvi provir uma espécie de grunhido. Denise começou a gemer, Mack estava praguejando. Denise conseguiu puxar a perna de meu aperto, que fora ficando cada vez mais débil. Meus braços despencaram no chão. Pareciam estar além de meu controle. Embora minha visão estivesse nublada, eu conseguia ver que meu braço direito estava quebrado. Sentia meu rosto molhado. Eu tinha medo de continuar a avaliar meus ferimentos. Mack começou a gritar, e depois foi a vez de Denise, e parecia haver toda espécie de atividade acontecendo ao redor de mim, mas eu não conseguia me mexer. A única coisa que eu via era meu braço quebrado, meus joelhos esfolados e a escuridão em torno de mim.
Um pouco depois, sobreveio o silêncio. Atrás de mim, o cachorro ganiu. Um nariz frio roçou minha orelha, e uma língua quente a lambeu. Tentei erguer a minha mão para acariciar o cão que tinha, sem dúvida alguma, salvado a minha vida, mas não consegui. Ouvi-me suspirando. O suspiro parecia vir de muito, muito longe. Encarando o fato, eu disse: — Estou morrendo. Isso começou a parecer mais e mais real para mim. Os sapos e grilos que compunham a maior parte da noite tinham feito silêncio, cessando também toda a atividade e os ruídos no estacionamento, e por isso minha frágil voz saía claramente e ecoava na escuridão. Não bastasse essa estranheza, daí a pouco ouvi duas vozes. Então, um par de joelhos cobertos por calças jeans sujas de sangue entrou em minha visão. O vampiro Bill havia se aproximado de tal modo que pude olhar direto em seu rosto. Havia manchas de sangue em sua boca, e seus caninos estavam salientes, brilhando lividamente sobre seu lábio inferior. Eu tentei sorrir para ele, mas meu rosto não conseguia se mexer direito. — Eu vou levantar você — Bill disse. A voz soava calma. — Morrerei se você fizer isso — sussurrei. Ele me olhou por inteiro, cuidadosamente. — Ainda não — ele disse, depois de ter feito a avaliação. Embora fosse estranho, isso me fez bem; imaginei que ele já tivesse visto muitos ferimentos na vida. — Isso vai doer — ele me avisou. Era difícil imaginar qualquer coisa que não doesse. Seus braços me agarraram por trás antes que eu tivesse tempo de ficar com medo. Eu gritei, mas foi um esforço débil. — Seja breve — disse uma voz, urgentemente. — Vamos voltar para a floresta que está fora de vista — Bill disse, embalando meu corpo junto a ele como se nada pesasse.
Será que ele ia me enterrar lá no mato, longe da vista de todo mundo? Depois de ter me resgatado dos Ratos? Eu mal me importava com isso. Foi apenas um pequeno alívio quando ele me estendeu num tapete de agulhas de pinheiros na escuridão da floresta. A distância, eu conseguia ver o brilho da luz do estacionamento, sentia meu cabelo pingando sangue, sentia a dor de meu braço quebrado e a agonia das profundas contusões, mas a coisa mais assustadora era o que eu não sentia. Eu não sentia minhas pernas. Meu abdome parecia cheio, pesado. A expressão “hemorragia interna” se alojou em meus pensamentos, não importa o quanto eles estivessem bagunçados. — Você vai morrer a menos que faça o que eu digo — Bill me disse. — Sinto, não quero ser uma vampira — eu disse, e minha voz estava fraca e embaralhada. — Não, você não virar uma — ele disse, com mais gentileza. — Você vai sarar. Rapidamente. Eu tenho a cura. Mas você tem que ter força de vontade. — Então, mostre logo essa cura — murmurei. — Porque estou morrendo. — Eu conseguia sentir a pressão que a morte exercia sobre mim. Na pequena parte de minha mente que ainda era capaz de receber sinais do mundo externo, ouvi Bill grunhir como se estivesse ferido. Então, alguma coisa foi pressionada sobre a minha boca. — Beba — ele disse. Tentei esticar minha língua, e consegui. Ele estava sangrando, espremendo-se para estimular o fluxo de sangue do seu pulso na direção de minha boca. Eu senti náusea. Mas eu queria viver. Forcei-me a engolir. E engolir de novo. De repente o sangue pareceu saboroso, salgado, a substância da vida. Meu braço quebrado se curou e se ergueu, minha mão prendeu o pulso do vampiro junto à minha boca. Eu me sentia melhor a cada nova engolida. E, depois de um minuto, deixei-me levar pelo sono. Quando despertei, estava ainda na floresta, ainda estendida no chão. Alguém estava junto a mim; era o vampiro. Eu conseguia ver seu brilho. Sentia sua língua mexendo em minha cabeça. Ele estava lambendo a ferida que havia ali. Eu não podia ter má vontade e me esquivar dele. — Meu gosto é diferente do das outras pessoas? — perguntei. — Sim — ele disse, numa voz grossa. — O que você é? Era a terceira vez que ele fazia essa pergunta. Na terceira vez o feitiço pega, Vovó sempre dizia. — Ei, não estou morta — eu disse. Súbito me lembrei de que tinha que dar uma examinada em mim mesma para ver se estava bem. Sacudi meu braço, aquele que fora quebrado. Estava fraco, mas não estava mais despencando. Consegui sentir minhas pernas, e as sacudi, também. Respirei fundo, para experimentar, e fiquei satisfeita com a dor suave que disso resultou. Lutei para sentar-me. Aquilo se revelou um grande esforço, mas não uma impossibilidade. Lembrava-me o primeiro dia após uma febre resultante de uma pneumonia que peguei quando criança. Um dia frágil, mas abençoado. Eu tinha consciência de haver sobrevivido a algo pavoroso. Antes que eu terminasse de me recuperar, ele pôs seus braços sob meu corpo e me carregou. Encostou-se a uma árvore. Eu me sentia muito à vontade sentada em seu colo, a minha cabeça encostada em seu peito. — O que eu sou é uma telepata — eu disse. — Consigo ouvir os pensamentos das pessoas. — Até os meus? — Ele parecia ter apenas curiosidade. — Não. É por isso que eu gosto tanto de você — eu disse, flutuando num mar de róseo bem-estar. Eu que não ia me incomodar com a camuflagem de meus pensamentos. Senti seu peito roncar conforme ele ria. A risada era um pouco enferrujada.
— Não consigo escutar você — eu disparei a falar, com a voz sonhadora. — Você não pode imaginar como isso é tranquilizador. Depois de passar a vida inteira escutando blá, blá, blá, poder finalmente ouvir... coisa nenhuma. — Como você consegue sair com os homens? Os homens de sua idade certamente só pensam em levar você para a cama. — Bem, eu não consigo. E, francamente, acho que, em qualquer idade, o único objetivo deles é levar mulheres para a cama. Eu não namoro. Todo mundo pensa que sou louca, você sabe, porque não posso revelar a verdade; isto é, que eu fico louca com todos aqueles pensamentos, todas aquelas cabeças. Eu tive alguns namorados depois que comecei a trabalhar no bar, uns sujeitos que não tinham ouvido falar de mim. Mas foi o mesmo de sempre. Você não pode se concentrar em ficar bem ao lado de um cara quando o escuta pensando se você tinge seu cabelo, ou pensando que sua bunda não é bonita, ou imaginando com que diabo de coisa o seu peito se parece. Subitamente senti-me mais alerta, e percebi o quanto de mim mesma estava revelando a esta criatura. — Peço desculpas — eu disse. — Eu não queria sobrecarregar você com meus problemas. Obrigada por me salvar dos Ratos. — Foi falha minha eles terem uma oportunidade de chegar a você — ele disse. Senti que havia raiva bem abaixo da calma superfície de sua voz. — Se eu tivesse tido a gentileza de aparecer na hora marcada, isso não teria acontecido. Por isso eu devia a você um pouco de meu sangue. Devia a você a cura. — Eles estão mortos? — Para meu embaraço, minha voz soava histérica. — Oh, sim. Engoli em seco. Não podia achar ruim que o mundo estivesse livre dos Ratos. Mas eu tinha que encarar a realidade, não podia me esquivar à percepção de que estava sentada bem ao lado de um assassino. No entanto, eu estava tão feliz por ficar ali, com os braços dele me envolvendo... — Eu devia estar preocupada com isso, mas não estou — eu disse, antes que percebesse o que estava dizendo. Senti aquela risada enferrujada roncar no peito dele novamente. Eu tinha que me esforçar por recompor meus pensamentos. Embora estivesse miraculosamente recuperada da surra do ponto de vista físico, eu me sentia um pouco confusa, mentalmente falando. — Minha avó está mesmo ansiosa por saber quantos anos você tem — eu disse, de um modo hesitante. Eu não sabia o quanto haveria de pessoal em fazer uma pergunta dessas a um vampiro. O vampiro em questão estava acariciando minhas costas como se eu fosse uma filhotinha de gato. — Eu me transformei em vampiro em 1870, quando tinha 30 anos humanos. Ergui meus olhos para ele; seu rosto brilhante estava inexpressivo, seus olhos eram poços de escuridão no meio da floresta negra. — Você lutou na Guerra? — Sim. — Tenho a impressão de que você vai ficar fulo da vida. Mas minha avó e seu clube ficariam tão felizes se você revelasse a eles um pouquinho sobre a Guerra, sobre o que ela realmente foi. — Clube? — Ela pertence aos Descendentes dos Mortos Gloriosos. — Mortos gloriosos. — A voz do vampiro era inaudível, mas eu conseguia notar, com bastante segurança, que ele não estava feliz. — Ouça, você não terá que contar nada sobre moscas varejeiras, as infecções e a fome — eu disse. — Eles têm sua própria imagem da Guerra, e embora não sejam estúpidos, pois atravessaram outros conflitos, gostariam de saber a maneira como as pessoas viviam naquela época, sobre movimentos de tropas e uniformes.
— Coisas limpas. Respirei profundamente: — Isso. — Você ficaria feliz se eu o fizesse? — Que diferença faz? Eu faria Vovó feliz, e já que você está em Bon Temps e parece querer morar por aqui, seria uma boa jogada de relações públicas. — Você ficaria feliz? Ele não fazia o tipo que deixava você se esquivar a uma pergunta. — Bem, eu ficaria sim. — Então, concordo. Farei isso. — Vovó pediu que, por favor, você comesse antes de aparecer por lá — eu disse. De novo ouvi a risada roncar, de um modo mais profundo dessa vez. — Agora, estou ansioso por me encontrar com ela. Posso ligar para você uma noite dessas? — Ah. Claro. Trabalho minha última noite amanhã, e no dia seguinte ficarei de folga por dois dias, por isso acho que o melhor será a gente se encontrar na noite de quinta-feira. — Ergui meu braço para olhar o relógio de pulso. Estava funcionando, mas o vidro estava coberto de sangue seco. — Oh, merda — eu disse, molhando meu dedo na boca e limpando a superfície do relógio com cuspe. Apertei o botão que iluminava as mãos, e engoli em seco quando vi as horas. — Oh, nossa, tenho que ir pra casa. Espero que Vovó tenha ido dormir. — Ela deve se preocupar por você estar fora de casa até tão tarde da noite, sozinha — Bill observou. Sua voz tinha um tom de reprovação. Será que estava pensando em Maudette? Tive um momento de desconforto profundo, imaginando se de fato Bill a conhecera, se ela o convidara para ir ao seu apartamento. Mas rejeitei a idéia porque eu estava teimosamente me recusando a refletir sobre a natureza estranha e horrível da vida e da morte de Maudette; eu não queria que aquele horror todo lançasse uma sombra sobre o pouquinho de felicidade que conseguira. — É parte de meu trabalho — eu disse acidamente. — Não dá pra evitar. Eu não cubro noites inteiras o tempo todo, de qualquer modo. Mas, quando posso, cubro. — Por quê? — O vampiro me empurrou para o alto, e ergueu-se facilmente do chão. — Gorjetas melhores. Trabalhar mais. Não ter tempo para pensar. — Mas a noite é mais perigosa — ele disse, desaprovando. Ele bem que devia saber dessas coisas. — Sem essa, não venha bancar minha avó comigo — eu ralhei com ele, suavemente. Já tínhamos quase chegado ao estacionamento. — Sou mais velho que sua avó — ele me lembrou. Aquilo encurtou a conversa. Depois que saí da floresta, fiquei parada, olhando. O estacionamento estava sereno e intacto como se nada nunca houvesse ocorrido ali, como se eu não tivesse sido surrada até quase morrer naquele trecho de cascalho há apenas uma hora, como se os Ratos não tivessem ali encontrado o desfecho sangrento de suas vidas. As luzes no bar e no trailer de Sam estavam apagadas. O cascalho estava úmido, mas não manchado de sangue. Minha bolsa estava no capo do meu carro. — E que será que aconteceu com o cachorro? — eu disse. Virei para olhar para meu salvador. Ele não estava lá.
Eu me levantei tarde na manhã seguinte, o que não era tão surpreendente. Vovó estava dormindo quando cheguei em casa, para meu alívio, e consegui subir para a cama sem que ela despertasse.
Estava tomando uma xícara de café à mesa da cozinha enquanto Vovó limpava a copa quando o telefone soou. Ela acomodou suas nádegas folgadamente no banco junto ao balcão, sua posição habitual de bater papo ao telefone, para atender. — A-lô — ela disse. Por alguma razão, ela sempre parecia contrariada, como se uma chamada telefônica fosse a última coisa do mundo que desejasse. E eu sabia com certeza que não era assim. — Oi, Everlee. Não, estou aqui conversando com Sookie, ela acabou de levantar. Não, não soube de nada hoje. Não, ninguém me ligou ainda. O quê? Que furacão? A noite passada foi clara, querida. Four Tracks Corner? É mesmo? Não! Não, não pode ser! É verdade? Os dois foram destruídos? Han, han, han... O que o Mike Spencer disse? Mike Spencer era o médico-legista da cidade. Comecei a ter uma sensação de arrepio. Terminei meu café e me servi de outra xícara. Achei que estava precisando. Vovó se aproximou um minuto depois. — Sookie, você não vai acreditar no que aconteceu! Eu estava querendo apostar que na certa acreditaria. — O quê? — perguntei, tentando não parecer culpada. — Não importa quanto o tempo parecesse calmo ontem à noite, um furacão passou lá em Four Tracks Corner! Ele revirou aquele trailer de aluguel que fica naquela clareira.O casal que morava nele, os dois foram mortos, jogados debaixo do trailer e esmagados. Mike diz que nunca viu nada semelhante. — Ele está mandando os corpos para autópsia? — Bem, acho que terá que fazer isso, embora a causa da morte pareça bastante clara, de acordo com Stella. O trailer está lá, virado, o carro dos dois está meio por cima dele, e as árvores estão derrubadas no pátio. — Meu Deus — murmurei, pensando na força necessária para executar a montagem dessa cena. — Querida, você não me disse se seu amigo, o vampiro, apareceu ontem à noite? Eu me ergui de modo culposo até que percebi que, na cabeça de Vovó, tinha havido uma mudança de assunto. Ela vinha me perguntando se eu vira Bill todos os dias, e agora, finalmente, eu tinha o que lhe dizer — mas não com o coração leve. Como era de se esperar, Vovó ficou excitada a ponto de perder o juízo. Ela se pôs a rodopiar pela cozinha como se o Príncipe Charles fosse o visitante esperado. — Amanhã à noite. A que horas ele vai chegar? — ela perguntou. — Depois de escurecer. É tudo que pude apurar. — Estamos com dias mais longos, então será bem tarde. — Vovó refletia. — Bom, teremos tempo para jantar e lavar a louça antes disso. E teremos o dia de amanhã inteirinho para limpar a casa. Eu não limpo aquele tapete da entrada faz um ano, tenho certeza! — Vó, estamos falando de um cara que dorme no chão o dia todo —, lembrei-a. — Não creio que ele preste atenção em tapetes. — Bem, se eu não fizer isso por ele, farei por mim, para que me sinta orgulhosa — Vovó disse de um modo incontestável. — Além do mais, mocinha, como foi que soube o jeito que ele dorme? — Boa pergunta, Vó. Não sei. Mas ele tem que se esconder da luz e tem que proteger a sua vida, por isso é o que imagino.
Nada impediria minha avó de entrar num frenesi de orgulho doméstico, eu percebi bem depressa. Enquanto eu me aprontava para ir ao trabalho, ela foi ao armazém, alugou um limpador de tapetes e pôs mãos à obra. No caminho para o bar de Merlotte, eu desviei para o norte um pouquinho e guiei até Four Tracks Corner. Era uma encruzilhada tão velha quanto as moradias daquele trecho. Fora agora reconhecida oficialmente, recebera sinais rodoviários e pavimentação, mas, mesmo assim, o povo dizia que era a interseção de duas trilhas de caça. Mais cedo ou mais tarde, haveria ali casas ao estilo rancho e estabelecimentos comerciais ao longo da rodovia, eu supunha, mas no momento era composta de florestas apenas e ali a caça era boa, segundo Jason dizia. Já que não havia nada para me impedir, desci a trilha cheia de sulcos que levava para a clareira onde o trailer de aluguel dos Rattrays tinha ficado. Parei o carro e olhei para o lado de fora do pára-brisa, horrorizada. O trailer, muito pequeno e antigo, se estendia esmagado a uns três metros atrás do lugar onde ficava. O carro vermelho esburacado dos Rattrays estava na ponta da casa móvel dobrada como uma sanfona. Moitas e escombros estavam espalhados em desordem em torno da clareira, e as árvores atrás do trailer mostravam sinais da passagem de uma força violenta; galhos arrancados, o topo de um pinheiro pendendo da lasca de um tronco. Havia roupas, e até uma assadeira, penduradas nas árvores. Saí lentamente do carro e olhei ao redor. O dano fora simplesmente incrível, especialmente pelo fato de que eu sabia que não fora causado por um furacão; Bill, o vampiro, montara essa cena para explicar as mortes dos Rattrays. Um velho jipe desceu pulando os sulcos até parar perto de mim. — Bem, se não é Sookie Stackhouse! — exclamou Mike Spencer. — O que está fazendo aqui, garota? Você não tem que ir para o serviço?
— Sim, senhor. Eu conhecia os Ratos, quer dizer, os Rattrays. Isto aqui é uma coisa medonha. — Eu achei que aquilo era suficientemente ambíguo, agora que notara que o xerife estava acompanhando Mike. — Uma coisa medonha. Sim, bem. Eu ouvi falar — o xerife Bud Dearborn disse enquanto descia do jipe —, que você, Mack e Denise não tiveram um encontro exatamente amistoso no estacionamento do Merlotte, na semana passada. Senti um arrepio gelado em algum ponto da região do meu fígado enquanto os dois homens se emparelhavam em frente a mim. Mike Spencer era o diretor de uma das duas casas funerárias de Bon Temps. Como era sempre rápido e preciso em proclamar, quem quer que desejasse podia ser enterrado pela Casa Funerária Spencer & Filhos; mas só gente branca parecia querer. Gente de cor preferia fazer seu enterro pela casa Sweet Rest. Mike era um homem de meia-idade pesadão com cabelo e bigode da cor esmaecida do chá, e uma predileção por botas de caubói e gravatas estreitas, de lacinhos, que não podia usar no trabalho na Spencer & Filhos. Estava usando-as agora. O xerife Dearborn, que tinha a fama de ser bom sujeito, era um pouco mais velho que Mike, mas tinha boa forma e era enxuto, desde o abundante cabelo branco até a ponta dos sapatos pesados. Tinha um rosto amassado e ágeis olhos castanhos. Havia sido grande amigo de meu pai. — Sim, senhor, nós tivemos um desentendimento — eu disse francamente, em minha voz mais humilde. — Quer me falar disso? — O xerife tirou um Marlboro do bolso e o acendeu com um isqueiro simples, de metal. E eu cometi um erro. Deveria ter contado a ele. Julgavam que eu era louca, e alguns me consideravam uma simplória, também. Mas, juro por minha vida, não via motivo algum para me explicar com Bud Dearborn. Não havia motivo algum, exceto o bom senso. — Por quê? — perguntei.
Seus pequenos olhos castanhos ficaram subitamente penetrantes, e o ar amigável desapareceu. — Sookie — ele disse, com um mundo de desapontamentos em sua voz. — Eu não acreditei nisso nem um pouquinho. — Eu não fiz isso — eu disse, apontando a destruição. — Não, claro que não fez — ele concordou. — Mas, ainda assim, como eles vieram a morrer uma exata semana depois de terem brigado com alguém, eu achei que tinha que fazer perguntas. Reconsiderei a possibilidade de lançar sobre ele um olhar desdenhoso. Eu me sentiria bem fazendo isso, mas não achei que valesse a pena. Estava ficando claro para mim que uma reputação de ser simplória poderia ser prática. Posso ser mal-educada e lunática, mas não sou burra ou despreparada. — Bem, eles estavam agredindo meu amigo — confessei, baixando a minha cabeça e olhando para meus sapatos. — Esse seu amigo não seria um vampiro que está morando na velha casa dos Compton? — Mike Spencer e Bud Dearborn se entreolharam. — Sim, senhor. Fiquei surpresa por descobrir onde Bill estava morando, mas eles não perceberam. Com anos de treino em deliberadamente não reagir ao ouvir coisas que eu não queria saber, adquiri bom controle facial. A velha casa dos Compton ficava bem perto dos campos onde morávamos, no mesmo lado da estrada. Entre nossas casas havia apenas as florestas e o cemitério. “Que prático para Bill” pensei, e sorri. — Sookie Stackhouse, sua avó está deixando você fazer amizade com um vampiro? — Spencer disse, precipitadamente. — Vocês podem perguntar a ela sobre o assunto — sugeri maliciosamente, sem querer ficar para ouvir o que Vovó diria quando alguém sugerisse que ela não estava tomando conta direito de mim. — Vocês sabem, os Rattrays estavam tentando drenar Bill.
— Então, o vampiro estava sendo drenado pelos Rattrays? E você os deteve? — interrompeu o xerife. — Sim — eu disse, tentando parecer resoluta. — Drenar vampiros, sem dúvida, é ilegal — ele refletiu. — Não é crime, matar um vampiro que não nos atacou? — perguntei. Talvez eu tivesse levado a minha ingenuidade um pouquinho longe demais. — Você sabe muito bem que é, embora eu não concorde com essa lei. É uma lei, e eu tenho que respeitá-la — o xerife disse, rigidamente. — E aí o vampiro só os deixou ir embora? Sem ameaçá-los de vingança? Ou dizer algo como que desejava que eles morressem? — Mike Spencer estava sendo estúpido. — É isso mesmo. — Eu sorri para os dois e então olhei para meu relógio de pulso. Lembrei-me do sangue que havia em sua superfície, meu sangue, tirado de mim pelos Rattrays. Eu tinha que olhar através daquele sangue para ver as horas. — Desculpem-me, tenho que ir para o trabalho — eu disse. — Tchau, Sr. Spencer, tchau, xerife. — Tchau, Sookie — o xerife Dearborn disse. Parecia ter mais perguntas a me fazer, mas não sabia como formulálas. Notei que ele não estava totalmente feliz com a aparência da cena ali montada, e eu tinha minhas dúvidas de que qualquer furacão houvesse sido detectado por radar em qualquer lugar. Contudo, lá estava o trailer, lá estava o carro, lá estavam as árvores, e os Rattrays tinham morrido debaixo daquilo. O que se poderia concluir senão que o furacão os tinha matado? Eu supunha que os corpos tivessem sido levados para uma autópsia, e imaginava o quanto poderia ser revelado por um procedimento desse tipo naquelas circunstâncias. A mente humana é uma coisa espantosa. O xerife Dearborn devia saber que os vampiros são criaturas muito fortes. Mas ele não podia sequer imaginar o quanto um vampiro pode ser forte, o bastante para virar um trailer, para esmagá-lo. Mesmo para mim era difícil compreender, e eu estava careca de saber que nenhum furacão havia atingido Four Corners. O bar todo estava cheio de murmúrios sobre as notícias das mortes. O assassinato de Maudette ficara para trás com a novidade das mortes de Denise e Mack. Flagrei Sam olhando-me de esguelha algumas vezes, e pensei na noite anterior e me pus a imaginar o quanto ele poderia saber sobre o que acontecera. Mas tinha medo de lhe perguntar, caso ele não tivesse visto nada. Eu sabia que, entre as coisas acontecidas na noite anterior, havia algumas que nem para mim mesma eu conseguira explicar satisfatoriamente, mas estava tão grata por estar viva que as deixara de lado. Nunca sorri tanto ao preparar os drinques, nunca fiz troco com tanta agilidade, nunca atendi aos pedidos com tamanha precisão. Mesmo o velho Rene de cabelo espetado não me interrompeu, embora insistisse em me arrastar numa de suas conversas infindáveis toda vez que eu me aproximava da mesa que ele estava dividindo com Hoyt e alguns outros camaradas. Rene dava uma de Cajun maluco de vez em quando, embora qualquer sotaque Cajun que ele adotasse parecesse falso. Seus pais tinham deixado sua herança cultural desaparecer. Todas as mulheres com quem ele se casara tinham sido desclassificadas e difíceis. Sua breve ligação com Arlene tinha ocorrido quando ela ainda era jovem e sem filhos, e ela me contara que de tempos em tempos fizera coisas, naquela época, que arrepiavam seus cabelos quando as recordava agora. Ela havia amadurecido desde então, mas Rene não. Ainda assim, ela gostava dele, para meu espanto. Todo mundo no bar estava agitado naquela noite devido aos acontecimentos incomuns que estavam rolando em Bon Temps. Uma mulher havia sido assassinada, e era um mistério; geralmente, os
Grupo de pessoas nativas do estado de Louisiana, descendentes dos franceses. (N. do T.)
assassinatos na cidade eram facilmente solucionados. E um casal havia morrido violentamente, vitimado por um acontecimento bizarro da natureza. O que aconteceu em seguida, eu atribuo a essa agitação. Esse é um bar familiar, com poucos forasteiros pela cidade parando aqui de maneira rotineira, e eu nunca tive problemas com atenção indesejável. Mas, naquela noite, um dos homens na mesa próxima à de Rene e Hoyt, um grandalhão com um rosto enorme e vermelho, enfiou a mão na minha coxa quando eu estava levando cerveja para os dois. Não é uma coisa que passe impune no bar do Merlotte. Pensava em descer a bandeja na cabeça do sujeito, quando senti que a mão fora retirada. Senti alguém se erguendo bem atrás de mim. Eu me virei e vi Rene, que tinha se levantado de sua cadeira sem que eu tivesse notado. Acompanhei o movimento de seu braço e vi que sua mão estava agarrando e espremendo a mão do louro. O rosto vermelho do sujeito estava ficando congestionado e manchado. — Ei, cara, me solta! — o louro protestou. — Eu não quis fazer nada. — Não se enfia a mão em ninguém que trabalhe aqui. É a regra. — Rene pode ser baixo e magro, mas qualquer um ali teria apostado seu dinheiro no nosso garotão local, caso ele brigasse com o visitante corpulento. — O.k., o.k. — Peça desculpas à moça. — Pedir desculpas pra Sookie Maluca? — Sua voz soava incrédula. Ele já devia ter passado pela cidade e sabido de alguma coisa. E a mão de Rene devia ter apertado a mão dele com mais força. Vi lágrimas saindo dos seus olhos. — Sinto muito, Sookie, tá bom? Eu aceitei com todo o desprezo majestoso que pude. Rene soltou a mão do homem abruptamente e fez sinal com o polegar para que o sujeito caísse fora. O louro não perdeu tempo e se arremessou na direção da porta. Seu companheiro o seguiu.
— Rene, você devia ter-me deixado resolver o negócio sozinha — eu disse a ele em surdina, quando pareceu que os fregueses tinham todos retomado as suas conversas. Nós dois tínhamos fornecido ao moinho de fofocas grão para moer por pelo menos uns dois dias. — Mas eu gostei de você ter me defendido. — Não quero ninguém mexendo com uma amiga de Arlene — Rene disse, decisivo. — O Merlotte é um lugar agradável, e queremos que continue a ser assim. Além do mais, de vez em quando você me faz lembrar a Cindy, sabe? Cindy era a irmã de Rene. Ela se mudara para Baton Rouge havia um ano ou mais. Cindy era loura e tinha olhos azuis: além desses fatos, eu não conseguia ver mais nada em que fôssemos parecidas. Mas não parecia delicado dizer isso. — Você ainda se encontra muito com a Cindy? — perguntei. Hoyt e o outro homem presente à mesa estavam trocando escores e estatísticas do time do Captains de Shreveport. — Bem, de vez em quando — Rene disse, balançando a cabeça como se quisesse dizer que gostaria que esses encontros fossem mais freqüentes. — Ela trabalha na lanchonete de um hospital. Bati amigavelmente em seu ombro. — Tenho que voltar pro trabalho. Quando cheguei ao bar para atender ao pedido seguinte, Sam ergueu suas sobrancelhas e olhou para mim. Eu arregalei os olhos para mostrar como ficara espantada com a intervenção de Rene, e Sam deu ligeiramente de ombros, como se dissesse que não havia mesmo explicação para o comportamento humano. Mas quando fui para trás do balcão para pegar uns guardanapos, percebi que ele pegara o bastão de beisebol que mantinha sob a gaveta da caixa registradora para alguma emergência.
No dia seguinte, Vovó me manteve ocupada o tempo todo. Ela tirou o pó, passou aspirador e esfregão, enquanto eu limpava os banheiros — será que os vampiros precisam mesmo usar o banheiro?, eu me indagava, enquanto dava descarga e esfregava a escova em torno do vaso. Vovó quis que eu tirasse os pêlos do gato do sofá. Esvaziei também todas as latas de lixo. Dei polimento em todas as mesas. Esfreguei com pano a lavadora e a secadora, gemendo pelo amor de Deus. Quando Vovó me pressionou para ir urgentemente tomar banho e mudar minhas roupas, percebi que ela tratava Bill, o vampiro, como se fosse um namorado meu. Isso fez com que eu me sentisse meio estranha. Primeiro, Vovó ficava tão desesperada para que eu tivesse alguma espécie de vida social que até um vampiro valia, em meu caso; segundo, eu tinha alguns sentimentos que reforçavam esta idéia; terceiro, Bill poderia perceber tudo isso com precisão; e quarto, será que os vampiros sacavam essas coisas do mesmo modo que os seres humanos comuns? Tomei uma chuveirada, me maquiei e pus um vestido, já que sabia que Vovó teria um faniquito se eu não o fizesse. Era um pequeno vestido de algodão azul com margaridinhas servindo de estampas, e era mais apertado do que Vovó gostaria e mais curto do que Jason poderia aprovar em sua irmã. Fora isso o que eu ouvira na primeira vez que o usara. Pus meus pequenos brincos amarelos de bola e ergui meu cabelo, puxando-o para trás, sem apertar, com um prendedor em forma de banana. Vovó me deu uma olhada esquisita, que achei difícil interpretar. Poderia ter descoberto o que era facilmente, bastando, para isso, pôr-me a ouvir sua mente, mas era uma coisa terrível de fazer com a pessoa com quem se vive, portanto, tomei precauções para não fazê-lo. Ela própria estava usando uma saia e blusa que freqüentemente usava para encontrarse com os Descendentes dos Mortos Gloriosos, mas o traje não era bom o bastante para ir à igreja e tampouco era simples o bastante para o uso diário.
Eu estava varrendo a varanda em frente à casa, o que tínhamos esquecido de fazer, quando ele chegou. Fez uma entrada digna de um vampiro; num minuto ele não estava ali, e, logo a seguir, estava ao pé da escada, olhando para mim. Dei uma risadinha. — Não me assustou — eu disse. Ele pareceu um pouco embaraçado. — É apenas um hábito — ele disse — aparecer desse jeito. Eu não faço muito barulho. Eu abri a porta. — Entre — convidei, e ele subiu os degraus, olhando ao redor. — Eu me lembro desta casa — ele disse. — Mas não era assim tão grande. — Você se lembra desta casa? A Vovó vai adorar saber disso. Eu o acompanhei enquanto entrava na sala de estar, chamando Vovó enquanto andava. Ela apareceu na sala muito solene em sua dignidade, e eu percebi pela primeira vez que ela tivera uma difícil trabalheira com seu cabelo, que para variar estava alisado e arrumado, envolvendo sua cabeça numa complicada espiral. E também estava usando batom. Bill se provou um adepto de etiquetas sociais semelhantes às de minha avó. Eles se saudaram, se agradeceram, se elogiaram, e finalmente Bill sentou-se num sofá e, depois de ir buscar uma bandeja com três copos de chá de pêssego, minha avó sentou-se na espreguiçadeira, deixando claro que eu tinha que me posicionar ao lado de Bill. Não havia jeito de me safar disso sem que a manobra parecesse ainda mais óbvia, portanto, sentei-me ao lado dele, mas inclinada para um lado de fuga, como se eu pudesse escapar a qualquer momento para voltar a servi-lo com o copo ritualístico de chá gelado. Polidamente, ele roçou os lábios na beira do copo e devolveu-o à bandeja. Vovó e eu tomamos os nossos com grandes goles nervosos.
Para abrir a conversa, Vovó escolheu um assunto infeliz. Ela disse: — Creio que você ficou sabendo do estranho furacão. — Não soube não, me conte — Bill disse, sua voz fria tão suave como seda. Eu nem ousava olhar para ele, só permanecia com minhas mãos cruzadas e de olho pregado nelas. Então Vovó contou a ele sobre o estranho furacão e as mortes dos Ratos. Contou-lhe que a história toda parecia medonha, mas solucionada, e, ao ouvir isso, achei que Bill relaxou um pouquinho. — Passei por lá ontem no caminho pro trabalho — eu disse, sem erguer meus olhos. — Perto do trailer. — A coisa estava do jeito que você esperava? — Bill perguntou, com um tom apenas curioso na voz. — Não — eu disse. — Não era nada do que eu pudesse esperar. Fiquei realmente... assombrada. — Sookie, você já viu danos causados por furacões em sua vida — Vovó disse, surpresa. Mudei de assunto: — Bill, onde você comprou essa camisa? É bonita. Ele estava usando calças Dockers de cor caqui e uma camisa esporte fino de listras verdes e marrons, sapatos mocassim engraxados, e finas meias marrons. — No Dillard’s — ele disse, e eu tentei imaginá-lo nesse shopping em Monroe, com talvez outras pessoas virando-se para olhar para essa exótica criatura com sua pele brilhante e seus belos olhos. Onde ele conseguiria o dinheiro para pagar por aquelas roupas? Como as lavaria? Será que ele entrava nu em seu caixão? Será que tinha um carro ou apenas flutuava na direção que quisesse ir? Vovó estava satisfeita com a normalidade dos hábitos de consumidor que ele revelara. Isso me deu uma outra dorzinha aguda, observar o quanto ela estava feliz por ver meu suposto pretendente em sua sala de visitas, mesmo se (de acordo com a literatura popular) ele fosse vítima de um vírus que o fazia parecer um defunto. Vovó disparou a fazer perguntas a Bill. Ele respondia a elas com cortesia e aparente boa vontade. O.k., ele era um morto bem-educado. — E sua gente era desta região? — Vovó perguntou. — A família de meu pai tinha o sobrenome Compton, já os familiares de minha mãe eram Loudermilks — Bill disse prontamente. Ele parecia completamente relaxado. — Ainda restam muitos Loudermilks — Vovó disse alegremente. — Mas temo que o velho sr. Jessie Compton tenha morrido no ano passado. — Eu sei — disse Bill tranqüilamente. — Foi por isso que voltei. A terra foi legada a mim, e já que as coisas mudaram em nossa cultura para pessoas com meu estilo de vida, decidi ir atrás de meus direitos. — Você conheceu os Stackhouses? Sookie disse que você tinha uma longa história para contar. — Achei que Vovó tinha explicado a coisa muito bem. Eu sorri para as minhas mãos. — Eu me lembro de Jonas Stackhouse — Bill disse, para deleite de Vovó. — Minha família já estava aqui quando Bon Temps era apenas um buraco na estrada à margem da fronteira. Jonas Stackhouse mudou-se para cá com sua mulher e seus quatro filhos quando eu era um jovem de 16 anos. Esta não é a casa que ele construiu, ao menos em parte? Notei que quando Bill falava do passado, sua voz assumia uma cadência e um vocabulário diferentes. Eu pensava em quantas mudanças na gíria e na entonação seu inglês teria sofrido durante o século passado. Naturalmente, Vovó estava se esbaldando, como apreciadora de genealogias que era. Ela queria saber tudo sobre Jonas, o tetravô de seu marido. — Ele tinha escravos? — ela perguntou. — Minha senhora, se me lembro corretamente, ele tinha um escravo de casa e outro de terreiro. A escrava caseira era uma mulher de meia-idade e o escravo de terreiro era um homem jovem muito grande, muito forte, chamado Minas. Mas a maioria dos Stackhouses trabalhavam eles mesmos nos campos, como fazia a minha família. — Oh, isso é exatamente o tipo de coisa que meu pequeno grupo adoraria ouvir! Sookie contou a você que... — Vovó e Bill, depois de muita conversinha polida, fixaram uma data para que ele fizesse uma palestra num encontro noturno dos Descendentes. — E agora, se você der licença para Sookie e eu, vamos dar uma caminhada. Está uma noite linda. Lentamente, como pude observar, ele se aproximou de mim, pegou em minha mão, erguendo-me e colocando-me de pé, também. Sua mão era fria, firme e suave. Ele não estava pedindo permissão à Vovó, mas tampouco deixava de pedi-la. — Oh, vocês dois podem ir — minha avó disse, louquinha de felicidade. — Eu tenho tantas coisas por fazer. Você terá que me contar todos os nomes locais que você se lembra do tempo em que você era... — e aqui Vovó se interrompeu, não querendo continuar e dizer alguma coisa que pudesse soar ofensiva. — Residente aqui em Bon Temps — eu completei, ajudando-a. — É claro — o vampiro disse, e eu pude notar pela compressão em seus lábios que ele estava tentando não rir. De algum modo chegamos à porta, e eu sabia que Bill tinha me erguido e impelido rapidamente. Eu sorri, com prazer sincero. Eu gosto do inesperado. — Estaremos de volta num momentinho — eu disse à Vovó. Não achei que ela tivesse notado minha estranha transição, já que estava recolhendo nossos copos de chá. — Oh, vocês dois não precisam se preocupar comigo — ela disse. — Ficarei bem. Lá fora, as rãs, os sapos e os besouros estavam cantando sua ópera rural noturna. Bill segurou minha mão e caminhamos pelo quintal afora, que estava impregnado do cheiro de grama recém-ceifada e brotos tenros.
Minha gata, Tina, saiu das sombras e pediu para que eu lhe coçasse, e eu me curvei e cocei sua cabecinha. Para minha surpresa, ela se esfregou nas pernas de Bill, uma coisa que ele não desencorajou. — Você gosta deste animal? — ele perguntou, a voz neutra. — É minha gata —, eu disse. — Seu nome é Tina, e gosto muito dela. Sem comentário, Bill ficou imóvel, esperando até que Tina seguisse seu caminho para dentro do escuro que havia além da zona de luz da varanda. — Você gostaria de sentar-se nas cadeiras de balanço ou do jardim, ou você gostaria de dar uma caminhada? — perguntei, já que sentia que eu era agora a anfitriã. — Oh, vamos caminhar um pouco. Preciso esticar minhas pernas. Por alguma razão essa declaração me deixou meio sem jeito, mas comecei a me movimentar pela longa estrada na direção da rodovia de mão dupla que passava em frente das nossas casas. — O trailer deixou você irritada? Eu tentei pensar em como dar uma resposta a isso. — Eu me sinto muito... hmmm. Frágil. Quando penso no trailer. — Você sabia que eu era forte. Inclinei minha cabeça de um lado para outro, refletindo. — Sim, mas eu não tinha percebido sua força em toda a sua extensão — eu disse. — Nem conhecia a sua imaginação. — Ao longo dos anos, nós nos tornamos peritos em ocultar o que fizemos. — Pois é. Suponho que você tenha matado um monte de pessoas. — Algumas. Você que se vire com isso, era a implicação que havia em sua voz. Apertei minhas mãos atrás de mim. — Você ficou mais faminto depois que se tornou um vampiro? Como foi que isso aconteceu?
Ele não esperava por essa pergunta. Olhou em minha direção. Senti seus olhos cravarem-se em mim, mesmo estando agora na escuridão. As florestas se fechavam em torno de nós. Nossos pés esmigalhavam o cascalho. — Como me tornei um vampiro, essa é uma história longa demais para eu contar agora — ele disse. — Mas, sim, quando eu era mais jovem, algumas vezes, matei acidentalmente. Eu nunca tinha certeza de quando voltaria a comer, entende? Nós éramos sempre caçados, naturalmente, e não havia uma coisa como o sangue artificial. E a população não era tão grande assim, naquela época. Mas, fui um bom homem quando vivo, digo, antes de pegar o vírus. Portanto, eu tentava ser civilizado nos meus métodos, selecionava gente ruim como minhas vítimas, nunca me alimentava de crianças. Eu me esforcei sempre para não matar uma criança que fosse. Mas, hoje em dia, é tão diferente. Eu posso ir para uma clínica 24 horas em qualquer cidade e pegar um pouco de sangue sintético, embora o sabor seja detestável. Ou posso pagar uma prostituta e ter sangue suficiente para seguir vivendo por uns dias a mais. Ou posso encantar alguém, que se deixará morder por amor, e depois esquecer tudo isso. E eu não preciso de muita coisa agora. — Ou você pode encontrar uma garota que tenha problemas mentais — eu disse. — Oh, você foi a sobremesa. A refeição foram os Rattrays. Agüenta mais essa. — Alto lá — eu disse, perdendo o fôlego. — Dê uma folga. E ele deu. Nem um homem em um milhão teria me permitido tanto tempo sem falar nada. Eu abri minha mente, deixei minhas guardas baixarem completamente, e relaxei. Seu silêncio me inundou. Eu parei, fechei meus olhos, respirando o alívio que era profundo demais para ser exprimido em palavras. — Você está feliz agora? — ele perguntou, como se pudesse perceber. — Sim — suspirei.
Naquele momento, senti que não importava o que aquela criatura ao meu lado tivesse feito, aquela paz não tinha preço depois de uma vida inteira de invasão de outras mentes na minha. — Você faz com que eu me sinta bem também — ele disse, para minha surpresa. — Como assim? — perguntei, sonhadora e lentamente. — Sem medo, sem pressa, sem condenação. Eu não preciso usar meu encanto para fazer você ficar quieta, para ter uma conversa com você. — Encanto? — É como o hipnotismo — ele explicou. — Todos os vampiros usam, em maior ou menor extensão. Porque, para nos alimentarmos, até que o novo sangue sintético fosse desenvolvido, nós tínhamos que convencer as pessoas de que éramos inofensivos... ou assegurá-las de que não nos tinham visto de modo algum... ou tapeá-las, fazendo crer que tinham visto outra coisa. — Isso funciona comigo? — Claro que sim — ele disse, com a voz chocada. — O.k., faça isso então. — Olhe para mim. — Está escuro. — Não importa. Olhe no meu rosto. E ele parou diante de mim, suas mãos pousando levemente em meus ombros, e olhou-me fixamente. Eu via o brilho apagado de sua pele e de seus olhos, e ficava perscrutando-o, desconfiada, imaginando que eu começaria a piar feito um frango ou a tirar as minhas roupas. Mas tudo que aconteceu foi... nada. Eu senti apenas o quase relaxamento semelhante ao causado por uma droga que era estar na presença dele. — Você pode sentir a minha influência? — ele perguntou. Parecia um pouco ofegante.
— Nem um pouquinho, sinto muito — eu disse humildemente. — Eu apenas vejo você brilhando. — Você consegue ver isso? — eu o tinha surpreendido outra vez. — Claro. Não é assim com todo mundo? — Não. Isso é estranho, Sookie. — Deve ser, se você diz. Você pode levitar para mim? — Aqui mesmo? — Bill pareceu espantado. — Claro, por que não? Há algum motivo para não levitar aqui? — Não, nenhum mesmo. — E ele soltou meus braços e começou a se erguer. Eu soltei um suspiro de puro êxtase. Ele flutuava na escuridão, brilhando como mármore branco à luz da lua. Quando estava a pouca distância do chão, começou a levitar. Eu achei que, lá do alto, ria de mim. — Todos os vampiros podem fazer isso? — perguntei. — Você sabe cantar? — De jeito nenhum, não consigo nem cantarolar. — Bem, tal como os humanos, nem todos conseguimos fazer as mesmas coisas. — Bill desceu lentamente e aterrissou sem baque algum. — Muitos humanos se melindram com os vampiros. Você parece que não — ele comentou. Eu dei de ombros. Quem era eu para me melindrar com alguma coisa fora do comum? Ele pareceu compreender por que, depois de um intervalo de silêncio, durante o qual recomeçamos a andar, disse: — Ter esse dom sempre foi difícil para você? — Sim, sempre. — Eu não podia dizer o contrário, embora não quisesse lamentar. — Quando era muito pequena, a coisa era pior, porque eu não sabia como me proteger, e eu ouvia pensamentos que não eram convenientes para a minha idade, claro, e os repetia como se fossem vontades de criança. Meus pais não sabiam o que fazer comigo. A coisa embaraçava o meu pai, particularmente. Minha mãe acabou me levando a um psicólogo infantil, que disse exatamente o que eu era, mas ela não conseguia aceitar a realidade e continuou tentando dizer à minha família que eu apenas estava interpretando a linguagem de seu corpo e era muito observadora, e que por isso tinha uma boa razão para imaginar que ouvia os pensamentos das pessoas. Naturalmente, ela não podia admitir que eu estava literalmente ouvindo os pensamentos das pessoas porque aquilo não cabia em seu mundo. “E eu fui muito mal na escola porque era bastante difícil para eu me concentrar quando tão poucos se concentravam. Mas, quando havia provas, eu me saía bem porque as outras crianças estavam se concentrando em suas próprias folhas de papel... aquilo me dava uma certa margem de liberdade. Às vezes meus pais achavam que eu era preguiçosa por não ir bem nas tarefas diárias. Às vezes os professores pensavam que eu tinha uma deficiência de aprendizado; oh, você não acreditaria nas teorias que eles levantavam. Eu devo ter tido meus olhos e ouvidos examinados a cada dois meses, ou coisa parecida, e também meu cérebro sofreu exames... nossa! Meus pobres pais gastaram os olhos da cara com essas coisas. Mas eles nunca conseguiram aceitar a simples verdade. Ao menos da boca pra fora, entende?” — Mas, por dentro, eles deviam saber. — Sim. Uma vez, quando meu pai tentava saber se devia ser fiador de um homem que queria abrir uma loja de autopeças, pediu-me para sentar ao lado dele quando o homem fosse à minha casa. Depois que o homem saiu, meu pai me levou para fora, olhou para longe e disse, “Sookie, ele está dizendo a verdade?” Foi o momento mais estranho. — Quantos anos você tinha, nessa época? — Eu devia ter menos que 7, porque eles morreram quando eu estava no segundo ano escolar. — Como? — Uma inundação repentina. Pegou-os quando estavam na ponte a oeste daqui.
Bill não comentou. Naturalmente, ele havia visto montes e montes de mortes diferentes. — E o tal homem que foi à sua casa, estava mentindo? — ele perguntou depois de alguns segundos. — Oh, sim. Ele planejava pegar o dinheiro de papai e fugir. — É de fato um dom, o que você tem. — Dom. Está bem — eu sentia os cantos de minha boca se repuxando. — Isso a torna diferente dos outros seres humanos. — É você quem diz. — Caminhamos em silêncio por um momento. — Então, você não se considera humano de todo? — Não, e já faz muito tempo. — Você realmente acredita que perdeu a própria alma? — Era o que a Igreja Católica pregava sobre os vampiros. — Não há como saber — Bill disse, quase casualmente. Era óbvio que remoera tão freqüentemente esse tipo de pensamento que aquilo era um lugar-comum para ele. — Pessoalmente, eu acho que não. Há algo em mim que não é cruel, nem homicida, mesmo depois desses anos todos. Embora eu possa ser as duas coisas. — Não é culpa sua ter sido infectado por um vírus. Bill riu com desdém, mesmo tentando parecer elegante ao fazê-lo. — Tem havido teorias de todo tipo, desde que os vampiros existem. Talvez essa aí seja verdadeira. — Depois, pareceu lamentar ter dito isso. — Se for um vírus o que transforma alguém em vampiro — ele prosseguiu, agora de um modo mais brusco —, deve ser um vírus bem seletivo. — Como alguém se torna um vampiro? Eu havia lido toda espécie de coisa sobre esse assunto, mas queria saber a verdade pela boca da pessoa mais abalizada a dizê-la. — Eu teria que sugar você, de uma vez só ou por dois ou três dias, até que você morresse, e então lhe daria o meu sangue. Você ficaria em estado cadavérico por quase quarenta e oito horas, talvez até por três dias, e então se ergueria e caminharia à noite. E caminharia faminta. O modo como ele disse “faminta” me fez estremecer. — Não há nenhum outro modo? — Outros vampiros me disseram que os seres humanos que eles mordem habitualmente, dia após dia, podem tornar-se vampiros de modo completamente inesperado. Mas isso requer sugadas consecutivas e profundas. Outras pessoas, sob as mesmas condições, tornam-se apenas anêmicas. Depois, quando estão perto da morte por alguma outra razão, um acidente de carro ou uma overdose de drogas, talvez, o processo pode dar em algo... terrivelmente errado. Eu sentia arrepios. — Vamos mudar de assunto. Que você planeja fazer com a terra que herdou dos Comptons? — Planejo viver aqui, por quanto tempo puder. Estou cansado de vagar de cidade em cidade. Eu fui criado no interior. Agora, que tenho direito legal a existir, que posso ir a Monroe, Shreveport ou Nova Orleans para adquirir sangue sintético ou pegar prostitutas especializadas, quero ficar por aqui. Ou pelo menos ver se é possível. Eu tenho vagado sem destino há décadas. — Em que estado a casa se encontra? — Péssimo — ele admitiu. — Tenho tentado limpar e organizar. Posso fazer isso à noite. Mas preciso de trabalhadores para fazer os reparos. Não sou ruim em carpintaria, mas não conheço nada sobre eletricidade. Claro, disso ele não entenderia. — A mim me parece que a casa precisa de uma nova fiação — Bill continuou, soando, por tudo quanto dizia, como qualquer outro dono de casa. — Você tem um telefone? — Claro — ele disse, surpreso. — Então, qual é o problema em chamar os trabalhadores?
— É difícil entrar em contato com eles à noite, difícil conseguir que se encontrem comigo para que eu possa lhes explicar as coisas necessárias a fazer. Eles ficam assustados, ou pensam que é um trote. — A frustração era clara na voz de Bill, embora seu rosto estivesse escondido do meu. Eu dei risada. — Se você quiser, eu telefono para eles — ofereci. — Eles me conhecem. Embora todo mundo pense que sou louca, sabem que sou honesta. — Isso seria um grande favor — Bill disse, depois de alguma hesitação. — Eles poderiam trabalhar durante o dia, depois que eu me encontrasse com eles para discutir o serviço e o preço. — Que inconveniência, não poder sair de dia — eu disse, sem pensar. Eu nunca havia refletido sobre isso. A voz de Bill era seca. — Pode ter certeza que é. — E ainda por cima ter que esconder o lugar onde você dorme — acrescentei, reforçando a mancada. Quando senti a natureza do silêncio de Bill, pedi desculpas. — Sinto muito — eu disse. Se não estivesse tão escuro ali, ele teria me visto ficar vermelha. — O lugar de repouso de um vampiro durante o dia é seu segredo mais bem guardado — Bill disse resolutamente. — Peço desculpas. — Eu aceito — ele disse, depois de um pequeno momento difícil. Chegamos à estrada e olhamos para a frente e para trás como se esperássemos um táxi passar. Eu via tudo claro à luz do luar, agora que tínhamos saído do meio das árvores. Ele me via também e me olhava de alto a baixo. — Seu vestido é da cor dos seus olhos. — Obrigada. É claro que eu não conseguia vê-lo com aquela clareza.
— Mas não todo. — Como? — É difícil para mim me habituar a mulheres com tão pouca roupa — Bill disse. — Você teve algumas décadas para se habituar a isso — eu disse acidamente. — Ora, Bill! Os vestidos ficaram curtos há pelo menos uns quarenta anos! — Eu gosto de saias longas — ele disse nostalgicamente. — Eu gostava das roupas de baixo que as mulheres usavam. As anáguas. Eu fiz um ruído grosseiro. — Você não usa uma anágua? — ele perguntou. — Eu tenho uma combinação rendada de náilon bege muito bonita — eu disse, de modo indignado. — Se você fosse um homem comum, eu diria que está tentando maliciosamente me fazer falar sobre minhas roupas de baixo! Ele riu, com aquele profundo, insólito cacarejo que me impressionava tão fortemente. — Você está usando essa combinação agora, Sookie? Eu mostrei minha língua para ele porque sabia que ele conseguia me ver. Eu ergui um pouco a barra de minha saia, revelando a renda da combinação e um pouquinho mais de minhas pernas bronzeadas. — Satisfeito? — perguntei. — Você tem belas pernas, mas eu prefiro as saias longas. — Você é teimoso — eu disse a ele. — É o que minha esposa sempre dizia. — Você foi casado? — Sim, eu me tornei um vampiro aos 30 anos. Eu tinha uma mulher, e tive cinco filhos. Minha irmã, Sarah, morava conosco. Ela nunca se casou. Seu jovem namorado foi morto na guerra. — A Guerra Civil?
— Sim. Eu consegui voltar do campo de batalha. Fui um dos felizardos. Ou pelo menos era o que eu achava na época. — Você lutou pela Confederação — eu disse, maravilhada. — Se você ainda tivesse seu uniforme e o vestisse para ir ao clube, as senhoras iriam desmaiar de emoção. — O que eu tinha, no fim da Guerra, não era bem um uniforme — ele disse, soturno. — Estávamos todos em farrapos e morrendo de fome. — Ele pareceu tremer. — Isso não tem mais sentido para mim, depois que me tornei vampiro — ele disse, sua voz mais uma vez parecendo gelada e remota. — Fiz você recordar uma coisa que o deixa irritado — eu disse. — Sinto muito. Sobre o quê devemos conversar? Nós nos viramos e começamos a caminhar de volta, descendo pela estrada em direção à casa. — Sobre a sua vida — ele disse. — Diga-me o que faz quando acorda de manhã. — Saio da cama. Depois, arrumo-a imediatamente. Tomo meu café da manhã. Torrada, às vezes cereal, às vezes ovos, e café — e escovo meus dentes e tomo banho e me visto. Às vezes depilo minhas pernas, você sabe. Se é um dia de trabalho, saio para trabalhar. Se não for preciso ir para lá até a noite, posso ir às compras, levar Vovó ao armazém, alugar um filme para ver ou tomar um banho de sol. E eu leio muito. Tenho sorte de Vovó ser ainda tão ativa. Ela lava e passa roupas e faz a maior parte da comida. — E quanto aos homens? — Oh, eu já contei a você o que acontece. É simplesmente impossível. — Então, o que é que você vai fazer, Sookie? — ele perguntou amavelmente. — Envelhecer e morrer. Minha voz estava desanimada. Ele tocara no meu ponto vulnerável mais de uma vez.
Para minha surpresa, Bill se aproximou e pegou minha mão. Agora que tínhamos nos irritado um pouco reciprocamente, tocando em pontos doloridos, o ar parecia um pouco mais claro. Na noite silenciosa, uma brisa soprava meu cabelo sobre meu rosto. — Quer tirar esse prendedor? — Bill perguntou. Não havia razão para recusa. Tirei minha mão da sua e a ergui para abrir o prendedor. Balancei minha cabeça para soltar o cabelo. Enfiei o prendedor no bolso dele, já que eu não dispunha de nenhum. Como se fosse a coisa mais normal do mundo, Bill começou a passar seus dedos pelos meus cabelos, deixando-os se esparramarem sobre meus ombros. Eu toquei suas costeletas, já que, a julgar pelas aparências, tocar era permitido. — Elas são longas — observei. — Essa era a moda, naqueles tempos — ele disse. — Sorte a minha que eu não usasse barba, como muitos homens usavam, ou teria ficado com ela por toda a eternidade. — Você não tem que se barbear nunca? — Não, por sorte minha, estava barbeado quando virei vampiro. — Ele parecia fascinado com meu cabelo. — A luz da lua, ele parece prateado — ele disse em surdina. — Ah. E você, o que gosta de fazer? Vi um esboço de sorriso na escuridão. — Gosto de ler, também. — Ele ficou pensativo. — Gosto dos filmes... naturalmente, eu acompanhei o próprio nascimento do cinema. Gosto da companhia das pessoas que levam vidas comuns. Por vezes, tenho ansiedade pela companhia de outros vampiros, embora a maior parte deles viva vidas diferentes da minha. Caminhamos em silêncio por um momento. — Você gosta de televisão? — Às vezes — ele confessou. — Por uns tempos, gravava telenovelas e as via à noite, quando achava que podia estar esquecendo de como um ser humano era. Depois, parei, porque, pelos exemplos que via aparecerem nelas, esquecer a humanidade era uma boa coisa. Eu dei risada. Caminhávamos no círculo de luz formado em torno da casa. Eu meio que esperava que Vovó surgisse na varanda, à espera de nós dois, mas ela não estava lá. E apenas uma fraca luz de lâmpada brilhava na sala de estar. “Cada uma que você me faz, Vó”, eu pensei, exasperada. Era igualzinho a ser trazida para casa de um primeiro encontro com um novo namorado. Na verdade, eu me peguei pensando se Bill tentaria ou não me beijar. Com suas concepções sobre vestidos longos, ele provavelmente acharia que eu estava fora de linha. Mas, não importa quanto pudesse parecer estúpido beijar um vampiro, percebi que, mais do que tudo, era isso o que eu queria fazer. Tive uma sensação de opressão em meu peito, um amargor, por mais uma coisa que me era negada. E então pensei, por que não? Eu o interrompi puxando suavemente a sua mão. Ergui-me e pousei meus lábios sobre seu rosto brilhante. Inalei seu odor, comum, mas um pouco salgado. Ele estava usando um pouquinho de colônia. Senti-o estremecer. Ele abaixou a cabeça para que seus lábios tocassem nos meus. Um momento depois, abri meus braços para envolver seu pescoço. Seu beijo se intensificou, e eu abri meus lábios. Nunca tinha sido beijada daquele jeito. A coisa continuou e continuou até que cheguei a achar que o mundo inteiro estava envolvido nesse beijo na boca do vampiro junto à minha. Eu sentia minha respiração se apressar, e comecei a desejar que mais coisas acontecessem. De repente, Bill recuou. Ele parecia abalado, o que me agradou infinitamente. — Boa-noite, Sookie — ele disse, afagando meu cabelo uma última vez.
— Boa-noite, Bill — eu disse. Minha voz também soava trêmula. — Tentarei chamar os eletricistas amanhã. Eu informarei a você sobre o que eles disserem. — Pode ir lá em casa amanhã à noite — se estiver de folga? — Sim — eu disse. Eu ainda tentava me recompor. — A gente se vê lá então. Obrigado, Sookie. — E ele se virou para caminhar pelas florestas de volta à sua casa. Assim que atingiu a escuridão, ficou invisível. Fiquei lá, de olhos arregalados feito uma boba, até que, com uma sacudida, despertei-me e entrei em casa para ir para a cama. Passei uma quantidade de tempo indecente deitada na cama, de olhos abertos, pensando se os mortos-vivos eram capazes de fazer... aquilo. Também pensava se seria possível ter uma conversa franca sobre o assunto com Bill. Por vezes ele parecia muito fora de moda, por vezes ele parecia tão normal quanto um sujeito que fosse seu vizinho. Bem, não realmente, mas razoavelmente normal. Parecia ao mesmo tempo maravilhoso e patético para mim que a única criatura que eu conhecera, nesses anos, com quem sentia vontade de fazer sexo, fosse na verdade inumana. Minha telepatia limitava minhas opções severamente. Eu podia fazer sexo só por fazer, claro; mas eu tinha esperado fazer sexo de um modo que pudesse realmente desfrutar. E se nós fizéssemos, e, depois desses anos todos, eu descobrisse que não tinha jeito para a coisa? Ou talvez não fosse tão bom. Talvez todos os livros e filmes exagerassem na dose, ao falar do assunto. Arlene, também, era uma exagerada, nunca parecendo entender que sua vida sexual não era uma coisa sobre a qual eu quisesse me informar. Finalmente, fui dormir, para ter longos, escuros sonhos. Na manhã seguinte, entre responder às perguntas de Vovó sobre meu passeio com Bill e expor nossos planos para o futuro, eu fiz algumas chamadas telefônicas. Descobri dois eletricistas, um encanador, e alguns outros trabalhadores que me deram números de telefone onde podiam ser encontrados à noite e a quem assegurei que uma chamada telefônica de Bill Compton não era um trote. Finalmente, eu estava lá fora, estendida ao sol e ficando tostada, quando Vovó levou o telefone para mim. — É seu chefe — ela disse. Vovó gostava de Sam, e ele devia ter-lhe dito alguma coisa para deixála feliz, pois ela estava rindo feito um gato Cheshire. — Oi, Sam — eu disse, talvez não soando muito alegre, porque eu sabia que alguma coisa estava indo mal no serviço. — Dawn não apareceu, querida — ele disse. — Oh... que inferno — eu disse, sabendo que teria de suprir a ausência de Dawn. — Eu tinha meus planos para hoje, Sam. — Mas, aquilo era uma prioridade. — Quando precisa que eu esteja aí? — Você pode vir entre cinco e nove horas? Isso ajudaria bastante. — Em troca disso, conseguirei outro dia de folga? — Que tal Dawn dividir um turno com você uma noite dessas? Fiz um ruído grosseiro, e Vovó se aprumou, com uma expressão de severidade. Eu sabia que levaria um sermão depois. — Oh, tudo bem — eu disse de má vontade. — Vejo você lá pelas cinco. — Obrigado, Sookie — ele disse. — Eu sabia que podia contar com você. Tentei me sentir lisonjeada por aquilo. Parecia uma virtude aborrecida. Você pode sempre contar com Sookie para intervir e ajudar porque ela não tem vida própria! Sem dúvida, não haveria problema em chegar à casa do Bill depois das nove. Ele ficaria de pé a noite toda, de qualquer modo.
Nome original do personagem “O gato-que-ri”, do romance Alice no país das maravilhas,de Lewis Carroll. (N. do T.)
O trabalho nunca me parecera tão lento. Eu tive problemas para me concentrar o bastante para manter a guarda intacta porque estava pensando o tempo todo em Bill. Foi sorte não haver muitos fregueses, ou eu teria ouvido pensamentos indesejáveis em abundância. Fosse como fosse, descobri que a menstruação de Arlene estava atrasada, e ela temia estar grávida; antes que eu pudesse me conter, dei-lhe um abraço apertado. Ela olhou para mim intrigada e ficou com o rosto vermelho. — Você leu minha mente, Sookie? — perguntou, com uma censura implícita na voz. Arlene era uma das poucas pessoas que simplesmente tinham conhecimento de minha habilidade sem tentar explicá-la ou classificar-me como uma excêntrica. Ela tampouco falava disso com freqüência e nem adotava um tom anormal de voz, como eu percebera. — Sinto muito, foi sem querer — eu pedi desculpas. — Não estou conseguindo me concentrar, hoje. — Tudo certo, então. Mas, desligue o negócio a partir de agora. — E Arlene, com seus cachos flamejantes caindo sobre as bochechas, balançou o dedo em minha cara. Senti vontade de chorar. — Sinto muito — eu repeti e saí andando em direção à despensa para me recobrar. Eu tinha que normalizar meu rosto e segurar aquelas lágrimas. Ouvi a porta abrir-se atrás de mim. — Ei, eu disse que sentia muito, Arlene! — respondi de pronto, querendo ficar sozinha. Por vezes Arlene confundia telepatia com talento psíquico. Fiquei com medo que ela me perguntasse se estava realmente grávida. Seria melhor que saísse e comprasse um teste de gravidez e o levasse para casa. — Sookie. — Era Sam. Ele me virou com a mão no meu ombro. — Que há de errado? Sua voz era amável e fez com que eu ficasse com mais vontade de chorar.
— Gostaria que sua voz fosse antipática, para que eu não chorasse! — eu disse. Ele riu, não uma grande risada, mas uma pequenina. Pôs um braço em torno de mim. — Qual é o problema? — Ele não ia desistir e ir embora. — Oh, eu... — eu comecei a dizer e parei. Eu nunca, nunca discutira explicitamente o meu problema (era assim que eu o considerava) com Sam ou outra pessoa. Todo mundo em Bon Temps conhecia os boatos sobre a razão de eu ser estranha, mas ninguém parecia perceber que eu tinha que ouvir aquela tagarelice ininterrupta que saía da cabeça deles, quisesse ou não ouvir — todo dia, aquela ladainha sem fim... — Você ouviu alguma coisa que lhe aborreceu? — Sua voz era baixa e positiva. Ele tocou o meio de minha testa, para indicar que ele sabia exatamente como eu sabia “ouvir”. — Sim. — Não consegue evitar esse negócio, não é? — De jeito nenhum. — Você odeia isso, não é, querida? — Oh, sim. — Mas, não é culpa sua, não é mesmo? — Eu tento não escutar, mas eu não consigo ficar sempre em guarda. — Senti uma lágrima que eu não fora capaz de conter escorrendo por meu rosto. — É assim que você faz? Como consegue manter a guarda, Sookie? Ele parecia realmente interessado, não como se pensasse que eu fosse um caso perdido. Olhei para os olhos azuis brilhantes e destacados de Sam sem me aprofundar.
— Eu só... é difícil descrever, a menos que você possa fazer também... eu ergo uma cerca... não, não é uma cerca, é como encaixar placas de aço entre meu cérebro e todos os outros. — Você tem que manter as placas erguidas? — Sim. Isso exige muita concentração. É como dividir minha mente o tempo todo. É por isso que as pessoas pensam que sou louca. Metade de meu cérebro tenta manter as placas erguidas, e a outra metade pode estar recebendo pedidos de bebida, e então, de vez em quando, não sobra muito espaço para uma conversa coerente. Que jorro de alívio eu estava sentindo, por poder conversar sobre aquilo! — Você ouve palavras ou apenas capta impressões? — Depende de quem eu estiver ouvindo. E de seu estado de espírito. Se a pessoa está bêbada, ou realmente perturbada, o que capto são apenas imagens, impressões, intenções. Se a pessoa está sóbria e sã, então são palavras e algumas imagens. — O vampiro diz que você não pode ouvi-lo. A idéia de Bill e Sam terem uma conversa sobre mim fez com que eu me sentisse muito esquisita. — É verdade — admiti. — Isso é relaxante para você? — Oh, sim. — Eu afirmei do fundo de meu coração. — Você pode me ouvir, Sookie? — Eu não quero tentar! — eu disse impacientemente. Movi-me rumo à porta da despensa e fiquei com minha mão na maçaneta. Tirei um lenço do bolso de meu short e apaguei a trilha de lágrimas em meu rosto. — Eu terei que me demitir se eu ler sua mente, Sam! Eu gosto de você, eu gosto daqui. — Ao menos tente fazer isso alguma vez, Sookie — ele disse casualmente, virando-se para abrir o pacote de uísque com o estilete de cortar caixas que trazia no bolso. — Não se preocupe comigo. Você terá o emprego enquanto quiser. Limpei uma mesa na qual Jason havia derrubado sal. Ele estivera ali mais cedo para comer um hambúrguer com fritas e engolir duas cervejas. Eu estava ruminando a oferta de Sam em meus pensamentos. Eu não tentaria escutar a sua mente hoje. Ele estava disponível para mim. Eu esperaria o momento em que ele estivesse ocupado fazendo outra coisa. Eu apenas me aproveitaria de alguma brecha e daria uma escutada. Ele me convidara a fazê-lo, o que era absolutamente singular. Era muito bom ser convidada. Eu ajeitei minha maquiagem e escovei o cabelo. Eu o usaria solto, já que Bill parecia gostar dele assim, e que maldito incômodo ele fora a noite toda. Era quase hora de me retirar, portanto, peguei de volta a minha bolsa, que estava na gaveta do escritório de Sam.
A casa dos Comptons, como a casa de Vovó, era bem distanciada da rodovia. Era um pouquinho mais visível do que a dela, e tinha uma vista do cemitério, o que a de Vovó não tinha. Isso se devia (ao menos em parte) à posição mais elevada da casa dos Comptons. Ela ficava no topo de um outeiro e era dotada de dois andares completos. A casa de Vovó tinha dois quartos vazios na parte de cima, e um sótão, mas era mais como se fosse a metade de um segundo andar. Em alguma altura na longa história da família, os Comptons tinham possuído uma bela casa. Mesmo no escuro, ela tinha certa beleza. Mas eu sabia que, à luz do dia, seria possível notar que as colunas estavam descascadas, que o tapume de madeira estava torto e que o quintal virará uma selva. No calor úmido da Lousiana, o crescimento de mato no quintal podia ficar fora de controle muito rapidamente, e o velho sr. Compton não era das pessoas que contratam alguém para cuidar do quintal. Quando ele ficou muito doente, a coisa simplesmente se deteriorou.
O pátio circular não recebia cascalho fresco havia anos, e meu carro cambaleou na porta da frente. Vi que a casa estava toda acesa, e comecei a perceber que aquela noite não seria igual à noite anterior. Havia outro carro estacionado na frente da casa, um Lincoln Continental, branco, com um capo azul-escuro. Um adesivo azul sobre branco colocado no párachoque dizia VAMPIROS CHUPAM SANGUE. Um outro, vermelho e amarelo, declarava BUZINE SE FOR UM DOADOR! Uma placa de enfeite dizia, simplesmente, CANINOS I. Se Bill já tinha companhia, talvez eu devesse simplesmente dar meia volta e ir para casa. Mas eu tinha sido convidada e era visita esperada. Relutantemente, ergui minha mão e bati à porta. Ela foi aberta por uma vampira. Ela reluzia freneticamente. Era muito, muito alta e negra. Estava usando lycra. Um sutiã rosa-flamingo que combinava com perneiras longas de couro de bezerro, e mais uma camisa masculina branca que irrompia desabotoada, completavam o conjunto. Eu achei que ela parecia infernalmente vulgar e atraente de modo quase absoluto, de um ponto de vista masculino. — Oi, franguinha humana — a vampira ronronou. E subitamente percebi que estava em perigo. Bill tinha me avisado repetidamente que nem todos os vampiros eram como ele, e havia momentos em que nem ele era assim tão mansinho. Eu não conseguia ler a mente daquela criatura, mas percebia muito bem a crueldade que havia em sua voz. Talvez ela tivesse agredido Bill. Talvez fosse sua amante. Tudo isso passou pela minha cabeça voando, mas nada transparecia em meu rosto. Eu trazia anos a fio de experiência em controlar minhas expressões faciais. Senti meu sorriso aflorar protetoramente, minha espinha se endireitando, e disse de modo animado:
— Oi! Eu tinha marcado de aparecer aqui hoje à noite e dar ao Bill umas informações. Ele está disponível? A vampira riu de mim, o que não era coisa à qual eu estivesse desabituada. Meu sorriso ficou um pouco mais escancarado. Essa criatura irradiava perigo do mesmo modo que uma lâmpada irradia calor. — Esta garotinha humana aqui na porta diz que tem umas informações para você, Bill! — ela gritou sobre o seu (delgado, castanho, magnífico) ombro. Eu tentei não demonstrar o alívio de jeito nenhum. — Você quer ver esta coisinha? Ou eu devo dar nela uma mordida de amor? “Só se for sobre meu cadáver”, eu pensei furiosamente, e então percebi que seria exatamente assim. Eu não ouvi Bill falar, mas a vampira voltou para dentro, e eu entrei na velha casa. Fugir não seria aconselhável; aquela vampira poderia me derrubar antes que eu tivesse descido cinco degraus lá fora. E eu não tinha visto Bill, e não podia ter certeza de que tudo estava certo com ele até que o visse. Eu enfrentaria a encrenca como pudesse e ficaria esperando pelo melhor. Sou muito boa em fazer essas coisas. O grande quarto frontal estava lotado de mobília antiga e gente. Não, gente coisa nenhuma, percebi depois de olhar com cuidado; duas pessoas, e mais dois estranhos vampiros. Os dois vampiros eram homens e brancos. Um tinha cicatrizes e tatuagens da moda em cada polegada visível de sua pele. O outro era ainda mais alto que a mulher, com uma cabeça da qual brotava um longo cabelo escuro e ondulado, e tinha uma compleição magnífica. Já os humanos eram menos impressionantes. A mulher era loura e roliça, de uns 35 anos ou mais. Ela estava usando uma maquiagem um pouco pesada. Parecia tão usada quanto uma bota velha. O homem era outra história. Ele era lindo, o mais belo homem que eu já tinha visto. Não poderia ter mais que 21 anos. Era moreno, talvez hispânico, pequeno e de bela ossatura. Usava calças curtas de zuarte e mais nada. Exceto a maquiagem. Eu percebi aquilo de passagem, mas não achei atraente. Então, Bill se mexeu e eu o vi, parado nas sombras do corredor escuro que levava da sala de estar aos fundos da casa. Olhei para ele, tentando me ajustar à situação imprevista. Para minha aflição, seu olhar não me dava apoio. Seu rosto estava muito tranqüilo, absolutamente impenetrável. Embora eu não pudesse acreditar que estivesse pensando nisso, naquele momento, teria sido muito bom dar uma olhadela no que estava passando pela sua cabeça. — Bem, podemos ter uma noite maravilhosa agora — o vampiro de cabelos compridos disse. Ele parecia deliciado. — Essa é uma amiguinha sua, Bill? Ela parece tão tenra... Pensei em algumas palavras bem seletas que aprendera com Jason. — Se vocês desculparem a mim e a Bill um minutinho — eu disse muito polidamente, como se esta fosse uma noite perfeitamente normal —, eu estive contratando alguns trabalhadores para vir aqui darem uma olhada. Tentei soar fria e impessoal, embora usar shorts, camiseta e Nikes não inspire respeito profissional. Mas eu esperava transmitir a impressão de que pessoas simpáticas que eu encontrava ao longo de um dia de trabalho não poderiam representar nenhum perigo. — E nós que soubemos que Bill estava passando por uma dieta exclusiva de sangue sintético — disse o vampiro tatuado. — Acho que fomos mal-informados, Diane. A vampira empinou a cabeça e me deu uma longa olhada. — Eu não tenho tanta certeza. Ela me parece virgem. Eu não creio que Diane estivesse se referindo a hímens. Dei alguns passos casuais na direção de Bill, esperando desesperadamente que ele me defendesse se o ruim ficasse ainda pior, mas não me sentindo nem um pouco segura. Eu ainda sorria, esperando que ele falasse, que se movesse. E então ele se manifestou:
— Sookie é minha — ele disse, e sua voz era tão fria e macia que não teria feito uma ondulação na água se fosse uma pedra. Olhei para ele de modo penetrante, mas eu tinha juízo o bastante para manter a boca fechada. — Que é que você tem feito para cuidar do nosso Bill? — Diane perguntou. — Meta-se com sua própria vida de merda — eu respondi, usando uma das pérolas do repertório de Jason e ainda sorrindo. Eu já disse que sou temperamental. Houve um pequeno intervalo tenso. Todos, humanos e vampiros, pareciam me examinar com atenção o bastante para contar os pêlos de meus braços. Então o homem alto começou a se sacudir numa risada e os outros o seguiram. Enquanto eles faziam caretas de desprezo e riam, eu me movi para um pouquinho mais perto de Bill. Seus olhos negros estavam fixados em mim; ele não estava rindo, e eu tive a clara sensação de que ele desejava, tanto quanto eu, que eu lesse a sua mente. Ele estava correndo algum perigo, eu notei. E se ele estava, eu também. — Você tem um sorriso engraçado — disse o homem alto pensativamente. Eu gostava mais dele quando estava rindo. — Oh, Malcolm — disse Diane. — Você acha todas as mulheres humanas engraçadas. Malcolm puxou o homem humano para seus braços e deu-lhe um longo beijo. Eu comecei a me sentir um pouco enjoada. Esse tipo de coisa tem que ser em particular. — Isto é verdade — Malcolm disse, afastando-se por um momento, para decepção aparente do homem pequeno. — Mas, há algo de raro nessa aí. Talvez ela tenha um sangue mais rico. — Ora — disse a mulher loura, com uma voz que, saindo daquela boca, poderia fazer bolhas de tinta — essa aí é apenas a maluca da Sookie Stackhouse.
Olhei para a mulher com mais atenção. Eu enfim a reconhecia, ao mentalmente remover um pouco daqueles quilômetros de maquiagem que emplastravam seu rosto. Era Janella Lennox, que tinha trabalhado no Merlotte por duas semanas até que Sam a demitira. Ela se mudara para Monroe, como Arlene me dissera. O vampiro tatuado pôs seu braço em torno de Janella e esfregou seus seios. Eu senti o sangue ser drenado debaixo do meu nariz. Fiquei nauseada. Estava ficando cada vez pior. Janella, tão indiferente à decência quanto o vampiro, pôs a mão entre as pernas dele e massageou. Ao menos aprendi com clareza que os vampiros podem fazer sexo. Eu estava bem pouco excitada por ficar sabendo disso naquele momento. Malcolm estava olhando para mim, e eu demonstrava minha repulsa. — Ela é inocente — ele disse a Bill, com um sorriso cheio de expectativa. — Ela é minha — Bill disse outra vez. Dessa vez sua voz era mais intensa. Se ele fosse uma cascavel, seu guiso não poderia ter sido mais eloqüente. — Ora, Bill, você não pode me dizer que tem conseguido tudo que precisa dessa coisinha aí — Diane disse. — Você parece pálido e desanimado. Ela não tem tomado conta de você muito bem. Eu me aproximei mais um pouco de Bill. — Aqui —, ofereceu Diane, a quem eu estava começando a odiar —, prove um pouquinho da mulher de Liam ou do belo rapazinho de Malcolm, Jerry. Janella não reagia a ser oferecida como um objeto, talvez porque estivesse ocupada demais abrindo o zíper das calças de Liam, mas o belo namorado de Malcolm, Jerry, rastejava feito serpente, cheio de desejo, na direção de Bill. Eu sorri como se minhas mandíbulas fossem quebrar quando ele jogou seus braços em torno de Bill, focinhou em seu pescoço, esfregou o peito contra a sua camisa.
O esforço para se conter no rosto do meu vampiro era terrível de ver. Seus caninos apontaram. Eu os vi completamente esticados pela primeira vez. O sangue sintético não estava satisfazendo a todas as necessidades de Bill, isso era certo. Jerry começou a lamber um ponto na base do pescoço de Bill. Manter a minha guarda estava se provando mais difícil do que eu pensava. Já que três dos presentes eram vampiros, cujos pensamentos eu não podia ouvir, e Janella estava completamente ocupada, restava Jerry. Eu ouvi e tive nojo. Bill, fremente com a tentação que o cercava, estava na verdade se curvando para afundar seus caninos no pescoço de Jerry quando eu disse: — Não faça isso, ele tem o Sino-vírus! Como se acordasse de um enfeitiçamento, Bill olhou para mim sobre os ombros de Jerry. Ele estava respirando pesadamente, mas seus caninos tinham se contraído. Eu tirei vantagem do momento dando mais alguns passos à frente. Eu estava a apenas um metro de Bill, agora. — Sino-aids— eu disse. Vítimas alcoólatras e viciadas em drogas pesadas afetavam os vampiros temporariamente, e alguns deles diziam até gostar daquela mistura; mas o sangue de um humano contagiado pelo vírus da aids não fazia isso, nem o faziam as doenças sexualmente transmissíveis, ou quaisquer outras pragas que afetassem os seres humanos. Exceto a Sino-aids. Nem a Sino-aids matava vampiros de maneira tão infalível como a aids matava seres humanos, mas ela deixava os mortosvivos bastante debilitados por quase um mês, durante o qual era bem mais fácil capturá-los e cravar neles uma estaca. Ainda rara nos Estados Unidos, a Sino-aids estava ganhando território em torno de portos como Nova Orleans, com marinheiros e outros viajantes de muitos países que passavam pela cidade em espírito festivo. Todos os vampiros ficaram paralisados, olhando para Jerry como se ele fosse a morte em pessoa; e para eles, talvez, ele fosse.
O belo homem jovem me pegou completamente de surpresa. Ele se virou e pulou sobre mim. Não era um vampiro, mas era forte, e estava evidentemente apenas nos primeiros estágios do vírus, e me empurrou contra a parede à minha esquerda. Segurou em torno de minha garganta com uma das mãos e ergueu a outra para me esmurrar o rosto. Meus braços ainda estavam se erguendo, numa reação defensiva, quando a mão de Jerry foi agarrada, e seu corpo se paralisou. — Tire as mãos da garganta dela — Bill disse numa voz aterrorizante que assustou até a mim. Nesse momento, os sustos estavam se empilhando uns em cima dos outros tão depressa que eu não pensei que ainda voltaria a me sentir a salvo algum dia. Mas os dedos de Jerry não se afrouxaram, e eu fiz um pequeno som queixoso sem querer. Virei meus olhos para o lado, e quando olhei para o rosto cinzento de Jerry, percebi que Bill estava segurando a sua mão, Malcolm estava agarrando as suas pernas, e Jerry estava tão aterrorizado que não podia compreender o que queriam dele. O aposento começou a ficar tumultuado, e as vozes iam e voltavam, confusas. A mente de Jerry brigava com a minha. Eu estava desamparada para poder repeli-lo. Sua mente estava carregada de visões do amante que lhe passara o vírus, um amante que o deixara por um vampiro, um amante que Jerry matara num momento de fúria ciumenta. Jerry via sua morte chegar através dos vampiros que ele quisera matar, e não estava satisfeito por ter extraído vingança o suficiente dos vampiros que ele já contaminara. Eu via o rosto de Diane por cima do ombro de Jerry, e ela estava sorrindo. Bill quebrou o pulso de Jerry. Ele gritou e desfaleceu no chão. O sangue começou a ondular outra vez em minha cabeça, e eu quase desmaiei. Malcolm apanhou Jerry e carregou-o para o sofá tão casualmente como se o outro fosse um tapete de enrolar. Mas o rosto de Malcolm não era assim tão displicente. Eu sabia que Jerry seria felizardo se morresse logo.
Bill plantou-se em frente a mim, tomando o lugar de Jerry. Seus dedos, os dedos que tinham acabado de quebrar o pulso de Jerry, massagearam meu pescoço tão delicadamente quanto minha avó o faria. Ele pôs um dedo sobre meus lábios para ter certeza de que eu sabia que era para ficar quieta. Então, com seu braço em torno de mim, ele virou seu rosto para os outros vampiros. — Tudo isso foi muito divertido — Liam disse. Sua voz era tão fria que nem parecia que Janella estava ali com ele, no sofá, fazendo-lhe uma massagem muito íntima. Ele não se preocupara em arredar pé durante o incidente todo. Ele tinha uma quantidade de tatuagens que eu nunca podia ter imaginado neste mundo. Estava nauseada a ponto de vomitar. — Mas eu acho que devemos voltar a Monroe. Temos que ter uma conversinha com Jerry quando ele despertar, não é, Malcolm? Malcom colocou o corpo inconsciente de Jerry sobre seu ombro e concordou com Liam. Diane parecia desapontada. — Mas, companheiros — ela protestou. — Nós não descobrimos como foi que essa garotinha aí soube disso. Os dois vampiros viraram simultaneamente os olhos em minha direção. De maneira completamente casual, Liam levou um segundo para atingir um clímax. Sim, vampiros faziam sexo, tudo bem. Depois de um suspiro de plenitude, ele disse: — Obrigado, Janella. Essa é uma boa pergunta, Malcolm. Como sempre, a nossa Diane pegou na veia. E os três vampiros visitantes puseram-se a rir, como se isso fosse uma piada muito boa, mas eu a achava assustadora. — Você não pode falar ainda, não é, querida? — Bill disse, dando-me um beliscão no ombro enquanto perguntava isso, como se eu não pudesse pegar a deixa. Balancei minha cabeça. — Eu talvez conseguisse fazê-la falar — Diane se ofereceu.
— Diane, esqueça — Bill disse gentilmente. — Oh, sim. Ela é sua — Diane disse. Mas não parecia intimidada ou convencida. — Teremos que nos visitar em alguma outra ocasião — Bill disse, e sua voz deixava claro que os outros tinham que dar o fora ou brigar com ele. Liam ergueu-se, fechou o zíper da calça, fazendo um sinal para sua mulher humana. — Vamos embora, Janella, estamos sendo expulsos. As tatuagens ondulavam em seus braços fortes enquanto ele os esticava. Janella passava as mãos sobre suas costelas como se não estivesse ainda saciada, e ele deu-lhe uma palmada que a afastou para longe com tanta facilidade como se estivesse matando um inseto. Ela parecia envergonhada, mas não mortificada como eu ficaria no seu lugar. Isso não era novidade para ela. Malcolm pegou Jerry e carregou-o até a porta da frente sem dizer uma palavra. Se beber do sangue de Jerry houvesse lhe transmitido o vírus, Malcolm ainda não estava prejudicado. Diane saiu por último, jogando uma bolsa sobre seu ombro e lançando um olhar bem brilhante para trás. — Deixarei os pombinhos ficarem sós, então. Foi divertido, querida — ela disse frivolamente, e bateu a porta com força. No momento em que ouvi o carro dar a partida lá fora, desmaiei. Eu nunca fizera isso em minha vida, e espero não fazer outra vez, mas sinto que, naquele momento, eu tinha uma boa razão. Eu parecia passar bastante tempo inconsciente perto de Bill. Esse era um pensamento crucial, e eu sabia que merecia muita ponderação, mas não naquele momento. Quando recuperei a consciência, tudo o que vi e ouvi voltou num turbilhão, e fiquei enjoada pra valer. Imediatamente Bill me debruçou junto a extremidade do sofá. Mas consegui manter a comida no estômago, talvez porque nem houvesse muita coisa nele.
— Vampiros se comportam desse jeito? — sussurrei. Minha garganta estava ferida e arranhada onde Jerry a apertara. — Eles foram horríveis. — Tentei pegar você lá no bar quando descobri que não estava em casa — Bill disse. Sua voz era oca. — Mas você tinha saído. Embora eu soubesse que isso em nada ajudaria, despenquei a chorar. Eu tinha certeza de que Jerry estaria morto, a essa altura, e senti que tinha que ter feito alguma coisa para impedir isso, mas não pude ficar quieta ao notar que ele ia infectar Bill. Tantas coisas sobre esse curto episódio tinham me afetado tão profundamente que eu não sabia por onde começaria a me desesperar. Em menos de quinze minutos temera por minha vida, temera pela vida de Bill (bem, vida não, existência), testemunhara atos sexuais que deviam ser estritamente particulares, vira meu namorado em potencial nos estertores da sede de sangue (e ponha sede nisso!) e quase fora sufocada até morrer por um sujeito fortão e doente. Numa segunda reflexão, dei a mim mesma permissão para chorar. Eu me ergui, chorei e sequei minhas lágrimas com um lenço que Bill me estendeu. Minha curiosidade sobre o porquê um vampiro precisaria de um lenço foi só um pequeno respingo de normalidade, tragado pela inundação de minhas lágrimas nervosas. — Quando vampiros vivem em bandos — ele disse repentinamente — eles se tornam mais cruéis porque se misturam. Vêem-se uns aos outros constantemente, e aí se lembram de como estão longe de serem humanos. Tornam-se as leis deles mesmos. Vampiros como eu, que vivem sozinhos, lembram-se um pouco melhor de sua humanidade inicial. Eu ouvia sua voz suave, mergulhando rapidamente em seus pensamentos enquanto ele tentava explicar o inexplicável para mim. — Sookie, nossa vida é sedutora e absorvente e tem sido assim por séculos, para alguns de nós. O sangue sintético e a ressentida aceitação humana não vão mudar isso do dia para a noite — ou mesmo em uma década. Diane, Liam e Malcolm estão juntos há cinqüenta anos.
— Que belezinha — eu disse, e minha voz trazia uma coisa que eu nunca percebera em mim: amargura. — São bodas de ouro para eles. — Você não pode esquecer esse assunto? — Bill perguntou. Seus enormes olhos escuros aproximaram-se mais e mais. Sua boca estava bem perto da minha. — Eu não sei. — As palavras saíam espasmodicamente de mim. — Você sabe, eu não sei se você poderia fazer uma coisa? Suas sobrancelhas se ergueram interrogativamente. — Fazer uma coisa...? — Conseguir... — e eu me interrompi, tentando pensar num modo agradável de dizer o que eu queria dizer. Eu havia visto nessa noite mais crueza que vira em toda a minha vida, e não queria aumentá-la. — Uma ereção — eu disse, evitando os olhos dele. — Você sabe melhor agora. — Ele parecia fazer um esforço para não achar engraçado. — Podemos fazer sexo, mas não podemos fazer filhos ou tê-los. Não faz você se sentir melhor, pensar que Diane nunca poderá ter um filho? Minha cuca fundiu. Abri meus olhos e olhei para ele firmemente. — Não-ria-de-mim. — Oh, Sookie — ele disse, e sua mão se ergueu para tocar em meu rosto. Eu me esquivei da mão dele e lutei para ficar firme. Ele não me ajudou, o que foi uma boa coisa, mas sentou-se no assoalho e olhou-me com um rosto imóvel, inescrutável. Seus caninos tinham se contraído, mas eu sabia que ele estava ainda padecendo com aquela sede. Violentamente. Minha bolsa estava no chão perto da porta. Eu não estava caminhando com muita firmeza, mas caminhava, fosse como fosse. Tirei a lista de eletricistas de dentro dela e a atirei sobre a mesa. — Tenho que ir embora. Ele ficou em frente a mim, de repente. Fizera mais uma daquelas coisas de vampiro.
— Posso beijar você em despedida? — ele perguntou, as mãos abaixadas, deixando bem óbvio que não me tocaria a menos que eu desse sinal verde. — Não — eu disse veementemente. — Não suportarei isso, depois do que vi. — A gente se vê. — Sim. Talvez. Ele foi à minha frente para abrir a porta, mas pensei que estava era querendo me agarrar, e me esquivei. Girei em meus calcanhares e quase corri para o carro, as lágrimas turvando minha visão outra vez. Fiquei satisfeita que o trajeto para casa fosse tão curto.
O telefone estava tocando. Pus meu travesseiro sobre a cabeça. Vovó iria atendê-lo? Como o ruído irritante persistia, julguei que Vovó devia estar fazendo compras ou lá fora, trabalhando no quintal. Comecei a me contorcer em direção à mesa perto da cama, não feliz, mas resignada. Com a dor de cabeça e os remorsos de alguém que estivesse passando por uma terrível ressaca (embora a minha fosse mais emocional que alcoólica), eu estendi uma mão trêmula e agarrei o fone. — Sim? — eu perguntei. O som não saiu direito. Pigarreei e tentei novamente. — Alô? — Sookie? — Ã-hã. Sam? — Sim. Escuta, querida, me faz um favor? — O quê? — eu estava comprometida com o trabalho hoje de qualquer modo, e eu não queria mudar o turno de Dawn e o meu, também. — Vá à casa de Dawn, e veja o que está acontecendo, faz isso por mim? Ela não responde no telefone, e tampouco veio pra cá. O caminhão de entrega acabou de chegar, e eu tenho que dizer a esses caras onde pôr as coisas. — Agora? Você quer que eu vá agora? Minha velha cama nunca me agarrou com tanta força. — Você poderia? Pela primeira vez, ele pareceu compreender meu estado de espírito incomum. Eu nunca recusara nada a Sam. — Acho que sim — eu disse, sentindo-me completamente cansada outra vez com a simples idéia de sair da cama. Eu não era muito chegada a Dawn, e ela não era muito chegada a mim. Ela estava convencida de que eu lera a sua mente e dissera a Jason alguma coisa que pensara sobre ele, o que fez com que ele rompesse com ela. Se eu tivesse esse interesse nos romances de Jason, nunca teria tempo para comer ou dormir. Tomei uma chuveirada e pus minhas roupas de trabalho, movendome preguiçosamente. Toda a minha animação se esvaíra, como o gás de uma garrafa de refrigerante destampada. Comi cereal, escovei meus dentes e disse à Vovó para onde eu estava indo quando consegui encontrá-la; ela estava lá fora plantando petúnias num barril na porta dos fundos e não pareceu entender direito o que eu estava dizendo, mas sorriu e acenou, de qualquer modo. Vovó estava ficando a cada semana um pouco mais surda, mas eu achava que não era nada de extraordinário, já que ela estava com 78 anos. Era maravilhoso que ela fosse tão forte e saudável, e que sua mente fosse tão alerta quanto um sino. Quando saí para dar conta do recado inconveniente, eu pensei no quanto devia ter sido duro para Vovó criar mais duas crianças depois que ela já criara as suas. Meu pai, seu filho, morrera quando eu tinha 7 e Jason 10 anos. Quando eu fiz 23, a filha de Vovó, minha tia Linda, morreu de câncer uterino. Hadley, a filha de Linda, havia desaparecido na mesma subcultura que produzira coisas como os Rattrays antes mesmo que ela falecesse, e até hoje não sabemos se Hadley foi informada da morte da mãe. Havia um monte de aflições a enfrentar e, no entanto, Vovó fora sempre forte o bastante para criar-nos. Eu olhei através de meus pára-brisas para os três pequenos apartamentos duplex num lado da rua Berry, um ou dois blocos desmantelados que ficavam num trecho atrás da parte mais velha do centro de Bon Temps. Dawn morava num deles. Localizei seu carro, pequeno e verde, na entrada de uma das casas mais bem cuidadas, e coloquei o meu atrás dele. Dawn pusera um cesto de begônias na sua porta da frente, mas elas pareciam secas. Bati à porta. Esperei por um ou dois minutos. Bati novamente. — Sookie, você precisa de ajuda?
A voz soou-me familiar. Eu me virei e cobri meus olhos para proteger-me da luz do sol da manhã. Rene Leirner estava encostado em sua picape, estacionada do outro lado da rua em frente a uma das casas com vigas de madeira que compunham o resto da vizinhança. — Bem — eu comecei, não sabendo se precisava de ajuda ou não, ou se, caso precisasse, Rene poderia fornecê-la. — Você viu a Dawn? Ela não foi trabalhar hoje, e não telefonou ontem. Sam pediu para eu vir dar uma olhada. — Sam deveria vir para fazer ele mesmo seu trabalho sujo — Rene disse, o que perversamente fez com que eu tomasse a defesa do meu chefe. — O caminhão chegou, tinha que ser descarregado — respondi, virando-me e batendo à porta outra vez. — Dawn — gritei. — Deixe-me entrar. Eu olhei para a varanda de concreto. O pólen dos pinheiros começara a cair havia alguns dias. A varanda de Dawn ficara de um amarelo só. Minhas pegadas eram as únicas. Meu couro cabeludo começou a cocar. Eu mal percebia o fato de que Rene estava lá, perplexo, encostado à porta de sua picape, sem saber se ficava ou ia embora. Dawn morava em um apartamento geminado, bem pequeno, e a porta para a outra metade era pertinho da dela. Sua pequena entrada estava vazia, e não havia cortinas nas janelas. Era como se Dawn estivesse viajando temporariamente. Mas ela fora orgulhosa o bastante para pendurar cortinas, brancas com flores de um ouro escuro. Estavam corridas, mas o tecido estava esgarçado e desalinhado, e Dawn não havia fechado as persianas baratas de alumínio. Olhei entre elas e descobri a sala de estar ocupada apenas por alguma mobília comprada em mercado de pulgas. Uma caneca de café estava posta na mesa que ficava junto a um diva desajeitado e um velho sofá coberto com um tapete afegão feito à mão estava encostado na parede. — Eu acho que vou dar uma voltinha — eu disse a Rene.
Ele atravessou a rua como se eu lhe tivesse dado um sinal, e contornei a varanda frontal. Meus pés roçaram a grama empoeirada, toda amarelada pelo pólen dos pinheiros, e senti que teria que limpar meus sapatos e talvez mudar as meias antes de entrar no trabalho. Na estação do pólen, tudo se amarelava. Carros, plantas, telhados, janelas, tudo fica polvilhado por uma névoa dourada. Os laguinhos e as poças de água de chuva ficam com uma espuma amarela nas bordas. A janela do banheiro de Dawn era tão discretamente alta que eu não pude vê-la. Ela baixara as persianas no quarto de dormir, mas não as fechara direito. Eu conseguia ver um pouco olhando entre as tabuinhas. Dawn estava deitada na cama. As roupas de cama estavam jogadas em torno dela de maneira desordenada. Suas pernas estavam arreganhadas. Seu rosto estava inchado e incolor, e sua língua se projetava para fora da boca. Havia moscas rastejando sobre ela. Eu ouvi Rene se aproximando por trás de mim. — Vá chamar a polícia — eu disse. — Que está dizendo, Sookie? Você está vendo a Dawn? — Vá chamar a policia! — O.k., o.k.! — Rene bateu em retirada, impetuosamente. Alguma espécie de solidariedade feminina me fizera não desejar que Rene visse Dawn daquele jeito, sem que ela consentisse. E minha colega de bar estava agora muito além de poder dar qualquer consentimento. Fiquei de costas para a janela, horrivelmente tentada a olhar uma segunda vez na vã esperança de que tivesse cometido um equívoco na primeira. Olhando fixo para o apartamento vizinho ao de Dawn, talvez a bem menos de dois metros, imaginei como seus inquilinos podiam não ter ouvido a morte de Dawn, que devia ter sido violenta. Rene tinha voltado. Seu rosto castigado pelo tempo estava franzido numa expressão de profunda preocupação, e seus olhos castanhos-claros pareciam luzir com alguma suspeita.
— Você chama o Sam para mim, também? — perguntei. Sem uma palavra, ele virou e caminhou de volta a seu lugar. Estava sendo vigorosamente bom. A despeito de sua tendência para fofocar, Rene era sempre prestativo quando via que alguém precisava. Eu lembrava-me dele indo à minha casa para ajudar Jason a pendurar o balanço de Vovó na varanda, uma lembrança meio casual de um dia muito diferente desse que eu estava vivendo. O apartamento vizinho era tal e qual o de Dawn, portanto, eu olhava diretamente para a janela do quarto. Um rosto surgiu ali, e a janela foi erguida. Uma cabeça com o cabelo desgrenhado apontou. — Que é que você está fazendo, Sookie Stackhouse? — perguntou uma lerda, profunda e máscula voz. Eu a examinei por um momento, e finalmente localizei o rosto na minha memória, enquanto tentava não olhar muito detidamente para o belo peito nu logo abaixo. — JB? — Acertou. Eu freqüentara o ginásio com JB du Rone. Na verdade, alguns de meus encontros românticos tinham sido com ele, que era adorável, mas tão simplório que não se importava se eu lesse a sua mente ou não. Mesmo naquelas circunstâncias, dava para apreciar a sua beleza. Quando seus hormônios são reprimidos por tanto tempo como os meus, não custa muito liberá-los. Eu soltei um suspiro à vista dos músculos e peitorais de JB. — Que é que você está fazendo por aqui? — ele perguntou novamente. — Alguma coisa ruim parece ter acontecido com Dawn — eu disse, não sabendo se devia lhe revelar ou não. — Meu chefe me mandou para cá para procurá-la já que ela não apareceu no serviço. — Ela está aí? — JB simplesmente pulou a janela. Ele usava shorts, calças cortadas.
— Por favor, não olhe — eu pedi, erguendo a minha mão e, inesperadamente, comecei a chorar. Eu andava fazendo isso em excesso, ultimamente. — Ela está com uma aparência tão horrível, JB. — Puxa, querida — ele disse, e, abençoado seja seu coração singelo, pôs um braço em torno de mim e bateu em meu ombro. Se havia uma mulher por perto precisando de consolo, por Deus, isso era uma prioridade para JB du Rone. — Dawn gostava dos durões — ele disse de maneira consoladora, como se aquilo explicasse tudo. Poderia explicar para algumas pessoas, mas não para alguém fora do mundo como eu. — Durões, como? — perguntei, esperando encontrar um lenço no bolso de meu short. Ergui meus olhos para JB e o vi ficar ruborizado. — Querida, ela gostava... puxa, Sookie, você não precisa ouvir isso. Eu tinha uma reputação espalhada de virtuosa, o que eu achava irônico, de certo modo. Naquele momento, ela era inconveniente. — Pode me contar, eu trabalhei com ela — eu disse, e JB concordou solenemente, como se aquilo fizesse algum sentido. — Bem, querida, ela gostava de homens que, bom, mordessem e batessem nela. — JB parecia estupefato por essa preferência de Dawn. Eu devo ter feito uma cara de espanto porque ele disse: — Eu sei, eu também não posso compreender por que algumas pessoas gostam disso. JB, que não era homem de ignorar uma oportunidade de tirar proveito, pôs os dois braços em torno de mim e continuou me dando tapinhas consoladores, mas agora a coisa parecia se concentrar no meio de minhas costas (examinando para ver se eu estava usando sutiã) e depois um pouquinho mais para baixo (JB gostava de traseiros firmes, como me lembrei). Um monte de perguntas pairava na ponta de minha língua, mas elas permaneceram trancadas dentro de minha boca. A polícia chegou lá, representada por Kenya Jones e Kevin Prior. Quando o chefe da polícia local tinha feito de Kenya e Kevin uma dupla, ele estava dando vasão a seu senso de humor, a cidade achava, porque Kenya era muito, muito alta, da cor de chocolate meio-amargo, e parecia feita para enfrentar furacões. Já Kevin era mais baixo, tinha sardas em cada centímetro visível de seu corpo branquelo, e tinha a estreita, enxuta compleição de um corredor. Por mais que formassem uma dupla esquisita, os dois Ks se davam muito bem, embora tivessem algumas discussões memoráveis. Agora os dois agiam como policiais comuns. — O que é isso, senhorita Stackhouse? — Kenya perguntou. — Rene disse que alguma coisa aconteceu com Dawn Green? Ela examinava JB enquanto falava, e Kevin estava investigando o chão todo em volta de nós. Eu não tinha idéia do motivo disso, mas estava certo de que a polícia devia ter uma boa razão para agir assim. — Meu chefe me mandou aqui para descobrir por que Dawn tinha faltado ao trabalho ontem e não tinha aparecido hoje — eu disse. — Bati à sua porta, e ela não respondeu, mas seu carro estava aqui. Fiquei preocupada com ela, por isso fui para trás da casa para olhar pelas janelas, e ela está lá. Eu indiquei o lugar atrás deles, e os dois oficiais viraram-se para olhar para a janela. Daí, entreolharam-se e fizeram sinais, como se tivessem tido uma conversa completa. Enquanto Kenya foi na direção da janela, Kevin rumou para a porta dos fundos. JB se esquecera dos tapinhas de consolação vendo os oficiais trabalharem. Na verdade, sua boca estava um pouco aberta, revelando dentes perfeitos. Ele queria ir olhar pela janela mais que qualquer coisa, mas seus ombros não ultrapassavam os de Kenya, que, muito à vontade, ocupava todo e qualquer espaço disponível. Eu não queria me deter mais em meus próprios pensamentos. Relaxei, baixando a guarda, e ouvi os pensamentos alheios. Isolando-me dos ruídos, peguei um fio e me concentrei nele.
Kenya Jones tinha se virado para olhar para nós sem dar mostras disso. Ela estava pensando em tudo o que ela e Kevin precisavam para manter a investigação tão perfeitamente dentro das normas quanto os oficiais de patrulha de Bon Temps pudessem. Pensava que tinha sabido coisas desagradáveis sobre Dawn e sua preferência por sexo violento. Pensava que, sendo assim, não era surpresa que Dawn tivesse tido um triste fim, embora ela sentisse pena de qualquer pessoa que acabasse com moscas rastejando no rosto. Kenya lamentava ter comido uma rosquinha extra naquela manhã na Nut Hut porque poderia vomitar e aquilo a envergonharia como uma policial mulher e negra. Mudei para outro canal. JB estava pensando em como Dawn fora assassinada durante uma sessão de sexo violento ali tão pertinho dele e, embora isso fosse horrível, era ao mesmo tempo um pouco excitante e Sookie ainda tinha um corpo lindo. Gostaria de poder transar com ela imediatamente. Ela era tão doce e tão bonita. Ele estava pondo de lado a humilhação que sentira quando Dawn quisera que ele batesse nela, e ele não conseguira, e essa era uma humilhação bem velha. Mudei outra vez. Kevin se aproximou pensando que ele e Kenya fariam melhor não mexendo em nenhuma prova e que estava satisfeito por ninguém saber que ele sempre dormira com Dawn Green. Estava furioso por alguém ter matado uma mulher que ele conhecia, e tinha esperança de que o assassino não fosse um homem negro porque isso tornaria a sua relação com Kenya ainda mais tensa. Mudei outra vez. Rene Lenier estava desejando que alguém chegasse e tirasse o corpo de dentro da casa. Esperava que ninguém soubesse que ele dormira com Dawn Green. Não pude ler seus pensamentos com exatidão, eram muito escuros e emaranhados. De algumas pessoas eu não consigo tirar uma leitura clara. Ele estava muito agitado.
Sam veio correndo em minha direção, só diminuindo o passo quando viu que JB estava me tocando. Eu não conseguia ler os pensamentos de Sam. Eu conseguia sentir as suas emoções (naquele momento um misto de preocupação, interesse e raiva), mas não conseguia decifrar um pensamento sequer. Isso era tão fascinante e inesperado que me livrei do abraço de JB, querendo ir na direção de Sam, pegar em seus braços, olhar em seus olhos e realmente sondar sua cabeça. Lembrei-me da vez em que ele havia me tocado, e eu me afastara timidamente. Agora ele me sentia em sua cabeça e, embora continuasse caminhando em minha direção, sua mente recuava. A despeito de seu convite para que eu lesse seus pensamentos, ele não sabia que eu veria que ele era diferente dos outros: continuei com aquilo até que ele me parou. Eu nunca sentira nada parecido. Era como uma porta de ferro fechando com violência. Na minha cara. Estive a ponto de ir tocá-lo impulsivamente, mas minha mão caiu de lado. Sam deliberadamente olhava para Kevin, não para mim. — Que está acontecendo, policial? — Sam perguntou. — Teremos que arrombar essa casa, sr. Merlotte, a menos que o senhor possua uma chave-mestra. Por que diabos Sam iria ter uma chave? — Ele é meu locador — JB disse em meus ouvidos, e eu me sobressaltei. — Ele é? — perguntei estupidamente. — Ele é dono desses três apartamentos. Sam remexeu em seu bolso, e conseguiu tirar dele um molho de chaves. Ele apalpou-as experientemente, parando numa delas e isolando-a, para tirá-la do aro e entregá-la a Kevin. — Serve para a frente e para os fundos? — Kevin perguntou. Sam fez que sim. Ele ainda não estava olhando para mim. Kevin foi para a porta dos fundos do apartamento, ficando fora de vista, e nós todos estávamos num tal silêncio que podíamos ouvir a chave virar na fechadura. Daí a pouco ele estava no quarto com a mulher morta, e pudemos ver seu rosto se contorcer quando o mau cheiro o atingiu. Com uma das mãos tapando a boca e o nariz, ele se curvou sobre o corpo e pôs seus dedos no pescoço da mulher. Depois, olhou pela janela para fora e balançou a cabeça para a sua parceira. Kenya fez um sinal de assentimento e foi em direção da rua para usar o rádio no carro-patrulha. — Ouça, Sookie, que tal vir jantar comigo hoje à noite? — JB perguntou. — Essa foi muito dura para você, e você precisa de um pouquinho de diversão para se recuperar. — Obrigada, JB. — Eu estava bem consciente de que Sam nos ouvia. — É muito simpático de sua parte querer dar uma força. Mas eu tenho a impressão de que vou ter que fazer horas extras hoje. Por um instante, o rosto de JB ficou espantado. Depois, a compreensão lhe chegou. — Sim, Sam tem que contratar outra pessoa — ele observou. — Eu tenho uma prima em Springhill que precisa de um emprego. Talvez eu telefone para ela. Poderíamos ser vizinhos, agora. Sorri para ele, embora estivesse certa de que aquele era um sorriso bem apagado, quando fiquei ombro a ombro com o homem com quem eu trabalhara por dois anos. — Sinto muito, Sookie — ele disse em surdina. — Sente pelo quê? — Minha própria voz estava em tom baixo. Será que ele estava percebendo o que se passara entre nós — ou melhor, o que não conseguira se passar? — Por ter mandado você para averiguar Dawn. Eu é que devia ter vindo. Eu estava certo de que ela estava morando com algum novo homem e precisava ser advertida de que tinha o compromisso de aparecer no serviço. A última vez que vim aqui pra pegá-la, ela gritou tanto comigo que eu não quis me envolver nisso outra vez. Então, feito um covarde, mandei você vir, e você teve que encontrá-la desse jeito... — Você é cheio de surpresas, Sam.
Ele não se virou para olhar para mim nem deu resposta alguma. Mas seus dedos se enrascaram nos meus. Por um longo momento, ficamos lá no sol com um monte de gente em torno de nós, de mãos dadas. Eu sentia que tinha realmente me ligado a um outro ser humano. Mas, então, seu aperto afrouxou, e Sam deu uns passos além para conversar com o detetive, que estava saindo de seu carro, e JB começou a me perguntar como estava a aparência de Dawn, e o mundo recaiu na sua velha trilha rotineira. O contraste era cruel. Senti-me novamente extenuada, e lembrei-me da noite anterior com mais detalhes do que desejava. O mundo parecia um lugar maligno e terrível, todos os seus habitantes suspeitos, e eu o carneirinho a vagar pelo vale da morte com um sino no pescoço. Dei uns passos pesados em direção ao meu carro e abri a porta, afundando de lado no assento. Tinha ficado em pé por tempo demais, hoje; ficaria agora sentada o quanto pudesse. JB me seguiu. Agora que ele havia me redescoberto, não desgrudava. Lembrei-me que Vovó alimentava altas esperanças de alguma relação permanente entre nós, quando eu estava no ginásio. Mas conversar com JB, e mesmo ler sua mente, era tão interessante quanto uma cartilha do jardimda-infância para um leitor adulto. Era uma das ironias de Deus que uma mente tão inexpressiva houvesse sido colocada num corpo tão eloqüente. Ele se ajoelhou diante de mim e pegou em minha mão. Descobri-me desejando que alguma esperta senhora rica aparecesse e se casasse com JB, tomasse conta dele e desfrutasse do que ele tinha a oferecer. Seria um bom negócio. — Onde você está trabalhando agora? — eu lhe perguntei, apenas para me distrair. — Na loja de meu pai — ele disse. Era o emprego de último recurso, aquele a que JB sempre retornava quando era demitido de outros empregos por fazer alguma coisa estúpida, ou por não aparecer, ou por ofender mortalmente algum supervisor. O pai de JB possuía uma loja de autopeças.
— Como estão seus pais? — Oh, bem. Sookie, a gente devia fazer alguma coisa juntos. “Não me tente”, eu pensei. Algum dia os meus hormônios ainda me venceriam e eu faria alguma coisa da qual me arrependeria; e eu podia fazer coisas bem piores do que simplesmente transar com JB. Mas eu me continha à espera de alguma coisa melhor. — Obrigada, querido — eu disse. — Talvez façamos mesmo. Mas eu estou um pouquinho nervosa agora. — Você está apaixonada por aquele vampiro? — ele perguntou diretamente. — Onde foi que você soube disso? — Dawn me contou. O rosto de JB ficou carregado quando ele se lembrou que Dawn estava morta. O que Dawn dissera, descobri ao perscrutar a mente de JB, fora “Aquele novo vampiro está interessado em Sookie Stackhouse. Eu seria melhor para ele. Ele precisa de uma mulher que possa suportar um tratamento da pesada. Sookie gritaria se ele a tocasse”. Era inútil ficar furiosa com uma pessoa morta, mas por um breve momento dei a mim mesma o luxo de fazer exatamente isso. Depois, o detetive caminhou em nossa direção, e JB levantou-se e afastou-se. O detetive tomou o lugar de JB, acocorando-se no chão em frente a mim. Eu devia estar com aparência de abatida. — Senhorita Stackhouse? — ele perguntou. Ele estava usando aquela voz surda e intensa que muitos profissionais adotam durante uma situação traumática. — Sou Andy Bellefleur. Os Bellefleurs estavam em Bon Temps desde que a cidade existia, por isso eu não estava achando engraçado que houvesse um homem com sobrenome de “bela flor”. Na verdade, eu sentia pena de quem quer que achasse isso engraçado, enquanto baixava meu olhar para o bloco de músculos que era o detetive Bellefleur. Esse membro específico da família havia se formado antes de Jason, e eu ficara um ano atrás de sua irmã Portia. Ele tentou me reconhecer também. — Seu irmão está o.k.? — ele perguntou, sua voz ainda surda, mas não tão neutra. Parecia que ele tivera uma discussão ou outra com Jason. — Do pouco que sei dele, me parece que está bem — eu respondi. — E sua avó? Eu sorri. — Ela saiu para plantar flores esta manhã. — Isso é ótimo — ele disse, fazendo aquele sincero balançar de cabeça que se supõe indicar espanto e admiração. — Agora, segundo soube, você trabalha no bar do Merlotte? — Sim. — E Dawn Green trabalhava também? — Sim. — Quando foi a última vez que você viu Dawn? — Dois dias atrás. Lá no trabalho mesmo. Eu já me sentia exausta. Sem tirar meus pés do chão ou meu braço do volante, eu estendia minha cabeça de lado sobre o descanso do banco do motorista. — Você conversou com ela na ocasião? Eu tentei me lembrar. — Acho que não. — Você era íntima da senhorita Green? — Não. — E por que veio aqui hoje? Eu expliquei que a substituíra no dia anterior, e falei do telefonema que Sam me fizera pela manhã. — O sr. Merlotte lhe disse por que não queria vir aqui ele mesmo?
— Sim, um caminhão estava descarregando lá no bar. Sam tinha que mostrar aos caras onde pôr as caixas. — Sam fazia também uma boa parte do descarregamento sozinho, na metade do tempo, para agilizar o processo. — Você acha que o sr. Merlotte tinha alguma relação com Dawn? — Ele era seu chefe. — Não, fora do trabalho. — Nenhuma. — Você parece ter muita certeza. — Eu tenho. — Você tem uma relação com Sam? — Não. — Então, como pode ser assim tão categórica? Boa pergunta. Porque de vez em quando eu ouvia pensamentos que indicavam que, se não odiava Sam, Dawn com toda certeza não gostava muito dele? Uma coisa não muito inteligente para contar ao detetive. — Sam leva tudo de maneira muito profissional no bar — eu disse. Parecia uma explicação falha, mesmo para mim. Mas acontece que era verdadeira. — Você sabia alguma coisa sobre a vida pessoal de Dawn? — Não. — Vocês não eram amigas? — Não particularmente. Meus pensamentos vagavam enquanto o detetive mantinha a cabeça baixa, pensativo. Ao menos era assim que as coisas pareciam transcorrer. — Por quê? — Eu acho que não tínhamos nada em comum. — Como o quê? Dê-me um exemplo. Eu suspirei pesadamente, soprando meus lábios em exasperação. Se não tínhamos nada em comum, como poderia dar um exemplo a ele? — O.k. — eu disse lentamente. — Dawn tinha uma vida social realmente ativa, e ela gostava de sair com os homens. Ela não ficava lá muito entusiasmada com a companhia de mulheres. Sua família é de Monroe e, portanto, ela não tinha vínculos familiares por aqui. Ela bebia, e eu não bebo. Eu leio muito, e ela não lia. Isso basta? Andy Bellefleur examinou meu rosto para ver se eu não estava fazendo tipo. Creio que ficou mais seguro com o que viu. — Então, vocês duas nunca se viam depois das horas de trabalho? — Isso. — Não parece estranho a você que Sam Merlotte tenha lhe chamado para ir ver o que estava acontecendo com Dawn, então? — Não, não completamente — eu disse de forma resoluta. Ao menos, a coisa não parecia estranha agora, depois da descrição que Sam fizera do acesso de fúria de Dawn. — A casa de Dawn fica no caminho para o bar, e eu não tenho filhos como Arlene, a outra garçonete do turno. Por isso era mais fácil pedir para mim. “Isso soava bem lógico”, pensei. Se eu dissesse que Dawn tinha gritado com Sam na última vez em que ele estivera aqui, poderia dar exatamente a impressão errada. — O que você fez depois do trabalho há dois dias, Sookie? — Eu não fui trabalhar. Tive um dia de folga. — E seu plano para esse dia foi...? — Tomei banho de sol, ajudei Vovó a limpar a casa e tivemos visita. — E quem seria? — Bill Compton. — O vampiro. — Certo. — Até que horas o sr. Compton ficou em sua casa? — Não sei. Talvez até meia-noite ou uma da madrugada. — Como ele lhe pareceu? — Me pareceu bem. — Impaciente? Irritado? — Não.
— Senhorita Stackhouse, precisamos conversar mais na delegacia. Vamos tomar um pouco do seu tempo, como vê. — Certo, suponho que sim. — Pode aparecer dentro de algumas horas? Olhei para meu relógio de pulso. — Se Sam não precisar de mim lá no trabalho. — Senhorita Stackhouse, nossa conversa tem prioridade sobre o trabalho no bar. O.k., fiquei fula da vida. Não porque ele pensasse que as investigações do crime fossem mais importantes do que chegar ao trabalho pontualmente; eu concordava nisso com ele. Mas por seu preconceito implícito contra o tipo de trabalho que eu fazia. — Você pode não achar que meu trabalho é muito relevante, mas é uma coisa na qual eu sou boa, e da qual eu gosto. Sou tão digna de respeito quanto a sua irmã, a advogada, Andy Bellefleur, e faça-me o favor de não esquecer disso. Não sou estúpida, e não sou uma puta. O detetive ficou vermelho, lenta e desagradavelmente. — Peço desculpas — disse, tenso. Ele ainda tentava negar a velha ligação, o ginásio no qual estudamos juntos, o conhecimento recíproco entre as famílias. Pensava que deveria ter seguido a carreira de detetive numa outra cidade, onde poderia tratar as pessoas da maneira que achava que um oficial de polícia deveria tratar. — Não, você será um detetive bem melhor por aqui se tirar essa máscara — eu lhe disse. Seus olhos cinzentos brilharam num clarão de choque, e eu fiquei infantilmente satisfeita por tê-lo abalado, embora tivesse certeza de que pagaria por isso mais cedo ou mais tarde. Eu sempre sofria as conseqüências quando deixava que as pessoas percebessem minha diferença.
No mais das vezes, as pessoas tratavam de fugir de mim rapidamente quando eu lhes dava um vislumbre da minha leitura de pensamento, mas Andy Bellefleur ficou fascinado. — Então, é verdade — ele suspirou, como se estivéssemos juntos em alguma outra parte que não a entrada de um apartamento decadente da Lousiana rural. — Não, esqueça isso — eu disse rapidamente. — Eu posso notar alguma coisa às vezes pelo que as pessoas aparentam quando começam a pensar. Ele deliberadamente pensou em desabotoar minha blusa. Mas eu estava consciente agora, de volta ao meu estado normal de defesa bélica, e não fiz mais que dar um sorriso brilhante. Apesar disso, pude perceber que não estava conseguindo enganá-lo. — Quando estiver disponível para mim, venha ao bar. Podemos conversar na despensa ou no escritório de Sam — eu disse firmemente e coloquei minhas pernas dentro do carro. O bar estava tumultuado quando cheguei lá. Sam havia chamado Terry Bellefleur, primo em segundo grau de Andy se eu bem me recordava, para vigiar o bar enquanto ficava conversando com a polícia no apartamento de Dawn. Terry passara por um mau pedaço na guerra do Vietnã, e vivia uma existência precária, dependendo de algum fundo governamental para incapacitados. Ele fora ferido, capturado, mantido prisioneiro por dois anos, e agora seus pensamentos eram em geral tão repletos de medo que eu ficava cheia de cuidados quando estava perto dele. Terry tivera uma vida difícil, e agir normalmente era ainda mais difícil para ele do que para mim. Graças aos céus, ele não bebia. Dei-lhe, então, um ligeiro beijo no rosto enquanto pegava minha bandeja e esfregava minhas mãos. Através da janela da pequena cozinha eu via Lafayette Reynold, o cozinheiro, preparando hambúrgueres e virando uma cesta de fritas em óleo fervente. O bar do Merlotte serve alguns sanduíches, e isso é tudo. Sam não quer manter um restaurante, mas um bar com alguma comida disponível. — Pra que esse beijinho? Não que eu não esteja lisonjeado — Terry disse. Ele ergueu as sobrancelhas. Terry tinha cabelo ruivo, embora, quando precisava fazer a barba, eu notasse que suas costeletas eram cinzentas. Terry passava muito tempo ao ar livre, mas sua pele nunca estava exatamente bronzeada. Tinha uma aparência crua, avermelhada, o que fazia com que as cicatrizes no lado esquerdo de seu rosto aparecessem mais claramente. Isso não parecia incomodá-lo. Arlene estivera na cama com ele uma noite em que tomara um porre e me confidenciara que Terry tinha na intimidade cicatrizes ainda piores do que aquela que havia em seu rosto. — O beijinho foi só pra agradecer por você estar aqui — eu disse. — É verdade o que estão falando de Dawn? Lafayette pôs dois pratos na portinhola de serviço. Ele piscou para mim com um agitar de seus cílios grossos e postiços. Lafayette usa um monte de maquiagem. Eu estava tão acostumada com ele que deixara de pensar nisso, mas agora a sombra em seus olhos me trouxera aquele rapaz, Jerry, de volta à cabeça. Eu o deixara ir embora com os três vampiros sem esboçar reação de protesto. Aquilo fora provavelmente errado, mas era uma atitude realística. Eu não poderia impedi-los de levarem-no embora. Não poderia ir à polícia a tempo de agarrá-los. Ele estava morrendo, de qualquer modo, e estava levando consigo quantos vampiros e humanos pudesse; era um assassino também. Disse à minha própria consciência que esta era a nossa conversa derradeira sobre Jerry. — Arlene, hambúrgueres saindo — Terry exclamou, puxando-me de volta à realidade. Arlene veio em minha direção para apanhar os pratos. Ela me deu uma olhada que dizia que me faria um interrogatório daqueles na primeira oportunidade que tivesse. Charlsie Tooten estava trabalhando, também. Ela era substituta sempre que alguma das mulheres do serviço regular ficava doente ou não aparecia. Eu esperava que Charlsie ocupasse o lugar que fora de Dawn em definitivo. Sempre gostei dela. — Sim, Dawn está morta — eu disse a Terry. Ele não pareceu se importar com o longo silêncio que fiz depois de dizê-lo. — O que aconteceu com ela? — Eu não sei, mas não foi coisa boa. Eu tinha visto sangue nos lençóis, não muito, mas estava lá. — Maudette — Terry disse, e eu entendi imediatamente. — Talvez — eu disse. Claro que era possível que quem matara Dawn fosse a mesma pessoa que matara Maudette. Naturalmente, todo mundo de Renard Parish apareceu por ali naquele dia, senão para o almoço, ao menos para tomar uma xícara de café ou uma cerveja pela tarde. Se não podiam ajustar seu horário de trabalho para fazêlo, esperavam até o fim do expediente e passavam por ali a caminho de casa. Duas mulheres jovens da cidade assassinadas num mês só? Estava na cara que as pessoas queriam falar. Sam retornou lá pelas duas, com o calor irradiando de seu corpo e o suor escorrendo de seu rosto por ficar tanto tempo lá na área sem sombra da cena do crime. Ele me disse que Andy Bellefleur viria falar comigo dentro em breve. — Não sei por quê — eu disse, talvez um pouquinho mal-humorada. — Eu nunca andei por aí com a Dawn. O que aconteceu com ela, eles lhe disseram? — Alguém a estrangulou depois de lhe dar uma pequena surra — Sam disse. — Mas ela tinha algumas velhas marcas de dentes, também. Como Maudette. — Há montes de vampiros neste mundo, Sam — eu disse, respondendo ao comentário que não fora feito.
— Sookie. — Sua voz estava muito séria e calma. Fez com que me recordasse a maneira como segurara a minha mão na casa de Dawn, e então lembrei-me como ele me expulsara de sua mente, como soubera que eu estava sondando-a, como soubera me manter do lado de fora. — Querida, Bill é um bom sujeito, levando-se em conta que é um vampiro, mas ele simplesmente não é humano. — Querido, nem você é — eu disse, com muita calma, mas com muita determinação. E dei as minhas costas para Sam, não querendo admitir exatamente por que eu estava tão irritada com ele, mas querendo que ele soubesse mesmo assim que eu estava. Trabalhei feito um demônio. Por mais defeitos que tivesse, Dawn era eficiente, e Charlsie não podia ser comparada a ela. Ela tinha boa vontade, e eu tinha certeza que pegaria o ritmo de trabalho no bar, mas, nessa noite, Arlene e eu ficamos cansadas. Ganhei uma tonelada de dinheiro com gorjetas à noitinha e mais tarde, quando as pessoas descobriram que eu realmente encontrara o corpo. Eu mantinha meu rosto solene e relatava o que era possível, não querendo ofender fregueses que apenas queriam saber o que todo mundo na cidade queria saber. No caminho para casa, permiti-me relaxar um pouco. Eu estava exausta. A última coisa que esperava ver, depois de entrar na pequena via através das florestas que levava à nossa casa, era Bill Compton. Ele estava encostado num pinheiro, esperando por mim. Fui em frente ao passar por ele, quase decidindo ignorar a sua presença. Mas, então, parei. Ele abriu a minha porta. Sem olhar em seus olhos, segui em frente. Ele parecia à vontade na noite, de um modo que eu não conseguiria nunca ficar. Havia tabus infantis em demasia sobre a noite e a escuridão e coisas com as quais podemos dar de cara dentro dela. Pensando nisso, Bill era bem uma dessas coisas. Não admirava que se sentisse à vontade.
— Você vai ficar olhando para seus pés a noite inteira, ou vai conversar comigo? — ele perguntou numa voz que estava, no tom, pouco acima de um sussurro. — Aconteceu uma coisa que acho que você deve saber. — Então, me conte. Ele estava tentando fazer alguma coisa comigo: eu sentia seu encantamento pairando em torno de mim, mas resisti e expulsei-o. Ele suspirou. — Não posso ficar em pé — eu disse, fatigada. — Vamos nos sentar no chão ou algo assim. Meus pés estão cansados. Em resposta, ele me pegou e sentou-me no capo do carro. Depois, ficou de frente para mim, os braços cruzados, numa postura bem evidente de espera. — Pode ir falando. — Dawn foi assassinada. Do mesmo modo que Maudette Pickens. — Dawn? De repente eu me senti um pouco melhor. — A outra garçonete do bar. — A ruiva, aquela que se casou tantas vezes? Senti-me muito melhor. — Não, a de cabelos pretos, aquela que ficava esbarrando os quadris em sua cadeira para que você a notasse. — Oh, aquela. Ela foi à minha casa. — Dawn? Quando? — Depois que você saiu ontem à noite. A noite em que os outros vampiros apareceram lá. Ela teve sorte que eles já não estivessem. Ela era confiante demais em sua habilidade de controlar qualquer coisa. Olhei para ele. — Por que ela teve sorte? Você não a teria protegido? Os olhos de Bill eram totalmente escuros à luz do luar. — Eu acho que não —, ele disse.
— Você é... — Sou um vampiro, Sookie. Não penso como você. Não me preocupo automaticamente com as pessoas. — Você me protegeu. — Você é diferente. — Sim? Sou uma garçonete, como Dawn. Venho de uma família comum, como Maudette. O que é tão diferente? Tive uma raiva repentina. Sabia o que viria a seguir. Seu dedo frio tocou o meio de minha testa. — Diferente —, ele disse. — Você não é como nós. Mas tampouco se parece com eles. Senti uma labareda de fúria tão intensa que era quase divina. Eu me soltei e bati nele, uma coisa insana a fazer. Era como bater num caminhão blindado da Brink’s. Num relâmpago, ele me tirou do carro e me prendeu junto a si, mantendo meus braços atados lateralmente por um dos seus. — Não! — eu gritei. Esperneei e lutei, mas poderia ter poupado essa energia toda, porque o efeito era nenhum. Por fim, sucumbi, encostando-me em seu corpo. Minha respiração estava entrecortada, e a dele também. Mas não acho que fosse pela mesma razão. — Por que você pensou que eu tinha que saber alguma coisa sobre Dawn? — Ele me pareceu tão razoável que você julgaria que a luta não havia ocorrido. — Bem, Grande Senhor da Escuridão — eu disse furiosamente — Maudette tinha velhas marcas de mordidas em suas coxas, e a polícia disse a Sam que Dawn tinha marcas de mordidas, também. Se um silêncio pode ser definido, o dele poderia ser chamado de pensativo. Enquanto ele ruminava consigo as suas idéias, ou o que quer que vampiros façam, seu aperto se afrouxou. Uma de suas mãos começou a roçar minhas costas levemente, como se eu fosse uma boneca que tivesse choramingado.
— Você está querendo dizer que elas não morreram vitimadas por essas mordidas. — Não. Foi estrangulamento. — Então, não foi um vampiro. — Seu tom punha a questão acima de qualquer dúvida. — Por que não? — Se um vampiro tivesse se alimentado dessas mulheres, elas estariam drenadas em vez de estranguladas. Não estariam destruídas desse jeito. Bem quando eu estava começando a me sentir à vontade com Bill, ele dizia uma coisa assim tão fria, tão vampiresca, que eu tinha que recomeçar tudo. — Então — disse, esgotada — ou há um vampiro perito com grande autocontrole, ou há alguém que está determinado a matar mulheres que estiveram com vampiros. — Hmmm. Eu não me sentia bem com nenhuma das opções. — Você acha que eu seria capaz de fazer isso? — ele perguntou. A pergunta era inesperada. Eu me contorci em seu abraço sufocante para olhar para seu rosto. — Você teve muito cuidado em me alertar sobre o quanto pode ser implacável — eu fiz com que lembrasse. — No que você quer que eu acredite? E era tão maravilhoso não saber. Eu quase sorri. — Eu poderia ter matado essas mulheres, mas eu não faria isso aqui, não agora — Bill disse. Ele não tinha cor alguma à luz da lua, com exceção das poças negras de seus olhos e do negror de suas sobrancelhas arqueadas. — Aqui é o lugar onde quero ficar. Eu quero um lar. Um vampiro, ansioso por um lar. Bill leu meu rosto.
— Não tenha pena de mim, Sookie. Seria um erro. — Ele parecia ter vontade de que eu olhasse em seus olhos. — Bill, você não pode me encantar, ou o que quer que esteja querendo fazer. Não pode me encantar para que eu tire minha camiseta e você me morda, não pode me convencer sequer de que nunca esteve aqui, não pode fazer nenhum de seus truques habituais. Você tem que ser honesto comigo, ou então me forçar. — Não —, ele disse, com a boca quase sobre a minha. — Não vou forçar você. Lutei contra a ânsia de beijá-lo. Mas ao menos senti que era minha própria ânsia, não uma coisa manipulada. — Então, se não foi você — eu disse, lutando para manter a coerência —, Maudette e Dawn conheceram outro vampiro. Maudette, sei que ia ao bar de vampiros em Shreveport. Talvez Dawn tivesse o hábito de ir, também. Você me levaria lá? — Por quê? — ele perguntou, parecendo não mais que curioso. Eu simplesmente não conseguiria explicar a idéia de estar em perigo para alguém que estava habituado a se situar além disso. Pelo menos à noite. — Eu não tenho certeza que Andy Bellefleur resolverá esse problema — menti. — Ainda há Bellefleurs por aqui — ele disse, e havia uma nota diferente em sua voz. Seus braços me apertaram a ponto de doer. — Sim — eu disse. — Uma porção deles. Andy é um detetive de polícia. Sua irmã, Portia, é uma advogada. Seu primo, Terry, é um veterano de guerra e um barman. É o substituto de Sam. Há mais outros, ainda. — Bellefleur... Eu estava ficando sufocada. — Bill — eu disse, minha voz guinchando de pânico. Ele reduziu seu aperto imediatamente. — Peço desculpas — disse, formalmente.
— Tenho que ir dormir — eu disse. — Estou realmente cansada, Bill. Ele me baixou ao chão de cascalho sem um só choque. Olhou-me nos olhos. — Você disse àqueles outros vampiros que eu pertenço a você — eu disse. — Sim. — O que isso significa, exatamente? — Significa que, se tentarem se alimentar de você, eu os matarei — ele disse. — Significa que você é minha propriedade humana. — Tenho que dizer que estou feliz por você ter feito isso, mas não estou muito certa do que acarreta ser a sua propriedade humana — disse, cautelosamente. — E não me lembro se me foi perguntado se isso era ou não bom para mim. — Seja lá o que isso for, é melhor do que se envolver com Malcolm, Liam e Diane. Ele não ia responder à minha pergunta diretamente. — Você vai me levar ao bar? — Qual é sua próxima noite de folga? — Daqui a duas noites. — Então, no fim da tarde. Eu dirijo. — Você tem um carro? — Como você acha que eu vou aos lugares? — Devia haver um sorriso em seu rosto brilhante. Ele virou para desaparecer no meio da floresta. Sobre o ombro ainda me disse: — Sookie. Faça com que eu me orgulhe. Fiquei lá de boca aberta. Deixá-lo orgulhoso, o que ele queria dizer com isso?
Metade dos freqüentadores do Merlotte pensava que havia um dedo de Bill nas marcas encontradas nos corpos das mulheres. Os outros 50 por cento pensavam que alguns dos vampiros de cidades maiores ou metrópoles tinham mordido Maudette e Dawn quando elas viajaram para fazer ronda naqueles bares, e que, por quererem ir para a cama com vampiros, elas não tinham recebido nada além do que mereciam. Alguns achavam que as garotas tinham sido estranguladas por um vampiro, outros que elas simplesmente tinham chegado à tragédia a que sua contínua vida promíscua acabaria por inevitavelmente levá-las. Mas todos que foram ao bar estavam preocupados que outra mulher pudesse ser assassinada, também. Nem sei quantas vezes me disseram para ter cuidado, para ficar de olho em meu amigo Bill Compton, para trancar minhas portas e não deixar ninguém entrar em minha casa... Como se essas fossem coisas que eu não faria, normalmente. Jason tornou-se alvo de comiseração e suspeita por ser o homem que tinha “namorado” as duas mulheres. Ele veio em casa um dia e permaneceu por uma hora, ocasião em que Vovó e eu tentávamos animálo a continuar em seu trabalho como um homem inocente faria naturalmente. Mas, foi a primeira vez em minha vida em que meu belo irmão pareceu realmente preocupado. Eu não estava exatamente satisfeita por vê-lo encrencado, mas tampouco me compadecia. Sei que era uma atitude pequena e intolerante de minha parte. Eu não sou perfeita. Sou tão imperfeita que, a despeito das mortes das duas mulheres que eu conhecia, passei uma grande parte do tempo pensando no que Bill queria dizer ao pedir que eu o deixasse orgulhoso. Eu não tinha idéia do que poderia ser um traje apropriado para visitar um bar de vampiros. Eu não queria me vestir com alguma roupa estúpida, como eu fora informada que alguns visitantes faziam. Claro que eu não tinha ninguém com quem me consultar num caso desses. Eu não era alta ou ossuda o bastante para me vestir naquela roupa de lycra que eu vira Diane usando. Por fim, encontrei um vestido lá no fundo do meu guarda-roupa; um que eu tivera poucas oportunidades para usar. Era um vestido para um Belo Encontro, se você pretendia atrair o interesse de quem quer que fosse lhe acompanhar. Tinha um corte reto, era decotado e sem mangas. Era justo e branco. O tecido era delicadamente salpicado por flores vermelhas luminosas com longas hastes verdes. Meu bronzeado reluzia e os peitos apareciam. Eu usava brincos de esmalte vermelho e sapatos de salto alto provocantes. Tinha uma pequena bolsa vermelha de palha. Passei maquiagem leve e soltei meus cabelos ondulados sobre as costas. Os olhos de Vovó ficaram arregalados quando eu saí do quarto. — Querida, você está linda — ela disse. — Você não vai sentir um pouco de frio dentro desse vestido, não? Eu sorri. — Não, senhora, acho que não. Está bem quente lá fora, hoje. — Não quer pôr um suéter branco bem bonitinho em cima dele? — Não, acho que não. — Eu dei risada. Eu tinha empurrado os outros vampiros para o fundo de minha memória, de modo que parecer sexy era uma coisa agradável novamente. Eu estava bem excitada por ter um programa, embora eu própria o tivesse sugerido a Bill e sua natureza fosse mais a de uma investigação. Isso, também, eu tentava esquecer, para que pudesse me deleitar. Sam ligou-me para dizer que o cheque do meu ordenado estava pronto.
Perguntou-me se eu ia aparecer lá para pegá-lo, o que eu habitualmente fazia se não fosse trabalhar no dia seguinte. Eu fui ao bar do Merlotte com certa ansiedade por entrar lá com uma roupa tão chique. Mas, quando cheguei à porta, ganhei o tributo de um momento de silêncio aturdido. Sam estava de costas para mim, mas Lafayette estava olhando atrás da portinhola de sanduíches e Rene e JB também estavam no bar. Por azar, estava lá também o meu irmão Jason, cujos olhos se arregalaram quando se virou para ver o que Rene olhava com tanta avidez. — Você está arrasando, garota! — exclamou Lafayette entusiasticamente. — Onde foi que você arranjou este vestido? — Oh, eu tenho essa velharia desde que me entendo por gente — eu disse, gozadora, e ele riu. Sam virou-se para ver o que estava deixando Lafayette tão deslumbrado, e seus olhos se arregalaram, também. — Meu Deus — ele suspirou. Eu andei em sua direção para pedir o meu cheque, sentindo-me muito autoconfiante. — Venha ao escritório, Sookie — ele disse, e eu o segui até o pequeno cubículo perto da despensa. Rene deu-me um meio abraço quando passei por ele, e JB beijou minha bochecha. Sam deu uma busca entre as pilhas de papéis no topo de sua escrivaninha, e finalmente emergiu com meu cheque. Apesar disso, não o estendeu para mim. — Você está indo para algum lugar especial? — ele perguntou, quase contrariado. — Eu tenho um encontro — disse, tentando parecer bem natural. — Você está linda — ele disse, e o vi engolir em seco. Seus olhos estavam ardentes. — Obrigada. Hum, Sam, pode me passar o meu cheque?
— Claro. — Ele o estendeu para mim, e eu o guardei bem na minha bolsa. — Tchau, então. — Tchau. Mas, em vez de me deixar sair, Sam deu um passo à frente e me cheirou. Pôs o rosto bem perto de meu pescoço e aspirou. Seus olhos azuis brilhantes fecharam-se rapidamente, como se ele estivesse avaliando meu perfume. Por fim, expirou docemente, sua respiração roçando calidamente minha pele exposta. Eu saí porta afora e deixei o bar, intrigada e interessada no comportamento de Sam. Quando cheguei em casa, um carro estranho estava estacionado em frente. Era um Cadillac preto, e brilhava como vidro. O carro de Bill. De onde ele tirava dinheiro para comprar esses carros? Balançando a cabeça, subi os degraus da varanda e entrei. Bill virou-se para a porta, com ansiosa expectativa; ele estava sentado no sofá, conversando com Vovó, que se empoleirara no braço de uma cadeira super-estofada. Quando me viu, tive certeza que tinha exagerado na dose, e que ele estava furioso com aquele vestido. Seu rosto ficou rígido. Seus olhos flamejaram. Seus dedos se curvaram como se ele estivesse escavando algo com eles. — Tudo certo comigo? — perguntei ansiosamente. Senti o sangue subir ao meu rosto. — Sim — ele disse, finalmente. Mas sua demora em responder fora longa o bastante para irritar minha avó. — Qualquer um em são juízo terá que admitir que Sookie é uma das mais belas garotas que existem por aqui — ela disse, com a voz macia na superfície, mas feita de aço por baixo. — Oh, sim — ele concordou, mas havia uma curiosa ausência de inflexão em sua voz.
Bem, ele que se ferrasse. Eu fizera o melhor que pudera. Endireitei a espinha, e disse: — Vamos embora, então? — Sim — ele disse novamente, e se levantou. — Boa-noite, sra. Stackhouse. Foi um prazer conversar com a senhora outra vez. — Bem, divirtam-se, vocês dois — ela disse, amolecendo. — Dirija com cuidado, Bill, e não beba demais. Ele ergueu uma sobrancelha. — Não, senhora. Vovó deixara o problema para lá. Bill ficou segurando a porta do carona aberta para que eu entrasse, começo de uma série de manobras calculadas para evitar que alguma parte do meu corpo pulasse pra fora do vestido. Ele então fechou a porta e entrou pelo lado do motorista. Fiquei pensando em quem poderia tê-lo ensinado a dirigir um carro. Henry Ford, provavelmente. — Sinto muito por não estar vestida adequadamente — eu disse, olhando para a frente. Estávamos indo lentamente pela estrada acidentada através das florestas. O carro cambaleou para dar uma parada. — Quem disse isso? — Bill perguntou, com voz muito amável. — Você olhou para mim como se eu tivesse feito alguma coisa errada — repliquei. — Eu só estava duvidando de minha habilidade para fazer você entrar e sair daquele bar sem ter que matar alguém que ficasse doido por você. — Você está sendo sarcástico. — Eu ainda não o olhava. Suas mãos apertaram a minha nuca, forçando-me a virar para olhá-lo. — Minha cara é de sarcasmo? — ele perguntou. Seus olhos negros estavam bem abertos e não piscavam. — Ah... não — eu admiti. — Então, faça o favor de aceitar o que eu digo.
O passeio a Shreveport foi silencioso na maior parte do tempo, mas não tão incômodo. Bill foi ouvindo fitas o tempo todo. Ele gostava de Kenny G. Fangtasia, o bar dos vampiros, estava situado numa área comercial suburbana de Shreveport, perto de lojas como a Sam e a Toys ’R’ Us. Era uma artéria comercial, que, à exceção do bar, ficava toda fechada àquelas horas. O nome do ambiente estava num letreiro vivo de néon vermelho sobre a porta, e a fachada era pintada de cinza-aço, com a cor vermelha fornecendo o contraste. Quem quer que fosse dono do lugar tinha julgado que cinza era menos óbvio que preto, porque o interior era decorado com as mesmas cores. Uma vampira me pediu documentos à porta. Naturalmente, ela reconhecera Bill como um de sua própria espécie e cumprimentou-o com um aceno frio, mas me examinou atentamente. Pálida como giz, como todos os vampiros caucasianos costumam ser, ela era estranhamente chocante em seu longo vestido negro com mangas compridas. Eu me perguntava se o exagerado look vampiresco seria mesmo a sua própria inclinação, ou se ela apenas o adotara porque os fregueses humanos julgavam-no apropriado. — Faz anos que ninguém me pede documentos — eu disse, fuçando em minha bolsa vermelha à procura da carteira de motorista. Ficamos retidos lá, num pequeno vestíbulo em forma de caixa. — Eu já não posso distinguir idades humanas, e devemos ser muito cuidadosos para não receber menores. De qualquer tipo — ela disse, tentando ostentar o que provavelmente era para ser um sorriso genial. Lançou um olhar de esguelha para Bill, seus olhos sondando-o de alto a baixo com um interesse ofensivo. Ofensivo para mim, ao menos. — Faz alguns meses que não vejo você — ela disse a ele, com a voz mais fria e doce que podia emitir. — Estou me normalizando — ele explicou, e ela fez um sinal de entendimento.
— O que você disse a ela? — murmurei, enquanto descíamos o curto corredor e entrávamos pelas portas duplas vermelhas no salão principal. — Que estou tentando viver entre seres humanos normais. Eu queria saber mais, mas tive então meu primeiro vislumbre de entendimento do que era o Fangtasia. Tudo era em cinza, preto e vermelho. As paredes traziam, em fila, imagens emolduradas de cenas de todo e qualquer filme que tivesse mostrado dentes caninos na tela, de Bela Lugosi, passando por George Hamilton e chegando a Gary Oldman, dos mais famosos aos mais obscuros. A iluminação era escassa, o que não chegava a ser incomum; o que era incomum mesmo era a clientela. E os sinais emitidos. O bar estava cheio. Os clientes humanos se dividiam entre tietes de vampiros e turistas. Os tietes (vampirófilos, como eram chamados) estavam vestidos na sua roupa mais chique. Os trajes iam dos tradicionais capas e smokings para homens às muitas imitações baratas de Mortícia Adams entre as mulheres. As roupas variavam entre cópias daquelas usadas por Brad Pitt e Tom Cruise em Entrevista com o vampiro a alguns figurinos mais modernos que acho que tinham sido influenciados por Fome de viver . Alguns dos vampirófilos usavam caninos postiços, alguns traziam gotas de sangue pintadas nos cantos das bocas ou marcas de perfuração em seus pescoços. Eles eram extraordinários, e extraordinariamente patéticos. Os turistas pareciam com o que os turistas se parecem em toda parte, talvez um pouco mais aventureiros do que a maioria é. Mas, para entrar no espírito desse lugar, estavam quase todos vestidos de preto como os
Fang (caninos), no original, origem do trocadilho Fangtasia, o nome do bar, intraduzível para o Português. (N. do T.) No original, The hunger, produção norte-americana de 1983, dirigida por Tony Scott, com Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon. (N. do T.)
vampirófilos. Talvez fosse parte de um pacote de viagens? “Vista-se de preto para fazer uma excitante visita a um legítimo bar de vampiros! Siga as regras, e você ficará numa boa, tendo uma visão desse exótico submundo.” Espalhados entre essa variedade de seres humanos, como jóias verdadeiras num baú de falsos diamantes, circulavam os vampiros, talvez uns quinze deles. A maior parte preferia roupas escuras, também. Eu parei no meio do salão, olhando ao redor com interesse e espanto e também algum nojo, e Bill sussurrou: — Você parece uma vela branca numa mina de carvão. Dei risada, e caminhamos entre mesas espalhadas em direção ao bar. Foi o único bar que conheci que tinha sangue aquecido e engarrafado em exposição. Bül, naturalmente, pediu um pouco da bebida, e eu respirei fundo, pedindo um gim-tônica. O barman sorriu para mim, mostrando que seus caninos tinham até crescido um pouco devido ao prazer que estava tendo por me servir. Era um índio americano, com longos cabelos lisos e pretos feito carvão e um nariz adunco, uma boca em linha reta, e uma constituição vigorosa. — Como vão as coisas, Bill? — o barman perguntou. — Faz tempo que a gente não se vê. Essa aí é tua comida pra hoje? — Ele apontou em minha direção enquanto punha os drinques à nossa frente. — Esta é minha amiga Sookie. Ela tem umas perguntas a fazer. — O que você quiser, lindinha — disse o barman, sorrindo novamente. Gostei mais dele enquanto estava com aquela boca em linha reta bem fechada. — Você viu esta mulher, ou esta aqui, neste bar? — eu perguntei, tirando de minha bolsa as fotos de Maudette e Dawn recortadas de jornais. — Ou mesmo este homem? — Com receio, tirei e mostrei também a foto do meu irmão. — Sim, para as mulheres; não, para o homem, embora ele pareça delicioso — disse o barman, sorrindo para mim outra vez. — Seu irmão, talvez?
— Sim. — Quantas possibilidades — ele sussurrou. Tive sorte por ter tanta prática de controle facial. — Você se lembra de com quem essas mulheres andaram circulando por aqui? — Isso é uma coisa que eu não posso saber — ele replicou rapidamente, seu rosto se fechando. — Essa é uma coisa que não notamos, aqui. Você não vai notar, também. — Obrigada — eu disse polidamente, percebendo que tinha violado uma regra do bar. Era perigoso perguntar quem andava com quem por ali, evidentemente. — Fico agradecida por ter me dado atenção. Ele olhou para mim, refletindo. — Essa aí — ele disse, pondo o dedo sobre a fotografia de Dawn — ela queria morrer. — Como é que você sabe? — Todo mundo que vem aqui quer morrer, de uma maneira ou de outra — ele disse de maneira tão displicente que pude notar que ele encarava isso como coisa natural. — É isso que nós somos. A morte. Eu estremeci. A mão de Bill em meu braço me conduziu para longe, para uma cabine recém-desocupada. Sublinhando a declaração do índio, a intervalos regulares cartazes na parede proclamavam, “Não morda no local”, “Não demore no estacionamento”, “Conduza seus negócios pessoais em outra parte”, “Sua presença é apreciada. Continue por risco próprio”. Bill tirou a tampa da garrafa com um dedo e deu uma bebidinha. Eu tentei não olhar, aversiva. Naturalmente ele viu isso em meu rosto, e balançou a cabeça. — Isto aqui é a realidade, Sookie — ele disse. — Preciso disso para viver. Havia manchas vermelhas entre seus dentes.
— É claro — eu disse, tentando imitar o tom displicente do barman. Tomei um fôlego profundo. — Supõe que eu queira morrer, já que vim para cá com você? — Eu acho que você quer descobrir por que outras pessoas estão morrendo — ele disse. Mas não estava certa de que era nisso que ele acreditava realmente. Eu não achava que Bill já tivesse percebido que sua posição pessoal era precária. Eu bebericava meu drinque, sentindo o florescente calor do gim se espalhar em mim. Uma vampirófila se aproximou de nossa cabine. Eu estava semioculta por Bill, mas, ainda assim, todos tinham me visto entrando com ele. Ela era esquelética e tinha o cabelo frisado, e usava óculos que guardava numa bolsa ao caminhar. Ela se curvou sobre a mesa para ficar com a boca bem próxima de Bill. — Oi, gostosão — ela disse numa voz que desejava que fosse sedutora. Deu um tapinha no sangue engarrafado de Bill com uma unha pintada de escarlate. — Se quiser, tenho do legítimo. — Deu outra batida num ponto de seu pescoço para ter certeza de que ele estava entendendo. Respirei fundo para controlar meu gênio. Eu mesma convidara Bill a vir a este lugar; não fora ele quem me convidara. Eu não podia dizer nada sobre o que quer que ele cismasse de fazer aqui, embora tivesse uma imagem mental surpreendentemente vivida da marca da bofetada que eu gostaria de deixar no rosto pálido e sardento daquela assanhada. Mantive controle absoluto, para que Bill não tivesse a menor suspeita do que eu estava querendo. — Estou acompanhado — Bill disse educadamente. — Ela não tem nenhuma marca de perfuração no pescoço — a garota observou, registrando a minha presença com um ar de desprezo. Podia ter dito, da mesma maneira, “Galinha!” e batido seus braços feito asas. Imaginei se a fumaça não estaria saindo visivelmente de meus ouvidos.
— Estou acompanhado — Bill disse novamente, agora com menos gentileza. — Você não sabe o que está perdendo — ela disse, seus grandes olhos pálidos emitindo clarões ofensivos. — Sei, sim — ele disse. Ela recuou como se eu tivesse mesmo lhe dado uma bofetada, e voltou pisando ruidosamente para a sua mesa. Para meu desgosto, era só a primeira de quatro. Essas pessoas, homens ou mulheres, queriam transar com um vampiro, e não ficavam intimidadas por nada. Bill lidava com eles sem perder a calma. — Você não está falando nada — ele disse, depois que um homem quarentão tinha se afastado, seus olhos lacrimejando de verdade diante da rejeição de Bill. — Não tenho nada para dizer — eu repliquei, com grande autocontrole. — Você podia tê-los mandado embora. Quer que eu a deixe sozinha? Há alguém que faça o seu gênero por aqui? Sombra Longa, o cara lá do bar, gostaria de dar uma transadinha com você, eu bem que notei. — Oh, pelo amor de Deus, não! — Eu não me sentiria a salvo na companhia de nenhum daqueles vampiros, teria ficado tão aterrorizada como ficara com Liam ou Diane. Bill tinha virado seus olhos escuros para mim e parecia esperar que eu dissesse alguma outra coisa. — Seja lá como for, eu tenho que perguntar a eles se viram Dawn e Maudette por aqui. — Você quer que eu fique com você? — Por favor — eu disse, e soei ainda mais aterrorizada do que queria. Eu estava tentando fazer de conta que ter a companhia dele seria como que um prazer apenas casual. — O vampiro ali na frente até que é bonitão; ele já deu umas duas olhadas para você — ele disse.
Eu quase pensei se ele não poderia estar mordendo um pouquinho a língua também. — Você está me provocando — eu disse, insegura, um pouquinho depois. O vampiro que ele indicava era bonito, de fato, radiante; louro e de olhos azuis, alto e de ombros largos. Estava usando botas, jeans e um colete. Anacrônico. Parecido com um desses sujeitos das capas de livros românticos. Ele me assustava mortalmente. — O nome dele é Eric — Bill disse. — Quantos anos ele tem? — Muitos. Ele é a coisa mais antiga daqui deste bar. — Ele é do mal? — Nós todos somos maus, Sookie. Todos nós somos muito fortes e muito violentos. — Você, não — eu disse. Vi o rosto dele se fechar. — Você quer viver entre seres humanos normais. Você não quer cometer atos antisociais. — Justo quando eu pensei que você era ingênua demais para ficar sozinha, você me diz uma coisa esperta — ele disse, com uma risada curta. — Tudo bem, vamos lá conversar com o Eric. Eric, que, era verdade, havia lançado olhares para mim uma ou duas vezes, estava sentado com uma vampira que era tão bela quanto ele. Os dois já tinham repelido várias investidas de humanos. De fato, um amante desprezado já rastejara pelo assoalho e beijara as botas da mulher. Notavase que ela fizera esforços para não dar um pontapé naquela cara. Turistas esquivaram-se, e um casal levantou-se e fugiu apressadamente, mas os vampirófilos pareciam achar essa cena natural. Ao nos aproximarmos, Eric ergueu os olhos com uma expressão malhumorada até perceber quem eram os intrometidos. — Bill — ele disse, fazendo um sinal de reconhecimento. Vampiros não pareciam dados a trocar apertos de mãos.
Em vez de se encaminhar direto para a mesa, Bill manteve uma distância cautelosa, e já que estava apertando meu braço logo acima do meu cotovelo, eu tive que parar também. Essa parecia ser a distância cortês, nesse meio. — Quem é sua amiga? — perguntou a mulher. Embora Eric tivesse um ligeiro sotaque, a mulher falava puro inglês americano, e aquelas feições redondas e suaves poderiam fazê-la passar facilmente por uma leiteira. Ela sorriu, e seus caninos despontaram, meio que arruinando a imagem. — Oi, sou Sookie Stackhouse — eu disse polidamente. — Não é uma gracinha — Eric observou, e eu esperava que estivesse falando de meu caráter. — Não, especialmente — eu disse. Eric me olhou, surpreso, por um momento. Depois, caiu na risada, e a mulher fez o mesmo. — Sookie, esta é a Pam e eu sou Eric — o vampiro loiro disse. Bill e Pam trocaram os sinais de reconhecimento mútuo dos vampiros. Houve um silêncio. Eu gostaria de ter falado, mas Bill apertou meu braço. — Minha amiga Sookie gostaria de lhe fazer algumas perguntas — Bill disse. Os vampiros sentados trocaram olhares entediados. Pam disse: — Tais como que comprimento têm nossos caninos, e que tipo de caixão é aquele em que dormimos? — Sua voz estava impregnada de desprezo, e podia-se notar que aquelas eram perguntas feitas pelos turistas que ela odiava ter que responder. — Não, senhora — eu disse. Esperava que Bill não arrancasse meu braço, com seus apertões. Achei que estava sendo calma e cortês. Ela olhou para mim com espanto.
O que será que havia de tão surpreendente em mim? Eu estava começando ficar cansada dessa coisa. Antes que Bill pudesse me fazer mais alguns sinais doloridos, abri minha bolsa e tirei as fotografias. — Eu gostaria de saber se vocês viram alguma destas duas mulheres neste bar. — Eu que não ia tirar a foto de Jason diante dessa mulher. Seria como colocar um pires de leite diante de um gato. Os dois olharam para as fotos. O rosto de Bill estava vazio. Eric olhou para mim. — Eu estive com esta aqui — ele disse friamente, batendo na foto de Dawn. — A curtição dela era dor. Pam estava surpresa que Eric tivesse respondido à minha pergunta, notei por suas sobrancelhas. Ela parecia como que obrigada a seguir o seu exemplo. — Eu vi as duas. Nunca tive nada com elas. Esta aqui — ela bateu de leve na foto de Maudette — era uma criatura patética. — Muito obrigada, isso é tudo que eu queria saber de vocês — eu disse, e tentei me virar para me afastar. Mas Bill ainda mantinha meu braço aprisionado. — Bill, você está completamente ligado à sua amiga? — Eric perguntou. Demorou um pouquinho para a minha ficha cair. Eric, o Gostosão, estava perguntando se eu podia ser emprestada a ele. — Ela é minha — Bill disse, mas ele não estava rosnando como rosnara para os vampiros sórdidos de Monroe. A despeito disso, sua voz soava desdenhosamente firme. Eric baixou sua cabeça dourada, mas me deu aquela “sacada” outra vez. Ao menos começou pelo meu rosto. Bill pareceu aliviado. Ele fez uma reverência para Eric, que de algum modo incluía Pam, recuou uns dois passos, e finalmente me permitiu dar as costas para o casal.
— Cruz credo, o que foi que aconteceu? — eu perguntei, num sussurro furioso. Ia ficar com um hematoma no braço, no dia seguinte. — Eles são alguns séculos mais velhos que eu — Bill disse, parecendo bem vampiresco. — Essa é a hierarquia? Por idade? — Hierarquia — Bill disse, pensativo. — Não é uma definição ruim. Ele quase riu. Eu notei pelo modo como seus lábios se contorceram. — Se você estivesse interessada, eu teria sido obrigado a deixar você nos braços de Eric — ele disse, depois que retomamos nossos lugares e demos um gole nos drinques. — Não — eu disse resolutamente. — Por que você não disse nada quando os vampirófilos vieram à nossa mesa para me tirar de você? Não estávamos operando na mesma sintonia. Talvez as nuances sociais fossem coisas com as quais os vampiros não se importassem. Eu teria que explicar uma coisa que não podia requerer muita explicação. Fiz um som bem pouco feminino de pura irritação. — O.k. — eu disse, ferina. — Ouça, Bill! Quando você veio à minha casa, eu tive que convidar você. Quando você veio até aqui comigo, tive que convidar você. Você nunca me chamou pra sair. Ficar escondido na estrada de casa não conta, e pedir para ir à sua casa deixar uma lista de trabalhadores também não. É sempre assim, eu procuro você. Como posso lhe dizer que você tem que ficar comigo, se você quiser ir? Se você quisesse chupar o sangue daquelas garotas, e daquele cara, também; eu não teria me sentido no direito de ser um empecilho para seus atos! — Eric é bem mais bonito que eu — Bill disse. — Ele é mais poderoso, e eu sei que o sexo com ele pode ser inesquecível. Ele é tão velho que só precisa de uma chupadinha para manter a sua força. Ele quase nunca mata ninguém. Assim, pelo código dos vampiros, é um bom sujeito. Você ainda pode ficar com ele. Ele ainda está olhando para você. Ele tentaria lançar o seu encanto sobre você se você não estivesse comigo.
— Não quero ficar com Eric — eu disse, teimosamente. — E eu não quero sair com nenhum daqueles tietes — ele disse. Ficamos em silêncio por um ou dois minutos. — Então, estamos de bem — eu disse, obscuramente. — Sim. Ficamos mais uns momentos refletindo sobre isso. — Quer outro drinque? — ele perguntou. — Sim, a menos que você precise ir embora. — Não, tudo bem. Ele foi ao bar. Pam, a amiga de Eric saiu e Eric pareceu estar contando os meus cílios. Tentei manter meu rosto fitando minhas mãos, para indicar modéstia. Senti puxões de energia como que fluindo sobre mim e tive a sensação inquietante de que Eric estava tentando lançar o encanto sobre mim. Arrisquei um rápido olhar, e foi o bastante para me certificar de que ele estava olhando para mim com expectativa. Será que eu teria que tirar meu vestido? Latir como um cão? Chutar Bill nas canelas? Que merda. Bill voltou com nossos drinques. — Ele vai saber que não sou normal — eu disse soturnamente. Bill não parecia precisar de uma explicação. — Ele está violando as regras tentando encantar você depois que eu lhe disse que você é minha — Bill disse. Ele parecia bem puto da vida. Sua voz não ficava cada vez mais quente como a minha teria ficado, mas cada vez mais fria. — Parece que você está dizendo isso a todo mundo — eu murmurei. Sem fazer nada para merecer isso, acrescentei, em silêncio. — É a tradição entre os vampiros — Bill explicou novamente. — Se eu declaro que você é minha, ninguém pode tentar se alimentar de você. — Se alimentar de mim, mas que frase mais delicada! — eu disse ferinamente, e Bill ficou com uma expressão de verdadeira exasperação por uns momentos.
— Estou protegendo você — ele disse, sua voz não tão neutra como de costume. — Já lhe passou pela cabeça que eu...? E eu me contive, fechando meus olhos. Contei até dez. Quando arrisquei dar uma olhada para Bill, seus olhos estavam fixos em meu rosto, sem dar uma piscadela. Eu conseguia praticamente ouvir as engrenagens se mexendo. — Que você não precisa de proteção? — ele perguntou, amavelmente. — Que você é que está me protegendo? Eu não disse nada. Sou capaz de uma coisa dessas. Mas ele me pegou pela nuca. Virou minha cabeça como se eu fosse uma boneca. (Isso estava se tornando um hábito irritante nele.) Olhou tão firmemente dentro de meus olhos que pensei que túneis estivessem sendo construídos dentro de mim. Prendi meus lábios e soprei sobre seu rosto. — Buu — eu disse. Eu estava muito pouco à vontade. Olhava para as pessoas no bar, deixando minha guarda baixar, escutando. — Que chato — eu disse a ele. — Essas pessoas são chatas. — São mesmo, Sookie? Que é que eles estão pensando? — Foi um alívio ouvir a sua voz, não importando que ela estivesse um pouco esquisita. — Sexo, sexo, sexo. E era verdade. Cada uma daquelas pessoas no bar só trazia sexo na cabeça. Mesmo os turistas, que em maioria não estavam pensando em transar com os vampiros, mas pensavam nos tietes transando com os vampiros. — Em que você está pensando, Sookie? — Não é em sexo — eu respondi pronta e confiantemente. Eu tinha acabado de sofrer um choque desagradável. — É mesmo?
— Estava pensando era nas chances de nós sairmos desta espelunca sem nenhum problema. — Por que você estava pensando nisso? — Porque um dos turistas é um tira disfarçado, e ele acabou de ir ao banheiro; ele sabe que há um vampiro lá dentro, chupando o pescoço de algum tiete. E já chamou a polícia com seu pequeno rádio. — Vamos cair fora — ele disse suavemente, e nós saímos da cabine rapidamente, andando rumo à porta. Pam tinha desaparecido, mas quando passamos pela mesa de Eric, Bill fez a ele algum sinal que não compreendi. Quase tão suavemente quanto Bill, Eric deslizou de sua cadeira e ergueu-se, com sua magnífica estatura, seu passo bem mais largo que o nosso que passou pela porta primeiro que nós, pegando no braço de uma leoa de chácara e levando-a para fora conosco. Quando estávamos para ultrapassar a porta de saída, lembrei-me que o barman, Sombra Longa, tinha respondido às minhas perguntas com boa vontade, por isso me virei e apontei meu dedo em direção à porta, dizendo a ele, sem possibilidade de equívoco, para que saísse. Ele pareceu ficar alarmado à maneira dos vampiros, e enquanto Bill me puxava para cruzar as portas duplas, jogou sua toalha. Lá fora, Eric esperava ao lado de seu carro — um Corvette, naturalmente. — Vai haver uma batida — Bill disse. — Como você soube? Bill ficou encrencado com aquilo. — Por mim — eu tirei-o do embaraço. Os olhos azuis de Eric brilharam mesmo na claridade do estacionamento. Eu teria que explicar depois. — Eu li a mente de um policial — murmurei.
Olhei de esguelha para ver como Eric estava interpretando a coisa, e ele estava olhando para mim da mesma maneira que os vampiros de Monroe tinham olhado. Pensativa e avidamente. — Isso é interessante — ele disse. — Eu saí com uma garota dotada de poderes psíquicos uma vez. Foi incrível. — Ela também achou? — Minha voz saiu mais ácida do que eu calculara. Ouvi Bill ofegar. Eric riu. — Por uns tempos — ele respondeu, ambiguamente. Ouvimos sirenes à distância e, sem mais palavras, Eric e sua leoa de chácara deslizaram para dentro do carro dele e se afundaram dentro da noite, o carro parecendo mais silencioso que os outros, de algum modo. Bill e eu pusemos nossos cintos de segurança rapidamente, e deixamos o estacionamento por uma saída bem quando a polícia ia entrando por outra. Eles vinham com sua van de vampiros, um veículo especial para transportar prisioneiros, dotado de barras de prata. Era guiada por dois tiras que tinham pertencido à seita dos vampiros, e eles pularam da van e chegaram à porta do clube com uma velocidade que os transformou rapidamente em borrões na minha visão humana. Tínhamos percorrido alguns quarteirões quando repentinamente Bill entrou no estacionamento de mais uma loja comercial às escuras. — O quê...? — comecei a dizer, mas não continuei. Bill tinha soltado meu cinto de segurança, recuado o assento, e me agarrado antes que eu terminasse minha frase. Com medo de que ele estivesse furioso, lutei com ele a princípio, mas foi o mesmo que me debelar contra uma árvore. Depois, sua boca localizou a minha, e eu soube o que ele queria. Oh, cara, como ele beijava. Tínhamos problemas de comunicação em alguns níveis, mas nesse não tínhamos nenhum. Nós nos deleitamos por uns cinco minutos. Eu sentia todas as coisas certas se movendo em ondas pelo meu corpo. Apesar do embaraço de estar no banco da frente de um carro, eu me ajeitava para ficar à vontade, mais ainda porque ele era tão forte e atencioso. Eu dava mordidinhas em sua pele. Ele fazia um som parecido a um rosnado. — Sookie! — Sua voz estava entrecortada. Eu me afastei dele um pouquinho. — Se fizer isso outra vez, eu possuirei você, queira você ser possuída ou não — ele disse, e eu notei que ele estava falando sério. — Você não quer — eu disse finalmente, tentando não transformar isso num problema. — Oh, sim, quero sim — e ele agarrou a minha mão e me mostrou. De repente, uma luz clara começou a girar ao nosso lado. — A polícia — eu disse. Vi uma figura saindo do carro-patrulha e vindo na direção da janela de Bill. — Não o deixe perceber que você é um vampiro — eu disse rapidamente, temendo as conseqüências da batida no Fangtasia. Embora muitas forças policiais gostassem de ter vampiros engajados a seu serviço, havia um monte de preconceitos contra os vampiros nas ruas, especialmente se constituíssem um casal misto. A mão pesada do policial deu uma pancada breve e seca na janela. Bill acionou o motor, apertando o botão que baixava a janela. Mas estava em silêncio, e eu percebi que seus caninos não tinham se contraído. Se abrisse a boca, ficaria mais que óbvio que era um vampiro. — Alô, policial — eu disse. — Boa-noite — o homem disse, bastante polido. Ele se curvou para olhar na janela. — Vocês dois sabem que todas as lojas daqui estão fechadas, certo? — Sim, senhor. — Agora, eu noto que vocês têm feito uma farrinha por aqui, e eu não tenho nada contra, mas vocês precisam ir para casa para fazer esse tipo de coisa.
— Nós vamos — eu concordei ansiosamente, e Bill fez uma inclinação rígida com a cabeça. — Estamos dando batida num bar a uns quarteirões atrás — o patrulheiro disse casualmente. Eu conseguia ver só um pouquinho de seu rosto, mas ele parecia corpulento e de meia-idade. — Vocês dois estão vindo de lá, por acaso? — Não — eu disse. — Bar de vampiros — o tira observou. — De jeito nenhum. Nós não. — Deixe-me só iluminar seu pescoço com a lanterna, senhorita, se não se importa. — Sem problemas. E ele jogou aquela luz sobre o meu pescoço e depois sobre o de Bill. — O.k., só examinando. Podem ir embora, vocês dois. — Sim, nós vamos. O assentimento de Bill foi ainda mais lacônico. Enquanto o patrulheiro esperava, eu deslizei para o lado e coloquei meu cinto de segurança, e Bill pôs o carro em funcionamento e deu ré. Bill estava furioso. Por todo o trajeto, até em casa, manteve um silêncio mal-humorado (suponho), enquanto eu estava inclinada a considerar o incidente todo como uma coisa bem engraçada. Eu estava animada por notar que Bill não era indiferente aos meus atrativos físicos, tais como eram. Comecei a ter a esperança de que um dia ele quisesse me beijar novamente, talvez por mais tempo e mais profundamente, e talvez até... pudéssemos ir mais além? Tentava não deixar minhas esperanças me subirem à cabeça. Na verdade, havia uma ou duas coisas que Bill não sabia sobre mim, que ninguém sabia, e eu tomava muito cuidado em manter minhas expectativas numa escala modesta. Quando ele me levou de volta à Vovó, desceu e abriu minha porta, o que fez com que eu erguesse minhas sobrancelhas; mas eu não sou daquelas que bloqueiam um gesto de cavalheirismo. Eu sabia que Bill percebia muito bem que eu tinha braços funcionais e habilidade mental suficiente para entender o mecanismo de abertura da porta. Quando saí, ele recuou. Fiquei magoada. Ele não queria me beijar novamente; ele estava se arrependendo de nosso episódio recente. Talvez pensando naquela maldita Pam. Ou talvez até no Sombra Longa. Eu estava começando a ver que a habilidade em fazer sexo por longos séculos deixa lugar para muita experimentação. Uma telepata seria tão ruim para incluir em sua lista? Eu meio que arqueei e encolhi meus ombros e cruzei meus braços sobre o peito. — Você está sentindo frio? — Bill perguntou imediatamente, pondo o braço em torno de mim. Mas era o equivalente físico de uma capa, ele estava tentando ficar tão longe de mim quanto fosse possível para o seu braço. — Sinto muito por ter lhe aborrecido. Não vou convidar você para mais nada — eu disse, mantendo minha voz calma. Enquanto falava, percebi que Vovó não tinha estabelecido uma data para Bill falar com os Descendentes, mas ela e Bill ainda teriam que cuidar daquilo. Ele ficou imóvel. Finalmente, disse: — Você... é... incrivelmente... ingênua. — E não acrescentou aquela cláusula adicional sobre a esperteza, como fizera anteriormente. — Bem — eu disse inexpressivamente. — Eu sou? — Ou talvez um daqueles pobres de espírito do Senhor — e aquilo soou bem menos agradável, como se eu fosse um Quasimodo ou algo do gênero. — Suponho — eu disse acidamente — que você só terá que descobrir. — É bem melhor que seja eu a descobrir — ele disse sombriamente, o que não entendi de modo algum.
Ele me encaminhou até a porta, e eu claro que esperava um outro beijo, mas ele me deu só um beijinho na testa. — Boa-noite, Sookie — sussurrou. Pousei meu rosto sobre o seu por um momento. — Obrigado por me levar — eu disse, e me afastei rapidamente antes que ele pudesse pensar que eu estava pedindo alguma coisa mais. — Não vou procurar mais você. — E antes que eu pudesse perder a minha determinação, deslizei para dentro da casa escura e bati a porta na cara de Bill.
Claro que eu tive muito em que pensar nos dois dias seguintes. Para alguém que estava sempre valorizando coisas novas a fim de não cair no tédio, dessa vez eu as acumulara em número suficiente para ficar abastecida por semanas. As pessoas do Fangtasia, por si só, eram alimento para reflexão, isto sem contar os vampiros. De uma garota ansiosa por conhecer um vampiro eu passara a ser alguém que conhecera muito mais vampiros do que previra. Um monte de homens de Bon Temps e das áreas vizinhas tinha sido convocado à delegacia de polícia para responder a algumas perguntas sobre Dawn Green e seus hábitos. Para ficar ainda mais embaraçoso, o detetive Bellefleur dera para aparecer no bar em suas horas de folga, nunca ingerindo de álcool mais que uma cerveja, mas observando tudo que se passava ao seu redor. Já que o bar do Merlotte não era exatamente um viveiro de atividades ilícitas, ninguém se importava muito e os freqüentadores se habituaram à presença dele. Ele parecia escolher sempre uma mesa que ficava em minha área de trabalho. E começou a jogar um jogo silencioso comigo. Quando eu me aproximava de sua mesa, ele pensava em alguma coisa provocativa, tentando fazer com que eu dissesse alguma coisa em resposta. Ele não parecia entender como aquilo era indecente. A provocação, não o insulto, era o ponto que o interessava. Ele queria apenas que eu lesse a sua mente outra vez. Eu não conseguia entender por quê. Então, no que devia ter sido a quinta ou sexta vez que eu tivera que atendê-lo levando alguma coisa, creio que uma Coca light, ele me imaginou transando com meu irmão. Fiquei tão nervosa quando fui à sua mesa (sabendo que deveria esperar por uma boa, mas não sabendo o que ele me aprontaria) que fui além da raiva e entrei no reino das lágrimas. Aquilo me fez recordar o tormento bem menos sofisticado que eu tivera quando estava na escola primária. Andy olhou para mim com um rosto ansioso, e quando ele viu as lágrimas uma espantosa gama de coisas passou por seu rosto em rápida sucessão: triunfo, compaixão e, por fim, uma vergonha escaldante. Eu derramei a maldita Coca em sua camisa. Atravessei o bar todo e fui para a porta de saída. — Qual é o problema? — Sam perguntou, direto. Ele havia me seguido. Balancei a cabeça, não querendo explicar, e puxei um velho lenço de papel do bolso de meu short para enxugar meus olhos. — Ele disse coisas feias? — Sam perguntou, sua voz baixa e ainda mais furiosa. — Ele pensou nelas — eu disse, desamparada — para obter alguma reação minha. Ele sabe. — Filho de uma puta — Sam disse, o que quase me trouxe de volta ao normal. Sam não era dado a xingamentos. Uma vez que começara a chorar, parecia que não conseguiria mais parar. Eu estava tendo a oportunidade de chorar por todas as minhas pequenas infelicidades. — Volte para lá normalmente — eu disse, embaraçada com meu aguaceiro. — Eu estarei daqui a pouco. Ouvi a porta de saída do bar abrir e fechar. Eu imaginei que Sam seguira meu conselho. Mas, em vez disso, Andy Bellefleur apareceu e disse: — Peço desculpas, Sookie. — É senhorita Stackhouse para você, Andy Bellefleur — eu disse. — Acho que faria melhor descobrindo quem matou Maudette e Dawn do que ficar jogando sujos joguinhos mentais comigo. Eu me virei e olhei para o policial. Ele parecia horrivelmente envergonhado. Achei que era sincero em seu embaraço.
Sam estava segurando os braços dele, cheio da energia que a raiva lhe dava. — Bellefleur, sente-se na área de trabalho de outra pessoa quando voltar — ele disse, mas sua voz continha um monte de violência reprimida. Andy olhou para Sam. Ele tinha o corpo duas vezes mais robusto, e era mais alto que o dono do bar. Mas eu teria apostado dinheiro em Sam naquele momento, e parecia que Andy não estava disposto a enfrentar a disputa tampouco, por nada além de bom senso. Ele só fez um sinal de assentimento e atravessou o estacionamento, indo em direção a seu carro. Um lampejo de sol reluziu no topete alourado de seu cabelo castanho. — Sookie, eu sinto muito — ele disse. — Não foi culpa sua. — Você quer tirar uma folguinha? Não estamos tão ocupados hoje. — Nada disso. Vou terminar meu turno. Charlsie Tooten estava entrando no ritmo das coisas por ali, mas eu não me sentiria bem saindo naquele momento. Era o dia de folga de Arlene. Voltamos para o bar, e embora várias pessoas olhassem para nós com curiosidade quando entramos, ninguém nos perguntou o que havia acontecido. Havia apenas um casal sentado em minha área, e estava muito ocupado comendo, além de já ter seus copos bem cheios de bebida, portanto, não precisava de mim. Eu comecei a arrumar os copos de vinho. Sam estava encostado ao meu lado, no balcão. — É verdade que Bill Compton vai falar aos Descendentes dos Mortos Gloriosos hoje à noite? — Segundo minha avó, sim. — Você vai? — Não era meu plano. Eu não queria ver Bill até que ele me telefonasse e marcasse um compromisso comigo.
Sam não disse nada mais então, mas, ainda naquela tarde, quando eu estava pegando a minha bolsa em seu escritório, ele entrou e mexeu com alguns papéis na sua escrivaninha. Eu pegara a minha escova e estava tentando desembaraçar meu rabo-de-cavalo. Pelo modo como se agitava a meu redor, era óbvio que ele queria conversar comigo, e eu senti uma onda de exasperação pela maneira indireta demais que os homens têm para agir. Tal como Andy Bellefleur. Ele poderia apenas ter me perguntado sobre a minha “inconveniência” em vez de ficar jogando seus joguinhos comigo. Tal como Bill também. Ele poderia ter declarado as suas intenções, em vez de ficar naquele joguinho de quente e frio. — E aí? — eu disse, mais diretamente do que pretendia. Ele ficou corado com o meu olhar. — Eu estava pensando se você não gostaria de ir aos Descendentes comigo e depois a gente sairia e tomaria uma xícara de café por aí. Fiquei estupefata. Minha escova parou no meio do caminho. Milhares de coisas passaram pela minha cabeça, a sensação que tivera ao tocar a sua mão na frente do apartamento de Dawn Green, a muralha com que me deparara em sua mente, a coisa nada aconselhável de fazer que era sair com meu próprio chefe. — Claro — eu disse, depois de um silêncio impressionante. Ele pareceu suspirar de alívio. — Bom. Então, pegarei você na sua casa por volta de 7:20h. A reunião começa às 7:30h — O.k. A gente se vê. Com medo de fazer alguma coisa esquisita se eu ficasse ali por mais tempo, agarrei a minha bolsa e saí correndo para o carro. Eu não conseguia me decidir entre sorrir boba e alegremente ou recriminar-me por minha própria idiotice.
Por volta de 5:45h estava em casa. Vovó já estava pondo o jantar na mesa, pois tinha que sair mais cedo para servir refrescos na reunião dos Descendentes, que acontecia no prédio do Centro Comunitário. — Será que ele viria se tivéssemos marcado essa reunião na sala comunitária da Igreja Batista da Boa Fé? — Vovó disse, repentinamente. Mas, não tive problemas para embarcar na sua linha de raciocínio. — Oh, acho que sim — eu disse. — Acho que a idéia de vampiros ficarem apavorados com objetos religiosos não procede. Mas eu não perguntei nada disso a ele. — Lá naquela igreja eles têm um enorme crucifixo — Vovó prosseguiu. — Decidi ir à reunião, afinal — disse. — Vou com Sam Merlotte. — Seu chefe, Sam? — Vovó estava muito surpresa. — Sim, senhora. — Hmmm. Bem, bem. — Vovó começou a sorrir enquanto punha os pratos sobre a mesa. Fiquei pensando no que deveria vestir enquanto comíamos nossos sanduíches e nossa salada de frutas. Vovó estava agitada pela perspectiva da reunião, pela idéia de ouvir a palestra de Bill e apresentá-lo aos seus amigos, e nesse momento estava vagando pelo espaço (talvez nas proximidades de Vênus), já que eu realmente parecia ter arranjado um encontro. Com um ser humano. — Vamos passear depois da reunião — eu disse — por isso acho que vou chegar em casa uma hora depois que a reunião acabar. — Não havia tantos lugares assim para tomar café em Bon Temps. E aqueles restaurantes não eram exatamente lugares onde você gostaria de ficar muito tempo. — O.k., querida. Aproveite bem seu tempo. Vovó já estava vestida e, depois do jantar, eu a ajudei a carregar as bandejas de biscoitos e a grande chaleira de café que comprara para esses eventos. Vovó tinha estacionado seu carro na porta dos fundos, o que nos economizou uma boa pernada. Ela estava muito feliz e alvoroçada e tagarelou o tempo todo enquanto transportamos as coisas. Era uma noite perfeita para ela. Eu guardei minhas roupas de garçonete e entrei no chuveiro meio dividida. Enquanto me ensaboava, tentava pensar no que deveria vestir. Nada preto e branco, bem entendido; eu estava bastante enjoada das cores que usava no bar do Merlotte. Depilei minhas pernas novamente, não tive tempo para lavar meu cabelo e secá-lo, mas eu o fizera na noite anterior. Escancarei meu guarda-roupa e olhei bem fixo. Sam já tinha visto o meu vestido estampado de flores. O macacão de zuarte não era lá muito apropriado para os amigos de Vovó. Finalmente, consegui achar um par de calças caqui e uma blusa de seda bronze com mangas curtas. Eu tinha sandálias de couro marrom e um cinto de couro também marrom que combinavam bem. Passei um colar pelo pescoço, pus uns grandes brincos de ouro, e fiquei pronta. Como se tivesse sincronizado as coisas, Sam apertou, naquele exato momento, a campainha. Houve um momento de embaraço quando abri a porta. — Seja bem-vindo, mas acho que só temos tempo para... — Eu gostaria de sentar e fazer uma visitinha, mas acho que só temos tempo para... Nós dois caímos na risada. Eu tranquei a porta e saí, e Sam correu para abrir a porta de sua picape. Fiquei feliz por estar de calças, quando me imaginei tentando subir na cabine alta numa de minhas saias mais curtas. — Precisa de um empurrão? — ele perguntou, ansioso. — Acho que consigo subir sozinha — eu disse, tentando não sorrir. Ficamos em silêncio no trajeto para o Centro Comunitário, que ficava na parte mais velha de Bon Temps; a parte anterior à Guerra. A estrutura não era de antes da Guerra, mas houvera ali um edifício que fora realmente destruído durante a Guerra, embora ninguém parecesse ter uma idéia do que ele fora.
Os Descendentes dos Mortos Gloriosos formavam um grupo heterogêneo. Havia alguns membros muito velhos e muito frágeis e alguns outros não tão velhos e mais ativos, e havia até certo número de homens e mulheres de meia-idade. Mas não havia integrantes jovens, o que Vovó com freqüência lamentava, lançando olhares muito significativos em minha direção. O sr. Sterling Norris, um velho amigo de minha avó e o prefeito de Bom Temps, era o mais efusivo naquela noite, e ele ficou à entrada apertando as mãos e batendo um papinho com todos que entravam. — Senhorita Sookie, está mais bonita a cada dia que passa — o sr. Norris disse. — E, Sam, está fazendo décadas que a gente não se vê! Sookie, é verdade que esse vampiro é um amigo seu? — Sim, senhor. — Pode dar certeza de que estamos em segurança? — Sim, com certeza. Ele é uma... pessoa... muito simpática. — Criatura? Entidade? Se preferir usar morto-vivo, será adequado? — Bem, se você acha... — o sr. Norris disse, dubiamente. — Nos meus tempos, uma coisa assim não passava de um conto de fadas. — Oh, sr. Norris, seu tempo ainda não passou — eu disse, com o sorriso animador de praxe, e ele sorriu e nos fez entrar, o que também era praxe de sua parte. Sam pegou-me pela mão e conduziu-me para a penúltima fila de cadeiras de metal, e eu fiz um aceno para a minha avó enquanto sentávamos. Já era tempo da reunião começar, e a sala tinha por volta de quarenta pessoas, o que era um bom número para Bon Temps. Mas Bill ainda não havia chegado. Foi aí que a presidenta dos Descendentes, uma imponente e sólida mulher chamada Maxine Fortenberry, subiu ao pódio. — Boa-noite! Boa-noite! — ela disse com estrondo. — Nosso convidado de honra acabou de telefonar para dizer que seu carro está com um problema e que chegará daqui a pouquinho. Por isso, vamos prosseguir e fazer nossa reunião de negócios habitual enquanto esperamos por sua chegada. O grupo começou, e tivemos que agüentar toda aquela coisa maçante, Sam sentado ao meu lado com os braços cruzados no peito, sua perna direita cruzada sobre a esquerda, no tornozelo. Eu procurava manter meu rosto sorridente e minha mente em guarda com cuidado, e fiquei um pouco sem graça quando Sam encostou-se ligeiramente em mim para dizer baixinho: — Pode relaxar. — Pensei que estava relaxada — respondi, num sussurro. — Eu não acho que você saiba fazer isso. Ergui minhas sobrancelhas. Eu teria umas coisas a dizer ao sr. Merlotte depois da reunião. Foi bem aí que Bill entrou, e houve um momento de puro silêncio até que aqueles que nunca o tinham visto se adaptassem à sua presença. Se você nunca esteve na companhia de um vampiro, é uma coisa a que realmente tem que se adaptar. Sob a luz fluorescente, Bill parecia mesmo muito mais inumano do que sob a luz difusa do bar do Merlotte, ou do que sob a luz esmaecida de sua própria casa. Não havia meio de ele passar por um sujeito comum. Sua palidez era marcante, claro, e os poços profundos de seu olhar pareciam ainda mais escuros e frios. Ele usava um terno leve azul-médio, e eu apostaria que se vestira sob recomendação de minha avó. Tinha uma aparência ótima. A linha dominante do arco de sua sobrancelha, a curva de seu nariz atrevido, os lábios cinzelados, as mãos brancas com seus longos dedos e unhas cuidadosamente aparadas... Ele trocava saudações com a presidenta, e ela fora arrebatada de seu trabalho pelo encanto do sorriso de lábios fechados de Bill. Eu não sabia se Bill estava lançando o tal encanto sobre a sala inteira, ou se aquelas pessoas estavam apenas predispostas a ficar interessadas, mas o grupo todo murmurava ansiosamente.
Então ele me viu. Juro que suas sobrancelhas se contorceram. Fez-me uma pequena mesura, e eu respondi a seu aceno, não conseguindo lhe dar um sorriso. Mesmo em meio à multidão, eu ficava tensa devido à profundeza de seu silêncio. A sra. Fortenberry fez a apresentação de Bill, mas eu não me lembro o que ela disse ou como contornou o fato de que Bill era uma espécie diferente de criatura. Então, ele começou a falar. Trazia anotações, como descobri com alguma surpresa. Ao meu lado, Sam se inclinou para a frente, seus olhos fixos no rosto de Bill. — ...não tínhamos qualquer cobertor e a comida era muito pouca — Bill dizia calmamente. — Houve muitos desertores. Não era um fato muito agradável para os Descendentes, mas alguns deles faziam um sinal de entendimento. Essa explicação devia ir de encontro àquilo que haviam aprendido em seus estudos. Um homem idoso na primeira fila ergueu a mão. — Senhor, por acaso terá conhecido meu bisavô, Tolliver Humphries? — Sim — Bill disse, pouco depois. Seu rosto era inescrutável. — Tolliver foi meu amigo. E, por um momento apenas, uma nota tão trágica apontou em sua voz que eu tive que fechar meus olhos. — Como ele era? — o idoso perguntou, com voz trêmula. — Bem, ele era imprudente, o que o levou à morte — disse Bill, com um sorriso retorcido. — Ele era corajoso. Abusado no gasto de suas forças. —- Como ele morreu? O senhor estava por perto? — Sim, eu estava lá — disse Bill, desoladamente. — Vi-o levar um tiro de um Nortista de tocaia nas florestas situadas a uns trinta quilômetros daqui. Estava com reflexos lentos, pois passava muita fome. Todos nós passávamos fome. Quase pelo meio da manhã, uma manhã fria, Tolliver viu um garoto de nossa tropa levar um tiro quando se arrastava a descoberto no meio do campo. O rapaz não estava morto, mas dolorosamente ferido. Mas ele conseguia nos chamar, e nos chamou, pela manhã toda. Chamou-nos para ajudá-lo. Sabia que morreria se não fosse socorrido. A sala inteira ficara tomada por um tal silêncio que podia-se ouvir um alfinete cair. — Ele gritou e gemeu. Eu quase atirei nele, para calar a sua boca, porque sabia que sair para resgatá-lo era praticamente um suicídio. Mas eu não pude fazer tal coisa. Seria crime, não guerra, eu dizia a mim mesmo. Entretanto, mais tarde, bem que desejei tê-lo matado, pois Tolliver era menos capaz de suportar os gemidos do garoto do que eu. Depois de duas horas de suplício, ele me disse que planejava salvá-lo. Discuti com ele. Mas Tolliver me disse que Deus queria que ele ao menos tentasse aquele ato. Ele ficara rezando enquanto nós rastejávamos nas florestas. “Embora eu argumentasse com Tolliver que Deus não desejaria que ele desperdiçasse sua vida tolamente, pois tinha uma mulher e filhos rezando para que retornasse são e salvo para casa, Tolliver me pediu para distrair o inimigo enquanto ele tentaria resgatar o garoto. Correu pelo campo adentro como se fosse um dia de Primavera e ele estivesse muito descansado. E acabou chegando ao ponto onde o garoto ferido se encontrava. Mas, então, um tiro foi disparado e Tolliver caiu morto. E, depois de um momento, o garoto começou a gritar novamente.” — O que aconteceu com ele? — perguntou a sra. Fortenberry, com a voz mais tranqüila que pudera fazer. — Ele viveu — Bill disse, e havia um tom em sua voz que me deu calafrios na espinha. — Ele suportou o dia inteiro, e conseguimos resgatálo à noite. Era como se aquelas pessoas da platéia estivessem ressuscitando também enquanto Bill falava, e para o homem idoso na fila da frente haveria uma lembrança a afagar, uma lembrança que dizia muito sobre o caráter de seu ancestral.
Eu não acho que qualquer um que tivesse comparecido à reunião daquela noite estivesse preparado para o impacto de ouvir falar sobre a Guerra Civil pela boca de um de seus sobreviventes legítimos. O público estava subjugado; estava abalado. Quando Bill terminou de responder à última pergunta, houve um aplauso estrondoso, ou ao menos era tão estrondoso quanto quarenta pessoas poderiam produzir. Mesmo Sam, que não era o maior fã de Bill, esforçou-se por bater palmas. Todos queriam trocar uma impressão pessoal com Bill depois da apresentação, exceto eu e Sam. Enquanto o relutante convidado e orador era cercado pelos Descendentes, Sam e eu saímos furtivamente em direção à picape de Sam lá fora. Fomos ao Crawdad Diner, uma verdadeira espelunca que por acaso oferecia excelente comida. Eu não estava com fome, mas Sam comeu torta de limão, acompanhando seu café. — Foi interessante — Sam disse cautelosamente. — O discurso de Bill? Sim — eu disse, cautelosamente também. — Você sente alguma coisa por ele? Depois de todas as indiretas, finalmente Sam havia decidido tomar de assalto o portão principal. — Sim — eu disse. — Sookie — Sam disse — você não terá futuro com ele. — Por outro lado, ele tem estado bem presente por aqui. Espero que ele continue presente por mais alguns anos. — Você nunca sabe o que poderá acontecer com um vampiro. Eu não podia fazer objeção a isso. Mas, como expliquei a Sam, eu tampouco poderia saber o que aconteceria comigo, como ser humano. Nós discutimos dessa maneira por muito tempo. Finalmente, exasperada, eu disse: — Qual é seu interesse nisso, Sam? Sua pele corada ficou ainda mais vermelha. Seus claros olhos azuis fixaram-se nos meus.
— Eu gosto de você, Sookie. Como amiga e como alguma coisa mais de vez em quando... — Como? — Eu apenas odeio ver você pegar um caminho errado. Olhei para ele. Senti que minha expressão se tornava cética, minhas sobrancelhas se franziam e o canto de minha boca repuxava. — Claro — eu disse, minha voz combinando com minha expressão. — Eu sempre gostei de você. — Gostou tanto que teve que esperar um outro cara demonstrar interesse para que tivesse coragem de me contar? — Eu mereço isso. — Ele parecia estar revirando alguma coisa em sua mente, algo que queria me dizer, mas para o que não conseguia tomar uma resolução. O que quer que esse algo fosse, ele não conseguia arrancá-lo de seu interior, pelo jeito. — Vamos embora — sugeri. Seria difícil fazer a conversa voltar a um terreno neutro, eu imaginei. Era melhor que eu fosse para casa. Foi um retorno engraçado. Sam parecia estar sempre à beira de dizer alguma coisa, mas aí balançava a cabeça e continuava silencioso. Eu estava tão irritada que sentia vontade de lhe dar um tapa. Chegamos em casa mais tarde do que eu planejara. A luz de Vovó estava acesa, mas o resto da casa estava às escuras. Eu não vi o carro dela, e por isso imaginei que ela havia estacionado nos fundos para descarregar as sobras das coisas servidas na reunião diretamente na cozinha. A luz da varanda estava acesa para mim. Sam fez a volta e abriu a porta da picape, e eu desci. Mas, nas sombras, meu pé falhou ao pisar no apoio de embarque, e eu quase caí. Sam me agarrou. Primeiro suas mãos agarraram meus braços para firmá-los, depois elas simplesmente deslizaram em volta de mim. E ele me beijou.
Eu julgava que seria apenas um beijinho de boa-noite, mas sua boca se demorou na minha. Era realmente mais que agradável, mas de repente meu censor interno me alertou, “Esse homem é seu chefe”. Eu me desgrudei delicadamente dele. Ele percebeu imediatamente que eu estava recuando, e deixou suas mãos deslizarem pelos meus braços de forma cortês até que ficou apenas segurando as minhas mãos. Rumamos para a porta, sem palavras. — Eu me diverti bastante — disse, suavemente. Não queria acordar Vovó, e não queria parecer agressiva. — Eu também. Vamos marcar um outro encontro? — Veremos — eu disse. Eu realmente não sabia o que sentia por Sam. Esperei até ouvir seu carro voltar à estrada, e então apaguei a luz da varanda e entrei em casa. Fui desabotoando minha blusa ao andar, cansada e já pronta para me deitar. Alguma coisa estava errada. Parei no meio da sala de visitas. Olhei ao redor. Tudo parecia certo, não? Sim. Cada coisa estava em seu próprio lugar. Mas havia o cheiro. Era como o cheiro de uma moeda. Um cheiro de cobre, penetrante e salgado. O cheiro de sangue. Estava ali embaixo, perto de mim, não lá no alto, onde os quartos de hóspedes permaneciam em nítido abandono. — Vovó? — chamei. Odiei o tremor que havia em minha voz. Fiz força para me mover, fiz força para chegar até a porta do quarto de Vovó. Estava intacto. Comecei a acender luzes à medida que vagava pela casa. Meu quarto estava tal qual eu o deixara. O banheiro estava vazio.
A área de serviço estava vazia. Eu acendi a última luz. A cozinha estava... Gritei, gritei sem parar. Minhas mãos se agitaram inúteis pelo ar, tremendo mais a cada grito que eu soltava. Ouvi uma batida atrás de mim, mas não consegui me interessar. Então, grandes mãos me agarraram e movimentaram, e um corpo enorme se plantou entre mim e o que eu via no chão da cozinha. Eu não reconheci Bill, mas ele me pegou e carregou para a sala de visitas, onde eu não veria mais aquilo. — Sookie — ele disse asperamente —, cale a boca! Isso não vai ajudar em nada! Se ele tivesse sido gentil comigo, eu continuaria guinchando. — Sinto muito — eu disse, ainda fora de mim. — Estou agindo como aquele garoto. Ele me olhou, perplexo. — Aquele de sua história — eu disse, entorpecida. — Temos que chamar a polícia. — Claro. — Temos que discar o telefone. — Espere. Como foi que você veio aqui? — Sua avó me deu carona para casa, mas eu insisti em vir com ela primeiro e ajudá-la a descarregar o carro. — Então, por que você está aqui ainda? — Estava esperando por você. — Então, você viu quem a matou? — Não. Fui para casa, do outro lado do cemitério, para me trocar. Ele estava usando calças jeans e uma camiseta do Grateful Dead , e de repente eu me pus a dar risadinhas.
* O nome Grateful dead, que pode ser traduzido jocosamente como Mortos bonzinhos, é que provoca a hilaridade de Sookie. Era um grupo de rock que surgiu nos anos 1960 em São Francisco, EUA, durante a explosão hippie do chamado Flower Power, mas não fez sucesso no Brasil. (N. do T.)
— Essa foi muito boa — eu disse, dobrando de rir. E, de repente, do mesmo jeito, me pus a chorar. Peguei o telefone e disquei 911. Andy Bellefleur apareceu em casa dentro de cinco minutos. Jason apareceu assim que eu consegui localizá-lo. Tentei encontrá-lo em quatro ou cinco lugares diferentes, e finalmente localizei-o no bar do Merlotte. Terry Bellefleur estava substituindo Sam naquela noite, e quando voltou do recado que foi dar a Jason, para que viesse à casa da avó, pedilhe que chamasse Sam e dissesse a ele que eu estava com problemas e não poderia voltar ao trabalho por alguns dias. Terry devia ter avisado Sam imediatamente porque não demorou trinta minutos para que ele chegasse em casa, ainda com as roupas que usara para ir à reunião naquela noite. Ao vê-lo, lembrei-me que desabotoara a minha blusa ao entrar na sala de visitas, um fato de que eu perdera por completo a noção; mas eu estava vestida. Ocorreu-me que Bill tinha dado uma arrumada na minha aparência, naquele intervalo. Poderia achar aquilo meio embaraçoso depois, mas, no momento, estava grata a ele. Então Jason entrou, e quando lhe disse que Vovó estava morta, e morta com violência, ele apenas me olhou. Parecia que não havia nada acontecendo por trás daqueles olhos. Era como se alguém tivesse apagado sua capacidade de absorver novos fatos. Então, o que eu lhe disse finalmente o atingiu, e meu irmão caiu de joelhos bem onde estava, e eu me ajoelhei em frente a ele. Ele pôs os braços em torno de mim e pousou a sua cabeça em meu ombro, e nós apenas ficamos ali, por uns momentos. Éramos os únicos sobreviventes da família. Bill e Sam estavam lá fora, na entrada, sentados nas cadeiras do jardim, afastados da polícia. Logo Jason e eu fomos chamados para ir até a varanda, pelo menos, e optamos por sentar-nos lá fora, também. Era uma noite tranqüila, e eu me pus a olhar para a casa, toda iluminada, como um bolo de aniversário, e as pessoas que iam e vinham dela como formiguinhas que houvessem entrado na festa. Toda essa diligência em torno do farrapo que minha avó se tornara. — O que aconteceu? — Jason perguntou, finalmente. — Eu voltava da reunião — disse muito lentamente. — Depois que Sam voltou para a cidade no seu carro. Notei que algo estava errado. Olhei os quartos um por um. — Esta era a história de Como Encontrei Vovó Morta, a versão oficial. — E, quando cheguei à cozinha, vi que ela estava lá. Jason virou sua cabeça lentamente para que seus olhos fixassem os meus. — Conte mais. Balancei minha cabeça silenciosamente. Mas era direito dele saber. — Ela foi derrubada, mas creio que tentou reagir. Quem quer que tenha feito isso, cortou-a violentamente. E depois estrangulou-a, pelo que me pareceu. Eu não conseguia nem olhar para o rosto de meu irmão. — Foi culpa minha. — Minha voz era pouco mais que um sussurro. — Como é que você deduziu isso? — Jason disse, não parecendo mais que abobado e apático. — Imagino que alguém tenha vindo aqui para me matar como mataram Maudette e Dawn, mas era Vovó que estava em meu lugar. Eu vi a idéia penetrar lentamente na mente de Jason. — Era para eu estar em casa nesta noite enquanto ela estava na reunião, mas Sam convidou-me a ir de última hora. Meu carro estava aqui, como estaria habitualmente, porque fomos na picape de Sam. Vovó estacionou seu carro lá nos fundos para descarregar, portanto, não parecia que era ela, mas eu, que estava em casa. Ela dera uma carona para Bill ir para casa, mas ele ajudou-a a descarregar e foi trocar de roupa. Depois que ele saiu, quem quer que tenha vindo aqui... pegou a Vovó. — Como sabemos que não foi o Bill? — Jason perguntou, como se o próprio não estivesse sentado ali ao lado dele.
— Como sabemos que não foi qualquer pessoa? — eu disse, exasperada com o espírito lento do meu irmão. — Poderia ser qualquer um, qualquer pessoa que a gente conheça. Não creio que foi Bill. Não acho que Bill tenha matado Maudette e Dawn. E eu creio que quem quer que tenha matado as duas, matou a Vovó. — Você sabia — Jason disse, com a voz alta demais — que Vovó deixou essa casa todinha para você? Foi como se ele atirasse um balde de água fria em meu rosto. Eu vi o rosto de Sam se endurecer, também. Os olhos de Bill ficaram mais escuros e gélidos. — Não. Eu sempre pensei que herdaríamos juntos, como foi o caso da outra. — A casa de nossos pais, aquela em que Jason morava atualmente. — Ela deixou toda a terra para você, também. — Por que você está dizendo isso? — Eu estava querendo chorar novamente, quando percebi que estava seca em matéria de lágrima, naquele momento. — Ela não foi justa! — ele gritou. — Isso não foi justo, e agora é tarde demais para ela consertar! Comecei a tremer. Bill tirou-me da cadeira e começou a caminhar comigo para um lado e para outro da entrada. Sam sentou-se diante de Jason e começou a conversar com ele honestamente, a voz baixa e intensa. O braço de Bill me envolvia, mas eu não conseguia parar de tremer. — Ele falou aquilo a sério? — eu perguntei, não esperando que Bill respondesse. — Não — ele disse. Olhei-o, surpresa. — Não, ele não pôde ajudar a sua avó, e não pôde suportar a idéia de alguém emboscado aqui, à espera de você, que matou-a em seu lugar. Portanto, ele tinha que ficar com raiva de alguma coisa. E em vez de ficar com raiva de você por não ter sido morta, ele projetou sua raiva em outras coisas. Eu não me preocuparia com isso. — Eu acho que é bem espantoso você dizer essas coisas — eu lhe disse grosseiramente. — Oh, eu fiz uns cursos noturnos de psicologia — disse Bill Compton, o vampiro. E, não pude deixar de pensar, caçadores sempre estudam suas presas. — Por que Vovó deixou tudo isso para mim, não para Jason? — Talvez você descubra o motivo daqui a algum tempo — ele disse, e aquilo pareceu bom para mim. Então, Andy Bellefleur saiu da casa e parou nos degraus da escada, erguendo os olhos para o alto como se pudesse encontrar pistas inscritas no céu. — Compton — ele chamou, em tom agudo. — Não — eu disse, e minha voz saiu como um rosnado. Senti Bill olhar para mim com a ligeira surpresa que, vinda dele, era uma grande reação. — É agora que a coisa vai acontecer — eu disse, furiosamente. — Você estava me protegendo — ele disse. — Você pensou que a polícia suspeitaria que eu era o assassino daquelas duas mulheres. Era por isso que você queria ter certeza de que elas estiveram disponíveis para outros vampiros. Agora você pensa que esse Bellefleur tentará me responsabilizar pela morte de sua avó. — Sim. Ele respirou profundamente. Estávamos na escuridão, junto às árvores que cercavam a entrada. Andy berrou o nome de Bill novamente. — Sookie — Bill disse amavelmente — estou certo de que você era a vítima que o cara queria, tão certo quanto você. Era quase um choque ouvir uma outra pessoa dizer isso. — E eu não as matei. Portanto, se esse assassino era o mesmo das outras duas, não fui eu, e ele notará isso. Mesmo sendo um Bellefleur.
Começamos a andar de volta para a zona iluminada. Eu não queria que nada disso estivesse acontecendo. Eu queria que as luzes e as pessoas, todas elas, incluindo Bill, desaparecessem. Queria ficar sozinha em casa com minha avó, e queria que ela estivesse feliz, como estivera na última vez em que a vira. Era fútil e infantil, mas eu podia desejar uma coisa dessas. Eu estava perdida numa espécie de sonho, tão perdida que não veria o mal chegando até que fosse tarde demais. Meu irmão, Jason, parou em frente a mim e deu-me um tapa no rosto. Foi tão inesperado e tão dolorido que eu perdi o equilíbrio e cambaleei, tentando me apoiar com dificuldade num joelho. Jason parecia estar vindo me bater outra vez, mas Bill pulou em minha frente, e seus caninos estavam ressaltados e ele estava infernalmente assustador. Sam imobilizou Jason e derrubou-o, e acho que bateu o rosto dele contra o chão ao menos uma vez, por precaução. Andy Bellefleur estava aturdido com essa imprevista demonstração de violência. Mas, logo, ele se enfiou no meio dos dois pequenos grupos no jardim. Ele olhou para Bill e engoliu seco, mas disse numa voz firme: — Compton, pode parar. Ele não vai bater nela novamente. Bill estava tomando fôlego fundo, tentando controlar sua ânsia de derramar o sangue de Jason. Eu não conseguia ler seus pensamentos, mas sua linguagem corporal sim. Não podia tampouco ler os pensamentos de Sam, mas notava que ele estava com muita raiva. Jason estava soluçando. Seus pensamentos eram uma confusa, emaranhada e aturdida trapalhada. E Andy Bellefleur não gostava de nenhum de nós e bem que ele queria prender cada um desses malucos por um motivo ou outro. Eu fiz um esforço exaustivo para ficar de pé e toquei no ponto dolorido em meu rosto, usando aquilo para me distrair da dor que trazia no coração, a horrível aflição que se apossava de mim.
Achei que aquela noite nunca teria fim.
O funeral foi o maior já acontecido em Renard Parish, segundo o pastor. Sob um sol brilhante de início de verão, minha avó foi sepultada ao lado de meus pais em nosso jazigo familiar no antigo cemitério entre a casa dos Comptons e a casa de Vovó. Jason estava certo. A casa era minha, agora. A casa e os vinte acres que a circundavam eram meus, como meus eram os direitos minerais. O dinheiro de Vovó, o que restara, foi dividido com justiça entre nós dois, e Vovó tinha estipulado que eu desse a Jason minha metade da casa onde nossos pais tinham vivido, se eu quisesse preservar meus direitos integrais à sua casa. Isso era fácil de fazer, e eu não queria dinheiro nenhum da parte de Jason por aquela metade que me cabia, embora meu advogado parecesse duvidar quando eu lhe disse isso. Jason iria explodir de raiva se eu insinuasse que devia pagar por minha metade; o fato de que eu fosse coproprietária da casa nunca passara de mera fantasia para ele. No entanto, o fato de Vovó haver deixado sua casa inteiramente para mim viera feito um choque. Ela entendera Jason melhor do que eu. “Sorte minha contar com uma renda além daquela que me vinha do bar”, pensei sombriamente, tentando me concentrar em alguma coisa além da perda de minha avó. Pagar os impostos da terra e da casa, e mais a manutenção da casa, que Vovó havia assumido ao menos em parte, iria de fato minguar meus rendimentos. — Suponho que você vá querer se mudar daqui — disse Maxine Fortenberry, quando estava limpando a cozinha. Maxine havia trazido ovos com pimenta e salada de presunto, e tentava dar uma ajuda extra na faxina. — Não — eu disse, surpresa. — Mas, querida, com tudo o que aconteceu bem aqui... — O rosto sombrio de Maxine estava marcado pela preocupação. — Desta cozinha, tenho mais lembranças boas que ruins — eu expliquei.
— Oh, que forma positiva de lidar com as coisas — ela disse, surpresa. — Sookie, você é realmente mais inteligente do que as pessoas supõem. — Puxa vida, obrigada, senhora Fortenberry — eu disse, e se ela ouviu o tom seco de minha voz, não deu sinal disso. Talvez fosse mais sensato. — Seu amigo virá ao funeral? A cozinha estava muito quente. A corpulenta, quadrada Maxine estava enxugando seu rosto com um pano de prato. O lugar onde Vovó tinha sido encontrada caída fora todo esfregado por suas amigas, que Deus as abençoasse. — Meu amigo. Oh, Bill? Não, ele não pode. Ela olhou perplexa para mim. — Vai ser de dia, é claro. Ela ainda não conseguia compreender. — Ele não pode aparecer. — Oh, naturalmente! — Ela deu-se um tapinha na têmpora para indicar que estava recuperando o senso. — Tonta de mim. O sol frita mesmo os vampiros? — Bem, é o que ele garante. — Você sabe, eu fiquei tão contente por ele ter dado aquela palestra no clube, fez de fato uma grande diferença ele participar da comunidade. Eu fiz que sim, distraída. — Há de fato um monte de ressentimento por aí, devido a esses crimes, Sookie. Há um monte de fuxicos sobre vampiros, dizendo que eles são responsáveis por essas mortes. Fitei-a com os olhos apertados. — Não fique tão brava comigo, Sookie Stackhouse! Como Bill foi tão gentil contando aquelas histórias fascinantes na reunião dos Descendentes, a maioria não acha que ele pudesse fazer essas coisas medonhas que foram feitas com essas mulheres.
Fiquei imaginando quais histórias estavam sendo comentadas, e tremi ao pensar. — Mas é que ele recebeu umas visitas de cujas aparências as pessoas não gostaram nada, nada. Imaginei que ela se referia a Malcolm, Liam e Diane. Eu também não gostara nada daquelas aparências, e resisti ao impulso automático de sair na defesa deles. — Vampiros são tão diferentes entre si quanto os seres humanos — eu disse. — Foi o que eu disse a Andy Bellefleur — ela disse, concordando com veemência. — Eu disse a ele, você deve ir atrás de outras pessoas, aquelas que não querem aprender a viver com a gente, não de alguém como Bill Compton, que está fazendo de fato um esforço por se estabelecer na comunidade. Ele estava me contando na casa funerária que terminou a reforma de sua cozinha, finalmente. Eu só consegui olhar para ela de olhos arregalados. Tentei pensar no que Bill poderia fazer na sua cozinha. Por que ele ia precisar de uma? Mas, nenhuma dessas distrações funcionaram para mim, e finalmente percebi que, por uns tempos, eu choraria a cada lembrança. E foi o que fiz. No funeral, Jason ficou ao meu lado, aparentando ter superado a raiva que sentia de mim e estar recolhido em seus próprios pensamentos. Ele não me tocou nem falou comigo, mas também não me bateu. Senti-me muito sozinha. Mas então percebi, ao olhar para o lado da colina, que a cidade inteira estava me amparando naquela aflição. Havia carros a perder de vista nas ruas estreitas do cemitério, havia centenas de pessoas trajadas de preto em torno da tenda da casa funerária. Sam estava lá, trajando um terno (destoando muito de sua aparência habitual) e Arlene, ao lado de Rene, estava usando um vestido dominical estampado com flores. Lafayette estava bem lá atrás da multidão, ao lado de Terry Bellefleur e Charlsie Tooten; o bar devia estar fechado! E todos os amigos de Vovó, todos, entre aqueles que ainda podiam andar, fizeram-se presentes. O sr. Norris chorava abertamente, usando um lenço branco como a neve para enxugar os olhos. O rosto pesado de Maxine tinha sulcos visíveis de tristeza. Enquanto o pastor dizia o que tinha a dizer, enquanto Jason e eu ficávamos sozinhos na área reservada à família, sentados em irregulares cadeiras de dobrar, sentia que alguma coisa se desprendia de mim e voava, voava no rumo do firmamento azul brilhante: e soube que, o que quer que houvesse acontecido à minha avó, agora, de qualquer modo, ela estaria em paz. O resto do dia passou como névoa; graças a Deus. Eu não queria me lembrar do que havia ocorrido, não queria nem saber que aquilo estava acontecendo. Mas houve um momento de choque. Jason e eu estávamos à mesa da sala de jantar na casa de Vovó, num momento de trégua. Agradecíamos aos que vinham nos dar pêsames, a maior parte dos quais faziam um grande esforço para não olhar diretamente para a mancha no meu rosto. Simplesmente deixávamos as coisas rolarem, Jason pensando que iria para casa e beberia um pouco depois, e não teria que me ver por uns tempos e as coisas ficariam em ordem, e eu pensando, por minha vez, exatamente o mesmo que ele. Exceto pela bebida. Uma mulher bem-intencionada se aproximou de nós, o tipo de mulher que se põe a meditar sobre cada ramificação de um assunto que não é de sua conta. — Lamento por vocês, meninos — ela disse, e eu olhei para ela. Juro pelos Céus que não conseguia me lembrar de seu nome. Era uma Metodista. Tinha três filhos grandes. Mas o nome dela simplesmente me escapava no fundo da cabeça. — Sabem? Foi tão triste ver vocês dois aí sozinhos hoje, me fez lembrar tanto de seus pais — ela disse, seu rosto formando uma máscara de simpatia que eu sabia que era automática. Olhei de relance para Jason, olhei de volta para a mulher, fiz um sinal de assentimento.
— Sim — eu disse. Mas ouvi seu pensamento antes mesmo que ela o dissesse, e comecei a ficar pálida. — Mas onde estava o irmão de Adele hoje, seu tio-avô? É claro que ele deve estar vivo? — Não temos tido mais contato — eu disse, e meu tom teria desarmado qualquer um que tivesse mais educação que essa senhora. — Mas, era seu único irmão! Certamente vocês... — e sua voz se apagou quando o meu olhar, combinado com o de Jason, simplesmente fuzilou-a. Várias outras pessoas tinham comentado brevemente a ausência de nosso tio Bartlett, mas nós respondêramos com os sinais de “este é um assunto particular da família” que valiam como advertência para que não insistissem. Esta mulher, qual era seu nome mesmo?, não fora sagaz o bastante para lê-los. Ela trouxera uma salada de taco, e eu planejava jogá-la direto no lixo, assim que ela fosse embora. — Nós precisamos mesmo comunicá-lo sobre a morte de Vovó — Jason disse assim que ela saiu. Fiquei em guarda; eu não desejava saber o que ele estava pensando. — Você cuida disso — eu disse. — Tudo bem. E foi tudo o que nos dissemos pelo resto do dia.
Fiquei em casa por três dias depois do funeral. Foi tempo demais; eu precisava voltar ao trabalho. Mas eu pensava nas coisas que tinha que infalivelmente fazer, ou assim julgava. Esvaziei o quarto de Vovó. Calhou de Arlene aparecer, e eu pedi a sua ajuda, porque não conseguia ficar ali, sozinha, com todas as coisas de minha avó, todas tão familiares e impregnadas de seu odor pessoal de talco Johnson infantil e cânfora. Assim, minha amiga Arlene ajudou-me a empacotar tudo e levar para uma agência de socorro em calamidades públicas. Houvera ocorrências de tornados no extremo norte de Arkansas naqueles últimos dias, e certamente pessoas que haviam perdido tudo poderiam usar todas aquelas roupas. Vovó fora menor e mais magra que eu, e, além do mais, seu gosto era muito diferente do meu, por isso eu não queria ficar com nada de seu, exceto as jóias. Ela nunca as usava muito, mas o que ela usava me parecia legítimo e precioso. Era espantosa a quantidade de coisas que Vovó conseguira guardar no seu quarto. Eu não queria nem pensar no que ela poderia ter guardado no sótão: lidaria com isso depois, no outono, quando o sótão ficasse mais suportavelmente frio e eu tivesse tempo para pensar. Provavelmente joguei fora mais coisas do que devia, mas a ação fez com que me sentisse eficiente e forte, e o trabalho foi drástico. Arlene dobrava e empacotava, deixando de lado papéis e fotografias, cartas, contas e cheques cancelados. Minha avó nunca tinha usado um cartão de crédito em toda a vida e não fazia compras de ocasião, graças a Deus, o que tornou a coisa mais fácil de liquidar. Arlene perguntou sobre o carro de Vovó. Tinha cinco anos e pouca quilometragem rodada. — Você vai vender o seu e ficar com o dela? — ela perguntou. — O seu é mais novo, mas é pequeno.
— Não tinha pensado nisso — eu disse. E achei que não poderia pensar naquele momento, que a limpeza radical do quarto era tudo quanto podia fazer naquele dia. No fim da tarde, o quarto estava vazio da presença de Vovó. Arlene e eu viramos o colchão e eu refiz a cama de um modo diferente. Era uma antiga alcova no padrão mogno. Eu sempre achara que a decoração do quarto de Vovó era bonita, e ocorreu a mim que agora ele me pertencia. Poderia me mudar para o quarto maior e ter um toalete privado em vez de usar aquele que tínhamos no corredor. De repente, isso era exatamente o que eu queria fazer. A mobília que eu sempre usara no meu quarto viera da casa de meus pais por ocasião de seu falecimento, e era mobília de menina; exageradamente feminina, como se lembrasse Barbies e dormitórios de garotas. Não que meu quarto fosse de reuniões de meninas, ou que eu tivesse ido a muitas. Nada disso, nada disso, nada disso, eu não ia cair nesse buraco. Eu era o que eu era, e tinha uma vida própria, e podia desfrutar de muitas coisas boas; os pequenos prazeres que me faziam continuar. — Eu poderia me mudar para cá — disse a Arlene, enquanto ela passava fita numa caixa fechada. — Não seria precipitado? — ela perguntou. Ficou ruborizada ao perceber que isso parecera uma crítica. — Seria mais fácil ficar aqui do que ficar do outro lado do corredor pensando num quarto vazio — eu disse. Arlene refletiu sobre a frase, curvada ao lado da caixa de papelão com o rolo de fitas adesivas em sua mão. — Compreendo — ela concordou, com um sinal da cabeça de um vermelho flamejante. Carregamos as caixas de papelão para dentro do carro de Arlene. Ela concordara gentilmente em deixá-las no centro de coleta no seu caminho para casa, e eu, agradecida, aceitei a oferta. Eu não queria que ninguém me olhasse com aquele ar compreensivo, piedoso, quando eu doasse as roupas e sapatos e camisolas de minha avó. Quando Arlene partiu, abracei-a e beijei-a no rosto, e ela olhou fixo para mim. Aquilo estava além dos limites que a nossa amizade tinha tido até então. Ela curvou sua cabeça junto à minha e nós encostamos suavemente nossas testas. — Sua louquinha — ela disse, com afeto na voz. — Venha à minha casa, uma hora dessas. Lisa está querendo que você dê uma de babá pra ela outra vez. — Diga que tia Sookie mandou um alô para ela, e para o Coby também. — Farei isso. — E Arlene rumou para o carro, seu cabelo ruivo numa massa que ondulava em sua cabeça, seu corpo inteiro fazendo com que o uniforme de garçonete parecesse abrigar uma grande promessa erótica. Toda a minha energia foi se esvaindo à medida que o carro de Arlene desceu aos solavancos a estrada pelo meio das árvores. Senti-me uma velha de um milhão de anos, isolada e sozinha. Era assim que as coisas teriam que ser, de agora em diante. Eu não sentia fome, mas o relógio me alertou que era hora de comer. Entrei na cozinha e puxei um dos muitos Tupperwares que havia na geladeira. Continha peru e salada de uvas, e eu gostava disso, mas senteime à mesa dando umas espetadinhas com o garfo. Desisti, devolvendo o vasilhame à geladeira e rumando para o banheiro para uma ducha mais que necessária. Os cantos de banheiros são sempre empoeirados, e mesmo uma boa dona de casa como minha avó não fora capaz de vencer aquele pó. A ducha foi maravilhosa. A água quente parecia fazer com que um pouco de minha desgraça se evaporasse, dei um banho de xampu em meu cabelo e esfreguei cada pedaço de minha pele, depilando minhas pernas e axilas. Depois que saí do banho, fiz as sobrancelhas, passei loção de pele e desodorante e um spray para desembaraçar meu cabelo e tudo aquilo em que pude alcançar. Com meu cabelo descendo por minhas costas numa cascata de tufos molhados, vesti minha camisola, uma branca, estampada com uma imagem do Piu-Piu, e peguei meu pente. Sentei-me em frente à televisão para ter algo que ver enquanto arrumava o cabelo, um processo que sempre achei tedioso. Minha pequena explosão de energia expirou, e eu me senti quase entorpecida. A campainha soou bem quando eu estava caminhando pela sala de estar com meu pente numa das mãos e uma toalha na outra. Espiei pelo olho mágico. Bill estava lá fora, esperando pacientemente na varanda. Abri a porta sem me sentir alegre ou triste por vê-lo. Ele ficou um pouco surpreso quando me viu: a camisola, o cabelo molhado, os pés descalços. Nenhuma maquiagem. — Entre — eu disse. — Posso mesmo? — Sim. E ele entrou, olhando ao seu redor, como sempre fizera. — O que você está fazendo? — ele perguntou, vendo a pilha de coisas que eu pusera de lado por pensar que os amigos de Vovó pudessem querê-las: o sr. Norris, por exemplo, poderia ficar feliz por ganhar o quadro emoldurado de sua mãe com Vovó. — Eu fiz uma limpeza geral no quarto hoje — eu disse. — Acho que vou me mudar para lá. — Depois disso, não consegui pensar em mais nada que dizer. Ele se virou para olhar para mim com atenção. — Deixe-me pentear seu cabelo — ele disse. Concordei apaticamente. Bill sentou-se no sofá estampado de flores e indicou o velho diva colocado à frente dele. Sentei-me obedientemente, e ele encostou-se um pouco em mim, apoiando-me em suas coxas. Começando pelo topo de minha cabeça, pôs-se a desembaraçar o meu cabelo.
Como sempre, seu silêncio mental era um deleite. Cada vez que eu o sentia, era como se pusesse o primeiro pé numa poça de água fria depois de ter feito uma longa caminhada num dia empoeirado e quente. Como brinde, os dedos longos de Bill pareciam peritos em lidar com as minhas abundantes melenas. Fiquei com meus olhos fechados e, pouco a pouco, fui ficando mais tranqüila. Sentia os leves movimentos de seu corpo atrás de mim ao manejar o pente. “Quase ouço seu coração batendo” pensei, e então percebi como essa idéia era estranha. Seu coração, afinal de contas, não batia. — Eu costumava fazer isso com minha irmã, Sarah — ele murmurou calmamente, como se soubesse o quanto eu me sentia em paz e estivesse tentando não violar o meu estado de espírito. — Ela tinha cabelo mais escuro que o seu, e, sempre que minha mãe estava ocupada, pedia-me para cuidar do cabelo de Sarah. — Ela era mais jovem ou mais velha que você? — perguntei numa voz lenta, inebriada. — Ela era mais jovem. Uma diferença de três anos. — Você tinha outros irmãos ou irmãs? — Minha mãe perdeu dois filhos no parto — ele disse lentamente, como se pudesse mal e mal lembrar. — Perdi meu irmão, Robert, quando ele tinha 12 e eu 11 anos. Ele pegou uma febre, e ela o matou. Hoje em dia, seria entupido de penicilina, e ficaria bem. Mas, na época, não havia disso. Sarah sobreviveu à Guerra, ela e minha mãe, embora meu pai tivesse morrido quando eu estava no Exército; ele teve o que eu soube depois ser um derrame. Minha mulher estava morando com minha família, naquela época, e meus filhos... — Oh, Bill — eu disse tristemente, quase num sussurro, porque ele tivera muitas perdas. — Não, Sookie — ele disse, e sua voz tinha recobrado aquela fria clareza.
Ele continuou a trabalhar em silêncio por uns momentos, até que pude notar que o pente corria solto pelos meus cabelos. Apanhou a toalha branca que eu pendurara no braço do sofá e começou a enxugá-los e, enquanto secava-os, passou seus dedos por eles para encorpá-los. — Mmm — eu disse e, assim que eu o ouvi, notei que não era o som de uma pessoa que estivesse sendo narcotizada. Senti seus dedos frios erguendo os meus cabelos de meu pescoço e, a seguir, sua boca pousando bem na minha nuca. Eu não conseguia falar ou me mexer. Expirei lentamente, tentando não fazer outro som. Seus lábios se encaminharam para a minha orelha, e ele mordiscou o seu lóbulo. Depois, sua língua se enfiou. Seus braços me envolveram, cobrindo meu peito, puxando-me contra ele. E, por um milagre, eu apenas ouvia o que seu corpo estava dizendo, não aquelas coisas aborrecidas que apenas tornam estúpidos momentos como este. Seu corpo estava dizendo uma coisa muito simples. Ele ergueu-me tão facilmente como eu giraria uma criança. Ele me virou, de modo que fiquei frente a seu colo, minhas pernas ao lado das suas. Abracei-o, e curvei-me um pouco para beijá-lo. E o beijo foi prolongado, mas, daí a pouco, Bill estabeleceu um certo ritmo com sua língua, um ritmo que mesmo alguém inexperiente como eu podia identificar. Minha camisola escorregou até o topo de minhas coxas. Minhas mãos começaram a percorrer seus braços descontroladamente. Estranhamente, eu pensava num tacho de caramelos que minha avó pusera no fogo para fazer a receita de um doce, e pensava na derretida e cálida doçura dourada que neles havia. Ele se ergueu com meu corpo ainda grudado no seu. — Onde? — perguntou. E eu apontei para o quarto de minha avó. Ele carregou-me do jeito que estava, minhas pernas enroladas nas suas, minha cabeça em seu ombro, e deitou-me na cama limpa. Ficou ao lado da cama, e à luz do luar que vinha pelas janelas descobertas, vi-o despir-se, ágil e cuidadoso. Embora eu estivesse tendo prazer de vê-lo, sabia que tinha que fazer o mesmo; mas, ainda um pouco envergonhada, apenas tirei a camisola e a joguei no chão. Olhei para ele. Eu nunca vira nada tão belo ou tão assustador em minha vida. — Oh, Bill — eu disse ansiosamente, quando ele se deitou ao meu lado na cama — eu não quero decepcionar você. — Isso não é possível — ele murmurou. Seus olhos se cravaram no meu corpo como se este fosse um copo d'água numa duna desértica. — Eu não sei muita coisa — confessei, minha voz quase inaudível. — Não se preocupe. Porque eu sei muito. Suas mãos começaram a me percorrer, tocando-me em lugares onde eu nunca fora tocada. Tive um choque com a surpresa, e depois abri-me completamente para ele. — Fazer com você será diferente de fazer com um cara comum? — perguntei. — Oh, sim. Ergui meus olhos para ele, intrigada. — Será melhor — ele disse ao pé do meu ouvido, e eu senti uma pontada de pura excitação. Um tanto timidamente, eu toquei-o lá embaixo, e ele fez um som muito humano. Depois de um momento, o som ficou mais profundo. — Agora? — eu perguntei, minha voz despedaçada e trêmula. — Oh, sim — ele disse, e daí a pouco, subiu em mim. Um momento depois, eu descobri a verdadeira extensão de minha inexperiência. — Você devia ter me contado — ele disse, mas muito amavelmente. Parou, com um esforço quase palpável. — Oh, por favor, não pare! — eu pedi, pensando que o deleite me escaparia, que algo drástico me aconteceria, se ele não continuasse. — Não tenho intenção de parar — ele prometeu, um pouco agastado. — Sookie... isso vai doer.
Em resposta, eu me ofereci mais ainda. Ele fez um ruído incoerente e enfiou-se em mim. Prendi o fôlego. Mordi meus lábios. Ai, ai, ai. — Querida — Bill disse. Ninguém ainda me chamara assim. — Como está? — Vampiro ou não, estava tremendo com o esforço para recuar. — O.k. — eu disse, desajeitadamente. Eu estava no meu limite, e perderia a coragem se não prosseguíssemos. — Agora — eu disse, e mordi-o fortemente no ombro. Ele ofegou, teve um espasmo, e começou a se movimentar a sério. No começo eu estava aturdida, mas comecei a me ajustar e manter o ritmo. Ele achou minha resposta muito excitante, e eu comecei a sentir que alguma coisa se aproximava, por assim dizer, alguma coisa muito grande e muito boa. Eu disse: — Oh, por favor, Bill, por favor! — e enterrei minhas unhas em seus quadris, quase lá, quase lá, e depois uma pequena mudança em nossa posição permitiu que ele fizesse uma pressão mais direta em meu corpo e, antes que eu pudesse me dar conta, estava voando, voando, vendo o céu e seus tesouros. Senti os dentes de Bill em meu pescoço, e disse — Sim! — Senti seus caninos penetrarem, mas era uma dor leve, uma dor excitante, e, enquanto ele me penetrava, senti que bebia daquela pequena ferida. Ficamos estendidos lá por um longo tempo, de vez em quando sentindo pequenos choques decorrentes do prazer. Eu nunca me esqueceria de seu sabor e de seu cheiro enquanto vivesse, eu nunca me esqueceria da sensação de tê-lo dentro de mim pela primeira vez — que era a primeira vez de toda a minha vida — eu nunca me esqueceria daquele prazer. Por fim, Bill se mexeu para deitar-se ao meu lado, apoiando-se num dos cotovelos, e pôs a mão sobre meu estômago. — Eu sou o primeiro. — Sim.
— Oh, Sookie. — Ele se curvou para beijar-me, seus lábios roçando a linha de minha garganta. — Você notou que eu não sabia muito — eu disse, timidamente. — Mas, foi bom para você? Quero dizer, pelo menos parecido com outras mulheres? Se disser, me sentirei melhor. — Você pode ficar mais habilidosa, Sookie, mas, melhor não ficará. — Ele beijou-me no rosto. — Você é maravilhosa. — Ficarei dolorida? — Sei que você achará esquisito, mas eu não me lembro. A única virgem com quem me deitei na vida foi minha esposa, e isso foi há um século e meio... sim, lembro, você ficará muito dolorida. Não faremos amor novamente, por um ou dois dias. — Seu sangue cura — eu observei depois de um pequeno silêncio, sentindo meu rosto avermelhar. À luz do luar, senti-o mover-se para olhar mais diretamente para mim. — É verdade — ele disse. — Você gostaria? — Claro. Você não? — Sim — ele suspirou, e mordeu seu próprio braço. Foi tão repentino que eu gritei, mas ele sem embaraço esfregou o dedo em seu próprio sangue, e depois, antes que eu pudesse ficar tensa novamente, deslizou-o e enfiou o dedo dentro de mim. Começou a mexêlo delicadamente, e, num instante, com segurança, a dor se foi. — Obrigada — eu disse. — Estou melhor agora. Mas ele não retirou o dedo de lá. — Oh — eu disse. — Você gostaria de repetir tão rápido? Pode fazêlo? — E como o seu dedo continuou o movimento, eu comecei a ter esperanças. — Olhe e veja — ele ofereceu, um toque de diversão em sua doce voz cavernosa. Eu sussurrei, mal me reconhecendo: — Diga-me o que quer que eu faça.
E ele disse.
Voltei ao trabalho no dia seguinte. Não importa qual fosse o poder de cura de Bill, eu estava um pouco desconfortável ainda, mas, cara, eu me sentia poderosa. Era uma sensação totalmente nova para mim. Era difícil eu não me sentir — bem, arrogante seria uma palavra inapropriada — talvez incrivelmente convencida chegasse mais perto. Naturalmente, havia os mesmos velhos problemas no bar: a cacofonia, o zumbido e a persistência das vozes. Mas, de algum modo, eu parecia mais capaz de reduzir o seu volume, de tampá-las e recalcá-las. Era mais fácil manter a minha guarda, e eu me sentia, por essa razão, mais relaxada. Ou talvez por estar mais relaxada — e, cara, como eu estava! — a guarda ficasse mais fácil? Não sei. Mas eu me sentia melhor, seguramente, e era capaz de aceitar as condolências dos meus fregueses com calma em vez de lágrimas. Jason veio para o almoço e tomou duas cervejas acompanhadas pelo seu hambúrguer, o que não era seu regime habitual. Ele geralmente não bebia em dia de trabalho. Eu sabia que ele ficaria furioso se eu perguntasse alguma coisa diretamente, portanto, só lhe perguntei se tudo estava bem. — O chefe me chamou hoje outra vez — ele disse, em voz baixa. Olhou ao redor para se assegurar de que ninguém o ouvia, mas o bar estava com freguesia escassa naquele dia, pois o Rotary Clube realizava um encontro no Centro Comunitário. — O que ele queria saber de você? — Minha voz era identicamente baixa. — Queria saber com que freqüência eu me encontrava com Maudette, se eu sempre punha gasolina no posto onde ela trabalhava... Tudo outra vez, tudo outra vez, como se eu já não tivesse respondido a essas perguntas um monte de vezes. Meu chefe está no limite de sua paciência, Sookie, e eu não posso reclamar. Faltei ao serviço pelo menos uns dois, três dias, com essas idas que tenho feito à delegacia. — Talvez fosse melhor você procurar um advogado — eu disse, inquieta. — Foi o que Rene disse. Então, eu e Rene tínhamos algo em comum. — Que tal o Sid Matt Lancaster? Sidney Matthew Lancaster, natural da cidade e bebedor de uísque, tinha a reputação de ser o mais agressivo advogado criminal da paróquia. Eu gostava dele porque sempre me tratava com respeito quando eu o servia no bar. — Ele pode ser minha melhor saída. — Jason parecia tão petulante e implacável quanto uma pessoa bonita pode ser. Trocamos um olhar. Nós dois bem sabíamos que o advogado de Vovó era velho demais para lidar com o caso se Jason fosse — que Deus não permitisse! — preso. Jason estava absorvido demais por seus problemas para notar algo diferente em mim, mas eu estava usando uma camisa branca esportiva (em vez de minha habitual camiseta) para cobrir o pescoço. Já Arlene não era tão desatenta quanto meu irmão. Ela ficara de olho em mim a manhã toda, e quando chegou a calmaria das três da tarde, abordou-me com segurança. — Garotinha — ela disse —, você andou se divertindo? Fiquei vermelha como uma beterraba. “Divertindo-se” tornava minha relação com Bill mais leviana do que era, mas era uma expressão precisa para definir o que se passara. Eu não sabia se deveria ser mais orgulhosa e dizer “Não, andei fazendo amor”, ou manter a boca fechada, ou dizer a Arlene que ela não tinha nada a ver com isso, ou apenas gritar, “Sim!”. — Oh, Sookie, quem é o homem? Uh-oh. — Hum, bem, ele não é... — Não é daqui? Você está namorado um daqueles trabalhadores de Bossier City?
— Não — disse, hesitante. — Então é o Sam? Eu bem que o vi olhando para você. — Não. — Quem, então? Eu estava agindo como alguém envergonhado. Erga a cabeça, Sookie Stackhouse, eu disse a mim mesma severamente. Pague o pato. — Bill — eu disse, esperando sem esperança que ela apenas diria “Oh, sim”. — Bill Auberjonois? — Não. — Bill...? — Bill Compton — Sam disse sem ênfase, bem quando eu abria a minha boca para dizer a mesma coisa. — O vampiro Bill. Arlene ficou estupefata. Charlsie Tooten imediatamente soltou um gritinho, e Lafayette quase ficou com o queixo caído. — Querida, você não poderia namorar um ser humano comum não? — Arlene perguntou, quando a voz lhe voltou. — Seres humanos comuns nunca me convidaram para sair com eles. — Eu sentia a cor se fixar em meu rosto. Fiquei ali de cabeça erguida, sentindo-me desafiadora e, com certeza, parecendo desafiadora. — Bem, docinho — Charlsie Tooten trinou em sua voz infantil —, querida... Bill, ah, tem aquele vírus. — Sei disso — eu disse, sentindo a impaciência apontar em minha voz. — Eu pensei que você fosse dizer que estava saindo com um negro, mas você me arrumou um ainda melhor, né, garota? — Lafayette disse, pegando na ponta das unhas esmaltadas. Sam nada comentou. Ele ficou apenas encostado no balcão, e havia uma linha branca em torno de sua boca como se ele estivesse mordendo as bochechas por dentro.
Eu encarei-os todos, por minha vez, forçando-os a engolir o assunto ou cuspi-lo. Arlene foi a primeira a reagir. — Tudo bem, então. Melhor ele tratar você direitinho, ou vamos todos pegar as nossas estacas! Todos conseguiram dar uma risada com isso, embora ela saísse meio fraca. — E você vai fazer uma grande economia nas compras de armazém! — Lafayette ressaltou. Mas, então, Sam arruinou o clima de tentativa de aceitação dando um passo e pondo-se ao meu lado e abaixando a gola de minha camisa. Podia cortar-se o silêncio de meus amigos com uma faca. — Oh, que merda — Lafayette disse, bem suavemente. Olhei direto para os olhos de Sam, pensando que nunca o perdoaria por ter-me feito aquilo. — Não toque em minhas roupas — eu disse a ele, afastando-me e pondo a gola no lugar. — Não se meta em minha vida particular. — Temo por você, me preocupo com você — ele disse, enquanto Arlene e Charlsie rapidamente procuraram outras coisas para fazer. — Não, você não está preocupado não. Você está é ficando louco de pedra. Escute bem, cara. Você nunca entrou na fila. E eu me afastei, cheia de orgulho, para enxugar a fórmica de uma das mesas. Depois, recolhi todos os saleiros e os enchi novamente. Verifiquei os vidrinhos de pimenta-do-reino e garrafas de pimenta vermelha em cada mesa e reservado, e o molho Tabasco, também. E simplesmente continuei trabalhando, mantendo os olhos erguidos e, pouco a pouco, a atmosfera foi ficando menos tensa. Sam voltou a seu escritório para mexer em papéis ou algo assim. Eu não me importava com o que fizesse, contanto que guardasse suas opiniões só para si. Eu ainda sentia que ele rompera a cortina de uma área privada de minha vida quando expusera meu pescoço, e não o tinha perdoado. Mas Arlene e Charlsie tinham encontrado trabalho para fazer, tal como eu, e quando a turba de depois do expediente começou a aparecer, estávamos de novo harmonizados uns com os outros. Arlene foi ao banheiro das mulheres comigo. — Ouça, Sookie, eu tenho que perguntar. Os vampiros são como todo mundo diz, no departamento do amor? Eu só dei um sorriso. Bill veio ao bar naquela noite, depois que escureceu. Eu trabalhei até mais tarde, já que uma das garçonetes da noite tinha tido um problema com o carro. Num minuto ele não estava ali, e no minuto seguinte estava, vindo devagar para que eu pudesse notar que ele estava chegando. Se Bill tinha algumas dúvidas quanto a tornar nossa relação uma coisa pública e notória, não as demonstrava. Ele tomou a minha mão e beijou-a num gesto que, feito por alguma outra pessoa, pareceria falso demais. Senti o toque de seus lábios nas costas da minha mão num arrepio que foi até a ponta dos meus pés, e eu sabia que ele notava a minha sensação. — Como você está hoje? — ele murmurou, e eu tremi. — Um pouquinho... — Descobri que não conseguia encontrar palavras. — Você me conta depois — ele sugeriu. — A que horas você sai? — Assim que Susie chegar. — Venha à minha casa. — Certo. — Sorri para ele, sentindo-me radiante e de cabeça leve. E Bill sorriu para mim, embora, por minha proximidade tê-lo afetado, seus caninos estivessem um pouco salientes, e talvez para ninguém além de mim o efeito fosse um pouco... perturbador. Ele se curvou para me beijar, só um pequeno roçar em meu rosto, e virou-se para sair. Mas, bem naquele momento, a tranqüilidade da noite foi toda para o brejo. Malcolm e Diane entraram, escancarando a porta e irrompendo como se fizessem uma entrada triunfal, e certamente, estavam fazendo. Pensei onde Liam poderia estar. Talvez estacionando o carro. Seria demais esperar que eles o tivessem deixado em casa. O pessoal de Bon Temps já estava se acostumando com Bill, mas o exótico Malcolm e a ainda mais exótica Diane causaram um completo alvoroço. Meu primeiro pensamento foi que a coisa de modo algum ajudaria as pessoas a se acostumarem com Bill e eu. Malcolm usava calças de couro e uma espécie de camisa-armadura feita de correntes. Parecia alguma coisa saída da capa de um disco de rock. Diane estava usando uma espécie de corpete de lycra verde-limão ou alguma outra roupa muito leve e colante. Eu tinha certeza de que poderia contar seus pêlos púbicos, se quisesse. Os negros não iam muito ao bar do Merlotte, mas, se algum negro estivesse absolutamente em segurança ali, esse era Diane. Eu vi Lafayette espiando lá da portinhola em franca admiração, misturada a uma boa dose de medo. Os dois vampiros gritaram com fingida surpresa quando viram Bill, como se fossem bêbados dementes. Até onde pude notar, Bill não estava nada feliz com suas presenças, mas parecia tentar administrar a invasão com calma, como fazia com tudo. Malcolm beijou Bill na boca, e Diane fez o mesmo. Era difícil dizer qual dessas formas de saudação era considerada mais ofensiva no bar. Seria conveniente que Bill expressasse repulsa, e o mais rapidamente possível, se quisesse ficar em boas relações com os habitantes humanos de Bon Temps. — Então, a sua pequena garçonete continua viva — Diane disse, e sua voz clara era audível no bar todo. — Não é espantoso? — A avó dela foi assassinada na semana passada — Bill disse calmamente, tentando dominar o desejo que Diane sentia de armar uma cena. Seus belos olhos lunáticos fixaram-se em mim, e eu gelei. — É verdade? — ela disse e riu. Ela fez isso. Ninguém iria perdoá-la, agora. Se Bill estava tentando encontrar um meio de se entrincheirar, esse era o cenário adequado. Por outro lado, a aversão que eu sentia ir se formando nos humanos do bar poderia explodir e atingir tanto Bill quanto os renegados. É claro... para Diane e seus amigos, era Bill o renegado. — Quando é que alguém vai matar você, querida? — Ela passou um dedo de unhas pontudas sob meu queixo, e eu empurrei a sua mão para longe. Ela pularia sobre mim se Malcolm não houvesse agarrado a sua mão, preguiçosamente, quase sem mostrar esforço. Mas eu vi a tensão aparecer no modo como se postou. — Bill — ele disse em tom de conversa normal, como se não estivesse exercitando todos os músculos de que dispunha para imobilizar Diane — fiquei sabendo que esta cidade está perdendo seus incompetentes nativos numa quantidade terrível. E um passarinho lá em Shreveport me contou que você e sua amiga aí estiveram no Fangtasia perguntando com qual vampiro as tietes assassinadas poderiam ter saído. “Você sabe que é coisa que só tem que ficar entre nós e ninguém mais — Malcolm continuou, e de repente seu rosto ficou tão sério que se tornou realmente aterrador. — Há entre nós quem não queira ir a jogos de beisebol e... (vi que parou para procurar em sua memória uma coisa que fosse repulsivamente humana) churrascos! Nós somos Vampiros!” — Ele revestiu a palavra de majestade, de fascínio, e pude notar que um monte de pessoas no bar estava sucumbindo ao seu encanto. Malcolm era inteligente o bastante para querer apagar a má impressão que ele sabia que Diane havia deixado, e ao mesmo tempo derramar desprezo sobre aqueles de nós que estávamos envolvidos. Eu pisei no peito de seu pé com todo o peso que pude juntar. Ele me mostrou seus caninos. O pessoal do bar piscou e despertou. — Por que não cai fora daqui, meu senhor? — Rene disse. Ele estava encostado desleixadamente no balcão, com seus cotovelos ao lado de uma cerveja.
Houve um momento em que as coisas ficaram na corda bamba, em que o bar poderia ter se afundado num banho de sangue. Nenhum de meus companheiros humanos parecia compreender por completo o quanto os vampiros eram fortes, ou como podiam ser implacáveis. Bill se colocou à minha frente, um fato registrado por todos os cidadãos presentes no bar. — Bem, já que não somos queridos aqui... — Malcolm disse. Sua supermusculosa masculinidade entrava em choque com a voz flauteada que ele subitamente afetara. — Estas boas pessoas gostariam de comer carne, Diane, e fazer coisas bem humanas. Sozinhas. Ou na companhia de nosso ex-amigo Bill. — Eu acho que essa garçonetezinha gostaria de fazer uma coisa bem humana com o Bill — Diane começou a dizer, quando Malcolm a pegou pelo braço e a conduziu para fora do ambiente antes que ela pudesse causar mais dano. O bar todo pareceu estremecer coletivamente quando eles saíram, e eu achei que era melhor sair também, muito embora Susie não houvesse aparecido ainda. Bill esperou por mim lá fora; quando eu lhe perguntei por que, respondeu que queria ter certeza de que eles tinham realmente partido. Segui Bill até a sua casa, pensando que tínhamos nos livrado com relativa facilidade da visita dos vampiros. Eu me perguntava por que Diane e Malcolm teriam aparecido por lá; pareceu-me estranho que eles, viajando tão longe de casa, tivessem decidido, por capricho, aparecer no bar do Merlotte. Já que eles não faziam um esforço verdadeiro por ser assimilados, talvez quisessem arruinar as possibilidades de êxito de Bill. A casa dos Comptons estava visivelmente diferente daquela que eu vira pela última vez em que nela estivera, naquela noite revoltante em que eu encontrara os outros vampiros. Os empreiteiros estavam realmente executando as vontades de Bill, ou porque estavam com medo dele, ou porque Bill pagava bem, eu não sabia. Talvez fossem as duas coisas. A sala de estar estava ganhando um novo forro e o novo papel de parede era branco, com um delicado padrão florido. Os pisos de madeira firme tinham sido limpados, e brilhavam como deviam brilhar originalmente. Bill levou-me até a cozinha. Estava vazia, naturalmente, mas clara e animada, e tinha uma geladeira novinha em folha cheia de sangue sintético engarrafado (argh!). O banheiro do piso inferior era enorme. Até onde eu sabia, Bill não usava banheiro; ao menos para a função humana primária. Eu fiquei de olhos arregalados, espantada com o que vi. O espaço para esse grande banheiro fora conseguido pela inclusão daquilo que inicialmente fora uma despensa e de quase metade da velha cozinha. — Eu gosto de tomar banho — ele disse, apontando para um claro boxe com chuveiro num canto. Era grande o bastante para dois adultos e talvez um anão ou dois. — E eu gosto de me deitar na água quente. — Ele indicou a peça principal do aposento, uma espécie de banheira enorme cercada por uma plataforma de cedro, com degraus dos dois lados. Havia vasos de plantas em todas as bordas. O aposento era o que se poderia ter de mais semelhante a estar no meio de uma selva luxuriante no extremo norte da Louisiana. — O que é isso? — perguntei, perplexa. — É um spa portátil — Bill disse orgulhosamente. — Tem jatos que você pode ajustar individualmente para que cada pessoa tenha a pressão exata de água que deseja. É uma banheira quente — ele simplificou. — Tem assentos — eu disse, olhando para dentro. O interior estava decorado com azulejos verdes e azuis. Havia comandos variados na parte de fora. Bill os abriu, e a água começou a surgir. — Talvez a gente possa tomar um banho juntos? — Bill sugeriu. Senti meu rosto queimar, e meu coração começou a palpitar um pouco mais depressa.
— Não poderia ser agora? — Os dedos de Bill tentavam abrir minha camisa bem no ponto onde ela entrava em meus shorts pretos. — Oh, bem... talvez. — Eu não conseguia olhá-lo nos olhos até que pensei em como este... vamos dizer, homem... tinha visto de mim mais do que eu deixara que alguém, incluindo meu médico, visse. — Você sentiu a minha falta? — ele perguntou, suas mãos desabotoando meus shorts e me despindo. — Sim — eu disse prontamente, porque eu sabia que era verdade. Ele riu, até se ajoelhar para desamarrar meus tênis. — De que mais sentiu falta, Sookie? — De seu silêncio — eu disse, sem pensar muito. Ele ergueu os olhos para mim. Seus dedos pararam no ato de puxar a ponta do laço para afrouxá-lo. — Meu silêncio — ele disse. — Não ser capaz de ouvir seus pensamentos. Você não pode imaginar, Bill, como isso é uma coisa maravilhosa. — Pensei que você fosse dizer outra coisa. — Bem, senti falta dessa outra coisa, também. — Fale-me disso — ele propôs, tirando minhas meias e passando as mãos por minhas coxas, puxando a calcinha e os shorts. — Bill! Eu fico envergonhada — protestei. — Sookie, não fique envergonhada comigo. Comigo é que você não deve ficar. — Ele estava em pé agora, despindo-me de minha camisa e tocando-me nas costas para soltar meu sutiã, passando suas mãos sobre as marcas que as alças tinham feito em minha pele, ficando atento aos meus seios. Ele tirou suas sandálias. — Tentarei — disse, olhando para os meus próprios dedos do pé. — Tire a minha roupa. Eu podia fazer aquilo agora. Desabotoei sua camisa rapidamente e tirei-a, colocando-a em seus ombros. Desafivelei seu cinto e comecei a abrir o botão de suas calças. Era apertado, e eu tive que fazer esforço.
Pensei que fosse chorar se o botão não cooperasse mais. Senti-me desajeitada e inepta. Ele pegou minhas mãos e colocou-as em seu peito. — Devagar, Sookie, devagar — e sua voz ficou suave e trêmula. Eu me senti relaxando quase que centímetro por centímetro, e comecei a afagar seu peito enquanto ele afagava o meu, enrascando os pêlos enrolados em meus dedos e lambendo delicadamente seu mamilo. Suas mãos foram para trás de minha cabeça e pressionaram suavemente. Eu não sabia se os homens gostavam daquilo, mas Bill certamente gostava, e daí passei para o outro. Enquanto fazia isso, minhas mãos retomaram o esforço para abrir o maldito botão, e dessa vez ele se abriu sem dificuldade. Comecei a tirar as suas calças, deslizando meus dedos para dentro de sua cueca. Ele me ajudou a entrar no spa, a água espumando em torno de nossas pernas. — Quer que eu banhe você primeiro? — ele perguntou. — Não —, eu disse, sem fôlego. — Dê-me o sabonete.
Na noite seguinte, Bill e eu tivemos uma conversa perturbadora. Estávamos em sua cama, em sua enorme cama com a cabeceira entalhada e um colchão Restonic novinho em folha. Os lençóis eram floridos como o papel de parede, e eu me lembro de ter pensado se ele gostava de flores impressas em seus domínios porque não podia vê-las ao natural... nas horas diurnas. Bill estava deitado de lado, olhando para mim. Tínhamos ido ao cinema; Bill era louco por filmes com alienígenas, por ter talvez algum sentimento de afinidade com criaturas do espaço. Fora realmente um daqueles filmes aterrorizantes, com quase todos os alienígenas bem feios, sinistros, tombando mortos. Ele ficou esbravejando contra aquilo enquanto me levava para o jantar, e depois de volta à sua casa. Fiquei feliz quando me sugeriu que fosse testar a sua nova cama. Fui a primeira pessoa a deitar-me nela com ele. Ele ficou me olhando, como gostava de fazer, e eu notava. Talvez estivesse ouvindo o palpitar de meu coração, já que podia ouvir coisas que eu não conseguia ouvir, ou talvez ele estivesse olhando o latejar de meu pulso, porque via também coisas que eu não conseguia ver. Nossa conversa derivara do filme que tínhamos visto para as próximas eleições da paróquia (Bill ia tentar registrar-se para votar), e daí para as nossas infâncias. Percebi que Bill tentava desesperadamente lembrar-se como teria sido ser uma pessoa comum. — Você alguma vez brincou de “mostre o seu” com seu irmão? — ele perguntou. — Agora dizem que isso é normal, mas eu nunca me esquecerei de minha mãe amaldiçoando o meu irmão Robert depois que o achou nas moitas brincando com Sarah. — Não — eu disse, tentando parecer natural, mas meu rosto se enrijeceu, e eu senti uma pontada de medo em meu estômago.
— Você não está dizendo a verdade. — Estou, sim. — Mantive meus olhos fixos em seu queixo, pensando em algum meio de mudar de assunto. Mas Bill era, acima de tudo, persistente. — Não foi seu irmão, então. Quem foi? — Não quero falar disso. Minhas mãos se contraíram e meus punhos se fecharam, e senti que estava começando a me trancar. Mas Bill detestava evasivas. Ele estava habituado às pessoas dizerem a ele tudo o que desejasse saber devido ao uso que fazia de seu encanto. — Conte pra mim, Sookie. — Sua voz era persuasiva, seus olhos dois grandes poços de curiosidade. Ele passou a unha de seu polegar sobre meu estômago, e eu estremeci. — Eu tive... um tio estranho — eu disse, sentindo o familiar sorriso tenso apertar meus lábios. Ele ergueu suas sobrancelhas escuras e arqueadas. Não tinha ouvido a frase. Eu disse do modo mais distanciado que pude afetar: — É um parente adulto do sexo masculino que molesta sua... quero dizer, molesta as crianças da família. Seus olhos começaram a arder. Ele engoliu em seco; vi seu pomo-deAdão se mexer. Sorri para ele. Minhas mãos afastaram o cabelo de meu rosto. Eu não conseguia segurá-lo. — E alguém fez isso com você? Quantos anos você tinha? — Oh, a coisa começou quando eu era bem pequena — e eu comecei a sentir minha respiração se acelerar, meu coração bater mais depressa, os traços de pânico que me ressurgiam sempre que eu recordava. — Acho que eu tinha 5 anos — balbuciei, falando cada vez mais rápido —; eu sei que você pôde notar, ele nunca, vamos dizer, me possuiu, mas ele fez outras coisas. — E agora minhas mãos estavam tremendo em frente aos meus olhos, onde as mantinha como um escudo contra o olhar fixo de Bill.
— E a pior coisa, Bill, a pior coisa — eu continuei, sem conseguir parar — é que toda vez que ele ia nos visitar, eu sabia o que ele ia fazer porque eu lia seu pensamento! E não havia nada que eu pudesse fazer para detê-lo! — Tapei minha boca para me forçar a ficar calada. Eu não devia falar dessas coisas. Engoli tudo no meu estômago para me esquivar, e mantive meu corpo absolutamente rígido. Depois de um longo tempo, senti a mão fria de Bill pousar em meu ombro. E lá ela ficou, confortadora. — Isso foi antes de seus pais morrerem? — ele disse, com sua habitual voz calma. Eu ainda não conseguia olhá-lo. — Sim. — Você contou para a sua mãe? Ela não fez nada? — Não. Ela pensou que eu tinha a mente suja, ou que eu tinha descoberto na biblioteca algum livro me ensinando alguma coisa que ela achava que eu não estava preparada para saber. Eu me lembrava do rosto dela, emoldurado por um cabelo que era dois tons mais escuro que meu loiro-médio. Ele se contraía de nojo. Tinha vindo de uma família muito conservadora, e qualquer demonstração pública de afeição ou qualquer menção de um assunto que ela achasse indecente era categoricamente desestimulada. — Eu me admirava por ela e papai parecerem felizes — disse ao meu vampiro. — Eles eram tão diferentes. — Então, notei como era ridículo eu dizer uma coisa dessas. Eu me virei de lado. — Como se nós não fôssemos — disse a Bill, e tentei sorrir. O rosto de Bill estava impassível, mas notei o tremor de um músculo em seu pescoço. — Você contou para seu pai? — Sim, bem antes que ele morresse. Eu ficava muito embaraçada só em pensar em contar a ele quando eu era mais jovem; e mamãe não acreditava em mim. Mas eu não podia mais suportar aquilo, saber que eu teria que ver meu tio-avô Bartlett pelo menos dois fins de semana ao mês quando ele ia nos visitar.
— Ele ainda está vivo? — Tio Bartlett? Oh, claro. Ele é irmão de Vovó, e Vovó era a mãe de meu pai. Meu tio mora em Shreveport. Mas quando eu e Jason fomos morar com a Vovó, depois que meus pais morreram, a primeira vez em que o Tio Bartlett veio à casa dela, eu me escondi. Quando ela me achou e perguntou por que, eu contei a ela. E ela acreditou em mim. — Senti o mesmo alívio daquele dia, o belo som da voz de minha avó prometendome que eu nunca teria que ver seu irmão outra vez, que ele nunca, nunca mais voltaria àquela casa. E ele não voltou. Ela cortou relações com ele para me preservar. Ele tinha tentado a mesma coisa com Linda, a filha de Vovó, quando ela era ainda uma garotinha, mas minha avó sepultara o incidente na memória, rejeitando-o como se fosse um mal-entendido. Contou-me que, depois daquilo, nunca mais deixara seu irmão sozinho com Linda em casa, que quase parará de convidá-lo a visitas, embora mal se permitisse acreditar que ele havia tocado nas partes íntimas de sua filhinha. — Então, ele também é um Stackhouse? — Oh, não. Veja, Vovó se tornou uma Stackhouse quando se casou, mas ela era uma Hale antes disso. Fiquei espantada por explicar isso a Bill. Ele era um sulista mesmo, ainda que fosse um vampiro, já que não perdia de vista um simples elo de família como aquele. Bill parecia longe, a milhas de distância. Eu o deixara assim com minha triste e suja historinha, e meu próprio sangue esfriara, com certeza. — Bem, paro aqui, vou-me embora — eu disse e saí da cama, me curvando para recuperar minhas roupas. Mais rápido do que me fora possível ver, ele estava fora da cama e já as pegava. — Não me deixe agora — ele disse. — Fique aqui. — Estou uma velha chorona hoje. — Duas lágrimas escorreram por meu rosto, e eu sorri para ele.
Seus dedos enxugaram minhas lágrimas, e sua língua lambeu os seus traços. — Fique comigo até amanhecer — ele disse. — Mas você terá que se esconder em seu buraco de manhã. — Meu quê? — Onde quer que você passe o dia. Eu não quero saber onde é! — Ergui minhas mãos para enfatizar o que acabara de dizer. — Mas você não tem que ir para lá mesmo antes de um pouco de luz aparecer? — Oh — ele disse. — Eu saberei. Eu pressinto a vinda da luz. — Então, você não pode dormir profundamente? — Não. — Tudo bem. Você me deixará dormir um pouco? — Claro que deixarei — ele disse com uma mesura cavalheiresca, apenas um pouco deslocada, visto que estava nu. — Num instantinho. — Então, quando me deitei e estendi meus braços para ele, ele disse: — Finalmente.
Realmente, na manhã seguinte, estava na cama sozinha. Fiquei nela por um tempinho, pensando. Eu tinha uns pensamentos apreensivos de vez em quando, mas pela primeira vez as lacunas na minha relação com o vampiro saíram de seu esconderijo e tomaram vulto em minha cabeça. Eu nunca veria Bill à luz do sol. Eu nunca faria seu café da manhã, nunca o encontraria para o almoço. (Ele suportava me ver comer minha comida, embora não ficasse entusiasmado pelo processo, e eu sempre tinha que escovar meus dentes por completo depois de comer, o que, de qualquer modo, era um bom hábito.) Eu nunca poderia ter um filho de Bill, o que era bom ao menos sob a perspectiva de não ter que praticar controle de natalidade, mas... Eu nunca telefonaria para Bill no escritório para pedir que parasse em algum lugar para levar leite para casa. Ele nunca entraria para o Rotary Clube, ou faria uma palestra profissional no ginásio, ou se tornaria treinador do Pequeno Time de Beisebol. Nunca iria à igreja comigo. E eu sabia que agora, enquanto ali jazia, ouvindo os pássaros a gorjear seus sons matinais, os caminhões começando a roncar na estrada e toda a gente de Bon Temps se levantando, fazendo o café, apanhando seus papéis e planejando seu dia de trabalho, o homem que eu amava estava deitado em algum buraco subterrâneo, para todos os intentos e propósitos, morto até o anoitecer. Fiquei tão desanimada com esse pensamento que tive que pensar em algum modo de me estimular, enquanto me lavava e me vestia no banheiro. Ele parecia gostar de mim de verdade. Era bom, mas um pouco perturbador, não saber exatamente quanto gostava. Sexo com ele era absolutamente fantástico. Eu nunca sequer havia sonhado que pudesse ser tão maravilhoso. Ninguém mexeria comigo enquanto eu fosse a namorada de Bill. Quaisquer mãos que houvessem me afagado em carícias indesejadas, recolhidas ao regaço de seu dono, não me fariam mal agora. E se a pessoa que matara minha avó o tivesse feito porque ela aparecera em meu lugar, não teria coragem de tentar se aproximar de mim novamente. E eu podia relaxar na presença de Bill, um luxo tão valioso que eu nem mesmo conseguia avaliá-lo. Minha mente podia se abrir à vontade, que eu não escutaria nada que ele não me contasse diretamente de sua boca. As coisas eram assim. Foi nesse estado de espírito contemplativo que eu desci os degraus da casa de Bill na direção de meu carro. Para meu espanto, Jason estava lá fora, esperando, em sua picape. Não foi exatamente um momento feliz. Eu andei rumo à sua janela. — Vejo que é verdade — ele disse. Passou-me uma xícara de plástico de café que trazia do Grabbit Quik. — Entre no carro comigo.
Pulei para dentro, satisfeita com o café, mas, acima de tudo, cautelosa. Pus minha guarda imediatamente em alta. Ela voltou a seu lugar lenta e dolorosamente, como se voltasse a usar um cinto que estava apertado demais na primeira vez. — Não posso dizer nada — ele me disse. — Não depois do modo como vivi minha vida nesses últimos anos. O máximo que posso dizer é que ele é seu primeiro namorado, não é? Concordei. — Ele cuida bem de você? Fiz que sim, novamente. — Tenho uma coisa para lhe dizer. — O.k. — Tio Bartlett foi morto ontem à noite. Eu arregalei os olhos, o vapor que saía do café se interpondo entre nós quando ergui a tampa da xícara. — Ele está morto — eu disse, tentando entender o que acontecera. Eu me esforçava muito para nunca pensar nele, e agora que dera para fazer isso, a seguir ficava sabendo que estava morto. — Sim. — Nossa. Eu olhei pela janela para a luz rosea que vinha do horizonte. Senti uma onda de... liberdade. O único além de mim que lembrava daquilo, o único que tivera prazer com aquilo, que insistira até o fim que eu tinha iniciado e dado continuidade aos atos doentios que ele achava tão gratificantes... estava morto. Tomei fôlego, num alívio profundo. — Espero que esteja no inferno — eu disse. — Espero que toda vez que ele pense no que fez comigo, um demônio o espete na bunda com um garfo bem pontudo. — Deus do céu, Sookie! — Com você ele não mexeu. — Mais do que certo!
— Isso significa o quê? — Nada, Sookie! Mas ele nunca incomodou ninguém a não ser você, pelo que sei. — Não incomodou uma merda. Ele molestou tia Linda, também. O rosto de Jason ficou lívido com o choque. Finalmente, eu nocauteava o meu irmão. — Foi Vovó quem disse isso pra você? — Sim. — Ela nunca me disse nada. — Vovó sabia que era difícil para você não voltar a vê-lo, pois notava que você o amava. Mas ela não podia deixá-lo sozinho com você, porque não podia ter cem por cento de certeza de que só as garotas o interessavam. — Eu me encontrei com ele nos últimos dois anos. — Verdade? — Isso era novo para mim. Seria novidade para Vovó, também. — Sookie, ele era um velho. Estava muito doente. Ele tinha um problema de próstata, estava frágil e tinha que usar um andador. — O que provavelmente fez com que diminuísse a marcha ao perseguir crianças. — Pare com isso! — Boa! Como se eu pudesse! Trocamos olhares ferozes, ali, no assento da picape. — E aí, o que foi que aconteceu com ele? — perguntei finalmente, de modo relutante. — Um ladrão entrou na sua casa na noite passada. — Sim? E daí? — E quebrou seu pescoço. Jogou-o escada abaixo. — O.k. Agora, estou sabendo. Então, vou para casa. Tenho que tomar um banho e me arrumar para ir ao trabalho. — É tudo o que você tem pra dizer? — Que mais eu poderia dizer?
— Não quer saber nada sobre o funeral? — Não. — Nada sobre o testamento que ele deixou? — Não. Ele ergueu as mãos. — Tudo bem — ele disse, como se estivesse discutindo uma questão muito difícil comigo e tivesse percebido que eu era irredutível. — Que mais? Nada? — eu perguntei. — Não. É apenas seu tio-avô que morreu. Pensei que bastasse. — Na verdade, você acertou — eu disse, abrindo a porta da picape e me afastando. — Bastou. — Ergui a xícara e lhe mostrei. — Obrigada pelo café, irmão.
A minha ficha só caiu quando eu já estava trabalhando. Estava enxugando um copo e realmente não pensava sobre o tio Bartlett, e, de repente, meus dedos perderam a força. — Jesus Cristo, Bom Pastor — eu disse, olhando para os cacos de vidro aos meus pés. — Bill o matou.
Não sei por que tive tamanha certeza; mas foi o que senti, no momento em que a idéia passou por minha cabeça. Talvez eu tivesse ouvido Bill discar o telefone quando eu estava meio dormindo. Talvez a expressão no rosto de Bill quando terminei de contar a ele o que tio Bartlett me fizera tivesse acionado um alarme silencioso. Eu me perguntava se Bill pagaria o outro vampiro em dinheiro, ou se o pagaria em espécie. Continuei a trabalhar como uma pedra de gelo. Não podia falar com ninguém sobre o que eu estava pensando, não podia nem mesmo dizer que estava perturbada sem que alguém me perguntasse o que estava errado. Portanto, fiquei muda, apenas trabalhando. Desliguei-me de tudo, exceto dos pedidos que precisava atender. Voltei para casa tentando me sentir tão fria como estivera no trabalho, mas tive que encarar os fatos quando fiquei sozinha. Entrei em parafuso. Eu sabia, sabia mesmo, que Bill certamente tinha matado um ou dois seres humanos em sua longa, longa vida. Quando fora um vampiro jovem, quando precisara de muito, muito sangue, até que ganhasse controle de suas necessidades o bastante para sobreviver com uma bebidinha aqui, outro pouquinho ali, sem na verdade matar ninguém cujo sangue ele bebesse... ele próprio me dissera que uma ou duas mortes tinham acontecido no meio do caminho. E ele matara os Rattrays. Mas eles teriam me matado aquela noite em que eu saíra do bar, sem dúvida, se Bill não interviesse. Eu estava naturalmente inclinada a perdoá-lo por aquelas mortes. Por que a morte de Tio Bartlett seria diferente? Ele me ferira, também, terrivelmente, tornara a minha já difícil infância um verdadeiro pesadelo. Eu não ficara aliviada, e até mesmo satisfeita, por saber que ele tinha sido encontrado morto? Meu horror à intervenção de Bill não cheirava a uma hipocrisia da pior espécie? Sim. Não? Cansada e incrivelmente confusa, sentei-me nos degraus em frente de casa e fiquei esperando no escuro, com os braços em torno de meus joelhos. Os grilos cantavam na relva alta quando ele veio, chegando tão silenciosa e rapidamente que não o ouvi. Num momento eu estava sozinha, só eu e a noite, e, no momento seguinte, Bill estava sentado nos degraus ali, ao meu lado. — Que é que você quer fazer nesta noite, Sookie? — Seu braço me envolveu. — Oh, Bill. — Minha voz estava carregada de desespero.
Seu braço se afastou. Eu não olhava para seu rosto, e nem mesmo poderia vê-lo na escuridão, de qualquer modo. — Você não devia ter feito o que fez. Ele nem se preocupou em ao menos negar o fato. — Fico satisfeito que ele esteja morto, Bill. Mas eu não posso... — Você acha que eu teria coragem de lhe ferir, Sookie? — Sua voz era calma e farfalhante, como pés que pisassem na relva seca. — Não. Por mais esquisito que pareça, eu não acho que você me feriria, mesmo que ficasse muito bravo comigo. — Então...? — É como namorar o Chefão, Bill. Estou com medo de dizer qualquer coisa perto de você, agora. Não estou acostumada com meus problemas serem resolvidos desse jeito. — Eu amo você. Ele nunca me dissera isso, e parecia até uma coisa que eu tivesse imaginado, já que sua voz era tão baixa e sussurrante. — Ama mesmo, Bill? — Não ergui o meu rosto, mantendo minha testa sobre os joelhos. — Sim, amo. — Então, você tem que me deixar viver minha própria vida, Bill, não pode alterá-la para mim. — Você quis que eu a alterasse quando os Rattrays estavam batendo em você. — Está certo. Mas eu não posso ter você endireitando tudo o que me acontece no dia-a-dia. Vou ficar furiosa com certas pessoas, certas pessoas vão ficar furiosas comigo. Não posso querer que sejam mortas. Embora também não possa aceitar as ofensas. Você entende o que estou dizendo? — Querida? — ele disse. — Eu amo você — eu disse. — Não sei por que, mas amo. Quero usar com você todas aquelas palavras bestas que dizemos para alguém que amamos, não importa o quanto isso possa parecer estúpido, sendo você um vampiro. Quero lhe dizer que você é meu bem, que eu o amarei até que você fique velho e grisalho, mesmo que isso não vá acontecer. Que eu sei que você será sempre fiel... ei, isso também não vai acontecer. Eu fico me debatendo contra uma muralha quando tento dizer que amo você, Bill. — Fiquei em silêncio. Tinha desabafado. — Esta crise veio mais depressa do que eu tinha previsto — Bill disse, lá do meio do escuro. Os grilos tinham recomeçado o seu coro, e eu os escutei por um longo momento. — Sim. — E agora, Sookie? — Preciso dar um tempo. — Antes...? — Antes de me decidir se esse amor vale toda a desgraça que causa. — Sookie, se você soubesse que gosto diferente você tem, como eu quero proteger você... Eu podia notar pela voz de Bill que esses eram sentimentos muito ternos que ele queria dividir comigo. — Embora pareça esquisito — eu disse — é o que eu sinto por você também. Mas tenho que viver aqui, tenho que viver comigo mesma, e tenho que pensar em algumas regras que precisaremos estabelecer entre nós. — Então, o que vamos fazer agora? — Estou pensando. Siga fazendo o que você sempre fazia, antes de nos conhecermos. — Tento imaginar se eu poderia viver como um ser humano normal. Tento pensar de quem me alimentaria, se pudesse parar de tomar aquele maldito sangue sintético. — Eu sei que você terá que se alimentar de outro alguém, além de mim. — Estava tentando com dificuldade manter minha voz equilibrada. — Por favor, que não seja ninguém daqui de perto, ninguém que eu tenha que ver na minha rotina diária. Eu não suportaria. Não é justo que eu peça uma coisa dessas, mas estou pedindo. — Isso se você não namorar ninguém, não for para cama com ninguém. — Não vou. — Parecia uma promessa fácil de fazer. — Você se importará se eu for ao bar de vez em quando? — Não. Não direi a ninguém que estamos separados. Eu não falo de nós. Ele se aproximou, eu senti a pressão no meu braço quando seu corpo se encostou ao meu. — Beije-me — ele disse. Ergui minha cabeça e me virei, e nossos lábios se encontraram. Foi um fogo apagado, nada de chamas alaranjadas e vermelhas, nenhum ardor deste tipo: fogo apagado. Logo depois, seus braços me envolveram. E, a seguir, meus braços o envolveram também. Comecei a me sentir sem fibra, amolecida. Com um grito sufocado, me afastei. — Oh, não podemos, Bill. Ouvi-o retomar o fôlego. — É claro, já que estamos nos separando — ele disse calmamente, mas não parecia estar levando muito a sério o que eu dissera. — Não devemos nos beijar de modo algum. Também não devo levá-la para a varanda e comê-la até você desmaiar. Meus joelhos estavam tremendo, realmente. Sua linguagem deliberadamente crua, vindo naquela voz doce e fria, fazia o desejo dentro de mim palpitar ainda mais. Usei todas as forças que trazia em mim, cada fiapo de autocontrole, para me erguer e entrar em casa. Mas, consegui.
Na semana seguinte, comecei a tentar viver uma vida sem Vovó e sem Bill. Eu trabalhava noites a fio, trabalhava duro. Fiquei para lá de cuidadosa, pela primeira vez na vida, com fechaduras e segurança. Havia um assassino à solta, e eu já não contava mais com meu poderoso protetor. Pensei em comprar um cão, mas não consegui decidir qual raça escolher. Minha gata, Tina, só era proteção sob o ponto de vista de que esboçava certa reação quando alguém se aproximava da casa. Recebia telefonemas do advogado de Vovó de vez em quando, informando-me sobre os avanços no inventário do que ela me deixara. E o advogado de tio Bartlett também me ligou. Ele me deixara vinte mil dólares, que, para ele, era uma grande quantia. Quase recusei a herança. Mas, pensei bem. Leguei o dinheiro ao centro de saúde mental local, assinalando bem que era destinado ao tratamento de crianças vítimas de assédio e estupro. Ficaram felizes com a minha doação. Tomei vitaminas, um montão delas, porque estava um pouco anêmica. Bebi muitos líquidos e comi proteínas em abundância. E comi a quantidade de alho que me deu na telha, uma coisa que Bill não conseguia suportar. Ele disse que o cheiro saía pelos meus poros, mesmo quando, numa noite, comi apenas pão de alho com espaguete e molho de carne. Eu dormia horas a fio. Ficar fazendo horas extras à noite fazia com que eu tivesse uma necessidade maior de descanso. Três dias depois, senti-me revitalizada, fisicamente. Realmente, parecia que eu estava um pouco mais forte do que sempre fora. Comecei a prestar atenção no que acontecia ao meu redor. A primeira coisa que notei foi que as pessoas do lugar estavam realmente furiosas com os vampiros que se abrigavam em Monroe. Diane, Liam e Malcolm andavam fazendo excursões pelos bares da região, com a aparente intenção de tornar o ajustamento à normalidade impossível para os outros vampiros. Estavam se comportando de uma maneira ultrajante, ofensiva. Os três vampiros faziam com que as travessuras dos estudantes do Louisiana Tech parecessem umas besteirinhas.
Eles não pareciam sequer imaginar o quanto estavam se expondo ao perigo. A liberdade de estarem fora dos caixões tinha-lhes subido à cabeça. O direito a existirem legalmente havia liberado todas as suas restrições, toda a sua prudência e cautela. Malcolm agarrou uma garçonete em Bogaloosas. Diane dançou nua em Farmerville. Liam transou com uma garota menor de idade em Shongaloo, e depois transou com a mãe dela, também. Bebeu o sangue das duas. E não apagou a memória das infelizes. Rene estava conversando com Mike Spencer, o diretor da funerária, no bar do Merlotte numa noite de quinta-feira, e eles baixaram a voz quando me aproximei. Naturalmente, isso me fez ficar ainda mais atenta. Por isso, li a mente de Mike. Um grupo de homens da cidade estava pensando em queimar os vampiros de Monroe. Eu não sabia o que fazer. Os três eram, senão amigos de Bill, ao menos uma espécie de correligionários. Mas eu detestava Malcolm, Diane e Liam, como todo mundo. Por outro lado; e, cara, sempre há um outro lado, não há?; era contrário a meus princípios saber com antecedência sobre crimes premeditados e ficar passiva. Talvez tudo isso fosse apenas conversa de bêbado. Só para ter certeza, eu mergulhava nas mentes das pessoas que estavam em torno de mim. Para minha consternação, muitas delas estavam pensando em atear fogo no abrigo dos vampiros. Mas eu não consegui rastrear com precisão a origem da idéia. Era como se o veneno houvesse se disseminado pelo ar e infectado outras pessoas. Não havia prova, de nenhuma espécie, de que Maudette, Dawn e minha avó tivessem sido mortas por vampiros. Na verdade, havia rumores de que o relato do legista poderia dar provas contra a teoria. Mas os três vampiros estavam se comportando de um modo tal que as pessoas queriam culpá-los por alguma coisa, queriam se livrar deles, e já que Maudette e Dawn tinham sido ambas mordidas por vampiros e eram freqüentadoras dos bares de vampiros, bem, as pessoas só faziam era juntar tudo e, socando, extrair da massa informe uma convicção.
Bill veio na sétima noite em que eu me encontrava só. Ele apareceu na sua mesa repentinamente. Não estava sozinho. Havia um rapazinho ao seu lado, um rapazinho que parecia ter seus 15 anos. Era um vampiro também. — Sookie, este é Harlen Ives, de Minneapolis — Bill disse, como se isto fosse uma apresentação comum. — Harlen — eu disse, e balancei a cabeça. — Prazer em conhecê-lo. — Sookie — ele balançou a cabeça para mim também. — Harlen está de passagem, indo de Minnesota para Nova Orleans — Bill disse, soando de uma forma positivamente animada. — Estou de férias — Harlen disse. — Faz anos que quero visitar Nova Orleans. É uma meca para nós, como você sabe. — Oh... certo — eu disse, tentando parecer natural. — Lá há um número para o qual você pode ligar — Harlen me informou. — Você pode se hospedar com um morador efetivo, ou pode alugar um... — Caixão? — eu perguntei espertamente. — Bem, sim. — Que bom para você — eu disse, sorrindo meu melhor sorriso. — Em que posso servi-los? Creio que Sam adquiriu novo estoque de sangue, Bill, se vocês quiserem. Tem sabor A negativo, mas temos também o O positivo. — Oh, A negativo, eu acho — Bill disse, depois que ele e Harlen trocaram uma comunicação silenciosa. — Saindo! — fui direto para o frigorífico atrás do balcão e puxei dois A negativos, abri as tampas, e levei-os de volta numa bandeja. Eu sorria o tempo todo, como de hábito. — Você está bem, Sookie? — Bill perguntou numa voz mais natural depois que eu pus os drinques de qualquer jeito sobre a mesa, em frente a eles. — Claro, Bill — eu disse carinhosamente.
Eu queria era quebrar a garrafa na cabeça dele. De Harlen também. Era só uma passagem pela cidade. Tá bom. — Harlen gostaria de dar uma circulada por aí para encontrar o Malcolm, mais tarde — Bill disse, quando vim para pegar as garrafas vazias e perguntar se queriam outras. — Tenho certeza que Malcolm adoraria conhecer Harlen — eu disse, tentando não parecer puta da vida como eu me sentia. — Oh, conhecer Bill já foi ótimo — Harlen disse, sorrindo para mim, mostrando os caninos. Sabia agir de uma maneira bem maldosa, também. — Mas Malcolm é uma lenda absoluta. — Tome cuidado — eu disse para Bill. Eu queria contar a ele como os três vampiros estavam se expondo a sérios perigos, mas eu não achava que tinha retomado a minha cabeça fria ainda. E não queria falar do assunto porque Harlen estava ali, piscando seus olhos de um azul-bebê para mim e parecendo um símbolo sexual adolescente. — Ninguém está muito satisfeito com aqueles três, no momento — acrescentei, depois de um silêncio. Não era uma advertência efetiva. Bill apenas olhou para mim, intrigado, e eu girei em meus calcanhares e me afastei. Eu viria a arrepender-me daquele momento, arrepender-me amargamente.
Depois que Bill e Harlen saíram, o bar ficou ainda mais alvoroçado com o tipo de conversa que eu tinha ouvido de Rene e Mike Spencer. Parecia-me que alguém havia posto fogo na coisa, mantendo o nível de raiva bem atiçado. Mas, juro pelos céus, não fui capaz de descobrir quem fizera isso, embora tivesse feito um pouco de escuta ao acaso, tanto mental quanto física. Jason entrou no bar, e nos dissemos alô, mas não muito mais que isso. Ele não tinha me perdoado por minha reação à notícia da morte do tio Bartlett.
Bem, ele teria que superar isso. Pelo menos não estava pensando em pôr fogo em nada, exceto talvez um pouco mais de calor na cama de Liz Barrett. Liz, mais jovem do que eu, tinha cabelos castanhos curtos enrolados, grandes olhos castanhos e um inesperado ar de esperteza que me fazia pensar que Jason podia, finalmente, ter encontrado a sua companheira. Depois que me despedi deles, assim que seu jarro de cerveja esvaziou, percebi que o nível de raiva no bar havia se elevado, que os homens estavam realmente determinados a fazer alguma coisa. Comecei a ficar mais que ansiosa. Conforme a noite foi avançando, o movimento no bar ficou mais e mais frenético. Menos mulheres, mais homens. Mais saltar de mesa em mesa. Mais bebida. Os homens ficavam de pé, em vez de se sentarem. Era difícil entender o motivo da agitação, já que não havia nenhuma grande reunião marcada, efetivamente. A coisa acontecia devido ao boca a boca, murmurada de ouvido em ouvido. Ninguém entrou no bar e gritou, “E aí, rapaziada? Vamos continuar com esses monstros no meio da gente? Todos para o castelo!” ou algo do gênero. Depois de algum tempo, todos começaram a se retirar, formando ajuntamentos apressados no estacionamento. Olhei por uma das janelas para eles, balançando a minha cabeça. Não era bom sinal. Sam estava inquieto, também. — Que é que você acha? — perguntei a ele, e percebi que era a primeira vez que lhe dirigia a palavra naquela noite, fora os “Passe o jarro” ou “Dê-me outra margarita”. — Acho que vamos ter tumulto — ele disse. — Mas eles dificilmente irão a Monroe agora. Os vampiros vão estar dispersos por aí até o amanhecer. — Onde fica a casa deles, Sam? — Soube que é na periferia de Monroe, no lado oeste. Em outras palavras, pertinho de nós —, ele me disse. — Mas, não tenho certeza.
Fui para casa depois que o bar fechou, meio com a esperança de ver Bill movendo-se furtivamente na entrada, para que eu pudesse lhe contar o que estava acontecendo. Mas eu não o vi, e não queria ir à sua casa. Depois de uma longa hesitação, disquei seu número, mas quem atendeu foi só a secretária eletrônica. Deixei uma mensagem. Não tinha idéia de como a turma de vampiros estava registrada na lista telefônica, se é que eles tinham um telefone. Enquanto tirava meus sapatos e me desvencilhava das jóias — tudo de prata, cuidado, Bill! — disse a mim mesma que depois pensaria nisso, mas não estava me preocupando muito com o assunto. Fui para a cama para depressa dormir no quarto que agora era meu. Raios de lua entravam pela penumbra, fazendo sombras estranhas no chão. Mas fiquei olhando para elas por pouco tempo. Bill não me despertou naquela noite, retornando minha ligação.
Mas o telefone tocou realmente, de manhã cedo, depois que o dia se abriu. — Que foi? — perguntei, aturdida, o fone contra meu ouvido. Dei uma olhada no relógio de parede. Eram sete e meia. — Queimaram a casa dos vampiros — Jason disse. — Tomara que o seu não esteja lá. — O quê? — perguntei outra vez, mas minha voz agora estava apavorada. — Queimaram a casa dos vampiros na periferia de Monroe. Assim que o sol nasceu. Fica na rua Callista, a oeste de Archer. Lembrei-me que Bill dissera que poderia levar Harlen até lá. Teria ficado? — Não — eu disse, finalmente.
— Sim. — Tenho que ir ver isso — eu disse, pondo o fone no gancho.
A casa estava ardendo à luz clara do dia. Rolos de fumaça subiam pelo céu azul. A madeira carbonizada parecia a pele de um jacaré. Caminhões de bombeiro e viaturas de polícia estavam estacionados caoticamente no jardim da casa de dois andares. Um grupo formado por curiosos se atropelava por trás da faixa amarela. Os restos de quatro caixões estavam estendidos lado a lado na grama chamuscada. Havia um saco para guardar cadáver também. Comecei a caminhar na direção dos corpos, mas pareceu-me, por longo tempo, que ficavam cada vez mais longe; era como um daqueles sonhos no qual nunca se consegue chegar ao ponto desejado. Alguém agarrou o meu braço e tentou me parar. Não posso lembrar do que a pessoa me disse, mas lembro-me de um rosto horrorizado me fitando. Continuei a andar penosamente pelos escombros, inalando o cheiro de coisas queimadas, coisas recém-carbonizadas, um cheiro que nunca sairia de minha lembrança pelo resto da vida. Cheguei ao primeiro caixão e olhei para dentro. O que restava da tampa estava aberto e exposto à luz solar. O sol batia sobre aquilo; a qualquer momento agora, ele atingiria a coisa horrorosa que jazia amarrotada num forro de seda branca. Seria Bill? Não havia meio de saber. O cadáver estava se desintegrando pedacinho por pedacinho enquanto eu o observava. Pequenos fragmentos saíam em flocos e se misturavam ao sopro da brisa, ou desapareciam num pequeno tufo de fumaça onde os raios de sol incidiam sobre o corpo. Cada um dos caixões continha um horror semelhante. Sam estava de pé ao meu lado. — Isso pode ser chamado de crime, Sam?
Ele balançou a cabeça. — Simplesmente não sei, Sookie. Legalmente, matar os vampiros é crime. Mas você tem primeiro que provar incêndio premeditado, embora eu não ache que isso seja muito difícil, neste caso. Nós dois sentíamos o cheiro da gasolina. Havia homens movimentando-se em torno da casa, subindo aqui e ali, gritando uns para os outros. Não me parecia que esses homens estivessem conduzindo uma investigação séria da cena do crime. — Mas esse corpo aí, Sookie. — Sam apontou para o saco de cadáveres sobre a grama. — Esse era um ser humano verdadeiro, e eles têm que investigar. Eu não acho que qualquer integrante daquela turba tenha percebido que podia haver um ser humano na casa, nem percebido nada além do que fazia. — Então, por que veio aqui, Sam? — Por você — ele disse simplesmente. — Vou levar o dia inteiro para saber se Bill está entre eles, Sam. — Sim, eu sei. — Que vou fazer hoje? Como posso esperar? — Tome algum remédio — ele sugeriu. — Que tal pílulas para dormir ou algo assim? — Eu não tenho coisas desse tipo — eu disse. — Nunca tive problemas para dormir. A conversa estava ficando cada vez mais estranha, mas não acho que poderia ter dito outra coisa. Um homem grandalhão estava em frente a mim, o xerife local. Ele estava suando com o calor da manhã, e parecia estar em pé havia horas. Talvez estivesse no turno da noite e tivera que permanecer quando o fogo começara. Quando homens que eu conhecia se tornaram incendiários. — Conhecia essas pessoas, moça? — Sim, conhecia. Fui apresentada a elas.
— Pode identificar os restos mortais? — Quem conseguiria identificar algo? — perguntei, incredulamente. Os corpos agora estavam quase completamente desaparecidos, sem feições, e se desintegravam. Ele parecia nauseado. — Tem razão. Mas há um ser humano. — Darei uma olhada — eu disse, antes de ter tempo para pensar. O hábito de ser prestativa era muito difícil de quebrar. Como se percebesse que eu estava quase mudando de opinião, o grandalhão se ajoelhou na grama chamuscada e puxou o zíper do saco. O rosto enfarruscado da garota que estava dentro dele era de uma garota que eu nunca vira. Dei graças a Deus. — Não a conheço — eu disse, e senti que meus joelhos cediam. Sam me agarrou antes que eu despencasse no chão, e tive que me encostar nele. — Pobre garota — eu sussurrei. — Sam, não sei o que fazer. Os homens da lei roubaram parte do meu tempo naquele dia. Queriam saber de tudo que eu estava a par sobre os vampiros que tinham sido proprietários da casa, e eu lhes contei, mas o que eu sabia não era muito satisfatório. Malcolm, Diane, Liam. De onde vinham, qual a sua idade, por que tinham se estabelecido em Monroe, quem eram seus advogados; como eu poderia saber aquelas coisas? Nunca estivera na casa deles. Quando meu interrogador, fosse ele quem fosse, descobria que eu os conhecera através de Bill, passava a querer saber onde Bill estava, como entrar em contato com ele. — Ele pode estar bem ali — eu disse, apontando para o quarto caixão. — Não vou saber disso até o anoitecer. — Minha mão se ergueu por vontade própria e tapou a minha boca. Bem naquele momento os bombeiros começaram a rir, e seu companheiro também.
— Vampiros fritos à moda do Sul! — murmurou o mais baixo deles para o homem que me interrogava. — Temos aqui uns vampiros fritos à moda do Sul! Ele não achou a coisa tão fantasticamente engraçada quando lhe dei um chute. Sam me puxou para longe e o homem que estava me interrogando agarrou o bombeiro que eu atacara. Berrei feito uma bruxa e o teria atacado de novo se Sam tivesse deixado. Mas ele não deixou. O que fez foi me arrastar para meu carro, suas mãos tão poderosas quanto ataduras de ferro. Tive uma súbita visão do quanto minha avó se envergonharia por me ver gritando com um servidor público, por me ver atacando alguém fisicamente. A idéia espetava a minha hostilidade louca como uma agulha furando um balão. Deixei Sam me empurrar para o banco do passageiro, e quando ele deu partida no carro e começamos a voltar, deixei-o me levar para casa e segui sentada, em silêncio absoluto. Chegamos lá bem depressa. Eram apenas dez da manhã. Já que a época era de dias de luz mais duradoura, eu contaria ao menos com mais dez horas para esperar. Sam fez algumas ligações telefônicas enquanto eu fiquei sentada no sofá, olhando fixo para nada. Cinco minutos depois, ele voltou à sala de estar. — Venha, Sookie — ele disse energicamente. — Essas persianas estão imundas. — O quê? — As persianas. Como foi que você as deixou ficar assim? — O quê?
* A razão da hilaridade está no trocadilho entre Southern fried vampires (Vampiros fritos à moda do Sul) e Southern fried chicken (Frangos fritos à moda do Sul), uma receita famosa de frango frito no Sul dos Estados Unidos. (N.doT.)
— Vamos limpar. Pegue um balde, um pouco de amoníaco e uns panos de limpeza. Faça um pouco de café. Movendo-me lenta e cuidadosamente, com medo de que pudesse secar e ser soprada pelo vento como os corpos naqueles caixões, fiz o que ele me pediu. Sam tinha descido as cortinas das janelas da sala de estar quando eu voltei com o balde e os panos de limpeza. — Onde está a máquina de lavar? — Ali nos fundos da cozinha — eu disse, apontando. Sam foi para a área de serviço com uma braçada de cortinas. Vovó as tinha lavado há menos de um mês, por ocasião da visita de Bill. Eu não disse uma palavra. Baixei uma das persianas, fechei-a, e comecei a lavar. Quando ficaram limpas, polimos também as janelas. Começou a chover no meio da manhã. Não podíamos fazer nada do lado de fora. Sam pegou a comprida vassoura de tirar pó e afastou as teias de aranha dos cantos do forro alto, e eu limpei os rodapés. Ele tirou o espelho que ficava acima do consolo da lareira, tirou o pó das partes que normalmente não conseguíamos alcançar, e a seguir o limpamos e penduramos de novo. Eu limpei a velha lareira de mármore até que não restasse um só vestígio do fogo feito no inverno. Pus em frente a ela um bonito biombo, pintado com botões de magnólia. Limpei a tela da televisão e pedi para que Sam erguesse o móvel a fim de eu tirar o pó que estava debaixo. Pus todos os filmes em suas respectivas caixas e fiz rótulos de identificação para os outros. Tirei todas as almofadas do sofá e limpei com aspirador de pó os restos de sujeira que tinham se acumulado sob elas, encontrando um dólar e alguns trocados. Aspirei o pó do tapete e usei a vassoura de tirar poeira nos assoalhos de madeira. Passamos para a sala de jantar e polimos tudo que havia para ser polido. Quando a madeira da mesa e das cadeiras estava reluzente, Sam me perguntou há quanto tempo eu fizera isso com a prataria de Vovó.
Eu nunca havia polido a prataria de Vovó. Abrimos o aparador para descobrir que, sim, estava na cara que a prataria precisava de limpeza. Assim, para a cozinha a levamos, pegamos o polidor de prata, e passamos à ação. O rádio estava ligado, mas pouco a pouco percebi que Sam o desligava toda vez que o noticiário começava. Fizemos limpeza o dia todo. E choveu o dia todo. Sam falava comigo apenas para dar uma ordem para execução da próxima tarefa. Quando a noitinha começou a chegar, eu tinha a casa mais limpa de Renard Parish. Sam disse: — Vou-me embora agora, Sookie. Eu acho que você quer ficar sozinha. — Sim — eu disse. — Eu quero lhe agradecer algum dia, mas não posso lhe agradecer agora. Você me salvou hoje. Senti seus lábios em minha testa e, um minuto depois, ouvi a porta ser fechada. Sentei-me à mesa enquanto a escuridão começava a tomar conta da cozinha. Quando eu já não podia ver quase nada, fui para fora. Levei minha lanterna grande. Não me importava que ainda estivesse chovendo. Eu vestia um vestido de algodão sem manga e um par de sandálias, que eu pusera de manhã depois da ligação de Jason. Fiquei debaixo da copiosa chuva quente, meus cabelos grudados em meu crânio e meu vestido encharcado grudado na pele. Virei à esquerda em direção à floresta e comecei a caminhar pelo meio delas, a principio de modo lento e cauteloso. Quando a influência tranqüilizadora de Sam começou a se evaporar, pus-me a correr, esfregando meu rosto nos galhos, arranhando minhas pernas em moitas de espinhos. Saí da floresta e me arremeti em direção ao cemitério, a luz da lanterna balançando à minha frente. Eu pensara que podia ir para a casa do outro lado, a residência dos Comptons: mas eu então pressenti que Bill devia estar ali, em algum lugar desses seis acres de ossos e pedras.
Parei no centro da parte mais velha do cemitério, cercada por monumentos e modestas pedras tumulares, na companhia dos mortos. Gritei: — Bill Compton! Apareça já! Girei em círculos, olhando ao redor para o negrume quase total, sabendo que, mesmo que eu não pudesse vê-lo, Bill conseguiria me ver, se ele pudesse ver alguma coisa agora — se ele não fosse uma daquelas escurecidas, desintegradas monstruosidades que eu vira no pátio frontal da casa de Monroe. Nenhum som. Nenhum movimento, exceto a queda constante da suave e abundante chuva. — Bill! Bill! Apareça! Senti, mais do que ouvi, um movimento à minha direita. Virei o facho da lanterna nessa direção. O chão estava se movendo. Quando olhei, uma branca mão saiu do solo vermelho. A sujeira começou a se quebrar e desfazer. Uma figura ergueu-se da terra. — Bill? A figura veio em minha direção. Coberto de listras vermelhas, o cabelo cheio de imundície, Bill deu um passo hesitante, aproximando-se. Eu não podia nem chegar perto dele. — Sookie — ele disse, bem perto de mim — por que você está aqui? — Pela primeira vez, sua voz me pareceu desorientada e insegura. Eu tinha que falar com ele, mas não conseguia abrir a minha boca. — Querida? Caí feito pedra. Fiquei abruptamente de joelhos no chão ensopado. — O que aconteceu enquanto eu dormia? — Ele se ajoelhou junto a mim, nu e gotejante sob a chuva. — Você está sem roupa — murmurei. — Elas só ficaram sujas — ele disse cordialmente. — Quando durmo no chão, eu as tiro. — Oh. Claro.
— Agora, você precisa me contar. — Preciso que você não me odeie. — O que foi que você fez? — Oh, meu Deus, não fui eu! Mas eu devia ter alertado você um pouco mais, eu poderia ter agarrado o seu braço e feito você me escutar. Tentei lhe telefonar, Bill! — O que aconteceu? Pus minhas mãos em cada lado de seu rosto, tocando sua pele, percebendo o quanto eu teria perdido, quanto ainda poderia perder, se ele morresse. — Eles estão mortos, Bill, os vampiros de Monroe. E alguém morreu junto com eles. — Harlen — ele disse, num tom apagado. — Harlen ficou na cidade ontem à noite, ele e Diane se entenderam muito bem. — Ele esperou que eu terminasse, os olhos fixos nos meus. — Eles foram queimados. — De propósito. — Sim. Ele se agachou ao meu lado sob a chuva, no escuro, sem que eu visse seu rosto. Apertei a lanterna na mão, e toda a minha força se esvaiu. Senti a sua fúria. Senti a sua crueldade. Senti a sua fome. Nunca tinha sido tão vampiro ao meu lado como naquele momento. Não havia nele nada de humano. Ele ergueu o rosto para o céu e uivou. Achei que mataria alguém, tão grande era o ódio que saía dele. E o alguém mais próximo era eu mesma. Quando compreendi o perigo em que estava, Bill agarrou meus ombros. Ele me puxou para si, lentamente. Seria inútil eu lutar, na verdade sentia que, se o fizesse, o excitaria ainda mais. Ele me puxou para tão perto que eu quase podia sentir o cheiro de sua pele, e pude sentir a turbulência que dominava a sua alma, pude sentir totalmente a sua raiva. Dirigir aquela energia para outra coisa poderia salvar a minha vida. Eu venci a pequena distância que nos separava, pus minha boca em seu peito. Lambi a água de chuva, esfreguei meu rosto em seus mamilos, encostei-me nele por completo. No momento seguinte seus dentes roçaram meu ombro, e seu corpo, duro, rijo e preparado, empurrou-me com tanta força que caí de costas na lama. Ele veio diretamente para dentro de mim como se tentasse chegar ao solo me atravessando. Eu gritei, e em resposta ele rosnou, como se fôssemos verdadeiramente seres da lama, criaturas primitivas das cavernas. Minhas mãos, cravadas na carne de suas costas, sentiam a chuva caindo com força e o sangue sob minhas unhas, e o movimento implacável que o corpo dele fazia. Eu achei que seria enterrada naquela lama, que ela seria meu túmulo. Seus caninos se afundaram em meu pescoço. De repente eu gozei. Bill uivou ao atingir seu próprio orgasmo, e desfaleceu sobre mim, seus caninos se salientando e sua língua limpando as marcas da perfuração. Pensei que ele poderia me matar até sem querer. Meus músculos não me obedeceriam, mesmo se eu soubesse o que queria fazer. Bill me ergueu. Levou-me para a sua casa, abrindo a porta com um empurrão e carregando-me diretamente para seu grande quarto. Deitando-me delicadamente no tapete, sobre o qual espalhei lama, água de chuva e um pequeno rastro de sangue, Bill abriu a banheira de água quente e, quando estava cheia, pôs-me lá dentro e a seguir entrou. Sentamo-nos, nossos pés pendendo na quente água espumante que ficou descolorida rapidamente. Os olhos de Bill fitavam algum ponto muito distante. — Todos mortos? — ele disse, com a voz quase inaudível. — Todos mortos, e uma garota humana também — eu disse, calmamente.
— O que você fez o dia todo? — Limpei a casa. Sam me fez limpar a casa. — Sam — Bill disse pensativamente. — Diga-me, Sookie. Você pode ler a mente de Sam? — Não — confessei, subitamente exausta. Submergi minha cabeça, e quando me ergui, Bill tinha na mão o frasco de xampu. Ele ensaboou e enxaguou meu cabelo, penteando-o da mesma maneira que fizera na primeira vez que fizemos amor. — Bill, lamento por seus amigos — eu disse, tão exausta que nem conseguia articular as palavras. — E estou muito feliz por você estar vivo. Pus meus braços em torno de seu pescoço e pousei minha cabeça em seu ombro. Estava duro como uma pedra. Lembro que Bill me enxugou com uma toalha branca grande, e lembro que pensei como era suave o travesseiro, e lembro de ele deslizando para deitar-se ao meu lado e pondo seu braço sobre meu corpo. E que então caí no sono. Nas primeiras horas da madrugada, meio que despertei ao ouvir alguém se movimentando pelo quarto. Eu devia estar sonhando, e devia ser um sonho ruim, porque acordei com meu coração disparado. — Bill? — perguntei, e podia notar o medo que impregnava a minha voz. — O que houve? — ele perguntou, e eu senti a cama formar uma reentrância quando ele sentou-se na borda. — Você está bem? — Sim, eu só saí para andar um pouco. — Não tem ninguém lá fora? — Não, querida. — Ouvi o som de um tecido roçado por uma pele, e, daí a pouco, ele estava sob os lençóis, de novo ao meu lado. — Oh, Bill, podia ter sido você dentro de um daqueles caixões — eu disse, com a agonia da manhã daquele dia ainda fresca em minha memória.
— Sookie, você chegou a pensar que podia ser você dentro do saco de cadáveres? Que eles poderiam vir aqui, para queimar esta casa, ao amanhecer? — Você tem que vir para a minha casa! Minha casa eles não incendiarão. Você pode ficar seguro, estando comigo — eu disse seriamente. — Sookie, ouça: por minha causa você pode morrer. — Que é que eu tenho a perder? — perguntei, sentindo a paixão em minha voz. — Eu vivi a melhor parte de minha vida, depois que o conheci! — Se eu morrer, procure o Sam. — Já está me passando adiante? — Nunca — ele disse, e sua voz macia estava gélida. — Nunca. — Senti suas mãos agarrarem meus ombros; ele se apoiava no cotovelo, ao meu lado. Chegou um pouco mais perto, e senti o seu corpo frio em toda a sua extensão. — Ouça, Bill — eu disse. — Não sou culta, mas não sou estúpida. Eu não sou muito experiente ou conhecedora do mundo, tampouco, mas não me acho ingênua. — Esperava que ele não estivesse sorrindo no escuro. — Posso fazer os homens aceitarem você. Juro que posso. — Se há alguém neste mundo que possa, é você — ele disse. — Eu quero entrar em você novamente. — Você quer dizer quê...? Oh, sim. Sei o que você quer dizer. — Ele pegou minha mão e desceu-a para onde queria. — Eu gostaria disso, também. — E eu realmente gostaria, se tivesse energia para tanto depois do momento trepidante que eu tivera no cemitério. Bill estava tão raivoso que eu agora me sentia exaurida. Mas também sentia aquela sensação cálida e líquida a correr dentro de mim, aquela excitação sem trégua a que Bill me habituara. — Meu bem — eu disse, acariciando-o de alto a baixo — meu bem. — Eu o beijei, senti sua língua dentro de minha boca. Rocei seus caninos com a minha. — Você pode fazer sexo sem morder? — sussurrei.
— Sim. É apenas como um grand finale quando sinto o gosto de seu sangue. — Continuaria sendo bom sem a mordida? — Não dá para comparar, mas eu não quero enfraquecer você. — Se você não se importar — eu disse, arriscando. — Levou alguns dias para eu me sentir à sua altura. — Tenho sido egoísta... você é tão boa. — Se eu estiver forte, serei ainda melhor — sugeri. — Mostre-me essa força toda — ele disse, provocador. — Deite de barriga pra cima. Não estou muito certa de como isso funciona, mas sei que outras pessoas praticam. — Montei sobre ele, ouvi sua respiração acelerar. Fiquei satisfeita pelo quarto estar às escuras e a chuva estar ainda caindo lá fora. O clarão de um relâmpago mostrou-me seus olhos, que brilhavam. Com cuidado me ajeitei no que parecia ser a posição correta, e guiei-o para dentro de mim. Tinha grande fé em meus instintos, e eles não me iludiram.
Juntos novamente, minhas dúvidas ao menos temporariamente purgadas pelo medo que eu sentira ao pensar que poderia tê-lo perdido, Bill e eu entramos numa rotina inquieta. Se eu fazia trabalho noturno, ao término deste ia para a casa de Bill, e geralmente passava o resto da noite com ele. Se o trabalho fosse diurno, Bill vinha à minha casa depois do pôr-do-sol, víamos televisão, ou íamos ao cinema, ou jogávamos Scrabble. Eu tinha folga a cada terceira noite, e Bill tinha que se abster de mordidas nessas noites, senão eu me sentiria fraca e rastejante. E, se ele se alimentasse demais de mim, havia o clássico perigo... portanto, eu continuei a me entupir de vitaminas e ferro até que Bill queixou-se do meu sabor. Por isso, eliminei o ferro. Quando eu dormia à noite, Bill se ocupava de alguma outra coisa. Por vezes ele lia, por vezes, vagava pela casa; às vezes, ia lá fora e cuidava do meu quintal sob a iluminação das lâmpadas de segurança. Se ele chupava sangue de outro alguém, sabia como manter isso em segredo, e fazia-o longe de Bon Temps, o que eu havia lhe pedido. Disse que esta rotina era inquieta porque me parecia que nós estávamos à espera de algo. O incêndio do refúgio dos vampiros deixara Bill furioso e (penso eu) também o assustara. Ser tão poderoso em vigília e tão desamparado ao dormir devia ser uma coisa desesperadora. Nós dois ficávamos imaginando se a irritação pública contra os vampiros se reduziria agora que os piores causadores de problemas na região estavam mortos. Embora Bill não dissesse nada diretamente, eu percebia, pelo curso que nossas conversas de vez em quando tomavam, que ele ainda estava grandemente preocupado com minha segurança devido aos assassinatos de Dawn, Maudette e de minha avó.
Se os homens de Bon Temps e das cidades circunvizinhas tinham pensado que ter queimado os vampiros deixaria suas mentes aliviadas quanto aos crimes acontecidos, estavam errados. Os relatos de autópsia das três vítimas finalmente provaram que elas tinham todo o suprimento de sangue intacto em seu corpo ao serem mortas. Além disso, as marcas de mordidas encontradas em Maudette e Dawn não apenas pareciam velhas, comprovou-se que eram realmente velhas. A causa das mortes fora estrangulamento. Maudette e Dawn tinham feito sexo antes de morrer. E depois também. Arlene, Charlsie e eu ficamos cautelosas com coisas tais como sair pelo estacionamento sozinhas, certificando-nos sempre de que nossas casas estavam bem trancadas quando entrávamos nelas, tentando reparar se carros nos seguiam quando estávamos nos nossos. Mas é difícil ficar atenta assim o tempo todo, é uma verdadeira sobrecarga para os nervos, e estou certa que todas recaímos em nossos hábitos displicentes. Talvez isso fosse mais desculpável nos casos de Arlene e Charlsie, já que elas, diferente das duas primeiras vítimas, moravam com outras pessoas; Arlene com seus filhos (e Rene Lenier, de vez em quando), e Charlsie com seu marido, Ralph. Quanto a mim, era a única que morava sozinha. Jason ia ao bar quase toda santa noite, e fazia questão de conversar sempre comigo. Percebi que ele estava tentando sanar a ruptura que havia entre nós, e correspondi, na medida do possível. Mas ele andava bebendo mais, também, e sua cama tinha tantas ocupantes quanto um banheiro público, embora parecesse sentir algo mais sério por Liz Barrett. Trabalhamos cautelosamente na questão da divisão de propriedades de Vovó e de tio Bartlett, embora ele tivesse mais a ver com esta última do que eu. Tio Bartlett, afora o dinheiro que me legara, deixara tudo para Jason. Ele me contou numa noite em que bebera uma cerveja extra que fora obrigado a ir à delegacia mais duas vezes, e que isso o estava deixando fulo da vida. Ele conversara com Sid Matt Lancaster, finalmente, e este o advertira para não ir mais à delegacia a não ser acompanhado por ele. — Por que é que eles ficam intimando você o tempo todo? — perguntei a Jason. — Deve haver aí alguma coisa que você não me contou. Andy Bellefleur não foi atrás de mais ninguém, e eu sei que Dawn e Maudette não eram muito seletivas na escolha dos homens que levavam para casa. Jason parecia mortificado. Eu nunca tinha visto meu belo irmão mais velho parecer tão envergonhado. — Filmes — ele murmurou. Curvei-me para mais perto dele para ouvir melhor. — Filmes? — eu disse, incredulamente. — Shhh — ele sibilou, parecendo terrivelmente culpado. — Fizemos filmes. Acho que estava tão envergonhada quanto Jason. Irmãs e irmãos não precisam saber de tudo uns sobre os outros. — E você deu a elas uma cópia — eu disse, apalpando o terreno, tentando adivinhar o quanto Jason podia ter sido ingênuo. Ele olhou para outra direção, ao longe, seus olhos azuis enevoados cintilando romanticamente com lágrimas. — Idiota — eu disse. — Mesmo admitindo o fato de que você não poderia saber como a coisa ia chegar a público, o que teria acontecido quando você decidisse se casar? E se uma de suas ex-paixões mandasse pelo correio uma cópia da farrinha para a sua noiva? — Obrigado por me chutar quando estou por baixo, mana. Respirei profundamente. — O.k., o.k. Você parou de fazer esses pequenos vídeos, certo? Ele concordou enfaticamente. Eu não acreditei nele. — E você falou a Sid Matt tudo sobre isso, certo? Ele concordou com menos firmeza.
— E você acha que é por isso que o Andy anda pegando tanto no seu pé?
— Sim — Jason disse com mau humor. — Então, se eles examinarem seu sêmen e não combinar com o que estava dentro de Maudette e Dawn, você ficará limpo. — A esta altura, eu estava com uma cara tão matreira quanto a do meu irmão. Nunca tínhamos falado sobre amostras de sêmen. — É o que Sid Matt diz. Eu não confio nesses negócios. Meu irmão não confiava na evidência científica mais digna de crédito que poderia ser apresentada num tribunal. — Você acha que Andy vai falsificar os resultados? — Não, Andy é correto. Ele só está fazendo o seu trabalho. Eu também não sei muita coisa sobre esse negócio de DNA. — Idiota — eu disse, e dei-lhe as costas para ir buscar outro jarro de cerveja para quatro caras de Ruston, estudantes de colégio que tinham saído para uma grande farra noturna numa folga. Tudo que eu podia esperar era que Sid Matt fosse bom de conversa. Conversei com Jason mais uma vez antes que ele saísse do bar. — Você pode me ajudar? — ele perguntou, olhando-me com um rosto que tive dificuldade de reconhecer. Eu estava ao lado de sua mesa, e sua namorada daquela noite tinha ido ao banheiro das mulheres. Meu irmão nunca tinha pedido minha ajuda. — Como? — Você não pode ler as mentes dos homens que vêm aqui e descobrir se um deles foi o criminoso? — Isso não é tão fácil quanto parece, Jason — eu disse lentamente, refletindo e continuando. — Primeiro, o homem teria que estar pensando no crime que cometera ao sentar-se aqui, no exato momento em que eu estivesse lendo a sua mente. Segundo, os pensamentos que consigo ler nem sempre são claros. Em algumas pessoas, é como uma transmissão de rádio, posso ouvir com detalhes. Em outras, só consigo captar uma massa confusa de sensações, não articuladas; é como ouvir alguém falar durante o sono, entende? Você pode ouvir a pessoa falando, pode notar se ela está aborrecida ou feliz, mas não pode ouvir as palavras exatas. E, ainda noutras vezes, posso ouvir um pensamento, mas não posso chegar à sua fonte se o bar estiver cheio. Jason me fitava com olhos arregalados. Era a primeira vez que conversávamos abertamente sobre minha deficiência. — Como você consegue não ficar louca? — ele perguntou, balançando a cabeça de espanto. Eu estava para explicar como colocava minha guarda em ação, mas Liz Barrett retornou à mesa, com batom recém-passado e de cabelo arrumado. Vi Jason repor sua persona de sedutor de mulheres como quem voltasse a vestir uma capa pesada, e lamentei não ter conseguido conversar com ele quando estava sozinho. Naquela noite, quando a equipe estava preparada para ir embora, Arlene me perguntou se eu podia dar uma de babá para ela na noite seguinte. Seria um dia de folga para nós duas, e ela queria ir a Shreveport com Rene para ver um filme e sair para jantar. — Claro! —, eu disse. — Faz tempo que não tomo conta de seus filhos. De repente, o rosto de Arlene esfriou. Ela virou-se um pouco para meu lado, abriu a boca, pensou bem no que ia dizer, pensou novamente. — Bill... ah... vai estar na sua casa? — Sim, nós planejamos ver um filme. Eu ia passar na locadora, amanhã cedo. Mas pegarei alguma coisa do gosto das crianças. — Repentinamente, minha ficha caiu. — Alto lá. Você quer dizer que não quer deixar as crianças comigo se Bill estiver lá? — Eu senti meus olhos se apertarem até virarem um risco e minha voz descer a seu registro mais raivoso.
— Sookie — ela começou a falar desalentada — querida, eu gosto de você. Mas você não pode entender, você não é mãe. Eu não vou deixar meus filhos com um vampiro por perto. Eu não consigo. — Não importa que eu esteja lá, e que ame seus filhos, também? Não importa que nem em um milhão de anos Bill molestaria uma criança. — Joguei minha bolsa no ombro e dei passos decididos em direção à porta, deixando Arlene ficar lá, com uma aparência dilacerada. Por Deus, ela que ficasse com raiva, se quisesse! Fiquei um pouco mais calma à medida que avançava na estrada para casa, mas ainda estava irritada. Eu estava preocupada com Jason, zangada com Arlene, e quase permanentemente gelada com Sam, que, nesses dias, andava fingindo que eu era só uma mera conhecida Fiquei me debatendo entre ir para casa ou ir para a casa de Bill; concluí que devia ir à dele mais tarde. Bill se preocupava tanto comigo que apareceu em minha casa quinze minutos depois que eu deveria ter aparecido na dele. — Você não apareceu, não ligou — ele disse calmamente quando atendi à porta. — Estou em crise — eu disse. — Crise das bravas. Sensatamente, ele tomou distância. — Peço desculpas por lhe trazer preocupações — eu disse, daí a pouco. — Não farei isso novamente. — Afastei-me dele, na direção da cozinha. Ele me seguiu, ou ao menos suponho que tenha feito. Bill era tão sutil que você nunca sabia, até que notasse. Ele encostou-se ao batente da porta enquanto eu estava no meio da cozinha, pensando em por que eu tinha ido parar ali, sentindo uma onda crescente de raiva. Eu estava ficando fula da vida outra vez. Eu realmente queria jogar ou quebrar alguma coisa. Este não fora o jeito que eu fora criada, eu não era dada a ceder a impulsos destrutivos como esses. Eu me contive, fechando meus olhos com força, cerrando meus punhos. — Vou cavar um buraco — eu disse, e saí para a porta dos fundos.
Abri a porta do quartinho de ferramentas, peguei a pá, e fui andando a passos firmes para o fundo do quintal. Havia lá um trecho de terra onde nada nunca crescia, não sei por quê. Afundei a pá nele, empurrei-a com o pé, e retirei um naco de terra. Fui em frente. A pilha de sujeira crescia à medida que o buraco se aprofundava. — Eu tenho músculos excelentes no braço e nos ombros — eu disse, encostando-me na pá e arfando. Bill estava sentado numa cadeira do jardim, observando. Ele nada dizia. Voltei a cavar. Finalmente, tinha diante de mim um buraco bem grande. — Você ia enterrar alguma coisa aí? — Bill disse, quando notou que eu tinha terminado. — Não. — Olhei para a cavidade no chão. — Vou plantar uma árvore. — De que espécie? — Um carvalho — eu disse, erguendo a cabeça. — Onde você vai conseguir um? — No Centro de Jardinagem. Vou dar uma passada lá nesta semana. — Eles levam muito tempo para crescer. — Que diferença isso faria para você? — repliquei. Eu recoloquei a pá em pé e me encostei nela, subitamente exausta. Bill fez como se fosse me erguer. — Eu sou uma mulher adulta — rosnei. — Posso andar pela casa com meus próprios pés. — Eu fiz alguma coisa a você? — Bill perguntou. Havia pouca afeição em sua voz, e eu voltei a mim rapidamente. Minha auto-indulgência fora muito longe. — Peço desculpas — eu disse. — Outra vez. — O que é que irritou você tanto assim? Eu não podia lhe falar nada sobre a conversa que tivera com Arlene.
— Que é que você faz quando está furioso, Bill? — Eu quebro uma árvore — ele disse. — Às vezes bato em alguma pessoa. Cavar um buraco não parecia tão mau. Até que era bastante construtivo. Mas eu ainda estava elétrica — era mais um tumulto controlado que um gemido em alta freqüência. Eu ficava olhando ao redor incansavelmente, à procura de algo que eu pudesse afetar. Bill parecia perito em ler os sintomas. — Faça amor — ele sugeriu. — Faça amor comigo. — Não estou no espírito para isso. — Deixe-me tentar convencer você. A verdade foi que ele conseguiu. E a coisa ao menos esgotou a energia excedente da raiva, mas eu tinha ainda um resíduo de tristeza que o sexo não podia remediar. Arlene ferira meus sentimentos. Fiquei de olhos fitos no espaço enquanto Bill trançava meu cabelo, um passatempo que ele parecia achar tranqüilizante. De vez em quando eu me sentia um pouco a boneca de Bill. — Jason esteve no bar ontem à noite — eu disse. — O que ele queria? Bill era inteligente demais, às vezes, na leitura das pessoas. — Apelou ao meu poder de ler pensamentos. Queria que eu penetrasse na mente dos homens que vão ao bar para descobrir quem é o criminoso. — Tirando uma dúzia de furos, até que não é má idéia. — Você acha? — Seu irmão e eu seremos recompensados com menos suspeita se o criminoso for para a cadeia. E você ficará segura. — É verdade, mas eu não sei como fazer. Seria difícil, doloroso, e aborrecido atravessar aquela bagunça toda à caça de um pouquinho de informação, um lampejo de pensamento.
— Não tão mais doloroso que ser suspeito de assassinato. Você está apenas acostumada a manter seu dom reprimido. — Você pensa assim? — comecei a me virar para olhar para seu rosto, mas ele me manteve imóvel para que pudesse continuar a me trançar o cabelo. Eu nunca tinha visto a abstenção da leitura das mentes das pessoas como um ato egoísta, mas nesse caso eu supunha que poderia ser. Eu teria que violar muitas privacidades. — Um detetive — eu murmurei, tentando me ver sob um ângulo mais lisonjeiro que aquele de uma intrometida. — Sookie — Bill disse, e algo em sua voz fez com que eu prestasse bastante atenção. — Eric me pediu para levar você a Shreveport novamente. Levei um tempinho para lembrar-me de quem era Eric. — Oh, o vampiro viking grandalhão? — O vampiro muito antigo — Bill disse, com precisão. — Você quer dizer, ele pediu a você para me levar para lá? — Eu não havia gostado nada, nada, da maneira como a coisa soara. Eu estava sentada ao lado da cama, Bill atrás de mim, e agora eu me virará mesmo para olhar para seu rosto. Dessa vez ele não me conteve. Olhei fixo para Bill, vendo em seu rosto algo que nunca vira. — Você tem que fazer isso — eu disse, horrorizada. Eu não podia imaginar alguém dando uma ordem a Bill. — Mas, querido, eu não quero ver o Eric. Notei que isso não fazia a menor diferença. — O que ele é, o Chefão dos vampiros? — perguntei, furiosa e incrédula. — Ele fez alguma oferta que você não pôde recusar? — Ele é mais velho que eu. Para ser mais direto, ele também é muito mais forte. — Ninguém é mais forte que você — eu disse resolutamente. — Bem que eu gostaria que fosse assim. — Então, ele é o chefe da Região Dez dos Vampiros, ou algo assim? — Sim. Algo desse gênero.
Bill sempre ficara de boca fechada na questão de como os vampiros controlavam seus próprios negócios. Aquilo fora bom para mim, até agora. — O que ele quer? O que acontecerá se eu não for? Bill simplesmente pulou a primeira pergunta. — Ele mandará alguém — ou vários alguéns — para pegar você. — Outros vampiros. — Sim. — Os olhos de Bill estavam impenetráveis, brilhando em sua diferença, castanhos e intensos. Eu tentei refletir sobre aquilo. Não estava acostumada a obedecer a ordens dessa espécie. Não estava habituada a ficar sem alternativa alguma. Triturei meu crânio por vários minutos, avaliando a situação. — E aí, você seria obrigado a brigar com eles? — Claro que sim. Você é minha. Lá vinha aquele “minha” de novo. Parecia que ele afirmava isso enfaticamente demais. Eu senti vontade de me queixar, mas sabia que não adiantaria nada. — Acho que devo ir — tentando não parecer amarga. — É a velha e simples chantagem. — Sookie, vampiros não são como os seres humanos. Eric está usando os melhores meios para atingir seu fim, que é levar você a Shreveport. Ele não teve que formular isso com clareza; eu entendi rapidamente. — Bem, eu compreendo isso agora, mas ainda assim, acho odioso. Fico entre a cruz e a espada! Para que ele me quer, afinal? — Uma resposta óbvia pintou em minha cabeça, e eu olhei para Bill, horrorizada. — Oh, não, eu não vou fazer uma coisa dessas! — Ele não fará sexo ou morderá você, a não ser que me mate. — O rosto brilhante de Bill perdeu todos os seus vestígios de familiaridade e se tornou totalmente estranho. — E ele sabe disso — eu disse, tateando — então, deve haver alguma outra razão para me querer lá em Shreveport. — Sim — Bill concordou — mas eu não sei qual é.
— Bem, se não tem a ver com meus encantos físicos, ou com a qualidade rara do meu sangue, deve ter a ver com minha... certa peculiaridade. — Com seu dom. — Certo — eu disse, o sarcasmo respingando em minha voz. — Meu precioso dom. Toda a raiva que eu pensava haver tirado de meus ombros retornou sobre eles como um gorila de peso descomunal. E eu estava mortalmente assustada. Tentava imaginar como Bill estava se sentindo. Estava com medo até de perguntar isso. — Quando? — foi o que perguntei. — Amanhã à noite. — Acho que este é o lado ruim do namoro anticonvencional. — Olhei para o papel de parede que minha mãe escolhera havia dez anos, por trás de Bill. Prometi a mim mesma que, se conseguisse escapar da enrascada, colocaria lá um novo papel. — Eu amo você. — Sua voz era apenas um sussurro. A culpa não era de Bill. — Eu amo você, também — eu disse. Eu precisava parar de pedir, “Por favor, não deixe o vampiro mau me machucar, por favor, não deixe o vampiro me estuprar.” Se eu estava entre a cruz e a espada, Bill estava em situação duas vezes pior que a minha. Eu não podia nem ter uma idéia do autocontrole que ele estava tendo no momento. Ou será que ele era mesmo muito calmo? Será que um vampiro conseguia encarar a dor e essa forma de desamparo sem nenhuma tormenta interior? Procurei seu rosto, as familiares linhas claras e a lividez de suas feições, os escuros arcos das sobrancelhas e a linha altiva de seu nariz. Notei que os caninos de Bill estavam apenas ligeiramente estendidos, e que a raiva e o desejo ardente era o que os deixava salientes.
— Hoje à noite — ele disse. — Sookie... — Suas mãos começaram a me pressionar para que eu me deitasse ao lado dele. — O quê? — Hoje à noite, eu acho, você deverá beber do meu sangue. Eu fiz uma careta. — Argh! Você não vai precisar de toda a sua força para amanhã à noite? Eu não estou ferida. — Como você tem se sentido desde que bebeu de mim? Desde que pus meu sangue dentro de você? Eu fiquei pensando. — Bem — admiti. — Você ficou doente? — Não, mas eu quase nunca fico. — Você tem tido mais energia? — Quando você não a tira de mim! — eu disse acidamente, mas sentia meus lábios se curvando num ligeiro sorriso. — Você tem se sentido mais forte? — Eu, sim, acho que tenho. — Eu percebi isso pela primeira vez quando, com facilidade extraordinária, carregara uma nova cadeira, sozinha, na semana passada. — Tem sido mais fácil controlar a sua força? — Sim, eu notei isso. — Eu tinha atribuído a coisa ao relaxamento crescente. — Se você beber de mim hoje, amanhã à noite terá ainda mais recursos. — Mas você ficará mais fraco. — Se você não beber muito, eu me recuperarei durante o dia no meu sono. E eu terei que encontrar outra pessoa de quem beber amanhã à noite quando nós formos para lá. Meu rosto se encheu de mágoa. Desconfiar que ele andava fazendo isso e saber com certeza que fazia eram duas coisas bem diferentes, é claro.
— Sookie, faço isso por nós. Não faço sexo com nenhuma outra pessoa, eu juro. — Você realmente acha que isso tudo é necessário. — Talvez. É um reforço, ao menos. E precisamos de todo reforço possível. — Oh, tudo bem. Como faremos? — Eu tinha apenas a mais vaga lembrança da noite em que levara aquela surra, e era um consolo. Ele olhou para mim com um ar cômico. Tive a impressão de que estava se divertindo. — Você não fica excitada, Sookie? — Com a perspectiva de beber seu sangue? Desculpe, mas não é meu barato. Ele balançou sua cabeça, como se isso estivesse além de seu entendimento. — Eu esqueço — ele disse com simplicidade. — Eu esqueço como as pessoas são de outro jeito. Você prefere pescoço, pulso ou virilha? — Virilha não — disse bem depressa. — Eu não sei, Bill. Credo. Qualquer coisa. — Pescoço — ele disse. — Deite-se sobre mim, Sookie. — É como sexo. — É o jeito mais fácil. Então, pus-me de cavalinho sobre ele e delicadamente me abaixei. Era uma sensação muito peculiar. Era uma posição que usávamos para o amor e nada mais. — Morda, Sookie — ele sussurrou. — Não posso fazer isso! — protestei. — Morda, ou eu terei que usar uma faca. — Meus dentes não são pontudos como os seus. — São pontudos o bastante. — Vou machucar você. Ele riu surdamente. Senti seu peito chacoalhando sob mim.
— Maldição. Eu tomei fôlego, e, endurecendo, mordi seu pescoço. Fiz um bom trabalho porque não havia sentido em prolongar aquilo. Senti o sangue metálico em minha boca. Bill gemeu suavemente, e suas mãos roçaram minhas costas e continuaram a descer. Seus dedos chegaram lá. Soltei um grito sufocado de choque. — Beba — ele disse em balbucios, e eu suguei mais fundo. Ele gemeu, mais alto, mais profundo, e eu o senti se encostando em mim. Um pequeno arrepio de loucura me percorreu, e eu grudei-me nele como um crustáceo, e ele entrou em mim, começou a se mover, suas mãos agora prendendo os ossos de meus quadris. Bebi e tive visões, visões que tinham toda a escuridão como pano de fundo, visões de coisas brancas que se erguiam do chão e saíam em caça, a emoção da corrida pelas florestas, a presa que ia arfando lá na frente e a excitação que emanava de seu medo; perseguição, pernas que se aproximavam, que sentiam o zumbido do sangue a correr pelas veias do perseguido... Bill fez um barulho no fundo de seu peito e teve um espasmo dentro de mim. Ergui minha cabeça de seu pescoço, e uma onda de escuro deleite conduziu-me para o mar. Era um negócio bem exótico para uma simples garçonete com dons de telepatia do norte da Louisiana.
Comecei a me preparar quando o sol caía, no dia seguinte. Bill me dissera que ia se alimentar de alguma outra pessoa antes que nós saíssemos e, conquanto a idéia me irritasse, tinha que admitir que fazia sentido. Ele estava certo sobre como eu me sentiria depois de tomar meu pequeno suplemento informal de vitamina na noite passada, também. Eu me sentia formidável. Muito forte, muito alerta, com a inteligência ágil e, embora fosse estranho, me sentia também muito bonita. O que eu vestiria para minha pequena entrevista com o vampiro? Eu não queria parecer que estava tentando ser sexy, mas não queria me fazer de tola usando um saco de aniagem sem forma, tampouco. Jeans me pareceram a resposta ideal, como costumam ser. Calcei sandálias brancas e vesti uma camiseta azul-claro decotada. Não a usava desde que começara a namorar Bill porque ela revelava as marcas de seus dentes. Mas o fato de eu ser propriedade de Bill, supus, não poderia ser reforçado demais nesta noite. Lembrando-me do policial que examinara meu pescoço daquela vez, enfiei um lenço na bolsa. Pensei de novo e acrescentei um colar de prata. Escovei meu cabelo, que parecia pelo menos três tons mais claro, e deixeio cair em ondas nas minhas costas. Bem quando eu estava realmente brigando com a idéia de visualizar Bill com outra pessoa, ele bateu. Eu abri a porta e ficamos olhando um para o outro por um minuto. Seus lábios estavam mais coloridos que habitualmente, sinal de que tinha feito o que precisava. Mordi meus próprios lábios para não dizer nada. — Você mudou bastante — ele disse a princípio. — Você acha que outra pessoa seria capaz de notar? — Eu esperava que não. — Eu não sei. — Ele ergueu a mão, e fomos para o seu carro. Ele abriu a porta para mim, e eu rocei nele para entrar. Enrijeci.
— Que há de errado? — ele perguntou, daí a pouco. — Nada — eu disse, tentando manter minha voz inalterada, e senteime no banco de passageiros e olhei direto para a frente. Eu disse a mim mesma que poderia do mesmo modo ficar furiosa com a vaca que lhe fornecera o hambúrguer de que se alimentara. Mas de algum modo a comparação não servia. — Você está com um cheiro diferente — eu disse, depois que já estávamos na estrada havia alguns minutos. Tínhamos ficado em silêncio por certo tempo. — Agora você sabe o que vou sentir se Eric tocar você — ele me disse. — Mas eu me sentirei ainda pior porque Eric vai gostar de tocar você, e eu nem mesmo gostei muito de meu alimento de hoje. Supus que aquilo não era total e irrestritamente verdadeiro: eu sabia que sempre gostava de comer, ainda que não fosse minha comida favorita. Mas apreciei a consideração. Não conversamos muito. Estávamos os dois preocupados com o que viria. Bem depressa, estávamos estacionando no Fangtasia novamente, mas desta vez nos fundos. Enquanto Bill mantinha a porta do carro aberta, tive que lutar contra um impulso de grudar no banco do carro e me recusar a sair. Assim que me recuperei, lutei novamente contra o intenso desejo de me esconder atrás de Bill. Dei uma engolida seca, peguei em seu braço, e andamos até a porta como se estivéssemos indo a uma festa para a qual estivéssemos ansiosamente excitados. Bill olhou-me com aprovação. Lutei contra a vontade de lhe fazer uma careta. Ele bateu à porta de metal com as letras FANGTASIA inscritas. Estávamos numa viela de serviços e entregas que ficava por trás das lojas da pequena artéria comercial. Havia vários outros carros estacionados ali nos fundos, o conversível esportivo vermelho de Eric entre eles. Todos os veículos eram de alto luxo. Não se vê um vampiro num Ford Fiesta.
Bill bateu, três vezes rápido, duas vezes intercaladas. A Batida Secreta do Vampiro, imaginei. Talvez eu conseguisse aprender o Aperto de Mão Secreto. A bela vampira loura abriu a porta, a fêmea que tinha estado na mesa com Eric na vez em que eu lá estivera. Ela recuou, sem nada dizer, para que entrássemos. Se Bill fosse humano, teria protestado contra a maneira como eu apertava a sua mão. A fêmea se pôs à nossa frente mais depressa do que meus olhos puderam prever, e eu levei um susto. Bill não estava surpreso com nada, naturalmente. Ela nos conduziu por uma despensa parecida à do bar do Merlotte de um modo desconcertante e nos fez atravessar um pequeno corredor. Entramos pela porta à nossa direita. Eric estava no pequeno aposento, sua presença dominando-o por completo. Bill não se ajoelhou para beijar seu anel precisamente, mas que fez uma mesura profunda, isto ele fez. Havia um outro vampiro no quarto, o barman, Sombra Longa; estava em boa forma nesta noite, numa camisa de alças finas e com calças de halterofilista, tudo em verde-escuro. — Bill, Sookie — Eric nos saudou. — Bill, você e Sookie já conhecem o Sombra Longa. Sookie, você deve se lembrar de Pam. — Pam era a mulher loura. — E este é o Bruce. Bruce era um ser humano, o ser humano mais aterrorizado que eu já vira. Senti uma profunda simpatia por ele. De meia-idade e pançudo, tinha finos cabelos escuros que se encrespavam em ondas emplastadas na sua cabeça. Tinha papada e boca pequena. Trajava um belo terno, bege, com uma camisa branca e uma gravata marrom e azul-marinho. Suava abundantemente. Estava numa cadeira de espaldar reto do outro lado da escrivaninha de Eric. Naturalmente, Eric estava na cadeira do chefe. Pam e Sombra Longa se perfilavam atrás de Eric, junto à porta. Bill tomou seu lugar ao lado deles, mas, quando me mexi para segui-lo, Eric falou novamente.
— Sookie, escute o Bruce. Fiquei olhando fixo para Bruce por um segundo, esperando que ele falasse, até que entendi o que Eric queria dizer. — O que terei que saber exatamente? — perguntei, sabendo que minha voz estava esganiçada. — Alguém deu um desfalque de sessenta mil dólares aqui no bar — Eric explicou. Cara, esse alguém estava mesmo querendo morrer. — E em vez de matarmos ou torturarmos todos os nossos empregados humanos, pensamos que você poderia talvez escutar suas mentes e contar-nos quem foi o pilantra. Ele disse “matar e torturar” tão calmamente como eu diria, “Bud ou Old Milwaukee”. — E aí o que você vai fazer? — perguntei. Eric pareceu surpreso. — Quem quer que seja, terá que devolver nosso dinheiro — ele disse com simplicidade. — E depois? Seus grandes olhos azuis se apertaram ao me fitar. — Ué, se pudermos obter a prova do crime, levaremos o culpado à polícia — ele disse suavemente. Mentiroso feito ele só. — Faço um trato, Eric — eu disse, sem deixar de sorrir. Charminho não fazia efeito com Eric, e ele estava longe de me desejar. Ao menos naquele momento. Ele sorriu, indulgentemente. — Que trato seria esse, Sookie? — Se você levar o culpado à polícia realmente, farei isso outras vezes para você, sempre que desejar. Eric ergueu uma sobrancelha.
— Sim, eu provavelmente terei que fazê-lo, de algum modo. Mas não será melhor, se eu vier de boa vontade, que haja boa-fé entre nós? — Comecei a suar. Não podia acreditar que estivesse barganhando com um vampiro. Eric parecia realmente estar meditando sobre aquilo. E, de repente, captei seus pensamentos. Ele pensava que poderia fazer com que eu fizesse o que ele queria, em qualquer parte, em qualquer ocasião, pelo simples expediente de ameaçar Bill ou qualquer ser humano que eu amasse. Mas ele queria ficar na faixa da normalidade, ficar dentro da legalidade, na medida do possível, para manter suas relações com humanos acima de suspeita, ou ao menos tão acima de suspeita quanto os negócios entre vampiros e humanos pudessem ser. Não queria matar ninguém se não fosse forçado a isso. Foi como mergulhar subitamente numa cova de serpentes, frias e letais. Foi apenas um lampejo, uma fatia de sua mente ou algo assim, o que captei, mas deixou-me frente a uma realidade inteiramente nova. — Além disso — eu disse rapidamente, antes que ele pudesse notar que eu havia penetrado em sua mente — como você tem certeza de que o ladrão é um ser humano? Pam e Sombra Longa mexeram-se repentinamente, mas Eric inundava o aposento com sua presença, obrigando-os a ficarem quietos. — Esta é uma idéia interessante — ele disse. — Pam e Sombra Longa são meus sócios neste bar, e se nenhum dos seres humanos for culpado, acho que teremos que suspeitar deles. — É só uma idéia — eu disse docilmente, e Eric me olhou com os olhos azuis glaciais de um ser que mal e mal se lembrava de como a humanidade era. — Comece agora, por esse homem — ele mandou. Ajoelhei-me junto à cadeira de Bruce, tentando pensar em como deveria proceder. Eu nunca tentara formalizar uma coisa que até aí era bem casual. O toque ajudaria; o contato direto tornava a transmissão mais clara, por assim dizer. Peguei na mão de Bruce, achei que aquilo era pessoal demais (e também suarento demais) e arregacei a manga de seu casaco. Segurei o seu pulso. Olhei bem dentro de seus pequenos olhos. Eu não peguei o dinheiro, quem será que pegou?, que maluco é esse que nos botaria numa fria deste tamanho?, o que Lillian fará se eles me matarem? e Bobby e Heather? por que eu tinha que vir trabalhar no meio de vampiros?, é mera ganância, e estou pagando por ela, Deus, nunca mais trabalharei para essas coisas novamente, como pode essa mulher louca descobrir quem pegou esse maldito dinheiro? por que ela não me solta? o que ela é, será que também é um vampiro, ou alguma espécie de demônio? seus olhos são tão estranhos, eu devia ter descoberto mais depressa que estava faltando dinheiro e descoberto quem o tinha roubado antes de dizer alguma coisa ao Eric... — Você pegou o dinheiro? — eu soltei, embora eu tivesse certeza de já saber a resposta. — Não —, Bruce gemeu, o suor escorrendo pelo rosto, e seus pensamentos, sua reação à pergunta, confirmaram o que eu já tinha ouvido em sua mente. — Você sabe quem foi? — Bem que eu gostaria. Ergui-me, virei-me para Eric, balancei minha cabeça. — Esse cara não foi — eu disse. Pam escoltou o pobre Bruce em direção à saída, trazendo o suspeito seguinte. Minha vítima era uma garçonete, vestida num longo vestido negro com vários cortes à mostra, seu desalinhado cabelo louro-arruivado caindo, irregular, pelas costas. Naturalmente, trabalhar no Fangtasia seria um emprego ideal para uma vampirófila, e essa garota tinha as cicatrizes para provar que aproveitara bem suas regalias. Ela se sentia segura o bastante para sorrir para Eric, e era tola o bastante para sentar-se com alguma confiança, até mesmo cruzando as pernas como uma Sharon Stone, que ela sonhava ser. Ficou surpresa por ver um vampiro desconhecido no aposento, e não muito satisfeita com minha presença, embora Bill a fizesse lamber os beiços.
— Oi, docinho — ela disse a Eric, e eu concluí que ela não devia mesmo ter imaginação nenhuma. — Ginger, responda às perguntas que essa mulher lhe fará — Eric disse. Sua voz era como uma muralha de pedra, monótona e implacável. Ginger pareceu entender pela primeira vez que o momento exigia seriedade. Cruzou seus tornozelos dessa vez, ficou com as mãos no topo das coxas, e assumiu um ar severo. — Sim, mestre — ela disse, e eu achei que fosse vomitar. Ela estendeu sua mão imperativa em minha direção, como se dissesse, “Comece, reles servidora de vampiros”. Eu me abaixei para pegar o seu pulso, e ela rejeitou a minha mão. — Não me toque — disse, quase sibilando. Foi uma reação tão extremada que os vampiros ficaram sobressaltados, tensos, e eu pude senti-la estalando no ar do aposento. — Pam, mantenha Ginger imóvel — Eric ordenou, e Pam apareceu silenciosamente por trás da cadeira de Ginger, encostou-se e pôs as mãos no alto de seus braços. Dava para notar que Ginger reagiu com luta porque sua cabeça girou, mas Pam manteve-a presa de tal modo que o corpo da garota ficou absolutamente imóvel. Meus dedos apertaram seu pulso. — Você pegou o dinheiro? — perguntei, olhando em seus olhos castanhos inexpressivos. Ela gritou, então, longamente e bem alto. Começou a me xingar. Eu ouvia o caos que havia em seu pequeno cérebro. Era como tentar caminhar pelo meio de uma zona que tivesse sofrido um bombardeio. — Ela sabe quem foi — eu disse a Eric. Ginger ficou em silêncio, então, embora estivesse soluçando. — Ela não pode dizer o nome — eu disse ao vampiro louro. — Ele a mordeu. — Toquei as cicatrizes no pescoço de Ginger como se aquilo precisasse de mais ilustração. — É alguma forma de compulsão — relatei, depois que tentei novamente. — Ela nem consegue visualizá-lo.
— Hipnose — Pam ordenou. Sua proximidade à garota aterrorizada tinha feito seus caninos crescerem. — Um vampiro poderoso. — Tragam seu amigo mais íntimo — sugeri. Ginger tremia como uma folha, com pensamentos que ela tentava não formular pressionando-a do fundo de seu eu. — Ela deve ficar, ou ir? — Pam perguntou-me diretamente. — Ela deve ir. Isso vai apenas assustar outra pessoa. Eu estava tão absorvida por isso, tão desenvoltamente usando minha estranha habilidade, que nem olhara para Bill. Eu sentia que, se de algum modo olhasse para ele, isso me enfraqueceria. Eu sabia onde ele estava, sabia que ele e Sombra Longa não haviam se mexido desde que o interrogatório começara. Pam levou a trêmula Ginger para fora. Eu não sei o que ela fez com a garçonete, mas retornou com outra atendente que trajava o mesmo tipo de roupa. Belinda era o nome dessa segunda mulher, e ela era mais velha e mais sabida. Tinha cabelo castanho, usava óculos, e a boca carnuda mais sexy que eu já vira. — Belinda, que vampiro foi esse com quem Ginger andou saindo? — Eric perguntou amavelmente, assim que ela se sentou, e que eu a toquei. A garçonete tinha juízo o bastante para aceitar o interrogatório em silêncio, inteligência o bastante para perceber que tinha que ser honesta. — Qualquer um que quisesse sair com ela — Belinda disse rudemente. Eu vi uma imagem na mente de Belinda, mas ela tinha que pensar no nome. — Qual destes aqui? — perguntei repentinamente, e então obtive o nome. Meus olhos foram para a sua direção antes que eu pudesse abrir a boca, e então ele veio, Sombra Longa, montando na cadeira, empurrando Belinda sobre mim enquanto eu estava agachada diante dela. Eu fui empurrada para trás, para cima da escrivaninha de Eric, e só meus braços impelidos para o alto me salvaram de seus dentes se cravarem em minha garganta e dilacerá-la. Ele mordeu meu antebraço selvagemente, e eu gritei; ao menos tentei, mas tão pouco ar sobrara do impacto que foi mais como um ruído alarmado de sufoco. Fiquei consciente apenas da pesada figura em cima de mim e da dor em meu braço, e de meu próprio medo. Eu não ficara com medo de que os Ratos fossem me matar até que era tarde demais, mas eu entendi que, para impedir que o seu nome escapasse de meus lábios, Sombra Longa estava preparado para me matar imediatamente, e quando ouvi o barulho medonho e senti seu corpo pressionar o meu com mais força ainda, eu não tive nenhuma idéia do que aquilo significava. Eu conseguira ver seus olhos acima dos meus braços. Eram amplos, castanhos, lunáticos, gélidos. De repente, ficaram inexpressivos e pareceram quase se esvaziar. O sangue jorrava de sua boca, banhando meu braço. Chegou a entrar em minha boca, e eu tive náuseas. Seus dentes afrouxaram, e seu rosto voltou ao normal. Começou a enrugar. Seus olhos viraram poças gelatinosas. Punhados de seu grosso cabelo negro caíram em minhas mãos. Eu estava chocada de tal modo que não poderia fazer movimento algum. Mãos agarraram meus ombros e começaram a me tirar de debaixo do cadáver. Eu fiz força com meus pés para me desvencilhar daquilo mais depressa. Não havia um cheiro, mas lá estava a coisa viscosa, negra e rajada, e o absoluto horror e o nojo de observar Sombra Longa ir se desintegrando com incrível velocidade. Havia uma estaca enfiada em suas costas. Eric estava olhando, como todos nós estávamos, mas ele tinha um martelo na mão. Bill ficara atrás de mim, depois de me puxar de debaixo do corpo de Sombra Longa. Pam estava junto à porta, sua mão segurando fortemente o braço de Belinda. A garçonete parecia tão petrificada quanto eu. Até a substância viscosa começou a se dissolver em fumaça. Ficamos todos paralisados até que o último tufo se foi. O carpete ficou com uma espécie de marca chamuscada nele.
— Vocês terão que cobrir isso com outro tapete — eu disse, de modo completamente inesperado. Juro por Deus, eu não podia mais suportar aquele silêncio. — Sua boca está suja de sangue — Eric disse. Todos os vampiros estavam com os caninos em riste. Tinham ficado muito excitados. — Ele sangrou em mim. — Um pouco de sangue entrou em sua garganta? — É possível. O que isso quer dizer? — Isso deve ficar em observação — Pam disse. Sua voz estava sombria e rouca. Ela estava olhando Belinda de um modo que me deixaria muito nervosa, mas Belinda parecia estar achando lisonjeiro, incrivelmente. — Geralmente — Pam continuou, com os olhos grudados nos lábios carnudos de Belinda —, bebemos sangue dos humanos, não o contrário. Eric estava olhando para mim com interesse, o mesmo tipo de interesse que Pam demonstrava por Belinda. — Como as coisas lhe parecem agora, Sookie? — ele perguntou numa voz tão suave que você nunca pensaria que ele tinha acabado de executar um velho amigo. Como as coisas realmente me pareciam agora? Mais luminosas. Os sons estavam mais claros, e eu conseguia ouvir melhor. Eu queria me virar e olhar para Bill, mas estava com medo de tirar meus olhos de Eric. — Bem, acho que é hora de eu e Bill irmos embora — eu disse, como se qualquer outra coisa fosse possível. — Eu fiz isso por você, Eric, e agora temos que nos retirar. Nada de represálias com Ginger, Belinda e Bruce, certo? — Eu comecei a andar na direção da porta com uma segurança que estava longe de sentir. — Aposto que vocês precisam ver como vai o serviço no bar, não é? Quem está fazendo os drinques, hoje? — Temos um substituto — Eric disse, alheio, seus olhos nunca desgrudando de meu pescoço. — Você tem um cheiro diferente, Sookie — ele murmurou, dando um passo à frente.
— Bem, lembre-se, Eric, nós fizemos um trato — eu o adverti, meu sorriso aberto e tenso, minha voz estalando, animada. — Bill e eu estamos indo para casa agora, não estamos? — arrisquei uma olhadinha para trás, na direção de Bill. Meu coração parou. Seus olhos estavam arregalados, sem piscar, os lábios recuados num rosnado surdo para expor seus caninos estendidos. Suas pupilas estavam enormemente dilatadas. Ele olhava fixo para Eric. — Pam, saia do caminho — eu disse, calma, mas categoricamente. Assim que Pam se esqueceu de sua própria sede de sangue, avaliou a situação com uma só olhada. Ela abriu de repente a porta do escritório e impeliu Belinda para fora, ficando ao lado dela para conduzir-nos. — Chame Ginger — sugeri, e o sentido do que eu dizia penetrou no nevoeiro de seu desejo. — Ginger — ela chamou roucamente, e a garota loura irrompeu de uma porta lá no fundo do corredor. — Eric quer você — Pam disse a ela. O rosto de Ginger se iluminou como se ela estivesse para transar com David Duchovny, e ela entrou no aposento e começou a se esfregar em Eric quase tão rapidamente quanto um vampiro faria. Como se despertasse de um encantamento, Eric olhou para Ginger quando ela passou as mãos sobre seu peito. Quando se curvou para beijá-la, olhou para mim por cima da cabeça da garota. — Verei você novamente — ele disse, e eu empurrei Bill porta afora rápida como o vento. Bill não queria ir embora. Era como se eu estivesse tentando rebocar uma tora. Mas, assim que saímos pelo corredor, ele pareceu estar mais consciente da necessidade que tínhamos de sair de lá, e fugimos correndo do Fangtasia em direção ao carro dele. Olhei para mim mesma. Eu estava manchada de sangue, amarrotada e com um cheiro esquisito. Que nojo. Olhei para Bill para compartilhar meu nojo com ele, mas ele estava me olhando daquele jeito inequívoco.
— Não — eu disse, resistindo. — Dê partida neste carro e saia daqui antes que algo aconteça, Bill Compton. Posso lhe garantir, não estou afim disso agora. Ele se precipitou pelo banco em minha direção, seus braços me erguendo antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Então, sua boca juntou-se à minha, e, um segundo depois, sua língua começou a lamber o sangue que escorria por meu rosto. Eu estava realmente assustada. Também estava com muita raiva. Agarrei suas orelhas e empurrei sua cabeça para longe, usando cada grama de força que possuía, o que acabou por ser até mais do que eu imaginava. Seus olhos ainda eram como cavernas com fantasmas a reinar em suas profundezas. — Bill! — eu berrei. Sacudi-o. — Reaja contra isso! Lentamente, sua personalidade foi retornando a seus olhos. Ele soltou um suspiro estremecido. Beijou-me levemente nos lábios. — O.k., podemos ir pra casa agora? — perguntei, envergonhada por minha voz estar saindo tão tremida. — Claro — ele disse, soando não lá muito firmemente. — Foi como tubarões sentindo o cheiro de sangue? — perguntei, depois de um trajeto de quinze minutos de silêncio que nos levou quase para fora da cidade. — Boa analogia. Ele não precisava se desculpar. Tinha feito o que a natureza ditava, ao menos da maneira como a natureza ditava aos vampiros. Ele não se incomodava mas eu bem que gostaria de ter ouvido um pedido de desculpas. — Então, estou encrencada? — perguntei finalmente. Eram duas da madrugada, e achei que a pergunta não me incomodava tanto quanto supostamente deveria incomodar.
— Eric vai cobrar o trato — Bill disse. — Quanto a deixar você em paz, pessoalmente, não sei. Bem que eu gostaria... — mas sua voz falhou. Era a primeira vez que eu ouvia Bill manifestar desejo de alguma coisa. — Sessenta mil dólares não é um montão de dinheiro para um vampiro, certamente — observei. — Vocês todos parecem ser cheios da grana. — Os vampiros roubam suas vítimas, naturalmente — Bill disse displicentemente. — No começo, levamos o dinheiro que fica no cadáver. Mais tarde, quando ficamos mais experientes, podemos exercer controle o bastante para persuadir o ser humano que se envolve conosco a dar-nos o dinheiro voluntariamente, e depois esquecer o que fez. Alguns de nós contratamos administradores, alguns de nós temos muitos bens , outros vivem da renda de seus investimentos. Eric e Pam fizeram sociedade para abrir aquele bar. Eric investiu a maior parte do dinheiro, Pam o resto. Conheciam o Sombra Longa há uns cem anos, e o contrataram para ser barman. Ele os traiu. — Por que ele os roubou? — Ele devia ter algum negócio em mente, para o qual precisava de capital — Bill disse, alheio. — E ele estava vivendo na posição de uma pessoa normal. Não podia simplesmente sair e matar o gerente de um banco depois de hipnotizá-lo e convencer o homem a doar-lhe o seu dinheiro. Por isso, pegou o dinheiro de Eric. — Eric não teria emprestado a ele, se pedisse? — Se ele não fosse tão orgulhoso para pedir, acho que sim — Bill disse. Fizemos outro silêncio prolongado. Finalmente, eu disse: — Eu sempre achei que os vampiros eram mais espertos que os seres humanos, mas eles não são, hem? — Nem sempre — ele concordou.
Quando chegamos às cercanias de Bon Temps, pedi a Bill para me deixar em casa. Ele me olhou de esguelha, mas não disse nada. Talvez os vampiros fossem mais espertos que os seres humanos, afinal de contas.
No dia seguinte, quando eu estava me preparando para ir trabalhar, percebi que estava definitivamente rompida com os vampiros, por enquanto. Até com Bill. Estava a fim de lembrar a mim mesma que eu era um ser humano. O problema era que eu tinha que admitir que era um ser humano mudado. Não era nada tão fora do comum. Depois da primeira infusão do sangue de Bill na noite em que eu tinha levado uma surra dos Ratos, me sentira curada, saudável, mais forte. Mas não acentuadamente diferente. Talvez mais... vamos dizer, sexy. Depois de minha segunda bebida do sangue de Bill, me sentira realmente forte, e ficara mais corajosa porque sentira mais autoconfiança. Sentira-me mais segura em minha sexualidade e no poder dela. Parecia que eu estava controlando minha deficiência com mais desenvoltura e capacidade. Eu bebera o sangue de Sombra Longa acidentalmente. Na manhã seguinte, olhando-me no espelho, achei meus dentes mais brancos e mais pontudos. Meu cabelo parecia mais leve e mais vigoroso, e meus olhos estavam mais luminosos. Eu parecia uma dessas garotas dos cartazes de propaganda de boa higiene, ou de alguma campanha de saúde como essas que recomendam tomar vitaminas ou ingerir leite. A mordida selvagem no meu braço (a última mordida de Sombra Longa neste planeta, percebi) não estava completamente curada, mas estava rumando para isso. Então minha bolsa caiu quando eu a estava pegando, e meu dinheiro de troco foi parar debaixo do sofá. Segurei a ponta do sofá com uma das mãos enquanto, com a outra, recolhia as moedas. Alto lá. Enrijeci e tomei fôlego. Pelo menos o sol não parecia ferir meus olhos, e eu não queria morder todo mundo que via. Eu gostara de minha torrada no desjejum, sem desejar suco de tomate. Eu não estava virando um vampiro. Talvez eu fosse uma espécie de ser humano melhorado? A vida certamente tinha sido muito mais simples quando eu vivia sem namorado. Quando cheguei ao bar do Merlotte, tudo estava pronto, exceto as fatias de limão e lima. Servíamos as frutas com drinques e chá, e eu peguei a tábua de corte e uma faca afiada. Lafayette estava dando um laço em seu avental quando tirei os limões de uma geladeira grande. — Você clareou ainda mais seu cabelo, Sookie? Balancei a cabeça. Por debaixo do invólucro do avental branco, Lafayette era uma sinfonia de cores; estava usando uma camiseta de alças finas de cor fúcsia, jeans roxo-escuro, sandálias de tiras de couro vermelhas, e tinha uma espécie de sombra framboesa nas pálpebras. — Está parecendo mesmo muito mais claro — ele disse ceticamente, erguendo suas próprias sobrancelhas tratadas. — Eu tenho tomado muito sol — assegurei a ele. Dawn nunca tinha se dado com Lafayette, fosse por ele ser preto ou por ser gay, eu não sabia... talvez pelas duas razões. Arlene e Charlsie apenas aceitavam o cozinheiro, mas não davam um passo maior no sentido de serem amigas. Mas eu sempre gostara de Lafayette porque ele levava o que devia ser uma vida muito difícil com verve e graça. Olhei para a tábua de cortar. Todos os limões tinham sido partidos. Todas as limas tinham sido fatiadas. Minha mão estava segurando a faca, e ela estava umedecida pelos sumos. Eu tinha feito a coisa sem sequer notar. Em quase trinta segundos. Fechei os olhos. Meu Deus. Quando eu os abri, Lafayette estava me olhando dos olhos às mãos. — Diga que eu não vi uma coisa dessas, querida — ele sugeriu. — Você não viu — eu disse. Minha voz estava fria e uniforme, fiquei surpresa ao notar. — Desculpe-me, eu tenho que levar isso para lá. — Pus as frutas em vasilhames separados na grande geladeira que havia atrás do balcão no qual Sam guardava a cerveja. Quando fechei a porta, Sam estava lá, braços cruzados no peito. Não parecia feliz. — Você está bem? — ele perguntou. Seus claros olhos azuis me examinaram de alto a baixo. — Fez alguma coisa no cabelo? — ele disse, incerto. Eu dei uma risada. Percebi que minha guarda tinha voltado a seu lugar facilmente, que não tinha que ser um processo dolorido. — Andei tomando sol — eu disse. — O que aconteceu com seu braço? Olhei para meu antebraço direito. Eu tinha coberto a mordida com uma bandagem. — Um cachorro me mordeu. — Ele foi abatido? — Claro. Ergui meus olhos para Sam, não muito fixamente, e me pareceu que seu cabelo enrolado, cacheado e loiro-avermelhado estalava de energia. Parecia que eu podia ouvir seu coração bater. Eu conseguia sentir sua incerteza, seu desejo. Meu corpo respondia instantaneamente. Focalizei-me em seus lábios finos, e o aroma sugestivo de sua loção após-barba encheu meus pulmões. Ele se aproximou mais uns cinco centímetros. Eu sentia a sua respiração entrando e saindo do pulmão. Eu sabia que seu pênis estava ficando ereto. Então, Charlsie Tooten entrou pela porta da frente e bateu-a com força. Nós dois demos um passo de recuo. “Graças a Deus Charlsie apareceu”, pensei. Honesta, obtusa, de boa índole, e trabalhadora incansável, Charlsie era uma empregada ideal. Casada com Ralphie, o seu namorado desde os tempos de ginásio, tinha uma filha no terceiro ano do ensino médio e outra casada. Charlsie adorava trabalhar no bar porque assim podia sair de casa e conhecer pessoas, e tinha um jeito especial para lidar com bêbados que fazia com que eles dessem o fora sem briga ou discussão.
— Oi, vocês dois aí! — ela gritou animadamente. Seu cabelo castanho-escuro (L’Oreal, Lafayette disse) estava puxado para trás dramaticamente para cair do topo de sua cabeça numa cascata de cachos. Sua blusa era indefinida e os bolsos de seus shorts arreganhados de tão cheios de pacotes. Ela estava usando meias de um preto retinto e Keds, e suas unhas artificiais estavam pintadas com uma espécie de vermelho de vinho Borgonha. — Minha filha está grávida. Podem me chamar de Vovó! — ela disse, e notei que estava feliz como um passarinho. Dei o abraço apertado que ela esperava e Sam deu tapinhas em seus ombros. Estávamos os dois felizes por vê-la. — Para quando é o bebê? — perguntei, e Charlsie já havia saído correndo. Nos cinco minutos seguintes, não tive nada para dizer. Então Arlene entrou, com a maquiagem disfarçando mal as mordidas de amor em seu pescoço, e ouviu as mesmas explicações. Troquei um olhar com Sam e, um momento depois, olhamos para longe ao mesmo tempo. Depois, começamos a servir a turma que aparecia na hora do almoço, e o incidente se encerrou. A maioria das pessoas que ia ao bar não bebia muito na hora do almoço, só uma cerveja ou um copo de vinho, às vezes. Uma grande parte preferia apenas chá ou água. A turma do almoço consistia de pessoas que calhavam de estar perto do bar quando soava a hora da refeição, de pessoas que eram freqüentadoras e faziam isso naturalmente, e dos bêbados locais para os quais a bebida pela hora do almoço já era a terceira ou quarta. Quando comecei a anotar pedidos, lembrei-me do apelo de meu irmão. Fiz escutas de pensamentos ao longo do dia todo, e foi estafante. Eu nunca havia passado um dia inteiro em escuta; nunca havia deixado minha guarda em baixa por tão longo tempo. Talvez não tenha sido tão doloroso quanto eu achei; talvez eu me sentisse mais indiferente em relação ao que ouvia. O xerife Bud Dearborn estava sentado a uma mesa com o prefeito, o amigo de minha avó, Sterling Norris. O sr. Norris deu tapinhas no meu ombro, levantando-se para fazê-lo, e eu percebi que era a primeira vez que eu o via desde o funeral de Vovó. — Como vai a sua vida, Sookie? — ele perguntou, numa voz simpática. Ele parecia um pouco abatido. — Tudo bem, sr. Norris. E a sua? — Sou um velho, Sookie — ele disse com um sorriso incerto. Nem me deu tempo de protestar. — Esses crimes estão acabando comigo. Não tínhamos tido crime nenhum em Bon Temps desde que Darryl Mayhew atirou em Sue jvlayhew. E não houve mistério nenhum, nesse caso. — Isso foi há... quanto tempo? Seis anos atrás? — perguntei ao xerife, só para continuar ali. O sr. Norris se sentia muito triste ao me ver porque andava pensando que meu irmão seria preso pelo assassinato de Maudette Pickens, e supunha que isso significava que Jason possivelmente teria matado Vovó. Virei minha cabeça para esconder meus olhos. — Eu acho que sim. Vamos ver, eu lembro que nós estávamos vestidos para o recital da casa da Jean-Anne... então, isso foi há... sim, você está certa, Sookie, foi há seis anos. — O xerife fez um sinal de aprovação para mim. — Jason esteve aqui hoje? — ele perguntou casualmente, como se fosse uma mera reflexão posterior. — Não, não o vi — eu disse. O xerife me disse que queria chá gelado e um hambúrguer; e ele pensava, naquele momento, sobre o dia em que flagrara Jason com sua Jean-Anne, transando feito loucos na cama da picape. Oh, Deus. Ele estava pensando que Jean-Anne tinha tido a sorte de não ser estrangulada. E daí ele teve um pensamento claro que me atingiu em cheio: o xerife Dearborn pensou, “Essas garotas todas eram umas pobres coitadas, de qualquer modo.”
Eu lia seu pensamento no contexto certo porque o xerife era uma cabeça fácil de penetrar. Eu sentia as nuances da idéia. “Mão-de-obra desqualificada, sem estudos, transando com vampiros... gentalha, mesmo.” Mágoa e raiva não chegam nem perto de descrever o que eu senti ao ouvir essa qualificação. Fui de mesa em mesa automaticamente, apanhando drinques e sanduíches e recolhendo as sobras, trabalhando duro como sempre, com aquele sorriso medonho afivelado no meu rosto. Conversei com umas vinte pessoas que eu conhecia, a maioria das quais tinha pensamentos tão inocentes quanto o dia e longo. A maior parte dos fregueses estava pensando em trabalho, ou tarefas que tinham que desempenhar em casa, ou algum pequeno problema que era preciso resolver, como chamar um trabalhador especializado da Sears para consertar a lavadora de pratos, ou fazer uma boa faxina para a casa ficar limpinha para a visita de alguém no fim da semana. Arlene estava aliviada por seu período menstrual estar funcionando normalmente. Charlsie estava imersa nos róseos devaneios de seu salto para a imortalidade, o nascimento de seu neto. Ela estava rezando com fervor por uma gravidez tranqüila e um parto seguro para a sua filha. Lafayette estava pensando que trabalhar comigo estava virando uma coisa assustadora. O policial Kevin Pryor estava pensando o que sua parceira Kenya estaria fazendo no seu dia de folga. Quanto a ele, estava ajudando sua mãe a arrumar o quartinho de ferramentas e odiando a tarefa. Ouvi muitos comentários, ao mesmo tempo ruidosos e secretos, sobre meu cabelo e meu rosto e a bandagem em meu braço. Eu parecia mais desejável para mais homens, e para uma mulher. Alguns dos sujeitos que fizeram parte da expedição que fora à casa dos vampiros para queimála estavam pensando que eles não teriam vez comigo por causa de minha simpatia pelos vampiros, e se arrependiam de seu ato impulsivo. Gravei bem suas identidades em minha cabeça. Eu não ia me esquecer que tinham quase matado o meu Bill, muito embora nesse momento o resto da comunidade de vampiros estivesse em ponto muito baixo na minha lista de coisas favoritas. Andy Bellefleur e sua irmã, Portia, estavam almoçando juntos, uma coisa que faziam ao menos uma vez por semana. Portia era uma versão feminina de Andy: estatura média, compleição robusta, boca e queixo proeminentes. A semelhança entre ambos favorecia Andy, não ela. Ela era uma advogada muito competente, pelo que eu soubera. Eu podia ter sugerido o seu nome a Jason quando ele pensou em contratar um advogado, se ela não fosse mulher... e eu estava pensando mais na segurança dela do que na dele. Hoje, a advogada estava se sentindo profundamente deprimida porque era educada e ganhava muito bem, mas nunca tivera um namorado. Era a sua maior preocupação. Andy estava desgostoso por minha contínua ligação com Bill Compton, interessado em minha aparência refinada, e sentia curiosidade em saber como os vampiros fariam sexo. Também lamentava por ter que provavelmente prender Jason, mais cedo ou mais tarde. Pensava que a perseguição a Jason não era maior que outras exercidas a outros homens suspeitos, mas Jason era entre eles o que parecia mais assustado, o que significava que tinha algo a esconder. E havia os vídeos, que mostravam Jason fazendo sexo — não exatamente normal, mas variações previsíveis — com Maudette e Dawn. Olhava fixo para Andy enquanto revirava seus pensamentos, o que o deixou inquieto. Andy realmente sabia do que eu era capaz. — Sookie, você pode pegar aquela cerveja para a gente? — ele perguntou finalmente, fazendo no ar um grande sinal com a mão para atrair minha atenção com segurança. — Claro, Andy — eu disse, distraída, e tirei uma do refrigerador. — Você quer um pouco mais de chá, Portia?
— Não, obrigada, Sookie — Portia disse polidamente, dando batidinhas na boca com seu guardanapo de papel. Ela estava se lembrando do ginásio, quando teria vendido a alma para ter uma noite de namoro com Jason Stackhouse. Pensava no que Jason poderia estar fazendo agora, se havia em sua cabeça algum pensamento que a interessaria... talvez seu corpo fabuloso valesse o sacrifício do companheirismo intelectual? Então, Portia não tinha visto os vídeos, não sabia de sua existência; Andy estava sendo um bom policial. Tentei imaginar Portia com Jason, e não pude deixar de rir. Seria uma senhora experiência para aqueles dois. Eu desejava, e não era pela primeira vez, poder plantar idéias do mesmo modo como as colhia. Lá pelo fim do meu turno, eu havia conseguido... nada. Exceto que os vídeos que meu irmão tão insensatamente filmara incluíam um ligeiro sadomasoquismo, o que levara Andy a pensar na marcas de estrangulamento nos pescoços das vítimas. Assim, considerado em conjunto, deixar minha cabeça aberta para captar alguma coisa em favor de meu irmão fora um exercício inútil. Tudo que eu ouvira tendia a me deixar ainda mais preocupada e não acrescentava nenhuma informação adicional que pudesse ajudar em seu caso. Um bando de fregueses diferente viria à noite. Eu nunca fora ao bar do Merlotte apenas por diversão. Eu deveria vir também? O que Bill faria? Será que eu queria vê-lo? Eu me sentia sem amigos. Não havia ninguém com quem eu pudesse conversar sobre Bill, ninguém que não fosse ficar meio chocado por eu têlo em tão alta consideração. Como eu poderia dizer a Arlene que estava triste porque os vampiros confrades de Bill eram aterrorizantes e implacáveis, que um deles me mordera na noite passada, sangrara em minha boca, e morrera com uma estaca nas costas em cima de mim? Não era o tipo de problema com que Arlene seria capaz de lidar. Nenhuma pessoa seria.
Eu não conseguia me lembrar de uma namorada de vampiro que não fosse uma fanática tiete, uma vampirófila que sairia com qualquer chupador de sangue. Quando saí do serviço, minha realçada aparência física já não tinha o poder de me deixar confiante. Eu me sentia era uma excêntrica. Fiz uns trabalhos insignificantes em volta de casa, tirei uma soneca breve, reguei as flores de Vovó. Pela noitinha, comi alguma coisa que esquentei no microondas. Relutando até o último instante com a idéia de sair, finalmente vesti uma camisa vermelha e calças brancas, pus umas jóias de enfeite e voltei ao bar do Merlotte. Era muito estranho entrar nele como uma freguesa. Sam estava de volta ao balcão, e suas sobrancelhas se ergueram quando ele percebeu a minha entrada. Três garçonetes que eu conhecia de vista estavam trabalhando nessa noite, e um cozinheiro diferente estava grelhando os hambúrgueres, pelo que vi na portinhola de serviço. Jason estava no bar. Para meu espanto, o banco ao seu lado estava vazio e eu me acomodei nele. Ele se virou para mim com o rosto preparado para ver outra mulher: tinha a boca solta e sorridente, olhos claros bem arregalados. Quando notou que era eu, sua expressão passou por uma mudança cômica. — Que diabo você está fazendo aqui, Sookie? — ele perguntou, com a voz indignada. — Acho que você não ficou muito feliz por me ver — observei. Quando Sam parou em frente a mim, eu pedi a ele um uísque e coca, sem olhar para seus olhos. — Eu fiz o que você me pediu para fazer, e não deu em nada — sussurrei ao meu irmão. — Vim aqui esta noite para continuar tentando com outras pessoas. — Obrigado, Sookie — ele disse, depois de um longo silêncio. — Eu acho que não percebi direito o que eu estava pedindo. Ei, há algo diferente com seu cabelo? Ele até pagou meu drinque quando Sam o colocou diante de mim.
Não parecíamos ter muito o que conversar, o que na verdade era bom, já que eu estava lá para ouvir as mentes dos outros fregueses. Era um pequeno grupo de desconhecidos, e eu penetrei em suas mentes primeiro, para saber se eram possíveis suspeitos. Não pareciam ser, concluí, relutantemente. Um estava pensando firmemente em como sentia saudade de sua mulher, e o subtexto era que ele era muito fiel a ela. Outro pensava que aquela era a primeira noite que ia ao bar, e que os drinques eram bons. E um terceiro apenas se concentrava em sentar direitinho e esperava conseguir dirigir o carro de volta ao motel. Tomei outro drinque. Jason e eu ficamos trocando conjeturas sobre quais seriam os honorários do advogado quando o inventário de Vovó ficasse pronto. Ele deu uma olhada na porta e disse: — Uh-oh. — O quê? — perguntei, não me virando para ver aquilo para que ele estava olhando. — Mana, o seu namorado entrou. E não veio sozinho. Minha primeira idéia foi que Bill havia trazido um de seus confrades vampiros, o que teria sido irritante e insensato. Mas, quando me virei, percebi o porquê de Jason ter parecido tão fulo da vida. Bill estava acompanhado por uma garota humana. Ele segurava o braço dela, ela ficava se roçando nele como uma piranha, e os olhos dele estavam examinando os freqüentadores. Concluí que ele estava tentando ver qual seria a minha reação. Saí do banco e concluí outra coisa. Que estava bêbada. Eu raramente bebia, e dois uísques baratos e cocas consumidos em minutos tinham, se não me amolecido os joelhos, me deixado no mínimo tocada. Os olhos de Bill se fixaram nos meus. Ele não tinha, na verdade, contado em me encontrar ali. Eu não podia ler a sua mente como conseguira ler a de Eric por um momento apavorante, mas eu conseguia ler a sua expressão corporal. — Ei, Vampiro Bill! — Hoyt, o amigo de Jason, chamou. Bill acenou polidamente para ele, mas começou a conduzir a garota — pequenina, escura — em minha direção. Eu não tinha idéia do que fazer. — Mana, qual é o jogo? — Jason disse. Ele estava soltando fumaça. — Aquela garota é uma vampirófila de Monroe. Eu a conheci quando ela gostava de homens comuns. Eu ainda não sabia o que fazer. Minha mágoa era esmagadora, mas meu orgulho tentava contê-la. Eu tinha ainda que acrescentar uma pitada de culpa a esse ensopado emocional. Eu não tinha ficado onde Bill esperava me encontrar, e não tinha lhe deixado um recado. E mais ainda — por outro lado (meu quinto ou sexto) — eu tivera um monte de choques na noite anterior com meu showzinho autoritário lá em Shreveport; e fora apenas a minha ligação com ele que me obrigara a ir àquela zorra. Meus impulsos bélicos me seguraram. Eu queria me jogar sobre a garota e dar-lhe uma surra de deixar bicho, mas não era de meu feitio armar um barraco em botecos. (Eu também queria dar uma boa surra no Bill, mas seria o mesmo que bater minha cabeça na parede pelo pouco dano que isso causaria a ele.) Além disso, eu queria me desmanchar em lágrimas porque meus sentimentos estavam feridos; mas seria uma demonstração de fraqueza. A melhor opção era não demonstrar nada porque Jason já estava disposto a se lançar sobre Bill, e só faltava que eu esboçasse uma reação para que ele apertasse o gatilho. Conflito demais misturado com muita bebida. Enquanto eu enumerava todas essas opções, Bill se aproximou, tropeçando entre as mesas, com a mulher a reboque. Notei que o bar ficou mais silencioso. Em vez de observar, eu é que estava sendo observada.
Eu sentia meus olhos encherem-se de lágrimas enquanto minhas mãos se crispavam. Boa. As piores reações, em dupla. — Sookie — Bill disse — esta é a coisa que Eric colocou na minha porta. Eu mal conseguia entender o que ele estava dizendo. — E daí? — eu disse furiosamente. Olhei direto para os olhos da garota. Eram grandes, escuros e excitados. Mantive minhas pálpebras bem firmes, sabendo que, se eu piscasse, as lágrimas transbordariam. — Como um presente — Bill disse. Eu não conseguia entender o que ele estava sentindo. — Bebidinha gratuita? — eu disse, e não acreditei no quanto minha voz soou venenosa. Jason pôs a mão em meu ombro. — Reaja, garota — ele disse, sua voz tão baixa e malvada quanto a minha. — Ele não merece isso. Eu não sabia bem o que Bill não merecia, mas eu estava por descobrir. Era quase divertido não ter uma idéia do que eu estava para fazer, depois de uma vida inteira de autocontrole. Bill estava me contemplando com penetrante atenção. Sob as luzes fluorescentes do bar, ele parecia notavelmente branco. Ele não tinha se alimentado do sangue da garota. E seus caninos estavam em repouso. — Venha aqui fora e vamos conversar — ele disse. — Com ela? — Eu estava quase rosnando. — Não — ele disse. — Comigo. Eu tenho que mandá-la de volta. A contrariedade em sua voz me influenciou, e eu o segui até lá fora, mantendo a cabeça erguida e não olhando para ninguém. Ele evitou o braço da garota, e ela teve que praticamente se equilibrar nos pés para seguir em frente. Eu não notei que Jason nos seguia até que me virei para vê-lo atrás de mim quando ultrapassamos o estacionamento. Lá fora, gente ia e vinha, mas era um pouco melhor que o bar cheio.
— Oi — a garota disse, animada. — Meu nome é Desiree. Eu acho que já te conheço, Jason. — Que é que você está fazendo aqui, Desiree? — Jason perguntou baixinho. Dava quase para se acreditar que ele estava calmo. — Eric me mandou para Bon Temps de presente para Bill — ela disse timidamente, olhando de esguelha para Bill. — Mas ele não está exatamente empolgado. Não sei por quê. Eu sou de uma safra especial. — Eric? — Jason me perguntou. — Um vampiro de Shreveport. Dono de bar. Chefão dos chefões. — Ele a deixou lá na minha porta — Bill me disse. — Eu não a pedi. — Que é que você vai fazer? — Mandá-la de volta — ele disse impacientemente. — Você e eu temos que conversar. Engoli em seco. Senti meus dedos se enrijecerem. — Ela precisa ser levada de volta a Monroe? — Jason perguntou. Bill pareceu surpreso. — Sim. Você está se oferecendo? Eu preciso conversar com sua irmã. — Claro — Jason disse, todo cordial. Fiquei imediatamente desconfiada. — Não posso acreditar que você esteja me rejeitando — Desiree disse, olhando para Bill e fazendo beicinho. — Ninguém nunca me dispensou. — Claro que estou agradecido, e estou certo que você é, tal como disse, de uma safra especial — Bill disse polidamente. — Mas eu tenho minha própria adega. A pequena Desiree olhou-o perplexa por um segundo antes que a compreensão lentamente iluminasse seus olhos castanhos. — Essa mulher é sua? — ela perguntou, virando bruscamente a cabeça para meu lado. — É sim. Jason se mexeu nervosamente ao ouvir a afirmação categórica de Bill.
Desiree deu-me uma boa olhada de alto a baixo. — Ela tem olhos engraçados — declarou finalmente. — Ela é minha irmã — Jason disse. — Oh, sinto muito. Você é muito mais... normal. — Desiree deu uma olhada completa em Jason, e pareceu mais satisfeita com o que viu. — Ei, qual é seu sobrenome? Jason pegou em sua mão e começou a levá-la em direção à picape. — Stackhouse — ele disse, dando-lhe também um tratamento completo em matéria de olhada, enquanto se afastavam. — Talvez a caminho da sua casa, você possa me contar um pouco sobre o que faz... Virei-me para Bill, pensando em qual seria o motivo para esse ato generoso de Jason, e topei com aquele olhar. Era como trombar numa muralha. — Então, você quer conversar comigo? — perguntei asperamente. — Aqui não. Venha para casa comigo. Arranhei o cascalho com meu sapato. — Na sua casa não. — Então, vamos à sua. — Não. Ele ergueu suas sobrancelhas arqueadas. — Onde, então? Boa pergunta. — No laguinho dos meus pais. Já que Jason estava oferecendo à Senhorita Escura e Pequena um passeio de volta à casa, ele não estaria por lá. — Sigo você — ele disse laconicamente, e partimos cada um em seu respectivo carro. A propriedade onde passei meus primeiros anos de vida ficava a oeste de Bon Temps. Desci pela familiar entrada de cascalho e estacionei em frente à casa, um rancho modesto que Jason conservava em bom estado. Bill saiu de seu carro quando saí do meu, e fiz um sinal para que me seguisse. Contornamos a casa e descemos o monte, seguindo uma trilha pavimentada por grandes pedras. Num instante chegamos à beira do laguinho artificial que meu pai fizera em nosso quintal e povoara de peixes, prevendo que pescaria com seu filho naquelas águas pelos anos seguintes. Havia uma espécie de pátio dando para as águas, e numa das cadeiras de metal havia um cobertor dobrado. Sem me pedir, Bill pegou-o, sacudiuo e estendeu-o na grama no declive. Sentei-me nele, relutante, pensando que o cobertor não era seguro pela mesma razão que conversar com ele, fosse na casa dele ou na minha, não oferecia segurança. Porque, quando eu estava perto de Bill, tudo que conseguia pensar era em chegar ainda mais perto. Abracei meus joelhos e fiquei olhando a superfície das águas. Havia uma lâmpada do outro lado do laguinho, e eu via o seu reflexo no remanso. Bill estava deitado ao meu lado. Eu sentia seus olhos me olhando. Pôs as mãos atrás da nuca, guardando-as ostensivamente para si. — A noite de ontem apavorou você — ele disse, sem ênfase. — Você não ficou nem um pouquinho assustado também? — perguntei, com a voz mais baixa do que queria que soasse. — Por você. E por mim um pouco, também. Eu também queria me deitar, mas ficava preocupada com sua proximidade. Quando via sua pele brilhar sob os raios da lua, ansiava por tocá-lo. — O que me apavorou foi pensar que Eric pode controlar nossas vidas, como se fôssemos um casal à sua mercê. — Você quer continuar formando um par comigo? A dor no meu peito era tão intensa que eu pus a mão sobre ele, pressionando o ponto acima de meus seios. — Sookie? — ele se ajoelhou, envolvendo-me num braço. Eu não conseguia responder. Não tinha fôlego. — Você me ama? — ele perguntou. Fiz que sim.
— Por que fala em me abandonar? A dor chegou a meus olhos em forma de lágrimas. — Tenho medo demais dos outros vampiros e do modo como eles agem. O que o Eric vai me pedir para fazer, ainda? Ele tentará me obrigar a fazer alguma outra coisa. E me dirá que, se eu não a fizer, matará você. Ou ameaçará a vida de Jason. E ele pode muito bem fazer isso. A única coisa consoladora que ele podia me dizer, àquela altura, era que Eric estava morto. — Eric está intrigado com você. Ele nota que você tem poderes mentais que a maioria dos humanos não tem, ou ignora que os possui. Ele imagina que seu sangue é especial e doce. — A voz de Bill ficou rouca quando ele disse isso, e eu tremi. — E você é bonita. Você é até mais bonita agora. Ele não percebe que você ingeriu nosso sangue por três vezes. — Você sabe que Sombra Longa sangrou dentro de mim? — Sim. Eu vi. — Há alguma coisa de mágico no fato de ser três vezes? Ele riu, soltando aquele riso surdo, rouco, enferrujado. — Não. Mas, quanto mais você bebe sangue de vampiro, mais atraente você se torna para os de nossa espécie e, na verdade, mais desejável para todas as outras. E Desiree achava que ela era de safra especial! Fico pensando em qual vampiro disse isso a ela. — Um que queria tirar as calcinhas dela — eu disse categoricamente, e ele riu outra vez. Eu adorava ouvir aquela risada. — Com toda essa conversa de eu ser linda, você está tentando me dizer que Eric está com, digamos, tesão por mim? — Sim. — E o que é que poderá detê-lo na tentativa de me pegar? Você disse que ele é mais forte que você. — A cortesia e os costumes, primeiro que tudo. Eu não dei uma risada de desdém, mas foi quase.
— Não menospreze isso. Nós, vampiros todos, respeitamos os costumes. Temos que viver juntos séculos a fio. — Que mais? — Não sou tão forte quanto Eric, mas não sou um vampiro novato. Ele poderia ficar seriamente ferido lutando comigo, e eu poderia até vencêlo, num lance de sorte. — Há algum outro recurso? — Talvez — Bill disse cautelosamente — você mesma. — Como assim? — Se você puder ser útil para ele de outra maneira, ele poderá lhe deixar sozinha se notar que este é seu desejo sincero. — Mas eu não quero ser útil para ele! Eu não quero vê-lo nunca mais! — Você prometeu a ele que o ajudaria — Bill me refrescou a memória. — Se ele levasse o ladrão à polícia — eu disse. — E o que Eric fez? Cravou uma estaca nele! — Salvando a sua vida com isso, possivelmente. — Bem, eu descobri o ladrão, como ele queria! — Sookie, você não conhece muito este mundo. Eu olhei de olhos arregalados para ele, surpresa. — Suponho que sim. — As coisas não se resolvem... imparcialmente. — Os olhos de Bill se afundaram na escuridão. — Eu mesmo chego a achar que não sei muita coisa, às vezes. — Outro silêncio sombrio. — Um vampiro cravar estaca em outro, só vi isso uma vez. Eric está indo além dos limites de nosso mundo. — Então, é provável que ele não dê muita bola para os costumes e a cortesia de que você estava se orgulhando agorinha há pouco. — Pam pode mantê-lo fiel aos velhos métodos. — O que ela é para ele?
— Ele fez Pam. Quero dizer, ele transformou-a numa vampira, séculos atrás. Ela volta para ele de quando em quando e o ajuda no que quer que esteja fazendo. Eric sempre foi uma espécie de trapaceiro e, quanto mais velho fica, mais teimoso se torna. — Chamar Eric de teimoso parecia um enorme eufemismo para mim. — Então, estamos girando em círculos viciosos? Bill pareceu refletir. — Sim — ele confirmou, um quê de remorso em sua voz. — Você não quer se associar a nenhum vampiro além de mim, e eu lhe disse que não nos resta escolha. — E esse negócio com a Desiree, o que era? — Ele mandou que alguém a colocasse em minha porta, esperando que eu ficasse satisfeito por ter-me mandado um belo presente. E também, o presente testaria minha fidelidade a você se eu dele bebesse. Talvez ele tivesse envenenado o sangue dela com alguma coisa, e isso pudesse me enfraquecer. Talvez ela tivesse a finalidade de ser apenas uma rachadura em meu escudo. — Ele deu de ombros. — Você achou que eu estava com uma outra namorada? — Sim. — Senti meu rosto se enrijecer, lembrando-me de Bill chegando ao lado da garota. — Você não estava em casa. Eu tive que sair para procurar você. — Seu tom não era acusador, mas não era satisfeito, tampouco. — Eu estava tentando ajudar o Jason escutando mentes no bar. E estava ainda enfurecida pelo que acontecera na noite passada. — Estamos de bem agora? — Não, mas estamos mais ou menos — eu disse. — Acho que, se eu estivesse apaixonada por outro, a coisa não seria sem conflitos. Mas eu não tinha imaginado que, com você, enfrentaria obstáculos tão drásticos. Não há meio de você suplantar Eric, imagino, já que a idade seria o critério? — Não — disse Bill. — Não há meio de eu suplantá-lo... — e ele de repente ficou pensativo. — Embora exista algo que eu possa fazer no gênero. Eu não quero fazer, porque vai contra a minha natureza... mas nós ficaríamos mais seguros. Deixei-o ficar pensando. — Sim — ele concluiu, finalizando sua longa meditação. Ele não se ofereceu para dar explicações, nem eu perguntei nada. — Eu amo você — ele disse, como se isso fosse a base essencial para qualquer linha de ação que ele estivesse planejando. Seu rosto se ergueu à minha frente, luminoso e belo na penumbra. — Sinto o mesmo por você — eu disse, e pus as mãos sobre seu peito para que ele não ficasse tentando me seduzir. — Mas temos muita coisa contra nós no momento. Se pudermos tirar Eric de nossos calcanhares, já ajudará. E, outra coisa, temos que interromper nossa investigação sobre os assassinatos. Seria uma outra carga de problemas em nossas costas. Esse assassino tem que prestar contas das mortes de seus amigos, e das mortes de Maudette e Dawn. — Parei, tomei fôlego. — E da morte de minha avó também. — Tentei repelir as lágrimas. Eu me acostumara com a ausência de Vovó ao voltar para casa, e estava me acostumando a não falar nem dividir meu dia com ela, mas de vez em quando eu sentia um golpe sorrateiro de angústia tão agudo que ficava sem ar. — Por que você acha que o mesmo assassino é também o responsável pelo fogo ateado nos vampiros de Monroe? — Eu acho que foi o assassino quem plantou isso, essa atitude de vigilantes comunitários, nos homens que estavam no bar naquela noite. Eu acho que foi o assassino quem foi de grupo em grupo, atiçando os caras. Vivi aqui a vida inteira, e nunca vi o pessoal daqui agir daquela maneira. Deve haver uma razão para terem feito isso dessa vez. — Ele os agitou? Fomentou o incêndio? — Sim. — Sua escuta nada revelou?
— Não — admiti, sombriamente. — Mas não quer dizer que amanhã será assim. — Você é uma otimista, Sookie. — Sim, sou. Tenho que ser. — Afaguei seu rosto, pensando em como meu otimismo tinha sido justificado com a entrada dele em minha vida. — Continue escutando pensamentos, já que acha que isso pode dar resultados — ele disse. — Trabalharei em alguma outra coisa, por enquanto. Vejo você amanhã à noite na sua casa, certo? Eu posso... não, explicarei depois. — Tudo bem — eu estava curiosa pelo que ele faria, mas Bill não estava, obviamente, disposto a falar. De volta para casa, seguindo as luzes traseiras do carro de Bill pelo caminho todo, pensei em como teriam sido muito mais aterradoras as semanas que tinham se passado se eu não contasse com a segurança da presença de Bill. Ao cautelosamente dirigir pela estrada, peguei-me desejando que ele não sentisse vontade de ir para casa para fazer algumas ligações telefônicas necessárias. Nas poucas noites que passáramos longe um do outro, não digo que eu estivesse exatamente me retorcendo de medo, mas eu ficara muito sobressaltada e ansiosa. Sozinha em casa, passava muito tempo indo da janela trancada à porta fechada, e não estava acostumada a viver daquele jeito. Eu me sentia, hoje, desalentada ao pensar na noite que me esperava. Antes de descer do carro, examinei o quintal, feliz por ter me lembrado de acender as lâmpadas de segurança antes de sair para o trabalho no bar. Não havia um só movimento. Geralmente Tina vinha correndo quando eu voltava, ansiosa para entrar na casa e lamber alguma vasilha de comida para gato, mas nessa noite ela devia estar caçando na floresta. Separei a chave da casa do molho em meu aro de chaves. Saí da porta do carro direto para a porta da casa, enfiei e girei a chave em tempo recorde, e bati e tranquei bem a porta atrás de mim. “Isso não era vida”, pensei, balançando minha cabeça, desanimada; e eu mal acabava de completar a idéia quando alguma coisa atingiu a porta frontal com um golpe surdo. Gritei antes de poder me controlar. Corri para pegar o telefone sem fio perto do sofá. Disquei o número de Bill enquanto circulava pela casa, apagando todas as luzes. E se a linha estivesse ocupada? Ele dissera que estava indo para casa para usar o telefone! Mas eu consegui pegá-lo bem quando acabava de entrar em casa. Ele parecia estar sem fôlego, quando pegou no fone. — Sim? — ele disse. Sua voz sempre soava desconfiada. — Bill — eu disse com voz sufocada —, tem alguém aqui! Ele pôs o telefone no gancho com violência. Era um vampiro de ação. Veio em dois minutos. Olhando para o quintal de uma persiana ligeiramente erguida, eu o vi chegando pela floresta rumo ao quintal, movendo-se com uma velocidade e um silêncio que ser humano algum poderia igualar. O alívio que senti ao vê-lo foi esmagador. Por um segundo, senti-me envergonhada por chamá-lo para me salvar: eu deveria ter cuidado da situação sozinha. Mas, daí pensei, por quê? Quando você conhece um ser praticamente invencível que declara que a adora, alguém que é difícil, senão impossível, matar, alguém sobrenaturalmente poderoso, é a ele que você tem que recorrer. Bill investigou o quintal e as florestas, movendo-se com uma graça silenciosa, confiante. Finalmente, ele subiu levemente a escada. Abaixou-se diante de algo que havia na varanda frontal. O ângulo era muito fechado, e não pude ver o que era. Quando ele voltou a uma posição ereta, tinha algo nas mãos, e parecia absolutamente... desprovido de expressão. Isso era mau sinal. Dirigi-me, relutante, à porta da frente, e destranquei-a. Empurrei a porta de tela. Bill estava segurando o corpo da minha gata.
— Tina? — eu disse, ouvindo minha voz tremer e não me importando por isso. — Ela está morta? Bill concordou, com um ligeiro movimento da cabeça. — O quê, como? — Estrangulada, eu acho. Senti meu rosto se amarrotar. Bill teve que ficar ali, segurando o cadáver, enquanto eu chorava tudo o que tinha para chorar. — Eu nunca consegui aquele carvalho que queria — eu disse, depois de me acalmar um pouco. Minha voz não era lá muito firme. — Podemos enterrá-la naquele buraco que cavei. Portanto, marchamos para o fundo do quintal, o pobre Bill segurando Tina, tentando parecer à vontade nessa tarefa, e eu tentando não desfalecer novamente. Bill ajoelhou-se e colocou o pequeno feixe de pêlos negros no fundo da minha escavação. Peguei a pá e comecei a cobri-la, mas a visão do primeiro punhado de terra atingindo os pêlos de Tina me fez desmontar outra vez. Silenciosamente, Bill tirou a pá de minhas mãos. Eu dei as costas, e ele terminou a triste tarefa. — Venha pra dentro — ele disse amavelmente quando finalizamos. Entramos em casa, tendo que ir pela frente já que eu não tinha ainda destrancado a porta dos fundos. Bill me afagou e consolou, embora eu soubesse que ele não tinha lá muita afeição por Tina. — Deus o abençoe, Bill — murmurei. Abri meus braços para ele e abracei-o ferozmente, numa súbita convulsão, devido ao medo de que algo o arrebatasse de mim também. Quando os meus soluços diminuíram, olhei para ele, esperando não tê-lo deixado incomodado com meu dilúvio de emoções. Bill estava furioso. Ele olhava para a parede atrás de mim, e seus olhos brilhavam. Ele era a coisa mais aterrorizante que eu já vira em minha vida. — Você descobriu alguma coisa lá no quintal? — perguntei.
— Não. Eu só achei marcas vagas de uma presença masculina. Algumas pegadas, um cheiro prolongado. Nada que você pudesse levar como prova a um tribunal — ele continuou, lendo minha mente. — Você se importaria de ficar aqui até que tenha de ir... embora por causa do sol? — É claro que ficarei. — Ele olhou fixo para mim. Ele tinha clara intenção de fazer aquilo, concordasse eu ou não com a sua atitude, pelo que notei. — Se você ainda precisa fazer ligações, faça-as daqui de casa. Eu não me incomodo. — Eu queria dizer que não me incomodava com que caíssem na minha conta. — Eu tenho um cartão de chamada — ele disse, de novo me espantando. Quem podia imaginar? Lavei meu rosto e tomei um Tylenol antes de pôr minha camisola, mais triste do que andava desde quando Vovó fora assassinada, e mais triste de um modo diferente. A morte de um animal doméstico não está, naturalmente, na mesma categoria da morte de um membro de família, como disse a mim mesma, censurando-me pela tristeza, mas o raciocínio não foi capaz de atenuar minha aflição. Fiz todas as racionalizações de que fui capaz e não cheguei à conclusão alguma, exceto a de que eu havia alimentado, escovado e amado Tina por quatro anos, e agora sentiria muita falta dela.
Meus nervos estavam em carne viva no dia seguinte. Quando fui para o trabalho e contei a Arlene o que acontecera, ela me deu um abraço apertado e disse: — Gostaria de matar o filho-da-puta que fez isso com a pobre Tina! De algum modo, aquilo fez com que eu me sentisse bem melhor. Charlsie foi tão simpática quanto Arlene, mais preocupada com o meu choque que com a sofrida morte de minha gata. Sam ficou apenas carrancudo. Ele achou que eu deveria chamar o xerife, ou Andy Bellefleur, e contar a um deles o que acontecera. Eu finalmente chamei de fato o xerife. — Geralmente, essas coisas acontecem em ciclos — Bud resmungou. — Mas, ninguém ainda relatou o desaparecimento ou a morte de algum bicho de estimação. Temo dizer que me parece uma espécie de vingança pessoal, Sookie. Aquele seu amigo vampiro, ele gosta de gatos? Fechei meus olhos e tomei um fôlego profundo. Estava usando o telefone do escritório de Sam, e ele estava sentado à escrivaninha engendrando a sua próxima encomenda de bebida. — Bill estava em casa quando quem matou Tina, fosse quem fosse, jogou-a em minha varanda — disse tão calmamente quanto possível. — Eu o chamei de imediato, e ele respondeu ao telefone. — Sam olhou para mim intrigado, e eu ergui meus olhos para que ele soubesse minha opinião a respeito das suspeitas do xerife. — E ele lhe contou que a gata fora estrangulada — Bud continuou, num tom grave. — Sim. — Você viu a ligadura? — Não. Nem vi direito o que era. — Que é que você fez com a gata?
— Nós a enterramos. — Foi idéia sua ou do sr. Compton? — Minha. — O que mais poderíamos ter feito com Tina? — Podemos desenterrar a sua gata. Se tivermos a ligadura e a gata, veremos se o método de estrangulamento, nesse caso, combina com o método usado para matar Dawn e Maudette — Bud explicou lentamente. — Sinto muito. Não pensei nisso. — Bem, não importa muito. Sem a ligadura. — O.k., até logo — desliguei, provavelmente aplicando um pouco mais de pressão do que o fone requeria. As sobrancelhas de Sam se ergueram. — Bud é um imbecil — eu disse. — Bud não é um mau policial — Sam disse baixinho. — Nenhum de nós está habituado a assassinos doentios desse jeito. — Você está certo — admiti, um momento depois. — Eu não estou sendo justa. Ele só ficava dizendo “ligadura” como se estivesse orgulhoso por ter aprendido uma nova palavra. Sinto muito por ter ficado brava com ele. — Você não tem que ser perfeita, Sookie. — Você quer dizer que eu tenho que me poupar e ser menos compreensiva e complacente, de vez em quando? Obrigada, chefe. — Eu sorri para ele, sentindo a contorção em minha boca, e levantei-me da beira de sua mesa na qual me encostara para dar o telefonema. Eu me alonguei. Foi só quando vi que os olhos de Sam se deliciavam com aquele alongamento que me tornei consciente outra vez. — De volta ao trabalho! — disse animadamente e saí do aposento, tentando me certificar de que não havia nenhuma insinuação de rebolado em minha cintura. — Você ficaria com as crianças por umas duas horas nesta noite? — Arlene perguntou, um pouco timidamente. Lembrei-me da última vez que tínhamos conversado sobre tomar conta de seus filhos, e fiz com que ela lembrasse da ofensa que me fizera ao relutar em deixar as crianças com um vampiro. Eu não pensei do modo como uma mãe pensaria. Agora, ela tentava se desculpar. — Ficarei feliz com isso. — Esperei para ver se Arlene mencionaria Bill novamente, mas ela não o fez. — A que horas? — Bem, Rene e eu vamos ao cinema em Monroe — ela disse. — Que tal às seis e meia? — Claro. Eles já terão jantado? — Oh, sim, vou alimentá-los. Ficarão animados por ver a tia Sookie. — Aguardarei ansiosamente. — Obrigada — Arlene disse. Ela fez silêncio, quase disse alguma coisa mais, e daí pareceu refletir outra vez. — Vejo você às seis e meia. Cheguei em casa perto das cinco, tendo feito o trajeto de carro praticamente contra o sol, que estava claro a ponto de me ofuscar. Troquei-me, colocando uma roupinha de tricô azul e verde, escovei meu cabelo e prendi-o com um prendedor em formato de banana. Comi um sanduíche, pouco à vontade por estar sozinha à minha mesa da cozinha. A casa parecia enorme e deserta, e fiquei satisfeita ao ver Rene chegar de carro com Coby e Lisa. — Arlene está tendo problemas com uma de suas unhas artificiais — ele explicou, parecendo embaraçado por retransmitir esse problema tão feminino. — E Coby e Lisa estavam se enfeitando para vir te visitar. — Notei que Rene ainda estava com uniforme de trabalho: botas pesadas, faca, chapéu e o resto. Arlene não o deixaria levá-la a lugar nenhum antes que tomasse um banho e se trocasse. Coby tinha 8 e Lisa 5 anos, e eles se penduraram em mim como grandes brincos quando Rene se abaixou para se despedir deles com um beijo. O afeto que ele tinha pelas crianças fazia com que eu o tivesse na mais alta conta, e sorri para ele, aprovadora. Peguei as crianças pelas mãos para levá-las à cozinha e servir-lhes um pouco de sorvete. — Viremos lá pelas dez e meia, onze — ele disse. — Se for conveniente para você. — Ele pôs a mão na maçaneta.
— Claro — concordei. Eu quase abri a boca para dizer que as crianças podiam ficar a noite inteira, como já haviam ficado outras vezes, mas, então, pensei no corpo sem vida de Tina. Concluí que, naquela noite, seria melhor elas não ficarem. Eu fiz as crianças correrem até a cozinha, e daí a um minuto ou dois ouvi a picape de Rene trepidando estrada abaixo. Eu ergui Lisa. — Já não consigo mais te levantar, garota, você está ficando tão grande! E você, Coby, já está se barbeando? Ficamos à mesa por uns bons trinta minutos enquanto as crianças comiam o sorvete e contavam rapidamente a sua lista de façanhas desde a última visita. Então, Lisa quis ler para mim, e por isso eu apanhei um livro de colorir com as cores e números impressos, e ela os leu para mim com certo orgulho. Coby, naturalmente, tinha que provar que sabia ler muito melhor, e daí a pouco eles queriam ver um show na tevê. Antes que eu me desse conta, já escurecera. — Meu amigo virá esta noite — eu disse a eles. — O nome dele é Bill. — Mamãe nos contou que você tinha um amigo especial — Coby disse. — Melhor que eu goste dele. Melhor que ele se comporte direitinho com você. — Oh, ele me trata bem — assegurei ao menino, que tinha se aprumado e empinado o peito, pronto para me defender se meu amigo especial não fosse bom o bastante, em sua avaliação. — Ele manda flores para você? — Lisa perguntou, romanticamente. — Não, ainda não. Talvez você possa insinuar a ele que eu bem gostaria de receber algumas. — Ooh. Sim, eu posso. — Ele te pediu em casamento? — Bem, não. Mas eu também não o pedi. Naturalmente, Bill escolheu esse exato momento para bater à porta.
— Eu tenho companhia — disse, sorrindo, ao abri-la. — Estou ouvindo — ele disse. Peguei a sua mão e levei-o para a cozinha. — Bill, este é o Coby e esta mulherzinha aqui é a Lisa — eu disse formalmente. — Bom, eu andava querendo conhecer vocês — Bill disse, para a minha surpresa. — Lisa e Coby, está bem para vocês que eu faça companhia à sua tia Sookie? Olharam para ele pensativamente. — Ela não é nossa tia de verdade — Coby disse, apalpando o terreno. — Ela é uma boa amiga de nossa mãe. — É verdade? — Sim, e ela diz que você não manda flores para ela — Lisa disse. Pela primeira vez, sua voz era clara como cristal. Fiquei muito satisfeita por perceber que ela havia superado seu pequeno problema com os erres. De verdade. Bill me olhou de esguelha. Eu dei de ombros. — Bem, eles me perguntaram — eu disse, sem jeito. — Hmm — ele disse pensativamente. — Terei que tomar jeito, Lisa. Obrigado por me dizer isso. Quando será o aniversário da tia Sookie, você sabe? Senti meu rosto ficar ruborizado. — Bill — eu disse seriamente. — Deixa isso pra lá. — Você sabe, Coby? — Bill perguntou ao menino. Coby balançou a cabeça, parecendo lamentar. — Mas sei que é no verão porque na última vez que Mamãe levou Sookie para almoçar em Shreveport no seu aniversário, era verão. Ficamos com o Rene. — Você foi esperto ao lembrar-se disso, Coby — Bill disse ao menino.
— Sou mais esperto que isso! Adivinhe só o que eu aprendi na escola outro dia. — E Coby saiu correndo. Lisa olhou para Bill com grande atenção o tempo inteiro em que Coby falou com ele, e quando Coby terminou, ela disse: — Você é branco de verdade, Bill. — Sim — ele disse — esta é a cor normal da minha pele. As crianças trocaram olhares. Notei que eles estavam concluindo que “cor normal” era uma espécie de doença, e que seria boa educação não perguntar mais nada. De vez em quando as crianças mostram um certo tato. Bill, a princípio um pouco rígido, começou a ficar mais e mais flexível à medida que a noite passava. Eu estava pronta a admitir o meu cansaço por volta das nove, mas ele ainda brincava com energia com as crianças quando Arlene e Rene chegaram para apanhá-las às onze. Eu tinha acabado de apresentar Bill, que trocou com eles um aperto de mãos de modo absolutamente normal, quando outro visitante chegou. Um belo vampiro com espesso cabelo negro penteado num estilo esquisito veio saindo da floresta quando Arlene estava agasalhando as crianças no carro, e Rene e Bill batiam papo. Bill fez um aceno casual para ele e balançou a cabeça, e a boca de Rene se fechou quando ele ia fazer algum comentário sobre a visita. O recém-chegado era robusto, mais alto que Bill, e vestia jeans surrados e uma camiseta de “Eu visitei Graceland” . Suas botas pesadas estavam gastas. Ele carregava uma garrafa de sangue sintético numa das mãos e tomava um gole de vez em quando. Era o próprio sr. Boas Maneiras. Talvez eu estivesse sugestionada pela reação de Rene, mas, quanto mais olhava para o vampiro, mais familiar ele me parecia. Tentei
* Lugar de culto para os fãs de Elvis Presley. (N. do T.)
mentalmente esquentar o tom de sua pele, adicionar umas poucas linhas, fazendo-o ter uma postura mais aprumada e revestir seu rosto de mais vida. Oh, meu Deus. Era o homem de Memphis. Rene virou-se para ir embora, e Bill começou a conduzir o recémchegado para a minha direção. A uma certa distância, o vampiro exclamou: — Ei, Bill está me dizendo que alguém matou a sua gata! — Ele tinha um sotaque sulista pesado. Bill fechou seus olhos por um segundo, e eu apenas concordei sem fala. — Bem, lamento muito. Eu gosto de gatos — o vampiro alto disse, e eu captei claramente que o que ele queria dizer com isso não era que gostava de afagar os seus pêlos. Eu esperava que as crianças não estivessem entendendo aquilo, mas o rosto horrorizado de Arlene apontou na janela do carro. Toda a boa vontade que Bill despertara tinha provavelmente ido pelo ralo. Rene balançou a cabeça por trás do vampiro e subiu no banco do volante, dizendo um adeus enquanto dava partida no carro. Ele enfiou a sua cabeça pela janela para dar um longo último olhar para o recémchegado. Deve ter dito alguma coisa para Arlene porque ela apareceu na janela novamente, arregalando os olhos com força. Vi-a ficar boquiaberta com o choque conforme ia olhando mais atentamente para a criatura que estava ao lado de Bill. Sua cabeça se afundou no interior do carro, e eu ouvi um grito penetrante quando o carro se afastou. — Sookie — Bill disse num tom de advertência —, este é o Bubba. — Bubba — repeti, não confiando muito em meus ouvidos. — Sim, Bubba — o vampiro disse animadamente, a boa vontade se irradiando de seu sorriso apavorante. — Sou eu. Prazer em conhecê-la. Apertei as suas mãos, forçando um sorriso de retribuição. Deus Todo-Poderoso, nunca pensei que um dia apertaria as mãos dele. Mas, ele com certeza mudara para bem pior.
— Bubba, você se importaria de ficar esperando aqui na varanda? Deixe-me explicar o nosso plano para a Sookie. — Tudo certo para mim — Bubba disse displicentemente. Ele se sentou na cadeira de balanço, tão feliz e descerebrado quanto um passarinho. Fomos para a sala de estar, mas não sem eu antes notar que quando Bubba fizera a sua aparição, a maior parte dos ruídos da noite — insetos, rãs — simplesmente cessara. — Eu contava em explicar isso a você antes que Bubba chegasse — Bill sussurrou. — Mas, não deu tempo. Eu disse: — A coisa é quem eu penso que ela é? — Sim. Portanto, agora você sabe que uma parte das histórias de aparições é verdadeira. Mas, não o chame pelo seu verdadeiro nome. Chame-o de Bubba! Alguma coisa deu errado quando ele passou desta pra melhor — de humano para vampiro — talvez por causa de todas aquelas químicas no sangue dele. — Mas ele estava morto realmente, não estava? — Não... completamente. Um dos nossos era um funcionário do necrotério e um grande fã, e ele percebeu uma faísca de vida minúscula no corpo, e daí ressuscitou-o, de um modo um pouco precipitado. — Ressuscitou-o? — Tornou-o um vampiro — Bill explicou. — Mas foi um erro. Pelo que meus amigos me dizem, ele nunca mais foi o mesmo. É tão inteligente quanto um tronco de árvore e, por isso, para ganhar algum, ele faz trabalhos esquisitos para o resto da turma. Não podemos exibi-lo em público, como você pôde perceber. Concordei, minha boca ainda aberta. Claro que não. — Noosssa — balbuciei, atônita por ter Sua Majestade ali no meu quintal.
— Não deixe de lembrar o quanto ele pode ser estúpido, e impulsivo... não fique muito tempo sozinha com ele, e não o chame de nada além de Bubba. Verdade, ele gosta de animais domésticos, como disse a você, e uma dieta do sangue deles não o tornou mais confiável. Agora, vamos à razão pela qual eu o trouxe aqui... Eu fiquei de braços cruzados no peito, esperando pela explicação de Bill com algum interesse. — Querida, eu tenho de sair da cidade por um tempo — Bill disse. O imprevisto desta notícia me desconcertou completamente. — O quê... Por quê? Não, espere. Eu não preciso saber. — Fiz um sinal com as mãos, repelindo qualquer implicação de que Bill fosse obrigado a me prestar contas de seus negócios. — Eu lhe contarei quando voltar — ele disse firmemente. — Então, onde é que seu amigo, Bubba, entra na história? — Embora eu tivesse uma triste sensação de já saber a resposta. — Bubba vigiará você enquanto eu estiver ausente — Bill disse rigidamente. Ergui minhas sobrancelhas. — Tudo bem. Ele não é ligado em... — Bill olhou para os lados. — ...nada — ele finalmente admitiu. — Mas ele é forte, e fará o que eu lhe disser, e não deixará ninguém entrar em sua casa. — Ele ficará lá na floresta? — Oh, sim — Bill disse enfaticamente. — Ele não poderá nem vir para cá e conversar com você. No escuro, ele achará um lugar de onde poderá ver a casa, e vigiará a noite toda. Pensei que teria que me lembrar de fechar as persianas. A idéia do vampiro burro espiando minhas janelas não era estimulante. — Você acha que isto é necessário mesmo? — perguntei sem esperanças. — Você sabe, não me lembro de você ter perguntado se eu queria ou não. Bill meio que gemeu, sua versão para tomar fôlego.
— Querida — ele começou a falar numa voz paciente demais — estou tentando com dificuldade me acostumar aos modos como as mulheres querem ser tratadas hoje em dia. Mas não é natural para mim, especialmente quando eu temo que você esteja em perigo. Estou tentando me conceder um pouco de paz de espírito com essa ausência. Queria não precisar ir, e não é o que eu quero fazer, mas sim o que devo fazer, por nós. Olhei-o. — Eu compreendo você — eu disse, finalmente. — Não estou ficando louca por isso, mas tenho medo de ficar sozinha à noite, e eu acho que...bem, o.k. Francamente, eu achava que não fazia a menor diferença se eu consentisse ou não. Afinal, como eu poderia fazer Bubba sumir se ele não quisesse ir embora? Os integrantes da força policial de nossa pequena cidade não contavam com equipamento para lidar com vampiros, e se topassem com esse vampiro em particular, ficariam parados e embasbacados por tempo suficiente para que ele os fizesse em picadinhos. Eu apreciava o carinho que Bill tinha comigo, e pensei que seria melhor ter boa vontade e agradecê-lo. Dei-lhe um pequeno abraço. — Bem, se você tem que ir embora mesmo, tome cuidado enquanto estiver por aí — eu disse, tentando não parecer desamparada. — Você tem um lugar para ficar? — Sim. Eu ficarei em Nova Orleans. Havia um quarto vago no Sangue no Pedaço. Eu havia lido um artigo sobre esse hotel, o primeiro no mundo a atender vampiros com exclusividade. Prometia segurança completa, e até ali havia cumprido. Era bem no meio do Bairro Francês, também. E de noite ficava todo cercado por vampirófilos e turistas que esperavam pelo aparecimento dos vampiros. Comecei a me sentir enciumada. Tentando não parecer uma boneca tristonha que fica largada atrás da porta quando seus donos saem, coloquei meu sorriso no lugar.
— Bem, divirta-se — eu disse animadamente. — Fez as malas? A viagem deve levar algumas horas, e já está escuro. — O carro está pronto. — Eu entendi então que ele retardara a partida para passar algumas horas comigo e com os filhos de Arlene. — Melhor partir. Ele hesitou, pareceu procurar pelas palavras apropriadas. Então, estendeu-me as mãos. Peguei-as, e ele puxou as minhas, um pouco, exercendo uma certa pressão. Eu me aninhei em seu abraço. Esfreguei meu rosto contra a sua camisa. Meus braços o envolveram, puxando-o para mim. — Sentirei saudade — ele disse. Sua voz era apenas um vago sopro no ar, mas eu o ouvia. Senti-o beijar minha cabeça, depois ele se afastou de mim e cruzou a porta da frente. Ouvi a sua voz na varanda dando a Bubba algumas orientações de última hora, e ouvi o guincho da cadeira de balanço quando Bubba se levantou. Eu não olhei pela janela até que ouvi o carro de Bill descer a estrada. Então, vi Bubba entrando na floresta. Disse a mim mesma, enquanto tomava banho, que Bill devia confiar em Bubba, deixando-o como meu guarda-costas. Mas eu ainda não sabia de quem tinha mais medo: se do assassino de cujas intenções Bubba me protegia, ou se do próprio Bubba.
No trabalho no dia seguinte, Arlene me perguntou por que o vampiro tinha ido à minha casa. Não fiquei surpresa por ela tocar nesse assunto. — Bem, Bill tinha que sair da cidade, e ele se preocupa, você sabe... Eu esperava que a coisa acabasse aí. Mas Charlsie tinha aparecido (não estávamos muito ocupadas: a Câmara do Comércio estava oferecendo um almoço com palestra no Fins e Hooves, e o grupo Ladies’ Prayers and Potatoes estava oferecendo batatas cozidas no velho casarão da sra. Bellefleur).
— Você quer dizer — Charlsie disse com olhos arregalados — que seu homem arrumou um guarda-costas pessoal para você? Concordei, relutantemente. A coisa podia ser interpretada desse modo, afinal. — Isso é tão romântico — Charlsie suspirou. Também podia ser vista desse modo. — Mas você devia ver o tipo — Arlene disse a Charlsie, tendo segurado a sua língua o quanto pudera, até aí. — Ele é igualzinho ao...! — Oh, não, não quando você conversa com ele — interrompi. — Não é assim tão parecido. — Isso era verdade. — E ele não gosta de ouvir esse nome. — Oh — disse Arlene bem baixinho, como se Bubba em pessoa pudesse ouvi-la em plena luz do dia. — Eu me sinto mais segura com Bubba vigiando na floresta — eu disse, o que era mais ou menos verdade. — Oh, ele não fica dentro da casa? — Charlsie disse, claramente um tanto desapontada. — Deus me livre, não! — eu disse, e mentalmente pedi perdão a Deus por chamar seu santo nome em vão. Eu andava tendo que fazer muito isso, ultimamente. — Não, Bubba fica no mato à noite, vigiando a casa. — É verdade aquele negócio dos gatos? — Arlene parecia enojada. — Ele estava só brincando. Não tem muito senso de humor, né? — Eu estava falando da boca pra fora. Porque acreditava piamente que Bubba gostava bastante de uma refeiçãozinha de sangue de gato. Arlene balançou a cabeça, não convencida. Era hora de mudar de assunto. — Você e Rene se divertiram no passeio de ontem? — perguntei. — Rene, foi tão bom na noite passada, não foi ? — ela disse, corando. Uma mulher casada tantas vezes, ainda ficando ruborizada. — Quem tem que me contar é você.
Arlene gostava de um pouco de provocação obscena. — Oh, tome jeito! O que eu quero dizer, ele foi realmente amável com Bill e até com aquele Bubba. — Havia alguma razão para ele não ser? — Ele tem uma certa bronca de vampiros, Sookie. — Arlene balançou a cabeça. — Eu sei, e eu tenho também — ela confessou, quando eu olhei para ela com as sobrancelhas erguidas. — Mas Rene tem realmente algum preconceito. Cindy namorou um vampiro por uns tempos, e a coisa deixou-o fulo da vida. — Cindy está bem? — Eu tinha um grande interesse pela saúde de alguém que namorara um vampiro por certo tempo. — Eu não a vi mais — Arlene admitiu — mas Rene vai visitá-la sempre, semana sim, semana não. Ela está se virando bem, voltou a viver como se deve. Tem um emprego numa lanchonete de hospital. Sam, que havia ficado por trás do balcão enchendo a geladeira com sangue engarrafado, disse: — Talvez Cindy gostasse de voltar para cá. Lindsey Krause saiu do outro turno porque está se mudando para Little Rock. Isso chamou a nossa atenção, naturalmente. O bar estava ficando seriamente desprovido de pessoal. Por alguma razão, empregos em serviços de baixo nível tinham caído em popularidade nos últimos dois meses. — Você entrevistou alguma outra pessoa? — Arlene perguntou. — Eu tenho que consultar os arquivos — Sam disse, cansado. Eu sabia que eu e Arlene éramos as únicas atendentes, garçonetes, serviçais, seja lá que nome for, que Sam mantivera por mais de dois anos. Não, não era verdade; havia Susanne Mitchell, no outro turno. Sam passava muito tempo admitindo e ocasionalmente demitindo. — Sookie, quer dar uma olhada no arquivo para mim, ver se há alguém lá que você sabe que se mudou, alguém que já tem um emprego, alguém que você realmente possa recomendar? Isso me economizaria tempo.
— Claro — eu disse. Lembrei-me que Arlene fizera a mesma coisa havia dois anos quando Dawn fora contratada. Nós tínhamos mais laços com a comunidade que Sam, que nunca parecia ligar-se a nada. Ele estava em Bon Temps havia seis anos, a esta altura, e eu nunca conhecera ninguém que parecesse saber alguma coisa sobre a vida dele antes que comprasse aquele bar na cidade. Eu me acomodei na escrivaninha de Sam com o arquivo. Depois de alguns momentos, notei que estava conseguindo alguma coisa. Eu tinha três pilhas: mudado, empregado em outro lugar, bom material. Daí, acrescentei uma quarta e quinta pilha: uma destinada às pessoas com as quais eu não conseguiria trabalhar porque não as suportava, e outra às pessoas já falecidas. O primeiro formulário na quinta pilha tinha sido preenchido por uma garota que morrera num acidente de carro no Natal anterior, e senti compaixão de seus pais novamente quando vi seu nome no topo. O outro trazia no alto o nome “Maudette Pickens”. Maudette havia pedido emprego a Sam três meses antes de sua morte. Acho que trabalhar no Grabbit Kwik era bem desestimulante. Quando dei uma olhada nos espaços preenchidos e notei como eram precários a escrita e a instrução de Maudette, me senti cheia de pena dela outra vez. Pus-me a pensar se meu irmão achava que praticar sexo com essa mulher — e filmálo — poderia ser uma maneira digna de passar o tempo; e me espantei com a estranha mentalidade de Jason. Eu não o vira desde que levara Desiree a passeio na noite anterior. Esperei que ele retornasse intacto para casa. Aquela garota era um prato cheio para encrencas. Gostaria que ele se emendasse namorando Liz Barrett: ela tinha fibra o bastante para levantar a moral dele, também. Sempre que eu pensava sobre meu irmão ultimamente, era para me preocupar. Se ele não tivesse conhecido Maudette e Dawn tão bem! Montes de homens as conheciam, ao que parecia, tanto casual quanto carnalmente. As duas tinham sido mordidas por vampiros. Dawn gostava de sexo violento, e das taras de Maudette, eu nada sabia. Montes de homens abasteciam os carros e tomavam café no Grabbit Kwik, e montes de homens iam ao nosso bar para beber, também. Mas apenas o meu estúpido irmão havia gravado o sexo que fazia com Dawn e Maudette num filminho. Olhei fixo para a grande xícara de plástico sobre a escrivaninha de Sam, que estivera cheia de chá gelado. “O Grande Mata-Sede do Grabbit Kwik” estava escrito em néon alaranjado num lado do copo verde. Sam conhecera aquelas duas, também. Dawn tinha trabalhado para ele, Maudette havia se candidato a um emprego aqui. Sam naturalmente não gostava que eu namorasse um vampiro. Talvez ele não gostasse que ninguém namorasse um vampiro. Sam entrou bem nesse momento, e eu dei um pulo, como se estivesse fazendo alguma coisa errada. E eu estava, a meu modo. Pensar mal de um amigo era uma coisa errada. — Qual dessas pilhas é a melhor? — ele perguntou, mas olhou-me, intrigado. Eu passei a ele uma pequena pilha de mais ou menos dez currículos. — Esta garota, Amy Burley — eu disse, indicando o que estava no topo da pilha — tem experiência, ela está apenas como substituta no Bar Bons Tempos, e Charlsie já trabalhou com ela aqui. Então, você poderia conversar com Charlsie primeiro. — Obrigado, Sookie. Isso me poupará alguns aborrecimentos. Eu concordei laconicamente. — Você está bem? — ele perguntou. — Você parece um pouco distante, hoje. Olhei para ele mais detidamente. Tinha a aparência de sempre. Mas sua mente estava fechada para mim. Como ele conseguia fazer isso? A única outra mente completamente fechada para mim era a de Bill, por causa de sua condição de vampiro. Mas Sam com certeza não era um vampiro.
— Só estou sentindo falta de Bill — eu disse deliberadamente. Será que ele ia me dar um sermão sobre os malefícios de namorar um vampiro? Sam disse: — É dia. Ele não se sentiria muito bem por aqui. — Claro que não — eu disse rigidamente, e estava para acrescentar, “Ele saiu da cidade”. Então, perguntei a mim mesma se isso era uma coisa inteligente a fazer, já que eu trazia uma certa desconfiança de meu chefe no coração. Deixei o escritório tão repentinamente que Sam olhou para mim, atônito. Quando vi Arlene e Sam tendo uma longa conversa mais tarde, naquele dia, seus olhares de esguelha revelaram-me claramente que o assunto era eu. Ao ficar sozinha em outras noites, tinha a segurança de Bill estar longe de mim apenas à distância de uma ligação telefônica. Agora, ele não estava. Tentei me sentir bem com o fato de estar sendo protegida assim que escurecera e na certa Bubba saíra da cova onde dormia, mas não consegui. Liguei para Jason, mas ele não estava em casa. Liguei para o bar, pensando que ele poderia estar lá, mas Terry Bellefleur atendeu ao telefone e disse que ele não aparecera. Fiquei imaginando o que Jason poderia estar fazendo nesta noite. Pensava por que ele nunca parecia ter muitos compromissos. Não era por falta de ofertas, eu notara muitas vezes. Dawn, nesse aspecto, fora particularmente agressiva. Nessa noite eu não conseguia pensar em nada que me agradasse. Comecei a pensar se Bubba seria o matador — matador-vampiro? — que Bill convocara quando quisera tirar tio Bartlett do caminho. Pensava no porquê de Bill haver escolhido uma criatura tão estúpida para tomar conta de mim. Todo livro que eu pegava parecia não prestar, de algum modo. Todo programa de tevê que eu tentava ver parecia completamente ridículo. Tentei ler a minha Time e fiquei exasperada com a determinação em cometer suicídio que parecia ter se apossado de tantas nações. Joguei a revista no chão do quarto. Minha mente se debatia como um esquilo querendo escapar de uma jaula. Não conseguia descobrir nada ou ficar à vontade em parte alguma. Quando o telefone tocou, dei um pulo. — Alô? — eu disse estridentemente. — Jason está aqui agora — Terry Bellefleur disse. — Ele quer lhe pagar um drinque. Fiquei incomodada ao pensar em sair de carro, agora que estava escuro; ao pensar em voltar depois para uma casa vazia, ou uma casa que eu teria que ter esperanças de estar vazia. Depois, me repreendi por isso, já que, afinal, haveria alguém vigiando a casa, alguém que era muito forte, embora não tivesse cérebro algum. — O.k., vou para aí num minutinho — eu disse. Terry simplesmente bateu o fone. Sr. Tagarela. Vesti uma saia de algodão e uma camiseta amarela e, olhando para todos os lados, atravessei o quintal na direção do meu carro. Fui praticamente fugindo a todas as luzes, e destravei meu carro e pulei para dentro na rapidez de uma piscadela. Assim que estava dentro do carro, travei a porta. Decididamente, isso não era vida.
Estacionei automaticamente na área dos carros de empregados quando cheguei ao bar. Havia um cão escavando perto do Dumpster, e eu fiz um afago em sua cabeça quando entrei. Tínhamos que chamar a carrocinha cerca de uma vez por semana para pegar alguns cães extraviados ou abandonados, e havia tantas cadelas grávidas que o desgosto tomava conta de mim. Terry estava atrás do balcão. — Ei — eu disse, olhando ao redor. — Onde está o Jason?
— Ele não está aqui — Terry disse. — Não o vi na noite de hoje. Foi o que eu lhe disse no telefone. Eu fiquei boquiaberta. — Mas, você me ligou depois disso e disse que ele tinha vindo. — Não, não fiz isso não. Olhamos um para o outro. Terry estava numa de suas noites ruins, notei. As serpentes de sua estada no exército e sua batalha com o álcool e as drogas deviam estar se contorcendo por dentro dele. Por fora, você notava que ele estava vermelho e suava, a despeito do ar-condicionado, e seus movimentos eram abruptos e desajeitados. Pobre Terry. — Você não ligou mesmo? — perguntei, num tom tão neutro quanto possível. — Foi o que eu disse, não foi? — Sua voz ficara agressiva. Eu esperava que nenhum dos fregueses desse trabalho a Terry nessa noite. Respondi com um sorriso conciliador. O cachorro estava ainda na porta dos fundos. Ele ganiu quando me viu. — Tá com fome, amigo? — perguntei. Ele se jogou em mim, sem o servilismo que eu me acostumara a encontrar nos vira-latas. À medida que se aproximou da luz, vi que esse cachorro tinha sido abandonado recentemente, se seu pêlo lustroso servisse como indicador. Era um collie, na maior parte. Esbocei uns passos em direção à cozinha para perguntar a quem quer que estivesse cozinhando se havia lá alguns restos para esse cara, mas, então, tive uma idéia melhor. — Eu sei que o velho Bubba malvado está em casa, mas talvez você possa ir para lá comigo — eu disse na voz de bebê que uso com animais quando eu acho que ninguém está me ouvindo. — Você pode fazer xixi lá fora, para que a gente não faça bagunça em casa? Hmm, garotão? Como se me entendesse, o collie molhou um canto do Dumpster.
— Grande sujeito! Vamos dar um passeio? — Abri a porta do meu carro, esperando que ele não sujasse muito os bancos. O cão hesitou. — Venha, docinho, eu lhe darei algo bom de comer quando chegarmos em casa, o.k.? — Suborno não era necessariamente uma coisa ruim. Depois de me olhar por duas vezes e dar uma completa cheirada nas minhas mãos, o cachorro pulou no banco de passageiro e ficou olhando pelo pára-brisa como se houvesse se entregado seriamente à aventura proposta. Eu lhe disse que apreciava essa atitude, e fiz cócegas em seus ouvidos. Partimos, e o cachorro deixou claro que estava habituado a esse tipo de passeio. — Agora, quando a gente chegar em casa, companheiro — eu disse ao collie firmemente — vamos correr para a porta da frente, certo? Tem um ogro lá no mato que adoraria comer você. O cachorro fez um sinal de nervosismo. — Bem, ele não vai ter uma oportunidade para isso — eu o acalmei. Estava sendo positivamente bom ter alguém com quem conversar. Era também bom que ele não pudesse responder, ao menos no momento. E eu não tinha que manter minha guarda em riste porque ele não era humano. Relaxante. — Vamos nos apressar. Meu companheiro rosnou, concordando. — Tenho que batizar você — eu disse. — Que tal... Buffy? Rosnou novamente. — O.k.. Rover? Ele ganiu. — Não gosta de nenhum dos dois. Hmmm. Viramos para a entrada de casa. — Você já tem um nome? — perguntei. — Deixa eu examinar teu pescoço. — Depois que desliguei o carro, passei meus dedos por seu pêlo grosso. Não havia nem uma coleira antipulgas. — Alguém tem sido desleixado com você, docinho — eu disse. — Mas isso não vai continuar.
Eu serei uma boa mãezinha. — Com essa última inanidade, eu peguei minha chave e abri a porta. Num relâmpago, o cachorro passou por mim e pulou no quintal, olhando ao seu redor em estado de alerta. Ele cheirou o ar, e um rosnado saiu de sua garganta. — É só o bom vampiro, docinho, o que está tomando conta da casa. Venha pra dentro. — Com um pouco de agrado constante, consegui com que o cão entrasse em casa. Tranquei a porta atrás de nós imediatamente. O cachorro andou por toda a sala de estar, cheirando e investigando. Depois de observá-lo por um minuto para ter certeza de que ele não ia morder nada nem erguer uma perna, fui para a cozinha para achar algo que ele pudesse comer. Enchi uma grande vasilha com água. Peguei outra vasilha plástica na qual Vovó guardava alface, e pus nela os restos da ração de Tina e alguma sobra de carne de recheio de panqueca. Imaginei que, se ele estivesse com fome, aquilo seria aceitável. O cão finalmente virou-se para a cozinha e dirigiu-se às vasilhas. Ele cheirou a comida e ergueu sua cabeça para me dar uma longa olhada. — Sinto muito. Não tenho ração de cachorro nenhuma. Isso foi o melhor que pude arranjar. Se você quiser ficar comigo, eu te arranjo um pouco de Kibbles’N Bits. — O cachorro fixou os olhos em mim por mais uns segundos, e depois baixou a cabeça na direção da vasilha. Comeu um pouco de carne, bebeu a água, e olhou para mim, em expectativa. — Posso te chamar de Rex? Um pequeno rosnado. — Que tal Dean? — perguntei. — Dean é um nome bonito. — Um cara simpático que me ajudara numa livraria de Shreveport chamava-se Dean. Seus olhos pareciam um pouco com os desse collie, observadores e inteligentes. E Dean era um pouco diferente; eu nunca conhecera um cão chamado Dean. — Tenho certeza de que você é mais esperto que o Bubba — eu disse pensativamente, e o cachorro deu seu latido curto, agudo. — Bem, venha, Dean, vamos nos aprontar pra ir dormir — eu disse, gostando muito de ter alguém com quem conversar.
Ele foi me seguindo silenciosamente em direção ao quarto, eu tirei a saia e a camiseta, guardei-as, livrei-me de minha calcinha e soltei meu sutiã. O cachorro me observou com grande atenção quando eu peguei uma camisola limpa e fui tomar um banho. Quando eu saí, limpa e calma, estava sentado na soleira, sua cabeça erguida para mim. — Isso foi para ficar limpinha, as pessoas gostam de tomar banho — eu disse a ele. — Sei que os cachorros não. Acho que é coisa só de humanos mesmo. — Eu escovei os dentes e coloquei minha camisola. — Pronto para dormir, Dean? Em resposta, ele pulou sobre a cama, girou em círculo e deitou-se. — Ei! Espere um pouquinho! Positivamente, eu me comunicava muito bem com esse cara. Vovó teria tido um faniquito se soubesse que havia um cão em sua cama. Ela sempre acreditou que animais eram bons, contanto que passassem a noite do lado de fora da casa. Gente dentro, bicho fora, tinha sido a sua regra. Bem, agora eu tinha um vampiro lá fora e um collie em minha cama. Eu disse: — Desça já! — e apontei para o tapete. Lenta e relutantemente, ele desceu da cama. De esguelha, me deu umas olhadas de reprovação, ao deitar-se no tapete. — Fique aí, tá bom? — eu disse severamente e fui para a cama. Estava muito cansada, e agora nem tão nervosa, devido à presença do cão; embora não soubesse qual ajuda deveria esperar dele no caso da invasão de um intruso, já que ele não me conhecia bem o bastante para ser leal. Mas eu estava disposta a aceitar qualquer conforto que pudesse, e comecei a relaxar para dormir. Bem quando eu estava começando a me desligar, senti a cama se afundar ao peso do collie. Uma língua estreita deu uma encostada no meu rosto. Eu me virei e o afaguei. Era mesmo muito bom tê-lo junto a mim. Depois disso, a única coisa de que me lembro é que já era aurora. Eu ouvia os pássaros voando para a cidade lá fora, cantando bem alto, e era maravilhoso estar aninhada na cama. Eu sentia o calor do cão roçando em minha camisola; eu devia ter ficado com calor durante a noite e tirado os lençóis de cima de mim. Sonolenta, afaguei a cabeça do animal e comecei a cofiar seus pêlos, meus dedos passando preguiçosamente por eles. Ele fez um meneio e chegou mais perto, cheirou meu rosto, pôs seus braços em torno de mim. Seus braços? Saí da cama e me pus a gritar num movimento só. Na cama, Sam apoiou-se nos cotovelos, pelado em frente de mim, e olhou-me com certa diversão. — Oh, oh meu Deus! Sam, como foi que você entrou aqui? O que você está fazendo? Onde está o Dean? — Eu cobri meu rosto com as mãos e virei as costas para ele, mas eu positivamente tinha visto tudo o que havia para ver em Sam. Ele deu um rosnado, mas de garganta humana, e a verdade me atingiu em cheio. Eu girei para encará-lo, para lá de irritada. — Você me viu tirando a roupa ontem à noite, seu... seu... maldito cão! — Sookie — ele disse persuasivamente. — Ouça o que eu tenho pra dizer. Outro pensamento me tomou de choque. “Oh, Sam. Bill vai matar você.” Sentei-me numa cadeira ao canto da porta do banheiro. Pus meus cotovelos nos joelhos e baixei minha cabeça. — Oh, não. — Eu disse. — Não, não, não. Ele se ajoelhou diante de mim. O cabelo de um vermelho-ouro enrolado em sua cabeça era ainda mais abundante em seu peito e descia numa linha para... Fechei meus olhos de novo. — Sookie, eu fiquei preocupado quando Arlene me contou que você ia ficar sozinha — Sam balbuciou.
— Ela não lhe falou do Bubba? — Bubba? — Esse vampiro que o Bill deixou vigiando a casa. — Oh, sim, ela me disse que lembrava algum cantor. — Bem, seu nome é Bubba. Ele gosta de chupar sangue de animais por diversão. Tive a satisfação de ver (pelo meio de meus dedos) a cara de Sam empalidecer. — Bem, não foi uma sorte você me deixar entrar, então? — ele disse, finalmente. De repente lembrando-me de sua aparência na noite anterior, eu disse: — Que é você é, Sam? — Sou um mutante. Eu achei que estava na hora de você saber. — Você tinha que agir dessa maneira? — Na verdade — ele disse, envergonhado — eu tinha planejado acordar e sair antes que você abrisse seus olhos. Acontece que caí no sono. Ficar andando por aí de quatro cansa bastante. — Pensei que gente virava lobo. — Nada disso. Eu posso me transformar em qualquer coisa. Eu estava tão interessada que baixei minhas mãos e tentei apenas olhar para seu rosto. — Isso acontece sempre? — perguntei. — Você pode escolher quando? — Tem que ser na lua cheia — ele explicou. — Em outras ocasiões, é um exercício de vontade; é muito mais difícil e leva muito mais tempo. Eu me transformo em qualquer animal que tenha visto antes da transformação. Por isso, fico com um livro de cães aberto na página de um collie na mesa do café. Collies são grandes, mas não são ameaçadores. — Então, se quisesse, poderia ser um pássaro?
— Sim, mas voar é difícil. Fico sempre com medo de ser queimado num fio de alta tensão, ou de bater em alguma vidraça. — Por que fez isso? Por que você queria que eu soubesse? — Você parecia aceitar muito bem o fato de Bill ser um vampiro. Na verdade, até parecia gostar disso. Então, eu pensei que você poderia aceitar a minha... condição. — Mas o que você é — eu disse repentinamente, saindo por uma tangente — não pode ser explicado por um vírus! Quero dizer, você se transforma totalmente! Ele não disse nada. Apenas olhou para mim, os olhos agora azuis, mas observadores e inteligentes como antes. — Ser um mutante é definitivamente sobrenatural. Se esta coisa é, então outras coisas podem ser. Portanto... — eu disse lenta e cuidadosamente. — Bill não tem vírus nenhum. Ser um vampiro não pode ser explicado por uma alergia à prata ou ao alho e à luz do dia... é apenas um monte de besteira o que os vampiros estão espalhando por aí, propaganda, pode-se dizer... para que sejam mais bem aceitos, como se padecessem de uma terrível doença. Mas, na verdade, eles são... eles são realmente... Corri para o banheiro e vomitei. Por sorte, foi no vaso. — Sim — Sam disse da porta, com uma voz triste. — Sinto muito, Sookie. Mas Bill não é portador de um vírus. Ele é realmente um morto.
Lavei meu rosto e escovei meus dentes duas vezes. Sentei-me à beira da cama, sentindo-me cansada demais para ir além. Sam sentou-se ao meu lado. Ele pôs o braço em torno de mim, consolador, e depois de um momento eu me aninhei, pousando meu rosto em seu ombro. — Sabe, uma vez eu estava ouvindo a NPR — eu disse, completamente ao acaso. — Estavam transmitindo um programa sobre criogenia, sobre como um monte de gente está optando por congelar a cabeça porque é mais barato do que congelar o corpo inteiro. — Hummm? — Sabe qual canção foi tocada no encerramento? — Qual, Sookie? — Ponha Sua Cabeça em Meu Ombro... Sam fez um ruído de engasgo, e depois se dobrou de rir. — Ouça, Sam — eu disse, quando ele se acalmou. — Eu compreendo o que você está me contando, mas tenho que discutir isso com Bill. Eu amo Bill. Sou leal a ele. E ele não está aqui para dar seu veredicto. — Oh, isso não é para tentar tirar você dos braços de Bill. Embora, se isso acontecesse, seria muito bom. — E Sam deu seu raro e brilhante sorriso. Ele parecia muito mais à vontade comigo agora que revelara o seu segredo. — Então, pra que isso? — Pra manter você viva até que o assassino seja capturado. — Então é por isso que você despertou pelado em minha cama? Para me proteger? Ele ficou envergonhado de um modo gracioso. — Bem, eu devia ter planejado melhor. Mas, realmente pensei que você precisava de alguém ao seu lado, desde o momento em que Arlene me disse que Bill estava fora da cidade. Eu sabia que você não me deixaria passar a noite aqui na forma humana. — Você ficará tranqüilo agora que sabe que Bubba está vigiando a casa à noite? — Vampiros são fortes, e ferozes — Sam admitiu. — Eu suponho que esse Bubba deva alguma coisa a Bill, ou não estaria fazendo-lhe um
* Rock-balada,de Paul Anka, cujo titulo original é Put Your Head on My Shoulder. (N.do T.)
favor. Vampiros não são muito chegados a fazer favores uns para os outros. Eles têm um monte de hierarquias no seu mundo. Eu deveria ter prestado mais atenção ao que Sam estava dizendo, mas achava melhor não procurar explicar as origens de Bubba. — Se existe você, e existe Bill, eu suponho que deva existir um monte de outras coisas sobrenaturais — eu disse, percebendo que tesouros desconhecidos de pensamento estavam à minha espera. Desde que eu conhecera Bill, eu não sentira muita necessidade de armazenar dados para futura reflexão, mas não havia mal algum em ir-me preparando. — Você vai me contar tudo isso algum dia. — Pé Grande? O Monstro do Lago Ness? Eu sempre acreditara no Monstro do Lago Ness. — Bem, acho que é melhor eu voltar para casa — Sam disse. Ele me olhou com expectativa. Ainda estava nu. — Sim, acho melhor você ir. Mas — oh, maldição — você... oh, inferno. — Subi correndo para procurar algumas roupas. Parecia-me que Jason tinha lá, no quarto de cima, coisas que guardava no armário para alguma emergência. Com efeito, havia um par de jeans e uma camisa de trabalho no quarto. Já estava quente lá em cima, sob o telhado de zinco, porque o segundo andar tinha um termostato à parte. Desci, aliviada por sentir o ar fresco condicionado. — Aqui está — eu disse, estendendo as roupas a Sam. — Espero que sirvam bem. — Ele parecia querer recomeçar a nossa conversa, mas agora eu estava consciente demais de que estava vestida só com uma fina camisola de náilon e ele com nada. — Ponha essas roupas — eu disse firmemente. — E vá se vestir lá na sala de estar. Enxotei-o e fechei a porta em sua cara. Mas achei que seria ofensivo trancar a porta, e não a tranquei. Vesti-me em tempo recorde, com roupa de baixo limpa e a saia de algodão e camiseta amarela que usara na noite anterior. Fiz uma rápida maquiagem, pus uns brincos, e arrumei meu cabelo num rabo-de-cavalo, pondo um prendedor amarelo sobre a fita de elástico. Meu ânimo renasceu quando olhei no espelho. Meu sorriso logo murchou quando ouvi um carro estacionar na frente da casa. Saí do quarto como uma bala disparada de um canhão, esperando com desespero que Sam estivesse vestido e se escondesse. Ele fizera uma coisa melhor. Voltara a se transformar num cão. As roupas estavam espalhadas no chão, e eu as recolhi e enfiei-as no armário do corredor. — Grande cara! — eu disse entusiasmada e fiz cócegas atrás das orelhas do bicho. Dean respondeu roçando seu focinho preto frio em minha saia. — Agora, nada de gracinhas — eu disse, e olhei pela janela da frente. — É Andy Bellefleur — eu disse ao cachorro. Andy desceu de seu Dodge Ram, espreguiçou por uns bons segundos, e rumou para a porta da frente. Eu a abri, com Dean ao meu lado. Olhei intrigada para Andy. — Parece que você esteve em pé a noite toda, Andy. Posso lhe fazer um pouco de café? O cachorro se mexeu, inquieto, ao meu lado. — Seria excelente — ele disse. — Posso entrar? — Claro — fiquei de lado, Dean rosnou. — Você tem um bom cão de guarda, aí. Aqui, parceiro. Venha aqui. — Andy agachou para estender a mão para o cão, que eu simplesmente não conseguia imaginar que fosse o Sam. Dean cheirou a mão de Andy, mas não a lambeu. Em vez disso, se colocou entre Andy e eu. — Venha para a cozinha — eu disse, e Andy se levantou e me seguiu. Aprontei o café num instante e pus um pouco de pão na torradeira. Juntar o creme e o açúcar, as colheres e as canecas levou um pouquinho mais de tempo, mas depois eu tive que encarar o motivo de Andy estar na minha casa. Seu rosto estava abatido; ele parecia dez anos mais velho do que realmente era. Aquilo não era uma visita de cortesia. — Sookie, você estava aqui na noite passada? Você não trabalhou?
— Não, não trabalhei. Fiquei aqui, exceto por uma pequena saída que dei até o bar. — Bill apareceu por aqui? — Não, ele está em Nova Orleans. Está hospedado naquele hotel que fica no Bairro Francês, que é exclusivamente para vampiros. — Tem certeza de que ele está lá? — Sim. — Senti meu rosto se enrijecer. A notícia ruim estava chegando. — Fiquei em pé a noite toda — Andy disse. — Sim. — Acabo de chegar de mais uma cena de crime. — Sim. — Entrei em sua mente. — Amy Burley? — Olhei fixo para seus olhos, tentando me assegurar do que eu captava. — Amy, que trabalhava no bar Bons Tempos? Era o nome no topo da pilha de garçonetes em perspectiva, o nome que eu sugerira para Sam. Baixei meus olhos para o cachorro. Ele estava deitado no chão com o focinho entre as patas, parecendo tão triste e aturdido quanto eu. Gemeu pateticamente. Os olhos castanhos de Andy estavam perfurando meu rosto. — Como você soube? — Deixe de besteira, Andy, você sabe que eu leio pensamentos. Eu me sinto péssima. Pobre Amy. O crime foi igual aos outros? — Sim — ele disse. — Sim, foi como os outros. Mas as marcas de perfuração eram mais recentes. Pensei na noite em que Bill e eu tivemos que ir para Shreveport para atender à intimação de Eric. Teria Amy fornecido sangue a Bill na ocasião? Eu nem conseguia calcular a quantos dias aquilo havia acontecido, de tal modo minha agenda andava bagunçada por todos os estranhos e terríveis eventos transcorridos nas últimas semanas.
Sentei-me pesadamente numa cadeira de madeira da cozinha, balançando minha cabeça abstratamente por alguns minutos, espantada com o rumo que minha vida tomara. Já a vida de Amy Burley não tinha mais rumos a tomar. Expulsei o estranho encantamento causado pela apatia para longe, ergui e despejei o café. — Bill não está aqui desde a noite retrasada — eu disse. — E você ficou aqui a noite toda? — Sim, fiquei. Meu cachorro está aí pra não me deixar mentir — e eu sorri para Dean, que ganiu ao ser mencionado. Ele veio em minha direção para roçar sua cabeça felpuda nos meus joelhos enquanto eu tomava meu café. Alisei suas orelhas. — Você tem notícias de seu irmão? — Não, mas recebi um estranho telefonema, de alguém que disse que ele estava no bar do Merlotte. Depois que as palavras saíram de minha boca, dei-me conta de que quem ligara devia ter sido Sam, atraindo-me para o bar para que pudesse com isso acompanhar-me até em casa. Dean deu um grande bocejo de estalar o queixo que permitiu que víssemos cada um de seus brancos dentes pontiagudos. Bem que eu queria ter ficado com a boca fechada. Mas agora tinha que explicar tudo para Andy, que estava tombado, só semidesperto, na cadeira da minha cozinha, sua camisa xadrez amarrotada e suja de manchas de café, suas calças caqui sem forma de tanto uso. Andy ansiava por uma cama tal como um cavalo anseia por sua própria cocheira. — Você precisa descansar um pouco — eu disse amavelmente. Havia qualquer coisa triste em Andy Bellefleur, algo como um desalento. — São esses crimes — ele disse, sua voz debilitada pela exaustão. — Essas pobres mulheres. E elas eram tão parecidas em tantos aspectos.
— Sem instrução, mulheres de funções serviçais nos botecos? Dessas que nem se incomodam com ter um namorado vampiro de vez em quando? Ele fez que sim, seus olhos fechando sem querer. — Mulheres iguaizinhas a mim, em outras palavras. Seus olhos se abriram então. Ele estava horrorizado com a gafe. — Sookie... — Eu compreendo, Andy — eu disse. — Em alguns aspectos, somos todas parecidas, e se você concordar que a violência contra a minha avó era destinada na verdade a mim, bem, eu acho que, até aqui, sou a única sobrevivente desses crimes. Eu imaginava quem o assassino ainda tinha para matar. Seria eu a única mulher viva que se ajustava a seu padrão? Esse foi o pensamento mais assustador que tive naquele dia todo. Andy estava praticamente despencando sobre a sua xícara de café. — Por que você não vai se deitar no outro quarto? — sugeri baixinho. Você tem que dormir um pouco. Eu acho que você não está em condições de dirigir. — É muita bondade sua — Andy disse, a voz arrastada. Ele parecia um pouco surpreso, como se gentileza não fosse uma coisa que esperasse de mim. — Mas eu tenho que ir para casa, ligue meu despertador. Posso dormir só por umas três horas. — Prometo que despertarei você — eu disse. Eu não queria Andy dormindo em minha casa, mas não queria que ele tivesse um colapso a caminho da sua, tampouco. A velha sra. Bellefleur nunca me perdoaria, e Portia também não. — Venha deitar-se neste quarto. — Levei-o para meu antigo quarto. Minha cama de solteiro estava bem arrumada. — Deite-se na cama, e eu ligo o despertador. — Foi o que fiz, enquanto ele observava. — Agora, durma um pouco. Eu tenho um recado para dar, e voltarei imediatamente. — Andy não ofereceu mais resistência, mas sentou-se pesadamente na cama assim que eu fechei a porta.
O cachorro tinha me seguido silenciosamente enquanto eu orientava Andy, e então eu disse a ele, num tom completamente diferente: — Vá se vestir, imediatamente! A cabeça de Andy apontou à porta do quarto. — Sookie, com quem você está conversando? — Com o cachorro — respondi no ato. — Ele sempre quer sua coleira, e eu a ponho todo dia. — Por que você a tirou? — Fica tinindo a noite toda, não me deixa dormir. Vá dormir você, agora. — Tudo bem. — Parecendo satisfeito com minha explicação, Andy fechou a porta novamente. Eu retirei as roupas de Jason do armário, coloquei-as no sofá em frente ao cão, e sentei-me de costas viradas. Mas eu percebi que podia observar o que quisesse no espelho que havia acima do console. O ar ficou nebuloso em volta do collie, pareceu zumbir e vibrar com energia, e então a forma começou a mudar dentro daquela concentração elétrica. Quando a nebulosidade clareou, lá estava Sam ajoelhado no chão, nu em pêlo. Uau, que nádegas. Eu tive que me obrigar a fechar os olhos, dizer a mim mesma repetidamente que não estava sendo infiel a Bill. A bunda de Bill, disse a mim mesma com firmeza, era tão bonita quanto aquela. — Estou pronto — a voz de Sam disse, tão próxima a mim que dei um pulo. Eu me ergui rapidamente e me virei para fitá-lo, e encontrei seu rosto quase grudado no meu. — Sookie — ele disse, esperançosamente, sua mão pousando em meu ombro, alisando-o e acariciando-o. Fiquei irritada porque metade de mim desejava corresponder a ele. — Ouça aqui, parceiro, você poderia ter-se confessado nesses últimos anos. Nós nos conhecemos há quanto tempo mesmo, quatro anos? Ou até mais! E, ainda assim, Sam, a despeito de eu me encontrar com você quase diariamente, você esperou até que Bill se interessasse por mim, antes que você... — e incapaz de pensar em como terminar a frase, joguei minhas mãos para o alto. Sam recuou, o que foi uma boa medida. — Eu não vi o que estava diante de mim até o momento em que notei que poderia perdê-lo — ele disse, em voz baixa. Eu não tinha resposta para isso. — Hora de ir pra casa — eu disse a ele. — E é melhor a gente chegar lá sem que ninguém o veja. É sério. Isso já era bastante arriscado sem que alguma pessoa maliciosa como Rene visse Sam em meu carro de manhã cedinho e tirasse conclusões equivocadas. E as passasse para Bill. Portanto, saímos, Sam curvado no banco de trás. Eu estacionei cautelosamente atrás do bar. Havia um carro lá; preto, com chamas rosadas e água-marinha nas laterais. Era o de Jason. — Uh-oh — eu disse. — O quê? — a voz de Sam estava um pouco amortecida por sua posição. — Deixe-me ver o que é — eu disse, começando a ficar ansiosa. Por que Jason estacionaria ali, na área de estacionamento dos empregados? E me pareceu que havia um vulto no carro. Abri minha porta. Esperei que o som alertasse a figura que estava no carro de Jason. Olhei à procura de algum indício de movimento. Já que nada acontecia, comecei a caminhar pelo cascalho, mais atemorizada do que jamais estivera à luz do dia. Quando me aproximei da janela, vi que a figura lá dentro era o próprio Jason. Ele estava tombado ao volante. Vi que sua camisa estava manchada, que seu queixo estava pousado em seu peito, que suas mãos estavam jogadas pelos lados do banco, que a marca no seu belo rosto era um arranhão vermelho. Vi uma fita de vídeo no painel de controle do carro, sem rótulo.
— Sam — eu disse, odiando o medo que havia em minha voz. — Por favor, venha aqui. Mais rápido do que eu pudesse crer, Sam estava ao meu lado, e depois passou à minha frente para abrir a porta do carro. Já que este parecia ter ficado ali por várias horas — havia orvalho em seu capo — com as janelas fechadas, no princípio do verão, o cheiro que dele emanava era bem forte e se compunha de pelo menos três elementos: sangue, sexo e bebida. — Chame a ambulância! — eu disse com urgência enquanto Sam entrava para pegar no pulso de Jason e senti-lo. Ele olhou para mim, com ar de dúvida. — Você tem certeza de que quer fazer isso? — ele perguntou. — Claro que sim! Ele está inconsciente. — Espere, Sookie. Reflita um pouco. E eu poderia ter reconsiderado a questão num minuto, mas naquele momento Arlene chegou em seu surrado Ford azul, e Sam suspirou e foi para seu trailer fazer uma ligação. Eu era muito ingênua. Nisso é que dá ser uma cidadã respeitadora da lei por toda uma vida. Eu levei Jason ao pequeno hospital local, indiferente à polícia olhando cuidadosamente para o seu carro, cega para o esquadrão que seguia a ambulância, totalmente confiante quando o doutor do quarto de emergência mandou-me para casa, dizendo que me ligaria quando Jason recobrasse a consciência. O doutor me disse, olhando-me com curiosidade, que Jason estava aparentemente adormecido sob o efeito de álcool ou drogas. Mas ele nunca bebera tanto assim, nem usava drogas: a queda de nossa prima Hadley no mundo da sarjeta havia deixado uma impressão profunda em nós dois. Disse tudo isso ao médico, e ele me ouviu, dispensando-me depois. Não sabendo o que pensar, fui para casa para descobrir que Andy Bellefleur tinha sido despertado por seu pager. Ele me deixou um bilhete dizendo isso, e nada mais. Mais tarde, descobri que ele estivera no hospital ao mesmo tempo que eu, e esperou até que eu saísse, em consideração a mim, para algemar Jason à cama.
Sam veio me dar as notícias perto das onze horas. — Vão prender Jason assim que ele voltar a si, Sookie, o que não vai demorar. — Sam não me contou como soube disso, nem eu perguntei. Olhei fixo para ele, lágrimas rolando por meu rosto. Num outro dia, eu podia pensar em como fico sem graça quando choro, mas hoje não era um dia em que eu ligasse para as minhas exterioridades. Eu estava num emaranhado só, aterrorizada por Jason, triste por Amy Burley, cheia de raiva pela polícia estar cometendo um erro tão estúpido e, por baixo de tudo, saudosa do meu Bill. — Eles acham que Amy Burley armou uma briga. Acham que ele ficou bêbado depois que a matou. — Obrigado, Sam, por me avisar. — Minha voz vinha de muito, muito longe. — Melhor você ir trabalhar, agora. Depois que Sam notou que eu precisava ficar sozinha, disquei para informações e obtive o número do hotel Sangue no Pedaço. Apertei os números, sentindo que de algum modo eu estava fazendo uma coisa errada, mas eu não conseguia pensar como ou por quê. — Saaaannngueee... no Pedaço — anunciou uma voz profunda dramaticamente. — Seu caixão fora de casa. Minha nossa. — Bom dia. Aqui é Sookie Stackhouse falando da cidade de Bon Temps —, eu disse polidamente. — Preciso deixar uma mensagem para Bill Compton. Ele está hospedado aí com vocês. — Vampiro ou humano? — Ah... vampiro. — Um momentinho, por favor. A voz profunda retornou à linha depois de um momento. — Qual é a mensagem, senhora?
Aquilo me fez pensar. — Por favor, diga ao sr. Compton que... meu irmão foi preso, e que eu gostaria que ele voltasse assim que seus negócios estivessem resolvidos. — Eu vou anotar. — O som de escrita apressada. — Quer dizer seu nome outra vez? — Stackhouse. Sookie Stackhouse. — Tudo certo, senhora. Farei com que ele receba sua mensagem. — Obrigada. E essa foi a única atitude que eu pensei em tomar, até que percebi que teria sido mais prático chamar Sid Matt Lancaster. Ele se esforçou ao máximo para parecer consternado ao saber que Jason seria preso, disse que correria ao hospital assim que saísse do tribunal naquela tarde, e que voltaria a fazer contato comigo mais tarde. Eu voltei ao hospital para ver se eles me deixariam ficar com Jason até que ele voltasse a si. Não deixaram. Pensei se ele já não estaria consciente, e eles não queriam me contar. Vi Andy Bellefleur no outro extremo do corredor, e ele se virou e caminhou por outro lado. Maldito covarde. Fui para casa porque não conseguia pensar em nada que pudesse fazer. Percebi que não era dia de trabalho para mim, de qualquer modo, e isso era uma boa coisa, embora eu não me importasse muito. Ocorreu-me que eu não estava lidando com as coisas tão bem quanto deveria, que reagira com mais firmeza quando Vovó morrera. Mas aquela tinha sido uma situação finita. Enterramos Vovó, seu assassino seria preso, seguimos em frente. Se a polícia acreditava seriamente que Jason tinha matado Vovó além das outras mulheres, então o mundo era um lugar tão mau e absurdo que eu não queria fazer parte dele. Mas percebi, quando encarei a mim mesma naquela longa, longa tarde, que fora uma ingenuidade como esta que levara à prisão de Jason. Se eu apenas o tivesse colocado no trailer de Sam e o arrumado, escondido a fita até que descobrisse o que continha, e acima de tudo não houvesse chamado a ambulância... era nisso que Sam estava pensando quando olhou para mim com tanta dúvida. Entretanto, a chegada de Arlene meio que liquidou minhas alternativas. Eu achei que o telefone iria começar a tocar assim que as pessoas soubessem. Mas ninguém ligou. Elas não sabiam o que dizer. Sid Matt Lancaster chegou perto das quatro e meia. Sem nenhuma preliminar, ele me disse: — Eles o prenderam. Por homicídio em primeiro grau. Fechei meus olhos. Quando os abri, Sid estava me saudando com uma expressão astuta no seu rosto manso. Seus tradicionais óculos de aro preto aumentavam seus olhos de um castanho sujo, e sua papada e nariz adunco faziam-no parecer-se um pouco com um cão de caça. — Que é que ele diz? — perguntei. — Diz que esteve com Amy a noite passada. Eu suspirei. — Diz que foram para a cama, que já havia dormido com ela uma vez. Diz que não a via há muito tempo, que a última vez em que estiveram juntos, ela demonstrou ciúme por outras mulheres com quem ele se encontrava, que estava muito irritada. Assim, ficou surpreso quando ela se aproximou dele a noite passada no bar Bons Tempos. Jason diz que Amy se comportou de modo estranho a noite toda, como se tivesse um programa sobre o qual ele nada sabia. Ele se lembra que fizeram sexo, que tomaram um drinque na cama logo após e, depois disso, ele não se lembra de mais nada até acordar no hospital. — Foi uma armação — eu disse firmemente, pensando que soava exatamente como um filme vagabundo feito para a tevê. — É claro. — Os olhos de Sid Matt estavam tão firmes e seguros como se ele tivesse estado na casa de Amy Burley naquela noite.
Diabo, talvez tivesse mesmo. — Ouça, Sid Matt. — Dei um passo adiante e fiz com que ele olhasse para meus olhos. — Mesmo se eu pudesse acreditar de algum modo que Jason tenha matado Amy, Dawn e Maudette, eu nunca acreditaria que ele erguesse um dedo para ferir minha avó. — Tudo bem, então. — Sid Matt havia se preparado para enfrentar meus pensamentos, justa e honestamente, seu corpo inteiro dizia isso. — Srta. Sookie, vamos supor apenas por um minuto que Jason tenha tido algum tipo de envolvimento nessas mortes. Talvez a polícia possa pensar que seu amigo Bill Compton matou sua avó por ela estar contra vocês dois. Tentei dar a impressão de estar levando a sério esse primor de idiotice. — Bem, Sid Matt, minha avó gostava de Bill, e estava satisfeita por ele ser meu namorado. Até que recuperasse sua expressão habitual de jogador, vi uma perfeita descrença nos olhos do advogado. Ele não ficaria nem um pouco feliz se sua filha estivesse namorando um vampiro. Não podia imaginar um pai responsável reagindo senão com horror a uma coisa dessas. E ele não podia imaginar-se tentando convencer um júri que minha avó ficara satisfeita por eu estar namorando um sujeito que nem vivo estava, e que, além disso, era quase cem anos mais velho que eu. Esses eram os pensamentos de Sid Matt. — Você conheceu Bill? — perguntei. Ele ficou surpreso. — Não — admitiu. — Você sabe, srta. Sookie, não sou favorável a esse negócio de vampiro. Eu acho que abre uma brecha num muro que devemos manter erguido, um muro entre nós e os assim-chamados infectados pelo vírus. Acho que é vontade de Deus que esse muro exista, e eu, por exemplo, pretendo manter minha parte erguida. — O problema, Sid Matt, é que eu pessoalmente fui criada extrapolando esse muro. — Depois de uma vida toda mantendo segredo sobre meu “dom”, eu descobrira que, se ele fosse ajudar Jason, eu o atiraria na cara de qualquer um. — Bem — Sid Matt disse corajosamente, colocando seus óculos na ponte de seu nariz adunco — estou certo que o Bom Deus lhe deu esse problema de que já ouvi falar por uma boa razão. Você tem que aprender como usá-lo para a Sua glória. Ninguém jamais me dissera coisa parecida. Era uma idéia a ruminar quando eu tivesse tempo. — Temo ter feito com que nos desviássemos de nosso assunto, e sei que seu tempo é precioso. — Resumi minhas idéias. — Eu quero Jason solto sob fiança. Não há nada senão prova circunstancial ligando-o ao assassinato de Amy, estou certa? — Ele admitiu ter estado com a vítima bem antes do crime, e o videoteipe, um dos tiras sugeriu a mim com vigor, mostra seu irmão fazendo sexo com a vítima. O tempo e a data no filme indicam que foi feito poucas horas, senão minutos, antes da morte. Malditas manias sexuais de Jason. — Jason não bebe muito. Ele cheirava a bebida no carro. Eu acho que foi apenas derramada sobre ele. Acho que um teste vai provar isso. Talvez Amy tenha posto algum narcótico no drinque que preparou para ele. — Por que ela faria uma coisa dessas? — Porque, como muitas mulheres, era louca por Jason por querê-lo demais. Meu irmão é apto a sair com quem quer que ele queira. Não, eu estou usando aquele eufemismo. Sid Matt pareceu surpreso por eu conhecer a palavra. — Ele pode levar pra cama seja lá quem for. Uma vida de sonho, muitos caras podem pensar assim. — O cansaço descia sobre mim como um nevoeiro. — Agora, o resultado disso é que ele está lá na cadeia. — Você acha que outro homem fez isso a ele? Forjou o crime. — Sim, acho. — Eu dei outro passo adiante, tentando convencer esse cético advogado pela força de minha própria convicção. — Alguém que tinha inveja dele. Alguém que conhecia sua rotina, que matou essas mulheres quando ele estava fora do expediente. Alguém que sabia que Jason fazia sexo com essas garotas. Que sabia que ele gostava de fazer filminhos. — Poderia ser qualquer um — o advogado de Jason disse, pragmático. — Sim — eu disse tristemente. — Mesmo que Jason fosse bom o bastante para manter segredo sobre as suas transas, tudo que alguém teria que fazer seria observar com quem ele saía quando o bar fechava. Era preciso ser apenas observador, e talvez ter perguntado sobre as fitas numa visita à casa de meu irmão... Jason podia ser um pouco imoral, mas eu não acho que mostrava esses vídeos a outra pessoa. Mas podia ter dito a algum outro homem que gostava de fazer os vídeos, apesar disso. Portanto, esse homem, quem quer que ele seja, fez alguma espécie de trato com Amy, sabendo que ela era louca por Jason. Talvez tenha dito a ela que ia fazer uma brincadeirinha com Jason ou qualquer coisa assim. — Seu irmão nunca tinha sido preso — Sid Matt observou. — Não. — Embora tivesse passado por perto, uma ou duas vezes, segundo Jason dizia. — Nenhum antecedente, membro destacado da comunidade, emprego fixo. Há uma chance de eu libertá-lo sob fiança. Mas, se ele fugir, vocês perderão tudo. Não me ocorrera, na verdade, que Jason poderia ignorar a fiança. Eu não sabia nada sobre os arranjos de fiança, e não sabia o que teria que fazer, mas queria Jason fora das grades. De algum modo, ficar na cadeia até que o processo legal houvesse terminado antes do julgamento faria com que ele parecesse mais culpado. — Descubra o que fazer a respeito e me diga — eu disse. — Nesse meio tempo, posso ir vê-lo? — Ele preferiria que você não fosse — Sid Matt disse. Aquilo doeu muito.
— Por quê? — perguntei, tentando realmente não ficar dilacerada outra vez. — Ele está envergonhado — disse o advogado. A idéia de Jason sentindo vergonha era fascinante. — Então — eu disse, tentando me pôr em movimento, subitamente cansada desse encontro insatisfatório — você me chamará quando eu puder realmente ser útil em alguma coisa? Sid Matt concordou, sua papada tremendo ligeiramente com o movimento. Eu o tinha incomodado. Ele estava evidentemente aliviado por me deixar. O advogado partiu em sua picape, enfiando um chapéu de caubói na cabeça quando estava ainda sob minha vista. Quando escureceu por completo, saí para ver o que acontecia com Bubba. Ele estava sentado sob um pé de carvalho do pântano, garrafas de sangue enfileiradas dos dois lados: vazias de um, cheias de outro. Eu levava uma lanterna e, embora soubesse que Bubba estava lá, foi um choque para mim vê-lo no facho de luz. Balancei minha cabeça. Alguma coisa realmente tinha dado errado quando Bubba “ressuscitara”, sem dúvida alguma. Fiquei verdadeiramente feliz por não poder ler os seus pensamentos. Seus olhos eram infernalmente insanos. — Oi, benzinho — ele disse, seu sotaque sulista tão denso quanto calda de xarope. — Como vai? Veio me fazer companhia? — Eu só queria ter certeza de que você estava bem — eu disse. — Bem, eu posso pensar em lugares onde eu ficaria ainda melhor, mas, já que você é a garota de Bill, não vou falar deles. — Bom — eu disse firmemente. — Não tem nenhum gato por aqui? Estou ficando muito cansado desse negócio engarrafado. — Nada de gatos. Eu acho que Bill voltará logo, e aí você poderá ir para casa. — Peguei o caminho de volta para casa, não me sentindo à vontade na presença de Bubba para prolongar a conversa, se aquilo podia ser chamado assim. Eu imaginava que espécie de pensamentos habitariam aquela cabeça nas longas noites de vigília; imaginava se ele podia lembrarse de seu passado. — E aquele cachorro? — ele disse atrás de mim. — Ele foi embora — respondi sem olhar. — Que chato — Bubba disse para si mesmo, tão baixo que eu quase nem o escutei. Aprontei-me para dormir. Vi televisão. Comi um pouco de sorvete, e até piquei uma barra de chocolate ao leite para colocar no topo. Nenhum de meus consolos habituais parecia funcionar nessa noite. Meu irmão estava na cadeia, meu namorado em Nova Orleans, minha avó estava morta, e alguém havia assassinado meu gato. Eu me sentia solitária e lamentava minha sorte em todos os aspectos. Às vezes, você tem que deixar rolar e mais nada. Bill não havia respondido ao meu telefonema. Isso punha mais lenha na fogueira de minha desgraça. Ele provavelmente encontrara alguma prostituta disponível em Nova Orleans, ou alguma vampirófila, como aquelas que ficavam rondando o Sangue no Pedaço toda noite, sonhando transar com um vampiro. Se eu fosse dada a beber, teria ficado bêbada. Se eu fosse uma mulher sem grilos, teria convocado o belo JB du Rone e transado com ele. Mas eu não sou tão dramática ou drástica, por isso apenas comi sorvete e vi velhos filmes na tevê. Por uma estranha coincidência, Feitiço havaiano estava sendo exibido. Por fim, fui para a cama perto da meia-noite. Um grito do lado de fora do meu quarto me despertou. Ergui-me na cama imediatamente. Ouvi pancadas, e baques, e finalmente uma voz que eu tinha certeza que era a de Bubba gritando:
* No original Blue Hawaii, filme dirigido por Norman Taurog e estrelado por Elvis Presley, produção norte-americana de 1961. (N.do T.)
— Volte aqui, seu otário! Quando notei que depois de alguns minutos nenhum ruído se fazia, enfiei um roupão de banho e fui à porta da frente. O pátio, iluminado pela luz de segurança, estava deserto. Então, vislumbrei um movimento à minha esquerda, e quando pus minha cabeça para fora da porta, vi Bubba, caminhando de volta para seu esconderijo. — O que aconteceu? — perguntei baixinho. Bubba mudou de direção e veio para a varanda. — Tenho certeza que um filho-da-puta, me desculpe, estava rondando a casa — Bubba disse. Seus olhos castanhos estavam brilhando, e ele estava mais semelhante ao homem que já fora. — Ouvi o cara um pouquinho antes de ele chegar aqui, e achei que ia agarrá-lo. Mas ele cortou caminho pela floresta até a estrada, e tinha um carro estacionado lá. — Conseguiu ver quem era? — Não o suficiente para descrever — Bubba disse com a cara envergonhada. — Estava guiando uma picape, mas não deu pra ver nem de que cor ela era. Escura. — Apesar disso, você me salvou — eu disse, esperando que minha autêntica gratidão transparecesse em minha voz. Senti uma onda de amor por Bill, que tinha me providenciado proteção. Até Bubba parecia melhor do que antes. — Obrigada, Bubba. — Ué, de nada — ele disse graciosamente, e por aquele momento em que se aprumou, meio que jogando a cabeça para trás, mostrando aquele sorriso sonolento no rosto... era ele, e eu abri minha boca para dizer seu nome, quando a advertência de Bill voltou à minha memória e me fez calar a boca.
Jason foi solto sob fiança no dia seguinte. Custou uma fortuna. Assinei o que Sid Matt me pediu, embora a maior parte da garantia fosse relativa à casa e ao carro de Jason, além de seu barco de pesca. Se Jason houvesse sido preso anteriormente, mesmo por cruzar a rua desobedecendo aos sinais, acho que não teria conseguido a fiança. Eu estava nos degraus do tribunal usando meu horrível, sóbrio, paletó azul-marinho no calor da manhã avançada. O suor escorria por meu rosto e descia entre meus lábios daquele modo detestável que faz com que a gente sinta vontade de entrar correndo debaixo do chuveiro. Jason parou diante de mim. Eu não tinha certeza de que ele falaria alguma coisa. Seu rosto estava envelhecido. Um grande problema havia desabado em seus ombros, um problema real que não iria embora ou poderia ser aliviado como a aflição comum. — Eu não posso falar com você sobre isso - ele disse, tão baixo que eu mal consegui ouvi-lo. — Você sabe que não sou o culpado. Eu nunca fui de praticar uma violência maior que um bate-boca ou outro com alguma mulher num estacionamento. Toquei seu ombro, e tirei a minha mão ao ver que ele não respondia. — Eu nunca achei que fosse você. E nunca acharei. Lamento ter sido boba o bastante para chamar o 911 ontem. Se eu tivesse percebido que não era o seu sangue, eu teria levado você para o trailer de Sam, dado um jeito em sua aparência e queimado a fita. Eu fiquei tão apavorada quando pensei que aquilo podia ser sangue seu. — E senti meus olhos se encherem de lágrimas. Não era hora para choro, todavia, e eu me endureci, sentindo meu rosto ficar tenso. A mente de Jason estava uma bagunça, como se fosse uma pocilga. Nela fermentava uma insalubre mistura de arrependimentos, vergonha de seus hábitos sexuais terem ficado públicos, culpa por não ter se sentido incomodado pelo assassinato de Amy, horror por alguém na cidade pensar que ele teria assassinado a própria avó enquanto ficara esperando pela irmã que pretendia matar. — A gente vai superar isso — eu disse, desamparadamente. — A gente vai superar isso — ele repetiu, tentando fazer sua voz soar forte e confiante. Mas eu achei que levaria tempo, um longo tempo, até que a autoconfiança, aquela segurança dourada que o tornava irresistível, retornasse à sua postura, ao seu rosto e à sua voz. Talvez nunca mais retornasse. Nós nos separamos lá, à porta do tribunal. Não tínhamos mais nada a nos dizer. Fiquei no bar o dia todo, olhando para os homens que entravam, lendo suas mentes. Nenhum deles estava pensando em como matara quatro mulheres e tinha conseguido esconder o fato até aquele momento. Na hora do almoço, Hoyt e Rene chegaram à porta e deram meia-volta assim que me viram lá. Embaraçoso demais para eles, eu acho. Finalmente, Sam fez com que eu saísse. Ele disse que eu estava tão sinistra que estava espantando quaisquer fregueses que pudessem me dar uma informação útil. Saí andando penosamente pela porta rumo à luz ofuscante. Estava quase na hora do sol se pôr. Pensei em Bubba, em Bill, em todas as criaturas que estavam saindo de seu sono profundo para caminharem pela superfície da terra. Parei no Grabbit Kwik para comprar um pouco de leite para meu cereal da manhã. O novo funcionário era um garoto espinhento e dono de um enorme pomo-de-Adão, que me olhou com avidez, como se tentasse fazer uma reprodução impressa de minha aparência em sua cabeça — era a aparência da irmã de um assassino. Notei que ele mal conseguia esperar que eu saísse da loja para que pudesse usar o telefone para ligar para a sua namorada. Ele estava desejando poder ver as marcas de perfuração em meu pescoço. Pensava se haveria algum meio de descobrir como os vampiros transavam. Essa era a espécie de lixo que eu tinha que ouvir, dia sim, dia não. Não importava o quanto eu me concentrasse em outra coisa, o quanto eu mantivesse minha guarda em alta, o quanto meu sorriso ficasse aberto, o lixo entrava.
Cheguei em casa quando já estava ficando escuro. Depois de guardar o leite e tirar meu paletó, pus meus shorts e uma camiseta preta Garth Brooks e tentei pensar em algo para fazer naquela noite. Eu não conseguiria relaxar o bastante para ler; e eu precisava ir à biblioteca e trocar meus livros de qualquer modo, o que seria um verdadeiro calvário nas atuais circunstâncias. Nada na tevê prestava, pelo menos na noite de hoje. Achei que poderia ver Coração valente outra vez: Mel Gibson num saiote escocês é sempre animador. Mas seria um programa sanguinário demais para meu quadro mental. Eu não suportaria ver aquela garota tendo a garganta cortada outra vez, mesmo que soubesse quando fechar meus olhos. Eu tinha entrado no banheiro para desfazer minha maquiagem suada quando, acima do som da água corrente, pensei ter ouvido um uivo lá fora. Fechei as torneiras. Fiquei imóvel, quase sentindo minhas antenas vibrarem, tamanha a minha atenção. O quê...? A água de meu rosto molhado escorria por minha camiseta. Nenhum som. Não se ouvia som de espécie alguma. Eu me arrastei furtivamente até a porta da frente porque era o ponto mais próximo ao posto de observação de Bubba na floresta. Abri a porta um pouquinho e gritei: — Bubba? Não houve resposta. Tentei novamente. Parecia que até os gafanhotos e sapos estavam prendendo o fôlego. A noite era tão silenciosa que poderia esconder qualquer coisa. E algo estava rondando lá longe, na escuridão. Tentei pensar, mas meu coração estava batendo tão forte que interferia no processo. Chamar a polícia, primeiro. Descobri que não era uma alternativa. O telefone estava mudo.
Portanto, eu podia ou esperar dentro de casa o problema ir até mim ou poderia sair e me embrenhar na floresta. Era encrenca da pior. Mordi meu lábio inferior ao contornar a casa apagando as lâmpadas, tentando mapear uma linha de ação. A casa oferecia alguma proteção: cadeados, paredes, esconderijos e gretas. Mas eu sabia que qualquer pessoa realmente decidida poderia entrar, e então eu ficaria presa. O.k. Como eu poderia sair sem ser vista? Apaguei as luzes lá fora, para começar. A porta dos fundos dava para a floresta, e por isso era a melhor alternativa. Eu conhecia a floresta muito bem. Eu seria capaz de me esconder lá até que o dia chegasse. Poderia ir para a casa de Bill, talvez; seu telefone na certa estaria funcionando, e eu dispunha de uma chave. Ou eu poderia tentar chegar a meu carro e dar partida nele. Mas aquilo me deteria num ponto particular por alguns segundos preciosos. Não, a floresta parecia a melhor alternativa para mim. Num de meus bolsos enfiei a chave de Bill e um canivete de meu avô que Vovó guardava na gaveta da mesa da sala de estar, à mão para abrir pacotes. Enfiei uma pequena lanterna no outro bolso. Vovó guardava um velho rifle no armário próximo à porta da frente. Tinha sido de meu pai quando ele era pequeno, e ela o usava o mais das vezes para matar cobras; bem, eu tinha agora uma senhora cobra para matar. Eu odiava o maldito rifle, odiava a idéia de ter que usá-lo, mas agora era a hora propícia. A arma não estava lá. Eu mal podia acreditar no que via. Apalpei por dentro do armário todo. Ele tinha entrado em casa! Era alguém que eu tinha convidado. Quem estivera ali? Tentei fazer uma lista de todos enquanto ia para a porta da frente, meus tênis tão bem amarrados que não haveria sobras de cordão em que eu tropeçasse. Ajeitei meu cabelo num rabo-de-cavalo negligente, quase de uma vez só, para que não caísse no meu rosto, e prendi-o com um elástico. Mas o tempo todo eu pensava no rifle roubado. Quem estivera em minha casa? Bill, Jason, Arlene, Rene, as crianças, Andy Bellefleur, Sam, Sid Matt; eu tinha certeza que os havia deixado sozinhos por um ou dois minutos, talvez tempo suficiente para alguém esconder o rifle lá fora e depois voltar para pegá-lo. Então me lembrei do dia do funeral. Quase todo mundo que eu conhecia havia entrado e saído da casa quando Vovó morreu, e eu não me lembrava de ter visto o rifle desde então. Mas teria sido difícil sair da casa cheia de gente, como quem não quer nada, carregando um rifle. E, se ele houvesse desaparecido naquela ocasião, eu teria notado sua ausência. Na verdade, tinha quase certeza que sim. Eu tinha que deixar isso de lado agora e concentrar-me em vencer o que quer que fosse aquilo que vagava lá fora, na escuridão. Abri a porta dos fundos. Fui andando agachada, mantendo-me o mais baixo que pude, e devagar, fechei a porta delicadamente atrás de mim. Em vez de usar os degraus, estiquei uma perna e bati de leve no chão enquanto ficava acocorada na varanda; desloquei o meu peso nela, puxando a outra perna. E me agachei de novo. Isso se parecia bastante com brincar de esconde-esconde na floresta com Jason quando éramos crianças. Pedi aos céus para não estar brincando de esconde-esconde com Jason novamente. Como primeira cobertura, usei a banheira com as flores que Vovó havia plantado, e daí fui me arrastando até o seu carro, minha segunda meta. Olhei para o céu. A lua estava cheia, e, como a noite era clara, as estrelas não apareciam. O ar estava pesado de umidade, e ainda fazia calor. Meus braços ficaram oleosos de suor em poucos minutos. O próximo passo era do carro ao pé de mimosa. Eu não consegui me mover tão silenciosamente dessa vez. Bati num cepo de árvore e caí pesadamente no chão. Mordi minha boca por dentro para me impedir de gritar. A dor subiu por minha perna e quadris, e eu sabia que as pontas do cepo estraçalhado haviam arranhado minha coxa seriamente. Por que eu não tinha saído para serrar aquele cepo, nos meus dias de limpeza? Vovó tinha pedido para Jason fazer isso, mas ele nunca tivera tempo. Eu ouvi, senti, um movimento. Mandando a cautela às favas, saltei e corri para as árvores. Alguém abrira caminho pela beira da floresta à minha direita e estava vindo em minha direção. Mas eu sabia para onde estava indo, e num salto que me espantou, agarrei o galho baixo da nossa árvore favorita na infância, e fui para cima. Se eu sobrevivesse até o dia seguinte, teria os músculos seriamente distendidos, mas teria valido a pena. Balanceime no galho, tentando manter minha respiração surda, quando o que queria na verdade era arfar e gemer como um cão que estivesse sonhando. Bem que eu queria que isso fosse um sonho. Contudo, ali inegavelmente estava eu, Sookie Stackhouse, garçonete e leitora de pensamentos, sentada num galho na floresta no meio da noite, armada com nada a não ser um canivete. Houve um movimento lá embaixo; um homem deslizava furtivamente pela floresta. Ele trazia uma corda enrolada em seu pulso. Oh, Jesus. Embora a lua estivesse quase cheia, sua cabeça ficava teimosamente à sombra da árvore, e eu não podia ver quem era. Ele passou lá por baixo sem me notar. Quando estava fora de vista, tomei fôlego novamente. Tão silenciosamente quanto pude, fiz a descida. Comecei a trilhar o caminho que atravessava a floresta e ia dar na estrada. Levaria algum tempo, mas se eu conseguisse chegar à estrada, talvez pudesse fazer sinal para algum carro parar. Então, lembrei-me de como a estrada era raramente usada; era melhor talvez pegar o caminho para o cemitério da casa de Bill. Pensei no cemitério em trevas, no assassino me caçando na noite, e tremi da cabeça aos pés. Ficar mais assustada ainda era perda de tempo. Eu tinha que me concentrar no aqui e agora. Eu pisava pé ante pé, movendo-me lentamente.
Uma queda qualquer seria um ruído nessa vegetação rasteira, e ele me localizaria num instante. Encontrei o gato morto a uns dez metros a sudoeste da árvore onde ficara empoleirada. A garganta do gato era uma ferida aberta. Eu nem podia saber de que cor sua pele era devido ao efeito branqueador do luar, mas as manchas escuras em torno do pequeno cadáver eram seguramente de sangue. Depois de mais uns cinco passos de movimento furtivo, encontrei Bubba. Estava inconsciente ou morto. Com um vampiro, era difícil saber a diferença. Mas, sem uma estaca cravada em seu coração, e com a cabeça ainda no lugar, tudo que eu esperava era que ele estivesse apenas inconsciente. Alguém trouxera a Bubba um gato drogado, imaginei. Alguém que ficara sabendo que Bubba era meu guarda-costas e tinha uma quedinha por chupar sangue de gato. Ouvi um estalido atrás de mim. O quebrar de um galho. Deslizei pelas sombras da árvore grande mais próxima. Eu estava furiosa; furiosa e apavorada, e pensava se não seria essa a noite da minha morte. Eu podia não contar com o rifle, mas tinha uma arma interior. Fechei meus olhos e usei a minha mente com toda força. Um emaranhado escuro, vermelho, negro. Ódio. Eu me encolhi. Mas isso era necessário, era minha única proteção. Deixei cair todo resquício de defesa. Na minha cabeça começaram a pipocar imagens que me deixavam nauseada, aterrorizada. Dawn, pedindo a alguém para bater nela, e então descobrindo que ele tinha uma de suas meias nas mãos, que a esticava, preparando-a para apertá-la em seu pescoço. Um flash de Maudette, nua e implorando para não morrer. Uma mulher que eu nunca vira, as costas nuas voltadas para mim, contusões e vergões a cobri-las. E depois minha avó — minha avó — em nossa cozinha tão familiar, furiosa e lutando pela vida.
Eu estava paralisada pelo choque, pelo horror que a coisa transmitia. De quem eram esses pensamentos? Eu tive uma imagem dos filhos de Arlene, brincando no chão da minha sala de estar; eu vi a mim mesma, e eu não me parecia com a pessoa que vejo no espelho. Eu tinha enormes buracos no pescoço, e era obscena; eu tinha um olhar malicioso, e afagava a parte de dentro de minha coxa sugestivamente. Eu estava na cabeça de Rene Lenier. Esse era o modo pelo qual Rene me via. Rene era louco. Agora eu sabia por que nunca fora capaz de ler seus pensamentos com clareza; ele os mantinha numa caverna secreta, um lugar de sua mente que mantinha escondido e separado de seu eu consciente. Ele estava vendo um contorno atrás de uma árvore agora e pensando se ela se parecia com o contorno de uma mulher. Ele estava me vendo. Disparei a correr na direção oeste para o cemitério. Não podia mais ouvir a sua mente, porque a minha estava fixada na corrida, evitando os obstáculos das árvores, arbustos, galhos caídos, uma pequena vala onde a água da chuva se juntara. Minhas pernas fortes bombeavam, meus braços balançavam, e minha respiração soava como o ofego de uma gaita de foles. Saí da floresta e entrei no cemitério. A parte mais velha do cemitério era no extremo norte na direção da casa de Bill, e tinha os melhores lugares para se esconder. Eu pulei lápides de sepultura, do tipo moderno, postas quase ao nível do chão, nada boas para alguém se esconder. Saltei sobre o túmulo de Vovó, a terra ainda batida, sem pedras. Seu assassino me seguia. Virei-me para olhar, para ver o quanto ele se aproximara, como uma tola, e à luz do luar eu vi a cabeça de cabelos espetados de Rene claramente ganhando terreno de mim. Desci pela suave concavidade que o cemitério formava, e depois comecei a subir velozmente pelo outro lado. Quando achei que havia lápides e estátuas em número suficiente entre eu e Rene, escondi-me por trás de uma alta coluna de granito encimada por uma cruz. Fiquei em pé, achatando-me contra a fria rigidez da pedra. Prendi a boca com a mão para silenciar o esforço soluçante para levar ar aos meus pulmões. Eu me acalmei o bastante para tentar ouvir os pensamentos de Rene; mas seus pensamentos não eram mesmo coerentes para que os decifrasse, e eu só ouvia a raiva que ele sentia. Então, uma idéia clara se revelou. — Sua irmã — gritei. — Cindy ainda está viva, Rene? — Piranha! — ele gritou, e eu soube naquele segundo que a primeira mulher a morrer havia sido a irmã de Rene, aquela que gostava de vampiros, aquela que ele supostamente ainda visitava de tempos em tempos, segundo Arlene. Rene matara Cindy, a sua irmã garçonete, enquanto ela ainda estava usando seu uniforme rosa e branco da lanchonete do hospital. Ele a estrangulou com os cordões do avental. E fez sexo com ela, depois que ela estava morta. Ela caíra tão lá no fundo, ela não se importava com o próprio irmão, ele pensava, tanto quanto era capaz de pensar. Alguém que deixara um vampiro fazer uma coisa dessas merecia morrer. E ele escondera seu corpo por pura vergonha. As outras não eram de sua carne e sangue, fora muito certo deixá-las de qualquer jeito. Fui sugada para o interior insano de Rene como um galho tragado por um redemoinho, e isso me fez cambalear. Quando voltei à minha própria cabeça, ele estava em cima de mim. Ele me bateu no rosto tão forte quanto pôde, e esperou que eu caísse. O soco quebrou meu nariz e doeu tanto que eu quase desfaleci, mas não sucumbi. Reagi batendo nele. Minha falta de experiência deixava meu soco ineficaz. Eu só dei socos em suas costelas, e ele grunhiu, mas no momento seguinte ele revidou. Seu punho quebrou minha clavícula. Mas eu não caí. Ele não sabia como eu era forte. À luz do luar, seu rosto ficou chocado ao ver que eu reagia, e nesse momento dei graças ao sangue de vampiro que tomara. Pensei na minha corajosa avó, e me joguei sobre ele, agarrando-o pelas orelhas e tentando bater sua cabeça contra a coluna de granito. Suas mãos avançaram para prender meus antebraços, e ele tentou me sacudir para que eu afrouxasse meu aperto. Finalmente, conseguiu, mas pude notar pelos seus olhos que ele estava surpreso e mais cuidadoso. Tentei dar-lhe uma joelhada, mas ele se antecipou, mexendo-se longe o bastante para desviar de mim. Quando me desequilibrei, ele empurrou, e caí no chão com um baque de estalar os dentes. Então, ele montou em mim. Mas deixou a corda cair no meio de nossa luta, e enquanto segurava o meu pescoço com uma das mãos, tateava com a outra tentando aplicar seu método favorito. Meu braço direito estava preso, mas meu esquerdo estava livre, e eu lutei e cravei as garras nele. Ele tinha que ignorar isso, tinha que procurar pela corda de estrangular porque ela era parte de seu ritual. Minhas mãos descontroladas encontraram uma forma familiar. Rene, em roupa de trabalho, estava ainda usando a faca no cinto. Peguei o cabo rapidamente e puxei a faca de sua bainha, enquanto ele estava ainda pensando “Eu devia ter tirado isso”. Enfiei a faca na carne macia de sua cintura, num ângulo alto. Ele gritou, então. Ele ficou cambaleando, mexendo seu torso superior para o lado, tentando com as duas mãos estancar o sangue que estava brotando da ferida. Dei uns passos em recuo, erguendo-me, tentando manter distância entre mim e o homem que era com certeza um monstro como Bill. Rene gritava: — Cruz credo, Jesus, mulher! Que você fez comigo? Oh, Deus, como dói! Essa era boa. Ele estava assustado agora, aterrorizado com a descoberta de um fim para seus joguinhos, de um fim para a sua vingança. — Garotas como você merecem morrer — ele rosnou. — Eu posso sentir você dentro da minha cabeça, sua louca!
— Quem será que é o louco aqui? — sibilei. — Morra, seu degenerado. Eu não sabia que tinha essa força em mim. Fiquei perto da lápide tumular em posição curvada, a faca ensangüentada ainda presa em minhas mãos, esperando que ele me atacasse novamente. Ele cambaleou em círculos, e eu o observei, com o rosto petrificado. Fechei minha mente para ele, para a sensação de que sua morte se aproximava pelas costas. Eu estava pronta para esfaqueá-lo uma segunda vez quando ele desabou no chão. Quando tive certeza de que ele não podia mais se mexer, fui para a casa de Bill, mas sem correr. Eu disse a mim mesma que não conseguiria correr: mas não tenho certeza. Continuava a ver minha avó, encapsulada na memória de Rene para todo o sempre, lutando pela vida em sua própria casa. Tirei a chave de Bill de meu bolso, quase espantada por ela ainda se encontrar ali. Abri a porta sei lá de que jeito, e entrei zanzando na grande sala de estar, apalpando até encontrar o telefone. Meus dedos tocaram as teclas, esforçando-se por imaginar onde era o nove e onde o um ficava. Apertei as teclas com força o bastante para fazê-las estalar e então, sem aviso, mergulhei na inconsciência.
Eu sabia que estava no hospital: estava cercada pelo cheiro limpo dos lençóis hospitalares. A seguir, notei que doía inteirinha. E que alguém estava no quarto comigo. Abri meus olhos, não sem esforço. Andy Bellefleur. Seu rosto quadrado estava ainda mais fatigado que da última vez que eu o vira. — Você pode me ouvir? — ele disse. Eu concordei, apenas um minúsculo movimento, mas até aquilo espalhou uma onda de dor pela minha cabeça.
— Nós o pegamos — ele disse, e depois começou a me contar um monte de coisas mais, mas eu caí no sono novamente. Era dia quando despertei novamente e, dessa vez, eu parecia estar muito mais alerta. Alguém no quarto. — Quem está aí? — eu disse, e minha voz saiu com uma aspereza dolorida. Kevin levantou-se da cadeira que havia a um canto, enrolando uma revista de palavras cruzadas e enfiando-a no bolso de seu uniforme. — Onde está Kenya? — sussurrei. Ele sorriu para mim inesperadamente. — Ela esteve aqui por umas duas horas — explicou. — Vai voltar logo. Convidei-a para o almoço. Seu rosto e seu corpo magro formavam uma linha enxuta de aprovação. — Você é uma mulher durona — ele me disse. — Não me sinto durona — esforcei-me por dizer. — Você foi ferida — ele me contou como se eu não soubesse. — Rene. — Descobrimos o cara no cemitério — Kevin me assegurou. — Você o atingiu muito bem. Mas ele ainda estava consciente, e nos contou que tinha tentado matá-la. — Bom. — Ele lamentava realmente por não ter concluído o trabalho. Eu não posso acreditar na maneira como ele revelou tudo, mas estava um tanto ferido e um tanto assustado, quando chegamos lá. Contou-nos que a coisa toda tinha sido culpa sua porque você não queria apenas se deitar para morrer como as outras. Ele disse que devia ser coisa de seus genes, porque sua avó... — Aqui Kevin parou, consciente de que estava em território minado. — Ela lutou, também — sussurrei.
Kenya então entrou, maciça, impassível, e segurando uma fumegante xícara de isopor cheia de café. — Ela está acordada — Kevin disse, sorrindo para a sua parceira. — Bom. — Kenya parecia menos eufórica por isso. — Ela disse o que foi que aconteceu? Talvez a gente deva chamar o Andy. — Sim, foi o que ele disse pra gente fazer. Mas ficou dormindo quatro horas. — O homem disse pra chamar. Kevin deu de ombros, foi para o telefone ao lado da cama. Eu mergulhei num cochilo enquanto o ouvia falar, mas conseguia ouvi-lo murmurar alguma coisa para Kenya enquanto esperavam. Estava falando sobre seus cães de caça. Kenya, suponho, devia estar ouvindo. Andy entrou, eu senti seus pensamentos, a forma de seu cérebro. Sua presença sólida veio pousar em minha cama. Abri meus olhos enquanto ele se curvava para olhar para mim. Trocamos um longo olhar fixo. Dois pares de pés em sapatos oficiais moviam-se no corredor. — Ele ainda está vivo — Andy disse abruptamente. — E não pára de falar. Eu fiz o mais breve movimento da minha cabeça, querendo dizer que concordava, esperando ser entendida. — Diz que isso começou com a irmã dele, que estava se encontrando com um vampiro. Ela evidentemente ficou tão fraca do sangue que Rene pensou que se tornaria uma vampira também se ele não a parasse. Ele deu a ela um ultimato, uma noite no apartamento dela. Ela respondeu, disse que não ia desistir de seu amante. Ela estava colocando o avental, se aprontando para ir ao trabalho, enquanto discutiam. Ele arrancou-o de seu corpo, estrangulou-a... e fez outras coisas. Andy parecia um pouco nauseado. — Eu sei — sussurrei. — A mim me parece — Andy recomeçou — que ele de algum modo concluiu que se sentiria justificado por ter feito aquela coisa horrível se convencesse a si mesmo de que todas as mulheres na situação de sua irmã mereciam morrer. Na verdade, os crimes daqui são muito parecidos a outros dois em Shreveport que não foram solucionados até agora, e esperamos que Rene toque no assunto enquanto está divagando. Se o fizer. Eu sentia meus lábios se apertando em horrorizada simpatia por essas outras pobres mulheres. — Pode me dizer o que aconteceu com você? — Andy perguntou baixinho. — Vá devagar, dentro de seu ritmo, e mantenha a voz em tom de sussurro. Sua garganta está muito machucada. Eu havia percebido isso por mim mesma, muito obrigada. Murmurei um relato daquela noite, e não deixei nada escapar. Andy tinha ligado um pequeno gravador de fita depois de me perguntar se eu concordava com isso. Ele o colocou no travesseiro, perto de minha boca quando eu dei sinal de que o aparelho era o.k. para mim, e assim ele gravou a história toda. — O sr. Compton ainda está fora da cidade? — ele me perguntou, depois que terminei. — Nova Orleans — sussurrei, mal conseguindo falar. — Vamos procurar o rifle na casa de Rene, agora que sabemos que é seu. Será uma bela peça de corroboração de prova. Nesse momento, uma radiante mulher jovem trajada de branco entrou no quarto, olhou para meu rosto, e disse a Andy que ele teria que voltar depois. Ele fez um sinal para mim, deu-me uma batidinha embaraçada na mão, e saiu. Lançou à doutora uma olhada furtiva de admiração. Ela era mesmo digna de admiração, mas também estava usando um anel de casada, portanto Andy chegara tarde demais outra vez. Ela pensou que ele parecia muito sério e sombrio. Eu não queria ouvir isso. Mas não tinha forças para manter todos fora de minha cabeça.
— Srta. Stackhouse, como está se sentindo? — a jovem mulher me perguntou um tanto alto demais. Ela era morena e esguia, com grandes olhos castanhos e uma boca farta. — Esmigalhada — sussurrei. — Posso imaginar — ela disse, concordando repetidamente enquanto me examinava. Eu achava que ela não podia não. Apostaria que ela nunca fora surrada por um assassino múltiplo num cemitério. — Você acabou de perder sua avó também, não é? — ela perguntou simpaticamente. Eu fiz que sim, mas com um movimento pra lá de minúsculo. — Meu marido morreu há seis meses — ela disse. — Sei um pouco sobre sofrimento também. É duro ser corajosa, não é? Bem, bem, bem. Deixei minha expressão fazer uma pergunta. — Ele tinha câncer — ela explicou. Tentei dar minhas condolências sem mover nenhum dos meus membros, o que era praticamente impossível. — Bem — ela disse, levantando-se, retomando sua maneira agitada —, srta. Stackhouse, você certamente sobreviverá. Tem uma clavícula, duas costelas e um nariz quebrados. Jesus, Bom Pastor! Não era de admirar que eu me sentisse tão mal. — Seu rosto e pescoço estão seriamente machucados. Naturalmente, você deve ter notado que sua garganta foi ferida. Eu estava tentando imaginar como devia estar a minha aparência. Muito bom que eu não tivesse um espelho à mão. — E você tem montes de contusões relativamente menores e cortes em suas pernas e braços. — Ela sorriu. — Seu estômago e seus pés estão ótimos! Hohoho. Muito engraçado. — Eu receitei remédio contra dores para você, por isso, quando começar a se sentir mal, é só chamar a enfermeira.
Um visitante enfiou a sua cabeça na porta logo atrás dela. Ela se virou, bloqueando minha visão, e disse: — Alô? — Este é o quarto da Sookie? — Sim, eu estava acabando de examiná-la. Pode entrar. — A médica (cujo nome era Sonntag, segundo o crachá) olhou com ar interrogativo para mim para que eu desse a permissão, e eu consegui balbuciar um pequeno “Claro”. JB du Rone veio à cabeceira da minha cama, parecendo tão belo quanto o modelo da capa de um livro de romances. Seu cabelo amarelocastanho brilhava sob as luzes fluorescentes, seus olhos eram da mesma cor, e sua camisa sem mangas revelava uma massa muscular que poderia ter sido cinzelada com um... bem, com um cinzel. Ele se inclinava para olhar para mim, e a dra. Sonntag o devorava com os olhos. — Ei, Sookie, você está se sentindo bem? — ele perguntou. Ele pousou um dedo docemente em meu rosto. Ele beijou um ponto intacto na minha testa. — Obrigada — sussurrei. — Ficarei bem. Conheça a minha médica. JB virou seus grandes olhos para a dra. Sonntag, que praticamente tropeçou em seus próprios pés para apresentar-se. — As médicas não eram bonitas assim quando eu tomava injeções — JB disse sincera e simplesmente. — Você não foi a nenhum médico desde menino? — a dra. Sonntag disse, espantada. — Nunca fico doente. — Ele sorriu para ela. — Forte como um boi. E com o cérebro de um. Mas a dra. Sonntag provavelmente tinha uma inteligência que valia por duas. Ela não conseguiu pensar em nenhum motivo para ir ficando, embora lançasse um olhar infeliz sobre o ombro ao sair. JB se inclinou para mim e disse seriamente:
— Posso te trazer alguma coisa, Sookie? Petiscos ou alguma coisa assim? A idéia de tentar comer bolachas fez lágrimas virem a meus olhos. — Não, obrigada — eu disse, num sopro. — A médica é viúva. Você podia mudar de assunto com JB sem ele perguntar por quê. — Uau — ele disse, impressionado. — Ela é inteligente e solteira. Eu mexi minhas sobrancelhas de um modo significativo. — Você acha que eu devo perguntar a ela se quer sair comigo? — JB parecia tão pensativo quanto isso lhe era possível. — Isso pode ser uma boa idéia. — Ele sorriu para mim. — Já que você não sai comigo, Sookie. Você é sempre a minha número um. Basta erguer o seu dedinho, e eu virei correndo. Que doçura, esse cara. Eu não acreditava em sua devoção por um minuto que fosse, mas acreditava realmente que ele sabia fazer uma mulher sentir-se bem, mesmo que ela estivesse tão convicta quanto eu de que minha aparência era assustadora. Eu me sentia muito mal, também. Onde estavam aquelas pílulas para dor? Tentei sorrir para JB. — Você está com dores — ele disse. — Vou chamar a enfermeira. Oh, bom. A distância até o pequeno botão parecera longa, muito longa, quando tentei mover o meu braço. Ele me beijou novamente ao partir e disse: — Eu vou procurar essa sua médica, Sookie. Preciso perguntar a ela algumas coisas mais sobre a sua recuperação. Depois que a enfermeira injetou alguma substância no meu soro, eu estava apenas esperando ansiosamente não sentir mais dor quando a porta se abriu de novo. Meu irmão entrou. Ele ficou ao lado de minha cama por um longo tempo, olhando fixo para meu rosto. Ele disse finalmente, com pesar: — Eu conversei com a médica um pouquinho antes de ela sair da lanchonete com JB. Ela me disse tudo que havia de errado com você. — Ele se afastou de mim, deu uma volta pelo quarto, retornou. Olhou-me fixamente outra vez. — Você está péssima. — Obrigada — sussurrei. — Oh, sim, sua garganta. Eu esqueci. Ele começou a me dar um tapinha, desejando melhoras. — Ouça, mana, eu preciso te agradecer, mas me deprime que você tenha estado em meu lugar quando chegou a hora da briga. Se eu pudesse, teria dado um chute nele. Estar no lugar dele, diabos. — Fiquei te devendo muito, mana. Eu fui tão besta, pensando que Rene era um bom amigo. Traído. Ele se sentia traído. Então Arlene entrou, para tornar as coisas ainda mais picantes. Ela estava detonada. Seu cabelo era um emaranhado vermelho, ela não usava maquiagem, e suas roupas tinham sido postas ao acaso. Eu nunca tinha visto Arlene sem o cabelo enrolado e a maquiagem no ponto. Ela se inclinou para olhar para mim — cara, eu ficaria feliz quando pudesse ficar em pé novamente — e por um segundo seu rosto tinha a dureza do granito, mas quando ela realmente olhou para meu rosto, começou a desmoronar. — Eu fiquei tão brava com você, eu não acreditava, mas agora que eu estou te vendo e vendo o que ele fez... oh, Sookie, você pode me perdoar? Nossa, eu queria tanto que ela estivesse longe dali. Tentei telegrafar este desejo ao Jason, e dessa vez consegui, porque ele pôs um braço em torno dos ombros dela e conduziu-a para fora. Arlene estava soluçando ao chegar à porta. — Eu não sabia... — ela disse, com pouca coerência. — Eu simplesmente não sabia! — Diabos, nem eu — Jason disse pesarosamente. Tirei uma soneca depois de tentar ingerir uma deliciosa gelatina verde.
Minha grande excitação da tarde foi andar até o banheiro, mais ou menos por mim mesma. Sentei-me na cadeira por uns dez minutos, depois dos quais me senti mais que disposta a voltar para a cama. Olhei para o espelho encoberto pela mesa giratória e lamentei muito tê-lo feito. Eu estava com um pouco de febre, suficiente apenas para me deixar arrepiada e com a pele macilenta. Meu rosto estava azul e cinza e meu nariz estava inchado em dobro. Meu olho direito estava inchado e quase fechado. Eu tremia, e até isso doía. Minhas pernas... oh, inferno, eu nem queria ver como estavam. Eu me deitei com muito cuidado e desejei que este dia terminasse. Provavelmente daqui a uns quatro dias eu me sentiria muito bem. Trabalho! Quando eu poderia voltar para o trabalho? Uma pequena batida na porta me distraiu. Outro maldito visitante. Bem, dessa vez era alguém que eu não conhecia. Uma mulher idosa com cabelos azuis e óculos de aros vermelhos, empurrando um carrinho. Ela estava usando o guarda-pó amarelo que as voluntárias do hospital, chamadas Sunshine ladies, tinham que trajar quando estavam trabalhando. O carrinho estava coberto com flores para os pacientes desta ala. — Estou entregando a você uma carga de votos de boa recuperação! — a senhora disse, animadamente. Eu sorri, mas o efeito deve ter sido assustador porque seu ânimo arrefeceu um pouco. — Estas são para você — ela disse, erguendo uma planta de vaso decorada com uma fita vermelha. — Aqui está o cartão, querida. Vamos ver, estas são para você, também... — Era um arranjo de flores frescas, incluindo botões e cravos cor-de-rosa e brancos suspiros de bebê. Ela tirou o cartão daquele vaso também. Examinando-o, disse: — Ora, você é mesmo uma felizarda! Tem mais coisas aqui para você! O foco do terceiro tributo floral era uma flor vermelha bizarra que eu nunca vira, cercada por um grande número de outras mais comuns. Eu olhei para a flor com dúvida. A mulher das Sunshine ladies educadamente me presenteou com o cartão que vinha preso a ela.
Assim que ela saiu sorrindo do quarto, eu abri os pequenos envelopes. Era mais fácil me mexer quando me encontrava com boa disposição, notei de passagem. A planta do vaso era de Sam e de “todos os seus companheiros do bar do Merlotte”, segundo o cartão, mas a letra era dele. Toquei as folhas lustrosas e fiquei pensando onde a colocaria quando a levasse para casa. As flores frescas eram de Sid Matt Lancaster e Eiva Deene Lancaster... essa não. O arranjo em cujo centro reinava a peculiar flor vermelha (concluí que parecia obscena, de certo modo, como uma parte íntima de mulher) era de longe o mais interessante dos três. Abri o cartão com alguma curiosidade. Trazia apenas uma assinatura, “Eric”. Era só o que me faltava. Como diabos ele soubera que eu estava no hospital? Por que eu não tinha mais notícias de Bill? Depois de alguma deliciosa gelatina vermelha como ceia, preguei os olhos na televisão por algumas horas, já que não tinha nada para ler, mesmo com os olhos em bom estado para fazê-lo. Meus ferimentos ficavam mais encantadores de hora em hora, e eu me sentia exaurida até os ossos, a despeito de haver caminhado uma vez só até o banheiro e duas vezes pelo quarto. Desliguei a televisão e virei para um lado. Caí no sono, e nos meus sonhos a dor do meu corpo era filtrada e transformada em pesadelos. Nos meus sonhos eu corria, corria pelo cemitério, temendo por minha vida, caindo sobre as pedras, em covas abertas, encontrando todas as pessoas que conhecia e que lá jaziam: meus pais, minha avó, Maudette Pickens, Dawn Green, e até um amigo de infância que fora morto num acidente de caça. Eu estava procurando por uma pedra em particular; se eu a encontrasse, estaria livre. Todos os mortos voltariam a seus túmulos e me deixariam em paz. Corri de uma sepultura para outra, pondo minha mão em cada uma delas, esperando que fosse a pedra certa. Eu choramingava. — Querida, você está salva — disse uma voz fria familiar. — Bill — murmurei.
E me virei para encarar uma pedra que não havia tocado ainda. Quando pousei meus dedos sobre ela, eles reconheceram as letras de “William Erasmus Compton”. Como se eu tivesse recebido uma ducha fria, meus olhos se abriram, tomei fôlego para gritar, e minha garganta latejou de dor. Eu engasguei com o ar extra, e a dor da tossida, que se difundia por cada uma das coisas que estavam quebradas em meu corpo, completou meu despertar. A mão de alguém deslizou por meu rosto, os dedos frios parecendo maravilhosamente bons contra minha pele quente. Tentei não choramingar, mas um pequeno ruído abriu caminho entre meus dentes. — Olhe para a luz, querida — Bill disse, sua voz muito leve e informal. Eu tinha dormido de costas para a luz que a enfermeira deixara acesa, aquela do banheiro. Virei-me obedientemente e ergui os olhos para ver o meu vampiro. Bill sibilou. — Vou matar aquele sujeito — disse, com uma segurança tranqüila que me deu calafrios. Havia no quarto tensão suficiente para fazer uma legião de nervosos saírem correndo em busca de seus tranqüilizantes. — Oi, Bill — eu gemi. — É um prazer ver você, também. Por onde tem andado? Obrigada por retornar todas as minhas ligações. Isso o irritou. Ele piscou. Eu podia senti-lo fazendo um esforço para se acalmar. — Sookie — ele disse — eu não liguei porque queria lhe contar pessoalmente o que aconteceu. — Eu não conseguia ler a expressão em seu rosto. Se eu tivesse que dar uma idéia, diria que parecia orgulhoso do que fizera. Ele fez silêncio, e examinou todas as minhas partes visíveis. — Esta aqui não dói — gemi, cortês, estendendo minha mão para ele. Ele a beijou, demorando-se sobre ela de um modo que irradiou um débil formigamento por todo o meu corpo. Acreditem, um débil formigamento era mais do que eu me julgava capaz de sentir. — Conte-me o que foi feito com você — ele ordenou. — Então, abaixe-se para que eu possa sussurrar. Isso dói muito. Ele puxou uma cadeira para perto da cama, abaixou o suporte desta, e pousou o queixo sobre os braços cruzados. Seu rosto estava quase junto ao meu. — Seu nariz está quebrado — ele observou. Girei meus olhos. — Fico feliz por você ter notado — sussurrei. — Direi ao médico quando ele vier. Seus olhos se apertaram. — Pare de tentar de me ludibriar. — O.k. Nariz, duas costelas e uma clavícula quebrados. Mas Bill queria me examinar por completo, e puxou os lençóis. Minha mortificação foi total. Claro, eu estava usando uma camisola de hospital que era horrível, um desestímulo por si só, e não tinha me lavado apropriadamente, e meu rosto tinha vários matizes diferentes, e meu cabelo não tinha sido escovado. — Quero levar você para casa — ele declarou, depois de passar a mão por mim toda e minuciosamente examinar cada arranhão e corte. O Vampiro Fisiologista. Fiz um sinal com minha mão para que ele se abaixasse. — Não — sussurrei. Apontei para o soro. Ele o olhou com alguma desconfiança, mas naturalmente devia saber do que se tratava. — Posso tirar — ele disse. Balancei minha cabeça veementemente. — Você não quer que eu tome conta de você? Exasperada, soltei ar nervosamente, o que aumentou minhas dores de modo infernal.
Fiz um movimento que sugeria escrever com minha mão, e Bill procurou nas gavetas até encontrar um bloco de anotações. Embora fosse esquisito, ele tinha uma caneta. Eu escrevi: “Vão me deixar sair do hospital amanhã se minha febre não aumentar”. — Quem vai levar você para casa? — ele perguntou. Estava ao lado da cama novamente, e olhando para mim com severa desaprovação, como um professor cuja aluna se revela cronicamente atrasada. “Vou pedir para que chamem Jason, ou Charlsie Tooten”, eu escrevi. Se as coisas tivessem sido diferentes, eu teria escrito o nome de Arlene automaticamente. — Estarei lá quando anoitecer — ele disse. Ergui os olhos para seu rosto pálido, para os claros brancos dos olhos quase reluzentes no quarto em penumbra. — Vou curar você — ele ofereceu. — Deixe que eu lhe dê um pouco de sangue. Lembrei-me de como meu cabelo clareara, de como eu ficara quase duas vezes mais forte do que sempre fora. Balancei minha cabeça. — Por que não? — ele disse, como se tivesse me oferecido um copo de água quando eu tinha sede e eu recusasse. Pensei que talvez o tivesse ofendido. Peguei sua mão e levei-a até minha boca. Beijei a palma suavemente. Pus a mão no lado de meu rosto que estava em melhor estado. “As pessoas notam que estou mudando”, escrevi, depois de um momento. “Eu noto que estou mudando.” Ele baixou a cabeça por um momento, e depois olhou para mim tristemente. “Você sabe o que aconteceu?” escrevi. — Bubba me contou parte da história — ele disse, e seu rosto ficou mais assustador ao mencionar o vampiro obtuso. — Sam me contou o resto, e eu fui ao departamento policial e li os boletins. “Andy deixou você fazer isso?” escrevi apressadamente.
— Ninguém sabia que eu estava lá — ele disse, displicente. Tentei imaginar como aquilo se dera, e senti arrepios. Dei-lhe um olhar de desaprovação. “Conte-me o que aconteceu em Nova Orleans”, escrevi. Eu estava começando a me sentir sonolenta novamente. — Para isso, você terá que saber um pouco a nosso respeito — ele disse, hesitante. — Hum, hum, assuntos particulares de vampiros! — gemi. — Somos um tanto organizados — ele me disse. — Eu estava tentando pensar nos meios que nos mantivessem a salvo do Eric. — Involuntariamente, olhei para o arranjo com a flor vermelha. — Eu sabia que se fosse um oficial, como Eric é, seria muito mais difícil para ele interferir em minha vida privada. Olhei-o com encorajamento, ou ao menos tentei. — Por isso, fui ao encontro regional, e embora nunca tivesse me envolvido em nossas políticas, disputei um cargo oficial. E, com algum lobby concentrado, venci! Isso foi absolutamente espantoso. Bill tornando-se um representante público? Refleti sobre o tal lobby concentrado, também. Será que queria dizer que Bill matara toda a oposição? Ou que comprara os eleitores à base de uma garrafa de A positivo por cabeça? “Qual é a sua função?” escrevi lentamente, tentando imaginar Bill sentado numa reunião. Tentei parecer orgulhosa, que me pareceu o que Bill estava desejando no momento. — Sou um investigador da Quinta Área — ele disse. — Direi o que isso significa quando você estiver em casa. Não quero esgotá-la. Concordei, sorrindo para ele. Esperava ansiosamente que ele não cismasse de me perguntar de quem eram aquelas flores. Fiquei pensando se deveria escrever a Eric uma nota de agradecimento. Pensava no porquê de minha mente estar derivando para essas tangentes. Devia ser efeito do remédio para a dor.
Fiz um sinal para Bill se aproximar. Ele o fez, seu rosto pousando na cama, ao meu lado. — Não mate o Rene — sussurrei. Ele ficou frio, gelado e pra lá de gelado. — Acho que já fiz o serviço. Ele está em terapia intensiva. Mas, mesmo se ele sobreviver, já houve matança em excesso. Deixe a lei cuidar disso. Não quero mais caça às bruxas atrás de você. Quero que nós dois tenhamos paz. — Estava ficando muito difícil falar. Peguei sua mão entre as minhas, segurei-a novamente junto ao lado do meu rosto que estava menos machucado. De repente, o tanto que eu sentira a sua falta tornou-se um sólido nó em meu peito, e eu abri meus braços. Ele se sentou cuidadosamente à beira da cama e, encostando-se, cuidadoso, cuidadoso, enfiou seus braços sob mim e puxou-me para ele, de pouquinho em pouquinho, para me dar tempo de dizer se doía. — Eu não vou matá-lo — Bill disse novamente, ao pé de minha orelha. — Querido — sussurrei, sabendo que seu ouvido agudo captaria. — Eu senti saudade de você. — Ouvi seu suspiro rápido, e seus braços me apertaram um pouco, suas mãos começaram seu suave afago em minhas costas. — Quanto tempo levará para você se curar sem a minha ajuda? — ele disse. — Oh, tentarei ser rápida — sussurrei. — Aposto que vou surpreender a médica. Um collie trotou pelo corredor, olhou pela porta aberta, emitiu um “Rowwff ”, e foi embora. Atônito, Bill virou-se para verificar o corredor. Oh, sim, havia lua cheia, nessa noite — eu a via através da janela. Podia ver mais uma coisa, também. Um rosto lívido apareceu na escuridão e flutuou entre mim e a lua. Era um belo rosto, emoldurado por longos cabelos dourados. Eric, o Vampiro, sorriu para mim e gradualmente desapareceu de minha vista. Estava voando.
— Logo voltaremos ao normal — Bill disse, deitando-me gentilmente para que pudesse ir desligar a luz do banheiro. Ele brilhava no escuro. — Certo — eu sussurrei. — Sim. Voltaremos ao normal.
Charleine Harris
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