Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
D E C Â M E R O N
Segunda Parte
“Mal a dama tinha acabado de sair da igreja, apareceu o valoroso homem. O frade chamou-o e, levando-o à parte, disse-lhe as piores injúrias que jamais foram ditas a um homem, chamando--lhe desleal, perjuro e traidor. O homem, que já por duas vezes vira o que significavam as críticas do frade, pôs-se com atenção, dando respostas perplexas, procurando fazê-lo falar e começando por dizer: “Porquê tal zanga, senhor? Acaso crucifiquei Jesus Cristo?” Respondeu-lhe o frade: “Olhem o desavergonhado! Oiçam bem o que ele diz! Fala exactamente como se um ou dois anos tivessem passado e já não se lembrasse com tamanho tempo das suas malícias e desonestidades. Das matinas de hoje até agora, já te saiu da mente o ultraje que fizeste a outra pessoa?” Aonde é que foste esta manhã, pouco antes de nascer o dia?” Retorquiu o valoroso homem: “Eu sei lá aonde fui! Mas o recado chegou cá muito depressa!” “É verdade – disse o frade –, o recado já cá chegou. Pelo que julgo, pensaste que, lá porque o seu marido está fora, a nobre senhora te iria receber imediatamente nos braços. Sim, senhor! Que homem honrado, feito vagabundo da noite, invasor de jardins e trepador de árvores! Julgas vencer com a desfaçatez a santidade dessa dama, tu que lhe sobes às janelas através das árvores durante a noite? Nada há neste mundo que lhe desagrade tanto como o que tu fazes, mas continuas a teimar. Realmente valeu a pena ela haver-te mostrado o seu desagrado de tantos modos para te emendares tão bem com as minhas admoestações! Mas vou dizer-te: até agora, ela tem calado o que lhe tens feito, não por amor de ti, mas por instância dos meus pedidos; mas não irá calar-se mais e dei-lhe licença para que faça o que lhe parecer se outra vez a incomodares. Que irás tu fazer se ela contar tudo aos irmãos?” O valoroso homem, depois de ter entendido o que lhe importava, sossegou o frade com muitas promessas e o melhor que soube e pôde. Despediu-se dele e logo na manhã seguinte penetrou no jardim, trepou a árvore e, encontrando a janela aberta, entrou no quarto e lançou-se nos braços da sua formosa dama o mais depressa possível. Ela, que o esperava com enorme ansiedade, acolheu-o com júbilo e disse: “Que grande favor o do senhor frade que te ensinou tão bem o caminho para aqui!” Depois colheram prazer um com o outro, conversaram, riram-se muito da simplicidade do frade imbecil e, desdenhando das rocas, dos pentes e das cardas, divertiram-se mutuamente com grande deleite. Em seguida, organizaram os seus planos e fizeram de maneira a encontrarem-se muitas outras noites com igual satisfação e sem precisarem de voltar mais vezes ao reverendo frade.
“Rogo a Deus, pela sua santa misericórdia, que não demore a levar-nos às mesmas alegrias, a mim e a todas as almas cristãs que tenham o mesmo desejo.”
Dom Félix ensina ao irmão Puccio como tornar-se santo fazendo uma sua penitência. O irmão Puccio faz a penitência e Dom Félix goza dessa forma o bom tempo na companhia da mulher de Puccio (Nota 7) O triunfo do instinto é aqui celebrado num ambiente muito mais vulgar do que em II, X. Dona Isabetta nunca poderá chegar à consciência e à cruel sinceridade de Bartolomeia; o seu marido, o irmão Puccio, é um perfeito simplório, o primeiro de muitos que serão criados pela maliciosa fantasia de Boccaccio. A sua mania religiosa serve de pretexto à sátira que culmina na irresistível comicidade do diálogo nocturno que se desenrola entre o marido penitente e a mulher folgando. (Fim da nota).
Depois de Filomena ter concluído a sua novela e ficar calada, Dioneu elogiou com doces palavras a esperteza da dama, assim como a oração que Filomena fez ao acabar. Rindo-se, a rainha olhou na direcção de Pânfilo e disse: “Agora, Pânfilo, continua a nossa distracção com uma história divertida.” Imediatamente Pânfilo respondeu que o faria de bom grado e começou:
“Senhora, há muitas pessoas que, ao esforçarem-se por entrar no paraíso, mandam outros para lá sem repararem. Foi o que aconteceu a um nosso vizinho ainda não há muito tempo, como ireis escutar.
“Segundo já ouvi dizer, morou perto de S. Pancrácio um homem bom e rico que se chamava Puccio de Rinieri. Entregando-se totalmente às coisas do espírito, fez-se terciário de S. Francisco e chamavam-lhe irmão Puccio. Prosseguindo na sua vida espiritual e porque não tinha outra família senão a mulher e uma criada, não precisava de dedicar-se a um ofício, frequentando muito a igreja. Como se tratava de um homem idiota e de massa grosseira, recitava padre-nossos, ouvia as pregações, assistia às missas e nunca perdia as laudas que os seculares cantavam. Jejuava, disciplinava-se e fazia alarde de ser um flagelante. A mulher, chamada Dona Isabetta, era ainda uma jovem de vinte e oito anos, viçosa, bonita, roliça como maçã camoesa. Com a santidade e talvez com a velhice do esposo, tinha de fazer demasiadas vezes dietas mais prolongadas do que era do seu gosto. Quando ela queria deitar-se ou divertir-se com ele, o marido contava-lhe a vida de Cristo, as pregações de Frei Anastácio, as lamentações da Madalena ou outras coisas semelhantes.
“Por essa altura, voltou de Paris Dom Félix, monge conventual de S. Pancrácio. Era muito novo, de bela figura, fina inteligência e profundo saber. O irmão Puccio travou com ele uma estreita familiaridade e, como o monge lhe resolvia muito bem quaisquer dúvidas e lhe parecia de grande santidade na vida, começou a levá-lo algumas vezes a sua casa, oferecendo-lhe de almoço ou de jantar, consoante as ocasiões. Também Dona Isabetta se tornara sua amiga e de boa vontade o honrava, por amor do irmão Puccio. À medida que o monge ia frequentando a casa do irmão Puccio e contemplava aquela mulher tão viçosa e roliça, começou ele a compreender qual devia ser a coisa de que ela mais precisava. E pensou que, para evitar trabalho ao irmão Puccio, lhe supriria a falta quando fosse possível. Poisou os olhos sobre a dama uma e outra vez de forma tão astuta que lhe atiçou na alma o mesmo desejo que trazia dentro da sua. Ao aperceber-se disto, o monge aproveitou a primeira oportunidade para conversar com ela do seu gosto. Mas, por muito que a encontrasse disposta a concluir o trabalho, não se encontrava o modo, pois a dama em mais nenhum sítio do mundo se dispunha a encontrar-se com o monge que não fosse em sua casa. Mas em sua casa não era possível porque o irmão Puccio nunca saía para fora da terra. O monge vivia em grande tristeza, até que, depois de muito pensar, lhe veio à ideia uma forma de poder encontrar-se com a dama na casa desta sem despertar suspeitas e apesar de o irmão Puccio estar presente em casa.
“Num dia em que o irmão Puccio veio procurá-lo, o monge disse: “Já percebi muitas vezes, irmão Puccio, que todo o teu desejo é seres santo. Mas parece-me que estás a seguir um caminho muito longo, quando existe um bastante curto que o papa e os seus altos dignitários conhecem e utilizam. Mas eles não o querem revelar porque o clero, que vive sobretudo de esmolas, imediatamente desapareceria se os seculares os deixassem de apoiar ou com esmolas ou de outra maneira. Como, porém, és amigo e me tens honrado tanto, se eu tivesse a certeza de que não o revelarias a ninguém deste mundo e de que o seguirias, podia ensinar-te esse caminho.” O irmão Puccio ficou cheio de desejo e começou a pedir-lhe com muita insistência que lho ensinasse. Jurou, depois, que nunca diria nada a ninguém senão quando ao monge aprouvesse e declarou que, se fosse caminho que ele pudesse seguir, se meteria nele. “Pois se assim me prometes – disse o monge –, vou mostrar-te esse caminho. Fica a saber que os santos doutores afirmam que importa, para quem deseje tornar-se santo, fazer a penitência que vais ouvir. Mas entende bem: não estou a dizer que depois da penitência não continues a ser pecador como és agora, mas acontecerá que os pecados que tiveres cometido até à penitência ser-te-ão todos expiados e perdoados por ela, enquanto os que depois cometeres não ficarão inscritos para a tua condenação. A água benta há-de apagá-los como agora acontece aos pecados veniais. Convém, antes de mais nada, que o homem se confesse com todo o cuidado antes de iniciar a penitência. A seguir, deve encetar um jejum e uma rigorosa abstinência, que devem durar quarenta dias, durante os quais deves abster-te de tocar, não digo outra mulher, mas a tua própria esposa. Além disso, tens de encontrar em tua casa um sítio de onde possas olhar o céu durante a noite e deves ir para lá chegada a hora de completas. Ali estará uma mesa muito larga, disposta de maneira que, ficando de pé, consigas apoiar nela os rins e conservar os pés no chão, estendendo os braços à guisa de crucifixo. Se quiseres, podes apoiar os braços nalgum cravo. Desta maneira, ficarás até à hora de matinas sem te mexeres, olhando para o céu. Se fosses letrado seria entretanto conveniente rezares algumas orações que eu te daria. Mas como não és, bastará recitares trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias em louvor da Santíssima Trindade. Olhando para o céu, terás sempre na memória que Deus foi o criador do Céu e da Terra e recordarás a paixão de Cristo, conservando-te da maneira como ele esteve na cruz. Depois, quando baterem as matinas, se quiseres, podes ir deitar-te, vestido como estás, na tua cama e dormir. Na manhã seguinte, deves ir à igreja e ouvir pelo menos três missas, além de recitares cinquenta padre-nossos e outras tantas ave-marias. Depois irás tranquilamente tratar dos teus negócios, se os tiveres, almoçarás, assistirás às vésperas na igreja, recitarás algumas orações que vou dar-te por escrito e sem as quais o resto não serve de nada, e finalmente, à hora de completas,
voltarás a fazer o que já foi dito. Se assim cumprires como” eu já cumpri, espero que ainda antes de acabares a penitência e se a fizeres com devoção, sentirás a maravilhosa impressão da eterna felicidade.”
“Respondeu então o irmão Puccio: “Não é coisa nem demasiado difícil, nem demasiado longa e posso fazê-la muito bem. Por isso, irei começar domingo em nome de Deus.” Despediu-se, foi para casa e, com permissão de Dom Félix, contou tudo ordenadamente à esposa. Esta percebeu perfeitamente o que o monge queria dizer com o estar quieto até de manhã sem se mexer. Pareceu-lhe um bom estratagema e disse ao marido que ficava contente com aquele ou qualquer outro bem que fizesse pela sua alma. E, para que Deus lhe tornasse proveitosa a penitência, queria jejuar com ele, mas não faria mais nada.
“Assim de acordo, quando chegou o domingo, o irmão Puccio começou a sua penitência e o reverendo monge, combinado com a dama e a horas em que ninguém podia ver, veio cear com ela quase todas as noites, trazendo sempre consigo bastantes comidas e bebidas. Dormia depois com ela até de madrugada, altura em que se levantava, se ia embora e o irmão Puccio vinha para a cama. O sítio que o irmão Puccio tinha escolhido para a sua penitência ficava ao lado do quarto onde a mulher dormia, apenas separado por uma parede bastante delgada. Ora, folgando demasiado o reverendo monge com a dama e ela com ele desenfreadamente, pareceu ao irmão Puccio sentir um certo estremecimento do soalho da casa. Depois de já ter recitado cem padre-nossos, fez uma pausa e, sem se mover, chamou pela mulher, perguntando-lhe o que estava ela a fazer. A mulher, que era muito trocista e que estava talvez a cavalgar a besta de S. Bento ou, melhor, de S. João Gualberto (Nota 8) Estes dois santos eram representados muitas vezes montados num burro; daí transparece a equívoca alusão. (Fim da nota), respondeu: “Por minha fé, esposo, mexo-me quanto é possível.” Disse o irmão Puccio: “Porque é que te mexes? Que significa esse estremecimento?” A mulher riu-se e, por ser bem disposta e mulher corajosa, como tinha decerto motivos para rir, retorquiu: “Como é que não sabeis o que isto significa? Ora eu já vos ouvi dizer mil vezes: Quem à noite não ceia toda a noite rabeia.” Acreditou o irmão Puccio que fosse o jejum a causa da mulher não conseguir adormecer e que, por isso, se remexesse na cama. Disse-lhe, pois, de boa fé: “Mulher, eu bem te disse que não fizesses jejum! Mas como o quiseste fazer, não penses mais nisso e trata de repousar. Dás tantas voltas na cama que pões tudo a estremecer.” Respondeu a esposa: “Não vos raleis! Eu sei muito bem o que estou a fazer. Cuidai bem de vós que eu, por mim, farei o melhor que puder.” Ficou o irmão Puccio sossegado e retomou os seus padre-nossos, enquanto a dama e o reverendo monge trataram de arranjar, a partir daquela noite, uma cama noutra parte da casa e lá ficaram em enorme festa durante o tempo que demorava a penitência do irmão Puccio. Logo que o monge se ia embora, a mulher voltava para a sua cama e, pouco depois, vinha lá deitar-se o irmão Puccio, chegado da sua penitência.
“Continuaram desta maneira as coisas, com o irmão terceiro na penitência e a dama com o monge nos seus prazeres. Dizia muitas vezes a dama gracejando com o monge: “Levaste o irmão Puccio a fazer a penitência com a qual ganhámos nós o paraíso.” Como a dama se sentia muito bem e se afeiçoara aos alimentos do monge por ter vivido durante muito tempo mantida pelo esposo na dieta, embora a penitência do irmão Puccio tivesse chegado ao fim, encontrou forma de banquetear-se com o monge noutro local e, com discrição, assim se divertiu durante largos tempos.
“Deste modo veio a acontecer, para que as últimas palavras não sejam discordantes das primeiras, que, supondo o irmão Puccio entrar no paraíso fazendo aquela penitência, acabou por meter lá dentro o monge, que lhe ensinara o caminho para depressa lá chegar, e a sua esposa vivia junto dele com grande carência daquilo que o reverendo monge, misericordioso, lhe deu com muita abundância.”
Zima oferece a Dom Francisco Vergellesi um cavalo e, por tal motivo, fala com a esposa deste com licença do marido; como a dama fica silenciosa, Zima responde por vez dela e o efeito segue-se de acordo com a resposta (Nota 9) Outro marido que deixa que lhe levem a mulher, desta feita por culpa da sua desagradável avareza, além da demasiada confiança na sua esperteza. Aqui o ambiente é muito mais elevado e as ideias, tanto cavalheirescas como de novo estilo, sobre a força e a nobreza do amor podem servir para a conquista material duma mulher por um amante que é rico em paixão e em rapidez de espírito. Inspira-se nessta novela um conto de La Fontaine. (Fim da nota).
Não foi sem o riso das damas que Pânfilo concluiu a história do irmão Puccio. Então, a rainha ordenou com feminina graciosidade que fosse Elisa a prosseguir. Um tanto desdenhosa, não por maldade, mas por antigo costume, assim falou Elisa:
“Bastante gente considera-se muito sabedora, enquanto os outros nada sabem. Ora acontece-lhes com muita frequência julgarem eles fazer troça dos outros e depois descobrirem terem sido afinal enganados pelos outros. Por isso mesmo, julgo ser grande a loucura de quem se mete desnecessariamente a tentar as forças do engenho alheio. Mas porque talvez nem toda a gente seja da minha opinião, e obedecendo ao tema proposto, apraz--me contar-vos o que aconteceu a um cavaleiro de Pistóia.
“Houve em Pistóia, na família dos Vergellesi, um cavaleiro chamado Dom Francisco, aliás pessoa muito rica, sabedora e sensata, mas duma avareza para lá de todos os limites.
“Tendo ele de partir para Milão como perfeito da cidade, forneceu-se de tudo o que era preciso para ir com todas as honras. Só lhe faltava um cavalo que ele achasse belo para a sua pessoa. Como não encontrava nenhum que lhe agradasse, começou a andar pensativo. Vivia então em Pistóia um jovem de nome Ricardo, humilde de nascimento mas bastante rico, o qual costumava andar tão bem vestido e asseado que geralmente todos lhe chamavam o Zima. Há muito que o jovem andava apaixonado e suspirando infeliz pela esposa de Dom Francisco, dama extraordinariamente formosa e honesta. Ora o Zima possuía um dos mais belos cavalos da Toscana e estimava-o muito por causa da sua beleza. Sabendo toda a gente que ele andava apaixonado pela esposa de Dom Francisco, houve quem fosse dizer a este último que, se lhe pedisse o cavalo, o havia de obter pelo amor que o Zima dedicava à sua mulher. Arrastado pela avareza, Dom Francisco mandou chamar o Zima e pediu que lhe vendesse o cavalo, na intenção que o Zima acabasse por oferecer-lho. O Zima ouviu-o, ficou contente e respondeu ao cavaleiro: “Senhor, ainda que me désseis tudo o que tendes neste mundo, não conseguiríeis que eu vos vendesse o meu cavalo. Mas podeis obtê-lo como oferta logo que quiserdes, nesta condição: antes de ficardes com o cavalo, que eu possa com a vossa licença e diante de vós dizer algumas palavras a vossa esposa, mas afastado o suficiente de qualquer pessoa para que apenas seja ouvido por ela.” O cavaleiro, arrastado pela avareza e na esperança de conseguir enganá--lo, respondeu que estava de acordo e que fosse como ele desejava. Deixou-o no salão do seu palácio, foi procurar a esposa ao quarto e, depois de lhe contar como facilmente podia ganhar o cavalo, obrigou-a a que fosse ouvir o Zima, mas que evitasse responder, pouco ou muito, ao que ele perguntasse. A dama lastimou muito aquela situação, mas como tinha de seguir as vontades do marido disse que sim e acompanhou o marido até ao salão para escutar o que Zima queria dizer. Reafirmando o acordo feito com o cavaleiro, o Zima foi sentar-se com a dama a um canto da sala, bastante afastado de qualquer outra pessoa, e pôs-se a dizer: “Virtuosa senhora, julgo ter a certeza de que sois inteligente bastante para terdes compreendido muito bem como desde há muito tempo a vossa beleza me fez sentir um profundo amor. De facto, não há dúvida que a vossa beleza ultrapassa qualquer outra jamais vista, já sem falar dos louváveis costumes e das singulares virtudes que em vós se encontram e que seriam bastante fortes para cativar a mais sublime alma de qualquer homem. Não é portanto necessário demonstrar-vos com palavras ser o meu amor o maior e o mais ardente que jamais algum homem sentiu por uma mulher. E assim terá de ser enquanto a minha pobre vida sustentar estes membros. Mais ainda: se na outra vida houver amor como há nesta, amar-vos-ei eternamente. Podeis estar segura de que nenhuma coisa possuís, seja ela cara ou sem valia, que seja tão vossa e assim considerada por vós a cada momento como eu sou vosso, valha o que valer. O mesmo afirmo das minhas coisas e, para que tenhais uma prova certíssima, declaro-vos que teria por mercê maior poder eu fazer o que vos aprouvesse ordenar-me do que, sendo eu a mandar, ver o mundo inteiro obedecer-me sem hesitação. Se então vos pertenço como estais ouvindo, não será imerecidamente que ouso erguer as minhas súplicas até à vossa altura. Daí e não de outra parte é que pode chegar-me toda a minha paz, todo o meu bem, toda a minha salvação. Humílimo servo, rogo-vos, ó meu amado bem e única esperança da minha alma, que do amoroso fogo de esperar em vós se alimenta: seja tão grande a vossa benignidade e torne-se tão suave a vossa passada dureza, mostrada contra quem é vosso, que a vossa piedade me reconforte e eu possa afirmar que assim como da vossa beleza me vejo apaixonado, assim também dela recebo a vida. Se às minhas preces o vosso altivo espírito não se inclinar, a vida me fugirá sem dúvida nenhuma. Morrerei e vós podeis afirmar que sois a minha assassina. Já nem falo de que a minha morte não vos oferece honra; algumas vezes, porém, a consciência vos há-de remorder de haverdes cometido tais feitos e, melhor disposta, direis a vós mesma: “Oh!, como fiz mal em não me ter compadecido do meu Zima!” Mas se este arrependimento não se mostrar, haveis de ter motivo de maior tormento. Por isso, a fim de que tal coisa não aconteça, desagradai-vos dessa atitude agora que me podeis valer e, antes que eu morra, deixai-vos mover por misericórdia de mim, pois somente em vós reside fazer de mim o mais feliz ou o mais triste homem da vida. Espero ser tão grande a vossa cortesia que não queirais suportar que eu receba a morte em prémio de tanto e de tal amor, mas antes me deis conforto com uma ditosa resposta, cheia de graça para o meu espírito que tanto treme assustado na vossa presença.” Calou-se, soltou dos olhos algumas lágrimas atrás de profundíssimos suspiros e ficou-se à espera da resposta da gentil senhora. A dama, a quem o demorado galanteio, os jogos de armas, as canções de madrugada e outras coisas semelhantes que o Zima fizera por amor dela não tinham conseguido demover, sentiu-se perturbada com as afectuosas palavras do ardentíssimo amante e começou a experimentar o que antes ela nunca havia sentido, aquilo que era o amor. Embora calando-se para seguir a ordem que lhe dera o marido, um breve suspiro não conseguiu esconder-lhe o que de bom grado teria respondido ao Zima abertamente. O Zima quedou-se algum tempo à espera e admirou-se de ver que nenhuma resposta aparecia. Mas depois começou a dar-se conta da arte usada pelo cavaleiro. Fitou-a no rosto e viu-lhe um certo lampejo nos olhos, uma vez ou outra para ele voltados. Recolheu os suspiros que a dama deixava sair do peito com sufocada força. Ganhou, então, alguma esperança e, ajudado por esta, tomou novo conselho. Pôs-se a responder desta guisa a si próprio no lugar da dama e de forma que ela o ouvia: “Ó meu Zima, é claro que há muito tempo me apercebi de ser muitíssimo grande e perfeito o teu amor por mim e agora muito melhor o conheço com as tuas palavras. Sinto-me naturalmente feliz. Mas se eu te pareci dura e cruel, não penses ter-se passado na minha alma o que mostrei ser no meu rosto. Sempre te amei e te quis acima de qualquer outro homem, mas tive que fazer desse modo por medo de outrem e para conservar a fama da minha honestidade. Mas chegou agora o tempo de poder mostrar-te claramente como te amo e dar-te o prémio pelo amor que me tiveste e continuas a ter. Consola-te e guarda-te em boa esperança porque Dom Francisco deve partir dentro de poucos dias como prefeito de Milão, tal como sabes, pois lhe ofereceste o lindo cavalo por amor de mim. Logo que ele partir, prometo-te pela minha fé, sem nenhum engano e pelo amor que sinto por ti: dentro de poucos dias estarás comigo e daremos ao nosso amor uma agradável e completa satisfação. Para não ser preciso falar-te deste assunto outra vez, no dia em que vires duas toalhas estendidas à janela do meu quarto, que dá para o nosso jardim, nessa mesma noite olha a que ninguém te veja e procura vir ter comigo pela porta do jardim. Encontrar-me-ás à tua espera e durante toda a noite dar--nos-emos um ao outro a festa e o prazer que desejamos.” Mal o Zima acabou de falar assim na pessoa da dama, logo voltou a falar por si mesmo, respondendo assim: “Caríssima senhora, tão ocupada está toda a minha virtude pela extrema alegria da vossa boa resposta que mal consigo formular como render-vos as devidas mercês. Ainda que eu pudesse exprimir-me como desejo, nenhum termo há que seja tão vasto que baste para agradecer-vos plenamente como eu gostaria e como seria meu dever cumprir. Limite-se a vossa discreta consideração em saber aquilo que eu, embora o deseje, não posso fornecer com palavras. Apenas vos direi que sem falta pensarei fazer conforme o que haveis ordenado. Talvez então, mais sossegado por tantos dons que me haveis concedido, eu me empenhe com as minhas forças em dar-vos os maiores agradecimentos que me forem possíveis. Por ora não resta mais nada a dizer. Minha amantíssima senhora, Deus vos dê aquela felicidade e aquele bem máximos que desejais e a Deus vos recomendo.” A tudo isto a dama não disse uma só palavra. Então o Zima levantou-se dali e foi para onde estava o cavaleiro, que, ao vê-lo de pé, lhe veio ao encontro e lhe disse, rindo: “Que te parece? Cumpri bem a promessa que te fiz?” “Não, senhor! – respondeu o Zima. – Vós prometestes-me que eu falaria com a vossa esposa e fizestes-me falar com uma estátua de mármore.” Esta palavra agradou muito ao cavaleiro, que, se tinha uma boa opinião sobre a esposa, ainda com melhor ficou. Disse ele: “É todo meu agora o cavalo que era teu.” Respondeu-lhe o Zima: “Sim, senhor, mas se eu tivesse adivinhado o fruto que havia de receber do favor que me concedestes, ter-vo-lo-ia dado sem que mo pedísseis. E quisesse Deus que assim tivesse eu feito, pois que vós compraste o cavalo e eu não o vendi.” O cavaleiro riu-se da coisa e, fornecido de corcel, passados poucos dias meteu-se a caminho e dirigiu-se a Milão como seu prefeito.
Encontrou-se a dama livre em sua casa, recordou-se das palavras do Zima, do amor dele por ela, do cavalo que entregara por seu amor e, ao vê-lo passar frequentemente em frente da sua casa, disse para si mesma: “Que ando eu a fazer? Porque hei-de perder a minha juventude? Ele foi-se embora para Milão e não voltará nos próximos seis meses. E quando é que me recompensará? Quando eu for velha? Além disso, quando é que voltarei a ter um tão perfeito amante como o Zima? Estou só e não tenho medo de ninguém. Não sei porque não hei-de eu aproveitar esta boa oportunidade enquanto me é possível. Nem sempre terei a ocasião que agora tenho. Ninguém saberá nunca disto e, ainda que se viesse a saber, bem melhor é fazer e arrepender-se do que arrepender-se de não ter feito.” Dando assim conselho a si mesma, certo dia pôs duas toalhas à janela do jardim, como o Zima dissera. Este viu e, contentíssimo, logo que a noite veio, dirigiu--se à porta do jardim da dama e deu com ela aberta. Foi de seguida a outra porta que dava entrada em casa e lá encontrou a gentil senhora à sua espera. Quando o viu chegar, levantou-se ao seu encontro e recebeu-o com muitíssimo júbilo. Ele abraçou-a, beijou-a cem mil vezes e acompanhou-a escadas acima. Deitaram-se sem nenhuma demora e provaram os extremos limites do amor. Sendo esta a primeira vez, ela não foi a última, pois enquanto o cavaleiro esteve em Milão, e mesmo depois do seu regresso, o Zima lá voltou muitas vezes mais com enorme prazer de cada uma das partes.”
Ricardo Minútolo enamora-se da esposa de Filippello Sighinolfo; descobrindo que a dama é ciumenta, revela-lhe que Filippello irá encontrar-se, no dia seguinte, com a sua esposa num balneário; convence-a a ir até lá, e ela, supondo haver estado com o marido, descobre que estivera com Ricardo (Nota 10) Difícil conquista de uma mulher honesta e enamorada do marido, efectuada graças aos ciúmes por um amante esperto, primeiro com a fraude, depois com a persuasão. É bem delineada esta figura de mulher passional e impulsiva, quer ao expandir-se na violência das acusações dirigidas ao marido e gozadas pelo amante – numa cena de bem conseguida malícia –, quer ao dominar pelo orgulho a amarga dor da descoberta. La Fontaine colhe o tema para um conto. (Fim da nota).
Nada mais restava a Elisa para dizer quando, depois de louvada a esperteza do Zima, a rainha impôs a Fiammetta que prosseguisse com outra novela. Toda sorridente, a donzela respondeu: “De boa vontade, senhora”, e começou:
“De vez em quando é preciso sair da nossa cidade, que, assim como é farta de todas as coisas, também o é de exemplos para qualquer assunto. Como fez Elisa, por vezes podem contar-se factos que se passaram noutros lugares. Por isso, passo-me a Nápoles e vou falar de como uma dessas devotas que tão esquivas se mostram diante do amor foi levada por um seu amante a sentir o fruto do amor antes de lhe conhecer as flores. Isto servir-vos-á ao mesmo tempo de cautela nos factos que podem acontecer e dar-vos-á prazer pelos acontecidos.
“Em Nápoles, cidade antiquíssima e talvez tão agradável ou ainda mais que todas as que existem na Itália, viveu um jovem de ilustre sangue por nobreza e magnífico pelas muitas riquezas. Chamava-se Ricardo Minútolo. Apesar de ter uma esposa lindíssima, jovem e encantadora, apaixonou-se por uma dama que, na opinião de toda a gente, ultrapassava de muito longe a beleza de todas as outras damas napolitanas. De nome Catella, era casada com um jovem igualmente fidalgo, Filippello Sighinolfo, a quem ela, honestíssima, amava e estimava acima de tudo.
“Como Ricardo Minútolo amasse, pois, a referida Catella, pôs ele em prática todos aqueles meios pelos quais se podem conquistar a graça e o amor duma mulher. Com tudo isto, porém, não conseguia chegar a nada do que pretendia e começava a andar desesperado. Não sabendo ou não podendo libertar-se daquele amor, também não sabia morrer nem o viver lhe dava alegria. Andava assim neste estado de espírito quando algumas damas da sua família, certo dia, o confortaram veementemente porque seria inútil insistir naquele amor: a realidade é que Catella não possuía outra paixão além de Filippello e vivia com tantos ciúmes dele que até um passarinho que voasse no céu ela supunha que lho viesse roubar. Ao ouvir falar dos ciúmes de Catella, imediatamente Ricardo urdiu um plano para os seus desejos e começou a mostrar-se desinteressado do amor de Catella e a fazer supor que pusera esse amor noutra mulher, entrando por causa desta em justas e torneios e fazendo tudo aquilo que costumava fazer por Catella. Não demorou muito a proceder deste modo e logo quase todos os napolitanos, incluindo Catella, se convenceram de que andava apaixonado não já por Catella, mas por aquela segunda mulher. Tanto perseverou ele em tal atitude que toda a gente considerava tratar-se de coisa firme, ao ponto de a própria Catella abandonar a sua posição reservada em relação a ele pelo amor que Ricardo lhe costumava mostrar, começando a cumprimentá-lo familiarmente como a qualquer outro, enquanto vizinho que lhe passava diante de casa. Quando veio a estação quente, aconteceu que muitos grupos de damas e cavalheiros, segundo o uso dos Napolitanos, começaram a deslocar--se para as praias do mar, ali almoçando e jantando. Ricardo soube que Catella fora para lá com o seu grupo e também seguiu com a sua companhia. O grupo das damas acolheu-o depois de ele se fazer muito rogado, como se não estivesse muito interessado em estar com elas. Puseram-se então as damas, e Catella juntamente com as outras, a brincar com ele a propósito da sua nova paixão. Ele mostrava-se fortemente apaixonado, ainda lhes oferecendo mais azo de conversa. Com o passar do tempo foi uma dama para ali, outra para acolá, como é hábito naqueles lugares, ficando Catella com alguns poucos onde se encontrava Ricardo. Foi então que este lhe dirigiu um motejo a propósito duma certa paixão do seu marido, Filippello. Ela caiu em repentinos ciúmes e começou toda a arder dentro de si no desejo de saber que queria dizer Ricardo. Depois de se ter dominado algum tempo, não conseguiu suster-se mais e rogou a Ricardo que, por amor daquela dama que ele tanto amava, lhe fizesse o gesto de a esclarecer sobre o que afirmara de Filippello. Disse-lhe ele: “Haveis-me rogado em nome de pessoa por quem não ouso recusar o que me pedirdes. Estou, pois, pronto a dizer-vo-lo desde que me prometais nunca terdes uma só palavra nem com ele nem com outrem senão depois de haverdes observado ser verdade o que vos irei contar. Ensinar-vos-ei como o podereis ver quando vós quiserdes.” Agradou à dama o que ele requeria e ain-da mais se convenceu de que ele falava verdade, jurando que jamais contaria nada a ninguém. Afastaram-se à parte, a fim de que ninguém os ouvisse, e Ricardo começou assim a falar: “Senhora, se eu ainda vos amasse como vos amei, não me atreveria a dizer-vos algo que eu pensasse poder aborrecer-vos. Mas como tal amor já passou, não me preocuparei tanto em dizer-vos toda a verdade. Não sei se alguma vez Filippello desconfiou do amor que vos tive ou se chegou ao conhecimento de que nunca fui correspondido por vós. Mas, fosse como fosse, na minha presença nunca o mostrou. Agora, porém, porventura esperando ocasião em que eu menos suspeitasse, mostra-se desejoso de fazer-me aquilo mesmo que duvido se não recearia que eu lhe tivesse feito, isto é, ter à sua mercê a minha mulher. Pelo que suponho, desde há algum tempo anda a requestá-la muito em segredo com diversos recados. Soube deles por minha mulher e ela foi-lhe dando resposta segundo as minhas instruções. No entanto, esta manhã, antes de eu ter saído, encontrei uma mulher em casa com a minha esposa em íntima conversa. Imediatamente vi de quem se tratava. Chamei a minha mulher e perguntei-lhe o que lhe dissera aquela. Respondeu-me: “É a insistência de Filippello que tu, com as respostas mandadas e a esperança dada, fizeste com que não me largue. Diz querer saber exactamente o que tenciono fazer e que me arranja maneira, quando eu quiser, de ir em segredo a uma casa de banhos da cidade, insistindo e maçando. Se não fosse teres-me posto neste enredo, nem sei porquê, já o teria sacudido à minha maneira de forma que nunca mais me pusesse os olhos em cima.” Achei então que ele estava a ir longe de mais e que chegava de paciência. Resolvi falar convosco para que saibais qual o prémio dado à vossa inteira fidelidade, pela qual já me vi à beira da morte. E para que não julgueis tratar-se de palavras inventadas, mas possais ver e tocar claramente a verdade se vos apetecer, disse à minha mulher que mandasse a alcoviteira, que estava à espera, dar a seguinte resposta: que estava resolvida a ir no dia seguinte, à hora de noa, quando toda a gente está a dormir, à tal casa de banhos. A mulherzinha abalou dali contentíssima. Mas não acredito que estejais a pensar que eu lhe mandaria a minha mulher. No entanto, se eu estivesse no vosso lugar, faria com que ele me encontrasse ali na vez daquela com quem imaginava encontrar-se. Depois de estar algum tempo com ele, mostrar-lhe-ia com quem tinha estado e dar-lhe-ia o prémio merecido. Fazendo desse modo, creio que a vergonha dele seria tão grande que ficaria ao mesmo tempo vingada a ofensa que vos quer fazer a vós e a mim.”
“Catella, mal isto ouviu, sem reparar sequer naquele que tais coisas contava ou nas suas astúcias, segundo o costume dos ciumentos, logo fez fé nas suas palavras e começou a relacionar certos factos anteriores com aquele. No fogo duma fúria repentina, respondeu que seria isso mesmo o que iria fazer com certeza.
Não era coisa assim tão difícil de fazer e garantia que, se ele lá aparecesse, tanto haveria de o envergonhar que, sempre que olhasse para alguma mulher, isso lhe havia de passar pela cabeça.
“ Ricardo ficou satisfeito e pareceu-lhe que a sua decisão fora acertada e daria resultado. Com bastantes outras palavras a foi convencendo, pondo-a na mais firme certeza, sem todavia deixar de pedir-lhe que nunca dissesse ter ouvido tais coisas da sua boca. Ela prometeu jurando por sua fé. Na manhã seguinte, Ricardo foi procurar a patroa da casa de banhos de que havia falado a Catella e contou-lhe o que tencionava fazer, pedindo-lhe que o ajudasse quanto lhe fosse possível. A boa mulher, que lhe devia muitas obrigações, respondeu que o faria de boa vontade e combinou com ele o que tinha de fazer e de dizer. Havia na casa onde ficavam os balneários um quarto muito escuro, sem nenhuma janela por onde a luz pudesse entrar. Segundo as instruções de Ricardo, a mulher preparou esse quarto, armou lá dentro a melhor cama que conseguiu encontrar e Ricardo foi lá meter-se depois de almoçar, ficando à espera de Catella.
“Depois de ouvir as palavras de Ricardo e de lhes ter dado mais fé do que devia, Catella voltou para sua casa, cheia de indignação. Por acaso, Filippello também voltou inteiramente ocupado por outro pensamento e não lhe deu aqueles carinhos que costumava dar-lhe. Ao vê-lo assim, ela ficou muitíssimo mais desconfiada e disse consigo mesma: “Realmente anda com o pensamento naquela mulher e julga que amanhã vai divertir-se e comprazer-se com ela, mas isso não acontecerá de certeza.” Passou assim quase toda a noite com aquele pensamento e a imaginar o que lhe havia de dizer quando se encontrasse com ele.
“Que mais dizer? Chegada a hora de noa, sem modificar a sua decisão, meteu-se a caminho da tal casa de banhos de que a informara Ricardo. Lá foi encontrar a patroa e perguntou-lhe se Filippello ali estivera nesse dia. A boa mulher, industriada por Ricardo, disse: “Sois vós a senhora que lhe deve vir falar?” Catella respondeu: “Sou, sim”. “Então – disse a boa mulher –, vinde ter com ele.” Catella, indo à procura daquele que não desejaria encontrar, deixou-se conduzir até ao quarto onde se encontrava Ricardo e, de cabeça coberta, entrou e fechou-se lá dentro. Vendo-a chegar, Ricardo levantou-se feliz, recebeu-a nos braços e disse-lhe em voz baixa: “Sede bem-vinda, ó minha alma!” Catella, para bem mostrar ser a outra que não ela, abraçou-o, beijou-o e fez-lhe muitas carícias sem dizer nenhuma palavra, receando ser reconhecida por ele se falasse. O quarto era muitíssimo escuro para contentamento de cada uma das partes e nem com a longa estada os olhos deles puderam alcançar mais. Ricardo transportou-a para a cama e ali, sem dizer palavras que lhe pudessem identificar a voz, estiveram um longo espaço de tempo com o maior prazer e deleite de um e outro lado. Quando, porém, pareceu a Catella ser ocasião de lançar para fora a cólera que havia concebido, começou a falar, fervente de raiva: “Ai! Como é triste a sorte das mulheres e quão mal empregado é o amor de tantas nos seus maridos! Há oito anos, pobre de mim, tenho-te amado mais do que à minha própria vida e tu, como eu própria provei, ardes e consomes-te todo no amor de uma mulher alheia, homem ruim e malvado! Com quem julgas ter estado? Estiveste com a mulher que já enganaste demasiado com falsas carícias, mostrando-lhe amor e estando apaixonado por outra. Sou Catella e não a mulher de Ricardo, ó desleal traidor que tu és! Escuta se reconheces a minha voz e vê bem quem sou eu! Mil anos que estivéssemos vivos parecem-me poucos para te envergonhar quanto mereces, sujo cão indecente! Ai de mim, desgraçada! A quem dei eu tantos anos tanto amor? A este cão desleal que, julgando ter nos braços uma mulher alheia, me cobriu de mais carícias e ternuras neste pouco tempo em que estive com ele do que em todo o resto do tempo em que fui sua. Hoje soubeste ser valente, cão renegado que em casa te costumas mostrar tão débil, tão vencido e sem posses! Mas louvado seja Deus que foi o teu campo que tu cavaste e não o alheio, como estavas a pensar. Não admira que não te chegasses a mim a noite passada. Estavas à espera de alijar a carga noutro sítio e querias chegar à batalha como cavaleiro bem fresco, mas, graças a Deus e à minha esperteza, a água desceu mais abaixo do que esperavas! Não respondes, homem ruim? Não dizes nada? Ficaste mudo ao ouvir-me? À fé de Deus, não sei o que me segura para não te enterrar as mãos nos olhos e arrancar-tos! Julgavas armar muito em segredo esta traição, mas, por Deus, há sempre alguém mais esperto e não te correu bem: pus-te melhores perdigueiros no rasto do que julgavas.”
“Dentro de si Ricardo gozava com estas palavras e, sem responder coisa nenhuma, abraçava-a, beijava-a e fazia-lhe carícias cada vez maiores. Ela, entretanto, ia prosseguindo: “Sim, agora julgas que me lisonjeias com as tuas fingidas carícias, cão fastidioso. Julgas reapaziguar-me, reconsolar-me, mas enganas-te: nunca terei consolo disto enquanto não te acusar na presença de todos os parentes e vizinhos que temos. Então, homem malvado, não sou tão bonita como a mulher de Ricardo Minútolo? Não serei eu dama tão nobre? Porque não respondes, sujo cão? Que tem ela mais do que eu? Afasta-te, não me toques, pois já terçaste demasiadas armas por hoje. Bem sei que, se tivesses sabido que era eu, só pela força farias o que fizeste, mas se Deus me der a sua graça, ainda te hei-de fazer sofrer de desejos. Nem sei porque me seguro e não vou procurar Ricardo, que me amou mais do que a si próprio e que nunca se pôde gabar de que eu olhasse para ele uma vez só. Não sei que mal havia se o tivesse feito. Julgaste que tinhas a mulher dele aqui e foi como se a tivesses, pois não te deste conta. Se eu, portanto, o tivesse a ele, não terias razão de censurar-me.”
“Foram muitas as palavras da dama e grande o seu queixume. Por fim, Ricardo pensou que, se a deixasse partir naquela convicção, muito mal poderia suceder. Decidiu, pois, dar-se a conhecer e tirá-la do logro em que se encontrava. Abraçando-a uma vez mais, agarrou-a bem para que não pudesse fugir e disse-lhe: “Minha doce alma, não vos perturbeis. O que eu não consegui obter amando simplesmente ensinou-me o amor a conseguir pelo engano. Sou o vosso Ricardo.” Quando o ouviu e lhe reconheceu a voz, Catella quis saltar imediatamente da cama mas não pôde. Quis gritar, mas Ricardo fechou-lhe a boca com uma das mãos, dizendo-lhe: “Senhora, agora já não é possível que o acontecido deixe de o ser, ainda que passeis o resto da vida a gritar. E se gritardes ou fizerdes de modo que alguém saiba disto, duas coisas acontecerão. Uma delas, que não pouco vos há-de importar, é que a vossa honra e a vossa boa reputação ficam feridas porque, se disserdes que eu vos trouxe aqui enganando-vos, eu direi que não é verdade e que, antes, viestes por causa do dinheiro e das prendas que vos prometi. E direi que foi por não vos ter dado precisamente quanto esperáveis que vos exaltastes e fizestes todo este alarido e rumor. Sabeis que as pessoas tendem mais a acreditar no mal do que no bem e, por isso, acreditarão mais depressa em mim do que em vós. Por outro lado, nascerá entre mim e o vosso marido uma inimizade de morte e as coisas podem correr de tal maneira que tanto o possa matar eu a ele como ele a mim. Isto não vos fará mais feliz nem mais contente. Por isso, coração do meu corpo, não queirais ao mesmo tempo cobrir-vos de vitupério e pôr em perigo e guerra ao vosso marido e a mim. Não sois a primeira nem sereis a última a ser enganada. Aliás, não vos enganei para roubar o que é vosso, mas pelo demasiado amor que vos tenho, e quero ter-vos para sempre, tornando-me vosso humílimo servidor. Há muito tempo que eu e as minhas coisas e tudo o que eu posso e valho vos pertencem, estando ao vosso serviço. Espero que doravante o estejam mais do que nunca. Sois sensata nas restantes coisas; estou certo de que o sereis também nesta.”
“Enquanto Ricardo dizia tais palavras, Catella ia chorando copiosamente. Mas, apesar de muito perturbada e lastimando-se muito, a razão foi abrindo espaço à verdade das palavras de Ricardo, de modo que ela viu ser possível vir a acontecer o que Ricardo dizia. Assim, respondeu: “Ricardo, não sei como é que Deus me vai conceder forças para suportar a injúria e o engano que me fizeste. Não vou gritar aqui, onde me trouxeram a minha simplicidade e o exagerado ciúme, mas disto vos garanto: nunca mais serei feliz enquanto de um modo ou de outro não estiver vingada do que me fizeste. Deixa-me, pois, e não me prendas mais. Tiveste o que desejavas e magoaste-me quanto te apeteceu. É tempo de me deixares. Larga-me, peço-te.”
“Ricardo, que lhe via o espírito ainda muito perturbado, resolveu não deixá-la partir sem fazerem as pazes. Começou a amansá-la com palavras dulcíssimas e tanto disse, tanto rogou, tanto suplicou que ela, vencida, fez as pazes com ele e de comum vontade demoraram muito tempo juntos em grande deleite. Compreendeu, além disso, a dama como eram muito mais saborosos os beijos do amante do que os do marido. Por isso, transformou a sua dureza para com Ricardo num doce amor e, a partir daquele dia, amou-o com muitíssima ternura. Agindo com a maior prudência, saborearam muitas vezes o gozo do seu amor. Assim Deus nos faça gozar o nosso.”
Tedaldo, aborrecido com uma sua amante, sai de Florença. Regressa passado algum tempo na figura de peregrino; fala com a dama e leva-a a tomar consciência do seu erro; salva da morte o marido dela, contra o qual fora provado que o tinha morto, e reconcilia-o com os seus irmãos. Depois sensatamente goza a companhia da amante. (Nota 11) Autêntico romance policial, com o erro judiciário devido à ligeireza dos juízes e com o triunfo final do inocente. Nele enreda-se o romance de amor do improvisado detective, homem duma fidelidade romântica e melancólica que, aparecendo no traje misterioso dum santo peregrino, reivindica contra a intriga dos padres a santidade dos vínculos extraconjugais. Mas a fusão entre os dois romances é um tanto mecânica e daí a sensação dum exagero de motivos romanescos e polémicos nesta novela, que possui partes sugestivas, a par de outras que nos deixam perplexos, como o mistério das relações entre marido e amante no coração da protagonista. (Fim da nota)
Calara-se já Fiammetta e todos a louvavam, quando a rainha, para não perder tempo, se apressou a ordenar a Emília que prosseguisse. Ela começou:
“Apraz-me regressar à nossa cidade, de onde quiseram sair as duas antecessoras, e mostrar-vos como um nosso concidadão reconquistou a sua perdida dama.
“Houve em Florença um jovem nobre, de nome Tedaldo dos Elisei, o qual se apaixonara desmedidamente por uma dama chamada Dona Ermelinda, mulher dum certo Aldobrandino Palermini. Conseguiu Tedaldo, com as suas louváveis maneiras, o prémio de ver satisfeitos os seus desejos. Mas a fortuna, inimiga dos felizes, opôs-se àquele prazer e assim, por qualquer razão, depois de haver feito a vontade a Tedaldo durante algum tempo, a dama começou a evitar por completo satisfazê-lo, rejeitando não só ouvir qualquer recado seu como até vê-lo de qualquer maneira. Ele caiu então em profunda e grave melancolia, mas aquele seu amor era tão secreto que ninguém descobriu a razão da sua tristeza. Depois de muito se ter empenhado, por diversas maneiras, em reconquistar o amor que lhe parecia ter perdido sem culpa sua, e vendo inútil todo o seu esforço, resolveu ir correr mundo para não dar àquela que era a causa do seu mal a alegria de o ver consumir-se. Reuniu quanto dinheiro pôde e em segredo, sem avisar nenhum amigo ou familiar, à excepção dum seu companheiro sabedor de tudo, abalou e foi até Ancona, fazendo-se chamar Filipe de San Lodeccio. Ali conheceu um rico mercador, pôs-se ao seu serviço e partiu com ele num seu navio em direcção a Chipre. A sua educação e as suas maneiras agradaram tanto ao mercador que este não só lhe deu um bom salário como o fez em parte seu companheiro, além de lhe pôr nas mãos grande parte dos seus negócios. Ele conduziu-os tão bem e com tanta solicitude que em poucos anos se transformou num bom mercador, rico e famoso. Nestas andanças, ainda que muitas vezes se recordasse da sua cruel amante e atrozmente o amor o trespassasse e tivesse muitos desejos de a tornar a ver, foi tão persistente que venceu aquela batalha durante sete anos. Mas certo dia, em Chipre, aconteceu-lhe ouvir cantar uma canção que ele compusera, na qual se falava do amor que ele tinha por sua dama, como também do amor dela por ele e do prazer que ela lhe dava. Pensou então não ser possível que ela o tivesse esquecido e ateou-se nele uma tal vontade de a tornar a ver que não conseguiu suportar mais e resolveu regressar a Florença. Pôs tudo o que era seu em ordem e partiu, acompanhado apenas por um criado, para Ancona. Logo que toda a sua bagagem lá chegou, despachou-a para Florença, para casa dum amigo do seu sócio anconitano. Ele seguiu atrás, com o criado, em segredo e na figura de peregrino que regressava do Santo Sepulcro. Chegados a Florença, dirigiu-se a uma pequena hospedaria de dois irmãos, a qual se encontrava situada perto da casa da sua dama. Antes de ir a qualquer outra parte, passou em frente da casa dela para a ver, se fosse possível. Mas encontrou janelas, portas, tudo fechado, ficando com fortes dúvidas se ela teria morrido ou mudado para outra casa. Muito pensativo, dirigiu-se a casa dos seus irmãos e foi encontrar diante da casa quatro deles, todos vestidos de preto. Ficou muito admirado e como, entretanto, sabia ter-se transfigurado de roupa e de pessoa em relação ao que era quando tinha abalado, tanto que não seria fácil reconhecê-lo, aproximou-se confiadamente dum sapateiro e perguntou-lhe porque andavam aqueles vestidos de preto. Respondeu-lhe o sapateiro: “Andam vestidos de preto porque, ainda não há quinze dias, um irmão deles, que há bastante tempo estava fora e que se chamava Tedaldo, foi morto. Segundo me parece, provaram em tribunal que terá sido morto por um certo Aldobrandino Palermini, já preso, porque o outro amava a sua mulher e voltara incógnito para se encontrar com ela.” Muito admirado ficou Tedaldo por existir alguém tão parecido que fosse tomado como sendo ele e condoeu-se pela desgraça de Aldobrandino. Como, porém, soubera que a dama se encontrava viva e de saúde, regressou já de noite à hospedaria, cheio de vários pensamentos, e depois de ter ceado com o seu criado, puseram-no a dormir no andar mais alto da casa. Fossem os muitos pensamentos que o estimulavam, fosse a ruindade da cama, fosse porque a ceia tinha sido escassa, já passava metade da noite e Tedaldo ainda não conseguira adormecer. Estava ele assim acordado quando, já depois da meia-noite, lhe pareceu ouvir gente que descia do telhado para a casa. Pelas frinchas da porta do quarto viu depois descer uma luz lá de cima. Encostou-se silenciosamente a uma das frinchas e pôs-se a ver o que significava aquilo: viu uma jovem muito bonita que segurava a luz e, atrás dela, três homens a descerem do telhado. Depois de festejarem algum tempo entre si, um dos homens disse à rapariga: “Agora já podemos estar sossegados, louvado seja Deus! Já temos a certeza de que a morte de Tedaldo Elisei foi provada pelos irmãos contra Aldobrandino Palermini. Ele já confessou e a sentença já foi escrita. Mas temos de continuar calados na mesma, porque, se alguma vez soubessem que fomos nós, ficaríamos no mesmo perigo em que está Aldobrandino.” Dito isto, desceram dali e foram-se deitar com a dama, que se mostrava contente com o acontecido. Ao ouvir tal coisa, Tedaldo pôs-se a pensar em quantos e quais os erros que podiam entrar na mente humana, pensando primeiramente nos seus irmãos, que tinham chorado e sepultado um estranho na sua vez, e depois no inocente acusado por falsa suspeição e que ia ser levado à morte com testemunhos não verdadeiros. Pensou ainda na cega severidade das leis e dos juízes, que, muitíssimas vezes, como se fossem os solícitos investigadores da verdade, fazem provar o que é falso com a crueldade das torturas, afirmando-se ministros da justiça e de Deus, quando são os executores da maldade e do demónio. Voltou-lhe depois o pensamento para a salvação de Aldobrandino e planeou consigo mesmo o que tinha a fazer. De manhã, levantou-se, deixou o criado e, quando julgou ser ocasião, dirigiu-se sozinho a casa da sua dama. Encontrou a porta aberta por acaso, entrou lá dentro e encontrou a sua dama sentada no chão, numa pequena sala térrea ali existente. Estava ela toda coberta de lágrimas e de amargura e Tedaldo quase chorou de compaixão. Aproximou-se e disse: “Senhora, não estejais atribulada: a vossa paz está perto.” Ao ouvi-lo, a dama ergueu a face e disse, chorosa: “Bom homem, pareces-me um peregrino estrangeiro. Que sabes tu da paz ou sobre a minha aflição?” Respondeu o peregrino: “Senhora, sou de Constantinopla e acabo de chegar aqui mandado por Deus para converter as vossas lágrimas em riso e para libertar da morte o vosso marido.” “Como é que – disse a dama –, sendo tu de Constantinopla e acabando agora de chegar, sabes quem somos, o meu marido e eu?” O peregrino pôs-se a contar, desde o princípio, toda a história da angústia de Aldobrandino e disse-lhe quem era ela, há quanto tempo estava casada e muitas outras coisas da sua vida que ele conhecia muito bem. A dama ficou muitíssimo admirada e, tomando-o por um profeta, ajoelhou-se aos seus pés, rogando-lhe por Deus que, se viera para salvação de Aldobrandino, se apressasse porque o tempo era pouco. Disse o peregrino, fingindo ser homem de muita santidade: “Senhora, levantai-vos e não choreis! Tende confiança no que vou dizer-vos e acautelai-vos de nunca o repetir a ninguém. Pelo que Deus me revela, a tribulação por que passais deve-se a um pecado que já cometestes e que Deus quis purgar em parte com este sofrimento, mas quer que vós expieis completamente. Senão, haveis de cair em tormento muito maior.” Disse então a dama: “Senhor, eu tenho muitos pecados e não sei de qual é que Deus me quer mais corrigida do que dos outros. Se vós sabeis qual é, dizei-me e eu farei o possível para o corrigir.” “Senhora – disse o peregrino –, sei perfeitamente qual é e não preciso de interrogar-vos para o conhecer melhor. Só o faço para que, confessando-o, sintais mais remorsos. Vamos então aos factos. Dizei-me: lembrais-vos de haverdes tido alguma vez um amante?” Quando ouviu isto, a dama soltou um grande suspiro e ficou muito espantada, julgando que nunca alguém o houvesse sabido, apesar de, na altura em que fora morto o que sepultaram como se fosse Tedaldo, se ter murmurado por causa de certos ditos incautamente usados pelo companheiro de Tedaldo que era sabedor. Assim respondeu: “Vejo que Deus vos revela todos os segredos dos homens, e, por isso, estou disposta a não vos ocultar os meus. É verdade que na minha juventude amei apaixonadamente o jovem cuja morte foi atribuída ao meu marido. E chorei a sua morte tanto quanto ela me fez sofrer porque, ainda que eu me tivesse mostrado dura e ríspida em relação a ele antes da sua partida, nem a sua longa ausência nem sequer a desditosa morte mo puderam arrancar do coração.” O peregrino disse a isto: “Nunca vós amastes o inditoso jovem que foi morto, mas sim Tedaldo Elisei. Dizei-me, porém: qual foi a razão de vos terdes zangado com ele? Ofendeu-vos alguma vez?” A dama respondeu: “Com certeza que não, ele nunca me ofendeu. O motivo da zanga foram as palavras dum maldito frade a quem uma vez me confessei. Quando lhe falei do amor que tinha àquele jovem e da intimidade com ele, fez-me um sermão tão grande que ainda hoje me apavoro. Disse ele que, se eu não renunciasse, cairia na boca do diabo, lá nas profundezas do inferno e seria condenada às penas do fogo. Apoderou-se de mim um tal medo que dispus-me totalmente a não querer mais intimidades com ele e, para não dar mais ocasião, não quis mais receber carta ou recado seu. Penso que, se ele tivesse persistido (pois, ao que presumo, foi-se embora desesperado), ao vê-lo consumir-se como a neve ao sol, o meu duro propósito havia de vergar-se, pois era o que eu mais desejava no mundo.” Disse então o peregrino: “Senhora, é só esse o pecado que agora vos atormenta. Tenho a firme certeza de que Tedaldo não vos fez qualquer violência. Quando vos enamorastes dele foi por vossa própria vontade que o fizestes. Procurou-vos e usou da vossa intimidade quando vós mesma quisestes e mostrastes então tanto agrado com as palavras e com os gestos que se antes ele vos amava, mil vezes lhe dobrastes depois o amor. E se foi assim, eu sei que assim foi, que razão havia para o afastardes tão asperamente? Estas coisas deviam ser pensadas antes de mais nada e, se acháveis que iríeis arrepender-vos por ser mal feito, não o fizésseis. Tal como ele se tornou vosso, assim vos tornastes sua. Se ele não fosse vosso, podíeis fazer tudo o que vos apetecesse, como fazeis das vossas coisas. Mas querer-vos furtar a ele, vós que éreis sua, seria um roubo e coisa inadmissível se não fosse da vontade dele.
“Como vedes, sou frade e, portanto, conheço-lhes os costumes todos. Se, para vosso interesse, vos vou falar com toda a franqueza, isso não me fica mal como ficaria a qualquer outra pessoa. Gosto de falar deste assunto para que doravante o conheçais melhor do que parece terdes conhecido anteriormente. Os frades já foram homens de muitíssima santidade e virtude, mas aqueles que hoje se chamam frades e assim querem ser chamados nada mais possuem de frades além da capa. Aliás, nem essa é de frade, pois, porquanto os seus fundadores houvessem determinado que as capas fossem exíguas, pobres, de pano grosseiro e reveladoras do espírito, o qual desprezava as coisas temporais quando cobriam o corpo com um hábito tão modesto, os de hoje fazem-nas amplas, forradas, de tecidos brilhantes e finíssimos. Cortam-nas em talhe elegante e pontifical, não se envergonhando de se pavonearem com elas nas igrejas e nas praças, tal como faz a gente do mundo com os seus trajes. E assim como o pescador procura apanhar na sua rede nos rios muitos peixes de uma só vez, assim também eles procuram meter debaixo das amplíssimas fímbrias em que se envolvem muitas beatas, viúvas e muitos outros patetas, homens e mulheres, empenhando-se mais nisto do que em qualquer outro trabalho. Para falar com mais verdade, direi que eles não usam as capas dos frades, mas somente as cores dessas capas. Os antigos desejavam a salvação dos homens; os de agora desejam as mulheres e as riquezas. Puseram e põem todo o seu talento em assustar com palavreado e pinturas as almas dos estultos e em demonstrar que os pecados se expiam com esmolas e com missas, a fim de que a eles, que se fizeram frades por vilania e não por devoção, sem grande trabalho seu, uns tragam o pão, outros o vinho, outros os bons petiscos por alma dos antepassados. É certo que os pecados se expiam com as esmolas e as orações; mas se aqueles que as fazem vissem ou soubessem a quem as fazem, prefeririam guardá-las para si ou atirá-las antes aos porcos. E como esses frades sabem que, quanto menos forem os possessores duma grande riqueza, tanto mais fácil lhes corre a vida, cada qual se empenha em afastar os outros do que desejar possuir sozinho. Vituperam contra a luxúria dos homens para que, afastando os vituperados, fiquem os vituperadores com as mulheres; condenam a usura e os ganhos ilícitos para que, feitos restituidores desses lucros, possam fazer capas mais amplas, fazer caça aos bispados e às outras prelaturas maiores com o mesmo dinheiro que provaram levar à perdição aqueles que o possuíam. E quando são censurados por estas e muitas outras coisas indignas, respondem: "Fazei o que dizemos e não o que fazemos", achando ser esta uma forma digna de se descarregarem da sua pesada carga, como se fosse mais fácil às ovelhas do que aos pastores serem constantes e de ferro. Aliás, grande parte deles sabe quantos são os que não entendem tal resposta do modo como a dizem. Querem os frades actuais que façamos o que eles dizem, ou seja, que lhes enchamos os bolsos com dinheiro, lhes confiemos os nossos segredos, guardemos castidade, sejamos pacientes, perdoemos as injúrias, evitemos dizer o mal. Tudo coisas boas, tudo honesto, tudo santo, mas para quê? Para que eles possam fazer aquilo que, se os leigos o fizerem, eles não podem fazer. Quem não sabe que, sem dinheiro, a preguiça não consegue durar? Se gastarmos o nosso dinheiro no que nos agrada, não podem os frades preguiçar na sua ordem; se andarmos atrás das mulheres por aí, os frades não terão o seu lugar junto delas; se não formos pacientes ou não perdoarmos as injúrias, o frade não se atreverá a vir a nossa casa contaminar-nos a família. Porque falo eu de tudo isto? Eles acusam-se a si próprios todas as vezes que apresentam aquela desculpa diante dos bons entendedores. Porque não ficam eles em casa se acham que não conseguem ser abstinentes e santos? Ou se o quiserem ser, porque não seguem a outra palavra do Evangelho: "Cristo começou a fazer e a ensinar"? Façam eles primeiro e ensinem depois os outros.
“Durante a vida encontrei milhares de frades requestando, amando, visitando não só mulheres do mundo mas também as dos conventos, e, no entanto, são esses os que mais bradam nos púlpitos. Vamos então atrás desses frades? Quem assim faz, faz o que quer, mas sabe Deus se o fará sensatamente. Admitindo, porém, que se deva aceitar aquilo que disse o frade pregador, ou seja, que é pecado muito grave quebrar a fidelidade conjugal, não será muito maior pecado roubar um homem? Não será muito maior pecado matá-lo ou mandá-lo para o exílio a vaguear pelo mundo? Toda a gente está de acordo que sim. Que uma mulher use de intimidade com um homem é pecado natural; roubá-lo, matá-lo ou correr com ele resulta de malvadez da alma. Já anteriormente vos mostrei como roubastes Tedaldo furtando-vos a ele, vós que de vossa espontânea vontade vos tínheis tornado sua. Seguidamente afirmo que, em quanto de vós dependeu, o matastes, porque, mostrando-vos cada vez mais cruel, por vossa culpa pouco faltou para ele se matar por suas próprias mãos. Quer a lei que a pessoa que for o motivo do mal que é feito tem a mesma culpa daquele que o faz. Ora não se pode negar que vós sois a razão do seu exílio e de ele andar calcorreando o mundo ao longo de sete anos. Assim, haveis cometido maior pecado em cada um dos três factos referidos do que o pecado cometido na sua intimidade. Vejamos, porém: haverá Tedaldo merecido isto? Decerto que não, como vós mesma já confessastes. Apesar disso, sei que ele vos ama mais do que a si próprio. Nada houve de mais honrado, de mais exaltado, de mais engrandecido por ele do que vós fostes, acima de qualquer outra mulher, quando se encontrava em sítio em que pudesse falar de vós honestamente e sem vos levantar suspeitas. Todos os seus bens, toda a sua honra, toda a sua liberdade, tudo foi posto por ele nas vossas mãos. Não era ele um jovem da nobreza? Não era ele formoso entre todos os outros conterrâneos seus? Não era ele valoroso em tudo aquilo que é próprio dos jovens? Não era ele amado, estimado, olhado de boa mente por qualquer pessoa? Também não direis que não a isto. Como foi então possível que, por causa do que disse um fradezinho louco, bruto e invejoso, pudésseis assumir uma atitude de crueldade ante ele? Não compreendo o erro das mulheres que fogem dos homens e pouco os estimam quando, se pensassem no que elas são e qual e quanta foi a nobreza concedida por Deus ao homem acima de qualquer outro animal, deveriam gloriar-se se por algum deles forem amadas e querer-lhe acima de tudo, empenhando-se com toda a solicitude em agradar-lhe para que ele nunca a deixe de amar. O que fizestes, levada pelas palavras de um frade que devia ser com certeza algum desenxabido comedor de tortas, já o sabeis. Talvez ele desejasse ocupar o lugar de onde procurava afastar o outro. Foi um pecado que a justiça divina, a qual leva a cabo todas as suas obras, não quis deixar impune. Por isso, assim como vos esforçastes sem razão de furtar-vos a Tedaldo, assim também sem razão o vosso marido foi posto e ainda está em perigo por causa de Tedaldo e vós em tribulação. Se vos quereis ver livre desta, o que tendes de prometer e sobretudo fazer é isto: se acaso acontecer que Tedaldo aqui regresse do seu longo desterro, dai-lhe a vossa graça, o vosso amor, a vossa benevolência e intimidade, voltando a pô-lo no mesmo lugar em que estava antes de estupidamente teres feito fé no louco frade.” O peregrino concluiu as suas palavras e então a dama, que as recolhera com toda a atenção por lhe parecerem argumentos cheios de verdade e porque realmente vivia atribulada por causa do pecado de que ele falara, disse: “Amigo de Deus, sei que são plenamente verdadeiros os factos de que falais, e agora vejo, com a vossa argumentação, o que são os frades, que considerei até hoje todos como santos. Sem dúvida, sei que a minha culpa foi grande pela atitude que tomei em relação a Tedaldo. Se dependesse de mim, de boa vontade a emendaria da forma que dissestes. Mas como pode isso acontecer? Tedaldo nunca mais pode voltar: está morto e, por isso, não vejo como seja preciso prometer-vos fazer o que já não é possível.” Retorquiu o peregrino: “Senhora, Tedaldo não está morto, pelo que Deus me revela. Está vivo e de saúde e sentir-se-ia feliz se tivesse a vossa graça.” Disse então a dama: “Olhai o que estais dizendo; vi-o morto com várias punhaladas à minha porta, segurei-o nos meus braços e banhei-lhe com muitas lágrimas a sua face morta. Talvez fosse este o motivo de ter havido uma certa maledicência.” Continuou o peregrino: “Senhora, digais vós o que disserdes, advirto-vos de que Tedaldo está vivo e, se quiserdes cumprir o que haveis prometido, espero que o possais ver dentro em breve.” “Cumpri-lo-ei de boa vontade – disse a dama –, pois nada poderia acontecer que me desse tanta alegria como ver o meu marido em liberdade e sem prejuízo e Tedaldo vivo.” Pareceu a Tedaldo ser altura de se mostrar e de consolar a dama com uma esperança segura quanto ao marido: “Senhora, para vos consolar sobre o vosso marido, tenho de revelar-vos um grande segredo, que tereis o cuidado de nunca revelar durante a vida.” Encontravam-se os dois num local afastado e sozinhos e a dama ganhara uma extrema confiança pela santidade que lhe parecia haver no peregrino. Tedaldo tirou para fora, então, um anel que tinha guardado com suma diligência e que lhe fora oferecido pela dama na última noite em que estivera com ele. Mostrando-lho, disse: “Senhora, conheceis isto?” Logo que viu o anel, a dama reconheceu-o: “Sim, senhor, fui eu que o dei a Tedaldo.” O peregrino pôs-se de pé, tirou rapidamente das costas o capote e da cabeça o capuz, dizendo em florentino: “E a mim, conheceis-me?” Quando a dama olhou para ele e reconheceu Tedaldo, sentiu-se toda aturdida, assustando-se com ele como se tem medo dos cadáveres que em seguida se vê andarem como vivos, e não lhe correu ao encontro como se recebesse Tedaldo chegado de Chipre, antes tentou fugir assustada, como se Tedaldo ali regressasse da sepultura. Disse-lhe Tedaldo: “Não duvideis, senhora!, sou o vosso Tedaldo vivo e são. Nunca morri nem fui morto, seja o que for que vós e os meus irmãos acreditais.” A dama serenou um pouco, escutou-lhe a voz, observou-o um pouco mais e, obtendo a certeza de que era Tedaldo, lançou-se-lhe ao pescoço a chorar e beijou-lhe dizendo: “Meu doce Tedaldo, sê bem-vindo!” Tedaldo beijou-a e abraçou-a, acrescentando: “Senhora, não temos agora tempo para acolhimentos mais íntimos. Quero ir tratar de pôr a salvo Aldobrandino e espero que ainda antes de amanhã à noite tereis notícias agradáveis. Acredito que hei-de realmente obter tão boas novas sobre a sua salvação que quero vir aqui à noite procurar-vos e contar-vo-las com maior vagar do que agora.” Voltou a pôr o capote e o capuz, beijou uma vez mais a dama, tornou a consolá-la com boas esperanças e deixou-a para se dirigir aonde se encontrava preso Aldobrandino, o qual tinha o espírito mais ocupado pelo medo da morte vizinha do que pela esperança de futura liberdade. À guisa de quem vinha trazer-lhe conforto, e com o consentimento dos carcereiros, entrou na sua cela, sentou-se com ele e disse: “Aldobrandino, sou um teu amigo que Deus aqui enviou para te salvar, pois a tua inocência despertou a sua compaixão. Se, por reverência de Deus, me quiseres conceder um pequeno favor que te vou pedir, sem erro algum antes de amanhã anoitecer ouvirás não a sentença de morte que esperas, mas a da absolvição.” Respondeu-lhe Aldobrandino: “Valoroso homem, se te mostras solícito com a minha salvação, apesar de eu não te conhecer nem me lembrar de alguma vez haver-te visto, é porque deves ser amigo como dizes. É verdade que eu nunca cometi o pecado pelo qual dizem que devo ser condenado à morte; já cometi, porém, muitos outros e talvez fossem esses que me trouxeram até aqui. Mas digo-te, por reverência de Deus, que, se Ele agora tiver compaixão de mim, te prometo fazer qualquer grande favor de toda a boa vontade e não apenas um pequeno. Pede aquilo que desejares e sem dúvida cumprirei firmemente o prometido se acontecer eu salvar-me.” “A única coisa que desejo – disse o peregrino – é que perdoes aos quatro irmãos de Tedaldo haverem-te conduzido a esta situação, por pensarem que foste o culpado pela morte do irmão, e que os aceites como irmãos e amigos logo que eles te peçam perdão.” Respondeu Aldobrandino: “Só sabe que doce coisa é a vingança nem com tanto ardor a deseja senão aquele que recebeu a ofensa. Todavia, para que Deus atenda à minha salvação, de boa vontade lhes perdoarei e desde já lhes perdoo. Se eu sair daqui vivo e salvo, farei do modo que mais te agradar.”
“O peregrino ficou satisfeito e, sem mais lhe acrescentar, rogou-lhe insistentemente que se mantivesse de coração animado, pois com certeza antes de o dia seguinte chegar ao fim havia de escutar a notícia mais do que certa da sua libertação. Abalou dali e encaminhou-se para a Senhoria, onde em segredo assim falou ao cavaleiro que a chefiava: “Meu senhor, toda a gente deve de bom grado esforçar-se em tornar conhecida a verdade dos factos, mas acima de todos os que ocupam o posto que vós ocupais, a fim de que não sofram os castigos aqueles que não cometeram o pecado e sejam punidos os pecadores. Vim procurar-vos para que tal aconteça para vossa honra e para mal de quem o mereceu. Como sabeis, procedestes duramente contra Aldobrandino Palermini e julgais ter descoberto como sendo verdade ter ele morto Tedaldo Elisei, preparando-vos para o condenar. Ora, trata-se de pura falsidade, como vos hei-de mostrar antes que seja meia-noite, entregando às vossas mãos os assassinos desse jovem.” O ilustre personagem, ao qual desagradava o caso de Aldobrandino, de bom grado deu ouvidos às palavras do peregrino e depois de lhe ouvir bastantes argumentos, começou por mandar prender, no seu primeiro sono, os dois irmãos hospedeiros e o criado deles. Para reconstituir como se tinham passado os factos, mandou-os torturar. Eles não resistiram, e cada um isoladamente, depois todos juntos, confessaram abertamente terem sido eles os que mataram Tedaldo Elisei sem o terem reconhecido. Interrogados sobre o motivo, disseram que Tedaldo, quando estavam ausentes da hospedaria, causara bastante incómodo à mulher de um deles, tentando forçá-la a fazer-lhe a vontade.
“Logo que o peregrino soube da confissão, saiu com licença do fidalgo e, às escondidas, dirigiu-se a casa de Dona Ermelina. Encontrou-a sozinha à espera dele, pois toda a gente da casa fora já dormir. Estava ela tão desejosa de ouvir boas novas do marido como de reconciliar-se completamente com o seu Tedaldo. Logo que chegou, disse-lhe ele com ar sorridente: “Querida senhora minha, alegra-te porque amanhã irás com certeza ter de novo em casa, são e salvo, o teu Aldobrandino.” E para que ela ficasse mais convencida, contou-lhe inteiramente o que tinha feito. A dama, que se tornara mais feliz que nenhuma outra com aqueles dois acontecimentos tão inesperados e tão súbitos – reaver Tedaldo vivo, quando realmente o chorava julgando-o morto; ver em liberdade Aldobrandino, cuja morte dentro de breves dias imaginava ter de chorar –, abraçou e beijou afectuosamente o seu Tedaldo. Foram os dois para a cama e com muito gosto fizeram uma graciosa e feliz paz, colhendo um do outro deleitosa alegria. Quando o dia se avizinhava, Tedaldo levantou-se, depois de ter dito à dama o que tencionava fazer e de lhe ter de novo rogado que guardasse o máximo segredo. Vestido com o hábito de peregrino, saiu de casa da dama para tratar, quando fossem horas, do processo de Aldobrandino. Logo que o dia nasceu, a Senhoria considerou-se plenamente informada sobre o caso e apressou-se em pôr em liberdade Aldobrandino. Passados poucos dias, mandou cortar a cabeça aos malfeitores no local onde haviam cometido o homicídio.
“Uma vez Aldobrandino em liberdade, com grande alegria da esposa e de todos os amigos e parentes, por saberem perfeitamente que tudo fora obra do peregrino ali chegado, trouxeram-no para casa deles, oferecendo-lhe que lá ficasse durante todo o tempo que desejasse permanecer na cidade. Não se fartavam de prestar-lhe honras e de festejá-lo, sobretudo a dama, que sabia a quem o estava a fazer. Depois de alguns dias, pareceu a Tedaldo ser tempo de estabelecer a concórdia entre os seus irmãos e Aldobrandino, pois sabia que aqueles não só andavam envergonhados com a sua libertação, como até andavam armados, por temor. Recordou então a promessa a Aldobrandino, que liberalmente respondeu estar preparado. Mandou-lhe o peregrino preparar para o dia seguinte um belo banquete e que recebesse juntamente com os seus parentes e as esposas respectivas os seus quatro irmãos com as mulheres, acrescentando que iria ele próprio imediatamente convidá-los da sua parte para fazerem as pazes e para o banquete. Aldobrandino mostrou-se contente com tudo o que desejava o peregrino e logo este foi procurar os quatro irmãos. Conversou demoradamente sobre aquele assunto, como se impunha, e, por fim, com razões inexpugnáveis, levou-os facilmente a quererem pedir desculpa e assim reconquistar a amizade de Aldobrandino. Em seguida, convidou-os a irem com as esposas almoçar na manhã seguinte com Aldobrandino. Eles, sem quaisquer dificuldades, garantidos pela sua palavra, aceitaram o convite.
“Na manhã seguinte, à hora do almoço, foram primeiramente os quatro irmãos de Tedaldo, vestidos de negro, como costumavam andar, e acompanhados de alguns amigos, que se dirigiram a casa de Aldobrandino, o qual já os esperava. Uma vez chegados, e na presença de todos os que tinham sido convidados por Aldobrandino para lhes fazerem companhia, puseram as armas em terra, entregaram-se nas mãos de Aldobrandino e pediram-lhe perdão pelo que tinham urdido contra ele. Aldobrandino, com lágrimas nos olhos, recebeu-os amistosamente, beijou-os a todos na boca e, gastando poucas palavras, pôs de lado as injúrias recebidas. Atrás deles vieram as irmãs e as esposas, todas vestidas de escuro, sendo recebidas amavelmente por Dona Ermelina e pelas outras senhoras. Tanto os homens como as mulheres foram magnificamente servidos no banquete e tudo decorreu de forma conveniente, a não ser o aspecto taciturno por causa da recente dor significada pelas roupas escuras dos parentes de Tedaldo. Por isso, alguns criticavam o plano e o convite do peregrino. Este apercebeu-se disso, mas, como havia projectado, só quando achou ser tempo de afastar aquela dor é que se pôs de pé, enquanto os outros ainda estavam a comer a fruta, e disse: “Nada falta a este banquete para o tornar alegre senão Tedaldo. Como tendes estado constantemente com ele sem o reconhecerdes, quero apresentar-vo-lo. Tirou das costas o capote e os restantes hábitos de peregrino, ficando com um casaco de tafetá verde. Foi com uma enorme maravilha que todos o fitaram, e, embora reconhecendo-o, passou-se longo tempo sem que ninguém se arriscasse a acreditar que fosse ele. Ao ver isto, Tedaldo contou bastantes pormenores sobre a sua parentela, sobre os factos acontecidos entre eles e depois sobre as suas aventuras. Então os irmãos e os outros homens, todos banhados em lágrimas de alegria, correram a abraçá-lo. Fizeram depois o mesmo todas as mulheres, fossem ou não da família, à excepção de Dona Ermelina. Disse-lhe Aldobrandino, reparando: “Que se passa, Ermelina? Porque não cumprimentas Tedaldo como as outras mulheres?” A dama respondeu de modo que todos ouvissem: “Nenhuma o cumprimentou ou o cumprimenta com mais gosto do que eu faria, pois lhe devo mais do que qualquer outra, dado que foi por sua obra que te recuperei. Mas as palavras insultuosas que foram ditas nos dias em que chorávamos aquele que pensáramos ser Tedaldo obrigam-me a estar quieta.” Disse-lhe Aldobrandino: “Deixa lá! Pensas que eu acredito nos caluniadores? Fazendo tudo para me salvar, ele mostrou bem a falsidade desses ditos. Aliás nunca acreditei em tal história. Levanta-te depressa e vai abraçá-lo.” A dama, que não desejava outra coisa, não demorou a obedecer ao marido. Levantou-se e, tal como faziam as outras, também ela o abraçou e saudou com alegria.
“A liberalidade de Aldobrandino agradou muito aos irmãos de Tedaldo e a todos os homens e mulheres ali presentes, desfazendo-se assim quaisquer ódios que porventura tivessem nascido no espírito de alguns por causa das palavras trocadas. Depois de todos festejarem Tedaldo, ele próprio rasgou as vestes pretas que vestiam os irmãos e as cores carregadas das irmãs e cunhadas, mandando que lhes trouxessem roupas novas, que imediatamente vestiram. Demoraram-se depois em canções, danças e outros divertimentos. Assim, o banquete, que principiara silencioso, acabou ruidoso. Com a muitíssima alegria que todos sentiam, dirigiram-se para casa de Tedaldo, onde cearam à noite, tendo depois continuado a festa do mesmo modo ao longo de vários dias.
"Durante muitos dias, os florentinos olhavam para Tedaldo como para um homem ressuscitado e para um milagre. Muitos deles, inclusive os irmãos, conservavam ainda dentro de si uma leve dúvida se era ou não ele. E talvez ainda não acreditassem firmemente ou não acreditassem sequer um pouco, se não acontecesse um facto que os esclareceu sobre quem fora o morto.
Iam passando, certo dia, em frente da casa deles uns soldados de Lunigiana que, ao verem Tedaldo, lhe foram ao encontro e exclamaram: “Corre-te bem a vida, Faziuolo!” Tedaldo respondeu na presença dos irmãos: “Estais a confundir-me com outra pessoa.” Ao ouvi-lo, os soldados envergonharam-se e pediram-lhe desculpa: “Realmente sois parecido e ninguém viu alguém mais parecido com o outro que é um nosso companheiro chamado Faziuolo de Pontriemoli. Ele veio para cá há quinze dias ou mais e não tornámos a ter notícias dele. Realmente estávamos admirados com o vestuário, pois ele era, tal como nós, soldado raso.” Quando tal ouviu, o irmão mais velho de Tedaldo adiantou-se e perguntou como é que estava vestido Faziuolo. Eles explicaram-lhe e viu-se que era precisamente como estavam a dizer. Assim, por este e outros indícios, descobriu-se que fora Faziuolo e não Tedaldo o assassinado, desaparecendo de vez as suspeitas dos seus irmãos e de todos os outros.
"Entretanto Tedaldo, que regressara riquíssimo, perseverou no seu amor e, sem que a dama tivesse mais inquietação, foram actuando discretamente, saboreando por largo tempo o seu amor. Assim Deus nos faça saborear o nosso.”
Ferondo, depois de tomar um certo pó, é enterrado por morto. O abade, que se diverte com a mulher dele, tira-o da sepultura, mete-o numa prisão e fá-lo acreditar que se encontra no purgatório. Depois de ressuscitado, cria como seu um filho que o abade gerou na sua mulher. (Nota 12) Como na quarta novela, também nesta se fala dum marido ingénuo que é troçado por um monge. O motivo realista projecta-se, com uma audácia maior do que naquela, no mundo irreal da fantasia, agigantando-se e sublimando-se sem perda de coerência. Os personagens da pequena comédia são um Dom Juan de batina, um cúmplice talentoso, uma virtude feminina bastante frágil, um aldeão labrego e rico de sensualidade animal. Na prodigiosa história, deforma-se e explica-se com irreverente e divertido espírito racionalista aquela vida de além-túmulo, cujo interesse fez nascer as visões medievais e o próprio poema da Divina Comédia. Inspira-se nesta novela um conto de La Fontaine. (Fim da nota)
Chegara ao fim a extensa novela de Emília, mas nem pelo seu tamanho ela desagradara a ninguém. Ao invés, todos acharam que fora contada com brevidade, tendo em conta o número e a variedade dos factos nela descritos. Então, apenas com um gesto, a rainha manifestou a sua vontade a Lauretta, dando-lhe assim ocasião de começar:
“Caríssimas damas, surge-me para vos contar um caso verdadeiro, que parece muito mais uma mentira do que realmente foi. Veio-me ele à lembrança por ter ouvido a história de um homem que, tomado por outro, foi chorado e sepultado. Irei falar de como um vivo foi sepultado por morto e de como foi tido por si próprio e por muitos outros não como vivo mas como saído da sepultura e ressuscitado. O causador de tudo isto foi venerado como santo, quando antes deveria ser condenado.
“Existiu e ainda existe na Toscana uma abadia situada, como vemos tantas outras, em lugar pouquíssimo frequentado pelos homens. Era seu abade um monge considerado santíssimo sob todos os aspectos, excepto em questão de mulheres, no qual sabia actuar tão cautelosamente que quase ninguém o sabia e nem sequer desconfiava. Consideravam-no, pois, santíssimo e justo em todas as coisas. Ora aconteceu que travou grande amizade com o abade um aldeão muito rico, de nome Ferondo, homem extremamente rude e grosseiro. A sua amizade agradava ao abade apenas pelo que, às vezes, se divertia com a sua estupidez. Neste convívio veio o abade a descobrir que Ferondo tinha por esposa uma mulher formosíssima e logo se apaixonou por ela ardentemente, não pensando noutra coisa dia e noite. Ouviu, porém, dizer que Ferondo, embora fosse em todo o resto um simplório e um estúpido, era espertíssimo no amar e guardar bem a
mulher. Quase perdeu, pois, a esperança. No entanto, com muita astúcia, tanto conseguiu influenciar Ferondo que este começou a vir algumas vezes com a mulher passear no jardim da abadia. Conversava ali com eles, modestissimamente, sobre a bem-aventurança da vida eterna e sobre as santíssimas obras de muitos homens e mulheres do passado. Foi deste modo que a esposa de Ferondo sentiu o desejo de confessar-se ao abade. Pediu autorização a Ferondo e obteve-a. Veio então confessar-se ao abade e, pondo-se aos seus pés com grande prazer do monge, começou por dizer antes de mais nada: “Senhor, se Deus me tivesse dado marido ou não mo tivesse dado, talvez me fosse fácil com os vossos ensinamentos entrar no caminho de que tendes falado e que conduz à vida eterna. Mas, considerando quem é Ferondo e quanta a sua estupidez, bem posso afirmar que sou viúva, embora sendo casada, porque, enquanto ele viver, não posso ter outro marido. E ele, sendo tão palerma como é, sem que tenha qualquer razão, revela tão exagerados ciúmes de mim que não sou capaz de viver com ele senão atribulada e infeliz. Por isso, antes de continuar a minha confissão, rogo-vos com toda a humildade que é possível o favor de me dardes um conselho a propósito. Se não levar daqui a força para começar a tratar da minha felicidade, de pouco me valerá confessar-me ou fazer qualquer outra boa acção.
Este argumento tocou a alma do abade com grande prazer dele e, achando que a fortuna lhe tinha aberto as portas ao seu maior desejo, declarou: “Minha filha, creio que deve ser muito aborrecido para uma formosa e delicada senhora como vós sois ter por marido um mentecapto, mas penso que será ainda mais aborrecido ter um marido ciumento. Ora, como vós tendes um e outro, compreendo facilmente o que dizeis sobre o vosso sofrimento. Mas, em poucas palavras, não vejo outro conselho nem outro remédio senão este: que Ferondo se cure de tais ciúmes. Sei perfeitamente fabricar o remédio para o curar desde que tomeis a peito manter em segredo o que vou dizer-vos.” “Padre – declarou a dama –, disso não duvideis! Deixar-me-ia matar antes de dizer a outrem o que me pedistes que não dissesse. Mas como vai ser possível fazer isso?” Respondeu o abade: “Se quisermos que ele fique curado, será preciso que ele vá para o purgatório.” “E como pode ele ir para lá se está vivo?”, perguntou a dama. Continuou o abade: “Ele tem de morrer, e assim é que vai para lá. Quando tiver sofrido tantas penas que fiquem castigados os seus ciúmes, rezaremos a Deus certas orações para que ele regresse a esta vida, e assim acontecerá.” “Terei então de ficar viúva?” – perguntou mais uma vez a dama. “Sim – respondeu o abade –, durante algum tempo, em que evitareis tornar a casar-vos com outro homem, porque Deus levaria tal coisa a mal e porque, quando Ferondo regressasse, teríeis de voltar para ele e, então, ficaria mais ciumento do que nunca.” A dama afirmou: “Desde que ele fique curado desta desdita de me querer sempre fechada numa prisão, fazei como desejardes.” Disse então o abade: “Farei, sim. Mas que paga receberei eu de vós por um tal serviço?” “Padre – disse a dama –, o que desejardes, desde que me seja possível; mas que pode fazer uma mulher como eu que convenha a um homem como vós sois?” Disse-lhe o abade: “Senhora, não podeis fazer menos por mim do que eu me disponho a fazer por vós. Por isso, assim como estou disposto a fazer aquilo que será a vossa felicidade e consolação, assim vós podeis fazer o que será a salvação e o alívio da minha vida.” Declarou a dama: “Se assim for, estou pronta.” “Então – disse o abade –, dar-me-eis o vosso amor e a alegria de vos ter, a vós por quem eu ardo todo e me consumo.” Ao ouvir tal coisa, a dama respondeu estupefacta: “Ai de mim, padre, que estais a pedir-me? Julgava-vos um santo: ora ficará bem aos santos homens pedir às mulheres que os procuram para conselho semelhantes coisas?” O abade retorquiu-lhe: “Minha formosa dama, não vos admireis, pois que isso não diminui a santidade. A santidade reside na alma e o que vos estou a pedir é pecado do corpo. Mas seja como for, a vossa encantadora beleza teve uma força tão grande que o amor me obriga a fazer isto. Digo-vos que podeis gloriar-vos da vossa beleza mais do que outra mulher, ficando a saber que ela agrada aos santos, acostumados a ver as belezas do Céu. Além disso, apesar de ser abade, sou homem como os outros e podeis ver que ainda não estou velho. Nem julgueis que se trata de coisa custosa de fazer. Até a deveis desejar porque, enquanto Ferondo estiver no purgatório, far-vos-ei companhia durante a noite, dando-vos aquela consolação que ele deveria dar-vos. Nunca haverá quem descubra, pois toda a gente pensa de mim o mesmo ou ainda mais do que vós ainda há pouco pensáveis. Não recuseis a graça que Deus vos manda, pois são muitas as que estão desejosas do que vós podeis e haveis de ter se tiverdes a sensatez de seguir o meu conselho. Além disso, possuo lindas e valiosas jóias que não desejo senão para vós. Fazei por mim, ó minha doce esperança, o que eu de bom grado faço por vós.”
“A dama conservava a cabeça baixa, sem saber como dizer-lhe não e sem lhe parecer bem conceder-lhe o que ele pedia. Vendo o abade que ela lhe dera ouvidos e que hesitava em responder e parecendo-lhe que a tinha já meio convertida, prosseguiu com muito mais conversa. Não desistiu antes de a convencer de que faria bem e até ela lhe dizer, envergonhada, que estava pronta para todas as suas ordens, mas não antes de Ferondo ter ido para o purgatório. Felicíssimo, o abade declarou: “Faremos com que ele vá imediatamente para lá. Convencei-o a vir cá amanhã ou noutro dia para se encontrar comigo.” Dito isto, pôs-lhe às ocultas um lindíssimo anel na mão e mandou-a embora. A dama, satisfeita com a oferta e esperando conseguir outras, voltou para junto das companheiras e contou-lhes maravilhas sobre a santidade do abade, regressando com elas para casa.
“Daí a poucos dias, Ferondo foi à abadia e, logo que o viu, o abade resolveu mandá-lo para o purgatório. Foi buscar um pó de milagrosa virtude que nas terras do Levante lhe fora dado por um grande príncipe. Afirmara-lhe este que o pó costumava ser usado pelo Velho da Montanha (Nota 13) É assim chamado segundo a lenda o famoso chefe dos assassinos (seita maometana), de cujas gestas nos fala Marco Polo em O Milhão. Contava-se que ele narcotizava os seus prisioneiros para os levar até um castelo, cujas delícias paradisíacas eram prometidas em prémio a quem tornasse seu sequaz. (Fim da nota) quando queria adormecer alguém a fim de o mandar para o seu paraíso ou para o tirar de lá. Dado em doses maiores ou menores, não provocava qualquer lesão e punha a dormir aquele que o tomasse, num tempo mais ou menos longo, de tal maneira que, enquanto durava a sua virtude, ninguém diria que a pessoa estava com vida. Tomou o abade uma quantidade de pó suficiente para fazer dormir durante três dias. Misturou-o num copo de vinho ainda turvo, na sua cela, e sem que Ferondo se apercebesse. Deu-lho depois a beber e levou-o seguidamente para o claustro, começando a divertir-se dele e dos seus disparates, na companhia de alguns dos seus monges. Não demorou muito até que, por acção do pó, Ferondo sentiu na cabeça um sono repentino e pesado. Adormeceu ainda de pé e adormecido caiu. O abade, fingindo-se preocupado com o acidente, mandou que o desapertassem, que trouxessem água fria e lhe molhassem a cara, que lhe dessem muitos outros dos seus remédios como se quisesse fazê-lo voltar à desmaiada vida e aos sentidos perdidos por alguma perturbação de estômago ou por qualquer outro incómodo. Vendo, porém, o abade e os monges que nem com todos aqueles remédios ele dava acordo, tomaram-lhe o pulso e, não lhe descobrindo qualquer movimento, todos acharam como certo que ele estava morto. O abade mandou informar a esposa e os familiares, acorrendo todos imediatamente. A esposa e os familiares choraram-no durante algum tempo e, assim vestido como estava, o abade foi metê-lo num túmulo. A esposa voltou para casa e declarou que nunca tencionava separar-se da criancinha que tivera do marido. Continuou, pois, em casa e começou ela a tomar conta do filho e da fortuna que fora de Ferondo.
“O abade tinha um monge no qual punha muita confiança e que chegara nesse mesmo dia de Bolonha. Levantaram-se durante a noite e, sem fazer barulho, retiraram Ferondo da sepultura e levaram-no para um subterrâneo onde não se via qualquer luz e que tinha sido construído para prisão dos monges prevaricantes. Tiraram-lhe a roupa, vestiram-no com um hábito de monge e puseram-no em cima dum feixe de palha, deixando-o lá ficar até que ele voltasse a si. Deste modo, sem que mais ninguém soubesse de nada, informado do que tinha a fazer, o monge bolonhês ficou à espera de que Ferondo recuperasse.
“No dia seguinte, o abade foi com alguns dos seus monges a casa da dama, em ar de visita de condolências. Foi encontrá-la vestida de preto e muito chorosa. Consolou-a um tanto e recordou-lhe discretamente a promessa. A dama, ao ver-se liberta, sem o impedimento de Ferondo ou de outro, e vendo-lhe no dedo outro lindo anel, disse estar pronta e combinou com ele a sua vinda na noite seguinte. Ao cair a noite, vestido com a roupa de Ferondo e acompanhado pelo monge, o abade veio e deitou-se com ela até de madrugada com muitíssimo deleite e prazer. Regressou depois à abadia, fazendo bastantes vezes o mesmo caminho para aquele tipo de trabalho. Na ida e na vinda, cruzou-se por vezes com algumas pessoas, e assim nasceu a crença de que Ferondo vagueava por aquela região fazendo penitência, e contavam-se muitas histórias entre a gente rude da aldeia, várias vezes as referindo à esposa, que sabia muito bem do que se tratava.
“Entretanto Ferondo voltara a si, achando-se sem saber onde se encontrava. Então o monge bolonhês entrou lá dentro com uma voz horrível, pegou nele e, segurando na mão umas varas, deu-lhe uma grande sova. Chorando e gritando, Ferondo não parava de perguntar: “Onde é que eu estou?” Respondeu-lhe o monge: “Estás no purgatório.” “Como? – disse Ferondo. – Então morri?” “Com certeza” – disse-lhe o monge. Ferondo começou então a lamentar-se a si próprio, à mulher e ao filho, dizendo os maiores disparates do mundo. O monge trouxe-lhe alguma coisa de comer e de beber e, ao ver aquilo, Ferondo perguntou: “Mas os mortos comem?” Respondeu o monge: “Sim! E o que te trago foi a tua mulher que o mandou esta manhã à igreja, ao mandar dizer missas por tua alma, e o Senhor Deus quer que te seja aqui apresentado.” Disse, então, Ferondo: “Dai-lhe, Senhor, um bom ano! (Nota 14) Bênção de reconhecimento, logo retractada quando se apercebesse de que o vinho não é o da melhor pipa. (Fim de nota) Eu tinha-lhe muito amor antes de morrer, de tal modo que a apertava nos meus braços toda a noite, não parando de a beijar e de lhe fazer outras coisas quando me vinha a vontade.” Depois, como estava cheio de apetite, começou a comer e a beber. Como o vinho não lhe parecia lá muito bom, disse: “Senhor, castigai-a, que ela não deu ao padre do vinho da pipa encostada à parede.” Mas depois de ter comido, o monge voltou a segurá-lo e a dar-lhe outra grande sova com as mesmas varas. Em altos berros, Ferondo clamou: “Ai!, porque me fazes tu isto?” Afirmou o monge: “Porque ordenou o Senhor Deus que assim te seja feito duas vezes todos os dias.” “E porquê?” – perguntou Ferondo. “Porque foste ciumento – disse o monge –, tu que possuías a melhor esposa que existia naquelas terras todas.” “Ai de mim! – exclamou Ferondo. – Realmente era a melhor e a mais doce. Tinha mais mel do que um confeito. Mas eu não sabia que Deus levava a mal que o homem fosse ciumento, porque então eu não o teria sido.” Retorquiu o monge: “Devias ter compreendido isso enquanto lá estavas e emendares-te. Se porventura alguma vez para lá voltares, procura recordar-te do que agora te faço para que não tornes mais a ser ciumento.” Disse Ferondo: “Quem morre pode alguma vez para lá voltar?” “Sim – respondeu o monge –, quando Deus quer.” “Oh! – exclamou Ferondo. – Se alguma vez para lá voltar, serei o melhor marido do mundo. Nunca mais lhe hei-de bater, nunca mais lhe direi nada de mal a não ser do vinho que ela me mandou esta manhã e também por não me ter mandado nenhuma candeia e eu ter de comer às escuras.” Disse o monge: “Ela mandou-te velas, mas arderam nas missas.” “Oh! – continuou Ferondo. – Falas verdade. Dou-te a certeza de que, se eu voltar, lhe deixarei fazer tudo o que ela quiser. Mas diz-me: quem és tu que me bates assim?” Respondeu o monge: “Sou também um morto e era da Sardenha. Como também eu louvei muito a um meu amo por ele ser ciumento, Deus condenou-me a esta pena de ter de te dar de comer e de beber, além destas pancadas, até que Deus decida outra coisa de ti e de mim.” “Não há cá mais ninguém além de nós dois?” – perguntou Ferondo. “Sim, há milhares – respondeu o monge –, mas não os podes ver ou ouvir, tal como eles não te vêem nem te ouvem.” Disse ainda Ferondo: “A que distância estamos das nossas terras?” “Eia! – exclamou o monge. – Estamos a mais milhas do que do cagar.” “Apre!, isto fica mesmo longe! – disse Ferondo. – Ao que me parece, assim tão longe, devemos estar fora do mundo!” “Em conversas como esta e outras semelhantes, entre comida e tareia, foi mantido Ferondo uns dez meses, durante os quais, com muita frequência, o abade visitou bem-aventuradamente a formosa dama, passando com ela o melhor tempo da vida. Mas as desventuras sempre aparecem e a dama engravidou.
Não tardou ela em dar-se conta do facto e logo disse ao abade. Pareceu, então, a ambos que Ferondo tinha de regressar sem demora do purgatório à vida a fim de voltar para junto dela e de ela lhe comunicar que estava grávida.
“Assim, na noite seguinte, o abade foi com voz disfarçada chamar Ferondo à prisão e disse-lhe: “Ferondo, consola-te porque Deus quer que regresses ao mundo. Depois de voltares, terás da tua mulher um filho, ao qual porás o nome de Benedito porque esta graça te foi concedida por causa das orações do teu santo abade e da tua mulher e por amor de S. Benedito.” Ao ouvir tal coisa, Ferondo ficou muito contente e disse: “Muito me satisfaz: Deus dê um bom ano ao Senhor Divino, ao abade, a S. Benedito e à minha saborosinha, meladinha e docinha esposa…” O abade pôs-lhe no vinho que lhe mandava a quantidade de pó suficiente para ele ficar a dormir umas quatro horas. Voltou a vestir-lhe a sua roupa e, com a ajuda do amigo monge, voltou discretamente a colocá-lo no túmulo onde ele tinha sido sepultado.
“Mal o dia começou a clarear, Ferondo voltou a si e viu por uma frincha do túmulo a luz que já não via há bem dez meses. Assim, parecendo-lhe que estava vivo, começou a gritar: “Venham abrir! Venham abrir!” Ele próprio começou a bater com a cabeça no tampo do túmulo com tanta força que o deslocou, pois não era preciso deslocá-lo muito. Começava já a atirá-lo fora quando os monges, que tinham rezado as matinas, correram até lá, reconheceram a voz de Ferondo e viram-no a sair do monumento. Todos espavoridos com a estranheza do facto, puseram-se a fugir e foram procurar o abade. Este, fingindo que se levantava da oração, disse: “Meus filhos, não tenhais medo! Pegai na cruz e na água benta, vinde atrás de mim e vejamos o que o poder de Deus nos quer mostrar.” Eles assim fizeram. Ferondo, saído do túmulo, estava palidíssimo, como era natural em quem há tanto tempo estava sem ver o céu. Logo que viu o abade, correu aos seus pés e disse: “Meu padre, segundo me foi revelado, as vossas orações, as de S. Benedito e as da minha mulher arrancaram-me das penas do purgatório e fizeram-me voltar à vida. Peço, pois, a Deus que vos dê o bom ano e as boas calendas, (Nota 15) O bom mês (as calendas, no calendário romano, correspondiam ao primeiro dia de cada mês). (Fim da nota) hoje e toda a vida.” O abade exclamou: “Louvado seja o poder de Deus! Meu filho, pois que Deus te mandou voltar à Terra, vai e consola a tua mulher, a qual, desde que te foste desta vida, sempre esteve lavada em lágrimas. A partir de agora, sê antes de mais nada amigo e servidor de Deus.” Disse Ferondo: “Senhor, assim me foi recomendado. Deixai isso comigo, porque, mal eu a encontrar, logo a beijarei, tanto bem lhe quero.”
“O abade, quando ficou sozinho com os monges, fingiu grande admiração pelo acontecido e mandou devotamente cantar o Miserere. Ferondo regressou à sua aldeia e todos os que o viam fugiam dele como se foge das coisas horríveis. Mas ele chamava as pessoas e afirmava que tinha ressuscitado. Também a esposa tinha medo dele, mas toda a gente acabou por ficar sossegada com ele, viram que estava vivo e fizeram-lhe muitas perguntas. Ferondo, tendo porventura regressado inteligente, a todos respondia, dava-lhes notícias das almas e dos seus parentes, inventava as mais belas histórias do mundo acerca do purgatório, e diante de muito povo contou a revelação que lhe fora feita pela boca do anjo Gabriel antes de ressuscitar. Deste modo, tendo voltado para casa com a mulher e retomando a posse dos seus bens, engravidou-a na sua opinião. Por sorte, aconteceu que em devido tempo, segundo a opinião dos parvos que julgam que a mulher traz os filhos durante nove meses exactos, (Nota 16) As quarenta semanas da gravidez normal são um pouco mais de nove meses e, como foi dito, a dama deu-se logo conta. (Fim da nota) a dama deu à luz um filho do sexo masculino, ao qual foi dado o nome de Benedito Ferondi.
“O regresso de Ferondo e as suas palavras, que levaram quase toda a gente a acreditar que ele tinha ressuscitado, aumentaram ilimitadamente a fama da santidade do abade. Ferondo, que recebera muitos açoites por causa dos seus ciúmes, curou-se destes, segundo a promessa que o abade tinha feito à dama, e nunca mais foi ciumento. Feliz, a dama continuou a viver com ele honradamente como de costume. Tanto é verdade que, sempre que discretamente lhe era possível, de bom grado se encontrava com o santo abade, o qual a tinha servido bem e zelosamente nas suas maiores necessidades.”
Giletta de Narbona cura o rei de França duma fístula e pede para marido Beltrão de Rossilhão. Este casa com ela contra vontade e vai para Florença por despeito. Enamora-se lá por uma donzela e Giletta, em vez da donzela, deita-se com ele, nascendo-lhes dois filhos. Deste modo, Beltrão fica a amá-la e aceita-a como esposa. (Nota 17) Celebra-se nesta novela o triunfo duma vontade feminina fortalecida pelo amor. O tema já foi tocado em II, III, mas as dificuldades a vencer são agora muito mais graves, porque o homem que Gilletta tem de conquistar é de condição muito superior à sua e despreza-a. Durante o longo e fatigante caminho que a conduzirá até à vitória, a virtude e a bondade da dama (veja-se a delicadeza das suas relações com a fidalga florentina) nunca são submetidas, como acontecerá no caso de Griselda, X, X, a provas desumanas. Nada perturba a graça e a gentileza da romanesca aventura. Shakespeare aproveitou o argumento para a comédia All’s well that ends well (Tudo É Bem quando Acaba Bem). (Fim da nota)
Como não queria tirar a Dioneu o seu privilégio, restava apenas à rainha ser ela a contar a sua novela, uma vez que Lauretta tinha concluído a sua. Desta forma, sem esperar que os outros instassem com ela, começou assim a falar graciosamente:
“Quem conseguirá contar agora uma história que pareça bela, depois de termos escutado a de Lauretta? Foi com certeza bom não ter sido ela a primeira, porque, depois, poucas das restantes teriam agradado. E espero que o mesmo irá acontecer às que falta ainda contar neste dia. Todavia, seja como for, vou contar-vos a novela que me ocorre, dentro do tema proposto.
“Viveu no reino de França um fidalgo que se chamou Isnardo, conde de Rossilhão, o qual, por ter pouca saúde, tinha sempre junto de si um médico chamado mestre Gerardo de Narbona. Tinha o conde um filho pequeno, que era o único e se chamava Beltrão. Era muito belo e simpático, sendo criadas com ele outras crianças da sua idade. Entre estas havia uma filha do referido médico, chamada Giletta, a qual sentia por Beltrão um amor desmesurado e ardente, fora do que era próprio da sua tenra idade. O conde morreu e Beltrão foi entregue ao rei, (Nota 18) O rei, como supremo senhor, tinha o encargo de educar os órfãos dos seus feudatários que morriam. (Fim da nota) tendo de partir para Paris, ficando a menina profundamente desgostosa. Passado pouco tempo, faleceu também o pai de Giletta. Se ela encontrasse uma razão honesta, de boa vontade teria seguido para Paris a fim de ver Beltrão. Mas como era muito vigiada por ser rica e ter ficado sozinha, não encontrava uma saída honesta. Estava já em idade de casamento, mas como nunca pudera esquecer Beltrão, sempre recusara, sem declarar o motivo, a mão de muitos jovens com quem os seus parentes a queriam casar.
“Ora, aconteceu que, ardendo ela mais do que nunca no amor de Beltrão, por ouvir dizer que este se tornara num jovem formosíssimo, lhe chegou a notícia de que o rei de França sofria de gravíssimo incómodo e angústia por causa duma fístula que lhe ficara duma nascida que tivera no peito e que fora mal tratada. Ainda não se descobrira um médico, apesar de os haver com muita experiência, que o conseguisse pôr são. Antes, todos o tinham deixado pior. O rei encontrava-se, pois, desesperado e já não aceitava conselho ou ajuda de ninguém. A donzela ficou muitíssimo contente ao pensar que tinha ali não só um motivo legítimo para ir a Paris, como até, se a doença fosse o que ela pensava, um meio fácil de vir a conseguir Beltrão para seu marido. Aprendera ela do pai bastantes coisas e, então, fez um pó com certas ervas úteis para a doença de que supunha tratar-se, montou a cavalo e dirigiu-se a Paris. Antes de mais nada, procurou ver Beltrão e depois foi à presença do rei e pediu-lhe que, por favor, lhe mostrasse o seu mal. Ao vê-la bonita, jovem e atraente, o rei não foi capaz de recusar e mostrou-lho. Logo que ela o viu, imediatamente mais se convenceu de que o podia curar e disse: “Monsenhor, quando vos aprouver e sem qualquer incómodo ou fadiga para vós, tenho esperança em Deus que vos posso curar da vossa enfermidade dentro de oito dias.” O rei escarneceu as palavras da donzela e pensou: “Como é que uma rapariga conseguiria fazer o que os maiores médicos do mundo não souberam nem puderam fazer?” Agradeceu-lhe, pois, a boa vontade e informou-a de que tinha tomado a decisão de não seguir mais qualquer conselho de médico. A donzela insistiu: “Monsenhor, desdenhais a minha arte porque sou nova e mulher, mas recordo-vos que não sou médica pela minha ciência, mas sim com a ajuda de Deus e pela ciência de mestre Gerardo de Narbona, que foi meu pai e médico famoso enquanto viveu.” O rei pensou então: “Talvez ela me seja enviada por Deus. Porque não hei-de experimentar o que ela sabe fazer, já que afirma que me cura em pouco tempo e sem incómodo?” Resolveu experimentar e declarou: “Donzela, se vós não nos curardes, fazendo-nos quebrar o nosso propósito, que haveis de querer como resultado?” “Monsenhor –respondeu a jovem –, mandai que me guardem e, se dentro de oito dias eu não vos curar, mandai-me para a fogueira. Mas se eu vos curar, que prémio me será concedido?” Respondeu-lhe o rei: “Pareceis-me ainda sem marido; se conseguirdes, dar-vos-emos um casamento bom e elevado.” A jovem retorquiu: “Monsenhor, realmente agrada-me que me deis casamento, mas desejo um marido que seja quem eu vos pedir, sem que vos deva pedir algum dos vossos filhos ou alguém da casa real.” Imediatamente o rei prometeu que assim faria. A jovem começou o tratamento e rapidamente, antes de concluído o prazo, restituiu-lhe a saúde. O rei, ao ver-se curado, disse: “Donzela, ganhaste o marido.” Ela respondeu: “Então, Monsenhor, ganhei Beltrão de Rossilhão, a quem comecei a amar desde a minha infância e que desde então sempre amei profundamente.” Pareceu ao rei que ela pedia muito, mas como lhe tinha feito a promessa e não queria faltar à palavra, mandou-o chamar e disse-lhe: “Beltrão, estais crescido e um homem feito; queremos que comeceis a governar o vosso condado e que leveis convosco uma donzela que vos damos como esposa.” Disse Beltrão: “E quem é a donzela, Monsenhor?” Respondeu-lhe o rei: “É a que me restituiu a saúde com os seus medicamentos.” Beltrão, que a conhecia e a tinha visto, apesar de a achar muito bela, como sabia que a linhagem dela não estava à altura da sua nobreza, disse, cheio de desdém: “Monsenhor, quereis oferecer-me para esposa uma médica? Jamais Deus consinta que eu me case com uma mulher dessas.” Retorquiu-lhe o rei: “Quereis então que faltemos à nossa palavra de que, por termos recuperado a saúde, vos daríamos como paga à donzela que vos pediu para marido?” “Monsenhor – disse Beltrão –, podeis tirar-me tudo o que possuo e dar-me, como vosso servo, a quem vos agradar; mas duma coisa vos garanto: nunca serei feliz com esse casamento.” “Sereis, sim – disse o rei –, porque a donzela é formosa, sensata e ama-vos muito. Por isso, esperamos que tereis uma vida muito mais feliz com ela do que teríeis com uma dama de mais alta linhagem.” Beltrão calou-se e o rei mandou preparar com grande fausto a festa das núpcias. E no dia aprazado, embora fazendo-o de má vontade, Beltrão desposou na presença do rei a donzela, que o amava mais do que a si própria
“Feito o casamento e segundo o que no seu íntimo já projectara, despediu-se ele do rei, declarando-lhe que desejava regressar ao seu condado e aí consumar o matrimónio. Montou a cavalo, mas, em vez de seguir para o seu condado, veio para a Toscana. Quando soube que os Florentinos andavam em guerra com os Senenses, ofereceu-se a favor dos primeiros. Foi recebido com satisfação e com honras, nomearam-no capitão dum certo número de tropas, deram-lhe uma boa tença e ele ficou ao serviço de Florença numa boa situação.
“A noiva, pouco satisfeita com aquela ventura, pôs-se a caminho do Rossilhão, na esperança de o obrigar a regressar ao seu condado para fazer o que devia. Toda a gente a recebeu como sua senhora. A terra estava há longo tempo sem conde e ela foi encontrar tudo estragado e em ruínas. Mulher dotada de sabedoria, pôs tudo em ordem com grande diligência e solicitude. Ficaram os súbditos muito satisfeitos, tomaram-na em muita consideração, criaram-lhe grande amor e censuraram fortemente o conde por não estar contente com ela. Depois de ter apaziguado toda a região, a dama mandou recado ao conde por dois cavaleiros, rogando-lhe que, se fosse por causa dela que evitava regressar ao condado, lho dissesse, pois ela, para lhe agradar, se iria embora. Beltrão respondeu-lhes muito rispidamente: “Ela faça o que lhe apetecer. Eu só irei viver com ela quando tiver no dedo este anel e nos braços um filho que eu lhe tenha dado.” Guardava ele muita estima por aquele anel e nunca se separava dele por saber que lho tinham oferecido como sendo possuidor de certos poderes. Os cavaleiros perceberam a dura condição que era imposta com aquelas duas exigências quase impossíveis e, vendo que as suas palavras não o conseguiam demover da intenção assumida, voltaram para junto da dama e contaram-lhe a resposta dada.
“Muito magoada, e depois de ter pensado demoradamente, resolveu ir ver se seria possível realizar aquelas duas exigências, onde quer que fosse, a fim de o conseguir reaver por marido. Depois de ter feito o que achava bem fazer, mandou reunir um grupo de homens dos mais notáveis e virtuosos do condado, expôs-lhes com palavras enternecidas o que fizera por amor do conde mostrou-lhes o resultado conseguido e acabou por lhes dizer que não era sua intenção obrigar o conde a um exílio perpétuo com a sua permanência ali. Ao contrário, pensava gastar o resto da sua vida em peregrinação e obras de misericórdia para salvação da sua alma. Rogou-lhes que tomassem à sua conta a guarda e o governo do condado e que informassem o conde de que ela deixara desocupada e livre a possessão, afastando-se com intenções de nunca mais voltar ao Rossilhão. Enquanto a dama ia falando, os bons homens derramavam muitas lágrimas, fazendo-lhe muitos rogos para que se decidisse a mudar de opinião e a continuar. Nada conseguiram, porém. Encomendando-os a Deus, pôs-se a caminho na companhia dum primo e duma criada, em trajo de peregrinos e bem fornecidos de dinheiro e de jóias valiosas. Ninguém soube para onde se dirigiu e só veio a parar em Florença. Ali aconteceu alojar-se numa pequena hospedaria que pertencia a uma senhora viúva. Lá se manteve discretamente à guisa de pobre peregrina, desejosa de receber notícias do seu senhor.
“Aconteceu que, no dia seguinte, viu passar em frente da hospedaria Beltrão e os seus companheiros. Embora o tivesse reconhecido perfeitamente, não deixou de perguntar à dona da hospedaria quem era ele. A hospedeira respondeu: “É um fidalgo estrangeiro chamado Beltrão, agradável, cortês e muito estimado por toda a cidade. Anda apaixonadíssimo por uma vizinha nossa, que é fidalga mas pobre. Verdade seja que se trata duma donzela muitíssimo honrada e que ainda não casou por causa da sua pobreza. Vive com a mãe, uma senhora de muitíssima sensatez e bondade. Talvez que, se não fosse a mãe, já ela teria cedido à vontade do conde.” A condessa recolheu bem as palavras que escutou e, depois de ter examinado todos os pormenores com a maior atenção e de ter percebido tudo, tomou uma decisão. Informada sobre a casa e sobre os nomes da senhora e da filha amada pelo conde, foi a casa delas um dia, às escondidas, no seu traje de peregrina. Encontrou a senhora e a filha numa grande pobreza, cumprimentou-as e disse à senhora que lhe queria falar quando ela quisesse. A fidalga pôs-se de pé e disse estar pronta para a ouvir. Entraram sozinhas para um quarto, sentaram-se e a condessa principiou: “Senhora, pareceis-me uma inimiga da sorte, como eu, mas se quiserdes podeis compensar-vos, a vós e a mim.” A senhora respondeu que não desejava outra coisa senão ver-se compensada honestamente dos seus sofrimentos. Prosseguiu a condessa: “Preciso da vossa palavra, à qual me confio. Se me enganardes, desgraçareis a vossa vida e a minha.” “Estai descansada – respondeu a fidalga – e dizei-me tudo o que vos apraz, pois nunca sereis enganada por mim.” Então a condessa contou-lhe tudo desde a primeira vez em que ficara apaixonada, quem era e o que lhe acontecera até àquele dia, de tal maneira que a fidalga acreditou nas suas palavras, aliás em parte já ouvidas a outrem, e começou a mostrar-se compadecida.
Contada a sua história, a condessa prosseguiu: “Ouvistes, pois, entre outros desgostos, quais as duas exigências que tenho de satisfazer se quiser conquistar o meu marido. Não conheço outra pessoa que possa ajudar-me a consegui-las senão vós, se for verdade o que ouvi contar: que o conde meu marido ama apaixonadamente a vossa filha.” A fidalga declarou: “Senhora, se o conde ama a minha filha não sei, mas dá grandes mostras disso. Porém, que desejais vós que eu possa fazer?” “Senhora –respondeu a condessa –, vou dizer-vos. Mas primeiramente quero dizer-vos o que pretendo que aconteça no caso de me servirdes. Vejo que a vossa filha é formosa e que está na idade de se casar. Pelo que entendi e me parece compreender, só a guardais em casa porque não tendes o necessário para casá-la. Tenciono, em paga do serviço que me prestardes, dar-lhe sem demora com o meu dinheiro o dote que vós achardes ser conveniente para a casar de forma condigna.” Aquela oferta agradou à fidalga porque era necessitada, mas como possuía uma alma delicada disse: “Senhora, dizei-me o que posso fazer por vós e, se for para mim uma coisa honesta, fá-lo-ei de boa vontade; depois fareis vós o que vos aprouver.” A condessa prosseguiu: “Do que preciso é que mandeis alguém da vossa confiança ao conde meu marido a dizer-lhe que a vossa filha está disposta a fazer-lhe todas as vontades desde que ela possa ter a certeza de que ele a ama como mostra, coisa que ela não acreditará enquanto ele não lhe mandar o anel que traz na mão e que ela ouviu dizer que aprecia muitíssimo. Se ele vo-lo mandar, entregar-mo-eis. Depois mandar-lhe-eis dizer que a vossa filha está preparada para lhe fazer o gosto e mandá-lo-eis vir aqui às escondidas. Sem que ninguém se aperceba, far-me-eis deitar ao lado dele na vez da vossa filha. Talvez Deus me conceda a graça de ficar grávida. Depois disso, com o seu anel no dedo e o filho por ele gerado nos braços, reconquistá-lo-ei e mostrar-lhe-ei como deve a mulher viver com o marido, sendo vós a causa de tudo isto.”
“À fidalga pareceu tratar-se de coisa arriscada, receando que resultasse daí alguma injúria para a filha. Todavia pensou ser honesto fazer com que a dama reconquistasse o marido e que a dama queria fazer aquilo com um fim justo. Confiando no seu bom e honesto sentimento, não só prometeu à condessa que assim faria, como, passados poucos dias, com secreta cautela e segundo a ordem que a condessa lhe dera, conseguiu o anel, apesar de ter sido um tanto custoso para o conde, e magistralmente levou-a a deitar-se com o conde na vez da filha. Foi vontade de Deus que, nas primeiras relações amorosamente desejadas pelo conde, logo a dama ficasse grávida de dois rapazes, como veio a revelar-se a devido tempo no parto. E não foi apenas uma vez que a fidalga deu à condessa a satisfação dos abraços do marido, mas muitas vezes, actuando tão em segredo que nunca soou qualquer palavra, julgando sempre o conde que tinha estado não com a mulher, mas com aquela que ele amava. Quando, pela madrugada, tinha de partir, oferecia-lhe muitas jóias belas e valiosas, que a condessa guardava cuidadosamente.
“Ao ver-se grávida, não quis onerar a fidalga com aquele serviço e disse-lhe então: “Senhora, graças a Deus e a vós, tenho o que desejava e, por isso, já é tempo de fazer o que vos agrade e ir-me embora depois.” Respondeu-lhe a fidalga que ficaria grata se tivesse alguma coisa que a deixasse contente, mas que nada fizera na esperança dum prémio e só porque lhe parecera que assim devia ser. Então a fidalga, forçada pela necessidade, pediu-lhe com muitíssima vergonha 100 liras para casar a filha. Ao perceber-lhe a vergonha e ao ouvir o delicado pedido, a condessa ofereceu-lhe 500 liras e muitas jóias belas e valiosas que valeriam porventura outro tanto. A fidalga ficou muitíssimo contente e agradeceu o mais que pôde à condessa, que, despedindo-se dela, voltou à hospedaria.
“Para tirar motivo a Beltrão de enviar mensagens ou vir a sua casa, a fidalga saiu com a filha para casa dos seus familiares no campo. Passado pouco tempo, Beltrão foi chamado pelos seus súbditos e, tendo sabido que a condessa se fora embora, voltou para casa. Quando soube que ele partira de Florença e regressara ao seu condado, a condessa ficou muito contente. Ficou em Florença apenas o tempo necessário para o parto e deu à luz dois meninos parecidíssimos com o pai. Tratou deles com todo o cuidado, e quando lhe pareceu oportuno pôs-se a caminho sem se dar a conhecer a ninguém, indo para Mompilher. Aí repousou alguns dias, informando-se sobre o conde e o seu paradeiro. Ao ouvir que no dia de Todos-os-Santos ele ia dar no Rossilhão uma grande festa de damas e de cavaleiros, de novo em traje de peregrina, como tinha saído, dirigiu-se para lá. Quando encontrou as damas e os cavaleiros reunidos no palácio do conde para se sentarem à mesa, sem mudar de traje e com os dois filhos nos braços, subiu até à sala, atravessou pelo meio dos homens até ao sítio onde estava o conde, lançou-se-lhe aos pés e disse chorando: "Meu senhor, sou a tua desventurada esposa, que, para te deixar regressar e viver na tua casa, anda há muito tempo errante pelo Mundo. Por Deus te requeiro que faças segundo as condições que me impuseste por intermédio dos dois cavaleiros que te enviei aqui tens nos meus braços não apenas um filho mas dois e aqui está o teu anel. Já é tempo de ser recebida por ti como mulher segundo a tua promessa.” Ao ouvi-la, o conde ficou todo perturbado. Reconheceu o anel e também os filhos, que eram parecidos com ele. Mas ainda perguntou: “Como pode isto ter acontecido?” A condessa, com assombro do conde e de todos os presentes, contou por ordem o que se tinha passado, e como. Então o conde reconheceu que ela falava verdade, viu a sua perseverança e a sua inteligência e depois olhou aqueles dois filhinhos tão lindos.
“Para manter o que prometera e satisfazer os seus homens e as mulheres, todos a rogarem-lhe que a acolhesse e a honrasse como legítima esposa, pôs de lado a sua obstinada carranca, ergueu do chão a condessa, abraçou-a, beijou-a e reconheceu-a como sua legítima esposa e às crianças como seus filhos. Mandou que a vestissem de roupas condignas e, com enorme prazer de todos os presentes e de todos os outros vassalos que disto souberam, promoveu uma solene festa não só durante aquele dia, mas durante muitos outros. A partir daí, honrou-a sempre como sua esposa e mulher, amou-a e estimou-a profundamente.”
Alibech faz-se eremita e o monge Rústico ensina-lhe como se mete o diabo no inferno. É depois tirada dali e torna-se esposa de Neerbale (Nota 19) A carne celebra o seu triunfo no cenário deste deserto, onde os heróis do ascetismo cristão atingiram, como escreveu Carducci, “o delírio de atrozes junções de dor com Deus”. A novela, onde a candura e a inocência natural da protagonista empalidecem e se cobrem de luzes ambíguas sob a cintilante malícia do narrador, porventura a obra-prima no género predilecto do spurcissimus Dyoneus. La Fontaine inspirou-se na novela para um conto. (Fim da nota)
Dioneu, que escutara com toda a atenção a novela da rainha, mal viu que ela tinha concluído e que só a ele faltava falar, não esperou pela ordem e começou, com um sorriso:
“Graciosas damas, nunca tereis ouvido dizer como se mete o diabo no inferno. Por isso, vou explicar-vos, sem me desviar muito da intenção sobre que falastes durante o dia de hoje. Talvez consigais ganhar as vossas almas ao aprender como se faz e ficareis ainda a saber que, embora o amor prefira morar nos ditosos palácios e nas fofas camas e não em míseras cabanas, ele não deixa de manifestar as suas forças, por vezes, entre os densos bosques, as ríspidas montanhas e as cavernas do deserto. Daí se pode compreender como toda a realidade está submetida ao seu poder.
“Venhamos ao caso. Na cidade de Capsa, da Barbaria, viveu um homem muito rico que, entre vários filhos, tinha uma filha jovem, bonita e de finas maneiras. Chamava-se ela Alibech e não era cristã. Ouviu, porém, muitos cristãos que viviam na cidade exaltarem bastante a fé cristã e o serviço de Deus. Certo dia, perguntou a um deles de que maneira, e com menos dificuldade, era possível servir a Deus. O cristão respondeu-lhe que serviam melhor a Deus aqueles que mais evitavam as coisas do mundo, tal como faziam para as solidões desérticas da Tebaida. A jovem, que era muito simples e de idade à volta dos catorze anos, levada não por um desejo comum, mas por um sonho de criança, sem dizer nada a ninguém, na manhã seguinte meteu-se a caminho do deserto da Tebaida, às ocultas e completamente sozinha. Depois de alguns dias de grande canseira e de ter curtido a fome, chegou àqueles ermos. Viu ao longe uma cabana, dirigiu-se para lá e deu com um santo varão à entrada. Ele espantou-se de a ver por ali e perguntou-lhe do que andava à procura. Respondeu-lhe ela que, por inspiração de Deus, andava à procura de pôr-se ao seu serviço e também de quem lhe ensinasse como é que devia servir-Lhe. O virtuoso varão achou-a jovem e muito bela, pelo que teve medo de que o demónio o enganasse se a retivesse.
“Louvou, então, os seus bons propósitos, deu-lhe algumas raízes de ervas, frutos silvestres e tâmaras para comer, água para beber e, depois, disse-lhe: “Minha filha, não muito longe daqui vive um santo varão, o qual é mestre muito melhor do que eu para aquilo de que andas à procura.” E meteu-a no caminho. Ela chegou até junto deste segundo e escutou dele as mesmas palavras. Assim andou para diante até que alcançou a cela dum jovem ermitão chamado Rústico, fazendo-lhe a mesma pergunta que aos outros havia feito. Rústico resolveu dar uma grande provação à sua fortaleza e não a mandou embora ou mais para diante, como os outros. Reteve-a, antes, na sua cela e, quando chegou a noite, fez-lhe a um canto um leito com ramos de palmeira, dizendo-lhe que descansasse sobre ele. Feito isto, não estiveram as tentações com muitas reticências para lutar contra a fortaleza do ermitão. Este viu-se amplamente enganado por aquelas e, sem esperar por demasiados assaltos, voltou as costas e deu-se por vencido. Pôs de lado os santos pensamentos, as orações e as disciplinas, começando a matutar na juventude e na beleza da moça. Começou, além disso, a pensar em qual a via e o modo de entender-se com ela e de chegar ao que desejava sem que ela o considerasse um homem dissoluto. Através de certas perguntas, começou por verificar que ela nunca havia conhecido homem e que era tão simples como mostrava. Explicou-lhe, antes de mais nada, por meio de longas conversas, quanto era inimigo do Senhor Deus o diabo. Depois deu-lhe a entender que o serviço mais grato a Deus que se podia fazer era meter o diabo no inferno, a que o Senhor Deus o tinha condenado. Perguntou-lhe a jovem como se fazia isso e, então, Rústico disse-lhe: “Já vais saber, mas terás de fazer o mesmo que me vires fazer a mim.”
"Começou então o monge a despir a pouca roupa que usava, até ficar completamente nu, fazendo o mesmo a rapariga. Ele pôs-se de joelhos como se quisesse rezar e colocou a jovem de frente, voltada para si. Nesta posição, Rústico viu acender-se ao máximo o seu desejo por vê-la assim formosa e deu-se a ressurreição da carne. Alibech olhou para aquilo e, maravilhada, exclamou: “Rústico, que é essa coisa que vejo em ti, que se estende para fora e que eu não tenho?” “Ó minha filha – disse Rústico –, isto é o diabo de que te falei. Vê agora tu: ele dá-me um sofrimento tão grande que mal o consigo suportar.” A jovem afirmou então: “Louvado seja Deus, pois vejo que estou melhor do que tu, que esse diabo não o tenho eu!” Prosseguiu Rústico: “Falas verdade, mas tens outra coisa que eu não tenho e tem-la em troca disto.” Disse Alibech: “O quê?” Rústico explicou: “Tens um inferno e declaro-te que estou crente de que Deus te mandou vir aqui para salvação da minha alma. É que, dando-me este diabo tão incómodo, se tu quiseres ter uma grande compaixão de mim e se aceitares que eu o meta no inferno, dar-me-ás uma enorme consolação e prestarás a Deus grande agrado e serviço, se foi por esta causa que vieste a estas partes, como disseste.” A jovem respondeu de boa fé: “ó meu padre, já que eu tenho o inferno, faça-se como quiseres.” Disse, então, Rústico: “Abençoada sejas, minha filha! Então vamos lá metê-lo para que ele me deixe em paz.”
“Dito isto, levou a jovem para uma das camas e ensinou-lhe como ela devia pôr-se para encarcerar aquele maldito de Deus. A jovem, que nunca havia metido nenhum diabo no inferno, à primeira vez sentiu alguma dor e, por isso, disse a Rústico: “De facto, meu padre, má peste deve ser este diabo e um verdadeiro inimigo de Deus. Mesmo no inferno, e não noutro sítio, faz doer quando é metido lá dentro.” Disse-lhe Rústico: “Filhinha, não vai ser sempre assim.” E para que isto não voltasse a acontecer, seis vezes o tornaram a meter antes de se levantarem da cama, até que finalmente lhe tiraram a soberba da cabeça e ele repousou boamente em paz. Mas como de seguida lá voltou mais vezes e a jovem sempre se mostrasse obediente em recebê-lo, aconteceu que a brincadeira lhe começou a agradar, ao ponto de ela dizer a Rústico: “Agora vejo bem que falavam verdade os virtuosos varões de Capsa ao dizerem que o serviço de Deus era uma coisa muito doce. De facto, não me lembro de que alguma coisa me tivesse dado tanto gosto e prazer como a de meter o diabo no inferno. Acho, portanto, que é estúpida qualquer outra pessoa que pense em coisa diferente do serviço de Deus.” Por tal motivo, procurava frequentemente Rústico e dizia-lhe: “Meu padre, vim aqui para servir a Deus e não para estar ociosa; vamos meter o diabo no inferno.” E, ao fazerem a coisa, ela dizia por vezes: “Rústico, não percebo porque foge o diabo do inferno. Se ele lá estivesse com tanto gosto como o inferno o recebe e o segura, nunca mais de lá sairia.”
“Foi assim que a jovem tanto convidou Rústico e o incitou para o serviço de Deus que lhe tirou toda a estopa da jaleca, ao ponto de ele sentir frio, quando outro ficaria a suar. Daí começou ele a dizer à jovem que não se devia castigar o diabo nem metê-lo no inferno a não ser quando ele, por soberba, levantasse a cabeça: “E nós, por graça de Deus, tanto o obrigámos a tomar juízo que ele agora pede a Deus que o deixe em paz.” Deste modo conseguiu calar por algum tempo a jovem. Mas quando ela viu que Rústico não lhe vinha pedir que deixasse meter o diabo no inferno, um dia disse-lhe: “Rústico, se o teu diabo está castigado e já não te faz sofrer, a mim o inferno não me deixa sossegar. Por isso, farias bem se me ajudasses com o teu diabo a aturar a raiva do meu inferno, assim como eu te ajudei com o meu inferno a tirar a soberba ao teu diabo.” Rústico, que vivia de raízes das ervas e de água, com dificuldade conseguia responder aos convites, afirmando-lhe que eram necessários muitíssimos diabos para acalmarem o inferno, mas que ele havia de fazer o que estivesse ao seu alcance. Uma vez por outra, satisfazia-a, mas tão raramente que era o mesmo que atirar uma fava para a boca do leão. Deste modo, a jovem, achando que não estava a servir a Deus quanto era seu desejo, queixava-se de que assim não estava bem.
Ora, enquanto se tratava esta questão entre o diabo de Rústico e o inferno de Alibech, por demasiado desejo e potência de menos, aconteceu haver um incêndio em Capsa, no qual arderam com a própria casa o pai de Alibech e todos os filhos e família que ele possuía. Alibech ficou, portanto, herdeira de todos os bens. Foi então que um jovem de nome Neerbale, o qual dissipara em festas toda a sua fortuna, sabendo que Alibech estava viva, se pôs à sua procura. Foi encontrá-la antes de o tribunal se apoderar dos bens que tinham pertencido a seu pai, como pessoa falecida sem herdeiros. Com grande satisfação de Rústico e contra vontade dela, levou-a de novo para Capsa e desposou-a, tornando-se juntamente com ela herdeiro de grande património.
“Antes, porém, de Neerbale ter dormido com ela, perguntaram-lhe algumas mulheres como é que ela servira a Deus no deserto. Respondeu que metendo o diabo no inferno e que Neerbale tinha cometido um grande pecado ao roubá-la de tão importante serviço. Perguntaram as mulheres: “Como é que se mete o diabo no inferno?” A jovem mostrou-lhes como era com palavras e com gestos. Elas riram-se tanto que ainda hoje se riem e disseram-lhe: “Não fiques triste, filha, que isso também se faz bem aqui; Neerbale vai servir-te como Deus contigo.” Correu depois a história de boca em boca por toda a cidade e nasceu daí aquele ditado em que se afirma que o melhor serviço que a Deus se faz é meter no inferno o Satanás. O ditado atravessou os mares e, ainda hoje persiste.
“É por isso que, jovens senhoras, precisais da graça de Deus para aprender como se mete o diabo no inferno. Trata-se de coisa muito do agrado de Deus e de muito prazer para ambas as partes, muito bem daí podendo nascer e seguir-se.”
A novela de Dioneu fez rir as honestas senhoras mil vezes ou mais, tão divertidas lhes pareceram as suas palavras. Concluída a novela, viu a rainha ter chegado ao termo o seu reinado. Tirou da cabeça a grinalda e muito delicadamente foi colocá-la na cabeça de Filóstrato, dizendo: “Não tarda que saibamos se o lobo conseguirá guiar melhor as ovelhas do que as ovelhas guiaram os lobos.” Filóstrato respondeu rindo-se: “Se me fosse concedido, os lobos ensinariam às ovelhas como meter o diabo no inferno não pior do que Rústico ensinou a Alibech. Não nos chameis portanto, lobos, se vós não fostes ovelhas. Todavia, segundo o que me é concedido, governarei o reino a mim entregue.” Respondeu-lhe Neífile: “Escuta, Filóstrato: querendo ensinar-nos, vós é que podíeis aprender de nós o bom senso, como Masetto de Lamporecchio aprendeu das freiras, e a só tomar o fio à palavra quando os ossos aprendessem a assobiar sem mestre.” Filóstrato reconheceu que havia mais foices do que as setas que ele possuía e, pondo de lado o gracejo, começou a dedicar-se ao reino que lhe era confiado. Mandou chamar o mordomo, quis saber a situação em que tudo se encontrava e, além disso, deu discretamente as suas ordens para que tudo corresse bem e satisfizesse todo o grupo enquanto durasse o seu reinado. Dirigiu-se depois às damas para lhes dizer:
“Amorosas senhoras, para minha desventura, desde que soube distinguir o bem do mal, logo fiquei submetido ao amor por causa da beleza de uma de vós. Nem o ser humilde, nem o ser obediente, nem o seguir o amor no que para mim ele me deu a conhecer me evitou em todas as atitudes dela que eu fosse trocado por outro e que depois tudo me tivesse corrido sempre de mal a pior e assim julgo que me vai acontecer de agora até à morte. Por isso mesmo, agrada-me que não se fale amanhã de outra matéria senão da que está de acordo com aquilo que me diz respeito, isto é, sobre aqueles cujos amores tiveram um fim infeliz. Quanto a mim, espero que o terei infelicíssimo. Nem por outro motivo o nome que me chamais me foi imposto por alguém que sabia bem o que dizia.” Dito isto, levantou-se e deu a cada um liberdade até à hora da ceia.
O jardim era tão formoso e agradável que nenhuma das donzelas escolheu sair dele para buscar noutro sítio um maior prazer. Como o Sol já não incomodava com o seu calor, começaram a perseguir os cabritos, os coelhos e os outros animais que andavam pelo jardim e que os tinham vindo distrair mais de cem vezes, saltando no meio deles enquanto se encontravam sentados. Dioneu e Fiammetta começaram uma canção sobre Guilherme de Vergy e a sua Dama, (Nota 20) As aventuras de Guilherme de Vergy e de sua mulher, Laura (século XIII), serviram de argumento para um poemeto francês muito difundido e bastante imitado na literatura medieval. (Fim da nota) enquanto Filomena e Pânfilo se puseram a jogar o xadrez. Assim, uns fazendo isto, outros aquilo, o tempo foi correndo e a hora da ceia chegou inesperada. As mesas foram postas em torno da linda fonte e ali cearam ao cair da noite, com muitíssimo deleite.
Para não se desviar do caminho seguido pelas que antes dele tinham sido rainhas, logo que se ergueram das mesas, Filóstrato ordenou que Lauretta encetasse uma dança e entoasse uma canção. Ela declarou: “Meu senhor, não sei canções de outros, e das minhas não me recordo de nenhuma que se adapte convenientemente a um grupo tão divertido. Se, porém, aceitardes uma das que eu sei, di-la-ei com muito gosto.” Disse-lhe o rei: “Nenhuma obra tua podia deixar de ser bonita e agradável; por isso, canta-nos uma das tuas canções como a souberes.” Então Lauretta, com voz muito suave mas em tom um tanto condoído, começou assim, com as outras donzelas a acompanhá-la:
Nenhuma mulher inconsolada
sofre tanto como eu,
que suspiro em vão, exausta, enamorada!
Aquele que move o céu e todas as estrelas
fez-me a seu gosto
amorosa, gentil, graciosa e bela
para dar aqui na terra às altas inteligências
um vestígio da beleza
que sempre está na sua presença;
mas a mortal imperfeição
que me conhece mal
não me aprecia, antes me desprezou.
Já houve quem me teve amor e de bom grado,
era eu bem jovem, me abraçou
nos seus braços e nos seus pensamentos
e ardeu no fogo dos meus olhos,
gastando o tempo,
que rápido foge, a cortejar-me.
Delicadamente
o fiz digno de mim;
mas agora, pobre de mim, dele estou privada.
Depois surgiu-me presunçoso
um jovenzinho altivo
que se julgava nobre e valoroso;
fez-me prisioneira e, pensando falsamente,
deixou-se levar pelo ciúme.
Então, exausta, quase desesperei
ao conhecer a verdade,
eu que vim ao mundo para bem de muitos
e só uma pessoa me prende.
Maldigo a minha desventura
quando, para mudar de veste,
um dia disse que sim. Tão bela e feliz
me vi outrora na veste escura,
quando nesta levo dura vida
e menos que então me acham honesta.
Ó dolorosa festa,
morresse eu antes
de naquele caso te haver provado!
Ó querido amante, primeiro de quem fui
mais feliz do que nenhuma,
agora que estás na presença Daquele
que nos criou, compadece-te
de mim que por outro
não te posso esquecer! Faz-me que eu veja
nunca mais extinta a chama
que por mim te devorou
e roga o meu regresso a essas alturas.
Assim chegou Lauretta ao fim da sua canção, a qual todos escutaram atentamente, mas nem todos entenderam da mesma maneira. Alguns interpretaram-na à milanesa, isto é, que mais vale um bom porco do que uma bela rapariga. Mas outros interpretaram-na de maneira mais sublime, melhor e mais exacta, do que não interessa agora falar. Depois da canção, o rei mandou acender muitos fachos sobre a relva e no meio das flores e disse para se cantarem outras canções, até que as estrelas começaram a esmorecer. Achou, então, serem horas de dormir e, com as boas-noites, ordenou a cada um que fosse para o seu quarto.
CONCLUÍDA A TERCEIRA JORNADA DO DECÂMERON COMEÇA A QUARTA, DURANTE A QUAL, SOB O REINADO DE FILÓSTRATO SE FALA DAQUELES CUJOS AMORES TIVERAM UM FIM INFELIZ. (Nota 1) Jornada soturna, de acordo com o temperamento triste ou, melhor, truculento de Filóstrato. Das oito novelas que são realmente fiéis ao tema (a segunda insere-se um pouco forçadamente), sete acabam com a morte dos dois amantes e uma, com a clausura da sobrevivente. Nestas a parte da fidelidade heróica que se junta com a morte do ser amado é quase sempre reservada à mulher e atinge as suas expressões mais trágicas em Guismonda (I) e na condessa de Rossilhão (IX). Mas a obra-prima da jornada é o idílio voluptuoso da louca Isabel (V). (Fim da nota)
“Caríssimas damas, (Nota 2) A partir de algumas críticas feitas ás anteriores novelas, e dirigindo-se às suas leitoras duma forma semelhante à da parábase na comédia grega, o autor insere aqui a apologia da sua obra. Modéstia e dignidade, desdém da hipocrisia alheia e consciência do próprio valor inspiram a lúcida e apaixonada polémica: da satírica parábola em defesa do conteúdo erótico até à recordação dos mais altos poemas que se inspiraram no amor; do paralelo entre as musas e as mulheres, nas quais ele reivindica a fonte poética do seu realismo (as musas são mulheres), até ao desdém pela arte utilitária e o consequente desapego pelo pão (que evoca um remate da carta de Dante ao seu amigo florentino), que já é acompanhado por uma consciência humanista do valor da arte; da satírica defesa da independência da poesia perante a realidade histórica até à magnífica comparação do pó e dos seus imprevisíveis destinos. (Fim da nota) tanto pelas palavras que tenho ouvido aos homens de sabedoria como pelos factos que muitas vezes vi e li, julgava que o vento impetuoso e ardente da inveja só conseguia atingir as altas torres e os píncaros mais elevados das árvores. Mas julgo ter-me enganado na minha apreciação. De facto, preocupei-me sempre em fugir do ímpeto feroz desse raivoso espírito, procurando andar não só pelas planícies como também pelos vales mais profundos. Isto é mostrado de forma bem clara àqueles que lerem estas novelas, as quais não só foram escritas por mim em florentino vulgar, em prosa e sem título, (Nota 3) As novelas, divulgadas avulso, ainda não estavam reunidas sob o título actual. (Fim da nota) mas até num estilo mais humilde e sóbrio que pode haver. Apesar de tudo isto, não consegui evitar que semelhante vento me sacudisse ferozmente, quase me arrancando pela raiz, e que me dilacerassem completamente as mordeduras da inveja. Posso, portanto, compreender perfeitamente como é verdade o que os sábios pretendem dizer quando afirmam que, na vida presente, só a miséria está livre da inveja.
“Sensatas senhoras, houve quem, ao ler estas novelas, tenha afirmado que vós me agradais demasiado e que não é coisa recomendável eu gostar tanto de vos divertir e consolar. Alguns ainda disseram pior: que o não é de louvar como eu faço. Outros, mostrando quererem falar com mais maturidade, disseram não ficar bem na minha idade andar ainda atrás destas coisas, ou seja, a falar de mulheres e a diverti-las. Muitos outros, mostrando-se bastante preocupados com a minha reputação, dizem que eu faria melhor em entreter-me com as musas do Parnaso, (Nota 4) O monte da Fócida que, segundo a mitologia grega, era consagrado aos divinos protectores da poesia: Apolo e as nove musas. (Fim da nota) em vez de misturar-me convosco com estas futilidades. E há ainda os que, falando mais por despeito do que por sensatez, disseram que eu seria muito mais sensato se tratasse de ganhar o pão, em vez de andar a alimentar-me de ventos atrás destas ninharias. Alguns, finalmente, empenham-se, para detrimento do meu trabalho, em provar que os factos contados por mim se passaram de maneira diferente.
“Deste modo, virtuosas senhoras, me batem, me molestam, me dilaceram vivo com tais e tantas maledicências, com tão atrozes dentes, com tão agudos dardos, enquanto vou militando ao vosso serviço. Sabe Deus, porém, como oiço e entendo estas coisas com a alma bem disposta e, embora nisto vos pertença toda a minha defesa, nem mesmo assim tenciono poupar as minhas forças. Ao invés, sem dar a resposta que conviria, quero afastar esses ditos dos meus ouvidos e fazê-lo sem demora. Pois se ainda não cheguei à terça parte do meu trabalho e já os ditos são tantos e tantos outros prometem, penso que eles poderiam multiplicar-se de tal maneira que, se antes os não rejeitasse, com um bem pequeno esforço me poriam no fundo, de nada me valendo as vossas forças, por maiores que elas fossem.
“Antes, porém, de dar resposta a qualquer um deles, gostaria de contar em minha defesa não uma novela inteira, (Nota 5) O motivo desta novela, de origem oriental, foi retomado mais vezes nas nossas literaturas. Numa primeira fase encontramo-lo explorado com finalidade ascética e as mulheres são designadas como “demónios” e não como patas. É o que se pode ver na Legenda áurea, de Jacopo de Varazze. La Fontaine inspirou-se nela para um conto. (Fim da nota) para não parecer que tenciono misturar as minhas histórias com as dessa companhia tão agradável que vos apresentei, mas apenas um fragmento, a fim de que o seu carácter incompleto mostre não pertencer àquelas.
“É falando aos que me atacam que eu digo ter existido, já há muito tempo, na nossa cidade, um cidadão chamado Filipe Balducci, homem de condição bastante modesta mas rico, abastado e entendido nas coisas que requeria o estado. Tinha uma esposa à qual amava profundamente como também ela o amava. Levavam juntos uma vida descansada, não se esforçando por mais nada senão por serem inteiramente felizes um com o outro. Ora aconteceu, como acontece a toda a gente, que a bondosa senhora se foi desta vida, deixando a Filipe apenas um único filho que dele tinha concebido, o qual devia andar por volta dos dois anos.
“Com a morte da esposa, Filipe ficou mais desconsolado do que ficaria qualquer outra pessoa ao perder um ser amado. Vendo-se privado daquela companhia que tanto amava, tomou a decisão de não continuar a viver no mundo, mas antes de entregar-se ao serviço de Deus, a mesma coisa fazendo ao seu pequeno filho. Distribuiu todos os bens pelo amor de Deus e, sem hesitar, partiu para o monte Asinaio, fixando-se aí com o filho numa pequena cela. Vivendo com ele de esmolas, passava o tempo em jejuns e orações, preocupando-se sobretudo de não falar, onde quer que estivesse, de qualquer coisa temporal, nem de lhe deixar ver alguma delas para que o não desviassem daquele santo serviço. Falava-lhe somente das glórias da vida eterna, de Deus e dos santos, e apenas lhe ensinava piedosas orações. Nesta vida o conservou durante muitos anos, nunca o deixando sair da cela nem lhe mostrando outra pessoa senão ele próprio. Costumava o virtuoso homem ir algumas vezes a Florença e, ajudado pelos amigos segundo as suas necessidades, voltar depois para a sua cela.
“Ora aconteceu que, estando o jovem já nos 18 anos e tendo Filipe envelhecido, um dia o filho perguntou-lhe aonde ia. Filipe disse-lho e o rapaz declarou: “Pai, já estais velho e mal podeis suportar a fadiga. Porque não me levais uma vez a Florença para me apresentardes os vossos amigos devotos de Deus? Depois, eu, que sou jovem e posso esforçar-me melhor do que vós, poderei ir a Florença tratar do que for preciso e quando achardes bem, ficando vós aqui.” O virtuoso homem pensou que o filho estava já crescido e que se habituara tanto ao serviço de Deus que dificilmente as coisas do mundo o poderiam atrair. Disse, então, para si mesmo: “Ele tem razão.” Assim, uma vez em que tinha de ir a Florença, levou-o consigo. Ao chegar à cidade, o jovem olhou para os palácios, as casas, as igrejas e todas as outras coisas de que a cidade está cheia. Como não se lembrava de alguma vez as ter visto, começou a ficar muito admirado e a fazer muitas perguntas ao pai sobre o que era aquilo e como se chamava. O pai ia-lhe respondendo e ele, depois de ouvir, ficava satisfeito e fazia novas perguntas. Assim perguntando o filho e respondendo o pai, aconteceu cruzarem-se com um grupo de formosas donzelas, jovens e enfeitadas, as quais regressavam de uma festa de casamento. Logo que as viu, o rapaz perguntou ao pai o que era aquilo. O pai respondeu: “Filho, põe os olhos no chão e não repares nelas, que são coisa ruim.” O filho insistiu: “Mas como se chamam?” O pai, para não despertar na concupiscência do rapaz alguma tendência menos útil, não quis referir o próprio nome de “mulheres” e disse: “Chamam-se patas.” Ó admirável coisa que ele escutou! Embora antes nunca as tivesse visto, deixou de pensar em palácios, bois, cavalo ou burro, dinheiro ou noutras coisas que encontrara e disse imediatamente: “Pai, peço-vos por tudo que me arranjeis uma daquelas patas.” “Ai de mim, meu filho! – disse o pai. – Cala-te, que elas são coisa ruim.” Ao que o jovem perguntou: “Mas é assim que são as coisas ruins?” “Sim” – respondeu o pai. O filho então declarou: “Não percebo o que estais a dizer, nem porque são elas coisa ruim. Por meu lado, acho que nunca vi coisa tão bonita nem tão agradável como elas. São mais formosas do que os anjos pintados que tantas vezes me mostrastes. Oh!, se vos importais comigo, fazei tudo para levarmos connosco uma dessas patas, que eu tratar-lhe-ei do bico.” Disse o pai: “Não quero, pois não sabes onde é que elas embicam.” E logo o pai compreendeu que a natureza era mais forte do que a sua sagacidade, ficando arrependido de o haver trazido a Florença.
“Acho que é suficiente contar até aqui a minha novela e dirigir-me àqueles por quem a contei. Dizem alguns dos meus críticos que ando mal, ó jovens senhoras, ao empenhar-me demais em agradar-vos e que vós me agradais demasiado. São factos que eu confesso o mais abertamente possível: agradais-me e procuro agradar-vos. Aliás, pergunto-lhes se eles se maravilham ao considerar, não digo os beijos de amor, os deliciosos abraços, as aprazíveis uniões que de vós tantas vezes recebemos, ó dulcíssimas damas, mas apenas a visão contínua das formosas maneiras, da terna beleza, da encantadora elegância e sobretudo da vossa feminina virtude, quando afinal aquele jovem, criado, educado e crescido num monte selvático e solitário, dentro dos limites duma pequena cela e sem outra companhia além do pai, mal vos contemplou só vos desejou a vós, só vos pediu a vós, só vos seguiu a vós com o desejo. Hão-de eles então censurar-me, morder-me, dilacerar-me porque me agradais ou porque me esforço em agradar-vos, a mim cujo corpo o Céu criou todo voltado para vos amar, a mim que desde a infância vos dei a minha alma ao sentir o fulgor da luz dos vossos olhos, a suavidade das melífluas palavras e a chama viva dos piedosos suspiros, vendo afinal que agradastes sobre todas as coisas a um eremita, a um rapazinho sem sentimento, eu diria: a um animal selvagem? Decerto critica-me assim quem não vos ama e não deseja ser amado por vós, como pessoa que não sente nem sabe o que são os prazeres e a virtude do afecto natural. Por isso, pouco me incomodo.
“Os que andam a falar contra a minha idade mostram ignorar que o alho-porro pode ter a cabeça branca mas a rama verde. Pondo de lado o gracejo, respondo-lhes que nunca me hei-de envergonhar até ao fim da minha vida por não deixar de agradar àquelas coisas a que muito honraram os já velhos Guido Cavalcanti e Dante Aligeire e o velhíssimo Cino de Pistóia, (Nota 6) G. Cavalcanti (1255-c. 1300), Dante (1265-1321) e Cino (1270-c. 1336) são os três poetas de amor maiores na época anterior à de Boccaccio e pertencem à chamada escola do “dolce stil nuovo”. (Fim da nota) empenhando-se eles em agradecer-lhes. E se não fosse desviar-me do estilo usado no meu discurso, chamaria aqui a história, toda ela repleta de homens antigos e valorosos, os quais eu, havia de mostrar como nos seus anos de maior maturidade se esforçaram profundamente em agradar às mulheres. Se esses críticos não souberem disso, que o vão aprender.
“Que eu me deva estar com as musas do Parnaso, afirmo que se trata dum bom conselho; todavia, nem nós podemos habitar sempre com as musas nem elas connosco. E quando acontece que o homem sai de junto delas, gostar de ver alguma coisa parecida com elas não merece reparo: as musas são mulheres, e, apesar de as mulheres não valerem tanto como as musas, elas têm logo à primeira vista a semelhança daquelas. Desta forma, se por outra razão não me agradassem, agradam-me por esta. Aliás, as mulheres já me ofereceram motivo de compor mil versos, ao passo que as musas nunca me deram motivo de compor um só que fosse. Elas ajudaram-me bem e ensinaram-me a compor aqueles mil. Talvez tenham vindo, até, pôr-se ao meu lado diversas vezes quando me ponho a escrever estas histórias, apesar de tão modestas, porventura para serviço e homenagem da semelhança que as mulheres têm com elas. Por isso, ao tecer tais histórias, não me afasto nem do monte Parnaso nem das musas tanto como, porventura, muitos supõem.
“Que diremos, porém, aos que tanto se compadecem da minha fome e me aconselham a procurar o pão? Não sei bem, a não ser que gostaria de saber qual a resposta deles se eu, por necessidade, lho fosse pedir. Penso que diriam: “Vai procurá-lo nas fábulas.” De facto, os poetas já encontraram mais pão nas suas fábulas do que muitos ricos nos seus tesouros e já fizeram florescer a sua época andando atrás das suas fábulas, ao contrário de muitos que morreram ignorados andando à procura de possuírem mais pão do que lhes era necessário. Que mais dizer? Que eles corram comigo quando eu lhes for mendigar. Mas, graças a Deus, ainda não estou necessitado e, mesmo que a necessidade me sobreviesse, eu saberia, como diz o Apóstolo, suportar a abundância e a necessidade. Por isso, ninguém se preocupe comigo mais do que eu próprio.
"Daqueles que afirmam não se terem passado assim estas histórias, agradeceria muito que me dessem os originais. Se estes se mostrarem discordantes daquilo que escrevo, direi que é justa a censura deles e que procurarei corrigir-me a mim próprio. Mas enquanto só aparecerem palavras, deixá-los-ei com a opinião deles. Eu sigo a minha e digo deles o que eles dizem de mim.
“Por esta vez, acho que respondi o bastante e declaro-vos, gentilíssimas damas, que irei para a frente com isto, armado com a ajuda de Deus e de vós, que muito espero, e de grande paciência, voltando as costas a tal vento e deixando-o soprar. Não vejo que outra coisa me possa acontecer senão o mesmo que ao pequeno grão de poeira. Quando o turbilhão sopra, ou nem o remove da terra ou, se o remove, ergue-o bem alto e vai deixá-lo muitas vezes na cabeça dos homens, na coroa dos reis e dos imperadores, por vezes no topo dos altos palácios e sobre as excelsas torres. Se cair de lá, não pode cair mais baixo do que o lugar de onde subiu. Se alguma vez me dispus a agradar-vos quanto podia, agora mais do que nunca o farei, pois sei que outra coisa ninguém poderá informar com razão a não ser que agimos segundo a natureza, eu e os outros que vos amamos. Querer opor-se às leis da natureza exige forças demasiadamente grandes, quase sempre não apenas inúteis mas altamente prejudiciais para aquele mesmo que as aplica. Confesso que não possuo tais forças nem as desejo possuir para isto; se as tivesse, preferia cedê-las a outrem a utilizá-las eu próprio. Calem-se, pois, os mordedores e, se não conseguirem aquecer-se, que vivam enregelados, deixando-se ficar com os seus prazeres ou, melhor, com os seus apetites corruptos. Mas deixem-me viver naquilo que me agrada esta minha vida breve. É tempo, porém, de regressarmos, ó formosas damas, por termos vagueado bastante, ao ponto de onde partimos e de continuarmos a ordem começada.)”
O Sol já expulsara do céu todas as estrelas e da terra a húmida sombra da noite. Filóstrato ergueu-se então, mandou erguer todo o grupo e dirigiram-se para o belo jardim, onde se puseram a passear. Chegada a hora de comer, almoçaram no mesmo sítio onde tinham ceado na passada noite. Após a sesta, à hora do Sol no mais alto cume, ergueram-se e foram sentar-se como de costume perto da formosa fonte, ordenando Filóstrato que Fiammetta desse início às novelas. Fiammetta não esperou que lhe dissessem mais e graciosamente assim começou:
Tancredo, príncipe de Salerno, mata o amante da filha e manda-lhe o coração numa taça de ouro. Ela acrescenta-lhe água envenenada, bebe-a e assim morre. (Nota 7) Novela desigual, mas que atinge alturas espirituais invulgares em Boccaccio. A protagonista, apaixonada e altiva, impera sobre o pai, não bastante aprofundado no contraste interior que lhe provoca a dor e a ferocidade, e sobre o amante, que apenas vive da lacónica e decorosa justificação do seu comportamento. O seu amor nasce dos sentidos (e não precisa de véus para se justificar como tal diante dum pai), mas atinge os céus, num presságio de imortalidade, quando a dama, entre o coro lacrimoso das criadas, morre sem negar a sua trágica grandeza. (Fim da nota)
“Doloroso tema nos deu hoje o nosso rei para tratarmos, pensando ele talvez ser conveniente para nós, que viemos aqui para nos alegrarmos, falar das lágrimas alheias, sendo impossível não sentir-se comovido quem as descreva ou quem as escute. Fê-lo, acaso, para temperar um pouco a alegria sentida nos dias anteriores.
Fosse qual fosse a razão que o moveu, uma vez que não me cabe alterar a sua vontade, irei contar um facto doloroso e desventurado, que bem merece as nossas lágrimas.
“Tancredo, príncipe de Salerno, teria sido um senhor muito humano e de índole benigna se, na velhice, não viesse a manchar as mãos no sangue de apaixonados. Durante a vida toda, apenas uma filha lhe nasceu e mais feliz ele teria sido se não a tivesse. Foi ela amada pelo pai com tanta ternura como nenhuma outra filha fora amada por qualquer outro pai. Pela ternura desse amor, embora ela já houvesse ultrapassado em muitos anos a idade de receber marido, não a casava por não saber como separar-se dela. Deu-a finalmente como esposa a um filho do duque de Cápua, mas ela pouco tempo viveu com o marido, pois ficou viúva e tornou a viver com o pai. Possuía ela um corpo e um rosto lindíssimos como nenhuma outra mulher. Era jovem, vigorosa e mais culta do que era costume exigir-se a uma dama. Assim viveu com o bondoso pai, como grande senhora rodeada de carinhos. Mas, ao ver que o pai, pelo amor que lhe dedicava, pouco se preocupava de voltar a casá-la e porque não lhe parecia decente ser ela a pedir tal coisa, pensou em arranjar secretamente, se fosse possível, um valoroso amante.
“Olhando para os muitos homens que frequentavam a corte do pai, nobres e outros, como é costume ver nas cortes, e considerando as maneiras e a educação de muitos, agradou-lhe sobremaneira entre todos um jovem valete do pai, chamado Guiscardo. Era muito humilde de nascimento, mas nobre pela sua virtude e educação. Apaixonou-se então por ele secretamente, fitava-o com muita frequência e louvava cada vez mais a sua maneira de ser. O jovem, que também não era nenhum parvo, deu-se conta dela e acolheu-a de tal modo no coração que afastou do pensamento outra coisa que não fosse amá-la. Amando-se, pois, secretamente um ao outro desta forma e não desejando a jovem outra coisa senão encontrar-se com ele, nem querendo confiar a outra pessoa o segredo de tal amor, pensou numa forma original de lhe dizer o que fazerem. Escreveu uma carta onde lhe explicava o que ele devia fazer no dia seguinte para se encontrar com ela. Meteu-a depois no interior duma cana e, de brincadeira, entregou a cana a Guiscardo ao mesmo tempo que lhe dizia: “Faz dela uma cana de sopro, esta noite, para a tua criada, para ela atear o lume.” Guiscardo pegou na cana e, pensando que ela não lha tinha dado nem lhe dissera aquilo sem uma razão, foi-se embora e seguiu para casa com a cana. Ao olhar para esta e ao vê-la rachada, abriu-a, descobriu lá dentro a carta e leu-a. Percebeu perfeitamente o que devia fazer e, considerando-se o homem mais feliz que jamais houve, lançou-se ao trabalho para ir ter com ela, de acordo com as instruções recebidas.
“Havia junto ao palácio do príncipe uma gruta cavada no monte, construída há muitíssimo tempo atrás. A gruta recebia alguma luz por uma fresta artificial e, como a gruta se encontrava abandonada, a fresta quase toda se cobria de silvas e de ervas crescidas sobre ela. Na mesma gruta existia uma escada secreta por onde se entrava numa das salas térreas do palácio ocupadas pela dama, embora estivesse fechada por uma fortíssima porta. Estava já tão fora da mente de todos aquela escada, por não a usarem há muito tempo, que quase ninguém se recordava da sua existência. Mas o amor, a cujos olhos nenhuma coisa é tão secreta que não chegue, fê-la regressar à memória da enamorada senhora. Para que ninguém pudesse aperceber-se, durante muitos dias sofreu empregando todos os seus esforços para conseguir abrir aquela porta. Uma vez aberta, desceu por ela sozinha até à gruta e descobriu a fenda. Mandou, então, notícia a Guiscardo para que procurasse ir até lá, narrando-lhe a altura que devia haver desde a fenda até ao chão. Para executar o plano, Guiscardo apressou-se a arranjar uma corda com alguns nós e laços para conseguir descer e subir por ela, vestiu-se com um fato de couro para se defender das silvas e, sem participar nada a ninguém, dirigiu-se durante a noite seguinte para a fenda, atou bem uma das extremidades da corda a um forte tronco nascido à boca da fenda, desceu por lá até à gruta e esperou a dama. No dia seguinte a dama fingiu apetecer-lhe dormir, mandou embora as aias e fechou-se sozinha no quarto. Abriu então a porta, desceu à gruta onde foi encontrar Guiscardo, e manifestaram um com o outro maravilhosa alegria. Subiram ao quarto e com grande deleite passaram grande parte do dia. Depois de combinadas as discretas medidas para que os seus amores continuassem secretos, Guiscardo voltou à gruta, enquanto a dama fechava a porta e saía ao encontro das suas aias. Ao chegar a noite Guiscardo trepou a corda e saiu pela fenda por onde havia entrado, regressando a casa. Aprendido o caminho, mais vezes lá voltou no decorrer do tempo.
“A fortuna, porém, invejosa de tão prolongada e tão grande felicidade, transformou com um doloroso acontecimento a alegria dos dois amantes numa lamentosa tristeza. Costumava Tancredo entrar algumas vezes sozinho no quarto da filha, aí estar algum tempo a conversar com ela e depois partir. Um dia, depois do almoço, foi até lá quando a dama, cujo nome era Guismonda, se encontrava num jardim com todas as suas aias. Entrou sem que ninguém desse por ele e, como não queria tirá-la do recreio, ao ver fechadas as janelas do quarto e descidas as cortinas da cama, foi sentar-se numa banqueta aos pés da cama, apoiou sobre esta a cabeça, puxou sobre si a cortina, como se industriosamente se ocultasse, e adormeceu. Estava o príncipe assim a dormir quando Guismonda, que por desgraça chamara Guiscardo naquele dia, deixou as aias no jardim, entrou silenciosamente no quarto, fechou-se lá dentro e, sem reparar se estava lá alguém, abriu a porta a Guiscardo, que a esperava. Foram para a cama como de costume, brincando e divertindo-se. Aconteceu então que Tancredo acordou, ouvindo e vendo o que Guiscardo e a filha estavam a fazer. Extremamente magoado, pensou primeiro em gritar-lhes, mas depois resolveu calar-se e manter-se escondido quanto era possível, a fim de poder fazer mais cautamente e com menos desonra sua aquilo que no seu ânimo já decidira fazer. Os dois amantes estiveram juntos longo tempo como costumavam fazer, sem se aperceberem de Tancredo. Quando lhes pareceu tempo, desceram da cama, Guiscardo voltou para a gruta e ela saiu do quarto. Tancredo, apesar de velho, desceu ao jardim por uma janela do quarto e, sem que ninguém o visse, num sofrimento de morte, voltou aos seus aposentos.
“Por ordens suas, durante o primeiro sono da noite seguinte, Guiscardo foi preso por dois guardas à saída da fenda, estorvado como estava no seu fato de couro. Levaram-no secretamente a Tancredo, que, mal o viu, lhe disse quase em lágrimas: “Guiscardo, a minha bondade para contigo não merecia o ultraje e a vergonha do que fizeste ao que me pertence, como vi hoje com os meus próprios olhos.” Guiscardo não respondeu mais do que isto: “O amor pode muito mais do que vós e do que eu.” Ordenou Tancredo que o mantivessem guardado numa cela sem ninguém saber. No dia seguinte, sem que Guismonda tivesse qualquer desconfiança e havendo Tancredo pensado em muitas e variadas hipóteses, depois de almoçar, o príncipe dirigiu-se, como era seu costume, ao quarto da filha. Mandou-a chamar, fechou-se lá dentro com ela e disse-lhe, chorando: “Guismonda, parecia-me conhecer a tua virtude e a tua honestidade de tal modo que não me poderia entrar no espírito, se me tivessem dito, e não o visse eu com os meus olhos, que tu ousarias, não digo fazer mas sequer pensar, entregares-te a um homem que não fosse teu marido. Irei padecer com esta lembrança o pouco de resto de vida que a velhice me reserva. Prouvesse ao menos a Deus, já que tinhas de cair em tal desonra, que escolhesses um homem condizente com a tua dignidade. Mas, entre tantos que frequentam a minha corte, foste escolher Guiscardo, um jovem de baixíssima condição que por caridade foi criado desde criancinha até hoje nesta nossa corte. E puseste-me em infindas ânsias de alma, sem saber o que faça de ti. De Guiscardo, que esta noite mandei prender quando ele saía da gruta e que mantenho preso, já decidi o que fazer; mas de ti, sabe Deus como não sei o que decidir. Por um lado, move-me o amor que sempre te dediquei como nenhum outro pai dedicou a sua filha; por outro lado, arrasta-me um justíssimo desdém nascido da tua grande loucura. Quer o primeiro que eu te perdoe e o segundo que eu me encolerize contra a minha natureza. Mas antes de tomar partido, desejo ouvir o que me tens a dizer.” Dito isto, baixou o rosto, chorando tão fortemente como uma criança muito castigada.
"Guismonda, quando ouviu o pai e soube que não apenas o seu segredo estava descoberto mas, ainda, que Guiscardo tinha sido preso, sentiu uma dor incomparável e esteve várias vezes prestes a manifestá-la com gritos e com lágrimas, como faz a maior parte das mulheres. Mas a sua alma altiva venceu tal humilhação, escondeu o rosto com maravilhosa força e decidiu, em vez de lhe dirigir qualquer súplica, não continuar mais viva, sabendo já que o seu Guiscardo seria morto. Assim, não foi como mulher dolorosa ou arrependida do seu pecado, mas como despreocupada e valorosa, com os olhos enxutos e abertos e sem mostrar qualquer perturbação, que falou ao pai: “Tancredo, não estou disposta a negar ou a suplicar, pois nem a primeira coisa me valeria, nem a segunda quero que me valha. Além disso, com nenhum gesto quero conquistar a benevolência da tua mansidão e do teu amor. Confessando a verdade, pretendo primeiramente com válidas razões defender a minha honra e, depois, seguir firmemente com os actos a grandeza da minha alma. É verdade que amei e amo Guiscardo. Enquanto eu viver, que será bem pouco, amá-lo-ei e, se depois da morte ainda se amar, não deixarei de amá-lo. A isto, porém, conduziu-me não tanto a minha feminina fragilidade, mas a tua pouca preocupação de me casares e as qualidades dele. Sendo tu de carne, Tancredo, devia ser bem claro para ti que geraste uma filha de carne e não de pedra ou de ferro. Devias e deves recordar-te, apesar de já seres velho agora, de como e quais e com quanta força se mostram as leis da juventude. Tu, homem que durante os teus melhores anos praticaste o exercício das armas, não deverias conhecer menos o que podem os ócios e as ternuras, tanto nos velhos como nos jovens. Porque fui gerada por ti, sou portanto de carne e vivi tão pouco que ainda me encontro jovem. Por uma e outra razão encho-me de desejo carnal e, por já ter sido casada, extraordinárias forças já me fizeram experimentar o prazer que é dar satisfação a tal desejo. Incapaz de resistir a essas forças, decidi-me a procurar aquilo a que elas me impeliam e a apaixonar-me enquanto jovem e mulher. É certo que me opus com todas as minhas forças, enquanto me era possível actuar assim, a fazer alguma coisa que nos desonrasse, a ti e a mim, no que me atirava para o pecado natural. O compadecido amor e a benigna fortuna descobriram-me e mostraram-me um caminho bem secreto para alcançar os meus desejos sem que ninguém o soubesse. Não importa quem te indicou ou como soubeste deste segredo: não o nego.
Não tirei à sorte Guiscardo, como fazem muitas, mas escolhi-o de preferência a qualquer outro com deliberada convicção, tal como lhe dei a minha intimidade com esclarecido pensamento e com sensata perseverança, minha e dele; durante longo tempo dei prazer ao meu desejo. Parece-me que, para lá do meu pecado de amor, me repreendes com maior amargura porque segues mais a opinião vulgar do que a verdade ao dizeres que me deitei com um homem de baixa condição, como se não te incomodasses se eu tivesse escolhido um da nobreza. Não vês que censuras não o meu pecado, mas o da fortuna, que muitas vezes exalta os indignos, deixando em baixo os digníssimos. Mas deixemos agora isto e reflecte um pouco na origem das coisas: verás que todos recebemos a carne duma única massa e que todas as almas foram criadas por um mesmo criador com iguais forças, com iguais poderes, com iguais virtudes. Foi a virtude que primeiro nos distinguiu uns dos outros, nós que nascemos sempre todos iguais. Eram aqueles que possuíam e empregavam maior porção de virtude que recebiam o nome de nobres e o resto continuava não nobre. E apesar de posteriormente esta lei ter sido ocultada por usos contrários, ela ainda não foi nem abolida nem destruída pela natureza ou pelos bons costumes. Por isso, aquele que age virtuosamente revela-se sem dúvida nobre e, se alguém lhe chamar de outro modo, comete erro não quem é chamado, mas quem assim o chama. Olha para todos os teus fidalgos e examina-lhes a vida, os costumes, as maneiras. Olha, por outro lado, para Guiscardo: se quiseres julgar sem má vontade, dirás que ele é nobilíssimo e chamarás vilãos a todos esses teus nobres. Acreditei nas virtudes e no valor de Guiscardo não pelo juízo de qualquer outra pessoa, mas pelas tuas palavras e pelos meus olhos. Quem alguma vez o elogiou tanto quanto o elogiavas naqueles feitos pelos quais um homem valoroso merece elogio? E não erraste, sem dúvida: se os olhos não me enganaram, nunca vi nenhum louvor dado por ti que não lhe coubesse, e mais admiravelmente do que as tuas palavras conseguiam exprimir. Aliás, mesmo que eu tivesse recebido algum engano, por ti fui enganada. Dizes, então, que eu me deitei com um homem de baixa condição? Não dizes a verdade! Se por acaso lhe chamasses pobre, poderia aceitar-se, mas para tua vergonha, porque foste capaz de manter em tal situação um homem de valor ao teu serviço. A pobreza, porém, a ninguém tira a nobreza, mas só os haveres. Já houve muitos reis e muitos grandes príncipes que eram pobres, como foram e continuam a ser riquíssimos muitos dos que cavam a terra e guardam as ovelhas.
“A última dúvida que apresentaste, podes afastá-la: se no fim da tua velhice estás a fazer o que não cometeste em jovem, usar de crueldade, emprega então em mim essa crueldade. Não estou disposta a fazer-te qualquer súplica, porque fui a primeira causa deste pecado, se pecado é. Por isso te garanto que, se não me fizeres o mesmo que fizeste ou irás fazer a Guiscardo, hão-de fazê-lo as minhas próprias mãos. Vai agora juntar-te às mulheres e derramar as tuas lágrimas e, encarniçado, mata-nos a ele e a mim de um mesmo golpe, se tal é o que julgas merecermos.”
“Viu o príncipe a grandeza de alma da filha, mas nem assim mesmo acreditou que ela estivesse tão fortemente decidida a fazer o que anunciavam as suas palavras. Deixou-a, então, afastando qualquer propósito de crueldade na pessoa dela. Pensou em arrefecer-lhe o ardente amor com outro castigo e ordenou aos dois homens que guardavam Guiscardo que, na noite seguinte, o estrangulassem sem fazer qualquer ruído, lhe arrancassem o coração e lho trouxessem. Os homens fizeram tal como o príncipe ordenara e, no dia seguinte, ele mandou vir uma grande e bela taça de ouro, pôs lá dentro o coração de Guiscardo e enviou-a à filha por um criado de muita confiança, ordenando a este que lhe dissesse ao entregar-lha: “O teu pai manda-te isto para te consolar da coisa que mais amas, como tu o consolaste daquilo que ele mais amava.”
“Guismonda, sem se demover da sua cruel decisão, logo que o pai a deixara mandou que lhe trouxessem ervas e raízes venenosas, destilou-as e dissolveu-as em água para a ter preparada se viesse a acontecer o que receava. Quando o criado veio com o presente e as palavras do príncipe, com rosto firme pegou na taça, destapou-a e, mal viu o coração e escutou as palavras, logo teve a certeza absoluta de que era o coração de Guiscardo. Ergueu, pois, a face para o criado e disse: “Não podia haver mais digna sepultura do que esta de ouro para um coração tão valioso. Nisto o pai agiu com inteligência.” Depois aproximou a taça da boca, beijou o coração e disse: “Em tudo, e até a este extremo da vida, sempre encontrei o amor do meu pai cheio de ternura comigo, mas agora mais do que nunca. Por isso lhe irei mandar os últimos agradecimentos que lhe devo prestar por tão grande presente.” Dito isto, voltou-se para a taça, que estreitava contra o peito, e exclamou olhando o coração: “Ai!, dulcíssimo abrigo de todos os meus prazeres, maldita seja a crueldade daquele que agora me faz ver-te com os olhos da cara! Bastava-me que os olhos da alma te vissem a toda a hora. Acabaste o teu caminho e dele e a fortuna concedeu-te deixá-lo, atingindo aquele fim para que todos caminham. Deixaste as misérias e as fadigas do mundo e recebeste do teu próprio inimigo esta sepultura que o teu valor merecia. Nada mais te faltava para concluir as exéquias senão as lágrimas daquela que em vida tanto amaste. Para que as obtivesses, pôs Deus na mente do meu desapiedado pai que te mandasse até mim. Irei dar-tas, ainda que eu tivesse resolvido morrer de olhos enxutos e de rosto sem sinais de medo. Depois de te dar as minhas lágrimas, sem demora nenhuma levarei a minha alma a unir-se àquela tão amada que já guardaste dentro de ti. Com que outra companhia senão a dela poderia eu ir mais feliz ou mais segura para os lugares desconhecidos? Tenho a certeza de que ela ainda está pairando por aqui perto, vê os lugares dos nossos amores e, amorosa de mim, espera a minha alma, que acima de tudo a ama.” Dito isto, foi como se tivesse uma nascente de água na sua cabeça. Sem soltar nenhum dos gritos das mulheres, inclinada sobre a taça, começou a derramar tantas lágrimas e a beijar infinitas vezes aquele coração morto que foi extraordinária coisa de olhar. À sua volta, as aias ignoravam qual fosse aquele coração ou o que significavam aquelas palavras, mas todas elas choravam, vencidas pela compaixão. Em vão lhe perguntavam carinhosamente a razão das suas lágrimas e esforçavam-se sobretudo o melhor que sabiam e podiam por consolá-la.
“Depois de ter chorado quanto lhe pareceu, ergueu a face, enxugou os olhos e disse: “Ó muito amado coração, cumpri todos os meus deveres contigo e não me resta outra coisa senão ir com a minha alma fazer companhia à tua.” Em seguida, mandou que lhe dessem a cantarinha onde estava a água que anteriormente preparara. Vazou-a na taça onde estava o coração banhado pelas suas muitas lágrimas e, sem nenhum medo, levou-a à boca e bebeu-a toda. Depois de a ter bebido, com a taça na mão, subiu para o seu leito, compôs aí o corpo o mais decorosamente possível, encostou ao seu coração o do amante morto e, sem dizer nenhuma palavra, esperou a morte.
“As damas, vendo e ouvindo o que se passava e como não sabiam que água fora a que ela tinha bebido, mandaram dizer tudo a Tancredo. Este, receando o que veio a acontecer, desceu rapidamente ao quarto da filha, lá chegando no momento em que ela se estendia no leito. Tardiamente pôs-se a consolá-la com doces palavras e, ao ver a situação em que estava, começou a chorar dolorosamente. Disse-lhe a dama: “Tancredo, guarda essas lágrimas para uma desventura menos desejada do que esta, nem as chores por mim, que as não desejo. Já se viu mais alguém senão tu a chorar por causa daquilo que desejou? Mas se ainda vive em ti um resto do amor que me tiveste, concede-me como último dom, já que não foi do teu agrado que eu vivesse com Guiscardo em silêncio e em segredo, que o meu corpo fique exposto junto do seu onde quer que o tenhas lançado morto.” A angústia do choro não deixou o príncipe responder. Então a jovem, sentindo chegar-se o seu fim, estreitou contra o peito o coração morto e disse: “Ficai com Deus, que eu vou-me embora!” Velaram-se os seus olhos, perdeu todos os sentidos e abalou desta vida dolorosa.
“Como ouvistes, foi este o doloroso fim do amor de Guiscardo e de Guismonda. Tancredo, depois de muitas lágrimas e tardiamente arrependido da sua crueldade, com luto geral de todos os habitantes de Salerno, mandou-os sepultar a ambos com todas as honras num mesmo sepulcro.”
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Frei Alberto convence uma dama de que o anjo Gabriel está apaixonado por ela e deita-se com a dama por várias vezes na figura daquele. Depois, com medo aos parentes dela, atira-se da casa e refugia-se em casa dum pobre homem, que, no dia seguinte, o leva à praça sob a forma de um homem da selva. Ali é reconhecido e acaba por ser encarcerado pelos seus confrades. (Nota 8) Novela tragicómica. Interessa mais a cómica relação amorosa com uma mulher pateta do que o mau fim do protagonista, um frade libertino, rico de fantasia e hábil em aproveitar-se da credulidade nas coisas celestes em favor dos seus prazeres terrestres, e tanto como aquele abade que mandou Ferondo para o Purgatório (III, VIII). (Fim da nota)
A novela contada por Fiammetta fizera várias vezes subirem as lágrimas aos olhos das companheiras. Mas, concluída a novela, o rei disse, com a face rígida: “Pouco me custaria dar a minha vida a troco de metade do prazer que Guiscardo recebeu de Guismonda. Nem se deve maravilhar nenhuma de vós por isso, pois acontece que em cada hora da minha vida sofro mil mortes e nunca me foi dado um só pedacinho de amor. Mas, deixando estar agora os meus factos nos termos em que estão, quero que Pampínea prossiga, falando de cruéis acontecimentos, em parte semelhantes aos meus. Se ela continuar como Fiammetta começou, com certeza principiarei a sentir tombar sobre o meu fogo algum orvalho.”
Pampínea, ouvindo a ordem que lhe era dirigida, conheceu o estado de espírito das companheiras mais pelo seu próprio sentimento do que pelas palavras do rei. Por isso, mais convencida em diverti-las um pouco do que em satisfazer apenas a ordem do rei, resolveu contar uma novela que, sem fugir ao tema proposto, fizesse rir. E começou:
“Usa dizer o povo o seguinte provérbio: “O ruim por bom tomado faz o mal e não é culpado.” Fornece-me ele uma ampla matéria para falar segundo o que me foi proposto e ainda para mostrar a grande hipocrisia dos religiosos. Vestem largas e compridas capas, mostram caras artificiosamente lívidas, pedem o alheio com vozes humildes e mansas e com vozes altíssimas e ásperas criticam aos outros os seus mesmos vícios, querendo demonstrar que a salvação lhes vem a eles de receberem ofertas e aos outros de lhas darem. Além disso, não como pessoas que tenham de andar em busca do paraíso como nós, mas como se fossem seus possuidores e donos, atribuem a cada um que morre um lugar mais ou menos excelente conforme a quantidade de dinheiro que lhes é deixada. Esforçam-se por se enganarem primeiramente a si próprios, se é que em tais coisas acreditam, e depois àqueles que fazem fé nas suas palavras. Se me fosse permitido apresentar provas de tudo isto, não tardaria a esclarecer muitos simples sobre o que eles trazem escondido debaixo das suas larguíssimas capas. Mas talvez agradasse a Deus que lhes acontecesse a todos, por causa das suas mentiras, o mesmo que a um frade menor, já nada jovem, mas até considerado em Veneza como um dos maiores que Assis possuía. Aliás, agrada-me muitíssimo contar a história dele para que as vossas almas, cheias de compaixão pela morte de Guismonda, sejam talvez um pouco aliviadas com risos e com agrado.
“Houve em Imola, virtuosas senhoras, um homem de vida depravada e corrupta, chamado Berto delia Massa. Os seus ultrajes feitos, muito conhecidos pelos habitantes de Imola, a tanto o conduziram que já não havia em Imola quem acreditasse nele, falasse mentira ou verdade. Ao aperceber-se de que os seus ardis já não eram ali aceites, desesperado, mudou-se para Veneza, cidade que recebe toda a imundície, (Nota 9) 9 Veneza não é olhada com bons olhos por Boccaccio (cf. VI, IV). (Fim da nota) e lá pensou em encontrar outra maneira de praticar a sua malvadez como ainda não fizera noutra parte. Como se o guiasse o remorso da consciência pelas malvadas acções cometidas no passado, mostrando-se colhido por uma extrema humildade e tornando-se devoto mais do que nenhum outro homem, fez-se frade menor e escolheu o nome de Frei Alberto de Imola. Com aquele hábito, começou a dar aparências de vida austera, a louvar muito a penitência e a abstinência e nunca comia carne nem bebia vinho quando o não encontrava que lhe agradasse.
“Não houve ninguém que descobrisse que ele, de ladrão, de rufião, de falsário e de homicida, repentinamente se transformara num grande pregador, sem por causa disso abandonar os citados vícios quando às ocultas os podia praticar. Mais do que isto, fez-se padre e no altar, ao dizer missa, era sempre visto por muita gente a chorar a paixão do Salvador, como homem a quem eram fáceis as lágrimas quando queria. Em breve tempo, com as suas pregações e as suas lágrimas, soube de tal maneira captar os Venezianos que se tornou fiduciário e depositário de quase todos os testamentos, guardador do dinheiro de muitos, confessor e conselheiro da maior parte dos homens e das mulheres. Deste modo, de lobo tornara-se pastor e a sua fama de santidade por aqueles sítios era tão demasiada que nunca a tanto chegou S. Francisco em Assis.
“Ora aconteceu ir com as outras senhoras confessar-se a este santo frade uma dama palerma e estúpida que se chamava Dona Lisetta da ca’ Quirino. Era mulher dum importante mercador que tinha saído com as galés para a Flandres. Como veneziana que era, tratava-se duma pessoa fútil. Ajoelhada aos pés do frade, depois de lhe ter falado de alguns dos seus factos, Frei Alberto perguntou-lhe se ela tinha algum amante. A dama respondeu de mau modo: “Ora senhor frade! Não tem olhos na cara? Parecem-vos as minhas belezas iguais às daquelas? Amantes de mais podia eu ter se quisesse, mas as minhas belezas não são para o amor de qualquer um. Quantas encontrais vós cujas belezas sejam assim como as minhas, que até no paraíso seria bela?” E continuou a falar tanto da sua beldade que dava maçada ouvi-la. Frei Alberto percebeu imediatamente que ela cheirava a estupidez e, parecendo-lhe que era terra para cavar com o seu arado, logo ficou extremamente apaixonado por ela. Mas guardou para tempo mais oportuno as lisonjas e, a fim de se mostrar santo, começou daquela vez a repreendê-la e a dizer-lhe que aquilo era vaidade e outras coisas que ia inventando. A dama disse-lhe que ele era muito bruto e que não sabia distinguir uma beleza de outra. Então Frei Alberto, não querendo irritá-la demasiado, acabou a confissão e deixou-a ir-se embora com as outras.
“Passados alguns dias, juntamente com um companheiro de confiança, foi a casa de Dona Lisetta e, retirando-se com ela para uma sala onde não podia ser visto por outras pessoas, atirou-se de joelhos à frente dela e exclamou: “Senhora, rogo-vos por Deus que me perdoeis o que vos disse no domingo ao falar sobre a vossa beleza, porque fui duramente castigado na noite a seguir, tanto que tive de ficar de cama e só hoje me pude levantar.” Disse-lhe a dama pateta: “E quem vos castigou assim?” Respondeu Frei Alberto: “Dir-vo-lo-ei. Estando eu em oração durante a noite como sempre costumo estar, vi subitamente na minha cela um grande clarão. Antes de me voltar para ver do que se tratava, vi sobre mim um belíssimo jovem com um grosso cacete na mão. Agarrou-me pela capa, pôs-me de pé e deu-me tantas cacetadas que todo me quebrou. Perguntei-lhe depois por que me fizera aquilo e ele respondeu: "Porque hoje te atreveste a censurar as celestiais belezas de Dona Lisetta, à qual eu amo, excluindo Deus, acima de todas as coisas." Eu, então, perguntei-lhe: "Quem sois vós?" Respondeu-me que era o anjo Gabriel. "Ó meu senhor – disse eu –, rogo-vos que me perdoeis." Ele então prosseguiu: "Perdoo-te desde que aceites procurá-la logo que te seja possível e lhe peças que te perdoe. Se ela não te perdoar, voltarei cá e dar-te-ei tantas que te deixarei em mísero estado no tempo todo que viveres." O que ele disse depois não me atrevo a dizer-vos, se antes não me perdoardes.” A dama cabeça-de-vento, que tinha alguma falta de sal, deliciava-se toda ao ouvir aquelas palavras e acreditava nelas como absolutamente verdadeiras. Passado um pouco, disse: “Eu bem vos dizia, Frei Alberto, que as minhas belezas eram celestiais, mas com a ajuda de Deus tenho pena de vós e desde já, para não serdes mais castigado, perdoo-vos se realmente me disserdes o que o anjo vos disse depois.” Frei Alberto declarou: “Senhora, uma vez que me perdoastes, de boa vontade o direi. Mas recordo-vos uma coisa: seja o que for que eu vos conte, tereis o cuidado de nada dizer a ninguém do mundo se não quiserdes estragar a vossa vida, vós que sois a mais ditosa dama que hoje existe no mundo. O anjo Gabriel disse-me para eu vos dizer que lhe agradais tanto que teria vindo muitas vezes passar a noite convosco se não fosse poder assustar-vos. Ora ele manda-vos dizer por meu intermédio que vos quer visitar uma noite e demorar-se um pouco convosco. Mas como ele é anjo e se vier em forma de anjo não o podereis tocar, diz que por amor de vós quer vir na forma de homem. Por isso pede que lhe mandeis dizer quando quereis que ele venha e na forma de quem, que ele assim há-de vir. Bem vos podeis considerar ditosa, mais do que qualquer outra mulher que viva.” A dama simplória respondeu que muito lhe agradava saber que o anjo Gabriel a amava, pois também ela o amava muito e acendia sempre uma vela de um matapão (Nota 10) Moeda veneziana do valor de um soldo. (Fim da nota) onde quer que o visse pintado. Quando ele quisesse vir, seria bem-vindo e encontrá-la-ia completamente só no quarto, mas com o pacto de que a não trocaria pela Virgem Maria, pois lhe tinham dito que ele a amava muito, o que lhe parecia ser verdade, dado que, sempre que o via, estava de joelhos junto dela. Fora isto, ele podia vir na forma que quisesse, desde que lhe não viesse meter medo. Declarou frei Alberto: “Senhora, falais sensatamente e irei combinar com ele como vós dizeis. Mas podeis conceder-me um grande favor, que não vos custará nada. O favor é o seguinte: deixai-o vir com o meu corpo. E ouvi em que me fazeis o favor: é que o anjo tirará a minha alma do corpo e pô-la-á no paraíso, entrando ele em mim; e, enquanto ele estiver convosco, a minha alma estará no paraíso.” Respondeu a pacóvia dama: “Muito me agrada; desejo que, em paga das cacetadas que ele vos deu por minha causa, tenhais essa consolação.” Prosseguiu Frei Alberto: “Fareis então com que, esta noite, ele encontre aberta a porta da vossa casa para ele entrar; vindo em corpo humano como há-de vir, não poderia entrar senão pela porta.” A dama respondeu que assim faria. Frei Alberto foi-se embora e ela ficou a dar tantos saltos de alegria que a camisa nem lhe tocava o cu, parecendo-lhe faltarem mil anos até que o anjo Gabriel viesse ter com ela.
“Frei Alberto, pensando que naquela noite teria que fazer de cavaleiro e não de anjo, começou a revigorar-se com bolos e outras coisas para que não tombasse facilmente do cavalo. Obtida a permissão, quando a noite chegou, dirigiu-se com um companheiro a casa de uma amiga sua onde, de outras vezes, fizera o ponto de partida quando ia correr atrás das jumentas. Quando achou ser tempo, dirigiu-se disfarçado para casa da dama e, depois de entrar, mascarou-se de anjo com os arneses que trouxera. Depois subiu e entrou no quarto da dama. Ao ver aquela figura branca, ela caiu de joelhos em frente. O anjo abençoou-a, ergueu-a de pé e fez-lhe sinal de ir para a cama. Fê-lo ela bem depressa, desejosa de obedecer, e o anjo deitou-se depois com a sua devota. Frei Alberto era um homem de bela figura e robusto e iam-lhe muito bem as pernas com a pessoa. Assim, achando-se com Dona Lisetta, que era fresca e delicada, e fazendo-lhe carícias diferentes das do marido, muitas vezes durante a noite voou sem asas, declarando-se ela muito feliz. Além disso, falou-lhe de muitas coisas da glória celeste. Depois, como se aproximasse o dia, preparou-se para o regresso, foi-se embora com os seus arneses e voltou para junto do companheiro, ao qual, para que não tivesse medo de dormir sozinho, a boa dona da casa fizera amorosa companhia.
“Depois de jantar, a dama fez-se acompanhar para ir visitar Frei Alberto. Deu-lhe notícias do anjo Gabriel, do que lhe ouvira sobre a glória da vida eterna e de como ele fizera, acrescentando ainda mais espantosas fantasias. Declarou-lhe Frei Alberto: “Senhora, não sei como estivestes com ele; apenas sei que, esta noite, o anjo veio ter comigo, eu dei-lhe o vosso recado e ele subitamente levou a minha alma para o meio de tantas rosas e de outras flores como por cá nunca se viu e demorei-me num dos lugares mais aprazíveis que jamais existiu, até esta manhã de madrugada. O que se passou com o meu corpo não sei.” “Eu digo-vos! – exclamou a dama. – O vosso corpo esteve toda a noite nos meus braços com o anjo Gabriel. Se não acreditais em mim, pois reparai debaixo do vosso mamilo esquerdo onde eu dei um beijo tão grande ao anjo que o sinal vos há-de permanecer durante vários dias.” Disse-lhe Frei Alberto: “Então farei hoje uma coisa que já não faço há muito tempo: vou despir-me para ver se falais verdade.” Depois de muito papaguear, a dama voltou para casa, onde, sob a figura de anjo, recebeu depois muitas vezes a Frei Alberto sem nenhum impedimento.
“Até que um dia aconteceu estar Dona Lisetta com uma sua comadre discutindo ambas de belezas. Lisetta, para colocar a sua à frente das outras, e como mulher de pouco sal na cabeça, declarou: “Se soubésseis a quem agrada a minha beleza, realmente não falaríeis assim das outras”. A comadre, desejosa de ouvir por conhecê-la muito bem, disse: “Senhora, pode ser que faleis verdade; todavia, não se pode mudar de opinião tão facilmente, não sabendo de quem se trata.” Então a dama, que pouca inteligência possuía, respondeu: “Comadre, isto não se devia contar, mas o meu entendimento é com o anjo Gabriel, que me ama mais do que a ele mesmo e diz-me que sou a mulher mais bonita que há no mundo e arredores.” A comadre sentiu vontade de rir, mas conteve-se para a deixar falar mais e disse: “À fé de Deus, senhora, se o anjo Gabriel é vosso entendimento e vos diz isso, com certeza que é assim. Mas eu não pensava que os anjos fizessem tais coisas.” “Comadre – retorquiu a dama –, pelas chagas de Cristo, estais enganada! Faz melhor que o meu marido e diz-me que isso também se faz lá em cima. Mas como eu lhe pareço mais bela do que todas as que estão no Céu, apaixonou-se de mim e vem encontrar-se comigo muitas vezes. Estais a ver agora?”
"Depois de deixar Dona Lisetta, pareceu à comadre que, mil anos que vivesse e onde quer que se encontrasse, havia de rir-se daquelas coisas. E, reunida numa festa com um grande agrupamento de mulheres, contou-lhes a história em pormenor. Aquelas mulheres contaram a história aos maridos e a outras mulheres, estas contaram a outras, e assim, em menos de dois dias, toda a Veneza a conhecia. Entre aqueles a cujos ouvidos a história chegou estavam os cunhados dela, que, sem dizerem nada, tomaram a decisão de descobrir o tal anjo e de ver se ele sabia voar, pondo-se durante várias noites à espreita. Sucedeu ter chegado aos ouvidos de Frei Alberto alguns ecos do facto. Assim, tendo ido uma noite repreender a dama, mal se tinha despido, logo os cunhados dela, que o tinham visto chegar, correram à porta do quarto para a abrir. Quando os ouviu, e pensando o que se tratava, Frei Alberto levantou-se e, por não encontrar outro refúgio, abriu uma janela que dava para o Grande Canal e dali atirou-se à água. A água era bastante funda e ele sabia nadar bem, de modo que não lhe aconteceu mal nenhum. Nadou até à outra margem do canal e imediatamente entrou numa casa que estava aberta, pedindo a um homem que lá estava dentro que lhe salvasse a vida, contando as suas mentiras a propósito do facto de estar nu. O bom homem, levado pelo dó e porque precisava de ir à vida, deitou-o na sua cama e disse-lhe para ficar ali até ao seu regresso. Fechou-o lá dentro e foi tratar dos seus negócios.
Entretanto, os cunhados da dama tinham penetrado no quarto e descobriram que o anjo Gabriel, embora tivesse deixado ali as asas, levantara voo. Sentindo-se vexados, chamaram grossos nomes à cunhada e acabaram por deixá-la desconsolada, regressando a casa com os arneses do anjo. Entrementes, o dia clareara e, encontrando-se o bom homem no Rialto, ouviu ele contar como é que o anjo Gabriel fora deitar-se com Dona Lisetta e, descoberto pelos cunhados, se atirara por medo ao canal, não se sabendo o que lhe tinha acontecido. Logo o bom homem concluiu que devia tratar-se do tal que estava na sua casa. Voltou para lá, identificou-o depois de muitas histórias e combinou com ele que, se não queria que o entregasse aos cunhados da dama, lhe mandasse vir 50 ducados. Assim ele fez. Como depois Frei Alberto desejasse sair daquela situação, o bom homem disse-lhe: “Não vejo outro modo a não ser que aceiteis o seguinte. Fazemos hoje uma festa à qual cada um leva um homem ou mascarado de urso ou de selvagem, ou desta figura ou daquela. Chegando à Praça de S. Marcos, faz-se uma caça, com a qual a festa termina. Depois cada um vai-se embora para onde quiser com o homem que trazia. Se quiserdes mascarar-vos de alguma dessas maneiras antes que descubram que estais aqui, poderei levar-vos para onde quiserdes. De outra maneira, não vejo como possais sair daqui sem vos reconhecerem. Os cunhados da dama, convencidos de que vós parais aqui por estes sítios, mandaram pôr sentinelas em todo o lado para vos agarrarem.” Apesar de custar muito a Frei Alberto ir daquela maneira, deixou-se convencer pelo medo que tinha dos parentes da dama e disse ao bom homem aonde queria ser conduzido e que pouco lhe importava o disfarce para ser levado. O homem untou-o de mel, cobriu-o de penas bizarras, pôs-lhe uma corrente ao pescoço e uma máscara na cabeça. Colocou-lhe numa das mãos um grande cajado e na outra dois grandes cães que trouxera do matadouro e mandou alguém à frente a apregoar que, se quisessem ver o anjo Gabriel, fossem à Praça de S. Marcos. Foi esta a lealdade veneziana. A seguir, passado algum tempo, levou-o para a rua e fê-lo caminhar à sua frente, indo ele atrás a segurar-lhe a corrente, com grande rumor de muito povo, que perguntava: “Quem será? Quem será?” Deste modo o conduziu até à Praça, onde se juntou com a multidão infindável, entre os que tinham vindo atrás e os que, por terem ouvido o pregão, afluíram do Rialto. Quando o homem lá chegou, atou o seu selvagem a uma coluna num lugar proeminente e elevado, fingindo estar à espera da caça. As moscas e moscardos começaram a causar muitíssimo incómodo ao frade, todo ele untado de mel. Mas quando o homem viu a Praça bem cheia, fingiu querer soltar o seu selvagem e arrancou a máscara a Frei Alberto, exclamando: “Senhores, uma vez que o porco não vem à caçada e esta não se faz, e para que não tenhais vindo em vão, quero que vejais o anjo Gabriel que desce do Céu à Terra durante a noite para consolar as damas de Veneza.” Mal a máscara foi tirada, logo toda a gente reconheceu Frei Alberto. Todos se puseram num grande alarido, chamando-lhe os mais injuriosos nomes e as piores coisas que jamais se disseram a um biltre. Ao mesmo tempo, atiravam-lhe para cima diversas imundícies. Assim o mantiveram muitíssimo tempo, até que, por acaso, a notícia chegou ao conhecimento dos outros frades. Acorreu ali um grupo de seis, meteram-lhe uma capa sobre as costas e levaram-no para o convento, onde o encarceraram. Pensa-se que tenha morrido depois de ter passado uma vida miserável.
“Assim, aquele que era tido por bom, e por isso não lhe era imputado o mal que fazia, atreveu-se a fazer de anjo Gabriel. Acabou por ser transformado num homem da selva e, depois de insultado como merecia, durante longo tempo chorou sem resultado os pecados cometidos. Queira Deus que o mesmo venha a acontecer a todos os outros como ele.”
Três jovens amam três irmãs e fogem com elas para Creta. A mais velha mata o seu amante por ciúmes. A segunda, entregando-se ao duque de Creta, salva da morte a irmã, mas é morta pelo seu amante, que foge com a primeira. São acusados de assassínio o terceiro amante e a terceira irmã, que, depois de presos, se confessam culpados. Com medo de serem mortos, corrompem os guardas com dinheiro e fogem pobres para Rodes e aí morrem na miséria. (Nota 11) Novela truculenta e complicada, um tanto superficial, provavelmente derivada dum conto greco-bizantino. (Fim da nota)
Escutando o final da novela de Pampínea, Filóstrato quedou-se algum tempo a pensar e depois disse-lhe: “Só no fim da vossa novela houve um momento bom que me agradou. Mas antes fez rir demasiado e gostaria que assim não tivesse sido.” Depois dirigiu-se a Lauretta: “Senhora, continuai com uma novela melhor, se for possível.” Lauretta disse-lhe, rindo-se: “Estais a ser demasiado cruel contra os amantes se lhes desejais que tenham um mau fim. Para vos obedecer, irei contar a história de três a quem as coisas correram igualmente mal, pouco tendo gozado do seu amor.” E assim principiou:
“Jovens damas, como claramente podeis observar, qualquer vício pode tornar-se em gravíssimo dano de quem o pratica e até muitas vezes de outras pessoas. Entre os que mais desenfreadamente nos conduzem a perigos, parece-me que o maior é a ira. A ira não é outra coisa senão um movimento súbito e inconsiderado, provocado por uma tristeza que nos atinge, o qual, expulsando toda a razão e cobrindo de trevas os olhos da mente, acende na nossa alma um ardentíssimo furor. Apesar de isto se passar frequentemente com os homens, e mais nuns do que noutros, todavia já está visto que nas mulheres acontece com mais prejuízo, pois se ateia mais facilmente nelas, arde como chama mais viva e move-as com menor resistência. Nem é de espantar: se quisermos reparar, veremos que por natureza o seu fogo se apega mais facilmente às coisas leves e delicadas do que às duras e mais pesadas; ora nós somos, não o levem os homens a mal, mais delicadas do que eles e muito mais volúveis. Sabemos, portanto, como naturalmente somos inclinadas para a ira, vemos depois como a nossa mansidão e benevolência dão grande prazer aos homens com quem convivemos, assim como a nossa ira e furor causam prejuízos e perigos. Por isso, a fim de sabermos resistir com mais força à mesma ira, desejo mostrar-vos com a minha novela como o amor de três mancebos e de outras tantas donzelas, por causa da ira de uma, como eu disse atrás, de feliz que era se tornou infelicíssimo.
“Como sabeis, Marselha fica situada na Provença, junto ao mar, e é uma cidade nobre e antiquíssima, tendo sido outrora mais abundante de gente rica e de grandes mercadores do que actualmente. Entre estes houve um chamado N’Arnaldo Civada, homem de nascimento muito humilde, mas leal mercador e de nobre palavra. A mulher dera-lhe vários filhos, dos quais três eram raparigas, mais velhas do que os restantes, todos eles rapazes. Duas eram gémeas e andavam nos quinze anos; a terceira tinha catorze. A família só esperava para as casar o regresso de N’Arnaldo, que fora mercadejar para Espanha. Os nomes das duas primeiras eram Ninetta e Madalena; a terceira chamava-se Bertella. Um moço fidalgo chamado Restagnone, apesar de pobre, apaixonara-se profundamente de Ninetta e esta sentia do mesmo modo. Conseguiram eles a forma de saborearem o seu amor sem que ninguém do mundo soubesse. Já o saboreavam há algum tempo quando sucedeu que dois jovens amigos, um chamado Folco e o outro Ughetto, a quem os pais tinham morrido, ficando eles riquíssimos, se apaixonaram um de Madalena e o outro de Bertella. Quando Restagnone o descobriu por confidência de Ninetta, achou que podia compensar a sua pobreza graças àqueles amores. Estabeleceu amizade com os dois e, ora com um, ora com outro, ou mesmo com ambos, acompanhava-os a verem as suas damas. Quando lhe pareceu que era bastante íntimo e amigo dos fidalgos, chamou-os um dia a sua casa e disse-lhes: “Caríssimos jovens, o nosso convívio ter-vos-á dado a certeza da grande amizade que vos tenho e sabeis que eu farei por vós o mesmo que faria por mim próprio. E como vos estimo muito, quero falar-vos do que trago no pensamento e vós depois vereis juntamente comigo a decisão que vos parecer melhor de tomar. Se as vossas palavras não mentem, e ainda pelo que me parece ter compreendido nos vossos actos dia e noite, ardeis de intenso amor pelas vossas duas amadas, como eu pela irmã delas. Se estiverdes de acordo, o coração inspira-me como encontrar um dulcíssimo e agradável remédio para esse ardor. É o seguinte: vós sois jovens riquíssimos, coisa que eu não sou. Se quiserdes juntar as vossas riquezas e fazer-me seu terceiro possuidor juntamente convosco e deliberar para que parte do mundo irmos viver com elas uma vida feliz, dá-me o coração a certeza absoluta de que convencerei as três irmãs a irem connosco para onde quisermos e com grande parte das riquezas do pai. Lá, depois, cada um com a sua, poderemos viver como se fôssemos três irmãos, felizes como nenhum outro homem do mundo. Cabe-vos agora decidir-vos se quereis aproveitar a ideia ou pô-la de lado.”
“Os dois jovens, que ardiam de fortíssima paixão, ao ouvir que obteriam as suas donzelas, não perderam muito tempo a decidir-se e disseram que andasse ele para a frente, pois eles estavam prontos a agir desse modo. Obtida a resposta dos jovens, Restagnone encontrou-se poucos dias depois com Ninetta, com a qual só à custa de muitos trabalhos conseguia ver-se. Depois de se ter demorado um pouco com ela, falou-lhe da conversa com os jovens e com muitos argumentos empenhou-se em que ela concordasse com a aventura. Mas foi-lhe pouco difícil, pois a donzela desejava muito mais do que ele poderem estar juntos sem temer suspeitas. Respondeu-lhe de bom grado que estava de acordo e que as irmãs fariam o que ela quisesse, sobretudo naquele caso; que, portanto, organizasse tudo o que fosse preciso, o mais depressa possível. Restagnone voltou a encontrar-se com os amigos, que muito o incitavam a fazer o que tinha dito, e informou-os de que, da parte das suas damas, tudo estava combinado. Resolveram entre eles ir para Creta, venderam algumas propriedades que possuíam a título de quererem ir negociar com o dinheiro, trocaram por moeda todos os restantes bens, compraram uma falua, em segredo aparelharam-na com todas as comodidades e esperaram a data marcada. Ninetta, por seu lado, conhecedora perfeita do desejo das irmãs, com palavras doces ateou-as tanto na vontade de fazerem aquela acção que elas chegavam a recear não viver o bastante até o conseguirem. Chegada a noite em que deviam embarcar na falua, as três irmãs abriram uma grande arca do pai, tiraram de lá uma enorme quantidade de dinheiro e de jóias, com isto abandonaram silenciosamente a casa e, segundo o plano estabelecido, foram ao encontro dos três amantes, que as esperavam. Sem demora embarcaram todos na falua, meteram os remos à água e partiram. Sem nunca se deterem, na noite seguinte chegaram a Génova, onde os jovens amantes começaram por saborear a alegria e o prazer do seu amor. Restabelecendo-se do que precisavam, voltaram a partir e, de porto em porto, antes de oito dias chegaram sem qualquer obstáculo a Creta. Ali compraram extensas e belas propriedades nos arredores de Cândia e nelas mandaram construir casas muito lindas e aprazíveis. E com muita criadagem, cães, falcões e cavalos, em banquetes, festas e divertimentos, começaram a viver com as suas mulheres como os mais felizes homens do mundo e à guisa de barões.
“Mas, como vemos acontecer todos os dias, por muito que as coisas agradem, a sua excessiva abundância acaba por enfadar. Assim, Restagnone, que tanto se apaixonara por Ninetta, agora que a podia ter à sua vontade sem qualquer oposição, começou a aborrecer-se com ela e a perder-lhe o amor. Encontrou numa festa uma jovem do país, mulher bonita e gentil, que lhe agradou em extremo. Começou a persegui-la a todo o momento e a fazer-lhe magníficas cortesias e festas. Ninetta apercebeu-se e deu em sentir uns tais ciúmes dele que não o deixava dar um passo sem ela saber, atormentando-se depois um ao outro com palavras e queixumes. Como, porém, a fartura das coisas gera o fastídio, assim a recusa das coisas desejadas multiplica o apetite e assim também os amuos de Ninetta aumentavam as chamas do novo amor de Restagnone. Com o andar do tempo, tivesse ou não Restagnone conseguido a amizade da mulher amada, Ninetta tomou como certo o facto. Caiu, pois, numa profunda tristeza, passando desta a uma grande ira, a qual acabou em raiva. O amor que tinha por Restagnone mudou-se em ódio atroz e, cega pela ira, resolveu vingar com a morte de Restagnone o opróbrio que julgava ter recebido. Com promessas e ofertas, conseguiu que uma velha grega, grande mestra no fabrico de venenos, lhe fizesse uma água mortífera e, sem mudar de opinião, estando Restagnone num fim de dia cheio de calor, deu-lhe aquela água a beber, a ele que não desconfiava de tal coisa. A força do veneno foi tal que o matou antes da madrugada. Ao saberem da sua morte, Folco, Ughetto e as esposas, ignorando que ele tinha morrido envenenado, choraram amargas lágrimas na companhia de Ninetta e mandaram-no sepultar com todas as honras.
"Passados porém poucos dias, aconteceu ter sido presa por qualquer outra obra danada a velha que tinha fornecido a Ninetta a água venenosa. Submetida à tortura, entre os outros crimes que fizera confessou também este, contando tudo o que se passara. O duque de Creta, sem nada deixar transparecer, cercou discretamente certa noite o palácio de Folco e, sem ruído nem oposição, levou presa Ninetta. Esta, sem qualquer tortura, imediatamente lhe disse o que ele queria ouvir sobre a morte de Restagnone. O duque informou secretamente Folco e Ughetto sobre o motivo da prisão de Ninetta e eles contaram-no às suas mulheres. Ficaram todos profundamente desgostosos e fizeram todos os esforços para salvarem Ninetta da fogueira, à qual sabiam que ela seria condenada por bem o ter merecido. Mas tudo parecia inútil, pois o duque mostrava-se firmemente resolvido a fazer justiça.
"Madalena, que era uma jovem formosa e que durante muito tempo fora seguida pelo duque sem nunca ter querido fazer o que ele desejava, imaginou poder salvar da fogueira a irmã se lhe fizesse a vontade. Enviou-lhe um discreto mensageiro a comunicar que estava disposta para o que ele ordenasse, sob duas condições: a primeira, que pudesse reaver a sua irmã salva e em liberdade; a segunda, que isto ficasse em segredo. O duque recebeu o recado e, satisfeito, pensou demoradamente se o devia fazer. Por fim decidiu-se e respondeu que estava pronto. De acordo com a dama, uma noite mandou deter Folco e Ughetto a pretexto de recolher deles informações sobre o crime e foi passar a noite com Madalena. Fingiu ter mandado meter Ninetta num saco para a lançar naquela mesma noite ao mar, mas levou-a consigo à irmã, entregando-lha como preço daquela noite. De manhã, ao despedir-se, rogou-lhe que aquela primeira noite do seu amor não fosse a última e, além disso, impôs-lhe que mandasse embora a culpada, para que não o censurassem e tivesse de pôr-se contra ela.
“Na manhã seguinte, Folco e Ughetto foram postos em liberdade depois de terem ouvido e acreditado que Ninetta fora lançada ao mar durante a noite. Tinham-se eles dirigido às suas casas a fim de consolarem as mulheres por causa da morte da irmã, quando Folco descobriu a presença desta, por muito que Madalena se tivesse esforçado em escondê-la. Folco ficou muito surpreendido, mas logo desconfiou, pois já ouvira falar de que o duque gostava de Madalena. Perguntou a esta como era possível estar Ninetta ali, urdindo Madalena uma longa história para tentar convencê-lo, mas ele, que era malicioso, pouco a acreditou e obrigou-a a dizer a verdade. Depois de muitas palavras, a dama disse-lhe. Folco, vencido pela dor e possuído pela fúria, puxou duma espada e, perante as inúteis súplicas de clemência, matou-a. Receando a cólera e a justiça do duque, deixou-a morta no quarto, dirigiu-se aonde estava Ninetta e disse-lhe com um rosto disfarçadamente alegre: “Anda depressa para onde a tua irmã mandou levar-te, para que não voltes a cair nas mãos do duque.” Ninetta acreditou e, desejosa de partir pelo medo que sentia, foi-se embora com Folco, era já noite, sem mesmo apresentar despedidas à irmã. Levaram o dinheiro que Folco pudera reunir (e era pouco), foram até à costa, subiram para um barco e nunca mais alguém soube aonde terão porventura chegado.
“Quando, no dia seguinte, Madalena foi encontrada morta, alguns indivíduos, por inveja e ódio a Ughetto, foram imediatamente dar parte ao duque. Este, que estava apaixonado por Madalena, correu a casa furioso, prendeu Ughetto e a mulher, eles que ainda não sabiam de nada, ou seja, da fuga de Folco e de Ninetta, e forçou-os a confessarem-se culpados juntamente com Folco pela morte de Madalena. Com boa razão temeram eles que aquela confissão lhes trouxesse a morte. Corromperam, então, com grande habilidade os guardas, dando-lhes uma certa quantia de dinheiro que guardavam escondido em casa para casos de necessidade, e, na companhia dos mesmos guardas, sem tempo de levarem alguma coisa com eles, subiram para um barco durante a noite e fugiram para Rodes, onde viveram na pobreza e na miséria, não durando muito tempo.
“Eis a quanta desgraça o louco amor de Restagnone e a ira de Ninetta os levaram, a eles e aos outros.”
Contra a palavra dada pelo rei Guilherme, seu avô, Gerbino ataca um navio do rei de Tunes para lhe raptar a filha. Ela é morta pela tripulação, Gerbino mata-os e, mais tarde, é decapitado. (Nota 12) Novela de tom cavalheiresco e heróico, cheia de beleza pela rapidez com que os acontecimentos se sobrepõem. Um amor em terra distante acaba tragicamente, depois de o protagonista ter visto ser morta perante os seus olhos a mulher amada, na hora da inútil vitória para a qual o seu heróico e eloquente ardor arrastou os companheiros. (Fim da nota)
Concluída a novela, Lauretta calou-se, enquanto no grupo uns se condoíam da desgraça dos amantes, outros censuravam a ira de Ninetta e outros ainda diziam isto ou aquilo. Foi quando o rei, como que arrancado a um profundo pensamento, levantou o olhar e fez sinal a Elisa para que ela prosseguisse. Humildemente, Elisa começou:
“Simpáticas damas, são muitos os que pensam que o amor só dispara as suas flechas quando ateado pelos olhos, rindo-se daqueles que defendem poder alguém enamorar-se pelo ouvir. Claramente vos mostrará como eles estão enganados uma novela que vos quero contar e na qual vereis não só como a fama pode suscitar o amor entre os que nunca se viram, mas até com a vista os conduziu a triste morte.
“Guilherme II, rei da Sicília, teve dois filhos, segundo afirmam os Sicilianos: (Nota 13) Historicamente os pormenores são inexactos. O rei normando Guilherme II, chamado o Bom e celebrado como príncipe justo pelo próprio Dante Par., XX, p. 62), reinou na Sicília de 1166 a 1189. Na realidade, ele não teve filhos e Rogério e Constança foram seus tios, filhos de Rogério II, seu avô. Além disso, apenas o rei de Tunes era tributário da Sicília e não toda a Barbaria, a qual compreendia toda a costa setentrional da África a oeste do Egipto. (Fim da nota) um rapaz chamado Ruggeri e uma filha chamada Constança. Ruggeri morreu antes do pai e deixou um filho chamado Gerbino, o qual foi criado pelo avô com todo o carinho, tornando-se num belíssimo jovem, famoso em proezas e cortesia. A sua fama não se ficou apenas dentro dos limites da Sicília, mas ecoou pôr várias partes do mundo, sendo bem clara na Barbaria, que nesses tempos era tributária do rei da Sicília.
“Entre aqueles a cujos ouvidos chegou a magnífica fama das qualidades e da cortesia de Gerbino, contava-se uma filha do rei de Tunes, a qual, segundo as declarações de todos os que a tinham visto, era uma das mais formosas criaturas jamais formadas pela natureza e a mais educada e de espírito nobre e magnânimo. Gostava ela de ouvir falar dos homens corajosos e assim foi recolhendo com muito interesse os feitos valorosos de Gerbino contados por uns e por outros. E tanto eles lhe agradavam que imaginava consigo mesma como é que seria a figura dele, acabando por ficar ardentemente apaixonada por ele e gostando de falar, mais que de outros heróis, de Gerbino, bem como de ouvir os que dele falavam. Por outro lado, tal como a outras terras, chegara também à Sicília a enorme fama tanto da beleza como da virtude da donzela e não foi sem grande prazer ou em vão que aquela fama tocou os ouvidos de Gerbino. E não menos do que ela se inflamara de amor por ele, ardia Gerbino de amor pela princesa.
“Deste modo, devorado pelo desejo de vê-la, ao mesmo tempo que ia suplicando ao avô uma boa razão para que o autorizasse a ir a Tunes, impunha a todos os amigos que lá iam para, dentro do que lhes fosse possível e da melhor maneira que lhes parecesse, tornarem-na conhecedora do seu secreto e grande amor e lhe trouxessem notícias dela. Um dos amigos conseguiu fazer isso com muita sagacidade: foi mostrar-lhe jóias femininas, como fazem os mercadores, revelou-lhe toda a paixão de Gerbino e pôs às suas ordens a pessoa do príncipe e tudo o que lhe pertencia. A princesa recebeu com júbilo o embaixador e a embaixada, respondeu que também ela ardia no mesmo amor e mandou a Gerbino, como prova, uma das jóias que mais estimava. Gerbino recebeu-a com quanta alegria é possível receber a coisa mais querida e, pelo mesmo amigo, escreveu-lhe mais vezes, mandou-lhe valiosíssimas prendas e estabeleceu com ela certos acordos para se verem e tocarem se a fortuna os ajudasse.
“Estavam neste pé as coisas, avançando um pouco mais do que era conveniente, ardendo de uma parte a jovem e da outra parte Gerbino, quando aconteceu que o rei de Tunes a concedeu em casamento ao rei de Granada. Ela ficou profundamente aflita, pensando não só que uma grande distância iria separá-la do ser amado, mas que lhe seria tirada quase definitivamente. Se tivesse encontrado maneira para que tal coisa não pudesse acontecer, de boa vontade teria fugido ao pai e iria para junto de Gerbino. Igualmente Gerbino, quando ouviu falar do casamento, começou a viver numa dor sem fim, pensando no seu íntimo em descobrir maneira de a raptar quando, através do mar, ela fosse para o marido. O rei de Tunes teve um certo conhecimento daqueles amores e, receando os propósitos de Gerbino, a sua valentia e a sua força, quando chegou a altura de enviar a filha enviou ao rei Guilherme uma mensagem sobre o que pretendia fazer e pedindo-lhe a garantia de que não seria impedido de o fazer nem por Gerbino nem por outros. O rei Guilherme, que era um velho suserano e nunca soubera nada do namoro de Gerbino, não supôs que fosse por essa causa que lhe era pedida tal segurança e liberalmente a concedeu, enviando ao rei de Tunes como sinal uma das suas luvas. Depois de receber a garantia, o rei de Tunes mandou aprestar um enorme e elegante navio no porto de Cartago, fornecendo-o do que era preciso para quem tinha de embarcar, ornamentando-o e acomodando-o para nele enviar a filha até Granada, só esperando o tempo favorável. A donzela, que ia tomando conhecimento de tudo isto, mandou secretamente um seu criado a Palermo e ordenou-lhe que saudasse da sua parte o belo Gerbino e lhe dissesse que ela devia partir dentro de poucos dias para Granada. Devia, então, provar se era o homem valente de quem se falava e se a amava tanto como tantas vezes tinha declarado. O criado a quem a ordem foi dada cumpriu a ordem excelentemente e regressou a Tunes. Gerbino, quando ouviu o recado e soube que o rei Guilherme, seu avô, dera o salvo-conduto ao rei de Tunes, não sabia o que fazer. Mas impelido pelo amor e tendo compreendido as palavras da princesa, não quis dar mostras de cobardia, dirigiu-se a Messina e mandou armar duas velozes galés. Embarcou nelas homens aguerridos e foi com as galés para a Sardenha, achando que o navio da princesa devia passar por ali. A realidade não desmentiu a sua suposição e, passados poucos dias, o navio surgiu não longe do local onde ele estava à espera, impelido por um vento fraco. Quando o viu, Gerbino declarou aos companheiros: “Senhores, se fordes tão valorosos como vos considero, creio que não haja nenhum de vós que não tenha sentido ou não sinta o que é o amor, sem o qual, como julgo por mim mesmo, nenhum mortal pode ter em si qualquer bem ou virtude. Se já estivestes ou estais enamorados, será fácil compreenderdes o meu desejo. Amo e o amor levou-me a dar-vos a presente fadiga. Aquela que eu amo está no navio que vedes parado ali diante. Ora, juntamente com o objecto que eu mais desejo, o navio está cheio de enormes riquezas, que, se fordes valorosos, podereis conquistar lutando virilmente com pouco esforço. Desta vitória só quero que me caiba em quinhão uma mulher por cujo amor eu terço as armas. Desde já todas as outras coisas estão à vossa disposição. Avante, pois, e assaltemos o navio em boa hora. Deus favorece a nossa empresa e ali a tem retida sem lhe oferecer vento.” Não precisava o belo Gerbino de tantas palavras, pois os de Messina que o acompanhavam, ávidos de rapina, já estavam ansiosos de fazer aquilo a que Gerbino os incitava com as palavras. Com um grande alarido de aprovação no final do discurso, tocaram as trombetas, pegaram nas armas, meteram os remos à água e aproximaram-se do navio. Os tripulantes deste, vendo ao longe as galés, como não era possível fugir, prepararam-se para a defesa. Quando chegou perto do navio, o belo Gerbino ordenou que os seus comandantes viessem para as galés se não queriam a batalha. Os sarracenos, certificados de quem eram e do que pretendiam, responderam que o assalto ia contra a palavra dada pelo rei deles e, como prova, mostraram a luva do rei Guilherme, recusando-se absolutamente a render-se ou a entregar-lhes o que estava a bordo. Gerbino descobriu na popa do navio a dama e viu que ela era muitíssimo mais formosa de quanto ele imaginara. Mais apaixonado do que nunca, respondeu ao mostrarem-lhe a luva que ali não havia falcões para que fossem precisas luvas. (Nota 14) O sarcasmo de Gerbino fundamenta-se no facto de os falcoeiros usarem uma luva para protegerem a mão. (Fim da nota) Por isso, ou lhe entregavam a dama, ou se preparavam para a batalha. Sem mais demora, começaram ferozmente a disparar setas e a lançar pedras uns contra os outros, e desta forma combateram durante largo tempo com baixas de uma e de outra parte. Por fim, vendo Gerbino que pouco conseguia lançou à água um brulote que trouxera da Sardenha, pegou-lhe o fogo e encostou-o ao navio com ambas as galés. Quando os sarracenos viram tal coisa e perceberam que necessariamente ou se rendiam ou morriam, trouxeram para a coberta a filha do rei, que chorava no interior, e, colocando-a na proa do navio, chamaram Gerbino para, diante dos seus olhos, cortarem as veias à donzela, que lançava gritos de misericórdia. Atiraram-na depois ao mar e disseram: “Agarra, damos-ta como podemos e como mereceu a tua felicidade.” Ao ver aquela crueldade, Gerbino quase desejou a morte e, sem se preocupar com as flechas e as pedras, abordou o navio, trepou lá acima apesar da resistência dos tripulantes e, como um verdadeiro leão esfaimado que, no meio duma manada de vitelos, retalhando ora uns ora outros com os dentes e com as unhas, saciasse primeiro a raiva e só depois a fome, assim Gerbino de espada em riste cortava este e aquele, matando cruelmente muitos sarracenos. Como o fogo ia crescendo no navio em chamas, ordenou aos marinheiros que levassem o que fosse possível como sua paga e desceu do navio depois de conquistada sobre os adversários uma bem triste vitória. Mandou depois recolher o corpo da dama, chorou-o durante longo tempo e com abundantes lágrimas e, de regresso à Sicília, sepultou-a com todas as honras em Ustica, uma pequena ilha quase em frente de Trapani. Em seguida, voltou para casa como o mais sofredor dos homens.
“Quando recebeu a notícia, o rei de Tunes enviou ao rei Guilherme os seus embaixadores vestidos de preto, queixando-se da palavra que não fora cumprida e narrando o que tinha acontecido. O rei Guilherme ficou muito irritado e, não vendo saída para recusar justiça aos que a reclamavam, mandou prender Gerbino. Sem ceder aos rogos dos seus barões que o tencionavam demover, ele próprio o condenou e o mandou degolar na sua presença, preferindo ficar sem o neto a ser considerado um rei sem palavra.
“Foi assim que, tal como vos contei, em poucos dias os dois amantes tristemente faleceram de morte violenta sem terem saboreado nenhum fruto do seu amor.”
Os irmãos de Isabel matam-lhe o amante. Este aparece-lhe em sonhos e mostra-lhe onde está enterrado. Secretamente desenterra-lhe a cabeça e coloca-a dentro dum vaso de manjerico sobre o qual todos os dias ela chora durante uma longa hora. Os irmãos tiram-lhe o vaso e ela morre de dor pouco tempo depois. (Nota 15) História melancólica duma paixão que floresce num ambiente fechado e triste, que é cortada pelo crime e que acaba, depois de misteriosos presságios, com a doce e comovente loucura e a morte da protagonista. A belíssima novela, cujos pormenores mais macabros são delicadamente esbatidos à luz da poesia, nasceu de um canto popular e inspirou por sua vez um poema de John Keats: Isabelle or the Pot of basil (Isabel ou O Vaso de Manjerico). (Fim da nota)
Acabada a novela de Elisa e depois de alguns louvores dados pelo rei, foi ordenado a Filomena que falasse ela. Toda compadecida pelo infeliz Gerbino e a sua dama, depois dum piedoso suspiro, começou:
“A minha novela, graciosas damas, não será sobre pessoas de tão elevada condição como aquelas de que falou Elisa, mas não será menos comovente. Lembrei-me dela porque se passou em Messina, há pouco recordada.
"Viviam, de facto, em Messina três jovens irmãos mercadores, os quais tinham ficado riquíssimos depois da morte do pai, que era de San Gimignano. Tinham eles uma irmã chamada Isabel, donzela muito formosa e educada, que eles ainda não tinham casado, não se sabe por que motivo. Os três irmãos tinham ao serviço num dos seus armazéns um jovem de Pisa chamado Lourenço, que orientava e efectuava todos os negócios deles. Era um jovem de belíssima figura e muito gracioso. Isabel observou-o várias vezes e aconteceu que ele lhe começou a agradar singularmente. Lourenço apercebeu-se disto uma e outra vez e também ele, pondo de lado os outros namoros, começou a ter nela o pensamento. As coisas correram de tal modo que, gostando eles igualmente um do outro, passado não muito tempo e certos dos seus sentimentos, satisfizeram o desejo de cada um. Assim continuaram, passando juntos períodos de muito agrado e prazer, mas não o souberam fazer, e, uma noite em que Isabel se dirigia para o local onde Lourenço dormia, o mais velho dos irmãos descobriu-a sem que ela o avistasse. Como era um jovem prudente, embora tivesse ficado muito aborrecido pelo que soube, deixou-se guiar por uma opinião mais prudente e, sem se mover nem dizer nada, foi reflectindo várias coisas a propósito do facto até chegar a manhã seguinte. Depois, quando o dia chegou, foi contar aos irmãos o que tinha descoberto na noite anterior a respeito de Isabel e de Lourenço. Depois de ponderar demoradamente com os outros, para que não resultasse nenhuma infâmia nem para eles nem para a irmã, resolveu guardar em silêncio o assunto e fingir não ter visto nem sabido absolutamente nada, até surgir o momento em que, sem prejuízo nem inconveniência para eles, pudessem afastar da vida aquela vergonha antes que ela fosse mais por diante. Nesta disposição se mantiveram, brincando e rindo com Lourenço como de costume, até que simularam ter de sair da cidade para se divertirem os três, levaram com eles Lourenço e, chegados a um local muito solitário e afastado, viram o ensejo de matar Lourenço, que não desconfiava de nada e enterraram-no de forma a ninguém se dar conta. Regressados a Messina, fizeram constar que o tinham mandado a qualquer sítio para tratar de negócios, coisa em que facilmente as pessoas acreditavam, dado ser frequente eles enviarem-no pelas terras em volta.
“Como Lourenço nunca mais regressava, Isabel começou a perguntar por ele com muita frequência e solicitude, ela a quem muito pesava a longa demora. Um dia, quando insistia muito em perguntar, um dos irmãos respondeu-lhe: “Que quer isto dizer? Que tens tu com Lourenço para perguntares tantas vezes por ele? Se voltas a fazer mais perguntas, dar-te-emos a resposta que mereces.” Assim a donzela, sofrendo triste, receosa e ignorante do que se passava, deixou de fazer mais perguntas e, muitas vezes durante a noite, chamava por ele suplicante e rogava-lhe que voltasse; outras vezes, queixava-se da sua longa demora com abundantes lágrimas e, sem ter mais alegria, continuava sempre à espera. Uma noite em que ela muito chorava por Lourenço não voltar, acabou por adormecer chorando, e aconteceu, então, aparecer-lhe em sonhos Lourenço, pálido, desgrenhado, com a roupa toda rasgada e apodrecida. Pareceu-lhe que ele dizia: “Isabel, não paras de chamar por mim, entristeces-te com a minha longa demora e acusas-me cruelmente com as tuas lágrimas. Fica sabendo que não posso mais voltar, porque no último dia em que me viste, mataram-me os teus irmãos.” Indicou-lhe o lugar onde os irmãos o tinham sepultado, disse-lhe que não voltasse a chamar por ele nem a esperá-lo e desapareceu.
“Acordando e acreditando na visão, a jovem chorou amargamente. De manhã, levantou-se e, sem se atrever a dizer alguma coisa aos irmãos, resolveu ir ao local indicado e ver se era verdade o que lhe tinha revelado no sonho. Conseguida a licença de sair um pouco fora da terra a passear na companhia duma criada que estivera de outras vezes com eles e andava a par de tudo, dirigiu-se ao local a toda a pressa, afastou as folhas secas que havia no lugar e cavou a terra onde ela parecia menos dura. Não precisou de cavar muito para encontrar o corpo do seu infeliz amado, ainda em nada atingido nem corrupto. Viu então manifestamente que era verdadeira a visão. Ferida de dor mais que nenhuma outra mulher e sabendo que nada lhe remediava chorar, se pudesse teria levado de boa vontade todo o corpo para lhe dar uma sepultura mais condigna. Mas vendo que não era possível, com uma faca separou-lhe o melhor que pôde a cabeça do tronco, envolveu-a numa toalha, cobriu de terra o resto do corpo, pôs a cabeça no regaço da criada e foi-se dali embora sem ser vista por ninguém, voltando para casa. Fechou-se no quarto com aquela cabeça e chorou sobre ela longa e amargamente, tanto que a lavou com as suas lágrimas, cobrindo-a toda de mil beijos. Em seguida, arranjou um grande e lindo vaso, daqueles em que se plantam manjeronas ou manjericos, meteu lá dentro a cabeça embrulhada num belo tecido, colocou-lhe terra por cima e plantou vários pés de manjerico salernitano, só os regando com água de rosas, de flor de laranjeira ou com as suas lágrimas. Acostumou-se a estar sempre sentada junto deste vaso a contemplá-lo com todo o seu desejo como se nele estivesse escondido o seu Lourenço. Depois de o contemplar demoradamente, ia chorar sobre ele e assim ficava durante tanto tempo que banhava todo o manjerico. Fosse pelos demorados e constantes cuidados, fosse pela gordura da terra resultante da cabeça em decomposição que estava dentro do vaso, o manjerico tornou-se lindíssimo e muito perfumado.
“Mantinha-se a donzela constantemente nesta atitude e assim a descobriram bastantes vezes os vizinhos. Foram eles contar aos irmãos, que andavam muito admirados de verem a beleza dela apagar-se e os olhos afundarem-se nas órbitas: “Temos notado que ela passa o dia inteiro desta maneira.” Os irmãos certificaram-se do que lhes era dito, repreenderam-na algumas vezes sem resultado e finalmente mandaram tirar dali o vaso às escondidas dela. Quando Isabel deu pela falta do vaso, pediu-o muitas vezes com veemente insistência. Mas como não lho devolveram, caiu doente, sem que parassem o choro e as lágrimas. Na doença, não pedia outra coisa a não ser o vaso. Os jovens espantavam-se muito com aquele pedido e, por isso, quiseram ver o que o vaso tinha dentro. Esvaziaram a terra e descobriram o pano com a cabeça ainda não tanto carcomida que, pela cabeleira crespa, não descobrissem que era a de Lourenço. Ficaram assombradíssimos e receosos de que o facto viesse a ser conhecido. Enterraram, pois, a cabeça e, sem dizerem nada, planearam como haviam de retirar-se, saíram cautelosamente de Messina e abalaram para Nápoles.
“A donzela, sem parar de chorar e de pedir o seu vaso, chorando se finou e deste modo chegou ao fim o seu desventurado amor. A dada altura, porém, a história acabou conhecida de muita gente e houve alguém que compôs aquela canção ainda hoje cantada:
Quem foi esse mau cristão
que o meu vaso me furtou, etc.”
Andreuola ama Gabriotto. Conta-lhe um sonho que teve e também ele conta um outro seu. Gabriotto morre subitamente nos seus braços e, enquanto ela e uma sua criada o levam para casa dele, são presas pela autoridade, contando ela o que se passou. O prefeito quer violentá-la, mas ela não consente. O pai sabe-o por ela mesma e, reconhecida inocente, fá-la pôr em liberdade. Recusando firmemente continuar a viver no mundo, Andreuola faz-se freira. (Nota 16) A morte que arrebata, no cenário florido do jardim, o protagonista sereno e inconsciente ao lado da sua amada agoirenta e que treme, como que envolta no halo misterioso dos dois sonhos proféticos, constitui o núcleo verdadeiramente poético da novela. Artisticamente menos feliz é a parte seguinte, com a conclusão na apoteose da fidelidade e do amor. (Fim da nota)
As damas gostaram muitíssimo da novela contada por Filomena, pois muitas vezes tinham ouvido cantar aquela canção, mas, por mais que perguntassem, nunca tinham conseguido saber a razão de ela ter sido composta. Ouvida porém a conclusão, o rei ordenou a Pânfilo que prosseguisse e Pânfilo disse:
“O sonho contado na novela anterior dá-me matéria para vos contar uma outra em que são mencionados dois sonhos, os quais se referiam ao futuro, tal como aquele se referia ao passado. Mal estes sonhos acabaram de ser contados por quem os tivera, logo ambos se realizaram.
“Deveis saber, amorosas senhoras, que é experiência comum de todo o ser vivente ver diversas coisas durante o sono, as quais parecem todas absolutamente verdadeiras àquele que está a dormir. Mas embora ao acordar umas se considerem verdadeiras, outras verosímeis e outras fora de toda a verdade, no entanto muitas delas realizam-se. Há assim bastantes pessoas que acreditam tanto em cada sonho como acreditam nas coisas que vêem acordadas, entristecendo-se e alegrando-se com os seus próprios sonhos, consoante lhes dão motivos de receio ou de esperança. Ao invés, há aqueles que não acreditam em nenhum sonho senão quando se vêem caídos no perigo prenunciado. Não louvo nem a uns nem a outros, porque nem sempre são verdadeiros nem em todo o caso falsos. Que eles não são todos verdadeiros muitas vezes o pôde ter certificado cada um de nós. Que nem todos eles são falsos já o demonstrou atrás a novela de Filomena e tenciona demonstrá-lo a minha, como já afirmei. Portanto, julgo que aquele que vive e actua virtuosamente não deve recear nenhum sonho a isto contrário, nem por causa dele abandonar os seus bons propósitos. Nas coisas perversas e malvadas, ainda que os sonhos lhes pareçam favoráveis e encorajem quem os tem com segundas demonstrações, ninguém os deve acreditar, tal como no caso contrário a todos não deve dar inteira fé. Mas vamos à novela.
“Viveu na cidade de Bréscia um fidalgo chamado Dom Negro de Pontecarraro, o qual, entre outros filhos, possuía uma filha que se chamava Andreuola, jovem, muito formosa e solteira. Aconteceu que ela se enamorou dum seu vizinho que tinha o nome de Gabriotto, homem de modesta condição, mas muito rico, de louváveis costumes, como de bela e agradável figura. Com o trabalho e a ajuda da criada da casa, a jovem tanto fez que Gabriotto não só veio a saber que era amado por Andreuola como foi levado muitíssimas vezes a um belo jardim do pai da donzela, para deleite de ambos. E para que nenhuma razão além da morte pudesse alguma vez separar aquele aprazível amor, tornaram-se secretamente marido e mulher. Iam os seus encontros continuando assim furtivamente quando sucedeu que a jovem, numa noite em que dormia, teve um sonho em que se via no seu jardim com Gabriotto, tendo-o nos seus braços com grande prazer de ambos. Enquanto assim estavam, parecia-lhe ver sair do corpo dele uma coisa escura e terrível cuja forma não conseguia reconhecer. Aquilo apoderava-se de Gabriotto e, contra a sua vontade, arrancava-lho dos braços com espantosa força e metia-se com ele debaixo da terra, nunca mais conseguindo ver nem a um nem a outro. Andreuola sentia uma dor profunda e incalculável e por isso acordou. Ao ver-se acordada, sentiu-se feliz por verificar que a realidade não era como ela sonhava, mas ficou assustada com o sonho de tal modo que, ao querer Gabriotto encontrar-se com ela na noite seguinte, ela fez quanto pôde para ele não vir. Mas, conhecedora do seu desejo e para que ele não suspeitasse de outra coisa, na noite seguinte recebeu-o no seu jardim. Depois de colher muitas rosas brancas e vermelhas, pois era o tempo delas, foi com ele para junto duma lindíssima e cristalina fonte que havia no jardim. Deram-se mutuamente muitos e demorados carinhos e Gabriotto perguntou-lhe qual a razão de ela lhe ter proibido a vinda no dia anterior. A jovem contou-lhe então o sonho que tivera na noite precedente e a apreensão em que tinha ficado. Gabriotto riu-se do que estava a ouvir e declarou que era grande loucura fazer alguma fé nos sonhos, pois eles eram provocados pelo excesso ou pela falta de comida e todos os dias era possível ver como eram vãos. Em seguida acrescentou: “Se eu quisesse ir atrás dos sonhos, não teria vindo cá, não tanto por causa do teu sonho, como por um que também eu tive a noite passada. Parecia-me estar numa bela e aprazível floresta, andando a caçar e tendo capturado uma cabra tão bonita e tão meiga como nenhuma outra jamais se vira. Parecia-me mais branca do que a neve e depressa se afeiçoou de tal maneira a mim que já não me queria deixar. Julgo que eu lhe queria tanto que, para ela não me fugir, lhe pus ao pescoço uma coleira de ouro, segurando-a com uma corrente também de ouro. A seguir, a cabra deitou-se a repousar, pondo a cabeça no meu colo e, então, pareceu-me ver sair não sei de onde uma cadela negra como carvão de aspecto famélico e assustador. Correu para mim e dava-me a impressão que eu era incapaz de resistir-lhe. Meteu o focinho no lado esquerdo do meu peito e tanto roeu que me atingiu o coração, parecendo que mo arrancava para o levar consigo. Senti uma dor tão grande que interrompi o sono e, acordado, imediatamente fui com a mão procurar se tinha alguma coisa no peito. Como não descobri nada de mal, ri-me de mim próprio por aquela preocupação. Mas que pode significar uma coisa destas? Já tive sonhos como este e até mais assustadores e nem por isso me aconteceu alguma coisa. Deixa lá os sonhos e pensemos em aproveitar bem o tempo.” A jovem, já muito assustada com o seu sonho, muito mais assustada ficou com este. Mas, para não desconsolar Gabriotto, escondeu quanto pôde o seu receio. Mas, embora se entretivesse com ele abraçando-o e beijando-o e sendo por ele abraçada e beijada, mais do que o costume olhava-o muitas vezes no rosto, suspeitosa e apreensiva, e por vezes mirava o jardim em volta para ver se surgia de qualquer lado algum vulto negro.
"Continuava ela desta feição quando Gabriotto, soltando um grande suspiro, a abraçou e disse: “Oh!, minha alma!, ajuda-me, que vou morrer.” Dizendo isto, caiu por terra sobre a relva do prado. Quando o viu caído, Andreuola estreitou-o no seio e disse aberta em lágrimas: “Ó meu doce senhor, que tens tu?” Gabriotto não respondeu, mas, arfando fortemente e todo banhado de suores, passado algum tempo deixou a vida presente. Cada uma de vós pode imaginar como isto foi grave e doloroso para a donzela, que o amava mais do que a si mesma. Chorou-o muito e muitas vezes o chamou em vão. Quando, enfim, se apercebeu de que ele estava realmente morto, depois de lhe haver tocado todas as partes do corpo e de tê-lo encontrado todo frio, sem saber que fazer nem que dizer, em lágrimas como estava e cheia de angústia, foi chamar a sua criada, conhecedora deste amor, e expôs-lhe a sua infelicidade e a sua dor. Depois de terem chorado ambas durante algum tempo sobre o rosto sem vida de Gabriotto, a jovem disse à criada: “Já que Deus mo roubou, não quero continuar a viver. Mas, antes de me matar, quero ver se conseguimos uma forma conveniente de guardar a minha honra e o secreto amor que existiu entre nós e de sepultar este corpo de onde abalou a sua graciosa alma.” Respondeu-lhe a criada: “Minha filha, não digas que te vais matar, porque, se agora o perdeste, com o suicídio perdê-lo-ás também no outro mundo, pois irias para o inferno. Para aí estou eu certa de que não foi a sua alma, porque era um jovem bom. É muito melhor conformares-te e pensares em ajudar a sua alma com orações e outras boas obras, se porventura ele precisar por algum pecado cometido. É fácil sepultá-lo aqui no jardim e nunca o há-de saber ninguém, porque ninguém sabia da sua vinda aqui. Se não quiseres, levemo-lo para fora do jardim e deixemo-lo lá ficar. Pela manhã, será encontrado, levam-no para casa dele e os parentes cuidam de sepultá-lo.” Embora cheia de amargura e sem parar o choro, a donzela ia escutando os conselhos da criada. Não concordou com a primeira parte e à segunda respondeu assim: “Deus não queira que eu consinta em ver um ente tão querido e que tanto amei, o meu marido, ser enterrado como um cão ou deitado por terra na estrada. Ele teve as minhas lágrimas e farei quanto puder para que tenha as dos seus parentes. Já sei o que devemos fazer.”
“Mandou-a buscar depressa uma peça de seda que tinha na sua arca, estenderam-na no chão, puseram-lhe em cima o corpo de Gabriotto, pousando-lhe a cabeça numa almofada, e, com muitas lágrimas, fecharam-lhe os olhos e a boca. Fizeram-lhe depois uma grinalda de rosas e envolveram-no, a toda a volta, com as rosas que tinham colhido. Andreuola disse então à criada: “Daqui até à porta da sua casa é pouca a distância. Eu e tu levá-lo-emos, assim como o arranjámos, e pô-lo-emos em frente dela. Já não falta muito para nascer o dia e logo o hão-de recolher. Não será nenhuma consolação para os seus, mas será um consolo para mim, que o vi morrer nos meus braços.”
“Dito isto, novamente se inclinou para o seu rosto, com abundantíssimas lágrimas, e chorou durante largo tempo. Insistiu a criada bastante porque estava a fazer-se dia e finalmente a donzela levantou-se, tirou do dedo o anel de casamento com Gabriotto e enfiou-o no dedo dele dizendo: “Meu amado senhor, se a tua alma está a ver as minhas lágrimas e nenhum conhecimento ou sentimento fica no corpo depois de ela partir, recebe a última oferta daquela que amaste tanto em vida.” E tombou desmaiada sobre ele. Passado um pouco, voltou a si, levantou-se, juntamente com a criada segurou o pano em que o corpo jazia, saíram com ele do jardim e dirigiram-se para casa de Gabriotto.
“Iam elas a caminho quando ali passaram por acaso os guardas do prefeito da cidade, os quais faziam ronda àquela hora por qualquer acidente. Encontraram-nas e prenderam-nas com o cadáver. Quando Andreuola reconheceu os guardas, mais desejosa de morrer que de viver, disse francamente: “Sei quem sois e que não me serviria de nada tentar fugir. Estou pronta a ir convosco à presença da Senhoria e contar-lhe o que aconteceu. Mas que nenhum de vós se atreva a tocar-me se eu vos obedecer, nem a retirar nada deste corpo se não quiser ser acusado por mim.” E assim foi até ao palácio sem que nenhum a segurasse, levando o corpo de Gabriotto. Avisado, o prefeito levantou-se, reteve-a no seu gabinete e informou-se do que se passava. Ordenou a alguns médicos que examinassem se o homem tinha sido morto envenenado ou de outra maneira e todos eles declararam que não: morrera sufocado por causa de um abcesso que lhe rebentara junto do coração. Ouvindo isto, e vendo que Andreuola de pouca coisa era culpada, empenhou-se em mostrar que lhe dava o que não lhe podia vender, afirmando que a poria em liberdade se ela consentisse em satisfazer-lhe as suas vontades. Como porém as suas palavras nada conseguiam, ultrapassou toda a conveniência e tentou empregar a violência. Mas Andreuola, ardendo de indignação e mostrando-se fortíssima, defendeu-se virilmente, obrigando-o a recuar com palavras agressivas e altaneiras.
"Quando clareou o dia, foram contar estes factos a Dom Negro. O fidalgo, morrendo de dor, foi com muitos dos seus amigos ao palácio. Informado de tudo pelo prefeito, pediu chorando que lhe devolvessem a filha. O prefeito, achando melhor ser ele a acusar-se da violência que lhe tinha querido fazer do que ser acusado por ela, começou por elogiar a donzela e a sua constância e, para dar uma prova disso, acabou por dizer o que tinha feito. Era por vê-la assim tão firme na virtude que lhe ganhara um profundo amor e, se fosse do agrado dele, seu pai, e dela, apesar de ter estado casada com um homem de baixa condição, gostaria de a tomar como esposa.
“Enquanto eles assim falavam, Andreuola veio à presença do pai, lançou-se chorando aos seus pés e disse: “Meu pai, não creio que seja preciso contar-vos a história do meu atrevimento e da minha desgraça, pois estou certa de que a ouvistes e a conheceis. O mais que eu posso é suplicar-vos humildemente perdão do meu pecado, o de ter casado sem o vosso conhecimento com o homem que mais amei. Rogo-vos este perdão não para que a vida me seja perdoada, mas para morrer vossa filha e não vossa inimiga.” E assim se deixou ficar chorando, deitada aos pés do pai. Dom Negro, que era já idoso e homem de natureza bondosa e amorável, ao ouvir as palavras da filha começou a chorar. Assim chorando, levantou do chão a filha ternamente e disse: “Minha filha, eu gostaria muito de que tivesses um marido que eu julgasse ser conveniente para ti, e se casaste com o homem de quem gostavas, também a mim me daria prazer. Mas o teres ocultado esse casamento faz-me sofrer pela tua falta de confiança e sobretudo por ver que o perdeste antes de eu ter sabido. Mas uma vez que assim é, aquilo que eu lhe faria de boa vontade para seres feliz sendo ele vivo – ou seja, honrá-lo como meu genro –, seja-lhe feito na morte.” E, voltado para os filhos e outros parentes, ordenou-lhes que se fizessem a Gabriotto solenes e honrosas exéquias. Tinham entretanto acorrido todos os familiares do jovem, ao terem conhecimento da notícia, e quase todos os homens e mulheres que havia na cidade. Colocaram então o cadáver no centro do pátio da Senhoria sobre o pano de seda de Andreuola e envolvido com todas as suas rosas. Ali foi pranteado em público não só por ela e pelos seus familiares, mas por quase todas as mulheres da cidade e por muitos homens. Foi depois conduzido à sepultura não como plebeu, mas como nobre, sendo levado desde o pátio do palácio com soleníssimas honras e aos ombros dos mais ilustres cidadãos.
“Alguns dias depois, como o prefeito insistisse no pedido que fizera, Dom Negro falou à filha, mas ela nada quis ouvir. O pai fez-lhe a vontade e ela entrou com a sua criada num mosteiro que tinha grande fama de santidade. Ali viveram durante largo tempo numa vida de virtude.”
Simona ama Pasquino. Encontram-se ambos num jardim, Pasquino esfrega os dentes com uma folha de salva e cai morto. Simona é presa e, para mostrar ao juiz como tinha morrido Pasquino, esfrega os dentes com uma daquelas folhas e morre de forma semelhante. (Nota 17) Quase a contrastar com o cenário senhoril da novela anterior, esta é toda ela popular nos personagens, nos acontecimentos, no tom, de tal modo que a morte de Simona quase parece a libertação duma alma enamorada do mundo da vulgaridade. Alfred de Musset inspirou-se para o seu poema Simone. (Fim da nota)
Concluíra Pânfilo a sua novela quando o rei, sem dar mostras de qualquer compaixão por Andreuola, olhou para Emília e fez-lhe sinal de que fosse ela a prosseguir a série das novelas. Emília, sem nenhuma demora, começou:
“Queridas companheiras, a novela contada por Pânfilo obriga-me a contar uma outra em nada mais parecida com a dele senão em que, tal como Andreuola perdeu o seu amado no jardim, assim também o perdeu aquela de quem irei falar. Igualmente presa como Andreuola, salvou-se do tribunal não com a força nem com a virtude, mas com a morte inesperada.
“Como já de outras vezes se disse entre nós, ainda que o amor prefira morar na casa dos nobres, todavia não recusa o seu império à dos pobres, chegando até a mostrar aí de tal maneira as suas forças que se faz recear pelos mais ricos como senhor poderosíssimo. Se não inteiramente, isto aparecerá em grande parte da minha novela, com a qual me apraz regressar à nossa cidade, de onde temos andado um tanto afastados hoje, caminhando por diversas partes do mundo diversamente falando de coisas várias.
“Viveu ainda não há muito tempo em Florença uma jovem muito bonita e graciosa para a sua condição, filha de gente pobre e que se chamava Simona. Embora tivesse de ganhar com as próprias mãos o pão que comia, ganhando a vida como fiandeira de lã, nem por isso a sua alma era tão pobre que não ousasse acolher o amor dentro de si. E o amor mostrou bastante o desejo de querer entrar na sua alma através dos actos e das palavras agradáveis dum jovem de condição igual à dela, o qual era distribuidor de lã para fiar por conta dum seu patrão. Acolhendo, pois, em si o amor com a agradável figura do jovem que amava e se chamava Pasquino, fortemente desejando, mas não se atrevendo a ir mais por diante, ia fiando, e a cada volta de lã fiada que ela enrolava no fuso soltava mil suspiros mais escaldantes do que o fogo, lembrando-se daquele que lhe tinha entregue a lã para fiar. Por outro lado, tornando-se muito solícito de que ficasse bem fiada a lã do patrão. Pasquino estimulava-a a ela muito mais do que às outras, como se todo o pano tivesse de ser tecido apenas com a lã fiada por Simona e mais nenhuma. Foi assim que, estimulando um, gostando a outra de ser estimulada, aconteceu ganhar um maior atrevimento do que era costume, perder a outra muito do medo e da vergonha que costumava ter, e ambos se encontraram em comuns prazeres. Tão agradáveis foram aqueles prazeres para uma e outra parte que um não esperava o convite do outro, indo antes a mútuo encontro, convidando-se um ao outro.
"Continuando assim de dia para dia os seus prazeres e ateando-se eles cada vez mais na continuação daqueles, aconteceu que Pasquino disse a Simona desejar muitíssimo que ela encontrasse maneira de ir a um jardim aonde ele a queria levar para poderem estar mais à vontade e encontrarem-se um com o outro com menos suspeitas. Respondeu Simona que estava de acordo e, num domingo depois do almoço, disse ao pai que ia à Igreja de S. Galo para as indulgências. Acompanhada de uma amiga chamada Lagina, dirigiu-se ao jardim indicado por Pasquino e lá o encontrou com um amigo de nome Puccino, mas alcunhado o Stramba. Como se esboçasse um namorico entre o Stramba e Lagina, recolheram-se num recanto do jardim para se entregarem aos seus prazeres e deixaram noutro recanto o Stramba e Lagina.
“Havia naquela parte do jardim para onde Pasquino e Simona tinham ido um enorme e esplêndido tufo de salva. Sentaram-se junto da planta e durante largo tempo divertiram-se um com o outro. Depois de muito conversarem de uma merenda que tencionavam fazer naquele jardim com toda a tranquilidade, Pasquino voltou-se para o grande tufo de salva, colheu uma folha e com ela começou a esfregar os dentes e as gengivas, dizendo que a salva os limpava muito bem de todos os restos de comida que ficavam. Depois de assim ter esfregado algum tempo, voltou à anterior conversa da merenda. Pouco tinha ainda conversado quando o seu rosto começou a alterar-se e, logo a seguir a esta mudança, perdeu a vista e a fala e num instante morreu. Ao ver o que estava a acontecer, Simona pôs-se a chorar, a gritar e a chamar pelo Stramba e por Lagina. Os dois acorreram prontamente e deram com Pasquino não apenas morto mas já todo inchado e coberto de manchas escuras na cara e por todo o corpo. Logo o Stramba gritou: “Ah!, maldita mulher, que o envenenaste!” E fez tanto alarido que o ouviram muitas pessoas que moravam perto do jardim. Correram elas ao local, viram o homem morto e inchado e ouviram o Stramba a lamentar-se e a acusar Simona de à traição o ter envenenado. Como ela, fora de si com a dor do repentino acidente que lhe roubara o amante, era incapaz de se defender, toda a gente acreditou no que o Stramba dizia. Prenderam-na e levaram-na ao palácio do prefeito, com ela sempre em forte choro. Por insistência do Stramba, do Atticciato e do Malagèvole, amigos de Pasquino, logo um juiz iniciou o exame do caso. Não conseguindo compreender que ela tivesse agido com maldade ou que fosse culpada, quis ver na presença dela o cadáver, o local e a versão contada por ela, pois não o entendia bem pelas suas palavras. Mandou que a levassem sem qualquer alarido ao local onde ainda jazia o corpo de Pasquino, inchado como uma pipa, e acompanhou-a. Ficando espantado com o morto, perguntou-lhe como fora aquilo. Ela chegou-se ao tufo de salva, contou toda a história precedente e, para lhe dar perfeitamente a entender o acontecido, fez como fizera Pasquino: esfregou os dentes com uma daquelas folhas de salva.
"Enquanto o Stramba, o Atticciato e os outros amigos e companheiros de Pasquino consideravam tudo aquilo inútil e escusado, rindo-se dela na presença do juiz, acusando-a de malvadez com maior insistência e declarando que só a fogueira podia castigar uma tão grande maldade, a pobrezinha, toda encolhida pela dor do amante perdido e pelo medo da pena exigida pelo Stramba, esfregando, como foi dito, os dentes com a salva, caiu no mesmo acidente em que caíra Pasquino, com enorme assombro de quantos estavam presentes.
“Ó felizes almas às quais no mesmo dia acontece terminar o ardente amor e a vida mortal; mais felizes se ides ambas para o mesmo lugar; felicíssimas se na outra vida se amar e se vos amardes como fazíeis cá! Mas acima de tudo, muito mais feliz a alma de Simona, cuja inocência, pelo que podemos julgar nós os que depois dela continuámos a viver, não suportou a fortuna que viesse a sucumbir sob o testemunho do Stramba, do Atticciato e do Malagèvole, reles cardadores ou homens ainda mais vilãos! Dando-lhe um caminho mais decoroso com morte igual à do seu amado, a fortuna libertou-a da infâmia deles e fê-la acompanhar a alma do seu Pasquino por ela tão amada. O juiz, que ficara totalmente assombrado com aquele acidente, juntamente com todos os que ali estavam, não sabia que dizer, mantendo-se calado bastante tempo, e depois, já mais refeito, declarou: “Prova-se que esta salva é venenosa, o que não costuma acontecer com as salvas. Mas para que ela não possa mais fazer mal a ninguém do mesmo modo, cortem-na pelas raízes e ateiem-lhe o fogo”. Foi o que fez o guarda do jardim na presença do juiz e, mal ele acabou de abater o grande tufo, tornou-se patente a causa da morte dos dois amantes. Debaixo do tufo encontrava-se um sapo de espantoso tamanho, cujo bafo peçonhento, consideraram eles, tornara venenosa aquela salva. Ninguém teve coragem de se aproximar do sapo. Ergueram-lhe em volta uma moita muito grande e queimaram-no juntamente com a salva.
“Assim terminou o processo do senhor juiz sobre a morte do pobre Pasquino. Juntamente com a sua Simona, assim inchados como estavam, foram sepultados pelo Stramba, pelo Atticciato, por Guccio Imbratta e pelo Malagèvole na Igreja de S. Paulo, de que eram paroquianos.”
Jerónimo ama Salvestra. Por insistência da mãe é forçado a ir viver em Paris, e, quando regressa, vem encontrar Salvestra casada. Entra ocultamente na casa dela e morre ao seu lado. Levam-no para uma igreja e Salvestra morre ao lado dele. (Nota 18) Trágica história dum amor contrariado por causa dum preconceito social. A parte mais poética é a cena nocturna, com a silenciosa morte de Jerónimo. Alfred de Musset inspirou-se para o seu poema Sílvia. (Fim da nota)
Tinha chegado ao fim a novela de Emília quando, por ordem do rei, Neífile assim começou:
“Segundo me parece, virtuosas senhoras, existem algumas pessoas que, julgando saber mais do que os outros, afinal sabem menos. Atrevem-se a contrapor a sua opinião não somente aos conselhos dos homens, mas até contra a natureza das coisas. Esta presunção já provocou males muitíssimo grandes e nunca se viu que resultasse daí algum bem. E porque, entre outros factos naturais, o que menos admite parecer ou intervenção em contrário é o amor, cuja natureza é tal que prefere consumir-se a ele próprio do que ser afastado por qualquer decisão, veio-me ao espírito contar-vos a história de uma mulher que, ao tentar ser mais esperta do que lhe competia e do que era, e que também não suportava o caso sobre o qual queria mostrar a sua esperteza, supondo arrancar o amor ao coração enamorado, porventura aí colocado pelas estrelas, conseguiu tirar ao mesmo tempo ao filho o amor e a alma.
“Houve na nossa cidade, segundo contam os antigos, um importantíssimo e abastado mercador, cujo nome era Leonardo Sighieri. Deu-lhe a sua mulher um filho chamado Jerónimo. Depois do nascimento deste, com os seus negócios devidamente em ordem, Leonardo deixou esta vida. Os tutores da criança, juntamente com a mãe, orientaram as suas coisas de forma correcta e leal. O menino foi crescendo com os filhos dos outros vizinhos e, mais que a qualquer outra criança do bairro, criou intimidade com uma menina da sua idade, filha de um alfaiate. A medida que a idade ia aumentando, o convívio converteu-se num amor tão grande e tão forte que Jerónimo só se sentia bem quando a tinha à vista. E a verdade é que ela não o amava menos do que era amada por ele.
“A mãe do rapaz, ao descobrir aquela paixão, censurou-o e repreendeu-o muitas vezes. Como, porém, não conseguisse a desistência de Jerónimo e achando ela que, pela grande fortuna do filho, podia fazer da silva uma laranjeira, (Nota 19) Isto é, fazer do filho mercador um nobre por meio do matrimónio. (Fim da nota) foi-se queixar aos tutores dele e disse-lhes: “O nosso menino, que ainda não tem 14 anos, apaixonou-se por uma filha dum alfaiate nosso vizinho, chamada Salvestra. Se não o afastarmos da presença dela, ainda um dia pode casar com ela sem ninguém saber e eu nunca mais posso ser feliz; ou morre de desgosto por ela, se a vir casada com outro. Penso que, para evitarmos isto, o devíeis mandar para qualquer terra que fique longe daqui, em serviço do armazém. Longe das vistas da rapariga, ela acabará por sair-lhe da ideia e depois poderemos casá-lo com uma jovem de bom nascimento.” Os tutores afirmaram que a dama tinha razão e que fariam o que fosse possível. Chamaram o rapaz ao armazém e um deles disse-lhe afectuosamente: “Meu filho, já estás crescidote. Será bom que comeces tu mesmo a tratar dos teus negócios e, por isso, ficaríamos muito satisfeitos se fosses viver um tempo em Paris, onde verias como é negociada grande parte da tua riqueza. Além disso, tornar-te-ias muito melhor, mais educado e mais fino do que aqui, vendo toda aquela abundância de senhores, de barões e de fidalgos e aprendendo as suas maneiras. Depois poderás voltar.” O rapaz ouviu com atenção e logo respondeu que não aceitava e que achava que podia continuar muito bem em Florença como qualquer outro. Os bons homens ainda o repreenderam com algumas palavras, mas, não conseguindo arrancar-lhe outra resposta, foram dizer à mãe. Esta exaltou-se bravamente, não por causa de ele recusar a ida para Paris, mas por causa daquela sua paixão. Dirigiu-lhe palavras muito violentas e depois, acalmando-o com palavras doces, começou a lisonjeá-lo e a rogar-lhe docemente que lhe desse a alegria de fazer o que os seus tutores queriam. E tanto conseguiu dizer-lhe que o rapaz aceitou ir por um ano, mas não mais. Assim partiu Jerónimo para Paris, profundamente apaixonado, e, volta hoje, volta amanhã, lá esteve retido dois anos.
“Voltou ele mais apaixonado do que nunca, mas veio encontrar a sua Salvestra casada com um honrado fabricante de tendas. Jerónimo foi atingido por uma dor incomensurável. Mas, vendo que não podia ser de outro modo, esforçou-se por encontrar a paz. Averiguou onde era a casa dela e, como é costume dos jovens apaixonados, começou a passar-lhe diante da porta, supondo que ela não o tinha esquecido, tal como ele não a esquecera.
Mas as coisas correram de outra feição: Salvestra recordava-se tanto dele como se nunca o tivesse visto ou, se porventura se lembrava um pouco, mostrava o contrário. O jovem apercebeu-se disto passado pouco tempo, mas, apesar da profunda mágoa, não desistiu de fazer tudo para lhe entrar novamente na alma. Como porém nada parecia obter, resolveu falar-lhe pessoalmente, ainda que fosse preciso morrer. Conseguiu dum vizinho informações sobre a disposição da casa de Salvestra e, numa noite em que ela e o marido tinham ido com uns vizinhos a um serão, entrou na casa às escondidas e foi ocultar-se no quarto dela por detrás dos panos das tendas ali estendidos. Esperou até que eles voltassem e se fossem deitar. Quando sentiu que o marido dela tinha adormecido, encaminhou-se para o lado onde vira que Salvestra se tinha deitado. Pôs-lhe a mão sobre o peito e disse-lhe baixinho: “Ó minha alma, já dormes?” A jovem, que não estava a dormir, quis gritar, mas ele disse-lhe, prontamente: “Por Deus, não grites! Sou o teu Jerónimo.” Quando ouviu o nome dele, Salvestra disse-lhe toda a tremer: “Ai por Deus, Jerónimo, vai-te embora. Já lá vai o tempo da meninice, em que ficava bem estarmos apaixonados. Estou casada, como vês, e, por isso, já não fica bem que eu olhe para outro homem além do meu marido. Por Deus te peço: vai-te embora porque, se o meu marido te ouve, mesmo que outro mal não aconteça, nunca mais eu poderia viver com ele em paz e descanso, quando agora vivo com ele amada, feliz e tranquila.” Ao ouvir tais palavras, o jovem sentiu uma angustiosa dor. Recordou-lhe o tempo passado e o seu amor, que a distância não diminuíra, misturou muitos rogos e valiosíssimas promessas, mas não obteve nada. Desejoso de morrer, pediu-lhe finalmente que, em consideração de tanto amor, o deixasse deitar-se ao seu lado apenas o tempo necessário para se aquecer, pois tinha enregelado enquanto a esperava, prometendo que não lhe diria nada nem lhe tocaria e que, mal tivesse aquecido um pouco, ir-se-ia embora. Salvestra teve um certo dó de Jerónimo e condescendeu com as condições por ele dadas. Deitou-se o jovem ao lado dela sem lhe tocar, recolheu num só pensamento o longo amor que lhe dera, a presente dureza da dama e a perdida esperança e decidiu não viver mais. Retendo a respiração, sem fazer qualquer movimento, cerrou os punhos e morreu ao lado de Salvestra. Passado algum tempo, admirada com a sua imobilidade e receando que o marido acordasse, a jovem pôs-se a dizer: “Então, Jerónimo, não te vais embora?” Como não o ouvisse responder, pensou que teria adormecido. Estendeu o braço e tentou acordá-lo, mas, ao tocar-lhe, achou-o frio como gelo e ficou assombradíssima. Tocou-lhe com mais força e, vendo que ele não se mexia, tocou-lhe ainda mais vezes e viu que ele estava morto. Em extrema aflição, esteve um grande espaço sem saber o que fazer. Por fim, resolveu perguntar ao marido o que havia de fazer, fingindo tratar-se de outra pessoa. Acordou-o, disse-lhe ter-se passado com outra mulher o que se passara na sua presença e perguntou-lhe depois que conselho daria se tivesse sido com ela. O bom homem respondeu parecer-lhe que se devia levar cautelosamente o morto para a sua casa e deixá-lo lá, sem ter nenhuma má vontade contra a mulher, pois lhe parecia que ela não tinha pecado. Disse então a jovem: “E o que nós temos de fazer.” Pegou na mão do marido e levou-o a tocar no jovem morto. O homem, todo assustado, levantou-se, acendeu uma luz e, sem mais conversas com a mulher, pôs às costas o cadáver vestido com a própria roupa. Sem perda de tempo e ajudado pela sua inocência, levou-o até à porta da casa dele e lá o deixou ficar.
“Quando veio o dia e o descobriram morto diante da entrada, fizeram uma grande gritaria, especialmente a mãe. Procuraram e olharam por todo o corpo, não lhe encontraram qualquer ferida ou golpe e todos os médicos foram unânimes em declarar que, assim como estava, ele teria morrido de desgosto. Levaram o corpo para uma igreja, indo para lá a dolorosa mãe com muitas outras mulheres da família ou vizinhas, pondo-se a chorar copiosamente e a carpir, como é nosso hábito, sobre ele. Enquanto se ia fazendo a enorme lamentação, o bom homem em cuja casa Jerónimo tinha morrido disse a Salvestra: “Olha! Põe um véu na cabeça e vai à igreja para onde levaram Jerónimo e mete-te no meio das mulheres. Ouve o que se diz deste caso e eu farei o mesmo entre os homens para ver se consta alguma coisa contra nós!” A jovem, que tardiamente começara a compadecer-se, concordou, como quem desejava olhar em morto aquele ao qual em vida não tinha dado o prazer dum único beijo. E lá foi.
"Assombrosa coisa é pensar como são difíceis de investigar as forças do amor! Aquele mesmo coração que a boa fortuna de Jerónimo não conseguira abrir, abriu-o a sua má sorte. Ressuscitando nele subitamente as antigas chamas, em tal piedade se mudou que, mal ela viu o rosto sem vida, logo furou por entre as mulheres e, coberta pelo véu, só se deteve quando chegou junto do corpo. Soltou então um estridente grito, atirou-se com a face contra o jovem morto e só não o banhou de muitas lágrimas porque, logo que o tocou, tal como a dor havia tirado a vida ao jovem, assim lha arrancava agora a ela. Vieram as mulheres confortá-la e dizer-lhe que se levantasse, ainda sem a conhecerem. Como, porém, não se levantava, quiseram erguê-la e acharam-na imóvel. Quando a ergueram, descobriram ao mesmo tempo que era Salvestra e que estava morta. A notícia espalhou-se fora da igreja entre os homens e chegou aos ouvidos do marido dela, que estava lá no meio. Sem aceitar consolação ou conforto de ninguém, o homem chorou durante largo tempo e depois contou a muitos dos presentes a história acontecida ao jovem e à sua esposa durante a noite. Toda a gente ficou a saber perfeitamente qual a razão da morte dos dois, o que a todos deixou condoídos. Pegaram na donzela morta e, ornando-a como é costume preparar os cadáveres, puseram-na deitada no mesmo leito ao lado do jovem. Fizeram um demorado pranto e colocaram-nos a ambos na mesma sepultura. Assim juntou a morte em inseparável companhia aqueles que o amor não conseguira juntar em vida.”
Dom Guilherme Rossíglione dá a comer à esposa o coração de Dom Guilherme Guardastagno, morto por ele e amado por ela. Quando sabe de tal coisa, a dama atira-se de uma alta janela para o solo, morre e é sepultada com o seu amante. (Nota 20) Novela de rara concisão e intensidade, que nos oferece o retrato duma outra heroína da têmpera de Guismonda (IV, I), ainda mais impressionante do que esta pela silenciosa rapidez da trágica decisão com que sela a sua fidelidade na vida de além-túmulo. Nela o autor fez a adaptação livre duma fantasiosa biografia do trovador provençal Guilhelm de Cabestanh (Guilherme Guardastagno), cuja relação com a esposa do conde Raimon de Castel Rossillon terá provocado a ablação do seu coração (motivo muito frequente na literatura medieval: veja-se, por exemplo, Dante, Vita Nuova, son I). (Fim da nota)
A novela de Neífile chegou ao fim, despertando grande compaixão em todas as suas companheiras. O rei, que não tencionava retirar o privilégio de Dioneu, começou a falar por não restar mais ninguém:
“Uma vez que vos comovem os infortunados casos de amor, surgiu-me, compassivas senhoras, uma novela que vos há-de comover não menos que a anterior, porque foram pessoas mais nobres aquelas a quem aconteceu o que vou contar-vos e mais cruel o seu caso do que na novela contada.
“Deveis saber que, segundo contam os Provençais, viveram na Provença dois nobres cavaleiros, cada um deles senhor de castelos e de vassalos. Chamava-se um Dom Guilherme Rossiglione e o outro Dom Guilherme Guardastagno. Como eram ambos muito entendidos nas armas, estimavam-se bastante e tinham o costume de ir sempre a qualquer torneio, justa ou outro feito de armas juntos e com o mesmo uniforme. Embora cada um vivesse no seu castelo, distantes um do outro umas dez milhas, aconteceu que, estando Dom Guilherme Rossiglione casado com uma dama formosíssima e encantadora, Dom Guilherme Guardastagno se apaixonou por ela profundamente, apesar da amizade e da companhia existente entre os dois fidalgos. Ora com um acto ora com outro, levou a dama a aperceber-se e agradou-lhe, pois ela conhecia-o como valentíssimo cavaleiro. Começou a ter-lhe tanto amor que outra coisa não desejava nem amava senão a ele, nem mais nada esperava senão que ele a cortejasse. Isto não tardou a acontecer e encontraram-se uma vez e mais outra, amando-se apaixonadamente.
“Como se encontravam um com o outro sem bastantes cautelas, o marido descobriu e ficou furiosíssimo, de tal modo que a sua grande amizade por Guardastagno se converteu em ódio de morte. Mas soube ocultar o seu ódio melhor do que os amantes tinham sabido esconder o seu amor. Tomou a decisão inabalável de o matar; e, estando Rossiglione nesta disposição, aconteceu organizar-se em França um grande torneio. Rossiglione informou imediatamente Guardastagno e mandou-lhe dizer que, se estivesse de acordo, viesse visitá-lo para juntos deliberarem se deviam eles ir e como. Guardastagno respondeu felicíssimo que iria sem falta jantar com ele no dia seguinte. Pensou então Rossiglione ter chegado a altura de o matar. No dia seguinte, armou-se e montou a cavalo com alguns criados. A cerca de uma milha do seu castelo, num bosque, postou-se à espreita no local por onde Guardastagno devia passar. Esperou por ele bastante tempo, até que o viu aparecer desarmado e seguido por dois criados também desarmados, como quem não tinha nada que acautelar-se de Rossiglione. Quando este o viu chegar ao local onde o queria, correu direito a ele de lança em riste, gritando cruel e impiedoso: “Traidor, estás morto!” Dizer isto e enterrar-lhe a lança no peito foi a mesma coisa: varado pela lança, sem poder esboçar defesa nem dizer palavra, Guardastagno tombou e morreu quase logo. Os seus dois criados, sem identificar quem fizera aquilo, voltaram as cabeças dos cavalos e fugiram o mais depressa de que foram capazes para o castelo do seu senhor. Rossiglione desmontou-se, abriu com um punhal o peito de Guardastagno, com as próprias mãos tirou-lhe o coração, mandou-o embrulhar numa flâmula da lança e ordenou a um dos criados que o levasse. Recomendou depois que nenhum tivesse a ousadia de dizer palavra sobre o caso, voltou a montar a cavalo e regressou ao castelo quando era já noite.
“A dama soubera que Guardastagno viria cear naquela noite e esperava-o com grande ansiedade. Ao reparar que ele não vinha, admirou-se muito e perguntou ao marido: “Mas como, senhor, Guardastagno não veio?” Respondeu-lhe o marido: “Senhora, ele mandou-me dizer que só poderá estar aqui amanhã.” A dama ficou um tanto perturbada. Desmontando-se, Rossiglione mandou chamar o cozinheiro e disse-lhe: “Pega naquele coração de javali e faz com ele um petisco, o melhor e o mais apetitoso de que fores capaz. Quando eu estiver à mesa manda-mo numa travessa de prata.” O cozinheiro pegou no coração e, com toda a sua arte e esmero, cortou-o em miúdos, temperou-o de boas especiarias e fez com ele uma iguaria excelente. Dom Guilherme, chegada a hora, sentou-se à mesa com a esposa. A comida veio e ele, com o espírito preocupado pelo crime por ele cometido, pouco comeu. O cozinheiro mandou-lhe o petisco e o fidalgo ordenou que o pusessem em frente da dama, mostrando-se naquela noite sem apetite, mas gabando muito o cozinheiro. A dama, que não perdera o apetite, começou a comer, achou-o bom e comeu-o todo ela. Quando o cavaleiro viu que a dama comera tudo, disse: “Senhora, que tal achastes este prato?” “Senhor – respondeu a dama –, realmente gostei muito.” “Deus me ajude – disse o cavaleiro –, pois acredito e não me admiro que vos tenha agradado morto o que vivo vos agradou acima de tudo.” A dama ficou um pouco sem palavras e depois disse: “Como? Que foi que me destes a comer?” Respondeu o cavaleiro: “O que realmente comestes foi o coração de Dom Guilherme Guardastagno, que vós tanto amastes como esposa infiel. Ficai certa de que era o dele porque lho arranquei do peito com as minhas próprias mãos pouco antes do meu regresso.”
“É escusado perguntar quão magoada ficou a dama quando soube o que tinha acontecido àquele que ela amava acima de tudo. Passados uns momentos, disse: “Fizestes o que só pode fazer um cavaleiro desleal e ruim. Se fui eu que o fiz dono do meu amor sem ele me ter obrigado e nisto vos ultrajei, era a mim e não a ele que devíeis castigar. Mas jamais Deus queira que, sobre um tão nobre manjar como foi o do coração dum tão valoroso e cortês cavaleiro que era Dom Guilherme Guardastagno, caia mais alguma comida!” Pôs-se de pé e, sem mais reflectir, deixou-se tombar de costas por uma janela que se encontrava atrás de si. A janela ficava muito acima do solo e, por isso, a dama ao cair não só ficou morta mas quase toda desfeita. Ao ver aquela cena, Dom Guilherme ficou estarrecido e considerou que tinha agido mal. Com medo do povo e do conde da Provença, mandou selar os cavalos e fugiu.
“Na manhã seguinte, toda a região ficou a saber como o caso se tinha passado. Os habitantes do castelo de Dom Guilherme Guardastagno e os do castelo da dama recolheram os dois corpos e com enorme dor e pranto colocaram-nos dentro da mesma sepultura da igreja do próprio castelo da dama. Sobre a sepultura foram escritos versos narrando quem eram os que estavam lá dentro, o como e a razão das suas mortes.”
A esposa dum médico mete dentro duma arca o amante drogado com ópio, convencida de que ele estava morto. Dois usurários levam a arca para casa com o homem lá dentro. Este acorda e é preso como ladrão. A criada da dama vai contar à autoridade como tendo sido ela a metê-lo na arca roubada pelos usurários. Assim o homem escapa da forca e os agiotas são condenados a multa em dinheiro por terem furtado a arca. (Nota 21) A tantas tragédias Dioneu acrescenta a sua divertida comédia de amor: uma aventura complicada e cheia de surpresas, que parte dum morto provisório entre os braços da sua assustada amante e que vai ter um bom fim apenas mercê da ajuda duma criada compreensiva.” (Fim da nota)
Acabara o rei a sua narrativa e só faltava a Dioneu cumprir a sua missão. Ciente disto e recebida a ordem do rei, começou:
“As desgraças dos infelizes amores que foram contadas contristaram os olhos e os corações não só a vós como também a mim, pelo que desejei profundamente que elas chegassem ao termo. Louvado seja Deus, que agora já acabaram, a não ser que eu quisesse pôr um mau remate a esta malvada mercadoria, do que Deus me livre. Não voltarei atrás a tão doloroso assunto e apresentarei uma história um pouco mais alegre e agradável, dando talvez um bom indício para o que se irá contar na próxima jornada.
“Deveis saber, belíssimas donzelas, que ainda não há muito tempo houve em Salerno um médico cirurgião muito famoso cujo nome era Mestre Mazzeo delia Montagna. (Nota 22) Foi identificado com Mateus Selvático Montano, o qual morreu muito velho, em 1342. (Fim da nota) Estando ele já numa avançada velhice, casou com uma formosa e gentil dama da mesma cidade. Dava-lhe o médico fartura de elegantes e caros vestidos, de jóias e de tudo o que pode agradar a uma dama, como nenhuma outra da cidade possuía. Mas a verdade é que ela passava a maior parte do tempo cheia de frio, porque o mestre não a cobria lá muito bem na cama. Assim como Dom Ricardo de Chinzica ensinava à própria esposa os dias santos, assim este mostrava à sua que o ter-se deitado uma vez com uma mulher custava não sei quantos dias a recompor-se, bem como outras tolices do mesmo tipo. Vivia ela muitíssimo descontente, mas como era esperta e arrojada, a fim de responder à poupança doméstica, resolveu sair à rua e esbanjar o alheio. Olhou para bastantes jovens e finalmente entrou-lhe na mente um em que pôs toda a sua esperança, toda a sua alma e toda a sua felicidade. O jovem apercebeu-se e com muito agrado dedicou-lhe também todo o amor. Chamava-se ele Rogério de Aièroli, nobre de nascimento mas de má vida e de reprovável condição, tanto que não se encontrava um só parente ou amigo para o estimar ou desejar vê-lo. Tinha fama em toda Salerno de cometer roubos e outras acções de muita vileza. Mas a dama pouco se ralou, pois eram outros os motivos por que dele se agradava. Com a ajuda duma criada combinou tudo de tal modo que acabaram por encontrar-se. Depois de se terem deleitado durante algum tempo, a dama pôs-se a censurá-lo pela sua vida passada e a pedir-lhe que, por amor dela, se deixasse daquelas coisas. E para o ajudar no intento, começou a dar-lhe de vez em quando algumas quantias de dinheiro.
“Continuavam eles a encontrar-se um com o outro com muita discrição quando aconteceu entregarem nas mãos do médico um doente que sofria de uma perna. O médico observou-lhe o defeito e disse à família que, se não lhe tirassem um osso apodrecido que ele tinha naquela perna, necessariamente ou lhe era cortada toda a perna ou ele morreria. Tirando-lhe o osso, poderia ficar curado, mas não assumia a responsabilidade da sua morte. Os familiares concordaram e assim lho confiaram. Como devia fazer a operação ao fim da tarde, de manhã dissolveu em água uma certa composição sua, suficiente para que, bebendo-a, o fizesse dormir tanto quanto era necessário para tratar o enfermo. Mandou trazer a poção para sua casa e foi pô-la no seu quarto, sem dizer a ninguém do que se tratava. Chegada a hora de vésperas, quando o mestre estava para ir ter com o doente, chegou-lhe um mensageiro da parte de uns grandes amigos seus de Amalfi. Pediam-lhe que por coisa nenhuma deixasse de lá ir imediatamente porque tinha havido uma grande zaragata e os feridos eram muitos. O médico adiou para a manhã seguinte o tratamento da perna, subiu para uma barca e dirigiu-se a Amalfi.
“Quando a mulher viu que ele não voltaria aquela noite a casa, mandou chamar em segredo Rogério, como era seu costume, e meteu-o no quarto, fechando-o até que as outras pessoas da casa se fossem deitar. Estava Rogério no quarto à espera da dama quando, fosse pelo cansaço da longa jornada, fosse por ter comido alguma coisa salgada, fosse pelo hábito, sentiu uma sede muito grande. Ao ver em cima da janela o frasco de água que o médico preparara para o enfermo e julgando tratar-se de água de beber, levou-o à boca e bebeu-a toda. Passado um pouco, deu-lhe um grande sono e caiu adormecido. A dama foi logo que possível para o quarto e, ao dar com Rogério a dormir, começou a abaná-lo e a dizer-lhe em voz baixa que acordasse, mas de nada lhe servia: ele não respondia nem se mexia. Então a dama, um pouco preocupada, abanou-o com mais força dizendo: “Levanta-te, dorminhoco! Se querias dormir, devias ir para tua casa e não para aqui.” De tanto o sacudir, Rogério caiu por terra de cima da arca sobre a qual se estendera e não deu impressão de atitude diferente da que daria um corpo morto. A dama, um tanto assustada, tentou levantá-lo, sacudiu-o com mais força, apertou-lhe o nariz, puxou-lhe a barba, mas tudo em vão: ele tinha o burro bem preso à estaca. Receou a dama que ele tivesse morrido, mas ainda lhe deu alguns beliscões e pôs-se a queimá-lo com uma vela acesa, tudo para nada. Assim, ela, que não era médica, apesar de ser médico o marido, não teve dúvidas de o considerar morto. Escusado é perguntar quão doloroso lhe foi o caso se ela o amava acima de tudo. Sem ousar fazer barulho, começou silenciosamente a chorar sobre ele e a carpir-se de tamanha desventura. Mas depois de algum tempo, receosa de acrescentar ao seu prejuízo a vergonha, a dama pensou que era urgente encontrar forma de tirar de casa o morto. Não sabendo como resolver o caso, chamou discretamente a criada, revelou-lhe a sua infelicidade e pediu-lhe um conselho. A criada ficou assombradíssima, puxou-o também ela, apertou-o e, vendo que não dava sinal de vida, afirmou o mesmo que a patroa: estava morto. Aconselhou-a, pois, a pô-lo fora de casa. Retorquiu-lhe a senhora: “E onde é que o vamos nós pôr para que ninguém desconfie, ao ser descoberto amanhã, de que foi tirado daqui?” Respondeu-lhe a criada: “Senhora, vi hoje ao fim da tarde diante da loja do nosso vizinho carpinteiro uma arca não demasiado grande. Se o mestre não a tiver metido em casa, ela virá mesmo a propósito do nosso caso. Podemos metê-lo lá dentro, dar-lhe duas ou três punhaladas e deixá-lo ficar. Quem o descobrir ali, não vejo porque há-de julgar ter ele vindo daqui e não de outro sítio. O mais fácil é acreditar que, por ter sido um jovem ruim, ao andar por aí a fazer alguma patifaria, tenha sido morto por um inimigo e depois metido na arca.” O conselho da criada agradou à dama, excepto naquilo das punhaladas, afirmando que por nada deste mundo teria a coragem de suportar tal coisa. Mandou-a ir ver se ainda lá estava a arca que tinha visto e ela foi ver e disse que sim. Então a criada, que era moça e vigorosa, ajudada pela dama, pegou em Rogério às costas. A senhora foi à frente para reparar se alguém vinha e, chegadas à arca, meteram-no lá dentro, voltaram a fechá-la e deixaram-no ficar.
“Naqueles dias, tinham vindo morar numa casa um pouco mais adiante dois jovens usurários de profissão. Desejosos de ganhar bastante e de gastar pouco, como precisavam de mobília, tinham visto a mesma arca e resolveram um com o outro levarem-na para casa deles se ela ainda lá estivesse durante a noite. Quando a meia-noite chegou, saíram de casa, encontraram a arca e, sem olharem para mais nada, apesar de ela lhes parecer um tanto pesada, levaram-na para casa e arrumaram-na encostada ao quarto onde dormiam as mulheres da casa, sem se preocuparem em cuidar mais dela naquele momento. Deixaram-na ali ficar e foram dormir.
"Rogério tinha dormido um grande bocado, digerira já a poção e, perdendo esta a sua força, perto da manhã acordou. Apesar de quebrado o sono e de recuperada a força dos sentidos, manteve-se no entanto no seu cérebro um pasmo que o conservou entorpecido não apenas aquela noite mas ainda vários dias. Abriu os olhos, não viu nada, estendeu as mãos tacteando aqui e acolá e, achando-se naquela arca, pôs-se a recordar e a pensar: “Que é isto? Onde é que estou? Estou eu a dormir ou acordado? Lembro-me de que esta tarde entrei no quarto da minha dama e agora parece-me que estou dentro de uma arca. Que significa isto? Teria voltado o médico ou acontecido outro acidente para que a dama, comigo a dormir, aqui me tivesse escondido? Acredito: foi com certeza o que aconteceu.” Deixou-se, pois, estar quieto, procurando ouvir alguma coisa. Deste modo se conservou um grande período, mas como estava pouco à vontade na arca, que era pequena, e como lhe doía o lado sobre o qual estava deitado, quis voltar-se para a outra banda. Feito porém tão jeitosamente que bateu com as costas num dos lados da arca, a qual se encontrava bem assente no chão. Fê-la inclinar-se e depois cair. A queda provocou um grande barulho que acordou as mulheres a dormir no quarto vizinho. Assustadas, com o mesmo susto se calaram. Quando a arca tombou, Rogério apanhou um grande medo, mas, percebendo que ela se abrira com a queda, preferiu, se alguma coisa mais devia acontecer, estar antes fora do que dentro. Sem saber onde se encontrava, entre uma dúvida e outra, começou a andar às apalpadelas pela casa, à procura de uma escada ou de uma porta por onde pudesse sair. As mulheres, acordadas, ouviram-lhe o barulho e perguntaram: “Quem anda aí?” Como não conhecia as vozes, Rogério não dava resposta. Então as mulheres puseram-se a chamar pelos dois jovens que, por terem feito prolongada vigília, estavam a dormir profundamente e não ouviam absolutamente nada. Ainda mais assustadas as mulheres levantaram-se, correram para as janelas e puseram-se aos gritos: “Ao ladrão! Ao ladrão!” Apareceram vizinhos de vários pontos e, uns pelos telhados, outros por ali, outros por acolá penetraram na casa. Levantaram-se igualmente os dois jovens acordados por tanto barulho. Ao ver-se ali, Rogério ficou fora de si com espanto. Não encontrando saída para fugir, foi preso e entregue aos guardas do governador da cidade. Levado à presença do governador, como toda a gente o considerava um celerado, logo foi submetido à tortura e confessou ter penetrado em casa dos prestamistas para roubar. O governador resolveu mandá-lo para a forca sem grandes demoras. De manhã, toda Salerno soube da notícia de que Rogério tinha sido preso quando assaltava a casa dos usurários. Ao ouvirem a notícia, a dama e a criada ficaram assombradíssimas com aquele caso tão insólito, de tal maneira que quase chegaram a não acreditar que tivessem feito o que realmente elas próprias fizeram na passada noite. Talvez que tivesse sido um sonho. Além disso, a dama sentia uma dor tão forte por causa do perigo em que Rogério estava que quase enlouquecia.
“Ao fim da manhã, o médico regressou de Amalfi e pediu que lhe trouxessem a água, pois queria tratar do seu enfermo. Ao dar com o frasco vazio, fez um grande barulho, que nada se podia guardar naquela casa. A dama, já enervada com outra dor, respondeu irritada: “Que diríeis, mestre, de uma coisa importante quando fazeis tanto barulho por causa de um frasco de água que se entornou? Não há mais água no mundo?” O mestre retorquiu-lhe: “Senhora, estás a pensar que era água simples, mas não: era uma água preparada para fazer dormir.” Contou-lhe, então, o motivo por que o tinha preparado. Mal a dama ouviu tal coisa, logo concluiu que Rogério a tinha bebido e por isso lhe pareceu morto. “Mestre – disse ela –, nós não sabíamos; tendes de preparar outra.” O doutor, vendo que outra coisa não podia fazer, mandou preparar uma nova poção. Passado pouco tempo, a criada, que, por ordem da senhora, tinha ido saber o que se falava de Rogério, regressou e disse-lhe: “Senhora, toda a gente diz mal de Rogério e, pelo que pude ouvir, não há nenhum amigo nem familiar que tenha ido ou queira ir defendê-lo e dá-se como certo que amanhã o governador vai mandá-lo para a forca. Tenho, ainda, uma coisa estranha para contar-vos: parece-me ter percebido que ele foi encontrado em casa dos prestamistas. Escutai como foi. Conheceis bem o carpinteiro em frente de cuja loja estava a arca onde nós o metemos. Ele estava há pouco a discutir com um homem que parecia ser o dono da arca. Aquilo parecia a maior discussão do mundo. O homem exigia-lhe o dinheiro da sua arca e o mestre respondia que não tinha vendido a arca, que ela lhe tinha sido roubada durante a noite. O tal homem voltou a dizer: “Não é verdade! Vendeste-a aos jovens prestamistas como eles próprios me contaram quando descobri a arca em casa deles na altura em que prenderam Rogério.” O carpinteiro respondeu-lhe: “Eles estão a mentir, pois eu nunca lhes vendi a arca. Foram eles que a roubaram esta noite. Vamos a casa deles!” Lá concordaram em ir a casa dos prestamistas e eu voltei para cá. Como estais a ver, entendo que foi dessa maneira que Rogério foi levado para lá e depois descoberto. Só não entendo como é que ele ressuscitou.”
“A dama compreendeu então como se tinha passado o caso e contou à criada o que lhe tinha dito o médico. Pediu-lhe depois que a ajudasse a libertar Rogério, pois que, se ela quisesse, podia ao mesmo tempo salvar Rogério e conservar a honra da sua senhora. Disse-lhe a criada: “Ensinai-me como, senhora, que eu farei tudo com muito gosto.” A dama, como quem se sente apertado na cintura, teve uma súbita inspiração do que era preciso fazer e industriou, ponto por ponto, a criada. Começou esta por ir falar com o médico e disse-lhe chorando: “Senhor, tenho de pedir-vos perdão por um grande pecado que cometi contra vós.” Perguntou-lhe o doutor: “Que fizeste?” A criada, sem deter as lágrimas, respondeu: “Senhor, vós sabeis quem é o jovem Rogério de Aièroli. Gostou de mim e, tanto por medo como por amor, este ano aceitei tornar-me sua amiga. Ao saber que ontem à noite não estáveis em casa, ele tanto me namorou que o trouxe para vossa casa, a dormir comigo na minha cama. Como ele estava com sede e eu não tinha onde ir logo à água ou ao vinho, porque não queria que vossa esposa, que estava na sala, me visse, lembrei-me de ter visto no vosso quarto um frasco com água. Corri a buscá-lo e dei-lha a beber, voltando a pôr a garrafinha onde a tinha tirado. Agora ouvi dizer que ralhaste muito cá em casa. Com certeza, confesso que fiz mal, mas quem é que nunca faz mal uma vez? Estou muito arrependida de o ter feito, justamente por isto e pelo que aconteceu: Rogério está em riscos de perder a vida. Rogo-vos, pois, tanto quanto posso, que me perdoeis e me deis licença de eu ir ajudá-lo dentro do que estiver ao meu alcance.”
“O médico, depois de a escutar, embora muito furioso, respondeu-lhe em tom de brincadeira: “Tu própria te penitenciaste porque pensavas ter esta noite um jovem que te escovasse muito bem o pêlo e tiveste um dorminhoco. Vai pois ganhar a salvação do teu amante e a partir de hoje livra-te de o trazeres mais alguma vez a casa, senão far-te-ei pagar por esta e pela outra.”
“Pareceu à criada que a primeira cartada estava ganha e foi o mais rapidamente possível à prisão onde estava Rogério. Tanto adulou o carcereiro que ele deixou-a conversar com o preso. Ela informou-o do que devia responder ao governador se quisesse escapar e, depois, tanto fez que foi ela à presença do governador. Este, antes de a escutar, como era fresca e vigorosa, quis aproveitar-se da maré para prender a fateixa naquela filha de Deus e ela, para melhor ser ouvida, não se mostrou nada esquiva. Depois da moedura, a criada levantou-se e disse: “Senhor, tendes cá preso como ladrão Rogério de Aièroli, mas isso não é verdade.” Começando desde o princípio, contou-lhe a história até ao fim, de como ela, sua amiga, o tinha levado para casa do médico, de como lhe dera a beber água com ópio sem ela saber e de como o tinha metido na arca, tomando-o por morto; depois disto, contou-lhe o que ouvira entre o mestre carpinteiro e o dono da arca, revelando-lhe a maneira como Rogério tinha entrado em casa dos prestamistas.
“O governador considerou que era fácil descobrir se aquilo era verdade e começou por perguntar ao médico se era verdadeira a história da água, sendo-lhe confirmado que assim tinha sido. Depois mandou convocar o carpinteiro, o dono da arca e os prestamistas e, após muitas histórias, confirmou que os prestamistas tinham roubado a arca na noite anterior, levando-a para casa deles. Finalmente, mandou vir Rogério e perguntou-lhe onde se tinha albergado durante a noite. Ele respondeu que onde se albergara não sabia, mas recordava-se muito bem de que fora albergar-se com a criada do doutor Mazzeo e no quarto dela tinha bebido água por estar com muita sede. Mas o que depois lhe aconteceu já ele não sabia, senão que acordou dentro duma arca em casa dos prestamistas. O governador divertiu-se muito com o caso, obrigando a criada, Rogério, o carpinteiro e os prestamistas a repetirem várias vezes a história. No final declarou a inocência de Rogério, condenou os prestamistas que tinham roubado a arca à multa de 10 onças e pôs Rogério em liberdade. Escusado é dizer o que isto agradou a Rogério e como deixou contentíssima a sua dama.
“Quando esta se encontrava com ele e com a criada que o quisera apunhalar, muitas vezes se riram e se divertiram, prosseguindo de bem para melhor o seu amor e a sua folgança. Bem gostaria que o mesmo me acontecesse, mas sem ser metido na arca.”
Se as primeiras novelas tinham contristado os corações das ternas donzelas, a última de Dioneu fê-las rir tanto, sobretudo quando ele falou do governador que tinha prendido a fateixa, que puderam recompor-se do sofrimento provocado pelas outras. Vendo, porém, o rei que o Sol começava a ficar pálido e que o termo do seu reinado estava a chegar, pediu desculpa às damas com palavras muito agradáveis por ter feito o que fizera, ou seja, ter obrigado a falar do assunto tão cruel como era o da infelicidade dos amantes. Depois de perdoado, pôs-se de pé, tirou da cabeça a grinalda e, enquanto as damas esperavam a quem iria ele colocá-la, amavelmente pousou-a na louríssima cabeça de Fiammetta, dizendo: “Entrego-te esta coroa porque, mais do que nenhuma outra, saberás consolar as nossas companheiras da áspera jornada de hoje com a jornada de amanhã.”
Fiammetta tinha cabelos crespos, compridos e de ouro, caindo-lhe sobre os cândidos e delicados ombros descaídos. O rosto era redondinho, com a verdadeira cor dos lírios brancos e das rosas vermelhas em magnífica mistura, com os dois olhos como os dum falcão peregrino e com uma boca pequenina cujos lábios pareciam dois pequenos rubis. Respondeu com um sorriso: “Gostosamente a recebo, Filóstrato, e, para que melhor te dês conta do que fizeste, desde já quero e mando que cada um se prepare para amanhã falar do que a algum amante, depois de alguns cruéis ou desventurados acidentes, felizmente aconteceu.” A proposta agradou a toda a gente e a rainha mandou vir o mordomo, combinou com ele tudo o que era necessário, e, pondo-se todos de pé, deu-lhes alegremente liberdade até à hora da ceia.
Uma parte pelo jardim, cuja beleza estava muito longe de poder enfadar, outra parte em direcção aos moinhos, que moíam fora do jardim, todos a colherem aqui e além variados prazeres segundo os diversos apetites, assim se entretiveram até à hora da ceia. Quando esta chegou, todos se reuniram como de costume junto da magnífica fonte e cearam com grande prazer e bem servidos. Depois de se erguerem da mesa, entregaram-se como nos outros dias às danças e aos cantares. Enquanto Filomena conduzia a dança, a rainha disse: “Filóstrato, não tenciono afastar-me dos que me antecederam e, por isso, tal como eles fizeram, desejo que por minha ordem se cante uma canção. E como tenho a certeza de que as tuas canções são do mesmo estilo que as tuas novelas, para que não tenhamos mais dias perturbados com os teus infortúnios, determinamos que nos digas aquela que mais te agradar.” Filóstrato respondeu que a diria com agrado e logo começou a cantar da seguinte maneira:
Com lágrimas eu provo
como está certo que doa o coração
de ver traído o amor sob juramento.
Amor, a vez primeira que puseste
no meu coração aquela por quem suspiro
sem esperar salvação,
tão cheia a mostraste de virtude
que eu achava leve todo o martírio
que por tua causa me entrasse
na alma, que ficou sofrendo;
agora conheço o meu erro e com que sofrimento.
Deu-me consciência do engano
ver-me abandonado por aquela
minha única esperança;
quando eu mais o julgava estar
na sua graça e dela ser servo
sem olhar ao castigo
do meu penar futuro,
descobri ter ela aberto o coração
ao valor de um outro, dele me expulsando.
Quando me vi escorraçado,
nasceu-me no coração um pranto doloroso
que ainda continua;
muitas vezes maldigo o dia e a hora
em que antes me surgiu o seu rosto amoroso
ornado de alta beleza
e mais do que tudo flamejante;
a alma que morre vai lastimando
a minha fé, a esperança e o ardor.
Quanto é sem conforto o meu sofrimento
bem o podes saber, senhor, tanto eu por ti chamo
com dolorosa voz;
e digo-te que tanto ele me queima
que anseio pela morte por ser menor martírio;
venha ela, pois,
à minha vida cruel e perversa
pondo termo e à minha loucura,
que, para onde quer que eu vá, o sentirei menor.
Nenhuma outra vida, nenhum outro conforto
me resta senão a morte para o meu desgosto;
dá-me então, amor, a morte,
com ela acabam os meus infortúnios,
esvazia o coração de vida tão miserável;
ah!, faz isto, pois que sem razão
me tiraram alegrias e sossego;
torna-a feliz com a minha morte, senhor,
como já a tornaste com o novo amante.
Minha balada, se ninguém te agarrar
eu não me importo, porque mais ninguém
como eu te pode cantar;
um único trabalho te confiarei:
vai procurar o amor e mostra-lhe plenamente
apenas uma coisa: quanto eu desprezo
a triste e amarga vida,
rogando-lhe que nos faça chegar
a melhor porto pela sua honra.
“Provaram bem claramente as palavras desta canção qual o estado de espírito e qual a razão de Filóstrato. E talvez mais claramente o teria declarado o aspecto duma certa dama que andava na dança se as trevas da noite que havia chegado não lhe tivessem escondido o rubor que lhe aflorara ao rosto. Mas depois de Filóstrato acabar, cantaram-se muitas outras até à hora de ir dormir, altura em que, por ordem da rainha, cada qual se recolheu ao seu quarto.
Concluída a quarta jornada do “Decâmeron”, começa a quinta, na qual, sob o reinado de Fiammetta, se fala do que a algum amante, depois de alguns cruéis ou desventurados acidentes, felizmente aconteceu. (Nota 1) A feliz conclusão dum amor de fortuna, desejado por Fiammetta para compensar as trágicas conclusões da jornada anterior, é apenas um fio exterior que liga tenuemente entre si as novelas tão variadas de tom e de inspiração: comédias (V, VII) e farsa (X), aventura (I) e drama (VI), fantasias ansiosas (III) ou maliciosas (IV), plenas de deslumbramento (VIII) ou de gentil ternura (II) ou ainda de melancolia (IX). (Fim da nota)
Já o oriente clareara por completo e os raios nascentes tinham iluminado todo o nosso hemisfério quando Fiammetta, incitada pelos suaves cantos dos pássaros que trinavam alegremente pelos arbustos desde a primeira hora do dia, se levantou e mandou chamar todas as outras donzelas e os três jovens. Com passos suaves, desceu aos campos e foi passear pela vasta planície sobre as orvalhadas ervas, conversando com eles de uma e outra coisa, até que o Sol subisse um pouco mais. Mas, ao sentir que os raios solares eram já escaldantes, dirigiu os passos para a sala. Uma vez lá chegados, mandou restaurar-lhes o ligeiro cansaço com óptimos vinhos e bolos. Foram depois passear pelo aprazível jardim até à hora do almoço. Quando a hora chegou, o discretíssimo mordomo tinha tudo preparado. Depois de cantarem algumas trovas e uma ou duas baladas, alegremente começaram a comer quando aprouve à rainha. Depois de almoçarem ordeiramente e com alegria, não se esqueceram da ordem recebida para dançarem e fizeram algumas danças acompanhadas por instrumentos musicais e por canções. Em seguida, a rainha deu liberdade a todos até depois da hora da sesta. Alguns foram dormir e outros deixaram-se ficar no jardim a recrearem-se. Mas, um pouco depois da hora noa, quando a rainha decidiu, reuniram-se segundo a forma do costume perto da fonte. A rainha foi sentar-se pro tribunali, (Nota 2) No lugar de honra. (Fim da nota) olhou para Pânfilo, sorriu e ordenou-lhe que iniciasse as felizes novelas. Pânfilo dispôs-se a fazê-lo de bom grado e assim contou:
Cimone torna-se inteligente pelo amor e rapta no mar a sua dama Efigénia. Metido na prisão em Rodes, é de lá tirado por Lisímaco e os dois raptam Efigénia e Cassandra nas suas núpcias, fugindo com elas para Creta. Casados com elas, são depois chamados ás suas casas. (Nota 3) A novela – derivada provavelmente dum romance grecobizantino – é a mais alta celebração das virtudes do amor, que agora desce das místicas auras do “stil nuovo” até à sua total e humana realidade terrena. O encontro de Cimone com Efigénia é uma página de pura poesia, que já respira o encanto e a graça de certas cenas de Poliziano. Depois o motivo dispersa-se entre as aventuras fabulosas, de que se realçam algumas cenas mais vivas, como a do rapto, mas Efigénia permanece na sombra, estranhamente privada de vida. (Fim da nota)
“Surgem-me na memória muitas novelas, agradáveis senhoras, para inaugurar uma jornada tão feliz como esta vai ser. De todas, há uma que me agrada mais, não só porque podeis compreender o desfecho feliz sobre o qual vamos discorrer, mas também compreender como são santas, poderosas e plenas as forças do amor, que muitos condenam e injuriam muito erradamente, sem saberem o que estão a dizer. Como, se não erro, julgo que todas estais apaixonadas, a novela agradar-vos-á bastante.
“Ora, como já lemos na história antiga dos cipriotas, viveu na ilha de Chipre um nobilíssimo varão que tinha o nome de Aristipo e que era o mais rico de bens temporais entre todos os seus conterrâneos. Poderia ele ser também o mais feliz de todos se a fortuna não lhe tivesse dado um desgosto: entre os seus vários filhos, havia um que sobressaía de todos os outros jovens em estatura e elegância de corpo, mas que era quase imbecil, sem esperança de recuperação. O seu verdadeiro nome era Galeso, mas como nem o esforço dos mestres, nem o estímulo ou as tareias do pai, nem o talento de qualquer outra pessoa jamais lhe conseguiram meter na cabeça uma só letra ou qualquer educação que fosse, mostrando ao invés uma voz grossa e disforme e maneiras mais próprias de animal que de homem, em jeito de escárnio toda a gente lhe chamava Cimone, o que na língua deles significava o mesmo que “asno”. (Nota 4) A etimologia não tem qualquer base e talvez derive da inexacta interpretação dum passo de Valério Máximo, onde é dito que o estratega ateniense Címon, filho de Milcíades, era considerado em criança como imbecil. (Fim da nota)
O pai suportava com muitíssima angústia aquela vida perdida e, depois de lhe ter fugido toda a esperança sobre ele, para não ter diante dos olhos a causa da sua dor, ordenou-lhe que fosse para a aldeia e lá vivesse com os seus trabalhadores. Cimone ficou felicíssimo, pois a educação e os costumes daqueles homens rudes lhe agradavam mais do que os da cidade. Foi, assim, para a aldeia e tornou-se hábil nos trabalhos do campo. Ora um dia, indo ele de uma propriedade para a outra com o cajado aos ombros, já depois do meio-dia, entrou num pequeno bosque que era o mais belo daquela província e todo ele frondoso, porque se estava no mês de Maio. Enquanto ia caminhando e como se fosse guiado pela fortuna, chegou a um prado envolvido por árvores altíssimas e onde havia numa das extremidades uma fonte lindíssima e fresca. Ao lado dela, dormindo sobre o verde prado, estava uma formosíssima donzela que trajava um vestido tão fino que mal escondia as suas cândidas formas. Da cintura para baixo, estava apenas coberta por uma colcha alvíssima e delicada. Aos seus pés dormiam igualmente duas mulheres e um homem, criados da donzela. Quando Cimone a viu, pareceu que nunca ele tinha visto figura de mulher. Deteve-se apoiado ao cajado, sem dizer palavra, e pôs-se a contemplá-la absorvidíssimo e numa admiração enorme. E no seu rude peito, onde mil ensinamentos não conseguiram fazer entrar qualquer vestígio de gosto citadino, sentiu despertar um pensamento que, na sua mente material e grosseira, lhe dizia ser ela a mais formosa coisa que jamais algum ser vivo tivesse olhado. Começou depois a observar as diferentes partes, louvando-lhe os cabelos, que pareciam de ouro, a testa, o nariz e a boca, o pescoço e os braços e sobretudo o peito, ainda com pouco relevo. De lavrador, tornou-se de súbito apreciador de beleza, sentindo intensamente o desejo de ver os olhos que ela tinha fechados com o peso dum profundo sono. Várias vezes teve vontade de a acordar para os ver, mas como lhe parecia extraordinariamente mais bela do que as outras mulheres que antes tinha visto, duvidava se não seria alguma deusa. Ora ele possuía suficiente sabedoria para julgar os seres divinos dignos de mais reverência do que os seres humanos. Por isso dominava-se, esperando que ela acordasse por si mesma e, embora a espera lhe parecesse demasiada, não era capaz de se afastar, prisioneiro daquele raro prazer.
“Depois de longa demora, a jovem, cujo nome era Efigénia, acordou antes dos criados, levantou a cabeça, abriu os olhos e, vendo em pé diante de si Cimone, ficou muito admirada e disse: “Cimone, de que andas à procura pelo bosque a esta hora?” Quase toda a gente da região conhecia Cimone tanto pela sua figura, como pela sua rudeza, como pela nobreza e fortuna do pai. Cimone não respondeu coisa nenhuma às palavras de Efigénia, mas, quando lhe viu os olhos abertos, começou a olhá-los fixamente e pareceu-lhe que saía deles uma suavidade que o enchia dum prazer por ele nunca saboreado. Ao ver isto, a donzela teve receio de que aquele seu olhar tão fixo levasse a sua rudeza a alguma acção que a pudesse cobrir de vergonha. Chamou, assim, as aias e levantou-se dizendo: “Adeus, Cimone.” Cimone respondeu-lhe então: “Eu acompanho-te.” Por mais que a donzela recusasse a sua companhia, sempre com medo dele, não conseguiu afastá-lo enquanto ele a não acompanhou até sua casa.
“Cimone foi dali direito a casa do pai, declarando que de maneira nenhuma queria voltar para a aldeia. Por muito que custasse ao pai e à família, deixaram-no ficar, esperando descobrir o motivo que o fizera mudar de opinião. Depois de a seta do amor disparada pela beleza de Efigénia ter penetrado no coração de Cimone, onde nunca pudera entrar qualquer doutrina, em brevíssimo tempo, juntando ideia sobre ideia, deixou maravilhados o pai, a família e todos os que o conheciam. Começou, primeiramente, por pedir ao pai que o fizesse andar vestido com os trajes e todos os outros enfeites com que andavam os irmãos, o que deixou o pai satisfeitíssimo. Em seguida, começou a conviver com os melhores rapazes e a aprender as maneiras que deviam ter os fidalgos e sobretudo os apaixonados. Com a maior admiração de toda a gente, em muito pouco tempo, não só aprendeu as primeiras letras, como se tornou o melhor aluno de Filosofia. Depois, sendo o amor que ele tinha a Efigénia a causa de tudo isto, não só transformou a voz rude e rústica numa pronúncia conveniente e citadina, como se tornou mestre de canto e de música, além de muito habilidoso na equitação e nas artes bélicas, tanto de mar como de terra. Em suma, para não estarmos a contar todos os pormenores sobre as suas capacidades, ainda não tinham passado quatro anos desde o dia da sua primeira paixão e já ele conseguia ser o mais elegante, o mais culto e o jovem de mais raras qualidades entre todos os que havia em Chipre. Que diremos pois de Cimone, agradáveis senhoras? Certamente outra coisa não diremos senão que as altas virtudes infundidas pelo Céu na sua valorosa alma tinham sido ligadas e guardadas pela fortuna com fortíssimas cadeias num pequeníssimo recanto do seu coração. Mas todos estes laços foram quebrados e desfeitos pelo amor, muito mais poderoso do que a fortuna. Ele que sabe despertar os espíritos adormecidos, atirou para a luz clara aquelas virtudes ofuscadas pelas trevas cruéis, mostrando abertamente de onde arranca os espíritos a ele submissos e para onde os conduz com os seus raios.
“Embora Cimone no seu amor por Efigénia cometesse alguns daqueles exageros que é frequente serem cometidos pelos jovens apaixonados, no entanto Aristipo, ao considerar que o amor lhe transformara o filho de carneiro num homem, não só o suportava pacientemente como o apoiava em prosseguir na busca do que desejava. Cimone, que recusava o nome de Galeso por recordar de que assim lhe chamara Efigénia, querendo levar a bom termo o seu desejo, sondou várias vezes Cipseu, pai de Efigénia, se lha queria dar por mulher. Mas Cipseu ia sempre respondendo que a tinha prometido a Pasimondas, um jovem da nobreza de Rodes, e que não tencionava desdizer-se. Quando chegou à altura das combinadas núpcias de Efigénia e o marido mandou por ela, Cimone pensou: “Já é tempo, ó Efigénia, de mostrar quanto és amada por mim. Foi por ti que eu me tornei homem e, se eu te puder possuir, tenho a certeza que serei mais glorioso do que algum deus. Ou serás minha ou morrerei.”
“Com este pensamento, chamou discretamente alguns nobres seus amigos, mandou armar um navio com tudo o que era necessário para uma batalha naval e meteu-se ao mar, esperando o barco que devia transportar a Rodes Efigénia para a levar ao marido. Depois de grandes honras que o pai de Efigénia prestou aos amigos do marido, o barco fez-se ao mar, viraram a proa para Rodes e partiram. Cimone não estava a dormir e no dia seguinte alcançou-os com o seu barco. Subiu à proa e gritou em voz forte aos que estavam no barco de Efigénia: “Parai, amainai as velas, se não quiserdes ser vencidos e metidos no fundo do mar.” Os adversários de Cimone haviam trazido as armas para a coberta e preparavam-se para a defesa. Então Cimone, depois da sua fala, pegou num arpão de ferro, atirou-o à ré do barco de Rodes que se afastava velozmente e ligou-o com todo o vigor à proa do seu navio. Com a fúria dum leão e sem esperar que mais alguém o seguisse, saltou para o barco dos de Rodes como se todos nada valessem para ele. Esporeado pelo amor, atirou-se com espantosa força para o meio dos inimigos com o punhal na mão. Ferindo ora este ora aquele, abatia-os como se fossem ovelhas. Os de Rodes, ao verem tal coisa, lançaram as armas em terra e, como a uma voz, declararam-se rendidos. Cimone disse-lhes: “Rapazes, não foi a avidez dos despojos nem o ódio que me fizeram partir de Chipre contra vós para vos assaltar à mão armada em pleno mar. O que me impeliu é para mim uma coisa valiosíssima de conquistar e para vós uma coisa muito fácil de me concederdes em paz: é Efigénia. Amo-a acima de todas as coisas e, como a não pude obter de seu pai como amigo e em paz, sou forçado pelo amor a conquistá-la a vós como inimigo e com as armas. Pretendo ser para ela o que devia ser o vosso Pasimondas. Entregai-ma e ide com a graça de Deus.” Os homens, mais constrangidos pela força do que levados pela liberalidade, entregaram a chorosa Efigénia a Cimone, que, ao vê-la chorar, lhe disse: “Nobre senhora, não estejais desconsolada. Sou o teu Cimone, que te mereceu muito mais com o seu prolongado amor do que Pasimondas com a palavra dada.”
“Depois de a ter feito passar para o seu barco, sem tocar em coisa nenhuma dos rodenses, voltou para junto dos companheiros e deixou-os ir embora. Cimone sentia-se o homem mais feliz do mundo com a conquista de tão valiosa presa. Depois de ter passado algum tempo a consolar a chorosa dama, deliberou com os companheiros não voltar por enquanto a Chipre. Por decisão unânime, viraram a proa do navio em direcção a Creta, onde quase todos e especialmente Cimone consideravam ficar bem a seguro juntamente com Efigénia, dados os novos e os velhos parentescos e as muitas amizades que lá possuíam. Mas a instável fortuna, que tão ledamente concedera a Cimone a conquista da donzela, transformou de súbito em triste e amargo lamento a inestimável alegria do jovem enamorado. Ainda não tinham passado quatro horas desde que deixara a gente de Rodes quando, tombando a noite, aquela noite que Cimone esperava como a mais aprazível de todas as noites, se levantou com ela uma tempestade ferocíssima que encheu de nuvens o céu e de perniciosos ventos o mar. Ninguém conseguia enxergar o que era preciso fazer ou para onde iam, nem se conseguia estar de pé no convés do navio para fazer qualquer manobra. É escusado perguntar como isto fez sofrer Cimone. Pareceu-lhe que os deuses lhe tinham concedido o seu desejo para que lhe fosse mais dolorosa a morte, da qual não cuidaria sem a posse desse desejo. Lamentavam-se igualmente os seus companheiros, mas mais do que todos queixava-se Efigénia, chorando alto e assustada com as pancadas das ondas. No seu lamento maldizia asperamente o amor de Cimone e censurava a sua ousadia, afirmando que aquela infortunada intempérie só tinha surgido porque os deuses não permitiam que pudesse gozar do seu presunçoso desejo aquele que a queria para esposa contra os seus desígnios, mas que a visse a ela morrer primeiro e morresse depois ele miseravelmente.
“Com quejandos lamentos e outros ainda maiores, não sabiam os marinheiros o que fazer. O vento tornava-se cada vez mais forte, até que, sem eles verem ou perceberem para onde iam, chegaram às costas da ilha de Rodes. Desconhecendo que se tratava desta ilha, empenharam-se com toda a arte em, se possível, alcançarem terra para salvarem as vidas. A sorte foi-lhes favorável e conduziu-os a uma pequena enseada à qual, um pouco antes, tinham chegado os rodenses que Cimone havia deixado. Ainda antes de se aperceberem de que tinham lançado ferro na ilha de Rodes, quando surgiu a aurora e clareou um pouco mais o céu, viram estarem a cerca de um tiro de arco do navio que tinham deixado na véspera. Cimone ficou muito preocupado e receoso de que lhe acontecesse o que veio a acontecer, ordenou que tentassem sair dali a toda a força e que a fortuna os levasse aonde lhe aprouvesse, pois não podiam estar em sítio pior do que aquele. Foi grande o esforço para sair dali, mas inútil: o vento fortíssimo soprava em sentido contrário de tal maneira que, quisessem eles ou não, antes de conseguirem sair da enseada, atirou-os para terra. Mal chegaram, logo foram reconhecidos pelos marinheiros rodenses, que já tinham desembarcado. Um destes correu depressa a uma aldeia vizinha, para onde se tinham encaminhado os nobres rodenses, e contou-lhes que Cimone e Efigénia tinham chegado por sorte com o seu navio, tal como eles. Contentíssimos, os nobres reuniram bastantes homens da aldeia e dirigiram-se depressa ao mar. Cimone, que entretanto desembarcara e decidira fugir para uma floresta próxima, foi preso juntamente com todos os outros e com Efigénia. Levados para a aldeia, em seguida chegou da cidade Lisímaco, que nesse ano assumia o supremo governo de Rodes. Acompanhava-o uma companhia de soldados e conduziu Cimone e todos os seus amigos até à prisão, tal como predispusera Pasimondas, a cujos ouvidos a notícia tinha chegado, depois de apresentar queixa ao senado de Rodes.
“Desta maneira triste perdeu o mísero e enamorado Cimone a sua Efigénia, que pouco antes conquistara, sem nada mais haver colhido do que um ou outro beijo. Efigénia foi recebida e reconfortada por numerosas fidalgas de Rodes, tanto pela dor sofrida no seu cativeiro, como pela fadiga suportada no mar encapelado, ficando a viver com elas até ao dia marcado para as núpcias. A Cimone e aos companheiros foi perdoada a pena de morte em atenção à liberdade que ele dera na véspera aos jovens rodenses, apesar de Pasimondas solicitar com todo o seu poder que lhe tirassem a vida. Foram condenados à prisão perpétua, na qual, como podemos imaginar, se encontravam sofrendo e sem mais esperança de qualquer prazer. Pasimondas apressava quanto podia os preparativos das futuras bodas, mas a fortuna, como que arrependida da súbita ofensa feita a Cimone, provocou um novo acidente para o salvar. Tinha Pasimondas um irmão mais novo do que ele, mas não menos valente. Chamava-se Ormisdas e há muito que andava tratando de conseguir como sua esposa uma jovem e formosa fidalga da cidade, chamada Cassandreia, a qual Lisímaco amava apaixonadamente. Diversos acidentes tinham contrariado por várias vezes o casamento. Quando Pasimondas viu estar prestes a festejar com grande solenidade as suas núpcias, pensou que seria excelente aproveitar a mesma festa para não voltar a mais despesas e a mais festejos e fazer com que também Ormisdas se casasse. Reatou as conversações com os pais de Cassandreia e levou-as a bom termo, deliberando juntamente com o irmão que Pasimondas levasse Efigénia e Ormisdas levasse Cassandreia no mesmo dia ao altar.
“Ao saber disto, Lisímaco ficou fora de si com o desgosto por ver-se privado da esperança em que andava de casar certamente com Cassandreia se Ormisdas a não levasse. Mas como homem prudente, guardou dentro de si o desgosto e pôs-se a pensar de que maneira poderia ele impedir que o casamento se efectuasse. Não encontrou outra via a não ser o rapto. Pareceu ser-lhe fácil fazê-lo pelo cargo que tinha, mas achava-o muitíssimo mais desonesto do que se não estivesse naquele cargo. Mas depois de longa reflexão, não tardou que a honestidade cedesse o lugar ao amor e optou por raptar Cassandreia, houvesse o que houvesse. Ao pensar na companhia que tinha de escolher para o acto e no modo de o cometer, lembrou-se de Cimone, que estava na prisão com os companheiros. Imaginou que neste assunto não poderia encontrar melhor companheiro nem de maior confiança, do que Cimone. Ao chegar a noite, mandou-o trazer às ocultas ao seu gabinete e falou-lhe deste jeito: “Cimone, os deuses, tal como são magníficos e liberais doadores das coisas aos homens, são também sagacíssimos em meter à prova as suas virtudes. E àqueles que encontram firmes e constantes em todas as circunstâncias, porque são mais valorosos, fazem-nos dignos dos mais elevados méritos. Eles quiseram ter uma experiência mais confirmada sobre o teu valor do que a experiência que podias dar nos limites da casa do teu pai, que eu sei possuidor de muitas riquezas. Como ouvi contar, começaram eles por transformar-te de insensato animal em ser humano servindo-se das pungentes solicitações do amor; depois, com dura sorte e hoje com dolorosa paixão, querem ver se o teu espírito deixa de ser o que foi no pouco tempo em que tiveste a alegria da presa conquistada. Se ele for o mesmo que era, nada te darão que seja tão feliz como o que se preparam para te oferecer e que eu tenciono mostrar-te a fim de que recuperes as cansadas forças e retomes o ânimo. Pasimondas, feliz com a tua desdita e advogado solícito da tua morte, apressa-se quanto pode para celebrar as núpcias com a tua Efigénia, a fim de nelas gozar da presa que a ditosa fortuna primeiro te concedera para, subitamente irada, depois ta roubar. O que isto te faz sofrer, se tu amas como eu julgo, sei-o por mim próprio, e que o seu irmão Ormisdas se prepara para fazer ofensa igual e no mesmo dia, casando com Cassandreia, que eu amo acima de tudo. Para evitar tanta injúria e tanta mágoa da fortuna não vejo abrir-se outra via a não ser o valor das nossas almas e dos nossos braços direitos, que têm de empunhar as espadas e abrir caminho a ti para o segundo rapto e a mim para o primeiro das nossas duas damas. Não digo se quiseres a tua liberdade, pois julgo que pouco cuidas dela sem a tua dama, mas se desejares reaver a tua dama, os deuses põem-na nas tuas mãos no caso de me seguires na minha empresa.”
“Estas palavras fizeram regressar todo o desfalecido ânimo a Cimone, que, sem dar demasiada distância à resposta, declarou: “Lisímaco, para uma obra como essa, e se me acontecer o que dizes, não podes encontrar companheiro nem mais forte nem de maior confiança. Por isso, impõe-me o que achares que eu deva fazer e verás como te seguirei com espantosa força.” Lisímaco prosseguiu: “De hoje a três dias, as noivas entrarão pela primeira vez em casa dos maridos. Armado com os teus companheiros e eu com outros tantos amigos em quem ponho toda a confiança, entraremos lá ao fim da tarde, raptá-las-emos em pleno banquete e levá-las-emos para um navio que secretamente mandei preparar, matando quem se atreva a opor-se.” A ordem agradou a Cimone e este deixou-se ficar na prisão em silêncio até à hora marcada.
“Chegado o dia das bodas, a pompa foi grande e magnífica e a casa dos dois irmãos encheu-se toda de jubilosa festividade. Depois de ter aprontado tudo o que era necessário, com Cimone, os companheiros deste e os seus amigos, todos com armas escondidas debaixo das roupas, Lisímaco dividiu-os em dois grupos quando julgou ser tempo, entusiasmando-os primeiro pelo seu plano com um longo discurso. Mandou um grupo para o porto, a fim de que ninguém fosse impedir o embarque quando chegasse a altura. Com os outros dois grupos dirigiu-se para a casa de Pasimondas, deixando um à porta para que ninguém os pudesse fechar lá dentro e impedisse a sua saída, subindo a escadaria com o restante grupo juntamente com Cimone. Chegados à sala onde as noivas já estavam sentadas à mesa a comer na companhia de muitas outras damas, avançaram ordeiramente, atiraram as mesas ao chão, agarrou cada um na sua amada e, entregando-as nos braços dos companheiros, mandaram que as levassem imediatamente para o navio antes preparado. As noivas começaram a chorar e aos gritos, fazendo o mesmo as outras mulheres e os criados, enchendo-se tudo subitamente de alarido e de pranto. Porém Cimone e Lisímaco, com os companheiros, puxaram das espadas e dirigiram-se para a escadaria, abrindo-lhe toda a gente o caminho sem oposição. Quando desciam, acorreu ao encontro deles Pasimondas com um grande bastão, atraído pelo rumor. Exaltado, Cimone feriu-lhe a cabeça e rachou-a ao meio, fazendo-o tombar morto aos seus pés. Em socorro do irmão acorreu o pobre Ormisdas, que foi igualmente morto por um dos golpes de Cimone, enquanto os companheiros de Lisímaco e de Cimone feriam e faziam recuar outros que tentavam avançar. Deixando a casa alagada de sangue, de gritos, de lágrimas e tristezas, sem qualquer resistência voltaram a reunir-se e alcançaram o navio com a sua rapina. Embarcaram as damas e subiram também eles com os companheiros. Enquanto a praia se começava a encher de gente armada para recuperar as damas, eles metiam os remos à água e alegremente foram à sua vida.
"Chegados a Creta, foram festivamente recebidos por muitos amigos e familiares, desposaram as damas e, depois de grandes festejos, saborearam felizes o seu espólio. Em Chipre e em Rodes prolongaram-se durante muito tempo os rumores e a irritação por causa daqueles feitos. Mas finalmente, por intervenção num e noutro lugar dos amigos e parentes de ambos, encontrou-se modo de, passado o breve exílio, Cimone regressar feliz a Chipre com Efigénia e igualmente Lisímaco com Cassandreia voltou para Rodes. Um e outro viveram com as esposas uma longa e feliz existência na terra.”
Constança ama Martuccio Gomito e, ao ouvir dizer que ele tinha morrido, mete-se numa barca, que o vento transporta para Susa. Vai encontrá-lo vivo em Tunes, mostra-se a ele e Martuccio, que o rei tinha feito um homem rico em paga dos conselhos que lhe dera, casa com ela e regressa abastado a Líparis na companhia de Constança. (Nota 5) Delicada história, onde a realidade se dilui insensivelmente na fábula, enquanto pessoas e coisas parecem enternecer-se em torno da delicadeza dum coração enamorado, mas femininamente avesso aos gestos violentos que caracterizam certas heroínas da anterior jornada. (Fim da nota)
Quando a rainha deu conta de que Pânfilo concluíra a sua novela, depois de a ter elogiado muito, ordenou a Emília que prosseguisse contando a sua. E assim começou Emília:
“Com razão cada um se deve regozijar com aqueles casos em que os sentimentos são acompanhados pela merecida recompensa. E como, no fim de contas, o amor merece muito mais a felicidade do que a aflição, com o maior prazer obedecerei à rainha, ao contrário do que antes fiz em relação ao rei, falando do tema actual.
“Deveis saber, delicadas damas, que existe perto de Sicília uma pequena ilha chamada Líparis. Aí viveu ainda não há muito tempo uma belíssima donzela chamada Constança, filha de família muito ilustre da ilha. Um jovem da mesma ilha, chamado Martuccio Gomito, muito esbelto e educado, além de valoroso no seu ofício, enamorou-se dela, que igualmente se apaixonou tanto por ele que só se sentia bem quando o via. Desejando-a para sua esposa, foi pedi-la ao pai dela, o qual respondeu que ele era pobre e por isso não lha entregava. Martuccio, indignado por ver recusarem-lha por causa da sua pobreza, jurou a alguns amigos e parentes que nunca mais voltaria a Líparis senão quando fosse rico. Abalou da ilha e dedicou-se a uma vida de corsário ao longo das costas da Barbaria, assaltando todos os que eram mais fracos do que ele. A sorte ter-lhe-ia sido bastante favorável se ele tivesse sabido pôr limites aos seus triunfos. Mas como não lhe bastava, a ele e aos companheiros, terem-se tornado riquíssimos em pouco tempo, ao tentarem ser ainda mais ricos, aconteceu ter sido preso e espoliado por alguns navios sarracenos depois de longa resistência. A maior parte deles foi massacrada, meteram o barco ao fundo e, levado para Tunes, fecharam-no dentro duma prisão, aí sendo mantido em lastimosa situação.
“Chegou a Líparis, não através de uma ou duas, mas de muitas e variadas pessoas, a notícia de que todos os que se encontravam no pequeno navio, inclusive Martuccio, tinham morrido afogados. A donzela, que vivia num desgosto sem limites por causa da partida de Martuccio, ao saber que ele tinha morrido juntamente com os outros, chorou durante muito tempo e tomou uma decisão de não continuar a viver. Como, porém, o seu coração não suportava que ela se matasse usando de violência, pensou numa original maneira de morrer pela certa. Uma noite, fugiu em segredo da casa do pai, correu ao porto e achou por acaso, um pouco afastada dos outros barcos, uma barquinha de pescadores. Os seus donos tinham acabado de desembarcar e, por isso, foi encontrá-la provida de mastro, de vela e de remos. Subiu lá para dentro, afastou-se com os remos um pouco para o mar largo, pois tinha alguma prática da arte de navegar, como têm geralmente todas as mulheres daquela ilha, abriu a vela, largou os remos e o leme e entregou-se completamente ao sabor do vento. Pensava ela que necessariamente aconteceria ou que o vento acabaria por virar uma barca sem carga nem governo, ou que algum recife embateria nela e a quebraria. Assim, mesmo que quisesse escapar, não conseguiria. Teria forçosamente de morrer. Cobriu a cabeça com um xaile e, chorando, deitou-se no fundo da barca. Mas aconteceu tudo ao contrário do que ela supusera. O vento soprava do norte muito suavemente e quase não agitava o mar. A barca aguentou-se e, à hora de vésperas, no dia a seguir à noite em que a donzela embarcara, chegou perto de uma praia, nas proximidades duma cidade chamada Susa, a cerca de cem milhas para lá de Tunes.
A donzela, já mais dentro de terra do que no mar, não sentiu coisa nenhuma, pois nada acontecera que a fizesse levantar a cabeça nem ela o desejava. Quando a barca encalhou na areia, estava ali por acaso junto à costa uma pobre mulher que retirava algumas redes de pescadores, seus amos, expostas ao sol. Quando viu a barca, a mulher ficou muito admirada de como é que deixavam bater em terra uma embarcação com a vela enfunada. Pensou que os pescadores teriam adormecido e encaminhou-se para a barca, mas não viu mais ninguém a não ser a donzela, que dormia um sono pesado. Chamou-a várias vezes até acordá-la e viu pelo traje tratar-se duma cristã. Falando em latim, perguntou-lhe como fora que ela tinha ali chegado sozinha naquela barca. A jovem, ouvindo-a falar latim, receou que outro vento a tivesse feito regressar a Líparis. Pôs-se repentinamente de pé, olhou à volta e, como não conheceu a região e deu consigo em terra, perguntou à mulherzinha onde é que estava. A boa mulher respondeu-lhe: “Minha filha, estás perto de Susa, na Barbaria.” Ao ouvir tal coisa, a donzela ficou aflita, julgando que Deus a quisera mandar para a morte, receando a ignomínia e não sabendo o que fazer. Sentou-se então junto da sua barca, a chorar. A boa mulher, vendo-a naquele estado, apiedou-se dela e tanto lhe rogou que a levou para a sua choupana, onde a acarinhou de tal maneira que ela lhe contou como tinha chegado ali. Vendo a boa mulher que ela estava sem comer, preparou-lhe algum do seu pão, um pouco de peixe e água, tanto insistindo que a donzela comeu um pouco. Constança perguntou seguidamente quem era a boa mulher que assim falava em latim. Respondeu-lhe que era de Trapani, que tinha o nome de Carapresa e que estava ao serviço duns pescadores cristãos. Ao ouvir dizer “Carapresa” (Nota 6) Carapresa poderá ser interpretado como “preciosa aquisição”. (Fim da nota), a donzela, ainda que muito chorosa e sem ela própria adivinhar a razão que a levara a isso, tomou como bom augúrio ter ouvido aquele nome e começou a esperar nem sabia ela o quê e a perder um pouco o desejo da morte. Sem revelar quem era nem de onde viera, rogou encarecidamente à boa mulher que, por amor de Deus, tivesse compaixão da sua mocidade e que a aconselhasse como havia de evitar que lhe fizessem algum mal.
"Carapresa escutou-a e, como mulher bondosa, deixou-a na choupana, recolheu depressa as suas redes, voltou para junto dela, envolveu-a toda no seu próprio xaile, levou-a consigo a Susa e, quando lá chegaram, disse-lhe: “Constança, vou levar-te a casa duma senhora sarracena muito bondosa, a quem eu presto muitas vezes serviço no que ela precisa. É uma senhora idosa e compassiva. Vou recomendar-te o mais que eu puder e tenho absoluta certeza de que ela te receberá de boa vontade e tratará de ti como filha. Tu, ficando com ela, esforçar-te-ás o possível para conquistar as suas graças, servindo-a até que Deus te mande melhor ventura.” E como disse, assim fez. A senhora, que já era velha, ouviu a mulher, fitou a donzela na face e vieram-lhe as lágrimas. Abraçou-a então, beijou-a na testa e depois levou-a pela mão para a sua casa, onde vivia com algumas outras mulheres e sem nenhum homem, trabalhando todas em diversos lavores manuais e fazendo trabalhos de seda, de palma e de peles. Em poucos dias a donzela aprendeu um desses lavores e começou a trabalhar com as restantes mulheres. Conquistou de tal maneira a simpatia e a amizade da bondosa senhora e das outras que foi uma coisa admirável. Passado pouco tempo, aprendeu com as lições delas a sua língua.
“Assim continuou a donzela a viver em Susa, e já na sua casa a tinham chorado como perdida e morta. Era rei de Tunes por essa altura Meriabdelah, quando um importante e poderoso fidalgo que vivia em Granada, afirmando que o reino de Tunes lhe pertencia, reuniu um grande exército e avançou contra o rei de Tunes para o expulsar do reino. Chegaram estes factos aos ouvidos de Martuccio Gomito, na prisão. Ele conhecia muito bem a língua árabe e, ao ouvir que o rei de Tunes fazia preparativos muito grandes para a sua defesa, disse a um dos homens que o guardavam, a ele e aos seus companheiros: “Se eu pudesse falar com o rei, diz-me o coração que eu lhe daria um conselho que o levaria a vencer esta guerra.” O guarda transmitiu estas palavras ao seu chefe, que as relatou imediatamente ao rei. Mandou o rei que lhe trouxessem Martuccio e perguntou qual era o seu conselho. “Meu senhor — respondeu Martuccio —, se eu bem reparei, durante o tempo em que andei pelas vossas terras, na maneira como fazeis as vossas batalhas, parece-me que as travais sobretudo com archeiros. Ora se encontrássemos um modo para fazer faltar ao vosso adversário o fornecimento de setas e que os vossos as tivessem em abundância, penso que teríeis a batalha ganha.” O rei concordou: “Com certeza, se isso fosse possível, acho que sairia vencedor.” Martuccio prosseguiu: “Meu senhor, se quiserdes, será possível fazer isso, e escutai-me como. Deveis mandar pôr cordas muito mais delgadas nos arcos dos vossos archeiros do que as usadas geralmente por todos, e depois fabricar o respectivo arsenal de setas cuja chanfradura só se adapte a essas cordas delgadas. Isto há-de ser feito tão em segredo que o vosso inimigo não o venha a saber, pois de contrário havia de providenciar. A razão de eu dizer isto é a seguinte: quando os archeiros do vosso inimigo e os vossos tiverem esgotado os respectivos fornecimentos de setas, sabeis que os vossos inimigos irão recolher durante a batalha as setas que os vossos archeiros dispararam, enquanto os vossos recolherão as deles. Mas os adversários não conseguirão utilizar as setas disparadas pelos vossos archeiros por causa das pequenas chanfraduras, que não se ajustam às cordas grossas, enquanto sucederá o contrário aos vossos com as setas dos inimigos, pois a corda delgada receberá perfeitamente a seta com a chanfradura maior. Assim, os vossos archeiros terão fartura de setas e os outros terão falta (Nota 7) É um dos fantasiosos estratagemas preferidos pela imaginação medieval. Villani refere-o como usado por Cassano, imperador dos Tártaros, contra o sultão do Egipto em 1299. (Fim da nota). O rei, que era um soberano sensato, gostou do conselho de Martuccio e seguiu-o à risca, assim conseguindo vencer aquela guerra. Martuccio ganhou os maiores favores do monarca e veio a tornar-se pessoa importante e rica.
“A fama destes factos espalhou-se pela região, e assim chegou aos ouvidos de Constança que Martuccio Gomito continuava vivo, depois de há tanto tempo o considerar morto. Assim o amor por ele, que já lhe ia arrefecendo no coração, ateou-se com viva chama, tornou-se ainda maior e despertou a extinta esperança. Revelou, portanto, à bondosa senhora com a qual vivia tudo aquilo por que passara e disse-lhe que gostaria de ir a Tunes para saciar os olhos com o mesmo que tornara desejosos os seus ouvidos ao receber tais notícias. A senhora elogiou muito aquele desejo e, como se fosse sua mãe, embarcou juntamente com ela em direcção a Tunes, onde foi muito bem recebida com Constança em casa duma senhora da sua família. Carapresa tinha-a acompanhado e a senhora mandou saber o que fosse possível acerca de Martuccio. A mulher foi informada de que ele estava vivo e em excelente situação e veio contar tudo à senhora, a qual achou por bem ser ela mesma a ir dizer a Martuccio que tinha acabado de chegar a sua Constança. Foi onde ele se encontrava e disse-lhe: “Martuccio, chegou a minha casa um teu servo vindo de Líparis, o qual gostaria de falar contigo em segredo. Como não quis fiar em mais ninguém, e tal como ele desejou, eu própria te vim informar.” Martuccio agradeceu e seguiu-a até à sua casa. Quando a donzela o viu, quase morreu de alegria e, não conseguindo suster-se, correu subitamente de braços abertos, abraçando-se ao seu pescoço. A comoção dos infortúnios passados e da alegria presente fê-la chorar mansamente. Martuccio, ao ver a donzela, deteve-se um tanto assombrado e depois exclamou suspirando: “Ó minha Constança, pois estás viva? Há tanto tempo que ouvi dizer que havias desaparecido e ninguém sabia nada de ti em nossa casa!” E logo a abraçou e a beijou com lágrimas de ternura. Constança contou-lhe todas as suas tribulações e a estima com que fora recebida por aquela nobre senhora.
“Depois de muito haverem conversado, Martuccio deixou-a e foi procurar o rei, seu senhor. Contou-lhe tudo, a sua história e a história da donzela, acrescentando que tencionava, com licença de Sua Majestade, casar com ela segundo a sua lei. O rei ficou maravilhado com aqueles factos, mandou vir a donzela e, depois de ouvir da sua boca o mesmo que lhe contara Martuccio, disse: “Muito bem o mereceste para marido.” Ordenou que trouxessem muitíssimos e valiosos presentes, dando uma parte a ela e outra parte a Martuccio, e autorizou-os a combinarem entre si o que mais agradasse a cada um. Martuccio prestou grande homenagem à nobre senhora junto da qual tinha estado Constança, agradeceu-lhe tudo o que tinha feito por ela, ofereceu-lhe presentes que condiziam com os gostos da senhora e recomendou-a a Deus, despedindo-se ela com muitas lágrimas de Constança. Em seguida, com licença do rei, embarcaram num pequeno navio, levando com eles Carapresa, e um vento favorável conduziu-os de regresso a Líparis, onde fez uma festa tão grande que nunca se poderia descrever. Uma vez na ilha, Martuccio desposou-a, fez grandes e magníficas bodas e, depois, ele e Constança saborearam longamente em paz e descanso o seu amor.”
Pedro Boccamazza foge com Agnolella e depara com ladrões. A donzela escapa-se para uma floresta e é conduzida até um castelo. Pedro fica preso, mas escapa-se das mãos dos ladrões e, depois de alguns acidentes, chega ao mesmo castelo onde está Agnolella. Casam-se e voltam ambos para Roma (Nota 8) A novela descreve as tristes condições da província romana depois da mudança da sede pontifícia para Avinhão. É especialmente viva a descrição daquela noite de fugas e de terrores, onde os medos da solidão se alternam com os dos maus encontros, numa velocidade fantástica que nos faz lembrar certas cenas do Orlando Furioso. (Fim da nota).
Ninguém, de quantos ouviram a novela de Emília, deixou de a comentar elogiosamente. Quando a rainha viu que chegara ao fim, voltou-se para Elisa e ordenou-lhe que prosseguisse. Desejosa de obedecer, Elisa começou:
“Lembro-me agora, deliciosas damas, duma maldita noite passada por dois jovenzinhos pouco prudentes. Mas como a essa noite se seguiram muitos dias felizes, agrada-me contar-vos esta novela por estar de acordo com o nosso tema.
“Ainda há pouco tempo, havia em Roma, que hoje é a cauda mas já foi a cabeça do mundo, um jovem chamado Pedro Boccamazza, de uma das famílias romanas mais ilustres, o qual se apaixonou por uma lindíssima e encantadora menina chamada Agnolella, filha dum tal Gigliuozzo Saullo, homem plebeu mas muito considerado pelos Romanos. Amando-a assim, agiu de tal forma que a donzela começou também a amá-lo não menos do que ele. Pedro, impelido por aquele ardente amor e como não suportava continuar a sofrer a dura pena que lhe provocava o desejo que sentia por ela, foi pedi-la em casamento. Quando os seus parentes souberam, vieram todos procurá-lo e censuraram veementemente o que ele pretendia fazer. Ao mesmo tempo, comunicaram a Gigliuozzo Saullo que de maneira nenhuma acedesse às palavras de Pedro, porque, se o fizesse, nunca o considerariam nem um amigo nem um parente. Pedro, quando viu vedada aquela via que julgava ser a única para atingir o seu desejo, quis morrer de dor, e se Gigliuozzo tivesse consentido, teria casado com a filha dele contra a vontade de quantos parentes tinha. Convenceu-se porém de que, se a donzela estivesse de acordo, haveria de o conseguir. Por intermédio de outrem soube que ela concordava e combinaram fugir de Roma. Planeada a fuga, certa manhã Pedro levantou-se muito cedo, montaram ambos a cavalo e tomaram o caminho de Anagni (Nota 9) Anagni, castelo dos Collona, inimigos dos Orsini. A esta última família pertencia Liello di Campodifiore, citado igualmente por um cronista do tempo. (Fim da nota), onde Pedro tinha alguns amigos nos quais tinha muita confiança. Foram cavalgando, sem tempo de consumarem as núpcias, porque receavam ser perseguidos, conversando os dois sobre o seu amor e beijando-se uma vez por outra. Ora aconteceu que Pedro não conhecia muito bem o caminho e, quando se tinham afastado umas oito milhas de Roma, em vez de seguirem para a direita, meteram-se por um caminho à esquerda. Ainda não tinham cavalgado duas milhas quando se encontraram perto dum pequeno castelo do qual, mal foram vistos, logo saíram doze soldados. Quando estes já estavam muito próximos, a donzela viu-os e gritou: “Pedro, fujamos, que vamos ser atacados!” E, como foi capaz, voltou a sua montada para uma floresta muito densa, apertou as esporas, segurando-se bem ao arção, e o cavalo, ao sentir-se tocado, correu levando-a para dentro da floresta.
“Pedro, que olhava mais para o rosto da donzela do que para o caminho, não se apercebeu tão depressa como ela da aproximação dos soldados. Quando procurava ver de onde é que eles vinham e ainda sem os ter visto, foi alcançado por eles, que o prenderam e o obrigaram a descer da montada. Interrogaram-no sobre quem era, ele disse-o e os outros começaram a comentar entre si e a dizer: “Este é um amigo dos nossos inimigos. Que havemos de fazer senão tirar-lhe a roupa e o cavalo e depois enforcá-lo num destes carvalhos por despeito a Orsini?” Concordaram todos com este parecer e ordenaram a Pedro que se despisse. Quando ele estava a despir-se, adivinhando já a sua desgraça, aconteceu que um grupo de outros vinte e cinco militares emboscados correu contra os primeiros gritando: “À morte! À morte!” Os primeiros, surpreendidos, largaram Pedro e voltaram-se para a defesa. Mas ao verem que eram bastante menos do que os assaltantes, puseram-se em fuga perseguidos pelos outros. Vendo aquilo, Pedro agarrou depressa as suas coisas, subiu para o cavalo e pôs-se em fuga quanto ele era capaz, pelo mesmo caminho de onde vira escapar-se a donzela. Mas quando não descobriu na floresta nem estrada nem vereda nem rasto de cavalo, depois de ver que estava livre das mãos dos que o tinham prendido e igualmente dos outros que vieram ao assalto dos primeiros, como não encontrava a sua donzela, sentiu-se o mais infeliz dos homens e começou a chorar, chamando por ela, aqui e acolá pela floresta. Mas ninguém lhe respondia e ele não se atreveu a voltar para trás, ao mesmo tempo que, se continuasse a avançar, não sabia aonde iria parar. Por outro lado, sentia-se igualmente assustado por si e pela sua amada por causa das feras que costuma haver nas florestas. Parecia-lhe vê-la estrangulada por um urso ou por um lobo. Todo o dia andou errante o desventurado Pedro pela floresta, gritando, chamando, andando às vezes para trás quando julgava ir para a frente. Estava já tão exausto de gritar, de chorar, do medo e do longo jejum, que não conseguia andar mais. Ao ver chegar-se a noite, não sabendo que fazer mais, descobriu um carvalho muito grande, desceu da cavalgadura, prendeu-a à árvore e em seguida trepou para cima desta, a fim de não ser devorado pelas feras durante a noite. Passado um pouco, nasceu a Lua e fez-se em luar claríssimo. Pedro não se arriscou a adormecer para não cair da árvore. Aliás, mesmo tendo necessidade de dormir, não o teriam deixado nem o sofrimento nem as preocupações sobre o destino da sua amada. Assim, entre suspiros, lágrimas e maldições à sua desventura, manteve-se acordado.
“Como atrás dissemos, ao pôr-se em fuga, a donzela não sabia que rumo havia de tomar e deixava-se conduzir para onde o cavalo a levava. Penetrou tanto dentro da floresta que não conseguia descobrir o sítio por onde entrara. Exactamente como aconteceu a Pedro, andou todo o dia às voltas por aqueles sítios selvagens, ora esperando, ora caminhando, a chorar, a chamar, a lamentar-se da sua desgraça. Finalmente, ao ver que Pedro não aparecia e quando já era tarde, encontrou uma vereda pela qual se meteu. O cavalo foi andando e depois de ter cavalgado mais de duas milhas, Agnolella viu ao longe, diante de si, um casebre para o qual se dirigiu o mais depressa possível. Foi lá encontrar um pobre homem muito idoso na companhia da mulher igualmente velha. Quando a viram sozinha, disseram: “Ó menina, que andas tu a fazer a estas horas sozinha por estes sítios?” Chorosa, a donzela respondeu que tinha perdido a sua companhia na floresta e perguntou se Anagni ficava perto. O velhote respondeu: “Minha filha, este não é o caminho para Anagni. Fica afastada daqui mais de doze milhas.” Perguntou ainda a donzela: “Haverá casas perto onde eu me possa albergar?” “Não há casas em sítio nenhum tão perto que possas lá chegar de dia”, informou o bom homem. Disse então ela: “Como não posso ir para outro lado, far-me-eis vós o favor de acolher-me por amor de Deus esta noite?” Respondeu o velho: “Menina, achamos bem que fiques connosco por esta noite. No entanto, queremos lembrar-te que por estes sítios, de dia e de noite, há muitos bandos de amigos e de inimigos mal intencionados que, muitas vezes, nos causam grandes dissabores e muitos prejuízos. Se por desgraça viesse agora algum contigo aqui presente, e te vissem bonita e moça como és, dar-te-iam incómodo e vergonha e nós não te poderíamos valer. Queremos dizer-te isto porque depois, se tal vier a acontecer, não te possas queixar de nós.” A donzela, vendo que era tardia a hora, embora assustada com as palavras do velho, disse: “Se Deus quiser, há-de guardar-nos a vós e a mim desse aborrecimento. Mas se tal acontecesse, é mal muito menor ser maltratada pelos homens do que dilacerada pelas feras do bosque.” Dito isto, desceu da montada, entrou na casa do pobre homem e partilhou com eles da sua humilde ceia. Depois, completamente vestida, deitou-se numa pequena cama juntamente com os velhos. Mas, durante a noite, não parou de suspirar e de chorar a sua desventura e a de Pedro, do qual não era capaz de esperar senão que lhe tivesse acontecido alguma desgraça. Quando já vinha perto a manhã, sentiu um grande burburinho de gente a aproximar-se. Por isso, levantou-se e foi para um grande pátio que havia por detrás do pequeno casebre e, ao descobrir a um canto uma grande paveia de feno, escondeu-se dentro dela para que, se aquela gente ali chegasse, não a encontrassem muito facilmente. Mal tinha acabado de esconder-se quando os homens, um numeroso bando de salteadores, chegaram à porta do casebre. Mandaram abrir, entraram lá para dentro e, ao verem o sendeiro da jovem ainda com a sela, perguntaram de quem era. O bom homem, como não viu a donzela, respondeu: “Não há aqui mais ninguém além de nós. Este sendeiro fugiu a alguém e veio aqui parar ontem à noite. Metemo-lo em casa para que não o comessem os lobos.” “Então — disse o chefe do bando — é bom para nós, já que não tem dono.” Espalharam-se todos em seguida pela casa e alguns foram para o pátio e atiraram ao chão as lanças e os escudos, acontecendo que um deles, por não ter mais que fazer, enterrou a sua lança na palha e esteve bastante perto de matar a jovem ali escondida. E ela quase se dava a conhecer, pois a lança passou-lhe rente ao seio esquerdo, de tal maneira que o ferro lhe rasgou a roupa e a donzela esteve prestes a soltar um brado com medo de ser ferida. Mas, lembrando-se de onde estava, dominou-se e ficou quieta.
“Uns aqui, outros além, os do bando assaram cabritos e outras carnes, comeram, beberam e partiram à sua vida, levando o sendeiro da donzela. Quando já se encontravam um pouco afastados, o bom homem perguntou à mulher: “Que terá acontecido à nossa rapariga que ontem nos apareceu e que nunca mais vi desde que nos levantámos?” A mulher respondeu que não sabia e pôs-se à procura. Entretanto a donzela, ao sentir que os homens tinham abalado, saiu do feno. O velho ficou muito contente por ver que ela não tinha caído nas mãos dos bandidos e, como já era dia, disse-lhe: “Agora que já é dia, se concordares, acompanhar-te-emos até um castelo que fica perto daqui umas cinco milhas e ficarás em lugar seguro. Terás porém de ir a pé, pois os malvados que acabaram de sair levaram com eles a tua montada.” A donzela conformou-se e rogou-lhes por Deus que a levassem ao castelo. Este pertencia a um Orsini chamado Liello di Campodifiore, encontrando-se ali por sorte a sua mulher, que era uma santa e muito bondosa senhora. Quando ela viu a donzela, logo a reconheceu e acolheu-a com alegria, querendo saber exactamente como é que tinha chegado até ali. A donzela contou-lhe tudo e a dama, que igualmente conhecia Pedro, amigo do seu marido, ficou muito contristada com o caso. Ao saber que ele fora apanhado, foi da opinião de que teria sido morto. Disse, pois, à donzela: “Se não sabes então de Pedro, ficarás comigo aqui até que eu possa levar-te com segurança para Roma.”
“Pedro continuava em cima do carvalho o mais triste que era possível estar, quando viu, na hora do primeiro sono, aproximarem-se uns vinte lobos, que, mal deram com o sendeiro, logo o rodearam. Quando o cavalo os sentiu, fazendo força com a cabeça, quebrou o cabresto e tentou fugir-lhes. Mas como estava cercado, não conseguiu fugir e aguentou-se bastante tempo a defender-se à dentada e aos coices. Acabou finalmente por ser atirado ao chão, destroçaram-no, desventraram-no subitamente e todos se refastelaram. Depois de o devorarem, deixando-lhe apenas os ossos, foram-se embora. Pedro, que parecia ter no cavalo uma companhia e um apoio para as suas fadigas, ficou grandemente desanimado e imaginou que nunca mais conseguiria sair daquela floresta. Quando estava perto o dia e Pedro se encontrava quase morto de frio em cima do carvalho, continuando a olhar sempre em volta, viu a cerca de uma milha uma fogueira muito grande. Logo que o dia clareou, desceu a medo da árvore e encaminhou-se para lá. Quando conseguiu lá chegar, encontrou à volta da fogueira alguns pastores que comiam e se divertiam e que o acolheram por compaixão. Depois de comer, de se aquecer e de lhes contar a sua desventura e como tinha ali chegado, perguntou-lhes se haveria por aquelas bandas alguma aldeia ou castelo para onde ele pudesse ir. Os pastores informaram-no de que a umas três milhas ficava um castelo, de Liello di Campodifiore, o mesmo castelo onde se encontrava a sua amada. Pedro ficou muito contente, pediu a algum deles que o guiasse até lá e houve dois que o fizeram de boa vontade.
“Logo que chegou ao castelo, procurou alguém conhecido para arranjar maneira de irem procurar a donzela na floresta. A castelã mandou-o chamar, ao que ele obedeceu imediatamente, e quando viu Agnolella junto da senhora sentiu uma alegria como jamais houve outra igual. Fervia todo no desejo de a abraçar, mas dominava-se com vergonha da castelã. Mas se foi grande a alegria dele, não foi menor a da donzela quando o viu. A fidalga acolheu-o festivamente, mas, depois de ter escutado o que tinha acontecido, repreendeu-o bastante por querer agir contra a vontade dos pais. Mas, vendo que ele continuava disposto a fazê-lo e que isso agradava à donzela, exclamou: “Mas para que me canso eu? Eles amam-se e conhecem-se, são ambos igualmente amigos do meu marido e o que desejam é honesto, crendo eu que é do agrado de Deus, pois que um escapou da forca e o outro da lança e ambos das feras selvagens. Então, que assim seja.” Voltou-se para os dois e disse: “Se então o vosso propósito é quererem ser marido e mulher, também concordo. Assim se faça e que as despesas do casamento decorram a expensas de Liello. Depois eu saberei fazer as pazes entre vós e os vossos pais.” Pedro, felicíssimo, e Agnolella, ainda mais, casaram-se ali mesmo. Dentro do que foi possível, por se estar na montanha, a fidalga ofereceu-lhes uma boda muito digna e foi ali no castelo que eles saborearam os dulcíssimos e primeiros frutos do seu amor.
“Daí a alguns dias, a fidalga montou com eles a cavalo e, com uma boa escolta, regressaram a Roma, onde ela foi encontrar muito irritados os pais de Pedro pelo que o filho tinha feito. Mas restabeleceu entre eles a harmonia, depois do que Pedro viveu em sossego e felicidade junto da sua Agnolella até à velhice.”
Ricardo Manardi é descoberto por Dom Lizio de Valbona com a filha deste. Casa com ela e fica de boa harmonia com o
Sogro (Nota 10) Obra-prima de graça e de humorismo, onde a afectuosa intimidade do pequeno “interior” e uma espécie de natural inocência suavizam os pormenores mais maliciosos. Não bastam apenas quatro olhos para vigiar uma simples menina apaixonada. Quando acontece o inevitável, o pai revela uma verdadeira sageza ao dominar-se e optar, perante a tragicómica surpresa, pelo caminho da indulgência e da compreensão. (Fim da nota)
Elisa calou-se, ouviu os elogios das companheiras à sua novela e a rainha ordenou a Filóstrato que fosse ele a contar a seguinte. Começou ele, rindo-se:
“Fui tantas vezes criticado por muitas de vós por vos ter imposto um tema de dolorosa explanação e que tanto vos fez chorar que, para reparar um pouco esse aborrecimento, me parece ser obrigado a contar-vos uma história que vos leve a rir um pouco. Por isso, quero contar-vos uma novela muito breve de um amor que não se mistura de nenhuma tristeza senão alguns suspiros e um leve receio de vergonha e que tem um fim alegre.
“Ainda não há muito tempo, valorosas damas, houve na Romanha um cavaleiro muito rico e educado que se chamava Dom Lizio de Valbona (Nota 11) “o bom Lizio”, ainda vivo em 1279, que Dante evoca (Purg., XIV, 97) com elogio juntamente com um dos Manardi, senhores de Brettinoro, na Romanha. (Fim da nota). Já perto da velhice, aconteceu-lhe ter uma filha de sua mulher, Dona Giacomina. Ao crescer, a menina tornou-se formosa e agradável como nenhuma outra naquelas terras, e por ser a única filha que restava ao pai e à mãe, amavam-na e estimavam-na em extremo e vigiavam-na com assombroso cuidado, esperando os pais conseguir-lhe um grande casamento. Ora, era assíduo frequentador da casa de Dom Lizio e encontrava-se muito com este um jovem elegante e de airosa figura, da família dos Manardi de Brettinoro, o qual tinha o nome de Ricardo. Dom Lizio e a esposa tratavam-no tão à vontade como se ele fosse filho deles. Ao ver repetidamente a donzela tão formosa, tão alegre e tão cheia de boas maneiras e de educação, e estando ele em idade de se casar, apaixonou-se dela ardentemente, mas guardava oculto com grande cuidado o seu amor. A donzela adivinhou e, sem afastar de modo nenhum o golpe, começou também a amá-lo, o que dava grande felicidade a Ricardo, o qual teve muitas vezes vontade de lhe dizer Uma palavra, mas calara-se com receio, até que uma vez ganhou coragem e disse: “Catarina, peço-te que não me faças morrer de amor.” Respondeu logo a donzela: “Quisesse Deus que não me fizesses tu morrer a mim.” Esta resposta aumentou muito mais a Ricardo a felicidade e a coragem e ele retorquiu: “Não serei eu a impedir aquilo que te agrada, mas cabe-te encontrar maneira de salvar a tua vida e a minha.” A donzela disse então: “Ricardo, bem vês como sou guardada, e sozinha não consigo ver como possas encontrar-te comigo, mas se fores capaz de ver o que eu posso fazer sem vergonha minha, diz-me e eu farei.” Ricardo pensou em várias coisas e de repente disse: “Minha doce Catarina, não vejo outra via que não seja se tu dormisses ou pudesses ir para a varanda que fica junto do jardim do teu pai. Se eu soubesse que estavas lá durante a noite, de certeza faria tudo para lá chegar, apesar de a altura ser muita.” Catarina respondeu-lhe: “Se tiveres coragem de lá chegar, julgo que arranjarei maneira de ir para lá dormir.” Ricardo disse que sim e, em seguida, beijaram-se de fugida apenas uma vez, indo-se ele depois embora.
“No dia seguinte, estando-se já nos fins de Maio, a jovem começou a queixar-se diante da mãe de que não conseguira dormir nada na noite anterior por causa do excessivo calor. Disse a mãe: “Ó filha, que calor é que faz? Até nem está calor nenhum.” Retorquiu Catarina: “Mãe, se dissésseis pelo que me parece, talvez tivésseis razão, mas deveis pensar que as raparigas são muito mais quentes do que as mulheres de idade.” Disse então a dama: “Tens razão, filha, mas eu não posso fazer o calor e o frio à minha vontade, como pareces querer. Temos de suportar as temperaturas conforme as estações as oferecem. Talvez na próxima noite faça mais fresco e durmas melhor.” “Deus queira — disse Catarina —, mas não é costume que as noites se tornem mais frescas ao caminharmos para o Verão.” “Que queres tu, então, que se faça?” — perguntou a mãe. Respondeu Catarina: “Se o pai e vós estivésseis de acordo, gostaria de pôr uma cama na varanda que fica ao lado do quarto dele, por cima do seu jardim, para lá dormir ouvindo cantar o rouxinol e tendo um sítio mais fresco. Estaria muito melhor do que no vosso quarto.” A mãe declarou: “Filha, descansa. Vou falar com o teu pai e faremos como ele quiser.” Quando Dom Lizio ouviu aquilo à mulher, como era velho e talvez um pouco avesso à ideia, disse: “Que rouxinol é esse de que ela precisa para dormir? Ainda a faço adormecer ao som das cigarras.” Ao saber da resposta, Catarina, mais por zanga do que por calor, não só não dormiu nada na noite seguinte, como não deixou dormir a mãe, queixando-se constantemente do calor. A mãe deu-se conta do facto e, ao chegar a manhã, procurou Dom Lizio e disse-lhe: “Senhor, estimais pouco a pequena. Que mal faz ela dormir naquela varanda? Durante toda a noite não descansou com o calor. Além disso, porque vos haveis de admirar se ela gosta de ouvir cantar o rouxinol sendo uma garota? Os jovens gostam de coisas como essas.” Dom Lizio ouviu e respondeu: “Pronto, façam-lhe uma cama como lá couber e ponham-lhe em toda a volta uma cortina. Que durma lá então e oiça cantar o rouxinol à sua vontade.” Mal soube disto, a donzela mandou imediatamente pôr lá uma cama e, porque já dormiria lá na noite seguinte, esperou até ver Ricardo. Fez-lhe um sinal combinado entre ambos e ele ficou a saber o que tinha a fazer.
“Quando viu que a filha fora deitar-se, Dom Lizio fechou a porta que dava do seu quarto para a varanda e foi também dormir. Ricardo, logo que sentiu tudo em sossego, trepou um muro com o auxílio duma escada, saltou daquele para outro, agarrando-se a algumas saliências, e com grande esforço e risco de grave queda, atingiu a varanda, onde silenciosamente foi recebido com muitíssimo júbilo pela donzela. Depois de muitos beijos, deitaram-se juntos e, durante quase toda a noite, divertiram-se e gozaram um com o outro, fazendo cantar muitas vezes o rouxinol. Como as noites eram pequenas e era grande o gozo, quando o dia já se aproximava sem eles darem por isso, estando mais acalorados, tanto por causa do tempo como pela brincadeira, adormeceram completamente nus, abraçando-se Catarina ao pescoço de Ricardo com o braço direito e agarrando com a mão esquerda aquela coisa cujo nome vós tendes vergonha de pronunciar diante dos homens. Dormindo eles desta maneira sem acordar, ao levantar-se o dia Dom Lizio pôs-se de pé e, ao lembrar-se de que a filha estava a dormir na varanda, abriu silenciosamente a porta, pensando: “Deixa-me ver como é que o rouxinol fez dormir esta noite Catarina.” Avançou sem ruído, levantou a cortina que envolvia a cama e viu-os, a ela e a Ricardo, nus e descobertos dormindo abraçados do modo atrás descrito. Reconheceu perfeitamente Ricardo e saiu de seguida. Foi ao quarto da mulher, chamou-a e disse-lhe: “Depressa, senhora, levanta-te e anda ver como a tua filha desejou tanto o rouxinol que o apanhou e o segura na mão.” “Como é que pode ser?”, perguntou a mulher. “Vê-lo-ás se te despachares” — respondeu Dom Lizio. A senhora apressou-se a vestir-se, acompanhou sem ruído Dom Lizio e, chegados ambos junto da cama, levantaram a cortina, podendo Dona Giacomina ver manifestamente como é que a filha tinha apanhado e segurava o rouxinol que tanto desejara ouvir cantar. Sentindo-se grandemente traída por Ricardo, a senhora quis gritar e insultá-lo, mas Dom Lizio disse-lhe: “Senhora, pelo amor que me tens, evita fazeres barulho, porque, já que ela o agarrou, terá de ser dela. Ricardo é um moço fidalgo e rico e só nos pode trazer boas relações familiares. Se ele quiser sair daqui são e salvo, terá de casar-se com ela primeiramente, de modo que terá de meter o rouxinol na gaiola dela e não na de outra.” A dama acalmou-se ao ver que o marido não se irritara com aquele caso e, achando que a filha passara bem a noite, descansara bastante e apanhara o rouxinol, calou-se. Mal eles tinham acabado de falar quando Ricardo acordou. Ao ver que era dia claro, chamou Catarina: “Ai de mim, minha alma, que havemos de fazer, pois o dia já nasceu e apanhou-me aqui ainda?” A estas palavras, Dom Lizio avançou, levantou a cortina e respondeu: “Tudo se resolve.” Quando Ricardo o viu, pareceu-lhe que lhe tinham arrancado o coração e sentou-se na cama, exclamando: “Meu senhor, peço-vos perdão por amor de Deus! Sei que mereço a morte como traidor e malvado. Por isso, fazei como vos aprouver, mas rogo-vos que, se possível, tenhais dó da minha vida e não me deis a morte.” Retorquiu-lhe Dom Lizio: “Ricardo, não merecia isto o amor que eu tinha por ti nem a confiança que te dava. Mas, uma vez que assim está feito e que a tua mocidade te levou a este pecado, para evitar a ti a morte e a mim a vergonha, toma Catarina como tua legítima mulher. Tal como foi tua esta noite, que o seja enquanto ela viver. Desta maneira, podes ganhar a minha paz e a tua salvação, mas se não quiseres fazer assim, encomenda a tua alma a Deus.”
“Enquanto assim falavam, Catarina largou o rouxinol, cobriu-se e pôs-se a chorar alto, rogando ao pai que perdoasse a Ricardo; por outro lado, pedia a Ricardo que fizesse a vontade a Dom Lizio para que pudessem passar juntos com segurança e durante muito tempo noites como aquela. Mas não foram necessários mais rogos porque, de uma parte, a vergonha do pecado e o desejo de o emendar e, por outra parte, o desejo de salvar-se, além do ardente amor e do apetite de possuir o objecto amado, facilmente e sem hesitação o levaram a afirmar-se pronto a fazer o que Dom Lizio desejava. Dom Lizio pediu a Dona Giacomina um dos seus anéis e, sem dali saírem, na presença deles, Ricardo tomou Catarina por esposa. Feito isto, Dom Lizio e a esposa saíram, dizendo: “Agora, ficai a descansar, que talvez estejam a precisar mais disso do que de levantar-vos.” Saíram os pais e os dois jovens voltaram a abraçar-se. Como durante a noite apenas tinham feito seis milhas, andaram mais outras duas antes de se levantarem e de concluírem a primeira jornada.
“Depois de se levantarem, Ricardo conversou mais em pormenor com Dom Lizio e, passados alguns dias, veio a desposar a donzela na presença dos amigos e dos familiares. Com grande júbilo a levou para a sua casa, organizou dignas e bonitas bodas e, durante longos anos, em paz e em consolo, andaram ambos aos rouxinóis, de dia e de noite, quando lhes apetecia.”
Guidotto de Cremona confia, antes de morrer, uma menina a Giacomino de Pavia. Em Faenza, a menina é amada por Giannole de Severino e por Minghino de Mingole. Brigam um com o outro, mas vem a descobrir-se que a menina é irmã de Giannole, sendo dada em casamento a Minghino (Nota 12) Boccaccio construiu esta novela sobre um esquema que a comédia latina muito aprecia: a rivalidade amorosa de dois jovens, tempestivamente resolvida por uma oportuna revelação. Os pormenores mais vivos são a contenda dos dois criados intermediários e o equívoco gentil da menina, que chama pai ao inimigo que se introduzira em sua casa. (Fim da nota).
Ao ouvirem a história do rouxinol, todas as damas se riram com tanta vontade que, mesmo depois de Filóstrato ter acabado de contar, nem assim conseguiram suster o riso. Mas, depois de se terem rido um pouco mais, a rainha disse: “É evidente que, se ontem nos fizeste sofrer, hoje divertiste-nos tanto que ninguém encontra motivo de se queixar de ti.” Passou a palavra a Neífile e impôs-lhe que contasse a sua novela. Com um sorriso, Neífile começou a contar:
“Uma vez que Filóstrato levou o assunto para a Romanha, também a mim me apetece ir passear um pouco na minha história.
“Houve um tempo em que residiam na cidade de Fano dois lombardos. Um chamava-se Guidotto de Cremona e o outro Giacomino de Pavia. Eram já pessoas de idade, e quando novos tinham andado quase sempre em guerras e chefiando tropas. Aconteceu que Guidotto, estando prestes a morrer, como não tinha nenhum filho nem outro amigo ou parente em quem pusesse mais confiança do que em Giacomino, deixou a este último uma menina com cerca de dez anos e todos os bens que possuía no mundo. Depois de lhe ter contado muitos pormenores da sua vida, faleceu. Por essa altura, aconteceu que a cidade de Faenza, durante muito tempo em guerra e desgraça, melhorou um pouco a sua situação, sendo concedida liberdade de ir para lá quem desejasse. Giacomino já tinha vivido de outra vez na cidade, e como a estada lhe agradara, foi para lá com tudo o que tinha de seu, levando consigo a menina confiada por Guidotto e que ele amava e tratava como sua própria filha. Ao crescer, a menina acabou por tornar-se numa jovem formosíssima como nenhuma outra da cidade, e tanto como era formosa era educada e virtuosa. Por isso, vários jovens começaram a cortejá-la, sobretudo dois rapazes muito elegantes e igualmente distintos, os quais lhe ganharam um profundo amor, ao mesmo tempo que se odiavam um ao outro por excesso de ciúmes. Chamava-se um deles Giannole de Severino e o outro Minghino de Mingole. Como ela tinha 15 anos, não havia nenhum deles que a não aceitasse de bom grado em casamento se os pais deles consentissem. Mas como viam que ela lhes era proibida por via legítima, empenharam-se ambos em conquistá-la da melhor maneira que conseguissem.
“Giacomino tinha em sua casa uma criada idosa e um criado que se chamava Crivello, homem folgazão e muito simpático com o qual Giannole criou grande intimidade. Quando este julgou ser ocasião, revelou-lhe todo aquele seu amor, pedindo-lhe que lhe favorecesse o modo de conseguir o seu desejo, prometendo-lhe grandes ofertas se ele o fizesse. Disse-lhe Crivello: “Olha, quanto a isso, só uma coisa poderei fazer por ti: quando Giacomino for jantar fora, levar-te-ei aonde ela está. Se eu quisesse falar em teu nome, ela nunca me daria ouvidos. Se isto te agrada, prometo que o farei. Faz tu depois, se souberes, o que aches que esteja bem.” Giannole disse que não queria mais e ficaram-se neste acordo.
“Minghino, por seu lado, familiarizara-se com a criada, e tanto a industriara que ela foi várias vezes portadora de recados à menina e quase lhe ateou o seu amor. Além disso, prometeu levá-lo junto dela logo que Giacomino, por qualquer razão, saísse à noite de casa. Ora aconteceu, pouco depois destas conversas, que, por obra de Crivello, Giacomino foi jantar com um amigo. Comunicou o facto a Giannole e combinou com ele que, quando ele fizesse um certo sinal, viesse e acharia a porta aberta. A criada, por seu lado, sem saber nada disto, informou Minghino de que Giacomino não jantaria em casa e disse-lhe para ficar perto de casa de modo que, ao ver o sinal que ela havia de fazer, viesse e entrasse lá dentro.
“Ao chegar a noite, sem que os dois amantes soubessem nada um do outro, mas cada um deles desconfiando do seu rival, dirigiram-se com alguns companheiros armados para tomarem posse da menina. Minghino foi postar-se em casa dum seu amigo, vizinho da jovem, à espera do sinal. Giannole pôs-se com os seus amigos a uma certa distância da casa. Crivello e a criada, com Giacomino ausente, procuravam mandar-se embora um ao outro. Dizia Crivello à criada: “Então nunca mais vais dormir? Que andas a cirandar pela casa?” Respondia-lhe a criada: “E tu porque não vais ter com o teu amo? De que esperas se ele já deve ter jantado?” E deste modo nenhum conseguia afastar o outro. Crivello, porém, vendo chegada a hora que tinha combinado com Giannole, pensou: “Para quê ralar-me com ela? Se não ficar sossegada, poderá ter o que merece.” Fez o sinal combinado e foi abrir a porta. Giannole acorreu depressa, entrou lá dentro com dois companheiros e, descobrindo a jovem na sala, agarraram-na para a levarem. A jovem começou a resistir e a gritar com força, tal como a criada. Quando Minghino ouviu o barulho, imediatamente acorreu com os companheiros e, ao verem puxar para fora da porta a donzela, agarraram nas espadas e gritaram todos: “Ah!, traidores, que estais mortos! Não vai ser como quereis! Que abuso é esse?” Dito isto, puseram-se à luta, enquanto, por outro lado, a vizinhança vinha para a rua àquele barulho com archotes e armas, censurando uma coisa daquelas e ajudando Minghino. Depois de prolongada contenda, Minghino arrancou a donzela das mãos de Giannole e foi pô-la novamente em casa de Giacomino. Ainda não tinha acabado a briga quando chegaram os sargentos do capitão da cidade, que prenderam bastantes deles, entre os quais foram capturados Minghino, Giannole e Crivello, levados depois para a cadeia.
“Serenados porém os factos e tendo regressado Giacomino, este ficou muito triste com aquele acidente, investigou como se tinham passado os factos e, descobrindo que a jovem em nada tivera culpas, ficou um pouco mais sossegado, ao mesmo tempo que resolvia casá-la o mais depressa possível para que não voltasse a repetir-se um caso como aquele. Chegada a manhã, os pais de um e de outro jovem, conhecedores da verdade dos factos e cientes do castigo que podia ser dado aos rapazes se Giacomino quisesse actuar como legitimamente poderia fazer, vieram procurá-lo e rogaram-lhe com mansas palavras que não olhasse tanto para a ofensa feita pela insensatez dos jovens como para a amizade e a benevolência que ele sabia que lhe tinham os que faziam a presente súplica, oferecendo-se a si mesmos e aos jovens que tinham feito o mal para a reparação que ele quisesse tomar.
“Giacomino, que por ter assistido a muitas coisas durante a vida era bastante compreensivo, respondeu-lhes resumidamente: “Senhores, se eu estivesse na minha casa como estou na vossa, considerar-me-ia tão vosso amigo que nem sobre isto nem sobre qualquer outra coisa faria senão o que vos agradasse. Aliás, devo vergar-me tanto mais aos vossos desejos quanto é certo que vos ofendestes a vós mesmos, porque esta jovem, ao contrário do que muitos julgam, não é de Cremona nem de Pavia, mas de Faenza, sem que eu nem aquele que a confiou à minha guarda alguma vez soubéssemos de quem era filha. Portanto, sobre o que me estais a pedir, farei exactamente o que me impuserdes.” Ao ouvirem dizer que a jovem era de Faenza, os notáveis senhores ficaram admirados. Depois de agradecerem a Giacomino a sua resposta tão compreensiva, pediram-lhe se não se importava de lhes contar como chegara ela às suas mãos e como sabia ele que era faenzina. Respondeu-lhes Giacomino: “Guidotto de Cremona foi meu companheiro e amigo. Perto da morte, contou que na altura em que esta cidade foi conquistada pelo imperador Frederico (Nota 13) O imperador Frederico II tomou Faenza em 1240. (Fim da nota), ao fazer-se o saque de tudo, ele entrou com os companheiros numa casa, encontrou-a cheia de valores mas abandonada pelos habitantes, excepto esta menina, que andava por volta dos dois anos e que, quando ele subia as escadas, lhe chamou pai. Aquilo fê-lo compadecer-se muito dela e levou-a juntamente com tudo o que havia naquela casa para Fano. Quando lá faleceu, deixou-me com tudo o que possuía também a menina, impondo-me que, quando chegasse a altura, eu a casasse e lhe desse como dote tudo o que a ele pertencera. Ora ela chegou à idade de casar-se e não a consegui entregar a ninguém que me agrade. Fá-lo-ia de bom grado antes que me volte a acontecer outro caso como o de ontem à noite.”
"Estava ali no meio dos outros um tal Guilhermino de Medicina, que tinha participado da mesma cena com Guidotto e que conhecia perfeitamente a casa saqueada por Guidotto. Ao descobrir o proprietário da casa entre os demais, aproximou-se dele e disse: “Bernabuccio, estás a ouvir o que diz Giacomino?” Disse Bernabuccio: “Sim e até pensava mais: recordo que nessas convulsões perdi uma filhinha da mesma idade de que fala Giacomino.” Guilhermino retorquiu: “É com certeza ela, pois estive num sítio onde ouvi Guidotto descrever onde tinha feito o saque e fiquei a saber que fora na tua casa. Procura lembrar-te se existe algum sinal por onde a possas reconhecer, manda examinar e de certeza verás que ela é tua filha.” Bernabuccio pensou e lembrou-se de que ela devia ter um sinal em forma de cruz sobre a orelha esquerda, resultante dum furúnculo que fora preciso lancetar pouco tempo antes daquele acidente. Assim, sem perda de tempo, aproximou-se de Giacomino, que ainda ali estava, pediu-lhe que a levasse a sua casa e o deixasse ver a donzela. Giacomino fê-lo de bom grado e mandou-a chamar à sua presença. Pareceu a Bernabuccio, mal olhou para ela, ver exactamente o rosto da mãe dela, que era ainda uma bonita mulher. Todavia, não contente com isto, pediu a Giacomino o favor de poder levantar-lhe um pouco os cabelos sobre a orelha esquerda, o que Giacomino aceitou. Bernabuccio aproximou-se da jovem, que estava muito envergonhada, e com a mão direita levantou-lhe os cabelos e viu-lhe a cruzinha. Reconheceu, então, que ela era realmente sua filha e começou ternamente a chorar e a abraçá-la dizendo: “Meu irmão, ela é a minha filha. A casa saqueada por Guidotto era a minha e a menina, naquela súbita pressa, foi esquecida lá dentro pela minha mulher e sua mãe. Até hoje temos pensado que ela tivesse morrido no incêndio que queimou a casa nesse mesmo dia.”
“Ao ouvir tal coisa e vendo que era um homem de idade, acreditou nas suas palavras e, impelida por uma força secreta, abraçou-se igualmente a ele, chorando ambos enternecidos. Ber-nabuccio mandou chamar imediatamente a mãe dela, as outras mulheres da família, as irmãs e os irmãos. Mostrou-a a todos, contou-lhes o sucedido e, depois de mil abraços e grande júbilo, deixou Giacomino muito feliz e levou-a para sua casa. Quando soube da notícia, o capitão da cidade, homem de muito bons sentimentos, soube que o prisioneiro Giannole era filho de Berna-buccio e irmão sanguíneo da donzela. Achou, portanto, que lhe devia perdoar pacificamente o delito cometido. Interessando-se pelo caso juntamente com Bernabuccio e Giacomino, levou Giannole e Minghino a fazerem as pazes e, com grande satisfação de todos os parentes, entregou a Minghino como esposa a donzela, que se chamava Inês. Pôs igualmente em liberdade Crivello e os outros que tinham andado à briga por aquela causa. Felicíssimo, Minghino fez em seguida grandes e bonitas bodas, levou Inês para casa e viveu com ela muitos anos em paz e felicidade.”
João de Prócida é descoberto com uma donzela que ele ama e que fora oferecida ao rei Frederico. Atam-no a um poste para ser queimado com ela. Reconhecido por Rogério dell’Oria, salva-se e torna-se marido dela (Nota 14) A novela desenrola-se com natural rapidez através das reacções dos vários temperamentos às várias circunstâncias e retoma um motivo já desenvolvido na última parte do Filocolo, onde Flório encontra Branca-Flor, já destinada aos amores do sultão. A cena da fogueira será sublimada por Torquato Tasso no episódio de Olindo Sofrónia. (Fim da nota).
Concluída a novela de Neífile, que muito agradara às damas, a rainha ordenou a Pampínea que se preparasse para contar uma outra, e ela prontamente ergueu o alvo rosto e começou:
“Poderosas forças, adoráveis senhoras, são as do amor, o qual impele os amantes a grandes fadigas e a fantásticos e irreflectidos perigos, como se pode compreender por tantas das histórias contadas hoje e noutras alturas. Agrada-me, todavia, demonstrá-lo mais uma vez com a ousadia dum jovem apaixonado.
“Ischia é uma ilha bastante perto de Nápoles onde, entre outras, viveu uma menina muito bonita e leda, chamada Restituta, e filha dum fidalgo da ilha que se chamava Marino Bolgaro. Um rapazinho natural duma pequena ilha vizinha de Ischia, chamada Prócida, e cujo nome era João, amava-a mais do que à própria vida e ela amava-o igualmente. João não só costumava ir durante o dia de Prócida a Ischia para a ver, mas já muitas vezes de noite, como não encontrava barco, nadara desde Prócida até Ischia para contemplar, se outra coisa não fosse, pelo menos as paredes da sua casa. Enquanto durava este ardente amor, certo dia de Verão passeava a donzela absolutamente sozinha, de rocha em rocha, arrancando conchas marinhas das pedras com uma navalha, e acabando por chegar a um local entre os rochedos onde, fosse pela sombra, fosse pelo agrado duma nascente de água fresquíssima ali existente, se encontravam recolhidos com a sua fragata alguns sicilianos vindos de Nápoles. Ainda ela os não tinha visto, acharam-na muito bonita e, vendo-a sozinha, resolveram entre si raptá-la e levá-la com eles. Foi pensar e fazer. Por muito que ela gritasse, agarraram-na, meteram-na no barco e foram-se embora. Chegados à Calábria, começaram a discutir sobre de quem devia ser a donzela e, em suma, todos a queriam. Como não conseguiram pôr-se de acordo, receando que lhes acontecesse o pior e que por causa dela estragassem os seus negócios, concordaram em oferecê-la ao rei Frederico da Sicília, que era ainda novo e gostava muito daquelas coisas. Chegados a Palermo, assim fizeram. O rei, ao ver como ela era bonita, gostou da jovem. Mas como não se encontrava de boa forma, ordenou que a pusessem, até ele se sentir mais forte, numa casa muito bonita dum seu jardim a que chamavam a Cuba (Nota 15) A Cuba era uma construção de estilo árabe, erigida em 1180 por Guilherme II. (Fim da nota) e que aí fosse bem tratada. Assim se fez.
“Foi grande em Ischia o rumor em volta do rapto da donzela, e o que mais custava a toda a gente era não poderem saber quais tinham sido os raptores. Mas João, a quem isto mais importava do que a mais ninguém, não esperou vir a sabê-lo em Ischia. Soube para onde se tinha dirigido a fragata, mandou aprestar uma outra, embarcou e percorreu o mais velozmente que pôde toda a costa desde o cabo de Minerva até Scalea, na Calábria. Perguntando em todo o lado pela donzela, foi-lhe dito em Scalea que ela fora levada para Palermo por marinheiros sicilianos. Para lá se fez transportar rapidamente e, depois de muito ter procurado, veio a saber que a donzela fora dada ao rei e que este a guardava na Cuba. Ficou preocupadíssimo e perdeu quase toda a esperança não só de a reaver, mas de voltar a vê-la. Todavia, ali preso pelo amor, mandou para trás a fragata e, vendo que ninguém o conhecia, começou a passar frequentemente diante da Cuba até que, por sorte, a viu um dia a uma janela, vendo-o ela igualmente. Ficaram contentíssimos. João, ao ver que o sítio era solitário, aproximou-se quanto pôde, falou-lhe e foi informado por ela do que tinha a fazer se quisesse falar-lhe de mais perto, indo-se ele embora dali após ter observado a disposição do lugar. Esperou pela noite, deixou passar uma boa parte dela, voltou ao local e, agarrando-se a sítios onde não picariam os picanços, penetrou no jardim. Descobriu uma vara, que apoiou à janela indicada pela jovem, e trepou por ela muito lestamente. A donzela, achando que já estava perdida a sua honra, que no passado tinha defendido de forma um tanto agreste, pensou que a mais ninguém podia entregar-se dignamente do que a João. E, julgando que o conseguiria convencer a levá-la dali, resolveu satisfazer-lhe todas as vontades. Deixou assim a janela aberta para que ele pudesse entrar depressa. João encontrou aberta a janela, entrou silenciosamente e foi deitar-se ao lado da jovem, que estava acordada. Antes de mais nada ela revelou-lhe a sua intenção, pedindo-lhe insistentemente que a tirasse dali e a levasse consigo. Respondeu João que não desejava outra coisa e que, sem dúvida nenhuma, logo que saísse, haveria de organizar de tal modo as coisas que a levaria consigo da próxima vez que voltasse. Em seguida, abraçaram-se com enorme prazer e saborearam aquele gozo além do qual nenhum maior o amor pode dar. Depois de várias reincidências, adormeceram nos braços um do outro.
“O rei, a quem a donzela muito havia agradado à primeira vista, sentindo-se em boa forma, lembrou-se dela e, embora fosse quase dia, resolveu ir passar algum tempo com ela. Acompanhado de um servo, dirigiu-se secretamente à Cuba, entrou em casa, mandou abrir devagar a porta onde sabia que a donzela estava a dormir e avançou para dentro com um grande castiçal na mão. Ao olhar para a cama, deu com ela e João a dormirem nus e abraçados. Apossou-se do rei subitamente uma grande fúria e a cólera foi tanta que, sem dizer palavra, quase esteve a matá-los com o punhal que trazia à ilharga. Mas depois, achando que seria grande cobardia para qualquer homem e muito mais para um rei matar duas pessoas nuas durante o sono, conteve-se e disse ao seu único companheiro: “Que te parece esta ruim mulher em quem eu já tinha posto a minha esperança?” Perguntou-lhe depois se conhecia aquele jovem, que tamanho atrevimento tivera ao entrar-lhe em casa e fazer-lhe tal ultraje e desprazer. O servo a quem fez a pergunta respondeu que não se lembrava de alguma vez o ter visto. Furioso, o rei saiu do quarto e ordenou que os dois amantes, assim nus como estavam, fossem presos e atados e, logo que fosse dia, levados a Palermo. Atá-los-iam a um poste no meio da praça, de costas um para o outro. Ali ficariam até à hora de tércia para que todos os pudessem ver e depois seriam queimados, como mereciam. Dito isto, regressou ao seu quarto de Palermo bastante magoado. Depois de o rei ter saído, imediatamente saltaram muitos homens sobre os dois amantes, e não só os acordaram como imediatamente, sem dó nem piedade, os prenderam e ataram. É evidente que, ao verem aquilo, os dois jovens ficaram muito tristes e, temendo pelas suas vidas, choraram e lastimaram-se. Conforme as ordens do rei, foram conduzidos a Palermo e ligados a um poste na praça. Prepararam à vista de ambos a acendalha e o fogo para os queimar na hora marcada pelo rei. Imediatamente ali acorreram todos os palermitanos, homens e mulheres, para verem os dois amantes: os homens vinham todos para verem a donzela e todos a elogiavam como mulher bonita e de boas formas, tal como as mulheres acorriam para verem o jovem e o gabavam por ser belo e extremamente bem feito. Mas os desventurados amantes, ambos fortemente envergonhados, estavam de cabeças baixas e choravam o seu infortúnio, esperando de hora para hora a cruel morte na fogueira.
"Enquanto eram assim mantidos até à hora marcada, divulgou-se por toda a parte o delito por eles cometido, chegando aos ouvidos de Rogério dell’Oria, homem de inestimável valor e ainda almirante do rei. Este dirigiu-se ao local onde os jovens estavam ligados, para os ver. Quando chegou, olhou primeiro para a donzela e elogiou-lhe bastante a beleza. Foi depois observar o jovem e reconheceu-o sem grande dificuldade. Aproximou-se mais dele e perguntou-lhe se era João de Prócida. João levantou a cabeça e, ao reconhecer o almirante, disse: “Senhor, fui de facto esse de quem perguntais, mas estou quase a deixar de o ser.” Perguntou-lhe o almirante que facto o havia levado àquilo, ao que João respondeu: “Amor e cólera do rei.” O almirante levou-o a explanar mais a história e, depois de lhe ouvir todos os pormenores do que tinha acontecido, quando ia para se afastar, João chamou-o e disse-lhe: “Ah!, meu senhor, se for possível, pede-me um favor àquele que assim me faz estar.” Rogério perguntou qual era o favor e João declarou: “Vejo que irei morrer dentro de pouco. Peço, então, esta mercê: como estou de costas voltadas para esta donzela, a quem amei mais do que à minha vida, e ela de costas para mim, peço que sejamos postos de face a face para que eu possa morrer olhando o seu rosto e deixar esta vida consolado.” Rogério respondeu, rindo-se: “De boa vontade farei com que a olhes ainda durante tanto tempo que hás-de queixar-te.” “Saiu dali o almirante, depois de ordenar aos homens que tinham de proceder à execução que não avançassem mais nada sem outra ordem do rei. Sem perda de tempo, foi procurar o monarca e, apesar de o ver irritado, não deixou de lhe dizer o que pensava: “Rei, em que te ofenderam os dois jovens que mandaste queimar lá em baixo na praça?” O rei explicou-lhe e Rogério prosseguiu: “O delito cometido por eles merece-o bem, mas não das tuas mãos. Assim como os delitos merecem castigo, assim também os benefícios merecem recompensa, além do perdão e da misericórdia. Sabes quem são os que mandaste queimar?” Respondeu que não o rei e, então, Rogério declarou: “Quero que saibas quem são eles para que vejas com que imprudência te deixas arrastar pelos ímpetos da cólera. O jovem é filho de Landolfo da Prócida, irmão de sangue de Dom João da Prócida, por obra de quem és o rei e o senhor desta ilha. A donzela é filha de Marino Bolgaro, cuja influência leva a que hoje a tua autoridade não seja afastada de Ischia. Além disso, são jovens que se amaram durante muito tempo e cometeram este pecado, se pecado pode chamar-se ao que os jovens fazem por amor, não por falta de respeito à tua autoridade, mas levados pelo amor. Porque hás-de mandá-los para a morte, quando os devias homenagear com os maiores favores e dons?”
“Quando ouviu tais factos, o rei convenceu-se de que Rogério falava verdade e, além de não insistir que a execução se fizesse, lamentou o seu procedimento, ordenou que imediatamente soltassem os jovens do poste e os trouxessem à sua presença. Depois de conhecer toda a verdade sobre a sua situação, achou que a ofensa podia ser recompensada com honrarias e ofertas. Mandou vesti-los de trajes condignos e, vendo que existia mútuo consentimento, levou João a casar com a donzela, deu-lhe magníficas prendas e mandou-os felizes para sua casa, onde eles foram recebidos com grande júbilo, tendo depois vivido em felicidade e alegria durante muitos anos.”
Teodoro apaixona-se por Violante, filha do seu amo, Dom Américo, engravida-a e é condenado à forca. Enquanto é levado a golpes de fuste, seu pai reconhece-o, põe-o em liberdade e ele casa com Violante (Nota 16) A situação, semelhante à de IV, I, é agora transposta para um clima e um tom de comédia. Não faltam alguns pormenores delicados, como o do namoro — num cenário que é a tradução burguesa dos régios amores de Dídone (Eneida, IV) — e o da revelação final. (Fim da nota).
As damas estiveram suspensas a ouvir, todas receosas de que os dois amantes fossem queimados. Mas, ao ouvirem que eles tinham escapado, deram graças a Deus e alegraram-se todas. Escutada a conclusão, a rainha deu a Lauretta o encargo da novela seguinte:
“Formosíssimas senhoras, no tempo em que o bom rei Guilherme reinava na Sicília, havia na ilha um fidalgo chamado Dom Américo, abade de Trapani, que, além dos outros bens terrenos, estava muito bem provido de filhos. Precisava, pois, de criados e, quando um dia chegaram do Levante certas galés de corsários genoveses que haviam raptado muitas crianças nas costas da Arménia, Dom Américo comprou algumas, supondo que eram turcas. Entre as crianças, enquanto todas as outras pareciam pastores, havia um menino que parecia de maior gentileza e de melhor aspecto do que os restantes. Chamava-se ele Teodoro. À medida que foi crescendo, embora tratado como servo, era tido em casa de Dom Américo mais como se fosse um dos seus filhos. Recebendo ele mais da condição natural do que da acidental situação, revelou-se cheio de delicadeza e de belas maneiras. Tanto agradou a Dom Américo que ele lhe deu a carta de alforria. Por supor que o rapaz era turco, mandou baptizá-lo e dar-lhe o nome de Pedro, colocando-o à testa dos seus negócios e pondo nele muita confiança.
“Entre os outros filhos de Dom Américo crescia também uma filha chamada Violante, donzela formosa e delicada, a qual, como o pai se atrasava em arranjar-lhe casamento, aconteceu ficar apaixonada por Pedro. Mas embora o amasse e muito estimasse as suas maneiras e os seus feitos, envergonhava-se de descobrir-lhe os seus sentimentos. O amor livrou-a porém desse trabalho. Também Pedro tinha olhado para ela cautelosamente por várias vezes e acabara por se apaixonar, de tal maneira que só estava bem quando a via. Todavia tinha bastante receio de que alguém se apercebesse desse facto, pois lhe parecia que isso não estava bem. A donzela, que muito gostava de encontrar-se com ele, adivinhou-lhe os sentimentos e, para lhe dar maior segurança, felicíssima como estava, assim lhe mostra os seus. Andaram nisto muito tempo, sem se atreverem a dizer alguma coisa um ao outro, por mais que ambos o desejassem.
“Encontravam-se eles ardendo igualmente nas chamas do amor quando a fortuna, como se tivesse decidido realizar-lhes o sonho, encontrou maneira de expulsar o grande temor que os impedia. Possuía Dom Américo, a cerca de uma milha fora de Trapani, uma quinta muito bela para onde a esposa com a filha e outras mulheres costumavam ir muitas vezes espairecer. Num dia de grande calor, foram para a quinta e lá estiveram, tendo levado Pedro com elas. Ora aconteceu, como vemos por vezes acontecer no Verão, que o céu se cobriu de repente de nuvens carregadas e, por essa causa, a dama e a sua companhia, para não serem ali apanhadas pela trovoada, meteram-se a caminho, de regresso a Trapani, caminhando o mais rapidamente possível. Pedro e a menina, como eram jovens, adiantaram-se bastante no caminho à mãe dela e às outras mulheres, talvez mais impelidos pela força do amor do que por medo do temporal. Iam eles já tão adiante da senhora e das restantes que quase não se viam, quando subitamente, depois de vários trovões, começou a cair uma saraivada grossíssima e espessa, fugindo a senhora e as companheiras para casa dum camponês. Pedro e a donzela, como não tinham abrigo mais perto, entraram numa capelinha antiga e quase toda em ruínas, onde não havia ninguém e abrigaram-se os dois debaixo dum pouco de telhado que ainda existia. A estreiteza do espaço obrigou-os a tocarem-se, o que deu aso a encorajá-los um pouco e a revelarem os seus anseios amorosos. Primeiro foi Pedro que disse: “Quisesse Deus que este granizo nunca mais parasse para eu estar assim como estou!” A donzela disse: “Bem gostaria eu!” Depois destas palavras, seguraram e apertaram as mãos, em seguida abraçaram-se e depois beijaram-se, continuando sempre o granizo a cair. Para não ter de contar todos os pormenores, não serenou o tempo antes que eles, depois de terem conhecido os extremos prazeres do amor, tivessem combinado maneira de continuarem o seu amor secreto. O mau tempo passou e, à entrada da cidade, que ficava perto, esperaram pela senhora e voltaram com ela para casa. Tornaram a encontrar-se outras vezes com grande discrição e segredo e também com grande e mútua consolação. Mas as coisas correram de maneira que a donzela ficou grávida, o que não agradou nem a um nem a outro. Usou ela de muitas artes para interromper a gravidez contra o curso da natureza, mas nunca obteve êxito. Resolveu então Pedro pôr-se em fuga, temendo pela sua própria vida, e disse-o a ela, que exclamou: “Se te fores embora, dou-te a certeza de que me matarei!” Pedro, que lhe tinha muito amor, retorquiu: “Como queres tu, senhora minha, que eu continue aqui? A tua gravidez irá descobrir o nosso pecado. A ti perdoarão facilmente, mas eu, pobre de mim, terei de pagar pelo teu pecado e pelo meu.” Respondeu a donzela: “Pedro, o meu pecado será bem sabido, mas tem a certeza de que o teu, se nada disseres, nunca será conhecido.” Pedro declarou então: “Já que isto me prometes, ficarei. Mas vê que tens de cumprir a promessa.”
“A jovem ocultou enquanto foi possível a sua gravidez, mas, ao ver que já não a conseguia ocultar em face do crescimento do corpo, revelou-a à mãe, com muitíssimas lágrimas e rogando-lhe que a salvasse. A senhora, extremamente magoada, insultou-a bastante e quis que ela lhe contasse como tinha sido. Para que não acontecesse nenhum mal a Pedro, a donzela inventou uma história, contando o sucedido de outra maneira. Acreditou nela a senhora e, para esconder o estado da filha, enviou-a para uma das propriedades. Chegou a hora do parto e a jovem começou aos gritos, como fazem as mulheres, não esperando a mãe dela que ali aparecesse Dom Américo, o qual quase nunca por ali andava. Mas aconteceu que ele, ao regressar da caça, passou perto do quarto onde a filha continuava a gritar. Assombrado, entrou imediatamente e perguntou o que se passava. A dama, ao ver o marido aparecer, levantou-se aflita e contou-lhe o que tinha acontecido à filha. Mas ele, menos crédulo do que a esposa, declarou que não devia ser verdade a filha não saber de quem ficara grávida. Quis, pois, saber tudo, afirmando-lhe que desse modo podia obter o seu perdão. De contrário, que pensasse em morrer sem misericórdia nenhuma. A dama procurou convencer quanto podia o marido do que lhe tinha contado, mas não serviu de nada. Enfurecido, com a espada nua nas mãos, correu para a filha, que entretanto dera à luz um menino enquanto o pai e a mãe altercavam, e exclamou: “Ou dizes quem te fez este filho, ou morres imediatamente!” A jovem, com medo de morrer, quebrou a promessa feita a Pedro e revelou tudo o que houvera entre eles. O cavaleiro ficou pior do que uma fera e mal se conteve para não a matar. Mas depois de lhe ter dito o que lhe inspirava a cólera, montou novamente a cavalo, correu para Trapani e foi contar a Dom Conrado, capitão régio, a ofensa que Pedro lhe fizera. Imediatamente, sem esperar, mandou prendê-lo, fê-lo torturar e Pedro confessou tudo. Passados alguns dias, o capitão condenou-o a ser fustigado pelas ruas da cidade e depois enforcado. Mas Dom Américo, a quem a condenação à morte de Pedro não aliviara a cólera, decidiu tirar da Terra ao mesmo tempo os dois amantes e o filho deles. Vasou veneno num jarro de vidro e entregou-o a um criado, juntamente com um punhal desembainhado, dizendo-lhe: “Leva estas coisas a Violante e diz-lhe da minha parte que escolha imediatamente uma destas duas mortes, o veneno ou o punhal. Senão, diante de quantos cidadãos houver, mandarei queimá-la como mereceu. Depois, agarra no filho que ela pariu há poucos dias, bate-lhe com a cabeça contra a parede e dá-o de comida aos cães.” Dada esta ordem cruel contra a filha e o neto por aquele pai feroz, o criado partiu, mais contra a vontade do que a bem.
“O condenado Pedro, enquanto ia sendo fustigado pelos servos a caminho da forca, por vontade de quem comandava a companhia, passou diante duma hospedaria onde se encontravam três fidalgos arménios, embaixadores do rei da Arménia enviados a Roma para tratarem de assuntos muito importantes e referentes à preparação duma cruzada. Tinham ali parado para se restaurarem e descansarem uns dias, sendo muito bem acolhidos pelos nobres de Trapani, sobretudo por Dom Américo. Quando ouviram passar os que levavam Pedro, vieram a uma janela para assistir. Pedro vinha nu da cintura para cima e com as mãos atadas nas costas. Ao olhar para ele, um dos embaixadores, homem idoso e de grande autoridade chamado Fineu, viu-lhe no peito uma grande mancha vermelha, gravada na pele não artificialmente mas pela natureza e semelhante ao que as mulheres de cá chamam “rosas”. Ao vê-la, aflorou-lhe imediatamente à lembrança um filho que, haviam já passado quinze anos, fora raptado pelos corsários nas costas de Laiazzo e do qual nunca mais tivera notícias. Reparando na idade do cativo que estava a ser fustigado, pensou que se o filho estivesse vivo devia ser da idade que o jovem parecia ter. Começou a pensar se com aquele sinal não seria ele e que, se fosse, ainda devia lembrar-se do seu nome, do nome do pai e da língua arménia. Aproximou-se dele e chamou: “Teodoro!” Ao ouvir aquele grito, Pedro levantou imediatamente a cabeça. Falando-lhe em arménio, Fineu disse-lhe: “Onde nasceste e de quem és filho?” Os soldados que o levavam detiveram-se por reverência ao ilustre personagem e Pedro respondeu: “Nasci na Arménia, filho dum homem chamado Fineu, sendo para aqui trazido em pequeno não sei por que gente.”
“Fineu, ao ouvir o jovem, teve a absoluta certeza de que se tratava do filho perdido. A chorar, desceu com os companheiros e correu pelo meio da tropa a abraçá-lo. Pôs-lhe nas costas uma capa de riquíssimo tecido que trazia vestida. Dirigiu-se depois ao que o levava para o suplício a fim de que esperasse um pouco até que lhe dessem novas ordens. O homem respondeu que de boa vontade o fazia. Fineu já era conhecedor da causa que levava o jovem para a morte, dado que a fama espalhara-se por toda a parte. Dirigiu-se, pois, rapidamente com os companheiros e a criadagem a Dom Conrado e falou-lhe assim: “Senhor, o jovem que mandais que seja morto como servo é homem livre e meu filho e está pronto a tomar por mulher aquela a quem dizem que ele roubou a virgindade. No entanto, apraza-vos adiar a execução até que seja possível saber se ela o quer por marido, para que, no caso de ela o aceitar, não vejais que agistes contra a lei.” Dom Conrado ficou cheio de assombro ao ouvir que o jovem era filho de Fineu, ficou um tanto confuso com o erro da fortuna, reconheceu a verdade do que dizia Fineu, imediatamente o mandou voltar para casa, chamou Dom Américo e contou-lhe os factos. Dom Américo, que já supunha mortos a filha e o neto, ficou o homem mais aflito do mundo pelo que fizera. Via que, se a filha não estivesse morta, tudo se podia corrigir perfeitamente. Mandou, todavia, alguém correr aonde estava a filha para que, se a ordem ainda não tivesse sido executada, ficasse suspensa. O enviado encontrou o servo mandado por Dom Américo a insultá-la e a tentar obrigá-la a pegar no punhal ou no veneno, que lhe colocara em frente, porque ela não escolhera assim tão depressa. Ao escutar a ordem do amo, deixou-a ficar, regressou e contou-lhe no que ficara o trabalho. Feliz, Dom Américo foi aonde se encontrava Fineu e, quase a chorar, pediu-lhe da melhor maneira de que foi capaz desculpa e perdão do que tinha acontecido, afirmando que ficaria muito feliz em dar a sua filha se Teodoro a quisesse para mulher. Fineu aceitou de bom grado as desculpas e respondeu: “Entendo que o meu filho deva aceitar a vossa filha. Se ele não quiser, seja levada por diante a sentença lida contra ele.”
“Uma vez de acordo, Fineu e Dom Américo encaminharam-se para onde ainda se encontrava Teodoro, assustadíssimo com a morte, mas feliz por ter encontrado o pai. Perguntaram-lhe qual a sua vontade a este respeito. Quando Teodoro ouviu dizer que Violante seria sua esposa se ela quisesse, a sua alegria foi tanta que lhe parecia ter saltado do inferno para o paraíso. Disse que seria para ele uma mercê muito grande, se todos estivessem de acordo. Mandaram saber qual a vontade da donzela, e, ao ouvir contar o que sucedera e estava para suceder a Teodoro, ela, que aguardava a morte como a mais infeliz das mulheres, depois dum longo silêncio, deu algum critério àquelas palavras, alegrou-se um pouco e respondeu que, se o seu desejo pudesse realizar-se, nada a tornaria mais feliz do que ser esposa de Teodoro. No entanto, faria o que o pai lhe ordenasse.
“Foi com esta harmonia que se realizaram os esponsais da donzela e se fizeram grandes festejos, com supremo gáudio de todos os cidadãos. Violante restabeleceu-se, alimentou o filho e, passado pouco tempo, ficou mais bela do que nunca. Purificada do parto, esperou que Fineu regressasse de Roma e fez-lhe a reverência devida a um pai. Fineu ficou satisfeito com uma nora tão formosa e mandou organizar com muitíssima festa e alegria as suas bodas, acolheu-a como filha e ficou para sempre com ela. Alguns dias depois, levou consigo para Laiazzo numa galé o filho, Violante e o netinho. E lá viveram os dois quanto durou a sua vida como dois amantes em paz e em sossego.”
Nastácio, da família Onesti, ama uma donzela da família Traver-sari e gasta as suas riquezas sem ser amado. A rogo dos seus, vai-se embora para Chiassi. Ali vê um cavaleiro a caçar uma donzela, a matá-la e dois cães a devorá-la. Convida para um almoço os parentes e a dama por ele amada, a qual vê ser dilacerada a mesma donzela. Receosa do mesmo destino, aceita Nastácio como seu marido (Nota 17) A Caça Infernal é uma lenda nórdica referida por Hélinand de Froidmont (1170-1230 c.), monge e poeta francês, e bastante divulgada na Idade Média. Iacopo Passavanti inspirou-se nela para escrever uma página terrífica, destinada a assustar os fiéis com o exemplo da pena aplicada a dois amantes pecaminosos. Mas nesta novela, Boccaccio dá-lhe uma volta completa e faz dela o meio de vencer a frieza duma mulher que se recusa ao amor. A alucinante descrição da caça, no cenário do pinhal de Chiassi, onde Nastácio vagueia tão mergulhado nos seus dolorosos pensamentos que não repara sequer na passagem da realidade para a visão, é uma das mais elevadas criações fantásticas de Boccaccio. (Fim da nota).
Logo que Lauretta se calou, Filomena tomou a palavra por ordem da rainha:
“Amorosas senhoras, tal como a nossa piedade merece elogio, assim também a nossa crueldade é duramente castigada pela justiça divina. Para vos provar isto e vos dar motivo de a expulsardes completamente de vós, apraz-me contar-vos uma novela tão comovedora como agradável.
“Em Ravena, antiquíssima cidade da Romanha, havia há tempo numerosos nobres e fidalgos, entre os quais um jovem chamado Nastácio, da família Onesti, o qual, por morte do pai e dum tio, tinha ficado incalculavelmente rico. Como acontece a quem é novo, sendo ele solteiro, apaixonou-se por uma filha de Dom Paulo Traversaro (Nota 18) Os Traversari e os Anastagi são mencionados como duas das mais distintas famílias de Ravena por Dante: “a casa Traversara e os Anastagi” (Purg., XIV, p. 107). (Fim da nota), donzela de nobreza muitíssimo mais alta do que a dele. Nastácio tinha esperança de a conseguir levar a amá-lo com as suas obras. Mas estas, por mais grandiosas e belas e admiráveis que fossem, não só não lhe agradavam, como até parecia que a enfastiavam, tão crua e dura e agreste se lhe mostrava a donzelinha amada. Talvez ela se fizesse assim altiva e desdenhosa por causa da sua rara beleza ou pela sua nobreza, mas o certo é que nem ele nem aquilo de que ele gostava agradavam à menina. Nastácio suportava com tanto desgosto aquela atitude que, para lá das queixas, lhe veio algumas vezes com a dor o desejo de se matar. Depois, embora se dominasse, muitas vezes tomou a decisão de a pôr completamente de lado ou, se conseguisse, de a detestar como ela o detestava a ele. Em vão, porém, fazia aqueles propósitos, pois lhe parecia que, quanto mais lhe faltava a esperança, tanto mais lhe crescia o amor.
“Teimando assim o jovem em amar e em esbanjar dinheiro desmedidamente, acharam alguns amigos e parentes seus que ele corria o perigo de consumir-se, a si e aos seus haveres. Por isso, várias vezes lhe rogaram e o aconselharam que deixasse Ravena e fosse passar algum tempo noutra terra, porque, a continuar daquele modo, daria cabo do amor e do dinheiro. Nastácio continuava a não fazer caso daqueles conselhos, mas eles insistiam e, como já não encontrava maneira de recusar, disse que sim. Mandou aparelhar um grande equipamento como se tivesse de ir para França, Espanha ou outro país longínquo, montou a cavalo e, acompanhado por alguns amigos, saiu de Ravena, dirigindo-se para um sítio a cerca de três milhas daquela cidade, chamado Chiassi. Mandou trazer pavilhões e tendas de campanha e disse aos que o tinham acompanhado que desejava ficar ali e eles voltassem para Ravena. Uma vez acompanhado, Nastácio começou a fazer a vida mais bela e magnífica que jamais se fez, convidando para jantar e para almoçar ora uns, ora outros, como era costume. Mas aconteceu que, numa sexta-feira já perto do mês de Maio, como estava um magnífico tempo e lhe ocupava o pensamento a sua dama cruel, deu ordens a todos os criados que o deixassem sozinho para poder pensar mais ao seu agrado. Enquanto pensava, foi andando a pé, devagar, até ao pinhal. Quando já passava da quinta hora do dia e ele tinha penetrado bem meia milha no pinhal sem se lembrar de comida ou de outra coisa, subitamente pareceu-lhe ouvir um choro muito forte e gritos altíssimos lançados por uma mulher. Interrompeu os doces pensamentos, levantou a cabeça para ver o que era e ficou admirado por encontrar-se no pinhal. Olhou depois em frente e, de um bosque muito cerrado de arbustos e de silvas, viu a correr para o sítio onde ele estava uma lindíssima donzela nua, desgrenhada e toda arranhada pelos ramos e pelas silvas, chorando e clamando bem alto misericórdia. Corriam atrás dela, de cada lado, dois grandes e ferozes mastins, que muitas vezes a mordiam cruelmente onde a agarravam. Mais atrás, vinha montado num corcel preto um cavaleiro moreno, de rosto muito triste, com um estoque na mão, ameaçando-a de morte com palavras terríveis e plebeias. O espectáculo encheu-o ao mesmo tempo de assombro e de susto. Compadeceu-se enfim da desventurada mulher e nasceu-lhe o desejo de salvá-la, se pudesse, duma tal angústia e morte. Como não trazia armas, correu a pegar num ramo de árvore como se fosse um varapau e avançou contra os cães e o cavaleiro. Mas o cavaleiro viu e gritou de longe: “Nastácio, não te venhas meter e deixa fazer aos cães e a mim o que esta maldita mulher mereceu.” Dizia isto e logo os cães detinham a donzela, agarrando-a fortemente pelos flancos. O cavaleiro alcançou-os e desmontou-se do cavalo. Nastácio aproximou-se e disse: “Não sei quem és tu que me conheces, mas declaro-te que é grande cobardia para um cavaleiro armado querer matar uma mulher nua e ter-lhe lançado em perseguição os cães como se ela fosse um animal selvagem. Defendê-la-ei quanto puder.” O cavaleiro afirmou então: “Nastácio, era eu da mesma terra de que tu és e eras tu ainda criancinha quando eu, que me chamava Dom Guido, da família Anastagi, me apaixonei em extremo por esta mulher como tu agora estás pela filha dos Traversari. Por causa da sua altivez e crueldade, foi tanta a minha desgraça que, um dia, com o mesmo estoque que vês na minha mão, matei-me desesperado e fui condenado à pena eterna. Passado pouco tempo, ela, que ficara extraordinariamente feliz com a minha morte, também morreu e foi igualmente condenada às penas do inferno, porque não se arrependeu do pecado da sua crueldade e da alegria sentida com os meus tormentos, julgando que não fora pecado mas prémio. Quando ela desceu ao inferno, foi-nos dado, a ela e a mim, este castigo de ela andar fugindo à minha frente e de eu, que tanto a tinha amado, a perseguir como inimiga de morte e não como mulher amada. Todas as vezes que a alcanço, é mais uma vez que este estoque com que me matei a vai matar a ela. Abro-a pelas costas, arranco-lhe do corpo aquele coração duro e frio no qual nunca entraram nem amor nem piedade e, como já irás ver, dou-o de comida com as outras entranhas a estes cães. Mas logo em seguida, tal como determinam a justiça e o poder de Deus, e como se estivesse morta, ela ressurge e recomeça a dolorosa fuga, com os cães e comigo a persegui-la. Todas as sextas-feiras a esta hora, alcanço-a neste sítio e aqui a dilacero, como vais ver. Nos outros dias, não penses que descansamos. Alcanço-a noutros lugares onde ela cruelmente pensou ou agiu contra mim. Transformado, como estás a ver, de amante em inimigo, terei de a perseguir desta maneira tantos anos quantos os meses em que ela me tratou cruelmente. Deixa-me, pois, executar a justiça divina e não queiras opor-te ao que não poderias impedir.”
"Nastácio ouviu aquelas palavras aterrado e com todos os pêlos do corpo eriçados. Recuou olhando para a mísera donzela, apavorado, à espera do que iria fazer o cavaleiro. Este, depois do que disse, como se fosse um cão raivoso e com o estoque em riste, correu em direcção à donzela, que, de joelhos e agarrada fortemente pelos dois mastins, lhe pedia misericórdia. Com toda a força, cravou-lho no peito e traspassou-a até ao outro lado. Mal a donzela recebeu o golpe, caiu de bruços sempre a chorar e a gritar. O cavaleiro pegou num punhal, rasgou-a nos rins, tirou-lhe para fora o coração e tudo o que havia em volta e lançou tudo aos cães esfaimadíssimos, que logo o devoraram. Não demorou muito tempo até que a donzela, como se nada tivesse acontecido, se pôs subitamente de pé e começou a fugir na direcção do mar, com os cães atrás dela, sempre a mordê-la. O cavaleiro voltou a montar-se a cavalo, retomou o estoque e pôs-se a persegui-la. Em breve tempo, afastaram-se de tal maneira que Nastácio nunca mais os viu.
"Depois daquele espectáculo, esteve um longo tempo entre compadecido e assustado. Em seguida, veio-lhe à mente que o facto lhe podia valer bastante, dado que se repetia todas as sextas-feiras. Marcou o local, voltou para junto dos criados e depois, quando lhe pareceu, mandou chamar os seus parentes para lhes dizer: “Durante muito tempo incitastes-me para que eu deixasse a minha inimiga e acabasse com os meus gastos. Estou disposto a fazê-lo desde que me consigais um favor: conseguir que na próxima sexta-feira venham almoçar comigo Dom Paulo Traversaro, a mulher, a filha e todas as senhoras da família. Haveis de ver então por que desejo eu isto.” Pareceu-lhes que era coisa fácil de fazer. Voltaram para Ravena e, chegada a altura, convidaram as pessoas que Nastácio pretendia. Apesar de ter sido custoso levarem a donzela amada por Nastácio, ela acabou por ir juntamente com as outras.
"Nastácio mandou preparar excelentes pratos e ordenou que as mesas fossem postas sob os pinheiros que havia em torno do local onde tinha assistido à dilaceração da cruel mulher. Ao distribuir os homens e as mulheres pelas mesas, fez de modo que a donzela sua amada se sentasse em frente do sítio onde a cena devia desenrolar-se. Já depois do último prato, todos ouviram o rumor desesperado da perseguida jovem. Ficou toda a gente profundamente assombrada, perguntando o que seria aquilo, sem que ninguém soubesse responder. Toda a gente se pôs de pé e, ao olharem para o que poderia ser, viram a queixosa donzela, o cavaleiro e os cães, não tardando que chegassem ali perto deles. Ergueram-se grandes clamores contra os cães e o cavaleiro e muitos avançaram para defender a donzela, mas o cavaleiro falou-lhes como tinha falado a Nastácio, levando-os não apenas a recuar mas a ficarem cheios de susto e de assombro. Ao fazer o cavaleiro o que fizera da outra vez, todas as mulheres que ali estavam começaram a chorar miseramente como se a elas estivesse a acontecer o mesmo, e encontravam-se ali muitas da família da donzela e de Nastácio que se lembravam ainda do amor e da morte daquele cavaleiro.
“Terminada a cena e depois de a dama e o cavaleiro terem desaparecido, fizeram-se muitos e variados comentários entre os que tinham assistido. Mas entre os que maior susto apanharam estava a cruel donzela amada por Nastácio. Depois de ter visto e escutado tudo distintamente, compreendeu que aqueles factos lhe diziam especialmente respeito, recordando-se da crueldade que sempre tivera em relação a Nastácio. Parecia-lhe ser ela que fugia da fúria dele, com os cães a cercá-la. Ficou tão cheia de medo que, para não lhe acontecer o mesmo, mal apareceu uma ocasião favorável (e logo nessa mesma noite ela se apresentou), transformou em amor o seu ódio e mandou secretamente uma aia de confiança falar com Nastácio para lhe pedir o favor de a procurar porque estava disposta a fazer tudo o que ele quisesse. Nastácio mandou responder que isso lhe agradava muito, mas que só pretendia esse desejo com a sua honra salva, ou seja, casando com ela. A jovem, sabendo que dependia apenas de si tornar-se mulher de Nastácio, mandou responder que sim. Ela própria foi mensageira para dizer ao pai e à mãe que seria muito feliz se pudesse casar com Nastácio. Ficaram muito contentes os pais e, logo no domingo seguinte, Nastácio desposou-a. Celebradas as núpcias, viveu com ela muito tempo feliz.
“Este susto não trouxe apenas tal benefício, pois que todas as damas de Ravena se assustaram e tornaram-se depois muitíssimo mais acessíveis às vontades dos homens do que tinham sido no passado.”
Frederico, da família Alberighi, ama e não é amado. Desbarata a fortuna a fazer a corte, restando-lhe apenas um falcão, que, à falta de outra coisa, oferece de comida à sua dama, que o vem visitar. Ela, ao saber disto, muda de intenção, aceita-o por marido e torna-o feliz (Nota 19) Um gentil-homem e uma gentil-dama, que parecem personificar o ideal cavalheiresco da nobreza e do decoro, encontram-se e acabam por unir-se, depois de terem vencido com a sua virtude o destino que diversamente os persegue. Mas é uma vitória coberta de melancolia, em cujo cenário paira a sombra duma criança que morre. Novela perfeita, cuja luz delicada fornece vida a todos os pormenores mais gentis, enquanto a percorre a nostalgia do mundo ideal da virtude e da graça terrena como um suspiro de musical melancolia. Entre os muitos que sentiram o fascínio deste conto e tentaram imitá-lo, recordaremos Hans Sachs, Lope de Vega, La Fontaine, Tennyson e Longfellow. (Fim da nota)
Já Filomena parara de falar quando a rainha, vendo que a mais ninguém faltava falar senão Dioneu, por causa do seu privilégio, disse com um sorriso:
“Cabe-me agora a vez de falar. Irei contar-vos com todo o gosto, caríssimas damas, uma novela em parte semelhante à anterior, não só para que fiqueis sabendo qual o poder do vosso encanto nos corações nobres, mas também para que aprendais a serdes vós próprias, quando for conveniente, as doadoras das vossas recompensas, sem deixar que seja sempre a fortuna a condutora, pois ela, como se pode ver, distribui na maior parte das vezes não de forma discreta, mas desmedidamente.
“Deveis saber que Coppo di Borghese Domenichi (Nota 20) Notável florentino, amigo de Boccaccio, falecido cerca de 1350. (Fim da nota), o qual viveu e talvez ainda viva na nossa cidade, era nos dias actuais um homem de grande e respeitável autoridade, ilustríssimo pela cultura e pela virtude ainda mais do que pela nobreza de sangue, merecedor de fama eterna. Sendo já avançado em anos, gostava de conversar assiduamente com os vizinhos e com outras pessoas sobre factos do passado. Não havia ninguém que soubesse falar com mais método, com maior memória e com melhor estilo do que ele. Costumava contar, entre outras belas histórias, a de um jovem natural de Florença, chamado Frederico e filho de Dom Filipe Alberighi, o qual sobressaía a todos os rapazes da Toscana em assuntos de armas e de galanteio.
“Como acontece à maior parte dos fidalgos, apaixonou-se por uma dama chamada Dona Joana, considerada no seu tempo uma das mulheres mais belas e elegantes que havia em Florença. Para conquistar o amor dela, entrava em justas e torneios, fazia festas, distribuía ofertas e gastava o que possuía sem nenhum freio. Mas a dama, não menos honesta do que formosa, não fazia caso de nada daquilo que Frederico fazia por ela, nem fazia caso dele. Gastando pois Frederico muito mais do que podia e nada conseguindo, como facilmente acontece, as riquezas sumiram-se e ele ficou na miséria. Apenas lhe restava uma pequena quinta de cujos rendimentos vivia, com muitas restrições, além dum falcão, que era dos melhores do mundo. Como o seu amor era maior do que nunca e lhe parecia ser impossível viver na cidade da forma que desejava, foi viver para Campi, onde ficava a sua quintarola. Ali foi suportando pacientemente a sua pobreza, sem pedir nada a ninguém, vivendo da caça.
“Ora, um dia, quando Frederico se encontrava em extrema pobreza, aconteceu que o marido de Dona Joana caiu doente. Ao ver que a morte se aproximava, fez testamento. Como era riquíssimo, deixou como herdeiro um filho já crescido, indicando em segundo lugar Dona Joana, a quem ele muito amava, se viesse a acontecer que o filho morresse sem deixar herdeiro legítimo. Em seguida, faleceu. Ficou assim viúva Dona Joana, e, como é hábito fazerem as nossas damas, todos os anos pelo Verão ia com o filho ao campo, para uma propriedade bastante chegada à de Frederico. O garoto acabou por criar amizade com Frederico e entreter-se com aves e cães. Tendo visto voar muitas vezes o falcão de Frederico, gostou dele duma forma extraordinária e desejava muito possuí-lo, embora não se atrevesse a pedi-lo, porque via que Frederico o estimava muito. Andavam as coisas neste pé quando sucedeu ter adoecido o garoto. A mãe ficou aflitíssima, pois só o tinha a ele e amava-o o mais que se pode calcular. Passava todo o dia junto dele, não parava de consolá-lo e perguntava-lhe muitas vezes se havia alguma coisa que ele desejasse, rogando-lhe que lho dissesse, porque, de certeza, faria tudo para que ele a obtivesse, desde que fosse possível. O garoto, depois de ouvir muitas vezes a insistência da mãe, disse: “Minha mãe, se conseguires trazer-me o falcão de Frederico, penso que depressa ficaria curado.” Ouvindo isto, a dama reflectiu um pouco e pôs-se a pensar no que devia fazer. Sabia que Frederico a tinha amado durante muito tempo e que nunca tinha conseguido dela nem sequer um olhar. Pensava portanto: “Como é que mandarei ou irei eu pedir-lhe o falcão se, além disso, é ele que o mantém no mundo? Como posso eu ser inconsciente que o queira tirar a um fidalgo a quem não resta mais nenhum gosto?” Assim preocupada com tal pensamento, porque tinha a certeza absoluta de que o conseguiria se lho pedisse, não dava resposta e ficava silenciosa, sem saber o que dizer. Finalmente, o amor do filho venceu-a de tal modo que resolveu fazer-lhe a vontade e, em vez de mandar alguém, ir ela própria pedir e trazer-lho. Respondeu, pois: “Meu filho, consola-te e pensa bem em melhorares, pois te prometo que a primeira coisa que amanhã farei é ir por ele e trazer-to.” O garoto ficou muito contente e nesse dia mostrou algumas melhoras.
“Na manhã seguinte, a dama tomou a companhia de outra dama e, como se fosse passear, dirigiu-se à casinha de Frederico, chamando por ele. Como não se estava na época da caça, Frederico encontrava-se na sua horta e dedicava-se a alguns pequenos trabalhos. Ouvindo que D. Joana estava à porta a chamar por ele, ficou muito admirado e logo correu feliz. Ao vê-lo aproximar-se, com feminino encanto ela foi-lhe ao encontro e, depois de Frederico a ter cumprimentado respeitosamente, disse: “Que estejas bem, Frederico!” E prosseguiu: “Vim pagar-te os males que recebeste de mim, amando-me tu mais do que precisavas. A paga é que desejo ficar com a minha amiga para almoçar hoje contigo familiarmente.” Humilde, Frederico respondeu: “Senhora, não me lembro de haver recebido algum mal de vós, mas sim tanto bem que, se porventura alguma coisa vali, isso veio-me do vosso valor e do amor que vos tive. A vossa benevolente visita é-me tão querida que eu voltaria a gastar tudo quanto gastei por vós, pois é um homem pobre que vos recebe.” Dito isto, envergonhado a fez entrar na sua casa, levou-a dali até ao jardim e, como não tinha mais ninguém para lhe fazer companhia, disse: “Senhora, como não tenho cá mais ninguém, esta boa mulher, que é a esposa deste camponês, far-vos-á companhia enquanto vou dar ordens para o almoço.” Frederico, apesar da sua pobreza ser extrema, ainda não se apercebera em quanta miséria o tinha colocado o facto de ter gasto desordenadamente todas as suas riquezas. Mas naquela manhã, quando nada encontrou com que pudesse homenagear a dama, por amor de quem tinha homenageado inúmeras pessoas, tomou consciência da situação. Extremamente angustiado, maldizendo para consigo mesmo a sua sorte, fora de si, andou a correr de um lado para o outro sem encontrar dinheiro nem valores de penhora. Como já era tarde e tinha grande vontade de homenagear de algum modo a nobre senhora, sem querer pedir nada a ninguém nem sequer ao seu criado de lavoura, surgiu-lhe diante dos olhos o seu belo falcão, que encontrou na saleta em cima do poleiro. À falta de outro recurso, agarrou nele, viu que estava gordo e achou que era uma comida própria para tão nobre senhora. Sem mais pensar, cortou-lhe o pescoço e entregou-o rapidamente a uma criada para que, depenado e amanhado, o pusesse na chapa e o assasse com esmero. A mesa foi posta com algumas toalhas alvíssimas que ainda lhe restavam, e, sorridente, voltou ao jardim onde se encontrava a dama, informando que estava pronto o almoço que fora possível preparar-lhe. A dama e a amiga levantaram-se de onde estavam, foram para a mesa e juntamente com Frederico, que as servia com extrema solicitude, comeram o belo falcão sem saberem o que estavam a comer.
“Ao levantarem-se da mesa, demoraram-se com ele um pouco conversando agradavelmente, até que pareceu à dama ser tempo de dizer ao que viera. E falou assim graciosamente para Frederico: “Frederico, porque te lembras da tua vida passada e da minha honestidade, que talvez tenhas considerado como dureza e crueldade, não tenho a menor dúvida de que não te causará espanto a minha presunção quando souberes o motivo principal de ter vindo aqui. Mas se, agora ou no passado, tivesses filhos de modo que conhecesses a força do amor que lhes temos, estou certa de que me compreenderias. Mas como não os tens e eu tenho um, apesar disso não posso escapar às leis comuns de todas as mães. Porque tenho de seguir tais forças, preciso de fazer-te um pedido para lá do meu desejo e de toda a conveniência e dever. Quero pedir-te uma coisa, que sei estimares extremamente e com razão, porque nenhum outro prazer, nenhum outro divertimento, nenhuma outra consolação te deixou a tua mísera fortuna. É que me ofereças o teu falcão, do qual o meu filho gostou tanto que, se eu não lho levar, receio que a sua doença se agrave ao ponto de acabar por perdê-lo. Por isso te rogo, não pelo amor que me tens e que a nada te obriga, mas pela tua nobreza, que se revelou maior que a de qualquer outro no fazer cortesia: concorda em oferecer-mo para que eu possa dizer que por este dom conservei vivo o meu filho e por ele te ficarei sempre obrigada.”
“Frederico, ao escutar o que a dama pedia e ao ver que era impossível servi-la porque lhe tinha dado a comer o falcão, começou a chorar diante dela antes de conseguir responder alguma coisa. A dama pensou primeiramente que as lágrimas eram devidas à dor de ter de separar-se do belo falcão. Quase esteve para lhe dizer que já não o queria, mas conteve-se e aguardou, depois do choro, a resposta de Frederico. Foi a seguinte: “Senhora, depois que foi da vontade de Deus ter eu posto em vós o meu amor, em muitas coisas considerei que me era adversa a fortuna e dela me queixei. Mas tudo isso foi bem leve comparado com aquilo que presentemente ela me faz. Nunca mais estarei de paz com ela ao pensar que viestes à minha pobre casa depois de nunca vos terdes dignado vir quando era rica, e que quereis de mim uma pequena oferta e a fortuna agiu de tal maneira que não vo-la posso dar. E digo-vos rapidamente porque não. Quando vos ouvi dizer que me dáveis a graça de almoçar comigo, achei que seria digno e conveniente homenagear-vos, segundo as minhas possibilidades, com um manjar muito melhor do que aqueles que são dados às outras pessoas. Lembrei-me, pois, do falcão que estais agora a pedir-me e julguei que ele seria, pela sua qualidade, um alimento digno de vós. Tiveste-o, esta manhã, assado no prato e pensei que o tinha utilizado do melhor dos modos, mas vejo agora que o desejáveis de outra maneira. Tanto me custa não poder servir-vos que julgo nunca mais ter sossego.” Dito isto, mandou trazer à presença dela as penas, as patas e o bico, como prova do que estava a dizer.
"Perante o que via e ouvia, a dama começou por censurá-lo de ter dado de comer a uma mulher um falcão daquela raça. Depois, elogiou muito em pensamento a grandeza da sua alma, que a pobreza não conseguira diminuir. Já sem esperança de obter o falcão, preocupada com a saúde do filho, regressou para junto deste. O filho, fosse pela tristeza de não conseguir o falcão, fosse pela doença que assim o tinha prostrado, passados ainda poucos dias, deixou esta vida com profundo desgosto da mãe.
“D. Joana, que durante algum tempo viveu muito chorosa e amargurada, tinha ficado riquíssima e ainda jovem, motivo que levava os seus irmãos a insistirem com ela muitas vezes para que voltasse a casar-se. Ela parecia não querer, mas, vendo-se assediada, lembrou-se das qualidades de Frederico e do seu último gesto magnificente de ter morto um falcão daquela raça para a homenagear, e respondeu aos irmãos: “Se vos aprouvesse, gostaria de ficar como estou; mas se quiserdes que eu me case, então não aceitarei outro marido que não seja Frederico Alberighi.” Os irmãos responderam-lhe, fazendo troça dela: “Que é que dizes, pateta? Como é que pretendes um homem que nada possui neste mundo?” Ela retorquiu-lhes: “Irmãos, bem sei que de facto é como estais a dizer, mas prefiro um homem que precise de riquezas a uma riqueza que precise de homem (Nota 21) A frase é relatada por Cícero, atribuída a Temístocles a propósito do casamento da sua filha. (Fim da nota).” Os irmãos, vendo qual o seu propósito e conhecendo há muito Frederico, apesar de este ser pobre, entregaram-lha com todas as suas riquezas e segundo a vontade dela. Frederico, ao ver-se casado com a mulher que tanto amava e, além disso, riquíssimo, viveu até ao fim dos seus dias em felicidade junto dela, tornando-se melhor feitor.”
Pedro de Vinciolo vai jantar fora de casa e a sua esposa manda vir um rapaz. Pedro regressa e ela esconde o moço debaixo duma cesta de galináceos. Pedro conta como, enquanto estava a jantar em casa de Herculano, fora lá descoberto um jovem trazido pela mulher. A dama censura a mulher de Herculano. Entretanto, por desgraça, um burro põe a pata em cima da mão do rapaz que estava debaixo da cesta e ele grita. Pedro acorre, encontra-o, descobre a artimanha da mulher, mas os seus vícios levam-no a ficar de acordo com ela (Nota 22) Dois maridos traídos pelas esposas, na endiabrada teia duma farsa picante, em que se realçam, magnificamente descritas, duas figuras de mulher: a velha intermediária, irradiante de brio profissional enquanto mastiga padre-nossos, e a ardente, insatisfeita e linguaruda mulher “de cabelo ruivo”. A novela é uma adaptação livre dum episódio das Metamorfoses de Apuleis (IX, pp. 15 segs.). (Fim da nota).
A narrativa da rainha tinha chegado ao fim, sendo Deus louvado por toda a gente por ter premiado merecidamente Frederico. Dioneu, sem esperar por ordens, começou:
“Não sei se devo dizer que é vício acidental resultante dos maus costumes dos mortais ou que é erro da natureza o facto de se rir antes das más obras do que das boas, sobretudo quando aquelas não nos dizem respeito. Como o trabalho que de outras vezes empreendi e agora vou retomar nada mais pretende do que tirar-vos a tristeza e provocar-vos riso e alegria, irei contar-vos, enamoradas donzelas, a seguinte história, cujo tema é um pouco imoral, mas que vos pode oferecer divertimento. Ao ouvi-la, fazei como quando entrais nos jardins: estendeis a delicada mão, colheis as rosas e deixais ficar os espinhos. Isto fareis deixando o ruim homem entregue à má sorte do seu vício e rir-vos-eis das artimanhas de amor da sua mulher, compadecendo-vos das desgraças alheias quando for preciso.
“Havia em Perúgia, ainda não há muito tempo, um rico homem chamado Pedro de Vinciolo, o qual, talvez mais para enganar os outros e diminuir a opinião generalizada que os Perugi-nos tinham acerca dele do que por desejo dele, procurou mulher para casar-se. Quis a fortuna satisfazer a sua vontade dando-lhe por mulher uma donzela cheia de vigor, de cabelo ruivo e inflamada, a qual precisaria mais de dois maridos do que de um, dando-se ela conta de que, afinal, lhe coubera um homem que tinha mais desejo de outro do que desejo dela. Ao descobrir o facto com o andar do tempo, vendo-se bonita e forte e sentindo-se galharda e viçosa, começou por andar muito perturbada, trocando palavras azedas com o marido e quase sempre zangada com ele. Mas depois, ao ver que isto servia mais para a consumir do que para emendar o vício do marido, pensou para consigo: “Este desgraçado abandona-me e prefere com os seus vícios andar de tamancos no enxuto (Nota 23) Perífrase, a que se contrapõe a seguinte, que indica o acto contra a natureza. (Fim da nota). Pois vou procurar que outro navegue no molhado. Casei-me com ele e dei-lhe um grande e excelente dote, pensando que ele fosse homem e supondo-o desejoso daquilo que eu sou e que os homens desejam. Ora, se eu não o considerasse homem, não me teria casado com ele. Porque casou ele comigo sabendo que eu era mulher, se não gosta de mulheres? Não aguento mais. Se eu não quisesse viver no mundo, teria ido para freira. Mas se quis ficar no mundo, como quero e como estou, acabarei por envelhecer esperando em vão que ele me dê satisfação e prazer. Quando me encontrar envelhecida, será inútil condoer-me de ter perdido a minha juventude. Ora ele é muito bom mestre e demonstrador de como devo buscar consolo, divertindo-me com o mesmo que o diverte. E só é de louvar em mim o que nele merece grande censura, pois eu apenas ofenderei as leis, enquanto ele ofende as leis e a natureza.”
“Pensando a boa senhora desta forma e porventura mais do que uma vez, a fim de conseguir pôr em prática discretamente o seu projecto, criou amizade com uma velha que mais parecia Santa Verdiana (Nota 24) Santa Verdiana era figurada com duas serpentes que a tinham atacado e que ela nutria familiarmente com a sua comida. Havia uma canção popular sobre esta história e o autor devia ter bem presente os pormenores iconográficos, porque Santa Verdiana era a santa padroeira de Castelfiorentino de Valdesa, onde ainda hoje a igreja principal lhe é dedicada. (Fim da nota) dando comida às serpentes e que andava sempre de contas na mão a rezar padre-nossos em todas as indulgências, falando apenas sobre a vida dos santos padres e sobre as chagas de S. Francisco, considerada por quase toda a gente como se fosse uma santa. Quando a dama julgou oportuno, revelou-lhe pormenorizadamente as suas intenções. Disse-lhe a velha: “Minha filha, Deus, que tudo conhece, sabe que fazes muito bem. E se não fosse por outro motivo, deverias fazê-lo, tu ou qualquer outra donzela, para que não seja desperdiçado o tempo da vossa mocidade, porque não há pior desgosto para quem souber pensar do que ter perdido o seu tempo. Para que diabo servimos nós depois de sermos velhas senão para olhar as cinzas ao pé da lareira? Se algumas têm a certeza disto ou o podem provar, eu sou uma delas. Agora que estou velha, não é sem grandes e amargos remorsos de alma que eu vejo sem proveito o tempo que deixei passar. Embora não o tivesse perdido inteiramente, pois não quero que penses ter eu sido uma sonsa, no entanto não fiz tudo o que podia ter feito. Deus sabe a dor que sinto ao ver-me como tu me vês, sem já haver quem seja capaz de meter fogo na estopa. Não sucede o mesmo aos homens: eles nascem com capacidade para mil coisas, não apenas para esta, e a maior parte vale ainda mais quando velhos do que em novos. As mulheres, ao contrário, só nascem para isto e para ter filhos e só assim as estimam. Se outra prova não te fosse dada, bastava-te esta: para isto estamos nós sempre preparadas, o que não se passa com os homens. Além disso, uma mulher é capaz de cansar muitos homens, ao passo que muitos homens não conseguem cansar uma mulher. Se foi para isto que nascemos, volto a dizer-te que fazes muito bem ao pagar ao teu marido o pão com a fogaça, para que a tua alma, na velhice, não possa acusar o teu corpo. Deste mundo cada um recebe quanto foi capaz de colher, sobretudo as mulheres, às quais importa ainda muito mais aproveitar o tempo de que dispõem do que aos homens. Como podes ver, quando envelhecemos, ninguém nos pode ver, nem marido nem outro. Ao contrário, correm connosco para a cozinha, a dizer histórias à gata e a contar panelas e tachos. Pior ainda, metem-se connosco em canções que dizem: "Para as novas os bons pedaços, para as velhas os sobejos" e muitas outras coisas parecidas. Para não estar com mais palavras, digo-te desde já que não podias abrir a tua alma a alguém deste mundo que te fosse mais útil do que eu, pois não haverá nenhum homem tão distinto a quem eu não me atreva a dizer o que for preciso, nem tão duro ou rude que eu não amanse perfeitamente, levando-o ao que eu quiser. Diz-me quem é que te agrada e deixa depois o caso comigo. Mas de uma coisa eu te lembro, minha filha: é que me recompenses, porque sou uma pessoa necessitada. Desde já te vou meter nas minhas indulgências e em todos os padre-nossos que eu rezar, para que Deus dê luz e candeia aos teus mortos (Nota 25) Tradução livre e popular do Lux perpetua luceat eis contido no Requiem. (Fim da nota).” E a velha concluiu.
“Deixou então a donzela combinado com a velha que, se calhasse encontrar um rapazinho que passava muitas vezes por aqueles sítios, e do qual forneceu todos os sinais, já sabia o que tinha a fazer. E, dando-lhe uma peça de carne salgada, mandou-a embora com Deus. Não passaram muitos dias e a velha meteu-lhe no quarto, às escondidas, o rapaz de que ela tinha falado. Daí a pouco tempo meteu lá outro, e assim de seguida, conforme iam caindo no agrado da jovem senhora. Mas, sempre receosa do marido, por fazer o que lhe apetecia, não se deixava apanhar.
“Certa noite, o marido foi cear com um amigo, de nome Herculano, e a jovem ordenou à velha que lhe mandasse um garoto que era dos mais bonitos e simpáticos de Perúgia. A velha cumpriu imediatamente. Estava a dama com o jovem à mesa para cearem quando Pedro chamou para que lhe abrissem a porta. Quando o ouviu, a dama parecia morrer. Quis esconder o jovem da forma que fosse possível, mas não se recordando de outro sítio para o esconder, foi abrigá-lo debaixo duma cesta de galináceos que se encontrava num alpendre junto da sala onde estavam a cear, pondo-lhe por cima o pano duma saca que mandara esvaziar naquele dia. Feito isto, foi a correr abrir a porta ao marido. “Muito depressa haveis engolido a ceia” — disse ela ao vê-lo entrar. “Nem sequer a provámos” — respondeu ele. “Mas como foi isso?” — perguntou a dama. Pedro explicou: “Vou contar-te. Já estávamos à mesa — Herculano, a mulher dele e eu — quando ouvimos espirrar ali perto. Não demos importância nem à primeira nem à segunda vez. Mas quem espirrara voltou a espirrar a terceira, a quarta, a quinta e muitas outras vezes. Ficámos todos assombrados. Herculano, que estava um pouco agastado com a mulher porque demorara bastante tempo a abrir-nos a porta, exclamou enfurecido: "Que é que isto quer dizer? Quem está assim a espirrar?" Levantou-se da mesa e dirigiu-se para umas escadas que havia ali perto e debaixo das quais, ao fundo, estava um armário de tábuas daqueles onde se mete qualquer coisa que for preciso, como é costume ver fazer a quem arruma a casa. Pareceu-lhe ser dali que vinha o barulho dos espirros, abriu a portinhola e, mal o fez, saiu cá para fora um cheiro de enxofre como não podia haver outro no mundo. Queixando-se ele daquele cheiro, a mulher declarou: "É que há dias estive a corar os meus véus com enxofre e arrumei debaixo da escada o tabuleiro onde o tinha espalhado para receberem os fumos. O cheiro é disso (Nota 26) Os vapores do enxofre possuem um poder branqueante e usam-se para branquear objectos delicados amarelecidos. (Fim da nota)." Depois de Herculano ter aberto a portinhola e de se ter diluído um pouco aquele cheiro, olhou lá para dentro e viu o tal que continuava a espirrar, obrigado por aquela carga de enxofre. E, apesar de espirrar, o enxofre já lhe sufocava de tal modo o peito, que pouco faltava para que não desse nem espirros nem outra coisa. Herculano, ao descobri-lo, berrou: "Agora vejo, mulher, porque foi que, há pouco, quando chegámos, nos obrigaste a ficar tanto tempo à porta sem nos abrires; mas que eu nunca mais seja feliz se não me pagares." Ao ouvi-lo, e vendo descoberto o seu pecado, sem pedir desculpa alguma, levantou-se da mesa e fugiu nem eu sei para onde. Herculano, sem ter reparado que a mulher fugira, disse várias vezes ao que estava a espirrar que saísse. Mas, por mais que Herculano falasse, o homem não se movia, apesar de já não aguentar mais. Herculano, então, agarrou-o” por um pé, puxou-o para fora e correu com um punhal para o matar. Eu tive medo da autoridade, levantei-me e não o deixei matar nem fazer-lhe nenhum mal. Ao contrário, gritei e defendi o rapaz, fazendo com que acorressem alguns vizinhos, que prenderam o derrotado jovem e o levaram para fora da casa, não sei para onde. A ceia ficou assim estragada, e não só não a engoli como, já disse, nem sequer a provei.”
“A dama ouviu a narração, descobriu que havia outras tão espertas como ela, apesar de a algumas acontecerem por vezes desgraças, e gostaria de ter falado em defesa de Herculano. Mas pensou que poderia abrir melhor caminho aos seus pecados censurando os de outrem, pelo que afirmou: “Que lindas coisas! Que boa e santa mulher ela deve ser! À fé de mulher honrada, ter-me-ia confessado a ela, tão espiritual me parecia! Pior! Sendo agora já velha, dá um lindo exemplo às novas! Maldita seja a hora em que ela veio ao mundo, como também a hora em que se deixa estar viva, mulher tão pérfida e ruim que ela há-de ser, universal vergonha e vitupério de todas as mulheres desta terra! Atirou fora a sua honradez, a felicidade prometida ao marido e a honra deste mundo! E ele, tão bom homem e tão honrado cidadão, que a tratava tão bem! Não teve vergonha de o cobrir de ignomínia por causa de outro homem e ela juntamente com ele! Deus me salve se mulheres destas deviam ter misericórdia! Deviam-nas matar! Deviam-nas atirar à fogueira e fazê-las em cinzas!”
"Depois, lembrada do amante que ela tinha metido debaixo da cesta, pôs-se a consolar Pedro para que fosse para a cama, que já eram bem horas. Pedro, que tinha mais vontade de comer que de dormir, ia perguntando se não havia nada para cear, ao que a dama respondia: “Lá isso há-de haver ceia! Estamos mesmo habituadas a fazer ceia quando não estás! Sim, sou como a mulher de Herculano! Ora, porque é que não vais dormir esta noite? Farás muito melhor!”
“Ora aconteceu que alguns trabalhadores de Pedro chegaram da aldeia com certa carga e foram arrumar os burros, sem lhes dar de beber, num curral que ficava ao lado do alpendre. Um dos burros, cheíssimo de sede, tirou a cabeça do cabresto, saiu do curral e começou a farejar por todo o lado à procura de água. Andando, andando, deu com a cesta onde estava o rapaz. Como o jovem tinha de estar de gatas, estendera no chão, um pouco fora da cesta, os dedos de uma das mãos. Tanta foi a sua sorte ou azar, que o burro lhe pôs a pata em cima da mão e o rapaz, ao sentir aquela dor tão grande, soltou um grito bem alto. Pedro, quando o ouviu, ficou espantado e percebeu que tinha sido dentro de casa. Saiu da sala e, continuando a ouvir os lamentos, porque o burro ainda não retirara a pata de cima dos dedos do rapaz e os apertava com força, exclamou: “Quem está aí?” Correu para a cesta, levantou-a e viu o rapaz que, além da dor dos dedos esmagados pela pata do burro, todo ele tremia com medo de que Pedro lhe fizesse mal. Pedro reconheceu-o como um daqueles a quem perseguira durante muito tempo por causa dos seus vícios e perguntou-lhe: “Que estás aqui a fazer?” O rapaz não respondeu, mas pediu-lhe por amor de Deus que não lhe fizesse mal. Pedro disse-lhe: “Levanta-te e não julgues que te faço mal, mas diz-me como e porque estás aqui?” O rapaz contou tudo. Pedro, não menos contente de o ter encontrado do que triste estava a sua mulher, pegou-lhe na mão e levou-o para a sala, onde a dama esperava, o mais assustada do mundo. Pedro sentou-se diante dela e disse: “Maldizias tu há pouco a mulher de Herculano, dizias que ela devia ser queimada e que era a vergonha de todas vós. Mas porque não o dizias de ti mesma? Se não o querias dizer de ti, como é que tinhas coragem de o dizer acerca dela, sabendo que tinhas feito o mesmo? Com certeza, mais nada te levava a isto senão que sois todas feitas assim e tentais esconder os vossos pecados com os alheios. Caia do céu um raio que vos queime a todas, péssima geração que vós sois!”
“A dama viu que ele, no primeiro momento, outro mal não lhe fazia senão de palavras e percebeu que Pedro estava exultante por segurar a mão dum tão formoso rapazinho. Ganhou, pois, coragem e disse: “Eu estou certíssima de que gostarias de que viesse um raio do céu queimar-nos a todas, tão desejoso estás de nós como o cão do varapau. Mas, pela bendita cruz, tal coisa não acontecerá. Mas gostaria de conversar um pouco contigo para saber do que te queixas. Bem estaria eu se me igualasses à mulher de Herculano, essa velha beata hipócrita que tem dele o que deseja, O marido tem-na estimada como se deve ter uma mulher, o que não se passa comigo. Ainda que eu ande bem vestida e bem calçada por ti, sabes perfeitamente como preciso de outras coisas e há quanto tempo não te deitas comigo. Preferia andar vestida de farrapos e descalça, mas que me tratasses bem na cama, do que ter todas estas coisas e ser tratada como me tratas. Entende bem, Pedro, que sou mulher como as outras e desejo o que as outras desejam. Não digas mal, portanto, de eu procurar o que não me dás. Pelo menos, ainda te respeito bastante, não procurando criados ou maltrapilhos.”
“Pedro percebeu que tinha conversa para toda a noite e, como não queria saber dela para nada, disse: “Não digas mais, mulher. Disso dar-te-ei satisfação bastante. Seria grande favor se nos desses qualquer coisa para cear, pois me parece que este rapaz ainda não ceou, tal como eu.” “Com certeza que ainda não ceou — disse a dama —, pois na má hora em que chegaste ainda nos estávamos a sentar à mesa.” “Então vai lá arranjar-nos ceia — disse Pedro — e depois arranjarei eu as coisas de maneira que não te possas queixar.” A dama, vendo o marido bem disposto, levantou-se e depressa pôs a mesa, trouxe a ceia que tinha preparado e comeu alegremente com o ruim marido e com o jovem. “Já não me lembro do que Pedro decidiu, depois da ceia, para satisfação dos três. Apenas sei que na manhã seguinte, quando o jovem foi acompanhado à praça, não estava lá muito certo se durante a noite fora marido ou mulher. Por isso vos declaro, minhas queridas senhoras: pagai-as a quem vo-las faz, se não puderdes logo, guardai-o na mente até que vos seja possível, porque burro que dá coices na parede magoa-se com eles.”
Depois de concluída a novela de Dioneu, tendo as damas dominado os risos mais pelo pudor do que por gosto, viu a rainha que tinha chegado ao fim o seu reinado. Pôs-se de pé, tirou a coroa de louros e graciosamente a colocou na cabeça de Elisa, dizendo-lhe: “Cabe-vos agora, senhora, governar.”
Elisa recebeu a honra e fez o mesmo que anteriormente se fizera. Depois de combinar com o mordomo o que era preciso para o tempo do seu reinado, disse, para contentamento do grupo: “Já ouvimos muitas vezes como os belos ditos ou como com respostas prontas ou com raciocínios rápidos muitos souberam fazer encolher com oportuna dentada os dentes de outros ou afastar os perigos iminentes. Como é um tema bonito e que pode ser útil, quero que amanhã se fale, com a ajuda de Deus, dentro dos seguintes termos: de quem, provocado, soube pagar-se com um dito airoso ou evitar qualquer perigo ou humilhação com uma resposta ou raciocínio rápidos.”Todos elogiaram muito o tema e, em seguida, a rainha pôs-se de pé e deu-lhes liberdade até à hora da ceia.
Todo o nobre agrupamento se levantou quando viram levantar-se a rainha e, segundo o costume, cada um se dedicou ao que mais lhe agradava. Já com as cigarras silenciosas, todos foram chamados e dirigiram-se para a ceia, servida com grande alegria. Dedicaram-se depois às canções e à música. Por vontade da rainha, Emília iniciara uma dança e foi dito a Dioneu que cantasse uma canção. Ele começou imediatamente: “Dona Aldruda, levante o rabo — que boas novas lhe trago. (Nota 27) Esta e as seguintes são canções populares, quase sempre de significado equívoco, como a de “Esta minha concha”, a única chegada aos nossos dias. Fim da nota)
“Todas as donzelas se puseram a rir, principalmente a rainha, a qual mandou que ele deixasse aquela canção e cantasse outra. Disse Dioneu: “Se eu tivesse um pandeiro, cantaria: “Levantai as saias, Dona Lapa” ou “Debaixo da oliveirinha está a erva”. Ou preferiríeis que eu cantasse: “A onda do mar faz-me tanto mal”? Mas eu não tenho pandeiro, e, por isso, vede vós qual das seguintes quereis. Gostaríeis desta: “Sai para fora, que eu te corto — como fruta minha do campo”?” Disse a rainha: “Não, canta-nos outra.” “Então — continuou Dioneu — cantar-vos-ei esta: “Dona Simona emborca, emborca — e não é o mês de Outubro”.” A rainha respondeu, rindo-se: “Deixa lá essas! Faz-nos o favor de cantar uma canção bonita, que dessas não queremos.” Retorquiu Dioneu: “Não vos preocupeis, senhora. Qual é que vos agrada? Eu sei mais de mil. Preferis “Esta minha concha, se eu não lhe bater” ou “Ai maridinho, mais devagarinho” ou “Eu comprei um galo por 100 liras”?” Então, a rainha, um tanto agastada e apesar de as outras se rirem, disse: “Dioneu, deixa-te de graças e canta-nos uma bonita; senão, experimentarás como sei zangar-me.” Dioneu deu-lhe ouvidos e, pondo de lado o burlesco, imediatamente se pôs a cantar desta maneira:
“Amor, a suave luz
que nasce dos lindos olhos desta mulher
faz-me teu escravo e escravo dela.
Dos seus lindos olhos nasceu o esplendor
que primeiro ateou no meu coração a tua chama
atravessando os meus;
o seu lindo rosto me veio revelar
toda a grandeza do teu valor;
imaginando o seu rosto, senti-me como se andasse colhendo
toda a virtude e a submetesse a ela,
estranha razão dos meus suspiros.
Assim me tornei teu seguidor,
querido senhor, e obediente espero
a graça do teu poder;
mas não sei se é todo conhecido
o alto desejo que puseste no meu peito
nem a minha total fidelidade
por aquela que possui
tanto a minha alma, que eu não encontro
paz nem a quero ter senão junto dela.
Suplico-te, pois, ó meu doce senhor,
que isso lhe mostres e a faças sentir
um pouco de teu fogo
em meu benefício, pois vedes como eu
amando já me consumo e em sofrer
me desfaço aos poucos;
e depois, quando for oportuno
recomenda-me a ela como é teu dever,
que depois de bom grado irei falar-lhe contigo.”
Quando Dioneu ficou em silêncio, mostrando ter concluído a sua canção, a rainha mandou que se cantassem muitas outras, havendo elogiado muito, todavia, a de Dioneu. Passada, porém, uma boa parte da noite, a rainha sentiu que o calor do dia já fora quebrado pela frescura da noite e ordenou que todos fossem repousar à sua vontade até ao dia seguinte.
Giovanni Boccaccio
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