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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DECADÊNCIA PELO AMOR
DECADÊNCIA PELO AMOR

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


CONTINUA

CAPÍTULO 3

No dia seguinte ao funeral vi por acaso, reproduções da Atalanta de Aubrey Beardsley, da vinheta de Salomé, e outras mais. Fiquei admirando, encantado com a novidade que elas representavam, - encantado e simultaneamente perplexo. Fiquei olhando muito tempo, mas meu espírito não conseguia dominar a teimosia e resistência que apareciam por baixo de toda a minha admiração.
Lettie tinha saído. Se bem que fosse hora do almoço - ou talvez por causa disso - peguei no livro e fui até o moinho.
Ali, a refeição já tinha terminado, mas ficara na sala ainda o cheiro da comida. Dirigi-me logo a Emily, que estava recostada na cadeira,
e mostrei-lhe a Salomé.
- Olhe, disse eu. Olhe para isto!
Ela olhou; como era míope, observou de perto. Eu estava impaciente por ouvir sua opinião. Depois de certo tempo, voltou-se para mim e fitou-me com expressão interrogadora.
- Então? perguntei.
- Chega a ser assustador, respondeu ela mansamente.
- Não acho. Por que diz isso?
- É a sensação que nos dá. Por que motivo trouxe este livro?
- Para mostrar as reproduções.
Já me sentia consolado ao ver que Emily também se deixara influenciar pelo sortilégio daquela gravura.
George aproximou-se e inclinou-se por cima do meu ombro.
- Oh, céus! exclamou ele, meio divertido.
Os pequenos juntaram-se ao redor para ver, e Emily fechou o livro.
- Já é tarde. Vamos, Dave! bradou ela, enquanto lavava as mãos antes de ir para a escola.
- Me empresta, por favor? pediu George, estendendo o braço para o livro.
Entreguei-lhe, e ele sentou-se examinando as gravuras. Quando Mollie aproximou-se para ver também, o irmão gritou-lhe que se afastasse. Aborrecida, a moça foi logo pôr o chapéu sobre os cabelos castanhos e encaracolados. Emily apareceu, pronta a ir para a escola.
- Vou trabalhar, disse ela. Até logo. Mas parou, hesitante. Lancei mão do chapéu. George ergueu a vista para mim e indagou:
- Vai embora? Espera um pouco. Saio com você. Esperei.
- Nesse caso, adeus, disse Emily com azedume.
Ela partiu e nós ficamos. Depois de George ter contemplado largo tempo as gravuras, acabou por se levantar, conservando sempre o dedo entre as folhas do livro. Saímos e fomos muito calados através do campo. Sentou então num talude e encostou-se a um azevinho.
- Agora já não há necessidade de pressa, disse com toda a calma. E voltou à contemplação das estampas. Sabe? exclamou dal a pouco. Quero-a para mim.
- Quem? perguntei eu, desnorteado com o despropósito da frase.
- Lettie. Já sabes que recebemos ordem...
- De despejo? Por quê? retorqui espantado.
- Creio que por causa dos coelhos. E gostava que ela me quisesse também, Cyril.
- Vão deixar Strelley Mill!
- Com certeza, e isso não me entristece. Pensa que ela me quererá?
- Que maçada, terem de mudar! Para onde vão? E você ainda brinca...
- Não falemos nesse malfadado despejo. Eu a quero mais que tudo. E, começo a examinar estas estampas, o meu desejo por ela aumenta... É uma sensação violenta, como são violentas estas linhas. Até nem sei o que digo. Acha que ela me corresponderá? Já viu este livro?
- Creio que não.
- Se o visse, me desejaria também. Isto é: sentiria o mesmo que eu sinto, com igual violência...
- Mostrarei a ela.
- Tenho pensado tanto nela, desde que meu pai recebeu a intimação! Pareceu que o chão me fugia debaixo dos pés. Nunca me senti tão desnorteado. Então comecei a pensar nela... Se gostasse de mim... mas só agora, depois de ver isto, é que compreendi perfeitamente. Preciso de Lettie. É tão ruim não ter um rumo na vida! Preciso me certificar quanto antes, senão... pode haver qualquer desgraça. Vou perguntar.
George continuava debaixo do azevinho, com ar sonhador e infantil, muito diferente do costume.
- Vai perguntar-lhe? Quando? Como?
- Tem de ser já... por causa desta impressão de que tudo acabou para mim. Devo parecer muito lunático!
As pálpebras caíam-lhe pesadas, como se estivesse bêbado ou cansado.
- Está em casa? perguntou-me.
- Não, foi a Nottingham. Mas volta antes de anoitecer.
- Tenho que me encontrar com ela. Não sente cheiro de violetas?
Respondi que não. George, no entanto, teimava que sim. Parecia inquieto por não poder justificar a sua afirmação, - de maneira que se levantou indolentemente e foi ao longo do talude, observando de perto todas as plantas.
- Aqui estão, e das brancas! Bem que eu dizia.
Abaixou-se, colheu três violetas e levou-as ao nariz, aspirando-lhes o perfume com delícia. Depois meteu-as na boca e eu via os dentes alvos e fortes a trincá-las. Mastigou-as por momentos, sem dizer nada, em seguida cuspiu-as, e tornou a apanhar mais.
- Dão-me saudades dela, observou. Torceu um galho de madressilva com que amarrou as violetas, e entregou-me o ramalhete.
- Achas que Lettie é uma violeta branca? perguntei, sorrindo.
- Entrega-lhe isto e diga que venha ao meu encontro, no bosque, ao anoitecer.
- E se ela não quiser?
- Quer, com certeza.
- Mas se eu não a encontrar em casa?
- Venha prevenir-me.
Tornou a deitar-se no chão, e, com a cabeça entre as folhas verdes das violetas, observou:
- Eu devia trabalhar, porque tudo isso tem importância. Mas não me incomodo.
Olhou-me durante algum tempo e declarou:
- Parece que depois da venda não ficarei nem com vinte libras. Mas Lettie tem bastante dinheiro para um começo de vida... no Canadá... Isto, se ela me
quiser... Eu poderia enriquecer... e ela teria tudo que quisesse.
George proferiu estas palavras calmamente, como se o caso estivesse arrumado. Cheguei a achar graça.
- Como estará vestida quando vier falar comigo? perguntou George.
- Não sei! Naturalmente, o mesmo que levou a Nottingham: um acastanhado, de casaquinho justo. Por quê?
- Estava pensando como apareceria. Ouve: qual é a roupa que fico melhor?
- Você? A que tem no corpo. Não... Ponha aquele casaco velho e macio, e pronto.
Sorri enquanto lhe falava, mas George ficou muito sério.
- Acha que me devo vestir o terno branco?
- Qual! Deixe o pescoço à vontade.
George levou a mão à garganta e disse com ingenuidade:
- Acha?
Sorriu, e depois ficou olhando com expressão sonhadora para os ramos da árvore. Deixei-o sozinho e vaguei pelos campos, descobrindo flores e ninhos de pássaros.
Quando voltei era já perto das quatro horas. George pôs-se de pé e espreguiçou-se. Em seguida, puxou o relógio.
- Santo Deus! exclamou. Estive toda a tarde pensando. Nunca me julguei pessoa para isso. Por onde tem andado? Esqueceu as violetas. Leva-as consigo, por favor, e diga a Lettie que estarei aqui ao cair da tarde. Sinto-me outro - ou talvez eu, na realidade, seja assim mesmo. Espero não despertar para outras coisas... antes disso. Sabe como eu sou.
- Por que não?
- Não sei bem. Sinto-me em tal estado que falo sem pensar. Sou como os pássaros, ignoro a nota musical que vou soltar.
Quando eu me ia embora, ele acrescentou:
- Deixe-me ficar com este livro. Sinta-me diferente do que era ontem, e o livro me conservará assim... Talvez seja um ataque de fígado: tenho-os às vezes, quando me acontece qualquer coisa de extraordinário. Então não se esqueça: ao anoitecer!
Lettie ainda não regressara quando cheguei a casa. Coloquei as violetas num vaso sobre a mesa, enquanto que pensava George decerto me pedira o livro para mostrar as gravuras a minha irmã - desejo que ele manifestara logo de começo.
Só por volta das seis horas é que ela chegou. Veio de automóvel, acompanhada por Marie, mas esta não quis descer. Fui ajudar Lettie a trazer os embrulhos para dentro. O casamento estava marcado para Julho, e ela começara a fazer as suas compras.
Não demorou que a sala ficasse cheia de coisas: toalhas de mesa, roupa branca, cortes de seda, peças de renda, cortinas e tapetes - um conjunto vistoso e cintilante. Ela estava encantada. Ainda de chapéu na cabeça começou a arrebentar o fio dos embrulhos e a abri-los, falando todo o tempo com mamãe.
- Veja! Comprei uma combinação pronta. Não é linda? Ouça! E Lettie amarfanhou o tecido entre as mãos. Está ouvindo este frufru de sedas? E a cor é um encanto! Tão delicada!
Pôs a lingerie na sua frente, cingindo-a ao corpo, e continuou, entusiasmada:
- O tamanho está ótimo, não é verdade? E disseram que eu era alta... Foi um sucesso. Não quer uma mamãe? Ah, não se atreve a confessar, mas eu sei que gosta de parecer mais bonita do que ninguém... Por isso comprei este corte de seda. É um amor, não acha? Agora não comece a dizer que a cor é muito clara, porque não é. Deixe ver. Colocou a seda junto ao rosto de mamãe e acrescentou: Fica linda! Estou desconfiada de que mamãe não está gostando muito, mas asseguro-lhe que lhe fica muito bem. Fá-la parecer mais nova. Não quero vê-la usar coisas de velha. Afinal, agrada-lhe ou não?
- Claro que me agrada. O que não me agrada ê gastar dinheiro em extravagâncias. Bem sabe que não deve.
- Mãe do meu coração, não comece a pregar sermões. Ê tão divertido fazer compras! Da próxima vez irá comigo. Gostei de andar nas lojas, mas tive pena de que não me acompanhasse. Marie não escolhe nada, concorda com tudo, e eu gosto de quem me ajude a comprar. Tenho aqui outras coisas. Veja este tecido para as almofadas do sofá. Tem as cores que eu quero na minha sala: amarelo e castanho...
A ocasião era má para entregar o recado de George. Eu via as sombras adensarem-se na água calma e brilhante, via alastrar-se no poente um clarão dourado, e pensava que aquela entrevista jamais se realizaria. Por fim, Lettie atirou-se para cima do divã, soltando um suspiro e dizendo que estava cansada.
- Venha à sala de jantar tomar uma xícara de chá, lembrou a mãe. Mandei Rebeca fazê-lo logo que chegou.
- Está bem. Leslie virá mais tarde, por volta das oito e meia, segundo me disse. Acha que lhe devo mostrar o que comprei?
- Não há aqui nada que interesse um homem.
- Devia mudar de vestido, mas não estou com vontade.
Rebeca, venha ver as minhas compras... Estão na outra sala. Olha! Depois dobre tudo e ponha em cima de minha
cama, sim?
Logo que Rebeca saiu, Lettie observou:
- Ela vai gostar muito de se encarregar daquele serviço. São coisas tão lindas! Acha que preciso de mudar de vestido, mãe?
- Faça o quiser.
- Parece-me que tenho de me vestir. Ele não concorda que se use saia e blusa à noite. Vou pôr o vestido de casemira creme; ficou bonito depois que o guarneci de
rendas. Como cheiram bem aquelas violetas! Quem as trouxe?
- Foi o Cyril.
- George mandou-as, disse eu.
- Ah! Vou agora lá acima vestir-me num instante. A que trabalhos os homens nos obrigam!
- Trabalho que adoras fazer, atalhou a mãe.
- Eu? Acho até uma maçada! Exclamou minha irmã, já subindo os degraus.
O sol era um disco vermelho para além de Highclose. Ajoelhei no banco da janela e pus-me a refletir no destino. Daí a pouco o astro rubro afundava-se por trás dos cedros, e, enquanto eu observava, tive a sensação de que ele apressava voluntariamente a sua marcha.
- Tenho de preveni-lo que ela não comparecerá à entrevista, disse comigo mesmo.
No entanto, não me agradava muito sair e rodei pelo quarto, Indeciso. Lettie reapareceu, vestida de branco - ou cor de nata - com decote baixo. Parecia outra vez fresca e bem disposta, embora conservasse uns restos de excitação da tarde.
- Vou enfeitar-me com algumas destas violetas, declarou ela, lançando um olhar rápido ao espelho. Tirou as flores da jarra, enxugou-as e prendeu-as na renda do vestido.
- Não é verdade que pareço bem esta noite? Perguntou, interrogando ora a mim ora à sua imagem refletida - que, na escuridão do aposento, irradiava como um foco luminoso.
- A propósito, interrompi. George Saxton precisa de falar contigo, agora mesmo.
- Para quê?
- Não sei. Receberam ordem de abandonar a quinta e eu creio que ele está um tanto comovido.
- Vem aqui?
- Não. Pede que você vá ao seu encontro, a meio caminho do bosque.
- Essa é boa! Já sabe que não posso ir,
- Não pode ir... se não quiser. Colocou as violetas dele muito a propósito.
- Então tiro; não faz diferença nenhuma. Mas para que é que ele quer falar comigo?
- Isso é que eu não sei.
Lettie tornou a olhar ao espelho e depois consultou o relógio.
- Falta um quarto para as oito, notou ela. Disponho apenas de três quartos de hora. Mas para que será que ele deseja me ver? É esquisito!
- Chega a ser inquietante, observei, satiricamente.
- Pois é, concordou ela, relanceando a vista pelo espelho. Não posso sair assim, acrescentou.
- Nesse caso... não vá.
- Além disso, é quase noite. Deve estar escuríssimo na mata...
- É quase noite.
- Olha, vou até ao fim do jardim, só por um instante. Traga-me o xale de seda que está no guarda-roupa. Não demore, para sairmos enquanto se vê alguma coisa.
Corri a buscar o xale, com o qual Lettie envolveu graciosamente a cabeça. Saímos e fomos pela alameda do jardim. Lettie arregaçava a saia com todo o cuidado, para que a fímbria se não manchasse de terra. Na sombra envolvente ouviu-se o canto de um rouxinol. Seguimos em silêncio até ao maciço de rododendros cobertos de botões.
- Não posso entrar na mata, declarou minha irmã,
- Vamos até ao cimo do caminho. Contornamos as sebes escuras.
George estava esperando, e notei-lhe logo uma expressão de receio. Lettie deixou de segurar na saia e encaminhou-se para ele - que ficou parado, tímido e desconfiado de si próprio. Minha irmã estendeu-lhe a mão, e fê-lo com ar de princesa.
- Veja, disse ela, não faltei.
- Eu tinha essa esperança... Olhou, e adquiriu súbita coragem. - Vestiu-se de branco... Fica muito bem... embora não esteja como...
- Como quem?
- Ninguém... Eu é que... pensei em outra coisa... umas estampas.
Lettie sorriu e perguntou cheia de indulgência:
- E como seria?
- Nada de seda... Um vestido mais simples.
- No entanto, disse que eu estava bonita assim.
O contorno é menos rígido do que nos desta noite. Que desejava? Dizer-me
- Decerto... O contorno é menos rígido do que nos desenhos.
- Você está esquisito adeus?
- Adeus?
- Naturalmente. Cyril participou-me que vocês iam embora. Sinto bastante. Imagine, gente estranha no moinho! Mas eu também partirei dentro de pouco tempo. Chegou a altura de nos separarmos todos, acrescentou, segurando-me no braço.
- É verdade.
- E para onde é que vão? Para o Canadá? Você, uma vez lá estabelecido, há de tornar-se um patriarca.
- Não sei...
- Está realmente aborrecido por ir?
- Pelo contrário, estou satisfeito.
- Satisfeito por se afastar dos amigos!
- Uma vez que é preciso partir...
- Ai, o destino! O que tem de ser tem muita força. Mas não posso demorar aqui. Está ficando tarde. Quando partem?
- Ignoro, por enquanto.
- Não é para já?
- Não sei.
- Havemos de tornar a ver-nos. Agora tenho que ir embora. Quer despedir-se? Não era isso que desejava?
- Despedir-me?
- Sim.
- Não, não era. Eu queria... perguntar-lhe...
- O quê?
- Fique sabendo, Lettie... já que as coisas se modificaram... que eu lhe quero muito. Agora, que vou começar uma vida nova.
- Mas que posso fazer? Em que posso ser útil?
- Julguei que me poderia explicar claramente. Mas o meu espírito enevoou-se. Não sei o que dizer...
- Se soubesse... o que faria?
- Iria direto para o Canadá... consigo.
- Para onde?
- Para o Canadá... estabelecer-me.
- Não seria melhor tentar primeiro... certificar-se das possibilidades?
- Não tenho dinheiro.
- Ah! É por isso que me quer levar?
- É só a você que eu desejo. Eu, por mim, teria dado...
- O quê?
- Tudo o que quisesse.
- Trata-se de um negócio... Não, George, queira desculpar, não posso concordar. Bem sabe que é impossível. Estou comprometida. Agora é tarde.
- Infelizmente.
- Vê? Olhe para mim e diga-me se não tenho razão. Mulher de um fazendeiro, no Canadá!
- Era um sonho. Compreendo que me excedi. Queria tanto, Lettie! Mas acordei. Foi a primeira vez e será a última. Sim, é impossível. Já clareei de novo o
espírito.
- Que vai fazer, então?
- Não irei para o Canadá.
- Veja lá não faça qualquer coisa precipitada.
- Não. Vou casar.
- Casar? Ora ainda bem! Julguei... julguei que estivesse muito apaixonado por... Fico muito contente. Case-se, George!
- É o que devo fazer... uma vez que você...
- Acho que é o melhor. Contudo, pensava que... Dizendo isto, sorriu-lhe com tristeza, como se lhe dirigisse uma
censura.
- Pensava? replicou ele, sorrindo também.
- Creia que sim, respondeu minha irmã. Desta vez as suas palavras mal se ouviram. E ficaram mudos, a olhar um para o outro. George, obedecendo a um movimento
impulsivo, avançou na direção de Lettie. Ela, no entanto, recuou um pouco, como que detendo-o.
- Um dia tornaremos a nos encontrar, disse George, estendendo-lhe a mão. Adeus.
Ouvimos passos esmagando a areia grossa do passeio. Era Leslie, que se deteve a certa distância. Pressentindo-o, minha irmã assumiu uma graça felina e disse a George:
- Tenho tanta pena de que se vão embora. Acaba-se uma camaradagem tão boa! Diz que nos tornaremos a ver...
Enquanto falou, foi demorando a sua mão na do rapaz.
- Decerto, replicou George. Boa-noite.
Disse isto e afastou-se. Lettie ficou por instantes na mesma atitude de lânguida melancolia, a olhar na direção por onde ele se fora. Depois voltou-se devagar; julgar-se-ia não se lembrar da aproximação de Leslie.
- Quem era? perguntou este.
- Foi-se embora, disse ela, um tanto distraída.
- Parece que o caso a impressionou... Quem era?
- Ah! Era George Saxton.
- Ele!
- É verdade.
- O que é que ele queria?
- O que é que ele queria? Oh, nada. Simples entrevista... para passar o tempo, disse ela em tom de gracejo, a fim de disfarçar o seu aborrecimento.
- Tenho muita pena.
- De quê?
- Oh! Não falemos mais nele. Falemos doutro assunto. Não suporto conversar a respeito... dele.
- Está bem, replicou Leslie. E, depois de um silêncio contrafeito: Que tal foi em Nottingham?
- Lindamente.
- Daqui até Julho terá esse divertimento de entrar em lojas. Qualquer dia acompanho-a nas compras.
- Está bem.
- Diz isso como se não quisesse que eu fosse. Em matéria de compras já me considera como um marido... muito antigo.
- É a impressão que dá.
- Que simpática! E por quê?
- Sei lá!
- Sabe, sim.
- Talvez porque ande sempre esperando-me.
- Sou muito bem educado para isso.
- Olha! A Rebeca acendeu a luz do vestíbulo.
- Já é noite. Vim mais cedo, mas ainda não me disse uma palavra a esse respeito.
- Nem reparei nisso. A luz da sala de jantar está acesa. Vamos para lá.
Entramos. Lettie ficou junto do piano, tirou com todo o cuidado o xale que cobria a cabeça, e vagueou pela sala durante alguns momentos.
- Não vem sentar? perguntou Leslie, designando um lugar no sofá, junto dele.
- Por enquanto, não, respondeu ela, indo com ar indolente até ao piano. Sentou-se e começou a tocar ao acaso, de cor. Em seguida, fez a coisa mais irritante deste mundo: tocou acompanhamentos de canções, com trechos da ária onde a voz teria predominado.
- Deve concordar, Lettie... disse Leslie, daí a pouco.
- Com quê? disse ela, continuando a tocar. -> Que isso não é lá muito interessante...
- Acha que não? replicou minha irmã sem se interromper.
- Nem muito divertido...
Ele não deu resposta. Leslie suportou aquilo por mais algum tempo, mas depois não se conteve:
- Quando é que termina isso?
- O quê?
- Essa história...
- Refere-se ao piano? Se não gosta, deixo de tocar.
No entanto, continuou.
- Refiro-me a tudo.
- Não compreendo.
- Não?
Em vez de resposta, houve novo trecho de ária.
- Pára com isso! bradou Leslie.
Minha irmã tocou ainda duas ou três notas e, muito lentamente, fechou o piano.
- Venha sentar aqui, propôs o noivo.
- Não me agrada. Prefiro continuar a tocar.
- Então continue, e eu vou procurar qualquer coisa mais interessante.
- Pois vai, se assim quiser.
Como não houvesse réplica, ela girou vagarosamente no banco, abriu de novo o piano e pousou os dedos nas teclas. Ao som do acorde, Leslie deu um pulo no sofá e declarou:
- Vou-me embora!
- Já? É muito cedo, disse ela, através das notas.
Leslie ficou imóvel uns momentos, mordendo os lábios. Depois, fez novo apelo:
- Lettie!
- Que é?
- Não quer acabar com isso... e ser... amável?
- Amável?
- Estás de uma frieza aflitiva. Que é que a aborrece?
- Não sou eu que estou aborrecida.
- Sabe que mais? Vou embora.
- Tem de ir assim tão cedo?
Leslie não foi, e ela continuou a tocar ao acaso, languidamente. Em certa ocasião, minha irmã ergueu a cabeça para falar, mas não disse coisa nenhuma.
- Escute! exclamou ele tão de repente que Lettie se sobressaltou. Que significa isto?
Antes que replicasse, a moça passou os dedos pelas teclas, com todo o vagar.
- Que irritante você está! disse ela friamente.
- Parece que você quer se ver livre de mim para se ocupar daquele lavrador. Não precisa incomodar-se, pode fazer isso enquanto eu estiver aqui. Melhor vou embora
e você fica a vontade. Posso até levar-lhe o recado, se prefere. Se é esse o seu desejo...
Lettie virou-se na banqueta, devagar, olhou para o noivo com um sorriso débil, e replicou:
- É muita bondade da sua parte.
Cerrando os punhos e arreganhando os dentes, furioso, Leslie estava prestes a explodir. Ergueu a mão, esboçou também um sorriso e começou:
- Você me faz perder a cabeça...
Depois deu várias voltas na sala, correu ao vestíbulo (onde derrubou alguns chapéus), fechou a porta com toda a força, e foi embora.
Lettie continuou tocando por algum tempo. Por fim levantou-se e foi para seu quarto.
Leslie não voltou no dia seguinte, nem no outro. Marie é que veio a nossa casa. Por ela soubemos que o irmão partira para o Yorkshire a fim de visitar os novos poços que estavam a ser escavados ali; segundo informou, a ausência se prolongaria por mais de uma semana. Aquelas idas ao norte iam-se tornar freqüentes, pois a empresa de que Tempest era diretor e principal acionista exploraria outras minas, uma vez que se esgotava o filão das antigas. Falava-se até na hipótese de Leslie residir
no Yorkshire, depois de casado, a fim de superintender naquela nova exploração. A princípio, ele próprio repudiara a idéia, mas agora parecia entusiasmado com ela.
Durante o tempo em que ele se conservou longe, minha irmã andou melancólica e indisposta. Contudo, não fez a mínima referência a George nem ao moinho. Suas maneiras
de grande dama vieram mais uma vez à superfície.
Na tarde do quarto dia após a ausência de Leslie, saímos ambos ao jardim, onde encontramos mamãe entretida em levantar as corolas das orelhas-de-urso, para observar
seu aveludado, e arrancando do chão as ervas ruins. Em volta de nós gorjeavam tordos. As camélias, ao adensar-se a claridade, tornavam-se mais vistosas de encontro
ao muro. Na aragem, balançavam os cachos brancos das flores de cerejeira.
- Que aconselha que eu faça, mamãe? perguntou Lettie, pisando a relva para ir colher um ramo de camélias. Eu, por mim, não sei!
- Diga-me antes o que quer fazer, filha. O dia todo você ficou em casa. Vá visitar alguém.
- Ir a Eberwich? Fica tão longe!
- Então vá a algum lugar mais próximo.
Lettie continuava inquieta, vítima da sua indecisão.
- Não sei, realmente, que hei de fazer. Perdemos tempo enterrados neste buraco... Quem me dera estar perto da cidade!
- Tente distrair-se de qualquer forma.
- Acha que posso distrair-me?
- Então vá deitar.
- Para sentir sobre mim todo o peso de um dia inútil? Gostaria de fazer qualquer coisa disparatada.
- Pois faça, disse a mãe.
- Não vale a pena falar consigo...
Deu meia volta, dirigiu-se a outro canto do jardim e começou a arrancar as bagas vermelhas de um arbusto, e eu fiquei pensando como é que minha irmã passaria aquela noite. Reparei, então, que ela se conservava imóvel e silenciosa; nesse momento, ouviu-se o rumor de um automóvel que descia rapidamente a colina, em direção a Nethermere. Fiquei escutando. Distinguiam-se perfeitamente os saltos que dava o carro e via-se a poeira elevar-se no meio das árvores.
Lettie erguera a cabeça e tomara uma atitude de ansiosa expectativa. O automóvel corria ao longo da margem de Nethermere. Depois houve mudança de velocidade, o carro diminuiu a marcha e ia parar; mas, ato contínuo, virou para o bosque e percebemos que o seu destino era, afinal, a nossa casa. Minha irmã estava com olhar brilhante; o rubor subira-lhe às faces. Encaminhou-se para a sebe, em frente de casa, e ficou esperando.
Pelo meio das árvores chegava, um automóvel; era pequeno, como o que Leslie usava nas suas visitas de inspeção às mas, e vinha todo coberto de pó. O seu condutor
travou-o de súbito diante da cancela que dá comunicação ã casa. Leslie Tempest desceu e hesitou uns segundos, aturdido como estava por tão longa viagem. O casaco
e o boné estavam empoeirados.
- Leslie! gritou Lettie, correndo para ele. O rapaz tomou-a nos braços e, em volta de ambos, voaram nuvens de pó. Depois de se beijarem, ficaram os dois, por momentos, silenciosos. Lettie mirou-lhe o rosto, em seguida desembaraçou-se dele a fim de tirar-lhe os óculos de motorista, que pareciam desfigurá-lo; tornou então a contemplá-lo, com ternura, e retribui-lhe o beijo - murmurando numa voz repleta de meiguice:
- Está tremendo, Leslie.
- É da corrida. Vim sem parar.
Sem mais palavra, minha irmã conduziu-o para dentro de casa. Uma vez lá dentro, ordenou-lhe que se deitasse nó sofá. - Está tão pálido! Vou buscar um casaco do
Cyril.
Veja mamãe, ele fez todas estas milhas sem parar! Obrigue-o a descansar.
Trouxe-lhe, de fato, um casaco meu, e aconchegou as almofadas depois de Leslie se recostar no diva. Depois tirou-lhe as botas e substituiu-as por chinelas. Durante todo o tempo, Leslie não deixou de observá-lo; continuava pálido, de fadiga e de excitação.
- Parece-me, disse ele, que ainda estou dentro do carro. Sinto a estrada a correr para mim .
- Por que é tão imprudente?
- Se não viesse já, era capaz de enlouquecer. Não sabia como seria recebido por você, Lettie... depois do que aconteceu.
Ela sorriu carinhosa, e ele, mais repousado, fitou-a longamente.
- Graças a Deus que não cometi nenhuma loucura. Desde que falei daquele modo com você andei meio louco. Oh, Lettie, sou muito idiota! Desde esse dia que não penso noutra coisa. Ah, agora é como se tivesse fugido do inferno! Mal sabe como sou reconhecido por você não ter... feito caso das minhas palavras.
Lettie aproximou-se e sentou-se junto dele, alisando-lhe os cabelos, beijando-o, quase a chorar, como quem dá a entender que mais vaie um silêncio terno e generoso do que muitas frases de recriminação. Leslie puxou-a para si e ambos ficaram calados por algum tempo, até que as sombras envolveram o aposento por completo. Despertou-os o ruído que fez minha mãe andando na sala contígua. Lettie ergueu-se e o noivo endireitou-se no sofá.
- Acho, disse ele, que seria preferível ir para casa tomar banho e mudar de roupa. Mas acrescentou logo, num tom que demonstrava a falta de vontade de pôr em prática a sua proposta: Teria de voltar de manhã .. Não sei o que dirão os outros.
- Pode tomar banho aqui, disse ela.
- O pior é a roupa...
- Tens a de Cyril, para mudar. A água está quente. E você ficaria para jantar conosco...
- Se for agora, voltarei amanhã. Se aparecer tarde lá em casa, vão ficar zangados comigo. É verdade que não calculam que eu tenha chegado... Não me esperam
antes de segunda-feira, ou terça.
- Poderia ficar aqui sem que eles soubessem.
Olharam um para o outro, sorridentes - como crianças na iminência de brincarem de algum jogo proibido.
- Mas que pensará sua mãe? Não, tenho que ir.
- Ela não se importa.
- Mas...
- Vou falar com ela.
Ele queria ficar, de modo que foi fácil a minha irmã destruir-lhe a oposição e fazer triunfar o seu plano.
Minha mãe, quando Lettie perguntou sua opinião sobre o caso, levantou as sobrancelhas e disse muito tranqüila:
- Teria sido melhor se ele tivesse ido direto para casa.
- Mas veja como está cansado! Foi pena que Leslie não houvesse prevenido a família. No fim de contas, tudo isto aconteceu por minha culpa. Vá, mamãe não seja rabugenta.
- Não se trata de rabugice. Enfim, se ele quiser, que fique.
- Obrigado, mamãe! Não se zangue.
No íntimo, Lettie estava um tanto impaciente com a má vontade da mãe. Leslie, no entanto, ficou.
Momentos depois estava Lettie arranjando o quarto para hóspedes, enquanto Rebeca andava de baixo para cima, sobraçando lençóis limpos e botijas de água quente. Com a maior presteza, Lettie apropriou-se do meu melhor pente e escova (oferta dela), agarrou no pijama de flanela mais fina, descobriu uma escova de dentes por estrear,
fez uma escolha nas minhas camisas e lenços - e indicou-me o que eu tinha de emprestar a Leslie. Eu estava espantado, e até um tanto aborrecido, com aquela solicitude
extraordinária.
Leslie compareceu à ceia, lavado, escovado e radiante. Comeu com apetite, e todo ele emanava alegria e conforto físico. A cor voltara-lhe às faces, e ele readquirira o antigo ar independente e dogmático. Nunca até então o vira com tão bom aspecto. Havia nele um calor, um entusiasmo que realçava suas palavras, riso e gestos;
era ali a pessoa predominante, e sentíamos prazer só em tê-lo junto de nós. Minha mãe é que não parecia mais satisfeita do que ao princípio. Levantou-se logo que acabou a ceia, sob o pretexto de que ia para a outra sala acabar uma carta começada, e desejou boa-noite a Leslie, pois era provável que o não tornasse a ver. Mas a nuvem
dessa frieza seria leve e transitória. Leslie conversou e riu mais alegremente do que nunca: foi ostentoso nos seus gestos, inclinando a cabeça para trás e tomando
atitudes que punham em evidência seu peito largo e bem formado.
Quando deixei-os sozinhos, estava ele ao piano, fingindo que tocava e olhando todo o tempo para Lettie, que se conservava de pé, com a mão apoiada no ombro do noivo.
Na manhã seguinte levantou-se ele bastante cedo, e pelas seis horas desceu a escada e foi tratar do carro. Fui encontrá-lo muito ocupado e taciturno.
- Sei que sou inconveniente, disse-me ele, mas tenho de partir daqui a pouco.
Rebeca veio servir-nos o primeiro almoço, que eu e Leslie comemos sozinhos. O meu futuro cunhado estava calado e macambúzio.
- É de admirar que Lettie não se tivesse levantado para almoçar com você, disse eu. Ela é uma apreciadora das manhãs bonitas.
Leslie partiu o pão, com gestos nervosos, e tomou uns tragos de café, gorgolejando ruidosamente.
- É muito cedo para Lettie, replicou o noivo de minha irmã, limpando o bigode.
No entanto, parecia estar à escuta dos passos dela. O quarto de Lettie ficava por cima do escritório, onde Rebeca nos servira o almoço; por isso, de vez em quando.
Leslie apurava o ouvido, com o garfo e a faca suspensos no ar. Depois, continuava comendo.
No momento em que ele punha de lado o guardanapo, a porta abriu-se e minha mãe entrou. Leslie ficou carrancudo, meio aliviado, meio desiludido.
- Tenho de partir já, participou ele. Os meus agradecimentos por tudo... mãe.
- Você é uma cabeça no ar, Leslie. Por que será que a Lettie ainda não desceu? Com certeza que já acordou.
- Ouvi-lhe os passos. Talvez esteja vestindo-se. O pior é que não posso demorar.
- Vou chamá-la.
- Não, não a incomode. Se ela quiser, virá. Todavia, minha mãe chamou-a do fundo da escada:
- Lettie! Venha que seu noivo vai embora!
- Já vou. Daí a um minuto estava ela conosco. Vinha vestida de escuro, sobriamente, e parecia um tanto pálida. Não olhou para ninguém; pelo contrário, esforçava-se por desviar a vista de nós.
- Adeus, disse ela ao noivo, oferecendo-lhe a face. Leslie beijou-a, murmurando:
- Adeus, meu amor.
Parado no limiar da porta, o rapaz fitou-a suplicante. Lettie, sempre com o rosto meio voltado, continuava pálida e indiferente, e mordia o lábio inferior. Leslie, visivelmente desiludido, afastou-se à pressa e pôs o motor do automóvel funcionando. Depois subiu para o seu lugar e partiu.
Por momentos, minha irmã ficou imóvel e impenetrável - até que se resolveu tomar seu café. Mas limitou-se a fingir que comia sem levantar a cabeça.
Não tinha se passado meia hora e Leslie Tempest estava de volta, alegando que esquecera qualquer coisa. Correu ao andar superior, hesitou e por fim entrou na sala
onde a noiva estava tomando café.
- Tive de voltar, disse ele.
Lettie ergueu o rosto, mas conservou o olhar desviado para fora da janela. O rubor subira-lhe às faces.
- O que você esqueceu?
- Da cigarreira.
Seguiu-se um silêncio confrangedor.
- Não posso demorar.
- É natural. Outra pausa.
- Não quer acompanhar-me ao jardim?
Lettie pôs-se de pé, sem uma palavra. O rapaz lançou mão do xale e colocou-o cuidadosamente sobre os ombros dela. Minha irmã não o contrariou, e ambos desceram
ao jardim.
- Está... zangada comigo?
As lágrimas assomaram aos olhos dela.
- Por que voltou? perguntou, sem encará-lo. Leslie contemplou-a e respondeu, vacilante:
- Percebi... que você estava zangada... e...
- Por que não foi de vez? exclamou impulsivamente. Leslie pendeu a cabeça e ficou silencioso.
- Não vejo razão para nos mortificarmos, Lettie, gaguejou o rapaz.
Fez ela um gesto breve de repulsa; e, ao ver a mão erguida, escondeu-a de novo sob o xale.
- Faz com que eu nem possa olhar para as minhas mãos, observou ela, falando com esforço.
Leslie notou-lhe o punho cerrado, e, muito confuso, balbuciou:
- Mas...
- Repito que não posso suportar a vista das minhas mãos, disse ela em voz baixa e trêmula.
- Mas, Lettie, não há necessidade disso... se você me ama... Ela pareceu retrair-se, e ele esperou, triste e perplexo.
- Vamos nos casar, não é verdade? perguntou ele, olhando-a cheio de ansiedade.
Lettie, como se despertasse, exclamou de repente:
- Oh, por que não vai embora? Por que você voltou?
- Me dá um beijo? pediu ele.
Lettie ficou com a cara voltada para outro lado e não respondeu.
- Lettie! insistiu o rapaz.
Ela não se moveu e conservou o rosto desviado, de tal forma que Leslie só podia ver o contorno da sua face. O rapaz esperou um instante, irritado; depois deu mela
volta e pôs o automóvel em funcionamento. Daí a pouco desaparecia no meio do arvoredo.

 

CAPÍTULO 4

 

Era domingo. A semana fora triste: todos andavam calados, sentindo-se infelizes.
Ninguém dava pela primavera, embora ela tivesse chegado. Mais tarde, lembrei-me que tinha visto os renques de choupos subitamente envoltos numa auréola vermelho escura, como se o sol corresse dentro deles, tal uma seiva ardente, e surgisse com o rebentar das folhas; que descobrira ninhadas de cisnes, à beira de água, onde ainda há pouco só existiam ovos; que na madeira musgosa do barco amarrado à margem pendiam narcisos amarelos e que os olmos já revelavam pequenos botões; que surpreendera
a nuvem branca de flores da ameixoeira brava desfazer-se sob o céu crepuscular; sim, tinha visto tudo isso, mas não dera atenção. Naquela semana a primavera esteve ausente do meu espírito.
Era domingo, como disse. Logo depois do chá, minha irmã pediu-me de repente:
- Venha comigo a Strelley Mill.
Fiquei atônito, mas obedeci sem fazer perguntas. Ao chegarmos à porta ouvimos vozes femininas, e logo depois ouvi a de Alice, festejando nossa aparição;
- Olá, querido Cyril! Ora viva, Lettie! Entrem, entrem! Temos aqui uma reunião de deusas. Vocês vem mesmo a propósito. És Juno, a Meg é Vênus, e eu
sou... Quem sou eu? Falou em Minerva, querido Cyril? Pois teve razão. Agora, que Paris não se demore. Está a envergar o seu traje domingueiro para nos
levar a passear. Credo! Quanto tempo ele leva vestindo-se! Apronte-se para exibir sua beleza, Meg! E você, Lettie, tome uns ares altivos, que eu tratarei de parecer cheia de sabedoria. Estará ele me esperando para fazer-lhe o nó da gravata? Está bem, George! Onde diabo descobriu esse forro de sofá?
- Em Nottingham. Não gosta? volveu George, referindo-se à gravata. Viva, Lettie! Com que então veio até cá!
- Esta é a reunião das três Graças. Tem a maçã? indagou Alice.
- Qual maçã?
- Oh, que falta de erudição! A maçã de Paris! Não vê que estamos aqui para que nos escolha?
- Não tenho maçã nenhuma... Comi a minha.
- Ai, como você é insípido! Ouça cá:
vai levar-nos todas à igreja?
- Se quiserem.. .
- Nesse caso, vamos. Onde fica o Templo do Amor? Olhem-me para o ar indignado de Lettie! Desculpe, menina, mas pensei que o amor se harmonizasse com você.
- Falou em amor? inquiriu George.
- Falei, sim; não é verdade, Meg? E você também não concorda com o amor?
- Não sei o que é isso, volveu Meg, rindo-se, mas ruborizada e confusa.
- Amor est titilatio... O amor é um prurido. Não é assim, Cyril?
- Como eu posso saber?
- É claro que não pode. As mulheres é que percebem isso. Oh, Lettie! Que ar solene o seu!
- É amor, sugeriu George, ainda atando a gravata nova.
- Aposto que é degustasse sat est. Heim, Lettie? Afinal, qual de nós você prefere, George?
Vai levar-nos à igreja uma por uma ou todas de uma vez?
- Que quer que eu faça, Meg? perguntou ele.
- Por mim, não me importa.
- E você, Lettie?
- Não vou à igreja.
- Acabemos com isto e vamos dar um passeio qualquer, disse Emily, aborrecida com todos aqueles disparates.
- Você tem a companhia de Cyril. Mas não se afastem muito, disse Alice.
Emily franziu a testa e mordeu a ponta do dedo.
- Vamos, George. Você está como o fiel de uma balança... oscilando entre os dois pratos. Qual de nós o fará descer?
- A mais pesada, respondeu ele, sorrindo e olhando para Meg e Lettie.
- Então é a Meg! bradou Alice. Ai, quem me dera ser gorda! E com Cyril também não tenho melhor sorte.
Os olhos de Emily faiscavam de raiva; Meg estava ruborizada de vergonha; Lettie sorria, já sem a indignação do começo.
Fomos então passear, divididos em dois grupos.
Infelizmente, como a tarde estava bonita, encontramos muita concorrência nas ruas: vários senhores de calças claras e casaco preto, passeando os seus cãezinhos; bandos de rapazes que perambulavam sem destino, calados ou falando de vez em quando, com vozes roucas, de qualquer assunto de interesse local; um ou outro marido galante, empurrando o carrinho do bebê, acompanhado pela esposa enfeitada e por todos os membros mais novos da família; dois namorados, caminhando sem se tocarem, como que receosos do contato; uma mãe elegante, com duas meninas vestidas de seda branca, muito loiras e pretensiosas, seguidas pelo pai, acanhado no seu traje de ver a Deus.
Para suportar tudo isto era preciso distrair-nos de qualquer modo. George mantinha a conversa, e fazia-o sem constrangimento, falando de ovelhas e de crias, quando Meg exclamou;
- São cordeirinhos pretos, não são? Tão negros como fuligem! Nunca vi nenhum igual a esses!
George descreveu a maneira como criara dois deles a mamadeira - fato que causou o entusiasmo de Meg. Em seguida, falou dos abibes, repisando o mesmo assunto: os gritos lastimosos dessas aves; a propósito, contou que tinha mudado os ovos de um casal, quando estava lavrando, e que a fêmea os seguira, e até ficava a espreitar quando ele se aproximara com o arado, observando-lhe as idas e vindas.
- Ela o reconheceu; conhecem sempre aqueles que lhes querem bem, disse Meg.
- É verdade, concordou ele. Os olhinhos brilhantes dessas aves parecem falar quando se passa junto delas.
- São adoráveis! Não é da minha opinião, Lettie? exclamou Meg num acesso de ternura.
Lettie limitou-se a dizer que sim.
Subimos a colina e descemos para Greymede. Meg achou seu dever ir para a casa da avó, e George despediu-se dela, dizendo que iria visitá-la daí a uma hora.
Ela pareceu desiludida, mas afastou-se sem murmurar. Deixamos Alice com uma amiga, e nos apressamos em voltar para casa através de Selsby, a fim de escapar ao desfile dos que saíam da igreja.
Para além de Selsby, erguem-se as belas chaminés cônicas da mina, sobressaindo muito negras de encontro ao poente, assim como os cabeçotes, que se recortam bem delineados à claridade do sol. No pé daqueles altos monumentos, estão as filas de casas, agachadas na sombra.
- Sabe uma coisa, Cyril? disse Emily. Estive vai-não-vai para ir visitar a Senhora Annable, a viúva do guarda. Ela mudou-se para o bairro de Bonsart, e os filhos freqüentam a escola. Que horror! Aquelas crianças nunca andaram na escola e nem sabem exprimir-se.
- Por que é que ela se mudou? perguntei.
- Creio que o senhorio exigiu a casa, e a mulher escolheu aquele bairro para morar. Mas a maneira como vivem... Dá até aflição pensar nisso!
- E por que não foi visitá-la?
- Nem sei... Pensei nisso... mas . Emily calou-se, atrapalhada.
- Não quis, ou não teve coragem?
- Talvez não...
- Vamos lá, agora! Está indecisa?
- Não, não estou, respondeu ela vivamente.
- Venha daí, então; iremos pelos campos, Lettie deve querer acompanhar-nos.
Lettie recusou a proposta com um "não" insofismável.
- Eu levo-a a casa, disse George.
Mas isto ainda agradou menos a minha irmã.
- Não sei por que se lembrou disso, Cyril, disse ela. Numa tarde de domingo, com tanta gente pelas ruas... Prefiro ir para casa.
- Bem, bem. Vá então. Emily irá contigo.
- Ah! exclamou esta, você julga que não quero visitar a viúva!
Encolhi os ombros e George torceu o bigode,
- Vou também, pronto! declarou Lettie, e descemos a vereda, em fila indiana.
Aproximamo-nos do renque de casas sórdidas que se estendem de encontro à mina. Tudo ali é negro, cheio de fuligem; as casas estão encostadas umas às outras, com uma única porta sobre o quintal coberto de ervas definhadas e escuras. Em todo o caminho se estende uma crosta de fuligem, de cisco e de cinzas.
Entre as casas havia uma aglomeração de crianças e de mulheres, estas de cabeça descoberta e braços nus, com aventais brancos e vestidos pretos guarnecidos de alamares. Encostados a um muro viam-se dois ou três homens conversando e rindo perdidamente. As mulheres gritavam e faziam sinais, apontando para o telhado da última casa.
Emily e Lettie recuaram.
- Olhem para aquilo! É o maroto do Sam! observou George.
Empoleirado no topo do telhado, de costas voltadas para a chaminé, estava o garoto, sem casaco e com as mangas da camisa rasgadas de cima a baixo. Reconheci-o logo. O pequeno, descalço, fincava-se com os pés às telhas e, pondo a mão aberta defronte do nariz, fazia gestos e dizia coisas que produziam escândalo na assistência.
As mulheres tornaram a gritar. E Sam, tendo perdido de repente o equilíbrio, ficou sentado por momentos. De aí a instantes aparecia um policial, que perguntou a causa de semelhante algazarra. Foi então que surgiu uma mulher de olhos tortos, castanhos e brilhantes, com um sinal no rosto,
que apareceu no meio da multidão e agarrou o polícia pela manga.
- Prenda-o e dê-lhe açoites até que o patife escorra sangue! berrou ela.
O polícia, desembaraçando-se da criatura, quis saber de que se tratava.
- Se lhe ponho as mãos em cima, esborracho-o! continuou a mulher. Aquele pequeno não pode estar entre pessoas decentes. É um ladrão, um demônio!
- Mas que foi? replicou o guarda. Que tem ele?
- Espere até que o patife desça!
Sam, vendo que todos o observavam, desatou a fazer caretas, enfurecido. Lettie e Emily estavam consternadas.
Nessa altura apareceu a viúva à janela. Espetou a cabeça, tentando em vão ver o que se passava no telhado. Estava ainda mais desgrenhada do que de costume, e notavam-se-lhe vestígios de lágrimas nas faces pálidas. Debruçou-se quanto pôde, agarrando-se à moldura da janela, de tal forma que eu receei pela sua vida.
Os homens que estavam encostados ao muro desataram a rir e exclamaram:
- Agarra-o, se é capaz!
Em seguida, fizeram-se ouvir as vozes compassivas das mulheres:
- Desce daí, palerma! Venha ter com sua mãe! Ela não vai bater, e está chamando-o.
- Sam! Sam! Sam! bradava a viúva cada vez mais alto.
O menino olhou para a multidão e para as goteiras, sob as quais se elevava a voz da mãe.
Via-se que estava prestes a chorar. Uma mulher alta e descarnada, com um pente de aço metido no cabelo negro, gritou-lhe injúrias, no que foi apoiada pela do sina' na cara. O garoto, num gesto de desafio, tirou um bocado da argamassa que unia as telhas e arremessou-o à mulher do pente de aço. A atingida queixou-se que lhe haviam quebrado a cabeça, e houve geral confusão. O polícia perdeu a serenidade
e não tardou a brandir os punhos, ordenando autoritariamente:
- Acabem com isso! E você desça daí! Não quero aglomerações.
O rapaz tentou subir pelo topo do telhado e escapar pelo lado de trás. No mesmo instante a molecada correu para o outro lado num vozerio tremendo. Sam agachara-se junto da chaminé. Por cima do telhado voavam pedras, que vinham cair sobre as mulheres e sobre o polícia. A Senhora Annable saiu de casa e arremessou-se contra os agressores. Apanhou um deles, lançou-o ao chão, e, no mesmo instante, os outros atiraram os projéteis para cima dela. Nesse momento, o polícia, George e eu corremos contra os garotos, e as mulheres correram para ver o que acontecera aos filhos. Pegamos dois rapazes de cerca de quatorze anos, e pedimos ao guarda que os trouxesse atrás de nós. O resto do bando fugiu...
Quando regressamos ao campo de batalha, Sam tinha desaparecido também.
- Ah, se ele não se tivesse escapado! exclamava a mulher de olhos tortos. Mas ainda hei de vê-lo na cadeia!
Nessa ocasião surgiu ao fundo da ruela um grupo de músicos; ouviu-se o som de um acordeon, e a atmosfera pareceu vibrar à voz potente de uma mulher que cantava, acompanhada por outras:
Mesmo aqui se pôs o Sol...
Toda a gente correu para esse lado, exceto o polícia e os dois presos, a mulher de olhos tortos e a outra de pente de aço. Disse ao membro da autoridade que era preferível soltar os dois rapazes e averiguar as travessuras que teriam feito os outros. Interroguei então. a mulher vesga para saber o que acontecera.
- Trinta e sete filhos teve aquela coelha, e ninguém sabe quantos teria mais, se eles não a houvessem matado e comido, respondeu ela com ar
de ressentimento, mas já sem o furor do princípio.
- E nunca chegaríamos a saber nada, acrescentou a outra mulher, se não fosse o meu abençoado gato ter escavado a terra e descoberto...
- A coelha? indaguei.
- Não. Só lhe deixaram a pele.
- Quando foi isso? perguntei.
- Esta noite. E ficou a cabeça e o rabo numa caçarola suja. Posso mostrar já. Guardei na despensa, como prova. Não é verdade, Martha?
- Uma coelha tão gorda! Mas se eu apanho aquele patife torço-lhe o pescoço!
Por fim compreendi que Samuel roubara uma coelha de orelhas pendentes do alpendre da mulher estrábica; que esfolara o animal, enterrara a pele e oferecera o roubo à mãe, dizendo que era um coelho bravo apanhado numa armadilha; que o prato principal do jantar desse dia em casa dos Annables fora o coelho - exceto uma porção que, infelizmente, haviam guardado para a segunda-feira. Essa porção era a prova inegável do roubo. A dona da coelho julgara que o bicho havia fugido. Esta pacífica suposição fora destruída pela dama do pente, a qual vira o gato cavar o quintal dos Annables e desenterrar a pele branca e castanha. Daí, sobrevivera todo aquele
reboliço.
A mulher estrábica não era muito difícil de convencer. Falei-lhe como se ela fosse um camarada, mas apelando para a sua feminilidade com todos os cambiantes de tristeza que pude imprimir à minha voz. No fim, a criatura abrandou e até se enterneceu pela família da viúva. Deixei sobre a mesa da cozinha a meia coroa que não me atrevi a
entregar-lhe diretamente e, tendo também submetido a mulher do pente, saí, levando a caçarola e os restos
da malfadada coelha para a residência da viúva, onde George e as moças me esperavam.
A casa encontrava-se num estado deplorável. Na cadeira de balanço, junto do fogão, estava a mãe sentada; balançava-se maquinalmente, com ar extenuado. Lettie acalentava o bebê, e Emily tinha no colo outra das crianças. George fumava cachimbo e tentava mostrar-se natural. A cozinha minúscula estava cheia; não havia espaço para mais ninguém, nem na mesa lugar para mais nada. Reuni a um canto as xícaras e canecas que tinham servido na última refeição e coloquei sobre a toalha conspurcada o utensílio que servia de corpo de delito. As quatro crianças mostravam sinais de lágrimas nas saras sujas - e, quando entrei, recomeçaram seu pranto. A uma delas tive de dar, para que se calasse, uma lapiseira de funcionamento duvidoso que descobri no fundo do bolso.
À vista da caçarola, a Senhora Annable sentiu-se de novo impressionada. Tornou a chorar, dizendo:
- Sempre julguei que fosse um coelho bravo. Como se eu fosse capaz de mandar o meu filho roubar! Chamaram-me todos os nomes feios de que se lembraram, entraram na cozinha e até me tiraram aquela caçarola que eu comprei em Nottingham antes da Minnie nascer...
O bebê, o menor de todos, começou a chorar. A mãe levantou-se de súbito e pegou-o ao colo.
- Vem cá, meu amor. Não chore, meu menino, tem aqui a mamãe. De que se queixa, minha jóia?
Acalmou a criança e ficou silenciosa por uns momentos. Depois, perguntou:
- O polícia foi-se embora?
- Foi. Acabou tudo bem, respondi.
A mulher soltou um suspiro profundo; metia dó a sua expressão de cansaço.
- Que idade tem o mais velho? perguntei.
- A Fanny... tem quatorze anos. Está trabalhando na casa dos Websters. Depois é o Jim, que faz treze anos mês que vem .. Espere, deixe ver... Sim, é mês
que vem. Está trabalhando no campo dos Flints. Por minha vontade é que eles não ficavam na mina. Meu marido costumava dizer que os seus filhos nunca
seriam mineiros. Coitados, são pequenos ainda, pouco podem fazer...
- Podem fazer muito por si.
- Trabalham conforme as forças. Mas custa-me ter de sustentar a todos. Comida, cinco xelins para casa, e tudo o mais... E difícil. Quando meu marido
vivia, o caso era diferente. Eu é que devia ter morrido. Não vejo maneira de mantê-los... e de governá-los. São muito rebeldes. Quem me dera ter morrido esta noite! Não posso compreender isto:
ele, que era tão necessário, desapareceu deste mundo, e eu fiquei. Havia poucos homens como ele; procedia como um verdadeiro senhor. Eu é que devia ter morrido.
E ele sei muito bem que não tem descanso. Ontem à noite, quando já estavam todos dormindo, pus-me à porta, olhando para o poço da mina... Vi então uma claridade e percebi que era ele. Fazíamos aniversário de casamento! "É você, Frank?", perguntei. "Estamos todos bem". Mas ele desapareceu em direção à floresta. Tive a certeza de que era o Frank, e isso tirou-me o sono; fiquei pensando na minha vida...
Pouco depois a deixamos, prometendo repetir a visita e cuidar do Sam.
Era noite, e haviam-se acendido as luzes. Distinguimos o barulho da casa das máquinas.
- Não é crueldade? observou Emily com voz lastimosa.
- Que maldade um homem casar com uma mulher daquelas! acrescentou Lettie.
- Refere-se a Lady Crystabel, falei. Houve um silêncio e eu prossegui: Suponho que ele nem sabia o que estava fazendo, como acontece a muita gente.
- Julguei que você fosse a casa da sua tia da estalagem, disse Lettie a George, ao chegarmos à encruzilhada.
- Agora não. É muito tarde, respondeu ele calmamente. Você passa pela nossa casa, não é verdade?
- Sim confirmou minha irmã.
Estávamos na granja, comendo pão e tomando leite. Saxton, triste e saudoso, falava da sua próxima partida. Tinha temperamento sentimental e procurava sempre colorir a monotonia do presente com os encantos do passado. Ele, que tencionava passar ali uma velhice sossegada, via-se agora envolvido na inquietação que lhe traziam os filhos e os negócios da quinta. Havendo começado por ler romances e livros sobre assuntos agrícolas, interessava-se agora pela política, e era bastante radical,
quase socialista. Às vezes escrevia cartas para os jornais; agarrava-se de novo à existência, e com afinco.
Depois da ceia começou a entusiasmar-se com o Canadá. Dava gosto ver aquele corpo direito e forte e aquele rosto corado animado pelo entusiasmo! Sentíamo-nos atraídos para esse homem ao ouvir-lhe as palavras tão cheias de esperanças juvenis. Com quarenta e seis anos era mais espontâneo e ardente do que George, e muitíssimo mais feliz e confiante.
Emily não concordava em ir com a família para o Canadá. Para quê? Não desejava que as crianças fossem educadas no campo, onde tudo se resume à criação de gado.
- Não, respondeu o pai com brandura.
Mollie aprenderá como se fazem queijos, e David substituir-me-á quando eu... me reformar. A princípio vai custar um pouco, mas depois vamos até gostar.
- E você, George? perguntou Lettie.
- Eu não vou. Que iria fazer para lá? Essa vida lembra-me um dia de Junho, aqui: longo dia de trabalho, bastante agradável... ao fim do qual se dorme uma noite sossegada. Mas o trabalho, o sono, o conforto... são apenas metade da vida. Não chega. Que diferença faz da existência da nossa égua Flower?
Saxton olhou para o filho com ar sério e pensativo.
- Para mim o caso tem outro aspecto, disse ele. Acho que você pode fazer sua vida com independência, sem nada que o incomode. Se eu pudesse..
- Farei melhor, redarguiu George. Quer saber? continuou, falando diretamente à Lettie. Vou ser rico, muito rico, para fazer o que me der na vontade.
Quero experimentar o gosto das outras coisas... das cidades, por exemplo. Serei rico... ou, pelo menos, tentarei sê-lo.
- Pode-se saber qual é o processo? inquiriu Emily.
- Começarei por casar. Depois verá.
A irmã riu-se, desdenhosa.
- Estou desejando ver esse começo. ..
- Não tem juízo! acudiu o pai. Voltou-se para Lettie e, em tom confidencial, prosseguiu: Ele há de Ir encontrar-se comigo dentro de um ou dois anos.
Acredite no que digo.
- Quem me dera poder ir! disse eu.
- Se fosse, iria consigo. Mas não sozinho - para me tornar num animal gordo e estúpido, como uma das nossas vacas!
Enquanto ele falava, Gyp desatou a ladrar, enfurecido, Saxton levantou-se para ver o que era, e George seguiu-o. Trip - o volumoso bull-terrier - saiu precipitadamente para fora, abalando a casa com o barulho que fazia. Vimo-lo correr para o pátio e ouvimos rumor no galinheiro: partiu nesse instante um grito do pomar.
Acudimos. No talude jazia um vulto pequenino, de costas; Trip estava junto dele, olhando muito intrigado. Ergui-o, era Sam. Logo que sentiu as minhas mãos, esforçou-se por se desembaraçar, mas eu levei-o para dentro de casa, O pequeno debatia-se como uma lebre, esperneava, mas acabou por ficar quieto. Coloquei-o perto do fogão, para examiná-lo à vontade. Com um par de calças de homem adaptadas ao seu tamanho e um casaco esfarrapado, Sam fazia uma figura patética.
- Ele mordeu-o? perguntou Saxton. Onde foi que mordeu?
Mas o menino não respondeu com os Sábios pálidos e comprimidos, olhando para o vazio. Emily pôs-se de joelhos diante dele e encostou sua cara à do garoto, dizendo num tom de voz que nos impressionou pela imensa ternura que revelava:
- Ele machucou você? Diga onde foi. Tentou abraçá-lo, mas Sam desviou-se.
- Olha, é aqui que está sangrando, disse Lettie. Vão buscar e umas tiras de pano. Venha aqui Sam. Deixe-me ver a ferida e tratar dela. Despiu o traje grotesco que envolvia o pequeno. Trip metera-lhe os dentes na coxa antes de perceber que a sua vitima era uma criança. No entanto, a ferida não era
profunda. Lettie lavou-a e untou-a com pomada de flor de sabugueiro. No corpo do menino havia a marca das contusões; era evidente que Sam passara maus bocados. Lettie, depois de prestar-lhe os cuidados necessários, tornou a vesti-lo. O garoto suportou tudo aquilo como um coelho bravo apanhado numa armadilha, sem nunca olhar para nós, sem nunca abrir a boca, e levemente encolhido. Depois de Lettie vestir-lhe a camisa esfarrapada e os calções descomunais, Emily tratou de consolá-lo. Beijou-o
e falou-lhe com a maior ternura - o que o deixou quase sufocado. Em seguida, lembrou-se de dar sopa de leite numa colher, mas Sam não descerrou os lábios e desviou a cabeça.
- Deixe-o só. Não faça caso dele, aconselhou Lettie.
O pequeno ficou sentado defronte da chaminé, com a tigela de sopa a seu lado. Emily tirou os dois gatinhos do cesto e pô-los também junto dele.
- Gostava de saber quantos ovos terá levado o rapaz, disse Saxton, rindo baixinho.
- Caluda! acudiu Lettie. Ouça cá, Senhor Saxton. Quando pensa ir para o Canadá?
- Na próxima Primavera. É inútil ir antes.
- E só depois é que se casa? perguntou Lettie a George.
- Antes .. muito antes, respondeu o interessado.
- Que pressa tão repentina! Quando é isso?
- Quando é o seu casamento? disse ele como resposta.
- Não sei, replicou ela, querendo pôr ponto final naquele assunto.
- Nesse caso, também não sei, retorquiu George, pegando numa larga fatia de queijo.
- Foi fixado para Junho, disse ela, caindo em si àquela insinuação de esperança.
- Julho! retificou Emily.
- Pai! exclamou George, com o pedaço de queijo espetado na mão, enquanto falava. Aconselha-me a casar com a Meg?
Saxton deu um pulo na cadeira.
- O quê? Pensa nisso?
- Penso, sim .. Considerando tudo . .
- Se você quer. .
- Somos primos...
- Se quer, não vejo obstáculos. A moça tem dinheiro, e, já que gosta dela.
- Ora se gosto! E não vou para o Canadá, Fico na estalagem... por causa da vida.
- Triste vida, essa! comentou o pai, pensativamente. George riu-se.
- Pouco brilhante! disse ele. Mas, mesmo assim... Seria preciso Cyril ou Lettie para eu me conservar vivo no Canadá. Este descaramento deixou
todos embaraçados.
- Não podemos ter tudo quanto queremos, disse o pai. Em geral, contentamo-nos com o que nos surge de melhor. Não é assim, Lettie?
acrescentou ele, rindo-se.
Subiu uma onda de sangue às faces de minha irmã.
- Não sei, replicou ela. Quase sempre se obtém o que se quer, quando se quer realmente. Mas, quando nos desinteressamos. .. é claro que...
Lettie ergueu-se e dirigiu-se para Sam.
O menino entretinha-se com os gatinhos. Um deles estava brincando, mordiscando e tocando com a patinha no dedo que saía da meia rota de Sam. Este avançava e recuava o pé, para incitar o bichano, e ria-se, completamente esquecido de nós. Depois, o gato fartou-se da brincadeira e correu para outro lado. Lettie sacudiu o vestido, e logo os dois gatinhos se arremessaram para ela e começaram aos pulos, pendurando-se-lhe na orla da saia. De repente sentiram-se cansados e foram ambos deitar-se
junto do fogão, onde, num instante, adormeceram. Quase tão de súbito como eles, Sam caiu em sonolência.
- É melhor levarem-no para a cama, sugeriu Saxton.
- Ponham-no na minha, disse George. David ficaria espantado se o encontrasse na sua.
- Quer deitar-se, Sam? perguntou Emily, estendendo os braços para ele - movimento que o surpreendeu pela infinita e persuasiva ternura que revelava. Retraindo-se, escondeu-se atrás de Lettie.
- Vamos, disse esta, pegando-o bruscamente e despindo-o. Depois levantou-o e o pequeno, com as pernas nuas pendentes, encostou a cabeça no ombro dela, cheia de sono. Minha irmã encostou a cara nessa cabeleira ruiva e revolta e, por momentos, permaneceu assim imóvel, pensativa; dir-se-ia que tinha a vaga consciência de que tal atitude lhe quadrava bem e que pretendia chamar a atenção de George - o qual, acima de tudo, admirava a dignidade pura dos seus gestos. Emily esperou por ela uns instantes, com a vela acesa na mão.
Quando Lettie reapareceu, trazia no rosto tal expressão de brandura que eu disse de mim para mim:
"Se George a pedisse agora em casamento, seria bem sucedido".
- Ficou dormindo, declarou ela, referindo-se ao menino.
- Tenho pensado que podíamos conservá-lo conosco até nos irmos embora, disse Saxton. Que acha, George?
- O quê?
- Ficarmos com ele na nossa companhia, enquanto estamos aqui...
- Ah! O menino! Não é má idéia. Antes aqui do que em casa da mãe.
- É muito melhor para ele! concordou Lettie. Que bondade a sua, Senhor Saxton!
- Oh, a presença do garoto não nos fará diferença nenhuma.
- E a respeito da mãe? perguntou Lettie.
- Vou visitá-la amanhã e falar-lhe do assunto, disse George.
- Sim, vá falar com ela, disse minha irmã, ao mesmo tempo que punha os agasalhos para se ir embora. George pegou o boné e, nessa altura, perguntei a Emily:
- Vem dar uma voltinha?
Ela concordou logo, risonha. No jardim notei como ela tinha o olhar brilhante de satisfação. Esperamos pelos outros junto da cancela. Uma vez reunidos, demos alguns passos vagarosos, sem saber que dizer. Foi Lettie quem quebrou o silêncio:
- A erva está muito úmida. Não se incomodem. Emily volte para casa. Boa-noite.
- Boa-noite, murmurou George, hesitante, penalizado, denunciando impaciência tanto na voz como nos gestos. Ainda se retardou uns segundos. Lettie ficara indecisa; depois meteu-se resolutamente a caminho.
"O pateta não aproveitou a ocasião para pedi-la em casamento", disse eu com os meus botões.
Ao chegarmos ao passeio do nosso jardim, minha irmã observou:
- A gente pensa que as pessoas simples o são apenas por modéstia. A verdade é que isso provém da sua estupidez. Na maior parte das vezes, são
bastante burras.


          CONTINUA

 

 

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