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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEBAIXO DO CÉU - P.2 / Pearl S. Buck
DEBAIXO DO CÉU - P.2 / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DEBAIXO DO CÉU

Segunda Parte

 

Ruth casou-se na véspera do Ano Novo e Henrieta foi a sua dama de honor. Nesse ponto Ruth insistira, e Candace escolhera os vestidos de casamento. Ruth, naturalmente, devia vestir cetim branco, mas Candace escolheu para Henrieta uma seda encorpada, de narcisos amarelos, que devia ser usada com um largo cinto verde. A obscuridade de Henrieta era obrigada a vir à luz. Guar­dando no coração o inefável segredo, ela consentiu pela primeira vez na vida que a vestissem com um intuito de beleza.

Esteve duas vezes na casa de William, e a primeira vez foi para experimentar o vestido, quando Candace levou as duas jovens para o lanche. William não estava em casa, mas Jeremias estava. Deixara o escritório demasiadamente cedo, sem avisar alguém.

-De que me servia ser cunhado de William, se tivesse de ter medo dele? - disse-lhes Jeremias. -Ele não me pode despedir.

-Oh, Jeremias! - exclamou Ruth, um tanto escandalizada.

-Jeremias não deve ser tomado a sério desde que cresceu - disse Candace a Henrieta. -Era muito sério quando rapaz.

Estavam sentados à comprida mesa na grande sala de jantar, e o mogno brilhava através da toalha de renda de Veneza. Esta­vam sentados dois a dois, Henrieta ao lado de Candace, e as extremidades da mesa vazias, embora o mordomo tivesse posto o talher de William. Quer ele viesse, quer não, o seu talher sempre estava posto.

-Quando eu era garoto, era sério porque pensava que ia morrer - disse Jeremias, empinando o copo o mais perto que podia para não derramar o vinho. -Agora sei que tenho de viver. A gente tem de ser alegre quando não pode escapar à vida. Não é verdade, Ruth?

-Não sei o que estás a dizer! - exclamou Ruth, feliz.

Foi um belo casamento. William deu o braço a Ruth, uma vez que seu pai se achava em Pequim e, junto à sua gravidade, a pura doçura da jovem era o contraste de uma rosa junto a uma rocha. O casamento foi em casa de William, embora Ruth desejasse um casamento religioso e pensasse que se realizaria na igreja de S. João, aonde William e Candace iam regularmente nas manhãs de domingo. Assim fora planeado. Mas William, pela época do Natal, tivera um estranho desentendimento com o reitor, que nunca explicara, e retirara-se da confraria. Deixou de frequentar a igreja e supôs que o caso seria muito notado se a cerimónia se efectuasse em qualquer outro templo. Não passava de um modesto casamento. Ruth nunca se apresentara na sociedade e conhecia pouca gente. Não havia motivo, disse William a Candace, para que os amigos dele, ou os dela, fossem convidados a ver uma jovem noiva de cuja existência apenas tinham ouvido falar acidentalmente.

A grande sala de jantar constituiu um agradável local. O florista armou um altar numa das extremidades, e o pregador do colégio de Ruth veio casá-los. William foi amável até com Henrieta e com seus avós mostrou-se quase gentil. Tinham enve­lhecido muito. Henrieta igualou-o em solicitude, e pensou em Clem, mas ainda desta vez não pôde resolver-se a falar no seu nome.

Nenhum deles ficou depois do casamento. Foram com Jere­mias e Ruth ao porto, onde o jovem casal embarcou para França. William, porém, não comparecera ao bota-fora, pois havia recebido uma chamada urgente do escritório. Depois, com o seu vestido de narcisos cuidadosamente empacotado na mala, Henrieta foi para casa com os avós.

Naquela noite ela falou-lhes em Clem. Estavam sentados na grande e agora um tanto envelhecida sala de jantar, e tentou fazer-lhes compreender porque devia casar-se com Clem.

-É a única pessoa no Mundo que conhece tudo a meu respeito - disse-lhes ela.

Eles limitavam-se a escutar, sentindo que havia mesmo muita coisa que não conheciam. A China era uma terra que não podiam imaginar e que lhes parecia monstruosa e inexplicável.

-Mas vocês não vão voltar para a China, pois não? - murmurou a sua avó.

-Não sei o que Clem pretende - disse Henrieta. -Está sem­pre a pensar no Mundo. Se ele for, naturalmente irei também.

O casal de velhos tivera um dia duro e não tinha interesse no Mundo. Mr. Vandervort bocejou e tocou a sineta. Quando Millie, que sempre ficava sentada até que a família fosse para a cama, atendeu ao chamado, ele pediu leite.

-Bem quente, Millie, e põe-lhe um pouco de cherry. -Sim, senhor - respondeu ela.

Minutos depois, bebendo sonolentamente o seu leite alico­rado, fez um aceno de cabeça a Henrieta. -Suponho que é isso mesmo que devíamos esperar - disse ele vagamente. Foram para o quarto sem lhe perguntar mais nada, e ela sentou-se à mesa para escrever a Clem uma longa carta.

«Clem, quero casar agora. Não desejo continuar com o meu doutoramento».

Depois da sua graduação pela escola, resolvera continuar com o seu doutoramento em química, na esperança de que pudesse ser útil a Clem. Isso fora depois do que ele lhe dissera um dia.

-Eu desejaria ter estudado química - dissera ele. -Apro­veitar bem a soja, por exemplo. Achas que sabes bastante para me ajudar?

-Tenho de estudar mais um pouco - respondera-lhe ela.

Estava ainda um tanto magoada, porque ele exclamara com veemência: «Tens a certeza de que podes?» Mas não devia ficar ofendida com Clem. Ela conhecia a sua grandeza.

Depois de ter terminado a escola, summa cum laude, uma honra que desdenhara de comunicar a William e que Clem não compreen­dia inteiramente, e que parecia apenas surpreender seus pais, entrara para a Colúmbia a fim de se especializar em química. E eis que agora, a meio do caminho, já não podia ir avante...

Apresentou os seus desesperados argumentos a Clem, que ninguém a estimava e que ela vivia muito sòzinha para poder viver. Até mesmo no colégio fora sempre só, porque, não tendo vivido na América, não tinha nada para dizer às outras jovens. Desejava estar com Clem, e só com ele, e não mais o deixar.

Clem respondeu-lhe graves e ponderadas palavras sobre a interrupção dos seus estudos, que ela iria lamentar mais tarde e não perdoaria a si própria. Depois de ter recebido uma porção de cartas de Henrieta dizendo todas a mesma coisa, viu ser ver­dade que ela poderia morrer de solidão, pois possuía, como ele, uma fome espiritual que sempre procurava deitar raízes em terreno próprio. Já era tempo de se unirem.

Foi ter com ela num dia de Junho e apresentou-se a seus avós por descargo de consciência, uma vez que não podia falar pessoalmente com o seu pai, nem Henrieta lhe permitiria que falasse com William. Os dois velhos estavam perplexos e temerosos de fazer algo errado, mas, depois de Clem lhes falar, alegraram-se ao pensar que já nada poderiam fazer. Os dois jovens tinham resolvido tudo.

-Deviam escrever ao pai e à mãe, dizendo que nada podem fazer no nosso caso - disse-lhes Henrieta.

O avô suspirou. -Não escreveremos, Henrieta. Deixamos isso a teu cargo.

-Isso é com vocês, os novos - murmurou a avó. - Fizemos o possível.

Henrieta sentiu-se inclinada a beijá-los pela primeira vez na vida. Era uma nova criatura, agora que fizera compreender a Clem que era honesto, para eles, casarem-se de uma vez. Estava quase alegre. Não haveria festa, dizia ela, pois a quem convi­dariam?

Logo que Clem obteve licença, ela, ele e os avós foram uma tarde ao pastor da próxima igreja presbiteriana e casaram-se. Ela trajava o seu vestido amarelo, e Clem comprara-lhe algumas rosas para levar, além de, também, uma grande e antiquada aliança de ouro, o único anel que, até então, jamais possuíra. Quando Clem lha pôs no dedo, sentiu que seria para sempre e que a levaria até para o túmulo.

Depois voltaram modestamente a casa para comer um bolo que Millie fizera e brindar com o borgonha de uma garrafa que o avô abrira. Depois pôs o seu vestido de seda azul, a única roupa nova que comprara, e tinha um estranho e incerto sentimento de que seus avós, embora velassem por ela, estavam contentes por a ver partir, contentes por ver os novos fora da sua velha casa. Estavam cansados e queriam dormir.

 

HENRIETA estava a costurar na pequena sala de estar da sua casa. Os seus dedos eram desajeitados, e a linha embaraçava-se frequentemente, mas não lhe ocorria deixar o trabalho simplesmente porque não tinha prá­tica, e continuava assim a costurar, olhando apenas ocasionalmente pela janela junto à qual estava sentada. O quadro que avistava era bastante simples, uma rua de casas baratas muito parecidas com a que ela e Clem tinham alugado nas proximidades do armazém. Qualquer graça que a rua pudesse ter, provinha de duas alas de bordos que começavam a mostrar agora os matizes do Outono. Era à tardinha, e crianças brincavam, correndo de um lado para o outro, aparentemente não vigiadas, a não ser que uma briga trouxesse uma das mães à porta.

-Que é isso, Dottie! Deixa de bater no teu irmãozinho!

- Mas eu quero!

-Não importa o que tu queres. Pára com isso, já disse!

Ela perguntou a si própria se Clem desejaria filhos. Nunca tinham falado nisso, cada qual por alguma não mencionada razão. Ela nem sequer tinha a certeza se desejava filhos. Nunca se habituara à vida americana e não sabia como criar um filho. Na China, havia as amahs. Ali, teria ela de lavar todas as roupas do filho e embalá-lo quando chorasse. Além disso, Clem bastava. Ele era uma dúzia de homens num só, com todos os seus grandes planos na cabeça. Já era muito cuidar que ele vivesse para os levar avante.

Que ele teria bom êxito, não duvidava. Desde o instante em que o vira na sala de estar do colégio, tinha acreditado em si. A confiança era a base do seu amor. Não podia amar ninguém em que não confiasse, e por este motivo só amava verdadeiramente a Clem e a seu pai.

Enquanto vivesse, não perdoaria a William, porque este se encolerizara ao saber que ela tinha casado com Clem. Escrevera a Ruth, depois de tudo, e no princípio Ruth não se atrevera a contar a William toda a verdade. Dera a entender ao irmão que o casamento ainda não se efectuara, e ele tentara impedi-lo, pensando que ainda se tratasse apenas de um noivado. Tinha realmente telegrafado para a sua mãe, em Pequim. Quando ela abrira o telegrama de sua mãe, proibindo-lhe, já demasiado tarde, que casasse com Clem, logo viu que andava ali o dedo de William.

«Aquele ignorante!»-chamara-lhe William, e Ruth conta­ra-lho.

Até Ruth ficara aborrecida. -Tu devias ter-nos dito, Henrieta. Isso não foi correcto. É um casamento desigual. Tu não o podes levar à casa de William.

-Não pretendo ir jamais à casa de William. -Fora essa a sua resposta. Nunca teria medo do irmão, por mais jornais que ele tivesse. Clem era tão inocente, tão bom... Não gostava que ela dissesse nada contra William.

-Ele é teu irmão... Seria bom que vocês pudessem ser amigos. -Era o que ele lhe dizia.

Quando ela lhe disse os sentimentos de William a respeito do seu casamento, Clem apenas tomou um ar grave. -Ele não compreende. As pessoas cometem enganos quando não compreen­dem. -Ela não podia levá-lo à cólera.

Ela própria escrevera a seus pais uma veemente carta em que proclamava a sua independência e a bondade de Clem, e seu pai respondera-lhe, com amizade; espantado com o estardalhaço. «Não vejo motivo por que não poderias casar com Clem Miller. Muito me entristeceria ver vocês nas circunstâncias do seu pai. Mas hoje em dia ninguém vive únicamente da fé».

Sua mãe escrevera-lhe uma carta surpreendentemente amável, mandando-lhe como presente de núpcias uma toalha de mesa bordada pelas monjas do convento chinês. Henrieta adivinhou astutamente que, na verdade, sua mãe não se importava com quem ela casasse.

Quanto a Clem, maravilhava-se com o êxito de William.

-Se William pudesse interessar-se pela minha ideia de alimentação agora, como iríamos longe! Ele faria o povo pensar e depois as coisas começariam a acontecer.

-Ele não deseja que o povo pense - interrompeu Henrieta ràpidamente.

-Ora essa!

 

O relógio deu seis horas, e as sinetas do jantar começaram a tocar por toda a rua. Ergueu-se para olhar o assado e as batatas no fogão, cortar o pão e servir o leite. Clem voltaria cedo para casa e desejaria comer e regressar ao armazém. Ela movia-se deva­gar, com uma pesada graça de que era inconsciente. O seu rosto imóvel, grave entre as tranças negras, raramente mudava de expres­são. Agora que vivia com Clem, os seus olhos eram mais belos do que nunca, grandes e profundos; mas, às vezes, tinham uma expressão de perplexidade, como se estivesse incerta de alguma coisa, de si talvez, ou talvez do Mundo. Não era uma limitada perplexidade, mas vaga e larga como o seu espírito, como se não soubesse o que pensar da existência humana.

A porta do pequeno vestíbulo abriu-se abruptamente e depois fechou-se, e a atmosfera da casa mudou. Clem tinha entrado.

-Estás aí? -Essa era a sua saudação, embora soubesse que ela estava sempre ali.

-Aqui estou - replicou ela. A sua voz era forte e profunda.

Ele entrou na cozinha, com seu passo leve e rápido. Os seus olhos encontraram-se, ela parada junto ao fogão, segurando uma panela, e ele encaminhando-se para a bacia, a fim de se lavar. Lavou-se, como fazia tudo, com nervosa rapidez e aplicação, e enxugou o rosto, os cabelos e as mãos numa toalha pendurada na parede. Depois veio até Henrieta e beijou-a na face. Não era tão alto como ela.

-Está pronto o alimento?

-Estou justamente a tirá-lo da panela.

Ele nunca dizia «jantar», mas sim «alimento». Sentou-se diante do assado que ela colocara na mesa e começou a cortá-lo cuidadosa­mente e com a mesma eficiência com que fazia todas as coisas. Tirou duas fatias finas, pôs uma batata ao lado e passou-lhe o prato. Depois cortou a sua própria fatia, menor e ainda mais fina.

- Porque não comes um pouco mais, Clem? -perguntou Henrieta.

-Hoje não. Está lá um homem à minha espera. -Porque não o trouxeste aqui?

-Não. Tive medo de que falássemos de negócios durante todo o jantar, e o meu estômago embrulhar-se-ia de novo. Quero um pouco de paz, na tua companhia.

Ela sentou-se em silêncio, servindo-lhe tomates e depois limas. Depois serviu-se a si própria. Nenhum deles falava enquanto comia. Ela estava acostumada a isso e disso gostava, pois sabia que no seu silêncio ele encontrava repouso. Estavam em comunhão, sentados ali sòzinhos à mesa. Depois de ter repousado, ele começaria a falar. Comia muito depressa, mas ela não lhe fez qualquer observação. Conhecia-o melhor do que a si mesma. Ele era feito de azougue e electricidade. O que quer que ele fizesse, não desper­tava nela a mínima sombra de censura. Algumas vezes, torturava-a o receio de que ele morresse novo, consumido interiormente pelo enorme plano que assentara, mas nada podia evitar. Clem tinha de seguir o seu caminho, pois para ele não havia outro, e ela devia acompanhá-lo.

Naquele país, que era o seu, continuava a sentir-se uma estranha, e a sua única segurança era Clem. Tudo o mais ali era diferente de Pequim e da sua infância, e ela não saberia como viver sem ele. Quando às vezes, à noite, ela tentava dizer-lhe isso, ele escutava-a até que terminasse. Depois ele sempre dizia a mesma coisa: - O povo é o mesmo em toda a parte, ainda hás-de ver...

Mas não era. Ninguém na América era como os chineses que ela conhecera em Pequim. Não poderia falar com ninguém em New Point sobre... sobre a vida! Ali falavam sobre várias coisas, e ela não se importava com essas coisas. «Tudo debaixo do Céu...» era como a velha Mrs. Huang costumava iniciar a conversação quando a ia visitar.

Ela olhou para Clem e sorriu. -Não te lembras como os chineses gostavam de começar dizendo : «Tudo debaixo do Céu»?

-E continuavam a falar sobre tudo debaixo do Céu!

-Sim... tu lembras-te também.

-Desejaria não estar com pressa, querida, mas...

-Eu sei, não sei porque pensei nisso...

Ficaram novamente em silencio, enquanto ele limpava o seu prato e ela reflectia sobre as actividades dos homens e as coisas pelas quais eles se sacrificavam. William, nos seus esplêndidos escritórios de Nova York, era tão escravo de um plano como Clem, mas com que diferença e com que opostas finalidades! Ela não poderia devotar-se a Clem se ele desejasse ser rico unica­mente com vista no Poder. Ele não pensava no dinheiro senão como um meio que pudesse favorecer os seus planos, uns planos tão vastos que ela não se atreveria a contá-los a ninguém, a não ser que o julgassem louco, mas bem sabia que ele não o era.

Clem pousou o talher. -E então, que há para sobremesa?

-Maçãs cozidas. Desejava fazer uma torta. Mas disseste na última vez...

-:As tortas pesam-me no estômago. Não me posso preocupar com o meu estômago quando tenho de trabalhar.

Ela ergueu-se, mudou os pratos e trouxe as maçãs. Ele comeu uma em três tempos, depois foi acomodar-se na cadeira de balanço e fechou os olhos, para dormir uns dez minutos.

Ela sentou-se imóvel, não se mexendo para levantar a mesa. Aprendera a sentar-se assim, para que o sono dele não fosse perturbado por nenhum ruído. O seu ouvido era tão fino que o mais leve movimento ou sussurro o acordava. Mas ela não se importava de ficar sentada a olhá-lo enquanto ele dormia. Eram tão próximos, tão íntimos, que o seu sono parecia dar-lhe repouso, também. Sòmente o seu espírito divagava, meio desperto.

Ele abriu os olhos tão súbitamente como os fechara e foi sentar-se de novo à mesa, em frente dela.

-Querida, sinto que estou a desperdiçar o teu tempo.

Ela não respondeu, pois não sabia o que ele queria dizer.

-Aqui estou eu casado com uma excelente mulher, de ins­trução superior, e só o que ela faz é cozinhar para mim e serzir as minhas meias!

-Não é o que as mulheres têm de fazer? -Não a minha!

Olhou-a ternamente, e ela corou. Sabia agora que nunca ouviria as palavras de amor que as mulheres esperam dos homens. Clem não as conhecia. Ela duvidava de que ele jamais tivesse lido algum dos livros que as continham. Mas não lhes sentia a falta, porque nunca as conhecera, tão-pouco. Sabia muito bem que Clem era a única pessoa que a tinha amado, e do seu amor tinha a certeza, não por palavras, mas pela simples presença de Clem. Era tal a transparência do seu ser que o amor irradiava dele como uma luz. Brilhava sobre ela agora, enquanto estava sentado a olhá-la, meio sorridente. Ela via a recordação em seus olhos.

-Lembras-te daquele pão preto chinês que comíamos em Pequim? A maneira como os tostavam no carvão, polvilhados de gergelim?

-Sim, lembro-me daqueles pães chatinhos... Tenho às vezes vontade de os provar de novo. Que dizes se voltássemos? -À China?

-Só para um passeio. Talvez esqueça o que era Pequim se puder ver o que é agora.

Ele parecia pálido e cansado e ela sentiu um aperto no cora­ção. Tinha ela sempre aquele pressentimento, indefinido, desarra­zoado, de que era mais forte do que ele, mais indestrutível, mais duradoura. Não lhe ardia no íntimo nenhuma chama como a dele, e ela, no entanto, não se sentia cansada.

-Seria bom voltarmos, Clem.

-Bem, veremos...

Ergueu-se com a sua habitual agilidade, e o pressentimento dissipou-se. Não havia razão para pensar... nada! Mas, depois de ele se ter retirado, ela ficou sentada, a pensar... Sim, lembrava-se daqueles pães, e do velho vendedor. Muitas vezes havia ela fugido pelo portão posterior e, oculta por uma moita na extremidade do muro da Missão, ali ficava à espera. Ainda agora podia ouvir o pregão agudo do vendedor enquanto ele descia a rua, sempre à mesma hora, nas manhãs de domingo, quando pensavam que ela e Ruth estivessem a preparar as lições para a segunda-feira. Ele sempre ia procurá-la atrás dos bambus, e quando a avistava, sorria-lhe com a sua boca desdentada.

-Bem quentinhos - dizia ela sempre.

-Então não sei? -replicava ele e, baixando-se para o pe­queno forno, aprontava os pãezinhos quentes. As suas mãos estavam sempre sujas de farinha e massa crua e as suas unhas eram garras negras, mas ela não pensava nisso, gulosa como era dos pãezinhos. Pagava-lhe dois pene e corria para casa, ocultando os pãezinhos debaixo da blusa. Ruth não os queria provar porque as mãos do padeiro eram sujas, e assim ela comia-os sôzinha, aqueles pãezinhos de um cheiro delicioso, com o gergelim que sabia a nozes. Clem também havia comido daquele pão, mas William nunca. Como Ruth, William teria pensado nas mãos sujas do homem, mas Clem e ela pensavam no pão, quentinho das brasas. Era excelente.

Ela ergueu-se e começou a levantar a mesa. O que Clem estava a fazer era tão simples como o que fazia o velho vendedor. Dois pãezinhos, por um penny cada um; o velho vendedor fazia-os e saía a vendê-los. Se era bom, o povo comprava, isso era tudo. Não sômente pão, aliás. Se alguma coisa era suficientemente boa e barata, o povo queria-a. Isso era tudo. O que Clem estava a fazer era simples e tremendo, tão simples que o povo não pensava que ele estivesse a fazer alguma coisa, e tão tremendo que se o soubessem não teriam acreditado. Sòmente quando vissem a coisa acabada, o pão, a carne, o alimento barato e bom, pronto para ser comprado, é que acreditariam. E, mesmo acreditando, não compreenderiam.

Algumas vezes, à noite, Clem desejava ler a Bíblia. Não iam à igreja e nenhum deles tinha por hábito rezar. Mas algumas vezes desejava ler alto para ela. Na noite anterior, quando estavam deitados, ele acendera a luz e pegara na pequena e velha Bíblia que conservava na mesinha de cabeceira. Procurara o lugar em que Jesus tomara os pães e peixes e alimentara todos os que tinham fome, e pôs-se a ler, a meia voz, como se fosse para si, enquanto ela escutava. Depois fechou o livro e recostou-se no travesseiro, com as mãos na nuca e os olhos fixos no tecto.

-Isso é o que eu desejo fazer - dissera ele. -À minha maneira, naturalmente. Mas gosto de ler de vez em quando como alguém mais o fez. Temos a mesma ideia-alimentar os famintos. Tenho de achar algum meio de produzir alimento mais barato. Desejaria que fosse de graça. Deve haver um meio para que um faminto consiga alimento sem ter de pagar. Deve haver um meio.

Depois de levantar a mesa e lavar os pratos, sentou-se de novo a costurar. Descia o crepúsculo sobre a rua tranquila. Um cenário de paz e de fidelidade que uma mulher podia olhar, e, nas pequenas cidades de toda a América, milhões de mulheres estavam a olhar para uma rua tão tranquila como aquela. Esperavam passar a vida ali, criando os filhos, ocupando-se com os netos. Mas Henrieta, erguendo os olhos, viu que aquela rua, para ela, era apenas o cenário de um instante. Clem queria que ela o acompanhasse, e uma estrada não tinha fim uma vez que Clem a começava a trilhar...

Clem era agora dono do armazém. Adquirira-o de Mr. Ja­nison depois do casamento, e Bump também era sócio. Clem sentia-se imensamente orgulhoso de Bump e, desde que fora diplomado por uma escola, tratava-o com certa consideração. Era um milagre para Clem ver que o menino perdido se tornara um sério rapaz de óculos, honesto e trabalhador, embora desgra­çadamente sem senso de humor. Bump ouvia tudo o que Clem dizia e, às suas fantasias como às suas ordens, aos seus sonhos como aos seus cálculos, prestava a mesma intensa atenção. Dava a sua opinião quando Clem lha pedia, o que acontecia frequentemente, e tentava não se melindrar quando Clem não a seguia. Clem era um profundo convicto e, à sua maneira, um homem egoistica­mente altruísta. Não levava em consideração quaisquer planos para benefício da Humanidade a não ser o seu. Estava mais do que nunca convencido de que qualquer governo falharia, excepto quando o povo fosse adequadamente alimentado, mas como nenhum governo se dava a esse trabalho, ele pregava isto como um evangelho.

Com Bump a seu lado, sempre armado de um bloco de papel e lápis, Clem percorria o país, num dos mais velhos carros Ford. Em aldeias e locais remotos, onde quer que as colheitas apodreciam porque as estradas não podiam servir aos lavradores, encontrava meios de transportar os víveres a cavalo, em carroças e, com o tempo, em camiões, até às estações de caminho de ferro ou aos mercados. Os seus mercados abriam-se em toda a parte em que houvesse população e géneros suficientemente perto para serem concentrados.

Sem querer, Clem começava a ganhar muito dinheiro. Olhou para Bump um dia, com as sobrancelhas erguidas, e atirou-lhe com meia dúzia de cheques para cima da grande mesa de pinho, na sala do fundo do armazém, onde estabelecera o seu escritório.

-Mais massa para o Banco, Bump. Tenho de pensar como a empregar. A coisa começa a rodar. Neste andar, um dia estaremos agindo no resto do Mundo.

Nesse momento, a velha e adormecida nostalgia ardeu em chama viva. Com aquele dinheiro poderia ir à China. Não desejava ficar por lá, queria, apenas, tornar a andar pelas ruas poeirentas, entrar de novo na casa de Mr. Fong e ir visitar as sepulturas de seus pais e irmãs. Yusan, ressuscitando o seu inglês, escrevera-lhe há tempos para lhe comunicar que Mr. Fong tinha ido secreta­mente buscar os corpos e que os enterrara fora da cidade, no cemi­tério da sua própria família, numa das colinas ocidentais. Em dois pesados caixões chineses, em cada qual havia uma menina com um dos pais, Mr. Fong pregara as tampas, e mentira aos guardas da porta da cidade, dizendo que os mortos eram o seu irmão e a sua esposa, arrebatados ao mesmo tempo por uma febre con­tagiosa. Clem poderia ver, não só as sepulturas dos seus mortos, mas também as faces dos vivos, de novo alegres como as recor­dava, e poderia aliviar-se de um secreto peso em que ele próprio não se permitia pensar. Não teria saudade de mais nenhum outro país. Mas não poderia ir sem Henrieta. Ele podia partir no seu Ford, reparado, para que pudesse aguentar tanto as montanhosas areias de Virgínia como as de Nebraska, e deixar Henrieta durante semanas, desde que estivessem no mesmo solo. Mas não podia contemplar o oceano entre ambos.

Num dia de Novembro lera uma notícia no jornal da terra, o único jornal que lia. Não tinha nenhum grande título, e nem sequer estava na primeira página. Contudo, era uma notícia cuja importância ninguém, senão ele na cidade, talvez ninguém senão ele no Estado, e talvez no país, poderia compreender. A Imperatriz da China havia morrido. Isso era o suficiente para mudar a atmos­fera das suas recordações.

Clem leu-a, sentou-se num barril e voltou a lê-la. Com que então ela estava morta, aquela mulher grandiosa e má, cuja legenda ele ouvira na cidade que ela dominara, como uma monstruosa e esplêndida ave de rapina! Ao pensar na sua morte, em Pequim livre da sua presença, nos palácios desertos, aliviou-se-lhe o cora­ção. Seus pais, suas irmãzinhas estavam vingados. Não mais pre­cisava de pensar neles. O passado estava morto para ele.

Agora, com aqueles cheques à sua frente, ocorrera-lhe de súbito que era tempo de ir à China.

-Bump! -bradou ele. -Toma conta. Eu vou para casa.

Bump fez um gesto de assentimento, e os jovens empregados do escritório olharam, espantados, para Clem. Mas ele nada via. Dirigiu-se para casa no seu passo lépido, abriu a porta da rua e gritou

-Henrieta, creio que vamos para a China, agora! -Lá do fundo do pátio onde ela estendia roupa no arame, veio a voz de Henrieta:

-Muito bem, Clem!

Sacudida numa carruagem de um velho comboio trepidante, que vinha de Nanquim, Henrieta entregava-se à nostalgia. No pequeno compartimento que ocupavam, Clem olhava, pensativo, pelos vidros sujos das janelas. Era confortador ver belas plantações de repolho e campos novos de trigo. Os chineses sabiam alimen tar-se. O estômago de Clem, sempre pronto a protestar, estava em paz. Voltou-se para Henrieta:

-Sabes?

-Que devo saber? -Um leve e grave tremor nos lábios foi o sorriso que ela lhe dirigiu.

-Quando chegar a Pequim, vou procurar um daqueles velhos restaurantes maometanos e pedir um bom prato de carneiro assado. Creio que me assentaria muito bem.

-Se assim crês, assim será - respondeu ela.

Havia semanas que não recebia cartas, mas ela supunha que por aquela época do ano seus pais estavam em Pequim e em breve os encontraria. A sua atitude para com eles dependia de como recebessem Clem. Seu pai, sabia-o ela, seria amável, pois o seu temperamento e a sua religião a isso o compeliam, mas, quanto à sua mãe, não podia adivinhar. Para lhes preparar o espírito, telegrafara-lhes do hotel em Xangai. Não recebera res­posta a esse telegrama enquanto esperavam que a lavandaria do hotel lhes aprontasse as roupas. Vinte e quatro horas eram sufi­cientes para isso, mas um zeloso empregado da lavandaria engo­mara os colarinhos de Clem além da resistência do seu pescoço e fora preciso dar-lhes um jeito. O engomador declarou-se incapaz de lidar com colarinhos sem goma e Henrieta pedira emprestado um ferro de carvão a um camareiro e levara um dia a passar a ferro, enquanto Clem percorria as ruas da cidade chinesa. Par­tiram no dia seguinte sem esperar pelo telegrama. O pai dela devia andar numa das suas viagens de pregação, e a mãe talvez estivesse, durante a sua ausência, de visita a Tientsin.

Em Nanquim, contudo, alcançou-a um telegrama, expedido do hotel, e inquietante na sua concisão: «Dr. e Mrs. Lane par­tiram Estados Unidos».

-Mas porquê? -perguntou ela a Clem.

-Em Pequim o saberemos. Com certeza que não houve tempo para recebermos cartas.

E ficaram ali no compartimento a olhar a paisagem transfor­mar-se de ondulantes colinas em campos rasos. Clem conservava-se silencioso como nunca, e Henrieta sabia que ele estava afinal a enfrentar as suas recordações. Mostravam-se solícitos um com o outro, atentos a pequenas comodidades, e, de vez em quando, ante alguma coisa que viam ou ouviam, um rechonchudo garoto que passava descalço, a nota aguda e triste do pequeno gongo de latão de um cego, entreolhavam-se e sorriam sem falar. Ela não perguntava a Clem quais eram os seus pensamentos, temendo a própria intrusão do amor naquela gravidade.

A região tornava-se mais pobre à medida que se dirigiam para o Norte, e aldeãos despojados pelos bandidos vinham men­digar na plataforma do comboio. Amontoavam-se em confusão, erguendo as mãos súplices e lamentando em voz alta os desastres que tinham desabado sobre eles.

Henrieta, num impulso, distribuiu-lhes algumas pequenas notas, ante a incrédula alegria dos pedintes. -Americana... americana! -gritavam-lhe implorativamente.

-Gostei do que fizeste - disse-lhe Clem.

-Não adianta nada, naturalmente - retorquiu ela e dirigiu-se para o salão-restaurante, a fim de se acalmar um pouco. Ali, de costas para a janela e para a aldeia em ruínas e os mendigos, um rapaz chinês de longa túnica de brocado azul lia um exemplar de um dos jornais de William. Espantou-se de como teria ele conseguido o jornal, mas não fez perguntas. Sem dúvida, algum viajante americano deixara-o num hotel e fora apanhado sôfre­gamente, como acontecia com todos os jornais americanos. Ela sentou-se perto do chinês e, após alguns minutos, este apontou para as fotografias:

-É a sua terra?

-Sim - respondeu. -É a terra dos meus antepassados. -Como é que a senhora fala chinês? -Vivi aqui quando era criança.

-E voltou, quando podia ficar na sua própria terra? -Nem tudo lá é como o senhor está a ver. -Mas isto é assim mesmo?

Ele conservava os olhos fixos nas fotografias de sumptuosos interiores de residências de milionários, de grandes motores e vastos silos e maquinarias que não podia compreender.

-Essas coisas existem lá - afirmou ela.

Ela desejava explicar-lhe como tudo era verdade na América, não só o que estava ali para ele ver como o que ali não estava. Mas sabia que não valia a pena, pois ele sòmente acreditaria no que estava vendo, e, depois, estava convencida de que William fazia aquilo de propósito, que nas páginas dos seus jornais só vinha escrito o que desejava que o povo lesse, e só vinham estampadas as fotografias que desejava que o povo visse. E assim, ninguém jamais conheceria realmente a América, e para si o melhor da América não estava ali, pois o melhor não estava na riqueza e no luxo, nos amplos silos e nas máquinas.

Levantou-se porque não queria continuar a falar com o rapaz, e voltou para o pequeno compartimento. Clem tinha adormecido, com a cabeça a oscilar no magro pescoço. Uma ansiosa ternura encheu-lhe o coração. Ele era demasiado bom para viver: um santo e uma criança. Depois confortou-se. Certamente a bondade de Clem era a de milhões de americanos comuns, ricos ou pobres, e Clem não era realmente um homem rico, porque não sabia como gozar as riquezas, senão para as aproveitar nos seus sonhos de ali­mentar o povo. Gostava da sua velha cama vulgar de ferro, de juntas rangentes e vergado colchão de arame, e ainda pensava que uma cadeira de balanço era o mais confortável assento que um homem poderia ambicionar. Era estreito e limitado e, em certos sentidos, muito ignorante, mas toda a beleza da América estava nele, porque falava a todos exactamente do mesmo modo e não lhe ocorria comparar um homem com outro, e nem sequer consigo próprio.

Sentou-se a seu lado. Enlaçou-o suavemente e inclinou-lhe a cabeça no seu ombro, sem que ele despertasse.

 

Em Pequim, Clem continuou silencioso. Contra a sua von­tade, dominou-o de novo o horror das velhas recordações. Ali tinha sido uma criança proscrita, que não era respeitada nem pelos americanos nem pelos chineses, por causa da sua pobreza e da crença de seu pai. Por acaso, o hotel em que ele e Henrieta se achavam hospedados dava para a mesma rua onde brigara com o filho do padeiro e onde William havia descido do jinriquixá particular de sua mãe. Indicou o lugar a Henrieta dez minutos depois de terem entrado no quarto e pela primeira vez lhe contou a história. Ouvindo-o, ela adivinhava, com aquela sua intuição que só despertava em relação a Clem, que a velha pena ainda pungia.

-William era um rapaz odioso - declarou, enraivecida. Clem meneou a cabeça. Repugnavam-lhe os julgamentos. -Eu era um lamentável exemplar, em todo o caso... – disse ele, como para contrabalançar. E depois: - E se fôssemos saber da tua gente?

Deixaram, pois, o hotel e desceram pela rua, seguidos por clamorosos condutores de jinriquixás, que se sentiam defraudados no seu direito de ganhar a vida, ao ver dois estrangeiros andando a pé.

-Tinha-me esquecido como são os pobres - exclamou Clem. -Creio que não o sabia antes, porque era também muito pobre.

-Aqui está o portãozinho do fundo. Eu fugia por aqui para comprar pãezinhos quentes - disse Henrieta.

Entraram pelo pequeno portão e dirigiram-se para a frente do edifício da Missão.

-Estive uma vez aqui - anunciou Clem. -Tudo me parece mais pequeno.

A casa estava fechada, mas um guarda veio ao seu encontro. -Onde está Lao Li? -perguntou Henrieta.

O guarda olhou para ela. -Voltou para a sua aldeia. Como o conhece?

-Fui criada aqui. Sou a filha mais velha do Dr. Lane. Onde estão meus pais?

O guarda da Missão sorriu e inclinou-se. -Foram para a sua terra. Seu pai adoeceu, irmã. Ele foi procurar o seu irmão mais velho.

-Como vai ser agora? -perguntou Henrieta a Clem. -Bem... Queres voltar para a América?

Ela reflectiu um instante. -Não... Estamos aqui. Não os abandonei para ficar contigo, Clem? Sim, foi o que eu fiz, afinal de contas. Além disso, a mãe iria procurar William e não a mim.

Clem não respondeu, e continuaram a andar. A tranquila cerca, florida com a Primavera, era como uma ilha fechada e esquecida no meio da cidade. O único sinal de vida eram duas mulheres e uma criança na extremidade do relvado, colhendo trevo e bolsa-de-pastor para aumentar a sua refeição daquela noite.

-Isto tudo parece morto - disse Henrieta.

-Está morto, de facto - replicou Clem. -Toda aquela antiga vida está morta, mas os que ainda a vivem não o sabem, nem mesmo o teu pai, creio eu. Que dizes se fôssemos procurar os Fongs?

Mr. Fong tinha prosperado durante os anos da guerra civil. Ignorando as manobras políticas dos militares e passando em silêncio pelas manifestações dos estudantes nas ruas, tinha come­çado a sortir a sua livraria com outras coisas que o povo desejava comprar, agulhas e linhas, meadas de lã de cores vivas, relógios e pratos, camisolas e meias, sapatos de couro e luvas de Inverno, cadernetas e canetas de tinta permanente, lápis e bolsas para água quente. A maior parte das suas mercadorias vinha do Japão, o que muito o inquietava, pois jovens estudantes, que eram também zelosos patriotas, repetidamente saqueavam as lojas, queimavam as mercadorias e pintavam letreiros nas suas janelas, anun­ciando que este ou aquele comerciante era um traidor e um amigo do Japão. Mr. Fong tinha feito num ano duas cautelosas viagens ao Japão para comprar mercadorias, e aconselhara-se com os negociantes japoneses com quem fazia tão proveitoso comércio, e desde então as suas mercadorias traziam a marca: «Made in USA». Uma pequena cidade marítima japonesa, com esse espe­cial propósito, era chamada Usa. Mr. Fong continuara então a prosperar sem sentimento de pecado, e considerava toda a con­tenda militar como uma tolice, indigna da atenção de sensatos negociantes. Tinha paz de espírito por outros meios, pois a sua família compartilhava das suas saúde e prosperidade, e seu filho mais velho continuara a aperfeiçoar o inglês que Clem começara a ensinar-lhe há tempos. Yusan era agora um rapagão, já casado com uma jovem que seus pais escolheram para ele, e ela ime­diatamente ficara grávida.

Em certo fresco e límpido dia do princípio da Primavera, considerava Mr. Fong que a vida seria completamente boa se todos os políticos, soldados e estudantes fossem lançados ao mar. O seu contentamento era aumentado pelo apetitoso cheiro do açúcar quente e toucinho que Mrs. Fong estava mexendo para preparar alguns bolos, ajudada por sua filha mais velha, que já estava noiva de um jovem cujo pai era negociante de cereais.

Os dois filhos mais novos de Mr. Fong, Yuming e Yuwen, estavam a brincar no pátio, pois já tinha começado a Festa da Primavera.

Nesse agradável momento, Clem e Henrieta chegaram. A porta foi aberta por Yuwen, que nascera depois da partida de Clem. Contudo, o americano era uma legenda na família Fong, e Yuwen identificou-o com alegria e sorrisos. Deixou a porta entreaberta e correu a dizer a seu pai que Mr. Mei havia voado. Mr. Fong deixou o cachimbo e gritou por Yusan, que estava nos seus aposentos.

Com as mãos estendidas, Mr. Fong saudou Clem. -Você voltou... você voltou! - balbuciava. - Esta é a sua esposa? Entrem... entrem... Quer dizer que você voltou!

-Voltei, sim - respondeu Clem.

Assim Clem, com Henrieta a seu lado, entrou de novo naquele pedaço do velho mundo da sua infância e sentiu de novo os cheiros familiares de uma casa chinesa, mistura de comida adocicada e incenso e vela de sebo. Havia até o antigo e vago cheiro de urina, que lhe dizia que Mr. Fong não se tornara mais moderno durante aqueles anos e que ainda se dirigia justamente para o lado de fora da sua porta quando sentia necessidade. Cheiro da cal das paredes, cheiro da velha madeira das vigas e o cheiro húmido das lajes do pátio, onde tudo era o mesmo. A romãzeira estava mais alta e copada, e o peixe dourado do aquário, despertado pelo Sol, estava grande e redondo.

Clem curvou-se, olhando. - O mesmo peixe? - perguntou. -O mesmo - respondeu Mr. Fong. -Aqui tudo é o mesmo. Um alarido fez que se voltassem. Mrs. Fong irrompia da sala central.

-Você voltou... você voltou!

Tomou a mão de Clem nas suas. -É como se fosse meu filho - disse ela a Henrieta. -A sua face redonda era uma rede de risonhas rugas.

-Deve considerá-la como sua nora - disse Clem. -O pai dela é o Prof. Lane.

Nisto apareceu Yusan. Ele e Clem apertaram-se as mãos à maneira estrangeira. Depois Yusan colocou a sua mão sobre a de Clem: - Pedimos muitas vezes aos deuses que o trouxessem de volta. -A Henrieta disse ele com grande cortesia: - Minha esposa manda-lhe pedir que vá ter com ela. Ela está agora muito gorda do nosso primeiro filho e não gosta de aparecer diante de homens que não conhece.

-Venha comigo - disse Mrs. Fong, e Henrieta retirou-se com ela para o interior da casa.

-Vamos sentar-nos ao Sol - disse Mr. Fong a Clem. -Con­sigo não tenho cerimónia. Yuming, Yuwen, não fiquem aí parados, a olhar. Tragam chá e comida.

Os três homens sentaram-se no pátio, em tambores de porcelana, e Mr. Fong contemplou afectuosamente o recém-chegado.

-Você está muito magro - observou. -Devia comer mais. -Tenho o estômago fraco, Velho Irmão - respondeu Clem. -É porque você anda muito preocupado com alguma coisa, - observou Mr. Fong. -Diga-me o que é. Não se deve preocupar tanto.

Assim convidado, Clem começou a falar, como sempre fazia, mais cedo ou mais tarde, sobre a sua esperança de vender ali­mentos baratos, até mesmo ali na China.

Mr. Fong e Yusan escutavam. Yusan nunca falava antes de o pai o ter feito, e Mr. Fong disse: - O que você pretende fazer está muito além do poder de um só homem. Não é de espantar que tenha um estômago fraco e que esteja tão magro. Um homem avisado calcula a sua capacidade e não vai além. O que você está a fazer é mais do que um rei pode fazer, e mais do que a Velha Imperatriz jamais fez. Quanto a estes novos homens que temos agora, não pensam em alimentar o povo.

-Governam pior do que a velha? -perguntou Clem.

Mr. Fong olhou em todas as direcções e para o céu vazio. Depois chegou o seu tamborete mais perto de Clem e sussurrou-lhe estas palavras ao ouvido:

-Nos velhos dias tínhamos apenas certos governadores. Havia a Velha Buda e, em cada província, o vice-rei e depois o magistrado local. Esses todos abocanhavam o seu bocado. Mas agora pequenos governadores formigam por todo o país. É este e mais aquele homenzinho, todos dizendo que vêm da parte do novo governo e todos querendo aproveitar-se. Estamos pior do que antes.

Os dois rapazinhos apareceram com uma velha criada, trazendo chá e os bolos ainda quentes do forno.

-Coma - disse Mr. Fong. -Aqui o seu espírito estará em paz e o seu estômago não se manifestará.

Havia anos que Clem não comia nada doce, mas sentiu um súbito apetite por aqueles bolos que lhe lembravam a sua infância. Pegou num e comeu-o devagar, tomando chá quente entre cada bocado.

-Quando se come toucinho e açúcar - disse Mr. Fong-é preciso tomar bastante chá... Da mesma forma, bebe-se vinho com caranguejos.

-É estranho que eu sinta paz aqui como não senti em parte alguma - disse Clem. -Apesar das guerras e do novo governo, sinto paz aqui na sua casa. -O seu chinês estava na ponta da língua. Falava-o com toda a antiga fluência e facilidade. Os seus pensamentos fluíam nas suaves e sonoras vogais e na ondulação dos tons.

-Estamos em paz aqui - concordou Mr. Fong. -O tumulto lá fora nada tem que ver com a nossa paz interior. Fique aqui connosco, venha morar para aqui e nós o deixaremos bom.

A um canto, Yuming e Yuwen estavam gulosamente sabo­reando os bolos, defronte de um roliço cão pequinês, que fungava e acendia os olhos redondos ante a quente e deliciosa fragrância. Não ocorria a nenhum dos garotos dividir o seu bolo com o cão. Dar a um animal alimentos feitos para seres humanos seria uma loucura, e os Fongs não cometiam loucuras. Havia em todos eles uma severa e milenária sabedoria. Clem achava-se ali sen­tado, descansado, embora não deixasse de ter consciência de tudo que se agitava no seu espírito. Doce era a paz, e doce era não encontrar nada mudado. De todos os lugares do Mundo, ali não houvera mudança.

No pequeno quarto central dos três que Mr. Fong concedera a seu filho e sua nora, Henrieta estava sentada entre Mrs. Fong e Flor de Jade, que era a esposa de Yusan. Cada uma segurava uma das mãos de Henrieta e batia-lhe gentilmente, olhando-a e fazendo-lhe pequenas perguntas íntimas.

-Como é que não tem nenhum filho? -perguntou Mrs. Fong.

-Eu nunca concebi - replicou Henrieta. Ao princípio tivera medo de que não já soubesse falar chinês, mas havia ali uma face chinesa, esperando resposta. E havia, entre ela e aquelas duas, algo do íntimo calor, do velho e natural entendimento humano de que tão bem se lembrava e que tanto lhe havia faltado intimamente.

-Que vai fazer você por ele?! - exclamou compassivamente Mrs. Fong. «Ele» queria dizer «marido». Mrs. Fong era muito bem-educada para usar a palavra.

-Que posso eu fazer? -perguntou Henrieta.

Mrs. Fong aproximou-se mais. -Devem fortificar-se. Vocês são tão magros! Fique connosco e eu alimentá-la-ei bem com açúcar amarelinho e pudim de sangue. Isso é muito bom para senhoras jovens que não concebem logo. Depois de terem passado um mês connosco, garanto-lhe que ficará grávida. A mulher de meu filho levou menos tempo.

-Catorze dias - disse Flor de Jade, com uma vozinha suave, e riu baixinho.

Mrs. Fong franziu as sobrancelhas para ela, a seguir sorriu e tornou a falar com Henrieta.

-Há mais de um ano que está casada?

-Muito mais.

Mrs. Fong pareceu alarmada. -Você não devia ter espe­rado tanto. Devia ter vindo antes para cá. Não sabem o que hão-de fazer na sua terra?

-Lá talvez não se preocupem tanto em ter filhos... – replicou Henrieta. Não poderia explicar àquela mulher, que era apenas e inteiramente mãe, que Clem era de certo modo tanto seu filho como seu marido, e que ela não se importava grandemente se os não tivesse, porque não precisava de se dividir. Mrs. Fong não teria compreendido. Pois não era por amor do homem que uma mulher tinha filhos?

-Seria melhor arranjar uma segunda esposa para ele, para que ela tivesse filhos para vocês - disse Mrs. Fong.

-Isso não é permitido no nosso país - observou Henrieta.

Mrs. Fong arregalou os olhos. -Que outro recurso pode haver para as mulheres sem filhos?

-Continuam sem eles - respondeu Henrieta.

Flor de Jade soltou uma leve exclamação: - E que diz ele?

-Ele é bom para mim - disse Henrieta.

-Deve ser mesmo muito bom-concordou Mrs. Fong. Bateu de novo na mão de Henrieta. -Em todo o caso, não convém contar muito com a bondade dos homens. Irmãzinha, você vai beber açúcar amarelinho com água quente e eu matarei um dos nossos gansos e farei um pudim de sangue. -Olhou para Hen­rieta. -Você poderia, por amor de um filho, beber o sangue fresco e quente?

-Não - disse Henrieta ràpidamente.

-Foi o que fiz - observou Flor de Jade. -Bebi-o um dia e logo fui feliz.

Mrs. Fong franziu as sobrancelhas para a sua nora e sorriu para Henrieta. -Não devemos forçar-aconselhou ela. -Nem todas as mulheres são iguais. Há mulheres que não podem beber sangue, nem mesmo para ter um filho. Se o bebem, vomitam. Farei mesmo um pudim de sangue. Dois ou três pudins, um por dia. Depois veremos... veremos... -e deu outras palmadinhas na mão de Henrieta.

 

-Você incomoda-se inútilmente - disse Mr. Fong a Clem.

Desde alguns dias que estavam em Pequim, morando na casa da família Fong. A digestão de Clem processava-se suavemente e ele estava tão tranquilo de espírito como nunca estivera durante anos.

-Como é que eu me incomodo? -perguntou ele.

Estavam sentados na grande sala de estar da família, um sítio confortável, desarranjado e não muito limpo, onde os cães entravam e saíam e os gatos se estiravam nos lugares de Sol mais quente, e as crianças da vizinhança vinham ver os americanos, enquanto Mrs. Fong se atarefava de um lado para o outro. Hen­rieta desfazia um velho suéter para tricotar um casaquinho e uma touca para o neto dos Fongs, que devia nascer de um momento para o outro.

Mr. Fong apurou a garganta e cuspiu num pedaço de papel pardo que colocara por baixo da mesa. -Você pensa que um homem, sòzinho, pode alimentar o Mundo inteiro. É um sonho perigoso. Sòmente lhe provoca as perturbações de estômago de que me falou. Nada é mais perigoso para um homem do que pensar que pode fazer o trabalho de todos os outros.

Clem sentiu uma aguilhoada. Estava secretamente orgulhoso do seu sonho, pelo qual tanto tinha feito. Apesar de ser no íntimo do coração um homem visceralmente modesto, tinha contudo o orgulho dos modestos na sua humildade perante a obra realizada.

Mr. Fong, envolto numa velha túnica de seda preta, lavada há muito tempo, puída e ruça nos cotovelos, compreendeu perfeitamente o que Clem estava sentindo. Olhou para ele, por cima dos óculos de latão, e disse, acentuando as palavras com o indicador:

-É presunção, para um homem, considerar-se um deus. A cabeça erguida muito alto, mesmo na melhor das intenções, logo será aparada. Cada um deve cuidar apenas dos seus. Além disso, não há responsabilidade.

Apanhou um gato que estava deitado junto à sua cadeira e segurou-o incômodamente pela barriga. -Este animal é cego. Não alimento nenhum dos gatos, nem mesmo este. Estão aqui para caçar ratos. Mas os outros gatos trazem no mínimo um rato todos os dias para este gato cego. -O velho gato, incomodado com a posição em que se encontrava, arranhava-o com as quatro patas e miava. Imediatamente três gatos entraram na sala e olharam implorativamente para Mr. Fong, que largou o gato e limpou na túnica a mão ensanguentada.

-Continue a ensinar o meu marido - disse Henrieta. -Desejo que ele tenha uma longa vida.

Mr. Fong inclinou a cabeça. Sabia que era muito mais velho do que Clem para que soubesse que podia dizer-lhe o que quer que fosse. Por outro lado, não o impressionava nada do que Clem lhe dizia. Yusan escutava com deferência, visto que no caso era o mais jovem dos três, mas não tinha nenhuma vontade de assumir o papel de que Clem o desejava incumbir.

«Certamente farei com que a minha própria família tenha comida, bem como outros que dependam de nós. Ir mais longe seria uma loucura». Esta era a conclusão de Yusan. Andava naqueles dias, da loja para a casa, em perpétua aceleração para ouvir um pequeno grito vindo de uma das três salas que eram o seu lar, e seria impenetrável a quaisquer outros gritos.

Clem, passeando um dia com Henrieta sobre o muro da cidade, que lhes dava a vantagem de uma ampla vista dos telhados, das casas e das árvores verdes do quintal, parou para contemplar a cidade. Os telhados do palácio fulguravam sob o Sol do Outono, e os do templo eram de um azul magnífico. -Acho que Yusan não aceita as minhas ideias - disse ele com bastante tristeza para deter o espírito vagabundeante de Henrieta.

-Ora! - replicou ela para o consolar-é que não há verda­deiros famintos em torno de nós. Talvez seja por isso. Aqui até os mendigos são gordos.

Ela amava Clem com todas as forças da sua natureza, mas amais compartilhara do seu sentimento missionário. Isso, tam­bém, talvez devesse ela agradecer àquela cidade onde passara a infância e onde cedo aprendera que as mulheres eram de pouca valia. Era uma lição que devia ser aprendida cedo, pois era necessária para toda a vida. Na América, não aprendera nada mais do que isso, ou diferente disso. Estava habituada com Clem e, enquanto ele precisasse de si, a sua vida teria significação.

-Desejaria falar com Sun Yat-sen - disse Clem de súbito.

-Creio que compreenderá o que penso.

-Quem poderá saber onde ele está? -perguntou Henrieta. Clem reflectiu um instante. -Creio que Yusan sabe. -Então pergunta-lhe-sugeriu Henrieta.

Em vez disso, Clem resolveu perguntar a Mr. Fong. Não acreditava que houvesse segredos entre o pai e o filho.

Mr. Fong ouviu a pergunta com calma.

-O tempo não está maduro para a volta de Sun Yat-sen ­

respondeu ele.

-Onde está, então?

-Talvez na Europa, talvez na Malaia. Está a reunir as suas forças.

-Está pelo menos na China?

-Não, na China não está - disse Mr. Fong com firmeza.

Clem não perguntou mais nada. A atmosfera em Pequim não era de ansiedade nem de tensão, mas de expectativa. O Império fora-se, pelo menos no nome, e o povo não sabia o que viria depois. Mas estava em paz. Nunca tinha dependido de chefes e de governos. Possuía o conhecimento íntimo da autodisciplina. Os pais governavam os filhos, e os filhos não se rebelavam. Tudo estava em ordem e permaneceria em ordem enquanto os laços de parentesco ligassem as gerações. Enquanto as coisas corressem assim o povo viveria e desfrutaria a sua vida.

A nova vida de descanso que levava Clem transformou-se em inquietação. Começava a pesar-lhe a paz do lar de Fong. O neto nascera, felizmente um filho, e Yusan fora inteiramente absorvido pela paternidade. O velho Mr. Fong nada mais era do que um venturoso avô. Até que um dia Mr. Fong e Yusan conduziram Clem e Henrieta para fora dos muros da cidade, até os túmulos sobre as colinas. Essa visita fora várias vezes adiada, pois Mr. Fong dizia que Clem não devia ser perturbado por tristezas até que a sua digestão estivesse normalizada. Súbitamente, marcara o dia, e assim dissera Yusan a Clem na noite anterior:

-Velho Irmão, meu pai preparou para amanhã a visita ao túmulo, se o Irmão estiver de acordo.

-Estou pronto - respondeu Clem.

Partiram, pois, e, após uma hora decorrida, estavam diante de dois altos túmulos pontiagudos. Clem conservava-se de pé, com a cabeça baixa, enquanto Mr. Fong e Yusan fincavam no chão e acendiam varetas de incenso e Henrieta colhia flores silvestres que espalhava junto dos túmulos. Não houve orações nem outras cerimónias. Clem tomou a mão de Henrieta, e assim ficaram alguns minutos, ele a relembrar com triste gravidade os remotos acontecimentos, ela a confortá-lo.

Depois tomaram de novo os jinriquixás e Clem tentou mani­festar a sua gratidão a Mr. Fong.

-O senhor cuidou dos túmulos de meus pais como se fossem da sua própria família - disse Clem.

-Não somos todos uma só família debaixo do Céu? - replicou Mr. Fong.

Contudo, percebia a inquietação de Clem. Um dia convidou-o a ir ao seu gabinete particular, uma pequena sala atrás da loja, com as paredes recobertas de prateleiras onde estavam os velhos livros comerciais dos Fongs, durante os quinhentos anos que vinham exercendo a profissão de livreiros.

Mr. Fong fechou cuidadosamente a porta e indicou um assento a Clem. Depois abriu uma gaveta da secretária e tirou um rolo de papel onde estava escrito um endereço em caracteres chineses.

-Vá a este endereço - disse Mr. Fong. -Achará quem procura. Dê-lhe o meu nome para ser recebido e, se ele pedir mais provas, descreva esta sala. Ele esteve sentado nessa mesma cadeira onde você está agora.

Clem olhou para o papel. Trazia um endereço, em S. Fran­cisco.

-Será melhor que você vá imediatamente-aconselhou Mr. Fong. -Ele voltará, em breve. Vai acontecer alguma coisa este mês, nesta cidade. Se falhar, ou não, ele voltará da mesma forma. Se tudo sair bem, ele assumirá o Poder. Se não, virá confor­tar os seus partidários.

Clem ergueu-se. -Obrigado, Velho Irmão - disse ele a Mr. Fong. -Espero corresponder à sua confiança. Aguarde que ele me oiça.

No dia seguinte Clem deixou Pequim, em companhia de Henrieta, mas sem que esta soubesse porque tinha ele de partir tão apressadamente.

-Dir-te-ei logo que tenha tempo - disse Clem.

Só teve tempo quando se viu aprisionado pelo mar. Em Xan­gai, adquiriu um camarote num navio inglês que partia no dia seguinte. Podia regatear o preço de um sobretudo e jamais vestira roupa feita em alfaiate, mas, quando se tratava de conseguir os seus fins, o dinheiro só tinha valor para ser utilizado. Tomaram o navio, e Clem, estudando os horários, planeou a mais rápida viagem de Vancouver a S. Francisco.

-Qualquer dia nós voaremos - disse a Henrieta. -Antes de morrer, isso ainda acontecerá.

-Sim, para o Céu, creio que voaremos - sorriu Henrieta.

-Muito antes disso - observou Clem. -Para muitos, seria uma tristeza se tivessem de esperar pelo Céu.

Afinal, no segundo dia de viagem, quase com relutância, contou a Henrieta porque desejava avistar-se com Sun Yat-sen.

-Que ele vai tomar conta da China, não resta a menor dúvida. Pressinto-o. O povo está justamente à espera de alguém que o salve. Ele surgiu de parte nenhuma, como acontece com todos os salvadores. Surgem do chão, sabes? Trazem uma ideia, uma grande ideia: apenas uma é suficiente. Ele tem a ideia de dar ao povo chinês o seu governo próprio. Bem, ele conseguirá que acreditem nele. O povo necessita de fé. Ele também. Todos os que fazem alguma coisa têm de ter fé nalguma grande ideia. De modo que vou falar com ele e lhe direi: «Se você der pão ao povo, ele acreditará em você. Pois bem: como vai você dar pão ao seu povo? Alguns fazem de um modo, outros de outro, mas nunca ninguém conseguiu que o povo o acompanhasse sem o alimentar. O povo tem de ser alimentado. Lembre-se de Jesus multiplicando os pães...»

Ele estava de pé, contra o parapeito, de costas para o mar, e Henrieta deitada na espreguiçadeira que alugara junto a um bote salva-vidas, na plataforma mais alta, afastada de todos, como gostava de estar. Henrieta olhou para o seu rosto e pareceu-lhe que o mar tranquilo brilhava através das suas órbitas, tão azuis estavam os seus olhos naquele dia. A cor dos seus olhos era um barómetro que marcava a sua esperança. Quando se achava no alto de uma nova esperança, os seus olhos eram de um azul de mar, e, quando ele se sentia deprimido, como às vezes acontecia, eram quase cinzentos.

-Ouvir-te-á - disse Henrieta. -Estou certa de que te ouvirá.

O comboio de Vancouver chegou a S. Francisco exactamente depois do anoitecer. Clem separou-se de Henrieta na estação.

-Podes ir sòzinha para o hotel? Toma um carro com a tua bagagem. Creio que o Cliff House é muito bom. Espera lá por mim... Não saias a passear, nem nada!

Clem tinha a ideia de que Henrieta não deveria sair sózinha depois do escurecer, a não ser em caso de urgência.

-É melhor que me digas aonde vais-recomendou Henrieta. -Se não voltares, saberei onde procurar-te.

-Voltarei sem maior novidade. Os chineses conhecem-me bem, creio eu.

Retirou-se, muito apressado para se lembrar de fazer o que ela lhe pedia, e tomou um carro. Foi procurar o conspirador num dos miseráveis casebres que haviam brotado das ruínas do velho Bairro Chinês, após o grande incêndio. A velha, sombria e bela cidade dentro da cidade, engastada como uma gema em S. Fran­cisco-as estreitas e evocativas ruas que eram o centro da vida chinesa transplantada e cultivada por gerações de nostálgicos chineses-, tudo havia desaparecido. Os sobreviventes tinham edi­ficado aqueles abrigos como podiam e vagueavam pelas ruas, ainda atónitos e perdidos. Das cinzas não renascera a beleza.

Clem, contudo, não incluía a beleza entre as coisas necessá­rias. Alheio à fealdade ambiente, deixou o carro em certo ponto e seguiu pelas ruas tortuosas até o endereço que trazia de memória, tantas vezes o lera. Da Velha Cidade Chinesa, até o cheiro se extinguira, mistura de ervas e vinho, de sândalo e incenso, e o cheiro adocicado do ópio, e de porco assado e alho frito e óleo de sésamo. O som dos sinos dos templos calara-se e não havia já vendedores ambulantes. O tilintar dos címbalos do teatro deixara de se ouvir, e o próprio teatro ainda estava em ruínas. Mas o ar nocturno continuava pesado do cheiro acre da cinza e do fumo dos fogões familiares cozinhando ao ar livre.

Na antiga Rua dos jogos, com os seus portões de ferro transformados numa sucata retorcida e enferrujada, Clem achou o local que procurava. A porta estava aferrolhada, uma frágil folha de madeira, e ele bateu. Não foi aberta logo. Clem ouviu lá dentro um murmúrio de vozes.

-Abram a porta! - disse uma voz forte. -De quem posso ter medo?

Então abriu-se um pouco a porta e surgiu uma cautelosa face amarela.

-Que deseja?

-Procuro o Velho Irmão - disse Clem em chinês.

E, erguendo a mão esquerda, traçou sobre a sua palma, com o indicador da direita, o ideograma de Sun.

-Entre - disse o amarelo. A porta abriu-se o suficiente para deixar Clem passar. A casinhota compunha-se de uma única sala, dividida por uma cortina, e podia ver-se que funcionava ali uma lavandaria. O amarelo que viera abrir era o proprietário e, sem prestar mais atenção a Clem, dirigiu-se para a mesa atulhada com as roupas brancas que estava a passar a ferro.

Dois homens estavam sentados a uma pequena mesa pouco mais larga do que um banco. Um era Sun Yat-sen. O outro era o vulto encolhido e corcunda de um americano.

Clem dirigiu-se a Sun. -Fui mandado aqui por Mr. Fong, o livreiro da Rua Hatomen, em Pequim.

-Conheço-o - replicou Sun com voz tranquila.

-Venho com uma ideia que lhe pode ser útil - disse Clem. -Não tenho nenhuma cadeira para lhe oferecer - disse Sun.

-Queira aceitar a minha.

Ergueu-se, mas Clem agradeceu. O lavandeiro foi então lá dentro e trouxe um terceiro assento, onde Clem se acomodou. Sun não apresentou o americano.

-Tenha a bondade de prosseguir - disse ele com a sua voz estranhamente tranquila. --Estou para embarcar para a minha terra, e estes últimos dias, talvez estas últimas horas, são preciosas para mim.

-As notícias têm sido boas ou más? -indagou Clem. -Más. Estou acostumado às más notícias. Em todo o caso, devo voltar para a minha terra.

O corcunda interrompeu com uma voz aguda e incisiva:

-As notícias sempre serão más, a não ser que o senhor tenha um exército. Nenhuma revolução teve êxito enquanto se não con­seguiu um exército.

-Talvez - disse Sun Yat-sen, sem mudar a voz ou a expressão fisionómica.

-Não vim falar sobre um exército - replicou Clem. Sentia-se incomodado na presença do corcunda branco. Odiava conspira­ções e não acreditava que as revoluções fossem necessárias. O povo lutava quando tinha fome. Quando, famintos, o desespero leva­va-os a tudo. Mas, depois de isso ter passado, tudo dependia outra vez de como os novos governadores os alimentassem. Senão, tudo começava de princípio.

-Quero falar-lhe sobre alimentação-acentuou Clem abruptamente. -Quero dizer-lhe o que penso. O povo nunca ficará permanentemente em paz se não se tornarem regulares e garan­tidos os meios de conseguir alimento. Fiz um projecto nesse sentido.

Inclinou-se para a frente e começou a falar em chinês. Assim deixava de lado o corcunda. Tinha a impressão de que o corcunda era um inimigo. Aquela pequena face amarga, torturada por uma vida de trabalhos e penas, reçumava crueldade e violência. Mas, se pensava afastá-lo ao falar chinês, enganara-se. O corcunda esperava imóvel, com os olhos cerrados como se estivesse a dormir. O lavandeiro parou de passar a roupa e ouvia as rápidas e persua­sivas palavras de Clem.

-Isso mesmo, isso mesmo - dizia ele consigo.

Os olhos de Clem estavam fixos na face do revolucionário. Estudava-lhe a testa alta, a boca arrogante, as narinas largas, o vasto e poderoso crânio. Não poderia dizer se estava ou não a incutir a sua própria fé naquele homem.

Sun Yat-sen era um bom ouvinte. Não o interrompeu. Depois de Clem ter exposto o seu plano de organizar na China um sistema de distribuição de víveres que garantisse a satisfação popular, Sun Yat-sen meneou a cabeça:

-Não disponho de dinheiro para tudo. Tenho de escolher entre um exército que bata os inimigos do povo e estabeleça um justo governo para o povo, pelo povo e do povo, ou então, como sugere o senhor, simplesmente alimentar o povo.

-O seu governo não permanecerá se o povo não tiver alimentação - replicou-lhe Clem.

Sun Yatsen sorriu o seu famoso sorriso cativante. -Ainda não tenho governo. O próximo deve vir primeiro, meu amigo.

-Quando o povo tiver alimento, é que acreditará no senhor - insistiu Clem. -Quando acreditar, poderá o senhor estabelecer então o governo que quiser.

-Isso depende do ponto de vista - disse Sun Yat-sen súbita­mente em inglês. -Se eu estabelecer um governo, poderei então alimentar o povo.

O corcunda voltou à vida. Abriu os estreitos olhos de cobra. -Exactamente. A força vem primeiro.

Clem ergueu-se. -É pena que não nos tenhamos encontrado a sós - disse ele a Sun Yatsen. -Creio que falhei. Mas o senhor falhará também. O seu governo falhará, e alguém mais virá; e o meio que acharão para se impor será justamente prometer ali­mentação ao povo. Talvez que nem precisem de lhe dar alimen­tos. Por essa época o povo estará tão faminto que talvez uma pro­messa seja bastante.

Sun Yat-sen não respondeu por um momento. Quando falou, foi para dizer com a maior cortesia, enquanto se levantava:

-Agradeço-lhe, senhor, por me ter procurado. Agradeço­-lhe pelo seu interesse pelo meu povo. Sinto-me comovido, embora não convencido.

O seu inglês era admirável, e o acento levemente oxfordiano. Era muito melhor, na verdade, do que o linguajar americano de Clem, com o sotaque das planícies de Ohio.

-Boa noite - disse Clem. -Desejo-lhe boa sorte, em todo o caso. Espero que não se esqueça do que lhe disse, mesmo que não concorde comigo, pois sei que tenho a razão por mim.

 

CANDACE notou que William estava aborrecido. Inclinou-se para a beijar, como de costume, mas, depois de todos aqueles anos de casados, ela era sensível ao estado de espírito do marido, e viu uma sombria calma nas suas sobrancelhas espessas e na sua boca firme. Quando falou, a sua voz era formal.

-Desculpa-me ter vindo atrasado.

Ela bocejou graciosamente por detrás da mão. -Também cheguei atrasada. Senti-me cansada depois da «matinée». -A peça era boa?

-Creio que não seria do teu agrado.

Ergueu-se da chaise-longue em que estivera repousando e olhou pela janela. O vasto parque estava escuro, pontilhado de luzes.

-Espero que as crianças já estejam em casa. Nannie conser­va-as fora até muito tarde. Enlouquece por ar fresco.

-Havia uma faixa de luz por baixo da porta do quarto das crianças - replicou William-e, assim, suponho que já estejam em casa.

-Porque será que a sua primeira ideia ao entrar num quarto é abrir as janelas?

Fazia essa inútil pergunta enquanto calçava os chinelos de cetim que arremessara fora ao estender-se na chaise-longue. William sentara-se numa cadeira e tomara a sua atitude característica, entrelaçando as pequenas mãos morenas e cruzando as pernas longas e finas. Quaisquer que fossem as modas masculinas, vestia o seu favorito fato cinzento escuro, de listas leves, e a sua gravata azul-marinho. Não respondeu à esposa. Isso também era habitual. Candace fazia muitas perguntas sem esperar resposta. Eram as interrogações da sua mente preguiçosa. Ele já lhes prestara atenção, até que um dia descobriu que não tinham significação alguma.

Ela dirigiu-se para o toucador, de onde tirou uma escova e começou a pentear os cabelos curtos. Alguma coisa não corria bem, mas esperava que William lhe dissesse o motivo. Podia ser qualquer coisa, talvez não gostasse do cheiro da comida que vinha da cozinha. As criadas deixavam as portas abertas, apesar das suas ordens. Talvez fosse apenas por, ao vê-la pentear os cabelos, se ter lembrado de que ela, contra os seus desejos, resolvera mandar apará-los.

-Recebi hoje uma carta de meu pai - disse William brus­camente.

-Pensei que tivesses tido algum aborrecimento - disse ela, sem se voltar, mas vendo-o muito bem pelo espelho. O seu rosto estava tão pálido como de costume. Algo na sua infância, talvez a disenteria que o atacara aos quatro anos, lhe deixara os intes­tinos cheios de bactérias, agora inofensivas, mas mais numerosas do que deviam ser.

-Resolveram vir de licença finalmente - disse William.

Ela continuou a pentear os cabelos, examinando a cara do marido. -Uma boa notícia, não é? Eu nunca vi o teu pai, e as crianças não conhecem nem sequer a tua mãe.

Ele franziu a testa, e os negros supercílios que sempre lhe davam à face um ar tão sombrio, pareciam escurecer e ocultar os seus olhos profundamente encastoados nas órbitas. -Mas vêm em má época para mim. Tinha resolvido lançar agora o novo jornal, em vez de esperar até à Primavera.

Ela voltou-se. -Oh! William... Vais começar mais alguma coisa?

-Porque não?

-Mas assim nunca estarás connosco.

-Não precisarei de trabalhar tanto, como acontecia com os outros jornais. Tenho agora as minhas funções determinadas. -Mas porquê, se já temos dinheiro? Tu sacrificas-te a ti e a nós por coisa nenhuma, querido!

Deixou cair a escova e correu para o marido, ajoelhou-se a seu lado e suplicou-lhe: - Compreendes? Sempre tenho de andar com as crianças por toda a parte, sem ti. Em todo o Verão passado, na praia, só aparecias nos fins de semana... quando apa­recias! Não está certo, William, agora que já estão crescidinhos. Eu nada dizia quando começavas a tua vida, mas agora, justa­mente quando pensava que poderíamos ir ao teatro juntos, algu­mas vezes!...

Tinha plena consciência daquele lindo rosto tão perto do seu, e tudo faria para poder ceder-lhe, mas era impossível. Alguma inata resistência o fazia conservar-se afastado até da própria mulher. Não sabia o que era, mas sentia como que um anel de ferro a circundar-lhe o coração. Não podia entregar-se a ninguém, nem mesmo a seus filhos. Desejava brincar no chão, rolar no tapete, como Jeremias fazia com as filhas, mas não. Sentia-se mais à vontade quando se achava sentado à sua grande secretária no escritório, dando ordens aos seus empregados.

-Ainda na semana passada fui ao teatro contigo - lem­brou-lhe ele.

-Mas era uma noite de estreia, e bem sabes para que vão as pessoas às estreias: para verem e serem vistas. Queria que fôs­semos algumas vezes por nós mesmos, e unicamente pela peça.

Ele não gostava de teatro mas jamais o dissera à mulher. Não podia esquecer que se tratava apenas de uma peça. Nenhuma emoção do palco o conseguia atingir, quando sentia diàriamente a emoção da sua própria vida, do seu secreto poder, que sentia crescer por detrás da magia das palavras impressas que distribuía pelas suas páginas. Somente escolhia essas palavras. O que não desejava que o povo soubesse, não permitia que fosse impresso. O povo tomava conhecimento apenas do que ele seleccionava. Às vezes, meditando sobre a sua responsabilidade, sentia-se esco­lhido e destinado a exercer algum poder sobre os homens, que ainda não tinha alcançado. Fora educado na doutrina do cal­vinismo e da predestinação, mas, na sua rebelião contra a infância, rejeitava tudo quanto o pai lhe havia ensinado. No colégio, tor­nara-se quase ateu. Agora, o seu extraordinário êxito fazia-o voltar à religião. Em poucos anos, desde que lançara o primeiro dos seus jornais, a sua circulação atingira milhões. Mas ainda assim não se dava por satisfeito. De vez em quando, ao viajar de comboio, sentia-se vagamente magoado ao ver que no assento pró­ximo sempre havia as folhas amarrotadas de um jornal que ali fora abandonado. O povo devia guardar o que ele fizera tão cuidadosamente. Depois o seu sentimento pendia para o orgulho. Havia dois dos seus jornais para cada um dos outros. Tão colossal êxito significava alguma coisa. Havia um Deus, afinal... e pre­destinação.

-Em que pensas? -perguntou Candace.

A pergunta escapou-lhe da língua, e ela desejou retirá-la, mas já era tarde. William não gostava que lhe perguntassem o -que estava a pensar. Era uma intrusão, e agora ela bem sabia que ele se guardava até da própria esposa. Levara tempo para o saber, e muitas vezes tinha chorado sôzinha por causa disso. Mas as lágrimas, também o sabia agora, unicamente o irritavam. Deixara de chorar.

-Não... não me respondas - disse ela, e impulsivamente levou os dedos aos lábios do marido.

Mas ele tomou-lhe as mãos, até gentilmente, e respondeu-lhe:

-Eu estava pensando, Candy, que é uma grande responsabi­lidade para um homem saber que alimenta os espíritos-e as almas-de três milhões de pessoas.

-Três milhões?!

-Esse é o número dos nossos leitores hoje. Rawlston deu-me os últimos algarismos justamente antes de eu vir para casa. Daqui a um ano, diz ele que será o dobro desse número. Creio que possuo agora mais de um milhão de dólares.

-Obtiveste um grande triunfo, William. -Ela não estava muito certa de que era isso o que deveria dizer e, pelas seguintes palavras de William, viu que, de facto, se enganara.

-Não penso cinicamente no meu triunfo pessoal. É fácil triunfar aqui na América. Quem tiver miolos pode ganhar dinheiro.

-Mas tu gostas de dinheiro, William. -O seu sentimento de que havia errado compelia-a a justificar o que dissera antes. Por outro lado, era verdade. À sua maneira, William apreciava o dinheiro mais do que ela própria.

-É uma questão de simples bom senso ter dinheiro. -O seu tom de voz era seco, os seus olhos severos e cinzentos. -Sem dinheiro fica-se manietado. Não há liberdade sem dinheiro.

Ela lembrou-se do que ouvira o pai dizer uma vez: - «Um homem necessita de espaço suficiente para sacudir um gato pelo rabo». Espaço, era o que o dinheiro dava. Uma grande casa para morar e veraneios na praia, e comprar sem perguntar o preço.

-Mas tu não pareces gozar muito a vida, William - disse ela um tanto penalizada. Candace tinha uma profunda capacidade para gozar a vida, sem sentimento do pecado. Seu pai tinha gozado a vida francamente ao enriquecer e não acreditava em obras de caridade. Ela zombava às vezes do pai, dizendo-lhe que se tornara cristão científico para poder ignorar os sofrimentos alheios.

Ele sorria e não se deixava arreliar. -Talvez tenhas razão, minha filha. Quem sabe o motivo do que fazemos?

Depois acrescentava, sério: - Se vejo com os meus próprios olhos alguém a morrer com fome, dou-lhe de comer. Não sus­tento quem não vejo. Entre dez pobres, salva-se um que não seja um preguiçoso. Se tivessem lutado como eu...

Nem mesmo o facto de ir à igreja, como obrigação social, nada tinha a ver com isso de dar o seu dinheiro a estranhos. Roger Cameron não cultivara a consciência nos seus filhos, e Candace crescera acreditando que o divertimento era a sua ocupação nor­mal, uma vez organizado o jantar e devidamente atendidas as crian­ças. Mas não via nenhum prazer que pudesse afastar William de si próprio, ou do que quer que ele ocultasse na sua alma. Um baile que ela preparava com tanta alegria, como uma criança planearia uma festa de aniversário, enchia-o de aborrecimento. Um prato mal servido estragava-lhe o jantar. Um criado que não fosse bem treinado... mas em criados não queria ela pensar. Ele exigia, dos que o serviam, tanta obediência, respeito e decoro exterior que isso fora um verdadeiro sofrimento para ela até o dia em que seu pai a encontrara a chorar. Arranjava um meio de a visitar quando sabia que William tomava um automóvel e seguia por Wall Street para chegar às três da tarde ou às onze da manhã.

Numa dessas visitas, depois de perguntar a causa das lágrimas que seus olhos perspicazes tinham descoberto, apesar do pó de arroz e do rouge, dissera-lhe: - Não conseguirás americanos que sirvam William como ele deseja. Nós ainda não nos respeitamos suficientemente uns aos outros. Sempre fazemos questão de mos­trar que somos independentes e que não temos de obedecer a ninguém. Além disso, somos demasiado honestos. Quando odiamos alguém, odiamos sem tréguas. Enche a casa de criados ingleses, Candy... comportar-se-ão impecàvelmente, mesmo que estejam a preparar-te veneno. Um criado inglês engraxa os nossos sapatos como se gostasse de fazer tal coisa. Naturalmente que não gosta!

Candace, portanto, enchera a casa de criados ingleses, e um mordomo e uma governanta não tiravam os olhos de William.

-Não creio que a vida seja simplesmente para ser gozada - dizia William agora.

Ela ainda estava ajoelhada a seu lado. Pegara preguiçosamente numa das suas mãos e, brincando com os dedos, notara a estranha rigidez dos músculos.

-Para que é a vida, então? -perguntou ela, sem esperar resposta. - Creio que ninguém o sabe exactamente. Estamos aqui, eis tudo.

-É para alguma coisa mais que divertimento. -Ele não gostava que ela brincasse com a sua mão, e retirou-a, ostensiva­mente, a fim de acender um cigarro.

Mostrou-se desgostosa e, erguendo-se graciosamente, tomou­-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o na testa. -Querido... tu és tão sério!

-Não necessito da tua compaixão.

-Oh! Não, William, eu não queria dizer isso... Sòmente, gosto tanto da vida!...

Recuou e encontrou o olhar magoado que receava. Por­que nunca conseguia aprender como ele se melindrava fàcilmente? Exclamou: - Que tolice estarmos a falar de nada quando nem chegaste a contar-me os verdadeiros factos! Quando é que chegam teu pai e tua mãe?

William sentiu-se aliviado ao ver-se afastado dela. -Recebi um telegrama esta tarde. Embarcaram no dia 13 num navio inglês.

-Então daqui a uns quinze dias, temo-los por cá.

-Mais ou menos. Exactamente quando devo estar mais ocupado.

-Não importa. Encarrego-me deles. Meu pai tem tempo, também, agora que está livre bastante para sair do escritório à hora que quiser. E há o Jeremias e a Ruth...

-Precisarei de Jeremias.

Dos jovens com quem tinha começado o jornal, apenas Jeremias ficara. Os outros, um por um, tinham-no abandonado. Martin Rosvaine entrara para a produção de filmes e Blayne para o Departamento do Estado, com vistas a uma embaixada. William não sentira a falta desses dois, mas entristecera quando Seth ames brigara com ele, pois apreciava o brilhante e efervescente espírito de Seth, as ideias que lhe saltavam como faíscas de um foguete. A maior parte delas eram inúteis, mas William vigiava o cintilante espectáculo, porque sempre havia uma ideia, ou até duas ou três, que ele aproveitava. Formavam uma boa parelha, pois a fraqueza de Seth estava na sua incapacidade de distin­guir as ideias boas das infelizes, e o jornal teria ido por água abaixo se ele dispusesse de autoridade. Por esse motivo, conside­rava William, via-se obrigado a exercer o controlo geral. Jeremias, naturalmente, jamais constituíra uma ameaça. Trabalhava quando queria e William arranjara-lhe um auxiliar. Em todo o caso, sentira a falta de Seth, que se retirara furioso e, ainda por cima, se negava a falar-lhe.

A briga surgira de um nada, uma divergência tão comum entre ambos que William nem sequer se preocupara em mos­trar-se delicado. Tinha-lhe apenas lançado umas palavras abruptas por cima do ombro, num dia em que todos tinham ficado a tra­balhar depois da meia-noite. Seth soubera que algo de grave ocorrera numa granja-asilo da Pensilvânia. O capataz perdera a paciência com um rapaz-era ainda um rapaz, apesar de homem na idade-e o rapaz, aterrorizado e em defesa própria, investira contra ele com um forcado, com que ferira o capataz numa perna. O ferimento era leve, mas o homem atacara o rapaz com o machado com que estava a rachar lenha, e o asilado esvaíra-se em sangue até morrer passada uma hora. Houvera suficiente escândalo para que Seth acorresse imediatamente ao local do crime para verificar o que houvera, e tinha voltado cheio de indignação com o que vira: duas meninas crescidas, meio mortas de fome, ambas mentalmente retardadas, e uma velha má e gorda, e o corpo enterrado apressadamente, sem que ninguém tivesse investigado. O capataz estava de cama e alegava. legítima defesa. Seth pusera a polícia em movimento, e eles haviam por sua vez apresentado uma assustada mulherzinha, a qual declarava ser apenas uma empregada da organização que colocara as crianças e que não sabia se elas tinham quaisquer parentes. Por fim, a publicidade local alcançou Ohio, de onde então chegou Clem para ver o que havia. Levara as meninas consigo, dizendo à polícia que o lugar não era próprio para qualquer criança, grande ou pequena.

A Seth, dissera Clem, com furioso zelo: «Espero que diga a William que faça um verdadeiro escândalo acerca disto. É um caso estranho e triste... esta era a casa do meu avô. Ele enfor­cou-se naquela viga porque era muito bom para desalojar um granjeiro... Estive aqui asilado, quando garoto... com essa mesma gente... Fugi... Queria que todos fugissem comigo, mas apenas um me acompanhou.

-Não passa de uma agitação local, sem qualquer impor­tância - dissera William ao receber o recado de Clem.

-Mas a morte do rapaz tem importância - insistiu Seth. -O simples facto de que uns órfãos possam viver em tais condi­ções, entregues a gente como aquela, e que ninguém se importe...

-É isso mesmo, ninguém se importa - replicou William.

Seth demorara em responder e William, com o espírito no seu editorial, não se tinha voltado. Por fim veio a resposta:

-Que você não se importa, é sabido - dissera Seth em voz pausada. -Você não se importa com alguém, seu egoísta!

E encaminhara-se para a porta. -Nunca mais voltarei aqui.

-Não seja tolo! -exclamara William.

Ficara muito zangado, em todo o caso, depois de Seth se ter retirado do escritório. Durante a noite sem dormir, em que apenas dissera a Candace que, com certeza, o molho do faisão não lhe havia caído bem, resolveu que, quando Seth voltasse ao escritório na manhã seguinte, fingiria ignorar o assunto. Senão teria de o despedir. Mas Seth não voltou. William nunca mais o vira desde então, mas, pelo que sabia, Seth não fazia nada de proveitoso. Tinha lançado dois ou três quixotescos magazines, nenhum dos quais vingara. Felizmente para Seth, seu pai, o velho Mackenzie James, e a tia Rosamond, também, tinham-lhe deixado bastante dinheiro. Quando pensava naquela briga, como às vezes acontecia, William sentia-se ainda convencido de que tinha razão. Um assassínio local não tinha importância. Mas William jamais esquecia uma ofensa, e Seth ferira-o profunda­mente. Isso sim, tinha importância.

Sentia-se incompreendido, e, dentre todos os seus colaboradores, pensava ser Seth quem o compreendia melhor. William não pensava apenas em si mesmo. Tudo quanto fazia, o seu monstruoso esforço, o seu incansável trabalho, era, acreditava ele, para que o povo conhecesse a verdade. Porque, então, examinava todas as fotografias antes de serem estampadas, porque lia e relia as provas, senão para ter a certeza de que ao povo era ministrada a verdade e nada mais que a verdade? Um dia tentara dizer mais ou menos isso a Seth, e Seth rira-se.

-A verdade é uma palavra muito grande para um homem usar-declarara Seth. -Por amor à decência, digamos «a verdade conforme a gente a vê».

William não replicara. Não havia verdade como ele ou como qualquer outro a entendia. A verdade tinha de ser uma coisa absoluta. Era um ideal, era o que era direito, e o direito era outra coisa absoluta. Os factos pouco tinham que ver com uma e outra coisa. Os factos, declarava às vezes William aos seus jovens subor­dinados, eram apenas árvores numa floresta, inúteis até que fossem postos em uso, embaraçantes até que fossem escolhidos, cortados e arrumados. A questão consistia em firmar o que era direito, com o mesmo cuidado com que um homem constrói a sua casa.

-Os nossos materiais são os factos - dizia William ao seu estado-maior, olhando de um atento rosto para o outro. Os homens admiravam-no pelo seu êxito, rápido e imenso. Ele sen­tia-se guindado com a sua admiração, e apenas Seth insistia em ver confusão no olhar dos outros. -Quando sabemos o que que­remos provar, vamos avante e achamos os nossos factos. Os factos sempre estão aí - dizia William.

QDepois da deserção de Seth, pois para William aquilo só podia ser chamado deserção, apenas restava Jeremias do velho grupo. O seu restante estado-maior era constituído por vários rapazes, cujos nomes ele tinha o cuidado de lembrar se eram eficientes. quanto aos outros, não lhes prestava atenção. Os seus jovens auxiliares faziam o jornal, mas ele próprio era o redactor principal, e as manhãs eram terríveis quando William não aprovava o que eles tinham feito. Era precisa, pois, a sua aprovação. Ninguém ia para casa sem que ele o fizesse primeiro-ninguém, excepto Jeremias, a quem não podia controlar. Só Jeremias, à meia-noite, punha o chapéu à banda na cabeça e pegava na sua bengala. Coxeava sempre um pouco, e ainda mais o fazia ao entrar no gabinete de William:

-Boa noite, William. Já chega, por hoje.

William nunca lhe respondia. Não fosse Jeremias filho de Roger Cameron, e há muito que o teria posto no olho da rua.

 

-Ruth e eu cuidaremos de teus pais - disse Candace. Ten­cionam demorar-se por cá?

-Suponho que sim - replicou William. Ergueu-se: -Terei de ir ao escritório esta noite, Candace. É melhor jantarmos já. Ficando sòzinha após o jantar, Candace foi deitar os dois meninos, dispensando a ama Nannie do seu indesejado auxílio. A casa ficou depois tão silenciosa que ela foi para o quarto, acendeu as luzes e deitou-se para ler, mas não o pôde fazer. Ao invés disso, pensava em William, a quem ela amava, apesar dos seus frequentes desapontamentos na sua vida conjugal. Não era uma mulher estúpida, embora a sua educação tivesse sido um tanto aérea como agora reconhecia. Um curso apressado e algumas viagens eis só o que fizera até o dia do casamento; desde então a sua vida girara em torno da premente concentração de William nos seus jornais. Essa absorção era uma coisa que não podia compreender. Seu pai tinha trabalhado também, mas sòmente enquanto foi necessário. Outros trabalhavam para ele, e despedia-os quando não faziam o que lhes recomendava. Algumas poucas horas no seu escritório bastavam para lhe levarem o dinheiro das suas centenas de lojas espalhadas por todo o país. Seria tão bom que William tivesse entrado para os Cameron Stores... mas ele negara-se a fazê-lo. Ignorava o que realmente queria. Quando se casaram, supunha que apenas queria enriquecer, pois natural­mente só os ricos obtinham tudo. Mas podia ter enriquecido quase que de uma vez se tivesse aceitado a sociedade que, mais tarde, Mr. Cameron lhe oferecera.

Assim, veio a descobrir que queria mais alguma coisa, além do dinheiro. Mas que mais poderia desejar, que uma bela e confortável casa, uma esposa como ela procurava ser, e realmente era, e uns bons e saudáveis filhos? Um dia, logo depois do casa­mento, naqueles tempos em que ainda pensava que o poderia ajudar, dissera-lhe que achava infantis os seus jornais ilustrados e ele replicara-lhe friamente que a maioria do povo era infantil e que o facto de haver descoberto tal coisa lhe dera a primeira ideia para os seus jornais.

-Eu amo o povo e tu odeia-lo - declarara ela então num dos seus repentes.

-Não o amo nem o odeio - replicara William Mas acreditava que a amava e sabia que o amava. Porquê, não o sabia bem. Quem poderia achar uma razão para o amor? Seth James quisera uma vez desposá-la. Desde crianças que lhe falava nisso, e Seth era uma excelente alma, um homem bondoso e correcto, mas ela não o podia amar.

Por certo era estranho não conhecer melhor William depois de alguns anos de casados. Conhecia todos os pormenores do seu corpo, a sua cabeça de nobre aspecto, mas com aqueles olhos distantes e profundos sob as sobrancelhas demasiado espessas; tinha um belo nariz e uma bonita boca, porém, demasiado dura. O corpo era soberbo, largo de ombros, elegante, alto, mas, quando estava nu, ela olhava para o outro lado, porque ele era muito cabeludo. Negros pêlos cobriam-lhe o peito, os braços, os ombros e as pernas. Não gostava do aspecto das suas mãos, embora o amasse. Mas quão pouco amor ele revelava! O que lhe ia na mente? Ficavam muitas vezes em silêncio, juntos, durante horas. Que amaria ele acima de tudo? Não era a ela, nem às duas crian­ças, embora gostasse que os seus filhos fossem meninos. Ele não se importava com as meninas, coisa que ela não podia compreender, até o dia em que Ruth lhe dissera que, em Pequim, os chineses sempre lamentavam um homem quando a sua esposa dava à luz uma filha. Era de mau agouro para a sua casa. Mas quantos mais filhos homens tivesse um chinês sempre desejava mais.

-Mas William não é chinês-observara ela a Ruth, o rosto fechado.

Ruth deu uma das suas graciosas risadas e disse, sacudindo a cabeça: - Mas também ele não é um verdadeiro americano.

Que vinha a ser um verdadeiro americano? Jeremias era americano, e Ruth adaptara-se-lhe, copiando até o seu modo de falar. Eram perfeitamente felizes desde que tinham as duas meninas. Ruth ficara absurdamente agradecida quando Jeremias pareceu realmente gostar mais de meninas. Ela amava Jeremias com todo o seu cândido e pequeno ser, e não tinha pensamentos para mais alguém, excepto William. De William tinha ela orgulho e medo, e o único desentendimento que tivera com Jeremias fora quando lhe pedira que não arreliasse William. Jeremias, naturalmente, não tinha medo de nada, nem sequer de William.

Mas William amava o seu país. Era capaz de súbitos e longos discursos sobre a América. Certa vez, num banquete para celebrar o seu primeiro milhão de leitores, William falara quase uma hora, e todos o escutaram como que hipnotizados, até mesmo Candace. A grande sala de jantar do hotel estava silenciosa e ela começou de súbito a sentir o aroma das flores que adornavam as mesas, embora não o tivesse notado antes. As palavras libertavam-se da garganta de William como se ali estivessem encerradas. Ainda ouvia os seus ecos.

«Soou a hora do destino da América.

...Temos semeado e agora vamos colher... ... Mas colher, mundialmente falando.

...O Mundo ouvirá a nossa voz, que diz a verdade. ...Somos jovens, mas aprendemos na nossa mocidade a dominar as forças da água e do ar e as que estão aprisionadas no seio da terra.

...Os velhos países agonizam. A Inglaterra, antigo império, está enfraquecida pela idade, e os seus governantes sentem-se exaustos. A França está mergulhada em sonhos e a Itália dormita. Mas nós, os da América, estamos despertos. O nome da América será ouvido entre todos os povos. É a nossa época, a nossa hora. Nós é que escreveremos a História dos séculos vindouros...»

Candace tinha ouvido, alarmada e meio confusa, mas fasci­nada. Era William, o seu marido!

Aquela noite, no silêncio da sua casa, ela conservava-se­excepcionalmente muda. Ele parecia exausto, com a face pálida como água sob um Céu cinzento, e não lhe dizia nada.

-Estiveste muito eloquente esta noite, William - dissera ela afinal, porque era necessário que alguma coisa fosse dita entre ambos. -Suponho que, no fim de contas, existe em ti alguma coisa do teu pai pregador.

-Não estive a pregar - respondera ele rispidamente. - disse apenas a verdade.

Naquele momento, o telefone retiniu sobre a mesinha rósea de cabeceira e ela, erguendo o auscultador, ouviu a voz nasal de seu pai

-William?

-William foi para o escritório, pai. Estou sózinha em casa. Ele hesitou. -Já estás deitada, Candy?

-Propriamente não. Acabo de subir, porque não gosto de ficar sozinha lá em baixo.

-Talvez eu dê um salto até aí. Tua mãe está com dor de cabeça e foi para a cama.

-Venha, pai. Vou descer e esperá-lo.

Essas visitas nocturnas repetiam-se de vez em quando. Seu pai gostava de passear, tarde da noite, quando as ruas da cidade estavam desertas, e umas duas vezes por mês, ia tocar-lhe à cam­painha e, quando a porta se abria, ficava dubitativamente a olhar para o interior. - William está?

Era sempre a sua primeira pergunta, embora Candace não soubesse porquê, pois às vezes ele vinha, estivesse William em casa ou não, para se demorar um momento ou uma hora. Tinha uma intuição que lhe dizia, ao pousar o pé no rebato da porta, se a sua visita era oportuna.

Naquela noite ela ficou mais contente do que de costume, pois estava disposta a conversar, e não havia ninguém com quem falasse mais à vontade do que com seu pai. A mãe era muito boa quando se tratava de assuntos de criados e crianças, mas naquela noite ela desejava falar sobre alguma coisa mais, embora não soubesse exactamente o que fosse.

Quando a campainha tocou, apressou-se a descer para abrir a porta, pois as criadas já estavam a dormir. O pai limpava os pés no capacho, parecendo friorento, mas jovial, com a ponta do com­prido nariz vermelha e os seus olhos pequenos e bondosos.

-Muito bem! - exclamou ele, tirando o sobretudo. -Sinto necessidade de conversar um pouco. Parece que vai chover, pois sinto os joelhos duros.

-Não devia ter saído numa noite destas-ralhou ela carinhosamente.

-A minha vida não depende dos meus joelhos.

Havia brasas na lareira e ele tomou as tenazes das mãos da filha. Era entendido em fazer lume, manipulando as brasas sob a lenha nova e arrancando chamas do mínimo de material. Essa dilecta economia era uma lembrança dos dias em que, quando miúdo, recolhia carvão da via férrea numa cidade mineira da Pensilvânia.

Quando as chamas começaram a crepitar, sentou-se, lim­pando as mãos no seu lenço de seda branca. -E então, como vão as tuas coisas?

-Oh! Vai tudo muito bem - replicou ela. -Willie está no quadro de honra da escola. William ficou muito satisfeito. A grande novidade é que os pais de William estão para chegar da China. -Pensava que eles tivessem resolvido ficar por lá mais um ano. -Também eu.

-É a velha, com certeza... - disse ele, pensativamente, olhando para o fogo. -William deve estar muito contente, não é verdade?

Candace riu-se. -Parece que está contrariado.

Mr. Roger Cameron gostava de ouvir a sua filha rir. Ergueu a cabeça e riu também. Era um agradável momento, ali na grande sala sombria nos cantos e alumiada junto à lareira e à lâmpada. Ela estava bonita no seu penteador cor-de-rosa, bonita e talvez feliz, também. Durante algum tempo, depois do casamento da filha, tinha perguntado a si próprio se ela seria feliz, e concluíra que sim, principalmente porque tinha boa digestão e não possuía ambições. Na sua educação, tivera o cuidado de que a filha não respirasse a atmosfera das mulheres ambiciosas. Havia dessas mulheres nos seus armazéns e nenhuma delas, pensava, era feliz. A sua secretária, Minnie Forbes, que empregara quando ela contava vinte e um anos, vivia consumida por uma árida infelicidade, talvez porque ficaria profundamente escandalizada se soubesse que amava o seu patrão; Roger sabia muito bem que ela o amava e sentia-se grato pela ignorância de Minnie. Ele amava moderadamente a esposa, e não desejava amar mais ninguém. Os poucos meses em que a havia amado apaixonadam­ente quando jovem, recordava-os como extremamente incómodos, pois não podia concentrar o espírito nos seus negócios. Ficara aliviado ao descobrir que ela não era a criatura extraordinária que a sua fantasia o levara a imaginar, e depois limitara-se ao doméstico e nada romântico amor conjugal, que vinha desfrutando há uns tranquilos quarenta anos. Ele e sua mulher eram profunda­mente unidos, mas ela não lamentava as suas viagens comerciais, que empregava exclusivamente na diligente procura de mais negócios.

-William nunca soube bem o que devia fazer com a sua família - disse ele.

-Eles são esquisitos, pai? -Os olhos azuis de Candace eram sempre francos. -Nem mesmo da sua mãe me lembro muito bem. -Suponho que todos os que partem para terras estranhas são de certa maneira esquisitos. As pessoas comuns ficam na sua terra. Ainda assim, andam sempre a fazer colectas nas igrejas, e outras coisas do mesmo género. O pai de William não é mais que um pregador que vai além do que é considerado o seu dever comum. «Ide por todo o Mundo», e assim por diante. Mas ninguém leva isso a sério, com excepção de uns poucos. São sempre uns excelentes homens, naturalmente.

-E as mulheres?

-Não acredito que Mrs. Lane tenha ido por 'vontade própria. Suponho que foi por ele ter ido. Nem creio que haja muita sim­patia entre os dois, ao que me lembre.

Não queria dizer à filha que se lembrava de Mrs. Lane como uma espécie de mulherzinha atrevida. Talvez não fosse. As pessoas muitas vezes tornam-se atrevidas quando falam com um rico. Ele estava acostumado a isso. Em todo o caso, fazia agora parte da família...

-A Millie do Jeremias é uma pequena sirigaita - disse ele, sorrindo.

-É, sim - concordou Candace. -Ruth diz que ela fala constantemente. Quando vem aqui, fica com medo e não diz uma palavra.

-Mas fala comigo quando estou disposto. É maravilhoso ver o despertar de um espírito de criança.

-Ruth e eu teremos de cuidar da mãe e do pai Lane. William está a tratar de publicar novo jornal.

-Que pretende ele com mais trabalho? -Roger tirou o cachimbo da boca. Tinha começado a fumar há pouco tempo e ainda não estava acostumado com o brinquedo. Mas queria alguma coisa para ocupar as mãos.

-O Duque de Gloucester faz «tricot» - disse ele, percebendo um súbito brilho nos cândidos olhos azuis da filha. -Tudo isso está muito bem para um inglês. Nós, os americanos, ainda não estamos acostumados. Eu realmente não gosto de cachimbo, mas leva tempo para encher e acender. É uma ocupação.

-Que há com os seus americanos? -perguntou Candace, com os olhos brilhantes e a boca séria.

-Um inglês nunca tem medo de que se riam dele - replicou Roger. -Apenas pensa que aquele que se ri dele não passa de um tolo. Mas os americanos não se arriscam a que ninguém zombe de si. Eu não me arrisco. Mas, mesmo que o quisesse, não poderia fazer «tricot». Em todo o caso, não quero.

-Mas o meu pai também não quer fumar cachimbo-zom­bou ela.

Ele olhou-a lamentàvelmente e continuou com as suas ma­nobras, enquanto ela o fitava, ainda pronta para rir. -Creio que gosto é de brincar com o fogo - disse ele, depois de ter tirado uma baforada, com os olhos a lacrimejar. -Do que mais gosto é de aprontar o cachimbo e riscar o fósforo.

-Oh, o senhor! -Ela bocejou levemente. -Não, não tenho sono. Estou preocupada com o que vou fazer com os pais de William. Porque não me ajuda? Supõe que vão ficar aqui em casa todo o Inverno?

-Deixa-os fazer o que quiserem, e segue tu a tua vida - replicou Roger. -Trata-os amàvelmente e deixa-os em liberdade. Isso é o que a maioria dos velhos quer. Não te preocupes.

-O senhor nunca se preocupou com coisa alguma?

-Certamente que sim. Quando eu era mais novo, sofria terrivelmente do estômago. Um dia um médico disse-me que eu não viveria um ano. Resolvi o contrário. Felizmente os Armazéns estavam em bom caminho. Foi quando soube que Jeremias não me poderia ajudar. Bem, não tive necessidade dele, como se viu depois, nem de ninguém mais. É uma grande coisa poder dirigir os próprios negócios. Uma vez esperei que William entrasse para a Sociedade, mas assim está muito bem. William foi talhado para o jornalismo.

-Que pensa acerca do que William realmente deseja, meu pai?

Tão raramente fazia ela uma pergunta séria que o pai pareceu meio assustado e colocou o cachimbo em cima da mesa. -Que queres dizer, Candy?

-Bem, já temos bastante dinheiro. -É maravilhoso o que ele fez.

-Mas não lhe dá prazer. Quando temos uma festa, abor­rece-se. E não adianta ter férias. Quando fomos à França, no Verão passado, passou todo o tempo a organizar uma edição europeia. Eu fiquei, por assim dizer, sozinha em Paris, até que encontrei algumas das minhas antigas companheiras de escola.

-William é ambicioso.

-Ambicioso de quê, pai?

-Não creio que ele mesmo o saiba - respondeu Roger. -Talvez seja isso o que o aborrece. Não sabe o que há-de fazer de si próprio.

Havia algo de tão agudo nessa observação que Roger a pôs de parte para mais tarde reflectir sobre ela.

-Desejaria que ele aprendesse a jogar e que tomasse gosto pela equitação.

-Ele monta muito bem.

-Faz tudo muito bem e não dá importância ao que faz. Amo-o e não o compreendo.

Havia indícios de receio na sua voz; apenas indícios, mas ele não os queria notar. Já era bastante velho para se afligir. Já não podia nem mesmo ler um livro triste. Quando começava a sentir-se triste, fechava-o. Tinha visto muita coisa que não pudera ajudar, ou talvez que não tivesse querido ajudar.

-Não tens que compreender os outros - disse ele no seu tom mais seco. -Fala-se muito em compreender isto e mais aquilo, hoje em dia. Na maioria das vezes, ninguém compreende coisa alguma. Se tu o amas, não há necessidade de te preocupares em compreendê-lo, penso eu. Toma-o tal como é.

Também começou a sentir-se inquieto, como sempre acon­tecia, quando pressentia complicações. Tinha um faro maravilhoso para descobrir complicações e, quando sentia o seu cheiro acre, por mais leve que fosse, logo se retirava. Assim, agora, embora amasse a filha, ergueu-se e pôs o cachimbo apagado no bolso.

-Vou andando para casa. -Inclinou-se e beijou-lhe os cabe­los. -Não te preocupes, pequena. Trata bem os velhos e deixa-os fazer o que quiserem.

Retirou-se e ela ficou sentada alguns minutos sôzinha. Era esperta à sua ingénua maneira, e bem viu que ele não queria saber de incómodos. Mas era bastante parecida com o pai para simpa­tizar com ele. O que ele tinha dito era confortador. Era mais fácil, afinal de contas, não se preocupar em compreender as pessoas, e fácil amá-las, apenas, desde que não fossem cruéis na nossa pre­sença. E William jamais era cruel com ela ou com as crianças. Nunca tinha batido nas filhas, por mais impaciente que estivesse. Jeremias, num acesso de fúria, podia levantar a saia de uma das garotas, sentada nos seus joelhos, e dar-lhe umas palmadas e, depois de passada a cólera, pô-la de novo em pé e beijá-la carinho­samente. William não beijava os filhos, tão-pouco. Nunca lhes tocava.

Bem! Ela estava contente por o amar. O amor, como seu pai dizia, era suficiente.

 

No momento em que olhou para o pai que descia do comboio, William viu que estava ali um velho que vinha morrer na sua terra. O que via e o que sentia, deixou-o petrificado. Como sempre que se comovia, Ruth, Candace e Jerry estavam presentes. Não tinham trazido as crianças por causa da aglomeração e da hora tardia. As luzes da estação focavam a face branca de seu pai e o seu vulto esquálido. Tinha deixado crescer a barba, mas nem mesmo a brancura da barba lhe tornava menos pálidas as faces. A mãe de William estava mais gorda e mais velha, mas forte como nunca. Foi ela quem os viu primeiro e quem lhes acenou. Ele sentiu o seu afectuoso beijo no rosto.

-E então, William?

-Tudo bem, mãe.

Mas continuava a olhar para o pai, aquele homem tão velho, aquele frágil fantasma, com os negros olhos vivos e ardentes e os lábios descorados no meio das barbas brancas! Apertou a mão do pai e sentiu-a comprimir-se na sua num feixe de poucos ossos.

-Pai! - exclamou ele, e enlaçou-o pelos ombros. Voltou-se para Jeremias. -Encarrega-te delas, Jeremias... as mulheres e... as bagagens. Eu vou tirar meu pai daqui.

-Mas ele nunca esteve melhor! - exclamou a mãe.

-A mim não me parece melhor - disse William. Os seus lábios estavam secos e ele sentia vontade de chorar. Levou o pai para fora, com o braço ainda em torno do corpo franzino. -Venha, pai. O automóvel está aqui. -Porque foi que sua mãe não lhe tinha dito nada?

O motorista estava postado junto à porta aberta do automóvel. William ajudou o pai a entrar e colocou-lhe a manta nos joelhos.

-Vá direito a casa, Harvey - ordenou pelo tubo acústico.

O         pesado carro deslizou lentamente através do tráfego. William olhava para o pai. -Como se sente, na verdade?

O         Dr. Lane sorriu e não pareceu menos cadavérico. -Não hás-de querer que eu esteja o mesmo depois de tantos anos...

Era a primeira vez que ele falava, e a sua voz era débil e aguda, quase como a de uma criança.

-Mas sente-se bem? -Agora que estava sòzinho com o pai, William podia controlar a sua inesperada ternura. -Não muito bem - disse o pai.

Parecia tão paciente, tão puro, que William sentiu que o via pela primeira vez. Para sua própria surpresa, desejava tomar a mão do pai e conservá-la na sua, mas teve vergonha de tal gesto e não o fez.

-Consultou o médico? -Falava de novo com a sua habi­tual secura.

-Sim, foi por isso que deixei Pequim tão repentinamente. É de opinião de que devo ser examinado aqui. -O sorriso do Dr. Lane tinha uma inefável doçura.

-Que disse ele que era?

-Parece que tive psilose durante muito tempo, sem o saber. Destrói os glóbulos vermelhos, parece. -O Dr. Lane falava sem interesse nos seus glóbulos.

William reflectiu ràpidamente. Arranjaria o melhor especia­lista em moléstias tropicais. -Mandá-lo-ei buscar a Londres, se for necessário. -Sentiu uma insopitável cólera inflamar-lhe o cora­ção. -Era de crer que a mãe o tivesse notado.

-Nós não notamos nada, suponho, quando vivemos na mesma casa durante tantos anos - replicou o pai. -Nem eu próprio notei. Sentia-me cansado, naturalmente, mas pensava ser da velhice.

-O senhor tem de descansar agora - ordenou William.

-Seria bom - respondeu o pai. A sua voz ia-se tornando cada vez mais fraca, a ponto de as suas últimas palavras não serem mais que um murmúrio. William tomou o tubo acústico. -Ande o mais depressa que possa. Meu pai está muito cansado.

O automóvel deslizava célere e silencioso. O Dr. Lane reclinou a cabeça no banco acolchoado e fechou os olhos, parecendo que dormia. William olhava-o com profunda ansiedade. Chamaria o seu próprio médico logo que chegassem a casa; recearia dormir enquanto seu pai não estivesse mais forte.

Quando o carro parou à porta, desceu primeiro e, com aquela ternura tão estranha à sua natureza, ajudou o pai a subir os degraus e a entrar no vestíbulo. O mordomo, que estava à espera, pegou nos seus chapéus e casacos. Ao pé da grande escadaria, viu o pai recuar e olhar para cima como para uma montanha que não pudesse galgar.

-Vou levá-lo ao colo - murmurou William.

-Oh, não! -arquejou o Dr. Lane. -Dentro de um momento poderei subir.

William não lhe deu ouvidos. Num ímpeto de amor como jamais havia sentido por nenhuma criatura humana, ergueu o pai nos braços e, horrorizado com a leveza da sua carga, subiu os degraus. O velho, sentindo os braços do filho em redor do corpo, entregou-se com um suspiro e fechou os olhos.

 

O que aconteceu com William na semana seguinte nunca foi capaz de compreender. Os seus efeitos não se manifestaram de todo por muitos anos. Parecia estar sòzinho no Mundo com seu pai, mas o santo moribundo representava muito mais do que unicamente seu pai. Durante aquela presença na sua casa, William raramente deixou o quarto do pai. Compreendia que aquela alma, preparando-se para partir, sentia-se bem sòzinha, e ele mostrava-se frio com sua mãe. Dizia a Candace e a Ruth : «A mãe não deve vir para junto dele. Vocês ficam encarregadas de a manter fora de casa sob qualquer pretexto que possam inventar».

Tratou cruelmente os médicos americanos, declarando-os incompetentes. Ele próprio passou um telegrama para o grande especialista inglês em moléstias tropicais, Sir Henry Lampheer, pedindo-lhe a sua urgente assistência. Sob as revoltas ondas do Atlântico, essa comunicação prosseguiu, hora após hora.

A resposta de Sir Henry ao telegrama de William foi tipica­mente britânica e inflexível: «Consultei vosso médico Dr. Bartram. Meus serviços seriam demasiado tardios. Exaustão proveniente destruição tecido. Injecções podem prolongar vida».

William foi impetuoso para com o inglês: «Diga preço».

Sir Henry perdeu a paciência, e a sua altiva irritação atra­vessou o Atlântico: «Nenhum preço possível por loucura deixar importantes pacientes aqui. Recorrei vossos próprios médicos».

«Propõe que deixe meu pai morrer?»

Sir Henry não aceitou a censura: «Decreto Deus. Vosso pai ancião atacado moléstia fatal».

William replicou: «Meu pai descendente família longa vida, também grande resistência espiritual».

A esta afirmação, Sir Henry respondeu friamente: «Diagnós­tico claro. Injecções emetina, dieta leve, leite, bananas, possivel­mente morangos, certamente extracto de fígado. Repouso absoluto. Consultai Bartram».

Os telegramas orçaram por centenas de dólares e, após a sua inanidade, William sentiu toda a velha cólera da sua meninice referver-lhe no sangue. A maldita superioridade dos ingleses, a calma determinação de não ceder, a rígida e fria cortesia - ele conheceu isso tudo em Chefoo quando o filho do Cônsul-Geral britânico estava ali.

Cego de fúria, William cortou ligação com as Ilhas Britâ­nicas e todo o resto do Mundo. Estava no seu escritório, tendo deixado o pai com duas enfermeiras e Ruth para as vigiar. Por fim chamou o seu redactor-principal, conservando o dedo no botão eléctrico até que Brownell entrou quase a correr, com o olhar cheio de susto.

-Segure o novo ajudante - ordenou William. -Meu pai está muito mal. Não consegui a vinda de Lampheer... Ele está resolvido a deixar meu pai morrer... mais um americano... isso é tipicamente inglês! Não sei quando voltarei. Deixo-o no meu lugar. Se for absolutamente necessário, chame-me, mas, se me chamar sem necessidade, será despedido.

-Farei o possível, Mr. Lane.

-Muito bem.

William punha o sobretudo e o chapéu. Brownell correu a ajudá-lo.

-Volte para o seu trabalho - ordenou William, que se reti­rou apressadamente da sala.

Sabia que Sir Henry tinha razão. E isso era o pior de tudo, após saber que a morte era iminente. Dia e noite ficou sentado à cabeceira do pai, silencioso no silêncio da casa, depois de ter ordenado às enfermeiras que ficassem na sala próxima, a não ser que os seus serviços fossem necessários, e proibiu quaisquer visitas, com excepção do Dr. Bartram. Seria mesmo uma loucura a vinda de Sir Henry, mas em todo o caso ele deveria ter esta­belecido um preço para isso. Qualquer homem tinha o seu preço, e William poderia pagar. Seu pai era um homem de importância, o pai de William Lane, uma crescente potência da América. Era um insulto que nunca perdoaria e que juntou à montanha de insultos que tinha recebido na sua infância. Sentado junto ao pai moribundo, considerava a montanha e os meios de a arrasar. Aquelas pequenas ilhas, engalfinhando metade do Mundo, aqueles homens arrogantes, sentados de casaca a solitárias mesas nas «jungles», servidos por milhões de homens escuros. A sua pátria, a sua jovem e bela América, desprezada e escarnecida, tal como ele próprio fora escarnecido por aqueles estúpidos meninos ingle­ses! Naqueles dias, envergonhara-se de seu pai porque este era apenas um missionário, mas agora esse missionário era o pai de William Lane. O missionário fora erguido da sua humildade e pobreza. Tornara-se o pai de um homem cujo primeiro milhão estava em vias de se duplicar.

As lágrimas empanaram os olhos de William. O dinheiro não poderia adiar nem por uma hora a morte de seu pai. Inclinou-se para a cama e tomou a mão do pai na sua. As duas mãos não eram iguais. As do pai eram grandes e ossudas, e que magras e miseráveis agora!

-Pai... - murmurou ele. Por um momento julgou-o morto.

Mas o Dr. Lane não estava morto. Voltou lentamente a cabeça, a mesma cabeça nobremente conformada que tinha dado ao filho quando o gerara.

-Que é, William? -A voz era débil mas clara. -Estou a fazer tudo quanto posso...

--Sim, meu filho... Está bem... Mas tenho de morrer, bem sabes...

-Não o posso deixar morrer.

- Compreendo, William... Agradeço-te isso... Quererás que eu viva...

-Porque eu preciso de si, meu pai.

As palavras brotaram como por si próprias e, no momento em que as dizia, bem via como eram verdadeiras. Nunca havia realmente falado com seu pai e agora parecia-lhe que só a seu pai poderia falar da sua pessoa e da imensa inquietação que o ator­mentava dia e noite. Agora que havia montado aquela imensa e eficiente máquina que lhe trazia dinheiro, quer estivesse presente ou não-que mais queria? Agora que tinha poder, milhões de pessoas que olhavam as gravuras que ele escolhia e liam as pala­vras que ele escrevia ou consentia que escrevessem-que mais queria?

-Pai, se vai deixar-me... se acha mesmo que... - Eu sei... Deus chamou-me.

-Então diga-me antes... que devo eu fazer? -Fazer?

-Sim, que devo fazer de mim?

Ele viu os escuros olhos do pai abrirem-se num derradeiro assomo de energia.

- William, deves ouvir a tua própria consciência... É a voz de Deus... dentro de ti. «Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade». Tudo o que tens... todos os teus grandes dons, meu filho... dedica-os a Deus. Ó meu Deus, agradeço-Te... por­que... me restituíste meu filho a tempo...

A débil voz apagou-se, e o ancião caiu subitamente em sono, como lhe sucedia após o mínimo esforço. Não voltou a falar.

William ficou sentado a seu lado horas e horas. As enfer­meiras entravam e saíam, cumprindo o seu dever. O médico chegou e pronunciou poucas palavras. -Isso não pode durar, Mr. Lane. A qualquer momento...

William não respondeu. Naquela noite, vinte minutos depois das vinte e quatro horas, seu pai parou de respirar, sem haver despertado.

 

Clem mergulhara de novo no seu próprio país. Falhara na China, mas não estava desanimado, tamanha era a sua fé naquilo que acreditava. Pouco dissera a Henrieta sobre a breve visita ao casebre de S. Francisco, mas ela compreendeu a recusa e também viu que, como de costume, Clem ficara apenas mais animado.

-Algum dia eles hão-de verificar que tenho razão - dissera­-lhe Clem. «Eles» eram os poderosos, os que não acreditavam na sua fé, os tubarões, os egoístas, os políticos, os limitados de espírito. Ele não odiava, nem desprezava. Em vez disso, tinha uma vasta paciência, uma segura omnisciência. Podia esperar.

Entretanto, trabalhava. Resolveu abrir o seu maior e mais barato mercado em Dayton. Cada um dos seus mercados tinha o seu nome particular. Aquele deu o nome de «O Preferido do Povo».

-Não quero um nome de cadeia - disse Clem quando Bump lhe falou nas vantagens de uma cadeia de mercados, designados todos pelo mesmo nome. -Quero que o povo pense que os mer­cados são seus. Cada qual deve ser diferente, de acordo com a cidade e os seus habitantes.

«O Preferido do Povo» era o seu primeiro mercado urbano, e construiu-o longe do centro, onde os terrenos eram mais baratos, ao fim de uma linha de «eléctricos».

No dia da inauguração Henrieta fora prestar-lhe ajuda. Clem atraíra milhões de pessoas com o seu anúncio de géneros gratuitos no primeiro dia. Pelas dez horas os transportes colectivos estavam superlotados, e gente bem alimentada lutava por abrir caminho até aos balcões atulhados de pães, bolachas e frutas, à espera dos consumidores. O dia estava límpido e fresco e, através das grandes vidraças, o Sol alumiava os mostradores e os caixotes cheios. Clem procurara apresentar um aspecto ao mesmo tempo moderno e tradicional. Havia maçãs empilhadas nos cantos e cachos de bananas pendentes do tecto.

-Sirvam-se! -bradava Clem efusivamente. -Levem uma abóbora e preparem uma torta em casa. Aqui têm melaço, à moda antiga! O engarrafamento é que o encarece. Comprei-o aos barris, em Nova Orléans, para vocês. Aqui está o pão. Levem! E aqui, manteiga de Wisconsin, vinda directamente das granjas, e por isso é que posso dá-la hoje de graça. Amanhã a comprarão aqui mais barato do que em qualquer outro armazém da cidade. Mas se alguém tiver fome, poderá levar um pão. Não levem se não tiverem necessidade, mas sempre haverá um pão para quem tiver fome. Aqui não há caviar, nem coisas finas, mas alimento simples, vindo directamente das fontes de produção.

Por entre o povo que aumentava, abria ele o seu caminho, alerta, sorridente, a ruiva cabeça erguida, os olhos irrequietos e cintilantes, que viam tudo ao mesmo tempo. Vestia fato macaco de zuarte, como os seus empregados, ou «mãos», como lhes cha­mava. E as suas «mãos» provinham de toda a parte: dois rapazes chineses que trabalhavam para custear os seus estudos, um negro que encontrara em Louisiana e com quem simpatizara, suecos de uma granja de Minnesota. Ele próprio treinara os seus homens, pois dizia que os empregados de outros armazéns não lhe serviam.

O seu negócio era muito pouco ortodoxo e cheio de riscos, e, quando algum homem se mostrava receoso por causa dos filhos pequenos ou da mulher nervosa, deixava-o ir e procurava rapazes que tivessem a coragem de ser despreocupados. Mandava Bump de noite à Califórnia ou à Florida comprar carregamentos de laranjas baratas, a West Virgínia arrematar uma safra de nabos que estavam a sobrecarregar o mercado, a Massachusetts em busca do peixe que ameaçava fazer baixar o preço nos mercados de Nova York. Onde quer que houvesse produção em excesso, a ponto de ser alijada, como no último Verão, quando os granjeiros de Maine iam sacrificar metade da sua colheita de batatas, lá estava Clem ou Bump. Clem não confiava em mais ninguém para comprar para ele, uma vez que o seu lucro vinha da compra e venda, e do seu lucro dependia a possibilidade de expandir os seus mercados e a sua fé. Herdara do pai uma invencível crença na bondade, não na bondade de Deus, em que seu pai tão persistentemente confiara, mas na bondade do homem. Clem acreditava mais pro­fundamente do que nunca que, com o estômago cheio, qualquer homem preferia ser bom. Portanto, o papel dos justos, em cujo número Clem se considerava incluído, era providenciar para que todos tivessem alimento.

Nas suas horas de devaneio, pois não trabalhava aos domingos e nesse dia os seus mercados mantinham-se fechados, entregava-se a fantasias ainda mais vastas em torno da alimen­tação de todos os famintos do Mundo. Ali da sua feia casinha de New Point, onde vivia na mais completa felicidade com Hen­rieta, via o povo da China e da índia acorrendo um dia aos seus mercados. O seu malogro com Sun Yat-sen em S. Francisco, a sua convicção num futuro triunfo tornavam-lhe os sonhos mais ricos e mais reais.

Relembrava a longa viagem que fizera a pé de Pequim até ao litoral. A velha angústia do momento em que vira seus pais e irmãs assassinados suavizara-se e esmaecera. Em vez disso, lembrava as estradas pavimentadas que ligavam as aldeias, as poeirentas sendas de cada lado do calcetamento, os campos verdes do trigo novo na Primavera e com os altos sorgos no Verão. Algum dia, naquelas aldeias e nos mercados das cidades da China, estariam distribuídos os seus víveres.

O «Preferido do Povo» prometia rápido desenvolvimento e Clem já se via ainda mais rico. De acordo com nenhuma regra poderia ele enriquecer tanto. Não tinha nenhum desejo de ser milionário como William e quase se envergonhava dos seus ascen­dentes depósitos bancários. Mas nunca desperdiçava dinheiro. Alguma profunda prevenção contra a caridade organizada, contra religiões militantes e idealismos vagos, fazia-lhe apertar os cordões da bolsa. Dava a qualquer homem, mulher ou criança que tivesse as vestes rotas ou necessitasse de um médico, e algumas palavras garatujadas num pedaço de papel amarrotado ou num velho sobrescrito providenciavam alimento do seu mais próximo mer­cado para qualquer vivente, desde o estudante faminto a um bêbedo de passagem, ou a um vagabundo das estradas. Mas não dava grandes cheques a tesoureiros solicitantes e directores de colégios, e as igrejas, mesmo as da sua própria cidade, não tinham dele mais do que dez dólares depositados na caixa de colecta por ocasião do Natal.

Bump, aquele cauteloso e avisado jovem, cioso do seu diploma em economia e comércio, prevenia-o de que mais cedo ou mais tarde os interesses organizados haveriam de o atacar.

-Você não pode continuar a vender mais barato do que os outros sem que tente fazer a sua ruína - avisava Bump. O seu parentesco com Clem permanecia nebuloso, profundo, embora não esclarecido. Clem era muito jovem para ser seu pai adoptivo, mas nunca se apresentara como seu irmão. Bump era astuto e reconhecia em Clem um génio inexplicável. Esse génio era cons­tituído de uma temeridade que chegava ao absurdo, de uma ingenuidade que chegava a causar riso, de uma ignorância que roçava pelo analfabetismo, e, com toda a sua temeridade, inge­nuidade e ignorância, obtinha êxito em tudo quanto empreendia. Encontrara uma fórmula tão simples que só um homem tão humilde como ele poderia demonstrar a sua validade.

Essa fórmula, revelou-a ele à multidão que enchia o seu mercado no dia da abertura. Seis corneteiros, contratados para a ocasião, fizeram uma tremenda barulheira ao soar o meio-dia. A multidão, surpresa, parou para voltar a cabeça para a fonte do alarido, e ali, no meio dos cobres fulgurantes, sobre uma espécie de balcão de tábuas atadas com cordas, viram Clem, de fato macaco, com um altifalante.

-Povo! --gritou ele. -Isto é mais do que um simples mer­cado, é um sinal das coisas em que acredito, uma manifestação da minha fé. «A fé é a evidência das coisas esperadas», diz a Bíblia, e «a evidência das coisas invisíveis». Pois bem, a minha esperança é não ver mais fome em nenhuma parte do Mundo. O alimento é a coisa mais importante da Terra. O alimento forma uma trindade com o ar e a água. Se eu fosse presidente dos Estados Unidos, o que, aliás, me alegro de o não ser, faria com que o pão e a carne, o leite e os ovos, as frutas e as verduras fossem gratuitos para todos. Então não teríamos mais guerras. Sairia mais barato alimentar gratuitamente o povo do que sustentar uma guerra, como a que pode um dia explodir da Ásia, porque o povo está a morrer de fome.

A assistência permanecia imóvel, escutando e indagando con­sigo se ele não seria maluco. Clem tomou fôlego e continuou

-Não me interpretem mal. Não acredito em caridade nem devemos reclamar caridade do Governo. Não sou presidente, não o espero ser, não o quero ser. Mas estou a fazer o que posso aqui, como estão a ver. Se isso for bom, se lhes aproveitar, só o que lhes peço é que acreditem na ideia. Obrigado, povo... É só isto que tenho para vos dizer. Encontrarão lanches empaco­tados, grátis, na porta de saída do mercado. Há sorvetes, leite e gasosas, tudo de graça. Aproveitem, meus amigos!

Estava como num frenesi de felicidade. Para o povo que o cercava durante a tarde, falava numa torrente de conselhos, explicações e admoestações. -Não encontrarão aqui todos os alimentos, mas apenas os alimentos essenciais... e baratos. Eu compro excessos e isso significa tudo o que está na sua época e que é, portanto, mais barato. Por exemplo, no último Inverno, quando os grandes frios enregelavam o gado, comprei e vendi carne barata. O preço baixou. A carne era boa, também. O frio tor­nara-a mais tenra. Bem, neste mercado, não acharão pepinos em Janeiro. Mas acharão montanhas de pepinos no Verão, quando desejarem fazer picles. E também forneço receitas de cozinha. Onde as Consigo? De gente como vocês. Quando fizerem alguma coisa boa, escrevam-me sobre isso. Olhem aquela pilha de papel ali.., levem algumas... levem uma porção e distribuam aos seus amigos. Eles vos dirão o que se pode fazer com pepinos quando estão baratos e como se faz geleia de cascas de maçã e como se aproveita o que não deve ser atirado ao lixo. Comprem barato, e não desperdicem. Podemos alimentar o Mundo com o que deitamos fora... sim, isso é uma verdade. Ninguém precisa de morrer com fome... em qualquer parte da Terra!

O povo ouvia e ria. -Você parece um pregador.

Clem sorriu. -Talvez seja... Estou a pregar um novo evan­gelho. Ninguém precisa de ter fome.

Foi no meio dessa arenga que ele viu Henrieta parada a um canto, muito quieta, com o seu vestido azul e de chapéu, e com um papel amarelo na mão. Como estava acostumado a receber tele­gramas dos seus agentes espalhados pelo país, anunciando um excesso de laranjas no Sudoeste, ou de milho na Indiana ou de legumes em Nova Jersey, tais telegramas tinham de ser atendidos imediatamente e ele parou de súbito de falar e abriu caminho por entre os assistentes, empurrando-os delicadamente com os seus cotovelos agudos.

Quando, por fim, se aproximou de Henrieta, estendeu a mão para o telegrama, que ela lhe entregou, e viu então não ser o que pensava.

O telegrama era assinado por Mrs. Lane. «Teu querido pai faleceu noite passada. Funerais quinta-feira. Prostrada de dor. William admirável. Beijos. Tua mãe». Imediatamente Clem esque­ceu a multidão e o seu grande êxito. Não havia um canto naquela vasta construção barata onde pudesse falar àparte com sua mulher. Os pilares de tijolos e as grandes vidraças davam apenas uma ilusão de abrigo. Mas fez de si mesmo um abrigo para as lágrimas que agora lentamente assomavam aos olhos de Henrieta.

-Querida, vai para o hotel. Mandarei Wong contigo. Ele tem o seu Ford aqui e levar-te-á até junto do comboio para Nova York. Se precisares de roupas, podes comprar lá... um vestido de luto, ou coisa que o valha. Estarei lá amanhã. Sinto imenso deixar-te sòzinha esta noite, mas não me podes censurar por isso.

-Desejaria tê-lo visto uma só vez que fosse - murmurou Henrieta, enxugando as lágrimas atrás do abrigo dos ombros de Clem. Era mais alta do que ele, mas justamente agora ele conse­guira ficar um pouco acima dela, sobre uma caixa caída no chão. -William devia dizer-me. Ruth devia ter escrito... não, a culpa foi toda minha.

Mostrara-se fria com seus pais porque tinham procurado William e não haviam pensado em a procurar. Ninguém lhe dissera que o seu pai estava doente. Nem mesmo as cartas de sua mãe tinham dito'que ele ia morrer. Ela, Henrieta, devia tê-lo adivinhado pela falta de cartas, mas acontecia que ele raramente escrevia às filhas, e sempre a William. E Ruth nunca enfrentaria o pior.

-É uma vergonha - murmurou Clem. -Parece-me que a tua família nos devia ter avisado.

-Talvez eu não o veja nem mesmo agora - continuou ela. -William resolve tudo como se ninguém mais existisse. -Vai depressa - aconselhou Clem.

Voltando-se, acenou para Wong, um dos estudantes chineses. Era um rapaz alto e magro de uma cidade próxima de Pequim.

Clem disse em chinês, bastante baixo para que ninguém ouvisse ou se espantasse da estranha língua : - Wong, queira levar Mrs. Miller ao hotel para tomar a sua mala e depois à estação do caminho de ferro e comprar-lhe uma passagem de Pullman para Nova York no primeiro comboio. O seu digno pai acaba de falecer.

Wong tinha ouvido falar no venerável Dr. Lane, o mais bondoso dos missionários, e estalou a língua contra o céu da boca.

-O dia da morte de um pai é o pior dia da vida de uma pessoa - disse ele reverentemente.

Despiu o seu casaco branco e vestiu o que usava fora do mercado. Dentro de meia hora, Henrieta estava a caminho da estação, no velho Ford de Wong. Deslizando ràpidamente no meio do tráfego, Wong tentava, à sua delicada maneira, conformar Henrieta com tudo o que tinha ouvido a respeito do Dr. Lane:

-Até na nossa cidade viemos a saber que o seu digno Velho foi o único que não teve medo de se aproximar da Imperatriz Diabólica e dizer-lhe que ela fazia mal em favorecer os Boxers. Soubemos, então, eu por meu pai, pois era então muito novo, que, quando a Imperatriz regressou à cidade, pretendendo que nada fora feito de mal, o seu digno Velho não quis acompanhar os estrangeiros às festas que ela ofereceu. Manteve-se afastado. O seu Velho amava o povo e não os governadores.

-Não vi meu pai durante todos esses anos- - disse Henrieta. --Agora, nunca mais o verei.

-Foi por amor de nós que se afastou até da sua própria terra - disse Wong com voz comovida.

Na estação comprou-lhe as passagens e um pequeno cesto de frutas. Depois de a ver no seu lugar e ter ajustado a cortina da janela e dizer-lhe adeus, foi para a plataforma da estação e ali ficou, com o chapéu erguido à altura do peito, até que o comboio partiu.

 

Henrieta nunca estivera na nova casa de William. Como não lhe mandara telegrama anunciando a sua chegada, tomou um automóvel e desceu à porta de uma bela casa de granito, que ficava entre duas outras menores, na Quinta Avenida. Tocou a cam­painha e a porta foi aberta por um criado inglês.

-Sou a irmã mais velha de Mr. Lane - disse ela com a sua voz um tanto fria.

O homem olhou-a, surpreendido, e ela compreendeu que ele não sabia da sua existência.

-Queira entrar, minha senhora.

Introduziu-a numa grande sala e desapareceu, com os passos abafados pelos espessos tapetes. Henrieta sentou-se numa profunda poltrona forrada de veludo cor de coral. A sala espantou-a. Cinza, coral e azul combinavam-se nos tapetes e cortinados de veludo. Era uma sala demasiado cómoda, demasiado rica, de uma beleza por demais opulenta. Candace havia assim cercado a pesada mobília que William comprara e de que ela não gostava. No centro da sala, sobre uma mesa redonda de mogno, havia um grande vaso chinês cor de prata, estriado de veios cinzentos. Estava cheio de pálidas rosas amarelas. Com que então era assim que William vivia! Devia ser monstruosamente rico. Ou talvez fosse apenas como Candace vivia, e talvez fosse ela que era dema­siado rica.

Henrieta pôs-se a pensar em William, tal como se lembrava dele em Pequim. A lembrança não era ofuscada pela imagem que ele agora apresentava. Um rabugento rapazola de sobrancelhas negras, que resmungava quando ela lhe dirigia a palavra! Porque fora ele sempre infeliz? Na escola de Chefoo raras vezes falava consigo, mesmo quando se cruzavam nos corredores. Se a mãe man­dava um recado para os dois numa carta que lhe era endereçada, Henrieta tinha de lho mandar num bilhete por um criado chinês. Ruth era muito nova para ir para a escola, de modo que nunca tinha visto o lado pior de William, pois se ele era desagradável em casa, era igualmente insuportável na escola.

Contudo, Henrieta, vagamente, julgava compreendê-lo, enquanto se achava ali sentada pensativamente Junto à janela. William não tolerava ser ultrapassado por ninguém, mas, na escola, nenhum americano podia ser como os ingleses, e William sentia-se injustamente preterido. Além disso, ela própria o ultrapassara nos estudos e tivera trabalho em ocultar-lhe as notas que faziam com que ele também a odiasse. E como podia aquele seu irmão sofrer tanto, quando, se se tivesse contentado com o que era, poderia ter sido até muito feliz? Fora um bonito rapaz, e o seu espírito, desenvolvendo-se mais lentamente que o dela, era um espírito sólido e até mesmo brilhante, parecendo agora haver passado muito além do seu. O seu intolerável, amargo, consumidor orgulho envenenara-lhe a alma, um orgulho iniciado pela sua tola amah chinesa, a qual, como fosse um menino entre meninas, o amava e prezava mais e fazia com que o adorassem como o jovem príncipe da família--um orgulho artificial, por certo, por ser um americano entre chineses. Mas ali, na grande América, não havia príncipes.

A porta abriu-se e Candace entrou, arrastando as rendas do seu roupão. Era quase meio-dia e ela ainda não se tinha vestido para o dia. Mas tão imaculada, tão encantadora estava ela nas suas rendas e nas suas vestes cor-de-rosa, os seus lindos cabelos tão macios e ondulados, que Henrieta sentia-se em desalinho depois da noite passada no comboio.

Candace estendeu-lhe as mãos e os seus anéis cintilaram. -Com que então já cá estás!

Ela estava mais bonita do que nunca, esbelta, mas de formas arredondadas, femininas, e de uma grande ternura no olhar e na voz.

-Pensava que vocês esperavam que eu viesse logo - disse Henrieta. Ela submeteu-se a um perfumado abraço e tornou a sentar-se.

Candace suspirou. As lágrimas vieram-lhe aos olhos cor de violeta. -William está inconsolável. Senta-se noite e dia ao lado do pai. Não quer comer nem repousar. Tua mãe está a dormir. Está muito cansada. Ruth foi a casa para estar um pouco com as crianças. Não há nada a fazer senão esperar.

-Clem chegará amanhã - disse Henrieta. -É muita bondade da sua parte.

-Nada disso - replicou Henrieta. -Fá-lo por minha causa.

Não achou mais que dizer e ficou sentada um momento em silêncio, enquanto Candace torcia os anéis nos dedos. Depois Henrieta decidiu-se. Não pretendia deixar-se impressionar por aquela casa, nem por nada que pertencesse a William e, na ver­dade, nem mesmo pelo próprio William.

-Por favor, Candace, desejaria ver meu pai. Bem sabes que ainda não o vi.

Candace parecia aflita. A boca, suave, carnuda e vermelha. Tomou de súbito uma expressão infantil, e mordeu o lábio inferior. -Não sei se William...

-William conhece-me muito bem- disse Henrieta. - Não te vai censurar.

Levantou-se, e Candace, como que submetendo-se por hábito, também fez o mesmo e, em silenciosa dúvida, levou-a através de outra grande sala-uma sala de música, pois havia ali um piano de cauda e um gramofone sobre um mostrador esculpido-e depois por um corredor que ia dar a uma estufa e, por fim, até uma pesada porta fechada de carvalho polido. Ali Candace, parou, após o que entreabriu um pouco a porta. Por sobre os seus ombros, Henrieta olhou para o interior de uma imensa biblioteca, tendo ao centro um féretro. Estava ali William sentado. Tinha arras­tado uma poltrona de couro suficientemente para perto do caixão, a fim de ver o rosto do pai. Um alto vaso com lírios erguia-se junto do féretro. O Sol entrava pelas altas janelas.

Henrieta afastou delicadamente Candace e entrou na sala:

-William, acabo de chegar.

William olhou-a, espantado. Depois ergueu-se. -Chegaste cedo, Henrieta. -A sua voz, profunda e sempre áspera, era moderada.

-Eu vim logo que recebi o telegrama da mãe.

Candace ao retirar-se, tinha fechado a porta, e eles ficaram sózinhos. Ela aproximou-se do caixão e olhou para o rosto do pai. Estava tão branco como uma imagem de cera. As longas e finas mãos cruzadas sobre o peito eram da mesma cadavérica brancura.

-Estimo que o tenhas conservado aqui mesmo - disse Henrieta.

-Tudo o que se tinha a fazer fez-se aqui. --Emagreceu terrivelmente.

-Esteve doente durante dois anos. Naturalmente a mãe não o compreendeu, nem ele se queixou. Os seus intestinos esta­vam desfeitos pela doença. Não havia qualquer esperança.

Nenhum dos dois chorava, nem esperava que o outro chorasse.

-Ainda bem que não morreu lá - disse William.

-Talvez o pai desejasse morrer lá- - replicou Henrieta. -Gostava tanto dos chineses!

-Desperdiçou a vida com eles - observou William.

Falava sem emoção, mas Henrieta sentia o seu grande sofrimento. William revelava-se naquele momento como jamais o vira, um homem esquálido e solitário, ainda novo, e o seu orgulho transparecia, amargo, no seu rosto, no seu altivo porte, nos gestos abruptos das suas mãos.

-É uma consolação para ti que ele tenha vindo morrer aqui. -Acrescentou num súbito assomo de compaixão.

-É mais do que uma consolação - replicou ele. -Foi a sua última missão.

Ela voltou então o olhar do tranquilo rosto do morto para William e viu nos seus olhos cinzentos um olhar tão profundamente estranho, pois foi essa a palavra que lhe ocorreu ao espírito, que pela primeira vez na vida sentiu algum medo do irmão.

William não tinha vontade de lhe falar acerca daquelas últimas palavras de seu pai. Para ele, tinham na verdade assumido uma importância de profecia. Seu pai, soubera-o por sua mãe, tivera um pressentimento da morte próxima, durante o último ano em Pequim. Recusava-se a voltar para a América simplesmente porque, ao que dizia, desejava morrer na China e ali ser enterrado. Mas, quando sentiu a morte iminente, mudou de ideias. -Preciso de ver William•-confessara-lhe ele uma noite, ao acordar muito antes do amanhecer, como frequentemente lhe acontecia. -Neces­sito ver o meu filho. Quero falar com ele. Tenho coisas a dizer-lhe.

Neste ponto, sua mãe parara para enxugar os olhos e também para lhe perguntar, cheia de curiosidade: - Que coisas te disse ele, William?

Não queria dividir, nem mesmo com sua mãe, a solenidade daquelas últimas palavras que seu pai conseguira articular. Tinham sido poucas, muito menos do que queria dizer, disso William estava certo, se não tivesse passado tão mal nas últimas semanas do fim. Mas tudo fora dito em poucas palavras. Compreen­dia que o pai tinha viajado milhas e milhas por terras e águas para falar com o seu querido filho único, e assim perdoava tudo a seu pai, toda a vergonha de ser seu filho, a desgraça da baixeza de ser filho de um pobre e de um missionário. Com o seu amor ao filho e com a sua morte, seu pai elevara-se à santidade. Havia nisso um símbolo que, à sua maneira, era tão grande como o da Cruz. Ele era o único filho de seu pai, a quem ele tanto amava...

-William, estás a sentir-te bem?

A ansiosa voz de Henrieta foi como gelo no seu ardente coração. A sua antiga irritação elevou-se contra ela. -Claro que estou bem! É natural que esteja cansado. Não pretendo repousar antes dos funerais, amanhã. Penso que deves ir ver tua mãe. -Candace disse que ela estava a dormir. - Então é tempo de a acordar.

Tomou-a pelo cotovelo e conduziu-a para fora da sala. No corredor, premiu um botão e o criado apareceu. -Leve minha irmã ao quarto de minha mãe - ordenou William.

A porta fechou-se atrás de Henrieta e ela foi compelida a seguir o homem, com os passos novamente abafados pelos espessos tapetes, e depois escada acima, e por outro corredor, até uma meia dúzia de portas fechadas. O homem bateu a uma das portas. Ela ouviu a voz de sua mãe: -Quem é?

-Obrigada - disse Henrieta, despedindo o homem com um aceno de cabeça. Abriu a porta. Sua mãe estava sentada a uma pequena escrivaninha, já vestida, com os cabelos grisalhos erguidos num alto carrapicho. Estava a escrever e ergueu a pena, voltando a cabeça. -Henrieta, minha querida! -Ergueu-se, majestosa, e abriu os braços. -Minha querida filha!

Henrieta consentiu em ser abraçada e beijou as faces secas de sua mãe. Viu, ao primeiro olhar que, embora tivesse envelhecido desde o seu último encontro, não tinha mudado. Nem a vida nem a morte a poderiam mudar. Não havia nenhuma alteração. Sua mãe sabia o que devia fazer, como se conduzir, o que havia de dizer. Henrieta afastou-se, sentou-se e tirou o chapéu e o casaco.

-Mãe, foi tão estranho termo-nos desencontrado de si e do pai quando fomos a Pequim...

-Vocês deviam ter-nos avisado - observou Mrs. Lane. -E, depois, não havia nenhuma necessidade de uma viagem assim...

Henrieta absteve-se de falar em Clem e das suas razões para ir à China, a precipitação da partida...

-Por favor, mãe, conte-me tudo.

Sua mãe só lhe podia contar o que tivesse compreendido de quanto sucedera.

-Tudo piorou em Pequim-começou sua mãe. -No fim de contas já não era como nos velhos tempos. Lembras-te, Henrieta, como tudo era fácil? Quando eras menina, recebiam-me com a máxima cortesia em toda a parte, simplesmente porque era uma estrangeira. Foi depois da revolta dos Boxers, naturalmente. Pequim era um paraíso, então. Cheguei a gostar, com toda a since­ridade, da Velha Imperatriz! Eu ia às vezes com Mrs. Conger cumprimentá-la, e Sua Majestade costumava mandar uma das suas damas explicar-me, de modo que eu o podia dizer a Mrs. Con­ger, que não sabia chinês, o quanto lamentava o que havia aconte­cido, e como compreendia que estávamos todos ali para o bem da China. Por fim, estendia-me a mão e batia na minha. Tinha a mais linda mão de velha que pudesse haver, tão delicada... e aqueles longos protectores de unhas, esmaltados... Era verdadeiramente maravilhoso vê-la. Não creio que a maioria do povo a compreen­desse. Era o que eu costumava dizer a teu pai, mas ele não acre­ditava nela, por mais que lho dissesse.

-Quando foi que o pai adoeceu? -perguntou Henrieta.

-Começou logo depois de aquele aventureiro Sun-Yat-sen ter sublevado o povo. Teu pai ficou muito preocupado. Disse-lhe que nada melhoraria com as suas preocupações, mas bem sabes que ele nunca me dava ouvidos. À sua maneira, era terrivelmente teimoso. E as coisas começaram a piorar tanto... Depois de a Imperatriz ter morrido, a cortesia acabou-se de súbito. Até o povo da rua começou a hostilizar-nos. Parecia que não nos queriam em Pequim. Teu pai foi apedrejado numa noite de domingo quando ia para a capela.

-Apedrejado... porquê?

-Por nada... apenas porque era estrangeiro. Depois ainda foi pior. Oh! querida, estiveste tanto tempo longe... É difícil explicar. Mas veio um mal depois do outro: uma revolução por causa de qualquer coisa inexplicável, e, quando dizia a teu pai que ele estava a emagrecer, respondia-me sempre que não podia sair de lá.

-E, quando saiu, queria vir falar com William...

-Veio-lhe de repente a ideia de que William precisava dele. Lembro-me de que disse uma coisa esquisita quando estávamos no convés, quando o'navio partia de Xangai. Ficou a olhar para a terra e depois disse: «Mas que proveito terá um homem se ganha o Mundo inteiro e perde o seu próprio filho?»

Henrieta não respondeu. Não ouviu nada mais do que sua mãe tagarelava. Estranhas palavras na boca de seu pai... Qual o seu significado?

 

Henrieta foi receber Clem à estação. Com a sua velha habili­dade, aperfeiçoada em constantes viagens, conseguiu apanhar um comboio no último momento possível a tempo de alcançar os funerais. Se o comboio se atrasasse meia hora na viagem, seria demasiado tarde. Henrieta acreditava agora que nunca haveria atraso em qualquer comboio que Clem tivesse escolhido para embarcar. A sorte era a aura em que ele vivia.

Assim, ficou à espera na plataforma enquanto o comboio entrava, à hora exacta. Clem era sempre o primeiro passageiro a desembarcar. Viu-o saltar da carruagem, sacudir a cabeça para um carregador, e encaminhar-se ràpidamente para ela, transpor­tando a sua pequena mala. O motorista de William avançou para lhe pegar, mas Clem resistiu:

-Obrigado, estou acostumado a transportar as minhas bagagens.

Dirigiu ao homem um rápido sorriso, e não lhe prestou mais atenção. -Henrieta... como é bom ver-te! Como estás? -Vamos, Clem. Não temos um momento a perder. -O enterro não é às quatro? Temos tempo de sobra. Henrieta insistiu. -Anda, vamos. Todos estão à tua espera. -Estão adiantados, então. -Mas mudou de atitude, ao ver que os seus olhos estavam rasos de lágrimas.

Embarcaram no grande e pesado automóvel que William importara da Inglaterra. Clem ergueu as sobrancelhas e nada disse, mas Henrieta compreendeu a sua muda censura.

-Não te importes, ele odeia a Inglaterra, mas adora tudo o que é inglês.

-Não me importo... Tens alguma coisa a dizer-me? -Agora, não, Clem. Depois.

Atravessaram em silêncio as ruas de Nova York. Pela primeira vez, ele a via de preto. Assentava-lhe bem, mas ele foi bastante sensato para lhe não dizer tal coisa naquele momento. Desejava compartilhar do seu sentimento, mas não podia. Quando pensava na morte do Dr. Lane, vinha-lhe de novo a terrível visão de seu pai, com a cabeça meio decepada, no meio dos outros cadáveres. Queria falar logo sobre qualquer outra coisa, dizer-lhe o verdadeiro êxito da inauguração do mercado em Dayton, mas sabia que tão-pouco poderia falar nisso naquela ocasião. A fim de escapar à implacável lembrança, ficou a olhar para as ruas, tentando colher ideias para anúncios e mostruários, e, enquanto assim fazia, sentia-se culpado por não se atrever a pensar no sofrimento de Henrieta. Ela não compreenderia, talvez, embora já lhe hou­vesse contado, como esse passado poderia invadir a sua vida inteira se ele lhe desse a mínima oportunidade. Ele afogava-o com a sua constante actividade, os seus incessantes planos e a sua incrível eficiência.

-Tu nunca paras quieto - disse ela, com súbita impaciência.

Olhou-a, atónito.

-Oh, Clem! - exclamou ela, tomando-lhe a mão nas suas.

Ele viu lágrimas brilharem de novo em seus olhos. -É isso mesmo, Henrieta. Não sei porque não posso ficar sentado quieto.

Henrieta comoveu-se com a sua humildade. -Não te impor­tes com o que digo. Nem sabes o estado em que me sinto...

-Está bem, compreendo.

Empregou então um sobre-humano esforço e ficou imóvel, forçando a mão que segurava a dela a ficar quieta, impedindo que os seus pés batessem, recusando-se a tomar conhecimento do prurido do nariz, da cãibra nervosa do braço ou da perna, das inúmeras e urgentes demandas dos seus nervos tensos.

Ela estava grata e continuaram sentados em silêncio enquanto o carro os conduzia até à grande igreja da Quinta Avenida, onde William ordenara que fosse exposto o corpo do pai. Ali, ela e Clem desceram e subiram os degraus de mármore. No vestí­bulo, veio ao seu encontro uma espécie de introdutor, que os conduziu em silêncio até uma área no meio de umas colunas atadas por fitas pretas, onde a família estava reunida. Para sur­presa sua, viu até Roger Cameron e sua esposa, Roger magro e velho, e aparentemente tão duradoiro como uma múmia. A sua cadeira e a de Clem tinham sido colocadas ao lado da de William. Henrieta sentou-se.

Clem, ao lado de Henrieta, fitou os olhos de William, cin­zentos sob as espessas sobrancelhas. Sentiu um choque. O rapaz alto e compenetrado que ele vira na rua de Pequim tornara-se um alto e compenetrado homem. No único olhar e no breve aceno de cabeça, Clem viu a longa face angulosa, os olhos profundos e as sobrancelhas negras, a bela e severa boca. Depois sentou-se, esquecendo o morto. William era infeliz! O sofrimento das últi­mas poucas semanas não bastariam para gravar no seu rosto semelhantes traços. Mas porque seria William essencialmente infeliz, como era agora ocasionalmente sofredor? A infelicidade era algo de profundo, de inerente a si.

«O Senhor o deu e o Senhor o tirou». A sonora e educada voz do ministro paramentado rolava da capela-mor. Clem res­pirava fundo e procurava não mexer os pés. As flores eram dema­siado fragrantes, a igreja demasiado quente. Sobre o féretro, ele via um branco rosto de estátua, caprichosamente forrada e cer­cada de flores de modo tal que compunham uma espécie de emolduramento. Aquela estátua não se parecia em nada com o Dr. Lane, de quem ele se lembrava como um tranquilo e melan­cólico santo, sempre distante, embora bondoso. Aquele morto parecia orgulhoso e até mesmo altaneiro. As suas feições estavam demasiado acentuadas, as sobrancelhas retocadas de preto, os lábios de um vermelho pálido, o nariz aperfeiçoado, as pálpebras delineadas. A cabeça tinha uma imensa e marmórea dignidade.

Tal como ele o recordava, o Dr. Lane andava levemente inclinado, com uma humilde atitude de cabeça, e nas suas feições, ainda que bondosas, estampava-se a pensativa dúvida de um homem que sempre vê o outro lado das coisas.

William, supunha Clem, recomendara que tudo fosse do melhor, e assim tinham eles feito o melhor que podiam do Dr. Lane. Clem não gostava do que via e, sentindo agora uma incontrolável necessidade de movimento, mexia furtivamente com os pés, coçava o pulso e a palma das mãos, e até chegou a esfregar o nariz, enquanto um contralto cantava o hino «Por todos os Santos que Repousam dos Seus Trabalhos». Henrieta tocou-lhe no braço e ele ficou novamente quieto.

O ministro começou a fazer o necrológio do Dr. Lane, a quem jamais conhecera, e Clem escutava. Todos os factos eram verídicos, supunha ele. O Dr. Lane, pai de William Lane, uma das maiores figuras da América, descendia de uma distinta família de intelectuais. Embora a sua família não aprovasse inteiramente o seu ingresso na carreira de missionário, insistira na sua nobre decisão, no que fora acompanhado por uma bela jovem de uma família igualmente distinta. Não era vulgar que dois jovens de tal posição deixassem tudo para seguir Cristo num país infiel. Lá, os esforços do Dr. Lane tinham sido singularmente abençoados. Ilustrara-se não sômente no terreno missionário como na inter­pretação do espírito chinês durante as últimas crises políticas.

«Esse ministro não conta as coisas verdadeiramente importantes» - dizia Clem com os seus botões. Era estranho que William não tivesse referido ao ministro que seu pai compreendia e admi­rava os chineses e que nem sempre os desejava converter. Por isso é que o estimavam tanto. William deveria ter contado as pequenas boas coisas que seu pai fazia, como sempre dava esmola quando via um mendigo...

O Dr. Lane, agora, teria compreendido as suas ideias sobre a alimentação rápida e barata do povo. Clem gostaria de lhe falar acerca dos seus mercados e dos seus planos para uma organi­zação que pudesse ser aplicada a qualquer parte do Mundo. Teria contado tudo ao Dr. Lane, coisas que não havia contado nem mesmo a Henrieta, embora ela estivesse sempre do seu lado, acreditasse ou não no que ele poderia fazer. Mas o Dr. Lane talvez acreditasse sempre...

Clem lançou um olhar ao perfil de William. Estavam agora todos de pé. A cerimónia estava quase finda. Talvez falasse com William no dia seguinte, quando tudo estivesse terminado. Ainda havia o enterro.

Junto à sepultura aberta, estava ele entre aquela família, a quem não conhecia, embora a ela pertencesse, por causa de Hen­rieta. Via-os todos, Jeremias e Ruth e as meninas, encantadoras criaturinhas, vestidas de branco em vez de preto, com casaquinhos e chapéus de pele. Nunca tinha visto Jeremias, nem Ruth, nem Mrs. Lane. Eram do número das pessoas que não conhecia.

Enquanto o ministro dizia as suas solenes e sonoras palavras e derramava terra sobre o caixão, Clem estava de olhos fitos no ar, abstractamente, inconsciente do que se passava, a pensar nos vários milagres da sua vida: o primeiro dos quais era Henrieta ter querido casar com ele. Vendo aquela família, era uma coisa que não podia compreender, embora ele próprio não fosse humilde. O milagre era que, tendo sido criado entre aquela gente, tivesse ela visto o que ele era e o que poderia fazer, antes que tivesse feito.

Observava-a enquanto ela ali estava de mãos juntas, com a cabeça inclinada, os olhos postos no chão. Amava-a imenso como amava o seu trabalho, como amava o seu sonho. Era uma das grandes coisas da sua vida, mas algo de integral e independente. Não pensava nela como uma parte de si próprio, porque não pensava nada de si. Não sabia como era ou que espécie de homem seria. Era tão sem carne como um grilo.

Estimava que Henrieta nunca lhe tivesse falado em filhos. Vira muitas crianças morrer de fome. As aldeias, ao longo daquela estirada marcha de Pequim até o litoral, fervilhavam de crianças sujas, bulhentas, famintas... Havia tantas crianças no Mundo! ... Quando pensava em crianças, sempre pensava nas suas irmãs, como as vira pela última vez, e o seu espírito logo se afastava daquela imagem. Tinha de estar livre para cumprir a missão para que nascera, e as crianças deviam ser conservadas na sua própria terra, como jóias num cofre. Se as suas irmãs nunca tivessem saído da terra onde nasceram, ainda hoje estariam vivas. Não, nunca desejaria filhos!

Tim e Jen e Mamie! Quando acorrera à granja, depois de ler a horrível história que ocupara os jornais durante um dia, Tim estava morto e enterrado, Pop Berger doente, de cama, e chorava sempre que lhe dirigiam a palavra. Havia um polícia de guarda junto ao leito e repórteres de toda a parte. Mom Berger estava com as meninas, na cozinha, de portas fechadas. Lá estivera o redactor de um jornal ilustrado, um tal Seth James. Retira­ra-se depois de saber que Clem ia levar as duas meninas para Ohio.

-Você foi a única pessoa decente que encontrei - dissera o jornalista, sacudindo meia dúzia de vezes a mão de Clem.

Clem não sabia o que fazer de Mamie e Jen. Tinham cho­rado quando as levara. Mas Henrieta mostrara-se muito paciente com elas e, depois de algum tempo, já sabiam atender os fre­gueses, ao balcão. E, quando já tinham engordado um pouco e adquirido melhor aparência, casaram-se com criados de granja. Mamie morrera ao ter o primeiro filho, mas Jen, que sempre supusera não pudesse viver muito, tornara-se forte e tagarela. Obra do alimento, naturalmente-de abundante e bom alimento.

Clem voltou a si de repente, quando Henrieta lhe pôs a mão no braço. A cerimónia terminara e ele sentiu-se envergonhado da sua falta de atenção durante a mesma. Voltou-se, obediente ao gesto da mulher, e reuniu-se à solene procissão da família que regressava aos carros.

 

O préstito parou em frente da casa de William, e a família desceu e entrou pela grande porta da frente, conservada aberta pelo mordomo, que assumira um adequado ar de compunção. Roger Cameron e a esposa foram para casa, tendo-se o seu carro afastado dos que haviam parado. Quando Candace pedira ao pai que fosse passar a tarde com ela, o velho negara-se: - Jurei há dez anos que só iria ao meu enterro, e só vim hoje a este porque tua mãe me obrigou. Terás de passar o resto do dia como pude­res, minha filha.

Candace subiu ao quarto e mudou o vestido negro por um leve roupão branco, cuja gola atou com uma fita preta. Depois desceu a ver se já estava pronto o chá que William mandara servir. Não era o chá habitual. Clem e Henrieta iam tomar o comboio e Jeremias e Ruth para casa, por causa dos filhos. Havia presunto e fatias de porco frio sobre o aparador e ela sabia que o cozinheiro preparara uma sobremesa' leve. Por ordem sua, não havia flores em cima da mesa. Vira tantas naquele dia que não queria saber delas. Rosas vermelhas na próxima semana, talvez! O terrível era que ela não sentia nada; uma suave tristeza, naturalmente, como a morte sempre inspira, mas nenhum sofrimento. Seria impossível chorar um ancião com quem raramente falara, um bondoso velho, na verdade, mesmo durante a sua doença. Mas o que a aborrecia era que não podia compartilhar do sofri­mento de William. Ele entesourava-o, guardava-o para si, supor­tava-o com tamanha nobreza que se sentia repelida e depois revoltada consigo própria. Receava o dia seguinte, quando nin­guém estivesse ali--excepto, naturalmente, a mãe de Wililam. Pela primeira vez, sentia-se contente de que a sua sogra tivesse ido passar o Inverno com eles. Talvez que, juntas, pudessem compreender melhor William e fazê-lo feliz.

Nesse instante, enquanto ela andava pela sala de jantar, o marido de Henrieta chegou à porta e olhou para dentro. Lem­brava-lhe um pássaro, esguio, de cabeça inquieta, vivaz, fazendo uma porção de pequenos movimentos inconscientes. Era inteira­mente diferente de Henrieta, e no entanto havia alguma coisa de comum entre os dois. Não compreendia porque William se zangara quando Henrieta casara com Clem.

-Entre, Clem - disse ela amàvelmente.

Ele entrou, de mãos nos bolsos, fazendo tilintar alguma coisa, chaves, moedas... não, um pequeno frasco de pílulas, de que, por fim, se apoderou. -Posso conseguir um pouco de água? Tudo isso atacou a minha indigestão nervosa.

Ela pegou num jarro de cristal, e ele assobiou quando ela lho passou para a mão. -Sólido, hem?

-Um presente de casamento. Se visse todos os cristais que tenho guardados, além desse!

-Um belo casamento, devia ter sido. Tal como William desejaria... Ele nunca lhe disse que já nos encontrámos uma vez?

-Não, não disse. Mas, já se tinham encontrado antes?

Ele espalhou algumas pílulas na palma da mão, levou-as à boca e engoliu-as com um copo de água. -Talvez já se tenha esquecido, mas eu nunca me esqueci. Um garoto chinês e eu estávamos a dançar em volta um do outro, prontos a medir as nossas forças, quando William chegou e fez-nos parar.

-Ele já o conhecia?

Clem riu maliciosamente e ela viu sardas na sua face pálida. --Não... Mas sabia quem eu era.

-Que quer dizer?

-Que não vinha do lado bom da cidade, compreende? -Havia disso, em Pequim?

-Oh, sim, havia. Os Lanes eram aristocratas comparados connosco. O Dr. Lane ganhava salário mensal. Viviam numa residência murada. Meu pai não tinha nenhum salário. Era bastante humilde para viver apenas da fé.

Falavam quase em murmúrio, quase culposamente, como que aproveitando tréguas no meio daquele dia fúnebre. Ele tinha o sentido do humor, via Candace. E Clem via ali uma agradável e bonita mulher, uma mulher sincera, afinal de contas, talvez não muito perspicaz, e certamente não tão grande como a sua Henrieta, mas boa para conversar, especialmente após um enterro.

-Os cristãos não são diferentes das outras pessoas, não acha, Mrs.... William?

-Chame-me Candy.

-Candy? Belo nome para a senhora. Meu pai era igno­rante, Candy, sem nenhuma ilustração como eu. Com uma diferença, porém: eu desejava uma educação e ele não acreditava que isso fosse bom. Pensava que Deus proveria a tudo, até o ali­mento. O Dr. Lane sabia mais. Era, realmente, ilustrado. É ver­dade que meu pai não passava de um campónio...

Candace olhava para ele, sem compreender bem o que estava a ouvir. Clem avançou mais:

-Todos os bem aprumados missionários que não tinham de confiar em Deus olhavam-nos de alto a baixo, naturalmente. Creio que meu pobre pai, às vezes, era uma espécie de mendigo.

Quando nos via com fome e sem alimento à vista, costumava dar um empurrãozinho em Deus. - Como?

O rosto de Clem ficou vermelho e as sardas desapareceram. -Ia falar com os outros missionários... e de vez em quando até com os chineses... e dizia-lhes que não tínhamos nada para comer. -Tentou rir. -Uma espécie de pedido em nome de Deus... Em todo o caso, não gosto de pensar nisso.

-Estou certa de que William se esqueceu disso tudo - disse Candace, num assomo de piedade e de vaga afeição por aquele homem demasiado honesto.

-Talvez - disse Clem. Parecia preocupado e começou de novo a sacudir as mãos no bolso.

Alguma coisa perturbava os seus inquietos olhos azuis e Candace continuava a compadecer-se dele. -Você é muito feliz com Henrieta, não? Ela adora-o, creio eu. Quando fala de si é como se estivesse ao mesmo tempo pensando no filho e no marido.

-Não há ninguém no Mundo que se compare com Henrieta, - retorquiu Clem. O rubor deixara a sua face tão ràpidamente como viera e as sardas reapareceram. -Não sei o que faria, se a não tivesse. Ela é o alicerce da minha vida. Talvez possa construir todas as espécies de superestruturas, no que estou tentando fazer em matéria de alimentação, mas é ela quem me mantém firme. E, o que é tudo: ela nunca me desanima.

-E o que está atentar fazer, Clem?

-Oh... apenas alimentar o Mundo.

-Bravo!

Ela colocara a mão no braço de Clem. Ouviram ruído de passos. Candace retirou a mão. William entrou na sala e ela vol­tou-se para o marido.

-Clem e eu estamos aqui à espera, William. Tudo está pronto.

-Não sei onde estão os outros - disse William.

Sentou-se numa grande poltrona junto às altas janelas que davam para um vasto terraço. Vestia ainda o seu trajo preto, que tornava a sua face mais lívida do que nunca e as suas sobrancelhas mais carregadas.

-Clem falava-me em alimentar o Mundo.

William lançou-lhe um olhar de sob os cenhos. Clem sentiu de súbito tinir nos seus bolsos e retirou as mãos.

-Negocia com alimentos, não é verdade? -perguntou William, sem interesse.

-Sim - respondeu Clem. -Acabo justamente de abrir um grande mercado em Dayton, no Ohio.

-Mas que tem isso que ver com o Mundo?

-É apenas o começo - esclareceu Clem, sem modéstia. Estava surpreendido de ver que até gostava de conversar com William. Havia um assunto. Atravessou ràpidamente a sala e foi sentar-se na outra poltrona junto às janelas e, voltando-se para William, começou a falar com súbita fluência.

-Comecei da maneira mais simples-com um armazém de mercearia e líquidos, numa pequena cidade, New Point, no Ohio. É ainda a sede. Não tenho família, como sabe... a rebelião dos Boxers acabou com ela...

-Meu pai contou-me - disse William.

-Bem, o passado passou... Mas a maneira como vivíamos quando eu era garoto fez com que me interessasse a fundo pelo problema da alimentação. Eu próprio não posso comer muito -sofro de indigestão nervosa. Todas aquelas maravilhas que está ali em cima da mesa, mal lhes posso tocar. Talvez uma taça de chá e um bocado de carne de porco... O pão é um veneno para mim, embora eu fabrique o melhor pão. Diga-me, William, não se lembra do pão chinês?

-Minha mãe não nos deixava comer nada que fosse feito pelos chineses.

-Bem, ficávamos muito satisfeitos em ter daquele pão em casa. Era sempre melhor do que nada. E vi depois como era efec­tivamente bom. Hei-de mandar-lhe alguns pães do meu fabrico.

William estava muito chocado para agradecer. -O seu negó­cio tem prosperado? -perguntou ele friamente. Aquele homem parecia-lhe um caixeiro de armazém.

-Vendo barato - disse Clem com orgulho. -Vigio os exce­dentes em toda a parte do país. Emprego vinte homens justamente para isso. Algum dia controlarei os excedentes da produção em todo o Mundo. Poderei então fazer o que pretendo.

-Tenciona realmente estabelecer um monopólio mundial do alimento? -William parecia pela primeira vez interessado.

-Cruzes! - exclamou Clem jovialmente. -Os monopólios não me interessam. O que me interessa é alimentar o povo. Quando não podem pagar, dou-lhes os alimentos.

-Quer dizer que o senhor lhes dá alimento, gratuitamente? -O tom de William denunciava incredulidade.

-Porque não, se estão com fome?

-Mas dessa maneira não pode fazer negócios.

Clem revolveu-se na vasta poltrona, coçou uma das faces e depois a outra, endireitou a mecha de cabelo sobre a orelha direita e esfregou os joelhos. -Não sei como - respondeu modes­tamente-mas já sou milionário, ou quase.

Candace, sentada numa das cadeiras douradas da sala de jantar, começou subitamente a rir, e William voltou-se para ela.

-Porque ris, Candace?

Ela escondeu o rosto nas mãos e meneou a cabeça, ainda a rir. O que lhe provocara o riso fora a cara que William fizera, mas não lho podia dizer. -É tão engraçado - arquejou ela ainda com o rosto nas mãos -é tão engraçado ficar rico dando de comer...

-Tolice - disse William. -Natural mente, ele não dá tudo.

-Mas dá uma parte - murmurou ela. Encontrou o lenço e enxugou os olhos. Depois viu Clem a sorrir furtivamente para si.

-É engraçado - concordou ele. -É terrivelmente engraçado. Não sei explicar. Há uma espécie de mágica oculta na regra do ouro... não posso explicar isso de outra maneira.

Nesse ponto da conversação, que William já começava a achar inteiramente repulsiva, entrou Mrs. Lane, seguida por Je­remias e Ruth. Atrás deles vinha Henrieta, de chapéu, já pronta para embarcar. William ergueu-se. -Tomemos os nossos lugares - disse ele tranquilamente. -Mãe, queira sentar-se à minha direita. Ruth, à minha esquerda, Jeremias à direita de Candace, e depois Henrieta. E este é o seu lugar, Clem.

Depois de todos se terem sentado, William ergueu a cabeça e fixou o olhar num ponto acima da cabeça de Candace, na ponta da longa mesa de toalha de renda. Havia qualquer coisa que lhes desejava dizer.

-Não é costume nesta casa dar graças a Deus antes das refeições. Talvez fôssemos descuidados. Mas de hoje em diante, em memória de meu pai, direi uma acção de graças antes das refeições em minha casa.

Os seus olhos baixaram-se e, por um instante, Candace viu neles amor e sofrimento, prestes a rebentar em lágrimas. Ele incli­nou a cabeça para evitar que as vissem.

-Querido William... - murmurou sua mãe, estendendo-lhe a mão. Mas ele não se deteve para olhar para Candace ou tocar a mão da mãe. Inclinou a cabeça e começou a rezar em voz baixa e tensa:

«Pai Nosso, pelo alimento que nos destes, recebei as nossas graças. Abençoai este alimento para nosso uso e venha a nós o Vosso reino. Amem».

Era a acção de graças que seu pai tinha usado durante a sua vida de missionário.

 

CLEM dava tempo ao tempo. A sua fé justificada pelo êxito, ainda mais se fortalecia quando encontrava oposição. Espantava-se ao ver aqueles que se teriam rido dele, se falhasse, irritarem-se com o seu triunfo e, finalmente, atacarem-no por solapar os seus próprios mercados. Eram as mercearias consolidadas, as companhias de géneros alimentícios, as cadeias de armazéns que começavam a estender uma rede sobre o país. Declaravam que também vendiam alimen­tos bons e baratos, e por fim começaram a sua campanha com insi­diosas advertências contra os produtos de Clem, dizendo que os alimentos excedentes baratos não eram garantidos e traziam gérmens de doenças e decomposição. «Comprem sòmente os nossos alimentos acondicionados! - bradavam. - Comprem sòmente os que trouxerem o nosso selo».

-Temos de arranjar bons advogados - disse Bump a Clem.

Durante a guerra, servira como perito na aquisição de alimento e ganhara uma medalha por ter poupado à nação milhões de dólares em víveres, comprando-os onde a experiência com Clem lhe ensinara a comprar, e comprando, também, com o auxílio de Clem. Após alguma relutância, depois de finda a guerra, casara-se com uma jovem alemã, Frieda Altmann, de quem se enamorara quando se achava na Europa, e tinham agora duas gordas crianças que pareciam, como ele bem via, cem por cento alemãs. Em todo o caso, a sua Frieda era boa, e uma óptima cozinheira; adorava Clem, a quem considerava um deus, e mostrava-se humilde perante Henrieta, a quem estimava com entusiasmo. Frieda fazia todas as coisas com alegria.

Clem tinha de ser levado contra a parede para se mostrar severo e agressivo. Contratou dois hábeis advogados, Beltham e Black, de Dayton, e entrou na guerra privada que iria durar toda a sua vida.

Para Clem, a guerra mundial fora incompreensível. Conhecia pouco a Europa e pensava nela como numa pequena e divertida porção de terra, de que a Inglaterra também fazia parte. Fora até lá no Verão anterior à guerra, em companhia de Henrieta, natural­mente. Ainda se negava a colocar um oceano entre ambos. Algumas semanas na Inglaterra haviam-lhe bastado.

-Impossível falar com essa gente - dizia ele a Henrieta. -Supõem que tenho uma única ideia na cabeça. Pois bem, não preciso de mais nada. Quando se tem uma ideia suficiente­mente grande, não há necessidade de mais do que uma.

Observava as granjas modelares e as suaves colinas verdes da Inglaterra com uma ponta de cinismo. -Parece-me estar a ver a índia atrás de tudo isto - dizia ele. -Vejo o Egipto e o Médio­-Oriente. Precisamos de ir à índia, para ver as verdes colinas de lá e os seus gordos habitantes. Ah! Todos esses assados, essas coste­letas, essas pernas de carneiro!

Quanto a fome, pouco encontrou na Europa. Em vez disso, prudência e a habitual parcimónia. Os franceses não deitavam nada fora, o que ele muito aprovava. Uma cabeça de peixe pertencia ao prato e não à lata do lixo.

-Não há nada melhor do que as «caras» de carpa-costu­mava dizer-lhe Mrs. Fong em Pequim, e ele jamais o esquecera.

As granjas da Dinamarca eram a delícia de Clem. Visitava-as sem apresentação, surgindo à porta de um estábulo enquanto Henrieta ficava a espairecer lá por fora. Às vezes chamava-a, outras não. Certa manhã, gritou-lhe muito entusiasmado

-Vem cá!... Este amigo tem uma ideia!

Ela olhou pela larga porta do estábulo e, ali nas sombrias profundezas, viu o granjeiro dinamarquês a pintar as paredes. Potes de tinta, verde e azul-celeste, pousavam no chão de terra batida e com uma grande brocha, não de pintor de casas mas de artista, o granjeiro cobria as paredes com paisagens de verdes prados e águas correntes sob céus azuis.

Quando viu a admiração e a surpresa dos visitantes, sorriu e falou-lhes com as poucas palavras de inglês que aprendera na escola.

-Para o Inverno - explicou ele. -Vacas contentes. Pasto bonito, pensam que é Verão.

-Muito hábil, não é? - exclamou Clem, voltando-se para Henrieta. -Ele sabe que as vacas se aborrecem no Inverno, encer­radas no estábulo, e, assim, quer fazer com que se sintam satisfeitas. Bom camarada! -Deu uma palmada nas costas do corpulento granjeiro. -Bela ideia! Elas dão mais leite, também.

Começaram uma conversação composta de gestos e uma dúzia de palavras. Clem tinha facilidade para línguas e andava por toda a parte com pequenos dicionários de algibeira. Pelo dinamar­quês, soube que era difícil exportarem manteiga para a Inglaterra, porque os granjeiros ingleses tinham a sua própria manteiga.

Mas a Dinamarca precisava de mais carvão, de carvão inglês, que ia para a Itália, em troca de fruta fresca. E, se os novos carros frigoríficos começassem realmente a circular em grande número, a Dinamarca ficaria ainda com menos carvão.

Clem preocupava-se com o eterno problema da distribuição.

O monstruoso absurdo da fome por toda a parte do Mundo impressionava-o dia e noite. O alimento era abundante na terra e no mar. Por mais gente que nascesse e vivesse, havia mais ali­mento do que poderiam consumir. Na América, vira maçãs apo­drecendo nos pomares; milho usado como combustível; celeiros de tal maneira abarrotados de trigo que seria preciso construir mais silos; ovos que se estragavam por falta de consumidores; batatas dadas de alimento aos animais; peixe transformado em adubo. A Dinamarca tinha apenas manteiga para vender, mas os americanos tinham muita manteiga e não a queriam comprar. A carne argentina era vendida por uns níqueis porque havia carne em demasia. Por toda a parte sempre a mesma história, neste mundo de gente faminta e de víveres que apodreciam.

-Tem de haver uma espécie de supervisão - disse Clem pensativamente. -Não do Governo, mas... como? -Aprendera com os chineses a ter uma profunda desconfiança do Governo. Os homens no Poder, afirmara certa vez, tornavam-se mais que homens. Ima­ginavam-se deuses. Henrieta tinha rido ao ouvir tal coisa. Não ria muitas vezes e, quando ria, Clem sempre queria saber o motivo. -Algumas vezes tu ages um pouco como Deus - replicara ela.

Ele ficara inexplicàvelmente magoado. -Não... não... não digas isso! Talvez como um pai. Apenas um pai, quem sabe...

Ela procurava polir a sua rudeza, porque nem sempre sabia o que poderia feri-lo. Ele continuava tão radiante na sua esperança, tão infantil na sua bondade, tão inexpugnável na sua fé, que parecia que nada o poderia melindrar. Henrieta descobriu então que só ela lhe poderia causar dano. A oposição dos outros, a sua zombaria, a sua incredulidade, ele ignorava-as ou aceitava como pura mal­dade. Mas só ela, a quem ele amava, e que o amava, só ela podia traspassar a sua brilhante armadura e trazer-lhe lágrimas aos olhos. Da primeira vez em que lhe vira lágrimas, Henrieta havia chorado de vergonha, e jurara a si própria que jamais riria dele, jamais lhe faria advertências, jamais mostraria dúvidas, e nem sequer duvidaria. O único pecado que ela poderia cometer era magoar o seu querido Clem.

Os anos haviam passado e eles ainda não tinham filhos, nem ela se importava com isso. Clem preenchia todas as necessidades do seu ser, e Henrieta devotava-se-lhe, encarregando-se, quase sem que ele o soubesse, de todas as coisas que o marido não gostava de fazer: as minúcias dos negócios, as facturas, os preparativos de embarque, a entrega dos carregamentos, a refrigeração, conservação e distribuição dos víveres. Ela e Bump aplicavam-se cada vez mais em executar as decisões de Clem, por mais temerárias que fossem, envolvendo, às vezes, não só a perda de milhares de dólares como também a possibilidade de lucros igualmente consideráveis. Nenhum deles discutia o que Clem resolvia fazer, porque só lhes competia descobrir como o fazer.

Durante a guerra, contudo, ele tomara uma decisão tão singular, tão diferente, que por um instante Henrieta perguntou a si própria que mudança se teria operado nele e que ela não havia compreendido. Durante os últimos anos, Clem tinha começado a ler cuidadosamente os jornais de William. Nunca dizia o que pensava deles, mas o seu olhar atento, os seus frequentes silêncios, depois de estudar meticulosamente um exemplar, deixavam Henrieta ansiosa por o interrogar. Mas não o fazia. Ele nunca lhe consentia que se queixasse de William.

-É teu irmão - dizia Clem. -Faz parte da tua família. É uma grande felicidade ter uma família. A China estaria morta e desaparecida há muito tempo se não fosse a maneira como as famílias se amparam ali.

-Espero que não me obrigues a amparar a minha-repli­cava Henrieta.

Num dos jornais de William, cada vez mais cheios de ilus­trações, Clem descobrira durante a guerra uma fotografia de «coolies» chineses cavando trincheiras na França. Descobriu-a num domingo, quando estava em casa, sentado numa cadeira de braços, com os pés nas travessas de outra, e viu as atónitas faces dos lavradores chineses na França, a olhar para ele, do fundo das páginas.

-Aposto que não têm a mínima noção do motivo por que lá estão, ou por que estão a cavar essas trincheiras - disse ele a Henrieta.

Era uma quieta manhã da América, e a gente da cidade passava tranquilamente pela casa, com seus filhos, a caminho da igreja. Henrieta olhou para Clem. Ela conhecia-o tão bem, tão familiar era cada traço daquela fina e angulosa face e cada nota daquela rápida fala que ela logo adivinhou, pelo seu tom pensa­tivo e pelo seu olhar, que um plano começava a delinear-se. Esperou enquanto polia a prata, trabalho que habitualmente deixava para aquela hora em que Clem estava em casa. Sen­tou-se à mesa da sala de jantar, coberta de jornais, por cima dos quais se achava espalhada a prata.

-Aposto que esses chineses foram embarcados para lá como gado - disse Clem. Minutos depois, levantou-se.

Henrieta seguia-o atentamente com os olhos. -Posso saber alguma coisa, Clem?

Ele procurava papel e tinta. -Quero escrever a Yusan.

Que estarão aqueles lavradores chineses fazendo na França? Há alguma coisa por detrás disso.

Ela foi buscar papel, tinta, um sobrescrito e os selos necessários e, depois de ele ter garatujado uma das suas breves cartas, selou-a e guardou-a para a remeter na manhã seguinte.

Aquilo era o princípio, bem o sabia Henrieta. O fim foi quando, alguns meses mais tarde, Clem e Yusan se encontraram em Paris. Clem colocou-a à testa dos negócios, pois Bump estava agora na guerra, pela primeira vez deixando o oceano entre os dois.

-Será apenas por algumas semanas - disse ele. A angústia estampava-se-lhe no rosto. -Não sei como irei fazer isto, mas em todo o caso terei de o fazer...

-Está muito bem - disse ela. Não, não estava nada bem, antes pelo contrário, e Henrieta sentia literalmente o coração dilacerar-se-lhe no peito, enquanto, parada no cais, o via partir, com o rosto mais pálido, o vulto mais pequeno, à medida que o navio se afastava.

Clem, com os olhos fixos nela, que constituía toda a sua famí­lia, revoltava-se contra a sua própria loucura. Se Bump ali estivesse, levá-la-ia consigo, mas, na falta de Bump, sòmente Henrieta poderia sustentar, na sua ausência, a vasta estrutura dos seus mercados. Mal sabia o que o arrastava para França, excepto que, quando hesitava, via diante de si a fisionomia espantada daqueles chineses. Via-os nas suas aldeias, nas suas próprias terras, nas ruas das cidades que invadiam nos dias de fome. Como pode­riam compreender a França? Poria Yusan em acção e depois voltaria para junto de Henrieta, talvez fosse de novo à Europa, para ver como iam as coisas, mas da próxima vez certamente a levaria consigo.

Em Paris, encontrou-se com Yusan, que envergava um fato ocidental. A princípio, mal o reconheceu entre a multidão de franceses, a não ser quando, estando todos a falar, Yusan perma­necia imóvel, silencioso, atento e solene, como uma estátua de ouro. Clem pegou-lhe na mão e por um momento esqueceu-se até mesmo de Henrieta.

-Yusan!

-Velho Irmão!

Começaram a falar ao mesmo tempo em chinês, e os fran­ceses espantaram-se de tamanha fluência, de que não compreen­diam patavina. Clem gostava dos franceses e movimentava-se entre eles com a mesma segurança que na América e na China. Tinham a mesma mescla de naturalidade, simplicidade, agudeza, humorismo,i infantilidade e requinte que tornavam parecidos os americanos e os chineses. Quando reflectia sobre esse ponto, ocorreu-lhe que todas as crianças e velhos se parecem, uns porque são muito novos e os outros porque são muito velhos, os primeiros não conhecendo nada e aceitando tudo, e os segundos conhe­cendo tudo e, portanto, aceitando qualquer coisa como possível.

Yusan, seguindo as instruções de Clem, viera com uma leva de «coolies», como eles eram chamados. Apresentara-se-lhes voluntàriamente como intérprete e fora aceito. Agora por fim o seu inglês, aprendido tão cedo e ultimamente recordado e praticado por causa de Clem, estava perfeitamente em dia. Os seus homens já estavam alojados em barracas perto do front, onde continua­mente deviam ser abertas novas trincheiras. À noite, deitavam-se ao som dos canhões, e às vezes os chineses eram mortos nos sectores mais afastados, tal como os franceses, ingleses e americanos. Mas os chineses não tinham a mínima ideia do motivo por que estavam ali ou por que eram mortos. Tinham sido engodados com promessas de pagamento para as suas famílias e um pouco para si próprios, e ali estavam, pois.

Clem partiu de Paris no mesmo dia com Yusan, viajando de comboio e depois num camião do exército. Tinha o seu passa­porte, selado e assinado em Washington, e deixavam-no circular sem demora, com Yusan.a seu lado. Os dias a bordo tinham enchido Clem de planos e ideias, cuja exposição ele só interrompeu para interrogar Yusan acerca da sua família.

-Tudo bem - respondeu Yusan. -Dei mais dois netos a meus pais, senão não me deixariam partir, salvo se você lhes pedisse.

-E Sun Yat-sen? -perguntou Clem.

Yusan meneou a cabeça. -Um dos motivos por que fiquei contente de vir ter com você é que tudo lá está na mais completa confusão. Sun Yat-sen não unificou o nosso país. Era muito chegado ao Japão, e o Japão quer-nos comer vivos. Agora a coisa tornou-se bem clara nos Vinte e Um Quesitos. É certo que Sun deixou o Japão, mas não sabe o que há-de fazer depois. Somos uma repú­blica e não somos uma república. Ele acabou com o velho governo, mas não sabe como formar novo.

Clem recordou aquela noite escura no casebre de S. Francisco e contou tudo a Yusan. - disse-lhe que devia descer até ao povo. Disse-lhe que, se não tratasse de alimentar o povo, haveria de falhar.

-Ele sempre será um herói, Velho Irmão - ponderou Yusan. -Não esqueceremos que ele nos libertou do jugo manchu. Mas não nos levou além disso. Ele quer obediência e, quando hesitamos, chama-nos sacos de areia. Você bem sabe, Velho Irmão, que nós, os chineses, sempre agimos em conjunto. Mas não acreditamos que toda a sabedoria esteja num único homem.

-Bem - disse Clem, pondo de parte o revolucionário-, creio que ele terá de aprender por conta própria. Agora, Yusan, eis aqui a minha ideia...

Surpreendeu um olhar escarninho nos negros e estreitos olhos de Yusan e sorriu. -Não me confundas com Sun! Expresso-te as minhas ideias, mas não insisto em nada. Farás o que quiseres com elas. As minhas ideias são um presente. Aceita-as ou põe-as de lado.

-Velho Irmão, aceito o presente - respondeu Yusan.

Nenhum deles olhava pela janela para as lindas paisagens francesas que se desenrolavam sucessivamente. A noite caía. Já se aproximavam do sector da guerra e não viam que a beleza tinha terminado e que os cercava a aridez da morte. Desembarcaram do comboio, tomaram um camião e correram pela noite dentro por estradas antes suaves e agora esburacadas pelas bombas. Chegaram a um desolado campo, onde desceram. Clem entrou numa barraca cheia de nostálgicos chineses, nenhum dos quais sabia ler, escrever ou falar a língua da terra em que se achavam. Estavam deitados nos seus leitos de campanha e ouviam um homem que tocava uma canção melancólica numa rabeca de duas cordas que trouxera da sua terra.

-Irmãos! -gritou Yusan, dominando a música. -Aqui está o Velho Irmão de que vos falei!

Ergueram-se dos leitos, o rabequista parou o seu lamento, e foram levantadas as luzes das lanternas. Clem viu-se rodeado pelas caras familiares, as amarelas e boas caras, os olhos francos dos aldeões chineses. Sentiu de novo o antigo amor, paternal talvez, mas grato e cheio de fé. Aqueles eram os bons, aqueles eram os simples, aqueles eram os puros da terra. Começou a falar-lhes

-Irmãos, quando soube que vocês estavam aqui, receei que pudessem estar sofrendo, e, assim, vim ver se a vossa vida é boa e o que pode ser feito para vos ajudar, se não for boa.

-Ele deixou a sua terra - acrescentou Yusan-, fez uma longa viagem por mar e merece a vossa confiança. Conheço-o desde a minha infância.

Os homens conservavam-se em silêncio, com os olhos ansiosos fixos em Clem.

-Vocês são bem alimentados? -perguntou-lhes Clem.

Os homens olharam para um de entre eles, um rapaz forte, de cara grande e alerta. O jovem falou por todos:

-Nós somos bem alimentados, mas com comida estrangeira. Somos bem tratados. O que sentimos é não saber escrever para as nossas famílias, ou ler o que nos escreveram. Não podemos nem ler nem escrever.

-As cartas podem ser lidas para vocês - disse Clem. -Tam­bém poderemos escrever as cartas que quiserem mandar.

O rapaz olhou para os seus camaradas e continuou: - Não sabemos por que motivo estamos aqui. O nosso país está também em guerra?

-De certo modo, sim - respondeu Clem. -Isto é, a China declarou guerra aos alemães.

-Não conhecemos os alemães - disse o rapaz. - Quem são eles?

Clem sentiu-se constrangido. -Nenhum de nós conhece os nossos inimigos. Eu também não conheço um único alemão. Não pensemos neles, mas sòmente, em melhorar aqui a vossa vida.

Pois como poderia ele, ou qualquer outro, explicar àqueles homens porque havia uma guerra e porque tinham deixado a sua terra e a sua família, a fim de vir cavar trincheiras para homens brancos se ocultarem enquanto matavam outros homens brancos? Quem poderia explicar tais coisas a quem quer que fosse? O Mundo estava cheio de descontentamento e, como os homens se sentiam famintos e temerosos, seguiam um ou outro pequeno condutor, esperando encontrar fartura e paz para si próprios e seus filhos, tal como aqueles homens que tinham resolvido vir de tão longe, não porque acreditassem no que estavam a fazer, mas porque suas famílias, em casa, deviam receber todos os meses algum dinheiro com que comprar comida.

Clem passou a maior parte daquela noite a conversar com os homens, fazendo-lhes perguntas e tomando nota das suas respostas. Nos dias seguintes organizou os seus planos com Yusan, e por fim passou um mês inteiro solicitando, de oficiais que o consideravam louco, o que precisava para levar a cabo tais planos. Mas Clem estava já acostumado a que o julgassem louco e não se importava com o que pensassem a seu respeito, mas guardava toda a sua ener­gia para a consecução dos seus propósitos, de modo que acabavam por ceder para se verem livres dele.

No fim do mês, tinha ajudado Yusan a estabelecer uma escola, onde os homens podiam aprender a ler e escrever, se quisessem, e arranjara dois chineses de Paris para ler as cartas que os homens recebiam de casa e escrever as respostas. Montou também um pequeno armazém, para ser suprido, regularmente, de Paris, com alimentos e doces chineses, e chá. Organizara uma noite de diversões, uma vez por semana, um lugar onde os chineses podiam ouvir a sua própria música, comer as próprias gulosei­mas, tomar chá juntos e ver peças chinesas. Contratou um cozi­nheiro chinês, a quem foi concedida licença para vender as suas iguarias. Pôs Yusan à frente de tudo isso, e, no seu primeiro ins­tante de lazer, descobriu que estava saudoso de Henrieta e não mais poderia suportar a sua ausência, embora raramente tivesse pensado nela durante o mês inteiro, da mesma forma que não pensara uma única vez em si próprio.

Despediu-se de Yusan, tomou um navio e chegou a sua casa num domingo de tarde, tão pálido e exausto que Henrieta não conteve uma exclamação ao vê-lo entrar.

Ela estava em casa, como fazia agora, sempre que podia, pois esperava Clem a qualquer momento, embora ele não a tivesse avisado de que estava para chegar. O desejo que tinha do seu regresso levava-a através dos mares, com tal persistência, que quase adivinhava a hora em que, finalmente, o veria.

-Oh, Clem! -bradou ela, da porta.

-Querida...

Caíram nos braços um do outro. Ele sentiu o robusto corpo de Henrieta e ela ficou alarmada com a magreza dos ombros de Clem, sob o seu abraço.

-Estás quase só com a pele e o osso! - exclamou, com receosa ternura.

-Estarei perfeitamente em forma depois de alguns dias em casa. O estômago fez-me das suas há algumas semanas.

Afastaram-se, ainda de mãos dadas, e ela conduziu-o, fê-lo sentar-se, evitando preocupar-se a seu respeito, coisa que ele não podia suportar.

-Vou preparar chá. Queres um ovo?

- Comeria um bife agora - respondeu Clem. Olhou em torno, contemplando a sala com ternura. -Fui um doido em ter partido. Agora que estou de volta, parece-me uma loucura. Mas tinha de ir, e não o lamento. E os negócios?

-Não me fales em negócios! - replicou Henrieta. -Trata de descansar, Clem, estás a ouvir?

-Como! Estás zangada comigo? -Havia espanto no rosto de Clem. Ela jamais o contrariara antes.

Para seu maior espanto, ela começou a chorar! Parada à porta da cozinha, ergueu a ponta do avental e enxugou os olhos. -Natu­ralmente que não estou zangada-suspirou ela. -Estou apenas assustada! Clem, se alguma coisa te acontecesse.., se tu morresses... eu não saberia o que fazer. Sem ti, aqui, sinto-me aturdida...

-Ora! - murmurou Clem, erguendo-se e abraçando-a de novo. -Eu não vou morrer. Não iria pensar numa coisa dessas.

Henrieta reclinou a cabeça no ombro de Clem e ele ficou a ampará-la em silêncio, amorosamente, sem lhe dizer como real­mente se sentia. Sim, não ia morrer, mas sentia-se terrivelmente cansado. A vista e a lembrança daquelas francas e atónitas faces amarelas não o deixavam um só momento. Nem eram tudo. Nos campos da França havia rostos assim, e as mesmas caras estavam ali nos campos de Ohio, nas ruas das aldeias e nos bairros pobres da cidade, não todas francas e algumas longe de ser boas, mas com a mesma confusão e espanto. E, o mais terrível de tudo, é que as havia nos campos de batalha, e mortas de entre os mortos, Não, ele não devia morrer, mas estava suficientemente exausto para morrer. Ninguém sabia o que ele tentava dizer; nem mesmo aqueles a quem desejava salvar o poderiam compreender.

Mas não devia ceder, apesar de tudo. Devia recomeçar onde ficara.

Isso significava, como veio a descobrir nos anos que se segui­ram à guerra, uma organização dos seus mercados e a maneira de enfrentar as limitações e leis que aborreciam o seu espírito livre. A guerra travada pela liberdade trouxera com a vitória uma perda de liberdade para todos, e havia vezes em que Clem sentia mais fortemente em si próprio essa perda. Estava tão acostumado a visitar outro país tal como nós visitamos um Estado vizinho: des­cuidoso de tudo, a não ser do propósito de ir até lá. Passaportes e vistos faziam-no resmungar, e nem mesmo Bump podia abrandar a sua irritação, com o máximo de rapidez ou providências ante­cipadas. Clem sentia como uma infracção aos seus direitos não poder resolver de súbito ir à índia nos meados da semana próxima ou aparecer em Sião para ver como ia a colheita do arroz.

A sua primeira visita à índia inspirou-se num breve encontro, inteiramente acidental, com um rapaz hindu em Londres, durante a guerra. Haviam-se encontrado no metropolitano, onde estiveram sentados um ao lado do outro durante alguns minutos. Clem começara logo a falar e depois, esquecendo o seu próprio destino, fora com o rapaz hindu até o alojamento deste, próximo da estação. Ram Goshal ficara, a princípio, espantado com aquele magro americano de cabelos amarelos e, por fim, sucumbira à terrí­vel fascinação de Ciem, que descobriu que Ram Goshal, embora filho de um riquíssimo indiano, deixara a vida da sociedade para trabalhar por Gandhi, que encontrara poucos anos antes quando Gandhi, astro ascendente, partira da África do Sul para Londres com uma delegação indiana. Ram Goshal voltara com Gandhi a Londres no princípio da guerra e, numa reunião de hindus, Gandhi insistira que não seria honroso reclamar liberdade numa época de provação e atribulações para a Inglaterra. O desinteresse, em tal hora, dizia ele, seria digno e correcto, e calaria mais, no fim de tudo.

Ram Goshal, educado em sensível tradição, fora de novo fascinado pela largueza de espírito de Gandhi. Declarara-se seu discípulo, embora constrangido com a riqueza de seu pai, que estava empenhado na exploração das grandes indústrias modernas na índia, coisa que Gandhi desaprova:

-Não permita Deus - dizia Gandhi-que a Índia jamais se industrialize à maneira do Ocidente. O imperialismo económico de uma pequena ilha está hoje a escravizar o Mundo. Se toda uma nação de trezentos milhões de habitantes se entregasse a tal exploração económica, arrasaria a Terra como uma nuvem de gafanhotos.

Clem, no entanto, não concordava inteiramente com Gandhi, pelo que lhe citava Ram Goshal.

-Nós não nos podemos livrar de uma coisa simplesmente declarando-nos contra - dizia Clem ao moço indiano. -O indus­trialismo, claro, temos de aprender a utilizá-lo. Não podemos voltar ao primeiro século só porque o século xx não nos agrada.

Ram Goshal pedira a Clem que fosse à Índia.,-Você há-de compreender a índia - dizia ele, com os negros e grandes olhos húmidos de admiração. -Você é como nós. Você é um místico prático. -Depois aqueles profundos olhos, obsediados com a imensa Histó ia de seu poro, cintilaram maliciosamente: - Não se lembra do que Lord Rosebery dizia de Cromwell?

-Não sou um homem ilustrado - respondeu Clem, apagan­do-se humildemente diante daquele jovem intelectual do Oriente.

-Ele dizia que Cromwell era um místico prático, a mais formidável e terrível de todas as combinações. Eis o que você é, também. Por isso lhe peço que vá à minha terra observar com os seus próprios olhos a minha gente faminta.

Clem não podia resistir a tal calor, a tal veemência, nem à beleza morena daquela face indiana, e prometeu ir o mais cedo possível depois da guerra.

Resolveu subitamente, num dia de janeiro, descansar alguns meses das constantes perseguições dos seus rivais da cadeia de mercearias, sendo a isso levado por uma carta de Ram Goshal, agora na índia. Gandhi estava então no auge da campanha de não-cooperação e Ram Goshal sentia-se um tanto preocupado. Seu pai descordava de Gandhi e, se Ram não fosse o seu único filho, certamente o teria deserdado.

Clem leu pensativamente a carta e estendeu-a a Henrieta.

-Será preferível ir ver por mim próprio se os ingleses preten­dem fazer algo de melhor quanto à alimentação do povo indiano. Se não pretendem, creio que Gandhi está com a razão. Mas quero certificar-me a respeito dos ingleses.

-Naturalmente, Clem - disse Henrieta. Suspeitava que Clem, ignorava ela se conscientemente ou não, estava assim a adiar uma decisão que Bump e os dois jovens advogados instavam para que ele a tomasse. Para que Clem pudesse anular o propósito das mercearias organizadas de o pôr fora dos negócios, achavam que deviam eles organizar-se em Mercados Consolidados, Inc. Clem, apesar do conselho dos três rapazes, ainda se negava a isso. Dese­java que a maioria dos seus mercados fosse móvel, com os seus empregados prontos a ir aonde quer que houvesse excesso de géneros. Vastas construções e pessoal estabilizado não lhe interes­savam... Não queria um nome. O seu negócio consistia simples­mente em juntar alimento e fornecê-lo ao povo necessitado. Quando a necessidade passasse, o suprimento cessaria.

Enquanto Clem assim pensava, reparou que Henrieta o olhava com súbito carinho.

-Que há, Clem?

-Essa única palavra que disseste...

-Como?

- disseste: «naturalmente». É o que sempre dizes das minhas intenções... És uma maravilhosa esposa!

Tão raramente proferia palavras de carinho que os olhos dela se marejaram de lágrimas. -É o que penso, querido.

-Eu sei. -Ele inclinou-se e beijou-lhe os cabelos. E assim começou a jornada da índia.

Em Bombaim, foram directamente a casa de Ram Goshal, um belo palácio nos arredores da cidade, além das Torres do Silêncio. O pai de Ram Goshal era gordo, atarracado, astuto, não dando a Clem oportunidade de falar, obrigando-o cinicamente a ouvir.

-Eu não me oponho à liberdade, compreenda, Mr. Miller. Os americanos, bem sei, amam muito a liberdade. Mas os ingleses não me oprimiram. Digo ao meu filho que é cinicamente por causa dos ingleses que somos tão prósperos. Gandhi não prospera tanto com eles, mas nós não somos Gandhi. Não há razão para mili­tarmos no seu campo.

Ram Goshal, muito filial para discutir com o pai, conservava-se sentado, em mísero silêncio, aguardando a sua oportunidade para a noite, quando manteria Clem desperto durante horas. Isso, combinado com as comidas indianas, pôs fim à visita. Todo o polido acolhimento e o empenho do pai e do filho em ganhar a América para o seu lado, nada foi capaz de mitigar a indigesti­bilidade da cozinha indiana. O estômago delicado de Clem revoltava-se com o caril, a pimenta e as massas fritas. Na Ingla­terra, rejeitara os grandes assados e os suculentos bifes, as verduras ,e as batatas cozidas, e agora na índia rejeitava os pratos preparados com coco, as ervilhas quentes apimentadas e todas as variedades de comida com excesso de condimentos.

A comida indiana fazia-lhe mal e Henrieta levou-o para um hotel inglês, onde jejuou durante três dias, tomando depois chá e ovos quentes mal passados, assistido por Ram Goshal, que o fora visitar.

Clem sorriu o seu pálido e infantil sorriso. -Quem sou eu para falar ao povo em alimentação, Ram Goshal? Tenho de viver de papas.

-Você é como Gandhi - respondeu Ram Goshal. -Você usa o seu corpo apenas como um frágil abrigo, uma simples habitação, enquanto o espírito trabalha.

Clem era demasiado americano para aquele entusiasmo indiano. -Creio que sou apenas um homem de senso comum - ­respondeu ele. -E, na verdade, sinto muito ter o estômago fraco.

Logo que se sentiu bem, resolveu deixar Bombaim e, despedindo-se de Ram Goshal, viajou durante semanas pelo país com Henrieta, a fim de observar o passadio do povo. Era impossível viajarem sòzinhos, e foram obrigados a contratar um guia, um criado que velava por eles, um escuro muçulmano chamado Wadi, que os induzia a ver os muçulmanos e evitar os hindus, até que Clem descobriu o que estava acontecendo. Depois disso, para um Wadi carrancudo, decretava a jornada de cada dia, sem mais atender aos seus livros e mapas. Ia às aldeias e examinava o que o povo cozinhava nas suas panelas e o que plantava nas suas hortas. Cada vez ficava mais deprimido com o que descobria. Logo que tinham deixado a região costeira, parecia não haver mais do que infindáveis desertos.

-A terra é pobre. Não sei o que querem dizer esses livros quando afirmam que a gente é pobre, mas que a terra é rica. Não vejo nenhuma terra rica.

Dirigiu-se, finalmente, para Nova Delhi, levado por crescente indignação e resolvido a enfrentar os governadores do império no seu covil. As pedregosas colinas que via pelas janelas do com­boio, as moitas esparsas, o solo seco, as pálidas manchas de cultivo aumentavam a sua cólera, de modo que, quando chegou à monumental capital do império, estava, dizia ele, «pronto para ser atado».

Mas, em justiça, era obrigado a admitir que não só o império podia ser culpado pelo povo faminto e o gado esquelético. Quem quer que governasse a índia, continuaria o Sol a dardejar impla­càvelmente sobre a terra enegrecida. Era Inverno em Ohio, estação que significava neve sobre planícies e colinas; e, em Nova York, as luzes brilhavam por detrás de vidraças enevoadas e havia neve nas ruas e mulheres de faces róseas nas portas apinhadas dos teatros. Na índia significava a lenta ascensão de um tórrido calor, que deixava a terra seca. Magros animais vagueavam, sonhando com pastagens, e magras mãos humanas ocupavam-se, com a terra seca e uma tigela de água, em fazer barro para modelar mais tigelas vazias, que seriam quebradas depois de tocadas pelos lábios dos impuros.

-Alguns poços aqui e ali - dizia Clem a Henrieta, sentindo a pele tão seca como a de qualquer indiano-e este deserto poderia ser cultivado.

Mas os poços não eram abertos, e quem poderia censurar os homens por não abrirem poços, quando, sob o Sol ardente, uma folha morta se crispava, se carbonizava nas extremidades e se enrugava toda como a mão de um cadáver de criança?

Na capital, Clem, pura flama de zelo, penetrou nos umbrais de mármore do império e pediu para ver o Vice-Rei. Um ameri­cano milionário pode ver até mesmo o rei e, assim, foi ele recebido,

marchando impassivelmente entre fileiras de subalternos de tur­bante. Um velho rosto indiano, de expressão velhaca e obsequiosa, assomou de sob uma multicolorida pilha de tafetá.

-Sou Sir Girga... Muito honrado, Sir, erra conduzi-lo a Sua Excelência o Vice-Rei.

O homem da cara velhaca, com o seu tronco empertigada, contrastando com um par de pernas vacilantes, introduziu-o numa vasta sala onde se encontrava A Presença e deixou-o defronte de uma fria e cautelosa face britânica.

Clem, não sabendo o que fazer de melhor, sentou-se numa cadeira a conveniente distância e começou a falar ao governador da maneira como os súbditos podiam e deviam ser alimentados.

-A irrigação é o principal - disse ele com a sua anasalada voz americana. Sentia um terrível calor e desejava poder tirar o casaco, mas continuou. -Sei que o índice de água na índia é alto: basta cavar vinte pés e haverá água... e às vezes apenas dez ou doze pés. Pelos meus cálculos, que fiz cuidadosamente sobre dados concretos, a índia poderia alimentar-se com facilidade e até mesmo exportar géneros alimentícios.

O Vice-Rei, imaculado no seu branco tussor confeccionado em Londres, baixou os olhos para ele como para um verme.

-O senhor não compreende os nossos problemas - observou ele, com suave sotaque oxfordiano. -Mais alimento significaria simplesmente mais gente. Eles multiplicam-se, Mr. Miller. Parou a fim de olhar para um cartão que Sir Girga erguia atenciosamente ao alcance da sua vista-....

-Quer dizer que a política do seu governo é conservar o povo faminto? -interrogou Clem.

-Devemos encarar as coisas como são- - replicou o Vice-Rei.

Na Inglaterra, reflectiu Clem, aquilo devia ser um bom tipo. O seu rosto não era cruel: apenas vazio. Tudo teria de se esvaziar do coração de um homem, se ele se sentasse naquele vácuo. Clem olhou para a enorme sala, toda ornamentada de ouro, numa grande variedade de decorações.

-Compreendo o seu ponto de vista - disse, após uma longa pausa. E, depois de novo silêncio, acrescentou abruptamente -Mas não concordo com ele.

-Ah! Sim? -Havia um tom de sarcasmo na voz do outro. Mas Clem nunca notava os sarcasmos. E prosseguiu:

-Nunca procuramos alimentar o Mundo. Nem sequer calculamos quanta carne produz um porco, não é verdade? Cada barrigada vai produzindo leitões até não sabermos o que fazer com tudo aquilo. Na América, é certo que lançamos fora montanhas de bom alimento, além de comermos demais. Os senho­res, ingleses, comem demais, também, na minha opinião... Todas aquelas carnes!

A face continuava vazia e, olhando para ela, Clem disse: --A América é o mais culpado de todos os países, em matéria de desperdício.

-O senhor bem o deve saber - disse a face.

Depois de meia hora sem diálogo, Clem despediu-se. Seguiu atrás do trôpego Sir Girga, que o conduziu através da floresta de lacaios, até ao portão principal, onde estava à sua espera um absurdo veículo indiano chamado tonga, para irrisão do princi­pesco porteiro.

Voltou ao hotel, num de cujos quartos Henrieta o aguardava, abanando-se. -Iremos até Java antes de regressar - disse-lhe Clem. -Era o que eu pensava. Eles não se interessam com a alimentação do povo.

Em Java, ficou entusiasmado à vista de uma terra tão rica que, enquanto num campo se semeava arroz, no outro proce­dia-se à colheita. Homens carregavam às costas feixes de arroz, cujas pesadas cabeças pendiam para o chão numa franja de ouro. Os holandeses eram mais que delicados para com um milionário americano e mostravam-lhe tudo, presumivelmente, e em toda a parte ele via, ou lhe mostravam, um povo satisfeito e bem alimen­tado. Foi apenas acidentalmente que descobriu que havia um partido pró-independência. Uma noite em que passeava sòzinho, como nenhum estrangeiro faria num império bem ordenado, meteram-lhe um papel na mão. Ao voltar para o hotel viu à luz de um candeeiro que era um bilhete garatujado em inglês, dizendo que devia visitar as prisões. Isso, naturalmente, não lhe era permitido.

Foi uma boa experiência para Clem. Ficou alguns dias a reflectir sobre a viagem de regresso. Henrieta estava à espera do que ele diria no final das suas cogitações, o que se deu em poucas palavras, como de costume, numa noite em que passavam pelo cais.

-Ainda temos liberdade na América - disse ele. -Vou lá examinar de novo a situação e ver se Bump e os camaradas legistas tem razão. Se for preciso organizar-me, assim o farei, mas de modo a não serpeado por leis e formalidades. Organizarei tudo no sentido de mais liberdade, compreendes?

-Creio que é essa a ideia de Bump - disse Henrieta.

Clem discordou. -Não, as ideias que Bump e eu formamos da independência não são a mesma coisa. Ele é como aqueles advogados... ele quer leis como cacetes, compreendes? Cacetes para obrigar os outros a fazer o que a gente quer! Mas a minha ideia é usar as leis para conservar a minha liberdade de fazer o que quero. Não quero interferir na vida dos outros, ou alijá-los dos negócios.

Havia uma diferença, como bem via Henrieta, uma grande e fundamental diferença. Clem era um não-competidor num mundo de competição. Era bastante estranho pensar que fora preciso a Índia para mostrar a Clem o valor da lei no seu próprio país, mas assim tinha sido e, quando chegaram à América, Clem mergulhou nessa nova fase da sua existência. Beltham e Black recorreram a uma firma mais antiga de advogados como consultores, e Bump francamente colocou-se ao lado dos quatro advogados. Contra eles todos, Clem entrincheirava-se atrás da sua velha mesa de pinho que ainda lhe servia de secretária.

-O que você quer é impossível, Clem! -gritou Bump afinal. Estava exausto. Os advogados mostravam-se irritados com a teimosia do seu consulente. Eram também os dias em que Frieda esperava o terceiro filho e ela sentia saudades da Alemanha, de modo que Bump não tinha paz em casa, tão-pouco.

Clem ergueu a cabeça e olhou para todos eles. Estava branco como um defunto e com a pele em cima dos ossos, mas os seus olhos eram de azul eléctrico.

-Impossível? -A sua voz era aguda e tensa como uma corda de violino. -Como, Bump? Você não me conhece ainda depois de todos estes anos? Você não me pode dizer essa palavra.

 

os prósperos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, William progrediu excepcionalmente. Os seus jornais eram os mais populares dos Estados Unidos e tinham várias edições estrangeiras. Os velhos escritórios estavam de há muito abandonados e possuía agora um monumental edifício em East River.

Ainda não estava satisfeito. Desejava que o seu país fosse o maior do Mundo, não sòmente em palavras, imaginação e orgulho nacional, mas em factos. Via navios americanos em todos os mares, e jornais americanos, os seus jornais, em todos os países, firmas americanas nas ruas comerciais e, antes de tudo,, igrejas e escolas americanas por toda a parte.

Esse era o motor que accionava a organizada energia da sua vida. Dava grandes somas a missões americanas no estrangeiro, sempre em memória de seu pai. Fundou uma escola na China, conhecida como a Lane Memorial University, embora se recusasse firmemente a encontrar-se frente a frente com os missionários cujos salários pagava. Tinha para isso uma organização, a Fun­dação Lane. Nunca voltara à China, embora às vezes sonhasse à noite com Pequim, especialmente quando estava cansado, uns ingénuos sonhos de pequenas habitações entre muros, notas de alaúde, Sol dardejante sobre uma rua adormecida. Lembranças que ele havia esquecido, subiam à noite ao seu espírito exaurido pelo dia de trabalho. Não lhes dava, porém, atenção.

Aquela era a época em que tudo poderia ser feito na Amé­rica. Mas ele não fazia tudo o que sonhava fazer. A gente comum, como ele dizia, significando as pessoas ordinárias que iam e vinham pelas ruas, a pé, de ómnibus ou de «eléctrico», os que andavam debaixo do solo em comboios subterrâneos, e os que viviam em granjas e aldeias e medíocres cidades, todos aqueles que compra­vam os seus jornais tão infalivelmente como compravam o pão de cada dia no armazém da esquina, esses não tinham importância suficiente para governar, nem mesmo com um sim ou um não, o possível país oculto que ele agora percebia atrás da fachada da América actual. Tinha pensado, quando sonhava, na Uni­versidade, com vastos tentáculos jornalísticos que, se tivesse sob a sua influência essa gente comum, poderia guiar o país. Nunca usava a palavra «controlar», que na verdade francamente lhe aborrecia. Mas guiar era uma boa palavra, que lembrava a guia de Deus, com que, após a morte de seu pai, ele continuamente sonhava, como uma coisa ligada ao Poder e ao dinheiro. Os homens comuns eram fracos e apáticos. Não escutavam ninguém. Agora que as redes radiofónicas começavam a estender-se pelo país, os seus jornais já não podiam visar a exclusividade. Isso aborrecia-o soberanamente. A Imprensa tinha um rival. Pensou em fazer os seus jornais quase inteiramente ilustrados, de modo que fosse desnecessária a leitura, e depois rejeitou a ideia. As figuras não podiam evitar que o homem comum escutasse o rádio, que tam­bém não requeria leitura. Devia monopolizar não só os olhos, mas também os ouvidos, e começou a estudar um meio de o con­seguir.

Em tudo isso, Candace de nada lhe servia. Tornara-se indi­ferente às terríveis responsabilidades que ele assumia como seu dever e chegara um dia a discutir com a sogra. Nunca pudera descobrir, por intermédio da esposa ou de sua mãe, o que havia acontecido, a não ser que ele próprio fora a causa da desinteligência entre ambas. Candace limitou-se a rir quando ele insistira em por­menores.

-Tua mãe viveu muito tempo em Pequim - foi só o que ela disse.

Sua mãe fora um pouco mais longe. -Sinto muito dizer-te, William, mas Candace não te aprecia como uma esposa o deveria fazer. Se ela compreende ou não a maravilhosa obra que estás fazendo, isso não vem ao caso. Eu nem sempre compreendia o teu querido pai e podia até não simpatizar muitas vezes com as suas ideias ou com o que ele fazia, mas sempre o apreciei.

Candace tornara-se alheia e negligente naqueles anos de após-guerra, a ponto de anunciar em qualquer domingo de manhã que ia à praia com os meninos em vez de os mandar à igreja. Que o próprio William não fosse à igreja, isso nada tinha que ver com os seus filhos, os quais ele achava que deveriam receber alguma instrução religiosa. Na verdade, ele próprio, desde a morte de seu pai, sentira necessidade de reencontrar Deus, mas não podia voltar às debilidades do seu antigo pastor. Desejava uma fé mais firme, uma igreja mais forte, e vezes havia em que pensava no Catolicismo. Isso, no entanto, nada tinha que ver com Candace e os dois garotos. A praia era outro dos caprichos da mulher, embora houvesse comprado com a maior boa vontade uma milha de litoral no Maine. Ela declarara que desejava apenas um barracão, ao que ele simplesmente respondera que as coisas deviam ser bem-feitas, ainda que no Verão só pudesse passar na praia um ou dois dias por semana. Contratara um jovem arqui­tecto que projectara uma extraordinária casa no alto de um penhasco cinzento, e uma espécie de escada giratória que conduzia até ao mar e a uma grande «cabana». Afinal, era uma coisa eficiente, de que se sentia orgulhoso.

Tinha agora de reconhecer que Candace nunca significara muito para ele, e há anos que não necessitava de Roger Cameron. Quando Mrs. Cameron falecera no ano passado, o velho Roger dissera a William que desejava vender as suas acções nos jornais.

-Os dividendos estão a subir - informara William.

-Por isso mesmo é que os quero vender - replicara Roger.

Isso parecia um contra-senso, mas William não replicou porque se sentia vagamente ofendido. O seu orgulho revoltou-se e enviou um memorando a todos os seus agentes, dizendo que desejava comprar todas as acções, de modo a tornar-se o único proprietário. Quando vieram os relatórios, viu o nome de Seth James. Seth financiava agora um novo diário, que William logo viu que estava destinado a um malogro. Seth deveria conhecer melhor o assunto, dissera ele consigo, enquanto examinava com­placentemente as primeiras edições. «O jornal com um objectivo», anunciava tolamente Seth. Naturalmente o povo não o com­praria. O povo não queria que lhe indicassem um objectivo. O povo queria divertir-se. O próprio William nunca se divertia. Era tarefa de Jeremias escolher as fotografias que faziam o povo rir. O macabro era igualmente tão bom como o ridículo, e de coisas macabras William entendia. Um assassínio hàbilmente des­crito, uma mulher estrangulada, uma criança moribunda, uma família chorando sobre o cadáver do pai estraçalhado por um camião, um louco fugido do hospício, um avião que tombava sobre uma pequena casa em Long Island, tudo isso distraía o povo.

Mas tal era a consciência de William desde a morte do pai que não permitia que nenhuma edição de um jornal fosse entregue ao público sem a sua quota de religião. Acreditava verdadeira­mente em Deus. O seu próprio ser, organizado com uma finalidade, convencia-o da existência de Deus, e os seus jornais traziam foto­grafias de igrejas e ministros, padres e freiras. William não possuía um critério estreito. O povo adorava Deus de muitas maneiras, embora rejeitasse todas as doutrinas não cristãs. Discordava de Estey, seu novo assistente, quanto a uma fotografia do Lama. Como novidade, sim, mas não como religião. E o povo na próxima semana vira a benigna face do Lama aparecer lado a lado com a esposa do Presidente numa festa de Páscoa.

 

Num dia de Outubro estava a pensar nestas coisas no seu imenso escritório no último andar do seu próprio edifício. O escri­tório dava para um belo apartamento onde podia dormir nas noites em que trabalhava até tarde. Casper Wilde, o jovem moder­nista inglês, fora quem lhe fizera o projecto. William queria que fosse executado por um arquitecto suíço, mas, depois de examinar os desenhos, viu-se obrigado a reconhecer que não havia nada que igualasse o inglês moderno na sua conservadora e sólida direcção. Era irritante mas era verdade. Apesar da Guerra Mun­dial, não havia fenda na armadura do Império Britânico. Os seus repórteres, estacionados permanentemente na índia, como em quase todos os outros países, informavam-no do amargo desapon­tamento que reinava entre os hindus depois da guerra

«Nos meios cultos indianos há queixas de que a Inglaterra não dá mostras de querer cumprir as promessas de independêncía feitas aos políticos indianos durante a guerra. Murmura-se que na próxima guerra os hindus aproveitarão a oportunidade para se rebelar».

Isso era talvez uma fenda na armadura imperial, mas não mais do que isso. William não tinha a mínima simpatia pela causa da independência da índia. A sua imaginação, presa ao tumulto na rua de Pequim, via na índia aquelas faces queimadas pelo Sol indiano e multiplicadas em milhões. Quando a fenda acaso se tornasse desastrosa para o Império Britânico, o seu próprio país deveria estar pronto para assumir o controle.

A América era jovem. Depois de passado aquele doido e negligente período do após-guerra, os americanos compenetrar­-se-iam do seu destino. Nos seus editoriais, não deixava de lhes relembrar hàbilmente esse destino. Despertava-lhes o orgulho com fotografias das maiores fábricas do Mundo, das maiores aeronaves, dos mais rápidos comboios. Aborrecia-lhe que o exército e a mari­nha da América não fossem mais impressionantes. Quando a marinha resolvia fazer manobras nalguma parte do Mundo, William mandava com eles uma equipa de fotógrafos. Um belo mar, bandeiras drapejantes e filas de homens de brim branco sempre davam maravilhosas fotografias.

O povo ainda estava de ânimo divertido. Naquela esplêndida tarde de Outono, nem ele próprio se sentia com espírito crítico. Os tempos eram bons e o povo tinha dinheiro para gastar. Ele próprio se divertia se pudesse, mas não achava prazer em nenhuma das habituais diversões. Em Chefoo aprendera a jogar ténis de bela maneira, cheia de golpes e ciladas, com astúcia e rudeza, mas raramente jogava ténis. O descuidado jogo com Candace em Crest House, sua residência em Long Island Sound, ou nos fins de semana com Jeremias, que nem mesmo no desporto se recusava a ser adversário de qualquer homem, nada disso divertia o seu espírito. Gostava de um adversário, e com um adversário no ténis estava mais perto do divertimento, do prazer, da relaxação talvez, do que em qualquer outro desporto, quando ocasionalmente encontrava um adversário que se lhe igualasse.

Estava sentado à sua mesa circular, com os punhos cerrados sobre a mesma, pensando. Tivera tudo na vida, excepto compa­nhia humana. Sentia-se distante de todas as criaturas humanas, até de Candace e de seus filhos, e indubitàvelmente de sua mãe e irmãs. Não tinha ninguém perto de si, fosse homem ou mulher. Jeremias de há muito tomara posição como um cunhado estouvado e irónico que sabia que não poderia ser despedido, sob pena de causar um escândalo na firma. Mas Jeremias tinha um faro espe­cial para imprimir aos jornais um humorismo que ninguém poderia suprir; William, porque não sabia como, e o resto do pessoal, porque tinha medo dele. William pensava às vezes com certo pesar que Jeremias poderia ter sido seu amigo, mas Jeremias não o queria ser. Talvez não pudesse compreender ou avaliar as coisas pelas quais William vivia. Os Camerons eram todos uns estouvados. O velho Roger actualmente era tão jovial como um antigo caixeiro-viajante e Candace tornara-se complacente e des­cuidosa da sua compostura. Ria de tudo quanto Jeremias dizia quando as famílias se achavam reunidas e nem mesmo Ruth podia fazer-lhe ver o que era dignidade. William sabia que Ruth estaria sempre do seu lado, mas às vezes ele perguntava a si próprio se ela também não riria na sua ausência. Em suma, não tinha nin­guém consigo. Os seus próprios filhos não lhe interessavam. Era solitário como um rei.

E, como um rei, reflectia ele, não poderia estender a mão a ninguém sem que fosse mal interpretado. Era-lhe impossível o gesto de comum amizade. Se estendia a mão, devia ser para um fim que ainda não era claro para ele. Desconfiava que não havia mulher no Mundo que lhe servisse de verdadeira companhia. Para ele, sòmente a sua solidão era verdadeira e profunda.

Em tal estado de espírito, saiu mais cedo do escritório e entrou no automóvel que o esperava. O motorista ficou surpreen­dido e contente ao vê-lo. Sem dúvida o homem tinha família e tencionava voltar cedo para casa. William, contudo, nada lhe perguntou. Apenas fez o seu brusco cumprimento de cabeça e disse: «Directamente para Crest Hill». Desejava ir para casa e ver o seu lar e sua esposa. Não havia nenhuma razão para que, tendo conseguido tudo o que ambicionava, não tivesse uma satisfação pessoal. Parecia pouca coisa, mas, sem isso, naquela esplêndida tarde de Outono, nada do que ele tinha era o que poderia ser.

 

Em Crest Hill, Candace passara um belo e preguiçoso dia. Era o que ela chamava um dia de graça, e de que havia tão poucos em cada estação. Assim, embora as folhas houvessem caído e a primeira geada matado as flores, embora os seus casacos de pele houvessem sido retirados do guarda-fato, o dia era tão quente como os melhores dias de junho, e ela não tinha feito absoluta­mente nada. O tanque de natação fora esvaziado e limpo, mas ela mandara enchê-lo de novo e lá passara a manhã, dentro ou fora da piscina, inteiramente sózinha e satisfeita. Sentia falta das crianças, mas elas tinham ido para a escola e, quanto a William, aprendera a não lhe sentir a falta, onde quer que ele estivesse. A grande casa estava desacostumadamente alegre, com as portas e janelas abertas, e os vasos sobre as mesas estavam cheios de rosas. As suas roseiras estavam abrigadas nas estufas, tendo assim escapado às geadas. Ela era a mais preguiçosa das mulheres e desfrutava a sua preguiça. Um momento ao telefone poderia trazer para a sua companhia uns cem amigos, homens e mulheres dis­postos a compartilhar do seu pendor para o divertimento, mas Candace raramente os chamava. Preferia estar com Ruth e Jere­mias e suas filhas, e só detestava, em todo o Mundo, a sua sogra. A seu pai dedicava uma afeição e admiração sinceras e as suas visitas eram sempre bem vindas, mas nunca o chamava. Não chamava ninguém, pois bastava-se a si própria. O casamento com William não fora nenhum romance, mas também ela não queria romance. E vivera sem isso.

Não estava preparada para a chegada antecipada de William. Às cinco horas, tencionava deixar o ensolarado pátio que circun­dava a piscina, iria para o quarto secar os cabelos e poria um vestido leve por cima da combinação. Nunca usava de bom grado cinta ou colete, ou qualquer das peças que as mulheres usam para se adelgaçar. Não sabia como se arranjaria se fosse gorda, uma vez que não era realmente gorda. Herdara do velho Roger a elegância, de modo que até a sua falta de cuidado apenas conse­guira que ela ficasse graciosamente roliça.

Às cinco horas, William entrou no vasto vestíbulo da sua casa e perguntou ao criado que lhe tomara o chapéu e a bengala onde poderia encontrar Mrs. Lane.

-A senhora está no pátio, senhor - respondeu o criado.

William avançou pelo vestíbulo que dividia a grande casa e parou entre as portas abertas. Candace vinha saindo da piscina. A sua pele loira, que o Sol tornara de um ouro pálido, era bastante bonita em constraste com o verde do fato de banho que ela vestia. Era um agradável espectáculo para qualquer marido, e William sentiu-se vagamente irritado por que uma mulher com o aspecto de Candace não lhe proporcionasse a companhia de que necessitava. Por exemplo: que poderiam eles fazer juntos, agora? Ela jogava ténis distraidamente, e não podia manter o espírito atento durante uma partida de bridge. Ela gostava de andar a cavalo e montava bem, mas não existia companhia para tal passatempo. Ele preferia cavalgar sozinho, pela manhã, antes do pequeno almoço.

-Como, Wil iam! - exclamou Candace. -Aconteceu alguma coisa?

-Claro que não - replicou ele. -Porque pensas assim? -Vieste tão cedo para casa...

-Fazia muito calor na cidade.

-Vem para a piscina.

-Não, obrigado.

William não gostava de nadar, nem na piscina, nem na praia. Nadava bem, pois assim aprendera na escola inglesa. O seu ódio à água vinha do dia em que um enérgico mestre de natação inglês o arremassara às águas chinesas para o obrigar a nadar por si próprio.

-Então vou vestir-me - disse Candace, e começou a escorrer a água do cabelo.

-Não te incomodes - disse William. -Vou mudar de roupa. -Voltarás aqui?

-Se quiseres...

-Claro que quero.

Ela mergulhou de novo e ele dirigiu-se lentamente para os seus aposentos. O criado adivinhara a sua necessidade e estendera sobre o leito um fresco trajo de tussor, que retirara de onde se achava guardado, para aquele calor fora da estação. William tomou um banho de chuveiro e barbeou-se, pois o calor sempre lhe fazia crescer mais depressa a sua barba negra. Depois vestiu-se e desceu, procurando inquietamente pensar nalguma coisa que lhe pudesse dar prazer. Candace estava ainda na piscina, mas um criado trouxera longos copos de qualquer bebida e pusera-os sobre uma mesa, debaixo de um guarda-sol.

Ele suspirou e reclinou-se numa confortável cadeira. Candace viu-o, nadou lentamente até a borda e saiu da piscina. Espremeu de novo a água do cabelo, enrolou-o em volta da cabeça e cobriu-se com uma grande toalha de banho inglesa. William não achava as toalhas de banho americanas suficientemente grandes para o seu gosto, nem gostava de toalhas coloridas. A undécima Miss Smith encomendara certa vez, de Londres, seis dúzias de enormes toa­lhas de banho inglesas e mandara-as à Irlanda, para que lhes fizessem os monogramas. Candace tinha toalhas diferentes daquelas, verdes e cor de morango, que guardava no seu próprio quarto de banho. Em público, contudo-isto é, diante de William-abri­gava-se numa das toalhas inglesas.

-Vou vestir alguma coisa e já volto - disse-lhe ela. William parecia imprevistamente belo naquele momento e ela inclinou-se impulsivamente para o beijar. O cabelo negro de William come­çava a rarear levemente no alto da cabeça, um lugar que ela quase nunca via.

-William, estás a ficar calvo!

Era uma trivial observação doméstica, mas inadequada, notou ela, no próprio instante em que a dizia. William não deu resposta; cerrou o sobrecenho e apertou a boca.

-Não quer dizer que apareça - apressou-se ela em acrescentar.

-Deve aparecer, senão não terias visto - replicou William.

-Ora, vamos! - exclamou Candace, rindo, e retirou-se.

Essa descuidada observação tombou sobre ele como uma frecha. Fè-lo lembrar-se de que estava na meia-idade. Se quisesse aproveitar alguma coisa da vida, tinha de ser agora. A decisão acumulava-se nele. Ainda bem que reconhecia o processo. Um gotejar, uma leve corrente e logo um monstruoso rio que ia dar numa súbita e irrevogável decisão.

Divorciar-se-ia de Candace, se necessário fosse, para conse­guir uma companhia antes de morrer. Encontraria em alguma parte do Mundo a mulher de que precisava.

Estirado ao suave calor do Sol que declinava, sentiu relaxar-se­-lhe de súbito a sua profunda e habitual tensão. Tinha tomado uma resolução que, embora brutal, era justa e, portanto, irrevogável. Todas as suas grandes decisões tinham vindo repentinamente depois de longos períodos de indecisa inquietação. Quando des­cobria o que devia fazer, era como se saísse de um túnel para a luz. Fechou os olhos e sorveu a sua bebida gelada. Não era uma simples criatura física como acreditava que fosse a maioria dos americanos. Não se interessava por sujas conversas de colegiais, e aborreciam-no as piadas sobre o sexo. Alguma coisa que trazia do berço e da infância, a profunda madureza dos chineses, talvez, ou a intole­rável sabedoria da Inglaterra, tinham-no envelhecido desde a moci­dade.

Quando pensou na Inglaterra, sentiu uma estranha nostalgia. Não queria voltar para a China, mas a Inglaterra devia dar-lhe o repouso de que necessitava. Sòmente na Inglaterra, ainda que por umas poucas semanas, sem nada planeado, mas disposto a tudo que lhe pudesse ocorrer, poderia ele curar-se, ou ser curado, da sua inquietação espiritual. A paz que ultrapassava o entendi­mento, de que tantas vezes lhe falava o pai, ainda a podia conseguir.

Mas precisava de estar só. Sentia agora que o simples facto de estar só haveria de lhe trazer alguma paz. Pensou no seu escritório e no calmo apartamento contíguo, e sentiu-se ansioso por estar lá, onde não precisava de falar com Candace, nem vê-la. Ergueu-se e entrou na casa, onde encontrou Candace, que vinha descendo a escada, num vaporoso vestido de «chiffon» verde.

-Tenho de voltar para a cidade - disse ele bruscamente.

-Oh!... Sinto muito...

Ela falava com sinceridade, mas sem petulância. Depois de todos aqueles anos, estava acostumada às súbitas decisões de William. Esperaria que ele se fosse embora e depois telefonaria para Jeremias. Se Jeremias e Ruth estivessem em casa, iria até lá jantar com eles. A mãe de William lá estava, mas, naquela tarde celestial, ela poderia suportar tal coisa. A casa de Jeremias ficava junto ao estreito, com os seus relvados em declive para o Sound, e, à noite, a Lua deveria estar belíssima sobre as águas.

-Vais voltar tarde, William?

-Não sei. Não precisas de esperar por mim, naturalmente. -Se eu não estiver aqui, estarei em casa de Jeremias. Tam­bém não precisas de esperar por mim.

Ela pôs as mãos nos ombros de William e aconchegou-se a ele. Ele não correspondeu à pressão. Bem, seu pai tinha dito que bas­tava amar! Ela assim fazia.

 

William não poderia explicar a ninguém o seu impulso para a Inglaterra naquela hora da sua vida. Várias vezes estivera na Inglaterra nos últimos anos, mas apenas por pouco tempo e em negócios. Agora desejava um período indefinido, que poderia ser curto ou longo. Achava que isso dependia de como se sentisse. Sabia que realmente ia numa busca, uma busca romântica, absurda se propalada, e que portanto não poderia ser divulgada. A sua vida real sempre tinha sido secreta. Agora sentia a necessidade de se confiar. Vaga necessidade, vago anseio, o desejo que se tem, na meia-idade, de viver antes de morrer, a sede de aprender como gozar a vida antes de perder a capacidade para isso, tais eram as suas razões particulares, que não podiam ser comparti­lhadas.

Ficou em Londres alguns dias, ostensivamente para algumas conferências de negócios. Brincou com a ideia de fundar um escri­tório unicamente inglês para a publicação de um jornal pura­mente inglês e, nesse propósito, encontrou-se num fim de semana com Lord Northcliffe e reconheceu francamente a sua dívida para com o mestre jornalista.

-Vi um dos seus jornais na sala de leitura em Harvard, milorde, e nesse mesmo dia comecei a orientar a minha vida em torno de um jornal como aquele.

-Ah! Sim? - disse o atarracado lorde sem surpresa. -Nós dois temos algo de comum, não lhe parece? O triunfo nas classes médias, hem? Seu pai tinha alguma coisa de esquisito, pelo que me lembro... o meu também...

William preferiu não responder. Lembrava-se de que aquele baronete colocara uma vez na cabeça um chapéu usado e dissera, sem vaidade: «Assenta-me bem, palavra!» Desde então gastara parte da sua rápida riqueza em fantasias como explorações polares, deslumbrara os seus bulhentos patrícios com trepidantes automó­veis, estabelecera prémios para modelos de aeroplanos e experiencias de voo, e agora conclamava os seus compatriotas a prepararem-se contra os perigos de uma renascente Alemanha.

Havia algo naquele lorde plebeu que desagradava a William. Separaram-se sem ter ficado amigos, o inglês sentindo com espanto que William era o que ele nunca tinha visto antes, um americano snob e William sentindo que a Inglaterra era melhor do que aquele inglês pensava e que ele era um tanto grosseiro. Se houvesse encontrado Alfred Harmsworth na escola, teria lutado com ele e fàcilmente o bateria. Mais tarde, naquela semana, assistiu às homenagens de um idoso Herbert Wells, recusando-se, contudo, a participar dos absurdos jogos apresentados em sua intenção. Permaneceu indiferente até diante das fulgurantes imagens e a incessante irradiação das fixas embora fluídas opiniões do seu hospedeiro.

Depois de ter passado três ou quatro semanas como um tranquilo hóspede, discretamente americano em casas de campo inglesas, William encontrou-se com um jovem por quem se sentiu extraordinàriamente atraído. Não podia descortinar o que cons­tituía a singular força dessa atracção, até que descobriu no jovem uma alegre semelhança com o herói da sua juventude na escola de Chefoo, o filho do embaixador britânico. O jovem chamava-se Michael Culver-Hulme, nome bastante antigo na História da Inglaterra e com muitas ramificações. Na tranquilidade de uma tarde de domingo, antes do chá em Blakesbury House, a que William fora convidado por Lord Saynes, o qual ouvira falar na sua riqueza e poder, foi quando encontrou Michael.

Culver-Hulme, primo remoto de Saynes, solicitara franca­mente uma oportunidade de se encontrar com o americano de quem todos tinham ouvido falar e quase ninguém tinha visto. Lord Saynes rira:

-Porque queres encontrar-te com esse americano?

-Deu-me a fantasia de o conhecer, nada mais - replicou Michael. -Meu tio, o irmão de minha mãe, foi seu colega na escola. Contou-me umas histórias estapafúrdias. Sente-se agora muito orgulhoso de ter sido seu colega, embora naquela época todos fizessem troça de Lane. Parece que costumava vaguear sozinho pelos pátios da escola, como um silencioso e altivo Hamlet.

Naquela tarde de domingo, sob um suave Céu de Novembro, o inglês viu William recostado, solitário, a uma muralha de pedra, fitando a planície. Dirigiu-se-lhe com aquela cordialidade natural e confiada, privilégio da segurança e da juventude.

-Não se importa de que me meta à cara?

-Absolutamente - respondeu William. - A nossa Guerra Mundial parece ter influenciado pelo menos a linguagem inglesa.

-Não tanto como os seus maravilhosos jornais. Não sabe como eles são admirados? Ouvi dizer que até Northéliffe...

William sentiu no coração o suave calor da lisonja juvenil. Muitas vezes o lisonjeavam, mas aquela lisonja britânica era-lhe particularmente grata, e por isso não a repeliu com o seu habitual

cinismo.

-Por acaso, teve o senhor algum parente numa escola inglesa da China? Não acredito em coincidências. Mas o senhor parece-se com um antigo colega meu.

-Não se trata de coincidência. Muitos dos meus parentes estiveram na China ou na índia. É uma tradição de família. Penso que o senhor se refere a meu tio. Algumas vezes ele referiu-se ao senhor, e com muito orgulho.

As antigas feridas do coração de William começaram a cica­trizar, mas manteve a sua dignidade e limitou-se a sorrir levemente.

-Lembro-me dele como de um jovem autocrata, incapaz de notar um simples americano.

-Ele agora pensa melhor.

Michael esperou e, como o interlocutor nada dissesse, recomeçou com imperturbável loquacidade: -Desejaria que fosse passar uma semana connosco, Mr. Lane. Meus pais teriam grande prazer e eu ficaria muito honrado.

-Ando em férias - replicou William. -Isso talvez desculpe a minha pronta aceitação de um bondoso convite. Gostaria de telefonar a seu pai. Se o senhor estiver lá, ainda melhor.

-Em que semana?

-Na semana depois da próxima.

-Esplêndido! Estará na Inglaterra durante o Natal? -Não, devo estar em casa antes. Os meus filhos chegarão do colégio, nessa data.

-Esplêndido! Onde está hospedado?

-No Savoy.

-Muito bem! Receberá um aviso nosso. Castelo de Hulme, próximo de Kerrington Downs.

- Muito obrigado.

As suas palavras eram tão lacónicas que pareciam evasivas, mas Michael não lhes prestou atenção. Adivinhava no americano uma desconfiança tão mesclada de orgulho que se tornava arro­gância, um sentimento de superioridade acrescido pelo receio de uma incompreensível inferioridade. Aquele americano tinha todos os dons deste Mundo, um belo físico, um espírito agudo, uma ri­queza que se tornara assunto de conversa e discussão dos dois lados do oceano, e de tudo isso irradiava um poder que Michael sabia que era encarado com seriedade até no Foreign Office.

Uma imensa curiosidade se acendeu em seu vivo espírito e imaginou-se a falar sobre William com a sua irmã, Emory: «Ele não é inteiramente americano. Com algumas mudanças, poderia dar um inglês, se quisesse. E o engraçado é que ele quer e não quer...»

Para afastar tais palavras do espírito, começou a contar a William as recentes caçadas que fizera com seu tio na Escócia. Uma sineta tocou subitamente dentro da casa, interrompendo os esforços de Michael para se mostrar amável.

-Receio que seja o chá - disse ele jovialmente, grato por se sentir aliviado da conversação e pensando, com modéstia, que o mesmo acontecia a William.

O Castelo de Hulme, descobriu William, era uma das relí­quias dos tempos de Guilherme o Conquistador e, como ficava perto da floresta de Hulme, servira muita vez de pousada de caça para os reis. No século xv ficara ao desamparo, servindo por último de abrigo a uma amante do rei. No século xvi fora doado a um conde recentemente investido do seu título, que reconstruiu o castelo mas não a fortaleza e descobriu entre as antigas ruínas uma arca deixada pelo rei Eduardo III. No século xvii, o Rei James visitava o castelo durante as caçadas, e no século xviii o conde desse tempo terminou a reconstrução de todo o castelo, remodelando inteira­mente a cozinha e acrescentando uma bela galeria de quadros. Desde então, nada mais fora construído. Os actuais ocupantes eram o conde, sua esposa, seu filho Michael e sua filha Emory. No ter­ceiro domingo de cada mês o castelo era aberto ao público, com excepção dos aposentos ocupados pela família.

Tudo isso William descobriu num pequeno volume que encontrou no Museu Britânico. Achara tempo para investigar tudo quanto pudera sobre o Castelo de Hulme. Era um domínio pequeno, mas antigo.

Da estrada real, acomodado no automóvel que comprara para a sua estada na Inglaterra, William avistou o Castelo de Hulme no alto de uma aprazível colina. Duas torres de arquitectura normanda guardavam a entrada, por onde, num suave e cinzento dia bri­tânico, ele chegou ao seu destino. O motorista bateu uma grande aldrava e a porta foi aberta por um homem que vestia uma espécie de modesta libré.

-O Castelo de Hulme? -inquiriu o motorista, embora soubesse muito bem que era.

-O Castelo de Hulme - replicou o criado.

William desceu, com a devida dignidade, e subiu os baixos degraus de pedra.

O homem pegou nas suas malas. -Mr. Lane? -Sim.

-Tenha a bondade de entrar, senhor. Nós estávamos à sua espera. Levá-lo-ei ao seu quarto. Por aqui, faça favor.

Havia uma grande mesa ao meio do vestíbulo, por detrás da qual dois lanços de escada subiam para a direita e para a esquerda. Lá em cima, William seguiu por um longo corredor até um grande quarto, de decoração inteiramente moderna. Havia fogo numa pequena lareira, em cima da qual o único ornamento era um vaso de prata com rosas.

-O chá vai ser servido na Sala dos Painéis, no fim da escada, à esquerda - disse o homem e desapareceu.

Williamm dirigiu-se até à vasta janela com caixilhos de chumbo e olhou por sobre os cimos dos carvalhos ainda verdes. A colina declinava abruptamente por detrás daquela parede ocidental

O Sol baixava, vermelho, entre as nuvens cinzentas. O castelo estava cheio de silêncio e paz, e ele não via nenhum ser humano. Dominou-o uma sensação de descanso e afastamento, e suspirou.

Sentiu a mesma tranquilidade quando desceu dali a alguns momentos, depois de ter lavado o rosto e as mãos. A porta da Sala dos Painéis estava aberta e viu que alguém tocava piano. Não conhecia nada de música, e isso não lhe fizera falta, mas era bas­tante inteligente para saber que a pessoa que estava agora a tocar era um músico. Atravessou o «hall», transpôs a porta e viu alguma coisa que podia ter imaginado. Uma longa e bela sala, apaine­lada de carvalho, estendia-se à sua frente. Ao fundo havia uma grande lareira e, por cima dela, a cota de armas dos Hulme. E na frente do fogo, uma mesa de chá, e um velho, o próprio conde sem dúvida, assentado numa poltrona de desbotado couro vermelho. Ao lado da lareira estava Lady Hulme, inconfundível, alta, magra, com um velho vestido de lã. Estava tricotando qualquer coisa. Michael, recostado ao rebordo da lareira, com as mãos nos bolsos, olhava para o fogo, e, ao piano, estava sentada uma dama de longo vestido vermelho.

Ergueu a cabeça e sorriu, num gesto de convite, enquanto continuava a tocar com suavidade e segurança. O conde viu-o, e depois Michael, e, com o mesmo sorriso e gesto, esperaram, Michael a meio caminho, o conde de pé. Lady Hulme ergueu os grandes olhos azuis, baixou-os de novo e continuou a tricotar.

No piano soou profundamente o último acorde. Michael inclinou-se e apertou a mão de William.

-Muita bondade da sua parte, por ter vindo! Apresento-lhe meu pai... e minha mãe.

William apertou a seca e velha mão do conde e recebeu um aceno de cabeça de Lady Hulme.

-Muita bondade... - murmurou o conde. -É muita a distância de Londres até aqui. Vivemos muito sossegados.

-Eu gosto de sossego - replicou William. Voltou-se, demorando-se ainda e ainda receoso.

-É a minha irmã Emory-apresentou Michael simplesmente. William apertou na sua uma longa e fria mão. -Temo haver

interrompido a música.

-Estávamos apenas à sua espera - disse Michael.

-Emory, serve o chá - ordenou Lady Hulme. -Perdi um ponto.

Ela mexeu-se para obedecer e por um instante William fitou­-lhe os olhos escuros e luminosos, numa pálida e linda face. Viu a boca, os lábios delicados tremerem num sorriso quase involuntário, ou assim o imaginou. Era alta e tão esguia que poderia parecer doente, se não fora a sadia limpidez dos olhos.

-Sente-se-convidou na sua doce voz inglesa, e ela pró­pria se sentou à mesa de chá. -Estou muito curiosa a seu res­peito. Nunca vi um americano.

-Receio que não seja um americano típico- - respondeu William, tentando desfitar os olhos das mãos dela, enquanto se moviam sobre a mesa. Eram umas belas mãos, e havia nelas algo de tão familiar que ele, inconscientemente, cerrou as sobrancelhas para se lembrar. Por fim, lembrou-se. Vira mãos assim há muito tempo, quando, garoto, na companhia de sua mãe, em Pequim, olhara para as mãos da Velha Imperatriz: eram as mesmas longas, as mesmas suaves mãos!

-Então, Emory! - exclamou Lady Hulme, com a sua forte voz, ainda tricotando ràpidamente. Parou, no entanto, para puxar vigorosamente a corda da sineta, enquanto William se sentava e o criado entrava com um prato de queques quentes numa ban­deja de prata.

-Simpkins-perguntou Michael-porque é que está a ser­vir hoje o chá?

-Matthews está constipado - respondeu Lady Hulme.­absurdo, realmente, mas creio que foi a nova criada que lhe pegou.

-Assim foi, minha senhora - proferiu Simpkins delicada­mente.

Lady Hulme voltou-se para William. -Ouvi dizer que o se­nhor tem panelas cheias de dinheiro. Aqui está o seu chá.

-Não se importe com o que diz minha mãe. Ela gosta de pensar que não tem cerimónias. Porque diz uma coisa dessas, mãe?

-Porque não? - replicou Lady Hulme. A sua face perma­necia inexpressiva, dissesse ela o que dissesse, os grandes olhos brilhando como lâmpadas claras na sua face avermelhada pelo Sol e o vento. -Não creio que possa haver nada mais lindo do que ter panelas de dinheiro. Não é preciso ninguém envergonhar-se disso. Bem queria que teu pai também as tivesse.

William tomou o seu chá, servindo-se de pão e manteiga e de um queque. Um lindo bolo esperava sobre uma pequena mesa de três pés, mas ele sabia, desde os tempos da escola, que não lho serviriam até que tivesse comido o seu pão com manteiga e o seu queque. Os doces eram para depois.

Ninguém notava o seu silêncio. Lord Hulme comia com apetite e tomava chá numa grande xícara de café.

-Espero que o senhor não tenha enjoado durante a viagem - disse Lady Hulme.

-Não, não enjoei, obrigado - replicou William.

-É horrível quando se enjoa - observou Lady Hulme.

-Naturalmente os americanos não são tão ruins como os ingleses.

Malcolm sempre pensou que eu enjoo de propósito. -E assim é, minha querida.

-Estão vendo?! - exclamou Lady Hulme. -Quando fomos passar a lua de mel na Sicília, há trinta e cinco anos atrás, e me senti mal no pequeno barco em que atravessávamos o canal, não tinha onde descansar a cabeça. Ele não ma deixava apoiar nos seus joelhos.

-Ora, vamos! - retorquiu o conde. -Se bem me lembro, nem podia passear: a tua cabeça estava sempre em cima dos meus joelhos.

Discutiam amigàvelmente, reavivando a velha questão, e Emory olhava-os divertidamente, olhando de vez em quando para William. Ela não os interrompia e, por fim, Lady Hulme can­sou-se.

-Mais chá para todos - anunciou ela.

O conde, animado pelo chá e pela discussão, voltou-se para William: -Vejo os seus jornais às vezes. Que espécie de gente os lê? Caixeirinhos, ou coisa assim, suponho...

Michael entrou na arena. -Todos os lêem, pai.

-Ah, sim? É quase tudo gravuras, não é verdade?

William resolveu ser franco com o velho inglês. -O nosso povo não lê muito. Precisamos de empregar gravuras para lhe transmitir o que queremos.

-Ah, então o senhor tem um fim em mira?

-E não o têm todos? - replicou William. -O poder potencial de vários milhões de pessoas é uma responsabilidade. É uma coisa que não se pode desprezar.

-Ah - exclamou o conde. Esvaziou a taça, limpou os bigodes, enrolou o guardanapo bordado e colocou-o na bandeja. Depois ergueu-se. -Não gostaria de dar um passeio? Michael e eu sempre andamos um pouco, antes do jantar.

O crepúsculo não estava longe e William preferiria ficar na grande sala de jantar com a linda jovem ali sentada tão tranquilamente, mas um impulso do passado fê-lo levantar-se. Não desejar ar livre era sinal de indolência, de fraqueza, coisas essas que os ingleses consideravam pecado.

-Essas botas são boas para a lama? -Michael olhava para as polidas botas oxfordianas de William.

-Excelentes- respondeu este.

Saíram campo fora, Michael respeitosamente à retaguarda. O conde acendeu um pequeno e velho cachimbo, recusando o auxílio de William. -Não, obrigado. Tenho fósforos apropriados. Mando-os fazer de encomenda. Têm uma composição química que os impede de se apagar com o vento.

Depois, um longo silêncio. William conhecia o silêncio inglês e decidiu não o quebrar. Aqueles ingleses ficariam sabendo que ele podia suportar as mais severas provas! O conde afastou-se da estrada e, junto a um portão que havia num cercado branco, parou para acender de novo o cachimbo.

-Eu nunca estive na América. Michael sempre desejou lá ir. Mas como é o único filho, proibi-lho... por enquanto.

Michael riu. -Tenho de casar e de o presentear com um herdeiro antes de me permitir ir a qualquer parte.

-É o que também pensam os chineses - disse William. -No entanto, espero que nos visitem algum dia.

-Onde mora o senhor? -inquiriu o conde.

-Tenho uma casa em Nova York e outra no campo. -A voz de William era tão indiferente e tranquila como a de qualquer inglês.

-Os americanos sabem viver!

-Não melhor do que os ingleses!

-Ah! Mas levámos séculos para isso.

-Nós tivemos um pedaço maior de terra para começar.

O conde bateu a cinza do cachimbo e abriu o portão. Um faisão fugiu da relva e ele ficou a observar o seu precipitado voo. -Fomos uns tolos em ir atrás da índia em vez de conservar a América! -Estava a encher novamente o cachimbo. -Pense no que seria o Império se realmente houvéssemos combatido os vossos rebeldes em 1776, em vez de cair no enguiço daquele esturricado continente. A vantagem teria sido tão vossa como nossa. Seríamos hoje invencíveis contra a Alemanha ou a Rússia, se fôssemos um unico país.

-Nós, por outro lado, poderíamos ter sido apenas um segundo Canadá - disse William. -Talvez precisássemos da independência para progredir.

-Qual nada! - replicou o conde. -É o material que conta. O povo da índia não tem vigor. Vive sempre a consumir-se numa espécie de febre espiritual. Isso vem da insalubridade do clima.

-Não posso imaginar os americanos como parte de um Império.

-Agora não, naturalmente - anuiu o conde. Lançou um rápido e malicioso olhar a William. -Com certeza porque estão a sonhar com o seu próprio império.

-Duvido de que desejemos um império - replicou William.

Contudo, ficou a brincar com a ideia, enquanto atravessavam o prado. Os impérios tinham o seu dia, e o antigo Império Britânico agonizava com tanta certeza como o Sol estava a declinar por detrás da colina do outro lado do arroio. Via-lhe o brilho sobre as águas.

-Não pescam no arroio? -perguntou a Michael.

-Não muito. Uma truta de vez em quando.

-Os garotos da aldeia apanham tudo - explicou o conde, um tanto encolerizado. -Aqui nada se faz contra a pesca clan­destina.

Chegaram ao arroio depois de novo silêncio e ficaram a olhar para a corrente. Havia carpas em quantidade agitando-se à superfície, em busca da última oportunidade de alimento. O conde alvoroçou-as com o seu bastão. -Em todo o caso sempre há carpas.

Disse isso com uma voz enfática, mas William não viu nenhuma significação nas suas palavras e nada respondeu.

-Milhões de carpas - disse Michael.

O conde estava a olhar para o outro lado do arroio e depois ponderou: - Creio que é melhor voltarmos. A tarde está arre­fecendo.

Subiram de novo a colina, desta vez num silêncio que ninguém quebrou. Quando penetraram no grande hall quadrado do cas­telo, Simpkins veio ao seu encontro e pegou-lhes nos chapéus e nas bengalas. O conde bocejou.

-Encontrar-nos-emos ao jantar, daqui a uma hora. -Afas­tou-se, com o seu pesado passo, e William ficou parado, hesitante.

Michael, tão bem disposto e amigável, parecia igualmente hesitante. -Espero que desculpe os meus pais, senhor. Nunca me lembro como são, até estar de novo em casa. Quer ir para junto da lareira ou subir ao seu quarto?

-Oh! Hei-de gostar de todos - disse William, com desacos­tumada amabilidade. Olhou para dentro da grande sala e viu que estava deserta. Lady Emory tinha-se retirado. -Creio que irei para o quarto até à hora do jantar.

Depois daquele dia, William não mais procurou iludir-se. Pela primeira vez na vida, ficara loucamente apaixonado.

Os seus olhos, calmos mas agudos, haviam fitado todas as mulheres que encontrara. Os olhos delas, por sua vez, tinham-no fitado com cortesia e indiferença. As novas olhavam-no como se fosse um velho e, das que não eram novas, ele próprio afastava os olhos. As mulheres inglesas não envelheciam com graça nem beleza. Achava-as gárrulas ou cáusticas, e da agudeza ele fugia por instinto. Queria inteligência, mas não ironia, que não sabia dominar e, portanto, desprezava. Se desaprovava alguma coisa, dizia-o francamente e de uma vez por todas. A ironia, dizia ele, era a exibição de um eu brilhante mas fraco, recurso de um cobarde e o refúgio natural dos que tinham apenas a língua como arma.

Tudo o que sempre sonhara a respeito da Inglaterra, tudo aquilo que não confessava nem a si próprio, centralizava-se agora numa mulher que não queria saber se compreendia, pois sabia que ela o compreendia. Com ela, era capaz de falar pelo menos, e dizer-lhe tudo quanto nunca dissera a ninguém. Ela escutava, com o olhar pensativo e bondoso. O seu génio era feito de bondade. E irradiava não só sobre ele, como sobre qualquer pessoa que estivesse na sua proximidade. Ao calor dessa bondade, viviam seu pai e seu irmão, descobriu William durante os dias que se seguiram. Hóspedes vinham e iam e hauriam dessa bondade o que necessitavam. Ela estava continuamente ocupada, mas ainda tinha tempo para ele, prestando-lhe toda a sua atenção nas horas em que se achavam juntos.

Ele supunha que Emory não era nova, isto é, que já não era uma criança. Tinha talvez uns trinta anos. William não podia compreender porque ainda não havia casado, e isso mesmo lho disse um dia, receando que as suas palavras fossem muito cruas. Ela hesitou e depois respondeu, quase sem alterar a sua fisionomia ou a sua doce e profunda voz

-Sofri o mesmo destino de muitas mulheres inglesas. O meu noivo morreu na guerra. Era Cecil Randford, filho do conde de Randford. Nós criámo-nos juntos.

William ouviu o nome com um ciúme que tentou ocultar.

-Queira perdoar-me - murmurou.

-Sim... - respondeu ela simplesmente.

No terceiro dia, William desejou ter a ousadia de lhe pedir que o chamasse pelo seu nome de baptismo. «Lady Emory» tinha uma espécie de intimidade que «Mr. Lane» não tinha. Ah, se ele fosse Sir William! Mas não era. Atormentava-se com o seu assédio. Havia tão pouco tempo... Desejara chegar ao fim de uma vez, conquistá-la logo, levá-la consigo e começarem a vida juntos. Quando voltasse para o Natal, queria livrar-se logo da odiosa obrigação de falar com Candace e seus filhos, e consultaria os seus advogados sobre o modo mais rápido e discreto de se divorciar e preparar o novo casamento. Enraivecia-se ao pensar no prazer que a gente comum sentia com tais assuntos, que deviam ser tão privados como os pensamentos de cada um.

Entretanto, era impossível conversar com o conde ou com Lady Hulme. William não existia para eles, embora soubessem que ele era importante à sua maneira porque era rico. Nem estava à vontade com eles, embora aquela semana parecesse passar ràpidamente. Daquele castelo, daquela família inglesa, William aproximava-se-lhes com uma timidez que ele próprio não reconheceria, apesar de haver desde muito alcançado no seu país tamanha importância que um telefonema da sua secretária bastava para abrir a porta até da Casa Branca - não a grande porta da frente, em que se aglomeravam turistas e patriotas americanos, mas a porta lateral que está sempre fechada à chave. William relem­brava a si mesmo que o conde de Hulme não era o rei da Ingla­terra, mas apenas um de entre os muitos Pares que havia.

A primeira vista do castelo, pela manhã, fora agradável. Seria preciso muito dinheiro para modernizá-lo. Para cinquenta quartos havia apenas cinco casas de banho, desactualizadas, de encanamento muito antigo, e a água para a enorme banheira éra aquecida por fogões de gás que ameaçavam asfixiar os banhis­tas, se não fossem cuidadosamente controlados. William ficou surpreendido ao ver que um criado permanecia no quarto de banho, com as costas voltadas, quando tomou banho na primeira noite, pois nos últimos meses o fogão parecia que ia explodir, caso fosse sobrecarregado, e os americanos, como todos sabiam, insis­tiam em encher as banheiras.

-Era muito mais fácil nos velhos dias, quando a água era trazida em tinas - disse o criado, sem olhar.

-Porque não arranjam uns encanadores americanos?­perguntou William, imerso em espuma. A água estava agra­dàvelmente tépida.

-Jamais poderiam compreender o sistema, senhor - respondeu o homem. - avise-me quando tiver terminado. Fecharei o gás e sairei do seu caminho.

Assim fez minutos depois e William, enrolado numa toalha de banho, voltou ao quarto por um corredor de cerca de vinte metros de comprimento.

Ali, nos seus vastos aposentos, sentiu o silêncio dos séculos aprofundar-se em derredor de si. Pensou novamente em Pequim e nos templos, nos palácios, na Velha Imperatriz. Era a atmosfera que ele amava e teria dado a alma por haver ali nascido, pois era algo que não poderia ser imitado ou feito. Pertencer àquilo lhe daria paz. Mas envergonhava-se do seu desejo. Diante daqueles ingleses, devia mostrar-se da melhor forma, como um americano, rico, poderoso, capaz de sustentar o seu lugar, um republicano entre aristocratas. Olhou-se ao espelho de moldura dourada e escolheu uma gravata escura.

 

Lady Emory não desejava nem esperava amor. A sua con­tenção era absoluta e havia-lhe agora penetrado todas as fibras do ser. Fora educada aprendendo a dominar-se e acreditava que disso dependia a decência. Apenas com Cecil, em quem confiara cegamente, não sentira necessidade de se dominar, e assim o amara com carinho e sinceridade, se não com paixão. Entretanto, estava contente de não haver casado com ele, pois afinal ele have­ria de morrer, e, não o tendo desposado, estava satisfeita por não ter dormido com ele naquela última noite, antes de Cecil se incor­porar ao regimento. Haviam discutido a última noite francamente, como discutiam tudo, pois o seu vocabulário era o mesmo e idên­ticos os seus pensamentos e ideias. Não era uma questão de pecado ou decência ou moralidade pessoal, uma vez que efectivamente se amavam. Era a questão muito mais importante de um herdeiro. Improvável como era que pudesse haver qualquer desenlace depois de uma primeira e única união, era ainda possível que ela viesse a ter um filho, o herdeiro de Randford.

-Em todo o caso, não gostaria que ele nascesse, querida.

-Poderíamos casar - murmurou ela.

-Odeio esses casamentos apressados - insistira Cecil. -Quero casar-me contigo como deve ser, querida. Os condes de Randford sempre se casaram na pequena abadia, e os residentes não me perdoariam se eu também não o fizesse.

-Mas se... -Ela não se atrevera a terminar a frase.

-Nada de «ses» - dissera Cecil alegremente. Ele era um deus, um jovem deus loiro, a desafiar a morte.

Assim, haviam-se sacrificado por causa da criança, que nunca viria ao Mundo, embora eles o não pudessem saber então, e ela não se permitira lamentar a sua aquiescência. Cecil sentira a imposição do dever para com a sua raça, e, embora amasse Emory, e esta nunca tivesse duvidado do seu amor, ele induzira-a a aceitar esse dever. Ela compreendera isso, pois também fora educada dentro do sentimento do dever. Uma fidalga, por mais que se amasse a si própria, era absolutamente dedicada ao sagrado futuro. Ela não teria sido feliz, tão-pouco, se esquecesse tal coisa. O amor de ambos era purificado pela fé que tinham em si próprios, pela sua crença de que eram mais do que simples seres humanos.

Agora que Cecil estava morto, sentia-se aliviada desse dever. Nada havia de sagrado em que fosse apenas ela própria. Não conhecia nenhum outro herdeiro da Inglaterra com quem dese­jasse casar ou que quisesse casar com ela, e, se tal houvesse, era de duvidar que bastasse o alto senso da obrigação. Com Cecil, poderia sacrificar-se, mas sem ele, e portanto sem amor, nem mesmo o dever lhe bastava. Não havia razão alguma para que ela considerasse necessário dar à vida meramente um herdeiro para uma antiga casa. Ela estava inteiramente livre.

Tal liberdade levava à imensa inquietação que o seu domínio próprio ocultava atrás de um véu de polidez e bondade, qualida­des estas igualmente próprias de uma habitual boa educação. Apenas Michael adivinhava que por detrás daquele véu tão graciosamente usado ela tremia de desconforto.

- Precisas de dar um jeito à tua vida - dissera-lhe ele. - Estás nervosa.

-Não estou nervosa - replicara ela com brusquidão. -Não finjas. Precisas de casar. Cecil morreu há muito. -Não vejo ninguém com quem casar.

-Tratarei disso-prometeu ele com ar importante.

Ela simplesmente replicara, como costumava fazer quando ele era garoto: - Não sejas tolo.

Em todo o caso, regressara ele de Londres alguns meses mais tarde, com a estapafúrdia declaração de que havia encontrado um americano, com quem ela acharia divertido casar-se. Essa conversa, naturalmente, não se efectuou diante dos pais. Mesmo assim, ela irritara-se. «Não posso imaginar nenhum casamento divertido». Achavam-se no parque e ela estava ajoelhada junto à fonte italiana, colhendo as folhas mortas. Michael estava de pé, a olhá-la, sem lhe oferecer auxílio. Não gostava de sujar as mãos.

-Aquele americano não é propriamente divertido - disse ele. -É até assustador... muito alto e muito magro... uns olhos cinzentos esverdeados, umas sobrancelhas pretas, e assim por diante. Parece imensamente infeliz, como os americanos são, quando não pertencem ao género faceto. Ele está procurando, se não me engano...

-Procurando o quê? -Ela ergueu os olhos.

-É podre de rico-informou Michael. -Não pode ser isso.

Não o posso explicar, mas existe um poder nele...

-Que poder?

-Não sei... energia abafada por alguma coisa... impa­ciência contida... inimigo de todos!... Não é afável, não estende a mão quando vê a gente. Convidei-o para vir aqui.

Ela sentira-se atraída por William Lane no momento em que erguera os olhos do piano e o vira ali parado. Continuara a tocar para o que pudesse olhar sem falar. Ele não era novo, e a juven­tude aborrecia-a mais do que tudo agora. Pela primeira vez naque­les dez anos sentira-se consciente de ser mulher, não nova mas ainda bela e desejosa de ser assim considerada.

Logo adivinhara que William a achava bela não apenas por si própria mas pelo que representava. Ele avaliava-a pelo que ela havia herdado, mas que no entanto era uma parte de si mesma, e agradava-lhe que assim fosse. William não se poderia enamorar, pensava Emory, meramente pela beleza. Uma corista de quem um rei se agradaria, por certo lhe causaria repugnância.

Reflectindo acerca disso, indagando consigo própria por que motivo reis e pares, através de toda a História da Inglaterra, podiam tão alegremente haver dormido com criadas e ciganas que não poderiam ser rainhas, ela penetrou o segredo da alma de William. Ele desejava uma rainha para que pudesse ser rei. O seu reino construíra-o ele, um reino moderno, feito de poder e dinheiro, e sobre o qual reinava com suma habilidade. Mas o secreto desejo estava no fundo da sua alma, talvez desconhecido até para ele próprio. Se ela o aceitasse, estaria seguro. Sentiria a evidência do que não fora visto, tornar-se-ia em substância o que anelava ser.

Aos trinta anos, pensava ela, enquanto passavam os dias daquela semana, uma mulher aceita logo ou rejeita. Ele tinha mais dez anos do que ela e era, acima de tudo, um homem acos­tumado a decisões rápidas. Dentro de poucos dias, lhe daria a conhecer que já tomara a sua decisão. Quando deixou o Castelo de Hulme no fim da semana conseguiu despedir-se de Emory a sós, no que aliás foi auxiliado por ela.

-Posso voltar daqui a quinze dias? -perguntou ele. -Teremos prazer em tornar a vê-lo - replicou ela, proposi­tadamente convencional.

-Será uma longa quinzena para mim, Lady Emory.

Ela limitou-se a sorrir e, olhando para baixo, viu a mão dele segurando as suas. Uma estranha e pequena mão tinha ele, curiosamente felpuda!

«Vamos! - disse ela para si própria. -Não pensemos em tais coisas!»

E, para se disciplinar, deixara que ele lhe apertasse um pouco mais a sua mão.

Quando voltou após uma quinzena, William achou Lady Emory tão reservada enquanto o levava na segunda noite a uma parte do castelo que ele ainda não conhecia, que duvidou ter ela adivinhado os seus pensamentos. Ficara surpreso ao verificar que o seu coração começava a bater mais depressa do que nunca.

-Creio que ainda não viu a galeria... -Ela abriu uma porta apainelada e ele avistou uma galeria, aparentemente infin­dável, cheia de quadros. -Vamos direito ao fim. A vista de lá é o mais belo de todos os quadros.

Ele acompanhou-a no longo caminho até às grandes janelas "que se abriam do soalho ao tecto, no fim da galeria, e, quando Emory se sentou num sofá de cetim amarelo, William também se sentou, mas não perto dela.

Emory olhou-o, com os seus olhos escuros que esperavam mansamente, e William viu, com certo abalo, que estava acostu­mada a que os homens se enamorassem súbitamente dela, e que, por isso, já devia prever uma declaração de amor. Talvez por isso receou submetê-la tão depressa à prova de uma proposta de casamento.

-Sabe que me criei na China? -perguntou ele inopinada­mente. '

-Sim. Mas porque é que pensa nisso agora? -perguntou Lady Emory.

-Alguma coisa neste castelo, o silêncio daqui e a Lua bri­lhando como num palácio de Pequim.

-A Lua apareceu tarde esta noite.

-Interessa-se pelas idas e vindas da Lua? -Ele acompanhou essa trivialidade com uma tentativa de sorriso.

-Não, mas sou obrigada a notar isso pela janela do meu quarto.

Ele calou-se e, depois de um momento, ela pediu-lhe:­Conte-me alguma coisa da sua infância na China. Nunca estive noutra parte além da Europa.

-Não quero pensar na minha infância - disse ele com a estranha espécie de rispidez que ela começava a compreender que não significava irritação.

-Foi uma infância infeliz? - insistiu ela. -Não, apenas inútil.

-Inútil?

-Sim. Era filho de um missionário. Acha que poderia haver alguma vantagem para mim em ter pais missionários? Guardei esse segredo durante todo o tempo em que estive na Universidade. Era uma terrível desvantagem para mim, até mesmo quando frequentava o ginásio inglês na China. --Queria que ela conhecesse o pior a seu respeito e foi logo ao ponto. -Por ser filho de um missionário, os meus colegas pensavam que eu devia ser esquisito. Na verdade, meu pai era até notável. Mas só o descobri quando regressou aos Estados Unidos para morrer na minha casa.

-Fale-me acerca de seu pai. -A voz dela era persuasiva.

-Qualquer dia, Lady Emory. Não desejo falar dele agora.

-Esperarei - disse Lady Emory. Os seus olhos castanhos tornaram-se grandes e a sua doce voz assumiu um leve tom impe­rioso. -Creio que sei sobre o que deseja falar-me. Se assim é, lembre-se de que mal nos conhecemos.

-Pode não me conhecer, mas eu conheço-a - replicou Wil­liam. A paixão arrebatava-o com uma violência que a ele próprio se afigurava monstruosa. Não desejava esperar um só momento para tomar aquela bela inglesa nos seus braços. Queria-a agora, queria decidir tudo de uma vez.

Lady Emory parecia assustada. -Como é que me pode conhecer?

-Sempre conheci a Inglaterra - disse William. -Sempre amei a Inglaterra, contra a minha vontade, confesso-o, mas assim é. Agora encontrei-a e vejo que é a personificação de tudo o que tenho amado.

-Michael disse que o senhor era casado... -Isso nada tem a ver connosco.

-Não. -A voz dela era um sussurro, um suspiro e ele inter­pretou-a como uma aceitação. Avançou um passo, ela ergueu-se à sua aproximação e ele arrastou-a para os seus braços. Doce e temerosa era aquela exultação... aquele crescente orgulho... aquela arrogância amorosa! Ele estava sem fala, com o rasto no negro dos cabelos dela e não notava o seu silêncio nem a sua imobilidade.

Ela ficou escandalizada ao descobrir que era inteiramente falsa a convicção em que se abrigara desde a última vez em que estivera nos braços de Cecil. Absolutamente não lhe repugnava o corpo de um outro homem apertado contra o seu. Supunha que isso seria intolerável, eternamente repulsivo, e não o era. Era até agradável e confortante, como seria agradável e confortante viver no meio das riquezas e da abundância, não já como um fardo para os seus pais por não haver casado, não mais como uma caridade para Michael quando ele viesse a herdar o título. A Inglaterra estava velha e cansada, e de algum modo tinha morrido para ela com o seu morto amor. A América era jovem e forte, era um império nascente, e ir para lá agora, deixar a Inglaterra e levar consigo a sua tão viva feminilidade, era a mais próxima felicidade que ela podia conhecer. E via que aquele americano, ao contrário do que sempre ouvira dizer dos americanos, não era estúpido nem infantil.

-Não me pode amar... tão depressa como a amei... não espero... -balbuciava William essas frases entrecortadas.

Ela era uma mulher sincera e, o que sabia agora que faria, queria fazê-lo de todo o coração.

Afastou-se, mas apenas um pouco, deixando-o segurar-lhe as mãos. -Suponho que é muito cedo-proferiu ela francamente. -Mas creio que não é de todo impossível... William!

 

Julho em Ohio podia ser tão quente como na índia. Henrieta sentia calor. Passara o último mês com Clem no México, aonde ele fora conferenciar com o Ministro da Alimentação. que desejava trigo americano. Washington mostrara-se apático, e o ministro telefonara para Clem, que, depois de o ouvir atentamente, insistira em ir pessoalmente ao México, para saber ao certo a quantidade de trigo de que o povo necessitava. Clem não havia notado o calor. O seu sangue era lento e ele estava mais magro do que nunca. A comida mexicana era um veneno para ele: os tamales quentes como as comidas indianas e até mesmo os vegetais apimentados, os espinafres refervidos até chegarem à cor e ao gosto do capim seco. Mas comia aplicadamente os alimentos nativos dali, como de toda a parte, pois queria saber de que o povo vivia, e depois foi torturado pela dispepsia, que se ia agravando com a idade. Ele prometera conseguir o trigo de qualquer modo, e haviam regressado a casa.

A sua casa agora, enquanto abriam a porta da frente, estava quente e empoeirada e o ar era abafado.

-Vai mudar de roupa - disse Clem a Henrieta. -Veste uma bata e descansa. Eu vou abrir as janelas.

Henrieta obedeceu sem responder. Começava a ganhar peso e era um alívio tirar o colete. Subiu ao grande quarto de banho que Clem instalara conforme os que vira na índia. Parou de pé no tanque de zinco e encheu um balde com água da torneira, que foi derramando por cima do corpo com uma concha. A casa estava cheia de coisas que Clem havia admirado noutros países. Gostava dos pauzinhos com que os chineses comiam, por exemplo, mais do que de facas e garfos; eram mais limpos, dizia. A água estava morna, mas ainda assim mais fresca do que o seu corpo. Enxu­gou-se e depois vestiu o roupão, a que Clem sempre chamava bata. Era bom viver com um homem que nunca sabia o que ela vestia.

Desceu para desempacotar os mantimentos que comprara para o jantar. Clem tirou o casaco e sentou-se à mesa em mangas de camisa, fazendo cálculos numa folha de papel. As suas omo­platas eram agudas e a nuca côncava. Perdera peso com o calor do México. Henrieta não exteriorizou a sua preocupação. Nada o aborrecia mais do que a ouvir preocupar-se com a sua magreza.

Ela sentou-se numa grande cadeira de vime, rasgou o sobres­crito carimbado de Nova York e começou a ler para si mesma. O primeiro parágrafo revelava catástrofe. «Chego a alegrar-me por teu pai ter falecido - escrevia sua mãe. -Ele jamais poderia suportar o que vai acontecer à nossa família. Tenho chorado e rezado em vão. William é inabalável. Está além do meu alcance. Lembro-me de quando ele era um menino no meu colo. Sei que é meu filho, mas não o posso reconhecer. Que fizemos nós para merecer tal coisa?»

Até este ponto seguira Henrieta, sem fazer nenhum comen­tário a Clem. Depois viu a próxima sentença e deixou escapar um grito abafado.

-Que aconteceu? -perguntou Clem.

Afastou os olhos dos seus cálculos. Não era próprio de Henrieta gritar por qualquer ninharia. Os seus grandes olhos cor de cinza estavam agora esgazeados, fitos na folha que segurava. Eram da cor dos olhos de William; mas não tão profundos.

-William vai divorciar-se! -Ela sussurrou as palavras com o maior horror e ele recebeu-as com igual horror, enquanto olhavam um para o outro.

-Que fez Candace? -perguntou ele severamente.

Henrieta tornou a ler a carta. -Ela não pode ter feito nada - murmurou. Os seus olhos percôrreram a folha. -A mãe não diz... sim, diz. Diz que Candace é exactamente o que sempre foi... não há desculpa para William... ele nem sequer deu uma desculpa... bem sabes como ele é. Sempre faz o que quer fazer e nunca diz por quê. A mãe diz que não passa de uma paixão repentina. É uma inglesa que ele encontrou na viagem.

Henrieta teria chorado se tivesse lágrimas, mas já não as tinha. Contra William o seu coração endurecia-se e ela amar­rotou a carta e atirou-a ao cesto dos papéis. Nunca havia estimado Candace, mas agora quase a estimava. Desde muito perdera a fé profunda de seu pai, mas tinha uma espécie de religião, alimen­tada pelo desprendimento de Clem e a sua devoção à causa única que abraçara. Os Camerons eram boa gente, tão bons à sua maneira como o fora seu pai, e a antiga correcção subsistia. Um homem não se divorciava sem causa e os melhores homens não se divorcia­vam por nenhuma causa. William abandonara as fileiras dos bons.

-Não quero tornar a ver Williàm - declarou ela com arrebatamento. Clem ergueu-se da cadeira e ajoelhou-se a seu lado. Henrieta apoiou a cabeça nos magros ossos dos ombros de Clem, cujos magros braços a enlaçaram.

-Vamos... vamos... -animou-a.

-Oh! Clem... -suspirou ela. -Estimo que sejas bom. É na tua bondade que eu confio.

Ele ficou a reflectir, embalando-a. -Necessitamos talvez de uma espécie de religião - disse afinal. Fomos criados em Deus, bem sabes. Não o abandonámos, pròpriamente; apenas não sabe­mos como estar com Ele.

-Não necessitas de nada; és naturalmente bom.

-Posso estar errado, com isto de só pensar em alimentação. Não só de pão vive o homem...

Ela encostou o rosto ao dele. -Não sejas diferente, Clem! -E, após um momento: - Pobre Candace! Devo escrever-lhe uma carta.

Ergueu-se e foi sentar-se onde ele estivera sentado, e viu, no alto das páginas de papel amarelo que ele usava com os seus intermináveis cálculos, as seguintes palavras: «Produção média por acre (México)». Destacou uma folha amarela, muito cansada como estava para procurar papel melhor.

 

Querida Candace:

Acabamos de chegar do México. Encontrei aqui a carta da mãe. Não sei dizer uma palavra para te consolar. Sinto vergonha de que William seja meu irmão. nenhum de nós jamais o compreendeu. A mãe estima que o pai já tenha morrido, e eu também assim penso, a não ser que o pai pudesse ter evitado que William fosse tão mau.

Não há nada que eu possa fazer, creio eu. É demasiado tarde. Não rezo mais, como costumava, mas, se rezasse, cairia de joelhos. Talvez ainda possa.

Sinto-me mais perto de ti do que nunca. E há os dois rapazes... como devem desprezar seu pai! É uma grande maldade, e não merecias uma coisa dessas. ,Não posso imaginar que razão ele apresenta. És tão bonita e tão boa de génio! Espero que William sofra por isso.

Candace leu a carta no seu antigo quarto da casa paterna. Sorriu com certa tristeza, pensando que só agora conhecia Henrieta, quando o laço entre elas se tinha rompido. Lançou um olhar ao pequeno relógio de prata do toucador. Não era já a esposa de William. A sentença devia ser dada ao meio-dia e já haviam passado seis minutos. Estivera aguardando a hora atentamente e, por uns momentos em que o havia esquecido, tudo estava acabado. Deixou cair a carta no chão, recostou a cabeça no espaldar da cadeira e fechou os olhos.

Ela não protestara. Era orgulhosa. Jeremias saíra dos escri­tórios de William, para nunca mais voltar, dizia ele, mas depois de ter falado com Ruth, esta obrigara-o a desistir do seu intento. Ruth não encontrava defesa para William. Mas não o censurava, pois só com ela William se havia explicado, e ela também o ten­tara explicar a Jeremias e Candace. -Ele sempre foi diferente de nós todos - afirmou Ruth, na sua voz suave e firme. -Ele tem estado tão solitário durante toda a sua vida... Às vezes penso que, se o pai não tivesse morrido... o pai compreendia William.

-Se ele é solitário, a culpa é únicamente sua - replicou Jere­mias. -Coloca-se acima de todos nós.

-Sei que assim parece, Jeremias, mas a verdade é que no íntimo ele está perdido.

Jeremias fungou e Ruth sacudiu muito positivamente a cabeça. -Sim, William está perdido. Necessita de algo que não tem. Nenhum de nós lho pode dar.

Nesse ponto, Candace falou - Se Emory lho pode dar, então estarei contente.

-Oh! Candy, tu és tão generosa! - exclamou Ruth, com os olhos rasos de lágrimas.

Mas, no fundo do coração, ainda defendia William, e Candace viu-o e, como Jeremias amava a sua esposa, ele também concordou que William seguisse o seu caminho. Candace não tinha nenhuma companhia, a não ser seu pai. Mas ele agora evadia-se da vida, não pròpriamente dos laços de amor, mas do demasiado amor. Tão sensível ficara com a idade, tão exageradamente terno, tão desejoso de que as criaturas humanas fossem todas felizes que, quando não o eram, não podia suportar a sua companhia. Mas, como o amava, Candace escondia o seu coração do pai e fingia estar contente com o novo amor de William, e insistia em que ele, naturalmente, devia casar com Emory, e até ale­gava que ela e Emory ainda poderiam encontrar-se e ser boas amigas, enquanto no fundo do coração sabia que jamais seria assim.

Com os filhos, mostrou-se muito digna. Will e Jerry, embora já uns rapagões, importavam-se mais com futebol do que com qual­quer outra coisa neste Mundo. --Não devemos censurar o vosso pai - disse-lhes ela. -A verdade é que o nosso casamento nunca foi satisfatório. É como uma flor que não chegou a desabrochar. Mas, ainda assim, tenho vocês dois, e isso é uma grande coisa com que se possa ficar de um casamento. -E olhava tanto para uma e como para outra daquelas graves faces juvenis.

-Vai casar de novo? -inquiriu Will. Ela fitou-lhe os olhos cinzentos e meneou negativamente a cabeça, ainda risonha. Aquela seria a sua protecção, dali por diante, não se preocupar, não se importar. Pensou em folhas mortas boiando à superfície da piscina, em folhas desprendendo-se das árvores, em pétalas tombadas na relva. Seu pai tinha razão. Escapar da vida, talvez... mas também escapar do sofrimento!

Jerry, o mais novo, falou com súbita indignação : - Por­que não vai dizer àquela mulher que ela não tem o direito de...?

-Cala-te! - disse Will por ela. -Tu não compreendes. Não passas de um garoto.

Nenhum dos filhos dissera uma só palavra a respeito do pai. Ele era irrefragável, imutável; ninguém lhe podia tocar. O que fizesse, estava bem feito. Ele era absoluto.

 

William não tinha necessidade de nenhum deles, nem da sua mãe, nem de Ruth. Ninguém existia para ele, senão ele próprio, o seu monolítico ser, o seu único e devorante propósito, mais con­sumidor do que qualquer outro que jamais tivera. Mostrava-se implacável no seu escritório, furioso por qualquer demora, intole­ràvelmente exigente com os seus advogados.

Tentara compelir Candace a ir ao Reno, para que pudesse ficar livre em seis semanas. Ela negara-se, e o velho Roger Cameron havia solicitado um encontro. William recusara-se a tal. Deu ordens para que não atendessem nenhuma chamada telefónica. Vivia exclusivamente no seu apartamento nos escritórios e não comuni­cava com os filhos. Depois de ter casado com Emory é que com­preenderiam por si próprios porque a havia desposado.

Ao ver que Candace não ia a Reno, ele mesmo foi. Suportou semanas de solidão sem Emory, dias em que a chamava ao telefone para lhe poder ouvir a voz e certificar-se de que ela vivia, que não tinha mudado de intenção, que não pensava em adiar o casamento. Concedido o divórcio, partiu pelo próximo comboio e, embarcando para a Inglaterra no navio mais rápido, foi direito ao Castelo de Hulme.

Lá estava ela à sua espera, com o casamento marcado para dali a dois dias e, quando a teve nos seus braços, descansou afinal o seu coração. Mergulhou a face nos sedosos cabelos escuros.

-Oh! meu amor... -Eram palavras que ele jamais dissera a Candace.

-Pareces terrivelmente cansado, William. -Nunca mais ficarei cansado, Emory.

Ela não respondeu e por um momento ele deixou o seu cansaço esvair-se no silêncio.

-Faltam dois dias para estarmos casados. -Dois dias... -repetiu ela.

-Eu queria que fosse agora.

Casaram-se na sala em que se haviam encontrado pela pri­meira vez. Ela não quis casar na Abadia de Hulme, onde se realizaria a cerimónia se Cecil fosse vivo. Os pais concordaram, e assim se erguera um altar na sala de estar. Ninguém mais estava presente além da família de Emory, do vigário e de sua esposa e de algumas pessoas a quem William nunca vira antes. -Um casa­mento tranquilo e rápido - dissera-lhe William, e ela obedecera.

 

SOBRE um povo próspero e jovial as tempestuosas nuvens da Grande Depressão derramavam agora o seu flagelo. No último Verão, Clem sentira que alguma coisa estava mal. Ele não sabia definir, nem mesmo a Henrieta, a sua intran­quilidade, que começara primeiro como um desconten­tamento íntimo. Vilas tentara falar-lhe a esse respeito num domingo, o último de Agosto. Ela bem conhecia a sua eterna procura das causas e, com os seus silêncios atentos e as suas cuidadosas per­guntas, ajudava-o a distinguir mais claramente as vagas formas que ele vislumbrava no futuro.

Desde muito que Henrieta compreendia que em Clem havia algo do vidente, se não do profeta. Tão delicado era o seu instinto das coisas humanas, tão pronta a sua percepção dos homens que, sem magia e inteiramente pela razão, era capaz de prever o possí­vel em termos espantosamente precisos. Se tivesse vivido nos antigos tempos, pensava ela às vezes, se tivesse vivido naquelas remotas eras em que o povo explicava o inexplicável, o místico, dizendo que ele fora engendrado por um deus ou vira deuses nas montanhas ou nas chamas de uma sarça ardente, teriam procla­mado que Clem era um profeta enviado por Deus e tê-lo-iam escutado. E, se ficassem suficientemente alarmados, tê-lo-iam atendido a tempo de evitar o desastre.

Agora Clem e Henrieta, sentados em cadeiras de balanço na sua pequena varanda, pareciam ao transeunte não diferentes de qualquer outro casal de meia-idade numa rua de uma cidade comum de Ohio. Ele falava e ela ouvia e interrogava. Ele estava em mangas de camisa e com umas velhas calças cor de cinza, e ela viu que a gola da sua camisa estava rasgada. Resolveu atirá-la fora às escondidas, depois de ele a despir naquela noite. Clem era miserável com as suas roupas e achava-as próprias para usar muito depois de só servirem para panos de pó ou esfregões.

-Não te posso dizer em poucas palavras como sinto as coisas - disse Clem. -É como se a gente estivesse sentado na relva por um belo dia e notasse subitamente que a terra estava a tremer debaixo de nós... não muito, um bocado só... Ou como estar no mato e desconfiar que se está sentindo cheiro de fumo.

-Se estivesses no mato e sentisses cheiro de fumo - observou Henrieta - verificarias logo do lado que o vento soprasse.

Clem lançou-lhe um rápido olhar de aprovação. -Sim, pensei nisso. Não posso dizer de que lado o vento está soprando, pelo menos por enquanto. As colheitas foram muito boas este ano, considerando o país como um todo. Talvez as coisas estejam muito bem. Talvez seja apenas o meu estômago embrulhado. Não devia ter comido aqueles bolinhos de milho na noite passada.

-Não voltarei a fazer mais - prometeu Henrieta.

Clem continuou a embalar-se alguns segundos e depois observou: - O diabo é que, como as coisas estão agora no Mundo, todos nós ficaremos implicados de qualquer maneira. Um terre­moto em qualquer outra parte também nos pode derrubar.

Henrieta não respondeu. A tarde estava agradável, embora quente, e crianças em fato de banho brincavam com mangueiras, molhando-se umas às outras e rindo alto. Clem, preocupado com o

Mundo, não via nada.

-As notícias do exterior não são más, Clem - relembrou-lhe Henrieta. -Yusan diz que o novo governo da China está a esta­belecer a ordem, livrando-se dos senhores da guerra, afinal, expulsando os japoneses. Goshal diz que Gandhi conseguiu uma espécie de entendimento na índia.

Clem ergueu-se. Atravessou a varanda, tirou o canivete e começou a cortar alguns rebentos mortos de uma grande trepa­deira de glicínias que Henrieta plantara ao chegar a New Point. Agora, um forte e serpentino tronco subia para o telhado, pro­curando a chaminé para suporte.

-Goshal é sempre um brâmane. O que chamas entendi­mento é apenas uma trégua. Gandhi conseguiu entender-se com os ingleses apenas por uma razão, que Goshal não enxerga. O preço dos géneros baixou tanto que milhões de camponeses vão ficar na miséria se não se fizer imediatamente alguma coisa.

-O povo das cidades terá mais para comer se o alimento for barato - observou Henrieta.

-A maioria do povo não mora nas cidades - disse Clem. -Não é disso que se trata, e tu surpreendes-me. Se os camponeses e granjeiros ficarem na miséria, isso de nada servirá aos operários das fábricas. Gandhi está com a razão quando diz que tudo tem de ser feito no interesse dos camponeses. Eles são a base de tudo em qualquer parte do Mundo.

Henrieta sentiu que as águas começavam a clarificar-se no espírito de Clem. Ele estava podando um por um os rebentos que caíam com um leve ruído abafado no soalho da varanda.

Clem prosseguiu, quase para si próprio: - Não sei o que hei-de pensar a respeito da China. Um novo governo? Bem, qualquer governo, penso eu, é uma boa coisa depois de todos esses anos de lutas e desordens. Não censuro Yusan por estar satisfeito. Mas escrevi-lhe ontem dizendo que, se esse Chiang Kai-shek não baixasse à terra com todos os seus planos, para estudar as necessidades do povo, havia de ser a mesma história. Não é preciso ser uma velha imperatriz para cometer os mesmos erros.

Henrieta embalava-se silenciosamente, com os seus pensa­mentos a dar a volta ao Mundo.

-Não sei - murmurou Clem. -Como posso saber? Não acredito que o Japão vá deixar as coisas como estão. Há séculos que aquele povo está com medo! Estão alvoroçados com a maneira como os diferentes povos vieram cada um cortar o seu naco. «Nós seremos os próximos!», eis o que eles têm estado a pensar desde muito tempo. «Se nós não trincharmos um bom pedaço, seremos os próximos». Eis o que eles pensam. Quem sabe se não têm razão? Só uma coisa sei, é que a terra está a tremer debaixo dos meus pés. Não me agrada o que está acontecendo.

Ergueu a cabeça, olhando por cima dos telhados e além das árvores. -E por falar em fumo, creio que o vento está a soprar da Europa.

O ciclone rebentou em Outubro. Oriundo das tempestades universais, haurira a sua furiosa força circular na fome enraivecida dos povos da Europa e, atravessando o Atlântico, fora desaçai­mar-se em Wall Street, no coração de Nova York, na parte mais concentrada da América.

Clem, naquela primeira manhã fatal, fora à porta da frente apanhar o jornal do dia, com o rosto ainda ensaboado para a barba. Viu os títulos negros como anúncios de enterro e várias vezes maiores ele que o cabeçalho e compreendeu que havia chegado o que ele temia. Sobre os seus ombros, ela viu a terrível notícia:

A CRISE EM WALL STREET ABALA A NACÃO!

-Dize a Bump que venha cá o mais depressa que puder - ordenou Clem. -Oh, ele e eu temos de trabalhar bastante.

Ela obedeceu instantâneamente, como teria obedecido ao capitão de um navio sobrecarregado que estivesse a afundar-se. Não havia tempo a perder.

Clem vestiu-se, comeu um apressado e ligeiro almoço e, tendo sido imediatamente atacado pelo demónio da indigestão, tomara comprimidos de pepsina quando Bump chegou. Henrieta retirara da mesa os pratos e a toalha, sobre a qual Clem espalhara grandes folhas de papel branco de embrulho em que sempre fazia os seus cálculos em grande escala.

-Sente-se - disse ele a Bump. -Vamos ter a maior crise da história do Mundo. Temos de estar prontos para alimentar o povo como jamais o fizemos antes. Vou abrir restaurantes, Bump. Já não bastará vender barato. Temos de estar dispostos a dar comida, para que ninguém morra de fome na nossa própria terra.

Desenhou em rápidas e concisas frases o que ele acreditava que iria certamente acontecer e Bump escutava, cauteloso e relutante, mas sabendo, por experiência, quantas vezes Clem já tivera razão.

-É difícil alimentar a nação inteira, Clem - replicou ele afinal.

Clem logo se impacientou. -Não falo na nação. Refiro-me à gente que tem fome. Quero estabelecer restaurantes nas grandes cidades o mais ràpidamente que pudermos. Os nossos mercados suprirão os nossos próprios restaurantes. Quem puder pagar, pagará, naturalmente. De princípio, a maioria do povo pode pagar e quererá pagar. Mas já estou a pensar em janeiro e Fevereiro, talvez mesmo este Inverno, e no próximo Inverno, e talvez no outro. Aí é que as coisas estarão ruins a valer.

Era impossível conseguir que tamanho plano fosse posto em execução tão ràpidamente como Clem desejava. Mas foi executado ou começou a ser executado dentro de tempo quase miraculoso. Clem comprou um pequeno aeroplano que Henrieta, muito contra o seu desejo, aprendeu a guiar, só não o fazendo quando Clem insistia em dirigir o aparelho, e ele, como ela bem o sabia, não era de confiança no manejo de máquinas. Exigia milagres divinos de engenhos feitos por mãos humanas. E, embora Henrieta se hou­vesse resignado durante anos aos maus tratos a que ele submetia os automóveis, aos seus puxões e sacudidelas de partes que não entendia, à assustadora velocidade com que corria quando com pressa, não podia no entanto contemporizar com tais manobras no ar.

Ela revelou-se um bom piloto, para sua própria surpresa, pois era uma criatura sensata que desprezava arriscar-se sem necessidade. Clem, como de costume, não se surpreendia com coisa alguma que ela fizesse. À altura mais baixa que ela ousava manter, voavam de cidade a cidade, e a sua única aparente cobardia foi quando se dirigiram à costa, para estabelecer restau­rantes em S. Francisco e Los Angeles, tendo-se ela desviado para o Sul a fim de evitar as Montanhas Rochosas. Piloto e assistente, ela acompanhava Clem, enquanto, com o seu soberbo desprezo por todos os princípios comerciais, fundava, através do país, naquele primeiro Inverno, seis restaurantes com a mesma ampli­tude dos seus mercados. Para tais restaurantes contratou gerentes chineses.

-Só os chineses sabem fazer os melhores pratos da comida mais barata-explicou ele a Henrieta. -Estão acostumados a isso há milhares de anos.

Convocou o seu novo estado-maior para uma conferencia em Chicago, onde os acomodou num confortável hotel enquanto lhes falava nos meios de evitar a fome. Organizou uma centena de ementas, baseado no que havia no mercado, e ditou a regra que o deveria arruinar e que, no entanto, o devia levar ocasionalmente a maior prosperidade

-Sempre que alguém quiser comer gratuitamente nalgum dos nossos restaurantes, deve ser atendido - disse ele com firmeza. -Naturalmente não podem pedir morangos com creme, mas podem comer quanto cozido e quanto pão quiserem, e maçãs assadas e ameixas de sobremesa. Ninguém saberá se eles pagam ou não. Dirão na caixa que não poderão pagar e conseguirão um cartão, como os demais.

-Quantas vezes pode um homem comer de graça? -per­guntou Mr. Lim, de S. Francisco.

-Não devemos indagar isso - respondeu Clem. -Não deve­mos indagar nada, compreende? -Se alguém tiver fome, que coma. Ao mesmo tempo, serviremos outros pratos, tão bem preparados que os que tiverem dinheiro hão-de querer pagar. E os nossos restaurantes também deverão ter bom aspecto, para atrair o povo. Não devem parecer lugares escusos.

Os chineses trocavam sorrisos. Os seus salários estavam assegurados e divertiam-se imensamente com aquele americano maluco. Uma vez que ele havia apelado para a sua honra, estavam prontos para contribuir com as suas mais engenhosas economias e os seus mais refinados temperos. Ele, por sua vez, aceitou as suas promessas com a maior confiança.

-Podemos fazer o que deseja - disse Mr. Kwok, de China­towri. -Mas penso que seria melhor que cada um de nós con­tratasse os seus próprios cozinheiros e criados, procurando cada qual os melhores profissionais que conheça.

-Por certo-concordou Clem. -Isso é com os senhores. Cada qual responsabiliza-se pela sua parte.

-Deve haver ordem, o senhor compreende - observou Mr. Pan, de Chicago. -Sei que os americanos acham que são todos iguais, mas os chineses conhecem melhor as coisas. Para fazer que qualquer coisa vá avante, especialmente sendo bom e barato, um homem deve estar no alto e todos os outros em degraus abaixo, cada homem dependendo do seu superior, até ao que está verda­deiramente no topo. Cada homem é empregado e ao mesmo tempo patrão, menos o homem do fundo, que deve estar ansioso por subir e, portanto, fará o melhor que puder.

-Por certo - disse Clem. -O senhor expôs muito bem o caso. Com a mais simples organização ocasional, Clem arranjouos seus mercados e restaurantes, numa cadeia cooperativa. Não esperava perfeição, nem a conseguiu. O nepotismo em dois dos restaurantes constituiu um sorvedouro de lucros, até que o des­cobriu e despediu os dois gerentes, contratando outros novos. Com os antigos gerentes, retirou-se o respectivo pessoal e, com os novos, veio pessoal novo e escolhido. Os outros quatro gerentes aprova­ram as mudanças e puseram-se a trabalhar com a maior integri­dade e zelo. Os Brotlzer Mera Restaurants de Clem, sempro paganda alguma, não perderam dinheiro no primeiro ano e salvaram da fome milhares de pessoas, tão discretamente que o público nada ficou sabendo. Três por cento dos que comiam de graça bem podiam pagar, mas não o faziam. Isso era contrabalançado pelos que podiam pagar e pagavam extra, porque gostavam da comida. Clem não fazia cerimónia em aceitar esses pagamentos extraordi­nários. Nas ementas mandara imprimir em letras grandes as seguintes palavras: «Os nossos preços são muito baixos para que possam produzir lucro. Se comeu mais do que o valor do seu dinheiro de algum prato de que tenha especialmente gostado, queira pagar o que julgar que seja o seu valor. Esse dinheiro servirá para dar de comer aos que têm fome».

Um incontável número de pessoas pagava extra mas Clem não se surpreendeu. A sua fé na Humanidade aumentava à medida que envelhecia e tornava desnecessária, dizia, qualquer outra fé.

-É assim que eu considero as coisas - disse ele a Henrieta, por ocasião de um de seus longos voos sobre as planícies do Oeste. -Todos precisam de fé. Alguns encontram-na em Deus, no Céu, ou coisas assim. A minha inspiração, por exemplo, vem da minha fé no povo, aqui e em toda a parte.

Nos meados do Inverno seguinte, contudo, Clem viu-se em apuros. Estava a alimentar o povo em alta escala, não só por intermédio dos seus mercados, mas também dos seus restaurantes, e compreendeu que isso não bastava. Viu que afinal tinha encon­trado um trabalho além das suas forças.

O efeito que lhe causou tal descoberta alarmou sèriamente Henrieta. Ela viu o seu inicial entusiasmo e exuberância, a sua imensa energia, a sua confiança própria, e até mesmo a sua fé, transformarem-se numa intensa e amarga decisão à medida que as hordas da fome alastravam pelo país. Concentravam-se nas cidades, pois os camponeses podiam ocultar-se nas suas granjas, comendo o que produziam e deixando de comprar. Desistiam dos equipamentos e das máquinas que tencionavam comprar. Tinham vivido sem rádios, sem automóveis e sem máquinas de lavar roupa e assim poderiam viver novamente. Recolhiam-se ao passado e viviam como tinham vivido os.seus avós. Podiam ainda dormir nas velhas camas e usar as antigas mesas e cadeiras.

As cidades é que alarmavam Clem. Até nas cidades onde tinha os seus restaurantes as filas começavam a estender-se por quadras. Quando encontrou uma família com sete crianças a morrer de fome em Nova York, foi ter com Henrieta ao pequeno quarto de um hotel barato, onde costumavam parar.

-Nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto - disse ele tristemente. -Na China ou na Índia, talvez... mas aqui?! Como conseguirei que o Governo compreenda que o povo tem de ser alimentado? Disto sairá uma guerra. O povo não sabe.por­que é que há uma guerra e pensa que é por uma porção de outras coisas, mas a razão fundamental é que o povo não pode comprar alimentos porque não tem dinheiro para isso. É o que conduz à guerra.

-Clem, pareces doente! - disse Henrieta. -Vou chamar um médico.

-Sim, estou doente - respondeu Clem. -Mas é uma doença que nenhum médico pode curar. Estarei doente enquanto as coisas andarem assim.

Ao meio-dia, não quis comer, e Henrieta desceu sozinha ao refeitório, envergonhada do seu apetite. Se ao menos Clem pudesse separar a alma do corpo! Mas não podia, o seu corpo comparti­lhava das torturas da sua alma desesperada. Censurava-se pelo estado em que estavam as coisas, e Henrieta acharia isso absurdo se não tivesse visto em seu próprio pai, quando menina, o mesmo sofrimento pelos pecados dos outros.

-Se cumpríssemos o nosso dever como cristãos - lembra­va-se ela de ter ouvido o pai dizer no ano em que deixaram a China, aquele terrível ano em que Clem ficara sôzinho em Pequim -se cumpríssemos o nosso dever como cristãos, o Mundo teria mudado numa geração.

Clem era assim, também. Queria que o Mundo mudasse ràpidamente, porque via que poderia ser mudado, e aborrecia-se mortalmente porque os outros não viam o que ele via. Preocupada e triste, comeu a sua suculenta refeição, mastigando cuidadosa­mente cada bocado porque acreditava que Fletcher tinha razão nesse ponto. Interessava-se pelo fletcherismo por causa da indi­gestão de Clem e especialmente porque ele andava sempre com tanta pressa que engolia sem mastigar.

Quando voltou ao quarto, ele estava deitado na cama e ela julgou que estivesse adormecido. Adiantou-se na ponta dos pés e ficou a olhar para ele. Tinha as mãos enlaçadas atrás da cabeça e os olhos estavam fechados. Depois viu as pestanas tremerem-lhe.

-És tu? Estava aqui a pensar... Creio que tenho uma ideia.

-Oh! Clem, pensava que estivesses a dormir! Se não queres comer...

-Eu poderia comer, mas bem sabes como sou. Se como quando estou pensando nalguma coisa, a comida embrulha-se-me no estômago. Vou falar com teu irmão William.

Ela sentou-se pesadamente na cadeira. -Clem, isso não daria nenhum resultado.

-Quem sabe, Henrieta... Como tem uma nova esposa... -Ninguém poderá ser melhor do que foi Candace.

-Sim, ela era muito boa... Mas se William ama esta mulher, talvez o amor tenha influído nele. Talvez tenha despertado o seu coração.

-Espero que não hás-de querer que vá contigo. -Eu esperava que quisesses.

-Clem... isso não adiantará! Ele está inabalável agora. Aonde quer que a gente vá, o povo lê os seus infectos jornais.

-Ele deve sentir alguma coisa pelo povo.

-Não, não sente. Ele odeia o povo. Despreza-o, senão não faria jornais assim para ele. Eu sei porque ele faz assim, também. Dá-lhe a pior droga para o dominar. É como dar ópio aos chi­neses... ou whisky aos hindus. O povo acaba por gostar da droga e, como gosta, obedecerá à pessoa que lha proporciona.

Clem, sempre generoso, sacudiu a cabeça ante esse retrato de William. -Acho melhor ir verificar por mim mesmo.

A cólera de Henrieta explodiu, apesar do amor. -Muito bem - declarou ela-vai, se quiseres, mas não irei contigo.

Ele suspirou e ergueu-se da cama. Vestiu o casaco e alisou os cabelos com a mão. Depois inclinou-se para a beijar carinhosa­mente:

-Não estás zangada comigo, pois não? -Oh! Não, Clem, mas...

-Mas o quê? -Ele parou e olhou para ela, com os olhos azuis fulgurando na sua face branca e os lábios estranhamente franzidos.

-É que és muito bom, Clem... E não acreditas que nin­guém também não possa ser bom...

-Sim. Essa é a minha fé.

Chegando à porta, deteve-se, como se fosse dizer mais alguma coisa, ficou um instante em silêncio e, depois, continuou o seu caminho.

Lady Emory estava sòzinha para o chá. Era, naturalmente, Mrs. William Lane, e estava acostumada exteriormente a isso. Começava a sentir que a grande e confortável casa na cidade alta era a sua própria casa, e sua de um modo como jamais o poderia ser o Castelo de Hulme. Desde as mais remotas recorda­ções, sabia que o Castelo de Hulme, sendo o seu abrigo, não era pròpriamente a sua casa. William adivinhara-o logo depois do casamento e pusera à sua disposição o dinheiro necessário para reparar o castelo e instalar quartos de banho.

-Assim sentir-te-ás mais à vontade para ficar lá o tempo que quiseres, agora que és minha esposa - dissera-lhe graciosamente.

Mas o pai dela recusara a oferta. Não via necessidade de mais quartos de banho, uma vez que ele próprio usava uma bacia de zinco que lhe traziam ao quarto pela manhã e era colocada diante da lareira.

-Acho que William gostaria de vir aqui de vez em quando, pai - replicara ela ante esse preconceito. -Sentir-se-ia menos como um hóspede se tivesse alguma parte no castelo.

Dissera isso tão graciosamente como William, mas o pai limitara-se a resmungar e fora necessário Michael para o convencer de que deixasse William reparar pelo menos a ala ocidental do castelo, como um lugar onde Emory e o marido devessem parar quando viessem à Inglaterra. Lady Hulme logo descobrira em William um significativo desejo de possuir alguma parte do cas­telo e mostrara-se grata a Michael que, afinal de contas, era quem mais merecia consideração, uma vez que era o futuro herdeiro.

Quanto à América, pelo que Emory pudera ver, era admi­rável. O povo era muito amistoso, talvez demasiado amistoso. Já fora convidada para inúmeras grandes festas, e todos insistiam em chamar-lhe Lady Emory, e isso fazia-a sentir-se como em sua pátria. William também lhe dava o tratamento de Lady Emory, em casa, diante dos criados. Naturalmente, quando a apresentava a alguém, era como sua esposa, Mrs. Lane. Ela sentia, apesar do verdadeiro amor de William, que não o conhecia tão bem como esperava que acontecesse um dia. Ele tinha uma estranha e quase proibitiva dignidade que não lhe desagradava, embora compreen­desse que isso o afastava da gente comum e até mesmo de si, às vezes. Já estava habituada a isso. À sua maneira, seu pai tinha uma dignidade, também. Sentir-se-ia ofendido com a familiaridade dos seus inferiores.

Além disso, havia o quer que fosse nessa dignidade de Wil­liam que a nobilitava e à sua vida em comum. Ela sentia-se orgulhosa do belo físico de William e tinha consciência da régia aparência de ambos quando se apresentavam juntos.

Nunca lhe falava na sua primeira esposa, pelo que ela se sentia grata. Em vez disso, falava-lhe muito na sua infância em Pequim, e ela, que nunca havia pensado na China como coisa real, agora via-o realmente lá, na figura de um rapaz alto e solitário, augusto no seu lugar de filho único da família, sedento de relações quando não poderia haver nenhuma, indiferente a seus pais e irmãs como aos chineses que conhecia, que aparente­mente eram todos criados.

-Não conhecias rapazes chineses?

-Não era permitida a sua entrada na cerca. Minha mãe não gostava de chineses. Até mesmo o gabinete de meu pai tinha uma entrada separada para que não entrassem pelo vestíbulo os chineses que o viessem visitar.

-Não tentaste conhecer ninguém secretamente?

-Isso não me teria ocorrido - replicou ele com sinceridade.

Depois, pouco a pouco, foi lembrando fragmentos da sua vida na escola de Chefoo e ela viu que se formara ali a sua indi­vidualidade. Viu ela o orgulhoso menino desprezado e isolado pelos displicentes fidalguinhos ingleses que ela tão bem conhecia, pois Cecil fora um deles. Inconscientemente, William revelava-lhe as suas feridas jamais cicatrizadas.

Nem tudo eram amarguras. Ele falava às vezes nas vastas ruas de Pequim e na beleza dos telhados de porcelana dos palácios do Império moribundo. Contou-lhe numa nostálgica noite como sua mãe o tinha levado a visitar, quando menino, a Velha Impe­ratriz. -Inclinei-me diante dela, mas não me ajoelhei porque era americano. Os chineses tinham de se ajoelhar e tocar com a cabeça no chão. Recordo-me das suas mãos delgadas... As tuas fazem-me lembrar as dela. Eram compridas, pálidas e muito lindas. Mas as palmas estavam pintadas de vermelho e as longas unhas encerradas em ponteiras de ouro cravejadas de pedras. Olhei-lhe para o rosto... Um rosto dominador.

-Ela falou-te?

-Não me lembro. O povo chamava-lhe a Velha Buda. Tinham medo dela, mas admiravam-na. O povo precisa de ter alguém como ela. Fiquei triste quando ela morreu e surgiu aquele revolucionário, Sun Yat-sen. A gente do povo não pode respeitar um homem comum daqueles--um indivíduo exactamente igual a si. Talvez esse novo homem, Chiang Kai-shek, seja melhor. É um soldado, acostumado a mandar. Com ele não há nada des­sas tolices democráticas.

Emory escutava, ciente de que ele lhe estava dizendo coisas que jamais dissera a ninguém, coisas que ele havia esquecido e que subiam agora das profundezas da sua alma. No fundo de tudo, havia sempre uma permanente queixa contra seus pais, porque lhe haviam roubado o orgulho do berço. Seria impossível expli­car-lhes porque se sentia envergonhado, e mais envergonhado se sentia porque desejava orgulhar-se do seu pai, e depois a humi­lhante consciência de que havia em si próprio algo do seu pai, apesar desse ódio, e que não poderia simplesmente desfrutar tudo o que tinha, o seu dinheiro, as suas grandes casas e a liberdade que o êxito lhe devia trazer, pois nunca seria livre. Deus per­seguia-o.

Essa a amargura, essa a perturbação, esse o terror que ela encontrou na alma de William.

Reflectindo sòzinha junto à lareira, tomava ela o seu chá habitual numa fria tarde de janeiro. Não era muitas vezes que ficava sòzinha, e sentia-se exausta, pois não estava acostumada à intensa actividade daquele novo mundo. Tinha sido convidada para um «cocktail» em homenagem àquele dramaturgo que estava a obter agora tamanho êxito em Broadway, Seth James, e, quando telefonou a William dizendo que não iria, William repli­cou que tinha de ir, pois Seth fora um antigo empregado seu com quem se zangara e, se não comparecesse, poderia parecer que lhe guardava rancor.

-Deves ir, de qualquer forma - dissera-lhe Emory.

Achava bom estar sòzinha durante uma hora. Parecia-lhe difícil estar sòzinha na América, embora no Castelo de Hulme a solidão fosse a condição mais natural. Agora, depois de comer algumas sanduíches de agrião e beber duas taças de chá inglês, foi sentar-se ao piano que William mandara fabricar especial­mente para ela, tocando durante uma meia hora, e transpor­tando-se assim, como às vezes fazia, a um vago e distante lugar que não era a América mas que também não era exactamente a Inglaterra. Não desejava voltar ao Castelo de Hulme e sentia-se inteiramente feliz ali naquela casa, tão feliz como achava que se poderia ser nesta vida mortal. Cecil deixara-a agora inteiramente, até mesmo em sonhos, e ela raramente pensava nele.

Em meio da música, a porta abriu-se e ela ouviu a tossezinha com que o criado anunciava a sua embaraçada presença.

-E então, Henry? -perguntou ela, abrandando a sua música, sem que parasse.

-Desculpe, minha senhora, o cunhado de Mr. Lane está aqui. -Mr. Jeremias Cameron?

Já se encontrara com Jeremias e Ruth. Vira ser difícil dar-se com a irrequieta afabilidade de Ruth, mas achara Jeremias encantador, embora fosse uma pena ser também irmão da primeira esposa de William.

-Espero que não lhe importe que seja irmão de Candace -fora logo dizendo Jeremias na primeira vez em que se encontra­ram. -Garanto-lhe que Candace é muito compreensiva. Na ver­dade, ela não teria nenhum constrangimento em a conhecer, é uma criatura de excelente coração.

-Não me importa absolutamente que o senhor seja seu irmão - respondeu Emory.

-Não é mr. Jeremias, minha senhora - dizia agora Henry. -É o outro cunhado... Mr. Miller, creio eu.

-Oh! --Lady Emory ergueu-se do piano. Sabia por William que Henrieta casara com um homem esquisito chamado Clem, que conseguira enorme êxito com monopólios de alimentação. Enquanto estava parada no meio da sala, incerta de como receberia Clem, ou se haveria de o receber, conservou-se ele à porta, um tanto sombrio, com os cabelos amarelos em desordem.

-Entre - disse ela.

Chocou-a a sua excessiva magreza e o impressionante azul dos seus olhos.

-Parece que está com frio - disse-lhe ela com involuntária bondade. -Deve tomar um pouco de chá quente.

Para Henry, ainda postado à porta, disse ela: - Vá buscar chá quente, Henry.

-Sim, minha senhora. -A voz de Henry tinha um tom de dúvida, enquanto ele se afastava.

Clem viu uma mulher, uma dama, que era toda gentileza e bondade. Era verdade que, ao entrar, não se sentira bem por um instante. Não tinha comido nada desde manhã.

-Creio que estou com um pouco de fome - disse ele, e tentou sorrir.

Ela logo o fez sentar numa confortável cadeira e colocou-lhe um escabelo sob os pés. O fogo ardia agradàvelmente e a vasta sala era tranquila. Tudo era confortador e bom, e ele sentiu esvair-se a sua pressa e a sua excitação. No seu corpo tenso, os músculos, um após outro, foram-se relaxando. O criado voltou com chá quente e ela serviu-lhe uma taça.

-Traga-lhe um ovo quente - ordenou ao criado.

-Não posso comer ovos - protestou Clem.

-Pode, sim - afirmou Emory, com firmeza. -Precisa de um ovo. Está tão pálido...

-Não sirva leite no meu chá, por favor - disse Clem.

Tomou duas taças do delicioso chá e comeu um dos biscoitos quentes e, quando o criado trouxe o ovo encomendado, sucedeu que eram dois, servidos numa tigela. Havia triângulos de torradas, que ele comeu, e sentiu-se renovado até à alma.

-É uma maravilha o que o alimento pode fazer - disse ele, sorrindo para ela, que lhe devolveu o sorriso.

-Não sei como lhe chamar... - disse Clem por fim.

-Emory, naturalmente. O senhor chama-se Clem, bem sei.

-A senhora não é uma lady, ou coisa parecida?

-Bem... mas isso não importa, agora que sou americana.

Clem enrolou cuidadosamente um pequeno guardanapo de rendas e colocou-o sobre a bandeja.

-Creio que acredita em alimentar o povo - disse ele - e é por isso que vim falar com William. Ele não lhe falou a meu respeito? -Creio que disse que o senhor lida com alimentos. -Preferiria dizer que lido com o povo e a maneira de o alimentar.

Ele inclinou-se, parecendo extraordinàriamente refeito e lembrando-lhe de algum modo os jovens de Londres que estavam sempre a falar em Hyde Park. Ela nunca parava para ouvir qualquer deles, mas muitas vezes eles tinham aqueles cabelos amarelos e aqueles fulgurantes olhos azuis. Enquanto estava sentada a olhar para ele e a pensar nessas coisas, Clem mostrava-se fluente em pregar o seu evangelho àquela bondosa e atenta mulher. Esquecera tudo, menos que havia tomado o lugar de Candace e que ele não devia gostar tanto dela, mas o facto é que gostava. Candace mostrava-se bondosa, também, mas com uma bondade de criança, e ele nunca tinha a certeza de que ela o compreendia. Mas aquela mulher compreendia-o e não era absolutamente uma criança, Havia até certa tristeza nos seus olhos escuros.

-Compreende o que quero dizer? -perguntou-lhe ele, fazendo uma pausa.

-Compreendo, sim. Acho uma ideia maravilhosa. Apenas, naturalmente, o senhor está muito adiante da nossa época. É a tragédia das grandes ideias primárias. O senhor não viverá o sufi­ciente para ver praticado, nem mesmo acreditado, que o povo tem direito ao pão como tem direito à água ou ao ar. A santíssima trindade da vida humana!

Clem não podia suportar que ela se limitasse a compreendê-lo ou a acreditar nele. Quem acreditava, devia agir.

Ele insistiu. -Mas temos de fazer com que o povo com­preenda isso. Por isso é que vim falar com William. Ele tem muito poder sobre o povo.

Emory olhou para ele com um novo e súbito interesse. -Julga que sim?

Ele foi sensível a esse interesse e sentiu-se ansioso por apro­veitá-lo o melhor possível. --Não lhe sei dizer como é grande o seu poder. Os seus jornais vão a todas as casas de cada pequena cidade... jornais pequenos e fáceis, que qualquer pode ler. E depois, há ainda as gravuras. Eu leio-os, também, e vejo as gravuras. O esquisito, para mim, é que os senhores não aprendem nada, Miss... Lady...

-Emory, apenas - lembrou-lhe ela.

-Quero dizer que tudo é muito divertido e bonito, mas não aprendem nada. Não compreendem porque é que o povo da Ásia quer uma vida melhor e não compreendem porque é que as coisas não vão tão bem na China, apesar do novo governo.

Ao falar na China, Clem sentiu-se preocupado. -Não sei... - murmurou ele. -Creio que as coisas não vão bem por lá. Talvez seja melhor que eu vá até lá, logo que passe essa depressão. -Ergueu a cabeça. -Era o que eu queria comunicar a William, se pudesse ser convertido, por assim dizer, a esta ideia de alimentar o povo. Não será caridade. Não nos custará dinheiro.

Começou a explicar a regra de ouro dos seus restaurantes e, em certo ponto de sua exposição, ergueu os olhos e avistou William parado à porta, com a surpresa e a reprovação estampadas no rosto.

-Vem cá, William - disse logo Emory. -Estou a ouvir um rapaz muito interessante. É Clem.

Assim, dava a entender a William que ele tinha de retirar do rosto aquela expressão que assumira propositadamente para ferir, e que devia entrar, sentar-se e ser amável com Clem, porque ela o desejava. Os seus olhos encontraram-se por um segundo e William cedeu. Cedia ante Emory como jamais cedera ante mais ninguém.

-Como vai? -perguntou a Clem.

-Muito bem - respondeu este. -E você?

William não respondeu. Sentou-se e tomou uma taça de chá da mão de Emory.

-Vim, na verdade, visitá-lo - disse-lhe Clem. -Mas tive muito prazer em conversar com a sua amável esposa. Tratou-me muito bem, deu-me de comer. Ainda não tinha comido hoje. William não demonstrou interesse.

-Quer uma sanduíche ou um biscoito? -interrogou Emory. -Não quero nada, obrigado.

Clem sentiu que a atmosfera da sala mudava e apressou-se em dizer ao que vinha. Provàvelmente queriam estar sôzinhos e, em todo o caso, ele já se havia demorado bastante.

-Não quero desperdiçar o seu tempo, William, mas desejo dar-lhe uma ideia. Expô-la, em todo o caso... Leio os seus edito­riais todos os dias, e vejo que põe neles sempre uma ideia, isto é, uma ideia sua. Não concordo com a maioria delas, mas não é disto que se trata. Estamos num país livre. Mas vejo que o povo adopta as suas ideias quase em conjunto. Ando um pouco por todo o país e oiço os homens afirmarem coisas que vêm directa­mente da sua boca, por assim dizer. Vejo que o senhor bem com­preende como é a maioria do povo. Ele não sabe muito e fala um pouco, e naturalmente precisa de ter alguma coisa para dizer, de modo que diz o que ouve os outros dizerem ou o que lêem no jornal. Admiro a maneira sucinta, clara e simples com que o senhor diz as coisas.

-Muito obrigado - disse William imperturbàvelmente.

Clem nunca notava a ironia e aceitava as palavras pelo que eram. -Tudo isso está certo. Agora eis aqui a minha ideia. Como propagar a ideia de que devemos dar os nossos excedentes aos que não têm alimento? Quero dizer aqueles homens que, quer nas «bichas» do pão, quer vendendo maçãs na rua, têm as famílias famintas em casa. Não custará nada.

-Que excedentes? - perguntou William friamente.

-Os nossos excedentes - repetiu Clem com firmeza. -Até mesmo agora temos excedentes, enquanto há gente que morre de fome porque não pode comprar alimentos. O dinheiro é que falta, não é -alimento.

William pousou a taça. -O que me propõe desorganizaria todo o nosso sistema de governo se fosse levado à conclusão lógica. Se o povo não tem dinheiro, não pode comprar. A sua ideia é desprezar o dinheiro e fornecer alimentação gratuita. Quem vai pagar aos homens que produzem o alimento?

-Mas os produtores não estão a ganhar nada, em todo o caso! - exclamou Clem. -O alimento está a apodrecer e eles também se encontram em má situação.

-É melhor deixar o alimento apodrecer do que minar todo o nosso sistema económico - afirmou William com firmeza.

Clem lançou-lhe um olhar feroz. -Muito bem, William, pa­guemos então aos produtores!

-Quer dizer que o governo deve alimentar o povo? - Wil­liam estava chocado até ao fundo da alma.

-Oh, meu Deus! --bradou Clem. -Atente nos homens, William! É no povo que eu estou a pensar... no povo faminto. Que é uma nação, sem o povo? Que é o comércio, sem ninguém para comprar? Que é o governo, se os cidadãos morrem?

-Isso é completamente ridículo - replicou William a Emory. Ele ergueu-se, dominando Clem, que também se ergueu. -Nós jamais concordaremos um com o outro - respondeu William for­malmente. -Devo dirigir as minhas publicações segundo o meu critério. Acredite-me, sinto muito ver alguém faminto, mas acho que os que estão com fome têm alguma razão para isso. A nossa terra é uma terra de oportunidade. A minha própria vida o prova. Ninguém me ajudou a ter êxito. O que eu fiz, outros o podem fazer. Esta é a minha fé como americano.

Por um momento Emory, ao ver os dois homens que se enfrentavam, pensou que Clem se arremessaria contra William. Este vibrava, de punhos cerrados, com os olhos azuis eléctricos cheios de raiva. Olhou para William um longo momento e súbitamente a raiva abandonou-o.

-Você não sabe o que está a fazer. -As palavras saíram da boca de Clem como o sopro da morte. Ele voltou as costas e reti­rou-se, como se tivesse ficado cego e surdo.

Depois de ele se ter ido embora, William tornou a sentar-se. -Outra chávena, por favor, Emory. -Procurava tornar a sua voz normal.

-Pois não, William. Mas estará quente? -Ela apalpou o bule. -Sim, deve estar ainda quente.

Primeiro provou o chá e depois disse:

-Bem vês, Emory, como esse homem é impossível! -Creio que ainda não compreendo o sistema americano, William. Há gente que morre de fome.

-Alguns, naturalmente, necessitam de alimentos - disse William com voz ponderada-. Mas as instituições de caridade estão atentas. Há alimentação gratuita; o que ele quer está a fazer-se. Eu próprio tenho dado muito dinheiro para instituições filantrópicas, em teu nome e no meu.

William fez uma pausa, mas Emory não lhe agradeceu e ele continuou: - Que são esses casos de caridade, senão os que sempre foram? São os tolos, os ignorantes, os preguiçosos, os oportunistas, os parasitas, todos os que vivem à margem e que se encontram em qualquer moderna nação industrial. Na antiga civilização agrícola da velha China, ficavam eles ao cuidado do imenso sistema de família. A indústria, naturalmente, transforma isso tudo.

-Não se encontraram outros meios para substituir o sistema de família?

-Meios existem - disse William com uma ponta de impa­ciência. -Podes acreditar-me quando digo que ninguém precisa de morrer de fome aqui na América, quando quer trabalhar. Mesmo que não queira trabalhar, não morre de fome. Há insti­tuições de caridade por toda a parte.

-Compreendo - disse Emory em voz tão baixa que era quase um sussurro.

Não falaram durante alguns minutos e quando William lhe estendeu a mão, ela conservou-a nas suas. Era a melhor hora do dia, aquela tranquila hora entre o chá e o jantar. Se tinham visitas, mostravam-se amigos e, se não tinham, era assim, William sempre carinhoso para com ela. Emory sabia que ele a amava verdadeiramente. Sabia, mesmo, que ele não amava a ninguém mais. De certo modo, não podia compreender como havia descerrado aquele coração que, se não fora ela, seria como uma tumba. Sentia-se atemorizada com aquele amor, pois jamais soubera, antes, do seu próprio poder. Cecil tinha-a amado, mas ela talvez o amasse mais do que ele a ela. Ela pertencera-lhe, mas de certo modo William pertencia-lhe. Tinha medo, às vezes, pois não poderia tal posse exigir muito de si? Já não estava inteiramente livre, porque o seu amor era demasiado exclusivista.

-Envergonho-me de que meu cunhado tenha forçado a entrada nesta sala, destruindo a tua tranquilidade - disse William.

-Oh! Não - disse ela. -Foi muito interessante. Na verdade... -Mas interrompeu a frase neste ponto e ele nada mais lhe per­guntou. Em vez disso, ergueu-se e inclinou-se para a beijar. E ela recostou a cabeça para trás, a fim de receber o beijo.

-Quero que sejas feliz - disse William numa voz abafada pelo amor. -Não quero que te incomodem.

-Obrigada, querido. Não estou aborrecida.

Ele retirou-se e ela ouviu-o subir a escada para os seus apo­sentos. Iria tomar banho, mudar de roupa, e logo desceria, des­cansado e de excelente aspecto, como o gentleman rico que ele era e dispondo cada vez mais dos seus lazeres. Não tinha necessidade de trabalhar como antigamente, ainda ontem ela lho dissera. Deviam ir à Itália naquele Inverno, fazendo naturalmente um alto no Castelo de Hulme.

Ficou sentada um momento, pensando nisso tudo e em Clem. Depois, com um súbito e decisivo gesto, tocou a campainha. Nada podia fazer, na verdade, a respeito de Clem. Tinha escolhido William, e o seu mundo era o de William.

A porta abriu-se. -Levante a mesa, Henry - disse ela, na sua argentina voz inglesa. -Vou lá para cima e, se alguém telefo­nar, não quero que me incomodem.

-Sim, minha senhora - respondeu Henry.

Da casa de William, Clem dirigiu-se à cidade. Queria ser confortado e tranquilizado. Henrieta sempre lhe podia dar consolo e ânimo, mas ninguém, nem mesmo ela, poderia compreender que agora, naquele momento, ele necessitava de ser tranquilizado de facto. Precisava de verificar, com uma verdadeira experiência, se o que ele vinha fazendo não era mais do que lançar uma gota no profundo poço da fome humana. Evitou o hotel e, tomando um ónibus, rumou para Mott Street, onde se achava o seu maior restaurante. Era um local não muito vistoso, mas agora já não havia necessidade de que fosse de outra maneira. A gente já sabia que poderia conseguir alimento gratuito ali, muita gente, aliás... Viu muitos homens e algumas mulheres com crianças enfileirados numa friorenta bicha, à espera, no crepúsculo hibernal, e ele levantou a gola do sobretudo e tomou o seu lugar na extremidade. Dentro de poucos segundos havia mais vinte pessoas atrás dele.

Movimentavam-se passo a passo, com intolerável lentidão. Deveria falar com Kwok a esse respeito. O povo devia ser servido mais ràpidamente naquelas noites tão frias. A rapidez era essencial. Deviam contratar mais criados, quantos fossem necessários.

Afinal entrou e acomodou-se a uma mesa já cheia. O criado que estava a limpar a mesa não reconheceu aquele novo freguês.

-Que deseja? -perguntou ele, ainda a esfregar a mesa. Clem murmurou o prato básico. Ficou de novo à espera, olhando para um lado e outro, observando tudo. A sala estava demasiado cheia, mas era quente e razoàvelmente limpa. Era grande, mas não suficientemente grande. Devia ver se poderia alugar o andar superior. Apesar da multidão, o local estava silencioso, ou quase silencioso. Os fregueses, inclinados sobre as mesas, comiam. Sòmente uns poucos conversavam ou riam.

Chegou o seu prato e pôs-se a comer. A comida era assaz boa, abundante e quente. O criado olhava para ele e Clem viu-o um momento mais tarde parar junto ao postigo da caixa. Comeu quanto pôde e, depois inclinou-se para o seu vizinho, um jovem de barba por fazer que havia limpo o respectivo prato.

-Quer? - murmurou Clem.

Os fundos olhos juvenis brilharam na face faminta. -O senhor não quer?

-Não posso terminar...

-Nesse caso...

O criado estava olhando de novo, mas Clem ergueu-se e dirigiu-se ao postigo com o seu cartão. Inclinou-se para as grades e disse em voz baixa: - Desculpe, mas não posso pagar nada.

A jovem chinesa que estava ao postigo replicou logo, e a sua voz e acento eram inteiramente americanos. -Oh! Sim... bem pode pagar! O senhor não é nenhum miserável... com essa roupa!

-É a única roupa decente que tenho.

-Pois então, trate de a empenhar. Todos assim o fazem para pagar o que comem.

Ele voltou-se, tomado de súbita fúria e atravessou a sala, abrindo caminho entre os criados. Foi direito ao pequeno gabinete de Mr. Kwok, e ali o encontrou em mangas de camisa, com o rosto oleoso de suor.

-Mr. Miller... - Mr. Kwok ergueu-se e indicou a sua própria cadeira: - Queira sentar-se.

Clem ainda estava furioso. -Não, não me quero sentar. Olhe, vim hoje de noite verificar como iam as coisas. Disse à caixa que não podia pagar, exactamente para experimentar o sistema. A maldita rapariga do postigo disse-me que empenhasse a minha roupa!

Mr. Kwok suava mais fortemente. -Por favor, Mr. Miller, não se zangue tanto! O senhor não compreende. Assim vamos falir: muita gente a comer todos os dias. Na China, bem sabe o senhor que os famintos não esperam comer todos os dias, mas sòmente uma, duas ou três vezes por semana. Aqui, os americanos esperam comer todos os dias, mesmo que não possam pagar. Ninguém pode atender a isso, Mr. Miller, nem mesmo um grande coração como o seu. Gente na miséria não pode comer como os que não estão na miséria. Isso não tem sentido, Mr. Miller. No princípio, sim, era muito razoável, porque a maioria pagava, mas agora muita gente não paga e ainda come como dantes. que diabo, Mr. Miller! É a depressão! A ira de Clem aplacou-se. O que o chinês dizia era verdade. Muita gente não podia pagar. A missão estava acima das suas forças. Muita gente, muita gente com fome...

-Creio que tem razão - disse ele, após longa pausa.

Parecia tão pálido quando se ergueu e vacilou de maneira tão estranha que Mr. Kwok se assustou e amparou-o pelos coto­velos. -Está a sentir alguma coisa, Mr. Miller?

Clem endireitou-se. -Não, estou muito bem. Vou pensar no caso. Boa noite, Mr. Kwok.

Desenvencilhou-se das suas mãos solícitas e saiu para a rua. O seu plano não funcionava. Nada funcionava. O povo empenhava as roupas naquele duro Inverno. Diziam-lhe que empenhasse as roupas, que empenhasse tudo o que pudesse, sem dúvida. Tinham recomendado aos criados que verificassem o que o povo vestia. Recordava o rapaz faminto que se apoderara do seu prato e, como um cachorro, comera os restos. Eis o que chegara a acontecer ali no seu próprio país. Algum dia o povo estaria a comer relva, raízes e folhas, como na China.

-Vou a Washington - murmurou ele na fria escuridão. -Vou lá outra vez e dir-lhes-ei...

Achou o caminho para o hotel, onde Henrieta o esperava, alarmada com a sua longa ausência.

-Clem... -começou ela, mas ele interrompeu-a logo.

-Vai preparando as nossas coisas. Tomaremos o próximo comboio para Washington. Vou falar com aquele camarada da Casa Branca, se tiver de abrir caminho até lá.

 

Não o conseguiu, naturalmente. Henrieta sabia que não o conseguiria. Ela ficou à espera no saguão e pôs-se a ler um folheto, de uma mesa cheia de folhetos e magazines que tinham sido mandados para o presidente ler. Ele não tinha tempo para os ler, e ali foram colocados para ajudar os que esperavam a matar o tempo. Num folheto de cinco páginas, em palavras secas como areia, em sentenças tersas como exclamações, mas desapaixonadas, ela leu a simples e inteira verdade. Durante vinte e nove meses, os negócios americanos vinham declinando. A produção industrial era cinquenta e cinco por cento do que fora três anos atrás. A de­flação em todos os preços era de trinta e cinco por cento. Os lucros haviam baixado setenta e cinco por cento. Dezanove empresas de caminhos de ferro tinham falido durante o último ano. Os preços dos produtos agrícolas tinham baixado quarenta e nove por cento e continuavam a baixar. Mas-e aqui reconhecia ela agora como Clem sempre tinha razão-havia mais alimento do que nunca! Os agricultores tinham produzido mais dez por cento de alimento naquele ano de fome do que três anos antes, em época de fartura.

-Oh! Clem - murmurou Henrieta para o seu próprio cora­ção-, quantas vezes lhes falaste e eles não te escutaram! Ó Jeru­salém, Jerusalém, quantas vezes...

Colocou o folheto em cima da mesa e ficou sentada com as mãos cruzadas no regaço e a cabeça inclinada de modo que o cha­péu ocultasse as lágrimas que lhe arrasavam os olhos. Era por Clem que ela chorava, por Clem em quem ninguém acreditava, a não ser ela própria, que não era ninguém. William ferira-o terrivel­mente, mas ela não sabia como, pois Clem não lhe dissera o que havia acontecido. Mal dissera uma palavra ou outra durante a viagem de comboio. Tentara fazê-lo dormir, embora estivessem apenas numa cama diurna - Clem não gastaria dinheiro em carruagens-camas - mas, embora ele recostasse a cabeça e fechasse os olhos, ela sabia que ele não estava a dormir.

Clem entrou de súbito na sala de espera e Henrieta logo viu que ele havia falhado. Ergueu-se e saíram do edifício lado a lado. Ela pegou-lhe na mão, mas a mão estava frouxa, e Henrieta largou-a.

-Não - disse Clem. -Ele estava muito ocupado. Falei com um ou outro, mas o bastante para saber que não adiantava ficar rondando por ali.

-Oh, Clem... Porquê?

-Porquê? Porque eles têm o seu plano. Queres saber qual é? Bem, eu te direi. Querem recomendar aos agricultores que parem de produzir tanto. Eis o seu plano. Maravilhoso, não é, pois, com o país a morrer de fome?

Voltou-se para Henrieta e soltou uma gargalhada tão furiosa que os transeuntes ficaram a olhá-lo, mas ele não ligava aos seus olhares. Seguia avante tão depressa como se estivesse numa corrida.

-Aonde vamos agora, Clem?

-Vamos voltar para Ohio. Vou fazer aquilo andar.

A nação endireitou-se nos dois anos seguintes, lentamente, como um navio que sai de uma tempestade. William escreveu um claro e bem arrazoado editorial para a sua cadeia de jornais e acentuou, para os seus milhões de leitores, que as reformas não tinham sido começadas por Franklin D. Roosevelt, o novo pre­sidente, mas por Herbert Hoover, que, em sã justiça, deveria ser reeleito, para que pudesse terminar o que tinha começado. Era óbvio, prosseguia William, que o novo residente da Casa Branca levaria a nação a nunca visto débito nacional. O que William via agora na Casa Branca não era o maduro e incomparável homem, enrijecido por severa experiência. Via um jovem de quem ele se recordava dos tempos de escola, alegre e voluntarioso, nascido tão naturalmente como Emory para viver num palácio e desfrutar de uma riqueza herdada, mas, ao contrário dela, não controlado por nenhum parentesco ou relação. Roosevelt, seguro desde o berço, era incontrolável e, portanto, temível, e William canalizou esses temores no seu habitual estilo editorial, extremamente simples e de uma concisão dogmática. Para surpresa sua, experimentou a primeira rebelião. Milhões de pessoas, ao ler os seus editoriais, sentiram uma inexplicável fúria e as vendas dos jornais baixaram tanto que os seus agentes comerciais se viram obrigados a comunicar-lhe tal facto. Ele respondeu-lhes com um memorando, dizendo que ia visitar a Inglaterra e a Europa, especialmente a Alemanha, onde desejava ver por si próprio o que estava a acontecer, e que poderiam fazer o que quisessem enquanto ele estivesse fora.

Emory recebeu a notícia da viagem com a sua calma habitual. Não tinham ido à Inglaterra ou à Itália no ano anterior e ela sentiu que uma mudança seria agradável. A sós com William, poderia descobrir o que era que o tornava perpètuamente insatis­feito, não com ela, mas com a vida em si. Jamais lhe mencionara que havia descoberto esse descontentamento, mas sabia agora que era espiritual e que ele começava a percebê-lo por si próprio. Sentiria William alguma falha no amor que ela lhe devotava? Haveria tal falha? Ela não saberia responder. William tinha tanta coisa... Tinha todo o dinheiro que jamais sonhara possuir e a mais feliz cadeia de jornais populares. Estava já a planear o próximo candidato presidencial, pois aquele homem da Casa Branca pro­vàvelmente não sobreviveria à próxima legislatura. Que ele ansiava por alguma coisa que não tinha, alguma coisa mais do que a mulher poderia dar, estava agora claro, talvez até para o próprio William.

Ou o seu espírito buscava o pai? Um dia, durante a viagem, William disse: - Penso constantemente em meu pai. Desejaria que o tivesses conhecido, Emory. Vocês compreender-se-iam um ao outro. Ele era um grande homem desconhecido.

-Sim, desejaria tê-lo conhecido... - observou ela. Repou­savam nas suas cadeiras sobre o convés. O Sol brilhava sobre um mar azul.

-Pergunto-me... Muitas vezes pergunto-me... - dizia Wil­liam, como se lhe custasse expressar o seu pensamento.

Emory desistiu de abrir a sua novela. -Perguntas o quê, William?

-Se ele aprovaria o que faço... o que sou!

Aprovação. Eis a palavra, a chave! Ela logo o descobriu. William necessitava da aprovação de alguém que ele reconhecesse como seu superior espiritual. Sabia que ele era um homem de natureza fortemente espiritual, um homem religioso sem religião. A própria Emory não era espiritual, nem religiosa tão-pouco, e não o pode ajudar. Não levou a conversa além do seu habitual comentário simpatizante.

-Tenho a certeza de que ele te aprovaria, William; mas desejaria que ele aqui estivesse para to dizer.

Consigo própria, depois dessa conversa, começou a activa procura da religião de que William necessitava. Devia ser uma religião assaz forte para ele, organizada e antiga, não o budismo, que era muito suave, nem o hinduísmo, que era muito misericor­dioso, nem o taoísmo, que era muito alegre, imbuído como era de humana independência, até mesmo de Deus, e o confucionismo estava morto. Ela conhecia um pouco de todas as religiões, pois após a morte de Cecil havia estudado as escrituras de muitas e afinal ficara indiferente a todas elas. Em vez de religião, cultivara uma profunda paciência congénita e, desprendida de tudo pelo antigo choque, nada agora podia perturbar a calma que se desen­volvera, como uma madrepérola, em redor da sua própria alma. Desejava na verdade ter conhecido vivo o pai do seu marido.

Quanto a sua mãe, descobrira logo que fora apenas o vaso de criação.

No entanto, Emory até gostava do vaso. Com o seu subtil humor, em breve compreendeu que não havia uma onça de vida espiritual no irrequieto corpo da sua sogra. Mrs. Lane utilizava Deus para os seus próprios fins, que eram sempre literais e materiais, consubstanciando-se no êxito de William, na sua prosperidade, no recente parentesco com um conde inglês. Logo depois do casa­mento de William, anunciou que iria à Inglaterra e que gostaria de visitar o Castelo de Hulme. Emory escrevera a sua mãe com toda a franqueza, dizendo-lhe que sua sogra seria o mais cómodo dos hóspedes, nada se parecendo, nesse ponto, com William. «A velha Mrs. Lane está sempre bem disposta para agradar», escreveu Emory, e desenhou um pequeno focinho de gato na larga margem do papel de cartas que trazia o seu nome, mas também o brasão de Hulme.

Fora ao embarque de Mrs. Lane e, no convés do grande navio, dera-lhe umas orquídeas vermelhas, um pacote de novelas religiosas e uma caixa de chocolates franceses. «Alimento para o corpo e para a alma», dissera-lhe ela com secreto cinismo. Mrs. Lane, que tinha o estômago forte e gostava de doces, não compreendia o cinismo. Agradecera à sua nova nora com a especial solicitude que tinha para com os bem-nascidos. Ficou à amurada do convés superior, com uma capa de pele e um chapéu com um véu de rendas, a acenar vigorosamente.

No princípio o divórcio pareceu-lhe uma coisa horrível, até que afinal descobriu como aprovava Emory e a sua família inglesa. Depois transigiu. Não era como se William ainda precisasse do dinheiro dos Cameron. Na sua actual posição, Emory era-lhe, na verdade, muito mais adequada do que Candace. Os homens sempre acabavam por ultrapassar as mulheres, embora, graças a Deus, isso jamais tivesse acontecido com o seu próprio marido. Tudo isso metera nos ouvidos de Ruth, que sempre a escutava.

Emory logo viu que tal mãe nada tinha de útil para William, e no princípio pensara que qualquer ligação entre William e sua mãe havia cessado com o corte do cordão umbilical. Mais tarde percebera que não tinha razão. Mrs. Lane criara uma divisão em William. A ela devia William o seu respeito à riqueza, aos castelos, à linhagem, ao...

Neste ponto das suas reflexões, Emory deteve-se. Estava a ser incorrecta, pois não desfrutava ela as riquezas de William? Pior ainda, estava a ser injusta com ele, cuja alma ansiava por coisas mais altas do que as que possuía. Desejava que William fosse realmente feliz e não como os americanos entendiam a felicidade, que era algo de muito cálido e ocasional. Desejava que William se sentisse satisfeito de um modo como ela sabia que ele não estava. Desejava que se acalmasse a sua inquieta ambição e que cicatri­zassem as vagas feridas da sua vida. Algumas destas conseguira ela cicatrizar, pelo simples facto de ser o que era: inglesa e sua esposa.

 

O Castelo de Hulme estava excepcionalmente belo na tarde em que lá chegaram. O Inverno fora suave, disse o motorista, explicando o acúmulo de verdura nos velhos muros e torres.

Os pais de Emory achavam-se na grande sala de estar, embora ainda não fosse meio-dia, e ela sensibilizou-se ao ver que estavam à sua espera, deixando de parte as suas habituais ocupações matinais.

-Queridos... - disse ela, inclinando-se para os beijar,

William mostrava-se calmamente convencional, e não disseram muita coisa. Os pais de Emory não se sentiam à vontade com ele, nem tão-pouco se sentiam inteiramente à vontade com a filha, como ela própria o notou. Depois entrou Michael, em trajo de montaria, e com ele entrou na sala a facilidade.

-Vocês ai... Ainda não lhes mostraram a sua parte no castelo?

-Não nos disseste... -lembrou-lhe Lady Hulme.

-Venham, venham - disse Michael. -Eu é que vos queria mostrar.

Eles acompanharam-no, rindo da sua impaciência, e Emory viu que até mesmo William, tão parco em sentimentos de gratidão, estava sensibilizado com o que Michael fizera. Construíra real­mente um pequeno castelo particular em uma das alas. Tinha a sua entrada independente, cozinha própria e quatro casas de banho.

-Aqui poderei descansar, Emory-e tão gravemente o disse que ela percebeu que ele necessitava de repouso.

-Venha cá, William - disse Michael depois de terem visto tudo. - É melhor deixarmos Emory um pouco com a mãe. Tenho de ir até à cidade próxima para escolher um tractor. Poderíamos almoçar lá. Você poderá aconselhar-me. É uma máquina americana.

Emory riu. -Tu não és muito subtil, Michael; mas em todo o caso nunca o foste. -Eles riram com ela e retiraram-se, e Emory foi almoçar com seus pais.

O castelo, descobriu ela, estava numa estranha mutação. Seu pai, profundamente aborrecido com o aumento do imposto de transmissão causa mortis, ameaçava mudar-se para a casa do porteiro com sua mãe e dois ou três criados, deixando Michael ocupar o castelo e assumir o título, até onde isso fosse possível. Ela ouviu essa conversa na imensa mesa da sala de jantar, com o pai numa das pontas, a mãe na outra, e ela no meio, como dantes.

-É triste não podermos acabar os dias no nosso próprio lugar - disse o conde.

Ficou em silêncio diante do seu bife e do cálice de Porto, um silêncio que sua mulher não pôde suportar por muito tempo.

-Em que estás a pensar, Malcolm? -perguntou Lady Hulme. Ela não bebia Porto, porque lhe produzia pequeninas veias vermelhas no nariz.

-Não te lembras, querida, daquele homem que desenter­rámos na igreja quando instalámos os canos de água quente? -­perguntou o conde, com total falta de respeito.

-Pai, porque pensas nisso agora? -perguntou Emory.

-Ele estava lá há cento e cinquenta anos, os seus ossos eram como quaisquer outros, brancos como giz, mas continuavam perfeitamente articulados uns nos outros, como sabes.

Lady Hulme lembrava-se perfeitamente da manhã de junho, anos atrás, quando os operários vieram dizer que tinham batido num caixão, na igreja, e os dois tinham ido ver. O caixão era apenas de madeira, e dele só se conservavam propriamente os fechos de metal, mas ali no pó jazia o mais belo esqueleto que se pudesse encontrar. Felizmente não era nenhum antepassado dos Hulmes, mas um médico que servira a família e a quem se concedera a honra de ser enterrado na igreja.

-Não achas que ele tinha tomado drogas ou qualquer coisa que conservasse os ossos? -perguntou ela agora.

-Talvez-concedeu o conde. -Mas talvez fosse unicamente a secura da igreja... ou as centenas de sermões que os vigários pregaram...

Engasgou-se com a sua própria graça e explodiu numa terrível tosse. Lady Hulme esperou. O conde engasgava-se com facilidade últimamente, especialmente quando bebia vinho do Porto. Quando se refez, com os olhos vermelhos e arquejante, ela viu ser de bom aviso mudar de assunto, para que não fosse tentado por outra graça.

Antes que ela pudesse falar, Emory ergueu a cabeça: -Olhe! Não são os cavalos? -Puseram-se à escuta. -Sim! - exclamou. -É William.

Ergueu-se para ir receber o marido, e então Lady Hulme disse alto o que tinha estado a pensar:

-Gostas do marido de Emory... verdadeiramente, quero dizer?

-Como pode alguém gostar de William? - respondeu o conde, com uma voz finalmente razoável. -Há nele qualquer coisa de febril.

-Pareceu-me hoje bastante frio.

-Esse é dos tais que ardem por dentro, como aquele sujeito da índia com quem jantámos uma vez em Randford. Não sei como o conde se sentia, mas, quanto a mim, fiquei aliviado quando me pude retirar.

«Aquele sujeito» era um homenzinho moreno chamado Mohandas Gandhi. Tinha vindo à Inglaterra para fazer confe­rências e negara-se a vestir roupas próprias e a comer os devidos alimentos. O Governo fora obrigado a reconhecê-lo, contudo, e apareceu uma horrível fotografia sua, em companhia do Rei e vestindo quase nada-apenas o lençol, ou que quer que fosse em que ele enrolara a sua nudez. Parecia que, quando alguém vinha a um país civilizado, se devia comportar melhor. Quando o conde de Hulme murmurara isso por detrás dos seus bigodes para o conde de Randford, este sorrira, dizendo por sua vez

-Você é muito simples, meu caro amigo. Gandhi é muito astuto. O seu domínio sobre as massas da índia é imenso justa­mente porque veste apenas o lençol. É o que os camponeses usam e gostam de pensar que um deles veste o mesmo diante de você, de mim e até diante do Rei. Se Gandhi vestisse calças listradas e casaca, pensariam que ele os havia traído.

O conde de Hulme ficara estupefacto com tamanha independência e achava agora que, se se tivesse feito então alguma coisa contra isso, a índia não estaria a pensar em apartar-se do Império. Que aconteceria ao Mundo se se permitisse que os homens compa­recessem na presença dos seus superiores vestidos como guarda­dores de cabras? Havia atentado bem no homenzinho cujo perpétuo sorriso era singularmente frio, e, depois de uma hora de observação, discernia por detrás da frieza o que ele chamava febre. Reconhecera-a porque já a vira antes. Tinha sido um cura que havia tentado melhorar a habitação dos rendeiros, quando ele era garoto, e vira o velho duque seu pai explodir num acesso de fúria

-Leia a sua Bíblia! -trovejara o velho fidalgo para o alto cura com olhos de fome. -Diz a Bíblia que eu devo colocar os meus rendeiros em palácios?

-Diz que os fortes devem aguentar a carga dos fracos - replicara o louco.

Tinha sido o fim do cura. Matara-se tão fàcilmente como se tivesse passado uma corda pelo pescoço. Caiu em desgraça e nunca mais se ouviu falar nele. Mas o jovem Malcolm, ao obser­vá-lo, tinha sentido a febre arder por dentro daquela magra figura. No último dia, quando pensava que o cura já se tivesse ido embora, encontrou-se cara a cara com ele no parque. O homem andava por ali, exactamente à espera de tal encontro.

-Malcolm-foi como o homem realmente se atrevera a chamar-lhe. -Malcolm, você é novo e talvez me oiça.

-Não compreendo - replicara ele, irado e recuando ante tamanha ousadia.

-Não me procure compreender agora - respondera o homem. A febre estava então no mais alto grau. Podia ver-se as chamas ardendo nos seus olhos claros. -Lembre-se apenas de uma coisa: se os famintos não forem alimentados, sereis arrancados disso tudo. A hora aproxima-se, não se esqueça, em que os grandes terão de salvar-se a si próprios. Advirto-o, Malcolm: oiça a voz de Deus!

Dera meia-volta, deixando o cura ali plantado, e retirara-se sem olhar para trás.

-Disparate! - dizia agora Lady Hulme. -William é um homem muito simpático. Não lhe vejo a mínima semelhança com nenhum hindu, para não falar naquele sujeito esquisito.

Parou, vendo como o Sol brilhava através da garrafa de vinho do Porto. Achou que era uma pena não provar tão belo líquido. Se o seu nariz ficasse vermelho, não importava-o pobre Malcolm desde muito tinha deixado de notar como ele parecia. Serviu-se lentamente de um cálice do Porto, com o Sol a filtrar-se através do vinho carmesim.

Lá fora, no suave crepúsculo inglês, Emory escutava os últimos fragmentos de uma conversa sobre tractores americanos.

-Ainda não posso dizer se será bom ou mau - dizia Michael. -Só sei que está acontecendo alguma coisa de novo na Alemanha e na Itália. De novo, ou talvez de muito antigo, não sei. Se sair bem, será uma nova idade para a Europa e, portanto, para o Mundo. Não creio, porém, que tenha êxito.

-Mas acredita que a democracia vai agir profundamente na Europa?

-Não - replicou Michael com impaciência. -Refiro-me a Hitler e Mussolini. Eles não têm educação. Ponha-se um homem comum no alto e, uma vez em dez, não saberá guardar as medidas.

Vendo certa reserva no olhar de William, Emory exclamou: -Que tolice, Michael! Como se todos nós não fôssemos comuns, no fundo! Quem era o primeiro conde de Hulme? Um alcaide de Hulme Castle, e que traiu o rei.

Michael era teimoso. -Justamente o que estou a dizer! Ele não soube guardar as medidas. Pensou que era maior que o rei.

-Que lhe aconteceu? -perguntou William, com incontida curiosidade.

-Ora! - disse Michael-houve um longo cerco, e o nosso arrogante antepassado foi compelido à obediência pela fome. -Ergueu o chicote e apontou: - Ainda ali estão as marcas da batalha, embora já tenham passado mais de quinhentos anos.

William fitou as antigas cicatrizes nos grossos muros de pedra.

-Um bom argumento contra isso de todos terem alimento bastante - disse ele pensativamente. -O alimento é uma arma. A melhor arma do Mundo, talvez!

O dia terminou tranquilamente como de costume, mas Wil­liam esteve inquieto durante a noite e levantou-se cedo. Desejava, explicou a Emory, ir à Alemanha e ver por si próprio. Foram, pois, à Alemanha.

Em Berlim, resolveu subitamente que Emory conhecesse Pequim. Visitara Hitler e ficara tranquilizado. Fora da confusão do após-guerra e das loucuras do governo de Weimar, Hitler empenhava-se em construir a fé do povo alemão em si próprio e no seu destino. Todo o país estava a despertar do desespero e do desânimo. Os comboios eram limpos e cumpriam os horá­rios, e o espectáculo de Berlim era animador.

-Não vejo nada aqui que nos possa preocupar - disse Wil­liam com alguma surpresa. -Não sei a que se referia Michael.

Depois da sua entrevista com Hitler, ficou ainda mais opti­mista. -O homem é um condutor- - disse ele a Emory-, uma figura carlyleana. -Foi então que William resolveu ir à China, dizendo à esposa que ela só o poderia compreender inteiramente depois de conhecer a cidade onde ele havia passado a infância. Tomou um grande avião holandês que os levou à índia e a Sin­gapura, seguindo depois para a China. Da índia, Emory nada viu nem pediu para ver. A família de Cecil estivera ligada à índia, e a sua curiosidade morrera consigo.

Passaram quase duas semanas em Pequim. Vaguearam entre os palácios, agora franqueados aos turistas, e William percorreu as salas decoradas, os pavilhões esculpidos, procurando a sala do trono, aonde sua mãe o levara a ver a Imperatriz.

-Ainda poderás lembrar-te, depois de tanto tempo, William? -perguntou Emory, incrédula.

-Lembro-me da Imperatriz como se ela me tivesse deixado uma marca - respondeu ele.

Afinal encontrou a sala e o próprio trono, mas em que estado! -É aqui - disse William.

Pararam em silêncio, olhando em torno. As portas já não tinham grades, e os pombos haviam manchado o chão ladrilhado. O ouro que recobria o trono fora pouco a pouco arrancado pelos ladrões, e até o guarda que preguiçava no pátio lhe ofereceu uma sagrada telha amarela por um dólar chinês. William meneou a cabeça.

-Quem sabe- - disse Emory em voz baixa-se algum dia o Palácio de Buckingham não estará assim?

-Não posso conceber tal coisa - replicou William e, como se não pudesse suportar a vista daquilo, afastou-se súbitamente. -Vamo-nos embora. Já vimos.

-Talvez fosse melhor não o ter visto-insinuou ela. -Seria melhor recordá-lo como fora.

William não respondeu.

Notara a mesma decadência na casa da missão onde nascera e que fora o seu lar. Não se achava deserto. Um pequeno missio­nário lá estava, um homem pálido que abriu a porta, uma sombra de homem, pensou William com desprezo, um insignificante indivíduo que tomara o lugar de seu pai! O homenzinho de óculos olhava espantado para eles.

-Era esta a casa do Dr. Lane? -perguntou William, sem revelar quem era.

-Foi há muito tempo - disse o homenzinho.

-Podemos visitar a casa? -inquiriu Emory. -Nós conhe­cemos o Dr. Lane e a sua esposa.

-Suponho que sim... Minha esposa não está agora... Foi à reunião das missionárias.

-Não tem importância - disse William, de súbito. -Não tenho vontade de visitar a casa.

Retiraram-se, e ela compreendeu que William estava a pen­sar em seu pai. Pensava muito no pai durante aquela estada em Pequim-algumas vezes com a antiga amargura, mas quase sempre com um invejoso espanto da felicidade em que seu pai parecia ter vivido.

-Meu pai estava apoiado na sua fé - disse William. -Muitas vezes invejei a sua capacidade de crer.

Emory disse nesse momento o que vinha pensando desde muito. -Acho, William, que deves procurar um padre. Um padre católico, se for possível.

Ele voltou para ela o seu olhar escuro. -Porquê? -Mas Emory adivinhou que não ficara surpreendido.

Ela respondeu-lhe com o seu olhar de bondade. -Eu não posso dar-te paz - disse ela. -Se é de paz que precisas...

Ele negou abruptamente: -Não preciso de paz.

-Ou seja o que for de que precisas-emendou ela.

William não respondeu, mas Emory não esqueceu o seu silêncio. Deixaram Pequim logo no dia seguinte e dentro de poucas semanas estavam em Nova York. William mergulhou num tra­balho febril.

Entregue a si própria, Emory saía mais do que antes. Até ela começava a estar inquieta. O Mundo era tão estranho, tão cheio de horríveis possibilidades!

Alguns meses depois, num cocktail, Emory notou uma figura invulgar, que a levou a pensar na inesquecida conversação em Pequim. Um alto padre de batina estava parado junto à porta. Tinha uma face angulosa e, quando olhava calmamente para ele enquanto bebia chá em vez de cocktails, viu as suas rudes mãos fortemente entrelaçadas. Tinha cabelo castanho escuro e pele corada. Como se sentisse o seu olhar, o padre fitou-a. Os seus olhos eram muito azuis. Ela voltou a cabeça e, ao mesmo tempo, sentiu um par de mãos pousar-lhe nos ombros. Erguendo os olhos, viu Jeremias Cameron e sorriu-lhe. -Jeremias, seu tratante, você e Ruth não vieram ver-nos desde que chegámos!

-Ruth ainda está na praia com as crianças. Voltará segunda­-feira. Aqui está alguém que deseja falar-te. Emory, o padre Malone... A minha cunhada, Lady Emory Hulme ou Mrs. Wil­liam Lane, como queira.

Ela viu que Jeremias tinha estado a beber. Tinha as pupilas dilatadas, os olhos avermelhados e as faces congestionadas.

Ela voltou-se para sorrir ao padre Malone. Este curvou-se sobre a mão dela. -É na verdade com seu marido que desejo falar e isto explica a minha presença num local tão estranho a mim - proferiu ele numa voz áspera. -Acabo de chegar da China, onde creio que seu marido nasceu.

-Oh, estimo muito. -Havia uma genuína alegria na sua voz. -Porque não vai comigo para casa agora? Podemos conversar um pouco enquanto meu marido não chega. Ele virá tarde. Nós estivemos na China.

-Ouvi dizer - limitou-se a responder o padre Malone.

-William esteve hoje a ver as fotografias do padre Malone - - disse Jeremias. --Fotografias maravilhosas... algures na China, naturalmente... crianças como ratos mortos, com aqueles bra­cinhos e perninhas... Maravilhoso! Ele não tinha tempo de falar com o padre Malone e mandou-o para mim. Suponho que ele quer as fotografias.

-É a fome - disse o padre simplesmente. -Eis porque estou aqui. Fui mandado para angariar fundos.

Os seus olhos escuros eram magnéticos. Emory viu-se a olhar para ele, sem desviar os olhos suficientemente depressa. Ele não se importava que alguém se demorasse a fitá-lo, e não houve resposta individual sua a uma bela mulher.

-Vamos. -Ela ergueu-se impulsivamente.

A graça controlada dos seus movimentos era consciente, mas nem por isso menos graciosa. Retiraram-se, o padre como uma bela mas ascética sombra atrás dela e, no confortável automóvel à prova de som, correndo através do tráfego vespertino em perfeita calma, ela teve ocasião de lhe fazer perguntas. O padre Malone respondeu com simplicidade e franqueza, ou assim ela o julgou. Sim, tinha estado muitos anos na China, mas não em Pequim, ou nas grandes cidades, mas na sua própria missão, numa região do interior. Era um padre rural e estivera vinte anos ali.

-Devia ser muito novo quando foi para lá.

Sim, ele tinha ido bastante novo para a China, com pouco mais de vinte e cinco anos. Fora ajudar um padre mais velho, que morrera anos depois, de cólera, e então continuara o trabalho do outro,

-Eu não penso no êxito. -A sua voz grave, muito expressiva, fazia música de qualquer palavra. -No longo progresso da Igreja, o trabalho de um homem é apenas um elo na cadeia da Eternidade.

-Creio -- - disse ela com propositada franqueza - que o senhor me tenha sido enviado neste particular momento. Não pretendo ser uma mulher religiosa, pois basta olhar para mim para ver que não o sou. Mas amo meu marido e ele necessita de alguma coisa que eu não lhe posso dar. Ele é um homem naturalmente religioso e não o sabe. Enriqueceu tão depressa... O senhor sabe que o pai dele era missionário.

-Sei, sim-- - respondeu o padre Malone. -Por isso é que vim falar primeiro com ele... Por isso e pela sua grande riqueza.

-O pai dele era protestante, naturalmente - prosseguiu Emory. -Não o conheci, mas deixou uma impressão indelével na alma de William. O filho, sendo muito inteligente escassa­mente aceita a religião que o pai professava. Necessita de algo mais subtil, por assim dizer.

-A Igreja tem de tudo para todas as almas - disse o padre Malone. A sua voz, tão cheia de confiança, a sua bela cabeça bondosa de frente para o torvelinho das ruas, renovava a admira­ção de Emory sem lhe abalar o coração. Mas nesse tempo o seu coração não tinha anseios místicos.

O pesado carro parou em frente à casa, o motorista saltou e abriu a porta. Subiram os degraus de mármore. O ar do crepúsculo era suave e frio, e as luzes da cidade palpitavam. No topo da escada Emory tocou a campainha e, num impulso que parecia súbito, ergueu os olhos para o alto sacerdote.

-Eu sou muito feliz. Quero que meu marido também seja feliz.

-Porque não? - respondeu o padre. Embora celibatário e monástico, sorriu para ela e, com esse sorriso, tornou-se seu aliado.

 

William, vindo mais tarde do que prometera, parou enquanto Henry pegava nas suas coisas. Ouviu uma voz de homem. -Quem está aí? -perguntou.

-Um amigo da senhora. Um padre. A senhora trouxe-o para casa. Ele fica para o jantar, senhor.

Henry desapareceu e William subiu calmamente a escada. Mas porquê um padre? Sentia-se terrivelmente cansado e desejava estar sòzinho. O antigo sentimento de vacuidade estava de regresso, embora estivesse casado há tão poucos anos. Evitava tomar conhecimento disso. Se Emory não pudesse encher aquele vazio, então em parte alguma do Mundo ele encontraria paz. Negou-se a pensar em tal, e começou, em vez disso, a preocupar-se com coisas menos importantes. Jeremias, por exemplo, embebedando-se e entrando no escritório, para lhe anunciar o seu desgosto pelo seu trabalho e por tudo, e que não se resignaria e desejava ser despedido! Teria de falar com Ruth logo que ela voltasse. Ela não se devia demorar tanto naquela praia, deixando Jeremias à solta.

Ergueu os ombros de repente. Porque é que ele, na sua posição, havia de se preocupar com quem quer que fosse? A fami­liar superfície dura cristalizou-se-lhe sobre a alma e começou a vestir o «smocking», que o criado deixara à sua espera. Estava com fome. O dia na redacção fora longo e as provas do seu edi­torial mais erradas do que nunca. Teria de arranjar outro redactor. Parecia absurdo que os seus jovens empregados não pudessem ajustar-se às suas exigências. Conservava-os quando novos, dei­xando-os ir depois dos trinta e cinco anos, pois a mocidade era essencial para o estilo das suas folhas.

O seu espírito, percorrendo faces e homens, deteve-se em Seth James. Há muito tempo que não via Seth, mas sabia tudo o que Seth havia feito desde o êxito da sua peça em Broadway. Seth fundara outro magazine, que havia falido. Os agentes pri­vados de William disseram-lhe que Seth perdera com essa publi­cação mais de um milhão de dólares. Talvez fosse tempo de o trazer outra vez... se ele quisesse. Mas poderia Seth ser conven­cido? Devia falar com Emory a esse respeito e conseguir, talvez, que ela procurasse Seth.

Não lhe dissera que alguns dias antes se tinha encontrado com Candace na rua. Hesitara, sem saber se lhe devia falar se não. Ela resolvera logo a questão, estendendo-lhe a sua mão enluvada.

-William, naturalmente não vais passar sem me falar, não é verdade?

Ele tomou-lhe a mão, embaraçado, e tentou sorrir. -Não tinha a certeza de que me queria falar.

-Não há razão para que eu não queira falar contigo, William. -Como está teu pai?

-Envelhecendo... Dorme muito... Sempre numa santa paz... -Espero que ele não me queira mal... -Ele não quer mal a ninguém.

Estavam parados entre duas correntes de transeuntes. Ele teve medo de que algum dos malditos cronistas de mexericos os pudesse ver juntos e espalhasse uma história num jornal ou na rádio. Seria intolerável e, por isso, ergueu inopinadamente o chapéu e deixou-a. Não havia razão para contar tal coisa a Emory. O seu encontro não significava nada.

Depois de se ter vestido, dominou-o novamente o sentimento do vácuo. Era mais que vacuidade. Sentia algo de estranho que lhe corroía o coração e que não podia explicar. Que fazia ele de mal? Conseguira tudo. Desde muito deixara de se preocupar com o dinheiro que tinha. Tinha muito mais do que poderia possivelmente gastar com os seus gostos frugais e decentes. As suas casas eram belas e tinham de tudo e dava a Emorv uma mensa­lidade extravagantemente considerável. Com Candace também não fora mesquinho e os seus dois filhos tinham mesadas além das suas necessidades. A doação anual que destinara à missão de seu pai constituía um sólido pecúlio com que poderiam fazer muita coisa. Conseguira para sua mãe uma anuidade de dez mil dólares. Tinha feito tudo quanto devia fazer.

Deveria talvez ter entrado há muito na política, em vez de organizar os seus jornais. Este pensamento, perturbando-o, fez com que se sentasse na sua poltrona de couro. Fechou os olhos. As pequenas e felpudas mãos enclavinharam-se nos braços da cadeira. Não se devia ter contentado com o poder de modelar o espírito do povo escolhendo as fotografias que deviam ver, as notícias que deviam ler, as ideias, em suma, que deveriam ter. Isso era apenas um governo passivo. Não havia nada de estável na América. Esse país que William desejava amar, e que amava com receio, cólera e desdém, não tinha alicerce de classe, um elemento dirigente como a Inglaterra. A riqueza era a sua única vantagem. William desprezava a simpatia pessoal e sabia que não possuía nenhuma. E contudo, sem isso, bem sabia que não poderia vencer na América, no seu próprio país. Ah! Quando pensava naquele chefe da Casa Branca! Deixou de lado as ideias políticas e abriu os olhos. Não, ele não se rebaixaria até àquela sórdida corrida. E depois, se fosse derrotado? Tolice! Tolice! Ele era proeminente, tal como se achava, e era-o sem nenhum rival à vista. Que mais desejava ele do que já tinha? Desejava estar satisfeito consigo mesmo e não o estava.

Uma pancada à porta fê-lo levantar-se e ir até à janela: -Entre - disse ele.

-A senhora pergunta se o senhor está pronto - proferiu Henry.

-Já vou descer.

Passou pelo criado e desceu a vasta escadaria curva, confor­tado de momento, como às vezes lhe acontecia, com a vista da sua casa, as grandes e belas salas que se abriam para o enorme vestíbulo. Roger Cameron satisfizera-se com metade daquilo. Ao galgar aquela colina, anos atrás, não teria sonhado com tal vista, inteiramente sua.

Atravessou o vestíbulo e entrou na sala de estar, à direita. Um alto vulto ergueu-se à sua entrada, e ficou parado, com as mãos entrelaçadas. De uma poltrona de veludo vermelho, Emory disse:

-William, este senhor é o padre Malone. Esteve no teu escritório hoje, com algumas fotografias. Jeremias levou-o ao cocktail e eu trouxe-o cá, para que falasse contigo.

As fortes mãos desentrelaçaram-se e o padre estendeu a mão direita, sem falar. William sentiu-a .fortemente sobre a sua própria mão, muito mais pequena, e retirou-a logo.

-Lamento que estivesse ocupado quando mo anunciaram hoje no escritório - disse ele. Apanhou um cálice de «brandy» de uma bandeja de prata que o mordomo agora lhe oferecia.

O padre Malone sentou-se. Uma perfeita calma lhe enchia o ser e, do fundo dessa calma, olhava para William tão francamente que este foi obrigado a corresponder e mergulhou o olhar naqueles olhos de um azul profundo.

-O motivo por que eu o trouxe aqui - continuou Emory -é que o padre Malone vem de um lugar muito perto de Pequim, e pensei que os dois gostariam de conversar.

William sentou-se. -Ah, sim?

-Seu pai era missionário...

-Sim.

-Eu também sou missionário - disse o padre Malone após um momento. -Fui mandado por algum tempo para recolher fundos para os famintos. Trouxe comigo as fotografias que o senhor viu hoje. Desejava que o senhor as mandasse publicar, pois sei que os seus jornais são lidos por milhões de americanos, e estes poderiam ser influídos a enviar-me dinheiro para víveres.

-Recebo milhares de fotografias todas as semanas - disse William. -Talvez não me seja possível utilizar muitas das suas. Além disso, temos os nossos próprios fotógrafos, que sabem exacta­mente o que desejo.

-O senhor não se sente comovido com este apelo em prol dos famintos? -A profunda voz do padre era calma e inquisitiva.

-Hesito em meter-me nessas obras de auxílio - replicou William. -Nós duvidamos da sua real eficácia num país tão vasto como a China. A fome, lá, é endémica, pelo que me lembro.

-O senhor não se sente com nenhum dever para com aquele povo?

William, sem querer, olhou de novo para ele. -Sómente em memória de meu pai.

-O senhor está a renegar essa memória - disse o padre Malone. A sua voz era tão positiva que William se sentiu enco­lerizado.

-O jantar está servido - - anunciou, da porta, o mordomo.

Ergueram-se, Emory na frente, com o seu vestido cinza e rosa de tafetá, seguia-a o padre Malone, rígido e severo nas suas vestes negras, e William a pouca distância, no fim. As palavras do padre tinham-se-lhe cravado como uma espada no irado coração.

-O senhor tem estado a sufocar a sua alma - disse o padre Malone a William Lane. O sacerdote achava-se muito cansado. Estava quase completa a missão especial de que se incumbira quando viera a conhecer William Lane. Não tinha sido fácil. Muito mais difícil, na verdade, do que alimentar as crianças famintas e orar pelos camponeses ignorantes que constituíam o seu rebanho na China. A Igreja era complacente com os ignorantes. Não esperava que um camponês compreendesse os mistérios. Ir à missa, usar um escapulário, conhecer o nome da Virgem e de alguns santos era só o que ele exigia da sua gente. Nem mesmo na confissão insistia, pois como poderiam um velho ou mesmo uma donzela confessar-se quando não tinha noção do pecado? O conhecimento do pecado era para os seus filhos, a segunda geração, e o seu dever era instruí-los nesse conhecimento. Para a quinta geração, esperava ele um padre. A Igreja era infinita­mente paciente.

-O senhor renegou o seu Deus - afirmou ele.

Tinha-se demorado durante dias naquela vasta e perversa cidade porque compreendia que assim o devia fazer. Mas quando descobriu que a esposa daquele homem rico e poderoso via que seu marido procurava Deus, sentira-se incapaz de arcar sòzinho com tamanha responsabilidade. Fora falar imediatamente com o seu superior local, Monsenhor John Lockhart, para lhe pedir instruções.

John Lockhart era inglês, um padre de alto intelecto e con­vicção, que poderia ter chegado a cardeal se fosse ambicioso. Mas não desejava entrar nas mais altas esferas, onde, pensava ele, embora sem deslealdade, o ar não era tão puro como deveria ser. Os príncipes da Igreja eram sujeitos, talvez, a algumas das tenta­ções dos reis terrenos. Isso não o impedia de acreditar que a Igreja era o melhor meio jamais imaginado e desenvolvido para guia e domínio da' fraca e culposa natureza humana. Ele escutou cuida­dosamente aquele humilde padre da China que estava sentado na ponta da cadeira e falava com desalento sobre William Lane.

-Um homem empedernido no seu orgulho - disse Mon­senhor Lockhart, depois de o ouvir. -No entanto, testemunhou o sentimento religioso de seu pai e não o pode esquecer. Foi educado com uma consciência. Repudiou-a até agora. Mas, como o senhor acaba de me dizer, basta olhar para o seu rosto para ver que a consciencia o atormenta.

-E saberá ele que se trata realmente da sua consciência?­perguntou o padre Malone.

-Não. O seu dever é fazer com que ele o reconheça - - respondeu monsenhor.

O padre Malone não respondeu. Continuava sentado na ponta da cadeira, com as mãos entrelaçadas à sua maneira habitual.

Ele sabia o que era um padre missionário, um lenhador e um aguadeiro dos palácios da Igreja!

-Nas épocas de fome, sei que muitas almas são arrastadas para a Igreja-continuou monsenhor. -O nosso dever é alimentar o corpo e a alma. Mas às vezes há um único homem que pode ser, em dado momento, mais valioso para a Igreja do que dez mil homens, e William Lane é um desses. Ele é poderoso e não sabe o que fazer do seu poder. Procura dirigir, mas ele próprio necessita de direcção. Na sua inquietação, casou-se de novo, mas não pode satisfazer-se com mulheres. O seu anseio é espiritual.

O padre Malone ouviu e, quando se viu de novo a sós, orou para que pudesse ver claramente o que devia fazer. Não se atrevia a aproximar-se directamente de Deus com as suas próprias palavras, mas, enquanto seus lábios murmuravam as belas sílabas latinas, o seu coração filtrava nelas o seu próprio desejo de arrastar para Deus aquele singular e poderoso homem. A tarefa não era fácil, e ele sabia, na sua humildade, que a não poderia completar. Seria necessário um sacerdote de mais hierarquia, um espírito mais arguto, para terminar a missão, talvez o próprio monsenhor. Havia em William momentos que um padre comum como ele não poderia atingir os abismos de que ele se afastava.

-O senhor já me disse mais de uma vez que eu reneguei a Deus - dizia William agora com alguma impaciência. -Não tenho consciência de o ter feito.

O padre Malone ficou alarmado com a fúria dos olhos de William e a veemência da sua voz. Tinha vivido muito entre um povo gentil, de quem sentia a falta agora. A sua alma detestava o luxo em meio do qual estava vivendo. Por ordem de monsenhor, continuava a aceitar a hospitalidade de William. E tinha um quarto e uma casa de banho ali naquela casa forrada de veludo. O leito era macio, e ele não podia dormir ali; na primeira noite, deitara-se no soalho, mas até o soalho era macio, pois era forrado com dois tapetes. Como o quarto de banho era todo de mármore, foi lá deitar-se, mas descobriu que o chão era aquecido por um encanamento interior. Suspirava pelo chão de terra batida da sua cela, pelas frias manhãs da China Setentrional e a tigela de papa. O brilho da prata e o fumo das comidas quentes sobre a toalha rendada, ali naquela casa, davam-lhe uma sensação de pecado. Como poderia falar ali de Deus? E a mulher, sempre a falar-lhe do muito que fazia pelo marido e sem prestar a mínima atenção ao que ele próprio lhe dizia!

Ia cada vez mais repetidamente pedir conselho a monsenhor, e apenas dois dias antes lhe dissera, durante a sua última visita:

-Não seria bom separar o homem do luxo que o cerca? Como encontrarmos a sua alma quando ela está afundada no meio de tudo aquilo?

Monsenhor fitara-o do fundo dos seus olhos perspicazes:

-Separar em que sentido? -perguntou.

-William Lane é no íntimo um asceta - respondeu o padre Malone. -Tem muito, mas come pouco e os seus hábitos são frugais. Não bebe muito vinho e fuma pouco. Faríamos dele um padre se o pudéssemos conservar na solidão. Se eu o pudesse levar para a minha aldeia, poderia induzi-lo a amar o povo, que é o princípio da virtude.

-Com que fim? -inquiriu o superior.

O padre Malone ficou atónito. -Com o fim de salvar a sua alma!

Monsenhor ergueu-se e pôs-se a andar pela sua biblioteca. Era uma nobre sala, e as estantes de mogno iam do soalho ao tecto. Possuía a mais bela biblioteca religiosa da América e contava-se entre os seus mais ilustres prelados, apesar da sua falta de ambições eclesiásticas.

-O senhor está a ir além do seu dever - disse ele secamente. -Eu disse-lhe apenas que despertasse a sua alma.

-Assim o fiz - respondeu o padre Malone. Sentia-se quase tão pouco à vontade ali como na casa de William. Não lhe competia discutir o estalão dos seus superiores. O próprio Santo Padre vivia num grande palácio que era uma das maravilhas do Mundo. Deus usava tanto a riqueza como a pobreza para a Sua própria glória, lembrou-se ele.

-Continue então, até receber as minhas instruções ulteriores - disse monsenhor.

Assim o padre Malone voltou de novo para a opulenta casa. Naquele momento, contudo, quando se achava sentado a sós com William na silenciosa e rica sala tão distante da vida que ele conhe­cia, sentiu que certamente chegara o fim do seu trabalho e que devia pedir ao seu superior que o dispensasse. Sabia que William renegava o seu Deus, pois sentia negação em tudo ali, em William e na sua esposa e na própria existência daquele palácio e de tudo o que ele continha. Mas não podia explicar o que sentia. Monsenhor não aprovara a sua referência à pobreza. Se não fora essa desaprovação, diria francamente a William: «Deixe tudo isto e siga a Nosso Senhor». Mas não se atrevia a dizê-lo. Sentia-se perplexo e cansado e, a despeito das suas recusas, sabia que tinha comido muito opiparamente. Sentado na cadeira de espaldar, que escolhera porque era a única que tinha assento de madeira, entrelaçou as rudes mãos.

-Já é tempo de o deixar - disse a William. -Fui desta­cado por Deus para lhe lembrar seu pai e a terra em que nasceu e encaminhá-lo a pensar nestas coisas. Além disso não posso ir. Devo recomendá-lo a monsenhor Lockhart, que é mais sábio do que eu. Não tenho grande instrução. Os meus livros são pouco mais de cem. Ele tem milhares de livros nas suas estantes, e em muitas línguas. Está continuamente em comunicação com os que conhecem o Santo Padre, cujo rosto jamais verei.

William não deixava de reconhecer tal coisa. Na verdade fora abalado até o fundo da alma por Malone. Invejava ao padre a sua inabalável fé, a sua confiança na oração, a sua convicção do dever, a mesma fé, confiança e convicção que seu próprio pai havia possuído. Mas William não era capaz de ir além do impulso, da inveja e do desejo. O seu anseio espiritual fora aumentado e não satisfeito. A sua solidão era maior e não menor.

-Talvez o senhor tenha razão - disse ele. -Mas sinto-me muito agradecido pelo que fez.

-Não fui eu que fiz, mas Deus por meu intermédio. -Então agradeço a Deus. Talvez, apesar de ainda O não ver, meus pés tenham sido encaminhados para a senda. -Monsenhor Lockhart o guiará no resto do caminho-respondeu o padre Malone.

Depois disto, separaram-se. Em pouco tempo o padre Malone preparou a sua mala e agradeceu o oferecimento do automóvel de William. -Tenho de ir falar com o meu superior - e é a pouca distância, nesta mesma avenida. Deixe-me andar. Assim me sen­tirei a caminho da minha terra.

William era arguto bastante para saber o que ele queria dizer, e deixou-o partir.

Quando Emory voltou à tardinha, logo sentiu a falta da ter­ceira presença na casa. Fora como de costume ao cabeleireiro fazer o seu penteado, e Henry, ao abrir a porta, disse-lhe que o patrão não tinha ido ao escritório. Encontrou William no pequeno salão que utilizavam como sala de estar quando se achavam a sós. Estava estendido na espreguiçadeira, a olhar para as brasas de um fogo moribundo. Não acendera as luzes, e havia uma estranha atmosfera de vida e morte na sala. Ela deu volta ao botão junto à porta e as luzes acenderam-se.

-Estás doente?!

-Não. Estive a pensar toda a tarde. O padre Malone foi-se embora.

-Sim?

-Diz que quer que eu vá procurar monsenhor Lockhart. Pensa que é tempo.

Ela aproximou-se, ajoelhou-se a seu lado e colocou uma das mãos sobre as suas, que estavam juntas sobre o seu corpo.­William, deves fazer sòmente o que quiseres!

Ele retirou um tanto bruscamente as mãos. -Ninguém me pode fazer agir de outra maneira!

-Mas trata de te certificar do que eles querem.

-Não és nada lisonjeira comigo, Emory. Sou geralmente considerado esperto.

Ele estava decidido a ser melindrado, e ela recusou-se a fazê-lo. -Eu é que estou sendo estúpida. --Ergueu-se e sentou-se numa cadeira em frente. -Está muito calor aqui. Não queres que eu abra a janela? -A casa, com o seu aquecimento central, era sempre demasiado quente para o seu sangue inglês.

-Não estou com calor.

-Acho que é porque acabo de vir da rua.

Ficou sentada ainda alguns momentos. Depois, lançando um olhar a William, ficou inquieta com a sua palidez. Ergueu-se de novo e foi encolher-se no chão a seu lado. Tomou-lhe uma das mãos, encostou nela as faces e fez-lhe uma queixa que jamais tinha feito antes.

-Tu não me amaste todo o tempo em que o padre Malone aqui esteve. -Pôs a palma da mão dele contra os seus lábios vermelhos.

As mulheres americanas com quem ela começava a dar-se apraziam-se em confidências um tanto cínicas. «Nós não conhe­cemos um homem enquanto não tivermos dormido com ele», era o credo comum. Eram todas saudáveis e belas mulheres, para quem a castidade não constituía uma jóia sem preço. Mas nenhuma delas consideraria a possibilidade de um amante, pois os seus mari­dos eram, além de mais ricos do que quaisquer amantes que apa­recessem, homens de posição que elas não faziam nenhuma questão em trair. A diferença entre os homens, reconheciam francamente, estava mais nos seus depósitos nos bancos do que nas suas pessoas.

Consideravam-se mulheres extraordinàriamente afortunadas, e assim pretendiam viver virtuosamente. Mas Emory era virtuosa por natureza.

Ela sentiu a palma da mão retesar-se sob os seus lábios. Era impossível a William falar de amor. Esmagou a boca contra a sua palma, sentindo-lhe o gosto de sabonete e sais. Se dentro de um momento ela não correspondesse, ela riria de si própria, brincando com ele por causa da sua gravidade.

Nessa noite, porém, reconheceu os sinais familiares, a tensão dos nervos e músculos, a resposta dos seus dedos um tanto curtos e estranhamente desajeitados. Ele sentou-se subitamente, puxou-a contra si e ela reteve a respiração. Era sempre abrupto nessas ocasiões, mas Emory estava acostumada. Ele tinha necessidade de a dominar e, embora ela tivesse resistido no princípio, agora já não o fazia. O sexo para uma mulher não era nada. Não expressava nenhuma parte do seu ser. Era um acto de jogo, uma cessão simbólica, um agradável gesto, bom de receber e de dar, uma coisa para esquecer, os preliminares de uma possível experiência de maternidade, com que o homem pouco tinha a ver. Resolvera não ser mãe ao ver Will e Jerry. Candace dera filhos a William, e Emory adivinhava que mais filhos não teriam significação para ele nem para ela. Com a morte de Cecil, deixara de sentir qualquer necessidade de ter um filho. Adivinhava também que William não fazia questão nenhuma de filhas.

-Fecha a porta - ordenou-lhe William. Emory tinha um corpo saudável e não se recusava a nada do que William lhe pedia. Aceitava o sexo da mesma maneira como apreciava uma taça de chá ou um alimento. Nada havia de misterioso quanto a isso, nem mesmo de muito interessante. O interessante era William. Ela conseguia conhecê-lo melhor nesse breve quarto de hora ocasional do que num mês de vida. Havia algo de cruel nele... não, não de verdadeiramente cruel, mas ele tinha uma terrível necessidade de estar certo de que estava com a razão. Durante a sua infância e juventude, fora de tal modo ferido no seu amor-próprio que, agora, era ele o melhor, o , que sempre sabia mais... Mas a sua confiança própria, a sua vontade, o seu autoritarismo não tinham base sólida. Algumas vezes, depois que ela lhe obedecia totalmente, a sua autoridade caía. Ele não podia continuar. Não estava seguro de si próprio. Mas porque não? Quem o ameaçava agora?

Assim aconteceu nessa noite. Naquela tranquila hora entre o dia e a noite, quando os criados estavam ocupados nas remotas regiões da casa, tinham ambos a completa intimidade que ele queria. O padre Malone fora-se embora. Isso não poderia ter acontecido se ele ainda estivesse em casa. E, ainda assim, William não teve êxito. O fiasco veio, como algumas vezes antes. Mas por­quê nessa noite?

Ela esperou um momento para se certificar de que assim seria. E assim foi. Ele estava exausto, sem ter havido satisfação. Emory aconchegou a cabeça contra ele e começou a acariciar-lhe gentil­mente a mão. Ele não dissera uma palavra. Nunca dizia nada.

A situação prolongou-se por um tempo que parecia interminável. Afinal, nalguma parte, muito longe, o gongo bateu, anun­ciando que faltava apenas meia hora para o jantar. Ela deixou cair a mão e sentiu-se aliviada. Melhor sorte, quem sabe, da próxima vez!

-Acho que o padre Malone tinha razão - disse ela na sua voz habitual. -Penso que deves ir procurar monsenhor Lockhart.

 

QUANDO rebentou a Segunda Guerra Mundial, Clem pareceu não lhe ligar importância, numa espécie de fatalismo.

-Não vais fechar agora os restaurantes? -per­guntou Henrieta, agora que o povo estava novamente a trabalhar no esforço de guerra.

-Tenho pensado nisso - respondeu Clem. -Não quero ficar com o negócio dos restaurantes. Creio que os vou passar aos meus camaradas. Podem estabelecer-se onde quiserem, ou ficar onde estão. Mas tem de prometer-me que continuarão a dar comida gratuita, quando for necessário.

-Uma vez que ganhem dinheiro, creio que isso não lhes fará diferença - disse Henrieta. Os chineses sempre podiam cuidar de si próprios com ancestral prudência.

Por aquela época, o Governo ordenara que os excedentes fossem directamente distribuídos aos necessitados. Ninguém sabia em que medida era isso proveniente desde certo dia em que Clem se sentara em frente daquele fabuloso homem da Casa Branca que se não podia levantar a não ser que alguém o ajudasse. Clem deu-se bem com ele. Tentava lembrar-se de que o homem atrás da grande mesa coberta de pequenos objectos era o Presidente dos Estados Unidos, mas na maior parte do tempo esqueceu-se disso. Falaram sobre o Mundo. O homem detrás da secretária mostrava extraordinário conhecimento e também profunda ignorância, e não se importava que alguém o notasse. Clem tentou falar-lhe sobre a China e depois desistiu. Havia muita coisa que o homem não sabia. Pouco sabia também acerca da índia e pensava que o seu unico problema era o excesso de população. Clem procurava labo­riosamente fazer-lhe compreender que isso não era verdade. A Índia poderia produzir muito mais alimento para muito mais gente.

-A China, por exemplo, é quase auto-suficiente em alimento - disse Clem. -Não importa quase nada. Produz imensa quanti­dade de alimentos.

-Parece-me ter ouvido falar em chineses famintos durante toda a minha vida - replicou o homem com o seu largo sorriso.

-É porque precisam de caminhos de ferro e de estradas de rodagem - observou Clem. -Não podem transportar os excedentes. Definham em pontos isolados. É a situação mundial numa grande casca de noz. Antes de conseguir uma paz estável, temos de ser capazes de transportar os excedentes.

A guerra tinha rebentado na China e na Europa e isso signi­ficava que, pelo menos na China, haveria menor número de novas estradas de rodagem do que nunca. Mas o grande homem ainda não se importava muito com a China. Isso viria mais tarde. Clem retirou-se atraído e perplexo. O grande homem não via o Mundo como se fosse uma bola. Para ele o Mundo era plano. Não podia imaginar o outro lado. Teria o Mundo inteiro de arder nas chamas da guerra antes que o grande homem compreendesse que o Mundo era um grande globo.

Nunca fora fácil a Clem escrever cartas, mas, quando voltou para junto de Henrieta, iniciou uma série de epístolas que repre­sentavam o esforço que empregava para educar o homem que não sabia que o Mundo era redondo. Às vezes essas cartas eram longas, mas geralmente não. O grande homem nunca respondia nem acusava o seu recebimento, mas Clem esperava que ele as lesse. Procurava pôr nelas tudo o que sabia, incluindo excerptos das cartas de Yusan.

«Naturalmente devemos ajudar a varrer os japoneses da China agora-escreveu Clem-, mas este é, apenas, o primeiro passo. A guerra realmente começou quando os deixámos apode­rar-se da Manchúria. E o verdadeiro trabalho virá depois da guerra, quando Chiang Kai-shek tiver de unir o seu povo. É mais fácil para um soldado continuar a lutar do que estabelecer a paz necessária. Da próxima vez serão os comunistas, certamente, e isso devemos levar em conta. A minha opinião agora é darmos alguma demonstração de amizade ao povo da índia, para ir ganhando a amizade da Ásia. Bem sei que não quereis influir em Winston, mas bem poderíeis dizer algumas palavras em intenção da Índia, na vossa próxima palestra radiofónica, o que igualmente agradaria a milhões de indianos e de chineses. Se haveis de dizer que acredi­tais na liberdade dos povos, dizei-o agora, nesta mesma semana, que é um momento crucial, e isso muito significaria. No próximo mês será demasiado tarde. Todos eles estão à espera».

Clem comprara o seu primeiro rádio especialmente para ouvir o presidente, mas este não disse uma única palavra a respeito da índia ou da liberdade dos povos, na sua próxima palestra. A famosa voz vibrava sonoramente no ar. «Meus amigos...», mas não alcançava a China, a índia, ou a Indonésia. Clem ouviu até às últimas palavras, fechou o rádio e ficou tão sombrio que Henrieta ficou preocupada. Ela e Clem já não eram novos, e ela bem desejava que ele deixasse, finalmente, de se preocupar com o Mundo. A outros isso competia e, se o não faziam, não havia remédio. O estômago de Clem melhorara muito depois da depressão, mas, com aquela Segunda Guerra Mundial, estava novamente a piorar.

Quando Henrieta se referia ao seu mal estar, Clem não lhe dava ouvidos. -Estou acostumado com o meu estômago agora. Ele ainda me não venceu.

-Nem tu tão-pouco o venceste, Clem - replicou ela com severidade. -É uma contínua luta, e bem o sabes.

Clem sorriu para ela, embora não houvesse nada de que se sorrir. Pearl Harbour causara-lhe internamente tanto dano como nas Ilhas Havaianas, e não se animava a dizer a Henrieta que haviam voltado todos os seus antigos sintomas e que tinha medo de comer.

Quando os Estados Unidos, finalmente, entraram na guerra, ofereceu-se como supervisor da alimentação e encarregaram-no do rancho dos acampamentos de Dayton. Enquanto a guerra prosse­guia e ele ainda continuava a sua educação epistolar da Casa Branca, Clem contribuiu para a alegria de alguns milhares de jovens americanos com excelente alimentação e agradáveis refei­tórios, onde era permitido fumar e ter canários trinando nas gaiolas.

O próprio Clem achava, no entanto, que isso não passava de uma ninharia. Estava apenas passando tempo até ao fim da guerra, quando pretendia ordenar todas as suas teorias num vasto evan­gelho e apresentá-las à Casa Branca e depois às nações. Há muito que havia esquecido a recusa de William e agora apenas lembrava a graça e bondade da esposa de William, e sonhava secretamente em falar de novo com William após a guerra, não para advogar uma teoria desta vez, mas com uma fórmula na mão, uma fórmula de um alimento tão barato que, até que o Mundo resolvesse o problema da distribuição, o povo ainda se poderia livrar da fome.

Montou um pequeno laboratório no porão da casa e, com Henrieta para o ajudar com os seus conhecimentos de química postos em dia com alguns novos livros, começou a trabalhar com a melhor soja que pôde conseguir, a soja que os chineses plantavam para sua alimentação. Clem cultivou-a em estufas e, enquanto a guerra continuava, conseguiu colher o suficiente para as suas experiências. Ele e Henrieta punham à prova uma fórmula após outra e estudavam-lhes o tempero e o grau de conservação.

-Temos de conseguir um verdadeiro químico de alimen­tação - disse-lhe um dia Henrieta. -Não sei como encontrar o gosto, que procuras, Clem. Nem mesmo sei o que seja.

-É como aqueles croquetes que eu comia na casa dos Fongs - replicou Clem pensativamente.

-Mas tu eras um garoto meio morto de fome, e tudo o que conseguias comer te parecia maravilhoso. -Sim, mas nunca os esqueci.

Clem jamais esquecia coisa alguma. Não esquecera como se sentia quando era um petiz esfomeado e isso fazia-o sabedor do que o povo sentia e o que desejava. O homem da Casa Branca poderia ter por intermédio de Clem uma temperatura exacta das populosas regiões da Ásia, mas parecia que não tinha necessidade de o saber. Neste meio tempo, Clem isolava-se da guerra e vivia nos anos vindouros, quando começasse o novo mundo.

-A guerra é apenas uma epidemia-explicou a Henrieta. -Se não a evitamos a tempo, lá virá um dia e temos de passar por ela. Estou contente por não termos tido filhos.

-Poderíamos ter tido uma filha...

-Não. É melhor assim. Ela estaria agora enamorada de um rapaz.

A longa evolução pela qual William Lane resolveu conver­ter-se ao Catolicismo foi uma combinação de lógica e de fé. A sua consciência, sempre a sua parte mais sensível, já não podia supor­tar a monstruosidade do seu êxito, que era agora incontrolável. Nada mais precisava fazer senão ler os seus jornais e conservar ou despedir os seus redactores. Dos seus ancestrais, filtrando-se através de gerações de legistas, reformistas e pregadores da Nova Ingla­terra, tinha ele recebido o dom do espírito crítico, em consonância com a sua época. Desde muito se tornara tão independente como um barão feudal. A sua cadeia de jornais repousava nas sólidas propriedades das suas impressoras, e estas nas suas fábricas de papel, as quais, finalmente, repousavam no solo firme das terras produtoras ¡de madeira, que se estendiam por milhas e milhas ao Norte, tanto no Canadá como nos Estados Unidos. Ficou incólume aos perigos e restrições possíveis até mesmo a si, enquanto a guerra ardia primeiro na Ásia e depois na Europa. Uma pena, Hitler! Se fosse bem aconselhado, poderia ter sido uma salvação contra o comunismo, o inimigo final.

Na terrível manhã depois do ataque a Pearl Harbour, quando o criado abriu as cortinas da janela, William sentiu-se assoberbado com a urgente necessidade de estabelecer uma nova orientação aos seus jornais.

Como sempre que se sentia confuso, resolveu falar com Monsenhor e telefonou-lhe antes de se erguer da cama.

-É William? -perguntou Monsenhor ao telefone. Depois de dois anos, tinham chegado a essa intimidade. -Em que o posso ajudar?

-Sinto-me confuso - respondeu William. -Esta guerra traz muitos problemas. Devo decidir alguns deles hoje mesmo. Gos­taria de lhe falar esta manhã, antes de ir para o meu escritório.

-Estou à sua disposição.

William seguiu imediatamente depois de tomar café. Emory tomava sempre o café no quarto e não viu ninguém a não ser os criados, mas esses não contavam. O Sol matinal brilhava sobre a magnífica catedral de granito, pegada à residência particular do padre. Ficava na parte alta da cidade, contra um fundo de arranha­-céus, e a sua solidez era tranquilizadora. Nem mesmo as bombas poderiam prevalecer contra a antiga estrutura da catedral, tão formidável como um castelo medieval. Tocou a campainha da porta gótica e foi imediatamente recebido por um jovem sacerdote que o conduziu imediatamente por sobre grossos tapetes de veludo estendidos em chão de pedra. Não houve um momento de espera. Era um ambiente muito mais cortês do que o da Casa Branca, aonde William fora na última semana visitar o presidente, reprimindo o seu desgosto pessoal para cumprir o seu dever patriótico, e ficara esperando durante quase um quarto de hora. Por fim, Roosevelt, embora jovial, não parecera muito grato com o oferecimento do auxílio de William.

A biblioteca de Monsenhor era uma bela sala. O carmesim dos tapetes era repetido nos cortinados de veludo das janelas góticas, e as estantes de mogno alcançavam os tectos abobadados. O ar era quente e levemente fragrante. A decoração de ouro con­centrava-se num crucifixo maciço que pendia de uma longa alcova, mas também se espelhavam nas marcas douradas de cetim dos livros e nas molduras de alguns belos quadros.

Monsenhor Lockhart era um belo homem, de porte erecto e digno. As suas feições eram finas, os seus olhos azuis penetrantes.

-Sente-se, William.

William sentou-se e começou a considerar as suas preocupa­ções. Nada havia de mal na sua vida diária. Não tinha pecados. Era completamente fiel à esposa, e ela a ele. Confiava inteiramente nela e jamais lamentara o seu casamento. A seu modo, ela era sua igual. Na América, não havia homem acima dele em influên­cia, e poucos que fossem tão ricos. Se fosse inglês, teria natural­mente recebido um título. Nesse caso, seria mais pobre, o que não teria agradado a Emory. Ela tinha jóias mais belas do que qualquer outra mulher que ele conhecesse. Vestida de gaze, de gola alta e longas mangas, usando os seus diamantes, era o que ele con­cebia de melhor em beleza feminina. Convertera-se ao catolicismo, juntamente com ele, e gostava de usar gaze e diamantes. Com os vestidos escuros usava pérolas.

Não, as suas preocupações referiam-se cinicamente às suas responsabilidades para com o Mundo, com os milhões de pessoas que olhavam as fotografias que só ele escolhia e liam o que ele permitia que fosse publicado. Queria a guia de Deus para essa enorme responsabilidade e também para o governo das suas vastas riquezas. Não queria dar o seu dinheiro a nenhuma causa ou organização que não se submetessem à sua direcção. A não ser que ele próprio as dirigisse, não poderia ter a certeza da correcta utilização do seu auxílio. Jamais dava dinheiro a uma pessoa.

Manifestou o seu desejo de agir, agora mais forte do que nunca, em vista da guerra iminente, e Monsenhor ouvia atento, com as mãos entrelaçadas. Eram muito parecidos, aqueles dois homens, e bem o sabiam. Para com as criaturas humanas, eram quase igualmente paternais. Tanto o sacerdote como o jornalista já tinham conseguido o que este Mundo lhes poderia dar.

-O que eu lamento é o povo - disse Monsenhor Lockhart. -Numa guerra são sempre os inocentes que sofrem. A Igreja deve tranquilizá-los. Você, William, deve tranquilizá-los. Haverá muito sofrimento e morte. Você e eu sabemos onde achar consolo mais profundo, mas os populares são crianças e como crianças devem ser consolados. Deus usa misteriosos caminhos. Tanto a riqueza como a pobreza podem servi-lo. Continue a fazer o que tem feito, William. Não procure colocar os homens em difíceis alturas, onde eles ficam assustados. Mostre-lhes a vida familiar, mostre-lhes o amor e a ternura ainda vivos, a força sempre pro­tectora da religião. A Igreja é eterna, sobrevive a todas as guerras, a todas as catástrofes. Na verdade, Deus usa até as guerras e as ccatástrofes. Quando os homens se sentem cheios de medo e angús­tia, vêm procurar abrigo na Igreja. Assim será de novo, como sempre foi.

Havia um ar de calmo conforto em tudo o que o padre dizia e fazia. William, ouvindo aquela voz tão humana, tão profunda­mente persuasiva, tinha consciência do conforto que se lhe ins­tilava na alma. Era bom ouvir que ele devia fazer apenas o que fizera, era bom pensar que fazia parte do vasto corpo histórico da Igreja, que, persistindo, através dos séculos, devia continuar enquanto o homem vivesse na face da Terra. A ordem, a estrutura, a organização da Igreja confortavam-no. Fora, tudo era desordem e desnivelamento, mas dentro da Igreja cada qual tinha o seu lugar e conhecia-o.

Os dois homens achavam-se em estranha comunhão. Em sua volta, era o profundo e opulento silêncio daquela casa, dedicada, na sua beleza, a Deus. Embora a manhã fosse fria, a vasta sala forrada de veludo estava aquecida e com o grau de humidade apropriado para os volumes encadernados em couro. Entre os dois homens ardia o fogo. Sob a alta lareira esculpida, as chamas crepitavam, intensas, azuladas. Cada homem admirava o outro, cada qual sabia que o seu coração estava orientado no mesmo sentido, cada qual sentia a proximidade do pensamento do outro. Entre os dois homens havia o laço ainda mais estreito do conhecimento mútuo. Falando com reverência da Igreja, sabia cada qual que a Igreja era uma rede tão vasta como o Mundo, que chamava a si todos os homens. Era a malha da ordem divina, exactamente a antítese do caos humano.

William conservou-se em longo silêncio. Com o padre, não sentia necessidade de falar constantemente. A grande sala era repousante para ele.

-Esta sala é bela - disse afinal. -Várias vezes tentei analisar o seu efeito em mim. Creio que o segredo consiste na ordem. Cada coisa tem o seu lugar e está no seu lugar.

-A ordem é o segredo do Universo - respondeu o padre. -Sómente dentro da ordem os homens podem viver.

 

Uma hora mais tarde William retirou-se. A sabedoria por que ansiava, a direcção que desejava, a confirmação de si próprio e da sua própria vontade, a aprovação do que desejava fazer, tudo isso combinava com o que sempre fizera. Sentia-se forte, pode­roso, seguro da sua pessoa. Os antigos alicerces estavam firmes. A Igreja assentava sobre uma Pedra.

Entrou no escritório pouco antes do meio-dia, e a actual Miss Smith esperou com eléctrico nervosismo, na sua mesa, o toque de telefone, chamando-a. Quando entrou no escritório do patrão, já ele estava sentado atrás da sua secretária semicircular e ela aproximou-se, tentando sorrir. Seria mais fácil se o gabinete dela abrisse para o lado da secretária, de modo que pudesse logo sentar-se, com o seu lápis e o bloco de papel. Mas havia apenas uma porta na vasta e imponente sala e, quem quer que entrasse, devia fazer a longa aproximação da grave e severa figura sentada atrás do semicírculo. Ela afinal alcançou-o, puxou o seu banco oculto e sentou-se.

-Faça um memorando - disse William. A sua voz não era nada autoritária, e William ficaria surpreendido ao saber que Miss Smith tinha medo de si e às vezes tinha uma crise de choro depois de o deixar.

«Memorando para os redactores» -ditou William. -Come­çar! «Resolvi apoiar o Império Britânico. Para a próxima luta, devemos ficar com a Inglaterra, do lado da ordem do Mundo. Mais pormenores se seguirão dentro das próximas vinte e quatro horas». É só, Miss Smith. Não quero ser interrompido até que a chame de novo.

Passou o resto do dia sòzinho e em profunda meditação, escrevendo lentamente em grandes folhas de grosso papel branco. Quando terminou, estavam prontos os seus planos para os pró­ximos dois anos. Ao fim de dois anos, a guerra estaria vencida, ou pelo menos assegurada a vitória. Sentia-se forte e lúcido, de pulso firme e coração tranquilo. Sentiu um ímpeto de gratidão, e curvou a cabeça, numa das suas breves mas frequentes orações. Tinha aprendido com Monsenhor a encontrar consolo e descanso na prece solitária.

Enquanto estava assim, com a cabeça inclinada sobre as mãos postas e de olhos fechados, teve como que um relâmpago de intuição. Do outro lado do Mundo, Chiang Kai-shek também estava a rezar. Entre as fotografias que William escolhera na última semana, havia uma que representava o «homem forte» da China em oração. O Velho Tigre, assim lhe chamavam os chi­neses, e esse era um nobre nome. Todos os homens fortes rezavam. Ele deveria ir visitar o Velho Tigre. Sentiu uma vaga nostalgia da China invadir-lhe a alma. Os homens fortes deviam irmanar-se. Sim, fretaria um avião, e iria visitar novamente a China, na pessoa daquele homem.

Tais pensamentos mesclavam-se à sua oração, sem a per­turbar e, depois de ter rezado, tocou de novo o telefone. A voz de Miss Smith respondeu, irritantemente débil. Ela não duraria muito, pensou William, com momentâneo desprezo.

-Quero falar com Mrs. Lane - ordenou ele. Um momento mais tarde, a secretária avisou-o de que sua esposa estava à espera.

-Emory? Temos alguma coisa para hoje à noite?

-Prometi mais ou menos que íamos à inauguração daquela exposição de Picasso...

-Nada feito! Sinto necessidade de alguma diversão, em vista de tudo o que tenho pela frente. Vamos jantar no Waldorf... reservarei uma mesa... e depois iremos ver alguma coisa ao teatro.

Qual é a nova peça musical? Noite em Pequim?

-E eu gosto disso. Vou arranjar as entradas.

A voz de Emory era complacente e suave. Sempre estava disposta a atender aos desejos de William. Quando este lhe dissera que desejava que entrasse para o seio da Igreja com ele, ela mal hesitara um momento.

-Tenho pensado nisso. Creio que uma sólida religião será um bem para ti, William.

-Que queres dizer com isso?

-A vida não é suficiente para ti - dissera-lhe ela.

-Creio que seria um bem para ti, igualmente-observara William.

-Porque não? - replicara ela então, com um dos seus gra­ciosos sorrisos.

Ele fora eficiente naquela noite. Não houve nenhum fiasco. Ele devia ter sido feliz no escritório com alguma coisa, pensou Emory, alguns dos seus grandes planos, que depois lhe diria. Aquele homem era de uma só peça. O poder fluía dele ou, nele aprisionado, tirava-lhe a paz de espírito e tornava-o impotente. Como sempre, fazia de si o seu instrumento e ela não se rebelava. Porque haveria de se rebelar? Dava-lhe tudo quanto desejava no Mundo, que era luxo e beleza. Os seus desejos eram poucos, mas grandes, e para a beleza era necessário dinheiro, muito dinheiro, uma mina de ouro, a fonte inesgotável. Sòmente William possuía a vara mágica de hoje. O velho capitalismo herdado estava quase findo, mas ele representava o novo capitalismo. Achara a fonte na necessidade que tinha o povo de que o diver­tissem e o conduzissem. E ele conduzia-o... conduzia-o para as verdes pastagens.

Os seus colaboradores logo perceberam que não havia ocasião para fazer gazeta. William chegou cedo ao escritório, e até o último deles compreendeu que aquele ia ser um dos seus grandes dias. Qualquer disposição de fadiga ou negligência que pudesse haver foi logo dissipada. Hoje seria pedido o máximo deles-o que os enchia de excitação e algum terror. Era de duvidar que, à noite, estivessem todos no seu emprego. Nos grandes dias de William, alguém era inevitàvelmente despedido. Os membros mais fracos resolveram não ir ao lanche. O próprio William jamais ia lanchar.

-Miss Smith - disse William-dé-me todos os últimos artigos da China. Quero estudá-los.

Essas novas foram transmitidas através dos escritórios e houve suspiros de alívio. A atenção sobre a China significava atenção sobre Lemuel Barnard, que acabava de regressar para fazer o seu relatório sobre a situação chinesa.

O primeiro redactor assistente iniciou cuidadosamente a busca de Lem que, áquela hora da manhã, devia estar em qual­quer parte, menos à sua mesa de trabalho. Recados telefónicos começaram urgente mas cautelosamente a percorrer a cidade. A telefonista da portaria, Louise Henry, uma linda loura de Tennessee, ficara a postos, junto ao telefone. Tinha deixado Lem depois da meia-noite, num night club. Pouco antes do meio-dia, localizou-o onde ninguém esperava: no leito do seu quarto de hotel, e dormindo. Louise despertou-o.

-Lem, venha depressa. William esteve a estudar os seus artigos toda a manhã!

-Diabo! -resmungou Lem, descendo da cama.

À uma hora, William ainda estava a trabalhar. Miss Smith entrou com um sobrescrito que reconhecera como proveniente da esposa divorciada de William e que, portanto, não lhe competia abrir. Levou-o logo a William, embora receosa, pois ele deixara ordem para não ser interrompido. Lem esperava, no hall, junto de Louise.

-O senhor não queria ser interrompido... -começou Miss Smith.

-Bem, mas você interrompeu-me - observou William. -Esta... -Miss Smith não pôde continuar. Pôs a carta em cima da mesa e retirou-se.

William viu logo que era de Candace. Não deixou imedia­tamente o mapa que estava a estudar. Primeiro descobriu o que estava a procurar, uma velha estrada de camelos de Pequim a Sinkiang, e depois largou o mapa e pegou no sobrescrito. Candace, ao que parecia, não tinha mudado. Continuava a usar o grosso papel creme que usava quando sua esposa. A fina letra de ouro do endereço trazia simplesmente o nome de Candace Lane, em vez de Mrs. William Lane. Quando rasgou o sobrescrito e tirou a única folha que continha, viu que ela começava a carta como costumava fazer.

William:

Não lhe tenho escrito há muitos meses porque até agora não havia nada que dizer. William tem tido notícias dos rapazes regularmente, creio eu; quanto a mim, vivo aqui como sempre. Vou casar-me de novo. Creio que isso não lhe interessará, mas penso que devo comunicar-lhe, porque vou casar com Seth games. Ele amava-me quando eu era apenas uma criança, antes que William e eu nos tivéssemos comprometido. Reencetámos a amizade depois da morte de meu pai, e agora parece natural que nos casemos. Espero ser feliz. Continuaremos a morar aqui. Seth sempre gostou desta casa. Mas temos também a sua casa da cidade. Como provàvelmente sabe, o , jornal de Seth faliu, e ele perdeu tanto dinheiro que tem apenas o suficiente com que viver agora e não o suficiente para se aventurar a nada mais, a não ser talvez alguma outra peça. Mas ele diz que gostará apenas de viver aqui comigo. Casaremos na véspera do Natal. Will e Gerry aprovam, o que é uma bondade da parte de ambos. Adeus, William.

Candace

A carta era tão dela que por um momento William sentiu um estranho aperto no coração. Candace era uma boa mulher, infantil mas boa. Tinha ele um invejoso respeito pela bondade, a qualidade que seu pai possuíra em toda a sua pureza e que ele às vezes tanto desejava ter. Esse desejo, ocultava-o ele nas pro­fundezas do seu coração, onde jamais ninguém havia penetrado, nem mesmo Emory, por quem sentia algo mais próximo da admiração do que jamais sentira. por nenhuma criatura humana. Ela enquadrava-se bem em cada ponto da sua individualidade. O espírito dela era mais rápido do que o seu e, pelo que ele sus­peitava sem o dizer, mais profundo até. Ela enchia o seu lar de harmonia. Mas, embora inteiramente independente dele, nunca falava muito, nem conduzia a conversação quando ele estava presente; cedia ante ele, não com malícia, como muitas mulheres faziam com os homens, nem com a ostentação que transformava a deferência em zombaria. Acreditava que Emory também o admi­rava e isso dava-lhe confiança em si próprio e nela, embora a sua admiração não fosse isenta de crítica como tinha sido a de Candace. Mas nem mesmo Emory possuía a pura bondade que ele vira em seu pai e que percebia agora em Candace.

Examinou novamente a carta. Véspera do Natal? Ele ia partir para a China um dia depois do Natal. Isso fê-lo lembrar-se de Lem Barnard. Tocou longamente, até que Miss Smith apareceu à porta, com os olhos muito abertos, daquela maneira que tanto lhe desagradava.

-Diga a Barnard que venha cá - ordenou ele. -Suponho que ele está, pois não?

-Sim, há horas... -Ela gostava de Lem, como todos.

William não respondeu. Franziu inconscientemente as sobrancelhas e tamborilou com os dedos sobre a mesa. Dentro de cinquenta segundos, Lem Barnard entrou. Era um homem pesado, gordo, alto, de andar bamboleante. O seu trajo era sujo, como de costume. Faltava-lhe um botão no casaco e necessitava de um corte de cabelo.

-Sente-se, Lem - disse William. Abriu uma pasta que estava em cima da mesa, à sua frente. -Estive a ler os seus últimos artigos. A China tornou-se muito importante para nós agora. Temos de adoptar uma política a seu respeito, que seja bem defi­nida e clara para todos. Não deve haver confusão entre redactores e repórteres. Você tem de descobrir notícias adequadas à nossa política.

As veias das têmporas de Lem intumesceram-se levemente, mas William não olhou para ele. Prosseguiu, enquanto virava as páginas dactilografadas:

-Estas reportagens que você mandou nos últimos três meses causaram-me embaraço. Tive mesmo de lhes dar um jeito. Foi muito pouco o que pude aproveitar. Não é época de estar a divulgar conversas e boatos sobre os Chiangs... o marido ou a mulher.

Lem explodiu : -Apenas relatei o que os próprios chineses dizem.

-Não me importa o que os chineses dizem - retorquiu William. -Nunca me importei com que os outros dizem. O que me interessa é dizer-lhes o que devem dizer.

Bateu com as pontas dos dedos nas folhas. -Se me interes­sasse pelo que o povo diz, os meus jornais logo degenerariam em pasquins. Sabe porque é que eles obtêm êxito? Porque dizem ao povo o que o povo deve pensar! Você é esperto, Lem, mas não muito. Ninguém tem necessidade de ler o que já pensa ou o que os outros pensam... sabem tudo isso muito bem. Querem saber o que devem pensar. É um desejo espiritual, profundamente arraigado no coração da Humanidade.

Parou e observou Lem, sentado pesadamente numa cadeira de pau. As enxúndias de Lem sobravam no estreito assento e, pelos seus olhos turvos e bochechas congestionadas, era óbvio que ele tinha comido e bebido muito na véspera. Não era nada agra­dável o seu aspecto.

-O homem é um ser espiritual-proferiu William severa­mente. A sua elocução era incisivamente clara. -O homem busca a verdade, quer orientação divina, anseia pela segurança da alma. Em todos os seus artigos procure lembrar-se disto, Lem.

Lem engoliu mais uma vez o seu desejo de se despedir, de dar uns berros a William. Era uma coisa que não podia permi­tir-se. A sua mulher estava num dispendioso asilo de alienados. Mordeu a língua um instante e sentiu o sal de seu próprio sangue.

-Qual é a impressão que deseja que eu dê? -inquiriu então com voz velada e amável.

-O nosso povo quererá agora confiar nos chineses- - disse William -, acreditar na chefia da China.

Lem fechou os olhos. Quando fechava os olhos, sempre via caras chinesas, caras de gente faminta, de gente sem tecto. Há cinco anos que a guerra continuava na China, mas ninguém aqui a levava a sério. Nem aqui o próprio Chefe parecia acreditar mesmo nela. Depois pensou de novo na sua pobre mulher, fortemente e por um minuto inteiro. Sempre que ficava irritado com William, pensava nela. Fora feliz com ela durante dois anos e ela acompa­nhara-o por toda a parte na China. Encontrara aquela formosa russa branca em Xangai, e suspeitava que havia coisas que ela nunca lhe contara, nem lhe podia contar. Mas tinha sido uma esposa maravilhosa.

Ao despertar certa manhã no velho Cathay Hotel, Lem viu-a inclinada sobre ele com a sua navalha e viu que ela estava a ponto de o matar. Passara por um instante de horror e depois compreendera que, naturalmente, ela estava louca. Desde então, jamais ficara boa. Ele próprio a trouxera para a América, sem dormir noite e dia. Tentava matar quem quer que estivesse com ela, e ele não a podia deixar a sós com alguém. Internou-a num hospital perto de S. Francisco. Nunca o conhecia quando ele ia visitá-la. Sempre lhe chamava outros nomes, nomes de homens de quem ele nunca tinha ouvido falar. Mas as contas eram terríveis todos os meses e se Lem não pudesse pagar, mandá-la-iam embora. Não era em qualquer lugar que aceitariam um caso tão violento, diziam-lhe. Tinha de deixar de ver chineses quando fechava os olhos. Tinha de ver apenas Anastasie. Abriu os olhos e disse a William, com voz suave e velada: - Chefe, eu desejaria que o senhor mesmo fosse à China. Que fosse ver com os seus próprios olhos. Há muito tempo que não vai lá. Devia ir ver como está aquilo agora. Então saberia...

-Já resolvi ir - respondeu William. -Vou visitar o Velho Tigre.

 

Chungking era uma cidade no alto de uma colina, banhada pelas águas amarelas e preguiçosas do rio. E claros degraus de tijolo levavam até à cidade. Nada havia ali que lembrasse Pequim. Não havia palácios, nem telhados brilhantes, nem pomposas arcadas de mármore, nem ruas largas. As ruas ficavam apertadas entre casas cinzentas e muros húmidos. As pedras das calçadas eram escorregadias de lixo. Os habitantes tinham um ar sombrio, devido à guerra contínua e aos constantes bombardeamentos. Não se pareciam com os altos e belos nativos do Norte. William ficava alarmado e desanimado ao pensar naqueles homens como aliados da América. Que podiam fazer como aliados? Eram um perigo e uma responsabilidade. Mas Chiang devia ser ajudado, impelido, amparado.

O automóvel americano, guiado por um chinês de uniforme, levou-o logo à casa do Velho Tigre, nos arredores da cidade. Era reconfortante entrar nalguma coisa que não parecia um tugúrio. O ar era frio e húmido, como em toda a parte, mas, do vestíbulo, foi ele conduzido a uma sala quadrangular, onde ardia um fogo.

-Queira sentar-se - disse o criado em chinês.

As palavras tocaram os ouvidos de William com uma estranha familiaridade, por assim dizer. Há anos que não pronunciava uma só palavra de chinês, mas a língua jazia na sua memória. Sentiu as sílabas na ponta da língua. Talvez pudesse falar com Chiang na língua deste. O Velho Tigre não falava inglês. Ninguém sabia o quanto ele compreendia-talvez mais do que dava a entender:

A porta abriu-se e ele olhou. Não era o Tigre que estava ali, mas uma mulher, linda e elegante, com uns grandes olhos cheios de expressão, uma bela boca triste. Ela estendeu-lhe ambas as mãos.

-Mr. Lane, o senhor é a América, que vem afinal em nosso auxílio!

Ele sentiu as suas suaves palmas ardentes e não disse nada. Não sabia como se haver com uma bela chinesa, que parecia tão nova, que falava inglês com tanta naturalidade. Nunca tinha visto chinesas dessa espécie. As de Pequim tinham pés enfaixados, com excepção das manchus, mas tanto as chinesas como as manchus tinham-lhe sido estranhas, salvo a velha amah, que era apenas uma criada... e excepto a Imperatriz.

Aquela linda mulher sentou-se com graça imperial e fez-lhe um gesto para que se sentasse.

-Meu marido não se demora. Tivemos más notícias da frente. Naturalmente, agora tudo irá bem, já que a América está connosco. Lamento os tristes acontecimentos de Pearl Harbour, mas na ver­dade creio que isso era necessário para despertar o povo americano para a realidade do perigo mundial. Não penso sòmente na China: penso no Mundo. Devemos todos pensar no mundo.

A porta abriu-se de novo e ela interrompeu-se. Entrou um esguio chinês de longa túnica. Era o Velho Tigre. Impossível, na verdade, para alguém mais, ter aqueles atrevidos olhos negros, aquela boca enérgica. Mas ele parecia frágil. Era aquele o homem que, durante quinze anos, tinha vencido os senhores da guerra e morto comunistas? O Tigre estendeu a mão e retirou-a rápida­mente, como se lhe repugnasse o contacto de mãos estranhas, esse acto revelava nele um chinês à moda antiga, que cedesse de má vontade a um costume estrangeiro. Com um gesto brusco, fez sinal a William para que se sentasse, e ele próprio se sentou numa cadeira longe do fogo.

-Este americano fala chinês? -perguntou à esposa.

-Como poderá falar a nossa língua? - replicou ela.

-Devo confessar que compreendo um pouco, pelo menos­disse William. -Passei a infância em Pequim.

O Velho Tigre meneou vigorosamente a cabeça. -Bem! Bem! -A sua voz era fina e aguda. Quando falava aos seus solda­dos, tinha de gritar.

William contemplava o seu aliado, aquele homem calvo e ossudo que era o senhor de milhões de chineses. Tigre era um nome que lhe assentava magnificamente. Em repouso, parecia um gato monstruoso, suave e indiferente, a não ser os olhos, onde se lia uma latente ferocidade. Era da velha China, odiava a nova, estava enraizado no passado. Muito restava, ainda, em William, da época da sua infância, de modo que ele bem compreendia quem era o Tigre. Se não tivesse havido revolução entre os chineses, teria ascendido ao Trono do Dragão, tornando-se um forte sucessor da Velha Buda. Faria ali uma espectacular figura, o Filho do Céu, nas suas vestes imperiais bordadas a ouro. E o povo chinês, pensou William, estaria melhor. Pois que era agora o povo chinês senão um rebanho tresmalhado? O povo tinha necessidade de adorar e, quando não lhe davam nenhum deus, ele próprio fabricava um bezerro de ouro. Havia uma tragédia naquele homem, privado do seu trono por causa da época em que havia nascido. Uma estranha e respeitosa ternura se acendeu no espírito de William. Inclinou-se para o Velho Tigre:

-Vim aqui para saber como podemos ajudá-lo. Posso ser útil de duas maneiras. Posso influenciar milhões de pessoas. Posso dizer-lhes... o que o senhor quiser que eu lhes diga. Posso também falar com o meu Governo.

William falava em inglês e a bela mulher traduzia rápida­mente as suas palavras num chinês tão simples que ele o podia compreender. O Velho Tigre acenava com a cabeça e repetia a curta palavra chinesa que significava «muito bem»: Hão... Hão... Era quase um rosnido. Não o suave rosnido de um gato, mas o áspero, gutural rosnido de um animal selvagem.

A bela mulher, aparentemente, apagava-se, entre os dois homens. Era um instrumento, dócil, quase tímido. William quase a esquecia enquanto discutia com o Tigre. Mas ela não era nem dócil, nem tímida. Suprema actriz por um dom natural, tomava as palavras inglesas e remodelava-as no seu chinês fluente, acentuando esta palavra, suavizando aquela. Quando notava que ele estava compreendendo alguma coisa do que'ela dizia, mudava rápida­mente de dialecto, passando a falar numa espécie de fuquinês e desculpando-se com habilidade.

-Meu marido é de Fukien e compreende o fuquinês melhor que o mandarim. O essenciál é que, ele apanhe bem o sentido das suas palavras.

William não queria acreditar que ela acrescentasse alguma coisa por conta própria. Não havia razão para que o fizesse. Ele estava pronto para a maior sinceridade.

Uma hora, duas horas se passaram. De repente o Tigre levantou-se.

-Hao! -gritou ele com a sua voz aguda. -Tudo está muito bem. Farei isso. Comandarei os meus homens. Não hei-de descan­sar enquanto os diabos amarelos não forem arremessados ao mar.

E, sem tentar desta vez ceder ao costume estrangeiro, incli­nou-se duas vezes perante William e saiu da sala, com o seu rápido e silencioso passo.

William ficou a sós com a bela mulher. Ela colocou a leve e pálida mão sobre a sua manga. -O senhor conhece a China. -A sua voz era um sussurro agora, alquebrado pelo pranto. -Ao senhor eu posso falar. Viu meu marido. Ele é tão forte, tão bom... é realmente bom. Deseja libertar o nosso povo, não só dos inimigos actuais, mas daqueles que são muito piores. O senhor compreende-me, Mr. Lane. Estou certa de que o senhor me compreende. Mas meu marido deve ser ajudado. Ele não teve a vantagem da instrução. É muito impulsivo. Tento dominar os seus impulsos rezando junto com ele, Mr. Lane. O que eu não posso fazer, Deus o fará.

William escutava com crescente simpatia.

-A senhora tem um trabalho de muita responsabilidade a desempenhar - disse ele. -Talvez a senhora esteja na posição chave do Mundo.

A sua voz era solene, e ele queria que assim fosse. Ela olhou-o gravemente.

-O senhor deve ajudar-me, prometa-me que me ajudará! Ele tomou-lhe as mãos. -Prometo.

 

Uma semana mais tarde, depois de incessante voo, das secas areias do Nordeste às verdes províncias do Sul, com as horas interrompidas apenas pela aterrissagem em cidades onde presidia a longas festas em sua honra, rumou, através de montanhas e mares, em direcção à sua terra. No trajecto pela China, aonde quer que fosse, a bela mulher acompanhava-o, e com eles ia sempre um terceiro; habitualmente um general, que eles apanhavam no caminho e que lhes dava as últimas notícias da guerra. Ela tra­duzia para William como o fazia para o Tigre, apresentando-lhe o contínuo drama de uns bravos e miseráveis patriotas que só queriam espingardas nas suas mãos, e alguns tanques e aviões, para se tornarem invencíveis.

-Como o vosso próprio Washington - dizia ela. -Como Jefferson, como Lincoln!

Ele podia ter desconfiado de tal veemência, mas ela estava sempre à frente do seu espírito. Sabia quando dar vazão às lágri­mas, mas também sabia quando tornar os olhos duros e a voz firme. Sabia quando devia ser enérgica com um subordinado, quando devia ser rainha e quando devia ser uma mulher. Obser­vando-a, ele lamentava que o Trono Fénix houvesse sido também destruído. Ela seria uma imperatriz digna de se sentar, ao lado do Tigre, no Trono do Dragão. Percebia que o povo a temia. E ele admirava-a por isso. Sempre deve haver alguém a quem o povo tema.

Ao fim da semana, partiu convencido de que, por causa dela, seria fácil apoiar o Velho Tigre. Sem ela, poderia haver traição; com ela, não haveria perigo. Quando se separaram no aeroporto final, ela utilizou de novo as lágrimas.

-Querida América... -suspirou ela. -Dê-lhe o meu amor. Dê-lhe todo o meu amor! Diga-lhe que passo a vida a ensinar ao meu povo as lições que lá aprendi!

Chegou a Washington no prazo fixado e imediatamente apresentou o seu relatório, tomando o próximo avião para casa. Nevava levemente quando ele desembarcou no aeroporto. O motorista lá estava a esperá-lo. Quando entrou no automóvel encontrou Emory. Parecia muito bonita, de chapéu e vestido cinza-prata.

-É muita bondade tua! - exclamou ele.

-Ora! Eu sentia uma terrível falta de ti.

William enlaçou-lhe os ombros e beijou-a. Ela usava um delicado perfume, e William sentiu-se agradecido por tudo o que era seu: a esposa, o lar, os negócios, o seu país.

-Estou contente por voltar. A China é um inferno agora.

-Sim, William? Então crês que a tua viagem foi inútil?

-Não, longe disso. Fiz-lhes sentir que a América está por detrás deles. Fiz-lhes promessas que devo ver cumpridas. É um trabalho para mim, Emory, posso dizer-te. Tenho de induzir a opinião pública a apoiar aqueles dois que são a única coisa que permanece entre nós e a derrota da Ásia.

-Não converses agora, William. Pareces terrivelmente cansado.

-Espero que não tenhamos nenhum convidado para esta noite.

-Não, naturalmente não. Seremos só nós dois.

Ele suspirou e distendeu os músculos. Tudo tinha uma nova significação para ele. Sentia, como nunca, o que era ser americano. O grande carro a deslizar na bela estrada, as chaminés fumegantes das fábricas, o perfil da cidade recortando-se atrás delas, aquilo só poderia ser a América. Se a China era um inferno, aquilo era o Céu, o seu próprio Céu. Nada o poderia destruir, agora ou nunca. Com a mão de Emory na sua, William consagrou-se outra vez, e de todo o coração, à sua própria pátria.

 

Depois de reflectir, mesmo após uma noite de sono, William sentiu que a sua missão na China fora coroada de êxito. Levara-a a cabo da maneira tranquila e íntima com que gostava de fazer as grandes coisas, simplesmente voando sòzinho, através do Mundo, num avião pelo qual pagara uma soma fabulosa. O dinheiro fora gasto como ele gostava de o gastar, só para si, para um fim por ele escolhido, mas que afectaria o Mundo. O Mundo nada sabia disso e decerto jamais reconheceria a sua dívida para com ele, enquanto ele vivesse. Mas algum dia, quando os historiadores pudessem devassar as brumas do passado, veriam que, por seu intermédio, acima de todos os outros, fora ganha a guerra que poderia ter sido perdida. Que os outros dispersassem as suas energias nos pequenos e atormentados países da Europa. Ele salvaria a China e, salvando esse vasto território, estariam frustrados os planos do inimigo. Recomendou a Emory que não convidasse ninguém, nem aceitasse convites. Durante duas semanas, deveria permanecer no escritório, vindo a casa apenas para dormir. Durante esse tempo, daria instruções ao seu pessoal. Os que não as seguissem eficiente­mente seriam logo despedidos. Toda a organização devia concen­trar-se agora dentro das suas directivas, tudo no sentido da simpli­cidade, da persuasão, do aspecto visual.

No fim do primeiro dia, despediu quatro pessoas, entre as quais Miss Smith e Lem Barnard. Miss Smith não era ninguém. Mandou o gerente arranjar outra para o seu ditado na manhã seguinte. Mas Lem era difícil de substituir. Os chineses nada diriam a um estrangeiro, a não ser que ele tivesse a sua simpatia, embora a simpatia fosse aquilo de que William pouco cuidava nos seus próprios escritórios. Foi então que pensou em jeremias. Porque ele poderia haver-se muito bem com a bela mulher, e até mesmo com o Velho Tigre, se fosse acompanhado por alguém que lhe comprasse as passagens, tomasse conta da sua bagagem e fizesse com que desempenhasse a sua missão a tempo. Além disso, tal missão afastaria jeremias do escritório. Pois as suas contínuas faltas constituíam um mau exemplo. Agindo instantâneamente, com essa completa coordenação que era a fonte da sua extraordi­nária energia, premiu um botão.

Era quase no fim do dia, e houve uma pequena demora, que fez o sangue subir à sua elevada fronte. A demora, ao que parecia, quando ele indagou o motivo, era porque Miss Smith não tinha esperado que o patrão se retirasse do escritório, como era do seu dever. Fora logo buscar o seu dinheiro à caixa e retirara-se meia hora antes. Ele sentiu-se tentado a despedir o chefe do pessoal, mas estava muito impaciente para se interromper por causa disso. Dentro de poucos minutos, ouvia a voz doce e um tanto infantil de Ruth. Parecia estranhamente débil.

-Ruth... És tu?

-Oh, William... -A sua voz tornou-se mais forte. -Que bom ouvir-te de novo!

-Jeremias está?

-Não... ainda não, William.

-Onde está ele? Não estava no escritório.

-William, ele... ele não está muito bem. Penso que estará aí daqui a um ou dois dias. -Pedira a Emory que não lhe contasse, mas talvez tivesse feito mal. Talvez William tivesse de saber.

-Tenho um trabalho para jeremias, se ele puder estar aqui amanhã. Supões que ele gostaria de ir à China como meu representante pessoal?

Para seu espanto, William ouviu a sua irmã soluçar. Esti­mava-a, sem que lhe tivesse o mínimo respeito, porque ela dependia de si. Havia algo de errado no casamento dela, naturalmente, mas William nunca tentara investigá-lo a fundo. Assuntos pessoais tomavam muito tempo e cada hora tinha de ser levada em conta naqueles terríveis dias. Agora teve de perguntar:

-Aconteceu-lhe algum mal?

-Sinto que tenhas de o saber. Eu não queria aborrecer-te. Jeremias está num sanatório.

-Que espécie de sanatório? Ele está doente?

-Oh! William, não! Isto é, sim, suponho que seja uma doença... Jeremias bebia muito, e, depois de teres partido... embriagava-se constantemente.

-Ninguém me dizia nada.

-Eu não queria que to dissessem. Esperava que ele ainda... William pensava rápidamente, enquanto a voz de Ruth balbuciava ao seu ouvido desatento. Isso seria uma desculpa para terminar de uma vez com Jeremias. O caso seria encarado como uma doença.

-Ruth, pára de chorar, por favor. Podes ficar certa de que sinto muito e que desejo ajudar-te. Vou conceder a Jeremias licença ilimitada. Ele não precisa de se preocupar com o regresso aos seus trabalhos. Mas quero que sejas independente. Natural­mente ele não poderá receber uma pensão da minha parte, mas vou garantir um seguro para ti e as meninas. De modo que, qualquer coisa que lhe aconteça, estarás a salvo.

-Oh! querido William. -A sua voz arquejava, ainda meio soluçante. -Eu não pretendia...

-Deixa que ele se conserve por lá o tempo suficiente para ficar em boa forma e comunica-me quando tiver alta. Depois ver-nos-emos. Adeus. Estou terrivelmente ocupado...

William reflectiu um momento e resolveu mandar Barney Chester à China. Este era um excelente jovem de Harvard, saído há poucos anos da Universidade. Este, sim, é que lhe daria ouvidos.

Ergueu-se, evitando entregar-se a quaisquer sentimentalismos, e desceu pelo elevador até ao automóvel que o esperava. Eram quase dez horas e estava a nevar. Sentado na penumbra do automóvel, olhava em frente, vendo a neve arremessar-se con­tra o pára-brisas em pequenas lâminas de prata. Em redor, eram as trevas e o foco, os transeuntes avançando penosamente ao longo das ruas húmidas, com a cabeça inclinada contra o vento. Mas ele estava ali sentado no calor e na segurança, cônscio de si próprio e das suas posses. Tudo o que ele era, ele próprio o fizera; e tudo o que possuía, ele próprio o ganhara. Tinha vindo da China, obscuro e anónimo, rapazola tímido e desajeitado, e tudo o que ele era, conseguira-o sem auxílio. Mas a América dera-lhe a oportu­nidade. Na Inglaterra, só o seu nascimento o teria condenado. Nem mesmo a doação de um título lhe teria ocultado a origem. Sorriu para os dardos de prata que o não podiam atingir. Ali o povo esquecera onde ele tinha nascido e quem fora o seu pai. Onde poderia isso acontecer senão na América?

Pela manhã, acordou outra vez inexplicàvelmente deprimido. Não havia razão para isso, a não ser, pensou, que a consciência lhe estivesse a doer por não ter dito nada a monsenhor Lockhart sobre a China. Nem mesmo o chamara ao telefone, receoso de ser ten­tado, pela calma voz do padre, a ceder-lhe um tempo que não poderia desperdiçar. Não que necessitasse de conselho. Já resolvera o que devia fazer. Mas agora não havia razão para que não se permitisse o luxo de algumas horas de comunhão espiritual.

Tais cogitações ocorreram-lhe muito antes da sua habitual hora de se levantar, mas sentia-se bem desperto e tomou o receptor à sua cabeceira.

A voz do padre chegou-lhe como de costume: - Aqui estou, William.

-Monsenhor, eu desejava falar-lhe logo que cheguei, mas bem compreende...

-Compreendo, sim...

-Eu contava com isso. Mas... e esta manhã?

-Sempre que quiser. Já estou no gabinete.

William tencionava dormir mais um pouco. Estava ainda escuro. Mas podia ser interessante, e até estimulante, erguer-se e dirigir-se a pé até ao gabinete de monsenhor. Àquela hora, a mente de ambos estaria clara e ágil.

Dentro de vinte minutos, estava já pisando a relva fresca que cobria as ruas. Nunca saíra àquela hora e a cidade parecia-lhe estranha. A gente que estava acostumado a ver ainda se achava no leito. Mas as ruas não estavam de todo desertas, especialmente a rua lateral que ele tomara de uma avenida para a outra. Viam-se ali umas três pessoas, entre as quais uma mulher que passou por ele e parou quando um velho, cuja face mal podia ver na nascente aurora, lhe estendeu a mão suja, sem falar. William continuou o seu caminho. Era seu hábito nunca dar atenção a qualquer mão estendida. Nunca deixava de expedir anualmente um generoso cheque para a Caixa dos Pobres.

-Uma xícara de café por amor de Deus-resmungou o velho.

William continuou a andar e a mão suja roçou pelo seu braço e depois pendeu.

-Maldito capitalista! -bradou a mulher, nas suas costas. -Quer matar-nos à fome!

De súbito, um polícia dobrou a esquina.

-Parece que ouvi alguma coisa, senhor... - disse ele. William reflectiu um momento se deveria apontar na direcção da mulher e depois resolveu ignorá-la.

-Nada! Apenas um velho que pediu um níquel para beber.

-Essa gente é assim - disse o polícia em tom de desculpa.

William fez uma leve inclinação de cabeça e continuou o seu caminho. Cinco minutos mais tarde estava no tépido e belo gabi­nete do padre.

-Você parece-me esperançoso - disse monsenhor Lockhart.

-Não me sinto absolutamente esperançoso - replicou William.

Enquanto falava, monsenhor terminava um belo pequeno almoço inglês: rins, presunto, torradas com manteiga e marmelada. O café era delicioso. Um homem entrou, retirou a bandeja de prata e fechou silenciosamente a porta.

-Mas eu acho-o esperançoso-repetiu monsenhor. -Esperançoso a ponto de pensar que é possível apoiarmos a China. Creio que devíamos deixar a Inglaterra assumir a direcção da Europa, e que devemos empunhar o leme na Ásia, agora e depois da guerra. Uma vez que a China é já um país livre, é lá que devemos concentrar o nosso poder.

-Muito bem - disse monsenhor. -Penso que não queira significar um poder permanente.

-Claro que não permanente no significado de eterno-con­cedeu William. --Mas espero uma total vitória americana deste lado da eternidade.

A face de monsenhor era condescendente, embora apresen­tasse naquela manhã uma fina e frágil beleza que denotava horas de meditação e talvez de orações. William permitiu-se um instante de encantamento ante aquele homem que o atraía tanto.

-Monsenhor está cansado -proferiu ele de repente.

O padre pareceu impressionar-se e depois o seu rosto anu­viou-se. -Se estou cansado - disse ele-é porque sou indigno da minha fé. É verdade que a Igreja tem grandes e novos problemas. Na Europa, os nossos padres enfrentam uma opressão que jamais conhecemos em toda a nossa longa História. Chegam-me da Áustria as mais graves notícias. Atingimos a era do Anticristo. Há um demónio no povo.

-Quer então dizer que não é uma preocupação particular que leio na sua fisionomia?

-Que preocupações particulares poderei eu ter? - replicou o padre. - A aflição da Igreja é a minha aflição. Não tenho nenhuma outra.

William contemplava-o, esquecido um momento da sua amizade. Monsenhor afigurava-se-lhe subitamente distante e frio. Vieram-lhe à memória os templos da sua infância, onde os deuses se sentavam solitários. Não, não era num deus que estava a pen­sar. Era novamente no palácio e na Velha Buda, olhando curvada para ele, um menino estrangeiro.

Monsenhor baixou os olhos. -Nós compreendemo-nos um ao outro. Andamos, dia a dia, atentos à significação histórica de cada hora.

Pela primeira vez se ergueu sem esperar que William se dispusesse a partir e levantou a mão num gesto de bênção. Uma gravidade mais profunda se lhe estampou no rosto severo. -Muitos são os chamados e poucos são os escolhidos - disse ele simples­mente, e, fazendo o sinal-da-cruz, retirou se da sala.

Durante o dia William sentiu como que no fundo dos seus pensamentos a vaga apreensão das palavras do padre.

Tocou com força a campainha, chamando a nova Miss Smith, e não ergueu os olhos quando ela entrou.

-Ditado - disse ele.

Ditou cartas durante uma hora inteira e, finalmente, umas longas instruções para Barney Chester. Depois despediu Miss Smith e falou ao telefone.

-É você, Barney? Venha ao meu escritório. Vou mandá-lo imediatamente à China como meu representante pessoal.

Passou as próximas duas horas a esboçar, para um rapaz silencioso e um tanto aterrorizado, exactamente o que esperava que ele fizesse na China.

-Em suma-concluiu ao cabo das duas- horas-espero de você os mais pormenorizados relatórios do que a diplomacia americana está a fazer, de modo que eu possa ficar aqui a par de tudo. Ao mesmo tempo, espero que consiga travar relações íntimas com o Velho Tigre e com... ela.

-Sim, senhor - disse Barney Chester. Era um rapaz moreno, pálido, esbelto, de ar astuto. William gostava que os seus rapazes tivessem esse ar astuto. Na verdade Barney tinha um coração um tanto mole que diàriamente renegava. Por certo, diante do severo homem grisalho sentado à sua mesa circular, ficaria alarmado se deixasse escapar o mais leve resquício de sentimentalismo. Aquele era o melhor ordenado que um homem da sua idade poderia conseguir no país, ou talvez no Mundo. William pagava bem aos seus homens e fazia-os trabalhar muito. Barney desejava que sua esposa Peggy não estivesse à espera de segundo filho. Tencionava solicitar as suas férias adiadas, quando chegasse a ocasião, para cuidar de Barney Júnior. Não havia ninguém que olhasse por este, excepto um criado. Não lhe ocorreu mencionar tão humildes dificuldades a William, que continuava a dar ordens.

-Apronte-se para partir depois de amanhã. Conseguirei prioridade no avião para você.

-Sim, senhor - disse Barney.

 

A casa agora estragada pelos anos e que Henrieta nunca pensara em reformar, estava Clem sentado a ler osjornais. Era no Verão, o primeiro Verão depois do fim da guerra. Clem mal sobrevivera às bombas atómicas lançadas sobre duas cidades japonesas. Como muitos outros americanos, não sabia que existissem bombas atómicas, até que no dia 5 de Agosto, um ano antes, abrira um jornal, para descobrir, com angústia e verdadeiras lágrimas, que a bomba já fora lançada e tinham sido mortas centenas de milhar de pessoas que ele jamais vira. Ergueu-se, cego pelas lágrimas que lhe corriam pelas faces magras, e foi ter com Henrieta. Quando a encontrou em cima, arrumando a cama, não pôde falar, devido ao pranto.

Pôde apenas segurar o jornal, apontando os títulos. Quando ela viu o que tinha acontecido, enlaçou-o nos braços e ficaram os dois de pé, chorando juntos, de vergonha e receio pelo que se fizera.

Durante semanas depois disso, Clem estivera tão próximo de cair doente que ela disse a Bump que não o incomodasse por coisa nenhuma. Clem, aliás, fazia muito pouco. Estava a trabalhar, com todas as suas energias em declínio, na Alimentação, e recusa­ra-se terminantemente a consultar um médico ou a tirar uma radiografia dos órgãos digestivos, agora em rebelião permanente.

-Não me aborreças, querida. -Esta era a sua réplica às súplicas e queixas de Henrieta.

O grande homem da Casa Branca tinha morrido e um pe­queno homem tomara o seu lugar. Clem imediatamente foi vê-lo, para pregar pela última vez o seu evangelho da alimentação. O pequeno homem piscava os olhos e sorria e deu-se ao trabalho de descrever o plano das Nações Unidas para a alimentação mundial, e despediu Clem, deixando-o na quase certeza de que convertera um Presidente dos Estados Unidos, mas nada sucedeu.

Na Primavera, Clem falou em ir à Conferência de S. Fran­cisco, para explicar como dar de comer aos famintos do Mundo, se tudo fosse bem feito. Os comunistas não deviam ser os únicos a dar as cartas, o que assim aconteceria, excepto se o povo tivesse comer.

Henrieta fizera com que ele desistisse de lá ir. Sabia agora que, até mesmo em New Point, o povo se ria de Clem. Chama­vam-no maluco, fanático... e ninguém dava ouvidos a um homem que passara a vida com uma só ideia.

Ela odiava as pessoas porque se riam de Clem. Arrastava-o para casa, conservava-o ocupado, trabalhava com ele na sua fórmula, tão só para o furtar ao riso cruel da gente que era indigna de lhe atar os sapatos.

Naquela manhã de Verão, enquanto ela lavava os pratos, ele estava sentado na cozinha a ler o jornal. De súbito ouviu-o exclamar:

-Querida!

-O que há, Clem?

-Nós perdemos a guerra!

-Que diabo queres dizer? A guerra terminou.

Ela largou o pano da loiça, com as mãos ensaboadas e ficou a ler por cima dos seus ombros.

-Declarámos que não auxiliaremos os povos vencidos.

É o princípio da terceira guerra mundial.

-Oh, Clem! A coisa não está assim tão má.

-Está, sim. Todos estão com os olhos fixos em S. Francisco, e o que dissemos não pode ser desdito. Há um impasse agora... Ele ergueu-se abruptamente, dirigindo-se para o seu laboratório, e ela continuou a lavar os pratos.

 

Foi só em Março de 1950 que Clem foi visitar William pela terceira e última vez. Por essa época, muito do que ele tinha predito já fazia parte do passado, e pensava que poderia convencer William. Certamente este agora acreditaria que Clem estava com a razão. Os comunistas estavam a governar a China, e o povo estava a morrer de novo por dezenas de milhões. Yusan podia confirmá-lo. Os velhos Fong tinham morrido. Yusan era o chefe da família. Pequim estava cheia de russos, todos a dar instruções. Enquanto isto sucedia, a alimentação da Manchúria estava a ser negociada por máquinas.

«Se a América pudesse alimentar-nos...»-escrevia Yusan. A carta constava de uma delgada folha de papel, dentro de um pequeno sobrescrito sujo sem estampilha. Mr. Kwok, agora chefe de um próspero restaurante em Nova York, viera trazê-la a Clem, e Clem regressara com ele a Nova York sem dizer a Henrieta que resolvera ir falar com William pela última vez e pedir-lhe que dis­sesse aos americanos que talvez ainda pudessem salvar a China e o Mundo se pelo menos quisessem compreender que...

Três dias mais tarde, Henrieta viu Clem subir o caminho de tijolos que conduzia a sua casa, transportando a sua maleta de papelão. Não pôde alcançar a porta. Ela viu-o cair no chão e correu a levantá-lo.

Clem não havia desmaiado, estava consciente.

Foram só as minhas pernas que falharam - murmurou. -Vais já para a cama e ficas lá muito quieto! - disse ela, com a energia do amor.

Mas ninguém o poderia conservar na cama. Nem iria ainda para o hospital, declarou ele ao Dr. Wood. Agora, mais do que nunca, deveria terminar a sua fórmula, agora que William não o atenderia. Foi assim que Henrieta soube que Clem tinha ido falar com William e que este se recusara a dar-lhe ouvidos.

-Foi um cansaço passageiro - disse Clem.

E dentro em poucos dias estava de pé, entregue novamente à sua fórmula, fazendo experiências, no fogão de gás, com uma mistura de leite em pó e feijões, acrescentada de minerais e batata moída. Henrieta agora não o contrariava em nada. Impossível negar que ele estivesse enfermo, mas Henrieta achava-se desespe­rada. Ele não queria saber de médicos.

Aquilo tornou-se uma verdadeira corrida. Quase deixou de comer e beber, e ela conservava a seu lado uma taça de chá, em que punha um ovo batido e um pouco de açúcar. Ele bebia lenta­mente, um gole de vez em quando, e assim ia conservando a vida.

No Verão, viu-se que estava perdido. Certa manhã, Clem esforçou-se em vão para se erguer da cama. A camisa de dormir pendia-lhe do pescoço, afundada em cavidades triangulares. As orelhas pareciam enormes, os seus olhos estavam mortiços.

-Clem! -bradou Henrieta. -Tens de pensar em mim uma vez! -Era o seu último apelo.

-Então eu não penso em ti, querida?

A força esvaíra-se até da sua voz. Parecia vazia e fantasmal. -Não vais levantar-te- - disse ela. -Vais ficar aqui até que chegue o Dr. Wood.

Clem caiu sobre o travesseiro, tentando sorrir. -Tu ven­ceste - me - murmurou ele.

Ela correu então ao telefone e encontrou o médico no seu pequeno almoço.

--Irei logo que...

-Não! Venha agora, sem perda de um momento! Creio que ele vai morrer.

E logo voltou para a cabeceira da vasta cama antiga onde tinham dormido lado a lado, durante anos e anos, desde que ela deixara tudo para ser sua esposa. Clem estava deitado exacta­mente como Henrieta o deixara, mas, quando entrou no quarto, ele abriu sonolentamente os olhos e sorriu.

-O doutor já vai chegar, Clem. Não durmas.

-Não... eu não pretendo dormir.

Ficaram em silêncio um momento, ela a segurar entre as suas uma das mãos ossudas do marido. Não devia desperdiçar em conversa as forças restantes de Clem.

Mas ele começou a falar.

-Querida... a fórmula, pelo que até agora pude ver... -Por favor, Clem.

-Deixa-me dizer-te... Está tudo escrito naquele pequeno bloco, ali na prateleira direita da minha escrivaninha... Se eu não puder terminar...

-Naturalmente que poderás terminar, Clem. Precisas apenas de um longo repouso. Vou levar-te para a Califórnia. Sim, é isso que eu vou fazer.

Henrieta falava para o conservar em silêncio e ele bem o percebia. Logo que ela fez uma pausa, ele começou de novo.

-Penso que cometi um erro usando o leite em pó. Há gente na China que não suporta o gosto do leite. Não sei como não pensei nisso antes. Tenho de...

Parou de súbito e olhou-a aterrorizado. -Querida... Que... -Ele arquejava. -Que é, Clem?

-Uma dor terrível, aqui-Apertava as mãos contra o ventre, e o suor escorria-lhe pelas faces.

-Oh, Clem, que posso eu...?

Mas não foi preciso que ela fizesse coisa alguma : caíra na inconsciência.

 

Três horas mais tarde, no hospital de Dayton, o Dr. Wood saiu da sala de operações. Henrieta estivera sentada imóvel durante mais de uma hora, negando-se a esperar nada de bom ou de mau. Com todos aqueles anos de convivência com Clem, como sua sombra, tinha aprendido, como fazia agora, a esperar, sem pensar, sem se impacientar, deixando o espírito ocupar-se com a superfície que os seus olhos lhe apresentavam, a gente que ia e vinha, o vaso de flores em cima da mesa, os troncos de uma árvore do lado de fora da janela.

-Creio que a senhora já está meio preparada para o que tenho a dizer-lhe, Mrs. Miller - disse o Dr. Wood.

Era um bondoso sujeito de meia-idade, tão evidentemente um médico de cidade pequena que qualquer pessoa adivinharia quem era. A sua força estava em saber o que é que não sabia e, depois que viu, naquela manhã, o rosto cinéreo de Clem sobre o travesseiro, foi logo dizendo: «Esse doente tem de ser mandado imediatamente para o hospital da cidade», e chamou a ambulância.

Enquanto a ambulância se dirigia vertiginosamente para Dayton, manteve-se sentado ao lado de Clem, com Henrieta perto, e não proferiu uma só palavra. No hospital, levou Clem imediatamente para a sala de operações, e ficou a seu lado, enquanto um jovem cirurgião o operava.

-Não, não me preparei - disse Henrieta mansamente.­Esperei, apenas.

-Ele já não tem estômago - disse o Dr. Wood. Aquela enérgica face de mulher que o contemplava fizera-o compreender que era inútil mascarar a verdade. -Devia ter sido operado há muito tempo. Um antigo estado... É um nervoso, naturalmente... e a coisa tornou-se maligna de um momento para o outro.

-Não era um nervoso, prôpriamente - murmurou Henrieta. O coração dela tinha cessado de bater por um longo momento, e agora recomeçava aceleradamente. -Ele simplesmente toma o Mundo inteiro sob a sua responsabilidade. Passa fome, por assim dizer, com cada homem, mulher ou criança faminta, crucifica-se todos os dias.

-Mau, mau - disse o Dr. Wood. -Isso não adianta, a senhora bem sabe. Nenhum homem o pode remediar. Suponho que já lho tenha dito várias vezes.

-Não, graças a Deus, nunca lhe disse nada. -Henrieta ergueu-se.

-Eles não a querem lá, justamente agora...

-Irei, de qualquer maneira - disse Henrieta. - Não me podem afastar dele.

Não perguntou quanto tempo Clem teria de vida. Enquanto Clem vivesse, ficaria com ele e não o deixaria uma única noite, uma única hora. Encaminhou-se para a porta de onde saíra o Dr. Wood, e ninguém a deteve.

 

Clem não chegou a viver uma semana. Henrieta não tinha a certeza de que Clem soubesse que ela estava ali a seu lado, todo o tempo, mas ali ficava da mesma forma. Ele ainda poderia voltar a si, apesar do que diziam os médicos e as enfermeiras.

-É realmente impossível, Mrs. Miller - dizia a enfermeira da noite. -Deram-lhe tanto sedativo, para ele não sofrer... O pobre homem deve ter padecido terrivelmente por muito tempo.

-Ele nunca o disse - respondeu Henrieta. Seria possível que Clem tivesse sofrido sem lhe dizer nada? Sim, era possível. Tinha receio de que ela o detivesse antes de ter terminado o seu trabalho, naquela terrível corrida em que se achava empenhado. Como é que ela não o notara? Notara, é certo, a sua rigidez, o seu modo de se sentar à mesa apoiando-se nas mãos; os ombros direitos, horizontais, altos... como uma cruz. Sim, Clem evocava­-lhe uma cruz. Muitos julgavam-no maluco, um fanático, e assim o era... para eles. Ela conhecia, porém, o seu coração. Ele não poderia ser senão assim. Fora formado pelos seus pais, conforme os seus espíritos simples e os seus meigos corações, influenciado pela sua fé ardente, a sua fantástica loucura, a sua pavorosa morte. E a fome da sua infância integrara-o na fome do Mundo.

-Querida - dizia ele frequentemente--, não se pode pregar ao povo antes de o alimentar. Eu o alimentarei, e os outros que preguem.

Era bem dele escolher para si a parte mais difícil. Qualquer poderia pregar.

-A senhora deve comer alguma coisa, Mrs. Miller - diziam-lhe.

E, assim, ela comia o que lhe trouxessem, o mais que podia, pelo menos. Clem gostaria que ela comesse e, se pudesse voltar a si, dir-lhe-ia: «Come, querida!»

Alimentavam-no pelas veias. Nada sobrara do seu estômago. O cirurgião mal pôde fazer as costuras - disse-lhe a enfermeira. -Parecia uma fita podre. Como podia ele viver assim?

-Ele tirava as forças de outra coisa.

-E a senhora não sabia? -espantou-se a enfermeira. Ela disse às outras enfermeiras que aquela Mrs. Miller era uma mulher esquisita e obtusa. Nunca se sabia no que estava a pensar.

-Sempre achei que não devia intrometer-me na sua vida - disse Henrieta.

-Uma estúpida! - disse a enfermeira às outras. Qualquer mulher sensata que se interessasse pelo marido, mandá-lo-ia examinar... Ela poderia ter-lhe salvo a vida.

-Creio que poderia ter-lhe salvo a vida - disse Henrieta vagarosamente. -Mas compreendia-o tão bem... Sabia que havia coisas que lhe importavam muito mais do que a vida... De modo que eu não podia intrometer-me...

Foi o mais que ela pôde dizer.

-Eu era capaz de jurar que ela não daria um caracol por ele - disse a enfermeira às outras. -Mas basta ver a maneira como ela fica ali sentada, para ver que está a morrer com ele. Nada ficará vivo nela, depois de ele morrer.

Clem morreu de noite, às duas horas. Nunca recobrara a consciência. O Dr. Wood vinha várias vezes por dia, e, naquele dia, dissera que Clem não atravessaria a noite.

-Se a senhora quiser, Mrs. Miller, eu posso suspender as injecções e talvez ele volte a si o suficiente para a reconhecer.

-Sofrendo?

-Receio que sim.

Para quê fazê-lo voltar a si, mas sofrendo? Seria egoísmo da sua parte. Um minuto não era nada em comparação com os anos que tinha vivido com ele e com os anos que ainda viveria sem ele. Ela meneou negativamente a cabeça. O médico deu a injecção e retirou-se.

Clem morreu tranquilamente. Ela reconheceu o instante da partida. Estava sentada no seu habitual lugar, sem se mover, e recusou a chávena de caldo de carne que a enfermeira lhe trouxe à meia-noite. Logo depois da meia-noite, sentiu a aproxi­mação da morte tão claramente como se devesse também com­partilhá-la. A cada instante que passava, sentia aumentar em si uma estranha opressão. Às duas horas, a morte ali estava. A sua carne recebeu o choque, o seu coração a sentença. Uma das mãos dele jazia entre as suas, leve e fria, e ela inclinou-se sobre o leito, com o rosto próximo do de Clem. Inútil tocar os seus lábios. Um beijo não era uma comunicação agora. Melhor era relembrar os actos vivos de amor que entre ambos houvera do que guardar na memória o último dom sem resposta! Ele tinha sido um perfeito amante, não frequente, jamais fremente, mas doce e cortês. Direito e às vezes brusco tinha sido na vida diária, muito ocupado como estava para pensar continuamente nela, mas Henrieta sabia que ele a conservava sempre consigo como conservava a sua própria alma. E havia as raras vezes, as horas em que ele a beijava e amava, horas perfeitas, porque não forçadas, mas um natural encontro carnal, e sempre mais do que carnal, e, depois de tudo findo, a sua terna gratidão

-Que bom o teu amor! Obrigado, querida!

Jamais tornaria a ouvir essas palavras! Nunca tinha pensado nisso. As lágrimas que não tinham vindo, vieram agora, pesadas, ardentes.

-Receio que seja o fim, Mrs. Miller - disse a enfermeira. Estava do outro lado do leito, segurando o pulso de Clem.

Henrieta ergueu-se. O seu coração batia tão forte que ela sentia-se tonta.

-Poderia... voltar-se... um momento...?

A enfermeira virou a cabeça e mordeu o lábio: por mais que morressem, era sempre terrível, a gente não podia acostu­mar-se.

Henrieta inclinou-se sobre Clem e encostou o rosto contra o seu. Chegou-lhe os lábios ao ouvido e disse bem nitidamente, transpondo, com todo o seu coração, o espaço entre as estrelas:

-Que bom o teu amor! Obrigada, querido!

Era a última vez na vida que ela dizia a palavra «amor».

Enterrou-a com ele, como uma flor.

Depois de Clem ter morrido, nada mais havia a fazer senão persistir até que se efectivasse o que ele queria realizar. Era tudo o que lhe restava. Agora que ele partira, era espantoso o pouco que lhe ficara dele. Até o rosto de Clem parecia esvair-se do espírito de Henrieta. Na verdade, poucas tinham sido as horas em que eles haviam sido indivisos. A maior parte da sua camaradagem, que ela agora sentia como a sua única verdadeira camaradagem,fora quando ele falava acerca dos seus trabalhos, dos seus planos, e, finalmente, do seu sonho, da sua obsessão.

Clem tinha sido o único homem que a amara, o único homem que a pedira em casamento, o único homem com quem ela poderia ter casado. A infância que ela passara em terras estranhas havia condicionado a sua maneira de ser. Já passava agora da meia­idade, era uma mulher remota e solitária. Bump continuava mais próximo dela do que qualquer outra criatura humana, e era bastante bondoso, mas sempre inquieto, e muito preocupado com os encargos que a morte de Clem lhe acarretara. Dizia que os mercados deviam ser vendidos e Henrieta concordou. Não tinha animo para o grande empreendimento que haviam começado e, sem o génio idealístico de Clem, era difícil levar a coisa avante.

Não era difícil vender. Em cada um dos estabelecimentos havia um homem, o gerente, geralmente colocado por Clem, que estava desejoso de comprar a casa. Os preços dela eram absurda­mente baixos, e não havia limites para o pagamento. Por algum tempo, tentou estipular que deviam ser seguidas as ideias de Clem, que o povo ali conseguiria alimento mais barato do que em qual­quer outra parte. Nesse ponto também foi obrigada a ceder. Era preciso génio para tamanha ousadia, e ela não achava nenhum em si. Para Bump, ela simplesmente deu o mercado de Dayton e, depois de alguma reflexão, deu-lhe também a sua própria casa, quando resolveu seis meses mais tarde ir para Nova York com Berkhardt Feld, o famoso químico germânico especialista em nutrição.

Esse idoso cientista deixara secretamente a Alemanha num dia em que vira Hitler a pavonear-se ante uma multidão deslum­brada e ansiosa por adorar o que quer que fosse. Felizmente estava inteiramente só. Ele e sua esposa não tinham tido filhos, facto que não cessava de agradecer a Deus quando compreendeu o que estava a acontecer na Alemanha, e sua esposa havia morrido. Chorara-a desesperadamente, pois era um homem solitário e Raquel tinha sido a sua família e o seu amigo. Depois de ter visto Hitler, deixou de se lamentar, e ficou contente que ela tivesse morrido. Era fácil entrouxar os seus pertences e esconder num par de meias de lã a fórmula que representava o trabalho da sua vida, e, com a sua roupa mais velha, tomar a estrada e alcançar a fronteira. O povo ainda não tinha chegado ao ponto de matar qualquer judeu que encontrasse, e ele via mais desafio que malignidade nos olhares de desprezo que lhe lançavam. Tinha dinheiro suficiente para atravessar a fronteira, e na França encontrou direitos autorais do seu último trabalho científico, A Análise Química do Alimento em Relação com o Carácter Humano.

De Paris fora para Londres, mas lá sentira-se inquieto porque estava ainda muito perto da Alemanha, e os amigos mandaram-no para Nova York. Ali, gratamente, mergulhou no calor de uma variegada população e não gastava quase nada enquanto traba­lhava no laboratório do químico de uma Companhia de Alimentos, um homem chamado Bryan Holt, que tinha Berkhardt Feld por um génio. Conseguiu um quarto para o velho numa casa de hóspedes limpa e barata, deu-lhe uma mesa e um pequeno salário. Aliás o dinheiro pouco importava ao Dr. Feld, que apenas fazia questão de não dever nada a ninguém, e não comprava o que não podia.

Henrieta viera a conhecer o Dr. Feld por intermédio da cópia de uma carta encontrada entre os papéis de Clem e que este escre­vera a Bryan Holt solicitando ao jovem cientista que o auxiliasse a encontrar um alimento barato e nutritivo que pudesse servir até que o Mundo se tornasse bastante sensato para compreender que todos deviam ser alimentados gratuitamente. Não houvera tempo para uma resposta. Clem morrera uma semana depois de haver escrito a carta. Ah, mas na carta ela encontrou o seu tesouro, a voz de Clem, as palavras que ela ansiara por ouvir mas que ele não pudera dizer, porque ela não permitira que ele voltasse a si com sofrimento. Ali estava a recompensa do seu amor, quando ela se negara a atender aos apelos do seu próprio coração. Clem sabia que estava a morrer, muito antes que ela fosse obrigada a descobri-lo, e tinha escrito ao jovem cientista:

«Tenho alguma pressa, porque estou atacado de uma doença mortal e posso morrer de um momento para o outro. Isso não importa. Descobri na minha vida uma verdade básica e que não morrerá comigo. O que eu passei na minha vida a provar, será provado porque é verdade. Embora esteja eu no túmulo, esta é a minha vitória».

Clem vitorioso! Naturalmente que o era, pois quem poderia destruir a sua verdade? Ali estava a ordem, que ela se preparou para obedecer.

Henrieta resolveu, pois, ir falar com Bryan Holt, depois de doar as poucas roupas de Clem ao Exército de Salvação e se viu na posse de uma espantosa soma de dinheiro em mais de vinte bancos em várias cidades, onde os respectivos mercados de Clem haviam feito os seus depósitos. Os papéis que Clem deixara eram escassos, mas as suas notas sobre o Alimento, como ele o chamava, eram bastante claras. O Alimento era meio químico, meio natural, uma mistura à base de feijão com minerais e vitaminas e que, se ele encontrasse um químico para a preparar devidamente, pode­ria alimentar milhões de pessoas por uns poucos cêntimos cada ração. Era a forma final do seu sonho, ou, como William uma vez dissera, da sua obsessão. Podia ser que as duas fossem a mesma coisa.

O primeiro encontro com Holt não fora nada promissor. Holt não tinha respondido à carta de Clem porque lhe parecera absurda. Mostrava-se respeitoso ante a sólida presença de Henrieta, a sua grande face quadrada e pálida, as suas mãos fortes. Ela possuía uma imensa dignidade. Ele tentava não a melindrar, mas ela compreendeu tudo. Aquele jovem não era o homem que ela procurava, mas deveria haver um outro.

-Muita gente pensava que meu marido era desequilibrado - disse ela com sua voz tranquila. -Era porque ele estava muito adiante da sua época. Será preciso uns vinte e cinco anos, muito mais se tivermos outra guerra, para que os estadistas compreendam que o que ele dizia é simples senso comum. Não cessará de haver agitação no Mundo, enquanto o povo não tiver assegurado o seu alimento. Não é necessário que o senhor concorde com meu marido e comigo. Vim apenas fazer-lhe perguntas sobre a sua fórmula.

Bryan Holt desejava livrar-se dela, embora se mostrasse delicado, uma vez que era jovem bastante para ser seu filho. E assim lhe disse:

-Tenho um excelente cientista trabalhando aqui comigo e que veio da Europa. Ele será mais útil à senhora do que eu.

Dizendo isto, chamara de uma remota mesa uma velha e desengonçada figura que era o Dr. Berkhardt Feld, e assim acidentalmente encontrara Henrieta o seu sócio. Depois de ter falado algumas horas com o Dr. Feld, propôs conseguir um pequeno laboratório unicamente para ele, com um apartamento para a sua residência. Depois, se ele quisesse ensinar-lhe a ajudá-lo, desenvolvendo a química que ela aprendera na escola, ela poderia vir todos os dias e talvez conseguissem realizar o sonho de Clem.

Para o Dr. Feld aquilo foi um inesperado paraíso. Nenhuma das ideias de Clem era fantástica para ele. Eram simplesmente axiomáticas. Não seria muito difícil encontrar a fórmula que Clem tinha começado muito satisfatôriamente à base de feijão, questão apenas de uns poucos anos, quando seria de esperar que os homens avisados do Mundo compreendessem o que devia ser feito por milhões de órfãos e famintos.

-E então, então, liebe Frau Muller - dizia fervorosamente o Dr. Feld, germanizando Henrieta o mais possível-talvez já tenhamos pronto O Alimento.

As lágrimas subiram aos olhos de Henrieta. Agradeceu ao Dr. Feld, com a sua voz um tanto áspera, e disse-lhe que estivesse pronto para se mudar logo que ela tivesse arranjado as suas coisas em casa.

Tomada essa decisão, começou a desembaraçar-se de tudo quanto ficara, em casa, dos seus anos de casada. Entre as coisas que jamais abandonaria, estava a caixa vermelha das cartas de Clem e, com elas, o velho amuleto que ele lhe dera. Estava ainda embrulhado no papel em que lho mandara. Desenrolou o papel e excla­mou, como se ele ali estivesse: «Eu sempre quis interrogar-te a respeito disto!»

Quanta coisa desejava ela perguntar-lhe nos últimos longos anos que ainda tencionava viver com ele, anos que jamais viriam! Chorou um pouco; fechou a caixa e colocou-a na mala, para a levar consigo para Nova York. Algum dia, quando tivesse cora­gem, leria de novo todas as suas cartas. Quanta coisa ela jamais saberia a respeito de Clem, por ter andado tão ocupado com os assuntos da Humanidade!

Na noite antes de partir, convidou Bump e Frieda para jantar, a fim de indagar alguma coisa do primeiro a respeito de Clem. Quanto a Frieda, pouco lhe importava : era uma mulheraça bondosa e estúpida.

-Desejaria que me contasse tudo o que se pode lembrar de Clem quando o conheceu naquela granja. Ele nunca me falou muito a esse respeito.

Logo viu que Bump tão-pouco lhe poderia contar grande coisa. ---Ele era exactamente como sempre foi- - disse ele, tentando evocar aquele menino pálido e empoeirado que tantos anos antes penetrara no seu pequeno e triste mundo. -O que bem me lembro é que não tinha medo de ninguém. Tinha passado maus pedaços, penso eu. O quê, não sei. Coisas que lhe aconteceram lá na China. Mas ele nunca falava sobre isso. E já se sabia impor. Os Bergers nunca lhe batiam, como a nós. E até deixavam de nos bater, quando ele estava perto. Quando resolveu partir, os outros ficaram com medo de o acompanhar. Tinham medo de que a gente do Auxílio nos apanhasse de novo e do que aconteceria depois. Eu também tinha medo, mas, depois de ele ter partido, tive ainda mais medo de ficar. Não creio que ele tivesse ficado muito con­tente ao ver-me seguir as suas pegadas. Muitas vezes tenho pen­sado nisso. Mas não me mandou regressar.

Não havia mais nada, aparentemente. O perfil de Clem permanecia simples e angular. Depois de Bump sair, ela estudou de novo as notas que Clem deixara sobre O Alimento. Se ela con­tinuasse a tentar o que ele desejava fazer, então talvez pudesse conservar a sua memória consigo, de modo a não esquecer, quando fosse velha, como ele parecia e como era o som da sua voz...

 

Não ocorreu a Henrieta procurar os seus parentes e dizer-lhes que estava em Nova York. Nem mesmo pensara em comunicar-lhes a morte de Clem, mas eles tinham visto a notícia nos jornais de Nova York. Clem era bastante conhecido. William mandara um telegrama de pêsames e Ruth enviara uma cruz de flores para o enterro. Sua mãe estava na Inglaterra, e algumas semanas depois chegou uma sua carta, dizendo que nunca achara que Clem tivesse boa cor e que, portanto, não ficara surpreendida. Dizia que Henrieta devia cuidar de si. Era uma sorte ter Clem deixado dinheiro bastante. Se Henrieta desejasse, viria morar com ela, mas não podia viver no Middle West. Nova York ou Boston estaria às maravilhas. Henrieta não deu resposta à carta.

Agora que Clem partira, ela estava novamente solitária, mas não como o estaria se ele jamais houvesse aparecido na sua vida. Ele compartilhava com ela, e ainda compartilhava em memória, da sua infância oriental, que não poderia compreender quem apenas tivesse sido criança ali na América. Sem gostar da China, sem sentir pelos chineses nada da estreita afeição de Clem, acha­va-se eternamente dividida em alma e espírito. Ocorria-lhe às vezes que essa divisão também podia explicar William. Talvez tudo o que ele fazia era no sentido de conseguir a própria unidade. A uni­dade que ela pudera encontrar em Clem, porque cada um deles compreendia as lembranças do outro. William não tinha achado ninguém com quem a pudesse compartilhar. Talvez ele não tivesse conseguido a unidade por intermédio do amor. Ela iria visitar Candace. Tomada esta decisão, dirigiu-se ao laboratório, como de costume.

O Dr. Feld, observando a grande e silenciosa mulher que trabalhava pacientemente sob as suas ordens, reflectia às vezes sobre o seu ar distante e o seu génio. Ela não necessitava de nin­guém, como também ele não necessitava de quem quer que fosse. Tinham terminado as suas vidas, ele na Alemanha, ela... aonde? Talvez na China, talvez numa tumba. O mais que faziam agora era apenas gastar ultimamente o tempo que lhes restava. Ele dese­java ter conhecido o homem que deixara aquelas extraordinárias embora imperfeitas notas. Ela dissera que seu marido tinha tido apenas uns poucos anos de escola primária e nenhuma experiência científica.

-O seu conhecimento deve ter sido intuitivo, querida senhora, - replicara ele.

-Ele tinha a capacidade de aprender das criaturas humanas, - disse ela. -Sentia as suas necessidades e assentou toda a sua vida sobre o que descobriu. Chamava a isso alimento, mas era mais do que alimento para o corpo. Fazia da necessidade humana a sua filosofia e a sua religião. Se o senhor o conhecesse, achá-lo-ia um homem muito simples.

-Assim foi Einstein-comentou o Dr. Feld.

Não falavam muito. Quando falavam, era a respeito de Clem ou a respeito da fórmula. Ele explicava-lhe a peculiar, quase atómica vitalidade das vitaminas. «A fonte de toda a vida está no átomo» - dizia ele solenemente. «Deus não está na imensidão da grandeza. Deus está oculto na imensidão da pequeneza. Deus não está no geral. Deus está no particular. Quando compreendermos o particular, então saberemos tudo». Quando ele verdadeira­mente falava, expressava-se em alemão. Ela estimava haver aprendido alemão no colégio e tê-lo conservado pela leitura.

Numa tarde de Verão, ela tirou o avental branco e pôs o chapéu e o casaco. -Vou sair mais cedo hoje, Dr. Feld, para ir ver uma pessoa minha conhecida.

Ele pareceu surpreendido e satisfeito. -Meu Deus... a senhora tem amigos, querida senhora!

Assim, Henrieta retirou-se, tomou o metropolitano e dirigiu-se para Sutton Place.

Achou o endereço numa rua tranquila, num quarteirão de casas brancas com venezianas. O Sol oblíquo enchia a rua de luz e sombra. A porta logo se abriu e uma criadinha de branco e preto pediu-lhe que entrasse, com a sua fresca voz irlandesa. Ela seguiu-a até um grande salão, todo de branco e ouro. A criadinha desapa­receu. Henrieta sentou-se numa vasta cadeira de cetim dourado, e um momento depois Candace entrou, parecendo ainda jovem, com os seus olhos meigos e os seus cabelos de um loiro prateado. A sua suave boca polpuda sorria e Henrieta sentiu na face um perfumado beijo.

-Henrieta, isso é a mais linda coisa que já fizeste. Eu nunca esperei nada da família de William... Senta-te e deixa-me olhar-te. Chorei tanto quando soube da morte de Clem... Devia ter escrito, mas não pude...

Estava com um vestido para chá de «chiffon» violeta, amplo e cinturado de prata. Estava de novo muito elegante e mais bela do que nunca.

-Deixa-me olhar-te - disse Henrieta. -És feliz, Candy? Candace corou. -Sou mais feliz do que nunca fui em minha vida. Sim, feliz da maneira como desejo ser feliz.

Pôs a mão sobre a mão de Henrieta. -Quando estava com William, eu era feliz, também. É tão fácil, para mim, ser feliz... Mas então eu era feliz mais por mim mesma. Agora sou feliz com Seth.

-Eu sei - disse Henrieta. Não tomou a mão de Candace porque não sabia como fazer tais coisas; Candace compreendeu-o, bateu-lhe na mão e retirou a sua.

-Não censuro William - disse ela gentilmente. -Nem mesmo permito que Seth lhe queira mal. William necessitava de alguém que o compreendesse. Seth e eu, naturalmente, criámo-nos no mesmo Mundo.

Ela sorriu suavemente para Henrieta. -Deves visitar-nos, querida. Não vivemos muito aqui. Moramos na velha casa à beira-mar.

-Onde é que Seth está a trabalhar? -perguntou Henrieta. -Agora só trabalha nas suas peças - respondeu Candace.

-Diz ele que William o galvanizava no colégio, senão nunca teria trabalhado. -Candace riu o seu sonoro riso juvenil. -Seth é tão divertido... Diz que William modelou a sua vida. Primeiro, influiu-o para trabalhar por ele e depois influiu-o para trabalhar contra ele. Agora, diz Seth, não trabalha absolutamente nada, porque está verdadeiramente livre de William. Nós dois somos muito espertos, digo-te eu.

-Não é preciso esperteza para ser feliz - observou Henrieta.

Candace apertou-lhe novamente a mão. -Agrada-me ouvir-te dizer isso! Era o que eu costumava dizer, mas ele não sabia o que eu queria dizer. É o que eu digo aos rapazes agora, mas eles são também filhos de William, de quem são terrivelmente orgulhosos.

-Fala-me de ti própria - disse Henrieta.

Candace ergueu a mão. O seu rosto voltou-se para a porta. -Espera! Ouço Seth que chega. -Ergueu-se, foi até à porta, chamou e ele veio.

Henrieta viu um homem alto e grisalho, com uma simpática face, determinadamente irónica. Era um dos que ela se lembrava, e estendeu-lhe a mão.

-Foi muita bondade sua ter vindo - disse ele. -Candy e eu não esperamos favores.

-Gosto de Candace. Queria ver se você era bom para ela. -Não julgue à primeira vista-pediu ele. -As minhas fra­quezas são tão óbvias!

Ela sorriu polidamente, não sabendo como responder a tais brincadeiras, e olhou para Candace:

-Minha querida, não comi nem bebi nada desde o almoço.

-Oh!... Vou mandar servir o chá. -A sua saia violeta voou através do cinzento prateado do tapete e ela puxou o cordão negro de uma sineta, pendente, decorativamente, junto à prateleira de mármore da lareira.

Tomaram chá, então, agradável cerimónia em que Henrieta tomou parte, lealmente silenciosa e levemente sorridente, gozando o aconchego da teia que aqueles dois seres teciam em redor de si e em que também a envolviam. Eram brincalhões sem rudeza, e jovialmente francos consigo.

-Tua mãe, querida - disse Candace-, tem andado a explorar a Inglaterra, como bem sabes. Tem simplesmente espantado toda a gente. Seth, onde está a carta que recebemos de Lady Astley?

Seth abriu a gaveta de uma escrivaninha de mogno e atirou­-lhe um sobrescrito ao regaço.

-Não te importas? -indagou Candace, com os olhos bri­lhando de divertimento.

-Eu conheço minha mãe - disse Henrieta.

Candace abriu o papel azul pálido e começou a ler em voz alta

«O que não podemos compreender aqui na Inglaterra é por­que Mrs. Lane não é a mãe do Presidente. Penso que ela tão­pouco o pode compreender. Ela é uma jóia e um tesouro. Ela areja-nos o espírito e dá-nos ânimo para enfrentar esses socialistas. Na verdade, ela é um número... nós gostamos dela. Há alguma coisa de inglês nela, se compreendes o que quero dizer... que chega a assustar. Ela tem tanta segurança que é mesmo maravilhoso. Sempre existirá a Inglaterra, etc. e tal... É uma maravilha pensar que existe disso na América, também. Nós todos ficamos tristes ao pensar que ela terá de partir um dia. Deus nos acuda, mas a Rainha-Mãe Americana odeia o Trabalho, também! Ela denomina-se Republicana. William, o Filho, é um Republicano, diz ela. Que é um Republicano, querida? Pensa bem, e dize-me quando me escreveres».

-Que maldade ler isto! - disse Candace, olhando com riso­nho arrependimento para Seth, afundado na sua cadeira e fumando o seu cachimbo.

-Tolice! -- replicou ele. -Henrieta sabe que nós gostamos da boa da velha. Meu Deus, como eu invejo os velhos! Eles têm o Mundo muito bem arranjadinho, Céu e Inferno, Deus e Diabo, Paz e Guerra, o bom e o mau, o moral e o imoral, ricos e pobres...

Candace entrou na ladainha:

-Jovens e velhos...

-Branco e preto...

-Ouro e prata...

-Oriente e Ocidente...

-Rei e súbditos...

-Cidade e Campo...

-Capital e Trabalho...

-Capitalistas e Comunistas...

- Brancos e negros...

-Basta! - disse Candace. -Henrieta já deve estar tonta.

-Não! - protestou Henrieta. -Estou apenas a divertir-me. Abençoados vocês por serem felizes! Bem, agora tenho de ir.

Deixaram-na sair, reclamando o seu regresso e arrancando-lhe a promessa de que iria passar um mês com eles na sua casa à beira-mar.

Não iria, naturalmente, mas isso não lhes poderia dizer. E tomou de novo o metropolitano e voltou para o seu tugúrio na cidade.

Há muito que anoitecera. O Dr. Feld ainda devia estar a trabalhar, mas ela não foi verificar. Quando fechara a porta sobre aquela esplêndida e doida felicidade, foi como se saísse do luar para as trevas. Fora tão acostumada à solidão que não podia com­preender porque é que a solidão parecia agora mais profunda do que antes, uma vez que descobrira exactamente o que desejava, isto é, que Candace era feliz e que nenhum deles lhe queria mal por causa de William. Depois lembrou-se de que nem Seth nem Candace lhe haviam perguntado onde ela morava ou o que estava a fazer. Isso não lhes ocorrera. Eles não eram cruéis, não eram sequer egoístas ou inconsiderados. Eram simplesmente ignorantes, Candace naturalmente, Seth talvez de propósito. Ele voltara para o mundo em que tinha nascido e que Candace nunca havia deixado. Para eles não existia outro mundo. Nunca tinham conhecido, nem o poderiam, o mundo em que Clem sempre vivera.

Ocorreu-lhe mais tarde, depois de se ter sentado à mesa, tentando estudar um texto de química, que talvez fosse por isso que Candace jamais compreendera William. William conhecia, também, um outro mundo. Deixou o livro cair no chão e ficou sentada, por longo tempo, a reflectir sobre este facto espantoso: Clem e William, tão profundamente diferentes, eram semelhantes!

 

William Lane já não era novo. Quando via os seus dois filhos, ambos casados e eles próprios com filhos, os seus netos, sentia-se alarmantemente velho. Por outro lado, sua mãe estava robusta e activa, embora já na casa dos oitenta, e, assim, ele ainda era novo. Tinha chegado ao ponto de se orgulhar dela, embora ela não raro o irritasse com a sua crescente irresponsabilidade. Agora, por exemplo, quando Ruth se achava em grandes dificuldades com Jeremias, que se tornara um ébrio irremediável, sua mãe fazia vida social na Inglaterra. Queixou-se disso a Emory, que o escutou com a sua habitual gentileza e fez depois uma sensata sugestão. Ele dependia muito do bom-senso de sua mulher.

-Porque não telegrafas a tua mãe para vir morar com Ruth? -perguntou Emory.

-Excelente ideia-aplaudiu William.

Mrs. Lane recebeu o telegrama no dia seguinte. Estava habitando numa grande casa de campo em Surrey, onde os ren­deiros se haviam reunido, pelo Natal, à velha maneira inglesa, para beber à saúde do senhor, a despeito do Governo. Havia algo na vida inglesa que lhe lembrava Pequim, e ela gostaria de passar o resto dos seus dias na Inglaterra, embora os socialistas estivessem a estragar tudo. Não havia razão para que um americano sofresse a austeridade em que insistia Sir Stafford Crips, e especialmente uma americana. Ter-se-ia demorado mais tempo, todavia, com a sua amiga a Condessa de Burleigh, se não tivesse recebido o tele­grama de William. Jeremias, ao que parecia, fora para um hospital especial, e Ruth necessitava dela.

Mrs. Lane ergueu os seus belos e pesados ombros ao ler o telegrama que lhe trouxe o criado. Estava a tomar um tranquilo chá, a sós com a condessa. A condessa era velha, também, e como andava sempre à procura de diversões, Mrs. Lane tinha estado a diverti-la com uma longa visita.

-Não posso compreender porque meus filhos insistem em que eu vá ter com eles a cada crise que acontece na sua vida - ­queixava-se ela agora à condessa. -Seria óbvio que, na idade em que estou, me fosse permitido desfrutar da minha própria liber­dade. Mas não... William, ao que parece, acha que eu devo ir para casa. Minha filha mais velha está, naturalmente, entregue ao seu sentimento - eu já lhe disse que ela perdeu o marido-e, deste modo, a minha pobre filha mais nova volta-se para mim. O seu marido está numa triste situação.

-Que mal lhe aconteceu? --inquiriu a condessa. Havia sido na juventude uma estrela de «music-hall» e continuava a parecer muito airosa, apesar de certa propensão para o reumatismo, e falava com o juvenil acento Cockney, que pretendia usar proposi­tadamente.

-Creio que ele começou a beber demais outra vez - replicou Mrs. Lane.

-Ah, se é assim - disse a condessa peremptoriamente-, a minha querida amiga está então em maus lençóis. O meu pobre Harold era a mesma coisa e terminou assim. Não adianta tentar coisa alguma. Eu costumava pregar-lhe uns sermões e ele, no princípio, ficava assustado, compenetrava-se... Mas isso só servia para o fazer beber ainda mais. Tive de deixar que bebesse até morrer.

Isso não era nada animador, e Mrs. Lane regressou a casa de avião logo que pôde arranjar lugar, o que conseguiu em breve tempo, para surpresa e aborrecimento do passageiro que já o tinha reservado. Ela sabia utilizar o nome de William quando era preciso.

Encontrou Ruth sôzinha. Emory que a fora esperar ao aeródromo, acompanhou-a. Ruth começou a chorar quando viu a mãe parada e imóvel no «hall», para que a criada lhe pudesse tirar devidamente o casaco, e Mrs. Lane, vendo as lágrimas da filha, reparou que Ruth, agora uma mulher de meia-idade, chorava exactamente como quando era menina, em silêncio e com ar assustado. Estendeu os seus vigorosos braços e enlaçou Ruth. -Vamos, vamos - disse ela. -Tudo vai ficar bem agora. Vim para viver contigo. Precisas de mim mais do que Henrieta. Onde está Henrieta?

-Não sei-soluçou Ruth. -Não posso pensar em mais ninguém senão em Jeremias. Oh, mãe, porque será que ele...? O médico diz que é apenas um sintoma... Há alguma coisa que o faz infeliz... mas não eu, tenho a certeza. Faço tudo o que ele quer de mim.

-Tolice! - disse Mrs. Lane, sustentando firmemente a filha no círculo do seu braço direito, enquanto a conduzia para a sala de estar. --Os homens gostam de se embriagar.., alguns homens... A culpa não é de nenhuma mulher.

Emory deu um rápido beijo na face de Ruth. -William também se sente desesperado, querida Ruth. Nós todos queremos ajudar o pobre Jeremias.

-Ele enganava tanto a gente, mãe! - - disse Ruth. - Aparentemente, saía todos os dias para ir trabalhar no escritório, e, em vez disso, começava a beber. Uma vez em que não voltou para casa, naturalmente tivemos de o procurar. Jeremias tinha fechado a porta por dentro e foi preciso arrombá-la. Estava inconsciente. Mandei chamar o Dr. Blande. Levaram-no directamente para o hospital. Nem ao menos o vejo. O Dr. Blande acha que eu não devo ir visitá-lo por enquanto.

Continuou a chorar de novo. Mrs. Lane suspirou e Emory mantinha-se sentada, serenamente linda, a olhar para aquelas parentas americanas. Ela sabia porque Jeremias se entregara. Era a sua vingança contra William, a vingança de um homem fraco contra um homem invencível. Emory tinha simpatia pelos fracos, mas era prudente bastante para se juntar aos invencíveis. William fazia bem em ser invencível na espécie de Mundo que havia agora. Era a única oportunidade que tinha a gente de sobreviver. Ela era invencível, também, ao lado de William. Lamentava Ruth e sentia uma nova admiração pela mãe de William, sentada ali firmemente e sem lágrimas.

-Ruth, para que choras agora que estou aqui? - disse Mrs. Lane. --Sinto muito por ti. Teu pai era um santo. Estavas acostumada com homens bons. William, também, é tão bom... É natural que um homem como Jeremias seja uma provação para ti. Mas tu pertences à família, e a família cuidará de ti. O meu conselho é deixar Jeremias lá onde está, até que William nos diga o que devemos fazer. Talvez devas comunicar tudo a Candace, para que ela o possa ir visitar.

Ruth estremeceu. -Oh, não posso! Ela pensa que é um pouco por nossa culpa.

-Então ela é uma grande tola - comentou Mrs. Lane em voz alta. -O mal de Jeremias é que não se dá bem nas alturas. Não pode viver conforme os padrões de William. Vamos, vai lavar o rosto e escovar os cabelos, porque te sentirás melhor. Não há nada que possas fazer por Jeremias, nada mesmo. Bem podíamos comer alguma coisa e ir depois a uma «matinée». Isso distrair-te-á das tuas preocupações. Emory, porque não vens connosco? Lindo vestido, esse teu! Sempre gostei desse tom de amarelo, especial­mente com jade. Belo jade, também.

-William trouxe-o da China - disse Emory. - Foi a sr.a Chiang quem lho deu para mim.

-Ela tem um gosto maravilhoso - disse Mrs. Lane. -É pena que os comunistas tenham tomado o Poder!

Elas estavam sózinhas, pois Ruth havia deixado a sala tão obedientemente como se fosse uma criança. Mrs. Lane inclinou-se para Emory: - O jade condiz bem com cabelos e olhos negros. William nunca devia ter casado com Candace. Ela era loira, como tu sabes. Ele sempre gostou mais das morenas. As chinesas usam muito jade. Naturalmente, são sempre morenas. Algumas chinesas têm uma pele belíssima. Faz-me lembrar a tua. Eu conhecia a Velha Imperatriz. Na verdade, éramos quase íntimas. Tinha ela essa espécie de pele, muito macia e dourada. Usava muito jade. William sempre gostava de ouvir falar a seu respeito. Um dia levei-o com licença especial para que a visse.

-Ele contou-me-interrompeu Emory.

-Ninguém pode esquecer a Imperatriz-acrescentou Mrs. Lane com complacência.

Ruth entrou, parecendo outra vez bonita. O seu curto cabelo encaracolado estava quase branco e ficava-lhe muito bem. Saíram logo, pois já era tarde, e encontraram os teatros tão cheios que só puderam conseguir lugares numa revista musical.

Ao jantar, naquela noite, Emory contou a William o que se passara durante a tarde, e ele escutou gravemente. Raramente tinham convidados, agora. Desde a guerra, eram muito poucos os visitantes estrangeiros realmente distintos, e não havia muitos americanos suficientemente importantes para serem convidados para toda a noite.

-Aconselharei Ruth a pedir o divórcio - disse William com decisão. Ele tornara-se um bonito homem, com os anos. O ar de contrariedade que lhe sombreava o rosto desde a infância tinha quase desaparecido.

-Oh, vais fazer isso? - murmurou Emory brandamente.

-Claro! Porque não? Ela não é católica - replicou William. --Além disso, na sua idade, certamente não casará de novo. Da minha parte, ficarei contente por me livrar de Jeremias.

Emory não replicou. Estavam sentados e em confortável silên­cio. Ela sentia-se feliz por não ter de viver agora na Inglaterra. Que terrível não seria a sua vida na penúria em que Michael e a sua família eram obrigados a viver! Ele tentava pagar os impostos das terras, pois o governo ameaçava confiscar Hulme Castle se o não fizesse. Agora, o único lugar verdadeiramente seguro e confortável no Mundo era a América.

Esse pensamento inspirou-lhe uma ideia invulgar. -William, que dizes de um bom jantar em família, agora que tua mãe voltou, que nos reúna de novo nestes dias agitados? Afinal de contas, não há nada como a família. Seria um conforto para as tuas pobres irmãs e impressionaria bem os filhos. Não é preciso trazer os netos.

As pesadas sobrancelhas de William ergueram-se. Afastou o prato de salada. Jamais gostara de saladas, a que chamava comida para coelhos. -Vou a Washington, na próxima semana, insistir sobre a remessa de mais armas para Chiang. Fiz-lhe essa promessa, promessa que considero sagrada, apesar do que aconteceu na Coreia.

Emory não aceitou a evasiva. William tornara-se divertida­mente ditatorial naqueles últimos anos. -Porque não lhes telefo­nas, então, convidando-os para amanhã à noite? Afinal de contas, trata-se da família. Não é preciso ser muito formal.

William pensou um pouco, depois consentiu. -Muito bem. Mas recomenda-lhes que sejam pontuais. A mulher de Will chega sempre atrasada.

Emory ergueu-se logo e atravessou o tapete com o seu passo rítmico. -Vou telefonar primeiro a Henrieta.

Nenhum deles pensaria em dizer que não poderia comparecer, salvo se Henrieta declarasse que tinha de trabalhar no seu absurdo laboratório. Em todo o caso lhe diria que não era preciso trajo de recepção.

-Dizes que não é preciso? -inquiriu Henrieta ao telefone. --Mas tenho um vestido preto bastante decente. Mandei fazê-lo quando Clem foi condecorado em Dayton, como o cidadão que mais fez pela cidade durante a guerra.

-Oh, então iremos em trajo de recepção - respondeu Emory. -Em todo o caso, William sempre se veste para o jantar.

Assim, ela telefonou a todos que viessem em trajo de recep­ção, de modo que foi para a sua família na sua melhor apresentação que William olhou na noite seguinte, depois de ter dito a sua habitual acção de graças. O jantar era excelente, saudável sem ser pesado. Emory compreendia a alimentação como jamais o fizera Candace e não tinha escrúpulos em despedir um cozinheiro descuidado. Jamais se permitia imiscuir-se na situação doméstica de qualquer criado, falta essa em que Candace repetidamente incorria. Tinha uma vez suportado abomináveis omeletes durante quase três anos, porque o cozinheiro tinha um filho paralítico. Afinal o próprio William despedira o cozinheiro num domingo, depois de lutar com um pedaço de sola amarela no seu prato.

Naquela noite, o caldo, o assado, o faisão, as verduras, tudo estava delicioso. William não se importava com doces, mas Emory apresentara uma sobremesa russa, regada a rum, que ele jamais havia provado antes. -É uma pena - observou ele - que as nossas relações com a Rússia não possam ser confinadas aos seus doces. -Todos riram e até mesmo Emory sorriu.

A mãe de William estava muito elegante, de veludo lilás e peitilho de renda creme. Ninguém sonharia que ela já fora esposa de um missionário na China. Conservara a sua forte compleição, apesar da idade, e a sua visita a Inglaterra, prolongada como fora, dera-lhe um ar imperial, realçado pela coroa de caracóis brancos dos seus cabelos, de que tanto se orgulhava. Ele orgulhava-se da mãe e, finda a refeição, levou-a para a mais confortável poltrona, na grande sala de estar.

-Estás com excelente aspecto, mãe.

-Estou com uma esplêndida saúde, graças a Deus - replicou ela, em voz sonora. -Não tenho tido muita sorte contigo, seu filho ingrato. Bem sei que tens estado muito ocupado para te preocupares com a tua velha mãe. -Ela inclinou-se na ponta da cadeira. -Agora, William, quero que tenhas uma conversa com Henrieta. Ela está a morar na cidade baixa, no mais mise­rável dos apartamentos. Isso não está bem, tratando-se de tua irmã.

-Que faz ela? -perguntou William. Sabia vagamente por Ernory que Henrieta estava ainda a trabalhar numa das absurdas ideias de Clem, e os seus olhos cairam sobre ela enquanto falava. Ela estava sentada, no seu característico repouso.

-Está a trabalhar nalgum laboratório, com um velho judeu. Não sei o que é que ela está a fazer. Clem tinha certas esqui­sitices, bem sabes...

Nesse momento Henrieta ergueu os seus negros olhos e sorriu para eles. Estava mais gentil de que de costume, embora ainda mais distante.

-Desejo falar contigo mais tarde, Henrieta - disse-lhe.

Ela fez um gesto de assentimento e baixou os olhos.

Ruth estava bastante bonita, apesar das suas preocupações. Ele tinha tempo agora para observar cada membro da sua família. Ela ganhara peso-comendo, provàvelmente, para afastar o espírito de Jeremias. De todos eles, era Ruth quem mais se parecia com seu pai, com as suas feições delicadas e os seus ossos finos. Mas nada havia, na sua face, daquela espiritualidade que ele recordava, com reverência, como a habitual expressão de seu pai. As duas filhas dela eram indescritíveis jovens matronas, pensou ele. Pareciam-se com todas as mulheres modernas, deslumbrantes cabeleiras loiras, largas bocas pintadas, refulgentes braceletes e saltos altos. Supunha ele que estivessem muito bem, e certamente não precisavam de o aborrecer, agora que estavam casadas.

Nunca mais empregara parentes no seu negócio, nem mesmo os seus próprios filhos. Desejava ficar livre para demitir incom­petentes como Jeremias. Não que os seus filhos fossem incompe­tentes. Ambos haviam obtido exito, Will como advogado, Jerry como cirurgião. Estavam casados e ele tinha três netos, dois dos quais rapazes. Não conhecia muito bem as esposas dos seus filhos, e até fora acusado de passar por elas na rua sem as reconhecer. Tinha resmungado um bom pedaço quando Jerry casara com uma vulgar enfermeira, quando esteve como médico interno num hospital. William tinha a teoria de que seria melhor para os rapazes se fossem casados pelos pais, à maneira chinesa, de modo que se pudesse saber ao certo o que é que entrava para a família. Quando disse tal coisa a Emory, esta desatou a rir.

-Tu és o menos realista dos homens - declarou ela. -Não sabes ainda que estás a viver na América moderna? -Ele não sabia o que ela queria dizer, e era muito orgulhoso para o con­fessar.

Os seus filhos e as filhas de Ruth pareciam viver nas melhores relações com Emory. Ela estava sentada entre eles, à sua mesa de café, e parecendo, pensou ele com satisfação, inteiramente feliz. A sua régia cabeça escura estava inclinada, enquanto se ocupava com as xícaras. Trajava um vestido cor de coral de um modelo que não se lembrava de ter visto antes. A ampla saia arredon­dava-se como um cálix e trazia os seus diamantes.

Era tudo muito agradável e ele não se lembrava de jamais ter sido tão feliz. Tudo lhe estava bem, e William começava a suspeitar que talvez até mesmo a guerra tinha sido um bem para ele, a seu modo. O Mundo necessitava como nunca de direcção. Não devia, por isso, permitir-se pensar em retirar-se, por mais que Emory o esperasse. Ainda na última semana lhe dissera Mon­senhor Lockhart que a nova guerra na Ásia podia ser o começo da mais titânica luta da Humanidade. Dentro dos próximos anos...

-William - disse Emory--, tua mãe deseja saber o que pensas que está para acontecer na China.

-Uma nova China muito estranha, em nada parecida com o que eu e tu recordamos, Henrieta, da velha Pequim. Tu gos­tarias dela menos do que nunca, mãe. Não creio que Ruth se lembre... - disse ele.

Ouviram a sua descrição da China comunista, sem o inter­romper, excepto sua mãe, que a pontilhava com gritinhos de horror e interjeições escandalizadas.

-Mas que coisa revoltante, William! --E, no fim: - Estou satisfeita porque teu pai não esteja aqui para ver uma coisa dessas. Ele desejaria ir imediatamente para lá, embora, como eu sempre disse, não saiba o que é que um homem só poderia fazer. Estás a perder o teu tempo, era o que sempre lhe dizia.

-Um só homem pode fazer muita coisa- - disse William.

Ela deu um grande suspiro e sacudiu a cabeça.

-Não qualquer homem, naturalmente-acrescentou Wil­liam-, mas um homem que compreenda, um homem que tenha fé em Deus, que possua infinito poder.

Sua mãe parecia rebelde. -Teu pai também sempre pensava que compreendia, William. Ele estava sempre tão seguro de que Deus lhe dizia o que era o melhor... Não creio que haja alguma diferença desde então.

-Há uma grande diferença - afirmou William gravemente. -Agora nós realmente compreendemos.

Emory, sentindo sempre possível a dissensão em presença da sua sogra, escolheu um assunto mais ameno.

-William diz que a esposa do Velho Tigre é muito bonita, embora seja chinesa.

-Assim era a Imperatriz da China - disse logo Mrs. Lane.

-A Imperatriz não era exactamente chinesa-manchu, naturalmente, mas é quase o mesmo-e ela era muito linda. Jamais a esquecerei. Tinha uns grandes olhos, muito grandes e brilhantes. E era de uma fibra! A sua boca era muito vermelha-natural­mente pintava-a. A pele era maravilhosa, suave e branca como nenhuma outra. Nunca senti que fosse realmente culpa sua por as coisas se terem tornado tão escuras. Ela era tão encantadora... e sempre perfeitamente amável comigo. Levei William para a ver... não te lembras, William?

-Jamais o esqueci - disse William.

-Poderosa, não? E com tal encanto, também!

-Ela matou um extraordinário número de pessoas. -Era a voz de Henrieta, que soava tão tranquila que parecia quase indiferente.

-Bem, bem - disse Mrs. Lane. -Nós não sabemos quais foram as provocações que recebeu.

-É um crime matar gente - exclamou Henrieta, num tom em que Mrs. Lane reconheceu a sua antiga teimosia de menina.

-Às vezes é necessário. Para que o fim não se perca, os meios têm de ser por vezes muito severos - respondeu William.

-Então o fim está perdido - replicou Henrieta. Ergueu a cabeça ao dizer isto, e Emory sentiu que a família era realmente muito difícil. Pareciam decididos a perturbar a vida. Ela recorreu aos novos.

-Will, porque é que tu, Jerry e as meninas não abrem o salão de música e enrolam o tapete? Eu tocarei para vocês dan­çarem.

Ao som da música e ao ritmo dos pés descrevendo os novos e intrincados passos, William dirigiu-se a Henrieta.

-Vamos até à biblioteca. Eu gostaria de saber o que estás a fazer.

Ela ergueu-se quase obedientemente e acompanhou-o, com a sua figura erecta e digna, toda de negro. Desde a morte de Clem, não cortara os cabelos e agora, quase inteiramente brancos, eram bastante longos para enrolar em torno da cabeça e prender atrás, com um pente de prata. Os olhos de Emory, do piano, seguiam os altos vultos. Era surpreendente como William e Henrieta se pareciam. Mas eram muito diferentes. Henrieta desposara a pobreza pela causa de Clem. Emory já sabia muito acerca daquele solitário laboratório e do velho cientista que lá trabalhava. Mas ainda talvez houvesse uma semelhança entre William e Henrieta: uma grande força de carácter e energia espiritual que podia ser obstinadamente empregada nalguma coisa escolhida, e a coisa escolhida era assim transformada, transubstanciada, deificada. Emory compreendia isso tudo sem compartilhar de nada, amàvelmente cínica como era no fundo do coração, e melancolicamente agnóstica, enquanto curvava a cabeça. A América era agora a sua pátria e aquela era a sua família. Seus pais tinham sido mortos por uma das bombas finais. Tinham ido para Londres, julgando-a, finalmente, a salvo, e então os novos e tremendos obuses começaram a cair. O pobre Michael, em Hulme Castle, estava ainda a tentar fazer a terra produzir aquelas impossíveis colheitas, sob os olhos cruelmente críticos do incrível Governo que o povo britânico escolhera depois da guerra! William dizia que só iria a Inglaterra depois de esse governo cair. Podia ser dali a muito tempo, podia não ser nunca. As mãos dela corriam sobre o teclado. Tocava tão bem como nunca, com um ritmo natural, que podia adaptar-se tão fàcilmente a uma rumba como a uma valsa. Nada fazia diferença enquanto a música continuasse, a música e a dança.

 

-Como vês - dizia Henrieta atrás da porta da biblioteca, tão maciça que interceptava a música-estou simplesmente prosseguindo o trabalho de Clem, até conseguir o que ele desejava.

William, estupefacto, mal podia falar. Julgara Clem um fanático e um louco enquanto vivia e, se pensara nele após a sua morte, era para considerar que Henrieta estava muito melhor sózinha. Quando pensava em Clem agora, era ainda como o pálido garoto que encontrara pela primeira vez em Pequim, numa tola disputa com um chinês, um assunto muito mais banal, agora que o lembrava, do que naquele tempo. E havia a desagradável lembrança de Clem, como um rapaz pálido, de colarinho muito largo para o seu pescoço, depois que se casara com Henrieta, e ainda havia aquela última loucura do dia em que Clem aparecera no seu escritório com as suas absurdas propostas e sem encontro marcado. Clem nunca aprendia coisa alguma. A sua vida fora toda de uma só peça, toda um absurdo, com excepção de ter deixado algum dinheiro a Henrieta. William nunca reconhecera Clem como fazendo parte da família. Respeitador, pelo menos uma vez, dos sentimentos de sua irmã, não se referiu a Clem. Falou exclusi­vamente nos interesses dela.

-Se, como dizes, herdaste uma considerável fortuna, pare­ce-me loucura consumi-la numa ideia tão fantástica. Se se der ali­mento ao povo, o que é, em suma, a única necessidade básica, a maioria das pessoas jamais tornaria a trabalhar.

Henrieta tentou mais uma vez. -Compreendes, William, não se trata apenas de que eles não devam morrer de fome. Eu acredito, e Clem também acreditava que, salvo se for alimentado, o povo há-de erguer-se contra qualquer governo que venha a ter. O governo que primeiro compreender a ira dos famintos, vencerá. O povo sente que não é obrigado a passar fome por qualquer razão que seja. O Dr. Feld diz que as promessas de alimento de Hitler foram os primeiros degraus do seu Poder.

William caminhava inquietamente de um lado para o outro, enquanto Henrieta o óbservava. --A ideia é tão fantástica!­repetia ele. -Pensar em alimentar o povo da China! Isso não se pode fazer.

-Tem de se fazer-obtemperou ela. -E há o povo da índia e todos os outros povos.

-Fantasias, fantasias! -murmurava William.

Ela contraditava-o em cheio. -Fantasias não, William, mas puro senso-comum. Sabes porque não podes compreender? Por­que tu e Clem trabalhavam em polos opostos. Ele acreditava que o Mundo só poderia ficar melhor quando o povo fosse melhor. Ele acreditava que o próprio povo poderia fazer um Mundo bom se ao menos se visse livre da simples miséria. Essa era a fé de Clem. A tua não é assim. Tu pensas que o povo tem de ser compelido de fora, modelado, ordenado, disciplinado, que se lhe tem de dizer o que deve fazer. Eu não sei onde está a tua fé, William... suponho que a tens, pois pela tua própria obstinação, William, vejo que estás a trabalhar pelo mesmo objectivo que Clem.

William tomou-se de súbita cólera. -Nego a mais leve seme­lhança com ele. Henrieta, digo-te que...

Ergueu as duas mãos fechadas, mas viu que estavam trémulas e baixou-as. -Clem era um homem perigoso, uma ameaça, ou poderia ter sido, se houvesse obtido êxito. Ele trabalhava nas pró­prias raízes da nossa nação para nos destruir. Não gosto de dizer isto, Henrieta-eu não esqueço que és minha irmã-, mas agora que ele está morto, é melhor que saibas a verdade.

Henrieta permanecia calma. -Bem, William, nós não nos compreendemos um ao outro. Nunca nos compreendemos. Mas um dia ficará provado que Clem estava com a razão, e, quando ficar provado que tinha razão, William, tu serás derrotado, tu e contigo o Velho Tigre e a sua bela esposa e todo o resto da tua espécie. Como aquela Velha Imperatriz, que a nossa mãe continua a adorar!

-Henrieta, falas-me muito maldosamente. -Que remédio?

Ela estava tão calma, tão irremediavelmente obstinada, que por um instante ele sentiu-se doente de raiva, exactamente como tantas vezes acontecera quando ambos eram crianças na China. Mas fez por a acompanhar até o «hall» e ajudou-a a vestir a capa, uma capa de lã negra. Estava resolvida a deixá-lo e, pelo que ele pôde ver, deixar todos eles. Não lhe permitiu que dissesse aos outros e se retiraria.

-É inútil incomodá-los - disse ela, na sua lacónica maneira.

Assim, deixou-a sair, e depois ficou a olhá-la, de uma janela. Ela não chamou um automóvel. Em vez disso, começou a descer a rua, com a cabeça erguida e a capa esvoaçando ao vento. Era uma noite clara e ele podia ver as estrelas no alto. Na última curva, parou, à espera do ónibus. Ele podia ainda vê-la, esperando ali, e teria continuado a observá-la se não se tivesse aproximado dela, pedindo esmola, uma dessas miseráveis criaturas. À luz do lampião da esquina, William viu-a abrir a bolsa e dar dinheiro ao mendigo, estimulando, portanto, pensou ele com amargura, essa espécie de gente. Fechou as cortinas, fremente de cólera. Durante toda a sua vida, andara indignado com Henrieta, e com aquele visionário do Clem.

Ficou parado atrás das pesadas cortinas de veludo e recorreu ao seu velho espírito arrogante. Não suportaria loucos! Fechou os olhos e esperou. Nenhuma segurança veio ao encontro dos apelos da sua alma. Desejava não ter pensado em Clem. Via-o de novo agora. Dentro do seu cérebro, dentro das suas pálpebras fechadas, via Clem, intrépido garoto na rua chinesa, pronto para a luta, e Clem entrando, sem ser chamado, no seu gabinete. Aquele tipo não tinha educação. Jamais conhecera o seu lugar. Morto, felizmente! Ele tinha o Mundo para si, agora que Clem estava morto.

Fechou os olhos e ouviu vagamente a música que Emory executava, mais o leve movimento dos pés dançantes. Afastou-se da janela. Sentiu então aquele familiar calafrio no coração. A antiga dúvida infantil de si próprio, a profunda e eterna dúvida que o obsidiara desde as suas mais remotas lembranças, caiu de novo sobre si, desta vez tão pesadamente que se sentiu demasiado exausto para a afastar de si.

E se ele sempre tivesse andado errado? Quem encarnava a sombra vaga da vitória? Ele? Ou Clem? A sua imaginação, doente e torturada pela perpétua incerteza da sua alma, erguia Clem do túmulo, ressuscitava-o, revestia-o da negra túnica da dúvida e do medo.

Estaria Clem com a razão? Se assim era, então ele é que estava errado e, sendo assim, estava irremediàvelmente perdido. Mas Clem teria razão? Como o poderia saber?

 

                                                                                 Pearl S. Buck  

 

                      

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