Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DECEPÇÃO FATAL
Segunda Parte
FOI FÁCIL A BASIL TREVES apanhar Barbara, já que esta fora a última hóspede a jantar. Conseguiu-o quando ela passou pela sala, tendo-se decidido a ir tomar um café pós-prandial, em vez de dar uma volta no alto da falésia em busca de uma errante brisa marítima.
- Sargento? - Como uma cobra, Treves sibilou o nome dela à maneira de um 007. - Não quis interromper-lhe a refeição. - Uma chave de parafusos na mão do hoteleiro indicava que este estivera a fazer qualquer arranjo na televisão de écran gigante. Nela, Daniel Day- Lewis jurava fidelidade eterna a uma mulher de seios érguidos, antes de se atirar por uma catarata. - Mas agora, como já terminou... se tiver um momento...?
Em vez de esperar pela resposta, tocou no cotovelo de Barbara com o polegar e o indicador, guiando-a firmemente até à recepção. Deslizou para trás da secretária e retirou umas folhas de computador da gaveta de baixo.
- Mais informações - disse, com ar de conspiração. - Pensei que era melhor não lhas dar enquanto estivesse ocupada com... bem, com outras pessoas. Sabe a quem me refiro. Mas como agora está livre... Está livre, não é verdade? Espreitou por cima do ombro dela como se esperasse que Daniel Day-Lewis atravessasse a sala de espingarda na mão, para a vir salvar.
- Completamente - Barbara gostaria de saber porque razão aquele homem odioso não faria nada para tratar da pele. Nessa noite estava a descamar significativamente para cima da barba. Parecia que tinha posto a cara num prato de migalhas de bolo.
- Excelente - disse ele. Deu uma olhadela à procura de curiosos, mas não tendo visto nenhum, decidiu mesmo assim continuar com cautela inclinando-se no balcão para falar confidencialmente, ao mesmo tempo que partilhava com ela o seu hálito cheirando a gin.
- Registos de telefonemas - desabafou intempestivo. - Graças a Deus, instalei no ano passado um novo sistema para conseguir um registo das chamadas interurbanas feitas pelos hóspedes. Anteriormente todos os telefonemas tinham de passar pelo PBX, tinha de os registar à mão e contar o tempo, das chamadas, claro, não dos registos. Um método profundamente antiquado e pouco preciso. Deixe-me dizer-lhe, sargento, que levava às mais desagradáveis discussões na hora de pagar a conta.
- Localizou as chamadas que Mr. Querashi fez para fora? - Perguntou
Barbara querendo encorajá-lo. Encontrava-se algo surpreendida. Com eczema ou sem ele, o homem demonstrava ser uma mina. - Brilhante, Mr. Treves.
O que temos então?
Como sempre ficou inchado com o uso do pronome no plural. Pôs as folhas de computador sobre a secretária de modo a que ficassem voltadas para ela. Barbara viu que ele assinalara com um círculo talvez duas dúzias de telefonemas. Começavam todos por dois zeros. Barbara percebeu que era uma lista de chamadas internacionais.
- Tomei a liberdade de continuar mais um pouco a investigação, sargento. Espero não ter passado das marcas. - Treves retirou um lápis de um suporte feito com conchas coladas a uma lata de sopa. Usou-o para apontar e continuou. - Estes números são do Paquistão: três de Carachi e um de Lahore. Fica no Punjab, sabia? E estes dois são da Alemanha, ambos de Hamburgo. Claro que não liguei para nenhum deles. Assim que vi o código internacional percebi logo que precisava de uma lista telefónica.
Os códigos dos países e das cidades vêm lá.
Parecia um pouco desgostoso por ter de o admitir. Como tanta gente, sem dúvida partira do princípio que o trabalho da polícia consistia em inves' tigações secretas, quando não se tratava de vigilâncias, tiroteios e perseguições de carro, em que camiões e autocarros chocavam uns com os outros e os maus conduziam loucamente por entre o trânsito da cidade.
- Só fez estas chamadas? - Perguntou Barbara. - Em todo o tempo que cá esteve?
- São as chamadas interurbanas - Corrigiu Treves. - Claro que não há registo das chamadas locais.
Barbara inclinou-se sobre a secretária e começou a examinar as folhas, página a página. Viu que os primeiros dias da estadia de Querashi, os tele' fonemas para fora tinham sido poucos e espaçados, e nessa altura para um único número de Carachi. Porém, nas últimas três semanas, as chamadas internacionais tinham aumentado, triplicando nos últimos cinco dias.
A grande maioria fora feita para Carachi. Telefonara apenas quatro vezes para Hamburgo.
Reflectiu. Entre as mensagens telefónicas, deixadas para Querashi enquanto este estivera fora, não havia nenhuma do estrangeiro, porque senão, certamente a agente Belinda Warner tê-lo-ia indicado à chefe, quando nessa tarde viera dar contas da pesquisa que levara para fazer. Assim, tinham sempre conseguido encontrá-lo ou, quando ele não estava, não deixavam recado para que ele lhes telefonasse mais tarde. Barbara olhou para a duração de cada telefonema e viu a confirmação daquilo que pensava: a chamada mais demorada levara quarenta e dois minutos e a mais curta treze segundos, tempo que de certeza não era suficiente para deixar um recado a alguém.
Mas o que intrigava Barbara, era o número elevado de telefonemas feitos tão perto da sua morte. Era evidente que precisava localizar quem quer que estivesse naqueles números. Olhou para o relógio e pensou que horas seriam no Paquistão.
- Mr. Treves - disse, preparando-se para se livrar do homem - o senhor é uma autêntica maravilha.
Ele levou a mão ao peito, a perfeita encarnação da humildade.
- Tenho todo o prazer em ajudá-la, sargento. Peça o que quiser de mim, seja o que for, e eu cumprirei o melhor que possa. E com toda a discrição, claro. Pode ter confiança. Sejam informações, provas, reminiscências, relatos de testemunhas oculares...
- Quanto a isso... - Barbara decidiu que era a altura ideal para saber a verdade sobre o sítio onde ele se entrava na noite em que Querashi morrera. Pensou qual seria a melhor maneira de lho perguntar, sem que ele o percebesse. - Na sexta-feira à noite, Mr. Treves. .
Imediatamente ele era todo ouvidos, as sobrancelhas erguidas e as mãos apertadas sob o terceiro botão da camisa.
- Sim? Sim? Sexta-feira à noite?
- Viu Mr. Querashi sair, não é verdade?.
Claro que vira, respondeu-lhe Treves. Estava no bar servindo brandy e vinho do Porto. Pelo espelho, vira Querashi descer as escadas. Mas não tinha já dado esta informação ao sargento?
Claro que tinha, afirmou ela apressadamente. Aquilo que ela queria saber era quem eram os outros que estavam no bar. Se Mr. Treves estava a servir as bebidas era lógico concluir que estava a servir outras pessoas. Não era assim? E se assim era, teria alguma dessas pessoas saído ao mesmo tempo que Querashi? Talvez para o seguir?
- Ah! - Treves ergueu o indicador, quando percebeu onde ela queria chegar. Continuou dizendo que as únicas pessoas que tinham saído do bar ao mesmo tempo que Querashi deixara o Burnt House, tinham sido a idosa Mrs. Porter, coitada, com o seu andarilho, que evidentemente não estava em estado de perseguir ninguém e os Reed, um casal de idade, de Cambridge, que tinham vindo comemorar o quadragésimo quinto aniversário de casamento. - Fazemos descontos especiais para casamentos e aniversários natalícios ou de casamento - confiou-lhe ele. - Atrevo-me a dizer que foram à procura do champanhe e dos bombons.
Quanto aos outros hóspedes do hotel, tinham ficado pelo bar ou pela sala até às onze e meia. Podia pôr as mãos no fogo por todos, disse. Estivera com eles toda a noite.
Óptimo, pensou Barbara. E ficou satisfeita porque ele não se apercebera que lhe dera o seu álibi completo. Agradeceu-lhe, deu-lhe as boas-noites e, com os registos debaixo do braço, subiu as escadas.
No quarto, foi directamente para o telefone que estava colocado sobre
uma das mesas-de-cabeceira, ao lado do candeeiro poeirento com a forma de um ananás. Com as folhas no colo, Barbara tocou na tecla para conseguir uma linha e depois marcou o primeiro número da Alemanha. Vários cliques e a ligação fez-se. Um telefone começou a ligar do outro lado do mar do Norte.
Quando o toque parou, respirou fundo para se identificar. Mas em vez
de uma voz humana, descobriu que estava a ouvir uma gravação. Uma voz masculina metralhava uma mensagem em alemão. Percebeu os números sete e nove duas vezes, mas para além disso e da palavra chiis no fim – que tomou por uma forma de despedida naquela língua - não apanhou mais nada. Depois do sinal deixou o nome, o número do telefone e um pedido para que a chamada lhe fosse devolvida, sempre com esperança que quem ouvisse a mensagem, falasse inglês.
Passou ao segundo número de Hamburgo e deu consigo a falar com uma voz de mulher que dizia qualquer coisa tão ininteligível como a voz masculina do atendedor de chamadas. Mas pelo menos ali havia um ser humano e Barbara não estava disposta a deixá-lo escapar.
Bolas, como desejava naquela altura ter estudado línguas estrangeiras na escola secundária! Tudo o que sabia dizer em alemão era: KBitte zwei BierN que não lhe parecia adequado à situação. Pensou e agora? Mas recompôs-se o suficiente para dizer:
- Ich spreche... Quer dizer... Sprechen vous... Não assim, não é... Ichbin ein a telefonar de Inglaterra... Raios me partam!
Aparentemente o estímulo fora suficiente porque a resposta veio em inglês, e as palavras eram surpreendentes.
- Aqui Ingrid Eck - disse a mulher tão bruscamente e com um sotaque tão cerrado, que Barbara pensou que só faltava ouvir Das Deutschlandlied z em música de fundo
- Aqui Polícia de Hamburgo. Was ist das, bitte? O que deseja?
Polícia? Pensou Barbara. A polícia de Hamburgo? A polícia alemâ?
Porque raio havia um paquistanês vivendo em Inglaterra telefonar à polícia alemã?
Disse:
- Desculpe. Daqui fala o sargento-detective Barbara Havers da New Scotland Yard.
- New Scotland Yard? - Repetiu a mulher. - Ja? Com quem deseja falar - disse falarrr - aqui neste local?
Por favor, duas cervejas. Em alemão no original. (N. da T. )
2 Hino nacional da Alemanha. (N. da T. )
- Não sei bem - disse Barbara. - Estamos a investigar um crime e a vítima.
- Têm uma vítima alemã? - Perguntou imediatamente Ingrid Eck, sempre com o seu sotaque e continuou dizendo: - Por favor, estará - disse estarrrá - algum cidadão alemão envolvido num homicídio?
- Não. A nossa vítima é um asiático. Mais precisamente paquistanês. Um homem chamado Haytham Querashi. E ele telefonou para esse número dois dias antes de ser morto. Estou a tentar localizar a chamada. Gostaria de falar com a pessoa para quem ele telefonou. Pode ajudar-me?
- Oh. Ja. Percebo. - Depois falou rapidamente em alemão com alguém, mas Barbara só percebeu as palavras England e Mord '. Várias vozes responderam, com muitas guturais, quase que como um homem que limpa a garganta de manhã. Barbara sentia-se cheia de esperanças ao ouvir o entusiasmo da" quela conversa, mas logo se desiludiu, quando a voz de Ingrid voltou à linha.
- Daqui fala outra vez Ingrid - disse. - Tenho desgosto de não podermos ajudar.
Desgosto, pensou Barbara, antes de perceber que era tenho pena.
- Deixe-me soletrar o nome - disse ainda. - Os nomes estrangeiros são estranhos quando se ouvem, não é verdade? Mas pode ser que escrito o reconheça. Ou talvez alguém se lembre.
Parando e recomeçando, interrompendo pelo menos cinco vezes para fazer correcções na ortografia, Ingrid ficou com o nome de Haytham Querashi. Disse naquele inglês criativo e hesitante que usava, que o mostraria e faria circular na esquadra, mas que a New Scotland Yard não deveria ter muitas esperanças numa resposta que os ajudasse. Trabalhavam muitas centenas de pessoas nas várias secções da Polizeihochhaus de Hamburgo e não havia maneira de dizer se a pessoa visada veria em breve esse nome. As pessoas começavam a ir de férias e a sua atenção estava mais focada nos problemas alemães do que nos ingleses.
Viva a União Europeia, pensou Barbara. Pediu a Ingrid que fizesse todos os possíveis, deixou o número de telefone e desligou. Limpou o rosto corado à ponta da camisola, pensando que desta vez seria difícil encontrar um falante de inglês do outro lado da linha nos próximos telefonemas. Já devia passar muito da meia-noite no Paquistão e como não falava uma única palavra de Urdu para poder explicar a um asiático porque lhe tinha interrompido o sono com a campainha do telefone, Barbara resolveu arranjar alguém que lhe fizesse o trabalho.
Subiu as escadas e atravessou o corredor até à zona do hotel onde ficara o quarto de Querashi. Deteve-se diante da porta onde ouvira na noite anterior o barulho da televisão. Azhar e Hadiyyah deveriam estar lá dentro. Era impensável que Basil Treves se tivesse desviado da sua filosofia separatista,
1 Inglaterra e assassinio. Em alemão no original. (N. da T. )
colocando asiáticos numa zona do hotel onde as delicadas sensibilidades dos hóspedes ingleses pudessem ser perturbadas por uma presença estrangeira.
Bateu devagar e pronunciou o nome de Azhar; depois voltou a bater. Lá dentro a chave girou na fechadura e ali estava ele na sua frente com um roupão castanho e um cigarro na mão. Por trás, o quarto encontrava-se na semi-obscuridade. A luz de um candeeiro de mesa-de-cabeceira estava obscurecida por um enorme lenço azul, mas a iluminação era no entanto suficiente para permitir a leitura. Um documento qualquer estava colocado ao lado da almofada.
- Hadiyyah já está a dormir? Pode chegar ao meu quarto? - Perguntou-lhe.
Ele ficou tão espantado com o pedido que Barbara sentiu-se corar, pensando na implicação que estava para lá das suas palavras. Disse apressadamente: "
- Preciso que me faça umas chamadas telefónicas para o Paquistão – e prosseguiu, explicando como lhes tinha chegado.
- Ah! - Ele olhou de relance o relógio de ouro que tinha no pulso magro. - Barbara, tem ideia das horas que são no Paquistão?
- É tarde.
- É cedo - corrigiu ele. - Extremamente cedo. Será que não seria melhor para si esperar até uma hora mais razoável?
- Quando se trata de um crime, acho que não - disse ela. Faz as chamadas por mim, Azhar?
Ele olhou para dentro do quarto. Por detrás dele Barbara viu a figura de Hadiyyah enrolada na segunda cama. Estava a dormir com um enorme sapo Cocas ao lado.
- Muito bem - disse Azhar, voltando para dentro do quarto. Se me der uns instantes para me vestir...
- Deixe-se disso. Não é preciso vestir-se. Provavelmente vai levar menos de cinco minutos. Venha.
Ela não lhe deu oportunidade de discussão. Seguiu pelo corredor em direcção às escadas. Ouviu atrás de si o som de uma porta a fechar-se, seguido do arranhar da chave na fechadura. Esperou por ele no cimo das escadas.
- Querashi telefonou para o Paquistão pelo menos uma vez por dia nas últimas três semanas. Quem quer que recebeu essas chamadas deve lembrar-se, se é que sabem que ele morreu.
- A família foi informada - disse Azhar. - Sem ser eles, não sei a quem pudesse ter telefonado.
1 Personagem do programa infantil de televisão Sesame Street, em português A Rua Sésamo. (N. d T. )
- É isso que vamos descobrir.
Abriu de par em par a porta do quarto e mandou-o entrar. Apanhou do chão a roupa interior, a camisola e as calças que vestira no dia anterior. Atirou-as para dentro do guarda-fatos dizendo, Desculpe a desarrumação, e conduziu-o à mesa-de-cabeceira, onde, sobre a cobertura desbotada, estavam os registos dos telefonemas.
- Cá estamos - disse. - Ponha-se à vontade.
Ele sentou-se e por um momento olhou para os papéis, com o cigarro na boca e uma coluna de fumo erguendo-se como uma serpente sobre a cabeça, qual serpente vaporosa. Bateu com os dedos nos números assinalados e finalmente olhou para ela.
- Tem a certeza que quer que eu telefone?
- Porque não havia de ter a certeza?
- Estamos em campos opostos, Barbara. Se as pessoas do outro lado da linha só falarem Urdu, como vai saber que lhe contei a conversa verdadeira?
Ele tinha razão. Antes de o ir buscar, Barbara não se preocupara com a sua idoneidade no que dizia respeito às informações. Nem pensara em tal coisa. Porque seria? No entanto disse:
- O nosso objectivo é o mesmo, não é verdade? Ambos queremos saber quem matou Querashi. Não creio que fizesse alguma coisa para esconder a verdade. Francamente nunca me pareceu ser desse género.
Ele olhou-a com uma expressão, que tanto poderia ser pensativa, esclarecida ou perplexa. Finalmente disse-lhe.
- Como queira. - e pegou no telefone.
Barbara tirou do saco o maço de cigarros, acendeu um e deixou-se cair no banquinho verde do toilette. Colocou um cinzeiro entre eles.
Azhar usou os dedos longos para afastar uma madeixa de cabelo negro que lhe caíra para a testa. Colocou o cigarro no cinzeiro e disse:
- Está a tocar. Tem aí um lápis? - E depois uns instantes mais tarde:
- é um gravador, Barbara. - Franziu a testa enquanto escutava. Escreveu umas notas no papel. Porém, não deixou qualquer mensagem no fim da gravação. - Este número - disse, colocando uma cruz num deles - é uma agência de viagens em Carachi. A World Wide Tours. A gravação dá-nos o orário em que estão abertos, que - sorriu e pegou no cigarro - não é de certeza entre a meia-noite e as sete da manhã.
Barbara olhou para o registo.
- Ele telefonou-lhes quatro vezes na semana passada. Que lhe parece? Planos para a lua-de-mel? A grande fuga ao casamento?
- Sem dúvida andava apenas a tratar da vinda da família, Barbara. Haviam de querer vir para festejar o casamento dele com a minha prima. Continuo?
Ela acenou afirmativamente. Ele passou ao número seguinte. A ligação fez-se e momentos depois falava Urdu. Barbara conseguia ouvir a voz no outro lado da linha. As palavras, a princípio hesitantes, logo se tornaram insistentes e entusiasmadas. A conversa continuou por alguns minutos, com algumas palavras em inglês, quando não havia correspondência na outra língua. Assim ela ouviu-o dizer o seu nome, bem como New Scotland Yard, Balford-le-Nez, Burnt House Hotel e Comando de Essex.
Quando desligou, ela quis saber:
- Bom, quem era? O que foi que eles... - mas ele ergueu a mão, impedindo-a de fazer mais perguntas e passou ao telefonema seguinte.
Desta vez falou durante mais tempo e fez anotações, à medida que uma voz masculina do outro lado da linha lhe transmitia algumas informações.
Barbara tinha vontade de arrancar o auscultador das mãos de Azhar para fazer mais perguntas. Mas obrigou-se a ter paciência.
Sem qualquer comentário, Azhar passou à quarta chamada mas então já Barbara reconheceu as primeiras palavras: um pedido de desculpas por telefonar àquela hora, seguido de uma explicação em que o nome de Haytham Querashi surgia mais do que uma vez. Esta última conversa foi a mais demorada de todas e, quando a concluiu, Azhar concentrou as suas atenções no registo telefónico até que Barbara falou.
A expressão dele era tão sombria que Barbara se sentiu tonta. Tinha-lhe entregue um item potencialmente importante para a investigação. Ele poderia fazer o que lhe apetecesse, incluindo mentir a respeito do que lhe tinham dito ou ir contá-lo ao primo, com comentários adequados.
Ela disse:
- Azhar?
Ele levantou-se. Pegou no cigarro. Depois olhou para ela.
- A primeira chamada foi para os pais.
- Era o número que já aparecia antes no registo?
- Sim. Estão... - deteve-se procurando ostensivamente a palavra ou a expressão adequada - compreensivelmente perturbados pela sua morte.
Queriam saber como ia a investigação. E gostariam de ter o corpo. Acham que não podem chorar o seu filho mais velho como deve ser sem terem o corpo, por isso perguntam se é preciso pagar à polícia para que lho mandem.
- Pagar?
Azhar continuou:
- A mãe de Haytham está sob vigilância médica, porque teve um colapso quando foi informada do crime. As irmãs sentem-se confusas, um irmão não diz palavra desde sábado à tarde e é a avó paterna que tem estado a tentar consolar a família. Mas tem o coração fraco pois tem uma angina de peito, está sob grande tensão e um ataque forte pode provocar-lhe a morte. A campainha do telefone assustou-os a todos.
Ele continuou a olhar para Barbara.
- Um assassinato é uma coisa muito feia, Azhar - disse ela. Desculpe, mas não é possível tornar as coisas mais fáceis, seja para quem for. E mentiria se lhe dissesse que o horror terminará quando prendermos alguém. Não termina. Nunca.
Ele assentiu. Distraído, esfregou a parte de trás do pescoço. Pela primeira vez, ela reparou que ele usava apenas as calças de pijama por baixo do roupão. Tinha o tronco nu e a pele morena parecia lustrosa à luz do candeeiro.
Barbara levantou-se e foi para a janela. Ouvia música vinda de fora, as notas hesitantes de alguém que, a certa distância, numa das casas sobre a falésia, estivesse a praticar clarinete.
- O número seguinte era de um mulla - disse Azhar por trás dela.
- É um chefe religioso, um homem santo.
- Assim como um ayatollah?
- Inferior. É um chefe religioso local e servia a comunidade em que Haytham cresceu.
Falava num tom tão sério, que Barbara se afastou da janela para olhar para ele. Viu que o seu ar era também muito sério.
- E o que queria ele do mulla? Tinha alguma coisa a ver com o casamento?
- Tinha a ver com o Corão - disse Azhar. - Queria falar a respeito do mesmo texto que tinha assinalado no livro: a passagem que eu lhe traduzi durante a reunião desta tarde. .
- A respeito de se livrar dos opressores?
Azhar acenou afirmativamente.
- Só que o seu interesse não estava na cidade onde havia opressores, como pensava o meu primo. Queria saber como havia de definir a palavra fraco.
Queria saber o que significava fraco? E telefonou para o Paquistão só para saber? Não faz sentido.
- Ha tham sabia o que quer dizer fraco, Barbara. Queria saber como havia de aplicar a definição. O Corão diz que os muçulmanos devem lutar pela causa dos fracos entre os homens. Queria discutir o modo de reconhecer quando alguém é fraco e quando não é.
- Porque queria lutar contra alguém? - Barbara voltou a sentar-se no banquinho, pegou o cinzeiro e apagou o cigarro.
- Que raio - disse mais para si do que para Azhar. - Que se prepararia para fazer?
- A outra chamada foi para um mufti - continuou Azhar. - É um especialista em lei islâmica.
- Como se fosse um advogado?
- Mais ou menos análogo. Um mufti é uma pessoa que faz interpretações legais da lei islâmica. Estudou para fornecer aquilo a que se chama fatwa.
- E que é...?
- Mais ou menos uma interpretação da lei.
- E o que queria ele desse fulano?
Azhar hesitou e Barbara percebeu que tinham chegado àquilo que lhe causara uma expressão tão séria. Em vez de responder logo, apanhou o cinzeiro e apagou o cigarro. Afastou pela segunda vez, o cabelo da testa. Olhou com toda a atenção para os pés que, tal como o peito, estavam nus. Eram, como as mãos, muito magros e tão arqueados e macios, que pareciam de mulher.
- Azhar - disse Barbara. - Por favor, não me abandone, não? Preciso de si.
- A minha familia...
- Também precisa de si. Eu sei. Mas todos queremos chegar a uma conclusão. Seja o assassino asiático ou inglês, não queremos que a morte de Querashi fique impune. Nem mesmo Muhannad pode desejar tal coisa, diga o que disser acerca de proteger o seu povo.
Azhar suspirou.
- Haytham pediu ao mufti uma resposta a respeito de um pecado.
Queria saber se um muçulmano, culpado de um grave pecado, poderia continuar muçulmano e assim fazer parte da grande comunidade muçulmana.
- Quer dizer, se continuaria a fazer parte da sua família?
- Parte da sua família e da comunidade em geral.
- E o que lhe disse o mufti?
- Falou-lhe nas usul alfigh: nas fontes da lei.
- Que são...?
Azhar ergueu a cabeça para a olhar nos olhos
- O Corão, o Sunrta do Profeta...
- Sunna?
- O exemplo do Profeta.
- Que mais?
- O consenso da comunidade e o raciocínio analógico... aquilo a que vocês chamam dedução.
sem olhar, Barbara pegou no maço de cigarros. Tirou um para ela e ofereceu a Azhar. Ele apanhou a carteira de fósforos do toilette, acendeu um, ofereceu-lho e depois serviu-se dele para acender o seu. Voltou para o seu lugar, na beira da cama.
- Então quando acabou de falar com o mufti, deve ter chegado a uma conclusão qualquer, certo? Já teria uma resposta para a pergunta. Um muçulmano com uma culpa grave pode manter-se muçulmano?
Ele respondeu por sua vez com outra pergunta.
- Como poderá alguém viver desafiando as doutrinas do Islão e mesmo assim considerar-se muçulmano, Barbara?
As doutrinas do Islão. A frase dava voltas no espírito de Barbara, ligando-se com tudo o que sabia a respeito de Querashi e das pessoas com quem ele contactara. Ao fazê-lo, viu a inevitável ligação entre a questão e a vida de Querashi. Sentiu-se entusiasmada porque o comportamento do asiático começava a fazer sentido.
- Há bocado, quando estávamos lá fora, disse-me que a homossexualidade era expressamente proibida pelo Corão.
- Pois disse.
- Mas ele tencionava casar-se. De facto tinha-se comprometido a casar. Tinha-se comprometido de tal modo que a família estava disposta a assistir à cerimónia e ele já tinha planeado a noite de núpcias.
- Essa conclusão parece razoável - disse Azhar com cautela.
- Então poderemos dizer que depois da sua conversa com o mufti, Haytham Querashi tinha-se decidido a viver segundo as doutrinas do Islão, para ficar como devia ser? - Entusiasmou-se com o assunto. - Poderemos dizer que ele andava em guerra consigo próprio, para ficar como devia ser, desde que chegara a Inglaterra? Afinal tinha-se comprometido a casar, mas sentia-se ainda atraído pelos homens, de quem jurara abdicar. Ao sentir-se atraído por eles, era certamente atraído para o local que eles frequentam, até para mais de um local. Assim, encontrou um fulano no mercado de Clacton que lhe agradou. Andaram um com o outro durante um mês, mais ou menos, mas ele não queria levar uma vida dupla, porque arriscava muita coisa; por isso quis acabar tudo. Só que quem acabou foi ele.
- O mercado de Clacton? - Perguntou Azhar. O que tem o mercado de Clacton a ver com tudo isto, Barbara?
Barbara percebeu o que tinha feito. Na sua ânsia de juntar os factos e as especulações já conseguidos, dera inadvertidamente a Azhar as informações que só Trevor Ruddock e os investigadores possuíam. Ao fazê-lo, pisara o risco.
Merda, pensou. Gostaria de voltar a trás, de apagar as palavras Mercado de Clacton e de as voltar a engolir. Mas não podia desdizer-se. Apenas podia contemporizar. Porém, esse não era um dos seus talentos. Oh, quem lhe dera estar na companhia do inspector Linley, pensou Barbara. Com o seu jeito especial para aquele tipo de conversa, num instante a salvaria daquela situação. Claro que, primeiro que tudo, ele nunca teria feito uma coisa assim, pois não era seu hábito pensar em voz alta na presença dos colegas. Mas isso era outra coisa.
Decidiu ignorar a questão dizendo com o ar mais pensativo possível.
- Claro que poderia estar a pensar noutra pessoa quando falou com o mufti - e ao dizer isto, apercebeu-se que provavelmente estaria muito perto da verdade.
- Quem? - Perguntou Azhar.
- Sahlah. Talvez tenha descoberto qualquer coisa a seu respeito que o fizesse sentir uma certa relutância em casar com ela. Talvez que, falando com o mufti, quisesse arranjar uma maneira de fugir ao contrato de casamento.
Será que um grave pecado de uma mulher, uma coisa que, se fosse revelada, resultaria em que ela fosse afastada do Islão, seria razão suficiente para anular um contrato de casamento?
Ele fez um ar céptico e depois abanou a cabeça.
- Anularia o contrato. Mas que pecado grave poderia a minha prima Sahlah ter cometido, Barbara?
Theo Shaw, pensou Barbara. Mas desta vez foi sensata e nada disse.
No meio da discussão tocaram à porta. A voz de Connie tornara-se tão
estridente que se Rachel não estivesse à porta da sala, não teria ouvido a campainha. Mas as duas notas musicais - a segunda parecia um pássaro estrangulado a meio de um chilreio - chegaram no momento em que a mãe tomava fôlego.
Connie ignorou os sons.
- Responde-me, Rachel! Responde-me e já! O que sabes tu deste assunto? Mentiste àquela mulher-polícia e agora estás também a mentir-me, mas eu não o vou permitir, Rachel Lynn. Não vou mesmo.
- Tocaram à porta, mãe. - disse Rachel.
- Connie. Chamo-me Connie, não te esqueças. E que se lixe a porta.
Ninguém a vai abrir enquanto não me responderes. Que tens tu a ver com o homem que morreu no Nez?
- Já disse - respondeu Rachel - que lhe dei o recibo para que ele visse como Sahlah gostava dele. Ela disse-me que estava preocupada.
Disse-me que achava que ele não acreditava nela e eu pensei que se ele visse o recibo...
- Tretas! - Gritou Connie. - Só aldrabices. Se isso é verdade eu sou o
Pai Natal. Porque não disseste à polícia quando ela te perguntou, ahn? Mas isso já nós sabemos, não é verdade? Não disseste porque só agora é que inventaste uma boa desculpa. Bem, se esperas que eu acredite nessa história de provares o amor eterno que essa rapariga de cor tinha pelo horroroso do noivo, então...
A campainha voltou a tocar. Três vezes seguidas. Connie abriu-a tão intempestivamente que a fez bater na parede.
- O quê? - Berrou. - Que raio se passa? Mas quem diabo és tu? E já
agora sabes que horas são?
Era uma voz jovem e masculina. E era deliberadamente delicada.
- Rachel está, Mrs. Winfield?
- Rachel? O que queres tu à minha Rache?
Rachel foi à porta, ficando por detrás da mãe que a tentava impedir com a anca.
- Quem é este coiso? - Perguntou-lhe Connie. - E porque diabo aparece a... Vai para o raio que te parta! Sabes que horas são?
Rachel viu que era Trevor Ruddock. Estava na sombra de modo que se encontrava protegido da luz da casa e dos candeeiros da rua. Mas mesmo assim era difícil esconder-se. Tinha pior aspecto do que o costume porque trazia uma t-shirt suja e rota à volta do pescoço, e as calças de ganga não eram lavadas havia tanto tempo que provavelmente conseguiriam ficar de pé sozinhas.
Rachel tentou passar à frente da mãe. Connie agarrou-a por um braço. - Nós ainda não acabámos, minha menina.
- Que se passa Trev? - Perguntou Rachel.
- Tu conheces este fulano? Perguntou Connie incrédula.
- Obviamente - replicou Rachel. - Se perguntou por mim é porque eu o conheço.
- Podemos falar um bocadinho? - Perguntou Trevor. Passou o peso do corpo e das botas, sem atacadores e sujas, para o cimento do primeiro degrau.
- Sei que já é tarde, mas esperava... Rachel, preciso de falar contigo, está bem? Em particular.
- Sobre o quê? - Perguntou Connie zangada. - O que tens a dizer a Rachel Lynn que não possas dizer em frente da mãe dela. Mas afinal quem és tu? Porque é que eu nunca te vi quando tu e Rachel se conhecem tão bem, que apareces aqui para falar com ela às onze e um quarto da noite.
Trevor olhou primeiro para Rachel e depois para a mãe. Voltou a olhar para Rachel. No rosto lia-se-lhe Queres que ela saiba? E Connie leu-lhe o pensamento como por telepatia.
Abanou o braço de Rachel.
- É com isto que tu tens andado? É com isto que tu andas escondida atrás das casas de praia? Desceste tanto que andas metida com este lixo.
Os lábios de Trevor estremeceram como se estivesse a controlar para não responder. Foi Rachel que o fez.
- Cala-te, mãe! - Soltou-se da mão de Connie e saiu para o pátio.
- Volta para dentro - disse a mãe.
- E tu deixa de falar como se eu fosse um bebé - retorquiu Rachel. Trevor é meu amigo e se me quer ver eu tenho de saber porquê. E Sahlah é minha amiga e se eu a quiser ajudar, vou fazê-lo. E nem a polícia, nem tu me vão fazer mudar de ideias.
Connie gritou-lhe:
- Rachel Lynn Winfield!
- Já sei como me chamo - disse Rachel. Ouviu a mãe respirar com dificuldade com a audácia da resposta. Pegou no braço de Trevor e levou-o para a rua onde ele tinha deixado a acelera muito velha. - Acabamos a nossa conversa depois de eu ter falado com Trevor - disse, voltando-se para a mãe.
A resposta foi a porta a bater.
- Desculpa - disse a Trevor parando no meio do caminho. - A minha mãe está furiosa. A polícia foi esta manhã à loja e eu escapei-me sem lhe dizer porquê
- Também foram à minha casa - disse. - Uma gaja sargento. Gorda e com a cara toda... - Pareceu recordar-se na presença de quem estava e do que poderia representar para ela a referência à cara amassada. - De qualquer modo - disse metendo a mão no bolso das calças - a polícia foi lá. Alguém na Malik lhe disse que Querashi me tinha despedido.
- Que chatice - disse Rachel. - Mas não pensam que tu fizeste alguma coisa, pois não? Quero dizer, para quê? Como se Mr. Malik não soubesse que Haytham te tinha despedido.
Trevor tirou as chaves do bolso. Fê-las girar nos dedos. Aos olhos de Rachel parecia nervoso, mas até o ouvir não soube porque era.
- Sim, mas a razão porque fui despedido não interessa - disse. O facto de o ter sido é que é. Segundo eles eu poderia ter acabado com ele para me vingar. É isso que pensam. Além disso eu sou branco. Ele é de cor, paquistanês. E com toda essa gente a fazer barulho por causa de crimes raciais...
- ergueu um braço e esfregou-o na testa.
- Merda de calor - disse. - Whew. Parecia que ia a arrefecer esta noite.
Rachel observava-o cheia de curiosidade. Nunca vira Trevor Ruddock nervoso. Agia sempre com o ar de quem sabia o que queria e consegui-lo era apenas uma questão de tempo. Fora sempre assim com ela, muito calmo e de conversa fácil. Disso não havia dúvida. Mas agora... Nunca vira Trevor assim, nem mesmo na escola, onde se destacara dos outros alunos pelas suas capacidades limitadas e um futuro a condizer. Mesmo nessa altura agia com segurança. O que não conseguia resolver mentalmente, resolvia-o à pancada.
- Sim, está calor - disse ela com todo o cuidado, à espera do que se ia seguir. Não poderia ser o que era costume. Ali não, com a mãe furiosa por trás das cortinas da sala e os vizinhos naquela rua congestionada, sempre desejosos de espreitar e ouvir através das janelas abertas. - Não me lembro de um tempo assim tantos dias seguidos, pois não? Estive a ler no jornal a respeito do aquecimento global. Talvez seja isso, não achas?
Mas era evidente que Trevor não viera para conversar acerca de ciência atmosférica, ou de qualquer outra. Voltou a pôr as chaves no bolso e mordeu o polegar, lançando uma olhadela às janelas da sala.
- Ouve - disse ele. - Olhou para a pele que tinha mordido. Esfregou o dedo na frente da camisola.
- Olha Rachel, podemos conversar um bocado?
- Já estamos a conversar.
Ele indicou a rua com a cabeça.
- Quer dizer... podemos dar uma volta?
Dirigiu-se para o passeio. Parou perto do portão enferrujado e indicou, mais uma vez com a cabeça, que queria que ela o seguisse.
Ela seguiu-o, mas disse:
- Não devias estar a trabalhar, Trev?
- Sim. Vou já. Mas primeiro tinha de falar contigo. Esperou que ela viesse ter com ele. Mas não foi mais adiante que a acelera. Montou-a e aconchegou o traseiro no acento. Concentrou a atenção nos manípulos e as mãos faziam-nos girar enquanto continuava:
- Olha lá, tu e eu... quer dizer... na sexta-feira à noite. Quando Querashi foi morto. Estávamos juntos. Lembras-te, não te lembras?
- Claro - disse ela, embora o calor que sentia no peito e no pescoço lhe dissesse que estava a corar.
- Lembras-te que horas eram quando nos separámos, não? Fomos para a casa lá pelas nove. Tínhamos aquela garrafa... era uma grande porcaria... como é que se chamava?
- Caldos - disse, acrescentando inutilmente. - É feita de maçãs.
É para depois do jantar.
- Bem, parece que a bebemos antes de comer, não? - Sorriu.
Ela não gostava de o ver sorrir. Não gostava de lhe ver os dentes. Não
gostava de se lembrar que ele nunca fora ao dentista. Nem gostava de aceitar o facto de ele não tomar banho todos os dias, de não usar escova-de-unhas e, principalmente, de que fosse tão cuidadoso em ocultar aqueles encontros que começavam na praia por baixo do pontão, o mais perto possível da água e acabavam na casa de praia, que cheirava a bolor e onde tapete grosso lhe fazia uma renda vermelha nas pernas quando ela se ajoelhava em frente dele.
Ama-me, ama-me era o que os gestos dela pediam. Vês como sei fazer-te sentir bem?
Mas isso fora antes de saber que Sahlah precisava da sua ajuda. Fora
antes de ter visto a expressão do rosto de Theo Shaw que a fizera perceber que ele ia abandonar a amiga.
- De qualquer modo - disse Trevor ao ver que ela não se ria da gracinha. - Lembras-te que às onze e meia ainda lá estávamos? Até tive de ir a correr para não chegar atrasado ao trabalho.
Ela abanou lentamente a cabeça.
- Não, Trev, não estávamos. Eu cheguei a casa às dez.
Ele sorriu ainda concentrado nos manípulos. Mesmo assim, quando ergueu a cabeça com um riso nervoso, não olhou para ela.
- Hei, Rache, não foi assim. Claro que eu não estava à espera que fosses olhar para o relógio, porque estávamos muito ocupados.
- Eu estava ocupada - corrigiu-o Rachel. - Não me lembro que tenhas feito nada depois de teres tirado o coiso para fora das calças.
Finalmente ele olhou para ela. Pela primeira vez, que ela se lembrasse, estava assustado. "
- Rachel - disse aflito. - Vá lá, Rachel, sabes como foi.
- Lembro-me que estava escuro - disse ela. - Lembro-me que me disseste para esperar dez minutos enquanto ias à casa, a terceira a contar do fim, na fila de trás. Era para... para que era Trev? Para a arejar disseste tu. Eu devia esperar debaixo do pontão e quando os dez minutos passassem ia atrás de ti.
- Não havias de querer lá entrar com aquele cheirete - protestou.
- E tu não havias de querer ser visto comigo.
- Não foi esse o caso - disse ele, e por uns instantes pareceu tão ofendido que Rachel quis acreditar nele. Quis acreditar que não queria dizer nada, que o único tempo que tinham estado juntos em público fora no restaurante chinês, convenientemente localizado a vinte quilómetros de Balford-le-Nez. Queria acreditar que o facto de ele nunca a ter beijado na boca só queria dizer que era tímido e andava a ganhar coragem. E principalmente, queria acreditar que o facto de ele se ter aproveitado dela exactamente quinze vezes, sem sequer perceber que a única coisa que ela ganhava com aquela actividade era a humilhação de tentar ter um futuro normal, significava apenas que ele não aprendera com o seu exemplo como haveria de dar alguma coisa. Mas ela não conseguia acreditar. Restava-lhe apenas a verdade.
- Cheguei a casa mais ou menos às dez, Trev. Sei porque não estava ninguém em casa e liguei a televisão. E até sei o que estive a ver, Trev., Metade daquele filme antigo com Sandra Dée e Troy Donahue. Aposto que conheces: eram miúdos, era Verão, apaixonam-se e andam um com o outro e afinal descobrem que o amor é mais importante do que estar assustado e esconder aquilo que realmente se é.
- Não lhes podes dizer? - Perguntou ele. - Não podes dizer que eram onze e meia? Rache, os chuis vão perguntar-te porque eu disse que estava contigo nessa noite. E estive. Se Lhes disseres que chegaste a casa às dez, não vês o que vão pensar?
- Espero que pensem que tiveste tempo de acabar com Haytham Querashi - respondeu.
- Não fui eu - disse. - Rache eu nem vi o gajo naquela noite. Juro. Juro. Mas se não confirmares o que eu disse, então eles pensam que eu estou a mentir. E se pensarem que eu estou a mentir sobre isso, então vão pensar que estou a mentir quando digo que não o matei. Não me podes ajudar? Que importância tem uma hora a mais.
- Uma hora e meia - corrigiu ela. - Tu disseste onze e meia.
- Muito bem. Uma hora e meia. O que é mais uma hora e meia? Tempo suficiente para mostrares que pelo menos pensaste uma vez em mim, pensou ela em silêncio. Mas afinal disse:
- Não vou mentir por ti, Trev. Há uns tempos poderia tê-lo feito. Mas agora não.
- Porquê? - A palavra era uma súplica. Pegou- lhe no braço e percorreu-lhe a pele nua com os dedos. - Rachel eu pensava que havia uma coisa especial entre nós. Não pensavas o mesmo? Quando estávamos juntos, era como... ei, era mágico, não achas? - Os dedos chegavam à manga da blusa e insinuavam-se no seu interior, pelo ombro, pela alça do soutien.
Ela queria tanto ser tocada que sentiu uma reacção húmida às perguntas dele. Entre as pernas, na parte detrás dos joelhos e no fundo da garganta, onde o seu coração parecia estar guardado.
- Rache...? - Os dedos tocavam a parte da frente do soutien. Era assim que deveria ser, pensou. Um homem tocava uma mulher que o desejava, que necessitava que se dissolvia.
- Por favor, Rache. Só tu me podes ajudar.
Mas esta fora também a única ocasião que ele a tocara com ternura e não como um estímulo apressado e impaciente que acabaria no seu próprio prazer.
A gaja precisa de um saco de plástico pela cabeça abaixo!
Tens cara de cu, Rachel Winfield!
Para ir ter contigo, um gajo tem de ir de olhos vendados.
Quando ele a tocou sentiu-se crispada, lembrando-se das vozes com que lutara durante toda a sua infância. Afastou a mão de Trevor Ruddock.
- Rache - Ele conseguiu mostrar-se ferido.
Sim. Ela sabia perfeitamente como era.
- Na sexta-feira cheguei por volta das dez - disse ela. - Se os chuis perguntarem é isso que eu vou dizer.
SAHLAH ESTUDAVA A SILHUETA das folhas das árvores reflectida pelo luar no tecto do quarto. Não se mexiam. Apesar da proximidade do mar, não se sentia uma brisa. Seria outra noite de calor sufocante em que só o pensar que os lençóis lhe podiam tocar na pele, era o suficiente para se imaginar a dormir envolta em película transparente.
Porém sabia que não dormiria. Dera as boas-noites à família às dez e meia, depois de ter suportado uma conversa tensa entre o pai e o irmão. Akram emudecera ao saber que Haytham tinha partido o pescoço. Muhannad aproveitara o mais possível a consternação do pai, anunciando tudo o mais que soubera na reunião com a polícia - e que era o suficiente para os ouvidos de Sahlah, bem como o que ele e Taymullah Azhar tinham planeado fazer a seguir. Akram dissera Isto não é um jogo Muhannad, e a discussão começara a partir daqui.
As palavras, sucintas da parte de Akram e entusiasmadas da parte de Muhannad, não só tinham colocado pai contra filho, mas também tinham ameaçado a paz do lar e da família. Claro que Yumn apoiara Muhannad. Wardah, que passara toda a vida a concordar com os homens, nada dissera, sempre com os olhos baixos no bordado. Sahlah tentara um entendimento entre os dois. Por fim ficaram num silêncio de tal modo eléctrico, que até o ar parecia cheio de faíscas. Incapaz de ficar sossegada, Yumn pusera-se de pé e aproveitara para meter um filme no vídeo. Quando a imagem granulada aparecera no ecrã mostrando um rapaz asiático atrás de um rebanho de cabras, com um pau na mão, ao mesmo tempo que uma cítara tocava e que o nome das personagens passava em Urdu, Sahlah deu as boas-noites. Só a mãe lhe respondera.
Agora era uma e meia. Estava na cama desde as onze. À meia-noite a casa ficara silenciosa, logo a seguir a ter ouvido o irmão na casa-de-banho, antes de se ir deitar. O chão e as paredes tinham deixado de ranger. E ela esperava, em vão, pelo sono.
Para dormir sabia que teria de abandonar todos os pensamentos e de se concentrar para se descontrair. Embora a descontracção parecesse possível, nunca conseguiria concluir a primeira actividade.
Rachel não telefonara, o que significava que não tinha conseguido as
informações necessárias para que ela fizesse um aborto. Sahlah só poderia tentar ter paciência e esperança em que a amiga não a traísse uma segunda vez.
Sahlah nunca lamentara a falta de liberdade imposta pelos pais, nem na altura em que suspeitara da sua gravidez. Nem sequer sentira desprezo por si própria por ter vivido tão docilmente sob as ordens dos pais, benignas amorosas, no entanto, implacáveis. Percebia que o ambiente de redoma, que desde há muito a fazia sentir-se tão protegida num mundo por vezes hostil, a bloqueava agora. As restrições que os pais lhe haviam imposto, tinham-na de facto resguardado. Mas também a tinham aprisionado. Só agora se apercebera disso, quando mais que nunca desejara ter o estilo de vida descontraído das jovens inglesas, esse modo de viver em que os pais pareciam planetas longínquos com uma órbita exterior ao sistema solar da vida das suas filhas.
Sahlah tinha consciência de que se fosse uma filha problemática, teria
sabido o que fazer. De facto, se assim fosse, teria provavelmente anunciado o que tencionava fazer. Teria sem hesitar, contado a história toda e não respeitaria os sentimentos de ninguém. Porque nesse caso a família nada significaria para ela, nem a honra e o orgulho dos pais, já para não falar no amor e na confiança que naturalmente sentiam pelos filhos.
Mas ela nunca causara problemas. Assim, proteger os pais que amava
era para si, da máxima importância, mais importante até que a sua felicidade pessoal, mais importante do que a própria vida.
Certamente mais importante do que a vida, pensou, rodeando automaticamente o ventre com as mãos. Mas tão depressa como fez o gesto, assim o desfez. Não te posso dar a vida, disse ao embrião que havia dentro dela.
Não posso dar a vida a uma coisa que só irá provocar a desonra aos meus pais e a destruição da minha família.
E também a tua própria desgraça, querida Sahlah. Ouviu a voz implacável da consciência dizer-lhe naquele tom trocista que ouvia noite após noite, semana após semana. Quem, senão tu mesma, tem a culpa da situação em que te encontras?
- Cabra, prostituta - insultara-a o irmão em surdina, de modo tão violento, que se sentia estremecer de cada vez que se lembrava. - Vais pagá- las, Sahlah, como todas as prostitutas pagam."
Ela fechou os olhos com força, como se dessa forma, a escuridão completa lhe livrasse o espírito dessa recordação, o coração da angústia e a consciência da enormidade do acto em que iria participar. Mas apenas conseguiu disparar setas de luz por detrás das pálpebras como se um ser interior que não conseguisse controlar, tentasse iluminar tudo aquilo que desejava manter escondido.
Voltou a abrir os olhos. As setas de luz continuavam. Perplexa via a luz piscar e deter-se, piscar e deter-se até que a parede parecia juntar-se ao tecto. Foi então que compreendeu.
Ponto, ponto, traço, pausa. Ponto, ponto, traço, pausa. Quantas vezes vira aquele sinal no último ano? Significava Sahlah, vem ter comigo. Queria dizer que Theo Shaw estava lá fora com uma lanterna para anunciar que a esperava no pomar.
Fechou os olhos. Pouco tempo atrás, ter-se- ia levantado a correr, teria feito sinais com a sua lanterna, e esgueirar-se-ia do quarto. Devagar, com chinelos que lhe abafassem o som dos passos, teria passado pelo quarto dos pais, hesitando um pouco para se assegurar do ressonar estrondoso do pai e do mais suave da mãe. Teria descido as escadas até à cozinha e daí sairia para a noite.
Ponto, ponto, traço, pausa. Ponto, ponto, traço, pausa. Mesmo com as pálpebras fechadas conseguia ver a luz.
Sentiu a urgência do sinal. A mesma urgência que lhe ouvira na voz quando lhe telefonara na noite anterior.
- Sahlah, graças a Deus - dissera. - Telefonei-te pelo menos cinco vezes desde que soube de Haytham, mas nunca atendeste e só de pensar em deixar-te um recado... Não me atrevi. Por ti. Foi sempre Yumn a atender. Sahlah, quero falar contigo. Precisamos de falar. Temos de falar.
- Já falámos - dissera-lhe.
- Não! Escuta. Percebeste mal. Quando disse que queria esperar, não tinha nada a ver com o que sinto por ti - falara rapidamente e em voz baixa. Parecia estar à espera que ela desligasse antes de ter tido a oportunidade de dizer tudo o que planeara e que provavelmente ensaiara. Mas também parecia estar com medo que alguém o ouvisse. E ela sabia por quem.
- A minha mãe precisa que eu a ajude a fazer o jantar - dissera. Agora não posso falar contigo.
- Pensas que foi por tua causa, não é verdade? Vi-o no teu rosto. Aos teus olhos sou um cobarde porque não disse à minha avó que me tinha apaixonado por uma asiática. Mas o facto de não o ter dito nada tem a ver contigo. Nada. Está bem? Só que não é a altura certa.
- Nunca pensei que tivesse alguma coisa a ver comigo - corrigiu-o ela.
Mas ela poderia mesmo não ter falado. Não o pudera desviar do caminho que aparentemente estava disposto a seguir, porque continuara apressado:
- Ela não está bem. Está a ficar com a fala afectada. Praticamente não
pode andar. Está fraca, precisa de ser tratada. Por isso tenho de ficar ao pé dela, Sahlah. E não posso pedir-te que venhas para esta casa, como minha mulher, só para te sobrecarregar com uma mulher idosa que pode morrer a qualquer momento.
- Sim - dissera ela. - Já me disseste tudo isso, Theo.
- Então, por amor de Deus, porque não me dás mais algum tempo?
Agora que Haytham morreu, podemos ficar juntos... agora pode ser, Sahlah, não vês? A morte de Haytham tinha de acontecer. Pode ter sido um sinal.
Como se a mão de Deus nos dissesse...
- Haytham foi assassinado, Theo - dissera. - Não creio que Deus tivesse fosse o que fosse a ver com isto.
Ele calara-se. Estaria chocado? Perguntou a si própria. Estaria horrorizado? Andaria à procura nos seus pensamentos para conseguir dizer alguma coisa com um tom sincero: palavras ternas de compaixão, que oferecessem condolências que não sentia? Ou passar-se-ia no seu espírito alguma coisa completamente diferente, a busca feroz de um meio mais subtil de se mostrar com uma imagem mais positiva.
Diz alguma coisa pensou ela. Faz uma simples pergunta que me sirva de sinal.
- Como sabes...? O jornal... Quando falava do Nez... Não sei porquê, mas pensei que tivesse tido um ataque de coração, ou que talvez tivesse caído. Mas assassinado? Assassinado?
Não disse, meu Deus como podes aguentar um horror assim?. Não disse, O que posso fazer para te ajudar? Não foi, Vou já ter contigo neste instante, Sahlah. Vou ficar ao teu lado, como deve ser, e vamos acabar com toda esta charada.
- A polícia disse esta tarde ao meu irmão - dissera ela.
Seguiu-se outro silêncio. Ouviu-o respirar e tentara interpretar essa respiração como tentara, momentos atrás, medir o significado da demora entre a revelação que lhe fizera e a reacção dele.
Finalmente dissera:
- Lamento que ele tenha morrido. Lamento o facto de ele estar morto.
Mas não posso fingir que tenho pena que tu não te cases este fim-de-semana. Sahlah, vou falar com a minha avó. Vou contar-lhe tudo, do princípio ao fim. Vejo agora que estive quase a perder-te. Assim que tivermos este projecto do reordenamento em prática, ela vai estar entretida e então conto-lhe.
- É assim que queres que ela esteja? Entretida? Porque se estiver entretida pode ser que não repare que a minha pele é de uma cor que ela acha ofensiva?
- Não disse nada disso.
- Ou será que nem sequer tencionas apresentar-nos? Talvez tenhas esperanças que esse projecto para a cidade a desgaste tanto, que dê cabo dela. Assim ficas livre e com o dinheiro dela.
- Não, por favor! Escuta!
- Não tenho tempo - dissera, e desligara no preciso momento em que Yumn aparecera no hall vinda da sala; o telefone estava ali, numa prateleira ao fundo das escadas.
A cunhada sorrira-lhe com tanta solicitude que Sahlah não teve dúvidas de que tinha ouvido a sua parte da conversa.
- Ai meu Deus, esse telefone ainda não parou de tocar desde que se soube da morte do pobre Haytham - dissera Yumn. - Os amigos dele têm sido tão simpáticos em telefonar para oferecer as suas condolências à jovem noiva. Mas ela afinal não vai ser uma noiva, não é verdade, querida Sahlah?
Só faltavam uns dias. Mas não importa. Deve consolar-te saber que tanta gente amava Haytham tanto como tu - Os olhos de Yumn riam enquanto o resto do rosto mantinha uma expressão adequadamente fúnebre.
sahlah virou-lhe as costas e foi ter com a mãe, mas ouviu o riso de Yumn atrás de si. Ela sabe, pensara Sahlah, mas não sabe tudo.
Agora, na cama, abria os olhos para ver se a lanterna lá fora continuava a mensagem. Ponto, ponto, traço, pausa. Ele estava à espera.
Estou a dormir, Theo, disse-lhe em silêncio. Vai-te embora. Vai para a tua avó. De qualquer modo não importa, porque mesmo que falasses, orgulhoso do nosso amor e sem temer a reacção da tua avó, eu não estaria livre para ir ter contigo. Lá no fundo és igual a Rachel, Theo. Vês a liberdade como um simples acto de vontade, como a conclusão lógica do reconhecimento dos desejos e necessidades de cada um e de que eles se tornem realidade. Mas eu não tenho esse tipo de liberdade, e se tentasse agarrá-la, ficaríamos ambos arruinados. Quando as pessoas que amam encontram o seu mundo destruído, o amor depressa morre e a atribuição da culpa ocupa o seu lugar. Vai-te embora, Theo, por favor, vai-te embora.
Voltou-se na cama para ficar de costas voltadas para a luz insistente, que piscava a mensagem. Mas mesmo assim continuava a vê-la por todo o quarto, reflectida no espelho. Recordava-se de ir a correr ao pomar para se encontrar com ele, das mãos estendidas ara a receber, dos lábios, da boca, do pescoço, dos ombros, dos dedos metidos nos seus cabelos.
E de outras coisas: da antecipação febril do momento, dos segredos, da troca de roupa com Rachel, para depois de escurecer, conseguir chegar disfarçada à marina de Balford; da viagem apressada pelo Wade com a maré-cheia utilizando, não o veleiro dos Shaw, mas o barquinho alugado por algumas horas na marina; de se sentarem numa parte baixa da Island junto a uma fogueira acendida por ele com lenha que apanhara; de sentir o vento nas ervas, de o ouvir sussurrar na alfazema.
Ele trazia o rádio e com música de fundo começaram a conversar. Nessa vez, tinham dito tudo o que o local de trabalho lhes proibira, maravilhando-se por descobrir que havia tanto para falar quando se estava a conhecer alguém. Mas nenhum deles tivera juízo suficiente para perceber que era fácil passar da conversa ao amor. E nenhum dos dois percebera como o amor levava à saudade e que negá-lo, só o tornava mais intenso.
Apesar de tudo o que acontecera nos últimos meses e dos últimos dias, sahlah continuava a sentir a saudade. Mas não iria ter com ele. Não poderia enfrentá-lo. Não queria ver no seu rosto uma expressão que pudesse – que sem dúvida poderia - comunicar-lhe o medo, a dor ou a recusa.
Temos todos de fazer o que é preciso, Theo, disse-lhe em silêncio. Embora não o desejemos, nenhum de nós pode mudar o caminho escolhido pelo outro, ou a ele imposto.
Na manhã seguinte, quando Barbara chegou à sala de reuniões, Emily Barlow estava ao telefone, a conversar com tanta animosidade, que a primeira concluiu que deveria ser com o superintendente.
- Não, Don - dizia. - Eu não leio pensamentos. Por isso não posso saber o que os paquistaneses planearam, senão quando o fizerem... e onde vou eu buscar um asiático que sirva de espião?... Isso, partindo que a New Scotland Yard não tem mais nada que fazer do que nos enviar um agente para se infiltrar numa organização que, tanto quanto conseguimos verificar, nunca cometeu um único crime... é isso que estou a tentar descobrir, por amor de Deus... Sim, podia. Se me desse a oportunidade de fazer mais alguma coisa para além de gritar consigo ao telefone duas vezes por dia.
Barbara conseguia imaginar os gritos zangados do homem do outro lado da linha. Emily levantou os olhos e escutou sem fazer comentários até que o superintendente acabou abruptamente a conversa desligando de repente. Barbara ouviu do outro lado, o estalo do auscultador com o descanso. Emily disse um palavrão quando o som lhe chegou ao ouvido.
- Esta manhã foram três vereadores ao gabinete dele - explicou Emily. - Ouviram dizer que iria haver protestos esta tarde e estavam preocupados com as lojas... fossem lá quais fossem. Mas repara que não se queixam de nada em concreto.
Continuou com o que estava a fazer antes da chegada de Barbara e do telefonema de Ferguson: pendurar uma fronha azul na janela do gabinete, talvez com intenção de reduzir o calor do dia. Olhou para trás enquanto usava a base de um agrafador para martelar os pionaises que iriam segurar a fronha à parede.
- Bom trabalho de maquilhagem - disse. - Agora já tens cara de gente.
- Obrigada. Não sei durante quanto tempo se vai manter, mas a verdade é que esconde as nódoas negras. No entanto pensei que levasse menos tempo a pintar-me. Desculpa ter faltado à reunião da manhã.
Emily fez um gesto de quem não deu importância ao facto. Disse a Barbara que esta não tinha de marcar ponto. Estava de férias. A ajuda para resolver o assunto dos paquistaneses era um bónus de oferta ao Departamento Criminal de Balford. Ninguém esperava que ela se fosse estafar com aquilo.
O inspector desceu da cadeira e continuou a pregar os pionaises com o agrafador, na parte de baixo da janela. Informou Barbara de que estivera no quiosque de jornais de Carnarvon Road em Clacton. Na noite anterior passara lá um quarto de hora de conversa com o dono. Era ele mesmo que estava na loja e quando ela lhe perguntara sobre um cliente paquistanês que usara o telefone para falar com um tal Haytham Querashi, ele respondera imediatamente:
- Deve ser de certeza Mr. Kumhar. Não se meteu para aí em sarilhos, não?
Fahd Kumhar era um cliente certo. Nunca lhe arranjara problemas ou dera preocupações; pagava sempre em dinheiro. Vinha pelo menos três vezes por semana comprar maços de Benson and Hedges. Por vezes também comprava o jornal. E pastilhas de limão. Adorava pastilhas de limão.
- Nunca perguntou a Kumhar onde vive - disse Emily. - Mas o fulano vai lá vezes suficientes para que possamos contactar com ele sem problemas. Pus um homem de vigia na lavandaria, do outro lado da rua. Quando Kumhar parecer o nosso homem segue-o e avisa- nos.
- A que distância fica o quiosque do mercado de Clacton? Emily sorriu maliciosa.
- A menos de cinquenta metros.
Barbara acenou afirmativamente. O local indicava que havia mais uma pessoa nas proximidades da casa-de-banho dos homens, o que daria oportunidade a confirmar a história de Trevor Ruddock. Contou a Emily os telefonemas para o Paquistão da noite anterior. Não acrescentou que Azhar os tinha feito e quando Emily não lhe pediu as explicações que conduziriam a esse pormenor, concluiu que a informação fora mais importante do que a maneira como a tinha conseguido.
Tal como Barbara, Emily interessou-se pelas discussões que Querashi tivera com o mufti.
- Então - disse. - Se a homossexualidade é considerada um pecado grave pelos Muçulmanos.
- É - disse Barbara. - Já consegui saber isso.
- Então há uma boa hipótese de que o nosso Trevor esteja a dizer a verdade. E que Kumhar, que andava pelas vizinhanças, também soubesse de Querashi.
- Talvez - disse Barbara. - Mas Querashi podia ter telefonado ao mufti a respeito do pecado de outra pessoa, não achas? Por exemplo de Sahlah. Se ela tivesse pecado com Theo Shaw, e acho que a fornicação é um pecado tão grande como os outros, seria banida. Calculo que isso libertaria Querashi da obrigação de casar com ela. Talvez fosse o que ele andava à procura: uma desculpa para se escapar.
- Isso havia de irritar os Malik - Emily agradeceu com a cabeça a Belinda Warner que entrara na sala com um fax na mão e lho entregara.
- Já disseram alguma coisa de Londres a respeito das impressões digitais do Nissan? - Perguntou-lhe Emily.
Telefonei para o laboratório - disse Belinda. - Perguntaram-me se eu sabia que os peritos recebiam todos os dias impressões digitais de vinte e seis mil pessoas e se havia alguma razão especial para as nossas terem prioridade.
- Vou telefonar-lhes - disse Barbara a Emily. - Não prometo nada, mas vou tentar abaná-los.
- O fax veio de Londres - continuou Belinda. - O professor Sidiqi já traduziu a página do livro que estava no quarto de Querashi. E Phil telefonou da marina. Os Shaw têm lá um barco, um veleiro grande, com cabina.
- E os asiáticos? - Perguntou Emily.
- Só os Shaw. Emily mandou a jovem embora e olhou pensativa para o fax, antes de o ler.
- Sahlah deu a pulseira a Theo Shaw - disse-lhe Barbara. - A vida começa agora. E o álibi dele parece geleia.
Mas o inspector observava ainda aofax de Londres. Leu-o em voz alta:
- Como poderemos não lutar pela causa de Alá e dos fracos entre os homens, mulheres e crianças que choram: Nosso Senhor! Levai-nos para fora desta cidade cujos habitantes são opressores! Oh, dai-nos com a vossa Presença um amigo que nos proteja! Oh, dai-nos com a vossa Presença um protector! Bom... - Atirou o fax para cima da secretária. - Fica tudo claro como lama.
- Parece que pudemos confiar em Azhar - disse Barbara. - É prati camente palavra por palavra a tradução que nos fez ontem. No que diz respeito ao seu significado, Muhannad argumenta que é sinal que alguém estava a causar chatices a Querashi. Concentrou-se principalmente na frase levai-nos para fora desta cidade.
- Afirma que Querashi era continuamente perseguido - esclareceu Emily. - Não temos a mínima prova disso.
- Então Querashi pode ter querido livrar-se do casamento - sugeriu Barbara. Gostava desta ideia, que apoiava a sua hipótese anterior. - Afinal não há-de ter ficado contente ao saber que a noiva andava metida com Shaw. É lógico que quisesse acabar tudo. Se calhar telefonou para o Paquistão para falar com o mufti sobre o assunto, mas usando palavras veladas.
- Diria que era mais provável ele pensar que não podia fingir durante quarenta e tal anos que gostava de mulheres e tentou livrar-se do casamento por causa disso, independentemente da conversa que teve com esse mufti. Então alguém aqui soube da sua relutância em casar com Sahlah e... - Fez uma pistola com o indicador e o polegar, apontou-a a Barbara e disparou o gatilho. - Tu completas a história.
- E qual é o papel de Kumhar? E as quatrocentas libras que passaram das mãos de Querashi para as dele?
- Quatrocentas libras não seriam um bom começo para um dote? Talvez Querashi tivesse intenção de casar Kumhar com uma das suas irmãs. Ele tinha irmãs, não é verdade? Acho que li isso num desses relatórios Indicou a confusão na secretária.
O raciocínio de Emily fazia sentido, mas provocava em Barbara um certo mal-estar, que não desapareceu quando Emily prosseguiu.
- A morte foi planeada ao mínimo pormenor, Barb. E o último tem de ser um álibi de ferro. Quem teve a paciência de seguir os movimentos nocturnos de Querashi, de estender o fio de arame e de ter o cuidado em não deixar qualquer pista atrás de si não deixaria de garantir um álibi para os seus movimentos de sexta-feira à noite.
- Muito bem - disse Barbara - Concordo. Mas como toda a gente, excepto Theo Shaw tem um álibi, e mais do que uma pessoa tinha razões para matar Querashi, não será preciso procurar mais nada? - Continuou, contando a Emily os outros telefonemas que Querashi fizera. Mas tinha apenas chegado à mensagem ininteligível no gravador de chamadas, quando Emily a interrompeu.
- Hamburgo? - Perguntou apressada. - Querashi telefonou para Hamburgo?
- Os números de Hamburgo estavam no registo telefónico. A propósito, a outra chamada era para uma esquadra central da polícia. Não consegui descobrir quem recebeu a chamada. Porquê? Hamburgo tem alguma coisa de especial?
Em vez de responder, Emily tirou da gaveta um saco de plástico com uma mistura de cereais e frutos secos. Barbara tentou esconder o seu ar culpado ao pensar no pequeno-almoço que tomara algum tempo atrás: um enorme prato de ovos, batatas, salsichas, cogumelos e bacon, nadando em colesterol e gordura. Mas nem que fosse o vivo retrato de judas... Emily estava tão absorvida nos seus pensamentos que nunca teria reparado.
- Em? - Disse. - O que foi?
- Klaus Reuchlein.
- Quem?
- Era o terceiro conviva daquele jantar em Colchester na sexta-feira à noite.
- Um alemão? Mas quando tu disseste que era estrangeiro pensei que te referias... - Com que facilidade se deixava arrastar pelos seus próprios preconceitos inconscientes e pelas ideias preconcebidas. Barbara pensara que estrangeiro significava asiático, quando uma das primeiras regras do trabalho da polícia era não penses nada.
- É de Hamburgo - disse Emily. - Rakin Khan deu-me o número dele. Se não acredita, e parece que não, disse ele, confirme com ele o álibi de Muhannad. Procurou nos papéis até descobrir a folha que queria. Leu o número. Barbara tirou do saco, com alguma dificuldade, o registo dos telefonemas e procurou o primeiro dos números de Hamburgo. Disse:
- Caramba!
- Isso deve querer dizer que telefonaste ontem à noite a Mr. Reuchlein
- Emily sorriu, inclinou a cabeça para trás e ergueu o punho no ar.
É isso, Barb. O Homem do seu Povo. O Político da Treta. Acho que agora vamos conseguir apanhá- lo.
- Temos uma ligação - concordou Barbara com cautela. - Mas pode ser apenas uma coincidência.
- Coincidência? - O tom de voz de Emily era incrédulo. - Acontece que Querashi telefonou para a mesma pessoa cujo nome foi apresentado para confirmar o álibi de Muhannad Malik...? Ora, Barb. Não é coincidência.
- E Kumhar? - Perguntou Barbara.
- Kumhar, o quê?
- Onde é que encaixa. Obviamente vive nas redondezas do mercado de Clacton, na mesma zona em que Trevor diz ter visto Querashi no engate.
É coincidência? E se for, como poderemos dizer que um facto constitui coincidência neste caso mas o outro aponta para o assassino de Querashi?
E se o caso de Kumhar não for uma coincidência, o que temos? Uma importante conspiração para matar Querashi, orquestrada pelos membros da sua comunidade? E se assim for, porquê?
- Não temos de saber porquê. O porquê é problema da acusação. Nós só temos de saber quem e como.
- Está bem - disse Barbara. - Está bem, Aceito. Mas sabemos que alguém ouviu um barco nessa noite. Os Shaw têm um barco. Sabemos que Ian Armstrong beneficiou directamente com a morte de Querashi. O álibi dele é muito mais fraco do que o dos outros todos. Também temos a afirmação de que Querashi era maricas. E sabemos que ele foi ao Nez para se encontrar com alguém, com uma pessoa com quem se costumava encontrar. Não sei como poderemos esquecer tudo isto para continuar a investigação na única direcção que nos leva a Muhannad. Não acho que seja um trabalho policial responsável, e nem sequer creio que tu o penses.
Imediatamente percebeu que tinha ido longe demais. A tendência que
tinha para falar, discutir, acusar e confrontar, nunca fora problema, enquanto trabalhara em Londres com o afável inspector Lindley, mas agora descontrolara-se. O inspector reagiu endireitando-se e as pupilas contrairam-se-lhe
até terem o tamanho da cabeça de um alfinete.
- Desculpa - disse Barbara apressadamente. - Que raio, desculpa.
Entusiasmo-me com estas coisas e não penso. Devia ter mordido a língua.
Emily ficara calada. Mantinha-se imóvel, excepto o indicador e os dedos médios da mão direita. Batia com eles alternadamente na mesa.
O telefone tocou. Não o atendeu. Nervosa, Barbara olhava.
O toque parou quinze segundos depois. Belinda Warner entrou na sala.
- Chefe, Frank está ao telefone - disse. - Já abriu o cofre do Barclays em Clacton. Diz que lá dentro estava um documento de uma empresa chamada Eastern Imports... - Aqui olhou para um bocado de papel onde tinha escrito as informações dadas pelo agente. - Fornecedores de mobiliário, tapetes e outros artigos para o lar, é o que lá diz. É uma empresa de importações do Paquistão. Estava também um envelope com parte de uma direcção lá escrita. Oskarstra3 e 15, mais nada. E uma página de uma revista que não se percebe para que é. Há também documentos de uma casa na First Avenue e os papéis de imigração de Querashi. É tudo, no que diz respeito ao cofre. Frank quer saber se há-de trazer as coisas para cá.
- Diga-lhe que use de uma vez por todas os miolos - exclamou Emily. - Claro que quero que traga as coisas para cá.
Belinda engoliu em seco e saiu apressadamente. Emily voltou-se para Barbara.
- Oskarstra3 e 15, - disse com ar pensativo mas de um modo que Barbara não pôde evitar. - E agora, onde pensas que seja esta morada?
- Passei das marcas - disse Barbara. De vez em quando tomo o freio nos dentes e pronto. Desculpas aquilo que eu disse?
- Não - respondeu Emily. - Não posso esquecê-lo.
Merda, pensou Barbara. Lá se iam os planos de trabalhar ao lado do inspector, para aprender alguma coisa com ela e ao mesmo tempo fazer com que Taymullah Azhar não se metesse em sarilhos. Tudo perdido por falar demais.
- Que diabo, Emily - disse.
- Continua.
- Desculpa. Desculpa mesmo. Nunca quis dizer... Oh, que raio. Barbara bateu com a palma da mão na cara.
- Não te pedi que continuasses com a choradeira - disse Emily. Por muito apropriada que seja. Quero é que continues com o que estavas a dizer.
Confusa, Barbara olhou para amiga, tentando ler nela uma tentativa irónica de a humilhar. Mas viu apenas interesse. Mais uma vez foi forçada a reconhecer as qualidades que eram tão essenciais naquela profissão: a capacidade de voltar atrás, o desejo de escutar e facilidade de alterar o decurso de uma acção, sempre que outro se apresentasse.
Barbara passou a língua pelos lábios, sentindo o sabor da leve camada de baton com que anteriormente os tinha pintado.
- Muito bem - disse, mas continuou hesitante, decidida a controlar a língua. - Esquece Sahlah e Theo Shaw por uns instantes. Suponhamos que a intenção de Querashi ao telefonar ao mufti era falar sobre a sua homossexualidade, como tu sugeriste. Ligou e perguntou se um muçulmano que comete um pecado grave continua a ser muçulmano, e estava a falar de si mesmo.
- Está bem - Emily apanhou uma porção da mistura de cereais com a palma da mão enquanto Barbara continuava.
- Ele sabia que um grave pecado o poderia banir, por isso decidiu acabar com o caso que tinha e disse-o ao outro tipo, quando se encontrou com ele. Mas o outro tipo, o amante, não queria romper. Pediu que se voltassem a encontrar. Querashi levou os preservativos, pensando que esse encontro poderia acabar numa despedida. Mais vale prevenir do que remediar.
Só que desta vez, o amante tinha fratado da morte de Querashi usando a velha desculpa: Se eu não te posso ter, mais ninguém pode.
- Querashi tornou-se numa obsessão - continuou Emily, parecendo ter sido ela a fazer a dedução e não Barbara. Olhou para a ventoinha articulada que descobrira no sótão no dia anterior. Ainda não a tinha ligado. Em repouso, as lâminas estavam cheias de pó. - Estou a ver como é, Barb, mas esqueces-te de uma coisa: o teu argumento de ontem. Porque teria o amante assassinado Querashi e depois arrastado o corpo? O que poderia ter sido tomado por um acidente tornou-se imediatamente suspeito por causa disso. E porque o Nissan foi destruído.
- A merda do Nissan - foi a resposta de Barbara, admitindo que Emily lhe destruíra a teoria. Mas, pensando nos acontecimentos de sexta-feira passada, um encontro secreto, uma queda fatal, um corpo fora do sítio, o carro remexido, começou a ver outra possibilidade. - Em, e se houver uma terceira pessoa em tudo isto?
- Um menage à trois, queres tu dizer?
- E se o suposto amante de Querashi não for o assassino? Tens aí as fotografias da cena do crime?
Mais uma vez o inspector procurou entre as fichas e os papéis que estavam em cima da secretária. Encontrou-as e colocou-as ela mesma dispostas sobre a secretária. Barbara foi para trás da cadeira do inspector e estudou as fotografias por cima do seu ombro.
- Muito bem - disse Emily - Vamos lá. Vamos ver como fica se o amante não for o assassino de Querashi. Na sexta-feira, se a intenção de Querashi era encontrar-se com alguém, então quando ele lá chegou, essa pessoa ou estava já no Nez à sua espera ou então ia a caminho do encontro. Concordas?
- Concordo - Barbara continuou a descrever a cena. - Por isso essa pessoa ou viu e ouviu Querashi cair ou encontrou-o morto no fundo da escada...
- Então, logicamente assumiu que tinha sido um acidente. Escolheria nesta altura duas maneiras de agir: deixar o corpo no mesmo sítio para que alguém o encontrasse ou ir comunicar o acidente.
- Certo. Se quisesse manter secreta a ligação, deixava o corpo. Se não se importasse que se viesse a saber.
- Comunicava - terminou Emily.
- Mas toda a cena muda se o amante de Querashi tiver visto nessa noite alguma coisa estranha.
Lentamente os olhos de Emily desviaram-se das fotografias para olhar para Barbara.
- Se o amante viu... - disse. - Caramba, Barbara. Quem quer que se tivesse ido encontrar com Querashi deve ter visto que era um assassínio quando ele caiu.
- Então o amante de Querashi está à espera, escondido. Vê o assassino colocar a armadilha com o arame, uma sombra que se move nas escadas. Não sabe o que está a ver, mas quando Querashi tropeça, percebe-o imediatamente. Até viu o criminoso retirar o arame.
- Mas não se pode aproximar pois não quer que se saiba que ele tem aquele caso - continuou Emily.
- Porque é casado - disse Barbara.
- Ou porque anda com outra pessoa.
- Em qualquer dos casos não se pode aproximar, mas quer fazer alguma coisa para mostrar à polícia que foi um crime e não um acidente.
- Por isso arrasta o corpo - concluiu Emily. - E destruiu o carro. Valha-me Deus, Barb, sabes o que significa isso?
Barbara sorriu.
- Temos uma óptima testemunha, chefe.
- E se o assassino sabe - acrescentou Emily muito séria - também poderemos ter alguém em perigo.
Yumn estava a mudar a fralda ao bebé, perto da janela, quando ouviu a porta da frente bater e passos afastarem-se em direcção à rua. Olhou para fora e viu Sahlah puxando a dupattá cor-de- âmbar sobre o cabelo espesso, apressando-se a chegar ao Micra que estava estacionado junto ao passeio. Mais uma vez ia chegar atrasada ao trabalho, mas sem dúvida a filhinha querida de Akram seria desculpada por este lapso infeliz.
Passara meia hora na casa-de-banho com a água a correr para a banheira abafando o som dos vómitos matinais. Mas ninguém percebia, pois não? Pensavam que se estava a lavar, o que era um ritual pouco vulgar nela
- Sahlah gostava de tomar banho à noite - mas que era compreensível por causa do calor que estava. Só Yumn sabia a verdade, Yumn que ficara a escutar à porta, recolhendo informações, como se fossem espigas de trigo em tempo de fome, representado pelas falhas de Sahlah em satisfazer a sua cunhada, a quem devia respeito, obediência e cooperação.
Que cabra, pensava Yumn enquanto via Sahlah entrar no carro e abrir as duas janelas. Escapava-se para ir ter com ele durante a noite, convidava-o a entrar no quarto enquanto a casa dormia, abria as pernas, juntava o corpo ao dele, movimentava as ancas e no dia seguinte conseguia ter um ar tão puro, inocente, frágil, doce, precioso... aquela prostituta. Era tal e qual um ovo podre que é perfeito por fora, mas quando se parte revela dentro de si a podridão.
O bebé choramingou. Yumn olhou para ele e viu que em vez de lhe ter retirado a fralda molhada, a enrolara inadvertidamente à volta de uma perna.
- Meu amor - disse, retirando-a rapidamente. - Desculpa a tua ammigee descuidada, meu Bishr.
Como que a responder-lhe ele palrou, agitando os braços e as pernas.
Ela observou-o. Nu, era magnífico.
Utilizou uma flanela húmida para o lavar, passando-lha pelas pernas e limpando-lhe cuidadosamente o pequeno pénis. Afastou a pele e passou
cuidadosamente a flanela à volta cantarolando:
- Bishr é o amorzinho da ammi-gee. Sim, sim és. És o amorzinho querido da amm i- gee.
Depois de o limpar não pegou imediatamente numa fralda limpa.
Em vez de o fazer, admirou-o. Pela sua constituição, força e tamanho, dir-se-ia que era exactamente como o pai.
A sua masculinidade afirmava-a como mulher. Era seu dever dar ao marido filhos-homem e ela tinha-o cumprido e tencionava continuar a fazê-lo até que o seu corpo lhe desse esse privilégio. Assim, não só cuidariam dela quando fosse velha, mas seria também muito estimada. Conseguiria ter mais glória do que a horrível Sahlah numa dúzia de vidas. Decerto esta não esperava ser tão fértil como Yumn e já tinha transgredido gravemente os preceitos da sua religião para que se pudesse redimir. Era uma mercadoria danificada, estragada e arruinada, nada podendo fazer. Não servia para mais nada senão para servir.
Era uma ideia encantadora.
- Sim - chilreou Yumn para o bebé, que ideia tão agradável.
Acariciou o apêndice insignificante entre as pernas da criança. Como parecia incrível que um pequeno bocado de carne pudesse determinar o papel que essa criança teria na vida. Mas fora assim que o Profeta ordenara.
- Os homens encarregam-se de nós - continuou Yumn a chilrear porque Alá fazia um melhor que o outro. Pequeno Bishr, ouve a ammi-gee.
Cumpre o teu dever: abriga, protege e guia. E procura uma mulher que
cumpra o seu.
Certamente Sahlah não o fizera. Representara o papel da filha obediente e cumpridora e da cunhada subserviente e dócil como lhe era exigido.
Mas era apenas uma representação. A verdadeira rapariga era aquela que se deitava numa cama cujas molas rangiam ritmicamente.
Yumn sabia-o. E intencionalmente calara-se. Não se calara completamente.
Não se poderiam permitir alguns tipos de hipocrisia. Quando aos vómitos matinais de Sahlah, se seguiu a concordância em casar com o primeiro homem que lhe fora apresentado como potencial marido, Yumn resolvera agir. Não permitiria a grande decepção da família quando soubessem que a meiga Sahlah enganara propositadamente o noivo.
Assim dirigira-se em particular a Haytham Querashi, escapando-se de casa numa das muitas noites em que Muhannad saíra. Apanhara o futuro noivo no hotel e sentada junto a ele no quarto minúsculo, cumprira o seu dever, como qualquer mulher religiosa, revelando o incrível impedimento para o próximo casamento da cunhada. Claro que Sahlah se poderia livrar da criança. Mas a virgindade, uma vez perdida, nunca poderia ser reposta.
Porém Haytham não reagira como Yumn esperara. A afirmação ela está estragada, tem dentro dela o filho de outro homem, não tinham levado onde a lógica e a tradição ditavam que levasse. De facto, Haytham ficara tão tranquilo com a revelação de Yumn, que esta se sentiu por uns instantes assustada, pensando ter confundido os acontecimentos, e os vómitos de Sahlah terem começado depois da chegada de Haytham e não antes, tornando-o o pai do filho de Sahlah.
Mas ela sabia que não era assim. Sabia que Sahlah já estava grávida quando Haytham chegara. Assim, a sua aquiescência em casar, tomada em qonjunto com uma completa placidez ao saber do pecado de Sahlah, só poderiam significar uma coisa. Ele sabia do estado dela e concordara em casar mesmo assim. Yumn percebera que a cabra estava salva. Estava salva da desgraça e da desonra, porque Haytham estava desejoso, pronto e preparado para a retirar de casa da família, assim que ela quisesse.
A situação não poderia ser mais injusta. Tendo sido forçada a suportar, durante quase três anos, os elogios que a sogra fazia às virtudes de Sahlah, Yumn sentira grande prazer em todas as oportunidades que lhe surgiam para a atormentar. Já ouvira o suficiente sobre a beleza de Sahlah, a sua arte a fazer aquelas bugigangas horríveis, os seus dotes intelectuais, a sua piedade religiosa, a sua perfeição física e, principalmente, o seu sentido do dever. Sobre esta última característica da sua bem-amada filha, Wardah era capaz de tecer elogios intoleráveis. Não se impedia de invocar a imagem dócil de Sahlah, sempre que Yumn lhe desagradava. Se o sevian ficava cozido demais, Wardah falava durante vinte minutos sobre as habilidades culinárias de Sahlah. Se se atrevia a omitir uma das cinco orações diárias, e muitas vezes deixava passar o namáz, ao nascer do Sol - ouvia um discurso sobre a devoção de Sahlah ao Islão. Se não limpava convenientemente o pó, não esfregava a banheira como devia ser ou não procurava todas as teias-de-aranha da casa, os seus hábitos desleixados eram comparados com os de Sahlah que, claro, era imaculada. Assim fora para Yumn uma fonte de grande prazer, o facto de ter consigo uma informação negativa a respeito da cunhada. E o prazer fora ainda maior, sabendo que poderia usar essa informação em seu proveito. Yumn quase tivera de desistir dos seus sonhos de manter Sahlah indefinidamente como refém dos seus desejos e ordens quando Haytham declarara a sua intenção de casar com ela, apesar dos seus pecados. Mas agora Yumn tinha, mais uma vez, o futuro da cunhada na palma da sua mão. E era aí que Sahlah Malik deveria ficar.
Yumn sorriu ao filho. Começou a envolvê- lo numa fralda limpa e macia.
- Como é boa a vida, meu pequeno deus - murmurou. E mentalmente, fez uma lista dos deveres que obrigaria Sahlah a cumprir, quando chegasse a casa nessa tarde.
A POSSIBILIDADE DE HAVER uma testemunha da morte de Querashi, reforçou e reajustou a investigação. O inspector Barlow começou a contactar com os seus homens, dizendo-lhes.
- Quem quer que tenha tido contactos com Querashi é, a partir de agora, uma testemunha potencial do crime. Quero o álibi confirmado de todos. Descubram quem quer que tenha ido ao Nez nessa noite.
Quanto a Barbara, encarregou-se de telefonar para o laboratório de - impressões digitais de Londres, usando a pouca influência que tinha, para os pressionar a tratarem das impressões do Nissan. Sabia que não havia muitas garantias. Só descobririam alguma coisa se as impressões digitais deixadas no automóvel tivessem sido deixadas por alguém com cadastro no país. Mas, se assim fosse, seria óptimo: conseguiriam uma identificação, algo de concreto, para além da pura especulação.
Barbara fez o telefonema. Como a maior parte dos serviços, o laboratório de impressões digitais não se entusiasmava com a interferência de outro ramo da lei, por isso usou a desculpa da inquietação racial na cidade para promover a sua causa. Por fim disse:
- Aqui, andamos a pisar campo minado e precisamos da vossa ajuda para resolver as coisas.
O laboratório entendeu. Todos queriam a identificação das impressões
digitais antes do fim do primeiro dia de investigação. Mas o sargento tinha de entender que uma força de trabalho tão especializada como aquela, só conseguia tratar de um determinado número por dia
- Não nos podemos arriscar a um erro - disse o chefe do departamento. - Principalmente quando da nossa conclusão podem resultar a inocência ou a culpa de alguém.
Certo, certo, certo, pensou Barbara. Pediu-lhe que fizesse o que podia
e voltou-se para Emily.
- Tenho muito menos influência do que pensava - disse-lhe com toda a sinceridade. - Vão fazer os possíveis. Que há de novo?
- A fotografia de Querashi - disse, retirando-a. Barbara viu que era a mesma fotografia do homem assassinado que aparecera na primeira página do Trending Standard. Querashi tinha um ar ao mesmo tempo solene e inofensivo. - Se Trevor Ruddock diz a verdade a respeito de Querashi e do engate, há uma possibilidade de alguém o ter visto no mercado de Clacton. E se alguém mais o viu, pode também tê-lo visto na companhia da nossa testemunha potencial. Barb, eu quero essa testemunha. Se é que Ruddock diz a verdade.
- Se - disse Barbara. - Tinha motivos de sobra para matar Querashi e ainda não comprovei o seu álibi. É preciso ver o cartão-de-ponto da semana passada. E também quero falar com Rachel. Há muitas pistas que vão dar a ela. Se queres saber, acho curioso.
Emily aprovou o plano. Pelo seu lado, ia trabalhar no aspecto homossexual do caso. Com o mercado por explorar e Fahd Kumhar para ser localizado, outras pistas pareciam levar a Clacton. Não queria ignorá-las.
- Se existe, essa testemunha é a chave de tudo isto - disse. Separaram-se no pátio de asfalto que servia de parque de estacionamento à velha esquadra. Num dos lados, uma espécie de gaiola de metal retorcido servia de gabinete ao agente que tratava das provas. Estava sentado num banco, em mangas de camisa e com um lenço azul atado à cabeça, para absorver a transpiração. Parecia observar o conteúdo dos sacos de provas e registá-lo num livro. A temperatura atingia máximas próprias para estrelar ovos. Na opinião de Barbara, o pobre infeliz tinha o pior trabalho de todos.
Descobriu também que, enquanto estivera na esquadra, o Mini, mesmo com todas as janelas abertas, concentrara tanto calor que era difícil respirar lá dentro. O volante parecia de fogo e os assentos queimavam-lhe através do tecido fino das calças. Olhou para o relógio e espantou-se por ainda não ser meio-dia. Não tinha dúvidas de que às duas da tarde ia sentir-se como uma perna de borrego bem passada.
A Racon Original and Artistic Jewellery estava aberta quando lá chegou. Connie Winfield e a filha trabalhavam com a porta escancarada. Pareciam estar a arranjar um novo stock de colares e brincos nos expositores, pois retiravam as coisas de uma caixa de cartão e prendiam-nas com alfinetes em placas cobertas de veludo creme.
Barbara observou-as durante uns instantes, sem dar a conhecer a sua presença. Sem querer, reparou em dois pormenores: entre as duas conseguiam dispor as bijutarias de maneira agradável e atraente e trabalhavam num silêncio hostil. A mãe deitava à filha olhares terríveis. Esta retribuía-lhe com uma expressão arrogante que demonstrava ser-lhe o desagrado da mãe indiferente.
As duas mulheres assustaram-se quando Barbara Lhes disse bom dia. Só Connie respondeu.
- Tenho as minhas dúvidas de que venha comprar alguma coisa - interrompeu o que estava a fazer e dirigiu-se ao balcão, onde tinha um cigarro aceso num cinzeiro em forma de meia-lua. Sacudiu a cinza e levou o cigarro aos lábios. Olhou para Barbara com ar hostil.
- Gostaria de dar uma palavrinha a Rachel.
- Então dê. E boa sorte. Eu bem gostaria de falar com ela, mas dali não tiro nada. Pode tentar. Estou desejando ouvir o que ela tem a dizer.
Barbara não tinha tenções de que a mãe fizesse parte do interrogatório.
- Rachel, pode vir cá fora? - Perguntou. - Vamos dar uma volta?
- Mas o que se passa? - Perguntou Connie. - Eu não disse que a deixava sair daqui. Temos de trabalhar. O que tem a dizer-lhe pode dizê-lo aqui, enquanto desembalamos as coisas.
Rachel pregou o colar que tinha na mão numa das seis pontas do painel. Connie pareceu entender o que estava implícito neste gesto.
- Rachel Lynn! - Continuou. - Nem sequer te atrevas...
- Podemos ir até ao parque - disse Rachel a Barbara. - Não é longe e sabia-me bem um intervalo.
- Rachel Lynn.
Rachel ignorou-a ostensivamente. Saiu da loja à frente de Barbara e continuou pelo passeio. Barbara ainda ouviu Connie gritar o nome da filha, primeiro zangada, depois suplicante, enquanto se dirigiam na direcção de Balford Road.
O parque em questão era um quadrado de relva cheio de sol, a pouca distância da igreja de São João. Rodeava-o um gradeamento de ferro-forjado, mas o portão estava aberto. Neste havia um letreiro que dava as boas-vindas
aos visitantes e chamava ao lugar PARQUE FALAK DEDAR. Barbara reparou que o nome era muçulmano. Interrogou-se o facto seria um indicativo da invasão que a comunidade asiática levava a cabo em Balford-le-Nez. Um caminho de betão junto à relva, levou-as a um banco que estava parcialmente à sombra de um laburno coberto de uma cascata de flores amarelas. Uma fonte sussurrava no meio do parque, mostrando uma jovem de véu, esculpida em mármore branco, que despejava água de um vaso para um pequeno lago em forma de concha. Depois de arranjar a saia fina, Rachel olhou para a fonte e não para Barbara.
Esta disse-lhe porque ali estava: para confirmar o seu paradeiro na noite de sexta-feira.
- Há quatro noites - recordou Barbara a Rachel, como se a jovem não se lembrasse. Quis mostrar que quatro noites não seria um espaço de tempo suficientemente grande para ser esquecido.
Rachel era certamente versada no processo dedutivo.
- Quer saber onde eu estava quando Haytham Querashi morreu disse.
Barbara concordou ser esse o seu objectivo.
- O seu nome aparece mais do que uma vez relacionado com este caso, Rachel - acrescentou. Não quis dizer tal coisa em frente da sua mãe...
- Pois - disse Rachel.
-... mas nunca dá boa impressão quando o nosso nome aparece durante a investigação de um crime. Fuma?
Rachel abanou a cabeça e voltou a olhar para a fonte.
- Saí com um rapaz chamado Trevor Ruddock - disse. - Trabalha no pontão. Mas acho mesmo que já o conhece. Ontem à noite disse-me que tinha falado com ele.
Passou a mão pelo desenho da saia, uma cabeça de pavão habilmente escondida nas espirais coloridas do tecido.
Barbara mudou de posição para tirar o bloco-notas do saco que trazia ao ombro. Folheou-o para ver o que escrevera na entrevista anterior com Trevor Ruddock. Ao fazê-lo viu que os olhos de Rachel tinham dado pelo movimento. A mão da jovem deixara de alisar a saia, como se percebesse que o mais pequeno movimento a poderia trair.
Barbara refrescou a memória a respeito da saída de Trevor com Rachel e depois virou-se para esta.
- Trevor Ruddock afirma que esteve consigo - disse. - É um pouco vago nos pormenores e é de pormenores que eu ando à procura. Por isso talvez me possa preencher as lacunas.
- Não vejo como.
- É fácil - Barbara segurava no lápis numa atitude expectante. - Que fizeram? - Perguntou.
- Fizemos?
- Na sexta-feira à noite. Onde foram? Foram comer fora? Foram tomar café? Ao cinema? Talvez tenham ido a um bar?
Rachel agarrou a cabeça do pavão com dois dedos.
- Está a brincar, não é verdade? - O tom era amargo. - Suponho que Trev lhe disse onde fomos.
- Talvez tenha dito - admitiu Barbara. - Mas gostaria de ouvir a sua versão, senão se importa.
- E se eu me importar?
- Então importa-se. Mas não é muito boa ideia, dado que uma pessoa foi assassinada. E quando alguém é assassinado o melhor é dizer a verdade. Porque; se mentir, os chuis vão querer saber a razão. E geralmente andam de volta até a conseguirem saber.
Os dedos da rapariga agarraram a saia com mais força. Se o pavão fosse verdadeiro, pensou Barbara, estaria a dar o suspiro final.
- Rachel - insistiu Barbara. - Há algum problema? Porque eu posso perfeitamente deixá-la voltar para a loja para pensar um pouco antes de falar comigo. Pode perguntar à sua mãe o que há-de fazer. A sua mãe parecia realmente preocupada consigo ontem e, de certeza, que se souber que a polícia quer saber o seu paradeiro na noite do crime vai aconselhá-la o melhor possível. A sua mãe ontem não me disse que...
- Está bem. - Aparentemente, Rachel não precisava que Barbara lhe desse mais explicações em relação à mãe. - O que ele disse é verdade. O que ele lhe contou é verdade. Está bem assim? É isso que quer ouvir?
- Quero ouvir os factos, Rachel. Onde estava juntamente com Trevor na sexta-feira à noite?
- Onde ele disse que tínhamos estado. Numa das casas da praia. É para lá que vamos quase todas as sextas-feiras à noite. Porque não há lá ninguém depois de escurecer e ninguém vê que Trevor Ruddock me levou para a marmelada. Aí tem. Era o que queria saber?
A jovem voltou a cabeça. Estava vermelha até à raiz dos cabelos. A luz do dia, crua e implacável, acentuava todas as suas deformidades faciais com precisão brutal. Vendo-a completamente, sem ser de perfil e sem estar escondida na sombra, Barbara não pôde deixar de pensar num documentário que vira uma vez na BBC e que explorava o que constituía a beleza de um ser humano. Simetria, era a conclusão do filme. O Homo-Sapiens era geneticamente programado para admirar a simetria. Se fosse esse o caso, pensava Barbara, Rachel Winfield não tinha a mínima possibilidade.
Barbara suspirou. Gostaria de dizer à rapariga que a vida não precisava de ser vivida assim. Mas a única alternativa que ela própria tinha para Lhe oferecer era a vida que ela, Barbara, levava e que levava sozinha.
- De facto - disse ela - o que estava a fazer com Trevor não me interessa nada, Rachel. O que faz e porque o faz, é consigo. Se fica feliz depois de uma noite com ele, melhor para si. Se não, deixe-se disso.
- Fico satisfeita - disse Rachel em ar de desafio. - Tanto quanto possível.
- Certo - disse Barbara. - Então a que horas se encontrou satisfeita para poder ir para casa? Trevor disse-me que eram onze e meia. Que me diz?
Rachel olhou para ela. Barbara reparou no facto de ela estar a morder o lábio inferior.
- Então como é? - Perguntou Barbara. - Ou esteve com ele até às onze e meia ou não esteve. - Não acrescentou o resto, porque sabia que a jovem compreenderia. Se Trevor Ruddock tivesse falado com ela ter-lhe-ia dito que se não confirmasse a história em todos os pormenores as suspeitas iriam para ele.
Rachel desviou mais uma vez o olhar para a fonte. A jovem que despejava a água era esguia e graciosa, com feições correctas e os olhos baixos. Tinha mãos pequenas e os pés, que mal se viam sob as vestes que lhe cobriam o corpo, eram também bem feitos e delicados. Ao olhar para a estátua, Rachel Winfield resolveu-se.
- Dez horas - disse com os olhos fixos na fonte. - Cheguei a casa por volta das dez.
- Tem a certeza? Olhou para o relógio? Não poderá estar enganada Rachel teve um riso triste.
- Sabe quanto tempo leva a aviar um tipo? Quando ele não quer mais
nada e quando é tudo o que se vai conseguir, para ele ou para outra pessoa qualquer? Deixe-me dizer-lhe. Não demora muito tempo.
Barbara sentiu toda a miséria que havia nas perguntas da jovem. Fechou o bloco e tentou responder-lhe o melhor possível. Em parte dizia a si própria que não era nada com ela, dar conselhos, curar feridas espirituais ou acalmar generosamente as máguas da alma. Por outro lado sentia uma certa afinidade com a jovem. Para Barbara, uma das lições mais amargas e mais difíceis da vida tinha sido o lento reconhecer do que era dar e receber amor. "
Ainda não aprendera totalmente a lição. E na sua profissão, muitas vezes imaginava se alguma vez a aprenderia.
- Não se venda por um preço tão baixo - resolveu finalmente dizer à jovem. Deixou cair o cigarro no chão enquanto falava e apagou-o com o sapato de ténis. Tinha a garganta seca do calor, do fumo e da rigidez dos músculos, que tentavam impedir aquilo que ela não queria sentir e muito menos recordar os preços com que também se tinha posto à venda. Decerto que alguém vai pagar o que pede, porque é uma pechincha. Mas o preço para si vai ser muito mais elevado.
Pôs-se de pé sem dar à jovem a oportunidade de lhe responder. Fez um aceno de agradecimento pela cooperação de Rachel e dirigiu-se para a saída.
Quase a chegar ao portão viu um jovem asiático que afixava numa das
barras de ferro forjado, um papel amarelo, tirado de um monte que trazia.
Quando chegou perto, ele foi-se embora e ela viu-o mais abaixo na rua a afixar outro aviso num poste telegráfico.
Curiosa, leu o cartaz. Era difícil não se reparar nas grandes letras negras no papel amarelo e havia um nome de homem escrito na parte superior:
FAHD KUMHAR.
Por baixo estava uma mensagem em inglês e em urdu.
O DEPARTAMENTO CRIMINAL DE BALFORD QUER INTERROGAR-TE. NÃO FALES
COM ELES SEM REPRESENTAÇÃO LEGAL. A JLIM'A PODE FORNECÊ-LA. TELEFONA, POR FAVOR.
A estas quatro frases seguia-se um número de telefone, que era repetido verticalmente no final da página para poder ser arrancado por quem passasse.
Pelo menos agora sabiam o que Muhannad Malik andava a fazer. Sentiu um misto de satisfação e alívio com o que o aviso amarelo lhe revelava inadvertidamente. Apesar de ter boas razões para o fazer, Azhar não transmitira ao primo o seu deslize da noite anterior. Se o tivesse feito, os avisos só teriam sido afixados em Clacton e concentrar-se-iam à volta do mercado.
Devia-lhe agora um favor. Enquanto caminhava na direcção da rua das lojas, Barbara não pôde deixar de perguntar a si mesma quando seria que Taymullah Azhar pediria a retribuição do favor.
Cliff Hegarty não conseguia concentrar-se. Não que fosse preciso grande concentração para fabricar o puzzle dos dois homens, o último a ser posto à venda pelas Distracções para Adultos. A máquina estava preparada para se mover sozinha. Tudo o que tinha a fazer era colocar o puzzle na posição correcta, escolher entre meia centena de possibilidades, a que queria para o puzzle, girar um mostrador, ligar o botão e esperar pelos resultados. Estava habituado a fazer tudo isto como parte da sua rotina diária. Quando não atendia os pedidos pelo telefone, preparava a edição do catálogo seguinte, ou embalava um ou outro artigo, de maneira inocente, para que um tarado qualquer das ilhas Hébridas com preferências por distracções de bom-gosto o recebesse sem que o carteiro soubesse de que se tratava.
Mas era diferente e por mais de uma razão.
Vira a polícia. Até falara com eles. Dois detectives à paisana, com um gravador, blocos e pastas, tinham-se dirigido para a fábrica de mostarda logo à hora de abertura. Outros dois tinham chegado vinte e um minutos mais tarde, também à paisana. Estes dois começaram as visitas às outras empresas da zona industrial. Por isso, Cliff sabia que para chegarem a ele, era apenas questão de tempo... de pouco tempo.
Poderia ter-se ido embora, o que teria, não só adiado o inevitável, mas também feito com que a polícia desse um salto a Jaywick Sands, para o apanhar em casa. Que merda, não podia ser e estava disposto a fazer fosse o que fosse para o impedir.
Por isso, quando se aproximaram, depois de terem visitado os fabricantes de velas para barcos e a fábrica de colchões, Cliff preparou-se para a entrevista, retirando as bijutarias e desenrolando as mangas da t-shirt para que a tatuagem que tinha no antebraço ficasse escondida. O ódio que os chuis tinham aos maricas era bem conhecido. Na opinião de Cliff, não valia a pena apresentar-se como tal, quando havia uma hipótese de que não o viessem a saber.
Tinham mostrado a identificação e apresentado como os agentes Grey e Waters. Grey falava, enquanto Waters tirava os apontamentos. Ambos davam olhadelas aos expositores que mostravam vibradores de duas cabeças, máscaras de cabedal e anéis de marfim e aço inoxidável para o pénis.
É uma maneira de ganhar a vida, amigos, gostaria ele de ter dito. Mas seria mais sensato calar a boca.
Estava satisfeito por ter ar condicionado. Se não estivesse a funcionar, estaria a suar em bica. E enquanto a transpiração se deveria em grande parte ao facto de trabalhar dentro de uma estrutura feita de aço, por outro lado também era dos nervos. Quanto menos mostrasse sintomas de ansiedade em frente da bófia, melhor.
Tinham trazido uma fotografia e perguntaram-lhe se conhecia o sujeito. Ele dissera-lhes que sim, que era Haytham Querashi, o tipo que tinha morrido no Nez. Trabalhava na fábrica de mostarda.
- Conhecia bem Querashi? Perguntaram-lhe a seguir.
Sabia quem era Querashi, se era isso que queriam saber. Conhecia-o o suficiente para acenar com a cabeça e dizer Bom dia, ou Está um calor horrível, não é verdade, amigo?
Cliff teve o cuidado de parecer o mais descontraído possível. Saiu do balcão para responder às perguntas e aí ficou de braços cruzados, equilibrando o peso do corpo quase só numa perna. Esta postura acentuava-lhe os músculos dos braços, o que considerava ser boa ideia. Um corpo musculoso
equivalia à masculinidade aos olhos dos normais. A masculinidade equivalia também à heterossexualidade, principalmente aos olhos dos ignorantes. E, segundo a experiência de Cliff, a maior parte dos polícias era assim.
A pergunta seguinte foi se conhecia Querashi fora da zona industrial.
Cliff perguntou-lhes o que queriam dizer. Claro que conhecia Querashi
fora da zona industrial. Se o conhecia aqui, conhecê-lo-ia em todos os lados.
Não havia de ter uma perda de memória depois do trabalho, pois não?
Eles não gostaram da brincadeira. Pediram-lhe para explicar se conhecia bem Querashi.
Disse-lhes que conhecia Querashi fora do local de trabalho, tal como o
conhecia aqui. Se o visse em Balford ou noutro lado qualquer, diria Olá, está um calor dos diabos, acenaria com a cabeça. Era tudo.
Onde poderia ter visto Querashi fora do local de trabalho? Perguntaram-lhe.
Cliff vira mais uma vez como os chuis torcem tudo a seu favor. Naquele instante teve raiva deles. Se não tivesse cuidado com o que dizia haveriam de imaginar que se passeava com as cuecas de Querashi.
Conteve-se e disse-lhes que nunca tinha visto o tipo fora da zona industrial. Que só lhes dissera que, se o tivesse visto saberia quem ele era e cumprimentá-lo-ia, do mesmo modo que cumprimentava todas as pessoas que conhecia. Ele era assim.
Simpático, disse o chui que se chamava Grey. Olhara propositadamente para os artigos do expositor.
Cliff não os desafiou dizendo um Que quer você dizer com isso?" Sabia que os chuis gostavam de armar chatices, porque essas chatices faziam com que a pessoa tomasse menos atenção. Já passara por isso mais de uma vez com a bófia. Bastara-lhe uma noite dentro, para perceber as vantagens de se manter calmo.
Mudaram de táctica com ele, perguntando se conhecia o nome de Fahd Kumhar.
Dissera-lhes que não. Admitiu que poderia conhecer Fahd Kumhar de vista porque conhecia de vista a maior parte dos asiáticos que trabalhavam na fábrica de mostarda. Mas não sabia os nomes deles. Explicou que esses nomes pareciam só uma enfiada de letras a representar ruídos e nunca se lembrava deles. Porque não chamariam aos filhos nomes como devia ser.
Por exemplo William, Charlie ou Steve?
Os chuis não ligaram ao seu ar simpático. Pelo contrário, voltaram a falar de Querashi. Ele já tinha visto Querashi acompanhado? A falar com alguém dentro da zona industrial?
Cliff disse-lhes que não se lembrava. Disse que era possível, mas não teria reparado. Havia sempre por ali muita gente, muitas idas e vindas, camiões a chegar, entregas a fazer, mercadoria a carregar.
Waters disse-lhe que Querashi poderia ter estado a falar com um homem. E apontando para o expositor perguntou a Cliff se ele e Querashi já tinham feito negócio.
Grey acrescentou que Querashi era maricas. Cliff sabia? A pergunta fora demasiado íntima para o pôr à vontade, parecera a lâmina de uma faca a cortar-lhe a pele. Cliff tentou afastar do espírito a conversa da manhã anterior, que tivera com Gerry na cozinha. Afastou dos ouvidos as palavras que tinham trocado: acusações de um lado, negações zangadas e defesas do outro.
E a fidelidade? Para onde foi?
A fidelidade, o quê? O que sei sobre o assunto é o que tu me dizes. E há uma enorme diferença entre o que um gajo pensa e um gajo sente.
Foi no mercado? Foi aí que aconteceu? Conheceste-o aí?
Muito bem, à tua vontade.
E o bater da porta pusera um ponto final na conversa. Mas não podia contar nada disto aos chuis. Nem podia deixar que os gajos se chegassem a Gerry.
Não, dissera com firmeza. Nunca tivera negócios com Haytham Querashi, e para ele era novidade que fosse maricas. Pensava que se ia casar com a filha de Akram Malik. Por isso seria que os chuis tinham a certeza de ter percebido bem?
Não há certezas numa investigação até que um suspeito vá dentro, informou-o Grey.
E Waters acrescentou que, se se lembrasse de alguma coisa que achasse que a polícia devia saber.
Cliff assegurou-lhes que ia pensar bem. Telefonaria se se lembrasse de alguma coisa.
Faça isso, dissera-lhe Grey. Dera mais uma olhadela à loja. Quando ele e Waters saíram, disse grande paneleiro, em voz bem alta para ter a certeza que Cliff ouvia.
Este viu-os afastarem-se. Quando desapareceram na carpintaria do outro lado do caminho, permitiu-se retomar os movimentos. Foi para trás do balcão, onde ficava a secretária, e atirou-se para a cadeira de madeira.
Tinha o coração a bater desenfreadamente, mas nem reparara nisso enquanto a polícia lá estivera. No entanto, assim que saíram sentiu-o a bater tanto e tão depressa que parecia ir saltar-lhe da boca e cair mesmo no meio do oleado azul que cobria o chão. Tinha de se controlar, dissera para consigo. Tinha de pensar em Gerry. Tinha de se concentrar em Gerry.
Na noite anterior o amante não dormira em casa. Cliff acordara de manhã para encontrar o outro lado da cama intacto, percebendo imediatamente que Gerry não voltara de Balford. Sentiu-se enjoado. Apesar de já estar tanto calor àquela hora, gelaram-se-lhe os pés e as mãos ao pensar o que a sua ausência poderia significar.
Ao princípio tentou dizer a si próprio que ele decidira simplesmente tra6alhar toda a noite. Afinal tentava terminar o restaurante do pontão antes do feriado. Ao mesmo tempo, nas horas vagas, trabalhava na recuperação daquela casa em Balford. Assim, Gerry tinha uma boa razão para não ter vindo a casa. Poderia ter ido directamente do primeiro para o segundo emprego uma coisa que de facto por vezes fazia; trabalhava até às três da manhã, se estava em vias de completar uma etapa do segundo projecto. Mas nunca tinha feito uma directa. E dantes, sempre que tencionava trabalhar até tarde, telefonava.
Desta vez não o fizera. Não tinha vindo dormir a casa. Quando Cliff se
sentou nessa manhã na beira da cama começou à procura de pistas nas suas conversas com Gerry, pormenores que o pudessem informar sobre o seu paradeiro e o seu estado de espírito, bem como do seu coração. Só que tinha de admitir que a última conversa fora mais uma discussão, uma daquelas disputas verbais em que os comportamentos passados se tornam subitamente uma marca de nível para medir as dúvidas presentes.
Tinham ido buscar tudo o que havia no seu passado em conjunto ou nos passados individuais de ambos e submeteram os factos a um exame íntimo completo. O mercado de Clacton; a casa-de-banho dos homens; as festas de homossexuais; o trabalho infindável de Gerry naquela casa elegante de Balford. As saídas e os passeios de Cliff que eram de fazer perder a cabeça, e as suas cervejas no Never Say Die; falaram em quem usava a moto, bem como em quem tinha levado o barco, quando e porquê. E quando já não tinham mais acusações a fazer um ao outro, discutiram aos gritos qual deles tinha uma família que aceitava que o filho fosse maricas e qual dos pais seria capaz de lhes dar uma sova, se soubesse a verdade.
Gerry evitava habitualmente as discussões, mas desta vez não o fizera.
E Cliff ficou a pensar para si que razão teria o amante, de costume tão meigo e sério, para se transformar num monstro, capaz de se atirar a ele, se tal fosse necessário.
Assim o dia começara mal e piorara depois: acordara e vira que Gerry se escapara, agora, ao olhar para a janela, lá estavam os polícias a interrogar toda a gente.
Agora na oficina, Cliff tentava concentrar-se no trabalho. Tinha de satisfazer as encomendas e cortar os puzzles, escolher fotografias que se pudessem mais tarde transformar naqueles passatempos e resolver se havia ou não de encomendar um lote de preservativos novos a Amesterdão. Tinha pelo menos dezasseis filmes para ver e críticas a escrever para o Crossdressers'
Quarterly. Mas viu que não conseguia pensar em mais nada do que nas perguntas a que os polícias o tinham feito responder e se conseguira ser convincente de modo a não aparecerem em Jaywick Sands para pedir a Gerry DeVitt que se pussesse à sua disposição naquele inquérito.
Barbara reparou que a aparência de Theo Shaw não era a de homem que tivesse dormido o sono dos justos. Tinha olheiras e os olhos estavam raiados de sangue dando-lhe o aspecto de um coelho albino. Quando Dominique Língua-Furada lhe anunciara a segunda visita de Barbara ao pontão, Theo começara por dizer bruscamente:
- Nem pensar. Diz-lhe... - mas calara-se abafando o que quer que lhe ia comunicar, ao ver Barbara aparecer logo atrás da rapariga.
- Ela quer ver os cartões-de-ponto da semana passada, Mr. Shaw disse Dominique. - Vou buscá-los ou não? Não quis fazer nada sem falar consigo.
- Eu trato do assunto - disse Theo e não fez outro comentário até Dominique ter chegado à recepção, meneando-se sobre os sapatos de cunha cor-de-laranja. Depois olhou para Barbara, que entrara no gabinete sem ter sido convidada, instalando-se numa das duas cadeiras de palhinha, em frente da secretária. - Cartões-de-ponto?
- No singular - disse Barbara. - Mais precisamente o de Trevor Ruddock da semana passada. Tem?
Ele tinha. O cartão estava no departamento de contabilidade, onde tratavam dos vencimentos. Se o sargento não se importava de esperar um minuto.
Barbara não se importava. Agradava-lhe ter mais uma oportunidade para examinar o gabinete de Theo Shaw. Mas ele pareceu perceber as suas intenções, porque em vez de se dirigir lá para ir buscar o dito cartão, pegou no telefone, marcou três números e pediu que lho trouxessem.
- Espero que Trevor não esteja metido em sarilhos - disse. Isso é que não esperas, pensou Barbara.
- É só para confirmar uns pormenores - disse Barbara fazendo um gesto na direcção da janela. - Parece que hoje há mais gente no pontão. O negócio deve estar a melhorar.
- Sim.
- Serve a causa.
- Qual causa?
- A do reordenamento. Os asiáticos também estão incluídos? No reordenamento, claro.
- Que pergunta tão estranha. Porque quer saber?
- Estive num sítio chamado Falak Dedar Park. Parece novo. Há uma fonte no meio: uma jovem com vestes árabes a despejar água. E o nome parece asiático. Por isso pensei que os asiáticos estivessem incluídos no vosso plano de reordenamento. Ou têm um, só deles?
- Toda a gente pode ser incluída - disse Theo. - A cidade necessita de investidores. Não tencionamos impedir ninguém de participar no projecto.
- E se alguém quiser fazer as coisas à sua maneira? Fazer um projecto próprio? Com uma ideia diferente do vosso reordenamento? O que acontece então?
- Parece-me que faz mais sentido para Balford aceitar o plano geralrespondeu Theo. - De contrário, acabamos por ter uma miscelânea arquitectónica, como a da margem sul do Tamisa. Tenho vivido aqui toda a minha vida e, francamente, não gostaria que tal coisa acontecesse.
Barbara acenou com a cabeça. O raciocínio dele fazia sentido. Mas sugeria também uma outra área em que a comunidade asiática podia estar em conflito com os primitivos moradores de Balford. Levantou-se da cadeira e aproximou-se dos planos de reordenamento em que reparara no dia anterior. Queria ver o modo como os planos afectavam certas zonas, como a industrial, na qual Akram Malik tinha investido tanto dinheiro com a sua fábrica de mostarda. Mas chamou-lhe a atenção um mapa da cidade que estava na parede, ao lado de uma planta, e de uma previsão do que seria a futura Balford.
O mapa indicava as zonas da cidade onde mais se investiria. Mas não foi isso que interessou Barbara. Pelo contrário, reparou na localização da marina de Balford. Ficava a oeste do Nez, na base da península. Com boa maré, quem saísse da marina pelo canal de Balford para entrar na baía de Penyhole, teria acesso fácil ao lado oriental do Nez, onde Haytham Querashi encontrara a morte.
- Tem um barco, não é verdade Mr. Shaw? - Perguntou ela. - Ancorado na marina?
Ele tinha uma expressão cautelosa.
- É da família. Não é só meu.
- É um veleiro, não é verdade? Costuma navegar à noite?
- Já o fiz - ele percebera onde ela queria chegar. - Mas na sexta-feira à noite, não.
Logo se veria, pensou Barbara.
O cartão de ponto de Trevor foi entregue por um senhor de idade, com ar de quem trabalhava no pontão desde o tempo em que este fora construído: Entrara no gabinete, com um fato de linho, camisa engomada e gravata, apesar do calor, e entregou-lhe o cartão respeitosamente dizendo:
- Faça favor, Mr. Shaw. Que dia tão bonito não é verdade? Parece uma dádiva dos céus.
Theo agradeceu-lhe, perguntou-lhe pelo cão, pela mulher e pelos netos, por essa ordem, e mandou-o embora. Entregou o cartão a Barbara.
Esta viu aquilo que já esperava. Trevor Ruddock não mentira nem dissera a verdade na entrevista que tivera com ele: o cartão indicava que tinha aparecido para trabalhar às onze e trinta e seis. Mas a acreditar em Rachel, então nessa noite só estivera com ela até às dez e ainda teria de justificar uma hora e meia. Agora tinha já motivo e oportunidade. Barbara pensou se os meios não estariam entre os objectos da sua mesa de trabalho onde fabricava aranhas.
Disse a Theo Shaw que ia precisar do cartão. Este não protestou, mas mesmo assim, acrescentou:
- Trevor é bom rapaz, sargento. Parece um malfeitor, mas é só aspecto. Pode estar metido em roubos sem importância, mas nunca num homicídio.
- As pessoas por vezes surpreendem-nos - disse Barbara. - Quando pensamos saber com quem lidamos, fazem coisas que nos levam a perguntar se afinal os conhecíamos.
Com esta frase Barbara tocara nalguma coisa: fora a nota certa, a corda errada ou um nervo sensível. Viu-o nos olhos dele. Esperou por um comentário que pudesse, de algum modo traí-lo, mas Theo não fez. Só disse as palavras do costume sobre ter muito prazer em puder ser útil à investigação. Depois despediu-se.
Mais uma vez no pontão, Barbara guardou o cartão no saco que trazia ao ombro. Conseguiu, pela segunda vez, evitar Rosália, a vidente romena, e abriu caminho por entre grupos de crianças que esperavam com os pais para ocuparem uma das diversões. Tal como na véspera, o barulho nesta zona coberta do pontão ecoava nas paredes e no tecto. Campainhas tocavam, apitos assobiavam, e o som do realejo, juntamente com o barulho das vozes aos gritos, contribuíam para que Barbara se sentisse atordoada, como se andasse às voltas dentro de uma máquina de flippers gigantesca. Livrou-se da cacofonia, dirigindo-se para a zona descoberta do pontão.
À sua esquerda girava a roda gigante. À direita, os donos das barracas tentavam convencer os visitantes a tentar a sua sorte e pontaria, a lançar moedas, a deitar abaixo garrafas de leite e a disparar espingardas de pressão de ar. Por trás, um dos carrinhos da montanha russa descia a toda a velocidade, tendo lá dentro um monte de passageiros aos gritos. Um comboiozinho a vapor apitava, dirigindo-se ao fim do pontão.
Barbara seguiu o comboio. Viu o restaurante ainda em obras, sobranceiro ao mar, e os operários em cima do telhado fizeram-na recordar que precisava de aclarar uma coisa com o capataz da obra, Gerry DeVitt.
No dia anterior, DeVitt estivera a soldar. Mas desta vez apareceu enquanto Barbara passava por cima de um monte de tubos metálicos, desviando-se de um monte de tábuas. Baixou a chama do maçarico e empurrou a máscara protectora para o alto da cabeça coberta por um lenço.
- O que precisa desta vez? - Não parecia nem indelicado nem impa ciente, mas havia algum ressentimento na sua voz. Barbara não era ali bem-vinda, nem tão pouco as suas perguntas. - Despache-se, está bem? Hoje temos muito que fazer e não podemos ficar na conversa com as visitas.
- Posso dar-lhe uma palavrinha, Mr. DeVitt?
- Parece-me que já a está a dar.
- Muito bem. Então vamos lá para fora, por causa do barulho - teve de levantar a voz para se fazer ouvir. Desta vez ninguém deixara de martelar, de bater ou de serrar, com a sua entrada.
DeVitt reajustou misteriosamente a garrafa que estava ligada ao seu equipamento. Depois conduziu-a para a parte do restaurante que ficava voltada para o fim do pontão. Saiu, passando por cima de um conjunto de caixilhos de janelas já montados, que estavam encostadas à porta. Perto do gradeamento do pontão meteu a mão no bolso das calças de ganga cortadas e tirou um pacote de pastilhas. Meteu uma na boca, virou-se para Barbara e disse:
- E então?
- Então, porque não me disse ontem que conhecia Haytham Querashi?
- Disse ela.
Ele franziu os olhos por causa da luz forte. Não fingiu que não tinha percebido.
- Tanto quanto me lembro - disse - não me perguntou. Quis saber se tínhamos visto uma gaja árabe no pontão. Não tínhamos. Ponto final.
- No entanto, disse-me que não se misturava com asiáticos - disse Barbara. - Falou de que os asiáticos têm os seus costumes e os ingleses tem os deles. Se os juntarmos, temos sarilhos, foi a sua conclusão.
- Continua a ser a minha conclusão
- Mas conhecia Querashi, não é verdade? Ele recebeu as suas mensagens telefónicas no Burnt House Hotel. Ora isso sugere que se misturou com ele.
DeVitt mudou de posição, para se encostar ao gradeamento do pontão, apoiando-se nos cotovelos. Estava de frente para ela e não para o mar do Norte, e olhava para a cidade. Talvez meditasse, talvez tivesse esperança de evitar o olhar do sargento.
- Não me misturei com ele. Estava a fazer-lhe uma obra na Primeira Avenida. Era aí que ele ia morar, depois do casamento.
- Então conhecia-o.
- Falei com ele uma dúzia de vezes, talvez mais. Mas foi só. Se acha que isso é conhecer, então conhecia-o.
- Onde o encontrou pela primeira vez?
- Aqui. Na casa.
- Na casa da Primeira Avenida? Tem a certeza?
Ele olhou-a.
- Sim. Foi isso mesmo.
- Como é que ele o contactou para lhe fazer a obra?
- Não me contactou - disse DeVitt. - Foi Akram Malik. Disse que tinha feito uns arranjos à pressa, há cerca de dois meses, e perguntou-me se aceitava a obra. Dei-lhe uma olhadela e pensei que conseguia. O dinheiro faz sempre jeito. Foi aí que conheci Querashi, na casa, já depois de ter começado o trabalho.
- Mas não trabalha aqui a tempo inteiro? Então quando vai para a Primeira Avenida? Ao fim-de-semana?
- E à noite também.
- À noite? - Barbara levantou instintivamente a voz. Ele olhou- a, desta vez com mais cautela.
- Foi isso que eu disse.
Ela analisou cuidadosamente DeVitt. Há muito tempo que sabia que um dos piores erros que um investigador pode fazer é tirar conclusões baseado nas aparências. Com uma constituição forte e o tipo de trabalho que realizava, DeVitt tinha ar de quem acabava o dia de trabalho com uma cerveja e depois na cama com a mulher ou a namorada. É verdade que usava um brinco - a mesma argola de ouro que lhe vira na véspera - mas Barbara sabia que brincos, anéis nos dedos dos pés, argolas no umbigo e nos mamilos, não queriam dizer nada na presente década.
- Pensamos que Mr. Querashi fosse homossexual - disse-lhe Barbara.
- Achamos que, na noite em que morreu, tencionava ir ter com o amante ao Nez. Ia casar dentro de dias, por isso talvez lá tenha ido para terminar essa relação de uma vez por todas. Se tentasse levar uma vida dupla depois de casar com Sahlah Malik, alguém acabaria por descobrir e ele tinha muito a perder.
DeVitt levou a mão à boca. O movimento era estudado, lento e firme, como se quisesse dizer que os seus nervos tinham ficado impassíveis com esta nova informação. Cuspiu a pastilha para a mão e depois atirou-a ao mar.
- Não conhecia os gostos do homem - disse DeVitt. - Nem se eram por homens, mulheres ou animais. Não discutíamos esses assuntos.
- Saía do hotel à mesma hora, várias noites por semana. E temos quase a certeza de que se ia encontrar com alguém. Quando o corpo foi encontrado, tinha três preservativos no bolso, por isso, acho que podemos concluir com segurança que o encontro era mais íntimo do que se fossem tomar um copo a um dos pubs depois do jantar. Diga-me uma coisa, Mr. DeVitt, Mr. Querashi ia muitas vezes à Primeira Avenida, para ver o adiantado da obra?
Desta vez, ela viu a reacção: o movimento forte de um músculo do maxilar. Ele não respondeu.
- Trabalha lá sozinho, ou alguns destes seus colegas o vão ajudar?Nesse momento indicou o restaurante com o queixo. Lá dentro alguém ligara um rádio portátil. Por sobre o ruído da obra, uma voz começou a cantar a respeito de ter uma vida para viver e muito amor para dar, ao mesmo tempo que a música aumentava de ritmo. - Mr. DeVitt? - Insistiu Barbara.
- Sozinho - disse ele.
- Ah - respondeu ela.
- O que quer isso dizer?
- Querashi ia muitas vezes ver como ia o seu trabalho?
- Uma ou duas vezes. Mas Akram também ia. E a mulher, Mrs. Malik.
- Olhou para ela. Tinha a cara húmida, o que sem dúvida poderia ser atribuído ao calor. O Sol estava alto e incidia sobre ambos, extraindo-lhes a humidade através dos poros. O seu próprio rosto também estaria húmido, se não lhe tivesse aplicado uma camada de pó, como segunda fase do seu processo de embelezamento. - Nunca sabia quando algum deles iria aparecer - acrescentou. - Fazia o trabalho e se resolviam lá ir para ver como iam as coisas, por mim, tudo bem. Esfregou o rosto na manga da t-shirt, acrescentando.
- Se é tudo o que quer de mim, gostaria de voltar ao trabalho. Barbara acenou afirmativamente deixando-o ir embora, mas quando ele estava já junto ao restaurante, falou mais uma vez:
- Jaywick Sands, Mr. DeVitt. É aí que mora? Era de onde vinham as suas chamadas para Querashi.
- Sim, vivo aí.
- Não vou lá há muitos anos, mas tanto quanto me lembro, não fica longe de Clacton. De facto são apenas uns minutos de carro. É isso, não é verdade?
Os olhos semicerraram-se-lhe.
- De que anda à procura sargento?
Barbara sorriu.
- Estou a ver se faço uma revisão à minha geografia. Há mil pormenores num caso como este. Nunca sabemos qual deles nos pode levar ao criminoso.
O TELEMÓVEL DE EMILY TOCOU no momento em que esta chegava ao lado oriental do Passeio da Marina, paralelo à praia, a caminho do pontão das diversões de Clacton-on-Sea. Acabara de travar para dar passagem a um grupo de idosos que atravessavam a rua, vindos do Lar de Cedar, três deles usando pirâmides e dois bengalas; o toque do telefone interrompeu-lhe os pensamentos a respeito daquilo que significaria para o caso uma testemunha do crime.
Era o agente Billy Honigman, que passara todo dia num Escort sem distintivo a alguns metros do Jackson and Son, o quiosque de Carnarvon Road.
A mensagem era simples:
- Apanhei-o, chefe.
Kumhar, pensou. Onde? Quis logo saber.
Honigman disse-lhe que seguira o paquistanês até uma casa em Chapman Road, quase à esquina do Jackson and Son. Parecia uma pensão. Um cartaz numa janela anunciava quartos para alugar.
- Vou a caminho - informou Emily. - Fique aí. Não se aproxime. Desligou. Quando os idosos se afastaram do carro, avançou e pouco mais de um quilómetro depois virou para Carnarvon Road. A Chapman Road saía para o lado esquerdo da rua das lojas. De um lado e de outro, alinhavam-se casas vitorianas, todas de construção idêntica, com tijolo escuro e janelas em arco, cujos caixilhos eram o único meio de se distinguirem entre si. Estavam pintados de cores variadas e, quando Emily chegou ao pé do agente Honigman, ele indicou-lhe uma casa, cuja cor escolhida era o amarelo. Ficava a vinte metros de onde Honigman estacionara o Escort.
- Vive ali - disse. - Comprou umas coisas no quiosque, jornais, cigarros e uma tablette de chocolate, e voltou imediatamente para casa. No entanto, parecia nervoso. Caminhava depressa, sempre a olhar para a frente, mas quando chegou à casa continuou a andar chegado a ela. Depois foi quase até ao fim da rua e olhou para todos os lados.
- Ele viu-o, Billy?
- Se calhar. Mas o que havia para ver? Um fulano à procura de um sítio para estacionar, antes de ir passar o dia na praia.
Tinha razão. Com a sua habitual atenção pelos pormenores, Honigman tinha atado uma cadeira desdobrável ao tejadilho do carro. A bem da coerência e do incógnito, vestira calções de caqui e uma camisa aberta, com um padrão decididamente tropical. Não parecia polícia.
- Vamos lá ver o que temos aqui - disse Emily, indicando a casa. Uma mulher com um caniche ao colo, abriu a porta. Ela e o cão eram espantosamente parecidos: cabelos brancos, focinho comprido e recém-chegados do cabeleireiro.
- Desculpem - disse. - O letreiro ainda está lá em cima, mas todos os quartos estão já alugados. Já sei que tenho de o tirar. Mas, por causa do lumbago, não consigo arrancá-lo da janela.
Referia-se ao aviso de quartos vagos, que ficava entre as cortinas de um branco diáfano e o vidro da janela em arco. Emily disse à mulher que não estavam ali à procura de quarto. Mostrou o crachá.
A mulher emitiu um balido. Disse que o seu nome era Gladys Kersey, e é Mrs. já agora, embora Mr. Kersey já tenha ido para Jesus, continuou, afirmando que estava tudo na mais perfeita ordem no seu estabelecimento, sempre estivera, estava e certamente estaria sempre. Enquanto falava, meteu o caniche debaixo do braço e o cão emitiu um latido, parecido com o balido da dona:
- Fahd Kumhar - disse Emily. - Gostaríamos de conversar com ele, Mrs. Kersey.
- Mr. Kumhar? Ele não está metido em sarilhos, pois não? Parece um jovem muito simpático. Muito limpo, lava as camisas brancas à mão com lixívia e fica com as mãos numa desgraça. Não fala grande coisa de inglês, mas vê sempre o noticiário da manhã na sala e eu sei que ele está a tentar aprender. Não está com problemas, pois não?
- Pode indicar-nos o quarto dele? - Emily tratou de falar num tom delicado mas firme.
Mrs. Kersey procurava um significado no pedido.
- Não é por causa daquele assunto de Balford, pois não?
- Porque pergunta?
- Por nada de especial - Mrs. Kersey ergueu mais o caniche. - Só que como ele é um deles. Sabe... - Interrompeu a frase, como se esperasse que Emily a completasse. Como Emily não o fez, Mrs. Kersey enterrou os dedos no pêlo fofo do cão e disse aos dois visitantes da polícia venham lá então.
O quarto de Fahd Kumhar era no primeiro andar no fundo da casa. Era um dos três quartos que davam para um pequeno vestíbulo quadrado. Mrs. Kersey bateu à porta com delicadeza, olhou para trás e chamou:
- Mr. Kumhar? Tem aqui umas pessoas para falar consigo. A resposta foi o silêncio.
Mrs. Kersey estava desconcertada.
- Vi-o entrar há menos de dez minutos - disse. - Até falámos. Ele é sempre muito delicado e nunca sai sem se despedir. - Bateu outra vez, agora com mais insistência.
- Mr. Kumhar? Está a ouvir?
Um som abafado de madeira a raspar na madeira vinha de dentro do quarto.
- Afaste-se, por favor - disse Emily. E quando Mrs. Kersey obedeceu, ela fez girar o puxador e disse: - Polícia, Mr. Kumhar.
Ouviu-se um ranger da madeira. Emily fez rapidamente girar o puxador. O agente Honigman passou por ela como um gato. Apanhou Fahd Kumhar por um braço justamente quando o outro tentava saltar da janela.
Mrs. Kersey teve tempo ainda de exclamar:
- Porquê, Mr. Kumhar? - Antes de Emily lhe fechar a porta na cara e na do cão.
Honigman conseguira também apanhar-lhe uma perna e puxara o paquistanês para dentro do quarto.
- Não tenha tanta pressa, amigo - disse, largando o homem no chão. Kumhar agachou-se no sítio em que caiu.
Emily assomou-se à janela. Lá em baixo estava o quintal da casa, mas era uma queda considerável da janela do primeiro andar. Não havia nada que pudesse amortecer a queda. Nem sequer havia um algeroz preso à casa para que tornasse a fuga fácil. Poderia ter partido uma perna com toda a facilidade, ao fugir da polícia.
Emily voltou-se para ele:
- Departamento de Investigação Criminal de Balford - disse. Continuou lentamente - Sou o inspector-detective Barlow. Este é o agente-detective Honigman. Compreende o meu inglês, Mr. Kumhar?
Ele conseguiu levantar-se. O agente Honigman dirigiu-se a ele. Kumhar levantou as mãos como se quisesse mostrar que não tinha armas.
- Papéis - disse. - Tenho papéis.
- Que se passa? - Honigman dirigiu a pergunta a Emily.
- Esperar, por favor, sim? - Disse Kumhar, levantando mais uma vez as mãos, mas agora diante do peito em posição defensiva. - Eu mostrar papéis. Sim? está bem? Vocês ver papéis.
Dirigiu-se a uma cómoda de verga. Quando tocou no puxador da gaveta de cima, Honigman disse:
- Espere aí amigo! Afaste-se Depressa. Para aqui. Afaste-se! As mãos de Kumhar ergueram-se mais uma vez.
- Não fazer mal - gritou. - Por favor. Papéis. Tenho papéis. Emily compreendeu. Eles eram da polícia. Ele era estrangeiro.
- Ele quer mostrar os documentos, Billy. Devem estar na gaveta Abanou a cabeça para o paquistanês.
- Não estamos aqui para inspeccionar os seus papéis, Mr. Kumhar.
- Papéis, sim - Kumhar acenava furiosamente com a cabeça. Começou a abrir as gavetas da cómoda de verga.
- Espere aí amigo! - Gritou Honigman.
O paquistanês saltou. Fugiu para junto do lavatório no canto do quarto. Por baixo estava um monte de revistas deitado abaixo. Pareciam muito lidas, com as páginas dobradas nas pontas e com manchas deixadas pelas chávenas de chá e café. Do sítio onde estava, junto à janela aberta, Emily leu os títulos: Country Life, Hello! Woman's Oum, Vanity Fair. Um dicionário Collier de capa mole estava entre elas. Parecia tão lido como as revistas. O agente Honigman revistou a gaveta que Kumhar começara a abrir.
- Aqui não há armas - disse, e depois fechou-a com força. Por seu lado, Kumhar observava todos os movimentos. Parecia controlar-se para não se atirar da janela abaixo. Emily analisava o modo como o evidente desejo que o homem tinha de fugir se encaixava no caso que tinha entre mãos.
- Sente-se, Mr. Kumhar - disse indicando a única cadeira que havia no quarto. Estava diante de uma mesa coberta de jornais, na qual uma casa de bonecas, parcialmente acabada, estava a ser construída. Provavelmente Kumhar tinha interrompido o trabalho na casa de bonecas para ir ao Jackson and Son. Também parecia que a chegada da polícia o tinha impedido de continuar o trabalho. Havia na mesa um tubo de cola destapado que já fora usado em cinco miniaturas de telhas. A casa era, sem sombra de dúvida, de traçado inglês: uma miniatura de vime e cartão do tipo de moradia que se podia encontrar em quase todo o país.
Kumhar atravessou a medo o quarto para chegar à cadeira. Andava de lado como se acreditasse que um movimento em falso fizesse com que o braço da lei o esmagasse. Emily mantinha a sua posição, junto à janela. Honigman colocou-se junto à porta. Lá fora o caniche ganiu ao de leve. Era óbvio que Mrs. Kersey não relacionara o facto de terem fechado a porta com o desejo de conversarem em particular.
Emily fez um gesto com a cabeça em direcção à porta. Honigman acenou afirmativamente. Abriu-a e em voz baixa disse algumas palavras à dona da casa. Deixou que espreitasse para dentro do quarto por um momento, para ter a certeza que o hóspede estava ileso. Como tinha assistido a muitos dramas políciais americanos, esperara encontrar Fahd Kumhar no chão, cheio de sangue e algemado. Vendo-o são e salvo, sentado na cadeira, engoliu em seco, aconchegou o caniche debaixo do queixo e retirou-se, Honigman fechou a porta.
- Haytham Querashi, Mr. Kumhar - disse Emily. - Por favor explique a sua relação com ele.
Kumhar colocou as mãos entre os joelhos. Era dolorosamente magro, com o peito côncavo e os ombros curvados. Estes estavam cobertos por uma camisa branca impecavelmente engomada, que, apesar do calor, estava abotoada no pescoço e nos punhos. Usava calças pretas; com um cinto de cabedal castanho, grande de mais para a sua cintura, ficando pendurado, como a cauda de um cão triste. Não respondeu. Engoliu apenas e os dentes morderam com força os lábios.
- Mr. Querashi passou-lhe um cheque de quatrocentas libras. O séu nome estava em várias mensagens telefónicas dirigidas a ele, no Burnt House Hotel. Se leu isto - indicou os jornais que serviam de protecção entre a mesa e a casa de bonecas - então sabe que Mr. Querashi está morto.
- Papéis - disse Fahd Kumhar, voltando a cabeça para a cómoda e para Honigman.
- Não estamos aqui por causa dos seus papéis - Emily falou mais lentamente e em voz mais alta, embora o seu verdadeiro desejo fosse poder sacudi-lo, para que compreendesse. Perguntava a si mesma porque diabo imigravam as pessoas para um país, cuja linguagem era para eles um mistério. Estamos aqui para falar de Haytham Querashi. Conhecia-o não é verdade? Haytham Querashi?
- Mr. Querashi, sim - as mãos de Kumhar contraíram-se-lhe nos joelhos. Tremia tanto que o tecido da camisa estremecia como se fosse soprado pela brisa.
- Ele foi assassinado, Mr. Kumhar. Estamos a investigar esse assassínio. O facto de ele lhe ter dado quatrocentas libras faz de si um suspeito. Para que foi o dinheiro?
Os tremores do asiático aumentaram de tal modo que parecia estar a ter um ataque. Emily pensava que ele tinha de a perceber. Mas quando ele respondeu fê-lo na sua própria língua. Cuspia uma enfiada de palavras incompreensíveis.
Emily interrompeu aquilo que sabia ser uma corrente de protestos de inocência.
- Em inglês, por favor, Mr. Kumhar - disse com impaciência. Ouviu o nome dele e percebe o que eu estou a perguntar. Como conheceu Mr. Querashi?
Kumhar continuou a falar incompreensivelmente.
- Onde o conheceu? - Perguntou Emily. - Porque lhe deu ele o dinheiro. O que fez com ele?
Mais palavras incompreenssíveis, desta vez num tom de voz mais elevado. Kumhar levou as mãos à garganta e começou a gemer.
- Responda, Mr. Kumhar. O senhor mora perto do mercado. Sabemos que Mr. Querashi lá ia. Viu-o alguma vez? Foi lá que se encontraram?
Parecia que o asiático repetia a palavra Allah vezes sem conta. Estava contida num cântico ritual. Espectacular, pensou Emily, eram horas de se virar para Meca.
- Responda às perguntas - disse, adaptando a altura da voz à dele. Encostado à porta, Honigman moveu-se.
- Acho que ele não a percebe, chefe.
- Oh, percebe muito bem - disse Emily. - Atrevo-me a dizer que quando lhe apetecer, vai falar inglês tão bem como nós.
- Mrs. Kersey disse que ele não falava grande coisa – continuou Honigman.
Emily ignorou-o. Ali sentado, diante dela, aquele homem era uma verdadeira fonte de informações sobre a vítima e ela tencionava abrir a torneira enquanto o tinha ali sozinho e à sua mercê.
- Conhecia Mr. Querashi do Paquistão? Conhecia a família dele?
- 'Ulaaa-'ika 'alaa Hudammir-Rabbihim wa 'ulaaaa-ika humul- Muf-lihuun - entoou.
Emily levantou a voz, acima da lengalenga.
- Onde trabalha, Mr. Kumhar? Como se sustenta? Quem paga este quarto? Quem lhe compra os cigarros, as revistas e os doces? Tem automóvel? O que faz aqui em Clacton?
- Chefe - disse Honigman, pouco à vontade.
- 'Innallaziina' aamanuu wa' amilus-saallhaati lanhum...
- Raios o partam! - Emily deu uma palmada na mesa. O asiático imediatamente se encolheu e ficou em silêncio.
- Leve-o - disse Emily ao agente.
- O quê? - Perguntou Honigman.
- Ouviu o que eu disse, agente. Leve-o. Quero-o em Balford. Quero-o sob custódia. Quero saber até que ponto é que ele percebe inglês.
- Certo - disse Honigman.
- Aproximou-se do asiático e pegou-lhe num braço, obrigando-o a pôr-se de pé. A lengalenga de Kumhar começou de novo, mas desta vez rapidamente se desfez em lágrimas.
- Valha-me Deus - disse Honigman a Emily. - O que é que se passa com este gajo?
- É isso mesmo que eu quero saber - afirmou Emily.
A porta do número 6 de Alfred Terrace estava entreaberta quando Barbara chegou. De dentro da pequena casa vinha música aos berros e a televisão tinha o som tão alto como no dia anterior. Bateu no lado da ombreira desbotada, mas só um martelo pneumático em pleno funcionamento se conseguiria fazer ouvir.
Saiu do sol ardente e entrou para o hall. A escada, mesmo em frente dela, estava cheia de roupa já usada e pratos sujos. O corredor que dava para a cozinha estava atravancado por pneus vazios de bicicleta, um carrinho de bebé de lona, já estragado, dois baldes, três vassouras e um aspirador de saco com um rasgão de lado. À sua esquerda, a sala parecia estar a ser usada como depósito de mercadorias que iam ser mudadas de um lado para outro. À volta da televisão onde passava mais uma cena de tiros de um filme americano, havia caixas de cartão cheias do que parecia serem roupas, toalhas e artigos de casa.
Barbara achou tudo muito curioso. As caixas que ali estavam tinham artigos que iam desde um pequeno fogão a gaz já ferrugento, até uma amostra de meio ponto amarelecida, com as palavras Tenho de voltar ao mar. Isto considerado juntamente com o estado da casa, fez com que Barbara se interrogasse se os Ruddocks não estariam a planear uma partida rápida de Balford, estimulada pela sua anterior visita.
- Ei! Tire as patas daí, ouviu?
Barbara voltou-se. Charlie, o irmão de Trevor, entrara na sala, logo seguido deste e da mãe. Aparentemente os três tinham acabado de entrar em casa. Barbara não percebeu como não os tinha visto na rua. Talvez tivessem vindo dos lados de Balford Square, visto que Alfred Terrace formava um dos quatro lados da praça.
- Mas o que se passa aqui? - Perguntou Shirl Ruddock. - Quem é você para entrar pela casa de uma pessoa sem ser convidada?
Empurrou Charlie para o lado e entrou na sala. Cheirava a suor e emanava um forte odor a peixe, próprio de uma mulher que precisava de tomar banho. Tinha a cara suja de preto e os calções e a blusa leve estavam manchados de transpiração.
- Não tem o direito de entrar na casa das pessoas. Sei muito bem os meus direitos no que diz respeito à lei.
- Vai mudar de casa? - Perguntou Barbara, passando de uma caixa, para outra inspeccionando-a melhor, apesar das palavras de Shirl Ruddock.
- Os Ruddocks vão mudar de casa.
Shirl pôs as mãos na cintura.
- O que tem com isso? Se quisermos mudar de casa, mudamos. Não precisamos de avisar os chuis cada vez que saímos de casa.
- Mãe - disse Trevor, por trás dela. Tal como a mãe, estava encharcado em suor e todo sujo, mas não tinha mau feitio. Entrara também na sala. Três pessoas entre as caixas e os móveis perfaziam duas pessoas a mais. Charlie seguiu o irmão, aumentando o número.
- O que é que quer? - Perguntou Shirl. - Já falou com o meu Trev. E foi um lindo sarilho que arranjou cá em casa. Acordaram o pai dele com o barulho e ele precisa de descansar. O pai de Trev não está bem e você não ajudou nada.
Barbara gostaria de saber como é que alguém conseguia descansar naquela casa em que o barulho ensurdecedor era a característica dominant. Assim, estavam todos a gritar uns com os outros só para se fazerem ouvir, sobrepondo a voz aos choques dos veículos da televisão. A música rap juntava outro elemento ao caos sonoro daquela casa. Tal como no dia anterior, vinha lá de cima com o som tão alto que Barbara sentia as vibrações no ar.
- Quero falar com Trevor - disse Barbara à mãe do rapaz.
- Estamos ocupados - respondeu ela. - Não vê? Para além de parva não é também cega, pois não?
- Mãe - disse Trevor cauteloso.
- Não repitas o meu nome. Eu conheço os meus direitos. E sei que um polícia não pode entrar aqui e vasculhar as minhas coisas como se fossem dela. Venha mais tarde. Temos de fazer.
- Fazer o quê? - Perguntou Barbara.
- Não tem nada com isso - Shirl agarrou numa caixa e levantou-a à altura da cintura.
- Charlie - gritou. - Vamos continuar.
- Sabem o que parece irem mudar de casa enquanto a polícia investiga um homicídio? - Perguntou Barbara.
- Não me importa nada o que parece - replicou Shirl. - Charlie! Levanta-te da porcaria do sofá. Desliga a televisão. O teu pai logo tas dá se o voltas a acordar. - Virou as costas e saiu da sala.
Pela janela, Barbara viu-a atravessar a rua e entrar na praça onde estavam estacionados alguns carros. Charlie suspirou, apanhou outra caixa e seguiu a mãe.
- Não estamos a mudar de casa - disse Trevor, quando ele e Barbara ficaram sós. Dirigiu-se ao aparelho de televisão e baixou o som. A imagem manteve-se: um helicóptero perseguia um camião a arder. Estavam numa ponte e ia haver uma desgraça.
- Que se passa, então? - Perguntou Barbara.
- É o mercado de Clacton. Esta tralha é para a banca.
- Ah - disse ela. - Como a arranjaram?
O pescoço dele ficou vermelho.
- Não é fanada, se é o que está a pensar.
- Muito bem. Mas onde arranja estas coisas, Trevor?
- Ao fim-de-semana eu e a minha mãe vamos às vendas de coisas em segunda mão. Compramos o que podemos, arranjamo-las e depois vendemo-las por um preço mais alto, em Clacton. Não é grande coisa, mas sempre ajuda. - Tocou com a ponta da bota numa das caixas.
Barbara observou-o de perto, tentando avaliar se era ou não verdade. Já lhe mentira uma vez, por isso não acreditava muito. Mas, pelo menos desta vez, a história era razoável.
- Rachel não confirmou a história, Trevor - disse ela. - Temos de falar.
- Não matei o gajo. Não estive sequer perto do Nez na sexta-feira.
- Então ela não mentiu.
- Não tinha razões para lhe fazer nada. Claro que não gostei de ser despedido, mas eu arrisquei, quando roubei os frascos da fábrica. Sabia que tinha de pagar.
- Onde esteve na sexta-feira à noite? - Ele levou a mão fechada à boca e bateu nos lábios. Parecia um movimento nervoso. - Trevor? - Insistiu ela.
- Bom, está bem. Mas não vai servir de nada dizer-lhe, pois ninguém pode confirmar que é verdade. Por isso não vai acreditar em mim. De que vale?
- Vale para tentar limpar o seu nome, que é uma coisa que eu acho que devia estar desejoso de fazer. Gostava de saber porque não está. E é isso que me leva direita ao Nez. O seu cartão-de-ponto diz que entrou ao trabalho às onze e meia. Rachel disse-me que a deixou antes das dez. São - noventa minutos que tem de justificar, Trevor, e não é preciso ser um génio
para perceber que noventa minutos é tempo suficiente para uma pessoa ir das casas da praia até ao Nez e daí para o pontão.
Trevor olhou para a porta da sala, antecipando talvez a volta da mãe, que teria de vir buscar mais caixas para carregar o carro, antes de ir para o mercado.
- Já lhe disse vezes sem conta - repetiu teimosamente. - Não fui ao Nez naquela noite. E não matei o gajo.
- E não tem mais nada para me dizer?
- É tudo.
- Então vamos lá acima.
Ele ficou imediatamente aflito; era a imagem de alguém com alguma coisa para esconder. Sem a mãe ali para lhe dizer quais os seus direitos naquela situação, Barbara percebeu que estava em posição superior. Dirigiu-se às escadas. Ele foi a correr atrás dela.
- Não há nada lá em cima - disse. - E não tem o direito de ir... Ela voltou-se de frente para ele.
- Eu disse-lhe que andava à procura de alguma coisa, Trevor?
- D. d. disse que... - Gaguejou ele.
- Eu disse para irmos lá a cima. Quero ter esta conversa mais em particular.
Continuou a subir. A música rap vinha de dentro de um dos quartos, mas desta vez não era do de Trevor. Como lhe chegava ao mesmo tempo que o som de água a correr com força de uma torneira, Barbara concluiu que outro membro da família utilizava aquela música ininteligível para acompanhar o banho.
Entrou no quarto de Trevor, segurando a porta para que ele a seguisse e fechando-a depois de já lá se encontrarem. Uma vez lá dentro, ela dirigiu-se à mesa onde estava espalhada toda a parafrenália para fabricar aranhas."
Começou a mexer-lhe.
- O que está a fazer? - Perguntou ele. - Disse que queria falar em particular.
- Menti - respondeu Barbara. - Para que serve esta tralha toda? E jáagora, como é que um rapaz tão simpático se meteu nesta coisa das aranhas?
- Espere aí! - Exclamou quando a viu levantar uma colecção de aracnídeos para ver o que estava por baixo. - Vão partir-se.
- Ontem fiquei a pensar como será que as liga - admitiu Barbara.
Procurou por entre esponjas de vários tamanhos, bisnagas de tinta, molas de arame, contas pretas de plástico, alfinetes e cola. Pôs para o lado carretos de fio preto, amarelo e vermelho.
- Não tem nada que mexer aí - disse Trevor, zangado. Barbara reparou noutra coisa, quando deslocou para o lado duas enciclopédias velhas. Escondido entre os livros e a parede estava outro carreto. Este não tinha fio de algodão, mas de arame.
- Acho que tenho de mexer neste aqui - endireitou-se e mostrou-lhe a bobina. - quer contar-me alguma coisa?
- Alguma coisa de quê? De quê? É só arame velho, não vê?
- Vejo pois - meteu o carreto no saco.
- O que é que quer? Porque é que o vai levar? Não pode levar assim uma coisa do meu quarto. E não serve para nada, é só arame velho.
- Para que serve?
- Não serve para nada. Serve para segurar essa rede - fez um gesto com a cabeça na direcção da rede de pesca por cima da porta, onde os modelos das aranhas estavam pregados. - Serve para ligar o corpo das aranhas. Serve para... - procurava descobri outro uso. Porém, as palavras faltavam-lhe e avançou para ela. - Dê-me já esse arame! - Disse entre dentes. - Não fiz nada e não pode fazer parecer que o fiz. Não pode levar nada sem minha licença, porque...
- Isso é que posso - disse Barbara calmamente. - Posso levá-lo a si. Ele olhou-a espantado. Esbugalhou os olhos, a boca abriu-se-lhe, mas fechou-a logo a seguir.
- Quer vir sossegadinho, para termos uma conversa na esquadra, ou é preciso telefonar a pedir que mandem ajuda?
- Mas... não... porquê?... eu não fiz...
- Já mo disse. - respondeu ela. - Por isso espero que não se importe de tirar as impressões digitais, pois não? Uma pessoa inocente não precisa de se preocupar com o sítio onde as deixou.
Consciente da diferença de tamanho e de peso, Barbara não deu oportunidade de resistência a Trevor. Agarrou-lhe num braço e fê-lo sair do quarto e começar a descer as escadas sem conseguir protestar. Não teve a mesma sorte no caso da mãe.
Shirl carregava outra caixa - desta vez ao ombro - enquanto Charlie se revelava um inútil, brincando com a televisão. Viu Barbara e o filho mais velho a meio das escadas e deixou cair a caixa no chão.
- Espere aí! - Deu uma corrida para a escada a impedir-lhes o caminho.
- Não interfira, Mrs. Ruddock - disse-lhe Barbara.
- Sei muito bem o que vai fazer - replicou Shirl. - Conheço os meus direitos. Ninguém a deixou entrar em casa e ninguém concordou em falar consigo. Se pensa que pode pôr-se a dançar daqui para fora com o meu Trevor...
- O seu Trevor é suspeito num homicídio - disse Barbara, irritada e já sem paciência. - Por isso chegue-se para lá antes que eu leve para a esquadra mais alguém da família.
De qualquer modo ela avançou.
- Mãe! - Disse Trevor - Não preciso de mais problemas. Ouviu, mãe?
Charlie viera para a porta da sala. Lá em cima, Mr. Ruddock começara a gritar. Nesse momento o rapaz mais novo veio da cozinha a correr com um frasco de mel numa mão e um saco de farinha na outra.
- Mãe? - disse Charlie.
- Shirl! - Gritou Mr. Ruddock.
- Estão a ver! - Gritou Brucie entornando o mel e a farinha no meio do chão.
Barbara viu e ouviu tudo e concordou silenciosamente com a afirmação de Trevor. Os Ruddock não precisavam de mais problemas. Mas, como tantas vezes acontecia, aqueles que não precisavam das coisas é que eram abençoados com eles em grande quantidade.
- Tome conta dos miúdos - disse Trevor à mãe. Olhou na direcção das escadas. - Não deixe que ele lhes bata enquanto eu não estiver.
Muhannad apareceu para as orações da tarde. Sahlah não esperava que o fizesse. A discussão com o pai no dia anterior chegara até ao pequeno almoço daquele dia. Não houvera mais trocas de palavras sobre as actividades de Muhannad no que dizia respeito à investigação policial, mas a animosidade entre eles ainda pairava no ar.
- Preocupe-se à vontade por ter ofendido esses ocidentais, se é isso que quer - gritara Muhannad. - Mas não me peça que faça o mesmo. Não permitirei que a polícia interrogue um só que seja dos nossos, sem representação legal, e se isso tornar a sua posição na Câmara difícil, então terá de ser assim. Pode confiar, se quiser, no que aparentemente são a boa vontade e as intenções nobres desta comunidade nojenta, pai. Pode fazê-lo, porque, como ambos sabemos, o mundo tem muito espaço para idiotas.
Sahlah estremecera à espera que o pai lhe batesse. No entanto, embora uma veia lhe latejasse na cabeça quando respondeu, as palavras de Akram foram calmas:
- Muni, não vou fazer o que devia porque está aqui a tua mulher, cujo dever é obedecer-te e respeitar-te. Mas lá virá o dia em que serás forçado a perceber que não se ganha nada a fazer inimizades.
- Haytham está morto! - Foi a resposta de Muhannad batendo com um punho fechado na palma da outra mão. - Não foi esse o primeiro golpe que causou inimizades? E quem desferiu o golpe?
Sahlah retirara-se antes de Akram responder, mas não antes de reparar na agitação das mãos da mãe, que já se tinha enganado no bordado, e de observar Yumn cujo rosto ávido parecia absorver a altercação, como se as palavras zangadas lhe alimentassem o sangue. Sahlah sabia porquê. Qualquer antagonismo entre Akram e Muhannad tinha o potencial de afastar o filho do pai para mais perto da mulher. E era isso que Yumn queria desde o princípio: Muhannad só para si e completamente para si. A tradição não deixava que isso acontecesse. Ele tinha deveres para com os pais que o impediam. Mas a tradição voara pela janela, com a morte de Haytham.
Agora no pátio da fábrica de mostarda, Sahlah via o irmão escondido na sombra, detrás de três mulheres muçulmanas, enquanto os outros trabalhadores se viravam para o mihrab que Akram colocara na parede, para que todos pudessem dirigir as suas preces para Oriente, na direcção de Meca. Mas Muhannad não se curvou nem prostrou e quando o shahada foi recitado, os seus lábios não se moveram para declarar a sua fé: Não há outro Deus senão Alá e Maomé é o seu Profeta.
Estas palavras não eram ditas em inglês, mas toda a gente sabia o seu significado. O mesmo acontecia com a Fatlhah que se lhes seguia.
- Allhu Akbar - Sahlah ouviu o pai murmurar. E o coração doeu-lhe, precisando acreditar. Mas se Deus era tão grande, porque trouxera Ele tudo isto à sua família: um familiar contra o outro, todos os compromissos, entre eles, uma tentativa de mostrar quem tinha poder e quem era forçado, pela idade, pelo nascimento ou pelo temperamento, a submeter-se.
As orações continuavam. Dentro da fábrica, os poucos ocidentais que o pai empregava, aproveitavam o tempo como os colegas asiáticos. Havia muito tempo que Akram lhes dissera que podiam usar os períodos de tempo em que os muçulmanos rezavam em grupo, para rezar sozinhos ou para meditar. Mas Sahlah sabia que, pelo contrário, eles se apressavam a ir fumar lá para fora, satisfeitos por se poderem aproveitar da generosidade do pai, querendo manter-se na ignorância sobre os preceitos da sua religião e do seu modo de vida.
Mas Akram Malik não via. Nem reparava que, quando virava as costas, os lábios deles se curvavam ligeiramente, em sorrisos superiores, por causa dos seus modos estrangeiros. Também não observava a troca de olharesos olhos que se erguiam e o encolher de ombros - cada vez que levava os trabalhadores muçulmanos para o pátio onde rezavam.
Era o que faziam naquela altura, com uma devoção que Sahlah não conseguia fingir que sentia. Estava onde eles estavam, movia-se como eles e os lábios formavam as palavras devidas. Mas no seu caso era tudo fingido.
Um movimento fora do normal, chamou-lhe a atenção. Voltou-se. O primo banido - Taymullah Azhar - aparecera no pátio. Falava em surdina com Muhannad. O rosto deste último ficou rígido, como resposta a qualquer coisa que Azhar lhe estava a dizer. Logo a seguir acenou afirmativamente e indicou a porta com um movimento da cabeça. Os dois homens saíram juntos.
Akram ergueu-se da prostração final em frente da pequena congregação de crentes. Concluiu as preces com uma recitação do taslim, pedindo paz, misericórdia e as bênçãos de Deus. Quando Sahlah olhou para ele e ouviu as suas palavras, perguntou a si mesma se aquelas três graças seriam alguma vez conferidas à sua família.
Como sempre acontecia, os empregados de Malik voltavam calmamente ao trabalho. Shalah esperou pelo pai à porta.
Sem que ele notasse, observou-o por um momento. Estava a envelhecer e só agora a filha reparava. O cabelo estava cuidadosamente penteado e espalhado no alto da cabeça, mas era agora mais fino que nunca. O rosto já não era firme e o corpo - que ela sempre pensara ter uma força de ferro, parecia agora mole, como se a resistência o tivesse abandonado. A pele sob os olhos era escura e estava manchada debaixo das pestanas inferiores. O seu porte, sempre rápido e firme, parecia agora hesitante.
Queria dizer-lhe que nada tinha tanta importância como o futuro; o futuro que ele tanto esperara, em que ele plantara as raízes e a família numa pequena cidade do Essex, construindo aí a vida para os filhos e netos bem como para outros asiáticos que, como ele, tinham abandonado o seu país para seguir um sonho. Mas ela ajudara a impedir esse futuro. Qualquer referência que lhe fizesse adviria da necessidade de manter um segredo que naquele momento não tinha coragem de revelar.
Akram entrou no edifício. Fez uma pausa para fechar a porta à chave. Viu-a à espera perto do depósito de água fresca e veio ter com ela, aceitando o copo de papel que a filha lhe estendia.
- Pareces cansada, Abhy - disse. - Não precisas de ficar na fábrica. Mr. Armstrong pode tratar das coisas durante o resto da tarde. Porque não vais para casa? - Claro que ela tinha mais de uma razão para ser ela própria a fazer esta sugestão. Se ela saísse da fábrica enquanto o pai lá estava, ele descobriria imediatamente e havia de querer saber a razão. Rachel telefonou e é uma emergência, servira o seu objectivo no dia anterior, quando fora ter com a amiga à Clifftop Snuggeries. Não poderia usar a mesma desculpa outra vez.
Ele tocou-lhe no ombro.
- Sahlah, carregas o peso dos nossos problemas com uma força que eu não compreendo.
Sahlah não queria aquele elogio, porque lhe fazia doer a consciência. Procurou uma resposta adequada, qualquer coisa que se parecesse com a verdade, pois não conseguia continuar naquele processo em que se tinha envolvido nos últimos meses: construir um labirinto de mentiras, aparentar uma pureza de coração, de espírito e de alma que não possuía.
- Abhy, eu não estava apaixonada por ele. Esperava vir a amá-lo, como o pai e a mãe se amam. Mas ainda não tinha aprendido, portanto não sinto o desgosto que pensam que eu sinto.
Os dedos dele apertaram-lhe o ombro, depois fizeram-lhe uma festa na cara.
- Quero que saibas a devoção que sinto pela tua mãe. Era isso que eu desejava para ti e para Haytham.
- Era um bom homem - disse ela e reconheceu interiormente a verdade desta afirmação. - Escolheu-me um bom marido.
- Foi uma boa escolha, ou uma escolha egoísta? - Perguntou ele pensativo.
Lentamente caminharam pelo corredor da fábrica, passaram o vestiário e a sala dos empregados.
- Ele tinha muito para oferecer à família, Sahlah. Foi por isso que o escolhi. E todas as horas depois da sua morte, tenho perguntado a mim mesmo se eu o teria escolhido da mesma maneira se fosse corcunda ou tivesse uma doença. Tê-lo-ia escolhido de qualquer modo, só porque precisava dele?O gesto de Akram abarcava as paredes da fábrica. - Acreditamos em todas as falsidades quando o interesse nos guia. Depois, quando o pior nos acontece, nada mais resta do que arrependermo-nos das nossas acções. Queremos saber se alguma delas pode ter sido a causa da desgraça. Perguntamo-nos se uma acção alternativa não poderia ter evitado que acontecesse o pior.
- Não se culpe pela morte de Haytham - disse ela, consternada porque o pai parecia carregar aquele peso.
- Quem hei-de culpar? Quem mais o trouxe para este país? E porque era eu que precisava dele, não tu, Sahlah.
- Eu também precisava de Haytham, Abhy-jahn.
O pai hesitou antes de entrar no gabinete. Tinha um sorriso infinitamente triste.
- O teu espírito é tão generoso como puro - disse.
Nenhum outro elogio a poderia ter entristecido tanto. Nesse instante desejou contar a verdade ao pai. Mas reconheceu o egoísmo de tal desejo. Embora pudesse sentir o alívio de abandonar uma capa de bondade que não possuía realmente, fá-lo-ia à custa do espírito de um homem que nunca fora capaz de ver que o mal podia existir sob um exterior bondoso.
Foi o seu desespero em conservar a imagem que o pai tinha dela que a fizera dizer:
- Vá para casa, Abhy-jahn. Por favor. Vá para casa descansar. Como respósta beijou os seus próprios dedos e colocou-os no rosto da filha. Não disse mais nada e entrou mo gabinete.
Ela voltou à recepção, onde os seus deveres a esperavam, com o espírito ansioso por arranjar uma desculpa para se afastar da fábrica pelo tempo que precisáva, para fazer o que tinha de ser feito. Se dissesse que estava doente, o pai insistiria que alguém a acompanhasse a casa. Se ela dissesse que tinha havido uma emergência na Segunda Avenida - por exemplo que uma das crianças tinha desaparecido e Yumn estava em pânico - ele imediatamente entraria em acção. Se desaparecesse simplesmente... Mas como havia de ser? Como poderia causar ao pai mais preocupações e problemas?
Ficou sentada na recepção, olhando o peixe e as bolhas a flutuar no ecrã do monitor do computador. Havia trabalho a fazer mas naquele momento não se conseguia concentrar. Só conseguia dar voltas à cabeça: o que poderia fazer para preservar a família e simultaneamente salvar-se. Havia apenas uma opção.
A porta exterior abriu-se e Sahlah olhou para cima. Deus é grande, alegrou-se em silêncio quando viu quem entrara na fábrica. Era Rachel Winfield.
Viera de bicicleta. Estava encostada mesmo à entrada, já enferrujada pelo ar do mar. Trazia uma saia fina é transparente e, à volta do pescoço e nas orelhas, usava um colar e brincos criados por Sahlah, e feitos de contas e rupias.
Sahlah pensou que o modo de vestir de Rachel lhe dava alguma esperança, principalmente por causa das jóias. De certeza que queriam dizer que Rachel estava preocupada em ajudá-la.
Sahlah não a cumprimentou. Mas também não quis ficar desesperada pela gravidade do rosto da amiga. Tinham um problema sério. Rachel nunca consideraria de pouca importância o tornar-se cúmplice na tentativa de acabar com uma vida em desenvolvimento.
- Que calor - disse Rachel à laia de cumprimento. - Não me lembro de um calor assim. Parece que o Sol matou o vento e vai agora sorver o mar.
Sahlah ficou à espera. Só havia uma razão para a amiga vir à fábrica. Rachel era o seu caminho para poder começar a pôr a vida em ordem e a sua chegada sugeria que esse caminho estava ao seu alcance. Não seria fácil conseguir ausentar-se pelo período de tempo necessário para tratar do problema - havia muito que os pais se tinham habituado a saber dela durante todo o dia - mas com a ajuda de Rachel conseguiria inventar uma desculpa plausível para uma ausência, cuja duração garantiria o tempo de uma consulta num médico, numa clínica ou num hospital, onde alguém que soubesse do assunto acabasse com o pesadelo que vivera nos últimos...
Sahlah controlou-se para não cair no desespero. Rachel estava ali, disse para consigo. Rachel tinha vindo.
- Podemos conversar? - Perguntou Rachel. - Isto é - olhou para a porta que dava para os gabinetes da administração. - Talvez lá fora seja melhor do que aqui.
Sahlah levantou-se e seguiu a amiga até lá fora. Apesar do calor, sentia-se estranhamente fresca, mas a frescura estava-lhe debaixo da pele, como se as veias contrariassem o que os sentidos percebiam.
Rachel encontrou um sítio mais fresco onde o muro da fábrica lançava uma sombra na tarde quente. Enfrentou Sahlah olhando para trás, para toda a zona industrial, como se a fábrica de colchões exercesse sobre ela uma fascinação a que não pudera resistir.
Quando Sahlah começava a duvidar que a amiga lhe dissesse alguma coisa, Rachel finalmente falou.
- Não posso - disse.
A frescura da pele de Sahlah pareceu passar-lhe para os pulmões.
- Não podes, o quê?
- Já sabes.
- Não sei. Diz-me.
Rachel desviou os olhos da fábrica de colchões para o rosto de Sahlah. Esta perguntou a si própria porque nunca teria reparado que os olhos dela estavam mal colocados, um mais baixo do que o outro, e eram abertos demais - mesmo depois da plástica - para serem naturais. Era uma das feições de Rachel que Sahlah se habituara a ignorar. Rachel não tinha culpa de ter nascido assim. Ninguém tinha.
- Fartei-me de pensar - disse Rachel. - Nem dormi ontem à noite. Não posso ajudar-te com... sabes... com o que me pediste.
Ao princípio Sahlah nem queria acréditar que Rachel estivesse a falar do aborto. Mas não havia maneira de evitar a resolução implacável que via nas feições irregulares e estranhas da amiga.
- Não podes - foi tudo o que Sahlah conseguiu dizer.
- Sahlah, falei com Theo - disse Rachel rapidamente. - Já sei, já sei que não querias que o fizesse. Mas estás a pensar mal porque estás furiosa. É justo que Theo tenha alguma coisa a dizer em tudo isto. Tens de entender.
- Theo não tem nada a ver com isto - Sahlah ouvia o tom duro da sua voz.
- Diz isso a Theo - disse Rachel. - Foi vomitar no caixote do lixo, quando lhe disse o que pensavas fazer. Então, Sahlah não te ponhas assim. Já sei o que estás a pensar. O facto de ele vomitar não quer dizer que não te ajude. Eu pensei o mesmo ao princípio. Mas fartei-me de pensar esta noite e sei que, se esperares e deres às coisas uma oportunidade para acalmarem, e a Theo a hipótese de fazer o que deve...
- Tu não me ouviste - interrompeu-a Sahlah, por fim. Tinha o corpo rígido devido à necessidade de agir imediatamente. Reconheceu os efeitos do pânico, mas não conseguiu acalmá-lo. - Rachel, ouviste o que eu te disse ontem? Eu não posso casar com Theo, não posso ficar com ele, nem sequer falar com ele em público. Porque é que não entendes?
- Muito bem, já entendo - disse Rachel. - Talvez não queiras falar com ele durante algum tempo. Talvez mesmo até o bebé nascer. Mas assim que ele chegue... quer dizer, Theo é um ser humano, Sahlah. Não é um monstro. É um homem decente, que sabe o que tem de fazer. Outro fulano poderia afastar-se para sempre, mas não Theo Shaw. Não vai rejeitar o filho por muito tempo. Vais ver.
Sahlah sentiu-se como se tivesse caído no chão onde tinha os pés.
- E como é que achas que eu vou impedir que a minha família saiba de tudo isto? Que estou grávida? Que vou ter um bebé?
- Não podes - disse Rachel com um raciocínio perfeito, que não tinha a mínima ideia do que significava nascer-se mulher no seio de uma família asiática tradicional. - Vais ter de contar aos teus pais.
- Rachel! - O espírito de Sahlah passava de uma possibilidade para outra, cada uma apresentando-se como uma alternativa inaceitável a respeito do que fazer e de como o fazer. - Tens de me ouvir. Tens de tentar entender.
- Mas é mais do que o que está certo para ti, para Theo e para o bebé
- disse Rachel como se fosse a incarnação do bom senso. - Ontem à noite também me fartei de pensar no que está certo para mim.
- E o que é que isto tem a ver contigo? Só preciso que me dês algumas informações. E uma ajudinha para sair daqui, ou de casa dos meus pais, que me dê tempo suficiente para ir ao médico.
- Mas não é como se fosses ao mercado, Sahlah. Não podes aparecer e dizer a um fulano Tenho um puto cá dentro e quero ver-me livre dele, Vamos ter de lá ir mais do que uma vez... tu e eu... e...
- Eu não te pedi que fosses - disse Sahlah. - Só te pedi que me ajudasses com algumas informações. Mas eu posso tratar disso. E vou tratar. E quando o conseguir, tudo o que te peço é a tua boa vontade para me telefonares a pedir que faça uma coisa qualquer, qualquer coisa, que sirva de desculpa para que eu me afaste da casa dos meus pais durante tempo suficiente para ir para a clínica, ou para onde quer que essas coisas se façam.
- Olha para ti - disse Rachel. - Nem sequer queres dizer a palavra. Dizes essas coisas. Deveria perceber como te vais sentir quando te vires livre do teu filho.
- Sei muito bem como me vou sentir. Vou sentir-me aliviada. Vou sentir que retomei a minha vida. Vou saber que não destruí a fé que os meus pais têm nos filhos e que não desfiz a minha família, que não dei um golpe mortal no meu pai, nem fiz com que o meu mundo...
- Isso não vai acontecer - disse Rachel. - E mesmo que aconteça, será por um dia, por uma semana ou por um mês e depois acaba. Vão fazer as pazes contigo. Theo, a tua mãe e o teu pai. Até Muhannad.
- Muhannad - disse Sahlah - mata-me. Assim que eu não conseguir esconder o meu estado, o meu irmão mata- me, Rachel.
- Isso é um disparate - disse Rachel. - Sabes muito bem. Vai ficar aborrecido e talvez arranje um sarilho com Theo, mas não te vai tocar com um dedo. Por amor de Deus, és irmã dele.
- Por favor, Rachel. Tu não o conheces. Não conheces a minha família. Só vês o exterior, o que toda a gente vê, mas não sabes como é. Não sabes o que são capazes de fazer. Só vêem a desgraça.
- Mas vão ultrapassá-la - disse Rachel, com uma expressão definitiva na sua voz, que lançou sobre Sahlah uma onda de desespero. - Enquanto não fazem, eu tomo conta de ti. Sabes que tomarei sempre conta de ti.
Então Sahlah percebeu: o círculo tinha-se fechado. Tinham voltado ao mesmo sítio onde estavam no domingo à tarde, tinham voltado onde estavam na véspera. Estavam nas Clifftop Snuggeries, em espírito, senão em corpo.
- Além disso - disse Rachel num tom que indicava ter chegado à conclusão de todos os seus avisos. - Tenho de pensar na minha consciência Sahlah. E como achas que me vou sentir, sabendo que vou fazer parte de uma coisa que acho que não está certa? Tenho isso a considerar.
- Claro. - Os lábios de Sahlah formaram as palavras que ela não conseguia ouvir. Ao contrário, sentia-se como se tivesse sido retirada da presença de Rachel e de toda a zona industrial. Uma força invisível levava-a nas suas garras e afastava-a para longe, para longe, para longe... Não sentia o chão debaixo dos pés nem o sol escaldante que deixava frio, um gelo infinito no seu lugar.
E lá longe, Sahlah ouvia as palavras de despedida de Rachel:
- Não precisas de te preocupar, Sahlah. De verdade. Vais ver que tudo acaba em bem. Vais ver.
BARBARA ENTREGOU TREVOR RUDDOCK para que lhe tirassem as impressões digitais e em seguida acompanhou-o à sala de interrogatórios da esquadra. Entregou-lhe o maço de cigarros que pedira, juntamente com uma coca-cola, um cinzeiro e fósforos. Disse-lhe que pensasse com calma naquilo que tinha feito sexta-feira à noite e em quem, da sua sem dúvida infindável lista de amigos e conhecidos, poderia confirmar o álibi que iria fornecer à polícia. Fechando a porta à chave quando saiu, assegurou-se de que não teria acesso ao telefone para arranjar o álibi. Depois foi à sua vida.
Soube pela agente Warner que Emily também tinha trazido um suspeito.
- Um tipo de cor de Clacton - foi como Belinda o descreveu. Aquele dos registos do telefone do hotel.
Kumhar pensou Barbara. A vigilância em Clacton dera resultados mais depressa do que esperava.
Encontrou Emily a tratar das coisas para enviar a impressões digitais de Kumhar para Londres. Entretanto, estas iriam também para o laboratório de patologia de Peterborough, onde os agentes veriam se eram coincidentes com as encontradas no Nissan de Querashi. Barbara tratou de que as impressões digitais de Trevor Ruddock seguissem juntamente com as de Kumhar. De uma maneira ou de outra, pareciam estar mais perto da verdade.
- O inglês dele é uma merda - disse Emily laconicamente, quando voltaram para o gabinete. Limpou a cara com um papel de cozinha que retirou do bolso. Amarrotou-o e lançou-o para o cesto dos papéis. - Ou então está a fingir que não percebe nada. Em Clacton não conseguimos nada. Só uma lengalenga a respeito dos papéis, como se estivéssemos ali para o deportar imediatamente.
- Nega que conhecia Querashi?
- Não sei o que ele diz. Pode admitir, negar, mentir ou recitar poemas. É impossível dizer porque é tudo incompreensível.
- É preciso arranjar alguém que traduza - disse Barbara. - Não deve ser difícil, com a comunidade asiática aqui e isso...
Emily riu-se.
- Imagina se podemos confiar numa tradução exacta vinda daí. Caraças.
Barbara não podia discutir a perspectiva do inspector. Como poderiam confiar numa pessoa pertencente à comunidade asiática para fazer uma tradução explícita e objectiva, dado o clima de confronto racial em Balford-le-Nez?
- Poderíamos mandar vir alguém de Londres. Um dos agentes podia ir buscar aquele fulano da universidade, o que traduziu a página do Corão. Como se chama?
- Siddiqi.
- É isso. Professor Siddiqi. De facto eu podia telefonar para a Yard e pedir a um dos nossos homens para o ir buscar e o trazer aqui.
- Pode ser a nossa única alternativa - disse Emily. Entraram no gabinete dela, onde parecia estar mais calor do que no resto do edifício. O Sol da tarde aquecia a fronha que Emily pregara na janela, dando ao quarto uma sombra azulada, que sugeria a vida num aquário, sem que essa tonalidade fizesse fosse o que fosse para melhorar a aparência das pessoas.
- Queres que telefone? - Perguntou Barbara.
Emily sentou-se por detrás da secretária.
- Ainda não. Kumhar está fechado e gostaria de lhe dar tempo para perceber como é bom estar sob custódia. Alguma coisa me diz que a sua capacidade de cooperação precisa de ser oleada. E como está há pouco tempo em Inglaterra não vai reclamar os seus direitos. Tenho a faca e o queijo na mão, neste caso, e vou usar a faca, podes ter a certeza.
- Mas e se ele não falar mesmo inglês, Em... - disse Barbara em tom hesitante.
Emily ignorou as implicações de tais palavras: não estariam a perder tempo mantendo-o sob custódia, sem sequer fazer uma tentativa para arranjar um agente de confiança que falasse a língua dele?
- Daqui a umas horas, logo se vê - concentrou a atenção na agente Belinda Warner, que entrava no gabinete trazendo na mão um saco de provas selado.
- Entregaram isto - disse Belinda Warner - para lhe entregar a si. É o que estava no cofre de Querashi. No Barclays - acrescentou.
Emily estendeu a mão. Como se quisesse acalmar as preocupações de Barbara, disse à agente que telefonasse ao Professor Siddiqi, em Londres, e lhe perguntasse qual era a sua disponibilidade para, se fosse necessário, fazer a tradução das declarações de um suspeito paquistanês. - Ponha-o em stand-by - disse Emily. - Se precisarmos dele, vai ter de vir imediatamente.
Passou então ao conteúdo do saco, que na maior parte consistia em papéis. Havia um maço de documentos a respeito da casa na Primeira Avenida, um outro maço que continha os documentos de imigração de Querashi, um contrato de renovação e construção assinado por ele, por Gerry DeVitt e por Akram Malik e vários papéis soltos. Um deles era uma página rasgada de um bloco de espiral e, enquanto Emily o observava, Barbara pegou noutro.
- Outra vez Oskarstrae 15 - disse Emily, levantando os olhos do papel. Voltou-o e observou-o com mais atenção. - Não menciona a cidade, mas continuo a apostar que fica em Hamburgo. Que tens aí?
Era uma guia de remessa, disse-lhe Barbara. Vinha de uma firma chamada Eastern Imports. Mobiliário, artigos e acessórios para o lar - leu ela a Emily. - Importações da Índia, Paquistão e Bangladesh."
- Só Deus sabe o que importam do Bangladesh - comentou Emily num aparte desagradável. - Parece que os pombinhos se preparavam para mobilar a casa da First Avenue.
Barbara não tinha a certeza.
- Mas não há nada escrito na guia, Em. Se ele e a filha dos Malik tivessem comprado o tálamo nupcial e todos os etceteras, não haveria uma factura de todas essas despesas? Mas não. É uma guia de remessa em branco, da própria firma.
Emily franziu o sobrolho.
- Onde fica esse sítio, então Hounslow? Oxford? Nos Midlands?Que, como ambas sabiam, eram localidades com substanciais comunidades indianas e paquistanesas.
Barbara abanou a cabeça e tomou nota da direcção.
- Parkerston - disse.
- Parkerston? - Emily parecia incrédula. - Dá cá, Barb. Barbara assim fez. Ao mesmo tempo que Emily estudava a guia de remessa, afastou a cadeira da mesa e foi examinar o mapa da Península de Tendring, que estava na parede, logo a seguir a um mapa maior, da costa. Por seu lado, Barbara observou os outros três montes de documentos.
Os papéis de imigração pareciam estar todos em ordem. A documentação da casa da First Avenue também. A assinatura de Akram Malik aparecia em quase todos estes documentos, o que fazia sentido, pois a casa fazia parte do dote de Sahlah Malik. Barbara folheava o contrato de renovação, assinado por Gerry DeVitt quando um papel saiu de entre as páginas.
Reparou que era uma página de revista. Fora cuidadosamente rasgada e dobrada em quatro. Barbara abriu-a no colo.
Ambos os lados da página mostravam anúncios de uma secção da revista chamada Às Suas Ordens. Iam desde a International Company Services Limited, situada na ilha de Man, que aparentemente tratava de arranjar sociedades estrangeiras para a protecção da propriedade e evitar impostos, até à Lorrainne Electronics Discreet Surveillance, para os patrões que duvidavam da lealdade dos seus empregados; também a Spycatcher of Knights x bridge, oferecia o mais moderno equipamento em aparelhos de escuta para uma completa protecção do homem de negócios. Havia ainda anúncios de empresas de aluguer de automóveis, de apartamentos em Londres e de serviços de segurança. Barbara leu-os todos. Estava cada vez mais confundida por Querashi ter guardado este papel entre os outros documentos e pensava já que teria sido por engano, quando lhe saltou à vista um nome conhecido. World Wide Tours, leu, Viagens e Especialistas em Imigração.
Mais uma estranha coincidência, pensou. Um dos telefonemas feitos por Querashi do Burnt House Hotel, fora para esta mesma agência, salvo num pormenor. Querashi telefonara para a World Wide Tours de Carachi enquanto que esta World Wide Tours ficava na rua principal de Harwich.
Barbara foi ter com Emily, que continuava ao pé do mapa da costa, con templando a península a norte da baía de Pennyhole. Barbara, que nunca fora muito versada em geografia, só compreendeu que Hanvich ficava para norte do Nez e à mesma longitude deste, depois de ter olhado bem para o mapa. Ficava na foz do rio Stour e a ligação directa com o resto do país fazia-se por caminho-de-ferro. Sem qualquer intenção consciente, Barbara seguiu o símbolo da linha em direcção a Oeste. A primeira paragem, a pouca distância de Harwich, portanto não poderia pertencer a outra linha, era Parkeston.
- Em - disse Barbara, consciente das numerosas ligações que iam surgindo e faziam encaixar as peças. - Ele tinha aqui um anúncio de uma agência de viagens de Harwich, com o mesmo nome daquela em Carachi, para onde telefonou.
Mas percebeu que Emily não estava a ligar Carachi com Harwich nem Harwich com Parkeston. Ao contrário, observava um pequeno quadro informativo que aparecia no mapa sobre o azul do mar, a leste de Harwich. Barbara inclinou-se e leu.
Ferries de Harwich (Cais de Parkerston) para:
Holanda 6 a 8 horas Esbjerg 20 horas Hamburgo 18 horas Gotenburgo 24 horas
- Bem, bem, bem - disse Barbara.
- Interessante, não é verdade? - Emily afastou-se do mapa. Na secretária remexeu nos papéis, nas capas e nos relatórios, até encontrar a fotografia de Haytham Querashi. Estendeu-a a Barbara, dizendo:
- E que tal se fossemos esta tarde passear de carro?
- A Harwich ou a Parkeston? - Perguntou Barbara.
- Se lá esteve, alguém o há-de ter visto - respondeu Emily. - E se alguém o viu talvez nos possa dizer.
- Chefe? - Belinda Warner estava mais uma vez à porta. Olhou para trás de si, como se esperasse ser seguida.
- Que se passa? - Perguntou Emily.
- Os fulanos asiáticos. Mr. Malik e Mr. Azhar, estão aqui.
- Merda - Emily olhou para o relógio. - Não estou para aturar isto. Se pensam que podem aparecer quando lhe apetece para fazerem reuniões...
- Não é isso, chefe - interrompeu Belinda. - Ouviram falar no tipo de Clacton.
Por um momento Emily olhou para a agente como se não percebesse. Disse mesmo:
- Clacton.
- Sim - disse Belinda. - Mr. Kumhar. Sabem que ele cá está. Exigem vê-lo e não desistem enquanto não os deixar falar com ele.
- Grande porcaria - disse Emily.
Mas aquilo que não disse era o que Barbara sabia que ela tinha pensado: Era óbvio que os asiáticos conheciam a Lei das Provas Políciais e Criminais melhor do que o inspector previra. E Barbara apercebeu-se de que esse conhecimento íntimo dos seus direitos só poderia ter vindo de um sítio.
Agatha Shaw colocou o telefone no descanso e permitiu-se a um grito de triunfo. Se lhe tivesse sido possível, teria começado a dançar. Teria mesmo atravessado a sala aos saltos até chegar aos cavaletes onde ainda estavam, dois dias depois da sessão de câmara interrompida, as imagens de Balfórd concebidas pelos artistas e arquitectos. Depois tomá-los-ia nos braços para os beijar ruidosamente, como se fossem crianças adoradas por uma mãe.
- Mary Ellis! Mary Ellis! - Chamou então. - Venha imediatamente à biblioteca! - Plantou os três pés da pirâmide entre os seus e tentou levantar-se.
O esforço fê-la suar como um porco. Embora não lhe parecesse possível, pensou que se tinha levantado depressa demais, apesar da dificuldade. Uma tontura invadiu-a como uma rajada de vento.
- Ai - disse ela, a rir. Claro que tinha várias razões para se sentir tonta, Tonta de entusiasmo, tonta com as possibilidades, tonta com o êxito,
tonta de alegria. Que diabo. Tinha todo o direito de se sentir tonta. - Mary Ellis! Diabo de rapariga! Não me ouve chamar?
O bater das solas dos sapatos indicaram-lhe que finalmente a rapariga se aproximava. Chegou à biblioteca vermelha e ofegante.
- Valha-me Deus, Mrs. Shaw - disse. - Pregou-me cá um susto. A senhora está bem?
- Claro que estou bem - disse Agatha secamente. - Onde estava? Porque não veio assim que a chamei? Para que lhe pago eu, se depois tenho de ficar para aqui aos gritos como uma louca, sempre que preciso de si? Mary aproximou-se dela.
- A senhora queria que eu hoje mudasse os móveis da salinha. Não se lembra, Mrs. Shaw? Já não queria o piano ao pé da lareira e disse que os sofás estavam a perder a cor por estarem muito perto da janela. Até quis que os quadros...
- Está bem. Está bem - Agatha tentou sacudir a mão forte de Mary do seu braço. - Não me aperte tanto, menina. Não sou nenhuma inválida. Posso andar pelo meu pé, sabe muito bem.
Mary pegou-lhe com mais delicadeza.
- Sim, minha senhora - e esperou as ordens.
Agatha olhou-a. Perguntou mais uma vez a si mesma porque diabo tinha em casa ao seu serviço uma criatura tão patética. Aparte a falta de dotes intelectuais, que a tornavam inútil para conversar, Mary Ellis estava nas piores condições físicas que Agatha já vira. Se não, porque estaria a suar, vermelha e ofegante, só por ter arrastado o piano e mais alguns móveis leves?
- Mary, para que serve, se não vem imediatamente quando eu a chamo? - Perguntou Agatha.
Mary baixou os olhos.
- Não a ouvi, minha senhora. Mas estava em cima do escadote. Estava a tirar o retrato do seu avô e não o podia deitar ao chão, não é verdade?
Agatha sabia de que retrato a rapariga falava. Estava pendurado por cima da lareira era quase em tamanho natural, com uma moldura antiga... Pensando que a rapariga conseguira carregar com o quadro, Agatha olhou para Mary Ellis com o que mais se aproximava do respeito. Porém rapidamente afastou esse tipo de emoção.
Agatha pigarreou.
- A sua obrigação nesta casa é em primeiro lugar para comigo - disse à rapariga. - Veja se a partir de agora não se esquece.
- Sim, minha senhora - disse Mary, em tom mal-humorado.
- Vá, lá, não amue menina. Agradeço-lhe que ande a mudar a mobília. Mas vamos manter as coisas numa perspectiva adequada. Vá lá, dê-me o seu braço. Quero ir ao campo de ténis.
- Ao campo de ténis? - Perguntou Mary incrédula. - O que quer a senhora ir fazer ao campo de ténis, Mrs. Shaw?
- Quero ver em que estado está. Quero voltar a jogar.
- Mas a senhora não pode... - Mary engoliu o resto da frase, quando viu o olhar que Agatha lhe lançava.
- Não posso jogar? - Disse Agatha. - Que disparate, claro que posso fazer tudo. Se posso chegar ao telefone para angariar os votos necessários nesta cidade sem que os eleitores tenham sequer visto os planos... - Deu uma gargalhada. - Também posso fazer tudo o resto.
- Mary Ellis não pediu explicações sobre o assunto da Câmara, como a patroa teria gostado. Agatha estava desejosa, mesmo ávida por contar a alguém
o seu triunfo. Era com Theo que ela gostaria de ter falado, mas nos últimos dias, o neto nem sequer estava onde devia, por isso nem sequer se incomodara em telefonar-lhe para o pontão. Esperava que o que tinha dito fosse o suficiente para que uma pessoa, mesmo com as capacidades limitadas de Mary Ellis quisesse continuar a conversa. Mas não dera resultado. Mary continuava muda.
- Que diabo, menina - disse Agatha - Não tem miolos dentro dessa cabeça? Tem? Não. Ora que me importa, afinal? Dê-me o seu braço e leve-me até lá fora.
Saíram da biblioteca em direcção à porta da rua. Com público à sua disposição, Agatha tratou de se explicar.
Falava dos planos de reordenamento para Balford-le-Nez, disse à companheira. Quando Mary emitiu uns sons guturais para mostrar que tinha compreendido, Agatha continuou. A facilidade com que conseguira convencer Basil Treves no dia anterior, sugerira que poderia fazer o mesmo, se investisse nuns telefonemas para os restantes vereadores.
- Excepto Akram Malik - disse. - Não vale a pena tentar. Além disso, nesta altura deu outra gargalhada - quero que o velho Akram enfrente um fait accompli 1.
- Vai haver uma festa? - Perguntou Mary interessada.
Meu Deus, pensou Agatha aborrecida.
- Não é uma festa sua parva - disse - Um fait, um fait accompli. Não sabe o que quer dizer? Não importa.
Não queria afastar-se do assunto. Treves fora o mais fácil de todos, confiou, pelo que pensava acerca das pessoas d cor. Apanhara-o na noite anterior. Mas os outros não se tinham apressado a tomar o seu partido.
- No entanto, acabei por convencê-los a todos, no fim - disse. - Isto é todos os que eu preciso que votem. Se não tivesse aprendido mais nada com os negócios nestes últimos anos, pelo menos sei que um homem, ou uma mulher, se recusa a investir dinheiro, se esse investimento for muito baixo e ainda por cima dê algum lucro. Os vereadores investem, a cidade melhora, os veraneantes chegam e toda a gente lucra.
Em silêncio, Mary parecia digerir o esquema de Agatha.
- Já vi os planos - disse. - São aqueles que estão naquela estante da biblioteca.
- E em breve - disse Agatha - vai vê-los concretizados. Um centro de lazer, uma rua das lojas reestruturada, hotéis renovados. O Passeio da Marina e a Esplanada dos Príncipes reconstruídos. Espera para ver, Mary e Ellis. Balford- le-Nez vai ser o espectáculo da costa.
- Eu gosto como está - disse Mary. Tinham já saído de casa e seguiam pelo caminho que a ela levava. O sol estava tão quente que Agatha o sentia no chão. Depois olhou para os pés e percebeu que saíra de chinelos, em vez de ter calçado os sapatos, e o calor das pedras do chão atravessava as solas finas. Franziu os olhos ao lembrar-se
há quanto tempo não saía de casa. A luz era quase impossível de suportar.
- Como está? - Agatha puxava pelo braço de Mary Ellis, levando-a para o roseiral, no lado norte da casa. A relva acompanhava um declive
1 Um facto consumado. Em francês no original. (N. da T. )
suave, por trás dos arbustos, e o campo de ténis ficava na base desse declive. Era um campo de barro mandado construir por Lewis para lhe dar de presente, no seu trigésimo quinto aniversário. Antes da trombose jogava três vezes por semana, nunca muito bem, mas sempre com uma firme determinação de ganhar.
- É preciso ter visão, menina. A cidade vai ficar arruinada. As lojas fecham na rua principal, os restaurantes estão vazios, os hotéis que agora existem, têm mais quartos para alugar do que pessoas há na rua. Se ninguém der alento a Balford, dentro de três anos viveremos num cadáver em decomposição. Há potencial nesta cidade, Mary Ellis. Só é preciso é que alguém com visão o entenda.
Conseguiram chegar ao roseiral. Agatha deteve-se. Reparou que estava a respirar com dificuldade... tudo graças à porcaria do derrame, pensava com irritação. Arranjou a desculpa de que queria observar os arbustos para descansar um pouco. Que raio. Quando voltaria a ter forças?
- Bolas! - Explodiu. - Porque não fizeram uma pulverização a estas rosas? Veja bem, Mary. Olhe para estas folhas. Os pulgões estão a comer à minha conta e ninguém faz nada! Tenho de ser eu a ensinar o maldito jardineiro? Quero estas plantas pulverizadas, Mary Ellis, e hoje!
- Sim, minha senhora - disse Mary Ellis. - Vou telefonar a Harry. Ele não se costuma descuidar com as rosas, mas o filho teve uma apendicite há duas semanas e sei que ele está preocupado porque não o trataram bem.
- Vai ter de se preocupar com coisas mais graves do que a apendicite, se deixar os pulgões comerem as minhas rosas.
- O filho tem só dez anos, Mrs. Shaw, e não lhe tiraram toda a porcaria. Harry disse-me que já fez três operações e ainda está todo inchado. Pensam que...
- Mary, tenho ar de quem quer discutir assuntos de natureza pediátrica? Todos temos os nossos problemas. Mas, apesar disso, continuamos a cumprir as nossas responsabilidades. Se Harry não consegue, então vai ser despedido.
Agatha virou as costas às rosas. A bengala ficara enterrada na terra fresca de um canteiro. Tentou libertá-la mas sentiu que não tinha força para tanto.
- Raios me partam! - Puxou com força e quase perdeu o equilíbrio.
Mary segurou-a por um braço - Deixe de me tratar como se eu fosse um bebé. Não preciso dessas coisas. Deus do céu, quando acabará este calor?
- Mrs. Shaw, a senhora está a aborrecer-se - Havia uma cautela na voz de Mary, que se assemelhava ao tom de voz dos criados do século dezoito com medo de serem chicoteados. Ouvi-la era pior do que lutar contra a miserável bengala.
- Não estou a aborrecer-me - disse Agatha entredentes. Deu um puxão final à bengala e soltou-a, mas o esforço dificultou-lhe a respiração.
Porém não deixaria que uma função tão básica como a respiração a derrotasse. Apontou para o relvado que ficava por detrás das roseiras e resolveu-se mais uma vez a avançar.
- Não acha que era melhor descansar? - Perguntou Mary. - Está a ficar um pouco vermelha e...
- De que estava à espera, com este calor? - Perguntou Agatha. - Não preciso de descansar. Quero ver o meu campo de ténis e quero vê-lo já.
Mas caminhar na relva era pior do que andar junto aos canteiros onde pelo menos havia um caminho empedrado. Aqui o solo era irregular e a relva, queimada pelo Sol, escondia as falhas. Agatha tropeçava e endireitava-se, tropeçava e endireitava-se. Afastava-se de Mary e resmungava, sempre que a rapariga, solicita, pronunciava o seu nome.
Diabos levassem o jardim, praguejava em silêncio. Como se pudera esquecer da natureza da relva? Teria anteriormente os movimentos tão ágeis, que nem notara as anomalias perniciosas do solo?
- Se quiser podemos descansar - disse Mary Ellis. - Vou buscar água.
Agatha continuava. Já tinha o destino à vista. Faltavam cerca de trinta metros. Ali estava, como um cobertor de terra, com a rede no seu lugar e os limites marcados no chão a tinta branca à espera do jogo seguinte. O campo estremecia com o calor, e uma ilusão óptica fazia parecer que dele saía fumo.
Uma gota de transpiração escorregou-lhe da testa e entrou-lhe num olho. Depois mais outra. Percebeu que tinha o peito apertado e sentia o corpo como se estivesse apertado num lençol de borracha. Cada movimento era uma luta, enquanto Mary Ellis deslizava, simplesmente, junto dela como uma pena ao vento. Maldita juventude. Maldita saúde. Maldita a ilusão de que a juventude e a saúde lhe davam uma espécie de hegemonia naquela casa.
Agatha sentia a superioridade silenciosa da rapariga e conseguia até ler os seus pensamentos: velha patética, cadela doente. Bom, logo veria. Toda a gente havia de ver. Faria com que os vereadores se curvassem à sua von tade. Instilaria vida nova em Balford-le-Nez. Recuperaria a sua força e redefiniria os objectivos da sua vida.
- Mrs. Shaw... - dizia Mary, em tom aflito. - Não acha que é melhor descansar? Podemos sentar-nos debaixo do limoeiro. Vou buscar-lhe qualquer coisa para beber.
- Que disparate! - Agatha reparou que mal conseguia dizer as palavras. - Quero... ver... o ténis...
- Por favor, Mrs. Shaw. A sua cara está vermelha como um tomate. Tenho medo que...
- Medo de quê? - Agatha tentou rir, mas mais parecia estar a tossir. Porque seria que o campo de ténis parecia estar mais longe do que quando tinham saído de casa? Parecia que estavam a caminhar havia anos e o destino, como uma miragem, não estava mais perto. Como poderia ser? Avançava arrastando a bengala, arrastando a perna e sentia como se estivesse a ser puxada, primeiro para trás e depois para baixo como se tivesse um enorme peso ao pescoço. - Está... a... segurar-me - disse ofegante. - Diabo...
de rapariga. Está a segurar-me, não é verdade?
- Não, Mrs. Shaw, não estou - disse Mary, em voz mais alta e assustada. - Mrs. Shaw nem lhe estou a tocar com a minha mão. Por favor páre.
Vou buscar uma cadeira e uma sombrinha por causa do Sol.
- Que disparate... - sem energia, Agatha sacudiu a rapariga. Mas percebeu que tinha deixado de se mexer. Parecia que era agora a paisagem que se mexia. O campo de ténis ficava lá ao longe, parecendo fundir-se no Wade que, em forma de cavalo verde, ficava para lá do canal de Balford.
Alguma coisa lhe dizia que Mary Ellis estava a falar, mas não percebia
as palavras. Percebeu que a cabeça lhe começara a descair e a tontura que sentira na biblioteca a invadia agora, como uma corrente. Embora quisesse pedir ajuda, ou pelo menos dizer o nome da rapariga, apenas um som estranho lhe saía dos lábios. O braço e a perna tornaram-se pesados, como se fossem âncoras adormecidas, que não conseguia levantar do chão.
Ouviu um grito vindo de longe.
Osol escaldava.
O céu ficara branco.
- Aggie! - Exclamou Lewis
- Mãe? - disse Lawrence.
A visão reduziu-se-lhe a um pequeno ponto antes de cair.
Trevor Ruddock conseguira encher a sala de interrogatórios com tanto fumo que era desnecessário Barbara acender um cigarro. Quando veio ter com ele viu-o através de uma neblina cinzenta, sentado à mesa preta de metal, tendo aos pés um monte de pontas de cigarro apagadas. Entregara-lhe um cinzeiro, mas aparentemente apenas o chão cheio de cinza e beatas o poderiam ajudar a prestar depoimento.
- Já teve tempo para pensar? - Perguntou-lhe Barbara.
- Tenho de fazer um telefonema - disse ele.
- Quer um advogado? É um estranho pedido da parte de quem afirma não ter nada a ver com o assassinato de Querashi.
- Quero telefonar - disse.
- Está bem. Mas na minha presença, claro.
- Não tenho de...
- Errado. Tem. - De modo algum tencionava dar a Trevor a mínima oportunidade de fabricar um álibi. Como sem dúvida já o tentara com Rachel Winfield, a sua honestidade deixava muito a desejar. Trevor zangou-se.
- Admiti que tinha fanado coisas da fábrica, não admiti? Disse que Querashi me tinha despedido. Disse-lhe tudo o que sabia do gajo. Se o tivesse morto, acha que o faria?
- Já pensei nisso tudo - disse Barbara em tom agradável. Sentou-se com ele à mesa. A sala não tinha ventilação, por isso o ar estava pesado, e sentia uma espécie de sauna entrar-lhe nos pulmões. O fumo dos cigarros que fumara não ajudava e não havia vantagem em não se sentar ao pé dele.
- Esta manhã estive a falar com Rachel.
- Sei muito bem - foi a resposta. - Se me foi buscar foi porque falou com ela. Ela deve ter-lhe dito que nos separámos às dez. Muito bem, foi assim. Separámo-nos às dez, agora já sabe.
- Claro que já sei. Mas ela disse-me mais outra coisa, que eu não consegui perceber, visto que você se recusou a dizer-me o que foi fazer na sexta-feira à noite, quando a deixou. Se eu juntar o que ela me contou, com o que você me contou de Querashi e misturar os dois factos com a sua actividade secreta de sexta-feira, só há uma possibilidade. E é dela que temos de falar os dois.
- E o que é? - Parecia nervoso. Mordeu o indicador e cuspiu a pele.
- Teve alguma vez relações sexuais com Rachel?
Ele ergueu o queixo, em parte para a desafiar, em parte por estar embaraçado.
- E se tiver tido? Ela disse-lhe que não queria, ou isso? Porque, se disse, a minha memória diz-me o contrário.
- Responda só, Trevor. Alguma vez teve relações sexuais com Rachel?
- Muitas vezes - Sorriu. - Quando lhe telefono e lhe digo o dia e a hora, ela vem logo a correr. E quando tém outras coisas para fazer, muda os planos. Tem um fraquinho por mim. - Franziu o sítio onde estariam as sobrancelhas, se não as tivesse rapado. - Ela disse-lhe o contrário?
- Estou a falar de relações sexuais, sem roupa - explicou Barbara, passando por cima das outras afirmações. - Ou, para melhor dizer, relações sexuais sem roupa interior.
Ele mordeu mais uma vez o dedo e olhou para ela.
- O que é que quer saber?
- Acho que sabe. Alguma vez teve relações vaginais com Rachel?
- Há montes de maneiras. Não preciso de fazer as coisas como os velhos.
- Claro. Mas não me respondeu, pois não? O que eu quero saber é se penetrou a vagina de Rachel Winfield. De pé, sentado, ajoelhado ou numa trotinete. Não estou interessada nos pormenores. Só no acto em si.
- Fizemos, claro. Aquilo que, você disse. O acto. Ela fez o dela e eu fiz o meu.
- Com o seu pénis dentro dela?
Ele pegou no maço de cigarros.
- Mas que merda é esta? Já lhe disse que fizemos. Ela disse-lhe que eu a tinha violado?
- Não. Ela disse uma coisa ainda mais estranha. Disse-me que o sexo consigo é uma rua de sentido único. Você não fez nada, mas deixou que Rachel Winfield tocasse a sua flauta, Trevor, não foi?
- Espere lá aí! - Tinha as orelhas vermelhas. Barbara reparou que quando o sangue lhe latejava na jugular, a aranha que tinha tatuada no pescoço parecia ganhar vida.
- Você abria as calças sempre que estavam juntos? - Continuou Barbara. - Mas Rachel não recebia nada em troca. Nem sequer uma festinha lá em baixo, se é que me está a perceber.
Ele não o negou, mas os dedos apertaram o maço de cigarros, amachucando-o.
- É isto que eu imagino - continuou ela. - Ou você é um idiota completo no que diz respeito às mulheres, pensando que deixar que uma gaja lhe ponha a boca entre as pernas é o mesmo que a pôr no caminho do céu, ou não gosta de fêmeas, o que explicaria a razão de se limitar a que lhe façam sexo oral. Como é Trevor? É um idiota ou um maricas disfarçado?
- Não sou.
- Não é qual?
- Nem uma coisa nem outra! Gosto de raparigas e elas gostam de mim. Se Rachel lhe disser o contrário...
- Não tenho muito a certeza. - disse Barbara.
- Posso dar-lhe o nome de raparigas - declarou furioso. - Dúzias e dúzias de raparigas. Centenas. A primeira vez tinha dez anos e digo-lhe que ela gostou muito. Sim, não fui mais longe com Rachel Winfield. Nunca o fiz e nunca o farei. E o que é que tem? Ela é tão feia, que só há-de ir para a cama com um cego. E eu não o sou, se por acaso ainda não deu por isso.
- Meteu o dedo no maço e tirou um cigarro. Parecia ser o último, pois fez uma bola com o maço vazio e atirou-o para um canto da sala.
- Bom, está bem - disse Barbara. - Já sei que a estrada da sua vida está cheia de sexo e de mulheres abandonadas, que lhe fazem um sorriso de orelha-a-orelha sempre que o vêem. Pelo menos em sonhos. Mas não se
trata de sonhos, Trevor. Trata-se da realidade, e a realidade é um assassínio. Só tenho a sua palavra de que viu Haytham Querashi no engate de homens no mercado de Clacton, e parece-me que há boas razões para pensar que o engate era você.
- Isso é uma mentira nojenta! - Pôs-se de pé tão depressa, que a cadeira caiu para trás.
- Ai é? - Perguntou Barbara, com calma. - Sente-se, por favor. Ou chamo um agente para me ajudar. - Esperou até que ele endireitasse a cadeira e se sentasse. Tinha atirado o cigarro para cima da mesa e voltou a pegar-lhe, acendendo um fósforo com a unha suja. - Está a ver, não está? - Perguntou Barbara. - Trabalhavam juntos na fábrica. Ele despediu-o com a desculpa do roubo de uns frascos de mostarda; chutney e compota. Mas talvez não tenha sido por isso que ele o despediu. Talvez o tenha feito porque se ia casar com Sahlah Malik e não o queria por ali, recordando-lhe quem era.
- Quero o meu telefonema - disse Trevor. - Não tenho mais nada a dizer-lhe. - Está a ver que as coisas estão negras, não é verdade?Barbara apagou o seu cigarro, tendo o cuidado de usar o cinzeiro e não o atirar para o chão. - A declaração da homossexualidade de Querashi, juntamente com o felatio e mais nada com Rachel...
- Já expliquei tudo isso!
-... e a morte de Querashi numa altura em que você não tem um álibi. Então diga-me, Trevor, será que está mais inclinado a contar-me o que andou a fazer na sexta-feira à noite? Se, claro, não matou Querashi.
Ele fechou a boca, olhando para ela, em ar de desafio.
- Muito bem - disse ela. - Seja como quiser. Mas veja lá se não está a ser idiota.
Deixou-o, para que se acalmasse, e foi procurar Emily. Ouviu-a antes de a ver. A voz dela, juntamente com uma voz masculina cheia de animosidade, vinham do andar de baixo. Barbara espreitou pelo corrimão e viu Emily discutindo frente-a-frente com Muhannad Malik. Taymullah Azhar estava mesmo atrás do primo
- Não me explique quais são os direitos - dizia Emily, irritada, enquanto Barbara descia a escada. - Eu conheço a lei. Mr. Kumhar está detido por uma ofensa que dá prisão. Estou no direito de me assegurar que nada interfira com potenciais provas ou ponha alguém em risco.
- Quem está em risco é Mr. Kumhar. - Muhannad tinha um rosto inflexível. - E se se recusar a que nós o vejamos, só há uma razão.
- Pode explicar-se?
- Quero verificar as suas condições físicas. E não finja que nunca usou a expressão resistência à polícia" para justificar que um tipo apanhe pancada enquanto está na esquadra.
- Acho - dizia Emily asperamente, quando Barbara chegou ao seu lado - que tem andado a ver muita televisão, Mr. Malik. Não é meu hábito espancar suspeitos.
- Então não tem objecções a que o possamos ver.
Quando Emily lhe ia oferecer réplica, Azhar interpôs-se.
- A Lei de Evidência Policial e Criminal também indica que o suspeito tem direito a que um amigo, um parente ou outra pessoa que conheça seja imediatamente avisado de que está sob custódia. Pode dizer-nos o nome da pessoa que foi informada, inspector Barlow?
Falou sem sequer olhar na direcção de Barbara, mas mesmo assim ela teve a certeza que ele percebera o seu estremecimento. Os direitos eram muito bonitos, mas quando ultrapassavam a capacidade da polícia os respeitar, até os bons oficiais recusavam cumprir a lei à risca. Azhar tinha a certeza que era o que se passara. Barbara esperou para ver se Emily tirava do chapéu um amigo ou parente de Fahd Kumhar.
Ela nem se incomodou.
- Mr. Kumhar não identificou ninguém que quisesse avisar.
- Ele sabe que tem esse direito? - Perguntou Azhar, com astúcia.
- Mr. Azhar, ainda não tivemos oportunidade de falar com ele o tempo suficiente para lhe ler os seus direitos.
- É o costume - fez notar Muhannad. - Isolou-o, porque é a única maneira de ele ficar tão confuso que não se vai recusar a cooperar com ela.
Azhar não discordou da análise da situação feita pelo primo. Mas também não deixou que esta o inflamasse.
- Mr. Kumhar nasceu neste país, inspector? - Perguntou calmamente. Barbara sabia que nesse momento Emily estaria provavelmente a amaldiçoar a hora em que Kumhar tivera aquela conversa incompreensível a respeito de papéis. Dificilmente poderia negar ao homem o estatuto de imigrante, principalmente quando a lei era específica acerca dos direitos de quem tinha esse estatuto. Se Emily prevaricasse agora, mesmo que fosse só para descobrir que Fahd Kumhar estava envolvido no assassínio de Haytham Querashi, corria o risco de, mais tarde, ver o caso virado do avesso no tribunal.
- Nesta altura - disse ela - gostaríamos de interrogar Mr. Kumhar sobre a relação que tinha com Haytham Querashi. Trouxêmo-lo para a esquadra porque ele nos pareceu relutante em responder às perguntas na sua residência.
- Deixe-se de evitar o problema - disse Muhannad. - Kumhar é ou não cidadão inglês?
- Não parece ser - respondeu Emily, mas falou para Azhar e não para Muhannad.
- Ah - Azhar parecia até certo ponto confortado por esta afirmação. Barbara percebeu porquê, quando ele fez uma outra pergunta.
- Que tal fala ele inglês?
- Não lhe fiz um teste.
- Mas não é muito bem, pois não?
" - Que merda, Azhar. Se o inglês dele...
Azhar interrompeu a afirmação irritada do primo com o simples gesto , de erguer a mão.
- Então inspector - disse. - Tenho de lhe pedir acesso imediato a Mr. Kumhar. Não vou insultar a sua inteligência ou os seus conhecimentos, da lei fingindo que a senhora não sabe que os únicos suspeitos que têm direito indiscriminado a visitas são os estrangeiros.
Ganhou, pensou Barbara sem puder evitar sentir admiração pelo paquistanês. O trabalho de Azhar podia ser ensinar microbiologia na universidade, mas não se descuidava quando se tratava de proteger os seus compatriotas na arena dos cavaleiros brancos. Subitamente, percebeu que não precisava de se ter preocupado com a atrapalhação do homem quando viera para Balford-le- Nez. Via-se perfeitamente que tinha a situação, pelo menos nos seus contactos com a polícia, completa e satisfatoriamente sob controle.
Por seu lado, Muhannad tinha um ar triunfante com esta reviravolta dos acontecimentos. Com delicadeza intencional disse:
- Se nos mostrar o caminho, inspector Barlow...? Gostaríamos de dizer à nossa gente que Mr. Kumhar está bem. É compreensível que se sintam ansiosos por saber se está a ser bem tratado enquanto se encontrar nas vossas mãos.
Não havia muito espaço para manobras políticas. A mensagem era suficientemente clara. Muhannad Malik poderia mobilizar o seu povo para uma outra marcha, manifestação ou distúrbios. Também os poderia mobilizar para se manterem em paz. A escolha e a responsabilidade seríam do inspector Emily Barlow.
Barbara viu que o inspector ficara com os cantos dos olhos rígidos. Era a reacção mais evidente que Emily ia mostrar aos dois homens.
- Venham comigo - disse.
Sentia-se como se estivesse apertada por ferros. Não eram ferros que a prendessem nos pulsos e nos tornozelos, mas ferros que a encerravam da cabeça aos pés.
Lewis falava-lhe dentro da cabeça. Falava dos filhos, da empresa, do seu amor infernal por aquele Morgan antigo que nunca funcionara bem, gastasse ele o dinheiro que gastasse. Depois Lawrence substitui-o. Mas tudo o que dizia era, amo-a, amo-a, mãe, porque não compreende que eu a amo e que queremos viver juntos?. E depois até aquela cabra sueca falou, com uma conversa de psicóloga que deveria ter aprendido enquanto jogava vólei numa praia da Califórnia: O amor que Lawrence tem por mim não pode diminuir o que ele sente por si, Mrs. Shaw. Percebe, não é verdade? E não quer a felicidade dele? E a seguir veio Stephen, dizendo, a vida é minha, avó. Não a pode viver por mim. Se não me aceita como sou, então concordo consigo: é melhor ir-me embora.
Todos eles falavam sem parar. Precisava de ter com que apagasse o cérebro. Naquele momento não tinha dores, apenas as vozes sem fim, insistentes.
Apercebeu-se de que queria discutir com elas, de lhes dar ordens, de as submeter à sua vontade. Mas só conseguia ouvi-las, prisioneira da sua inoportunidade, da sua irracionalidade e do seu ruído constante.
Queria levar as mãos à cabeça. Queria combatê-las dentro de si. Mas os ferros mantinham-lhe o corpo na mesma posição e cada membro tinha um peso impossível de levantar.
Teve consciência da luz. Nesta altura as vozes diminuíram. Porém foram substituídas por outras vozes. Agatha tentava perceber as palavras.
Ao princípio pareciam arrastadas:
- Não é muito diferente do que acontece ao coração - dizia alguém a explicar. Mas é um ataque no cérebro.
- Ataque no cérebro? O que quereria aquilo dizer? - Agatha gostaria muito de saber. Onde estava? Porque estava deitada tão quieta? Podia ter pensado que tinha morrido e estava a ter uma experiência extracorporal, mas estava firme e definitivamente dentro do seu corpo, muito consciente da sua presença.
- Oh meu Deus e está muito mal?
Agora era a voz de Theo, e Agatha comoveu-se ao ouvi-la. Theo, pensou. Theo estava ali. Theo estava com ela, no quarto, ali perto. As coisas não podiam ser assim tão más.
Ficara tão aliviada por ter ouvido a sua voz, que apenas apanhou partes de palavras durante alguns minutos. Trombose, ouviu. Depósito de colesterol.
Oclusão da artéria. E hemipárese do lado direito.
Então percebeu. E o que sentiu naquele momento foi um desespero tão profundo, que aumentou dentro dela como se fosse um balão, na forma do grito que não conseguia emitir, que ameaçava matá-la e que o faria, se fosse possível, pensou com dificuldade. Oh, meu Deus, e podia acontecer.
Lewis tinha-a chamado. Lawrence chamara-a. Mas, teimosa como sempre, não se tinha juntado a eles. Tinha ainda coisas para fazer, sonhos para realizar e problemas para resolver, antes de deixar de viver. Então, quando a trombose a tinha atacado e o coágulo lhe assaltara o cérebro, roubando-lhe o oxigénio, fosse por que tempo fosse, o corpo e o espírito de Agatha Shaw lutaram ferozmente. E não morrera.
Agora as palavras estavam a tornar-se mais claras. Na luz que enchera o seu campo de visão começava a distinguir formas. Destas formas, as pessoas emergiam, ao princípio indistintas umas das outras.
- A artéria cerebral média do lado esquerdo do cérebro foi mais uma vez afectada - dizia uma voz de homem, que ela agora reconhecia. Era o Dr. Fairclough, que a tratara da outra vez. - Pode ver pela paralisia dos músculos faciais. Enfermeira, use outra vez a agulha, por favor. Vê?
Não há reacção. Se voltarmos a picar-lhe o braço, teremos os mesmos resultados. Inclinou-se sobre a cama. Agora Agatha via-o claramente. Tinha um nariz grande, com poros do tamanho de cabeças de alfinetes. Usava óculos com as lentes manchadas e oleosas. Como conseguiria ver alguma coisa através delas?
- Agatha? - Chamou. - Conhece-me, Agatha? Sabe o que lhe aconteceu?
Que homem tão estúpido, pensou Agatha. Como poderia ela não saber o que lhe tinha acontecido? Pestanejou com grande esforço. Aquela acção tão simples cansou-a.
- Sim. Muito bem - disse o Dr. Fairclough. - Teve outra trombose, minha amiga. Mas já está melhor. E Theo está aqui.
- Avó - parecia tão encorajador, como se ela fosse um cãozinho abandonado e ele a tentasse fazer sair do esconderijo. Estava muito longe, afastado, para que ela o pudesse ver nitidamente, mas bastava a sombra dele para se sentir mais confortada, o que era sinal que tudo poderia voltar a melhorar.
- Porque diabo quis ir ao campo de ténis? - Perguntou Theo. Valha-me Deus, avó, se Mary não estivesse consigo... Nem sequer chamou a ambulância. Pegou em si e trouxe-a para cá. O Dr. Fairclough acha que foi isso que lhe salvou a vida.
Quem diria que aquela parva tinha tanta presença de espírito? Pensava Agatha. Se bem se lembrava, as únicas coisas que Mary Ellis fazia numa emergência era gaguejar, piscar os olhos e fazer pender o nariz sobre o lábio superior.
- Ela não reage - disse Theo, e Agatha percebeu que ele se tinha voltado para o médico. - Será que me ouve, ao menos?
- Agatha - disse o médico. - Mostre a Theo que consegue ouvir o que ele diz.
Lentamente, e mais uma vez com grande esforço, Agatha pestanejou. Parecia que o gesto lhe levava toda a energia e sentia a tensão do movimento na garganta.
- O que estamos aqui a ver - disse o médico, com aquela maldita voz de quem transmite informações, que sempre causara comichões a Agatha - chama-se afasia expressiva. O coágulo impede que o sangue, e portanto o oxigénio, passe para o lado esquerdo do cérebro. Como essa zona é responsável pela realidade racional orientada para a palavra, a fala foi afectada.
- Mas ela está pior que da última vez. Nessa altura dizia algumas palavras. Porque é que agora não diz nada? Avó, consegue dizer o meu nome? Consegue dizer o seu?
Agatha fez um esforço para abrir a boca. Mas o único som que foi capaz de emitir soou-lhe como Agh. Tentou uma segunda vez, e depois a terceira. Sentiu que aquele grito, como um balão tentava mais uma vez sair dos seus pulmões.
- A trombose desta vez foi mais grave - dizia o Dr. Fairclough. Colocou a mão sobre o ombro esquerdo de Agatha. Ela sentiu que ele o apertava amigavelmente. - Agatha, não se esforce. Descanse agora. Está em excelentes mãos. E Theo está aqui, se precisar dele.
Afastaram-se da cama e saíram do seu campo de visão, mas, mesmo assim, ainda ouvia algumas palavras ditas em voz baixa.
-... não há nenhuma poção mágica, infelizmente - dizia o médico... vai precisar de uma extensa reabilitação.
-... terapia? - isto vinha de Theo.
- Física e da fala.
-... hospital?
Agatha esforçava-se para ouvir. Intuitivamente sabia que o neto perguntava porque era exactamente aquilo que ela estava desesperada para saber: qual era o prognóstico para o seu caso? Deveria esperar ficar no hospital, imobilizada numa cama com grades como uma boneca de trapos, até ao dia da sua morte?
- Realmente é positivo - dissera o Dr. Fairclough, voltando para a sua cabeceira, para partilhar com ela o resto das informações. Deu-lhe umas palmadinhas no ombro, depois tocou-lhe com os dedos na testa, como se a estivesse a abençoar.
Médicos, pensou ela. Quando não pensavam que eram o Papa é porque já se consideravam o próprio Deus.
- Agatha, a paralisia que sente, vai melhorar com o tempo e com a fisioterapia. A afasia... bem, readquirir a fala é mais difícil de prever. Mas, com cautela, com cuidados de enfermagem e, principalmente, com vontade de recuperar, ainda pode viver vários anos. - O médico voltou-se então para Theo. - Porém tem de querer viver. Tem de ter uma razão para viver.
Lá isso tinha, pensou Agatha. Que se lixasse, tinha mesmo. Havia de recriar aquela cidade de acordo com a sua concepção do que deveria ser uma estância balnear. Trataria de tudo da sua cama, do caixão ou até da cova. O nome Agatha Shaw significaria alguma coisa para além de um casamento abortado, que terminara cedo de mais, de uma maternidade falhada, com filhos que ou se tinham espalhado pelo globo ou tinham encontrado uma morte prematura e uma vida definida pelas pessoas que tinha perdido. Assim tinha o desejo de viver e aguentar tudo. Desejo de sobra.
O médico continuava.
- Ela tem muita sorte em dois aspectos e neles podemos basear as nossas esperanças de recuperação. Está em excelentes condições físicas: o coração, os pulmões, a massa óssea, os músculos. Tinha o corpo de uma mulher de cinquenta anos e, acredite-me, que agora lhe vai servir.
- Foi sempre muito activa - disse Theo. - Ténis, vela, equitação. Até à primeira trombose, praticou tudo isso.
- Hmm. Sim. E só lhe fez bem. Mas há mais coisas na vida do que manter o corpo em forma. O coração e a alma também têm de estar em condições. E isso consegue-o através de si. Não está sozinha no mundo. Tem uma família e a família dá às pessoas razões para continuar. - O médico
ria ao fazer as últimas perguntas, tão certo estava das respostas. - Olhe, não está a pensar ir para algum lado, agora, Theo? Não planeou nenhuma
expedição a África? Nenhuma viagem a Marte?
Houve um silêncio. Nele, Agatha ouvia o som dos monitores, aos quais estava ligada. Borbulhavam e assobiavam, longe da sua vista, atrás da sua cabeça.
Gostaria de pedir a Theo que se mantivesse no seu campo de visão. Desejava dizer-lhe quanto o amava. Sabia que o amor era uma idiotice e uma estupidez. Era um disparate e uma ilusão, que apenas causava feridas e tristeza. Era, de facto, uma palavra que nunca usara abertamente na vida. Mas agora tê-la-ia dito.
Sentia saudades dele, de o tocar e de lhe pegar. Sentia-o nos braços, até às pontas dos dedos. Sempre pensara que o tocar servia para disciplinar. Porque não percebera que também servia para criar laços?
O médico ria outra vez, mas desta vez o riso era forçado.
- Valha-me Deus, não se ponha assim, Theo. Você não é especialista neste campo nem vai ter de reabilitar a sua avó sozinho. É a sua presença na vida dela, que é importante. É a continuidade. Pode dar-lhe isso.
Theo aproximou-se o suficiente para que ela o visse. Olhou-a nos olhos, os dele estavam tristes. De facto, tinham a mesma expressão do dia em que ela chegara àquele lar que cheirava a urina para onde ele e Stephen tinham sido levados, imediatamente a seguir à morte dos pais. Ela dissera-lhes:
- Vamos embora, meninos - E como não estendera a mão a nenhum dos dois, Stephen partira à sua frente. Mas Theo estendera a mão e agarrara-se-lhe ao cós da saia.
- Vou ficar com ela - disse Theo. - Não vou a lado nenhum.
COMO AGENTE DE LIGAÇÃO, Barbara estabeleceu um compromisso que todos os presentes consideraram aceitável. Emily detivera a procissão fora da sala dos interrogatórios e aí informara os dois homens que o acesso
a Fahd Kumhar se limitaria apenas a um contacto visual, poderiam verificar as suas condições físicas, mas não lhe poderiam perguntar nada. Estas regras básicas provocaram imediatamente uma discussão entre o inspector e os paquistaneses, com Muhannad a querer retirar ao primo o controle das negociações.
Depois de ter ouvido ameaças de distúrbios iminentes na comunidade, Barbara sugeriu que Taymullah Azhar, pessoa de fora e sobre quem não recaía a mínima suspeita, agisse como intérprete. Fahd Kumhar ouviria os seus direitos em inglês, Azhar traduziria tudo o que ele não entendesse e Emily gravaria toda a comunicação, para ser verificada pelo Professor Siddiqi, em Londres. Isto parecia cobrir todas as possibilidades do que poderia acontecer na sala. Todos concordaram que era uma alternativa mais viável do que uma infindável altercação no corredor. Assim, o compromisso foi aceite, como todos os compromissos: todos concordaram, mas ninguém gostou.
Emily empurrou a pesada porta de carvalho com o ombro e fê-los entrar numa sala pequena. Fahd Kumhar estava sentado a um canto, o mais longe possível do agente que o acompanhava e que, estranhamente, usava calções e uma camisa havaiana. Estava encolhido na cadeira, como se fosse um coelho perseguido por cães de caça, e quando viu a identidade dos recém'r -chegados, o seu olhar saltou de Emily para Barbara e depois para Azhar e Muhannad. Parecia que o seu corpo reagia, sem haver, da sua parte, qualquer intenção de o fazer. Com os pés, empurrou a cadeira ainda mais para o canto. Ou estava assustado ou queria fugir, pensou Barbara.
Conseguia cheirar o seu pânico incipiente. O odor ácido a suor masculino, tornavam o ar irrespirável. Só gostaria de saber como iam os asiáticos interpretar o estado de espírito do homem.
Não se interrogou durante muito tempo. Azhar atravessou a sala e colocou-se em frente da cadeira. Quando Emily ligou o gravador disse.
- Vou apresentar-me e apresentar o meu primo - a seguir falou em urdu.
Kumhar desviou o olhar de Azhar para Muhannad e depois outra vez para Azhar, o que indicou que as apresentações tinham sido feitas.
Quando Kumhar se queixou, Azhar estendeu o braço e colocou a mão no braço que o outro ainda mantinha diante do peito, num gesto de defesa.
- já lhe disse que tinha vindo de Londres para o ajudar - disse Azhar. Continuou na sua língua-nativa, repetindo em inglês as perguntas que fazia e as respostas de Kumhar.
- Fizeram-lhe mal? - Perguntou. - A polícia tratou-o com violência, Mr. Kumhar?
Emily interpôs-se imediatamente:
- O senhor sabe que esses não eram os nossos parâmetros, Mr. Azhar. Muhannad lançou-lhe um olhar de desprezo.
- Não podemos dizer-lhe qual são os seus direitos enquanto não soubermos se eles já foram violados - disse. - Olha para ele Azhar. Parece feito de gelatina. Vês nódoas negras? Olha para os pulsos e para o pescoço.
O agente que se mantivera na sala depois da entrada dos outros, levantou-se ao ouvir isto.
- Ele esteve muito sossegado até que esta gente aqui entrou.
- Veja lá quem é esta gente - ripostou Muhannad. - Nós não entrámos aqui sem o inspector Barlow, não é verdade?
Ao ouvir isto, Kumhar gemeu involuntariamente. Disse rapidamente umas palavras que não pareciam dirigir-se a nenhum deles.
- Que se passa? - Perguntou Emily.
Azhar convenceu o homem a afastar do peito um dos braços. Ele desabotoou os punhos da camisa branca e examinou-lhe os pulsos dizendo:
- Ele disse: Proteja-me. Não quero morrer.
- Diz-lhe que eu trato do assunto - disse Muhannad. - Diz-lhe...
- Alto aí - disse Barbara zangada. - Fizemos um acordo, Mr. Malik. Simultaneamente Emily irritou-se:
- Já chega. Fora daqui, os dois. Já.
- Primo - disse Azhar num tom conciliador. Falou para Kumhar, explicando a Emily e a Barbara que o estava a tentar acalmar, dizendo-lhe que nada tinha a temer da parte da polícia e que a comunidade asiática garantiria a sua segurança.
- É muito simpático da sua parte - disse Emily azeda. - Mas já passaram das marcas. Quero-os fora daqui. Agente, dê-me uma ajuda... À porta, o agente levantou-se. Era enorme. Ao vê-lo, Barbara pensou se parte do medo de Kumhar não teria a ver com o facto de estar encerrado
com aquele homem, do tamanho de um gorila das montanhas.
- Inspector - disse Azhar. - Peço desculpa, por mim e pelo meu primo. Mas como vê, Mr. Kumhar está em pânico e creio que será vantajoso para todos fazer com que ele perceba quais são os seus direitos, perante a lei. Mesmo que ele faça um depoimento, temo que, no seu actual estado, possa ser desacreditado por ter sido feito em condições de tensão extrema.
- Eu corro o risco - disse Emily, mostrando-lhe com o seu tom de voz, que não acreditava naquela preocupação.
Mas Azhar tinha razão. Barbara procurou sair do impasse, servindo ao mesmo tempo os interesses da polícia em manter a paz na comunidade e evitando que fosse quem fosse ficasse envergonhado. Pensou que a melhor abordagem seria afastar Muhannad do caminho.
- Inspector? - Disse. - Posso dar-lhe uma palavrinha...? E quando Emily foi ter com ela ao pé da porta, sem tirar os olhos dos paquistaneses, Barbara murmurou: - Seja como for, não vamos conseguir nada do fulano no estado em que está. Ou mandamos vir o Professor Siddiqi para o acalmar e lhe dizer quais são os seus direitos legais, ou deixamos que Azhar... Mr. Azhar... o faça, na condição de Muhannad calar aquela boca. Se preferirmos a primeira alternativa, vamos secar à espera que o professor chegue, o que vai levar mais de duas horas. Entretanto, Muhannad vai falar ao seu povo do estado de espírito de Mr. Kumhar. Se formos pela segunda alternativa, amansamos a comunidade muçulmana e avançamos com a nossa causa.
Franzindo as sobrancelhas, Emily cruzou os braços.
- Que raio. Detesto ter de ceder àquele sacana - disse entredentes:
- Estamos a servir os nossos próprios interesses - disse Barbara. Cedemos aparentemente.
Barbara sabia que tinha razão. Mas também sabia que a antipatia do inspector pelo paquistanês, juntamente com tudo o que Muhannad Malik fazia para a fomentar, a poderiam levar a ver as coisas de maneira diferente. Emily estava numa posição difícil. Não podia mostrar fraqueza nem arriscar-se a atear uma situação, já de si inflamada.
Finalmente o inspector respirou fundo e, quando falou, parecia aborrecida com todo o procedimento.
- Se me garante o silêncio do seu primo durante o resto da reunião, Mr. Azhar, pode então informar Mr. Kumhar dos seus direitos.
Azhar anuiu.
- Primo? - Perguntou a Muhannad.
Muhannad acenou, em concordância. Mas colocou-se à vista do assustado asiático, de pernas abertas e braços cruzados, sólido como um guarda.
Por seu lado, Fahd Kumhar não percebera nada da discussão incendiada entre a polícia e os seus irmãos asiáticos. Continuava na sua posição de coelho e parecia não saber para onde haveria de olhar. Olhava para toda a gente com uma velocidade que sugeria que as palavras de Azhar, calmas ou não,
não o sossegavam. Como Muhannad cumpriu a sua parte do contrato, embora com pouca
elegância, Azhar conseguiu comunicar a Kumhar as informações essenciais.
Percebia que estava detido para interrogatório acerca da morte de Haytham Querashi?
Percebia, percebia. Mas nada tinha a ver com aquela morte, nada, nem sequer conhecia Mr. Querashi.
Percebia que tinha o direito de ter um advogado consigo enquanto estava a ser interrogado pela polícia?
Ele não conhecia nenhum advogado, tinha os seus papéis em ordem e tentara mostrá-los à polícia. Nunca conhecera Mr. Querashi.
Queria que lha arranjassem um advogado?
Tinha a mulher no Paquistão, tinha dois filhos que precisavam dele. Precisavam do dinheiro para...
- Pergunte-lhe porque foi que Haytham Querashi lhe passou um cheque de quatrocentas libras, se os dois nunca se encontraram - disse Emily.
Barbara lançou-lhe um olhar surpreendido. Não esperava que o inspector jogasse uma das cartas na presença dos paquistaneses. Viu que Muhannad, reagindo às palavras de Emily semicerrava os olhos quando, em silêncio, tomou conhecimento desta informação, antes de se voltar para o homem sentado na cadeira.
Mas a resposta de Kumhar foi exactamente a mesma. Não conhecia Mr. Querashi. Devia ser um engano, talvez houvesse outro Kumhar. Era um nome muito vulgar.
- Aqui não - foi a resposta de Emily. - Termine, Mr. Azhar. É claro que Mr. Kumhar precisa de algum tempo para pensar na sua situação.
Mas alguma coisa em toda a conversa de Kumhar chamara a atenção de Barbara.
- Ele continua a falar dos papéis - disse. - Pergunte-lhe se ele tem alguma coisa a ver com uma agência chamada World Wide Tours, aqui ou no Paquistão. Tratam de assuntos de imigração.
Se Azhar reconheceu o nome por causa dos telefonemas que fizera para o Paquistão a seu pedido, disso não deu sinais. Agiu apenas como tradutor, para o facto de Kumhar não saber nada da World Wide Tours, tal como não sabia de Haytham Querashi.
Assim que Azhar completara o processo de informar Kumhar dos seus direitos legais, levantou-se e afastou-se da cadeira. Mas mesmo isto não fez com que o jovem se descontraísse. Kumhar voltara à sua posição original, com os punhos fechados debaixo do queixo. O rosto escorria suor. A camisa fina colava-se-lhe ao corpo esquelético. Barbara reparou que não usava peúgas por baixo das calças pretas e, onde o pé se juntava com o sapato a pele parecia irritada. Azhar estudou-o durante bastante tempo, antes de se voltar para Barbara e Emily.
- Era melhor que um médico o examinasse - disse. - Neste momento é perfeitamente incapaz de tomar qualquer decisão a respeito da sua representação legal.
- Muito obrigado - disse Emily num tom extremamente delicado. O senhor já registou o facto de que ele não tem nódoas negras. Já viu que tem aqui alguém que evita que lhe aconteça algum mal. E sabe agora que ele está plenamente consciente dos seus direitos...
- Não o saberemos, até que os reivindique - interrompeu Muhannad.
-... O sargento Havers pode actualizá-los a respeito da investigação e depois podem retirar-se. - Continuou Emily, como se não tivesse ouvido Muhannad. Voltou-se para a porta que o agente abriu para ela passar.
- Um momento inspector - disse Azhar, calmamente. - Se não tem acusações a fazer a este homem apenas o pode manter sob custódia durante vinte e quatro horas. Gostaria que ele o soubesse.
- Diga-lhe - disse Emily.
Azhar assim fez. Kumhar não pareceu aliviado com a novidade. De facto não parecia ter um ar diferente do que quando tinham entrado na sala.
- Diz-lhe também - disse Muhannad - que alguém da Jum'a o há-de vir buscar à esquadra e levá-lo a casa ao fim das vinte e quatro horas. E disse com um olhar significativo para os elementos da polícia - que é melhor que estes agentes tenham uma boa razão para o manter aqui, se não for solto a tempo.
Azhar olhou para Emily, como se esperasse pela sua reacção ou que ela lhe desse autorização para passar as informações. Emily fez um aceno rápido.
Ouviram a palavra Jum'a entre as outras proferidas por Azhar.
Lá fora, no corredor, Emily dirigiu os seus comentários finais a Muhannad Malik.
- Espero que informe todas as partes interessadas do bem estar de Mr. Kumhar - disse.
A implicação era óbvia: fizera a sua parte e esperava que ele cumprisse o que prometera.
Tendo dito isto, deixou-os na companhia de Barbara.
Quando Emily subiu ao primeiro andar, irritada por ter deixado que os dois paquistaneses se mostrassem superiores no encontro com Fahd Kumhar, disseram-lhe que o superintendente Ferguson a esperava ao telefone. Fora informada por Belinda Warner quando ia entrar para a casa-de-banho.
- Não estou disponível - respondeu.
- Já é a quarta vez que telefona, desde as duas da tarde, inspector informou-a Belinda, com uma inflexão de voz que indicava uma simpatia fraternal.
- Ah sim? Bom, então aquele botão para repetir a chamada deveria ser retirado desse maldito telefone. Falo com ele quando puder, agente.
- Então o que lhe digo? Ele sabe que cá está. A recepção disse-lhe. A lealdade da recepção era maravilhosa, pensou Emily.
- Diga-lhe que tenho um suspeito e que ou o interrogo, ou passo o tempo todo a conversar com um superintendente idiota ao telefone.
Dizendo isto abriu a porta da casa-de-banho e entrou. Abriu a torneira do lavatório. Retirou seis toalhas de papel do suporte e pô-las debaixo de água. Quando estavam completamente encharcadas torceu-as e esfregou com elas o pescoço e o peito, debaixo dos braços, a testa e as faces.
Deus, pensou, como detestava aquele asiático horroroso. Odiava-o desde que o vira pela primeira vez, ainda adolescente, o orgulho dos pais, já com um futuro diante dele, por onde apenas tinha de continuar para ter êxito. Enquanto o resto do mundo tinha de se esforçar para vencer na vida, Muhannad Malik já tinha a sua preparada. Mas seria que compreendia esse facto? Mostrara algum sinal de que o tinha entendido? Claro que não. Porque as pessoas a quem já tinham entregue a vida numa bandeja de platina, não possuíam o tipo de perspectiva que Lhes permitia reconhecer o afortunados que eram.
E ali estava, com o Rolex, o anel, as malditas botas de pele de cobra e o cordão de ouro, visível sob a t-shirt impecavelmente passada a ferro. Ali estava, com um carro clássico, os óculos de sol Oakley e um corpo que anunciava o tempo que tinha para o esculpir diariamente. No entanto, só sabia falar dos problemas que tinha, que a vida era difícil e que a sua existência estivera sempre cheia de racismo, de ódio e de preconceito.
Mas ela odiava-o e tinha razões para isso. Durante os últimos dez anos ele procurara preconceitos raciais debaixo de cada pedra que encontrava no caminho, e ela estava completamente farta, não só dele, como também de ter de medir todas as palavras, todas as perguntas e todas as suas inclinações naturais, sempre que se encontrava perto dele. Quando a polícia se encontrava em situação de ter de apaziguar os próprios suspeitos - e ela suspeitava da acção de Muhannad em quase todas as infracções da lei cometidas em Balford, desde o dia em que o conhecera - é porque estava em desvantagem, como era o caso agora.
Achava a situação intolerável e, enquanto refrescava a pele escaldante com as toalhas molhadas, amaldiçoava o superintendente Ferguson, Muhannad Malik, a morte do Nez e toda a comunidade asiática. Nem conseguia acreditar que tinha acedido à sugestão de Barbara e deixado que os paquistaneses vissem Kumhar. Devia tê-los posto na rua pelas orelhas. Melhor ainda, deveria ter prendido Taymullah Azhar no momento em que o vira à entrada da esquadra, quando trouxera Kumhar. Informara rapidamente o maldito primo que a polícia prendera um suspeito asiático. Emily não tinha dúvidas que tinha sido ele que correra a avisar Muhannad e os seus compatriotas. Mas afinal, quem era este Azhar? Que direito tinha de aparecer na cidade e desafiar a polícia como se fosse um advogado caro, o que de certeza não era.
Era a questão da sua identidade; com a agravante de se sentir ultrapassada por ele, que levaram Emily de volta ao seu gabinete. Até àquele momento esquecera o pedido que fizera à unidade de Serviços Secretos, para obter informações sobre o paquistanês desconhecido que viera para o meio deles no domingo à tarde. Os serviços secretos de Clacton já estavam na posse do pedido havia mais de quarenta e oito horas. Embora não fosse muito tempo para esses serviços, seria o suficiente para conseguir as informações reunidas em Londres, caso Taymullah Azhar tivesse alguma vez atraído a atenção.
O tampo da sua secretária estava cheio de pastas, documentos e relatórios. Levou cerca de dez minutos a organizá-los. Nada viera ainda sobre Azhar.
Bolas. Queria qualquer coisa a respeito do homem, para incluir nas suas disputas verbais, mesmo que fosse um facto sem importância ou um segredo, cuja revelação feita por si ou por Barbara Havers, lhe indicasse que ele não era tão seguro, na presença da polícia, como aparentava ser. Um pormenor interessante sobre um adversário funcionava como meio de lhe retirar a superioridade. E embora soubesse que ainda detinha essa superioridade, de facto as informações eram suas e podia mostrá-las ou retê-las, conforme achasse melhor - queria que os asiáticos percebessem que a possuía.
Agarrou no telefone e marcou o número dos Serviços Secretos.
Emily estava ao telefone quando Barbara foi ter com ela. Pelo timbre
da sua voz, era evidente que fazia um telefonema pessoal. Estava à secretária, com uma mão a segurar a testa enquanto a outra segurava o auscultador perto do ouvido, e dizia:
- Acredita que conseguia fazê-lo duas vezes, esta noite. Até três – e depois riu. Era um riso rouc que serve de pontuação dentro de uma conversa entre amantes.
e Barbara pensou que Emily não havia de estar a falar com o chefe.
- A que horas? - Perguntava. - Hummm. Acho que consigo. Mas ela não se irá admirar?... Gary ninguém leva três horas a passear o cão! E riu mais uma vez, com qualquer que fosse a conversa de Gary. Mudou de posição na cadeira.
Barbara afastou-se, disposta a sair do gabinete antes do inspector levantar a cabeça. Mas chegou o movimento. Emily ergueu os olhos e levantou a mão para que Barbara ficasse, indicando com um dedo que ia terminar a conversa.
- Sim, está bem - disse. - Dez e meia. E desta vez não te esqueças dos preservativos.
Sem qualquer embaraço, desligou.
- O que lhes disseste? - perguntou a Barbara.
Barbara observou-a, sabendo muito bem que estava corada. Por seu lado, Emily era toda ela uma profissional. Nada na sua expressão mostrava a mais leve suspeita que tivesse acabado de marcar para mais tarde, um encontro com um homem casado. No entanto fora exactamente o que estivera a fazer: a marcar uma enérgica actividade de colchão com o mesmo tipo que mandara embora no domingo à noite. Podia ter estado a marcar uma consulta no dentista.
Emily parecia ler os pensamentos de Barbara com perfeita exactidão.
- Tabaco, álcool, úlceras, enxaquecas, doenças psicossomáticas ou promiscuidade - disse. - Escolhe o veneno Barbara, que eu já me decidi.
- Sim, bom - disse Barbara, encolhendo os ombros com a intenção de lhe mostrar que era membro de uma irmandade de mulheres que praticavam o sexo para reduzir o stress. A verdade é que estava a morrer por fumar um cigarro - e não por um homem - e sentia a falta da nicotina formar-se, desde as pontas dos dedos até aos olhos, apesar de ter fumado três cigarros e meio durante a reunião com Azhar e o primo. - Desde que dê resultado.
- Para mim dá - Emily suspirou e passou os dedos pelo cabelo. Uma pequena cortina de toalhas de papel húmidas caía por cima do candeeiro apagado que tinha sobre a secretária; ela pegou numa para esfregar a parte de trás do pescoço.
- Juro por Deus que este tempo parece o Verão em Nova Deli. Já lá foste? Não? Ainda bem. Não gastes dinheiro mal gasto. Aquilo é uma porcaria. O que lhes disseste?
Barbara fez o relatório. Dissera aos asiáticos que a polícia descobrira e examinara conteúdo do cofre que Querashi alugara no Barclays, que Siddiqi confirmara a tradução da página do Corão encontrada no quarto do hotel, que estavam a verificar as chamadas telefónicas feitas e recebidas e que tinham outro suspeito, para além de Kumhar, que fora naquele momento detido para ser interrogado.
- Qual foi a reacção de Malik? - Perguntou Emily.
- Pressionou.
Pressionar era pouco. Muhannad Malik exigira conhecer a raça e identidade do segundo suspeito. Pedira uma lista do conteúdo do cofre de Querashi. Exigira a completa definição da palavra verificar, no que dizia respeito aos telefonemas. Queria entrar em contacto com o Professor Siddiqi, para ter a certeza que este compreendia a natureza do crime que tinha ocorrido em Balford-le-Nez.
- Bolas. Tem cá um descaramento - disse Emily, quando Barbara concluiu. - O que lhe disseste?
- Não tinha de lhe dizer nada - respondeu Barbara. - Azhar fê-lo
por mim.
Fizera-o da maneira habitual, com o à vontade que certamente adquirira ao tratar com a polícia, de outros casos de direitos de imigrantes e das respectivas ramificações da lei. Isto fez com que Barbara se interrogasse acerca do vizinho. Catalogara-o como professor universitário e pai de Hadiyyah durante os quase dois meses de conhecimento. Mas que mais seria? Naquele momento, gostaria muito de saber qual a importância das informações que não possuía sobre ele.
- Tu gostas do outro fulano, de Azhar - disse Emily com astúcia. Porquê?
Barbara sabia que deveria dizer porque o conheço de Londres, porque somos vizinhos e gosto muito da filha dele, mas em vez disso, o que disse foi:
- É um pressentimento. Parece honesto. Parece querer, tanto como nós, chegar ao fundo do que aconteceu a Querashi.
Emily riu, com ar céptico.
- Não apostes, Barbara. Se ele se entende com Muhannad é porque tem intenções que nada têm a ver com o que aconteceu no Nez. Ou não leste nas entrelinhas daquilo que disse, no nosso encontro com Azhar, Malik e Fahd Kumhar?
- Que entrelinhas?
- A reacção de Kumhar quando eles entraram na sala de interrogatórios. Viste, não é verdade? O que achas que significa?
- Kumhar esconde qualquer coisa - admitiu Barbara. - Nunca vi ninguém tão nervoso por estar sob custódia. Mas isso é que interessa, não é Em? Está sob custódia. Então onde é que tudo isto nos leva?
- Leva-nos a uma ligação entre os fulanos. Kumhar olhou para Azhar e Malik e quase sujou as calças.
- Estás a dizer-me que ele já os conhecia?
- Azhar talvez não. Mas digo-te que conhecia Muhannad Malik. De certeza que o conhece. Tremia tanto que o podíamos utilizar para agitar os martinis de James Bond. E, acredita-me, a reacção dele não tinha nada a ver com o facto de estar aqui fechado.
Barbara sentiu a certeza dela e prosseguiu com cuidado.
- Mas, Em, olha para a situação. Ele está sob custódia, é um suspeito na investigação de um crime num país estrangeiro, cuja língua não fala. Nem sequer para se conseguir fazer entender para sair da cidade, se quisesse fugir. Não será razão que baste para que ele...
- Sim - disse Emily com impaciência. - Está bem. O inglês que ele fala não dava nem para chamar um cão. Então o que estava a fazer em Clacton? E, mais ainda, como foi que lá chegou? Não estamos a falar de uma cidade com um enorme número de asiáticos. Estamos a falar de uma cidade com tão poucos, que basta perguntar pelo paradeiro de um único paquistanês no Jackson and Son, para que o proprietário saiba logo que andávamos à procura de Kumhar.
- E então? - Perguntou Barbara.
- Eles não têm exactamente uma cultura de espíritos livres. Estas pessoas apoiam-se umas às outras. Por isso, o que estava Kumhar a fazer em Clacton, sozinho, quando todos os outros estão aqui em Balford? Barbara gostaria de argumentar que Azhar estava em Londres sozinho, apesar de ter uma família tão grande noutra região do país, facto que ela só há pouco tempo tinha sabido. Queria dizer-lhe que a comunidade asiática em Londres estava situada principalmente em Southall e Hounslow, enquanto Azhar vivia em Chalk Farm e trabalhava em Bloomsbury. Seria muito característico? Gostaria ela de perguntar. Mas não podia fazê-lo sem ameaçar a sua posição na investigação.
Emily continuou a insistir:
- Ouviste o agente Honigman. Kumhar estava bem, até que os dois fulanos entraram na sala. O que achas?
Poderia ter sido por qualquer razão, pensou Barbara. Poderiam também dar-lhe a volta, para que pudesse significar o que quisessem. Pensou em recordar ao inspector o que Muhannad dissera: Os asiáticos não tinham entrado sozinhos na sala. Mas, discutir uma simples conjectura parecia infrutífero naquele momento. Pior, parecia provocatório. Assim, escondeu-se atrás do estado de espírito de Kumhar.
- Se Kumhar já conhece Malik - disse. - Então qual será a ligação entre eles?
- De certeza que é alguma aldrabice. O mesmo que Muhannad andava a fazer quando era rapaz: uma coisa arriscada que não lhe pudesse ser imputada. Mas as suas ofensas de adolescente, aquelas infracções menores da lei, deram lugar aos delitos importantes que agora comete.
- Que delitos importantes?
- Quem diabo sabe? Roubos, carros, pornografia, prostituição, drogas, contrabando, envio de armas para o Oriente, explosivos, terrorismo. Não sei o que é, só sei uma coisa: Há dinheiro metido no assunto. Senão, como se poderia explicar o carro de Muhannad? O Rolex? As roupas, as jóias?
- Em, o pai é o dono de uma fábrica enorme, aqui na cidade. A família deve estar cheia de massa. E ele deve ter recebido um dote muito jeitoso dos sogros. Porque é que Muhannad não havia de se exibir um pouco?
- Porque não é costume. Podiam estar cheios de massa, mas investiam-na nas Mostardas Malik. Ou mandavam-na para o Paquistão. Ou usavam-na para ajudar outros membros da família a entrar no país. Ou poupavam para os dotes das mulheres. Mas, acredita-me, que não seria para utilizar em carros clássicos ou em bugigangas. De maneira nenhuma. - Emily atirou as toalhas molhadas para o caixote do lixo. - Barbara, juro, Malik não presta. Aos dezasseis anos já não prestava e a única mudança dessa altura para agora é que está ainda pior. Agora, utiliza a Jum'a como capa. Age como Homem do seu Povo, mas a verdade é que é um fulano capaz de cortar o pescoço à mãe, se com isso pudesse comprar outro diamante para pôr no anel.
Carros clássicos, diamantes, um relógio Rolex. Barbara teria dado um pulmão para, nesse momento, poder fumar um cigarro no gabinete de Emily, tão nervosa se sentia. Sentia-se mais perturbada pela paixão inconsciente por detrás das palavras do inspector, do que por aquilo que elas realmente representavam. Já passara por isso. Chamava-se Falta de Objectividade e não levava a um destino decente para um polícia. Só que Emily Barlow era um polícia decente. E era um dos melhores.
Barbara procurava uma maneira de equilibrar o caso. - Espera - disse. - Temos Trevor Ruddock sem álibi e com uma hora e meia de sexta-feira à noite para justificar. Temos as impressões digitais a serem verificadas. Mandei toda aquela tralha das aranhas para o laboratório
analisar. E queres deixá-lo ir embora, para ir atrás de Muhannad? Ruddock tinha arame no quarto, Em. Tinha um carreto inteirinho.
Emily olhou para a parede do gabinete e para o quadro com anotações que lá estava pendurado. Não disse nada. Durante o silêncio dela tocaram telefones e alguém gritou:
- Valha-me Deus, pá. Deixa de te armar em parvo.
Sim. E agora? pensava Barbara. Vá lá Emily não me deixes ficar mal."
- Precisamos verificar nos arquivos - as palavras de Emily eram decisivas. Barbara ficou desiludida.
- Os arquivos? Mas achas que se Muhannad estivesse realmente metido num crime importante, irias encontrar tal coisa por resolver nos arquivos da polícia?
- Vamos encontrá-lo, seja onde for - respondeu Emily. - Acredita-me. Mas não conseguiremos se não procurarmos.
- E Trevor? Que faço com ele?
- Deixa-o ir embora.
- Deixo-o...? Barbara cravou as unhas na parte inferior do braço. Mas Em, podemos fazer com ele o que estamos a fazer com Kumhar. Podemos deixá-lo aí até amanhã à tarde. Podemos interrogá-lo de quarto em quarto de hora. Juro-te que ele esconde alguma coisa e até sabermos o que é... - Solta-o Barbara - disse o inspector firmemente.
- Mas nem sequer sabemos das impressões digitais. O arame dele foi mandado para o laboratório e quando falei com Rachel... - Barbara já não , sabia que mais dizer.
- Barb, Trevor Ruddock não vai fugir. Sabe que o que tem a fazer é manter a boca fechada e ficamos de mãos atadas. Por isso deixamo-lo ir, enquanto esperamos os resultados do laboratório. Entretanto tratamos dos asiáticos.
- Tratamos deles, como?
Emily conferiu o que havia a fazer. O arquivo da polícia de Balford, bem como o das comunidades circundantes mostraria se alguma coisa pouco honesta, ligada a Muhannad, tinha acontecido; o conteúdo do cofre de Querashi tinha de ser bem observado; os escritórios da World Wide Tours, em Harwich, receberia a visita de um agente com a fotografia de Querashi na mão; uma polaróide de Kumhar seria mostrada nas casas perto do Nez; de facto deveriam mostrar também a fotografia de Kumhar na World Wide Tours, só para prevenir.
- Vou reunir-me com a equipa daqui a cinco minutos - disse Emily. Levantou-se e a inflexão da voz mostrava que a entrevista tinha terminado.
- Vou distribuir as tarefas para amanhã. Queres fazer alguma destas coisas Barb?
A insinuação era transparente: era Emily Barlow que dirigia a investigação e não Barbara Havers. Trevor Ruddock sairia dentro de uma hora. Começariam a investigar os paquistaneses. Um paquistanês em particular. Um paquistanês que tinha um bom álibi.
Barbara entendeu que nada mais havia a fazer.
- Vou à World Wide Tours - disse. - Acho que me vai fazer bem ir a Harwich.
Barbara viu o Thunderbird azul-turquesa assim que se dirigiu ao parque de estacionamento do Burnt House Hotel hora e meia mais tarde. Era difícil não reparar nele, brilhante, primitivo e exótico, entre Escorts poeirentos, Volvos e Vauxhalls. Parecia que alguém dava todos os dias brilho ao descapotável. Desde as jantes cintilantes até à curva cromada do pára-brisas, de tão imaculado que estava, poderia ser usado como sala móvel de operações. Estava estacionado no fim de uma fila de carros, ocupando dois lugares, para que ninguém lhe riscasse a pintura quando saísse de uma máquina menos potente. Barbara ainda pensou em usar o baton recém-comprado para escrevér a palavra egoista no pára brisas, como comentário pouco subtil, mais à prepotência do condutor, do que à ocupação por ele feita no parque de estacionamento. Mas limitou-se a uma imprecação adequada e espremeu o Mini num buraquinho das traseiras do hotel, fragantemente localizado perto do contentor do lixo proveniente da cozinha.
Muhannad Malik estava lá dentro, provavelmente conspirando com Azhar, depois de lhe terem recusado todas as oportunidades de observar as provas. Tal coisa não lhe tinha agradado. E ainda lhe agradara menos, quando o primo o informara de que a polícia não tinha qualquer obrigação de se reunir com os asiáticos, quanto mais de lhes mostrar as provas. Muhannad ficara irritado, mas, se estava zangado com o primo, não o mostrou. Pelo contrário, dirigiu contra Barbara toda a sua antipatia e desprezo. Já adivinhava a alegria com que a receberia, se por acaso se cruzasse com ele no hotel. Barbara esperava ardentemente que tal coisa não acontecesse.
A combinação do fumo dos cigarros com fragmentos de conversas, disse-lhe que os hóspedes estavam no bar a tomar o seu aperitivo de xerez e a estudar a lista, antes da refeição. O menu era invariável como as marés - carne de porco, frango, solha, carne de vaca - mas não tinha qualquer impacto na alteração do hábito dos residentes, que o observavam com a devoção de estudiosos da Bíblia. Barbara viu-os quando se dirigia às escadas. Primeiro um duche, resolveu. Depois um whisky.
- Barbara! Barbara! - Um bater de pés no chão encerado acompanhou o seu nome. Hadiyyah, muito bem vestida de seda alaranjada, vira-a pela janela do bar e entrara imediatamente em acção. Barbara hesitou recuando. Se esperava escapar-se a um encontro inesperado nessa noite com Muhannad Malik, fingindo não conhecer o primo anteriormente a terem vindo para Balford-le-Nez, agora não havia remédio. Azhar não fora suficientemente rápido para deter a filha. Levantou-se mas ela já saltitava pela sala. Uma mala branca de pôr ao ombro com o formato da lua, dançava-lhe entre o cotovelo e o chão.
- Venha ver quem aqui está - disse Hadiyyah. É o meu primo, Barbara. Chama- se Muhannad. Tem vinte e seis anos, é casado e tem dois filhos que ainda usam fraldas. já me esqueci dos nomes deles, mas sei que me vou lembrar logo que os vir.
- Ia agora mesmo para o quarto - disse-lhe Barbara. Evitou olhar para o bar, esperando irracionalmente, que ninguém reparasse que estava a conversar com a miúda.
- Oh, é só um minuto. Quero que o conheça. Perguntei-lhe se queria comer aqui connosco, mas ele disse que a mulher estava em casa, à espera dele. E a mãe e o pai. Também tem uma irmã - suspirou de puro prazer, com os olhos muito vivos. - Imagine Barbara, antes de hoje eu nem sequer sabia. Não sabia que tinha uma família para além da minha mãe e do meu pai. E o meu primo Muhannad é tão simpático. Quer vir conhecê-lo?
Azhar viera até à porta do bar. Por trás dele, Muhannad tinha-se levantado do cadeirão de couro que estava de frente para a janela. Tinha uma bebida na mão e levou-a aos lábios, terminando-a antes de colocar o copo numa mesa próxima.
Barbara telegrafou a pergunta a Taymullah Azhar. O que hei-de dizer? Mas Hadiyyah agarrara-se-lhe à mão e qualquer tentativa de pretender que a amizade apenas datava de dois dias antes, devido ao amor mútuo pela obras culinárias do Burnt House Hotel, foi deitada por terra com as suas palavras.
- Pensou o mesmo, não foi Barbara? É porque nunca fazemos como se tivéssemos uma família. Espero agora vê-los em Londres. Podem lá ir ao fim-de-semana. E depois podemos convidá-los para os nossos churrascos, não podemos?
Claro, queria Barbara dizer. Sem dúvida que nesta altura Muhannad Malik sentia crescer-lhe água na boca, desesperado por ter oportunidade de provar uma das espetadas grelhadas do sargento- detective Barbara Havers.
- Primo Muhannad - cantarolou Hadiyyah. - Venha conhecer a minha amiga Barbara, que vive em Londres. Nós moramos num rés-do-chão e Barbara mora numa casinha muito amorosa, nas traseiras do prédio. Conhecê-mo-la porque entregaram por engano o frigorífico dela na nossa casa. O pai levou-lho. Ficou com óleo na camisa. Tirámos o mais possível, mas ele já não gosta de a levar para a Universidade.
Muhannad veio ter com eles. Hadiyyah deu-lhe a mão. Agora dava as mãos aos dois - a Barbara e ao primo - e não poderia ter um ar mais satisfeito, se lhes tivesse arranjado o casamento.
O rosto de Muhannad era um estudo de estimativa, como se um computador tivesse começado a processar informação no seu cérebro, colocando-a nas categorias adequadas. Barbara imaginava os títulos: traição, engano, decepção. Falou com Hadiyyah mas olhava para o pai desta.
- Que prazer em conhecer a tua amiga, priminha. Já a conheces há muito tempo?
- Oh, há semanas, semanas e semanas - cantarolou Hadiyyah. Costumamos ir comer gelados a Chalk Farm Road e já fomos ao cinema e ela até foi à minha festa de anos. Por vezes vamos ver a mãe dela a Greenford. Divertimo-nos muito, não é Barbara?
- Que coincidência que se tenham encontrado no mesmo hotel em Balford-le-Nez - disse Muhannad intencionalmente.
- Hadiyyah - disse Azhar. - Barbara acabou de voltar para o hotel e parece que lhe saíste ao caminho quando ela ia para o quarto. Se tu...
- Dissemos-lhe que vínhamos para o Essex, está a ver? - Hadiyyah
forneceu, com toda a simpatia as informações ao primo. - Tivemos de lhe dizer, porque eu tinha deixado uma mensagem no gravador de chamadas dela. Tinha-a convidado para irmos comer um gelado e não queria que ela pensasse que me tinha esquecido. Por isso fui a casa dela dizer-lhe e depois o pai também lá foi e depois dissemos que vínhamos para a praia.
Só que o pai não me disse que o primo vivia aqui, primo Muhannad. Fez-me uma surpresa. Então agora já conhece a minha amiga Barbara e ela já o conhece a si.
- Pois já - disse Azhar.
- Mas talvez não tenha sido tão cedo quanto deveria - disse Muhannad.
- Escute, Mr. Malik - interrompeu Barbara, mas a aparição de Basil
Treves interpôs- se.
Vinha do bar, ocupado como sempre, com os pedidos do jantar na mão.
Como sempre cantarolava. Porém ao ver Barbara com os paquistaneses, calou-se naquilo que parecia ser a quinta nota da canção principal do filme Música no Coração.
- Ah! sargento Havers - disse. - Teve um telefonema. De facto foram até três do mesmo homem. - Lançou um olhar especulativo a Muhannad e depois a Azhar, antes de acrescentar misteriosamente mas com um ar de indiscutível importância que servia para sublinhar a sua posição de compatriota, colega investigador e amigo em geral da detective da Scotland Yard.
- Sabe, sargento. Aquela nossa preocupação alemã? Deixou dois números: o de casa e o directo para o escritório. Pu-los aos dois no cacifo da sua chave e, se esperar apenas um momento...
Assim que se afastou para ir buscar as mensagens, Muhannad falou:
- Primo, falamos mais tarde, espero eu. Hadiyyah, boa noite. Foi...
O seu rosto suavizou-se com a sinceridade das palavras que pronunciava e com a outra mão fez-lhe uma festa na cabeça num gesto de ternura. Curvou-se e beijou-a na testa. - Foi um verdadeiro prazer conhecer-te por fim.
- Vem cá outra vez? Posso conhecer a sua mulher e os seus meninos?
- Claro - sorriu. - Dentro em breve.
Deixou-os então e Azhar, lançando um rápido olhar a Barbara, saiu do hotel atrás dele. Barbara ouviu-o dizer preocupado:
- Muhannad, um momento - ao aproximar-se da porta. Gostaria de saber que diabo iria dizer ao primo, à laia de explicação. Fosse como fosse, a situação não tinha bom aspecto.
- Aqui estou - Basil Treves voltara para o pé deles, com as mensagens para Barbara flutuando-lhe entre os dedos. - Foi muito delicado ao telefone. Surpreendente para um alemão. Janta cá hoje, sargento?
Disse-lhe que assim seria e Hadiyyah pediu:
- Sente-se ao pé de nós, sente-se ao pé de nós!
Treves parece não gostar desta volta nos acontecimentos, tal como já acontecera ao pequeno-almoço de segunda-feira, quando Barbara atravessara a barreira invisível que o hoteleiro erguera entre os seus hóspedes brancos e os de outra cor. Deu uma palmadinha na cabeça de Hadiyyah. Olhou para ela, com aquela condescendência benigna que se reserva para os animais a que se é fortemente alérgico.
- Sim, sim, se ela quiser - disse alegremente, apesar da aversão dos seus olhos. - Ela pode sentar-se onde quiser, minha querida.
- Que bom, que bom, que bom! - Descansada, Hadiyyah afastou-se. Logo a seguir, Barbara ouviu-a conversar com Mrs. Poter no bar do hotel.
- Era a polícia - disse Treves confidencialmente. Indicou com a cabeça as mensagens telefónicas que Barbara tinha na mão. - Não quis dizer isso na frente de... daqueles dois. Sabe, todo o cuidado é pouco com estrangeiros.
- Claro - disse Barbara. Controlou o desejo de dar um murro na cara de Treves e de lhe saltar em cima dos pés. Subiu então as escadas para o quarto.
Atirou o saco para cima de uma das camas e dirigiu-se para a outra. Estendeu-se e examinou as mensagens. Tinham o nome da mesma pessoa: Helmut Kreuzhage. Telefonara às três da tarde e depois às cinco e às seis e um quarto. Olhou para o relógio e decidiu tentar encontrá-lo primeiro no escritório. Marcou o número alemão e abanou-se com o tabuleiro de plástico do qual retirara do bule de metal.
- Hier ist Kriminalhauptkommisar Kreuzhage.
Boa, pensou. Lentamente, identificou-se em inglês, pensando em Ingrid e no seu fraco domínio da língua-mãe de Barbara. O alemão mudou imediatamente de idioma e disse:
- Sim, sargento Havers. Fui eu quem atendeu aqui em Hamburgo os telefonemas feitos por Mr. Haytham Querashi. - Falava com um sotaque muito leve e com voz agradável e melíflua. Devia ter confundido Basil Treves, pensou Barbara, pois nada se parecia com a voz de um Nazi do cinema do pós-Guerra.
- Óptimo - disse Barbara muito satisfeita e agradeceu-lhe por lhe ter telefonado. Esclareceu imediatamente todas as circunstâncias que rodeavam o facto de o ter procurado.
Do outro lado da linha, ele emitiu um som preocupado, quando ela lhe contou do arame, dos velhos degraus de cimento e da queda fatal de Haytham Querashi.
- Quando vi os registos dos telefonemas feitos por ele reparei que o número da Polícia de Hamburgo estava entre eles. Estamos a investigar todas as pistas possíveis.
- Receio que pouco possa ajudá-la - disse Kreuzhage.
- Lembra-se das suas conversas com Querashi? Ele telefonou mais do que uma vez para a polícia de Hamburgo.
- Oh, ja, lembro-me muito bem - respondeu Kreuzhage. - Queria dar algumas informações a respeito de umas actividades que se passavam numa certa morada em Wandsbeck.
- Wandsbeck?
- Ja. Uma comunidade no sector ocidental da cidade.
- Que tipo de actividades?
- Era aí que, receio bem, o senhor se tornava muito vago. Descrevia-as apenas como actividades que envolviam Hamburgo e o porto de Parkeston em Inglaterra.
Barbara sentiu cócegas nas pontas dos dedos. Que raio. Seria realmente possível que Emily Barlow tivesse razão?
- Parece-me uma operação de contrabando - disse ela. Kreuzhage tossiu por causa do catarro. Era um irmão fumador, percebeu Barbara, mas mais viciado do que ela. Afastou o telefone da cara e cuspiu. Ela estremeceu e prometeu a si própria fumar menos.
- Eu hesitaria em limitar ao contrabando as minhas conclusões - disse
o alemão.
- Porquê?
- Porque quando o senhor mencionou o porto de Parkeston, cheguei à mesma conclusão. Sugeri-lhe que telefonasse para Davidwachean der Reeperbahn. É a polícia portuária aqui de Hamburgo. Seriam eles os mais indicados para tratar de casos de contrabando, compreende? Mas acho que ele não estava disposto a isso. Nem sequer quis ouvir falar disso, o que me sugeriu que as suas preocupações não tinham a ver com contrabando.
- Então o que é que ele lhe disse?
- Disse apenas que tinha informações sobre uma actividade criminosa que estava a ter lugar numa certa morada de Wandsbek, embora ele não soubesse que era em Wandsbeck, claro. Só que era em Hamburgo.
- Oskarstrae 15? - Adivinhou Barbara.
- Calculo que tenha encontrado a direcção entre as coisas dele. Ja, era essa a morada. Fomos lá mas não encontrámos nada.
- Estaria na pista errada? Seria noutra cidade alemã?
- Não há maneira exacta de o saber - respondeu Kreuzhage. - Pode
muito bem ter tido razão a respeito das actividades ilícitas, mas Oskarstrasse 15é um grande prédio de apartamentos com cerca de oitenta unidades por trás de uma porta fechada. Não tínhamos qualquer pretexto para revistar essas unidades e não o podíamos fazer por causa de um senhor que telefonava de outro país.
- Suspeitas infundadas?
- Mr. Querashi não tinha provas concretas, sargento Havers. Ou, se as
tinha, não estava disposto a dar-mas. Mas pela maneira apaixonada e sincera como falava, coloquei o prédio sob vigilância durante dois dias. Fica perto do Eichtalpark, por isso foi fácil colocar os meus homens numa zona em que não pudessem ser vistos. Mas não tenho efectivos suficientes para... como se diz... situar o prédio?
- Cercar o prédio.
- É esse o termo, ja, isso mesmo. Não tenho efectivos nem recursos financeiros para cercar um edifício do tamanho de Oskarstra / 3 e 15 por um período de tempo que teria de ser definido, se estivessem a ter lugar actividades ilegais. E ainda por cima com tão poucas razões.
A posição dele era compreensiva, pensou Barbara. Sem dúvida, invadir com tropas as casas e os apartamentos de cada um, tinha passado de moda na Alemanha, depois da guerra.
Mas de repente lembrou-se.
- Klaus Reuchlein - disse ela.
- Ja? E ele é...? - Kreuzhage aguardou com delicadeza.
- É um fulano que vive em Hamburgo - disse Barbara. - Não tenho a direcção dele, mas tenho o número de telefone. Gostaria de saber se há possibilidades de que ele more na Oskarstra/3e 15.
- Isso - disse Kreuzhage, pode com certeza ser verificado.
E mais... Era suficientemente simpático para lamentar o facto. Continuou dizendo-lhe - em tom sombrio e como conhecedor do mal que os outros são capazes de fazer - que havia muitas áreas de ilegalidade que se poderiam espalhar pelo mar do Norte e ligar a Inglaterra à Alemanha. Prostituição, falsificação, comércio de armas, terrorismo, extremismo, espionagem industrial, assalto a bancos, roubo de obras de arte... Aquele polícia inteligente não limitava as suas suspeitas ao contrabando, quando dois países apareciam ligados de modo criminoso.
- Tentei dizer isso a Mr. Querashi - disse - para que ele pudesse ver a dificuldade da tarefa que desejava que eu realizasse. Mas ele insistiu que uma investigação à Oskarstrae 15 nos forneceria as informações de que necessitávamos para fazer uma prisão. Mas Mr. Querashi nunca tinha estado na Oskarstra3e 15. - Barbara ouviu-o suspirar. - Uma investigação? Por vezes as pessoas não entendem a forma como a lei regula aquilo que nós, polícias, podemos e não podemos fazer.
Verdade. Barbara pensou nos dramas que via na televisão, programas em que os chuis extraiam com regularidade as confissões aos suspeitos, que passavam de provocadores a colaboradores no espaço de uma hora. Disse-lhe algumas palavras para mostrar que concordava e pediu a Kreuzhage para averiguar o paradeiro de Klaus Reuchlein.
- Também lhe telefonei - explicou. - Mas tenho um pressentimento que ele não me vai retribuir o telefonema.
Kreuzhage assegurou-lhe que faria o que pudesse. Ela desligou. Passou uns instantes sentada na cama, deixando que a colcha horrorosa se empapasse com o suor das suas pernas. Quando recuperou a energia, foi para o duche e lá ficou, com demasiado calor, sem mesmo se entusiasmar com um medley de rock'n'roll, de que tanto gostava.
DEPOIS DO JANTAR, BARBARA acabou por ir ao pontão das diversões, só porque Hadiyyah lhe tinha estendido o convite. Com os seus habituais modos impulsivos e generosos a pequenita anunciara:
- Tem de vir connosco, Barbara. Vamos ao pontão, o pai eu, e a Barbara tem de vir também. Tem de vir, não tem, pai? É muito mais divertido se ela também vier.
Esticara o pescoço para olhar para o pai, que ouvira o convite com ar sóbrio. Foram os últimos a acabar de jantar e terminavam o seu sorbet-du jour. Nessa noite era de limão e tiveram de o consumir rapidamente, antes que o calor o reduzisse a papas. Hadiyyah agitara a colher no ar enquanto falava, lançando pingos de limão para a toalha.
Barbara teria preferido sentar-se calmamente na relva a olhar para o mar. Misturar-se com os visitantes, sem dúvida odoríferos, à procura de prazer no pontão de Balford, não era uma actividade muito sedutora. Mas Azhar estivera preocupado durante todo o jantar, permitindo que a filha conduzisse alegremente a conversa na direcção e com a duração que muito bem lhe apetecesse. Este comportamento era tão pouco habitual nele, que Barbara sabia ter de estar ligado com a partida de Muhannad Malik do Burnt House Hotel e com o que quer que os dois homens tivessem dito no parque de estacionamento. Assim, concordara em acompanhar Azhar e a filha ao pontão das diversões, quanto mais não fosse para ver se conseguia saber o que se tinha passado entre ele e o primo.
Assim, às dez horas encontrava-se no pontão, empurrada pelas massas queimadas pelo Sol, as narinas invadidas por odores variados de loções, suor, peixe frito, hamburgers e pipocas. O barulho era ainda mais ensurdecedor de noite do que de dia, possivelmente porque os responsáveis das diversões ficavam mais desesperados para arranjar clientes, à medida que se aproximava a hora do fecho. Assim, gritavam para conseguir a atenção das pessoas, tentando convencer os transeuntes a lançar bolas ou a fazer pontaria a patos, e para conseguirem ser ouvidos, tinham de gritar mais alto do que a música de realejo do carrossel ou que os apitos, campainhas, pancadas e explosões mecânicas do salão de jogos.
Foi para aí que se dirigiram, levados por Hadiyyah que lhes dava a mão.
- Que bom, que bom, que bom! - cantarolava, sem notar que o pai e a amiga se mantinham em silêncio.
À volta deles uma multidão suada ocupava os jogos de vídeo e flipper, no meio de um ruído contínuo. As crianças corriam por entre as máquinas, a rir e a gritar. Um grupo de rapazes conduzia carros de corrida virtuais, acompanhados pelos gritos de admiração das amigas. Uma fila de mulheres de idade estava sentada a um balcão a jogar bingo, sendo os números gritados ao microfone, por um homem vestido de palhaço, cuja maquilhagem já sofrera todos os danos possíveis naquele calor infernal. Barbara reparou que não havia um único asiático no salão de jogos.
Por seu lado, Hadiyyah parecia não se importar fosse com o que fosse: o barulho, o cheiro, a temperatura, a multidão e o facto de ser uma das duas pessoas que pertenciam a uma minoria. Largou a mão do pai e a de Barbara e cirandava por ali ora num pé ora noutro.
- A máquina! - Exclamou. - Pai, a máquina dos bonecos! - E correu na direcção desse jogo.
Quando a apanharam estava colada à máquina, com o nariz no vidro, para melhor observar o seu conteúdo. Estava cheia de animais de pelúcia: porquinhos cor-de-rosa, vacas malhadas, girafas, leões e elefantes.
- A girafa, a girafa - cantarolou, apontando com o dedo para o animal que queria que o pai ganhasse para ela. - Pai apanhas a girafa para mim? Ele é muito bom nisto, Barbara. Espere só. - Girou num só pé, agarrada ao braço do pai, e puxou-o até à máquina. - Quando ganhares a girafa para mim, tens de ganhar outra coisa para Barbara. Um elefante, pai. Lembras-te do elefante que ganhaste para a mãe? Lembras-te que eu o cortei todo? Eu não queria, Barbara. Tinha só cinco anos e estava a brincar aos veterinários. Precisava de lhe fazer uma operação. Mas saiu-lhe o recheio, quando o cortei. A mãe ficou tão furiosa que se fartou de gritar. Não foi, pai?
Azhar não respondeu. Pelo contrário, dedicou toda a sua atenção à máquina. Conseguiu, tal como Barbara pensava que o fizesse: com a concentração solene que utilizava para tudo. Falhou a primeira tentativa e a segunda. Mas nem ele nem a filha desanimaram.
- Está só a praticar - informou Hadiyyah em tom de confidência. Praticas sempre primeiro, não é pai?
Azhar continuou. À terceira tentativa posicionou o guindaste, soltou o gancho com precisão e apanhou a girafa que a filha queria. Hadiyyah gritou deliciada e abraçou-se ao animal de pelúcia, como se fosse o presente que mais desejara nos seus oito anos de vida.
- Obrigado, obrigado! - Exclamou e abraçou-se à cintura do pai. Vai ser a minha recordação de Balford, é para me lembrar destas férias tão boas. Experimenta outra vez, por favor, pai, sim? Experimenta um elefante, para ser a recordação de Barbara.
- Fica para a outra vez, miúda - disse Barbara apressadamente. A ideia de que Azhar lhe oferecesse um animal de pelúcia era desconcertante. Não queremos gastar a nossa fortuna só num sítio, pois não? E se jogássemos flipper? Ou fossemos para o carrossel?
O rosto de Hadiyyah iluminoú-se. Correu à frente deles em direcção à porta, esgueirando-se por entre a multidão. Para lá chegar tinha de passar pelo jogo de carros virtuais, e na pressa de se divertir, meteu-se entre o grupo que estava à volta da máquina.
Aconteceu tudo muito depressa, de modo que nem se percebia se tinha sido um acidente ou um acto intencional. De repente Hadiyyah desaparecera dentro da massa de corpos adolescentes, vestidos com roupas ligeiras. Logo a seguir estava estendida no chão.
Alguém desatou a rir, uma gargalhada que mal se distinguia sobre o ruído rouco do salão de jogos. Mas foi o suficiente para que Barbara a ouvisse e atirou-se ao grupo sem pensar em mais nada.
- Merda. Paquistaneses - dizia alguém.
- Olha só o vestido.
- É modelo especial da Oxfam .
- Parece que vai ser recebida pela rainha.
Barbara agarrou a t-shirt fina e suada do rapaz que estava mais perto dela. Puxou-o de tal maneira que ele ficou a dois centímetros do seu rosto.
- A minha amiguinha parece ter tropeçado numa coisa qualquer. Tenho a certeza de que um dos senhores gostaria de a ajudar, não é verdade?
- Vai-te lixar, ó cabra - foi a resposta sucinta.
- Nem penses - disse ela.
- Barbara - disse Azhar por trás dela, no tom razoável que lhe era habitual.
Em frente dela, Hadiyyah tentava pôr-se de pé por entre as Doc Martens, sandálias e ténis que a rodeavam. O vestido de seda ficara todo sujo com a queda e por baixo do braço a costura descosera-se. Parecia mais espantada do que magoada. Olhava à sua volta, tentando compreender aquela súbita confusão.
Barbara agarrou com mais firmeza a camisola do rapaz.
- Pensa bem, valentão - disse com ar calmo. - Eu disse-te que a minha amiguinha precisava de ajuda.
- Merda, Sean. Eles são dois e nós somos dez - alguém avisou, à esquerda de Barbara.
- Certo - disse Barbara com ar simpático, falando para Sean e não para o que o aconselhara. - Mas creio que nenhum de vós terá um destes.
1 Associação de caridade que ajuda as crianças dos países do Terceiro Mundo. Entre outras coisas, angaria fundos através da venda, nas suas lojas, de roupas em segunda mão. (N. da T. )
- Meteu a mão livre no saco e tirou de lá a identificação da polícia. Abriu com força e pô-la à frente de Sean. Estava demasiado perto para que ele a pudesse ler, mas a intenção também não era essa.
- Ajuda-a - disse.
- Não lhe fiz nada.
- Barbara - disse Azhar mais uma vez.
Ela viu-o pelo canto do olho. Dirigia-se a Hadiyyah.
- Deixe-a - disse Barbara. - Um destes jovens - deu outro puxão na camisola - está desejoso de provar que é um cavalheiro. Não é Sean? Porque se um destes jovens - outro puxão ainda com mais força na camisola - não provar o que tem de ser provado, todos eles vão esta noite para a esquadra, de onde podem então telefonar aos seus paizinhos.
Porém Azhar ignorou as palavras de Barbara. Foi ter com a filha e ajudou-a a pôr-se de pé. Os adolescentes deram-lhe espaço suficiente para que o fizesse.
- Não te magoaste, Hadiyyah? - Apanhou a girafa que lhe fugira das mãos durante a queda.
- Oh, não! - Choramingou. - Pai está toda estragada. Barbara olhou, segurando ainda na camisola do rapaz. A girafa acabara por ficar manchada de ketchup e a cabeça fora pisada por um sapato.
Um rapaz riu à socapa, fora do alcance da visão de Barbara. Mas antes que ela reagisse, Azhar disse:
- Isto pode arranjar-se com facilidade - Falou como um homem que sabia de tudo na vida. Afastou-se do grupo com as mãos nos ombros de Hadiyyah.
Barbara viu que a pequenita curvava os ombros desanimada. Teve vontade de bater em Sean e de lhe levar um joelho directamente aos testículos; em vez disso libertou-o e limpou as mãos às calças.
- É óptimo atacar meninas de oito anos - disse. - Porque não vão celebrar o feito heróico para outro lado qualquer?
Passou por eles e saiu do salão de jogos atrás de Azhar e da filha. Durante uns momentos não reparou para onde tinham ido porque os visitantes pareciam agora ser mais. Por todos os lados havia uma massa de calças de couro negras, brincos no nariz, argolas nos mamilos, coleiras de cão e correntes. Parecia haver por ali um congresso de sadomasoquistas.
A seguir avistou os amigos. Estavam à direita, e Azhar conduzia a filha para fora do pavilhão, dirigindo-se à zona descoberta do pontão. Foi ter com eles.
-... manifestação de medo da parte das pessoas - dizia Azhar a Hadiyyah que estava de cabeça baixa. - As pessoas têm medo daquilo que não entendem, Hadiyyah. E é isso que conduz as suas acções.
- Eu não ia fazer mal - disse Hadiyyah. - Sou muito pequena para fazer mal a alguém.
- Ah, mas eles não têm medo que Lhes façam mal, khushi. Eles têm é medo que se saiba que têm medo. Aí vem Barbara. Vamos continuar a nossa noite? Não me parece bem, deixar que um grupo de estrangeiros determine se nos vamos ou não divertir neste nosso passeio.
Hadiyyah ergueu a cabeça. Barbara sentiu o coração apertado ao olhar para a carita da amiga.
- Acho que os aviões chamam por nós, miúda - disse alegremente, indicando a diversão mais próxima: os aviõezinhos que subiam e desciam à volta de uma coluna central. - Que tal?
Hadiyyah observou os aviões durante uns instantes. Trazia consigo a girafa suja, mas nessa altura entregou-a ao pai e endireitou os ombros.
- Adoro os aviõesinhos - disse.
Ficaram a vê-la porque não podiam acompanhá-la. Algumas das diversões eram só para crianças: as miniaturas dos jipes do Exército, o comboio, os helicópteros e os aviões. Outras destinavam-se a ocupantes maiores e nessas andavam os três, passando das chávenas à roda gigante e a seguir para a mon tanha-russa, conseguindo sempre esquecer a desilusão e a tristeza. Só quando Hadiyyah insistiu em andar três vezes consecutivas nos barquinhos à vela
- Fazem o meu estômago ir para cima e para baixo explicou -, é que Barbara conseguiu falar a sós com Azhar.
- Desculpe o que aconteceu - disse-lhe. - Tirara um cigarro e oferecera-lhe outro. Ela aceitou. Ele acendeu ambos. - Que coisa tão aborrecida. Logo nas férias dela e tudo.
- Gostaria de a proteger de todos os aborrecimentos - Azhar olhava para a filha e sorria ao vê-la rir, porque o estômago subia e descia com a onda simulada, que se erguia e despenhava sob o pequeno navio. - Mas é esse o desejo de todos os pais extremosos, não é verdade? É um desejo razoável, mas ao mesmo tempo impossível de realizar. - Levou o cigarro à boca e manteve os olhos fixos em Hadiyyah. - De qualquer modo, muito obrigado disse.
- De quê?
Ele voltou a cabeça na direcção do salão de jogos.
- Por ter vindo em seu auxílio. Foi muito boa.
- Mas que diabo, Azhar. Não há outra como ela. Gosto dela, adoro-a. O que esperava que eu fizesse? Por minha vontade não teríamos saído da quele sítio com o rabo-entre-as-pernas, acredite.
Azhar voltou-se para Barbara.
- Ainda bem que a conheço, sargento Havers.
Barbara sentiu-se corar.
- Sim, bom... - disse. Com alguma confusão meteu o cigarro na boca enquanto observava as casas de praia, umas iluminadas por lâmpadas que imitavam os antigos candeeiros a gás, outras na escuridão. Apesar do calor da noite, a maior parte delas estava às escuras pois os seus ocupantes já se tinham retirado para os hotéis ou pensões, onde passavam a noite.
- Desculpe aquilo no hotel, Azhar - disse. - Com Muhannad. Vi o Thunderbird quando entrei no parque de estacionamento, mas pensei que o pudesse evitar se fosse logo pela escada acima. Estava desesperada para tomar um duche, senão ter-me-ia acalmado num pub ou coisa assim. Provavelmente era isso mesmo que eu deveria ter feito.
- Era inevitável que o meu primo soubesse que nos conhecemosdisse-lhe ele. - Devia ter-lho dito logo. Como não o fiz, pôs em questão a minha lealdade em relação aos meus compatriotas. E tem razão.
- Parecia bastante aborrecido quando saiu do hotel. Como lhe explicou as coisas?
- Tal como você mas explicou - disse Azhar. - Disse-lhe que a sua presença tinha sido solicitada pelo inspector Barlow e que foi uma surpresa tão grande para si como para mim, o ver-se envolvida numa situação em que no lado oposto está uma pessoa conhecida.
Barbara sentia-o a olhar para si e corou ainda mais. Ainda bem que os barcos lançavam uma sombra sobre si. Pelo menos sentia-se ao abrigo do escrutínio habitual de Azhar.
Sentiu um forte desejo de lhe contar a verdade. Só que, naquele momento, já não sabia qual era ela. Parecia ter perdido o seu controle durante os últimos dias. E, sinceramente, já não conseguia dizer em que altura é que os factos se tinham tornado tão incertos. Queria compensá-lo de algum modo, para reparar as mentiras que tinha dito. Mas, tal como ele dissera, representavam ambos forças opostas.
- Como é que Muhannad reagiu a essa informação? - Perguntou.
- O meu primo tem mau feitio - respondeu Azhar. Sacudiu para o chão a cinza do cigarro. - É de natureza a ver inimigos em toda a parte. Para ele foi fácil concluir que a nota cautelosa que nos últimos dias tentei imprimir às nossas conversas, já eram prova da minha duplicidade. Sente-se traído por um dos seus, o que neste momento torna as coisas difíceis entre nós. Porém, não deixa de ser razoável. A decepção é um sentimento difícil de perdoar numa relação.
Barbara sentiu que ele tocava na sua consciência como num violino. Para apaziguar a dor da culpa e o desejo de absolvição, continuou a falar do primo.
- Você não o enganou de má-fé, Azhar. Ele não lhe perguntou se me conhecia, pois não? Porque havia de lho ter dito voluntariamente?
- Isso é uma coisa que neste momento Muhannad tem dificuldade em aceitar. Assim - lançou-lhe um olhar cheio de pedidos de desculpa - a utilidade que eu tinha para o meu primo, pode bem ter terminado. E a sua para o inspector Barlow também.
Barbara viu imediatamente o que ele queria dizer.
- Caramba, quer isso dizer que Muhannad vai contar a Emily sobre nós? - Mais uma vez sentiu-se corar. - Quero dizer... nós não. Nós não temos nada. Mas sabe o que...
Ele sorriu.
- Não tenho maneira de saber o que Muhannad pode fazer, Barbara. A maior parte das vezes ele não dá contas do que faz. Há dez anos que não o via, mas, quando adolescente, era exactamente a mesma coisa.
Barbara pensou nisto, pensou em todas as implicações de Muhannad não dar contas do que fazia, principalmente em relação à entrevista dessa tarde com Fahd Kumhar.
- Azhar - disse ela. - A reunião de hoje, na esquadra... Ele deitou o cigarro para o chão e pisou-o. Por trás deles a volta dos barcos terminava novamente. Hadiyyah pediu só mais uma vez. O pai consentiu, deu o bilhete ao homem e ficou a ver a filha fazer-se outra vez ao mar. Depois disse:
- A reunião?
- Com Fahd Kumhar. Se, como você diz, Muhannad nunca dá contas daquilo que faz, há alguma possibilidade de ele já conhecer o homem? Quer dizer, antes de ter entrado na sala?
Azhar pareceu, ao mesmo tempo cauteloso, alerta e, mais do que isso, pouco disposto a falar. Barbara gostaria que o primo dele estivesse presente naquela altura, para ver a quem é que Azhar era verdadeiramente leal.
- Só pergunto porque a reacção de Kumhar foi tão exagerada. Poder-se-ia pensar que ficaria aliviado quando vos visse, mas não me pareceu que assim fosse. Estava cheio de medo, não é verdade?
- Ah - disse Azhar - é um problema de classes, Barbara. A reacção de consternação, subserviência e ansiedade da parte de Mr. Kumhar é fruto da nossa cultura. Quando ouviu pronunciar o nome do meu primo, reconheceu o membro de um grupo social e económico mais elevado que o seu. O nome dele, Kumhar, é aquilo a que chamamos Kami, a casta dos artesãos e trabalhadores, carpinteiros, oleiros e outros. O nome do meu primo, Malik, indica que é membro dos senhores da terra da nossa sociedade.
- Está a dizer-me que ele tremia daquela maneira por causa de um apelido? - Barbara sentiu dificuldade em acreditar na explicação. - Que diabo, Azhar! Estamos em Inglaterra e não no Paquistão.
- Por isso espero que entenda o que eu quis dizer. A reacção de Mr. Kumhar não é muito diferente do desconforto de um inglês na presença de outro inglês, cuja pronúncia da língua ou escolha de vocabulário revele a classe a que pertence.
Diabo do homem. Era sempre tão astuto e consistente.
- Com licença?
A voz vinha detrás deles. Barbara e Azhar voltaram-se e viram uma jovem de mini-saia e cabelo louro pela cintura que estava pouco à vontade junto a um caixote de lixo a deitar por fora. Trazia uma girafa idêntica àquela que Azhar conseguira apanhar para a filha, e alternava o peso do corpo, ora num pé ora noutro, olhando timidamente de Azhar para Barbara, para os barcos e novamente para Azhar.
- Procurei-vos por todo o lado - disse. - Estava com eles. Isto é estava lá. Lá dentro. Quando a miúda... - baixou a cabeça e examinou a girafa antes de a estender na direcção deles. - Dê-lhe isto, por favor? Não queria que ela pensasse... Essa malta está sempre a armar-se. É o que costumam fazer. São assim mesmo.
Pôs o animal de pelúcia nas mãos de Azhar, sorriu fugazmente, e apressou-se a voltar para junto dos companheiros. Azhar viu-a partir e disse baixinho algumas palavras:
- Que a conduta deles não te ofenda - disse com um sorriso e um aceno na direcção da rapariga. - Porque não ofendem Alá.
Hadiyyah não poderia ter ficado mais contente com a nova girafa. Apertou-a alegremente contra o peito, encostando o queixo à cabeça do animal. Porém recusou separar-se da outra girafa.
- Ela não tem culpa de ter ficado salpicada de ketchup - disse como se se tratasse de uma amiga pessoal. - Acho que a podemos lavar, não é pai? E se o ketchup não sair podemos fingir que fugiu de um leão quando era pequena.
A imaginação das crianças", pensou Barbara.
Passaram mais uma hora a gozar as atracções do pontão: perderam-se no Palácio dos Espelhos, ficaram intrigados com a exposição dos hologramas, atiraram bolas para um cesto, tentaram a sorte no tiro ao arco e escolheram o que haviam de imprimir nas t-shirts de recordação. Hadiyyah decidiu-se por um girassol, Azhar escolheu um comboio a vapor - embora Barbara não o imaginasse a vestir outra coisa menos formal do que as camisas de linho imaculadas - e Barbara preferiu o desenho de um ovo partido sobre um chão pedregoso, perto de um muro, com as palavras HUMPTY-DUMPTY1 MEXIDO, impressas em arco sobre a gravura.
Hadiyyah suspirava de prazer quando se dirigiam à saída. As atracções começavam já a fechar e, como resultado, o barulho diminuíra consideravelmente e o número de pessoas também. Agora restavam principalmente casais, rapazes e raparigas que procuravam as sombras com a mesma avidez com que tinham procurado os jogos e divertimentos. Aqui e ali um casal entrelaçado encostava-se aos varões do pontão. Uns olhavam as luzes de
1 Personagem em forma de ovo que faz parte de uma antiga canção infantil. (N. da T. )
Balford, espalhadas pela costa, outros ouviam o barulho do mar batendo lá em baixo, nas estacas e outros ignoravam tudo, à excepção da companhia e do prazer de terem outro corpo junto ao seu.
- Isto - anunciou Hadiyyah sonhadora - é o sítio mais bonito do mundo. Quando crescer vou passar aqui as minhas férias todas. E a Barbara vem comigo, não vem? Porque vamos ser amigas para sempre. E o pai vem connosco, não é, pai? E a mãe também. E então, quando o pai ganhar outro elefante para a mãe eu não vou cortá-lo no chão da cozinha. - Suspirou novamente, com as pálpebras já pesadas. - Temos de comprar uns postais, pai acrescentou, tropeçando por não ter sido capaz de levantar um pé à altura suficiente para subir um degrau. - Temos de mandar um postal à mãe.
Azhar parou. Tirou as duas girafas das mãos da pequenita e entregou-as a Barbara. Depois pegou na filha ao colo, com as pernitas à volta da cintura.
- Eu posso andar - protestou sonolenta. - Não estou cansada. Nem um bocadinho.
Azhar deu-lhe um beijo na cabecinha. Ficou por uns momentos imóvel, com a filha nos braços, como que invadido por uma emoção que queria sentir, mas não mostrar.
Ao vê-lo, Barbara sentiu uma saudade que não quis identificar e muito menos experimentar. Por isso, remexeu o saco de plástico onde estavam as três t-shirts dobradas e meteu as duas girafas dentro dele, alterando a posição do saco no seu braço. Naquele momento deixara cair a armadura diária de troça e ironia. Ali, no pontão, na companhia do pai e da filha, as circunstâncias sugeriam que deveria rever os elementos da sua vida pessoal.
Mas não era pessoa para aceitar tais sugestões, por isso buscou uma ocupação intelectual, emocional e psicológica para o espírito. Encontrou-o sem dificuldade: na direcção deles vinha Trevor Ruddock, que tinha acabado de sair do pavilhão profusamente iluminado.
Trazia um fato-de-macaco azul-claro, vestimenta tão pouco de acordo com ele, que Barbara calculou que fosse o uniforme usado pelas equipas de manutenção e limpeza que se ocupavam do pontão depois do fecho. Mas não fora o fato-de-macaco que a fizera olhar mais uma vez e com mais atenção para o jovem Mr. Ruddock. Afinal, ele trabalhava no pontão. Fora solto da esquadra umas horas antes. A sua presença nas Atracções Shaw nem sequer era ilógica, devido à hora. Mas a enorme mochila que trazia às costas era um acessório menos razoável no elegante conjunto.
Como adaptava os olhos à diferença de luz entre o pavilhão e o pontão, Trevor não viu Barbara nem os companheiros. Dirigiu-se a uma arrecadação, no lado oriental do pavilhão, abriu a porta com uma chave e entrou lá para dentro.
Quando Azhar começou mais uma vez a dirigir-se para a saída, Barbara colocou-lhe a mão no braço.
- Espere aí - disse ela,
Ele seguiu-lhe a direcção do olhar e, nada vendo, voltou a olhar para ela perplexo.
- Acont...?
- É só uma coisinha que eu quero confirmar. - disse ela. Afinal a arrecadação era um esconderijo perfeito para o contrabando. Era evidente que Trevor Ruddock tinha na sua posse, mais alguma coisa do que o jantar. Com a proximidade de Balford a Harwich e Parkeston... não fazia sentido deixar passar esta oportunidade.
Trevor apareceu, sem a mochila, conforme Barbara reparou, empurrando um carro enorme. Estava equipado com vassouras e escovas, baldes e pás de lixo, uma mangueira enrolada e um conjunto de frascos e latas não identificáveis. Barbara concluiu que seriam produtos de limpeza e desinfectantes. A limpeza das Atracções Shaw era um assunto importante. Por momentos pensou até que a mochila de Trevor poderia conter os seus instrumentos de limpeza. Era uma possibilidade, e sabia que havia apenas uma maneira de descobrir.
Ele dirigiu-se para o fim do pontão, com intenções óbvias de entrar no pavilhão pelo lado do restaurante em obras. Barbara aproveitou a oportunidade. Agarrou o cotovelo de Azhar e levou-o até à arrecadação. Experimentou a porta que Trevor fechara atrás de si. Viu que estava com sorte. Não a voltara a fechar à chave.
Entrou.
- Fique de vigia - pediu ao amigo.
- Vigia? - Azhar transferiu o peso de Hadiyyah de um braço para o outro. - Porquê, Barbara? O que vai fazer?
- É só para confirmar uma teoria - disse ela. - É um instante. Ele não disse mais nada e como ela não o podia ver, assumiu apenas que estava a fazer o seu papel e a verificar se alguém se dirigia à arrecadação com intenções de lá entrar. Por seu lado, Barbara considerava aquilo que Helmut Kreuzhage lhe dissera de Hamburgo nessa tarde: Haytham Querashi suspeitara que alguém estava envolvido numa actividade ilegal, que incluía Hamburgo e os portos ingleses mais próximos.
Contrabando de droga seria a actividade ilegal mais óbvia, apesar do que o Kriminalhauptkommisar Kreuzhage lhe dissera, para desencorajar essa linha de pensamento. Envolvia muito dinheiro, principalmente se a droga fosse heroína. Mas uma actividade ilegal que envolvesse contrabando podia não se limitar aos narcóticos. Havia a considerar a pornografia, bem como pedras preciosas, tais como diamantes, explosivos e armas de pequeno porte, qualquer dos quais poderia ser transportado para o pontão numa mochila e
escondido numa arrecadação. Olhou à volta, procurando a mochila, mas nada viu. Começou a busca. A única luz que havia lá dentro provinha da -porta, parcialmente aberta, mas era suficiente para conseguir ver assim que os seus olhos se adaptassem à semiobscuridade. A arrecadação estava mobi lada com um conjunto de armários e revistou-os rapidamente. Apenas encon trou cinco latas de tinta, pincéis, rolos, fatos-de-macaco e oleados, juntamente com outros produtos de limpeza.
Para além dos armários havia ainda duas grandes gavetas e uma arca. As gavetas continham ferramentas para pequenas reparações: chaves de para fusos, alicates, pés-de-cabra, pregos, parafusos e uma pequena serra. Mas nada mais.
Barbara passou à arca. A tampa rangeu de um modo que seria provavelmente ouvido em Clacton. A mochila estava lá dentro e tinha estrutura de alumínio como as que os estudantes usam quando andam à boleia durante as férias, decididos a conhecer o mundo.
Cheia de ansiedade, sentindo e acreditando que por fim ia chegar a algum lado, Barbara tirou lá de dentro o saco e abriu-o no chão. Ficou desanimada quando viu o que continha. E a esperança deu rapidamente lugar à confusão.
A mochila continha uma variedade de artigos inúteis, pelo menos inúteis para os seus actuais objectivos: Esvaziou o saco onde havia saleiros em forma de farol, de pescador, de âncora e de baleia; moinhos-de-pimenta com a forma de escoceses e piratas; um serviço de chá de plástico; duas bonecas Barbie sujas, três pacotes de cartas de jogar intactos e selados; uma caneca comemorativa do breve casamento do Duque e da Duquesa de Iorque; um pequeno táxi de Londres com falta de uma roda; dois pares de óculos-escuros de criança; uma caixa fechada de nogá; duas raquetes de ping-pong, uma rede do mesmo jogo e uma caixa de bolas.
Que diabo, pensou Barbara. Era um fracasso total.
- Barbara - ouviu Azhar dizer do outro lado da porta. - Nesta direcção vem um rapaz que saiu do pavilhão. Acabou de sair de lá.
Ela voltou a guardar tudo, tentando colocar todos os artigos tal como os encontrara. Azhar voltou a chamar por ela, mas desta vez com maior urgência.
- Vou já, vou já - murmurou em resposta. Voltou a meter a mochila na arca e foi ter com Azhar lá fora.
Esperaram perto do gradeamento, onde as sombras eram mais profundas, logo atrás dos barquinhos à vela. O recém-chegado dobrava a esquina da arrecadação, dirigiu-se à porta, sem hesitar, lançou um olhar sub-reptício à esquerda e à direita e entrou.
Barbara conhecia o rapaz de vista, já o tendo encontrado em duas ocasiões. Era Charlie Ruddock, irmão mais novo de Trevor.
- Quem é, Barbara? - Perguntou Azhar em surdina. - Conhece-o? Com a cabeça no ombro do pai, Hadiyyah profundamente adormecida, murmurou qualquer coisa, como que em resposta à pergunta.
- Chama-se Charlie Ruddock - disse Barbara.
- Porque o vigiamos? E de que andava à procura naquela arrecadação?
- Não sei exactamente - disse. E quando ele pareceu não acreditar, continuou. - É verdade, Azhar. Não sei. Este caso é o diabo. Poderia ser racial como você queria que fosse.
- Como eu queria que fosse? Não Barbara. Não sou...
- Está bem, está bem. Como algumas pessoas queriam que fosse. Mas está a parecer-me que também poderia ser outra coisa.
- O quê? - Perguntou ele. Mas tal como se ela lho tivesse comunicado leu-lhe no rosto a relutância em partilhar informações. - Não se vai explicar, pois não?
Foi salva de ter de responder a esta pergunta. Charlie Ruddock saía da arrecadação. E às costas trazia a mochila que Barbara acabara de examinar. Cada vez mais curioso, pensou ela. Que diabo se passaria exactamente?
Charlie voltava para o pavilhão. Barbara disse Vamos" e começou a segui-lo.
As luzes dos divertimentos estavam já apagadas e o número de visitantes reduzia-se a alguns casais à procura do escuro e algumas famílias que reuniam os seus membros antes de partir. O barulho acalmara. Os cheiros tinham-se desvanecido. Nas atracções, nos carrosséis e dentro das barracas de comida rápida, aqueles cujo modo de vida era o pontão, preparavam-no para o dia seguinte.
Com tão poucos visitantes, a maior parte dirigindo-se para a saída era fácil seguir um jovem que fazia exactamente o contrário, ainda por cima com uma mochila às costas. Quando Barbara e os amigos atravessaram o pontão em direcção ao mar, ela viu o caminho que ele tomava e considerou o que tinha visto e ouvido naquela noite.
Haytham Querashi fora insistente, dizendo que alguma coisa se passava entre a Alemanha e Inglaterra. Como tinha telefonado para Hamburgo, seria razoável pensar que ele acreditava que a actividade tinha origem nessa cidade. Os ferries alemães saíam de Hamburgo para o porto de Parkeston, perto de Harwich. Mas Barbara não estava mais perto de saber o que se passava, se é que se passava alguma coisa - entre os dois países e quem estava envolvido se é que alguém estava - nessa actividade, do que estivera quando o estado do Nissan abandonado de Querashi indicara a possibilidade de contrabando.
O facto do Nissan ter sido todo rasgado, tinha já posto em questão tudo a respeito de Querashi. E as condições do carro não tinha já acentuado a possibilidade de contrabando? E se assim fosse, estaria Querashi envolvido? Ou estaria ele, homem de convicções religiosas profundas, que até telefonara para o Paquistão, só para discutir um verso do Corão, a tentar avisar a respeito de uma actividade ilegal? E fosse o que fosse que Querashi tivesse feito, como seria que Trevor Ruddock lá encaixava? Ou o irmão Charlie?
Barbara sabia como Muhannad Malik, e talvez Azhar, reagiriam a essas questões finais. Afinal os Ruddock eram brancos.
Mas naquela noite ela já tivera provas suficientes do que já sabia, a respeito das interacções raciais. Os adolescentes que tinham incomodado Hadiyyah e a jovem que tentara corrigir o erro eram o microcosmos humano de uma população mais numerosa e, como tal, justificavam aquilo em que Barbara acreditava: alguns dos seus compatriotas eram xenófobos imbecis; outros, afinal, não o eram.
Mas, perguntava ela a si própria, de que adiantava ter chegado a essa conclusão para a investigação do assassínio de Querashi? Principalmente numa situação em que os únicos suspeitos sem álibi eram brancos?
Lá à frente, Charlie Ruddock chegara à parte do pavilhão do lado de terra e parara. Barbara e os amigos imitaram-no, observando-o. Estava no extremo sul do pontão, montando uma velha bicicleta cheia de ferrugem. Atrás dele, os proprietários da Cabana da Lagosta colocavam as protecções de metal nas janelas. A pouca distância Balford Balloons and Rock já fechara as portas. As filas de casas de praia que se estendiam na marginal para sul destes dois estabelecimentos comerciais pareciam uma aldeia abandonada. As portas e as janelas estavam firmemente trancadas e o único som emitido na sua vizinhança mais próxima era o eco das ondas do mar a bater na costa.
- O rapaz está metido nalguma, não é verdade? - Perguntou Azhar.
- E tem a ver com o assassínio de Haytham.
- Não sei, Azhar - disse Barbara com sinceridade, enquanto olhavam para Charlie montado na velha bicicleta, a pedalar na direcção do Nez. Está metido nalguma. Isso é óbvio. Mas o que é, juro por Deus que não sei.
- Quem diz isso? O sargento ou Barbara? - Perguntou Azhar baixinho. Ela desviou o olhar de Ruddock para o homem que estava ao pé de si.
- Não há qualquer diferença entre as duas - disse ela. Azhar acenou com a cabeça e mudou a filha de posição.
- Percebo. Mas talvez devesse haver.
ÀS DEZ DA MANHÃ, BARBARA estava na estrada de Harwich. Tinha
telefonado a Emily assim que o despertador tocara e apanhara o inspector ainda em casa. Contou-lhe o que o Kriminalhauptkominisar Kreuzhage de Hamburgo lhe tinha dito e o que tinha visto no pontão na noite anterior. Deixou de fora o facto de lá ter estado acompanhada por Taymullah Azhar e pela filha deste quando vira Trevor Ruddock, o irmão e a mochila e disse a si mesma que uma longa explicação acerca da sua relação com os paquistaneses iria quebrar aquela frágil clareza que tinham conseguido trazer à investigação.
Teve consciência de que o facto de não ter mencionado os seus companheiros do pontão, não tinha a mínima importância, pois assim que Barbara mencionou o assunto da sua conversa com Helmut Kreuzhage, Emily não quis saber de mais nada. O inspector estava animada, descansada e completamente acordada. Fosse o que fosse que ela e o desconhecido Gary tivessem feito para mitigar o stress a seguir ao trabalho, tinha, de certeza, dado resultado.
- Uma ilegalidade qualquer? - Disse. - Em Hamburgo? Muito bem, Barb. Eu bem disse que Muhannad estava metido em qualquer coisa esquisita, não disse? Pelo menos agora estamos na pista do que possa ser.
Barbara foi cautelosa nas palavras que disse a seguir:
- Mas Querashi não deu ao inspector Kreuzhage qualquer prova sobre
o tipo de actividade ilegal que se estava a desenrolar. E não mencionou nomes, nem sequer o de Muhannad. Quando vigiou o Oskarstra/3e 15, não conseguiu nada, Em. Os homens dele não viram nada que não estivesse dentro da legalidade.?
- Muhannad vai cobrir as pistas. É o que anda a fazer há mais de dez anos. E sabemos que, quem quer que tenha morto Querashi, cobriu as pistas como um profissional. A questão é esta: em que estará Muhannad metido?
Contrabando? Prostituição? Roubos internacionais? O quê?
- Kreuzhage não fazia a mínima ideia. Não iniciou exactamente uma investigação, e o pouco que fez não deu para descobrir nada. Por isso, penso que se não há provas de uma actividade ilegal na Alemanha...
- Então teremos de a descobrir aqui, não é verdade? - Foi a resposta de Emily. - E a fábrica dos Malik pode perfeitamente ser o ponto de partida para vários empreendimentos, desde falsificação a terrorismo. Só lá se poderão encontrar as provas. Pelo menos uma vez por semana, fazem expedição de mercadorias. Quem sabe o que mais vai metido naquelas caixas, para além dos frascos de mostarda e de geleia.
- Mas Em, os Malik não eram as únicas pessoas que Querashi conhecia, portanto não podem ser os únicos suspeitos nesse caso de Hamburgo, pois não? Trevor Ruddock também trabalhava na fábrica. Não podemos esquecer o arame que lhe encontrei no quarto, e temos de ter em consideração o amante de Querashi, se é que alguma vez o vamos descobrir.
- Barbara, seja o que for, vai levar-nos a Muhannad.
Barbara pensava em tudo isto a caminho de Harwich. Tinha de admitir que havia uma certa lógica na conclusão de Emily a respeito de Muhannad e da fábrica de mostarda. Mas sentia-se estranhamente pouco à vontade com a rapidez com que o inspector chegara a esta conclusão. Emily considerara o estranho comportamento dos Ruddock, declarando simplesmente Andam ao lixo e mais nada, e informara-a que a avó de Theo Shaw tivera um acidente vascular extenso na tarde anterior, como se o facto ilibasse o jovem de qualquer intervenção na morte de Querashi.
- Vou também mandar chamar esse tal Professor Siddiqi de Londres, para servir de tradutor quando eu interrogar Kumhar.
- E Azhar? - perguntou Barbara. - Não pouparia tempo se o usasses como tradutor? Ele poderia lá ir sem Muhannad.
Emily rejeitou tal ideia.
- Não tenho qualquer intenção de deixar que Muhannad ou o seu primo se voltem a aproximar desse fulano. Kumhar é o nosso caminho para a verdade, Barb, e não me vou arriscar a dar com tudo em pantanas, tendo um deles a cheirar lá por perto quando o interrogar. Kumhar deve saber alguma coisa a respeito da fábrica. Muhannad é o director de vendas das Mostardas Malik. E o director de vendas supervisiona o departamento de expedição. Em que sítio do esquema pensas tu que essa informação encaixa?
O inspector Linley teria chamado às deduções de Emily trabalho policial intuitivo, um trabalho proveniente de uma longa experiência e uma consciência aguçada do que sentia enquanto os suspeitos eram interrogados e as provas se acumulavam. Mas Barbara aprendera da maneira mais difícil a ter consciência do que se passava dentro de si, como membro de uma equipa de investigação, e as suas sensações, depois da conversa tida com Emily, não lhe agradavam.
Considerou-as de todos os ângulos, observando-as como um cientista examina um ser alienígena. Certamente que, se Muhannad Malik estivesse envolvido numa conduta ilegal, teria motivos para matar Querashi, se este o tentasse denunciar. Mas a existência dessa possibilidade não deveria obviar a culpa potencial de Theo Shaw e Trevor Ruddock, já que ambos tinham motivos para se verem livres de Querashi e nenhum deles tinha um álibi decente.
Mas era exactamente o que se passava, pelo menos no espírito de Emil Barlow. Quanto mais pensava que ela tinha rejeitado Trevor Ruddock e Theo Shaw como suspeitos, mais sentia que as suas dúvidas se transformavam numa pergunta pouco agradável: estaria Emily a reagir à intuição ou a outra coisa?
O próprio inspector Kreuzhage o dissera de Hamburgo: não havia provas de coisa alguma. Por isso, exactamente, em que baseava Emil as conclusões intuitivas?
Barbara recordou-se do êxito fácil da amiga durante os três cursos que
tinham feito juntas em Maidenstone e dos elogios que recebera dos seus instrutores, aliados à admiração dos outros detectives. Não houvera, então dúvidas no espírito de Barbara que Emily era um polícia acima da média.
Não era apenas boa naquilo que fazia, era soberba. A promoção apenas com trinta e sete anos, sublinhava o facto. Então, interrogava-se porque seria que agora questionava a capacidade de Emily Barlow?
Como há muito tempo era parceira do inspector Linle, Barbara fora obrigada, mais do que uma vez, a não só a examinar os factos de um caso, como também os seus próprios motivos porque suspeitava de um desses factos e não de outros. Muitas vezes praticara esta actividade em que estava envolvida agora que percorria os campos de trigo a caminho de Harwich. Só que desta vez não examinava os factos que mais a preocupavam numa investigação nem porque o fazia. Pelo contrário, estudava as razões do seu próprio desconforto.
O resultado deste estudo não lhe agradava muito pois concluíra que poderia ser ela própria quem estava a causar problemas na investigação da morte de Querashi. Seria que o colocar a culpa nos paquistaneses atingia demasiado da casa do sargento-detective Barbara Havers. Talvez não sentisse o mínimo incómodo ao ver Muhannad Malik acusado de tudo, desde rufião a chulo se Taymullah Azhar e a filha não pairassem na periferia da investigação.
Esta conclusão perturbou-a mais do que o necessário. Percebeu que não queria entrar em especulações sobre quem tinha ou não clareza de espírito acerca da investigação. Não queria, de modo nenhum, reflectir sobre os seus sentimentos a respeito de Azhar e de Hadiyyah.
Dirigiu-se a Harwich decidida a procurar informações objectivas. Seguiu a rua principal em direcção ao mar e encontrou a World Wide Tours, metida entre uma loja de comida rápida e uma garrafeira que anunciava reduções nos preços do amontillado.
A World Wide Tours compreendia uma sala enorme, com três secretárias nas quais trabalhavam duas mulheres e um homem. Estava sumptuosamente decorada, mas de forma antiquada, o que era estranho. As paredes estavam forradas a papel e nelas estavam penduradas em molduras douradas gravuras representando famílias de viajantes do princípio do século. A secretária, as cadeiras e as estantes eram de mogno pesado. Havia cinco vasos com grandes palmeiras e sete fetos enormes, pendurados no tecto, onde girava uma ventoinha que lhes agitava as folhas. Em todo o cenário havia um ambiente vitoriano artificial, que fez com que Barbara tivesse vontade de inundar o edifício com uma mangueira de incêndio.
Uma das duas mulheres perguntou a Barbara o que desejava. A outra falava ao telefone, enquanto o colega do sexo masculino examinava um ecrã de computador e murmurava:
- Vá lá, Lufthansa!
Barbara exibiu o crachá. Numa placa com o nome viu que falava com alguém que se chamava Edwina.
- Polícia? - Perguntou esta, apoiando três dedos na concavidade da garganta, como se esperasse ser acusada de alguma coisa mais perversa do que ter aceite trabalhar num escritório de mau gosto, que parecia acabado de sair de um livro de Charles Dickens. Olhou para os colegas. O homem, cujo nome, conforme estava inscrito na placa, era Rudi, bateu no teclado do computador e fez deslizar a cadeira na direcção delas. Fez o papel de eco de Edwina quando repetiu a terrível palavra; o terceiro funcionário terminou a conversa telefónica. Conforme Barbara pôde ver, esta pessoa chamava-se Jen e garrava-se à cadeira com as duas mãos, como se temesse levantar voo de repente. Barbara pensou, e já não o fazia pela primeira vez, que a chegada de um agente da autoridade, trazia sempre ao de cima as culpas subconscientes das pessoas.
- Isso mesmo - disse Barbara. - Da New Scotland Yard.
- Scotland Yard? - A pergunta viera de Rudi. - Veio de Londres até aqui? Espero que não haja problemas.
Pode bem ser que haja, pensou Barbara. O parvo falava com um sotaque alemão.
Quase conseguia ouvir a voz educada e elegante do inspector Lynley a citar a primeira regra do trabalho policial: Não há coincidências num homicídio. Barbara examinou o jovem dos pés à cabeça, gorducho como uma pipa de vinho, cabelo ruivo, espetado, já a rarear-lhe no alto da cabeça, não parecia ter ar de quem tinha, recentemente, cometido um assassinato. Mas também quem o tinha?
Tirou do saco as fotografias e mostrou primeiro a de Querashi, dizendo.
- A cara deste homem é-vos familiar?
Os outros dois juntaram-se à volta da secretária de Edwina, com os ombros curvados, examinando o retrato que Barbara colocara no meio. Examinaram-no em silêncio, enquanto por cima das suas cabeças os fetos sussurravam com a ventoinha do tecto. Passou quase um minuto até que alguém respondesse; a seguir, foi Rudi quem falou, mas para os colegas e não para Barbara.
- Este não foi o tipo que veio perguntar pelos bilhetes de avião?
- Não sei - disse Edwina, em ar de dúvida, os dedos puxando-lhe a pele da garganta.
- Sim, lembro-me dele - disse jen. - Fui eu que o atendi, Eddie. Tu tinhas saído. - Olhou de frente para Barbara. - Entrou aqui, quando foi, Rudi? Talvez há três semanas. Não me lembro exactamente.
- Mas lembra-se dele? - Perguntou Barbara.
- Sim, claro. Isto é... não há assim muitos.
- Vêem-se poucos asiáticos aqui, em Harwich - disse Rudi.
- E o senhor é de...? - Perguntou Barbara encorajando-o embora tivesse quase a certeza da resposta.
- Hamburgo - disse.
Bom, bom, bom, pensou ela.
- Sou natural de Hamburgo - disse ele. - Mas estou cá há sete anos.
- Bom, está bem - disse ela. - Este homem chamava-se Haytham Querashi e estou a investigar o seu assassinato. Foi morto a semana passada em Balford-le-Nez. Que espécie de bilhetes de avião queria ele?
Diga-se, em abono da verdade, que todos eles ficaram surpreendidos, ou consternados, quando a palavra assassinato foi pronunciada. Baixaram a cabeça e examinaram a fotografia de Querashi, como se fosse a relíquia de um santo. Jen foi a única a responder. Ele pedira bilhetes de avião para a família, explicou a Barbara. Queria trazê-los do Paquistão para Inglaterra. Era um grupo de pessoas: irmãos e irmãs, pais, tudo. Queria que viessem para ficar cá definitivamente.
- Vocês têm uma agência no Paquistão - observou Barbara. Em Carachi, não é verdade?
- E também em Hong Kong, Istambul, Nova Deli, Vancouver, Nova Iorque e Kingston - disse Edwina, com orgulho. - Somos especializados em viagens internacionais e imigração. Temos técnicos em todos as agências.
Fora provavelmente por isso mesmo que Querashi tinha escolhido a World Wide Tours e não qualquer outra agência de Balford, acrescentou Jen. Fizera perguntas acerca da possibilidade da imigração da família. Ao contrário da maior parte da agências sempre preocupadas em extrair dinheiro aos clientes, a WWT tinha reputação internacional - reputação internacional de que muito nos orgulhamos foi assim que ela o disse - pela sua rede mundial de contactos com advogados especialistas em imigração.
- Reino Unido, União Europeia, Estados Unidos - disse ela. - Somos a agência de viagem das pessoas que transitam pelo mundo e queremos tornar mais fácil esse trânsito.
Só conversa, pensou Barbara. A jovem parecia um anúncio. Lá se ia a ideia de que Querashi tentava escapar-se da cidade uns dias antes do casamento. Afinal parecia pretender manter a sua parte do acordo de casamento. De facto parecia até que tinha estado a fazer também planos para a família.
Barbara puxou da fotografia de Fahd Kumhar. Com esta o resultado foi diferente. Nenhum deles conhecia este asiático. Nenhum deles o tinha visto. Barbara observava-os de perto, procurando a indicação de que um deles
estava a mentir. Mas nenhum pestanejou sequer.
Falhara, pensou. Agradeceu-lhes a colaboração e saiu do escritório. Eram onze da manhã e já escorria suor. Como também estava cheia de sede, entrou no Whip and Whistle, no outro lado da rua. Aí conseguiu que o dono lhe dis pensasse cinco cubos de gelo, sobe os quais deitou limonada. Levou a bebida para uma mesa perto da janela, juntamente com um pacote de aperitivos de sal e vinagre, atirou-se para cima dum banquinho, acendeu um cigarro e preparou-se para gozar o intervalo.
Já tinha consumido metade dos aperitivos, três quartos da limonada e todo o cigarro, quando viu que Rudi saía da World Wide Tours e atravessava a rua. Olhava para a direita e para a esquerda, depois novamente para a direita, de um modo que Barbara considerou demasiado cauteloso, podendo ser apenas provocado pelo receio de um europeu pouco habituado ao trânsito inglês ou a um acto furtivo. Apostou no último e, quando Rudi começou a subir a rua, engoliu o resto da limonada e deixou na mesa o pacote meio de aperitivos.
Uma vez na rua viu-o à esquina abrindo a porta de um Renault. O seu Mini estava estacionado à distância de dois carros, portanto quando o alemão pôs o automóvel a trabalhar e se enfiou no trânsito ela fez o mesmo. Uns instantes depois seguia atrás dele.
Claro que qualquer coisa o poderia ter feito sair da agência de viagens: uma consulta no dentista, um encontro de natureza sexual, uma ida ao calista ou um almoço antecipado. Mas como se seguira à sua visita, a saída de Rudi era demasiado estranha para não ser investigada.
Seguiu-o à distância. Ele tomou a A120 para sair da cidade. Conduzia sem respeitar o limite de velocidade e dirigiu-se directamente a Parkerston, a mais de três quilómetros da agência de viagens. Porém não virou na direcção do porto, dirigindo-se antes a uma zona industrial antes dessa estrada.
Barbara não podia arriscar-se a segui-lo até lá. Mas estacionou perto, na faixa de emergência, e ficou a ver o Renault parar lá ao fundo, junto a um armazém pré-fabricado, de chapa metálica. Naquele momento, Barbara teria trocado o exemplar autografado de O Selvagem Lascivo por um par de binóculos. Estava longe de mais para ler o letreiro do edifício.
Ao contrário dos outros armazéns daquela zona este estava fechado e parecia desocupado. Mas, quando Rudi bateu à porta, alguém o fez entrar. Dentro do Mini, Barbara vigiava. Nem sabia o que esperava ver e nada viu. Suava em silêncio no carro abafado e passou um quarto de hora, que mais lhe pareceu um século, até Rudi de lá sair. Não tinha na sua posse sacos de heroína, nem os bolsos cheios de dinheiro ilegal, nem vídeocassetes com crianças em posições comprometedoras, nem armas ou explosivos e nem sequer vinha acompanhado. Saiu do armazém, tal como lá entrara: de mãos vazias e só.
Barbara sabia que ele a havia de ver se ela se mantivesse à entrada da zona industrial, por isso voltou a entrar na A120, com a intenção de voltar para trás e dar uma volta por entre os armazéns, logo que Rudi partisse. Mas quando procurou um sítio adequado para fazer inversão de marcha, viu um enorme edifício de pedra, situado numa estrada lateral. O letreiro da estrada anunciava THE CASTLE HOTEL em letra gótica. Lembrou-se do folheto que encontrara no quarto de Haytham Querashi. Entrou no parque de estacionamento do hotel, tomando a decisão de matar outro coelho com a cajadada que já desferira.
O Professor Siddiqi não era, de modo algum, aquilo que Emily Barlow esperara que fosse. Estava à espera de um homem moreno, de meia-idade com cabelo negro penteado para trás, revelando uma testa inteligente, olhos cor-de-carvão e pele cor-de-tabaco. Mas o homem que se lhe apresentou aconpanhado pelo agente Hesketh, que o tinha ido buscar a Londres, era muito louro, com olhos definitivamente cinzentos e a pele tão branca que mais parecia a de um cidadão da Europa do norte do que de um asiático. Parecendo ter trinta e poucos anos, era um homem compacto, mais baixo até do que ela. Era de constituição forte, parecendo um praticante amador de luta-livre.
Sorriu quando a viu modificar rapidamente a sua expressão de espanto num ar de indiferença. Estendeu-lhe a mão, para a cumprimentar, e disse:
- Não saímos todos do mesmo molde, inspector Barlow. Ela não gostou de ser tão rapidamente compreendida, principalmente por alguém que não a conhecia. Ignorou a observação e disse bruscamente:
- Obrigado por ter vindo. Quer tomar alguma coisa, ou vamos já tratar deste assunto com Mr. Kumhar?
Ele pediu um sumo de toranja e, enquanto Belinda Warner saiu para o ir buscar, Emily explicou a situação que provocara a vinda do professor.
- Vou gravar toda a entrevista - disse, como conclusão. - As minhas perguntas em inglês, a sua tradução, as respostas de Mr. Kumhar e as suas traduções.
Siddiqi era suficientemente inteligente para fazer as suas deduções.
- Pode confiar na minha integridade - disse. - Mas, como até agora não nos conhecíamos, nunca esperei que confiasse em mim sem primeiro se certificar.
Tendo sido estabelecidas as regras principais e ficado implícitas as menos importantes, Emily levou-o para que conhecesse o seu compatriota asiático.
Kumhar em nada beneficiara com a noite passada sob custódia. Estava, se possível, ainda mais ansioso do que na tarde anterior. Pior, estava encharcado em suor e deitava um fedor a fezes como se não lhe tivesse sido possível usar a casa-de-banho.
Siddiqi olhou para ele e virou-se para Emily.
- Onde é que meteram este homem? E que diabo lhe fizeram? Mais outro que adora ver filmés pró-IRA, pensou Emily, aborrecida. Guilford e Birmingham tinham feito um trabalho inestimável pela causa da polícia.
- Foi mantido numa cela que pode visitar, Professor - disse. - E não lhe fizemos nada, a menos que servir-lhe o jantar e o pequeno-almoço possa hoje em dia ser considerado tortura. Está calor nas celas. Mas não está mais do que no resto do edifício, ou em toda esta maldita cidade. Ele dir-lhe-á o mesmo, se Lho quiser perguntar.
- É o que vou fazer - disse Siddiqi. E disparou uma série de perguntas para Kumhar, sem sequer se dar ao trabalho de as traduzir. Pela primeira vez desde que tinha sido trazido para a esquadra, Kumhar perdeu o ar de coelho assustado. Abriu as mãos e estendeu-as a Siddiqi como se este lhe tivesse lançado uma bóia de salvação.
Era um gesto de súplica e, aparentemente, foi assim que o professor o viu. Estendeu também as duas mãos para o homem e trouxe-o para a mesa que ficava no meio da sala. Falou mais uma vez, mas agora traduzindo tudo para Emily.
- Apresentei-me e disse-lhe que estava aqui para traduzir as suas perguntas e as respostas dele. Disse-lhe que a senhora não lhe queria fazer mal. Espero que seja verdade, inspector.
Mas o que se passava com aquela gente? Perguntava Emily a si própria. Viam iniquidade, preconceitos e brutalidade em toda a parte. Não respondeu directamente. Em vez disso ligou o gravador, disse a data, a hora e o nome dos presentes.
- Mr Kumhar - disse depois. - O seu nome estava entre as coisas que pertenciam a um homem que foi assassinado, Mr. Haytham Querashi. Pode explicar-me porquê?
Esperava que ele respondesse com a mesma ladainha do dia anterior e uma enfiada de desmentidos. Ficou surpreendida. Kumhar fixou os olhos em Siddiqi, enquanto este lhe traduzia a pergunta e quando respondeu - com um extenso número de palavras - não tirou os olhos do professor. Siddiqi ouviu, acenou afirmativamente e, a certa altura, interrompeu-o para lhe fazer uma pergunta. Depois voltou-se para Emily.
Conheceu Mr. Querashi perto de Weeley, na A133. Ele, isto é, Mr. Kumhar estava a pedir boleia e Mr. Querashi parou para o levar. Isto passou-se há quase um mês. Mr. Kumhar tinha estado a trabalhar como trabalhador agrícola e andara pelos campos deste país. Não estava satisfeito com o dinheiro que ganhava nem com as condições de trabalho, por isso decidira procurar outro emprego.
Emily considerou o assunto, de sobrolho franzido.
- Porque não o disse ontem? Porque negou conhecer Mr. Querashi? Siddiqi voltou-se para Kumhar que olhava para ele com a ansiedade de um cachorrinho disposto a agradar. Antes de Siddiqi acabar a pergunta já Kumhar respondia, desta vez dirigindo a resposta para Emily.
- Quando me disse que Mr. Querashi tinha sido assassinado - traduziu Siddiqi. - Tive medo que pensasse que eu estava metido no assunto. Menti para me proteger de ficar sob suspeita. Estou num país novo e nada quero fazer que possa pôr em risco a minha vinda para cá. Por favor, compreenda que lamento muito ter mentido. Mr. Querashi foi muito bom para mim e eu traí a sua bondade por não ter dito imediatamente a verdade.
Emily reparou que o suor que cobria a pele do homem parecia uma fina camada de óleo de fritar. Que ele lhe tinha mentido no diaanterior era um facto verídico. O que teria de ser questionado era se lhe estava ou não a mentir hoje.
- Mr. Querashi sabia que estava à procura de emprego? - Perguntou. Sabia, respondeu Kumhar. Falara a Mr. Querashi nos seus problemas com o emprego na quinta. A maior parte da conversa que tinham tido no carro versara esse assunto.
- Mr. Querashi ofereceu-lhe emprego?
Nesta altura, Kumhar fez um ar espantado. Um emprego? Perguntou. Não, não lhe oferecera emprego. Mr. Querashi apenas o levara até à sua residência.
- E passou-lhe um cheque de quatrocentas libras - acrescentou Emily. Siddiqi ergueu uma sobrancelha, mas traduziu sem fazer qualquer comentário.
Era verdade que Mr. Querashi lhe dera o dinheiro. Era a bondade em pessoa e Mr. Kumhar não queria mentir, dizendo que este presente de quatrocentas libras era um empréstimo. Mas o Corão decretava-o e os Cinco Pilares do Islão exigiam o pagamento do zakat àqueles que necessitassem. Assim ao dar-lhe quatrocentas libras.
- O que é o zakat? - interrompeu Emily.
- Esmolas para os necessitados - respondeu Siddiqi. Kumhar olhava-o ansioso sempre que o ouvia falar inglês e a sua expressão sugeria que tentava perceber e absorver cada palavra. - Exige-se que os muçulmanos ajudem no bem-estar económico dos membros da sua comunidade. Damos apoio a pobres e a outros necessitados.
- Quer dizer que, ao dar a Mr. Kumhar quatrocentas libras, Haytham Querashi estava simplesmente a cumprir um dever religioso?
- Exactamente - disse Siddiqi.
- Não lhe estava a comprar nada?
- Nada como? - Siddiqi fez um gesto na direcção de Kumhar. O que poderia este pobre homem vender-lhe?
- Talvez o seu silêncio. Mr. Kumhar vive há algum tempo próximo do mercado de Clacton. Pergunte-lhe se alguma vez viu lá Mr. Querashi.
Siddiqi olhou para ela por breves instantes, como se tentasse perceber o significado da pergunta. Depois encolheu os ombros e voltou-se para Kumhar, repetindo a pergunta na sua língua.
Inflexível, Kumhar abanou a cabeça. Emily não precisou de tradução para saber que nunca, nem uma única vez, nem em qualquer altura ele próprio tivesse estado no mercado.
- Mr. Querashi era director de produção de uma fábrica daqui. Poderia ter oferecido emprego a Mr. Kumhar. No entanto, Mr. Kumhar diz que esse assunto nunca foi falado por eles. Será que deseja alterar essa afirmação?
Não, disse-lhe Kumhar por meio do intérprete. Apenas conhecia Mr. Querashi como um benfeitor que lhe fora enviado pela bondade de Alá. Mas tinham algo em comum, que os ligava. Ambos tinham famílias no Paquistão e queriam trazê-las para este país. Embora no caso de Querashi fossem os pais e os irmãos e no de Kumhar fosse a mulher e dois filhos, a intenção era a mesma e, assim, existia entre eles uma maior compreensão do que a que poderia ter existido entre dois estranhos que se tivessem encontrado numa estrada.
- Mas um trabalho permanente não seria mais benéfico do que quatrocen tas libras para quem quer trazer a família para este país? - Perguntou Emily.
- Para que lhe poderia ter chegado o dinheiro em comparação com o salário de um empregado da Mostardas Malik que fizesse horas extraordinárias?
Kumhar encolheu os ombros. Não tinha maneira de explicar a razão pela qual Mr. Querashi não lhe oferecera emprego.
Siddiqi interrompeu com um comentário:
- Mr. Kumhar era um viajante, inspector. Ao oferecer-lhe fundos, Mr. Querashi cumpriu as suas obrigações para com ele. Nada mais se lhe exigia.
- Parece-me que este homem, que segundo Mr. Kumhar era todo bondade, poderia ter auxiliado tanto o seu bem-estar futuro como as suas necessidades presentes.
- Não poderemos saber quais seriam as suas intenções a respeito de Mr. Kumhar - observou o Professor Siddiqi. - Apenas podemos interpretar as suas acções. Infelizmente a sua morte impede-nos de o fazer.? E não teria sido muito conveniente, pensou Emily.
- Mr. Querashi alguma vez se tentou atirar a si, Mr. Kumhar? - Perguntou.
Siddiqi olhou para ela, absorvendo a súbita mudança de assunto. - Está a perguntar.
- Creio que a pergunta é suficientemente clara. Recebemos a informação de que Querashi era homossexual. Gostaria de saber se Mr. Kumhar tinha recebido mais alguma coisa para além do dinheiro dele.
Kumhar escutou a pergunta com alguma consternação. Respondeu com uma certa aflição e horror: não, não, não! Mr. Querashi era um homem bom. Era um homem honrado. Não poderia ter aviltado o seu corpo, bem como a sua alma eterna com um tal comportamento. Não era possível, tratava-se de um pecado contra tudo aquilo em que os Muçulmanos acreditavam.
- E onde estava o senhor na sexta-feira à noite?
No seu alojamento em Clacton. E Mrs. Kersey, a sua anfitriã mais do
que generosa, teria todo o prazer em o confirmar ao inspector.
A entrevista estava concluída e foi isso que Emily recitou para o gravador. Quando desligou, Kumhar falou a Siddiqi com ar aflito.
- Esperem aí! - Disse Emily zangada.
- Ele só quer saber se já pode voltar a Clacton - disse Siddiqi. É compreensível que esteja ansioso por deixar este sítio, inspector.
Emily considerou a possibilidade de conseguir mais informações do paquistanês se o deixasse suar um pouco mais numa cela sufocante à saída do vestiário. Se insistisse mais duas ou três vezes, poderia extrair-lhe um pormenor que a levasse mais perto do assassino. Mas, ao fazê-lo, corria também o risco de que a comunidade asiática voltasse para a rua. Fosse qual fosse o membro da Jum a que viesse buscar Kumhar para o levar a Clacton nessa tarde procuraria algo que fosse útil à sua causa e que pudesse ser utilizado como meio de inflamar o povo. Comparou esta possibilidade com a potencial informação que conseguisse obter do asiático que tinha à sua frente.
Dirigiu-se finalmente à porta e abriu-a de par em par. O agente Honigman estava à espera no corredor.
- Leve Mr. Kumhar ao vestiário - disse. - Veja se ele toma um duche. Que alguém lhe dê o almoço e roupas decentes. E diga ao agente Hesketh que leve o professor a Londres. - Voltou-se para Siddiqi e para o outro homem. - Mr. Kumhar, ainda não terminámos, por isso nem sequer pense em abandonar aqui a zona. Se o fizer, vou atrás de si e arrasto-o até aqui pelos tomates. Percebeu?
Siddiqi lançou-lhe um olhar irónico.
- Suponho que ele entendeu onde queria chegar - disse.
Ela deixou-os e voltou para o gabinete do primeiro andar. Havia muito
tempo que tinha aprendido a confiar nos seus instintos durante uma investigação e estes gritavam-lhe que Fahd Kumhar possuía mais informações do que aquelas que lhe fornecera.
Que se lixasse a lei e a proibição de tortura e o que, sem esta, tinha acontecido aos direitos da polícia. Uns minutos num instrumento da Idade Média e aquele verme vomitaria tudo ao inquisidor. Mas assim, ia-se embora com os seus segredos intactos, enquanto ela ficava com uma enorme dor de cabeça e com espasmos nos músculos.
Meu Deus, era de enlouquecer. E o pior era que uma breve entrevista com Fahd Kumhar destruíra o resultado de quatro horas de ardentes exercícios com Gary na noite anterior.
Tinha vontade de arrancar a cabeça a alguém. Tinha vontade de gritar à primeira pessoa que lhe aparecesse à frente. Tinha vontade de...
- Chefe?
- O que é? - Exclamou Emily. - O que é? O que é? Belinda Warner hesitou à entrada do gabinete de Emily. Trazia uma longa folha de fax numa mão e na outra uma mensagem telefónica cor-de-rosa. Tinha um ar consternado e atreveu-se a espreitar lá para dentro, para ver se percebia a razão pela qual o inspector estava tão mal-disposta.
- Boas notícias, chefe.
- Até que enfim!
Mais descansada a agente entrou no gabinete.
- Falaram de Londres - disse agitando em primeiro lugar a mensagem e depois ofax. Os serviços secretos e o laboratório. Encontraram o dono das impressões digitais que estavam no Nissan. E está aqui um relatório do fulano asiático, Taymullah Azhar.
O Castle Hotel nem por isso se parecia com um castelo. Era antes como que uma fortaleza baixa e tinha balaustradas em vez de ameias no telhado. Era monocromático no seu exterior, construído inteiramente em pedra, tijolo e estuque amarelos, mas a falta de cor fora mais do que compensada no seu interior.
O átrio era extremamente colorido e o tema predominante era o cor-de-rosa. O tecto era fúcsia guarnecido com cornijas dentadas em tom rosado. As paredes estavam cobertas com um papel às riscas da cor do algodão-doce e o tapete era castanho com jacintos. Era como se entrasse dentro de um bombom enorme, pensou Barbara.
Na recepção, um homem de meia-idade, de fato, via-a atravessar o vestíbulo com ar expectante. A placa de identificação dizia que se chamava Curtis e os seus modos sugeriam boas-vindas ensaiadas em frente do espelho, na privacidade do lar. Primeiro apareceu um leve sorriso, depois foi o contacto visual com ela; a seguir descobriu os dentes para colocar depois a cabeça de lado, com ar de interesse e uma sobrancelha erguida; enquanto esperava, pegou num lápis.
Quando, com cortesia estudada, lhe ofereceu os seus préstimos, ela mostrou o crachá. A sobrancelha desceu. O lápis caiu. A cabeça endireitou-se. De Curtis-na-Recepção, transformou-se em Curtis- muito-Cauteloso.
Barbara mostrou outra vez as fotografias, colocando Querashi e Kumhar lado a lado.
- Este homem foi morto no Nez a semana passada - explicou laconicamente. - Este outro está na esquadra a conversar com o nosso inspector. Viu algum deles?
Curtis descontraiu-se um pouco. Enquanto ele estudava as fotografias, Barbara reparou que, numa caixa de metal colocada sobre o balcão havia um monte de folhetos. Apanhou um e viu que era igual ao que encontrara no quarto de Querashi. Havia outros e ela folheou-os. Aparentemente o Castle Hotel aumentava o volume dos seus negócios nestes tempos difíceis, oferecendo preços especiais para fins-de-semana, bailes, provas de vinho e programas para o Natal, Ano Novo, Dia dos Namorados e Páscoa.
- Sim - Curtis pronunciou a palavra, de um sopro só, com ar pensativo. - Sim, de facto sim.
Barbara abandonou a leitura dos folhetos e olhou para ele. Colocara de lado a fotografia de Kumhar. Porém apanhara a de Querashi e segurava-a entre o polegar e o indicador.
- Viu-o?
- Realmente, sim. Lembro-me muito bem porque nunca tinha visto um asiático no Cabedal e Rendas. Normalmente não apreciam essas coisas.
- Como? - Perguntou Barbara confundida. - Cabedal e Rendas? Curtis procurou na caixa de metal e retirou um folheto que Barbara não vira. A capa era completamente negra, com uma diagonal de renda sobreposta. A palavra Cabedal estava impressa no triângulo superior e a palavra Rendas no inferior. No interior havia um convite para um baile mensal que tinha lugar no hotel. E as fotografias dos bailes anteriores, que o acompanhavam, não deixavam dúvidas sobre a clientela a que se dirigiam.
Um ponto mais para Trevor Ruddock, pensou Barbara.
- Isto é um baile de homossexuais? - Perguntou a Curtis. - Não é um divertimento que se encontre vulgarmente na província, pois não?
- Os tempos são difíceis - replicou com simplicidade. - Uma empresa que feche as portas a potenciais lucros não dura muito tempo.
Era verdade, pensou Barbara. Basil Treves bem poderia utilizar o mesmo estratagema, depois de considerar os lucros e as perdas no fim do ano fiscal.
- E o senhor viu Querashi num desses bailes?
- No mês passado. De certeza. Como já disse, vêem-se de facto, muito poucos asiáticos por aqui. Por isso, quando cá apareceu reparei nele.
- Tem a certeza que ele veio por causa do baile. Não terá vindo jantar? Ou talvez tomar uma bebida?
- De certeza que veio para o baile, sargento. Não veio como travesti, nada disso. Até nem parece ter tipo para isso. Não vinha maquilhado, não trazia enfeites. Percebe o que eu quero dizer. Mas não há dúvida quanto à razão que o trouxe ao Castle.
- Engatar outro fulano?
- Seria difícil. Não estava sozinho. E o companheiro não tinha ar de quem gostasse de ser trocado por outro.
- Então trazia par.
- Evidentemente.
Aqui estava a primeira confirmação da história de Trevor Ruddock a respeito da sexualidade de Querashi. Mas a simples confirmação não ilibava Trevor.
- Como era o tipo? Isto é, o par de Querashi - perguntou Barbara. Curtis forneceu-lhe uma descrição confusa e de uma maneira geral inútil, pois tudo acerca do homem em questão era pouco definido: altura média, constituição média, peso médio. Não servia nem para localizar um relâmpago no meio de uma trovoada, excepto num pormenor. Quando Barbara perguntou se o par de Querashi tinha alguma tatuagem visível, especificamente uma teia de aranha no pescoço, Curtis disse que não. De certeza que não, tinham sido as suas palavras, que esclareceu ao explicar:
- Quando vejo uma tatuagem, nunca a esqueço, porque só de pensar em fazer uma perco a força nas pernas. Tenho fobia às agulhas - acrescentou. - Se alguém precisar que eu dê sangue, acho que desmaio.
- Certo - disse Barbara.
- Como podem as pessoas fazer o que fazem ao corpo só porque é moda... - estremeceu. Mas logo a seguir ergueu rapidamente um dedo, como que se o que acabara de afirmar lhe recordasse qualquer coisa. Espere! - Disse. - O homem tinha uma argola no lábio, sargento. Sim, de certeza que tinha. Também usava brincos. E não era só um. Veja bem que tinha pelo menos quatro em cada orelha.
Era de uma coisa assim que Barbara andava à procura. A argola no lábio confirmava a afirmação de Trevor. Por fim tinham a confirmação: Querashi era maricas.
Agradeceu a Curtis a ajuda que lhe tinha dado e voltou para o carro. Demorou-se um pouco à procura dos cigarros e fumou um à sombra de uma árvore coberta de poeira, pensando naquilo que a confirmação da história de Trevor poderia significar para o caso.
Azhar dissera que a homossexualidade era um pecado muito grave para os Muçulmanos; seria uma ofensa suficientemente séria para que um homem fosse banido da família e expulso para sempre. Assim, era considerada uma aberração suficientemente grave para ser mantida em grande segredo. Mas se alguém descobrisse um segredo assim, seria este suficientemente tenebroso ou diferente para alguém tirar a vida a Querashi? Certamente que seria um insulto à família Malik o facto de Querashi os ter usado como cobertura para uma vida clandestina. Mas não seria uma vingança maior, se em vez de o terem morto, o tivessem denunciado à sua própria família, para que o assunto fosse tratado à maneira tradicional?
Se a sua homossexualidade fosse a chave para o que lhe tinha acontecido no Nez, qual seria o papel de Kumhar? E os telefonemas para a Alemanha e para o Paquistão? E as discussões com o mulla e o mufti? E a morada em Hamburgo? E os papéis que estavam no cofre do banco?
Pensando nestes últimos pormenores, Barbara deitou fora o cigarro e dirigiu-se ao Mini. Esquecera-se da visita de Rudi à zona industrial. Valia a pena investigar enquanto ali estava. Levou menos de cinco minutos a voltar para trás. A segurou-se de que o Renault de Rudi não estava à vista, antes de entrar na área onde estavam situados os armazéns.
Estes eram pré-fabricados e tinham duas cores: chapa ondulada, verde por baixo e prateada por cima. Junto de cada um deles havia uma recepção, construída em tijolo cor de poeira. Não havia uma única árvore naquela propriedade; sem os efeitos cálidos da sombra, o calor irradiava das estruturas, produzindo o efeito de miragem. No entanto, o armazém no qual Rudi desaparecera e que ficava no fim do atalho, estava completamente fechado, a enorme porta e a fileira de janelas altas todas encerradas. Isto contrastava com todos os outros armazéns, cujas portas e janelas estavam abertas de par em par, esperançosas de captar a mais leve brisa.
Barbara arranjou um lugar para o Mini a alguma distância do armazém de Rudi. Estacionou-o a seguir a uma fila de contentores de lixo vermelhos e brancos, por detrás dos quais pendiam uns arbustos com ar sequioso. Limpou a testa com as costas da mão, arrependeu-se amargamente por ter saído do Burnt House sem uma garrafa de água, admitiu a sua estupidez ao fumar o cigarro que lhe aumentara a sede ainda mais; abriu então, a porta do carro.
A zona industrial éra formada por dois caminhos, um perpendicular ao outro. Havia uma fila de armazéns em cada um deles e a proximidade a que a zona estava do porto de Parkeston, tornavam-nos ideais para o armazenamento temporário de mercadorias acabadas de entrar ou prontas para sair do país. Letreiros debotados pelo sol indicavam o conteúdo de cada um deles: artigos de electrónica, electrodomésticos, loiças e vidros, artigos para o lar, equipamentos de escritório.
O armazém em questão era mais subtil ao anunciar o seu objectivo e o que nele estava guardado. Barbara teve de caminhar através do calor até chegar a dez metros do escritório adjacente e ser capaz de ler o pequeno letreiro colocado sobre a porta: IMPORTAÇÕES ORIENTAIS estava escrito a preto, e por baixo MOBILIÁRIO E ACESSÓRIOS.
Bom, bom, bom, pensou Barbara e, mentalmente, tirou o chapéu ao inspector Lynley. Parecia ouvi-lo dizer com satisfação:
- Está a ver sargento. Afinal não há mesmo coincidências quando se trata de um homicídio.
Ou Rudi se escapara do escritório da Wide World Tours porque subitamente adquirira o gosto por decoração de interiores e procurava satisfazê-lo o mais depressa possível decorando de novo o seu estúdio, ou sabia mais do que se tinha mostrado disposto a dizer. Em qualquer dos casos só havia uma maneira de saber.
A porta do escritório estava fechada à chave, por isso Barbara bateu com força. Quando ninguém apareceu resolveu espreitar através de um vidro cheio de pó: lá dentro havia provas de ocupação recente: sobre uma secretária via-se um almoço de pão, queijo, uma maçã e presunto às fatias.
Ao princípio pensou que só com um código secreto conseguiria que lhe abrissem a porta. Mas quando bateu pela segunda vez, agora com mais força, chamou a atenção de alguém dentro do armazém. Pela janela viu que a porta de comunicação entre o escritório e o edifício maior se abria. Um homem magro e de óculos - tão esquelético, que a ponta do cinto se enrolava na fivela e depois estava metida para dentro das calças - entrou e fechou cuidadosamente a porta atrás de si.
Usou o indicador para pôr os óculos no devido lugar, enquanto se dirigia à porta. Barbara reparou que teria cerca de um metro e oitenta, mas parecia mais magro, devido à má postura.
- Peço muitas desculpas - disse, muito delicado, quando abriu a porta. - Quando vou lá para trás, fecho tudo.
Lá parra trás, pensou Barbara. Outro alemão. Tinha uma roupa muito desportiva para um empresário. Usava calças de algodão com uma t-shirt branca. Calçava ténis, mas sem peúgas. No rosto bronzeado, tinha suíças castanho-claras, do mesmo tom do cabelo.
- Scotland Yard - disse ela apresentando-lhe o crachá. Ele franziu as sobrancelhas, ao ver a identificação. Mas quando ergueu o rosto, havia nele uma expressão equilibrada de inocência e preocupação. Nada perguntou e nada disse. Esperou apenas que ela continuasse, utilizando o instante antes dela começar a falar para enrolar uma fatia de presunto e dar-lhe uma dentada, segurando-a como se fosse um charuto.
Barbara sabia por experiência que a maior parte das pessoas não conseguia conservar-se em silêncio diante da polícia. Mas este alemão parecia capaz de o fazer indefinidamente.
Barbara puxou das fotografias de Haytham Querashi e Fahd Kumhar pela terceira vez. Enquanto estudava cada uma, o alemão deu outra dentada no presunto e pegou numa fatia de queijo.
- Este já eu vi - disse indicando Querashi. - Este não. Ele, eu não vi. - Pronunciou fi em vez de vi e o inglês que utilizava parecia ter sido menos praticado que o de Rudi.
- Então onde viu este homem? - Perguntou Barbara. O alemão colocou o queijo numa fatia de pão escuro.
- No jornal. Foi morto a semana passada, sim? Vi a fotografia depois, talvez no sábado ou no domingo. Não me recordo bem. - Disse talfez e recorrdo. Deu uma dentada no pão com queijo e mastigou lentamente. Não tinha nada para beber com o almoço, mas não parecia importar-se apesar do calor, da carne salgada e da mistura pastosa de pão e queijo que tinha na boca. Só de o ver mastigar e engolir, Barbara ainda ficou com mais vontade de beber um copo de água.
- E antes do jornal? - Perguntou ela.
- Se eu o vi antes disso? - Esclareceu. Fi. - Não. Porque pergunta?
- Porque ele tinha uma guia de remessa da Eastern Imports entre as suas coisas. Estava fechada no cofre de um banco.
O alemão deixou de mastigar por uns instantes.
- Muito estranho - disse. - Posso...? - E voltou a pegar na fotografia. Tinha uns belos dedos com as unhas tratadas.
- Normalmente, quando se guardam papéis no cofre de um banco é porque têm alguma importância - disse Barbara. - Não faz muito sentido guardá-los por outra razão, não acha?
- Claro, claro. Tem toda a razão - replicou o homem. - Mas uma pessoa pode querer guardar uma guia de remessa entre os seus papéis importantes, quando nela está registada uma compra. Se este senhor tivesse comprado móveis que ainda não nos tivessem chegado, poderia querer guardar...
- Não havia nada escrito nessa guia de remessa. Excepto no que diz respeito ao nome e à direcção desta firma, o papel estava em branco.
O alemão abanou a cabeça verdadeiramente perplexo.
- Então não sei dizer... - respondeu. - Será que a guia de remessa foi entregue a esse senhor por outra pessoa? Fazemos importações do Oriente e, se no futuro, ele quisesse comprar uma mobília... - Encolheu os ombros fazendo um pequeno trejeito com a boca, esse gesto típico do homem europeu que significa quem sabe?.
Barbara considerou as possibilidades. Era verdade que o que este homem lhe estava a dizer fazia, em parte, sentido. Mas só para explicar a existência da guia de remessa entre as coisas de Querashi. Para explicar a sua presença no cofre de um banco seriam necessários mais um ou dois saltos mentais.
- Sim - disse ela. - Provavelmente tem razão. Importa-se que dê
uma vista de olhos, já que estou aqui? Também gostava de arranjar a minha
casa.
O alemão acenou afirmativamente dando outra dentada no pão com queijo. Chegou-se à secretária e tirou de lá uma capa, depois outra e ainda mais outra. Abriu-as com uma mão, enquanto que com a outra enrolava outra fatia de presunto.
Barbara viu que eram catálogos de tudo, desde mobílias de quarto, a cozinhas e candeeiros.
- Então não tem a mercadoria no armazém? - Perguntou, pensando: se não tem para que quer então o armazém?
- De facto temos - disse. - Temos remessas por atacado. Estão no armazém.
- Óptimo - disse Barbara. - Posso dar uma olhadela. Não consigo decidir-me só com fotografias.
- Temos o stock muito em baixo - disse ele, parecendo pela primeira vez pouco à vontade. - Se não se importasse de voltar... talvez no sábado que vem?
- Só quero ver - disse Barbara, com ar agradável. - Gostaria de ter uma ideia do tamanho e dos materiais antes de me decidir.
Ele não parecia convencido, mas embora com alguma relutância, disse:
- Se não se importar com o pó e com uma retrete que avariou... Ela garantiu-lhe que não se importava nada - o que são o pó e as retretes partidas, quando se anda à procura dos sofás perfeitos? - E foi atrás dele pela porta interior.
Não tinha bem a certeza do que estava à espera. Mas o que encontrou dentro do ventre cavernoso do armazém, não era um cenário para fazer filmes duvidosos, nem um sítio de visionamento de vídeos de pornografia hard-core, não havia caixas de explosivos, nem se fabricavam metralhadoras Llzi. Encontrou exactamente um armazém de móveis: três conjuntos de sofás, mesas de casa de jantar, cadeirões, candeeiros e camas. Tal como o homem tinha dito, o stock era reduzido. Estava coberto com capas de plástico cheias de pó. Mas pensar que esses móveis escondiam outras coisas, era levar a imaginação longe demais.
E também dissera a verdade a respeito da retrete. O armazém cheirava a esgoto como se duzentas pessoas tivessem usado a casa-de-banho sem puxar o autoclismo. Barbara viu a fonte do aroma através de uma porta entreaberta ao fundo do armazém: uma retrete tinha deitado por fora para o chão de cimento, inundando uns bons metros do armazém.
O alemão reparou na direcção do olhar dela.
- Já três vezes que chamo os canalizadores nos últimos dois dias. Como vê, não serviu de nada. Desculpe, é tão desagradável - e apressou-se a ir fechar a porta da casa-de-banho tendo cuidado ao pisar o chão inundado. Riu-se, quando viu um cobertor e uma almofada encharcada que estavam perto de uns armários ao lado da casa-de-banho. Apanhou o primeiro e dobrou-o cuidadosamente, guardando-o no armário mais próximo. A última foi atirada para um caixote do lixo que estava perto de uns armários.
Veio juntar-se a Barbara e tirou do bolso um canivete suíço.
- Os nossos sofás são da melhor qualidade - disse. - São estofados à mão. Quer escolha lã ou seda. .
- Sim - disse Barbara. - Já tenho ideia. Bom material. Não é preciso destapá-los.
- Não quer ver? - Verr, pronunciou ele.
- Já vi, muito obrigada.
O que tinha visto era que o armazém era igual aos outros do parque industrial. Tinha uma porta enorme, que deslizava em calhas de metal e permitia a entrada de grandes camiões. Era evidente que os camiões entravam e saíam no espaço rectangular que ia da porta ao extremo do edifício.
Nesse espaço, o chão de cimento estava manchado de óleo com nódoas que pareciam continentes, flutuando no mapa com um mar, de cor cinzenta.
Caminhou nessa direcção, fingindo examinar os móveis por baixo das capas de plástico. O edifício não tinha isolamento, pelo que parecia uma sauna. Barbara sentia o suor escorrer-lhe nas costas e entre os seios bem como do pescoço até à cintura.
- Que calor - disse. - Não é mau para os móveis? O calor não os seca ou assim?
- Os nossos móveis vêm do Oriente, onde o clima é muito menos temperado do que o de Inglaterra - respondeu. - Este calor não é nada, em comparação.
- Hum. Acho que tem razão - inclinou-se para examinar as manchas de óleo no chão do armazém. Quatro manchas eram antigas, com montinhos de porcaria, parecendo a representação das montanhas no mapa de cimento. Três eram mais recentes. Numa delas um pé descalço, do tamanho do de um homem, deixara uma pegada perfeita.
Quando Barbara se levantou, viu que o alemão a observava. Parecia perplexo e os olhos dirigiam-se alternadamente para ela, para as manchas e para os móveis.
- Passa-se alguma coisa? - Perguntou.
Ela passou o polegar pelas manchas de óleo.
- Deveria limpar isto, é perigoso. Alguém pode escorregar e partir uma perna, se principalmente se andar por aqui a correr descalço.
- Claro, sem dúvida. - replicou.
Ela não tinha razão para se demorar mais, mas tinha a sensação de não ter visto ainda tudo o que havia para ver. Gostaria muito de saber do que andava à procura, mas se se passava alguma coisa pouco legal dentro do armazém, não estava à vista. A única razão para continuar era uma sensação de vazio dentro de si, um sentir persistente que identificava como algo incompleto. Era apenas instinto, mais nada. No entanto, como poderia reagir em relação a ele, quando questionava continuamente Emily Barlow por fazer o mesmo? O instinto era óptimo, mas, de certa maneira, tinha de ser confirmado por provas.
Rudi tinha saído da World Wide Tours poucos minutos depois dela, dizia para consigo. Viera directamente para aqui. Entrara neste mesmo edifício. Se esses factos não quisessem dizer nada, então o que se passava?
Suspirou, perguntando a si mesma se a sensação de vazio no estômago não seria apenas devida a uma necessidade de se alimentar, uma vingança por ter deixado um terço do pacote de aperitivos na mesa do pub em Harwich. Meteu a mão no saco e tirou de lá o bloco-notas. Rabiscou o número de telefone do Burnt House Hotel numa página, que arrancou e entregou ao alemão, dizendo-lhe para lhe telefonar se se lembrasse de alguma coisa pertinente, particularmente o modo como uma guia de remessa da Eastern Imports fora parar às coisas de um morto.
Ele examinou o papel com toda a solenidade. Com a máxima precisão, dobrou-o ao meio, e depois em quatro.
- Sim - disse. - Se já viu tudo...? - E sem esperar pela resposta dela, fez um gesto de delicadeza na direcção do escritório.
Aí, Barbara fez o habitual: agradeceu-lhe a ajuda; recordou-o da gravi dade da situação e acentuou a importância da cooperação com a polícia.
- Compreendo, sargento - disse. - Estou já a dar voltas à cabeça para tentar perceber a ligação desse homem com a Eastern Imports.
Por falar em ligações... pensou ela. E enquanto ajustava a alça do saco, para que lhe pesasse menos no ombro, disse:
- Muito bem - e dirigiu-se à porta onde parou. Recordou o que sabia de história da Europa a partir daí fez a pergunta:
- O seu sotaque parece austríaco. De Viena ou Salzburgo?
- Por favor - disse, colocando a mão no peito, reagindo à ofensa que Barbara deliberadamente lhe provocara. - Sou alemão.
- Ah, desculpe. É difícil distinguir. De onde é?
- De Hamburgo - respondeu.
De onde havia de ser, pensou ela.
- E o seu nome? - Precisava de saber, para fazer o relatório ao inspector.
- Com certeza. É Reuchlein - replicou e soletrou-o para que ela percebesse melhor. - Klaus Reuchlein.
Lá no fundo do seu espírito, Barbara ouviu o inspector Lynley dar uma gargalhada.
KREUZHAGE DISSE QUE REUCHLEIN paga a renda de dois apartamentos na Oskarstrasse 15 - concluiu Barbara - Mas todos os apartamentos do prédio são pequenos estúdios, apenas, com cozinha e casa-de-banho, por isso, segundo Kreuzhage, se um tipo tiver dinheiro, pode usar um dos apartamentos como quarto e o outro como sala. Principalmente, se receber visitas e não quiser que elas se sentem na cama. Assim, o facto dos dois apartamentos não tem importância, dissera ele. Embora possa ter levantado as suspeitas de Querashi, por este ser do Paquistão, onde a maior parte das pessoas vive, como Kreuzhage diz, de modo mais humilde.
- E ele tem a certeza que é Klaus Reuchlein quem alugou os apartamentos? Klaus e não outro nome qualquer?
- É Klaus, sim - Barbara bebeu o resto do sumo de cenoura que Emily lhe oferecera, quando mais uma vez se reuniram no gabinete do inspector para comparar as notas da investigação. Fez o que pôde para evitar uma careta, quando a língua registou o sabor. Não admirava que as pessoas que comiam comida saudável fossem tão esqueléticas, pensou. Tudo o que ingeriam, cancelava imediatamente o desejo de as repetir.
- Segundo ele, um dos seus homens viu o contrato de arrendamento e a assinatura. A menos que Klaus Reuchlein seja o equivalente alemão do nosso John Smith e haja milhares deles, então é o mesmo homem.
Emily acenou afirmativamente. Olhou para o quadro na parede oposta onde estavam discriminadas as actividades da equipa do Departamento Criminal junto do número de identificação. Tinham começado havia cinco dias com a actividade A1. Barbara reparou que já tinham chegado à A320.
- Estamos cada vez mais perto dele - disse Emily. - Eu sei Barb, este Reuchlein, prende-se-lhe ao pescoço. Tanta coisa para salvar de nós os seus compatriotas. Alguém os devia salvar dele.
Barbara parara no Burnt House antes de vir para a esquadra. Aí recebera o recado de que o Kriminalhauptkommisar Kreuzhage tinha telefonado, deixando uma mensagem enigmática que dizia que a informação pertencente aos interesses do sargento em Hamburgo fora obtida. Ela telefonara-lhe imediatamente, mastigando uma sanduíche de queijo e pickles, arranjada por Basil Treves, que teve de ser subtilmente desencorajado de ficar à porta do quarto, para ouvir a conversa. Kreuzhage confirmara em primeiro lugar as suas suspeitas de que a morada de Hamburgo coincidia com o número de telefone para aonde Querashi ligara, pouco antes de morrer, e quando o fez ela experimentou a mesma sensação que o inspector sentia naquele momento: uma certeza cada vez maior de que se estavam a aproximar da verdade. Mas, ao combinar essa certeza com o que vira na Eastern Imports, e que não era nada de extraordinário, excepto uma retrete estragada e uma almofada no chão, o espírito encheu-se-lhe de perguntas, em vez de lhe fornecer as respostas. A sua intuição dizia-lhe que tudo o que vira e ouvira naquele dia estava, de uma maneira ou de outra, ligado se não com o assassínio de Querashi, pelo menos com ele, mas o cérebro recusava-se a dizer-lhe como.
Belinda Warner entrou no gabinete dizendo:
- Já investiguei o arquivo, chefe. Fiz a lista de tudo o que é ilegal. Quere-a agora ou só à tarde na reunião com a equipa?
Emily respondeu estendendo-lhe a mão.
- Isto vai dar-nos corda para o enforcar - disse ela a Barbara.
O documento tinha várias páginas, eram folhas de computador que relatavam infracções e crimes, menores e não só, que tinham sido comunicados à polícia de Balford desde o princípio do ano. A agente Warner sublinhara a amarelo as actividades que estavam dentro da categoria de pequenas ilegalidades e, por isso, interessavam ao inspector. Eram essas actividades que Emily leu em voz alta.
Seis carros roubados desde Janeiro, um por mês e todos eles já locali zados, encontrados em sítios que iam desde o caminho das marés, que ia da Horsey Island ao campo de golfe de Clacton-on- Sea. Coelhos mortos colocados à porta da directora da escola primária. Quatro actos de fogo posto: dois nos baldes do lixo colocados na rua para serem despejados, um num marco-de-correio perto do Wade e outro no cemitério da igreja de São João, onde uma cripta fora arrombada e coberta com graffiti. Quatro cacifos da praia arrombados. Vinte sete assaltos, alguns dos quais a casas, a tentativa de abrir uma máquina de trocos na lavandaria, a invasão de inúmeras casas de praia na marginal e o roubo da caixa de um restaurante chinês. Um assalto por esticão no pontão das diversões. Três zodíacos insufláveis roubados do Aluguer de Barcos East Essex, na marina de Balford, um deles encontrado abandonado na baixa-mar, a sul da ilha de Skipper e os outros dois com os motores avariados em pleno Wade.
Emily abanou a cabeça aborrecida com esta última queixa.
- Se Charlie Spencer desse tanta atenção aos barcos, como dá aos resultados das corridas de Newmarket, não nos dava chatices uma vez por semana.
Mas Barbara pensava no que ouvira e vira na tarde da véspera, no que descobrira na noite anterior e em como essas coisas se relacionavam com um dos relatórios que Emily acabara de ler. Gostava de saber porque não teria descoberto logo a verdade. Rachel Winfield revelara-lhe. Só que não percebera toda a sua abrangência.
- Em, os arrombamentos a essas casas de praia. O que roubaram de lá? Emily olhou para ela.
- Ora, Barbara. Não pensas que esses assaltos são a ligação que procuramos.
- Talvez não estejam ligados com a morte de Querashi - concordou Barbara. - Mas cabem nalgum lado. Que levaram de lá?
Emily folheou as páginas. Parecia ler agora com mais atenção do que antes a informação, mas rejeitou a sua importância dizendo:
- Saleiros, pimenteiros. Valha-me Deus é só lixo. Quem havia de querer amostras de bordados? Ou um conjunto de badmington? Compreendo que se leve um fogão a gás; pode ser usado ou vendido, mas e que tal isto? Uma fotografia emoldurada de uma bisavó a conversar debaixo de uma sombrinha de praia?
- É isso mesmo - disse Barbara rapidamente. - Era isso: vender o que tinha sido roubado. É essa tralha de que as pessoas se vêem livres nas vendas de coisas em segunda mão, Em. Era esse lixo que os Ruddock transportavam ontem de casa para o carro. E foi tralha dessa que eu, ontem à noite, no pontão, encontrei na mochila de Trevor Ruddock. Foi o que ele esteve a fazer quando depois de se despedir de Rachel Winfield e antes de ter entrado ao trabalho no pontão: roubando coisas das casas de praia para aumentar o rendimento familiar.
- E que, se tiveres razão...
- Podes apostar.
-... o iliba da nossa lista. - Emily inclinou-se avidamente sobre o relatório. - Mas e que raio, vai lá voltar a colocar Malik?
O telefone tocou e ela disse um palavrão. Levantou o auscultador e continuou a estudar o relatório.
- Fala Barlow - disse. - Ah... Muito bem Frank. Trá-lo para ser interrogado. Vamos já ter contigo. - Colocou o auscultador no descanso e atirou o relatório para cima da secretária. - Finalmente o laboratório conseguiu identificar as impressões digitais do Nissan de Querashi - disse a Barbara. O agente Eyre já trouxe o rapaz para cá.
O rapaz foi fechado na sala de interrogatórios anteriormente ocupada por Fahd Kumhar. Bastou olhar para ele para que Barbara percebesse que tinham encontrado o amante putativo de Querashi. Coincidia perfeitamente com a descrição. Era um homem magro e pequeno, com cabelo louro, muito curto, um brinco na sobrancelha e vários nas orelhas, em cujo lóbulo estava pendurado um alfinete de ama com uma capa de plástico na parte superior, daqueles que eram geralmente usados nas fraldas dos bebés. Também tinha uma argola no lábio, esta era de prata e tinha um berloque pendurado. Uma t-shirt fina e com as mangas arrancadas revelava um bíceps tatuado com o que, ao princípio parecia ser um enorme lírio com as palavras Toma-me por baixo. Porém, um olhar mais atento revelou que os estames das flores eram afinal um pénis. Que encanto, pensou Barbara, deliciada com o toque subtil.
- Mr. Cliff Hegarty - disse Emily fechando a porta. - Muito obrigado por cá ter vindo responder a algumas perguntas.
- Tanto quanto percebi, não tinha outra alternativa - disse Hegarty. Quando falou, deixou ver os dentes mais perfeitos que Barbara já vira. Dois tipos apareceram ao pé de mim e perguntaram-me se eu não me importava de vir à esquadra. Gosto da maneira como os polícias falam, como que a dizerem-nos que temos sempre outra alternativa quando se trata de colaborar nos inquéritos.
Emily não perdeu tempo e foi direita ao assunto. Disse-lhe que as suas impressões digitais tinham sido encontradas no carro de um homem assassinado chamado Haytham Querashi. O carro fora encontrado na cena do crime. Poderia Mr. Hegarty explicar como as deixara lá?
Hegarty cruzou os braços. Era um movimento que punha ainda mais em evidência a tatuagem.
- Se quiser posso telefonar a um advogado - disse, e quando falou a argola do lábio reflectiu a luz do tecto.
- Pode - respondeu Emily. - Mas como ainda não lhe li os seus direitos, essa necessidade de um advogado intriga-me.
- Eu não disse que precisava, nem disse que queria um. Só disse que, se quisesse podia telefonar a um.
- E então?
Lambeu rapidamente os lábios como se fosse um lagarto.
- Posso dizer-lhe o que quer saber e estou disposto a fazê-lo. Mas tem de me garantir que o meu nome não aparece na imprensa.
- Não tenho o costume de garantir nada a ninguém - Emily sentou-se do outro lado da mesa. - E, considerando o facto de as suas impressões digitais terem sido encontradas no local do crime, o senhor não está em posição de fazer acordos.
- Então não falo.
- Mr. Hegarty - interrompeu Barbara. - Conseguimos identificar as suas impressões digitais através de Londres. Acho que sabe o que isso quer dizer: a identificação feita por Londres indica que tem registo criminal. Quer que eu lhe diga que é um pouco suspeito para uma pessoa, quando as impressões digitais de um delinquente aparecem associadas a um homicídio e o delinquente e essa pessoa coincidem na sua identidade?
- Nunca fiz mal a ninguém - disse Hegarty, defendendo-se. - Nem em Londres, nem em lado nenhum. E não sou um delinquente. O que fiz foi entre dois adultos e, só porque um deles pagava, não quer dizer que eu tenha tido de forçar alguém. Além disso, nessa altura era um miúdo. Se os chuis dessem mais atenção aos verdadeiros crimes e menos atenção aos tipos que ganham a vida honestamente, usando o corpo, tal como um mineiro ou um cavador usam o seu, então este país seria um sítio melhor para se viver.
Emily não discutiu a inspirada comparação entre os trabalhadores manuais e os prostitutos.
- Olhe, um advogado não lhe pode afastar o nome dos jornais, se acaso é para isso que o quer. E não posso garantir que alguém do Standard não tenha já acampado à sua porta quando chegar a casa. Mas, quanto mais depressa sair daqui, menos provável será essa possibilidade.
Ele pensou no assunto, lambendo os lábios com os seus modos de lagarto. Tinha os bíceps contraídos e o falo que fazia de estames da flor flectia-se sugestivamente. Finalmente disse:
- Então é assim, está bem? Há outro fulano. Ele e eu estamos juntos há algum tempo. Há quatro anos, para ser mais preciso. Não quero que ele saiba... bem, aquilo que vos vou dizer. Ele tem já algumas suspeitas, mas não sabe. E eu quero que assim continue.
Emily consultou um bloco que trouxera da recepção, quando viera para cima.
- O senhor tem uma empresa - disse. - Já percebo.
- Merda. Não posso dizer a Gerry que andam atrás de mim por causa das Distracções. Ele já não gosta que eu trabalhe nelas. Anda sempre atrás de mim para que eu arranje um trabalho limpo... limpo, de acordo com o que ele considera limpo... e se descobre que tenho chatices com os chuis...
- E estou a ver que a empresa está situada na Zona Industrial de Balford - continuou Emily sem se perturbar. - Onde também está situada a Mostardas Malik. Que era o sítio onde Mr. Querashi trabalhava. Claro que vamos falar com todos os empresários da zona industrial, durante a nossa investigação. Agrada-lhe mais, Mr. Hegarty?
Hegarty respirou fundo para não protestar mais. Percebera claramente a mensagem implícita.
- Sim, claro - disse. - Tudo bem.
- Então - Emily ligou bruscamente o gravador. - Comece por nos contar o modo como conheceu Mr. Querashi. Estamos certos ao assumir-mos que o conhecia, suponho.
- Conhecia - disse Hegarty. - Sim conhecia o tipo.
Tinham-se encontrado no mercado de Clacton. Cliff habituara-se a lá ir quando queria descansar do trabalho. Ia fazer as compras e também para o que ele chamava dar umas voltinhas, percebem? É uma chatice tão grande quando se está só com um parceiro dia e noite. Dar umas voltinhas quebrava a monotonia, percebem? Era só isso, umas voltinhas.
Vira Querashi a mexer nuns lenços Hermes, falsificados. Não lhe ligara muita importância - Nunca gostei muito de carne escura - até que o asiático levantara a cabeça e olhara para ele.
- Já o vira perto da Malik - disse Hegarty. - Mas nunca falara com ele nem lhe ligara. Mas quando ele olhou para mim, compreendi. Era o olhar de um maricas, sem dúvida. Por isso fui à casa-de-banho. Ele seguiume imediatamente. E foi assim que começou.
Amor sincero, pensou Barbara.
Pensara que fosse um encontro fortuito, explicou Hegarty, que era o que queria e o que geralmente obtinha quando ia ao mercado de Clacton. Mas Querashi não quisera assim. O que Querashi tinha querido era uma ligação permanente, embora ilícita. O facto de Cliff ter outro compromisso, vinha de encontro às necessidades essenciais do paquistanês.
- Disse-me que estava noivo da filha de Malik, mas que ia ser um casamento só no papel. Ela precisava dele para ficar como deve ser. Ele precisava dela pelas mesmas razões.
- Ficar como deve ser? - Interrompeu Barbara. - A rapariga é lésbica?
- Está grávida - respondeu Hegarty. - Pelo menos foi o que Hayth me disse a respeito dela.
Mas que raio, pensou Barbara.
- Mr. Querashi tinha a certeza dessa gravidez? - Perguntou Barbara.
- Foi a miúda que lhe disse - continuou ele. - Disse-lhe assim que se conheceram. Ele achou que estava bem pois embora pudesse ter ido para a cama com ela, isso dava-lhe um trabalhão. Se conseguissem fazer com que a criança passasse por ser dele, melhor. Teria aparentemente cumprido o seu dever de marido na noite do casamento e, se a criança fosse um rapaz, seria óptimo e não teria de se preocupar mais com a mulher.
- E continuaria a sair consigo?
- Era essa a ideia, sim. A mim servia-me, porque, como já lhe disse, ter sempre o mesmo tipo todos os dias... - levantou os dedos, como se estivesse a encolher os ombros. - Assim variava um pouco e não era sempre Gerry, Gerry, Gerry.
Emily continuou a conduzir Hegarty lentamente, mas o espírito de Barbara trabalhava a toda a velocidade. Se Sahlah Malik estava grávida, e Querashi não era o pai, apenas uma pessoa o poderia ser. A vida começa agora ganhou um novo significado; e também o facto de que Theodore Shaw não tinha álibi para a noite do crime. Só teria sido preciso meter-se no barco na marina de Balford e navegar pelo canal principal, rodear a ponta norte do Nez e aceder à zona onde Haytham Querashi caíra e morrera. A questão era: conseguiria ter tirado o barco da marina sem ser visto?
- Usávamos a guarita na praia - explicava Hegarty a Emily. - Não havia outro lugar assim seguro. Hayth tinha uma casa nas Avenidas, para onde iria viver, quando casasse com a rapariga, mas não podíamos ir para lá porque Gerry trabalhava lá de noite. Estava a arranjá-la.
- E encontrava-se com Querashi nas noites em que Gerry trabalhava?
- Assim era.
Não se podiam encontrar no Burnt House, com medo que Basil Treves
- aquele pila-mole, fora assim que Hegarty o identificara - dissesse a alguém, principalmente a Akram Malik, que, tal como ele, era vereador da Câmara. Não se podiam encontrar em Jaywick Sands, porque a comunidade era pequena e Gerry poderia vir a saber e não gostar que o amante andasse metido com outros.
- A Sida e essas coisas - acrescentou Hegarty, como se sentisse obrigado a explicar à polícia a posição incompreensível de Gerry.
Assim, encontravam-se na guarita da praia. Era lá que Cliff estava à espera de Querashi, na noite em que ele fora morto.
- Vi o que aconteceu - disse, com olhos sombrios, como se estivesse a reviver o que vira àquela noite. - Estava escuro, mas vi as luzes do carro, quando ele chegou, pois estacionou à beira da falésia. Chegou à escada e olhou à volta, como se tivesse ouvido alguma coisa. Posso dizê-lo, porque lhe vi a silhueta.
Depois de uma pausa no cimo da escada, Querashi começara a descer. A queda iniciara-se a menos de cinco degraus do topo. Caíra e viera às cambalhotas até à base da falésia.
- Fiquei gelado - Hegarty começara a transpirar. O berloque do lábio dançava - Não sabia o que fazer. Não podia acreditar que tivesse caído... continuei à espera para ver se se levantava... se se sacudia. Talvez até se risse, como quem fica envergonhado. De qualquer modo foi nessa altura que vi o outro.
- Estava lá mais alguém? - Perguntou Emily rapidamente.
- Escondido atrás dos tojos, no alto da falésia.
Hegarty descreveu o movimento que tinha visto: uma figura que se escapulira dos arbustos, descera alguns degraus, retirara qualquer coisa do corrimão de metal dos dois lados dos degraus de cimento e depois esgueirara-se.
- Foi nessa altura que calculei que alguém tinha acabado com ele.
Rachel assinou o nome com um floreado em todas as linhas que Mr. Dobson lhe assinalara. O escritório dele estava tão quente que as pernas se lhe colavam à cadeira e gotas de suor caiam-lhe da testa, como lágrimas, molhando os documentos. Mas ela não chorava, hoje principalmente, chorar era o que mais longe estava do seu espírito.
Utilizara a hora do almoço para se dirigir às Clifftop Snuggeries. Pedalara furiosamente, sem se preocupar com o calor, com o trânsito ou com os peões, ficando numa sopa para chegar às Snuggeries antes que Mr. Dobson vendesse o único apartamento que restava. Estava tão satisfeita, que nem se preocupou em baixar a cabeça para se esconder dos olhares dos curiosos, que era o que normalmente fazia quando estava entre estranhos. Que importava que olhassem agora, quando por fim o seu futuro estava resolvido?
Acreditava piamente no que tinha dito a Sahlah no dia anterior. Theo Shaw, dissera, havia de aparecer. Não deixaria Sahlah sozinha. Não estava no seu feitio abandonar quem amava principalmente em tempos de necessidade.
Mas não contara com Agatha.
Rachel ouvira as notícias da trombose de Mrs. Shaw dez minutos depois de ter aberto a loja nessa manhã. O estado da senhora era assunto de conversa na rua das lojas. Rachel e Connie apenas tinham posto a descoberto os colares e as pulseiras no expositor principal, quando Mr. Unsworth, da Balford Books and Cranies, aparecera, para elas assinarem um enorme cartão, desejando as melhoras.
- Mas o que é isso? - Connie quis logo saber. O cartão tinha a forma de um coelho enorme. Parecia mais adequado para desejar Páscoa feliz a uma criança, do que para mandar cumprimentos a uma mulher à beira da morte.
A pergunta fora o suficiente para que Mr. Unsworth dissertasse sobre o tema Ataques apoplécticos", que foi o que chamou à trombose de Mrs. Shaw. Era mesmo dele. Lia o dicionário quando não tinha clientes e sempre gostara de se armar, utilizando palavras que só ele entendia. Mas, quando Connie, que não se deixava intimidar pelo seu vocabulário e nem se impressionava com coisa alguma que não tivesse a ver com as danças de salão ou com a venda de bugigangas, lhe disse: Alfie, o que está para aí a dizer? Temos de trabalhar, Mr. Unsworth deixou os ares de catedrático e comunicou, de maneira mais directa:
- Rebentou um fusível na cabeça da velha Agatha Shaw, Con. Foi ontem. Mary Ellis estava com ela. Levaram-na para o hospital e está ligada às máquinas.
Uns minutos de conversa foram suficientes para explicar os pormenores, o mais importante dos quais era o prognóstico sobre a saúde de Agatha. Connie queria saber, dado o que a saúde da senhora representava para o reordenamento de Balford-le-Nez, um plano em que os comerciantes tinham naturalmente interesse. Rachel queria saber porque, do estado actual de Mrs. Shaw, dependia a futura conduta do neto. Uma coisa era ter a certeza de que, em circunstâncias normais, Theo cumpriria o seu dever. Outra, era esperar que tomasse sobre os ombros o peso do casamento e da paternidade no decorrer de uma crise familiar.
Aquilo que Rachel ouvira de Mr. Unsworth - que soubera por intermédio de Mr. Hodges, da padaria, que por sua vez o ouvira a Mrs. Barrigan, da Sketches, que era tia de Mary Ellis por parte do pai - era que o estado actual de Mrs. Shaw constituía um problema familiar de grandes proporções. Certamente sobreviveria. E, enquanto ao principio isto poderia fazer
com que Theo assumisse as suas responsabilidades masculinas em relação
a Sahlah Malik, depois de Mr. Unsworth ter exposto pormenorizadamente
o estado de Mrs. Shaw, Rachel viu as coisas de maneira diferente.
Usou palavras tais como cuidados constantes e reabilitação intensiva, palavras como devoção de um ente querido, graças à sorte que tem e tem o neto. Ouvindo tudo isto, Rachel não demorou muito a entender que, fossem quais fossem as responsabilidades para com Sahlah, Theo Shaw enfrentava responsabilidades ainda maiores para com a avó. Ou, pelo menos, era assim que lhe parecia.
Portanto, durante toda a manhã, Rachel olhara para o relógio. Como ultimamente não estava de muito boas relações com a mãe, não se atreveu a pedir que a dispensasse para ir às Snuggeries. Mas, no momento em que o ponteiro grande passou as doze, saiu da loja e, agarrando-se ao guiador, desatou a pedalar, qual ciclista do Tour de France.
- Óptimo - disse Mr. Dobson, quando ela fez a última assinatura no contrato-promessa de compra e venda. Apanhou-o e agitou-o no ar, como se estivesse a secar a tinta. Sorriu para ela. - Óp-ti-mo. - disse. - Muito bem.
Não se vai arrepender desta compra nem por um instante, Miss Winfield.
Estes andares são um investimento muito bom. Dentro de cinco anos valerão duas vezes mais. Vai ver. Fez muito bem em ficar com o último, antes que alguém lho apanhasse. Acho que a menina foi bastante inteligente.
Continuou a conversar sobre hipotecas, sociedades construtoras e investidores das agências do Barclays, Lloyds ou NatWest. Mas ela já não o ouvia.
Acenou afirmativamente e sorriu, enquanto passava o cheque com o sinal que lhe ia levar uma fatia significativa da sua conta do Midlands; não pensava senão em completar o negócio o mais depressa possível, para poder ir ainda à Mostardas Malik e oferecer a Sahlah o seu apoio, quando esta soubesse das novidades sobre o estado de Agatha Shaw.
sem dúvida, Sahlah interpretaria a notícia exactamente como ela, Rachel o tinha feito e perceberia a existência do impedimento que agora existia para a sua vida com Theo e o bebé. Mas não havia maneira de saber em que turbilhão se sentiria a amiga, depois de saber do caso. E, como as pessoas preocupadas e confusas tomavam normalmente decisões apressadas de que mais tarde se arrependiam, faria sentido que ela, Rachel Lynn Winfield, estivesse próxima, se Sahlah começasse a pensar em fazer qualquer coisa disparatada.
Porém, embora estivesse com pressa, Rachel não resistiu a dar uma olhadela ao apartamento. Sabia que em breve lá estaria a viver - lá estariam a viver - mas ainda lhe parecia um sonho ter, por fim, conseguido ficar com ele; para tornar esse sonho realidade teria de passear pelos compartimentos, abrindo os armários e admirando a vísta.
Mr. Dobson enhegou-lhe a chave dizendo:
- Claro, claro - e acrescentou - Naturellement, chere mademoiselle erguendo as sobrancelhas e olhando-a de esguelha, que Rachel sabia ser para provar que não se sentia constrangido por ela ser tão feia.
Em circunstâncias normais teria reagido bruscamente a uma bonhomie tão falsa, mas nessa tarde sentia-se cheia de boa vontade para com os seus semelhantes; assim, agitou a cabeleira para revelar as suas feições deformadas, agradeceu a Mr. Dobson, apertou a chave na mão e dirigiu-se ao número 22.
Não havia muito que ver: dois quartos, uma casa-de-banho, uma sala e uma cozinha. Era no rés-do-chão, por isso a sala tinha uma pequena varanda sobranceira ao mar. Aqui, pensou Rachel placidamente, sentar-se-iam à tarde, tendo entre elas, o bebé no carrinho.
Olhando pela janela da sala, Rachel respirou fundo e imaginou a cena.
A dupattá de Sahlah esvoaçando com a brisa do mar do Norte. A saia de Rachel movendo-se com graciosidade, quando se levantasse para aconchegar o cobertor do bebé adormecido. Falava com ele - ou talvez com ela e retirava com meiguice um polegar em miniatura da boca do querubim.
Acariciava o rostinho mais macio que alguma vez vira e passava-lhe ao de leve os dedos pelo cabelo que era... de que cor? Perguntou a si própria.
Sim, de facto, de que cor seria o cabelo dele, ou dela, já agora?
Theo era louro. Sahlah era muito morena. O cabelo da criança seria uma combinação do dos dois, tal como a sua pele seria uma mistura da tez branca de Theo e do tom de azeitona de Sahlah.
Rachel estava simultaneamente encantada e profundamente arrebatada ao pensar naquele milagre de vida que Sahlah Malik e Theo Shaw tinham criado entre si. Naquele momento percebeu que mal conseguiria esperar os meses que sabia serem necessários para que tal milagre tomasse forma.
Subitamente, compreendeu que ela - Rachel Lynn Winfield - era e continuaria a ser muito boa para Sahlah Malik. Era mais do que uma amiga.
Era um tónico. Em contacto diário com ela durante as semanas e os meses que faltavam para o parto, Sahlah tornar-se-ia mais forte, mais feliz e mais optimista a respeito do futuro. E tudo - tudo - acabaria em bem: Sahlah e Theo, Sahlah e a famlia e, principalmente, Sahlah e Rachel.
Rachel guardou esta ideia dentro de si com um prazer cada vez maior.
Oh, tinha de ir a correr à fábrica de mostarda contar tudo a Sahlah. Só queria ter asas para voar até lá.
A corrida pela cidade foi horrível, debaixo do Sol ardente, mas Rachel mal reparou. Pedalou furiosamente pela estrada marginal, bebendo água morna da garrafa, sempre que a encosta do passeio da praia lhe permitia estacionar. Não pensava no seu desconforto. Apenas em Sahlah e no futuro de ambas.
Qual seria o quarto que Sahlah preferiria. O da frente era maior, mas o de trás tinha vista para o mar. O som das ondas embalaria o bebé. Também embalaria Sahlah nos momentos em que as responsabilidades da maternidade lhe pesassem demasiado sobre os ombros.
seria que Sahlah iria querer cozinhar para os três? A sua religião impunha algumas restrições na dieta e Rachel adaptava-se facilmente a essas coisas. Por isso fazia sentido que Sahlah cozinhasse. Além disso, se Rachel tinha de sair para ir trabalhar enquanto Sahlah ficava com o bebé, provavelmente quereria cozinhar para todos, tal como Rachel vira Wardah Malik fazer para o pai de Sahlah. Não que Rachel fosse fazer de pai de alguém, e muito menos do bebé de Sahlah. Theo desempenharia esse papel, de vez em quando. Faria o seu dever e cumpriria com as suas obrigações, logo que a avó melhorasse.
- Segundo os médicos, pode viver muitos anos - dissera-lhes Mr. Unsworth, nessa manhã. - Mrs. Shaw é um navio de guerra, como ela aparece uma em cem. Melhor para nós, não é verdade? Não morre enquanto não vir Balford novamente de pé. Pode ter a certeza, Con. As coisas vão melhorar.
E assim era. De todos os modos as coisas estavam a melhorar. Quando Rachel passou a última curva antes de entrar na zona industrial, quase rebentava com o desejo de contar a Sahlah toda a felicidade que sentia e que se iria tornar num suave bálsamo para as preocupações da amiga.
Desmontou da bicicleta e encostou-a a um contentor que ali estava quase cheio. Cheirava a vinagre, sumo de maçã e fruta podre e as moscas zumbiam à sua volta. Rachel enxotou os desagradáveis insectos que lhe voavam em redor da cabeça. Bebeu mais um gole de água, endireitou os ombros e dirigiu-se para a porta da fábrica.
Porém, antes de lá chegar esta abriu-se, como se esperasse a sua visita.
Sahlah saiu, logo seguida pelo pai, que não estava todo vestido de branco, como era costume durante as horas de trabalho na cozinha experimental da fábrica, mas sim à paisana, como Rachel dizia: camisa azul com gravata, calças cinzentas e sapatos muito bem engraxados. Rachel concluiu que pai e filha iam almoçar fora. Esperava que as novidades a respeito de Agatha Shaw não estragassem o apetite de Sahlah. Mas também não tinha qualquer importância. Rachel dar-lhe-ia outras notícias que a iriam animar.
sahlah viu-a imediatamente. Usava um dos seus colares mais bonitos e, logo que viu Rachel, levou a mão ao pescoço, como que para tocar num talismã. Quantas vezes não vira aquele gesto no passado, pensou Rachel.
Era um sinal primário da ansiedade de Sahlah e Rachel aproximou-se logo para que ela ficasse descansada.
- Ora vivam - disse alegremente. - Outra vez este calor horrível.
Quando será que vai refrescar? Há um banco de nevoeiro no mar há tanto tempo e só faz falta um pouco de vento para que venha nesta direcção e a temperatura baixe. Posso falar contigo, Sahlah? Olá Mr. Malik.
Akram Malik deu-lhe formalmente as boas-tardes, como sempre, como se estivesse a cumprimentar a rainha. E nem lhe observava o rosto, nem afastava o olhar, como faziam as outras pessoas; era por isso que Sahlah gostava dele.
- Vou buscar o carro, Sahlah - disse à filha. Entretanto podes conversar com Rachel.
Quando se afastou, Rachel virou-se para Sahlah e abraçou-a impulsivamente.
- Já está, Sahlah. - disse em voz baixa. - Sim, é verdade, já consegui. Já está tudo tratado.
Sentiu nas mãos que a tensão abandonara os ombros de Sahlah. Os seus dedos largaram a pedra castanha do colar e virou-se de frente para ela.
- Muito obrigado - disse com ar grave. - Pegou na mão de Rachel, como se a fosse beijar agradecida. - Muito obrigada. Não podia acreditar que me tivesses abandonado, Rachel.
- Nunca o faria, sabes bem. Já te disse mais de mil vezes. Tu e eu seremos amigas para sempre. Logo que soube de Mrs. Shaw, sabia como te irias sentir, por isso saí e tratei das coisas. Já sabes o que aconteceu?
- A trombose? Sim. Um dos vereadores da Câmara telefonou ao meu pai e contou-lhe. É para lá que vamos: ao hospital, apresentar os nossos respeitos.
Sem dúvida Theo estaria lá, percebeu Rachel. Sentiu dentro de si uma coisa desagradável, embora não conseguisse definir o que era.
- É muito simpático da parte do teu pai - disse corajosamente. - Mas ele é sempre assim, não é verdade? E é por isso que eu tenho a certeza...
Sahlah continuou, como se Rachel não tivesse dito nada.
- Disse ao meu pai que, provavelmente, nem nos deixariam chegar perto do quarto dela, mas ele disse que não fazia mal. Vamos ao hospital mostrar a Theo o nosso apoio, disse ele. Ele auxiliou-nos generosamente quando instalámos os computadores aqui na fábrica e é assim que lha devemos retribuir, agora que está com problemas: com a nossa amizade. É a versão inglesa do lenã-dená. Foi assim o que o meu pai me explicou.
- Theo vai apreciar - disse Rachel. - E mesmo que a trombose da avó o impeça de cumprir o seu dever para contigo, Sahlah, vai sempre lembrar-se que foste ao hospital visitar a avó. Assim que ela melhorar vocês vão ficar juntos, tu e Theo e ele cumprirá o seu dever de pai. Espera e verás.
Sahlah ainda tinha a mão de Rachel entre as suas. Mas nesta altura largou-a.
- Dever de pai? - Repetiu. Os dedos voltaram a pegar na pedra. Era uma peça de um dos colares mais feios de Sahlah, uma massa indefinida, parecida com calcário, mas que era, segundo a explicação de Sahlah, um fóssil encontrado no Nez. Rachel nunca gostara do colar e ficara muito satisfeita por Sahlah não o querer pôr à venda na Racon. A peça era muito pesada e as pessoas não queriam colares que Lhes pesassem como uma consciência culpada.
- Claro - disse. - Claro que as coisas estão más neste momento e por isso ele não pode ver claramente o futuro. Foi por isso que agi rapidamente, sem sequer falar contigo. Logo que soube o que tinha acontecido a Mrs. Shaw; vi que Theo não poderia cumprir as suas obrigações para contigo, agora, que ficava com ela a seu cargo. Mas em breve as cumprirá e até lá precisas de alguém que tome conta de ti e do bebé e essa pessoa sou eu. Por isso fui à Clifftop...
- Chega, Rachel - disse Sahlah, em voz baixa, continuando a agarrar na pedra com tanta força, que a mão lhe tremia. - Tu disseste que estava tudo tratado. Tu disseste... Rachel não trataste...? Arranjaste-me as informações...?
- Arranjei o apartamento, foi o que foi - disse Rachel alegremente. Acabei de assinar os papéis. Queria que fosses a primeira a saber, por causa do que aconteceu a Mrs. Shaw. Vai precisar de alguém que tome conta dela sabes. Cuidados constantes, foi o que me disseram. E conheces Theo. Vai, provavelmente, dedicar-se a ela até que esteja totalmente recuperada. Isso quer dizer que não te vai levar. Claro que o poderia fazer, mas eu acho que não. Ela é avó dele e criou-o, não é? E primeiro está o seu dever para com ela. Por isso arranjei o andar para ti e para o bebé, até que ele fique livre para assumir essa outra responsabilidade, que és tu. Istu é, vocês os dois.
Sahlah fechou os olhos; como se o sol tivesse de repente ficado brilhante demais. No fim do caminho via-se o BMW de Akram Malik, que vinha na direcção delas. Rachel não sabia se havia de anunciar a compra do andar ao pai de Sahlah. Mas desistiu, preferindo que a amiga lhe desse a notícia na altura certa.
- Tens ainda que esperar um mês ou um mês e meio até estar tudo tratado, Sahlah. A hipoteca ao banco e isso tudo, sabes. Mas entretanto podemos comprar a mobília, a roupa de casa e coisas assim. Theo pode ir connosco se quiser. Assim podem escolher os dois as coisas que vão usar, quando estiveres com ele e não comigo. Vez como tudo se resolve?
Sahlah acenou afirmativamente.
- Sim - murmurou. - Vejo.
Rachel estava encantada.
- Que bom. Oh, que bom. Quando queres começar à procura? Há umas lojas muito boas em Clacton, mas ficaremos melhor servidas se formos a Colchester. O que achas?
- Como quiseres - disse Sahlah, em voz baixa e com os olhos fixos no pai que se aproximava. - Decide tu Rachel. Isso é contigo.
- Já vês as coisas como eu e não te vais arrepender - disse Rachel, em tom de confidência. Aproximou a cabeça da de Sahlah quando Akram travou, a poucos metros, e ficou à espera que a filha fosse ter com ele. - Podes dizer a Theo quando estiveres com ele. Assim não se sentirá obrigado e toda a gente pode fazer o que está certo.
Sahlah deu um passo em direcção ao carro. Rachel deteve-a com uma observação final.
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- Telefona-me quando quiseres começar à procura, está bem? Os móveis, a roupa, a loiça e outras coisas. Sei que vais querer dar a novidade a todos e que ainda vai levar tempo. Mas, quando quiseres, começamos a fazer as compras. Para os três, está bem Sahlah?
A amiga desviou finalmente os olhos do pai e olhou para Rachel, com um olhar desfocado, como se o seu espírito estivesse a quilómetros de distância. O que era natural, pensou Rachel. Havia tantos planos a fazer.
- Telefonas? - Repetiu Rachel.
- Como quiseres - respondeu Sahlah.
- Eu sabia que pareceria um acidente, se não fizesse alguma coisa para mudar a cena - continuou Hegarty.
- Então arrastou o corpo para a guarita e destruiu o carro. Assim a polícia saberia que se tratava de um homicídio - concluiu Barbara por ele.
- Não me lembrei de mais nada - disse francamente. - E não podia vir contar. Gerry conhece-os e eu ficava mal. Não é que eu esteja apaixonado por Gerry, sabe. Só que pensar ficar com o mesmo homem para o resto da vida... Merda, parece uma sentença de prisão perpétua, se é que me entendem.
- E como sabe que Gerry não sabe já de tudo? - Perguntou Barbara. À parte Theo Shaw, aqui estava mais um suspeito inglês. Evitou olhar directamente para Emily.
- O que é que... - De repente Hegarty percebeu o significado da pergunta. - Não - disse rapidamente. - Não era Ger que estava no alto da falésia. Impossível. Ele não sabia de mim e Hayth. Tinha-me mandado fazer as malas.
Emily voltou ao assunto.
- A figura que viu era um homem ou uma mulher?
Não sabia dizer. Estava escuro e a distância da falésia à guarita era muito grande. Idade, sexo, raça ou identidade... Não sabia.
- A figura não desceu à praia para verificar o que lhe tinha acontecido? Não, disse Hegarty. Quem quer que fosse a pessoa, tinha-se ido logo embora, para norte, na direcção da baía de Pennyhole.
O que era, pensou Barbara triunfante, mais uma achega para a teoria de que o assassino viera de barco.
- Nessa noite ouviu o motor de um barco?
Nada ouvira a não ser o coração latejando-lhe nos ouvidos, disse Hegarty. Esperara cinco minutos junto à guarita, tentando acalmar-se e conseguir pensar. Estava num tal estado que nem conseguiria reparar numa explosão nuclear a dez metros de distância.
Assim que sossegou - levara três minutos ou talvez cinco - fez o que tinha a fazer e que lhe levara, talvez, um quarto de hora. Depois atalhou:
- O único motor de barco que ouvi, foi o do meu - disse.
- O quê? - Perguntou Emily.
- O barco - disse. - Cheguei lá de barco. Gerry tem um barco a motor que usamos nos fins-de-semana. Levava- o sempre quando ia ter com Hayth. Eu vinha da costa, do lado de jaywick Sands, é mais directo e também mais emocionante. Gosto de a sentir aumentar... a emoção, sabem.
Então cá estava o barco que tinha sido ouvido ao largo do Nez. Desiludida, Barbara imaginou se não teriam voltado à estaca zero.
- Enquanto estava à espera de Querashi - disse. - Não ouviu nada? Talvez outro barco a motor? Grande e navegando devagar?
Não ouvira, disse, mas, de qualquer modo, a figura no cimo da falésia deveria ter chegado antes dele. A armadilha fora arranjada antes de Haytham chegar, pois Hegarty não vira ninguém perto da escada, senão depois da queda.
Emily disse:
- O senhor foi identificado no Castle Hotel com Mr. Querashi, numa coisa chamada...? - Olhou para Barbara.
- Cabedal e Rendas - disse Barbara.
- É isso. Essa identificação não condiz com a sua história, Mr. Hegarty. Porque acabaram os dois num baile público no Castle Hotel? Não faz sentido; se tencionava esconder essa relação do seu amante.
- Ger não vai a esses sítios - disse Hegarty. - Nunca foi. E, afinal, a que distância fica o hotel daqui? A quarenta minutos de carro e é preciso andar depressa. Mais longe, se tivermos saído de Jaywick ou de Clacton. Não creio que alguém que me visse lá fosse contar a Gerry. E para Ger era noite de trabalho na obra, por isso nunca viria a saber que eu lá tinha ido. Eu e Haytham estávamos a salvo no Castle. - Mas ao acabar de dizer isto, franziu as sobrancelhas e a testa.
- Sim? - Perguntou logo Emily.
- Por um momento pensei... Mas não foi nada, porque ele não nos viu. E não era a ele que Haytham ia contar.
- De que está a falar, Mr. Hegarty?
- Muhannad.
- Muhannad Malik?
- Sim, claro. Também o vimos no Castle.
Valha-me Deus, pensou Barbara. Que mais complicações teria este caso?
- Muhannad Malik também é homossexual? - perguntou. Hegarty riu à socapa, apalpando o alfinete de fralda que lhe pendia do lóbulo da orelha.
- Vi-o no hotel, mas não no baile. Vimo-lo depois, quando nos íamos embora. Passou de carro por nós, atravessou a estrada e virou à direita, na direcção de Harwich. Era uma hora da manhã e Haytham não conseguia perceber o que fazia Muhannad ali, a meio da noite. Por isso seguimo-lo.
Barbara viu que a mão de Emily se contraía, ao segurar no lápis. Porém, a sua voz nada traía.
- Para onde ia?
Dirigira-se, disse Hegarty, a uma zona industrial à entrada de Parkers ton. Estacionou perto de um dos armazéns, desapareceu lá dentro durante cerca de meia hora e depois voltou a sair.
- Tem a certeza de que era Muhannad Malik? - Insistiu Emily.
Não havia engano possível, disse-lhes Hegarty. O fulano levara o Thunderbird azul-turquesa e não existe mais nenhum carro assim, no Essex.
- Só que - acrescentou subitamente Hegarty. - Não ia a conduzir o carro quando de lá saiu. Conduzia um camião. De facto, já saiu do armazém ao volante do camião. E depois não o vimos mais.
- Não o seguiram mais?
- Hayth não se quis arriscar. Uma coisa era sermos nós a ver Muhannad e outra coisa era ele ver-nos.
- E quando foi que aconteceu isso, exactamente?
- No mês passado.
- Mr. Querashi não voltou a falar do caso?
Ele abanou a cabeça.
Pela intensidade do seu olhar, Barbara percebeu que o inspector estava disposta a seguir essa informação. Mas, ao seguir o Caminho de Muhannad, estava a ignorar um letreiro que Hegarty já lá tinha pintado. Até ver, Barbara afastara do espírito as palavras que lhe tinham dado que pensar. O facto de Sahlah estar grávida não podia anular a presença de outro suspeito.
- Esse Ger - disse. - É Gerry DeVitt.
Hegarty, que já começara a descontrair-se na presença delas, parecendo gozar naquele momento a importância que tinha na investigação, ficou novamente perturbado. Os olhos denunciavam-no, mostrando-o vigilante e alerta.
- O que é que ele tem? Não está a pensar que Gerry...? Olhe, eu já disse. Ele não sabia nada a respeito de mim e de Hayth. E foi por isso mesmo que eu não quis logo falar com vocês.
- Isso é o que o senhor diz - disse Barbara.
- Nessa noite ele estava a trabalhar na casa de Hayth - insistiu Hegarty. - Pergunte a alguém na First Avenue. Devem ter visto a luz. Devem ter ouvido barulho. E eu já lhes disse como era: se Gerry descobrisse o que havia entre mim e Hayth, teria rompido comigo. Não teria ido atrás de Hayth. Não está no feitio dele.
- Um homicídio - disse Emily - geralmente não está no feitio de ninguém, Mr. Hegarty.
Concluiu formalmente a entrevista, gravando as horas e desligando o gravador. Levantou-se dizendo:
- Poderemos ter de voltar a entrar em contacto consigo.
- Não me telefonem para casa - pediu ele. - Não vão a Jaywick.
- Muito obrigada pela sua colaboração - respondeu Emily. - O agente Eyre levá-lo-à de volta ao seu local de trabalho.
Barbara seguiu Emily pelo corredor, onde o inspector lhe disse em voz baixa e tensa que tendo ou não um motivo, Gery DeVitt não tirara o lugar ao seu suspeito número um.
- Seja o que for, Muhannad leva-o para a fábrica. Esconde-o lá em caixotes e expede esses caixotes juntamente com as outras coisas que de lá mandam. Sabe quando as encomendas são embaladas para expedição. Claro. São as suas funções. Só tem de fazer coincidir as suas expedições com as da fábrica. Quero o local revistado. De cima abaixo, de dentro para fora.
Mas Barbara não conseguia esquecer o depoimento de Hegarty. Trinta minutos com o fulano tinham levantado já pelo menos uma dúzia de questões. E Muhannad Malik não era a resposta a nenhuma delas.
Passaram na recepção a caminho das escadas. Barbara viu Azhar a falar com a agente que estava de serviço. Ergueu o olhar, quando ela e Emily entraram no seu campo de visão. Emily também o viu, dizendo para Barbara com ar enigmático:
- Ah o Senhor Dedicado ao Seu Povo. Vindo de Londres, para nos mostrar como é um bom muçulmano.
Deteve-se por trás da recepção e disse a Azhar:
- Está um pouco adiantado para a nossa reunião, não é verdade? O sargento Havers só estará disponível mais tarde.
- Não vim para a nossa reunião, mas sim para levar Mr. Kumhar de volta para casa - disse Azhar. - As vinte e quatro horas de custódia estão a terminar como, com certeza sabe.
- Tanto quanto sei - disse Emily rispidamente - Mr. Kumhar não pediu os seus serviços como motorista. E, até que o faça, será levado a casa do mesmo modo como para cá veio.
Azhar olhou então para Barbara. Pareceu aperceber-se da súbita mudança na investigação, indicada pelo tom de voz do inspector. Esta já não parecia preocupada com a possibilidade de outro levantamento na comunidade, e isto tornava- a menos susceptível de fazer um compromisso.
Emily não deu a Azhar oportunidade para responder. Voltou-se e, vendo um dos membros da sua equipa aproximar- se, disse:
- Billy, se Mr. Kumhar já almoçou e já tomou banho, leve-o a casa. Retenha-lhe os papéis e o passaporte. Não quero que ele desapareça, sem que descubramos tudo o que tem para dizer.
Falou alto, e sem dúvida, Azhar ouvira-a. Barbara falou com cautela, enquanto subiam as escadas.
- Mesmo que Muhannad esteja por trás de tudo isto, não pensas que Azhar, Mr. Azhar, esteja também envolvido, pois não, Em? Ele veio de Londres. Nem sequer sabia do crime.
- Não temos a mínima ideia daquilo que ele sabia ou não. Apareceu aqui como se fosse uma espécie de conselheiro legal e, tanto quanto sabemos, até pode ser o cérebro por trás de Muhannad. Onde estava ele, na sexta-feira à noite, Barb?
Barbara sabia muito bem qual era a resposta, pois, por trás das cortinas, vira Azhar e a filha a grelhar espetadas de borrego halal no jardim atrás da casa em que ocupavam o rés-do- chão. Mas não o poderia dizer, sem trair a sua amizade. Por isso disse:
- Só que... bem, sempre pareceu um homem decente, nas nossas reuniões.
Emily riu, com ar sardónico.
- Claro que é decente. Tem mulher e dois filhos, que abandonou em Hounslow para se juntar com uma fulana inglesa. Esta teve uma criança dele e depois, essa tal Angela Weston, seja ela quem for, pôs-se a andar. Só Deus sabe quantas mulheres enganará nos seus tempos livres. Deve andar a plantar bastardos por toda a cidade - riu outra vez. - Vês Barb? Mr. Azhar é um homem muito decente!
Barbara tropeçou nas escadas.
- Como? - Perguntou. - Como é que tu...?
Emily parou uns degraus acima. Olhou para trás e disse:
- Como é que eu quê? Descobri a verdade? Pedi uma investigação sobre ele, assim que cá chegou. Recebi o relatório ao mesmo tempo que recebi as impressões digitais de Hegarty. - Semicerrou os olhos. Está desconfiada", pensou Barbara.
- Porquê, Barb? O que tem a ver a verdade acerca de Azhar com tudo isto? Aparte a confirmação da minha teoria de que não se pode confiar nestes esquisitos.
Barbara ficou a pensar na pergunta. Não queria considerar a verdadeira resposta.
- Nada - disse. - Mesmo nada.
- Bem - respondeu Emily. - Vamos lá tratar de Muhannad.
- VÁ, TOME UMA CHÁVENA DE CHÁ, Mr. Shaw. Eu fico lá fora, no balcão, onde estou sempre. Se houver alguma alteração as máquinas avisam logo.
- De facto, enfermeira, não preciso, estou bem.
- Não discuta. O senhor parece um morto-vivo. Esteve aqui quase toda a noite e não vai fazer bem a ninguém, se não tomar cuidado consigo.
Era a voz da enfermeira de dia. Agatha reconheceu-a. Não precisava de abrir os olhos para saber quem falava com o neto e ainda bem, porque abrir os olhos exigia-lhe um esforço danado. Além disso, não queria olhar para ninguém. Não queria ver piedade no rosto deles. Sabia muito bem o que eles viam para ter pena: um farrapo de mulher, uma carcaça virtual, paralisada de um lado, a perna esquerda inutilizada, a mão esquerda enclavinhada como a garra de um pássaro morto, a cabeça de lado, a boca e o olho seguindo na mesma direcção e, ainda por cima, babando-se, o que era muito desagradável.
- Está bem, Mrs. Jacobs - disse Theo à enfermeira e Agatha percebeu que realmente ele parecia cansado. Parecia cansado e doente. Quando pensou nisto sentiu o pânico apertar-lhe os pulmões, sentindo dificuldade em respirar. E se acontecesse alguma coisa a Theo? Pensava febrilmente. Não tinha considerado essa possibilidade, mas e se ele não tivesse cuidado consigo? E se adoecesse? Ou se tivesse um acidente? Então, o que seria dela?
Sentiu a proximidade do cheiro dele: um odor limpo, a sabonete e a limão do after-shave que ele usava. Sentiu que o colchão da cama do hospital baixava ligeiramente quando ele se inclinou sobre ela.
- Avó? - Murmurou. - Vou lá baixo à cafetaria, mas não se preocupe. Eu não me demoro.
- Vai demorar-se o suficiente para comer decentemente - disse a enfermeira Jacobs, autoritária. - Se demorar menos de uma hora, mando-o de volta. Vai ver se não mando.
- Ela é tão mandona, não é avó? - Disse Theo divertido. Agatha sentiu os lábios dele na sua testa. - Então volto daqui a sessenta e um minutos. Descanse bem.
Descansar? Pensou Agatha, incrédula. Como havia de descansar? Quando fechava os olhos via o triste espectáculo de si própria: a carcaça deformada da mulher activa que fora, agora inútil, imóvel, cateterizada, dependente. Quando tentava ignorar essa visão para a substituir pela visão do futuro, o que imaginava era o que tinha visto e desprezado mil vezes, quando passava na esplanada por baixo das avenidas de Balford, onde, sobranceiros ao mar, ficavam os lares da terceira idade. Aí, os idosos, já postos de lado, caminhavam com dificuldade, apoiados aos andarilhos. Com as costas permanentemente curvadas, em ponto de uma interrogação que ninguém tinha a coragem de fazer, arrastavam os pés no passeio, como se fossem um exército de enfermos e-esquecidos. Desde rapariga que reparara nessas relíquias da humanidade, e desde rapariga que jurara a si própria acabar com a vida antes de se ver obrigada a tornar-se num deles.
Só que agora não queria que a vida acabasse. Queria-a de volta e sabia que precisava de Theo para o conseguir.
- Vá lá minha querida, qualquer coisa me diz que debaixo dessas pálpebras fechadas, está bem acordada - a enfermeira jacobs estava inclinada sobre a cama. Usava um desodorizante forte, masculino, e quando transpirava; o que acontecia com frequência e copiosamente, esse odor evaporava-se do seu corpo, como se fosse vapor de água a ferver. As suas mãos alisaram o cabelo de Agatha. Sentiu um pente que ficou preso num nó, puxou com força e depois desistiu do esforço.
- Tem um belo neto, Mrs. Shaw. É um amor. Tenho uma filha que havia de adorar conhecê-lo. Está disponível não é verdade? Devia convidá-lo para lanchar no meu dia de folga. Acho que a minha Donna e o seu Theo se haviam de dar muito bem. O que acha, Mrs. Shaw? Gostava de ter uma neta nova? A minha Donna até poderia ajudar na sua recuperação.
Era o que faltava, pensou Agatha. De certeza que não precisava que Theo fosse apanhado nas garras de uma fulana com cérebro de galinha. Precisava sim, de sair daquele sítio e de ter paz e sossego para recuperar as forças tendo em vista a batalha da sua recuperação. Numa cama de hospital uma pessoa apenas recebia exames, picadas e piedade. E ela não queria nada disso.
A piedade era o pior. Detestava a piedade. Ela própria não a sentia por ninguém e não queria que ninguém a sentisse por ela. Preferia experimentar a aversão dos outros - que era o que sentira por aqueles detritos humanos que andavam pela Esplanada - do que se sentir uma infeliz paralizada. Uma pessoa de quem as pessoas falavam e com quem nunca falavam, quando estavam na sua presença. A aversão implicava o medo e o horror, que poderiam afinal ser usados, colocando a pessoa em vantagem. A piedade implicava a superioridade dos outros, coisa que Agatha nunca tivera de enfrentar na vida. E jurou que agora também não a haveria de suportar. Se permitisse que alguém ganhasse ascendência sobre si, seria derrotada. Derrotada, veria os planos da futura Balford irem por água abaixo.
Nada restaria de Agatha Shaw depois da sua morte, excepto as recordações que o neto tivesse dela e que quisesse - em seu devido tempo, claro, passar às gerações futuras. Mas como poderia confiar na dedicação de Theo à sua memória? Nessa altura teria outras responsabilidades. Por isso, se queria ser recordada, se queria que a sua vida tivesse significado antes de terminar, teria de o fazer ela mesma. Era exactamente do que estava a tratar, quando aquela trombose danada surgira, desfazendo os seus planos.
Se não tivesse cuidado agora, Malik, aquele monstro gorduroso e sujo haveria de avançar. Já o fizera, quando tivera de ser substituída como vereadora, deslizando para lhe ocupar o lugar, tal como uma cobra de água desliza para um rio. O que não faria agora, quando soubesse que ela tinha tido outra trombose?
Se Akram Malik tivesse oportunidade de pôr em prática os seus planos, Balford veria mais do que o Falak Dedar Park. Antes da cidade se dar conta, teria um minarete na praça do mercado, uma pomposa mesquita em lugar da bonita igreja de São João e restaurantes malcheirosos em todas as esquinas, desde Balford Road até ao mar. Depois chegaria a verdadeira invasão: dezenas de paquistaneses, com dezenas de crianças cheias de piolhos, metade deles desempregados, a outra metade ilegais, todos eles poluindo a cultura e as tradições daqueles entre os quais tinham escolhido viver.
Querem uma vida melhor, avó, fora assim que Theo lhe explicara. Mas ela não precisara da sua explicação do que era óbvio, ditada pelo seu bom coração e má cabeça. Eles queriam a vida dela. Eles queriam a vida de todos os ingleses, homens, mulheres e crianças. E não haviam de descansar, desistir ou retirar-se, enquanto não a tivessem.
Principalmente Akram, pensou Agatha. Aquele Akram maldito, horrível e miserável. Tecia uma viscosa teia de amizade e fraternidade. Até tivera um papel conciliador da comunidade com aquela parvoíce da Cooperativa dos Empresários. Mas a conversa e as suas acções não enganavam Agatha Shaw. Eram subterfúgios. Eram a maneira de enganar uma multidão de carneiros, dizendo-lhes que podiam pastar a salvo no prado, quando lá tinha posto uma alcateia de lobos.
Mas havia de lhe mostrar que era mais esperta do que ele. Levantar-se-ia, tal como Lázaro, da cama de hospital, e mostrar-lhe-ia a sua força indomável, que ele não conseguiria conquistar.
Agatha percebeu que a enfermeira Jacobs se tinha ido embora. O odor desaparecera, deixando no seu lugar um cheiro a medicamentos, a tubos de plástico, às secreções do seu próprio corpo e à cera do chão.
Abriu os olhos. A cabeceira estava levantada, para que pudesse estar um pouco erguida e não completamente estendida. Já era uma melhoria em relação às horas logo a seguir à trombose. Nessa altura só conseguira obter uma visão deformada do tecto. Agora, pelo menos, apesar de não ter som, pois a enfermeira Jacobs esquecera-se de o aumentar quando saíra, podia ver televisão.
Um filme mostrava um marido ansioso e bonito demais para ser verdade empurrando a cadeira-de-rodas da sua mulher- ainda-mais-bonita e grávida, a entrarem na urgência do hospital onde ela teria a criança. O filme devia ser uma comédia, pensou Agatha, por causa do comportamento apalhaçado dos actores e da expressão dos seus rostos. Realmente era muito engraçado. Não conhecia nenhuma mulher neste mundo que achasse que o acto de dar à luz dava vontade de rir.
Como muito esforço, deslocou um pouco a cabeça de modo a conseguir ver a janela. Através dela, a cor deslavada do céu mostrou-lhe que o calor continuava. Porém, não sentia os efeitos da temperatura exterior, pois o hospital era dos poucos edifícios de Balford, num raio de trinta quilómetros, que tinha ar condicionado. Ter-lhe-ia agradado bastante o facto... se estivesse no hospital apenas para visitar alguém que, por exemplo, fosse merecedor daquela desgraça. Poderia até nomear pelo menos vinte pessoas que mereciam mais aquilo porque ela estava a passar. Pensou nesse assunto. Começou a fazer a lista dessas vinte pessoas e entreteve-se a designar para cada uma um tormento em particular.
Assim, ao princípio não deu conta de que alguém entrara no quarto. Uma tosse delicada informou-a de que tinha uma visita.
Ouviu alguém dizer em voz baixa:
- Não, não se mexa, Mrs. Shaw. Eu vou aí.
Os passos aproximaram-se da cama e subitamente viu-se cara-a-cara com a sombra negra da sua alma: Akram Malik.
Fez um som inarticulado, que Significava O que quer daqui? Saia. Saia. Não quero ver a sua satisfação oleaginosa, mas, estrangulado pelas mensagens confusas que o cérebro doente lhe enviava às cordas vocais, o som era um conjunto incompreensível de roncos e uivos.
Akram olhou para ela atentamente. Sem dúvida, pensou, estava a inventariar o seu estado, tentando perceber a força com que teria de a empurrar para a cova, o que lhe deixaria o caminho livre para levar a cabo os seus planos insidiosos em Balford-le-Nez.
- Ainda não vou morrer, seu escarumba. Por isso tira esse ar hipócrita. Tens tanta pena de mim como eu teria, se fosse ao contrário - mas apenas emitiu sons crescentes e decrescentes, sem nada que os separasse ou definisse.
Akram olhou à sua volta e saiu por um momento do seu campo de visão. Em pânico, pensou que ele tencionava desligar as máquinas que ronronavam suavemente à sua cabeceira. Mas regressou com uma cadeira na mão e sentou-se.
Viu que ele trazia um ramo de flores. Colocara-as na mesa, ao lado da cama. Retirou do bolso um livrinho com capa de cabedal. Pô-lo sobre os joelhos mas não o abriu. Baixou a cabeça e começou a murmurar uma enfiada de palavras numa incompreensível língua paquistanesa.
Onde estava Theo? Pensou Agatha desesperada. Porque não estaria ali para que ela fosse poupada a isto? Akram Malik falava suavemente, mas não ia deixar-se enganar por aquele tom. Provavelmente estava a rogar-lhe uma praga. Estava, sem dúvida, a praticar magia negra, vodu, ou fosse lá o que fosse que aquela gente fazia para se livrar dos inimigos.
Não estava para aturar tal coisa.
- Deixe-se de resmungar - disse. - Páre imediatamente. E saia já deste quarto! - Mas a sua forma de expressão era tão indecifrável para ele como a dele era para ela, e a única reacção da parte dele foi colocar a mão escura sobre a cama, como se lhe oferecesse uma bênção de que ela não tinha necessidade, nem queria.
Finalmente ele voltou a erguer a cabeça. Começou outra vez a falar, só que agora já ela o compreendia perfeitamente. A voz dele era tão sedutora que não conseguiu deixar de olhar para ele. Pensou vagamente, que as cobras também eram assim, hipnotizavam uma pessoa com o olhar. Mas mesmo assim não desviou os olhos.
- Só esta manhã soube do seu estado, Mrs. Shaw - disse. - Tenho tanta pena. A minha filha e eu viemos prestar-lhe as nossas homenagens. Ela, a minha Sahlah, está à espera no corredor, pois só permitiram que entrássemos um de cada vez no seu quarto. - Retirou a mão de cima da cama e colocou-a sobre o livro de capa de cabedal que tinha nos joelhos. Sorriu e continuou. - Pensei em fazer uma leitura do livro sagrado. Por vezes acho que as minhas palavras são pouco adequadas para uma oração. Mas quando a vi, as palavras surgiram sem esforço. Antigamente teria achado estranho e procuraria um significado para tal coisa. Mas há muito tempo que aceitei que os caminhos de Alá ficam muitas vezes para além da nossa compreensão.
Mas o que estava ele a dizer, interrogava-se Agatha. Viera regozijar-se
- não havia qualquer dúvida - então porque não se despachava e se ia embora?
- Este ano, o seu neto Theo foi para mim uma fonte de grande auxílio. Talvez a senhora o saiba. E durante algum tempo não soube qual a melhor maneira de lhe retribuir a sua bondade para com a minha família.
- Theo? - Perguntou ela. - Theo, não, o meu Theo. Não faça mal a Theo, seu bandido.
Ele interpretou aquele conglomerado de sons como um pedido de esclarecimento.
- Ele fez com que a Mostardas Malik chegasse ao presente e ao futuro com os computadores. E foi o primeiro a ficar do meu lado e a introduzir-me na Cooperativa dos Empresários. O seu neto Theo tem uma visão que não é muito diferente da minha. Agora, com a sua presente infelicidade, posso-lhe finalmente retribuir os seus actos de amizade.
Com a sua presente infelicidade, repetiu Agatha para consigo. E teve a certeza do que ele ia fazer. Era o momento em que ele ia atacar e matar a presa.
Tal como um falcão, escolhera a altura, imaginado o mal que poderia fazer à sua vitima. E ela estava totalmente indefesa.
Ao diabo o seu contentamento, pensou. Malditos sejam os seus modos untuosos e repugnantes. Maldito seja o seu ar de santo, e malditos principalmente.
- Há muito tempo que sei do seu sonho de desenvolver a nossa cidade e de lhe restituir a sua antiga beleza. Tendo sido agora atingida pela segunda vez, a senhora deve recear que o seu sonho não se realize. - Voltou a colocar a mão na cama, mas desta vez sobre a mão dela. Reparou que não era a mão boa, que ela poderia ter retirado, mas sim a mão paralisada, incapaz de qualquer movimento. Que esperto, pensou amargamente. Que inteligente, ao acentuar as suas enfermidades antes de expor os planos para a destruir.
- Tenciono dar todo o meu apoio a Theo, Mrs. Shaw - disse. O reordenamento de Balfor-le-Nez vai continuar conforme o planeou. Até ao último pormenor, com as suas ideias, o seu neto e eu faremos com que esta cidade renasça para a vida. Foi isto que lhe vim dizer. Descanse agora e concentre os seus esforços em recuperar a saúde, de modo a que possa viver muito tempo entre nós.
Depois curvou-se e encostou os lábios à sua mão deformada, feia e aleijada.
Não tendo palavras para lhe responder, ela perguntava a si própria como conseguiria pedir a alguém que lha lavasse.
Barbara tentava aflitivamente concentrar-se naquilo que devia ser e que era a investigação. Mas o seu espírito desviava-se insistentemente na direcção de Londres, mais especificamente, na de Chalk Farm e de Eton Villas e ainda mais na do rés-do-chão da casa amarela. Ao princípio disse a si própria que tinha de haver engano. Ou havia dois Taymullah Azhars em Londres, ou a informação fornecida pelos Serviços Secretos era inexacta, incompleta ou decididamente, falsa. Mas os factos principais sobre o asiático em questão, fornecidos pela Inteligência de Londres, estavam entre os que ela já conhecia a respeito de Azhar. Quando ela própria leu o relatório, ao voltar para o gabinete de Emily, teve de admitir que a descrição fornecida a partir de Londres era, em muitos aspectos, idêntica à imagem que já possuía. A morada do sujeito era a mesma; a idade da criança estava correcta; o facto da mãe da criança não estar presente também coincidia com o relatório apresentado. Azhar era identificado como professor de Microbiologia, o que Barbara já sabia, e o seu envolvimento num grupo de Londres chamado Direitos Legais e Auxilio aos Asiáticos coincidia com a profundidade dos conhecimentos que lhe demonstrara nos últimos dias. Por isso, o Azhar do relatório de Londres teria de ser o Azhar que ela conhecia. Só que este não parecia ser quem ela pensava conhecer. Isto fazia-a questionar tudo o que sabia a respeito dele, principalmente a sua posição na investigação.
Valha-me Deus, pensou. Precisava de um cigarro. Estava mesmo desesperada. Quando Emily atendeu um novo telefonema, possivelmente demorado, do seu superintendente, Barbara correu à casa-de-banho e acendeu, avidamente um cigarro, chupando o tubo cheio de tabaco tal como um mergulhador com falta de ar chupa o tubo de onde recebe o oxigénio.
Subitamente tudo o que sabia a respeito de Taymullah Azhar e da filha começava a fazer sentido. Entre as peças do puzzle que conseguia colocar estava a festa do oitavo aniversário de Hadiyyah, na qual Barbara fora a única convidada; uma mãe que ostensivamente tinha ido para o Ontário, sem revelar onde estava nem sequer enviar um postal à sua única filha; um pai que nunca pronunciava a expressão «minha mulher» e não falava da mãe da filha, a menos que o obrigassem; a falta de provas no apartamento de que uma mulher adulta alguma vez lá tivesse vivido. Nem um frasco de verniz velho, nem uma carteira posta de lado, não havia nada de costura ou tricot, nenhum exemplar da Vogue ou da Elle. Não havia vestígios de um passatempo, tal como aguarelas ou arranjos de flores. Barbara gostaria de saber se alguma vez Angela Weston, a mãe de Hadiyyah; teria vivido em Eton Villas. Se não, por quanto tempo mais, pensava Azhar manter a pretensão de que a mãe estava de férias, em vez da verdade que aparentemente seria que a mãe se tinha ido embora?
Barbara dirigiu-se à janela da casa-de-banho e olhou para o pequeno parque de estacionamento lá em baixo. O agente Billy Honigman escoltava para um Panda Fahd Kumhar, acabado de tomar banho e vestido de lavado. Viu que Azhar se aproximava deles. Falou com Kumhar. Honigman zangou-se. O agente enfiou o passageiro no banco de trás do carro. Azhar dirigiu-se ao seu próprio carro e, quando Honigman arrancou, seguiu-o sem se esconder. Viera para acompanhar Fahd Kumhar a casa, tal como prometera. Era, sem dúvida, o que tencionava fazer.
Um homem de palavra, pensou Barbara. Afinal um homem com mais de uma palavra.
Meditou sobre as respostas que ele lhe dera quando ela o questionara a respeito da cultura. Agora percebia como se aplicavam a ele. Ele fora banido da família, e a existência da filha não era reconhecida. Eram, ambos, uma ilha em si próprios. Não admirava que ele compreendesse bem e fosse capaz de explicar o significado de ser um banido.
Barbara digeria tudo isso utilizando o seu pensamento racional. Mas não era capaz de entender o que significava para si, pessoalmente, esta informação a respeito do paquistanês. Disse a si própria que não poderia querer dizer nada, visto afinal não ter qualquer relação pessoal com Taymullah Azhar. Era verdade que desempenhava o papel de amiga na vida da filha, mas quando se tratava de definir um papel na vida dele... De facto não tinha nenhum.
Portanto não entendia porque se sentira traída ao saber que ele tinha deixado a mulher e dois filhos. Talvez, concluiu, sentisse a traição que Haydiyyah sentiria se soubesse a verdade.
Sim, pensou Barbara. Sem dúvida era isso.
A porta da casa-de-banho abriu-se e Emily entrou, dirigindo-se directamente a um dos lavatórios. Apressadamente, Barbara esmagou o cigarro na sola de um dos ténis e sub-repticiamente atirou a ponta pela janela.
Emily torceu o nariz.
- Meu Deus, Barb - disse. - Ainda fumas, ao fim destes anos todos?
- Nunca neguei os meus vícios - confessou Barbara.
Emily abriu a torneira e encharcou uma toalha de papel. Passou-a pela parte de trás do pescoço, sem se importar com a água que lhe escorria pelas costas abaixo e lhe molhava a camisola.
- Ferguson - disse, como se o nome do superintendente fosse uma maldição - tem uma entrevista para ser promovido daqui a três dias. Espera uma prisão no caso Querashi, antes de a enfrentar. Obrigado, não faz nada para apressar a investigação, a não ser que considere uma ajuda o facto de me ameaçar continuamente com aquele idiota do Howard Presley. Mas ficará suficientemente satisfeito se prendermos alguém antes que haja mais tumul tos. Merda. Odeio esse homem.
Molhou a mão e passou-a pelo cabelo. Voltou-se para Barbara. Era altura de revistarem a fábrica de mostarda, anunciou. Ia pedir ao juiz que lhe entregasse um mandato de busca o mais depressa possível. Parecia tão ansiosa como Ferguson para fechar o caso sem outra batalha nas ruas.
Mas havia um pormenor que Barbara queria investigar e não se relacionava com a fábrica, nem com a convicção que Emily tinha a respeito das actividades ilegais que lá se passavam. Não podia ignorar o facto de que Sahlah Malik estava grávida, nem minimizar a importância que este facto poderia ter para o caso.
- Podemos parar na marina, Em?
Emily olhou para o relógio.
- Para quê? Já sabemos que os Malik não têm barco, se por acaso ainda te agarras a essa história da chegada ao Nez por mar.
- Mas Theo Shaw tem e Sahlah está grávida. E Theo tem a pulseira que Sahlah lhe deu. Ele tem um motivo, Em. E bastante forte, seja lá o que for que Muhannad e os amigos andem a fazer na Eastern Imports.
Theo também não tem álibi enquanto Muhannad tem, gostaria de acrescentar, mas calou-se. Emily sabia como era, apesar da sua teimosia em apanhar Muhannad Malik numa qualquer infracção.
Emily franziu a testa enquanto pensava no pedido de Barbara. - Certo - disse. - Vamos confirmar.
Partiram num Ford sem distintivo, voltando na rua das lojas, onde viram Rachel Winfield pedalando com dificuldade, virada do lado do mar na direcção da Racon Original and Artistic jewellery. A rapariga estava muito vermelha. Parecia ter passado a manhã numa prova de ciclismo. Parou para tomar fôlego, perto da placa que indicava a marina de Balford para norte. Acenou com ar feliz, quando o Ford passou por ela. Se era culpada, não o parecia.
A marina de Balford tinha aproximadamente um quilómetro e meio de comprimento e seguia o caminho que era perpendicular à rua das lojas. O extremo mais baixo deste caminho incluía uma parte da pequena praça que dava para Alfred Terrace, onde Ruddock morava, na sua casa miserável. Passava por Tide Lake, por um parque de caravanas e finalmente pela massa circular da Martello Tower, que fora usada na defesa da costa durante as guerras napoleónicas. O caminho acabava na marina propriamente dita.
Esta consistia numa série de oito pontões em que estavam ancorados veleiros e outros barcos, gozando a placidez das águas. No extremo norte havia um pequeno escritório, anexo a um edifício de tijolo onde estavam instalados os duches e as casas-de-banho. Emily seguiu nesta direcção e estacionou junto a uma fila de caiaques sobre os quais havia um letreiro descorado que anunciava o Aluguer de Barcos East Essex. O dono do negócio também desempenhava o papel de chefe do porto, um emprego sem importância, tendo em conta as reduzidas dimensões do referido porto.
Emily e Barbara interromperam Charlie Spencer que preenchia os boletins de apostas para as corridas de New Market.
- Já apanharam alguém? - Foram as primeiras palavras que disse quando levantou os olhos, viu a identificação de Emily e colocou atrás da orelha um lápis todo mordido. - Não posso estar aqui sentado as noites inteiras, de arma na mão, sabem? De que me serve pagar impostos se a polícia não me presta serviços. Eh? Podem explicar-me?
- Melhore a segurança, Mr. Spencer - respondeu Emily. - Suponho que, quando sai de casa, fecha a porta à chave.
- Tenho um cão que me toma conta da casa - retorquiu.
- Então precisa de outro para aqui.
- Qual é o barco dos Shaw? - Perguntou Barbara ao homem, indicando as filas de barcos ancorados, que se mantinham imóveis nos ancoradouros. Viu que havia muito pouca gente por ali, apesar das horas e do calor que estava, que deveria encorajar um passeio de barco.
- É o Fighting Lady - replicou. - É o maior, no fim do Pontão Seis. Os Shaw não o devériam ter aqui, sabem? Mas dá-lhes jeito, e como pagam sempre a tempo e horas, quem sou eu para me queixar, eh?
Quando lhe perguntaram porque razão o Fighting Lady não deveria estar na marina de Balford ele respondeu:
- O problema são as marés - e continuou explicando que, quem quisesse usar um barco tão grande, ficaria mais bem servido com um ancoradouro que não estivesse tão dependente das marés. Com a maré-cheia não havia problemas. Havia muita água para que o barco flutuasse. Mas, quando a maré baixava, o fundo do iate batia no lodo, o que não era bom, visto que a cabina e as máquinas pesavam na infraestrutura. - Encurta a vida do barco - explicou.
- E a maré na noite de sexta-feira, - perguntou Barbara. - A maré entre as dez e a meia-noite, por exemplo?
Charlie pôs de lado os boletins de apostas e consultou um livrinho que estava ao lado da caixa. Baixa, disse. O Fighting Lady, para não falar os outros barcos de recreio da marina, não teriam podido sair na sexta-feira à noite.
- Todos eles precisam, pelo menos, de dois metros e meio de água para fazer a manobra - explicou. - E agora quanto às minhas queixas, inspector... - Entretanto retomou com Emily o assunto da eficácia do treino de cães de guarda.
Barbara deixou-os a discutir. Saiu e continuou na direcção do Pontão Seis. O Fighting Lady foi fácil de localizar. Era o maior barco da marina, pintado de branco brilhante, as madeiras e os cromados protegidos por lona azul. Quando viu o barco, Barbara percebeu que mesmo que a maré estivesse cheia, Theo Shaw, ou qualquer outra pessoa, não teriam maneira de ancorar o barco perto da costa. Ancorá-lo ao largo do Nez significava ter de nadar até à praia, e não parecia provável que alguém decidido a praticar um homicídio começasse o trabalho da noite com um mergulho no mar.
Voltou ao escritório examinando os outros barcos no porto. Apesar das suas dimensões, a marina servia de porto a barcos a motor, a barcos de pesca com motor diesel e até a um elegante Hawk 31, que estava fora de água e tinha o nome de Sea Wizzard; parecia pertencer a alguém que vivesse na costa da Florida ou no Mónaco.
Nas proximidades do escritório, Barbara viu os barcos que Charlie tinha para alugar. Juntamente com barcos a motor e caiaques, alinhados nos suportes, havia no pontão dez canoas e oito zodíacos insufláveis. As gaivotas já tinham ocupado dois deles. Havia mais pássaros voando em círculo e a piar.
Olhando para os zodíacos, Barbara recordou a lista de actividades crimi nosas que Belinda Warner compilara do computador da polícia. Em primeiro lugar, tinha-se interessado pelos arrombamentos às casas de praia e pelo efeito que poderiam ter em Trevor Ruddock e no seu álibi para a noite do crime. Mas agora via que as actividades ilícitas também tinham outro ponto de interesse.
Seguiu pelo pontão estreito e examinou os zodíacos. Estavam todos equipados com remos, mas era possível adaptar-lhes um motor e vários estavam colocados em suportes, no extremo do pontão. Porém, um dos insufláveis estava já dentro de água com o motor colocado e, quando Barbara fez girar a chave, descobriu que o motor era eléctrico e não a gasolina, portanto praticamente silencioso. Examinou as pás da hélice que estavam dentro de água; tinham menos de meio metro.
- Certo - murmurou quando descobriu. - Exacto.
Levantou os olhos quando o pontão balouçou. Emily viera ter com ela, com a mão em pala em frente dos olhos. Pela sua expressão, Barbara percebeu que o inspector chegara à mesma conclusão.
- Que dizia a informação do computador? - Perguntou Barbara retoricamente.
De qualquer modo Emily respondeu:
- Fanaram-lhe três zodíacos sem que desse por isso. Foram os três encontrados no Wade.
- Em, seria muito difícil, roubar um Zodíaco e manobrá-lo nos baixios durante a noite? E, se quem o tivesse roubado, o devolvesse antes do nascer do Sol, ninguém saberia de nada. Não me parece que o sistema de segurança de Charlie seja grande coisa, pois não?
- Claro que não - Emily dirigiu o olhar para norte - O canal de Balford fica logo a seguir àquela língua de terra, Barb, ali onde se vê uma cabana de pescadores. Mesmo na maré-baixa há água no canal. E aqui também há água para se sair. Não é suficiente para barcos grandes, mas para um insuflável...? Não haveria problema.
- Onde leva o canal? - Perguntou Barbara.
- Directamente ao lado ocidental do Nez.
- Assim, alguém poderia ter levado o Zodíaco pelo canal, dar a volta à ponta norte do Nez, acostar no lado oriental e caminhar para sul, em direcção às escadas.
Barbara seguiu o olhar de Emily. Do outro lado da pequena baía que abrigava a marina, havia uma série de campos cultivados no extremo de uma propriedade; as chaminés da casa principal eram claramente visíveis. Um atalho muito usado limitava a terra da propriedade, seguindo o perímetro norte dos campos. Seguia para leste e terminava na baía, onde virava para sul de modo a ficar paralelo à costa. Vendo o caminho, Barbara perguntou:
- Quem vive naquela casa, Em? Na casa grande com tantas chaminés?
- Chama-se Mansão de Balford - disse Emily. - É onde vivem os Shaw.
- Acertámos - murmurou Barbara.
Mas Emily rejeitou teimosamente um resultado tão simples para a equação motivo-meios-oportunidade.
- Ainda não me decidi a aceitar essa solução - disse. - Vamos lá à fábrica de mostarda antes que alguém avise Muhannad. Isto se - acrescentou - Herr Reuchlein não o tiver já feito.
Sahlah passou o tempo em que esteve no corredor do hospital a olhar para a porta do quarto de Mrs. Shaw. A enfermeira informara-os que apenas uma pessoa poderia entrar para ver a doente, pelo que ficou aliviada por não ter sido obrigada a ver a avó de Theo. Por outro lado sentia uma enorme culpa com esse alívio. Mrs. Shaw estava doente - gravemente doente, conforme indicavam todas aquelas máquinas que Sahlah vira pela porta entreaberta - e os preceitos da sua religião ensinavam-lhe que deveria tentar mitigar as necessidades da enferma. Aqueles que acreditavam e praticavam boas obras, dizia o Sagrado Corão, seriam levados para os jardins onde corriam os rios. E que melhor obra se poderia praticar do que visitar os doentes, principalmente esta, que poderia ser vista como uma inimiga?
Claro que Theo nunca admitira o facto de a avó detestar a comunidade asiática em geral e de Lhes desejar todo o mal possível, individualmente. Mas a sua aversão pelos imigrantes que tinham invadido Balford-le-Nez sempre fora a muda realidade entre Sahlah e o homem que amava. Dividira-os exactamente da mesma maneira que os planos que os pais tinham feito para o seu futuro.
Intimamente sabia que o amor entre ela e Theo estava, à partida, derrotado. A tradição, a religião e a cultura tinham agido em conjunto para o vencer. Mas desde o princípio que se sentia tentada a culpar alguém pela impossibilidade de viver com Theo. E era tão fácil agora torcer as palavras do Sagrado Corão e formar com elas uma justificação para o que tinha acontecido à avó de Theo: Todo o bem que cair sobre ti (Ó homem) provém de Alá, e todo o mal que cair sobre ti provém de ti mesmo.
Assim poderia declarar firmemente que o estado de Mrs. Shaw era o resultado directo de todos os ódios, predisposições e preconceitos que guardara dentro de si e encorajara nos outros. Mas Sahlah sabia que também poderia aplicar a si as mesmas palavras do Corão. Porque o mal também tinha caído sobre si tal como caíra sobre a avó de Theo. Certamente esse mal era o resultado do seu comportamento egoísta e desorientado.
Não queria pensar em como o mal lhe tinha acontecido e no que ia fazer para o terminar. Na realidade não sabia o que fazer. Nem sequer sabia por onde começar, apesar de estar sentada no corredor de um hospital onde actividades eufemisticamente chamadas Procedimentos Necessários eram provavelmente levadas a cabo a toda a hora.
Por um momento sentira-se aliviada com a presença de Rachel. Quando a amiga dissera Já tratei de tudo" saíra-lhe um peso dos ombros a ponto de parecer ter asas. Mas quando percebera que aquilo que ela tratara fora a compra de um andar para onde Sahlah sabia que nunca iria viver, o desespero abatera-se sobe ela. Rachel fora a sua única esperança para se desembaraçar da marca do seu pecado contra a religião e a família, em segredo e com um mínimo de risco. Agora sabia que teria de se desembaraçar por si própria. Mas nem sequer fazia ideia dos primeiros passos a dar.
- Sahlah? Sahlah?
Ela sobressaltou-se ao ouvir o seu nome, dito naquele tom segredado que ele usara no pomar, naquelas noites em que se tinham encontrado. Theo estava à sua direita, e detivera-se antes de entrar no quarto da avó, com uma lata de coca-cola gelada na mão.
Sem pensar levou a mão à pedra do colar que trazia ao pescoço, como que para a esconder dele e como se ao tocar-lhe se protegesse. Mas ele vira o fóssil e obviamente interpretara o facto de ela o trazer, porque se dirigiu ao banco onde ela estava e sentou-se a seu lado. Pôs a coca-cola no chão. Ela seguiu os seus gestos e depois manteve o olhar na parte de cima da lata.
- Rachel disse-me, Sahlah - disse ele. - Pensa que...
- Eu sei o que ela pensa - murmurou Sahlah. Queria pedir a Theo que saísse dali ou que pelo menos se levantasse e fingisse que a conversa era da sua parte, a respeito da preocupação que sentia pelo estado da avó dele e pelo lado dele apenas um agradecimento. Mas, depois de longas semanas sem o ver, só a sua proximidade a embriagava. O seu coração queria-o, embora o seu espírito lhe dissesse que a única maneira de se salvar e sobreviver seria afastar-se.
- Como podes fazê-lo? - Perguntou. - Tenho feito essa pergunta a mim mesmo desde que falei com ela.
- Por favor, Theo. Não adianta falar nesse assunto.
- Não adianta? - Fez a pergunta amargamente. - Por mim está bem, porque não me importo que não adiante. Eu amava-te, Sahlah. Tu disseste que me amavas.
A parte de cima da lata estremeceu aos seus olhos. Pestanejou calmamente e manteve a cabeça baixa. À sua volta o trabalho do hospital continuava. Os auxiliares empurravam carrinhos, os médicos faziam as rondas, as enfermeiras levavam pequenos tabuleiros com a medicação para os doentes.
Mas ela e Theo sentiam-se separados de tudo isso, como se estivessem isolados por uma placa de vidro.
- O que eu gostava de saber - disse Theo - era quanto tempo tinhas levado para te decidir que amavas Querashi e não a mim. Foi um dia? Uma semana? Duas? Ou talvez nem tenha acontecido porque sempre que me disseste que para o teu povo o amor não era necessário ao casamento. Foi assim que resolveste?
sahlah sentia o sangue latejar furiosamente por trás do sinal na face.
Não havia maneira de o fazer compreender pois esse entendimento exigia dela uma verdade que não estava disposta a revelar.
- Também gostaria de saber como aconteceu isso e onde? Vais perdoar-me, espero eu, porque compreenderás que nas últimas seis semanas não pensei em praticamente mais nada senão naquilo que não aconteceu entre nós. Podia ter acontecido, mas não aconteceu. Foi quase, não foi, Sahlah? Na Horsey Island. Até naquela vez no pomar em que o teu irmão...
- Theo - disse Sahlah - Por favor, não nos faças isto.
- Não há nós. Pensei que houvesse. Mesmo quando Querashi apareceu... como tu disseste que ele ia aparecer... Pensei que ainda houvesse. Usei a merda da pulseira.
Ela estremeceu ao ouvir a palavra. Viu que agora não a trazia.
-... e continuei a pensar: ela sabe que não é obrigada a casar com ele. Ela sabe que se pode recusar pois não há maneira do pai a fazer casar contra vontade. O pai é asiático, sim, mas também é inglês. Talvez mais inglês do que ela, afinal. Mas os dias passavam e tornavam-se semanas e Querashi ficou. Ele ficou e o teu pai trouxe-o à Cooperativa e apresentou-o como filho. Dentro de algumas semanas já pertence à família, disse-me ele. Está noivo da nossa Sahlah. E eu tive de ouvir e desejar felicidades, quando só me apetecia...
- Não! - Ela não suportaria ouvir mais. E se ele pensava que a sua recusa em o ouvir significava que o seu amor por ele tinha morrido, tanto melhor.
- E o pior era à noite - disse Theo com palavras tensas, mostrando bem a sua amargura. - Durante o dia matava-me a trabalhar para me esquecer. Mas à noite só pensava em ti. Embora não conseguisse dormir nem comer, podia suportá-lo porque achei que também pensavas em mim. Continuava a pensar: esta noite ela diz ao pai. Querashi vai-se embora. E depois Sahlah e eu teremos tempo e oportunidade.
- Nunca tivemos. Tentei dizer-to. Não quiseste acreditar.
- E tu? O que querias, Sahlah? Porque vinhas ter comigo à noite ao pomar?
- Não sei explicar - murmurou desesperada.
- É o que se passa quando se brinca. Nunca se sabe porque é.
- Eu não brinquei contigo. O que sentia era verdadeiro. Eu fui sincera.
- Muito bem. E creio que também eras verdadeira com Haytham Querashi - Ele ia levantar-se. Ela impediu-o, estendendo a mão e fechando-a sobre o seu braço nu. - Ajuda-me - disse olhando finalmente para ele. Já esquecera os seus olhos azul-esverdeados, o sinal junto à boca, a franja de cabelo louro e macio. Sobressaltou-se com a súbita proximidade e assustada pela reacção do seu corpo à mera sensação de lhe tocar. Sabia que tinha de o largar, mas não conseguia. Não podia, enquanto ele não prometesse. Era a única possibilidade. - Rachel não quer, Theo, por favor. Ajuda-me.
- Para te livrares do filho de Querashi, não é? Porquê?
- Porque os meus pais... - como lhe poderia explicar?
- O que é que tem? Oh, o teu pai vai ficar furioso ao princípio, quando souber que estás grávida. Mas se a criança for um rapaz, vai aceitar logo. Diz-lhe que tu e Querashi gostavam tanto um do outro que não conseguiram esperar até à cerimónia.
Para além da injustiça das palavras dele, nascidas do seu próprio sofri mento, a brutalidade com que as disse, obrigou-a a dizer a verdade.
- O bebé não é de Haytham - disse. E depois retirou a mão do braço dele. - Eu já estava grávida de dois meses quando Haytham chegou a Balford.
Theo olhou para ela sem acreditar. Depois ela percebeu que ele lhe examinava o rosto desesperado, como que para perceber toda a extensão da verdade.
- Que diabo...? - disse. Mas a pergunta morreu antes de a terminar. Apenas repetiu o princípio dizendo: - Sahlah, mas que diabo...?
- Preciso que me ajudes - disse ela. - Imploro-te que me ajudes.
- De quem é? - Perguntou. - Se não é de Haytham... Sahlah, de quem é?
- Por favor ajuda-me a fazer o que tem de ser feito. A quem hei-de telefonar? Há uma clínica? Não pode ser em Balford. Não posso arriscar-me. Mas em Clacton...? Tem de haver alguma coisa em Clacton. Alguém que me possa ajudar, Theo. Em segredo e rapidamente, para que os meus pais não saibam. Porque se descobrirem, isso vai matá-los. Acredita-me. Vai matá-los, Theo. E não só a eles.
- A quem mais?
- Por favor.
- Sahlah - A mão furiosa apertou-lhe o braço. Era como se ele tivesse percebido na voz dela aquilo que ela não conseguia dizer.
- O que aconteceu? Naquela noite. Diz-me: O que aconteceu? Vais pagar, dissera ele, como as putas pagam.
- Eu é que provoquei - disse ela soluçando - porque não me importei com o que ele pudesse pensar. Porque lhe disse que te amava.
- Oh, meu Deus - murmurou ele, largando-lhe o braço.
A porta do quarto de Agatha Shaw abriu-se e o pai de Sahlah saiu. Fechou com todo o cuidado atrás de si. Ficou espantado ao ver a filha e Theo Shaw a meio de uma conversa tão séria. Mas o seu rosto alegrou-se imediatamente, talvez por ter a certeza de que Sahlah estava a fazer o que era devido, para chegar ao jardim onde corriam os rios.
- Ah, Theo - disse. - Estou muito feliz por não termos saído do hospital sem o ver. Acabei de falar com a sua avó e dei-lhe a certeza de que, como amigo e vereador da cidade, os seus planos para fazer renascer Balford não serão alterados nem de modo nenhum impedidos.
Theo levantou-se. A seu lado, Sahlah fez o mesmo. Baixou a cabeça com modéstia, e ao fazê-lo, evitou que o pai visse que o sinal de nascença latejava dolorosamente.
- Muito obrigado, Mr. Malik - disse Theo. - Foi muito simpático da sua parte. A minha avó vai apreciar muito o seu cuidado.
- Muito bem - disse Akram: - Agora, Sahlah minha querida, vamo-nos embora?
Sahlah acenou afirmativamente. Lançou a Theo um olhar fugaz. O jovem empalidecera por baixo do leve bronzeado e olhava alternadamente para ela e para Malik, como se não conseguisse encontrar as palavras que queria dizer. Era a única esperança de Sahlah e, como todas as demais que acalentara a respeito do amor e da vida, ia perdê-la neste momento.
- Gostei muito de falar consigo mais uma vez, Theo. Espero que a sua avó recupere o mais depressa possível.
- Obrigado - disse ele, tenso.
Sahlah sentiu o pai dar-lhe o braço e deixou que ele a levasse até ao elevador na outra ponta do corredor. Cada passo que dava fazia-a sentir mais longe da segurança. Então Theo falou.
- Mr. Malik - disse.
Akram deteve-se e voltou-se. Parecia agradavelmente atento. Theo juntou-se a eles.
- Estava a pensar - disse Theo. - Isto é, perdoe-me, se não for apropriado, porque não sei exactamente o que é acertado nesta situação. Mas importar-se-ia se eu levasse Sahlah a almoçar um dia desta semana? Há uma... bem, há uma exposição de jóias... é em Green Lodge, onde fazem os cursos de Verão, e como Sahlah faz jóias, pensei que gostasse de a ver.
Akram inclinou a cabeça e considerou o pedido. Olhou para a filha, como que para ver se ela estava disposta para tal aventura.
- O Theo é um amigo da família - disse. - Se Sahlah quiser ir, não tenho nenhuma objecção a fazer. Queres ir Sahlah?
Ela ergueu os olhos.
- Green Lodge - disse. - Onde fica, Theo?
A resposta foi tão serena como a expressão do seu rosto:
- Fica em Clacton - disse.
YUMN MASSAJOU A PARTE DE BAIXO das costas e deu um pontapé no cesto que tinha à frente; estava junto aos canteiros que tinha de tratar na detestável horta da sogra. Irritada, via Wardah a trabalhar noutros dois canteiros e de volta de um arbusto de malaguetas com devoção semelhante à de uma noiva pelo marido; desejou-lhe todo o mal deste mundo, desde uma trombose até lepra. Estavam aproximadamente dois milhões de graus de temperatura entre as plantas. E, para acompanhar o calor insuportável que nessa manhã tinha sido declarado um recorde pela BBC, os insectos da horta de Wardah, não se contentando com os tomates, pimentos, cebolas e feijões, onde habitualmente viviam, estavam a fazer um festim noutro sítio. Moscas e mosquitos zumbiam à volta de Yumn como maliciosos satélites. Aterravam no seu rosto coberto de suor, ao mesmo tempo que as aranhas lhe conseguiam entrar na dupattá e pequenas lagartas verdes lhe caíam nos ombros, desprendendo-se das folhas da parreira. Agitava as mãos furiosa, tentando enxotar as moscas na direcção da sogra.
Este tormento era mais outra ofensa que Wardah lhe infligia. Qualquer outra sogra sentir-se-ia grata por ter sido tão rapidamente presenteada com dois netos, um a seguir ao outro e tão pouco tempo depois do casamento do filho; deveria insistir para que Yumn repousasse sob a nogueira do jardim onde nesse momento os seus filhos, os seus filhos varões, brincavam com os camiões de brinquedo, no cruzamento em miniatura criado pelas raízes da velha árvore. Qualquer outra sogra teria reconhecido que, com aquele calor sufocante, uma mulher à beira de outra gravidez nem deveria estar a descansar cá fora, muito menos a trabalhar. O trabalho manual pesado não era indicado para uma mulher em idade de procriar, ruminava Yumn para consigo. Mas que experimentasse informar Wardah dessa sua teoria, Wardah, a mulher maravilha que passara o dia em que o seu filho Muhannad nascera a lavar todos os vidros da casa, a fazer o jantar para o marido, a lavar os pratos, as panelas e o chão da cozinha antes de se meter na dispensa para ter o bebé. Não, Wardah Malik considerava as temperaturas acima dos trinta e cinco graus como meros incómodos, tal como quando fora proibido usar a mangueira para regar 1.
Em todo o país, as pessoas sensatas tinham aceite as restrições anuais ao uso das mangueiras, limitando o que plantavam nos jardins. Mas claro que não fora isto que Wardah fizera. Wardah Malik plantara, como de costume, canteiros e canteiros de frágeis sementes, de que tratava todas as tardes. Sem poder usar a mangueira devido à seca, regava à mão as horríveis plantas, enchendo um balde numa torneira do lado de fora da cozinha.
Usava dois baldes para este exercício. Enquanto estava ocupada a encher um deles e o levava até ao canteiro, queria que Yumn despejasse o outro balde à volta das plantas. Mas, antes deste exercício diário, as plantas tinham de ser cortadas, podadas, colhidas e as ervas daninhas arrancadas. Era isso que faziam naquele momento. Wardah também estava à espera que Yumn a ajudasse. Maldita. Devia arder nos tormentos eternos.
Yumn sabia o que estava por detrás das exigências que Wardah lhe fazia e que iam, desde cozinhar e limpar até aos trabalhos forçados no jardim. Wardah queria castigá-la por fazer com tanta facilidade aquilo que ela própria fora incapaz de fazer. Não foram precisas grandes investigações para descobrir que Wardah e Akram Malik tinham casado dez anos antes de Wardah ter tido Muhannad. E tinham passado mais seis anos até ter podido presentear o marido com Sahlah. Tinham sido dezasseis anos de esforços, de que apenas dois filhos tinham resultado. No mesmo espaço de tempo, Yumn sabia que poderia dar a Muhannad mais do que uma dúzia de bebés, e a maior parte do sexo masculino. Por isso Wardah Malik sentia-se inferior à mulher do filho. E só escravizando-a seria capaz de obrigar Yumn a manter-se no seu lugar.
Amaldiçoada fosse a tormentos eternos, deveria ficar gelada, ser atacada por ratazanas ou morrer de fome, pensava Yumn, enquanto cavava a terra dura a que o Sol tinha dado uma consistência pedregosa, apesar de ser regada todos os dias. Bateu com a enxada num torrão que mais parecia o rochedo de Gibraltar debaixo de um tomateiro, e, enquanto o desfazia, fingia que se tratava do traseiro de Wardah.
Trás, batia a enxada. A velha bruxa voltava-se surpreendida. Trás. Trás. A velha gritava de dor. Yumn sorria. Trás. Trás. Trás. O sangue jorrava das costas daquela vaca. Trás. Trás. Trás. TRÁS. Estava à mercê de Yumn, com as mãos erguidas. Pedia-lhe que a soltasse, mas TRÁSTRÁSTRÁSTRÁSTRÁS, Yumn sabia que chegara a hora do seu triunfo e finalmente tinha a sogra indefesa, submissa, uma escrava dos caprichos assassinos da nora, uma verdadeira.
- Yumn! Pára imediatamente! Pára!
Os gritos de Wardah chegaram-lhe ao espírito, como se fosse um sonho mau, de que Yumn acordou rapidamente. Descobriu que tinha o coração
1 Em muitas zonas da Grã-Bretanha, durante períodos de seca, é proibido utilizar as mangueiras, pois a água é necessária para outros fins. (N. da T. )
a bater desenfreadamente e que o suor escorria-lhe do queixo para a parte da frente do qamis. O cabo da enxada estava escorregadio devido à humidade das mãos e tinha os pés e as sandálias enterrados na terra que revolvera durante o ataque. A poeira erguia-se à sua volta, como se fosse um véu diáfano, e colava-se-lhe ao rosto molhado e às roupas ensopadas em suor.
- O que estás a fazer? - Perguntou Wardah. - Sua estúpida! Olha para isto!
Através do pó que levantara ao atirar com a enxada, Yumn viu que tinha destruído os quatro tomateiros mais estimados pela sogra. Pareciam árvores derrubadas por uma tempestade. Os tomates estavam completamente esmagados em farrapos vermelhos, completamente destruídos.
E é claro, Yumn estava no mesmo estado. Wardah lançou a tesoura de podar para dentro do cesto e, zangada, avançou para a nora.
- Não sabes fazer nada senão destruir? - Perguntou. - O que é que eu te peço para fazer que tu não estragues?
Yumn olhou para ela, sentindo as narinas a latejar e os lábios apertarem-se.
- És uma inútil, uma preguiçosa e uma perfeita egoísta - declarara Wardah. - Acreditame Yumn, se o teu pai não nos tivesse pago tanto dinheiro para se ver livre de ti, ainda estarias em casa, a atormentar a tua mãe em vez de me fazeres perder a paciência.
Fora o discurso mais longo que Wardah alguma vez fizera na sua presença e a principio Yumn ficou espantada ao ouvir a sogra, habitualmente tão dócil, falar tanto. Mas a surpresa desapareceu rapidamente, ultrapassada pelo desejo de lhe dar uma bofetada. Ninguém podia falar assim com ela. Ninguém poderia alguma vez falar assim com a mulher de Muhannad Malik, sem mostrar deferência, subserviência e solicitude na voz. Yumn preparava-se para lhe responder, quando Wardah falou mais uma vez.
- Limpa já esta porcaria. Leva essas plantas para a estrumeira. Arranja o canteiro que estragaste. E já, antes que eu faça alguma coisa de que me possa vir a arrepender.
- Não sou sua criada - Yumn atirou com a enxada.
- Claro que não és. Uma criada com o jeito que tu tens para não fazer nada teria sido posta fora uma semana depois de cá ter entrado. Apanha a enxada e faz o que te disse.
- Vou tratar dos meus filhos - Yumn começou a avançar na direcção da nogueira, onde os dois rapazinhos, sem se aperceberem da altercação entre a mãe e a avó, brincavam com os camiões entre as raízes expostas da velha árvore.
- Não vais, não. Vais fazer o que te disse. Volta imediatamente ao trabalho.
- Os meus meninos precisam de mim - Yumn chamou os filhos. Queridinhos, querem que a ammi-gee vá brincar convosco?
As crianças interromperam a brincadeira.
- Anas. Bishr - ordenou Wardah. - Vão para casa.
Confusas, as crianças hesitaram.
- A ammi-gee vai já brincar com os seus meninos. A que vamos brincar? E onde? Ou querem ir à loja de Mr. Howard comprar um gelado? Querem, meus amores?
Os rostos iluminaram-se com a promessa. Mais uma vez, Wardah interrompeu-os.
- Anas - disse muito séria - ouviste o que eu disse. Leva o teu irmão já para dentro.
O rapazinho mais velho agarrou na mão do irmão. Juntos saíram de debaixo da árvore e deram uma corrida até à porta da cozinha.
Yumn voltou-se para a sogra
- Sua bruxa! - Gritou. - Sua vaca nojenta! Como se atreve a mandar nos meus filhos e...
A bofetada soou. E foi tão inesperada que Yumn ficou sem fala. Por um instante esqueceu-se quem era e onde estava. Voltou à juventude, ouviu o pai gritar e sentiu a força dos seus dedos sólidos quando lutava contra a impossibilidade de lhe encontrar um marido sem ter de pagar um dote dez vezes maior do que aquilo que ela valia. E, nesse instante de esquecimento, avançou. Agarrou a duppatá de Wardah e quando o véu lhe escorregou da cabeça, ficando à volta do pescoço, puxou as duas pontas furiosamente, gritando até que a sogra ficou ajoelhada no chão.
- Nunca - gritou. - Nunca, nunca... eu que dei filhos ao seu filho...
- E assim que viu Wardah de joelhos, Yumn empurrou-a para a fazer cair. Começou a dar pontapés: na terra do canteiro, nas plantas, em Wardah. Os tomates estragados eram projectados em todas as direcções. Ao fazê-lo, gritava:
- Sou uma mulher dez vezes melhor... sou fértil... disposta... desejada por um homem... enquanto a senhora... a senhora... nunca teve jeito para nada... a senhora...
Estava tão concentrada por finalmente poder libertar a sua fúria que, ao princípio não ouviu os gritos. Não sabia que alguém tinha entrado no jardim e sentiu que lhe prendiam os braços atrás das costas e a arrastavam da sogra, que era agora um vulto enrolado no chão.
- Cadela! Cadela! Estás completamente louca?
A voz era tão enraivecida, que naquele instante não a reconheceu como sendo de Muhannad. Empurrou-a para o lado e foi ter com a mãe, dizendo:
- Ammi, sente-se bem? Ela magoou-a?
- Eu? Magoei-a? - Perguntou Yumn. A dupattá tinha-lhe caído da cabeça e dos ombros. A trança desmanchara-se. A manga do qamis fora
arrancada. - Ela bateu-me. Não fiz nada. Essa vaca...
- Cala-te! - Rugiu Muhannad. - Vai para casa. Já te trato da saúde.
- Muni! Ela deu uma bofetada à tua mulher. E porquê? Porque tem inveja. Ela...
Ele levantou-se. Os seus olhos tinham uma intensidade tão ardente como Yumn nunca vira. Encolheu-se imediatamente.
- Deixas que batam na tua mulher? Seja quem for? - Perguntou em tom mais calmo e aflito.
Ele lançou-lhe um olhar tão odioso que ela se retraiu. Depois voltou-se para a mãe. Ajudou-a a levantar- se, falando baixinho com ela e sacudindo-lhe a roupa; então Yumn afastou-se e apressou-se a entrar em casa.
Anas e Bishr estavam na cozinha, escondidos atrás da mesa. Mas ela não parou para lhes acalmar o medo. Foi direita à casa-de-banho lá de cima.
As mãos tremiam-lhe como se fosse vítima de uma paralisia, as pernas pareciam não conseguir suportar-lhe o peso. Tinha a roupa pegada ao corpo em consequência do suor, havia terra em cada dobra e o suco do tomate agarrava-se ao tecido como se fosse sangue. O espelho mostrou-lhe que tinha a cara toda suja e o cabelo cheio de teias de aranha, lagartas e folhas, tinha pior aspecto do que o de uma cigana que não se lavasse.
Não se importava. A razão estava do seu lado. Fizesse o que fizesse, a razão estaria sempre do seu lado. E um olhar para a marca que a bofetada de Wardah lhe deixara no rosto iria confirmá-lo.
Yumn retirou a sujidade das faces e da testa. Lavou as mãos e os braços. Limpou a cara à toalha e examinou-se mais uma vez ao espelho. Viu que a marca da bofetada estava a desaparecer. Reavivou-a batendo em si própria, repetidamente, castigando a carne com força, até que a face ficou escarlate.
Depois, foi ao quarto em que dormia com Muhannad. Do corredor ouvia lá em baixo as vozes dos dois: de Muhannad e da mãe. A voz de Wardah voltara àquele tom falso de subserviência feminina, que reservava para falar com o filho ou com o marido. A voz de Muhannad era... Yumn escutou com cuidado. Franziu a testa. Falava como ela nunca o tinha ouvido, mesmo nos momentos mais íntimos, em que ambos tomavam conta dos filhos.
Apanhou algumas palavras
- Ammi jahn... não quis magoar... não tinha intenção... o calor... pedir desculpa e reparar o mal.
Pedir desculpa? Reparar o mal? Yumn atravessou o corredor e entrou no quarto. Bateu a porta com tanta força que os vidros estremeceram nas janelas. Que tentassem obrigá-la a pedir desculpas. Voltou a bater na face. Arranhou-se até fazer sangue. Agora ele poderia ver o que a sua querida mãe fizera à mulher.
Quando Muhannad entrou no quarto, ela penteara o cabelo e voltara a entrançá-lo. Não fez mais nada. Estava sentada em frente ao toilette, onde a luz era melhor para que ele visse o mal que a mãe lhe tinha feito.
- O que queres que eu faça quando a tua mãe me ataca? - Perguntou antes que ele conseguisse falar. - Deixo que ela me mate?
- Cala-te! - Disse. Dirigiu-se à cómoda e fez o que nunca tinha feito em casa do pai. Acendeu um cigarro. Continuou voltado para a cómoda e não para ela, enquanto fumava, tinha um braço encostado à madeira e com dois dedos fazia pressão nas têmporas. Voltara inesperadamente da fábrica, antes do meio-dia. Mas em vez de vir almoçar com as mulheres e as crianças, passara as horas seguintes ao telefone, fazendo e recebendo telefonemas em voz baixa e ansiosa. Obviamente ainda estava preocupado com os negócios. Mas a preocupação não deveria ser tão grande que não notasse o sofrimento da mulher. Enquanto ele ainda se encontrava de costas, Yumn beliscou a cara com tanta força que lhe vieram as lágrimas aos olhos. Ele haveria de ver como fora maltratada.
- Olha para mim, Muni - exigiu. - Olha o que a tua mãe me fez e depois diz se eu não havia de me ter defendido.
- Eu disse para te calares. E calas-te mesmo!
- Não me calo enquanto não olhares para mim - Levantou a voz num tom alterado. - Fui desrespeitosa, mas o que querias que fizesse quando ela me quis atacar? Não deveria ter agido para me proteger? Para salvaguardar a criança de que, neste momento, posso estar à espera?
Recordando-lhe a sua capacidade mais preciosa, Muhannad iria agir como ela queria. Voltou-se. Um olhar rápido no espelho mostrou-lhe que tinha a face devidamente arranhada e cheia de sangue seco.
- Cometi um simples erro com os tomateiros - disse. - Uma coisa compreensível, com este calor, e ela começou a bater-me. No meu estado. Aqui colocou as mãos sobre o ventre para que ele acreditasse nela. - Não hei-de fazer nada para proteger aquele que ainda não nasceu? Deixo-a exteriorizar toda a raiva e ciúme até que...
- Ciúme? - Interrompeu ele irritado. - A minha mãe tem menos ciúmes de ti do que de...
- De mim não, Muni. De ti. De nós. Dos nossos filhos. E dos filhos que havemos de ter. Faço aquilo de que ela nunca foi capaz. E ela faz-me pagar, tratando-me pior do que se eu fosse uma criada.
Ele observou-a do outro extremo do quarto. De certeza, pensou ela, que ele haveria de perceber que tudo o que dizia era verdade. Podia vê-lo no rosto maltratado e no corpo, aquele corpo que lhe dera os filhos que ele desejara, rapidamente, sem esforço e um a seguir ao outro. Não interessava que fosse pouco atraente e que tivesse uma figura que mais valia esconder por entre as vestes que a tradição exigia que usasse, Yumn tinha a única qualidade que todos os homens valorizavam numa esposa. E Muhannad quereria preservá-la.
- O que hei-de fazer? - Perguntava Yumn, baixando humildemente os olhos. - Diz-me Muni. E prometo-te: faço o que quiseres.
Soube que tinha vencido quando ele se pôs em frente do banquinho do toilette. Tocou-lhe no cabelo e ela sabia que a seguir, quando fizessem um com o outro aquilo que deveriam fazer, ele iria ter com a mãe e informá-la-ia que nunca mais poderia exigir nada à mãe dos seus filhos. Ele enrolou-lhe a trança à volta do pulso e Yumn sabia que ele lhe puxaria a cabeça para trás para lhe encontrar a boca e para tomá-la, mesmo com o terrível calor daquele dia horrível. E depois...
Ele puxou-lhe a cabeça com toda a força.
- Muni - gritou ela. - Estás a magoar-me.
Ele inclinou-se e examinou-lhe a face.
- Vê o que ela me fez - Yumn estrebuchava para se libertar. Ele levantou-lhe a mão, examinou-a e examinou-lhe também as unhas. Usou uma das suas para retirar debaixo das dela um pouco de sangue e de pele que lhe saíra do rosto. Os lábios contraíram-se-lhe, enojado. Empurrou-lhe a mão para o lado e libertou-lhe a trança tão de repente que ela teria caído para trás se não se lhe tivesse agarrado à perna.
Ele afastou as mãos dela.
- És uma inútil - disse. - Tudo o que te exigimos foi que vivesses em paz com a minha família, mas nem isso consegues.
- Eu? - Perguntou ela. - Eu é que não consigo?
- Vai lá abaixo e pede desculpas à minha mãe. Já!
- Não vou. Ela bateu-me. Ela bateu na tua mulher.
- A minha mulher - disse a palavra com desprezo - merecia que lhe batessem. Tens sorte em que ela não te tenha batido mais cedo.
- O que é isto? Tenho de ser injuriada? Tenho de ser humilhada? Tenho de ser tratada como um cão?
- Se esperas estar dispensada dos deveres para com a minha mãe, lá porque puseste dois filhos no mundo, desengana-te. Vais fazer o que ela te mandar. Vais fazer o que eu mandar. E começas por levantar essas banhas, vais lá abaixo e pedes desculpa.
- Não vou!
- E depois vais lá fora e limpas a porcaria que fizeste no jardim.
- Vou deixar-te! - Disse ela.
- À vontade - riu-se abruptamente, e não era um riso simpático. Porque é que as mulheres partem sempre do princípio que a sua capacidade de reprodução lhes dá direitos reservados para outros? Não é preciso inteligência para te engravidar Yumn. Esperas ser adorada por uma coisa para que é preciso tanto talento como para fazer as necessidades. Agora vai trabalhar. E não me aborreças mais.
Ele dirigiu-se à porta. Ela sentia-se rígida, quente e fria ao mesmo tempo. Ele era seu marido. Não tinha o direito... Ela ia dar-lhe mais outro filho... Naquele momento talvez essa criança já crescesse dentro de si... e ele amava-a, adorava-a, venerava-a pelos filhos que ela lhe dera e pela mulher que era nunca a podendo deixar. Mas agora... assim não. Não com aquela ira que poderia fazer com que procurasse outra, ou mesmo pensasse em... Não. Não o permitiria. Não continuaria a ser o alvo da sua zanga.
As palavras saíram-lhe apressadas.
- Faço o meu dever para contigo e para com a tua família. E a minha recompensa é o desprezo dos teus pais e da tua irmã. São malvados e cruéis para comigo. E porquê? Porque digo o que penso. Porque sou quem sou. Porque eu não me escondo por detrás de uma máscara de doçura e obediência. Não baixo a cabeça, não me calo, nem finjo ser a virgenzinha perfeita do pai. Virgem? Ela? - Yumn gritava. - Bom, daqui por umas semanas ela não poderá já esconder a verdade por baixo da gharara. Depois veremos quem sabe quais são os seus deveres e quem vive exactamente como lhe apetece.
Já à porta, Muhannad voltou-se com o rosto extremamente duro.
- O que estás a dizer?
Yumn sentiu-se aliviada. Depois veio o triunfo. Tinha evitado uma crise entre os dois.
- Disse aquilo que tu ouviste. A tua irmã está grávida. E é uma coisa que toda a gente teria notado se não estivessem tão preocupados em ver sempre o que eu faço, para ver se arranjam uma razão para me bater.
Os olhos dele ficaram opacos. Os músculos do braço contraíram-se-lhe. Ela sentiu vontade de fazer um sorriso, mas controlou-se. A querida Sahlah estava bem arranjada. Não valia a pena discutir por quatro tomateiros estragados, face à desgraça da família.
Muhannad abriu a porta de par em par. Fê-lo com tanta força, que esta foi de encontro à parede e a seguir veio para a frente e bateu-lhe no ombro. Ele nem pestanejou.
- Onde vais? - Perguntou Yumn.
Ele não respondeu. Saiu do quarto e desceu as escadas a toda a pressa. Momentos depois ela ouviu o Thunderbird, seguido do estalar das pedras do caminho quando as rodas derraparam com toda a força, espalhando gravilha de encontro aos lados do carro. Ela chegou-se à janela e viu-o descer a rua a toda a velocidade.
Que pena, pensou, e permitiu-se fazer o sorriso que sufocara na presença do marido. E Sahlah, coitadinha, agora estava bem arranjada.
Yumn dirigiu-se à porta do quarto e fechou-a.
Estava tanto calor, pensou esticando os braços sobre a cabeça. Durante os seus anos férteis, uma mulher não deveria cometer a loucura de se estafar ao Sol. Ia fazer uma bela sesta, bem longa, antes de ir tratar das aborrecidas plantas de Wardah.
- Mas, Em - disse Barbara. - Ele tem tudo, não tem? Motivo, oportunidade e agora os meios. Quanto tempo iria demorar para ir a pé da casa a até à marina? Quinze minutos? Vinte? Isso não é nada, pois não? E o caminho da casa até à praia está tão bem marcado que se pode ver do sítio onde alugam barcos. Assim nem mesmo teria precisado de uma lanterna que lhe mostrasse o caminho. Isto explica porque não descobrimos uma única testemunha que visse alguém no Nez ou lá por perto.
- Excepto Cliff Hegarty - Emily pôs o Ford a trabalhar.
- Certo. E praticamente entregou-nos Theo de bandeja com a história da gravidez de Sahlah Malik.
Emily fez marcha atrás no parque de estacionamento da marina. Não voltou a falar até que chegou à estrada que levava à cidade.
- Theo Shaw não é a única pessoa que poderia ter vindo à marina roubar um dos zodíacos de Charlie, Barb - disse depois. - Já te esqueceste da Eastern Imports, da World Wide Tours de Klaus Reuchlein e de Hamburgo? Quantas coisas que ligam Querashi aos assuntos escuros de Muhannad queres tu continuar a considerar coincidências? Os telefonemas para o apartamento de Reuchlein em Hamburgo? A guia de remessa da Eastern Imports no cofre do banco? A excursão matutina de Muhannad ao armazém? Podes escolher, Barbara.
- Se é que Muhannad tem algum negócio escuro - observou Barbara.
- E à uma da manhã andava a conduzir um camião saído da Eastern Imports? - recordou-lhe Emily - O que será isso senão qualquer coisa ilegal? Acredita Barb, eu conheço a prenda.
Voltaram lentamente na direcção de onde tinham vindo e, mais uma vez, entraram na cidade. Emily travou na esquina da rua das lojas e esperou que uma família atravessasse a rua em frente do carro. Carregados com cadeiras de lona, baldes de plástico, pás e toalhas pareciam todos encalorados e infelizes, no regresso a casa depois de um dia de praia.
Barbara puxava por um lábio, vendo os banhistas passar, concentrada no caso que tinha entre mãos. Sabia que não podia discutir racionalmente a lógica de Emily. O inspector tinha toda a razão. Havia demasiadas coincidências para serem verdadeiras coincidências numa investigação. Mas não podia esquecer-se do facto de que, quase desde o princípio, Theo Shaw tinha um motivo escrito na testa, enquanto que Muhannad Malik, embora mostrasse uma personalidade incendiária, não o tinha.
No entanto, Barbara evitou um debate em grande escala acerca da vantagem de se dirigirem à fábrica de mostarda em vez de darem uma saltada ao pontão das diversões. Apesar da sua inclinação em seguir a possibilidade apresentada pelo facto da Mansão de Balford estar tão perto da marina, sabia que nem ela nem Emily tinham provas para apanhar quem quer que fosse. Sem uma testemunha ocular que tivesse visto mais do que uma sombra no cimo do Nez e apenas com uma lista de curiosos telefonemas e um emaranhado de pistas circunstâncias para seguir, a única esperança de prender alguém era conseguirem encontrar um pormenor incriminatório que implicasse qualquer dos suspeitos; poderiam ainda apanhar alguém que numa entrevista se viesse a revelar culpado, após ter protestado a sua inocência.
Com um mandato de busca na mão, fazia mais sentido começar pela fábrica. Pelo menos aí havia esperanças de descobrir alguma coisa que conduzisse a uma prisão. Uma excursão ao pontão, pouco mais prometia do que uma revisão de tudo o que já sabiam e tinham ouvido, esperando desta vez escutar com mais atenção as histórias que fossem contadas.
No entanto ela persistia.
- A pulseira dizia A Vida começa agora". Ele poderia ter querido casar com ela e Querashi aparecera para o impedir.
Emily lançou-lhe um olhar incrédulo.
- Theo Shaw casar com Sahlah Malik? Nem penses. A avó deserdava-o. Não. O facto de Querashi ter aparecido só trouxe vantagens a Theo Shaw. Pelo menos tinha todas as razões para o querer vivo.
Continuaram pela esplanada. Deixaram para trás ciclistas, peões, paHna dores enquanto se afastavam do mar, passando pelo edifício da Guarda Costeira e seguindo depois pelo caminho da mansão em direcção à curva onde tomava o nome de Estrada do Parque do Nez.
Emily entrou na suja zona industrial. Tirou do porta-luvas o mandato de busca e disse:
- Ah. Já cá está o pessoal.
O pessoal eram os oito membros do esquadrão com cujos pagers, Belinda Warner comunicara da esquadra por ordem do inspector. Tinham abandonado as suas presentes actividades - tudo desde verificar o álibi de Gerry DeVitt até contactar com todos os donos das casas da praia, na tentativa de confirmar a história de pequenos roubos que Trevor Ruddock não contara para revistar a fábrica. Estavam do lado de fora do edifício de tijolo, a fumar, tentando combater o calor com latas de coca-cola e garrafas de água. Juntaram-se a Emily e a Barbara, junto ao Ford, os fumadores apagando prudentemente os cigarros antes de se aproximarem.
Emily disse-lhes que esperassem pelas suas ordens e entrou na recepção. Barbara seguiu-a. Sahlah Malik não estava à secretária. Pelo contrário, esta estava ocupada por uma mulher de meia-idade, de lenço e fato tradicional, que separava o correio do dia.
Recebeu o mandato de busca apresentado por Emily, desculpando-se à pressa e desaparecendo no gabinete da administração. Momentos depois, Ian Armstrong apressava-se a vir recebê-los, com a recepcionista provisória atrás de si, mas a uma distância segura para assistir ao confronto com a polícia.
Armstrong saiu a porta e, disse inspector-detective, sargento, e acenou às duas com a cabeça. Meteu a mão no bolso de cima do casaco. Por uns instantes, Barbara pensou que ele também iria apresentar qualquer documento legal, mas retirou de lá apenas um lenço com que limpou a testa.
- Mr. Malik não está. Foi visitar Agatha Shaw. Ela está no hospital.? Uma trombose, segundo me disseram. O que posso fazer? Kawthar disse-me que exigem...
- Não é uma exigência - interrompeu Emily, mostrando o o mandato de busca.
Ele engoliu em seco.
- Valha-me Deus. Sem Mr. Malik cá estar, receio que não posso permitir...
- Não tem opção de permitir ou não permitir, Mr. Armstrong - disse Emily. - Por favor reúna o seu pessoal lá fora.
- Mas neste momento estamos a misturar um produto - falava em voz fraca, como se soubesse que o seu protesto era fútil, mas de qualquer modo se sentisse obrigado a fazê-lo. - É uma fase delicada da operação, pois estamos a preparar um molho novo e Mr. Malik é muito severo nas instruções que dá... - aclarou a garganta. - Se nos dessem meia hora...? Talvez um pouco mais...
Em resposta, Emily foi até à porta. Pôs a cabeça de fora e disse:
- Vamos começar com isto.
- Mas... mas... - Ian Armstrong torcia as mãos, lançando a Barbara olhares suplicantes, como que a procurar um protector. - Por favor, têm de me dizer... de me dar uma indicação de... o que procuram exactamente? Como eu sou o responsável na ausência dos Malik...
- Muhannad também não está cá? - Perguntou Emily bruscamente.
- Bem... claro que está... isto é, esteve há bocado... pensei... Foi para casa almoçar. - Armstrong lançou um olhar aflito para a porta por onde entrava a equipa de Emily. Escolhera os homens maiores e mais imponentes, sabendo que pelo menos um quarto da força de uma busca era a intimidação. Ian Armstrong deu uma olhadela ao grupo de agentes políciais e decidiu que, obviamente, a discreção seria melhor do que qualquer outra coisa em que tivesse pensado.
- Valha-me Deus - murmurou.
- Mande sair o pessoal do edifício, Mr. Armstrong - disse ela. A equipa de Emily espalhou-se pela fábrica. Enquanto os empregados se juntavam no pátio de alcatrão em frente ao edifício, os detectives dividiam-se pelos gabinetes da administração, pelo departamento de expedição, pela área de produção e pelo armazém. Procuravam qualquer coisa que pudesse ser expedida da fábrica como sendo um dos seus produtos ou que pudesse ir escondida entre frascos e boiões: droga; pornografia hard-core ou infantil, armas, explosivos, notas falsas, jóias.
A equipa ia a meio da busca quando o telemóvel de Emily tocou. Barbara e ela estavam no armazém procurando nas caixas já prontas para a expedição. O telemóvel estava preso no cinto das calças de Emily e, quando tocou, ela arrancou-o, claramente aborrecida por não ter ainda encontrado nada dentro da fábrica e gritou o nome para o bocal.
Do outro lado da rampa de embarque, Barbara ouvia o que Emily dizia.
Era o seguinte:
- Aqui Barlow... sim. Raios, Billy estou a meio de uma coisa. Mas que diabo é isso?... Sim foi essa a ordem que dei e é isso que eu quero. O tipo está decidido a fugir e assim que o perderem de vista, põe-se a andar... Ele o quê?
Já viram bem? Em todo o lado?... Sim, eu oiço a lengalenga. Mas o que é que ele quer?... Roubados? Desde ontem? Tretas. Quero-o outra vez na esquadra.
Já... Não me importo que ele mije as calças. Quero-o debaixo de olho.
Desligou o telefone e olhou para Barbara
- Kumhar - disse.
- Há algum problema?
- Que mais havia de ser? - Emily estava irritada, olhando para os caixotes que estavam a ser abertos, mas com o espírito a quilómetros de distância da fábrica. - Disse ao agente Honigman para ir buscar os papéis de Kumhar quando o fosse levar a Clacton. Passaporte, documentos de imigração, licenças de trabalho, isso tudo.
- Para que ele não fugisse, no caso de precisarmos de voltar a falar com ele. Eu lembro-me - disse Barbara. - E...?
- E era Honigman ao telefone. Parece que o nosso vermezinho asiático não tem os papéis em Clacton. Segundo Honigman, parece que diz que lhos roubaram enquanto esteve esta noite na esquadra. - Voltou a prender o telefone no cinto das calças.
Barbara considerou esta informação à luz de tudo o mais que sabiam e do que tinham visto e ouvido.
- Querashi tinha os documentos de imigração no cofre do Barclays, não é verdade, Em? Haverá alguma ligação? E se houver, estará também ligado a isto? Fez um gesto que abrangia o departamento de expedição.
- Isso - disse Emily - é exactamente o que eu tenho tenções de saber.
- Desceu da rampa. - Continua a busca, Barbara. E se Malik aparecer, arrasta-o para a esquadra para termos uma conversinha.
- E se ele não aparecer?
- Então vê se está em casa. Procura-o. Descobre-o, seja como for. E trá-lo contigo.
Depois dos chuis o terem levado outra vez para a zona industrial, Cliff Hegarty resolveu declarar-se oficialmente em férias durante o resto da tarde. Cobriu com um plástico a sua actual distracção - a construção de um puzzle que apresentava uma mulher de enormes seios com um pequeno elefante
numa pose fascinante se bem que fisiologicamente impossível - arrumou as ferramentas nas caixas de aço inoxidável. Varreu a leve poeira, limpou a superfície dos expositores, esvaziou e lavou as canecas de chá e fechou a porta à chave. Durante todo o tempo cantou com os lábios fechados.
Tinha representado o seu papel para entregar à justiça o assassino de Querashi. É verdade que não se tinha apresentado imediatamente, como o deveria ter feito na sexta-feira à noite, logo que vira o pobre Haytham às cambalhotas nas escadas do Nez. Mas pelo menos sabia que o teria feito, se as circunstâncias fossem diferentes. Além disso não pensara só em si e por isso adiara o depoimento à bófia. Também era preciso pensar em Haytham. Se Cliff tomasse público que a vítima tinha ido ao Nez ter com um homem, o que seria da sua reputação? Cliff achara que já não valia a pena, pois o outro já não era deste mundo.
E era preciso ter Gerry em consideração. Para quê dar a Gerry mais preocupações se não era absolutamente necessário? Ger falava continuamente de fidelidade, como se acreditasse piamente que o mais importante era ser sincero com o amante. Mas a verdade é que Ger estava terrivelmente assustado com o HIV. Desde então, fazia análises três vezes por ano e acreditava que ter um único parceiro para o resto da vida era a chave da sobrevivência. Se tivesse sabido que Cliff andava metido com Haytham Querashi, a preocupação seria tal que até arranjaria os sintomas de uma doença que afinal não tinha. Além disso, Querashi tomava sempre as suas precauções. Raios, havia alturas em que fazê-lo com Haytham era tão anticéptico que Cliff pensou num arranjinho com um marado qualquer só para juntar um pouco de sal à mistura.
Nunca o tinha feito. Mas havia alturas... Uma vez ou outra quando, para o gosto de Cliff, Haytham demorava tempo demais a enfiar a porcaria do Durex...
Porém esses tempos tinham passado. Cliff tomara essa decisão enquanto se dirigia ao carro. Do outro lado do caminho cheio de marcas de pneus, viu seis carros da polícia em frente da fábrica de mostarda e deu graças por o seu papel na investigação ter terminado. Decidira ir para casa e esquecer tudo. Recebera como que um aviso e seria estúpido de todo se não quisesse ver que o que tinha acontecido nos últimos dias era um convite lá do alto para virar uma nova página.
Deu consigo a assobiar enquanto atravessava Balford para sul, passando com velocidade na marginal, e subindo em seguida a rua das lojas. Com o assunto de Haytham para trás das costas e finalmente com a cabeça assente a respeito daquilo que queria fazer com o resto da sua vida, sabia que estava pronto para se dedicar a Gerry. Ele e Gerry tinham passado por um mau momento. Era só isso, pura e simplesmente.
Tinha de usar todos os truques que sabia para convencer Gerry de que as suas suspeitas não tinham fundamento. Começara os esforços de apazi guamento zangando-se. Quando o amante aparecera com a ideia de fazerem os testes do HIV, a reacção de Cliff fora o ultraje, bem preparado para mostrar que se sentia ofendido.
- Outra vez, Ger? - Perguntara nessa manhã na cozinha. - Eu não te ando a enganar, está bem? Valha-me Deus, como é que achas que eu me sinto...
- Tu pensas que o HIV não te pode tocar - como sempre, Gerry era a voz da razão. - Mas pode e vai acontecer. Já viste alguém morrer de SIDA, Cliff? Ou saías do cinema quando aparecem essas cenas?
- Estás surdo, homem? Eu disse que não te enganava. Se não acreditas talvez devesses dizer-me porquê.
- Eu não sou estúpido, sabes? Trabalho no pontão durante o dia e naquela casa durante a noite. Queres dizer-me o que fazes enquanto eu não estou?
Cliff sentiu gelo correr-lhe nas veias, pois Gerry estava tão próximo da
verdade, mas conservara a sua presença de espírito.
- Podes dizer-me o que pretendes? Qual é a tua ideia? Diz lá, Ger. Esta exigência fora um risco calculado. Mas Cliff sabia por experiência própria que deveria fazer bluff quando não fazia a mínima ideia das cartas que o adversário tinha. Neste caso sabia quais eram as suspeitas de Gerry e a única maneira de fazer com que ele as considerasse infundadas era forçá-lo a declará-las para as derrotar mostrando a sua raiva. - Vá lá, então? Deita tudo cá para fora, Gerry.
- Muito bem. É assim: tu sais quando eu trabalho à noite. Já não fazemos as coisas como era costume. Eu conheço os sinais, Cliff. Passa-se qualquer coisa.
- Merda. Não acredito. Queres que eu fique aqui sentado à tua espera?
Mas eu não posso ficar aqui sem nada para fazer. Começo a trepar pelas paredes. Por isso saio para dar uma volta. Ou andar de carro. Vou beber um copo ao Never Say Die. Ou trabalho numa encomenda especial lá da loja.
Queres provas? Queres que a miúda lá do bar escreva uma justificação?
E que tal se eu arranjar um relógio-de-ponto nas Distracções para picar o cartão?
Esta explosão conseguira um bom efeito. A voz de Gerry alterara-se, um tom ligeiramente mais suave mostrara a Cliff que estava a conseguir dominar a situação.
- Se eu te digo que devemos fazer análises é porque devemos fazer
análises. A verdade é sempre melhor do que viver com uma sentença de morte sem o saber.
A alteração do tom de voz de Gerry mostrou a Cliff que um aumento da sua própria fúria acalmaria a do amante.
- Óptimo. Então se quiseres vai fazer as análises, mas não esperes que eu faça o mesmo, porque eu não preciso e por que eu não te ando a enganar.
No entanto se vais começar a enfiar o nariz nas minhas coisas, eu vou fazer o mesmo com as tuas. Acredita que é fácil. - Levantara ainda mais a voz. Passas o dia inteiro no pontão e metade da noite na casa de um gajo qualquer, se afinal é isso que realmente andas a fazer.
- Espera aí - disse Gerry. - O que queres dizer com isso? Precisamos do dinheiro e, tanto quanto sei, apenas há uma maneira legal do ganhar.
- Certo. Está bem. Trabalha o que quiseres, se é isso que andas a fazer. Mas não fiques à espera que eu faça o mesmo. Preciso de espaço para respirar e se cada vez que eu preciso desse espaço pensas que eu estou metido com um gajo qualquer numa casa-de-banho pública...
- Tu vais ao mercado, Cliff.
- Cristo, jesus! Era o que faltava. Como queres que eu faça as compras sem ir ao mercado?
- A tentação está lá. E ambos sabemos que tu cedes à tentação.
- Claro que sabemos e vamos lá ver porque é que sabemos. - Gerry corou. Cliff sabia que estava a pouca distância de marcar o gol definitivo no jogo de futebol verbal em que se tinham envolvido. - Lembras-te de mim? Escarneceu. - Eu sou o maricas que encontraste na casa-de-banho do mercado quando tomar precauções" não era tão importante como aproveitares um gajo que quisesse ir contigo.
- Isso foi no passado - respondeu Gerry defendendo-se.
- Sim. Vamos lá falar do passado. Gostavas de andar no engate tanto como eu. Fazias olhinhos aos gajos, esgueiravas-te para a casa-de-banho e fazias o que tinhas a fazer sem sequer saber como se chamavam. Só que eu não te deito em cara esses tempos quando tu não fazes o que eu quero. E não me armo em inquisidor se tu parares cinco minutos no mercado para comprar uma alface. Já agora, se é isso que tu lá vais comprar.
- Espera aí, Cliff
- Não. Quem espera és tu. A traição funciona para os dois lados e tu sais mais noites do que eu.
- Já te disse que estou a trabalhar.
- Claro, a trabalhar.
- E sabes o que eu penso a respeito da fidelidade.
- Eu sei o que tu dizes sobre a fidelidade. E há uma enorme diferença entre aquilo que um tipo diz e aquilo que realmente sente. Pensei que entendesses isso, Ger. Acho que me enganei.
Fora assim. Derrotado quando o argumento que apresentara se voltara contra ele, Gerry retirara-se. Amuara durante algum tempo, mas como não era pessoa que gostasse de andar zangado com os outros, acabara por pedir desculpa das suas suspeitas. Ao princípio Cliff não as aceitara
- Não sei Gerry - dissera tristemente. - Como poderemos viver os dois em paz, em harmonia como tu dizias que querias, se arranjamos discussões destas?
- Esquece - respondera Gerry. - É do calor. Está a fazer-me mal. Não consigo pensar como deve ser.
Afinal o que era preciso era exactamente pensar como devia ser. Cliff finalmente fazia-o. Seguia pela estrada entre Great Holland e Clacton, onde o trigo secava debaixo de um céu que não produzira uma gota de chuva em quatro semanas sufocantes e percebera que agora o que era necessário era voltarem a comprometer-se um com o outro. Nesta vida, toda a gente recebia um aviso. A chave estava em reconhecê-lo como tal e saber como responder.
A sua resposta seria fidelidade absoluta a partir daquele momento. Afinal Gerry DeVitt era boa pessoa. Tinha um emprego decente. Tinha uma casa em Jaywick, a dois passos da praia. Tinha também um barco e uma mota. Cliff só teria a ganhar se conseguisse manter uma situação definitiva com Gerry em vez de o enganar, como no passado. E mesmo que por vezes Gerry fosse um chato, que a sua mania da limpeza e da exactidão o começassem a incomodar, mesmo que se agarrasse a ele como uma lapa, dando-lhe vontade de o enviar para a 5.a dimensão... não seriam estes, apenas pequenos inconvenientes, quando comparados com o que Gerry lhe poderia oferecer em troca? Com certeza. Pelo menos assim parecia.
Cliff virou para a marginal de Clacton e deu a volta pelo Passeio do Rei. Nunca gostara desta parte do caminho: uma fila de velhos edifícios, muito sujos, junto à praia, uma dezena de hotéis antigos e lares de terceira idade com ar decrépito. Detestava ver os idosos arrastando-se, agarrados aos andarilhos, sem ambições futuras e só com o passado para recordar. Sempre que os via, bem como o ambiente que os rodeava, renovava a promessa de nunca se ver entre eles. Sempre dissera a si próprio que haveria de morrer antes de chegar àquele estado. E assim que avistava os primeiros lares, carregava no acelerador do seu Dois Cavalos e dirigia o olhar para a massa verde- acinzentada do mar do Norte.
Hoje não era diferente. Se possível, era ainda pior. O calor fizera sair rebanhos de idosos das suas cavernas. Eram uma massa de crânios calvos, cabelos azulados e veias varicosas que tremia, hesitava e se arrastava. O trânsito junto à praia tivera de parar e assim, Cliff foi presenteado com o espectáculo daquilo que os anos dourados da velhice têm reservado para os infelizes.
Inquieto, batia com a mão no volante enquanto olhava para eles. Mais adiante viu as luzes intermitentes de uma ambulância. Não, eram duas. Ou seriam três? Boa. Provavelmente um camião teria atropelado um grupo de velhos. E agora teria de esperar que os paramédicos separassem os vivos dos mortos. Afinal já estavam quase todos meio mortos. Porque seria que as pessoas continuavam a viver, quando era evidente serem as suas vidas inúteis?
Merda. O trânsito estava completamente parado. E ele estava morto de sede. Se conduzisse com duas rodas em cima do passeio, poderia chegar a Queensway e daí virar para a cidade. Resolveu fazê-lo. Teve de usar a buzina para conseguir passar e foi recebido por uns quantos punhos fechados, uma maçã e alguns gritos de protesto. Mas respondeu a todos fazendo um gesto com os dedos, conseguiu chegar a Queensway e afastou-se da marginal.
Era muito melhor, pensou. Atravessaria a cidade em ziguezague e voltaria a sair na marginal, logo a seguir ao pontão de Clacton e depois era só um saltinho dali a jaywick Sands.
Continuando o seu caminho, começou a pensar no que ele e Gerry poderiam fazer para celebrar a sua conversão à monogamia e à fidelidade eterna. Naturalmente Gerry não saberia o que estavam a celebrar, pois havia anos que Cliff saturara, por assim dizer, a atmosfera, com os seus protestos de fidelidade. Mas impunha-se uma subtil celebração. E depois, com um copo de vinho, um bom bife, uma salada verde, alguns legumes e uma batata assada cheia de manteiga...
Bem, Cliff sabia que conseguiria fazer com que Gerry DeVitt esquecesse as suspeitas de traição da parte do amante. Cliff teria de pensar numa desculpa plausível para a comemoração, mas havia tempo para pensar no assunto antes de Gerry chegar a casa.
Meteu-se pelo trânsito de Holland Road, voltou a oeste na direcção da linha de caminho-de-ferro. Continuou até virar na Oxford Road, o que eventualmente o levaria mais uma vez para a marginal. O cenário era desagradável por estas paragens. Eram apenas zonas industriais e de lazer cor de palha há muito tempo queimada, devido ao calor sufocante desse Verão; no entanto, olhar para a pedra suja e para a relva castanha, era bem melhor do que ver os velhadas a caminho da praia.
Muito bem, pensou, enquanto seguia o seu caminho, um braço fora da
janela e a outra mão sobre o volante. O que haveria de dizer a Ger a respeito da comemoração? Que tinham feito uma enorme encomenda às Distracções?
E que tal uma herança deixada pela sua velha tia Mabel? Ou talvez um aniversário qualquer? Esta última hipótese era melhor. Um aniversário. Mas haveria alguma coisa de especial na data daquele dia?
Cliff pensou nessa questão. Quando se tinham conhecido, ele e Gerry?
Não conseguia lembrar-se do ano sem fazer um esforço, muito menos o dia e o mês. E como o tinham feito logo no dia em que se encontraram pela primeira vez, também não poderia dizer que ia celebrar essa ocasião.
Tinham ido viver juntos, ou pelo menos Cliff tinha-se mudado para casa de Gerry, no mês de Março pois o vento soprava como um louco nesse dia; ou então deveriam ter-se conhecido em Fevereiro. Só que não lhe parecia que assim fosse, visto que em Fevereiro estava sempre um frio desgraçado e não lhe parecia possível que, com essas condições, fizessem tal coisa numa casa-de-banho do mercado. Afinal ele exigia alguma qualidade e uma delas era não gelar os tomates só para ter algum prazer com o primeiro tipo bem parecido que lhe piscasse o olho. Como, de facto, ele e Gerry se tinham conhecido no mercado e como depois de se conhecerem, despacharam logo o assunto, o que em pouco tempo acabara por os levar a viver juntos...
se calhar Março não tinha sido o mês da mudança. Merda. Cliff gostaria de saber o que se estava a passar com a sua memória. Ger tinha uma memória de elefante.
Cliff suspirou. Era esse o problema, não era? Nunca se esquecia de nada. Se tivesse de vez em quando um lapso de memória, como quem estava num determinado sítio a uma determinada hora da noite, Cliff não andaria a vasculhar os miolos, à procura de alguma coisa para celebrar. De facto, a ideia de precisar de fazer uma celebração em vez de andar com a vida para a frente, deixava-o um pouco aborrecido.
Afinal, se Gerry tivesse um único miligrama de confiança no seu corpo, Cliff conseguiria acalmá-lo. Não estaria a tentar cair nas suas boas graças pois nunca teria aborrecido Gerry.
Esse era o outro problema. Era preciso insistir tanto com ele. Bastava uma palavra, uma noite, manhã ou tarde em que não lhe apetecesse fazê-lo e de repente toda a relação seria observada ao microscópio.
Cliff virou à esquerda em Oxford Road, sentindo-se um pouco mais aborrecido com o amante. A estrada seguia paralela à linha, separada desta por mais uma zona industrial. Cliff olhou para as pedras, feias e cheias de fuligem e apercebeu-se que era exactamente assim que as suas culpas em relação a Gerry o faziam sentir: sujo, como se fosse uma coisa pouco limpa e má, enquanto Gerry era puro como a neve da Suíça. Como se pudesse ser assim, pensou Cliff com desprezo. Toda a gente tinha pontos fracos e Gerry tinha os seus. Tanto quanto Cliff sabia, o amante também tinha culpas no cartório e não poderia mandá-las todas para trás das costas.
Duas ruas, a Carnarvon e a Wellesley, vinham ter ao fundo da Oxford Road formando o vértice de um triângulo. A Wellesley levava à Avenida do Pontão e a outra ao Passeio da Marina, mas ambas iam dar ao mar. Cliff parou aqui, a mão na alavanca das mudanças, não para decidir em que direcção queria seguir, mas sim para reflectir nas coisas que nos últimos dias tinham acontecido na sua vida.
Muito bem, Gerry fora um bocado severo com ele. Se calhar até o merecia. Por outro lado, Gerry era sempre severo com aqueles assuntos. Não conseguia descontrair-se.
Quando não estava a discutir um problema qualquer - por exemplo um defeito de Cliff que precisava de ser IMEDIATAMENTE remediado - andava de volta dele querendo ter a certeza de que era amado, adorado e desejado e... merda. Por vezes viver com Gerry era o mesmo que viver com uma mulher ciumenta. Havia silêncios longos, intencionais, que tinham de ser interpretados, suspiros sentimentais que significavam só Deus sabia o quê, festas no pescoço que deveriam ser considerados como um prelúdio e, o que era ainda pior e que o punha louco, o coiso dele de manhã, encostando-se, dizendo-lhe de que estava à espera.
Detestava que ficassem à espera de que ele fizesse o que quer que fosse. Detestava essas perguntas mudas, a que deveria responder imediatamente.
Quando Gerry o perseguia, havia alturas em que Cliff só tinha vontade de lhe dar um murro, em que lhe apetecia gritar. Queres alguma coisa Ger? Então diz o que é, de uma vez por todas!
Mas Gerry nunca dizia nada directamente. Só quando o acusava, o que irritava Cliff imediatamente. Nessas alturas apetecia-lhe partir tudo e bater nalguém com toda a força.
Viu que, sem pensar, tinha seguido pelo lado direito do triângulo formado pelas Carnarvon e Wellesley Roads. Sem se aperceber do caminho que seguira, encontrava-se no mercado de Clacton. Até encostara ao passeio numa repetição do que já se tinha passado.
Alto, disse para consigo. Espera aí rapaz.
Agarrou-se ao volante e espreitou por trás do pára-brisas.
Desde a última visita tinham colocado faixas sobre o mercado e havia bandeiras azuis, vermelhas e brancas a sair de um pequeno edifício no outro lado da praça, estas pareciam chamar a atenção de todos os que vinham às compras para as casas de banho públicas, um edifício baixo, de tijolo, onde a palavra HOMENS parecia tremeluzir no calor.
Cliff engoliu em seco. Caramba, tinha tanta sede. Poderia ir comprar uma garrafa de água ali mesmo no mercado, ou talvez um sumo, ou uma coca-cola. E enquanto ali estava poderia também fazer a maior parte das compras. Precisava entrar no talho para ir buscar os bifes e, embora tivesse pensado em comprar o resto das coisas na mrcearia de Jaywick... Não fazia muito mais sentido comprar tudo aqui, onde as coisas eram frescas e o ar que se respirava também. Poderia levar a salada os legumes, e as batatas e, se tivesse tempo - e com certeza tinha, visto que tirara o dia livre, não era? - poderia dar uma vista de olhos pelas bancas e ver se havia alguma coisa para oferecer a Gerry em sinal de paz. Sem que ele soubesse que era uma oferta de paz, claro.
De qualquer modo tinha tanta sede que precisava de beber alguma coisa antes de voltar a conduzir. Por isso, mesmo que não fizesse aqui as compras, precisava de encontrar um sítio para apagar o fogo que lhe ia na garganta.
Abriu a porta com força e depois fechou-a atrás de si, dirigindo-se firmemente para o mercado. Encontrou a água que procurava e bebeu uma garrafa inteira de um só gole. Procurou um caixote do lixo para deitar fora a garrafa vazia. Foi então que reparou que Plucky, o vendedor de lenços, estava a fazer preços especiais para as gravatas e lenços de pescoço e de assoar falsos. Serviria como oferta para Ger. Cliff não precisaria dizer onde a tinha comprado, pois não?
Começou a inspeccionar a banca onde os lenços pendiam de uma corda, seguros por molas de plástico às cores. Havia lenços de todos os tamanhos e feitios, arranjados com o jeito que Plucky normalmente tinha para os pormenores. Dispunha-os pelas gradações das cores, a partir de uma paleta que tinha roubado num ferro-velho.
Cliff passou os dedos por eles. Apeteceu-lhe passá-los pela cara porque, naquele calor sufocante, lhe pareciam frescos como um regato de montanha. E mesmo assim.
- São bonitos, não são? - A voz vinha da sua direita, do sítio onde se juntavam os cantos de duas bancadas. Aí, sobre uma mesa, estavam dispostas caixas com lenços de assoar e em frente estava um homem com uma daquelas t-shirts reduzidas, cortadas nos ombros, revelando-lhe os músculos peitorais. Cliff também reparou que a camisola também lhe revelava os mamilos, um dos quais tinha um brinco.
Mas que espanto, pensou Cliff. Ombros espectaculares, cintura fina e com uns calções de ginástica tão reduzidos e tão justos que fizeram Cliff cambalear quando o corpo reagiu ao que os seus olhos viam.
E bastara olhar para ele. Bastara olhá-lo nos olhos e dizer qualquer coisa como realmente são lindos, Depois um sorriso, ainda olhos-nos-olhos e o desejo seria revelado.
Mas lembrou-se que era preciso comprar os legumes para o jantar. A salada, as batatas para meter no forno. Tinha de tratar do jantar. Do jantar para Gerry, para celebrarem a sua união, fidelidade e monogamia eterna.
Só que Cliff não conseguia afastar os olhos do tipo. Estava bronzeado e em forma, com os músculos reluzentes ao sol da tarde. Parecia uma estátua com vida. Caramba, pensou Cliff, Gerry deveria ser assim.
O outro homem ainda estava à espera que ele reagisse. Como se se apercebesse do seu conflito, sorriu.
- Que grande calor, não é verdade? - Disse. - Mas eu adoro o calor, e você?
Valha-me Deus, pensou Cliff, valha-me Deus, valha-me Deus!
Gerry que se danasse. Havia sempre de se agarrar a ele. Havia sempre de exigir. Havia sempre de o examinar ao microscópio de lhe colocar todas aquelas questões sem fim. Porque não haveria de confiar mais nele? Não se aperceberia onde é que aquilo poderia levar?
Cliff lançou um olhar para as instalações sanitárias do outro lado da praça. Depois voltou a olhar para o outro.
- Para mim nunca está calor demais - disse.
E depois encaminhou-se balançando as ancas - pois fazia-o melhor que ninguém - para a casa-de-banho dos homens.
EMILY DESEJAVA TUDO MENOS outro confronto com um dos asiáticos, mas quando o agente Honigman voltou a trazer para a esquadra um Fahd Kumhar que tremia como varas verdes, o primo de Muhannad Malik entrou logo atrás deles. Kumhar lançou um olhar a Emily e recomeçou com a mesma lengalenga do dia anterior. Honigman agarrou no homem pela axila e deu-lhe um pequeno beliscão ao mesmo tempo que lhe gritava para que se calasse, o que não teve qualquer efeito para o sossegar. Emily mandou o agente encerrá-lo numa cela, até poder falar com ele. Taymullah Azhar enfrentou-a.
Ela não estava com disposição para tal. Chegara à esquadra e recebera imediatamente outro telefonema de Ferguson a exigir-lhe um relatório sobre a busca na fábrica. Ficou tão pouco satisfeito como ela, ao saber que nada fora encontrado. A sua verdadeira preocupação claro que não era o assassinato de Haytham Querashi, mas sim a entrevista próxima para a sua promoção. O facto de, dentro de quarenta e oito horas ter de enfrentar uma comissão, estava subjacente às perguntas e comentários que fazia, pois queria levar consigo o triunfo da resolução do crime de Balford.
- Caramba, Barlow - disse. - Que se passa? Só me diz que não conseguiram nada? Já sabe como é, ou tenho de o repetir? Se não me garante um suspeito até amanhã de manhã, mando Presley para aí.
Emily sabia que deveria tremer de medo com a ameaça e logo a seguir fazer aparecer um candidato a ser preso, qualquer um servia, muito obrigado, para que Ferguson se apresentasse sob uma luz mais favorável aos importantes que iam decidir a sua promoção. Mas ela estava demasiado irritada para entrar no jogo. Ao ter de aturar mais uma tentativa obsessiva de Ferguson para embelezar o seu currículo, dava-lhe vontade de se enfiar pelo fio do telefone e ir dar um pontapé no rabo do superintendente.
- Don, mande Presley - disse-lhe então. - Ele que traga meia dúzia de agentes, se acha que isso o vai favorecer perante a comissão. Mas deixe-me em paz, está bem? - E tendo dito isto, desligou o telefone com toda a força.
Foi neste momento que Belinda Warner lhe deu a desagradável notícia de que um dos paquistaneses estava na recepção, insistindo em falar com ela. Era por isso que Emily tinha agora na sua frente Taymullah Azhar.
Este seguira o agente Honigman a Clacton quando Emily se recusara a permitir que fosse ele a escoltá-lo até casa. Desconfiando da dignidade da polícia, em geral, e da do Departamento Criminal de Balford, em particular, tencionava plantar-se em frente da pensão de Kumhar até que Honigman partisse, e nessa altura tencionava ir verificar o estado do paquistanês: mental, emocional, físico e outros. Assim, enquanto esperava na rua pela partida do agente, viu que Honigman detivera novamente Kumhar. E seguira-os de volta à esquadra.
- Mr. Kumhar estava a chorar - disse ele a Emily. - É óbvio que está debaixo de uma grande tensão. Tem de concordar que é essencial que mais uma vez ele saiba os seus...
- Emily interrompeu toda a conversa a respeito da legalidade.
- Mr. Azhar - disse com impaciência. - Mr. Fahd Kumhar está ilegalmente neste país. Espero que saiba o que, neste caso, acontece aos direitos dele.
Azhar alarmou-se com esta súbita mudança nos acontecimentos.
- Está a dizer-me que a presente detenção nada tem a ver com o assassínio de Mr. Querashi? - Perguntou.
- Estou a dizer aquilo que já lhe disse. Ele não é um visitante, não é uma pessoa que veio trabalhar nas férias, não é empregado doméstico, nem estudante, nem marido de alguém. Não tem quaisquer direitos.
- Já percebi - disse Azhar. Mas não era homem para admitir derrotas, como Emily acabou por se aperceber quando ele continuou. - E como é que pensa que o vai informar disso?
Raios partissem o homem, pensou Emily. Ali estava na sua frente, a imagem do sangue-frio, apesar de ter ficado apreensivo uns momentos antes, à espera que ela tirasse as suas conclusões do facto de Fahd Kumhar praticamente não falar inglês. Amaldiçoou-se por ter mandado o Professor Siddiqui de volta para Londres. Mesmo que conseguisse apanhar o agente Hesketh no telemóvel, provavelmente já estariam perto de Wanstead. Perderia outras duas horas, e não se podia dar a esse luxo, se lhe ordenasse para voltar para trás e trazer o professor de volta para Balford para outra conversa com Kum har. Era exactamente isto que Azhar calculava que ela não quisesse fazer.
Pensou naquilo que soubera a seu respeito no relatório de Londres. Os Serviços Secretos não lhe tinham dado importância pois não o poderiam acusar de nada mais sério do que adultério e abandono. Nenhum desses actos o honrava, mas também nenhum deles era crime. Se fosse, toda a gente, desde o Príncipe de Gales até aos bêbedos de St. Botolph seriam detidos durante alguns anos, quer merecessem quer não. Além disso, como Barbara Havers observara no outro dia, Taymullah Azhar não estava directamente envolvido no assunto. E nada daquilo que Emily lera a seu respeito indicava uma associação com o submundo asiático representado pelo primo.
Mesmo que não fosse esse o caso, que escolha tinha ela, entre esperar por Siddiqi e tentar saber já a verdade? Tanto quanto sabia, nenhuma. Levantou o dedo a poucos centímetros do rosto do asiático
- Venha comigo - disse. - Mas faça um movimento em falso, Mr: Azhar e acuso-o de cumplicidade no caso.
- Que caso? - Perguntou ele calmamente.
- Oh, acho que sabe muito bem.
As Avenidas ficavam do outro lado da cidade na direcção oposta da fábrica de mostarda, por trás do Campo de Golfe de Balford. Podia-se chegar lá por vários caminhos, mas Barbara escolheu o que seguia junto ao mar. Levava consigo um dos agentes mais corpulentos que viera revistar a fábrica, um homem chamado Reg Park, que conduzia o carro e tinha o aspecto de desatar à pancada com quem quer que o contrariasse. Barbara pensava que Muhannad Malik não ia ficar satisfeito com o convite para ser transportado até à esquadra, onde iria ter uma conversa com o inspector. Apesar do tempo que lá passara nos últimos dias, Barbara não duvidava que ele só entrariá no edifício vitoriano, quando lhe apetecesse. Assim o agente Reg Park era a sua apólice de seguro para garantir a cooperação de Malik.
Mantinha-se vigilante à procura do Thunderbird azul-turquesa do asiático. Muhannad não aparecera durante a busca à fábrica, nem telefonara para saber se estava tudo bem ou para dizer onde estava. No entanto Ian Armstrong não achara o procedimento estranho. Quando Barbara o interrogara sobre o assunto, explicara que Muhannad, como Director de Vendas, saía muitas vezes da fábrica durante horas seguidas, ou mesmo dias. Tinha de assistir a conferências, organizar exposições de comida, tratar da publicidade e promover as vendas. O seu trabalho não estava orientado para a produção, por isso a sua presença na fábrica era menos essencial do que os seus esforços no exterior.
E era no exterior que Barbara o procurava, percorrendo a marginal acompanhada pelo agente Park. Era verdade que ele poderia estar fora, em serviço da empresa. Mas um telefonema da World Wide Tours ou de Klaus Reuchlein, também o poderiam ter levado para o exterior para tratar de outros assuntos.
Porém, não viu o carro azul-turquesa pelo caminho. E quando o agente abrandou em frente da enorme casa dos Malik, do outro lado da cidade, o Thunderbird também não estava estacionado no caminho empedrado. Mesmo assim, instruiu o agente para estacionar junto ao passeio. A ausência do carro de Muhannad Malik não significava necessariamente a ausência do homem.
- Vamos experimentar - disse ela a Park. - Mas prepare-se para ter de levar o homem à força se ele cá estiver, certo?
O agente Park tinha ar de que a ideia de forçar um suspeito a acompanhá-lo era apenas o que precisava para ter uma tarde perfeita. Grunhiu de um modo simiesco que condizia com os seus enormes braços e peito de pugilista.
O agente-detective, atravessou à frente dela, com passos pesados, o caminho que, apesar do calor e da proibição da usar a mangueira, estava ladeado por alfazema, goivos e anémonas. Para manter as flores vivas com aquele calor sufocante, Barbara sabia que teriam de ser, todos os dias, amorosamente regadas à mão.
Nada mexia por trás dos vidros dos dois andares da casa. Mas quando Barbara tocou à campainha ao lado da pesada porta, alguém abriu uma espécie de postigo; era uma abertura quadrada coberta por uma artística grade metálica. Era um pouco como visitar um convento, pensou Barbara, e esta imagem foi reforçada no seu espírito pela forma vaga que viu do outro lado da abertura. Era uma mulher de véu que perguntou:
- Sim?
Barbara procurou o crachá e mostrou-o, apresentando-se. Depois disse:
- Muhannad Malik. Gostaríamos de falar com ele, por favor. A abertura fechou-se. Dentro da casa, a fechadura destrancou-se e a porta abriu-se. Ficaram em frente de uma mulher de meia-idade, que estava na sombra. Usava uma saia comprida, uma túnica de mangas compridas abotoada até ao pescoço e na cabeça tinha um lenço que a cobria da testa até aos ombros, com metros de tecido azul-escuro, tão escuro que parecia preto na escuridão da entrada.
- O que querem ao meu filho? - Perguntou.
- Então é Mrs. Malik? - Barbara não esperou pela resposta - Podemos entrar, por favor?
A mulher considerou o pedido, talvez pelo que era, por que olhou para Barbara e observou o seu acompanhante com toda a atenção.
- Muhannad não está cá disse.
- Mr. Armstrong disse que ele tinha vindo almoçar a casa e não tinha regressado.
- Esteve aqui, sim, mas saiu. Há uma hora, talvez mais. - Pronunciou estas duas frases como se fossem perguntas.
- Não tem a certeza de quando ele saiu? Sabe onde foi. Por favor, podemos entrar?
Mais uma vez a mulher olhou para o agente Park. Puxou o lenço para cima e aconchegou-o mais à volta do pescoço. Nesta altura Barbara percebeu que era pouco provável que uma mulher asiática alguma vez tivesse recebido em casa a visita - se é que se podia chamar visita à vinda da polícia - de um homem ocidental sem o marido estar presente. Acrescentou então:
- O agente Park vai ficar à espera no jardim. De qualquer modo ele estava a admirar as suas flores, não é verdade, Reg?
O agente-detective grunhiu mais uma vez. Deu um passo para trás e disse:
- Se precisar chame. - E fez a Barbara um aceno intencional. Dobrou os dedos do tamanho de charutos e, sem dúvida, teria feito estalar os nós dos dedos se Barbara não tivesse dito:
- Muito obrigada, agente - e acenou também, indicando-lhe os canteiros de flores lá atrás.
Vendo que o agente se tinha afastado, Mrs. Malik deu um passo para trás. Barbara interpretou este gesto como um convite para entrar e assim o fez, antes que a mulher se arrependesse.
Mrs. Malik fez um gesto em direcção a uma sala à esquerda, que comunicava com o vestíbulo onde estavam, por meio de um arco. Era sem dúvida a sala principal. Barbara parou no centro e voltou-se para Mrs. Malik, pisando o chão coberto por um tapete de flores com cores vivas. Reparou com alguma surpresa que não havia quadros nas paredes. Pelo contrário, havia uma espécie de bordados com letra árabe, todos emoldurados a ouro. Sobre a lareira estava um quadro representando um edifício em forma de cubo contra um céu azul, cheio de nuvens. Por baixo deste quadro estavam as únicas fotografias da sala e Barbara aproximou-se para as examinar.
Uma mostrava Muhannad e a mulher em avançado estado de gravidez abraçados pela cintura e com um cesto de piquenique aos pés. Outra mostrava Sahlah e Haytham Querashi à frente de uma outra casa. O resto eram retratos das crianças, dois rapazinhos em várias posições, sozinhos ou um com o outro, só de fralda ou agasalhados até aos olhos por causa do frio.
- São os netos? - Perguntou Barbara voltando-se.
Viu que Mrs. Malik ainda não tinha entrado na sala. Tinha estado a observá-la do vestíbulo, mantendo-se na sombra, de um modo que sugeria discreção, uma acção furtiva ou um ataque de nervos. Barbara percebeu que só tinha a palavra daquela mulher de que Muhannad já não estava em casa.
Com os sentidos alerta disse:
- Onde está o seu filho; Mrs. Malik? Está em casa?
- Não, já disse que não - disse Mrs. Malik e, como se uma alteração do seu comportamento acentuasse esta resposta, juntou-se a Barbara, puxando mais uma vez o lenço para a cabeça e aconchegando-o no pescoço.
Com melhor luz, Barbara conseguiu ver que a mão que segurava o lenço estava arranhada e magoada. Reparando nisto ergueu os olhos para o rosto da mulher e viu os mesmos arranhões e nódoas negras.
- O que lhe aconteceu? - Perguntou. - Alguém a maltratou?
- Não, claro que não. Caí no jardim. A saia prendeu-se numa coisa qualquer. - E como se desejasse ilustrar o que acabara de dizer, pegou no tecido e mostrou uma ponta bastante maltratada, como se tivesse caído e continuado a arrastar-se pelo chão saboreando a sensação durante algum tempo.
- Ninguém fica nesse estado por ter caído no jardim - disse Barbara.
- É verdade, mas eu fiquei - respondeu a mulher. - Como já lhe disse o meu filho não está em casa. Espero que volte antes do jantar dos meninos. Sempre que pode está presente às suas refeições. Se quiserem voltar a essa hora, Muhannad terá todo o prazer...
- Não fale por Muni - disse outra voz de mulher.
Barbara voltou-se e viu que a mulher de Muhannad descia as escadas. Também ela tinha o rosto ferido. Os grandes arranhões na face esquerda sugeriam uma luta. Uma luta com outra mulher, concluiu Barbara, pois sabia que quando os homens lutavam faziam-no com os punhos fechados. Mais uma vez lançou um olhar especulativo aos ferimentos de Mrs. Malik. Pensou em como a inimizade entre as duas mulheres lhe poderia ser útil.
- Só a mulher de Muhannad fala por Muhannad - declarou a mulher mais nova.
O que, pensou Barbara imediatamente, poderia ser uma bênção disfarçada.
- Ele diz - traduziu Taymullah Azhar - que lhe roubaram os papéis. Ontem estavam numa gaveta da cómoda. Diz que a informou a si do facto quando esteve no quarto dele. Esta tarde, quando o agente pediu os papéis, foi buscá-los, mas descobriu que não estavam lá.
Desta vez Emily manteve-se de pé para no cubículo sufocante que, na esquadra, servia de sala de interrogatórios. O gravador estava em cima da mesa e, depois de o ligar, Emily colocara-se junto à porta. Dali conseguia ver de cima Fahd Kumhar, o que era útil para que o homem visse quem mandava.
Taymullah Azhar estava sentado à cabeceira da mesa, que era um dos quatro móveis que existiam na sala, e tinha Kumhar à sua direita. Até aí parecia apenas ter dito ao seu compatriota aquilo que Emily lhe permitira relatar.
Tinham começado a entrevista com mais uma lengalenga da parte de Kumhar. Quando entraram, estava acocorado num canto da sala como se fosse um rato à espera de ser irremediavelmente varrido pela pata de um gato. Olhara para além de Emily e Azhar como que à procura do terceiro membro do grupo. Quando percebeu que seriam apenas dois os inquisidores, começou a falar.
Emily quis saber o que ele dizia.
Azhar ouvira-o durante meio minuto, sem fazer comentários.
- Está a parafrasear partes do Corão. Diz que entre as gentes de Medina há hipócritas que Maomé não conhece. Diz que hão-de de ser punidos e amaldiçoados.
- Diga-lhe que se deixe disso - disse Emily.
Azhar disse qualquer coisa ao homem em tom delicado, mas Kumhar continuou da mesma maneira
- Há outros que têm conhecimento dos seus erros. Embora misturem uma boa acção com outra que é má, Alá pode, mesmo assim, ter piedade deles. Porque Alá...
- Ontem já ouvimos isso tudo - interrompeu Emily. - Hoje não estamos aqui para rezar. Diga a Mr. Kumhar que eu quero saber o que faz ele neste país sem os devidos documentos. E se Querashi sabia que ele cá estava ilegalmente .
Foi nessa altura que Kumhar lhe disse, por meio de Azhar, que os documentos tinham sido roubados entre o dia anterior à tarde, quando ele fora trazido de Clacton para a esquadra e aquele dia em que voltara .
- Isso é um completo disparate - disse Emily. - O agente Honigman informou-me ainda não há cinco minutos que os outros hóspedes da pensã o de Mrs. Kersey são ingleses, que não precisam desses documentos nem estão interessados neles. A porta da casa está sempre bem fechada, de dia e de noite, e a janela do quarto de Mr. Kumhar fica a cerca de cinco metros do solo, nas traseiras da casa, e não é de fácil acesso. Tendo tudo isto em conta, como é que ele explica que lhe tenham roubado os papéis e porquê?
- Não tem explicação para o ocorrido - disse Azhar, depois de ouvir um extenso comentário do outro homem. - Mas diz que os documentos são valiosos, para serem vendidos no mercado negro a pessoas desesperadas que desejam conseguir melhores oportunidades de emprego e melhoria de vida, que se encontram neste país.
- Certo - disse Emily lentamente, semicerrando especulativamente os olhos enquanto observava o paquistanês do outro lado da sala. Viu que as suas mãos deixavam sulcos de humidade na mesa sempre que as mexia. - Diga-lhe - disse asperamente - que não precisa de se preocupar com os papéis porque Londres pode enviar-lhe uma segunda via. Isto seria difícil aqui há uns anos, mas agora, com a tecnologia informática, o governo pode certificar-se de que ele entrou no país na posse de um visto legal. No entanto, seri a bom que ele nos dissesse por onde entrou. Por onde foi? Heathrow? Gatwick?
Kumhar humedeceu os lábios, engoliu em seco. Quando Azhar traduziu as palavras de Emily emitiu um pequeno gemido.
Emily insistiu no assunto dizendo:
- Claro que precisamos de saber que tipo de visto foi roubado do quarto de Mr. Kumhar. De contrário não lhe poderemos arranjar a segunda via, não é verdade? Por isso pergunte-lhe, ao abrigo de que acordo Lhe facultaram a entrada no país. Tem cá familiares? Veio trabalhar nas férias?
Talvez seja empregado doméstico? Ou é médico? Ou talvez um ministro religioso? Pode também ser estudante ou marido de alguém. Mas como tem a mulher e os filhos no Paquistão, suponho que tal coisa não é provável. Terá vindo para cá para fazer algum tratamento médico em especial? Só que não me parece que tenha meios para tal, não é verdade?
Kumhar mexeu-se na cadeira quando ouviu a tradução de Kumhar. Não respondeu directamente.
- Alá promete o fogo do inferno para os hipócritas e para os descrentes - traduziu Azhar. - Alá amaldiçoa-os e envia-os para os tormentos eternos.
Mais rezas, pensou Emily. Se o sacana acha que as rezas o vão salvar desta situação, ainda é mais louco do que parece.
- Mr. Azhar - disse. - Diga a este homem que...
- Posso experimentar uma coisa com ele? - Interrompeu Azhar. Tinha observado Kumhar com toda a calma enquanto Emily falava. Agora olhava para ela de modo firme e inocente.
- O quê? - Perguntou Emily bruscamente.
- As minhas... orações, por assim dizer.
- Se eu souber a tradução.
- Claro. - Voltou-se para Kumhar. Falou com ele e depois traduziu.
- Triunfantes são aqueles que se arrependem perante Alá, os que O servem, os que O louvam... aqueles que impõem o bem e rejeitam o mal.
- Muito bem - disse Emily. - Agora já chega de troca de orações. Mas Azhar disse:
- Posso dizer-lhe mais uma coisa? Que não vale a pena esconder-se num labirinto de mentiras, porque poderemos não encontrar o caminho
certo
- Diga-lhe - disse ela. - Mas já agora acrescente: Acabou a brincadeira. Ou diz a verdade ou é metido no primeiro avião de volta para Carachi. Ele é que sabe.
Azhar forneceu a informação. As lágrimas assomaram aos olhos de Kumhar. Os dentes de baixo morderam o lábio superior. E uma torrente de palavras saiu-lhe da boca.
- Que diz ele? - Perguntou Emily, quando Azhar não traduziu imediatamente.
Azhar pareceu ter dificuldade em deixar de ouvir o outro homem. Finalmente disse devagar:
- Ele diz que não quer perder a vida. Pede protecção. Diz mais ou menos o mesmo que já disse ontem: Não sou ninguém. Não sou nada. Protejam-me por favor. Não tenho amigos nesta terra. E não quero morrer como o outro.
Finalmente Emily sentiu o doce sabor do triunfo.
- Então ele sabe alguma coisa acerca da morte de Querashi.
- Parece que sim - disse Azhar.
Barbara resolveu que o melhor seria dividir para governar. Mrs. Malik ou não sabia onde estava o filho ou estava pouco disposta a entregá-lo à polícia. Pelo contrário, a mulher de Muhannad parecia tão decidida a afirmar que ela e o marido sabiam os pensamentos um do outro e andavam sempre juntos, que era capaz de lhe dar algumas informações, só para provar a importância que tinha para o homem com quem casara. Para o conseguir, Barbara teria de as separar.
- Há coisas entre marido e mulher - disse em segredo a Barbara que não são para os ouvidos das sogras. E como eu sou a esposa de Muhannad e a mãe dos seus filhos...
- Sim, claro. - A última coisa que Barbara queria era outra ladai nha igual à que aquela mulher lhe fizera no primeiro dia. Ficara com a impressão de que, fosse qual fosse a sua religião, ela se tornava completa' mente bíblica no capítulo da procriação e paternidade. - Onde podemos conversar?
Poderiam falar lá em cima, disse-lhe Yumn. Tinha de dar banho aos filhos de Muhannad antes do lanche e o sargento poderia falar com ela enquanto o fizesse. De qualquer modo o sargento ia adorar ver a cena. Os filhos de Muhannad, nus eram uma visão de dar alegria à lama.
Claro, pensou Barbara. Quase nem conseguia esperar.
- Mas Yumn - disse Mrs. Malik. - Não querias que fosse Sahlah a dar-lhes banho hoje? - Falou numa voz tão baixa, que o facto de a pergunta ter sido mais intencional que os anteriores comentários de Yumn, teria passado despercebido a quem não estivesse habituado a subtilezas.
Barbara não ficou surpreendida quando a resposta de Yumn indicou que só um machado entre os olhos, lhe chamaria a atenção. Nem perceberia se lhe metessem uma faca nas costelas.
- Ela pode ler-lhes à noite, Sus jahn - disse. - Se não estiver muito cansada, claro... e se as histórias que escolher não provocarem mais pesadelos a Anas. - E voltando-se para Barbara. - Venha comigo.
Barbara subiu as escadas atrás do enorme traseiro da mulher. Yumn conversava alegremente.
- Como as pessoas se enganam - confidenciou. - A minha sogra pensa que é o vaso que contem o coração do meu marido. É uma infelicidade não acha? O seu único filho... Ela só conseguiu ter dois filhos, o meu Muni e a irmã... por isso ficou demasiado ligada a ele.
- Ai sim? - Disse Barbara. - Eu diria que ela era mais chegada a Sahlah. Como são as duas mulheres, já se sabe.
- Sahlah? - Yumn deu uma risadinha. - quem quereria ser chegada a essa coisinha que não vale nada? Os meus filhos estão aqui.
Conduziu-a para um quarto onde dois rapazinhos brincavam sentados no chão. O mais novo tinha apenas a fralda - que lhe pendia na direcção dos joelhos mostrando estar encharcada - enquanto que o mais velho estava completamente nu. A roupa que despira, fralda, camisola, calções e sandálias, estavam num monte e pareciam servir de obstáculo para os camiões que ele e o irmão empurravam.
- Anas, Bishr - Yumn cantarolou os nomes deles - Venham à ammi-gee. São horas do banho.
Os meninos continuaram a brincar.
- E depois vamos comer um gelado, meus queridos.
Isto chamou-lhes a atenção. Largaram os brinquedos e deixaram que a mãe os conduzisse. Yumn disse alegremente Por aqui, a Barbara e carregou os seus tesouros para a casa-de-banho. Encheu a banheira com um palmo de água, depositou lá dentro os dois rapazinhos e despejou também para lá três patos amarelos, dois barcos, uma bola e quatro esponjas. Espremeu grande quantidade de sabonete líquido para cima dos miúdos, dos brinquedos e das esponjas e entregou-lhe estas para eles brincarem.
- O banho deve ser uma deliciosa brincadeira - comunicou a Barbara, enquanto observava as crianças, que tinham começado a atirar uma à outra as esponjas ensaboadas. Havia bolas de sabão no ar. - A vossa tia, só vos esfrega e lava, não é verdade? - Perguntou Yumn aos miúdos. - Que tia chata. Mas a vossa ammi-gee faz com que o banho seja divertido. Querem brincar com os barquinhos? Querem mais patos? Gostam muito da vossa ammi-gee, não é verdade?
Os rapazinhos estavam demasiado ocupados a bater na cara um do outro com as esponjas para lhe prestarem atenção. Ela passou-lhes a mão pelo cabelo e com um sorriso de satisfação disse a Barbara:
- São o meu orgulho, e também o do pai. Vão ser parecidos com ele, homens entre os homens.
- Claro - disse Barbara. - São muito parecidos.
- São, não são? - E afastou-se da banheira, para olhar os filhos, como se fossem obras de arte. - Sim. Bom, Anas tem os olhos do pai. E Bishr... Deu uma risada. - Digamos que com o tempo, o meu Bishr vai ter outra coisa bastante parecida com o pai. Um dia vais ser um touro para a tua mulher, não vais Bishr?
Ao princípio Barbara não tinha percebido bem, mas quando a mulher estendeu para entre as pernas do filho a fim de exibir o seu pénis - aproximadamente do tamanho do dedo mínimo de Barbara - esta começou a entender. Não havia nada como fazer com que o rapaz começasse o mais cedo possível a ter esses complexos.
- Mrs. Malik - disse. - Eu vim aqui à procura do seu marido. Pode dizer-me onde ele está?
- Mas o que quer do meu Muni? - Inclinou-se na banheira e passou uma das esponjas pelas costas de Bishr. - Não pagou alguma multa de estacionamento, foi?
- Gostaria de lhe fazer algumas perguntas - disse Barbara.
- Perguntas? Sobre o quê? Aconteceu alguma coisa?
Barbara franziu as sobrancelhas. A mulher não poderia andar assim tão fora deste mundo.
- Haytham Querashi... - disse.
- Ah, isso. Mas a senhora não é com ele que tem de falar sobre Haytham Querashi. Ele mal o conhecia. Fale com Sahlah.
- Ah, sim? - Barbara via Yumn divertida a deitar o sabão nos ombros de Anas.
- Claro. Sahlah andava a fazer alguma. Haytham descobriu... sabe- se lá o quê?... E zangaram-se. A zanga levou-os a... É triste saber ao que a zanga pode levar, não é verdade? Então queridinhos? Vamos pôr os barcos nas ondas? Atirou-lhe a água para as pernas. Os barcos balançaram. Os rapazinhos riram e começaram a atirar água.
- Metida nalguma, como? - Perguntou Barbara.
- À noite andava por aí. Quando pensava que estava tudo a dormir,
a nossa querida Sahlah andava por aí. Saía. E, mais de uma vez alguém cá entrou. Alguém foi ter com ela ao quarto. Claro que ela pensa que ninguém sabe. Mas o que ela não sabe é que nas noites em que o meu Muni sai, eu não durmo enquanto ele não estiver na nossa cama. E oiço muito bem. Muito, muito bem. Não é verdade meus amorzinhos? - E divertida fez cócegas na barriga dos filhos. Anas retribui-lhe, molhando-lhe a parte da frente da túnica. Ela sorriu e também lhe atirou água. - E a cama de Sahlah rangia, rangia, rangia, não é verdade queridos? - Mais água. - A vossa tia dorme mal de noite. Rangia, rangia, rangia. Haytham descobriu, não foi? E ele e a nossa Sahlah fartaram-se de discutir.
Mas que víbora, pensou Sahlah. Alguém lhe devia partir a cabeça com
um cano e provavelmente haveria mais do que um voluntário naquela casa para o fazer. Dois até se poderiam ajudar um ao outro.
- Tem um chádor, Mrs. Malik? - Perguntou Barbara.
As mãos de Yumn hesitaram no momento de criar mais ondas para os
filhos.
- Um chádor? - Disse. - Que estranho. Porque pergunta isso?
- Porque a senhora usa o fato tradicional. Gostava de saber, nada mais.
Sai muito? Vai visitar amigos à noite? Vai a um dos hotéis para tomar café?
Sozinha? E quando o faz, leva um chãdor? Em Londres vêem-se muito, mas não me lembro de ter visto nenhum aqui na praia.
Yumn apanhou do chão um jarro de plástico. Tirou a válvula e encheu
o jarro à torneira. Começou a despejar água sobre os meninos, que gritavam e se agitavam como se fossem cachorrinhos molhados. Ela não respondeu enquanto não retirou o sabão às duas crianças e não as envolveu em enormes toalhões brancos. Pôs um em cada anca e saiu do quarto de banho, dizendo a Barbara:
- Venha comigo.
Porém não a levou outra vez para o quarto das crianças. Foi até ao fundo do corredor, e indicou um quarto que ficava na parte detrás da casa. A porta estava fechada mas ela abriu-a com um gesto imperioso mandou Barbara entrar.
O quarto era pequeno, tinha apenas uma cama encostada a uma das paredes, uma cómoda e uma mesa encostada à outra. A janela estava aberta e dava para o jardim das traseiras; para lá deste jardim havia um muro de tijolo com um portão que dava para um pomar muito bem tratado.
- É esta a cama - disse Yumn, como se revelasse um local de infâmia.
- E Haytham sabia o que se passava aqui dentro.
Barbara voltou-se mas não examinou o objecto em questão. Esteve quase a dizer: E as duas sabemos quem informou Haytham Querashi, não é verdade, queridinha?
Mas reparou que sobre a mesa do outro lado do quarto estavam os objectos de um passatempo qualquer. Curiosa dirigiu-se para lá. Yumn continuou.
- Pode imaginar como Haytham se sentiu ao saber que a sua amada, que lhe fora apresentada pelo pai como sendo casta, era pouco mais do que uma vulgar... bom, a minha linguagem talvez seja demasiado forte. Mas não consigo conter os meus sentimentos.
- Humm - disse Barbara. Viu três conjuntos de pequenas gavetas de plástico que continham contas, conchas, pedras, bocadinhos de metal e outros pequenos ornamentos.
- As mulheres levam a nossa cultura através dos tempos - continuava Yumn. - O nosso papel não é apenas de esposas e mães, mas também como símbolos de virtude para as filhas que virão a seguir a nós.
- Sim, claro - disse Barbara. Perto das gavetas estava uma rede com ferramentas: pequenas chaves de parafusos, alicates compridos, uma pistola de cola, tesouras e dois corta-arame.
- E se uma mulher falha no seu papel, decepciona-se a si própria, ao marido e à família. Fica desgraçada. Sahlah sabia isto. Sabia o que a esperava logo que Haytham rompesse o noivado e apresentasse as suas razões para o fazer.
- Já percebi, claro. - Disse Barbara. Ao lado da rede com as ferramentas estava uma fila de enormes novelos.
- Ninguém a havia de querer depois daquilo. Se não saísse casta da família ficaria sua prisioneira. Uma espécie de escrava. Seria mandada por toda a gente.
- Preciso de falar com o seu marido, Mrs. Malik - disse Barbara, descansando os dedos no prémio que lhe tinha calhado.
Entre os novelos de corrente metálica muito fina, cordel e fio brilhante havia um de arame fino. Era mais do que apropriado para preparar uma armadilha e para que um homem desprevenido se despenhasse no escuro do alto do Nez. Achei", pensou ela. Que diabo, Barlow, a Fera, tivera razão desde o princípio.
Emily teve de os deixar fumar aos dois. Parecia ser a única maneira de fazer com que Kumhar se descontraísse e despejasse o saco. Com o peito apertado, os olhos a chorar e a cabeça já a latejar, suportou os vapores dos Benson and Hedges. Foram precisos três cigarros para que se dispusesse a dizer alguma coisa perto da verdade. Antes disso tentara afirmar que passara a alfândega em Heathrow. Em seguida mudara para Gatwick. Depois, como não conseguia dizer o número do voo, a companhia aérea ou sequer a data da entrada no país, não teve outro remédio senão contar a verdade. Azhar traduzia. O seu rosto manteve-se inexpressivo durante a conversa. No entanto, os olhos mostravam-se cada vez mais tristes, à medida que a entrevista avançava. No entanto Emily não acreditou naquela dor. Conhecia muito bem os asiáticos para saber que eram óptimos actores.
Houve pessoas que ajudaram, começou Kumhar. Quando um deles queria emigrar para Inglaterra, havia pessoas no Paquistão que sabiam os caminhos mais curtos. Tinha de se esperar menos tempo, evitavam-se os requisitos e conseguiam-se os papéis necessários... Tudo isto pagando, claro.
- Como é que ele define papéis necessários?, - Perguntou Emily. Kumhar evitou a pergunta. A princípio tinha esperança em vir para este país maravilhoso legitimamente, disse. Procurou a maneira de o fazer. Procurou quem lhe emprestasse dinheiro. Até tentou oferecer-se como noivo a uma família qualquer que não conhecesse o seu estado civil, com a ideia de se tornar bígamo. Claro que não seria bem uma união bígama, pois a poligamia era, não só legal, como apropriada a um homem que tivesse meios para sustentar mais do que uma mulher. Ele não tinha meios, mas teria um dia.
- Poupem-se os aspectos culturais - disse Emily.
Sim, claro. Quando estes planos não foram suficientes para o trazer legalmente para Inglaterra, o sogro informara-o de uma agência em Carachi que se especializava em... bem, eles diziam que era auxílio aos imigrantes. Soube que tinham sucursais em todo o mundo.
- Em todos os portos de entrada mais desejáveis - observou Emily recordando as cidades que Barbara Havers enunciara como localizações da World Wide Tours. - E em todos os portos de saída indesejáveis.
Kumhar disse que se poderiam ver as coisas por esse prisma. Foi à agência de Carachi e explicou o que precisava. Quanto ao pagamento, tinha tudo resolvido.
- Foi trazido ilegalmente para Inglaterra - disse Emily. Bem, não tinha vindo directamente para Inglaterra. Não tinha dinheiro para tanto, embora fosse possível uma entrada directa no país àqueles que tivessem cinco mil libras para pagar um passaporte britânico, uma carta de condução e um cartão dos serviços de saúde. Mas quem eram os afortunados que possuíam tanto dinheiro? Com o que ele conseguira poupar durante cinco anos de privações, fora apenas capaz de comprar uma passagem por terra do Paquistão para a Alemanha.
- Para Hamburgo - disse Emily.
Mais uma vez ele não respondeu directamente. Na Alemanha, disse, esperara - escondido em local seguro - por uma passagem para Inglaterra, onde, disseram-lhe, - no seu devido tempo e com o algum trabalho da sua parte - lhe dariam os documentos necessários para ficar no país.
- O senhor entrou pelo porto de Parkerston - concluiu Emily. Como?
Num ferry, na parte de trás de um camião. Os imigrantes escondiam-se entre as mercadorias que eram expedidas do continente: borracha de pneus, trigo, milho, batatas, roupa, partes de máquinas. Não importava. Só era preciso um condutor de camião disposto a correr o risco, a troco de uma compensação adequada.
- E os seus documentos?
Nesta altura Kumhar começou a gaguejar, pouco disposto a levar a sua história para a frente. Ele e Azhar começaram uma conversa rápida, que Emily interrompeu dizendo:
- já chega, quero a tradução, imediatamente.
Azhar voltou-se para ela com ar grave:
- É mais ou menos aquilo que já ouvimos. Tem medo de dizer mais.
- Então digo eu por ele - disse Emily. - Muhannad Malik está envolvido nisto até aos olhos. Traz imigrantes ilegais para o país e fica-lhes com os documentos forjados. Traduza isso, Mr. Azhar. - Este não falou imediatamente, os olhos sombrios ao ouvir as acusações feitas ao primo. - Traduza
- disse ela em tom frio. - Queria participar nisto, então participe. Diga-lhe o que eu disse.
Azhar falou com a voz alterada por um tom subtil, que Emily não conseguiu identificar, mas que suspeitou ser preocupação. Claro, estava desejoso de avisar o detestável primo. Aquela gente juntava-se sempre, como moscas à volta de estrume de vaca, fosse qual fosse a ofensa. Mas ele não sairia da esquadra sem que ela soubesse tudo o que se passava. E depois de terem prendido Muhannad Malik.
Quando Azhar acabou a tradução, Fahd Kumhar começou a chorar. Era verdade, disse. Quando chegara a Inglaterra fora levado para um armazém. Aí, ele e os companheiros de viagem foram recebidos por um alemão e dois dos seus próprios compatriotas.
- Muhannad era um deles? - Perguntou Emily. - Quem era o outro? Ele não sabia. Nunca soubera. Mas o outro usava coisas de ouro, um relógio e anéis. Estava bem vestido e falava Urdu com fluência. Não vinha muitas vezes ao armazém, mas quando o fazia os outros dois tratavam-no com deferência.
- Rakin Khan - murmurou Emily. - A descrição só se adaptava a ele. Ao princípio Kumhar não sabia o nome de nenhum dos homens. Tomou conhecimento da identidade de Mr. Malik, só porque tinham sido eles - e aqui indicou Emily e Azhar a dizê-lo, na entrevista que tinham tido todos juntos. Antes disso só conhecia Malik por Mestre.
- Que cognome maravilhoso - resmungou Emily. - Sem dúvida foi ele que o inventou.
Kumhar continuou. Tinham-lhes dito que tinham tratado das coisas para que pudessem trabalhar até ter fundos suficientes para pagar os documentos.
- Que tipo de trabalho?
Uns iam para as quintas, outros para as fábricas. Onde quer que fossem necessários lá iam eles. Um camião vinha buscá-los a meio da noite e eram levados para o local de trabalho. Voltavam quando o serviço estivesse feito, por vezes na noite desse mesmo dia, outras vezes dias mais tarde. Mr. Malik e os outros dois homens ficavam-lhes com o salário. Deste, retiravam o pagamento para os documentos. Quando estes estivessem totalmente pagos, entregavam-nos ao imigrante e deixavam-no ir.
Só que nos três meses em que Fahd Kumhar trabalhara para pagar a sua dívida ninguém partira. Pelo menos com os documentos legais. Nem um único. Vieram mais imigrantes, mas nenhum conseguia ganhar o suficiente para pagar a sua liberdade. O trabalho aumentava, pois era necessário apanhar mais fruta e mais legumes, mas nenhuma quantidade de trabalho parecia bastar para pagarem as dívidas às pessoas que os tinham trazido para o país.
Emily percebeu que era um esquema de subcontratadores. Os ilegais eram contratados pelos agricultores, donos das fábricas e capatazes. Estas pessoas pagavam salários mais baixos do que os que pagavam aos trabalhadores legalizados e não os pagavam directamente aos trabalhadores, mas sim à pessoa que os trazia. Essa pessoa abotoava-se com o dinheiro que queria e entregava aos trabalhadores o que lhe apetecia. Os ilegais pensavam que era um esquema para os ajudar nos seus problemas de imigração. Mas a lei tinha outro nome para a operação: escravatura.
Tinham sido apanhados, disse Kumhar. Só tinham duas opções: continuar a trabalhar na esperança que acabassem por lhes entregar os papéis, ou tentar fugir e chegar a Londres onde poderiam ter esperança de se esconderem entre a comunidade asiática sem serem detectados.
Emily já ouvira o suficiente. Via que todos estavam envolvidos: todo o clã Malik e também Haytham Querashi. Era um caso de ganância. Querashi denunciara o esquema naquela noite no Castle Hotel. Queria a sua parte como dote de Sahlah Malik. Tinham-lho recusado, para sempre. Sem dúvida, usara Kumhar para chantagear a família para receber o que queria. Ou davam-lhe uma fatia do bolo ou denunciava toda a operação, fazendo com que Kumhar contasse tudo à polícia ou aos jornais. Era uma boa ideia. Contara que a ganância da família fosse maior do que a inclinação para não acreditarem nas suas ameaças. E o facto de exigir uma compensação para aquilo que sabia ser lógico. Afinal também era um membro da família. Merecia uma parte daquilo de que os outros gozavam. Principalmente Muhannad.
Agora Muhannad poderia dizer adeus ao seu carro clássico, ao relógio Rolex, às botas de pele de cobra, ao anel e aos fios de ouro. Não precisaria de nada disso no sítio para onde ia.
Assim, a posição de Akram Malik na comunidade ficaria também desmoralizada. Sem dúvida iria atingir toda a comunidade asiática. A maior parte deles afinal trabalhava para ele. Quando a fábrica fechasse, como resultado da investigação do esquema dos Malik, teriam de se ir embora e procurar emprego noutro lado. Isto é, aqueles que estivessem legalizados.
Estivera na pista certa quando mandara revistar a fábrica. Só que deveria ter procurado pessoas e não contrabando.
Havia muita coisa para fazer. Era preciso falar para a polícia de imigração, era preciso activar uma investigação nos aspectos internacionais do esquema. Depois teria de informar o serviço de estrangeiros, para tratar da deportação dos imigrantes de Muhannad. Claro que seria preciso que alguns deles testemunhassem contra ele e a sua família. Talvez em troca de asilo? Talvez fosse uma possibilidade.
- Só mais uma coisa - disse ela a Azhar: - Como é que Mr. Kumhar se viu envolvido com Mr. Querashi?
Kumhar explicou que ele fora ao seu local de trabalho. Um dia à hora do almoço, aparecera ao pé deles no campo de morangos. Andava à procura de alguém que ajudasse a acabar com aquela escravatura, dissera. Prometera segurança e um novo começo no país. Kumhar fora um dos oito homens que se tinham oferecido. Foi escolhido e partira nessa mesma tarde com Mr. Querashi. Fora levado para Clacton, instalado na pensão de Mrs. Kersey e recebera um cheque de quatrocentas libras para mandar à família no Paquistão, como prova das boas intenções de Mr. Querashi para com todos eles.
Claro, pensou Emily com desprezo. Mais uma forma de escravatura. Kumhar seria uma espada permanente que Querashi manteria sobre as cabeças de Muhannad Malik e dos membros da sua família. Kumhar fora apenas demasiado ingénuo para o perceber.
Precisava de voltar lá acima ao gabinete, para ver onde estava Barbara, que andava à procura de Muhannad. Ao mesmo tempo, não poderia deixar que Azhar deixasse a esquadra, não fosse avisar os parentes de que andavam atrás deles. Poderia detê-lo como testemunha acessória, mas um passo em falso e ele imediatamente se poria ao telefone, exigindo um advogado, a toda a velocidade. Era melhor deixá-lo com Kumhar, fazendo-o acreditar que estava a praticar o bem.
- Vou precisar de um depoimento escrito de Mr. Kumhar - disse ela a Azhar. - Posso pedir-lhe que fique com ele enquanto ele o escreve e depois que junte uma tradução? - Deveriam levar umas boas duas horas, pensou.
Kumhar falou aflito, com as mãos a tremer enquanto acendia outro cigarro.
- Que diz ele agora? - Perguntou Emily.
- Quer saber se lhe vão dar os documentos. Agora que lhe disse a verdade. O olhar de Azhar era um desafio. Ela ficou aborrecida por o ver tão patente no seu rosto moreno.
- Diga-lhe que a seu tempo - disse Emily. E saiu para ir à procura do sargento Havers.
Yumn aproveitou o interesse que Barbara mostrava pela mesa de Sahlah.
- São as jóias dela - disse. - Ou pelo menos é assim que ela lhes chama. Eu chamo-lhe a desculpa para não cumprir o seu dever, quando lhe pedem para fazer alguma coisa.
Veio para o pé de Barbara e abriu quatro gavetinhas. Espalhou moedas e contas no tampo da mesa e sentou Anas na cadeira junto a ela. a criança ficou imediatamente fascinada com as coisas com que a tia fazia as jóias. Puxou outra gaveta e espalhou o conteúdo entre as moedas e as contas que a mãe já lhe tinha dado. Riu-se ao ver os objectos a rolar e a balançar na mesa. Tudo aquilo tinha estado arrumado por tamanhos, cores e composição. Depois Anas abriu mais duas gavetas e ficou tudo misturado; para separar tudo seria preciso o trabalho de uma noite inteira.
Yumn nada fez para o impedir de continuar a abrir mais gavetas. Pelo contrário, sorria e acariciava-lhe o cabelo com meiguice.
- Gostas das cores, não gostas meu lindo? - Perguntou-lhe. - Diz o nome das cores à tua ammi-gee. Olha o encarnado, Anas, está a ver o encarnado?
Barbara sentia-se furiosa.
- Mrs. Malik - disse. - A respeito do seu marido. Gostaria de falar com ele. Onde posso encontrá-lo?
- Porque é que quer falar com o meu Muni? Já lhe disse...
- E eu tenho todas as que a senhora disse nos últimos quarenta minutos gravadas no meu coração. Mas há um ou dois pontos que tenho de esclarecer, sobre a morte de Mr. Querashi.
Yumn tinha continuado a brincar com o cabelo de Anas. Virou-se para Barbara.
- Já lhe disse que ele não está envolvido na morte de Haytham. Deveria querer falar com Sahlah e não com o irmão.
- No entanto.... .
- Não há no entanto - Yumn levantou a voz. Duas manchas de cor apareceram-lhe nas faces. Deixara o seu papel de esposa-e-mãe e falava agora num tom cortante como o aço. - Já lhe disse que Sahlah e Haytham discutiram. Já lhe disse o que ela andava a fazer durante a noite. Suponho que, como é da polícia, a senhora sabe somar dois mais dois, sem que eu tenha de a ensinar. O meu Muni - concluiu, como se precisasse de esclarecer um ponto - é um homem como poucos. E a senhora não precisa de falar com ele.
- Claro - disse Barbara - Bom, obrigado pelo seu tempo. Eu sei o caminho.
A outra mulher percebeu o significado das palavras de Barbara.
- Não precisa de falar com ele - insistiu
Barbara passou diante dela. Saiu para o corredor. A voz de Yumn seguiu-a.
- Também ficou caída por ela, não é verdade? Como toda a gente. Falam com aquela cabra e acham que ela é uma pombinha. Tão sossegada, tão delicada. Não faria mal a uma mosca. Por isso não a têm em conta. E ela sai-se com a sua.
Barbara começou a descer as escadas.
- Ela sai-se sempre bem, essa puta. Puta. Com ele no quarto, com ele na cama, fingindo ser quem nunca foi. Casta, cumpridora, piedosa, valha-me Deus.
Barbara estava já à porta. A mão estendeu-se para o puxador. Do cimo das escadas, Yumn gritou.
- Ele estava comigo.
A mão de Barbara deteve-se, mas continuou estendida durante um momento enquanto tentava perceber o que Yumn dizia. Voltou-se.
- O quê?
Trazendo consigo o filho mais novo, Yumn desceu as escadas. A cor do seu rosto reduzira-se a dois medalhões vermelhos nas faces. O olho torto dava-lhe um ar de loucura, acentuado pelas palavras que disse depois:
- Estou a dizer-lhe o que vai ouvir da boca de Muhannad. Estou a poupar-lhe o trabalho de ir à procura dele. É isso que quer não é?
- O que está a dizer?
- Estou a dizer-lhe que se pensa que Muhannad está metido no que aconteceu a Haytham Querashi, não pode ser. Ele esteve comigo na sexta-feira à noite. Esteve no nosso quarto, estivemos juntos, na cama. Ele estava comigo.
- Na sexta-feira à noite - esclareceu Barbara. - Tem a certeza. Ele não saiu, a hora nenhuma? Nem dizendo-lhe que ia ver um amigo?
- Eu sei quando o meu marido está comigo, não sei? - Perguntou Yumn. - E era aqui que ele estava. Comigo. Nesta mesma casa. Na sexta-feira à noite.
Óptimo, pensou Barbara. Não poderia ter pedido uma declaração mais explícita da culpa do asiático.
ELE NÃO CONSEGUIA DEIXAR de ouvir as vozes. Pareciam chegar de todas as direcções e de todas as origens. Ao princípio pensou que sabia o que havia de fazer a seguir, se conseguisse calar os gritos. Mas quando se apercebeu que não podia retirar o eco do seu espírito, a não ser que se matasse, e não tinha a mínima tenção de o fazer, sabia que tinha de fazer planos enquanto as vozes lhe tentavam dar cabo dos nervos.
O telefonema de Reuchlein chegara à fábrica de mostarda menos de dois minutos depois daquela cabra da Scotland Yard ter saído do armazém em Parkerston.
- Malik! Abortar. - Fora tudo. Queria dizer que o novo carregamento, que deveria chegar neste mesmo dia e que valia pelo menos vinte mil libras, se os mantivesse a trabalhar sem parar, não seria descarregado no porto, não seria levado para o armazém e não seria enviado em grupos para os agricultores de Kent, que já tinham pago adiantado, conforme o estipulado. Pelo contrário, a mercadoria seria deixada à vontade e descobriria o caminho para Londres, Birmingham ou qualquer outra cidade onde se pudessem esconder. E se não fossem apanhados pela polícia antes de chegar ao seu destino, perder-se-iam entre a população e manteriam a boca fechada a respeito do modo como tinham entrado no país. Não fazia sentido falar, quando isso podia levar à deportação. Quanto aos trabalhadores que já estavam noutros locais; estavam por sua conta. Quando não aparecesse ninguém para os levar de volta para o armazém, perceberiam tudo. Abortar queria dizer que Reuchlein já ia a caminho de Hamburgo. Queria dizer que todos os documentos ligados aos serviços de imigração da World Wide Tours teriam de desaparecer. E queria também dizer que teria de fazer alguma coisa antes que o mundo que conhecia há vinte seis anos lhe caísse em cima da cabeça.
Saíra da fábrica. Fora para casa. Começara a pôr os seus próprios planos em movimento. Haytham estava morto - louvado fosse o ser divino mais conveniente naquele momento - e ele sabia que não haveria maneira de fazer Kumhar abrir a boca. Se falasse seria deportado, o que era a última coisa que queria, agora que o seu protector tinha sido assassinado.
E depois Yumn - aquela cabra horrorosa a quem era obrigado a chamar esposa - começara com aquelas coisas com a mãe dele. E tivera de tratar do assunto; fora nessa altura que soubera de Sahlah.
Maldita fosse, aquela irmã prostituída. Fora ela que o obrigara. O que esperava ela que acontecesse, quando agira como uma prostituta com um ocidental? Perdão? Compreensão? Aceitação? Que mais? Deixara que aquelas mãos sujas, profanas, corruptas, nojentas, tocassem o seu corpo. Quisera juntar a sua boca à dele. Estava deitada com Shaw, aquele merda, debaixo de uma árvore, no chão e esperava que ele - o seu irmão, o seu chefe, o seu senhor - se fosse embora, fingindo não saber de nada? Que fugisse do som dos suspiros e gemidos dos dois? Do cheiro do seu suor? Da visão da mão dele levantando-lhe a camisa de dormir e acariciando-lhe a perna?
Então sim, agarrara-a. Arrastara-a para casa. E claro que a tomara porque ela merecera ser tomada, porque era uma prostituta, e porque tinha de pagar como todas as prostitutas. Ao princípio, uma noite, não fora suficiente para a impressionar e lhe dar a conhecer quem era o verdadeiro senhor do seu destino. Uma palavra a meu respeito e morres, dissera-lhe. E nem precisara de lhe abafar os gritos com a mão como se preparava para fazer. Ela sabia que tinha de pagar pelo seu pecado.
Assim que Yumn falara ele fora à procura dela. Sabia que era a última coisa que deveria fazer, mas tinha de a encontrar. Tinha forçosamente de a encontrar. Os olhos latejavam-lhe, o coração batia-lhe desenfreado, a cabeça perturbada pelo som das vozes de todos eles.
Malik! Abortar.
Tenho de ser tratada como um cão?
Ela é descontrolada, meu filho. Não tem o minimo sentido de... A polícia esteve aqui para revistar a fábrica. Perguntaram por si. Malik! Abortar.
Olha para mim, Muni. Olha para o que a tua mãe...
Antes de eu me ter apercebido já tinha estragado as plantas. Não percebo porquê...
Malik! Abortar.
... a virgenzinha perfeita do pai.
Abortar.
Virgem? Ela? Dentro de poucas semanas não poderá esconder o... Não disseram do que andavam à procura. Mas tinham um mandato. Eu vi-o. A tua irmã está grávida.
Abortar. Abortar.
Sahlah não falaria do assunto. Não o acusaria. Não se atreveria. Uma acusação iria arruiná-la, porque daí resultaria a verdade a respeito de Shaw. Porque ele, Muhannad, seu irmão, falaria a verdade. Ele acusaria. Ela relataria exactamente o que se passara entre eles no pomar e deixaria que os pais concluíssem o resto. Poderiam confiar na palavra de uma filha que os traía, escapando-se de casa à noite De uma filha que agia como se fosse uma rameira barata? Quem estaria a dizer a verdade, perguntaria ele. Um filho que cumpria os seus deveres para com a sua esposa, os seus filhos e os seus pais, ou uma filha que vivia na mentira?
Sahlah sabia o que ele havia de dizer. Sabia que os pais acreditariam nele. Por isso não diria nada, não o acusaria.
Isto permitia-lhe a oportunidade de a ver. Mas ela não estava na fábrica. Não estava na ourivesaria com aquela amiga com cara de bruxa. Não estava no Parque Falak Dedar. Não estava no pontão.
Mas no pontão ouvira a notícia de que Mrs. Shaw fora para o hospital. Chegou mesmo a tempo de os ver sair aos três. O pai, a irmã e Theo Shaw. E o olhar trocado entre a irmã e o amante, enquanto este abria a porta do carro para ela entrar dissera-lhe tudo o que ele precisava de saber. Ela falara. A cabra dissera a verdade a Shaw.
Partira antes que o pudessem ver. E as vozes continuavam. Malik! Abortar.
O que hei-de fazer? Diz-me, Muni.
Neste momento, Mr. Kumhar ainda não disse o nome de ninguém que quisesse que avisássemos.
Quando um de nós morre, Muhannad não és tu quem tem de tratar da sua ressurreição.
... encontrado morto no Nez.
Trabalho com a nossa gente em Londres quando têm problemas de... Malik! Abortar.
Muhannad venha conhecer a minha amiga Barbara, que vive em Londres. A pessoa de quem nos falas, morreu para nós. Não o deverias ter trazido para nossa casa.
Costumamos ir comer gelados a Chalk Farm Road e já fomos ao cinema e ela até foi à minha festa de anos. Por vezes vamos ver a mãe dela a...
Malik! Abortar.
Dissemos-lhe que vinhamos para o Essex. Só que o pai não me disse que o primo vivia aqui.
Abortar. Abortar.
Vem cá outra vez? Leva-me a conhecer a sua mulher e os seus meninos? Vem cá outra vez?
E nessa altura, quando menos o esperava, encontrou a resposta que procurava. As vozes calaram-se e ficou mais calmo.
Dirigiu-se a toda a pressa para o Burnt House Hotel.
- Muito bem - exclamou Emily, em voz alta. O rosto iluminara-se-lhe com um sorriso radioso. - Muito bem Barbara. Raios. Muito bem. - Chamou Belinda Warner. A agente entrou no gabinete a toda a pressa.
Barbara tinha vontade de cantar, tinham conseguido a cabeça de Muhannad Malik, de bandeja, tal como São João Baptista, trazido por Salomé, mas sem serem precisas danças. E quem o entregara fora a idiota da mulher dele.
Emily começou a dar ordens. O agente que estava em Colchester, passando as ruas perto da casa de Rakin Khan a pente fino a ver se encontrava alguém que confirmasse ou negasse para sempre o álibi de Muhannad na sexta-feira à noite, foi chamado. Outros agentes que tinham sido enviados à fábrica de mostarda para examinar os ficheiros pessoais de toda a gente, foram retirados. Os homens que trabalhavam na história dos arrombamentos às casas de praia, deveriam desistir da tarefa. Todos teriam de colaborar na perseguição a Muhannad Malik.
- Ninguém pode estar em dois sítios ao mesmo tempo – contara Barbara a Emily cheia de entusiasmo. - Esqueceu-se de dizer à mulher qual era o seu álibi. E ela arranjou-lhe outro. A caça não acabou Emily. Agora é que vai começar!
E agora via por fim o inspector em toda a sua glória. Emily fazia telefonemas, preparava um plano de batalha e dirigia toda a equipa com uma calma -e uma segurança que Barbara sabia serem contrárias ao entusiasmo que sentia. Que diabo, tivera razão desde o princípio. Pressentira qualquer coisa ilegal em Muhannad Malik, qualquer coisa que não estava bem em todos aqueles protestos a respeito de ser um homem do seu povo. De facto haveria provavelmente uma alegoria ou uma fábula que explicassem a completa hipocrisia da vida de Muhannad, mas naquele momento Barbara estava demasiado excitada para se lembrar do que era. A Raposa e as Uvas? A Lebre e a Tartaruga? Que seria? Queria lá saber. Vamos mas é apanhar aquele sacana, pensou.
Os agentes foram enviados em todas as direcções: para a fábrica de mostarda, para as Avenidas, para a Câmara, para o parque Falak Dedar, para uma sala por cima da Balford Print Shoppe, onde os Serviços Secretos revelaram que a Jum'a fazia as suas reuniões. Ouhos agentes foram mandados para Parkeston, não fosse a caça ter-se dirigido para a Eastern Imports.
Descrições de Malik seguiam por fax para todas as comunidades vizinhas. O número de matrícula do Thunderbird, a sua cor e características únicas foram enviadas para todas as esquadras de polícia. Pediram ao Tendring Standard que publicasse uma fotografia de Malik na primeira página para o caso de ainda não o terem apanhado na manhã seguinte.
Toda a esquadra estava mobilizada. Toda a gente estava em movimento. Todos trabalhavam como se fossem elos da grande máquina da investigação, com Emily Barlow no centro.
Era nestas condições que ela trabalhava bem. Barbara lembrava-se da sua rápida capacidade de decisão e de dividir a força de trabalho, de modo a ser mais eficaz. Fizera-o no estágio, em Maidenstone, quando nada estava em causa senão a aprovação do instrutor e a admiração dos colegas do curso.
Agora, quando tudo estava em causa, desde o sossego de uma comunidade, até ao seu próprio emprego, ela era a tranquilidade em pessoa. Apenas a maneira como pronunciava as palavras denunciava a sua tensão.
- Estão todos metidos naquilo - disse a Barbara, bebendo água da garrafa de Evian. Tinha o rosto molhado de transpiração. - Querashi também. É tão óbvio. Queria uma parte do bolo que Muhannad recebia de todos aqueles que contratavam os ilegais. Muhannad não queria pagar e Querashi foi de mergulho pelas escadas abaixo. - Outro gole de água. - Vê como era fácil, Barb. Malik entrava e saia de casa a toda a hora: reuniões da Jum'a negócios com Reuchlein, enviar ilegais para todo o país.
- Já para não falar das viagens que faz para a fábrica - acrescentou Barbara. - Ian Armstrong falou-me nisso.
- Assim, se estivesse fora nessa ou naquela noite, a família nem reparava, pois não? Podia sair de casa, ir atrás de Querashi, ver que tinha ido ter com Hegarty, mesmo sem saber com quem era o encontro e escolher o momento para acabar com ele. Com meia dúzia de álibis prontos para a noite que lhe apetecesse escolher.
Barbara percebeu como tudo se encaixava perfeitamente.
- E depois apareceu com todo seu povo atrás dele, pronto a protestar contra a morte e em parecer inocente.
- Para parecer aquilo que nunca poderia ser: um irmão muçulmano para os outros muçulmanos, decidido a descobrir o assassino de Querashi.
- Mas porque diabo andaria ele sempre atrás de ti, em perseguição do assassino de Querashi se era ele esse assassino?
- Isso era o que ele queria que eu pensasse - disse Emily. - Só que eu nunca o pensei, nem por um instante.
Foi até à janela onde a fronha que lá pendurara no dia anterior ainda escurecia a sala. Agarrou-a e puxou-a para baixo. Debruçou-se da janela e observou a rua.
- Esta parte é a pior - disse. - Detesto isto.
A espera, pensou Barbara. O ficar na rectaguarda, dando ordens às tropas à medida que as informações chegavam à esquadra. Era o senão de ter chegado àquele posto. O inspector não podia estar em toda a parte ao mesmo tempo. Tinha de confiar na experiência e nas capacidades da sua equipa.
- Chefe?
Emily voltou-se da janela. Belinda Warner estava à porta. - Que novidades há? - Perguntou.
- É aquele asiático. Está lá em baixo outra vez. Ele...
- Qual asiático?
- Aquele. Mr. Azhar. Está na recepção e pergunta por si. Ou pelo sargento. Diz que o sargento serve. A recepção diz que ele está muito perturbado.
- Recepção? - Repetiu Emily - Mas que raio está ele a fazer na recepção? Deveria estar com Fahd Kumhar. Deixei-o com ele. Dei ordens expressas para... - interrompeu as suas próprias palavras. - Jesus - disse muito pálida.
- O quê? - Barbara pôs-se de pé. A ideia de Azhar perturbado preocupou-a. O paquistanês era tão controlado, que esse facto lhe alertou os sentidos. - Que se passa?
- Ele não deveria ter saído da esquadra - disse Emily. - Deveria ter sido mantido com Kumhar até termos deitado a unha ao primo. Mas eu saí da sala dos interrogatórios e esqueci-me de dizer na recepção para não o deixarem sair do edifício.
- O que quer...? - Belinda está obviamente à espera de ordens.
- Eu vou tratar do assunto - disse Emily bruscamente. Barbara seguiu-a. Atravessaram o corredor e desceram as escadas a correr. No rés-do-chão, Taymullah Azhar andava de um lado para o outro no cubículo da recepção.
- Barbara! - exclamou quando as viu aproximarem-se. Todos os esforços de contenção se tinham dissolvido num instante e estava em pânico. Parecia aflito.
- Barbara, ela desapareceu. Ele levou Hadiyyah.
- Valha-me Deus - disse Barbara, como se estivesse a rezar. - Azhar, o que foi? Meu Deus. tem a certeza?
- Voltei para o hotel. Já não tinha mais nada a fazer aqui. Mr. Treves disse-me que ela estava com Mrs. Porter. Ela lembrava-se dele da outra noite. Tinha-nos visto juntos. Lembra-se, no bar. Pensou que estava tudo combinado... - quase nem conseguia respirar.
Impulsivamente, Barbara pôs-lhe o braço à volta dos ombros.
- Vamos encontrá-la - disse ela apertando-o. - Vamos encontrá-la, Azhar. Juro. Prometo que a encontramos.
- Mas que porcaria se passa? - Perguntou Emily.
- Hadiyyah é a filha dele. Tem oito anos. Muhannad levou-a. Claro que ela pensou que não faria mal ir com ele.
- Ela sabe que não pode - disse Azhar. - Era um estranho. Ela sabe. Nunca, nunca.
- Só que para ela Muhannad não é um estranho - recordou-lhe Barbara. - Já não é. Ela disse-lhe que queria conhecer a mulher e os filhos dele. Lembra-se Azhar? Ouviu o que ela lhe disse e eu também. E não havia razão para pensar... - Sentiu um desejo imperioso de o absolver da culpa que sabia que ele sentia. Mas não podia. Era a filha dele.
- Mas que raio é isto? - Perguntou Emily mais uma vez.
- Já te disse. Hadiyyah. .
- Quero cá saber de Hadiyyah, seja ela quem for. Conhece esta gente sargento Havers? E se assim é, quantos é que conhece?
Barbara percebeu o seu erro. Era o seu braço ainda sobre os ombros de Azhar. Era aquilo que mostrara saber. Aflita procurou alguma coisa para dizer, mas só encontrou a verdade e não havia tempo para a explicar.
- Ele perguntou-lhe se gostava do mar - continuou Azhar. - Mrs. Porter ouviu Gostas do mar? Vamos para uma aventura no barco?" disse isso quando se foram embora. Mrs. Porter ouviu. Barbara ele levou-a...
- Meu Deus, um barco! - O olhar de Barbara voou para Emily. Não havia tempo para explicar ou para tentar acalmar as coisas. Sabia onde Muhannad Malik tinha ido. Sabia o que planeara. - Ele levou um barco da marina de Balford. Do East Sussex Boat Hire, tal como da outra vez. Hadiyyah pensa que vai fazer um cruzeiro no mar do Norte. Mas ele dirige-se ao continente: Tem de ser. É uma loucura. É muito longe. Mas é o que ele vai fazer. Por causa de Hamburgo, por causa de Reuchlein. E Hadiyyah é a sua apólice de seguro para não o determos. Precisamos de mandar a Guarda Costeira atrás dele, Em.
Emily Barlow não respondeu por palavras. Mas tinha a resposta escrita nas suas feições e o que estas diziam não tinha nada a ver com a perseguição de um criminoso pelo mar fora. Barbara decepcionara-a, enganara-a e era isso que estava escrito no seu rosto, naqueles lábios apertados e no maxilar contraído.
- Em - disse Barbara e explicou aflita. - Eu conheço-os de Londres. Azhar. Hadiyyah. É isso. E é tudo. Por amor de Deus, Em...
- Não posso acreditar - os olhos de Emily pareciam queimar. E logo tu.
- Barbara... - disse Azhar angustiado.
- Só soube que tinhas o caso a teu cargo quando cheguei a Balforddisse Barbara.
- Não podias fazer isto, fosse quem fosse que tivesse a investigação a cargo.
- Muito bem, já sei. Passei das marcas - na sua agitação, Barbara procurava alguma coisa que fizesse o inspector entrar em acção. Em, eu não queria que eles se metessem em sarilhos. Estava preocupada.
- E fizeste de mim parva, não foi?
- Fiz mal. Devia ter-te dito. Se quiseres podes participar ao meu chefe. Mas depois, depois.
- Por favor implorou Azhar, como se dissesse uma oração.
- Tão pouco profissional, Havers. - Era como se o inspector não tivesse ouvido uma palavra.
- Sim, está bem - disse Barbara. - É pouco profissional, muito pouco mesmo. Mas não interessa agora o que eu fiz. Precisamos da Guarda Costeira, se quisermos apanhar Muhannad. Agora, Em. Precisamos já da Guarda Costeira.
Não houve reacção da parte do inspector.
- Jesus, Em - exclamou finalmente Barbara. - Estamos a pensar num assassinato ou estamos a pensar em ti?
Esta última observação era traiçoeira e manipuladora e Barbara desprezou-se assim que a disse. Mas a opinião que implicava conseguiu a reacção que Barbara procurava.
Emily olhou para Azhar e depois para Barbara. Depois tomou as rédeas do caso.
- A Guarda Costeira não nos serve para nada - E sem outra explicação deu meia-volta e dirigiu-se às traseiras da esquadra.
- Venha - disse Barbara agarrando no braço de Azhar. Emily deteve-se à porta de uma sala cheia de computadores e equipamento para as comunicações. Disse rapidamente:
- Entrem em contacto com o agente Fogarty. Mandem uma lancha armada para a marina de Balford. O nosso homem está no mar e levou um refém. Digam a Fogarty que quero uma Glock 17 e uma MP5.
Barbara percebeu então porque era que Emily tinha vetado a ideia da Guarda Costeira. Esses barcos não levavam armas e os agentes não estavam armados. Assim o inspector estava a pedir autorização para o departamento de Armamento de Veículos.
Merda, pensou Barbara, não muito entusiasmada. Tentou desviar o pensamento da imagem de Hadiyyah, apanhada entre o fogo cruzado das balas.
- Venha - disse outra vez a Azhar.
- O que é que ela...?
- Ela vai atrás dele. E nós também - era, pensava Barbara, o melhor que poderia fazer para impedir que o pior acontecesse à sua amiguinha de Londres.
Emily atravessou o vestiário com Azhar e Barbara atrás de si. Atrás da esquadra entrou num Panda. Pô-lo a trabalhar e já estava com as luzes acesas quando Barbara e Azhar entraram.
Emily olhou para eles.
- Ele fica - disse. E dirigindo-se a Azhar: - Saia. - E como o homem não foi suficientemente rápido ela gritou: - Raios o partam, saia já daqui. Estou farta de si. Estou farta de todos vocês. Saia do carro.
Azhar olhou para Barbara. Esta não percebia o que ele queria dela e mesmo que o tivesse percebido, não lho poderia dar. Uma promessa era o que poderia fazer
- Nós trazêmo-la, Azhar - disse. - Fique aqui.
- Por favor - disse ele. - Ela é tudo o que eu tenho. Ela é tudo o que
eu amo.
Emily semicerrou os olhos:
- Diga isso à mulher e aos filhos que tem em Hounslow. Eles vão ficar entusiasmados com as novidades. Agora saia, Mr. Azhar antes que eu chame um agente para o tirar daí.
Barbara voltou-se no assento.
- Azhar - disse. Ele olhou para ela. - eu também gosto dela. Eu trago-a. Espere aqui.
Relutante, como se o esforço lhe custasse tudo o que tinha, o homem saiu do carro. Quando fechou a porta, Emily carregou no acelerador. Saíram do parque de estacionamento e seguiram rua fora a toda a velocidade. Emily ligou a sirene.
- Mas o que é que estavas a pensar? Que raio de polícia és tu? Seguiram até ao cimo de Martello Road. O trânsito estava parado na rua das lojas. Viraram à direita em direcção ao mar.
- Quantas vezes tiveste a oportunidade de me dizer a verdade nestes quatro dias? Dez? Uma dúzia?
- Ter-te-ia dito, mas.
- Cala-te - disse Emily. - Não te preocupes com explicações.
- Quando me pediste para fazer de agente de ligação, deveria ter-te dito. Mas tu não terias desistido e eu ficaria sem saber nada. Estava preocupada com eles. Ele é professor universitário. Pensei que ele não sabia o que estava a fazer.
- Claro - disse Emily com ironia. - Tanto como eu.
- Não sabia. Como poderia saber?
- Isso é contigo.
Virou em Mill Lane. Uma carrinha de entregas estava estacionada mais à frente e o condutor carregava caixas de cartão com a palavra TIPOGRAFIA, usando uma empilhadora. Emily desviou-se para não bater na carrinha nem no homem. Subiu o passeio e disse um palavrão. O carro bateu num caixote do lixo e numa bicicleta. Barbara agarrou-se ao painel dos instrumentos quando Emily levou novamente o carro para a estrada.
- Eu não sabia que ele, que ele também tratava de assuntos legais. Só o conhecia como meu vizinho. Sabia que ele vinha para cá. Tudo bem, mas ele não sabia que eu vinha atrás dele. Conheço a filha, Em. É minha amiga.
- Uma amiga de oito anos? Meu Deus, poupa-me essa parte da história.
- Em...
- Cala-te já, está bem?
Chegadas à marina de Balford pela segunda vez nesse dia, agarraram num megafone que estava na mala do Panda e correram pelo parque de estacionamento até chegarem ao Aluguer de Barcos de East Essex. Charlie Spencer confirmou que Muhannad Malik tinha levado um barco a motor.
- Levou um a diesel, apropriado para uma viagem longa. Vinha com uma bonequinha muito gira - disse Charlie. - Ela disse-me que era prima dele. Nunca tinha andado de barco. Estava em pulgas para ir para o mar. Pelos cálculos de Charlie, Muhannad levava-lhes quarenta minutos de avanço e se o barco que escolhera fosse um barco de pesca, não estaria muito mais além do ponto em que a baía de Pennyhole se junta ao mar do Norte.
Mas o barco tinha maior potência do que os de pesca e autonomia suficiente para chegar ao continente. Precisariam duma coisa especial para o apanhar e Emily viu-o brilhando ao sol sobre o pontão onde Charlie o tinha suspenso fora de água.
- Levo o Sea Wizzard - disse ela.
Charlie engoliu em seco.
- Espere aí - disse. - Não sei se...
- Não tem nada que saber - disse-lhe Emily. Só tem de o pôr na água e de me dar as chaves. Isto é um assunto de polícia. Você alugou o barco a um assassino. A miúda é um refém. Por isso ponha o Sea Wizzard na água e dê-me também uns binóculos.
Charlie ficou de boca aberta, quando ouviu as novidades. Entregou as chaves. Acompanhado de Barbara e Emily desceu ao pontão para meter o Hawk 31 na água. Quando acabou de o fazer os agentes do Armamento de Veículos entravam no parque de estacionamento com as luzes de emergência acesas e a sirene ligada.
O agente Fogarty veio a correr. Numa mão trazia um coldre com uma pistola e na outra uma carabina
- Ajude-nos aqui, Mike - ordenou Emily, enquanto saltava para bordo. Começou a retirar a capa de lona azul, atirou-a para trás de si e expôs a cabina. Inseriu as chaves na ignição. Enquanto o agente Fogarty tinha ido para baixo examinar as cartas náuticas, Emily fazia sair fumo do motor. Em dois minutos tinha- o a trabalhar. O barco estava atracado com a proa para terra. Emily fez marcha atrás para dentro do porto, no meio de uma nuvem de fumo do escape. Charlie andava para trás e para a frente no pontão estreito, mordendo a falange do indicador.
- Tomem conta dele, por amor de Deus. lÉ tudo o que eu tenho e vale bem um resgate.
Barbara sentiu um arrepio na espinha. É tudo o que eu tenho ecoou-lhe na memória. Quando ouviu essas palavras viu o Golf de Azhar a entrar no parque de estacionamento da marina. Parou o carro ao acaso no meio do asfalto e, deixando a porta aberta correu para o pontão. Não tentou interceptá-las. Mas tinha os olhos fixos em Barbara, quando Emily conduziu o barco para as águas mais profundas do Twizzle, o afluente que alimentava os esteiros a oriente do porto, vindo do canal de Balford para ocidente.
Não se preocupe, disse Barbara mentalmente. Eu trago-a, Azhar. Juro. Juro. Não vai acontecer mal nenhum a Hadiyyah. Mas havia já muito tempo que estava envolvida em investigações de homicídios para saber que não havia qualquer garantia de segurança durante a perseguição de um criminoso. E o facto de Muhannad Malik não ter quaisquer escrúpulos em escravizar os seus compatriotas, enquanto fingia defendê-los com todo o ardor, sugeria que os escrúpulos ainda seriam menores, tratando-se da segurança de uma miúda de oito anos.
Barbara levantou o polegar para Azhar não sabendo que outro sinal fazer. Voltou-se então de costas para a marina e de frente para o canal que os levaria ao mar.
O limite de velocidade era de cinco nós e, ao fim da tarde, os barcos voltavam cheios de veraneantes, tornando a viagem arriscada. Mas Emily ignorou todos os avisos. Pôs os óculos escuros, abriu as pernas para se equilibrar e deu a máxima velocidade possível para continuar a navegar em segurança.
- Ligue o rádio - disse ao agente Fogarty. - Comunique com a central e diga onde estamos. Veja se consegue um helicóptero para o localizar.
- Certo - O agente colocou as armas num dos assentos de vinil. Começou a manobrar os comandos na consola, pronunciando letras e números de código. Carregava no interruptor do microfone enquanto falava. E, muito sério, esperava pela resposta.
Barbara foi para junto de Emily. Os dois bancos estavam de frente para a proa, mas nenhuma delas se sentou. Ficaram de pé, para terem uma visão mais alargada enquanto escrutinavam o mar. Barbara agarrou nos binóculos e pendurou-os ao pescoço.
- Precisamos de coordenadas para a Alemanha - Emily interrompeu Fogarty, que continuava a gritar para o rádio, mas sem obter resposta. Para a foz do Elba. Descubra-as.
Ele aumentou o som do receptor de rádio, pousou o microfone e concentrou-se nos mapas.
- Achas que é para onde ele tentará ir? - Perguntou Barbara a Emily, sobrepondo-se ao barulho do motor.
- É a escolha mais lógica. Tem sócios em Hamburgo. Vai precisar de documentos, de uma casa segura. Um sítio para se esconder até poder voltar para o Paquistão, onde só Deus sabe...
- Temos bancos de areia na baía - interrompeu Fogarty. Atenção às bóias. Depois disso, corrija a rota para zero-seis-zero graus - atirou o mapa para o lado.
- O que é isso - Emily pôs a cabeça de lado como se ouvisse mal.
- São as coordenadas, chefe - Fogarty voltou para o rádio. - Zero-Seis-Zero.
- As coordenadas de quê?
Fogarty olhou para ela confundido.
- Não sabe andar de barco?
- Só a remos, merda. Gary é que sabe, sabe muito bem disso. Agora, o que é que fica a zero-seis-zero?
Fogarty recuperou-se do espanto. Bateu com a mão sobre a bússola.
- Vire isto para zero-seis-zero - disse. - Se ele foi para a Alemanha, são essas as coordenadas da primeira parte da viagem.
Emily acenou afirmativamente e acelerou o motor deixando um enorme sulco nas águas do canal.
A vertente ocidental do Nez ficava à direita; à esquerda estavam as ilhas de maré, naquela zona dos esteiros conhecida por Wade. A maré estava cheia, mas já era tarde para andar de barco, por isso o canal estava congestionado com barcos de recreio, que voltavam para os seus ancoradouros na marina. Emily mantinha-se no centro do canal, acelerando tanto quanto lhe parecia possível. Quando avistaram as bóias que marcavam o ponto em que o canal se juntava a outro maior, conhecido como Hamford Water e que tinha saída para o mar, ela empurrou a alavanca. Os potentes motores responderam. A proa do barco ergueu-se e depois bateu na água. O agente Fogarty desiquilibrou-se momentaneamente. Barbara agarrou-se a uma pega quando o Sea Wizzard saltou na Hamford Water.
A baía de Pennyhole e o mar do Norte abriam-se diante deles como uma folha verde cor de líquen com pontinhos brancos. O Sea Wizzard dirigia-se para lá e Emily acelerou ainda mais. A proa erguia-se acima da água e depois batia nela com tanta força que as costelas de Barbara, ainda não totalmente curadas, pareciam querer sair-lhe do peito, pela garganta e até pelos olhos.
Jesus, pensou. Só lhe faltava enjoar.
Levantou os binóculos. Passou uma perna para cada lado do banco e encostou-se com firmeza, enquanto o barco balançava terrivelmente. O agente Fogarty voltara para o rádio e gritava, sobre o barulho dos motores.
O vento varria-os. Lençóis de espuma vinham directamente da proa. Deram a volta à ponta do Nez e Emily deu a máxima velocidade. O Sea Wizzard voou pela baía. Passou por duas motos de água, atirando os seus condutores para dentro de água, como se fossem soldados de plástico varridos de um campo de batalha.
O agente Fogarty estava curvado na cabina, continuava a gritar para o microfone do rádio. Barbara escrutinava o horizonte com os binóculos, quando o agente finalmente conseguiu comunicar com alguém em terra. Ela não conseguia ouvir o que dizia e muito menos a resposta que lhe davam. Mas apercebeu-se do que se passava quando ele gritou para Emily
- Nada feito, chefe. O helicóptero da divisão foi chamado para exercícios em Southend-on-Sea. Ramo Especial.
- O quê? - Perguntou Emily. - Que diabo andam a fazer?
- Exercícios anti-terroristas. Já estavam marcados há seis meses, disseram eles. Vão comunicar com o helicóptero por rádio, mas não garantem que chegue a tempo. Quer a Guarda Costeira?
- Que raio nos vai adiantar a Guarda Costeira? - Gritou Emily. Acha que Malik se vai render com muito juízo só por eles lhe pedirem?
- Então só poderemos esperar que o helicóptero cá chegue. Dei-lhes as nossas coordenadas.
Em resposta Emily fez o barco balançar mais. Fogarty desiquilibrou-se. A carabina caiu do assento.
- Passe-me o coldre - pediu. Pô-lo ao ombro, com uma mão no volante.
- Vês alguma coisa? - Perguntou a Barbara.
Barbara observou o horizonte. Não eram o único barco no mar. A norte, as formas rectangulares dos ferries desenhavam uma linha que partia dos portos de Harwich e Felixstone e se dirigia para o continente. A sul o Pontão das diversões de Balford estendia sombras na água, à medida da que o Sol baixava no céu da tarde. Por trás deles praticantes de windsurf destacavam triângulos coloridos na linha da costa. E diante deles... diante deles estendia-se o mar aberto. E enorme, no horizonte desse mesmo mar, lá estava o banco de nevoeiro que se via ao largo, desde que Barbara chegara a Balford.
Havia barcos por ali. No pino do Verão, mesmo ao fim do dia, haveria sempre barcos por ali. Mas ela não sabia do que andava à procura e nada havia, para além de um que parecia rumar na mesma direcção que eles.
- Nada, Em - disse.
- Continua à procura - Emily deu mais velocidade ao Sea Wizzard. O barco respondeu mais uma vez, saltando da água e voltando a cair. Barbara gemeu, sentindo nas costelas todo o peso do corpo. Lembrou-se que o inspector Lynley não ficaria muito satisfeito com o modo como estava a passar as férias. O barco ergueu-se, bateu na água, voltou a erguer-se.
Gaivotas de bico amarelo voavam por cima deles. Outras flutuavam nas ondas, levantando voo, quando o Sea Wizzard se aproximava, com gritos zangados abafados pelo rugir dos motores.
Durante meia hora seguiram a mesma rota. Ultrapassaram veleiros e catamarans. Passaram a toda a velocidade por barcos de pesca que voltavam, carregados de peixe. Cada vez se aproximavam mais do banco de nevoeiro que prometia dias mais frescos para a costa do Essex.
Barbara continuava com os binóculos assestados. Se não conseguissem apanhar Muhannad antes do banco de nevoeiro, a vantagem da velocidade de pouco lhes serviria. Ele seria capaz de as despistar. O mar era vasto. Poderia mudar a rota, distanciando-se deles várias milhas e não conseguiriam apanhá-lo porque não o conseguiriam ver. Se ele chegasse ao banco de nevoeiro. Se, ele ainda estivesse no mar alto. Poderia estar a contornar a costa de Inglaterra. Podia ter outro esconderijo, outro plano estabelecido há muito se o seu círculo de contrabando fosse descoberto. Baixou os binóculos. Passou o braço pela cara, para limpar, desta vez não o suor, mas os salpicos de água salgada. Pensou que era a primeira vez em tantos dias que sentia o fresco.
O agente Fogarty fora de gatas até à popa para onde a carabina deslizara. Estava a verificá-la, ajustando-a: tiro a tiro ou rajada. Barbara calculou que ele optasse pela rajada. Sabia que a arma tinha um alcance de cerca de cem metros. Sentiu a bílis na garganta ao pensar que ele a poderia disparar. A quase cem metros era provável que o agente atingisse Hadiyyah ao mesmo tempo que Muhannad. Embora fosse uma pessoa nada religiosa rezou aos céus para que um tiro bem acima da sua cabeça convencesse o assassino que a polícia andava mesmo à sua procura. Não imaginava que Muhannad se rendesse por qualquer outra razão.
Voltou ao seu posto de vigia. Toma atenção, disse para consigo. Mas não conseguia deixar de pensar na menina. As tranças saltitando-lhe alegremente nos ombros, a perna levantada como a de um flamingo para coçar a perna esquerda com o pezinho direito, torcendo o narizinho, concentrada a aprender os mistérios de um atendedor de chamadas, fazendo o ar mais alegre possível a uma festa de aniversário só com uma convidada, dançando de felicidade por ter descoberto um parente próximo, quando pensava que não tinha nenhum.
Muhannad tinha-lhe dito que se haviam de ver outra vez. Devia ter ficado louca de alegria, vendo que depressa ele voltara a aparecer.
Barbara engoliu. Tentou não pensar. Tinha de o encontrar. Tinha de vigiar. Tinha de...
- Ali! Raios, ali!
O barco parecia o risco de um lápis no horizonte, aproximando-se rapi damente do nevoeiro. Uma onda escondeu-o. Voltou a aparecer. Seguia uma rota idêntica à deles.
- Onde? - Gritou Emily
- Em frente - disse Barbara. - Vai. Vai. Ele dirige-se para o nevoeiro. Continuaram a toda a velocidade. Barbara continuava a observar o outro barco, gritando indicações, dizendo aquilo que via. Com certeza, Muhannad ainda não tinha reparado que estava a ser seguido. Mas não faltaria muito para que isso acontecesse. Não havia maneira de silenciar o rugido dos motores do Sea Wizzard. Logo que os ouvisse, saberia que a sua captura estava iminente e o desespero pesaria nos seus actos.
Fogarty veio para junto delas de carabina na mão. Barbara zangou-se com ele.
- Não tenciona usar isso, pois não?
- Espero bem que não - e ela apreciou a resposta.
O mar era vasto, um campo ondulante verde escuro.
Há muito tempo que tinham deixado para trás os barcos de recreio. Os seus companheiros continuavam a ser apenas os ferries distantes, a caminho da Holanda, da Alemanha e da Suécia.
- Ainda vamos bem? - gritou Emily. - Não é preciso alterar a rota? Barbara levantou os binóculos. Gemeu quando o balanço do barco lhe magoou as costelas.
- Para a esquerda - gritou em resposta. - Mais para a esquerda. E vá, despacha-te. O outro barco parecia estar a centímetros do nevoeiro.
Emily conduzia o Sea Wizzard na direcção do outro barco. Um momento depois gritou:
- Já o vejo! Já o vejo!
E Barbara baixou os binóculos enquanto se aproximavam. A cerca de cem metros, Muhannad pareceu dar-se conta que estava a ser seguido. Cortou uma onda e olhou para trás. Concentrou-se no volante e no nevoeiro, pois não poderia agora despistar a polícia.
Seguiu em frente aumentando a velocidade. O barco cortava as ondas. A água entrava pela proa cobrindo-a de espuma. O cabelo de Muhannad, agora livre do rabo-de-cavalo com que Barbara o vira desde que chegara, esvoaçava-lhe à volta da cabeça. E ao lado dele, tão chegados um ao outro que pareciam ser a mesma pessoa, estava Hadiyyah agarrada ao cinto do primo.
Muhannad não era parvo, pensou Barbara. Mantinha-a junto a si. O Sea Wizzard avançou, galgando as ondas, subindo e descendo. Quando Emily reduziu para trinta metros a distância entre os dois barcos, reduziu a velocidade e agarrou no auto falante.
- Páre Malik - disse-lhe. - Não pode ultrapassar-nos... - Ele continuou firmemente, sem reduzir a velocidade.
- Não seja idiota - disse Emily. - Páre porque foi apanhado. Não houve qualquer redução na velocidade.
- Diabos - disse Emily pondo de lado o auto falante. - Muito bem seu sacana. Seja como queres.
Abriu o coldre e avançou para o barco mais pequeno. Reduziu a distância para quinze metros.
- Malik - disse outra vez para o auto-falante. - Páre. É a polícia. Estamos armados. Já chega.
Como resposta ele deu mais velocidade ao motor. O barco deu um salto em frente. Ele girou o volante invertendo a marcha e afastando-se do nevoeiro. A súbita mudança de direcção fez com que Hadiyyah chocasse contra ele. Ele agarrou-a pela cintura e levantou-a no ar.
- Largue a miúda - gritou Emily.
E num horrível instante, Barbara apercebeu-se que era exactamente isso que ele tencionava fazer.
Teve apenas um segundo para conseguir ver o rosto de Hadiyyah marcado pelo terror - que uns momentos antes estivera resplandecente de alegria por causa do passeio de barco com o primo.
Depois Muhannad balançou-a na borda do barco e atirou-a ao mar.
- Grande merda! - Exclamou Barbara.
Muhannad girou o volante. Afastou o barco da prima e seguiu na direcção do nevoeiro. Emily aumentou a velocidade do motor do Sea Wizzard e num instante de compreensão que mais parecia ter durado uma eternidade, Barbara apercebeu-se de que Emily tencionava continuar a perseguição.
- Emily! - Gritou. - Por amor de Deus, a criança!
Barbara procurava aflitivamente nas ondas e encontrou-a. A cabeça e os braços agitando- se. Desapareceu, voltou à superfície.
- Chefe! - Gritou o agente Fogarty.
- Porra - disse Emily. - Vamos apanhá-lo
- Ela vai afogar-se!
- Não! Vamos apanhá-lo.
A criança desapareceu novamente. Voltou à superfície, agitando afliti vamente os braços.
- Valha-me Deus, Emily - Barbara agarrou-lhe o braço. - Para o barco! Hadiyyah vai afogar-se.
Emily sacudiu-a. Aumentou a velocidade.
- O que ele quer é que eu páre - gritou. - Foi por isso que o fez. Atira-lhe um colete de salvação.
Não podemos estamos longe demais. Vai afogar-se antes que lá chegue. Fogarty baixou a carabina. Tirou os sapatos. Estava na borda do barco quando Emily gritou.
- Fique onde está. Quero-o com a arma na mão.
- Mas chefe. .
- Não ouviu Mike. Dei-lhe uma ordem, merda.
- Emily, meu Deus - gritou Barbara. já estavam demasiado afastados da menina para que Fogarty conseguisse nadar até lá, antes dela se afogar. E mesmo que ele o tentasse e que ela também tentasse, não conseguiriam mais do que afogar-se juntos enquanto o inspector continuava a sua perseguição dentro do nevoeiro.
- Pára, Emily!
- Nem penses - gritou Emily. - Não paro por causa duma merda duma miúda paquistanesa.
Miúda paquistanesa, miúda paquistanesa. As palavras ecoaram no ar. Entretanto dentro de água, Hadiyyah desaparecia mais uma vez. Foi o suficiente. Barbara apanhou a carabina. Agarrou nela e apontou-a ao inspector.
- Volta a merda do barco, Emily - exclamou. - Já, ou mando-te para o inferno.
A mão de Emily dirigiu-se ao coldre que trazia. Os dedos tocaram no gatilho da arma.
- Não, chefe! - Gritou Fogarty.
E Barbara viu a sua vida, a sua carreira e o seu futuro passarem diante de si no segundo anterior a ter apertado o gatilho da carabina.
EMILY CAIU. BARBARA LARGOU A ARMA. Mas quando esperava ver sangue e intestinos espalhados sobre a camisola do inspector, viu apenas água que continuava a saltar de ambos os lados do barco. O tiro falhara.
Fogarty saltou para a frente. Ajudou o inspector a endireitar-se no assento. Gritou.
- Ela tem razão, chefe. Ela tem razão! E Barbara pegou nos controles do barco.
Não sabia quanto tempo teria passado. Pareciam várias eternidades. Voltou o barco com tanta velocidade que quase o virou. Enquanto Fogarty desarmava Emily, ela observava a água procurando aflitivamente a criança.
Merda, pensou. Por favor, meu Deus.
Mas logo a seguir viu-a a trinta metros a estibordo. Não esbracejava, mas estava a boiar. Um corpo a boiar.
- Mike! - Gritou. - Ali! - E deu mais força ao motor. Fogarty saltou assim que chegaram perto da menina. Barbara desligou o motor. Atirou-lhes os coletes e as almofadas dos assentos para a água onde flutuavam como gelatina. E depois rezou.
Não importava que a pele dela fosse escura, que a mãe a tivesse abandonado, que o pai a deixara viver oito anos fazendo-a acreditar que não tinham mais ninguém no mundo. O que interessava é o que era Hadiyyah: alegre, inocente e apaixonada pela vida.
Fogarty aproximou-se dela. Hadiyyah flutuava de barriga para baixo. Ele voltou-a, agarrou-a por baixo do queixo e começou a nadar de volta para o barco.
A visão de Barbara turvou-se-lhe. Voltou-se para Emily:
- Que diabo estavas tu a pensar? - Gritou. - Ela tem oito anos. Só oito anos!
Emily voltou-se de frente para Barbara. Levantou a mão como que para se defender das palavras. As mãos transformaram-se em punhos fechados. Mas os olhos semicerravam-se-lhe lentamente.
- Ela não é uma miúda paquistanesa - insistiu Barbara. - Não é um rosto sem nome. É um ser humano.
Fogarty chegava junto ao barco trazendo a criança.
- Cristo - murmurou Barbara enquanto puxava para dentro o corpinho frágil.
Enquanto Fogarty trepava para o barco, Barbara estendia a menina no chão. Mal conseguindo ela própria respirar, sem pensar se seria útil ou não, começou as manobras de ressuscitação. Passava rapidamente da respiração boca-a-boca para a massagem cardíaca e mantinha os olhos fixos no rosto de Hadiyyah. Mas as costelas doiam-lhe dos ferimentos que recebera. E cada vez que respirava sentia dores no peito. Gemeu. Tossiu. Carregou com a palma da mão no peito de Hadiyyah.
- Sai daqui - era a voz ríspida de Emily, que falava junto a si, mesmo ao ouvido.
- Não! - Barbara colocou a boca na de Hadiyyah.
- Pára sargento. Sai daí. Eu trato disso.
Barbara ignorou-a. E Fogarty muito ofegante do esforço que realizara, pegou-lhe no braço.
- Deixe o chefe, sargento - disse. - Ela sabe. Está tudo bem.
Assim, Barbara permitiu que Emily tratasse da criança. E Emily trabalhou da mesma maneira com que Emily Barlow sempre trabalhara: com eficiência, com a certeza de que a tarefa teria de ser cumprida, não permitindo que ninguém a impedisse de a cumprir.
O peito de Hadiyyah soltou um suspiro monumental. Começou a tossir. Emily virou-a de lado e o corpo contorceu-se-lhe, antes de começar a expelir água salgada, bílis e vomitado no chão do Hawk 31, o barco mais precioso de Charlie Spencer.
Hadiyyah pestanejou. Depois ficou com ar confuso. Em seguida pareceu aperceber-se de que três adultos estavam inclinados sobre ela. Perplexa olhou primeiro para Emily, depois para Fogarty e descobriu Barbara. Sorriu beatificamente.
- O meu estômago anda para cima e para baixo - disse.
A Lua já se erguera quando finalmente chegaram à marina de Balford. Mas havia luz por todos os lados. E estava também cheia de espectadores. Assim que o Sea Wizzard deu a volta no ponto em que o Twizzle se encontrava com o canal de Balford, Barbara viu a multidão. Amontoavam-se no ancoradouro do Hawk 31, chefiados por um homem careca cuja cabeça brilhava sob as imensas luzes, que não eram naturais nem necessárias no pontão.
Emily vinha à frente. Inclinou-se à proa do Sea Wizzard para ver melhor.
- Espectacular! - Exclamou num tom de desprezo. No assento de trás do barco, Barbara trazia Hadiyyah encostada a si, a criança envolvida num cobertor bafiento.
- Que se passa? - Perguntou.
- Ferguson - disse Emily. - Telefonou para o raio dos repórteres. Os media estavam representados por fotógrafos com projectores, repórteres trazendo blocos e gravadores e uma carrinha que procurava munições para o noticiário das dez na ITV. Juntamente com o superintendente Ferguson aproximaram-se e espalharam-se pelos pontões de ambos os lados do Sea Wizzard enquanto Emily desligava o motor e deixava que o movimento do barco os levasse para terra.
As vozes começaram a gritar. Os flashes acendiam-se. Ferguson gritava: Onde está ele? Raios o partam!" Charlie Spencer exclamava: Os meus assentos! O que fizeram com os assentos do meu barco? Dez jornalistas berravam Pode dizer- nos umas palavras, por favor?, e toda a gente olhava para o barco à procura do que seria óbvio, mas que infelizmente não estava lá. A celebridade que tinham prometido trazer acorrentada, com a cabeça baixa e arrependida, mesmo a tempo de evitar um desastre político. Só que não o tinham trazido. Só viram uma menina a tremer ao colo de Barbara até que um homem magro e escuro, com olhos negros intensos, empurrou três guardas e dois jovens mirones.
Hadiyyah viu-o:
- Pai! - Gritou.
Azhar pegou-lhe, arrancando-a aos braços de Barbara. Abraçou-a, como se levasse a sua última esperança de salvação, o que provavelmente seria assim mesmo.
- Muito obrigado - disse fervorosamente. - Barbara, muito obrigado.
A agente Belinda Warner encarregou-se de que houvesse café para toda a gente nas horas seguintes. Havia muito que fazer.
Primeiro, foi preciso tratar do superintendente Ferguson e Emily fê-lo à porta fechada. Aos ouvidos de Barbara a reunião parecia uma coisa entre um combate de ursos e um colóquio maldoso a respeito das mulheres nas forças políciais. Parecia consistir em acusações feitas em voz alta, repreensões ofensivas e imprecações furiosas. Tratava-se, na sua maior parte, de exigências do superintendente, que queria saber o que havia de relatar aos seus superiores acerca deste seu sarilho monumental, Barlow, e das respostas de Emily que dizia estar-se lixando para aquilo que ele tinha a relatar, desde que o fosse fazer para bem longe do gabinete dela e a deixasse voltar ao trabalho para apanhar Malik. A reunião terminou com Ferguson a gritar que ela bem se poderia preparar para um processo disciplinar e Emily a berrar que ele fosse preparando a defesa do assédio, porque era disso que ela o ia acusar, se ele não a deixasse continuar a trabalhar.
Pouco à vontade, à espera com o resto da equipa dentro da sala de reuniões, ao lado do gabinete de Emily, Barbara apercebeu-se de que a carreira do inspector estava agora na sua mão. E que o seu destino profissional estava afinal nas mãos de Emily.
Nenhuma delas dissera uma palavra a respeito daqueles momentos anteriores a Barbara ter tomado o controle do Sea Wizzard. Do mesmo modo, o agente Fogarty mantivera-se mudo a respeito do assunto. Recolhera as armas quando voltaram à marina. Guardou-as no carro e seguiu viagem de volta para a patrulha, ou fosse lá onde estivesse, antes de ter sido enviado para a marina. Acenou às duas com a cabeça, dizendo à laia de despedida:
- Sargento, Chefe, bom trabalho! - E partiu deixando Barbara com a impressão de que o que se viesse a saber sobre o que acontecera no mar não seria por ele.
Barbara não sabia o que havia de fazer, porque nem se atrevia a pensar naquilo que soubera, a seu respeito e a respeito de Emily Barlow, nos poucos dias que passara em Balford-le-Nez.
- Temos dezenas de asiáticos... a uivar como lobisomens.
- Um desses casamentos já prontos, arranjados pela mamã e pelo papá.
- São asiáticos, não vão querer ficar mal.
A realidade estivera sempre diante de si, mas na sua cega admiração pelo inspector, Barbara não lhe dera importância. Agora sabia que a sua ética profissional lhe exigiria que relatasse o que, sem querer, desde o princípio vira em Emily.
Só que a alegação de Barbara faria com que o inspector lhe fizesse também acusações, mais graves ainda. Começando por insubordinação e acabando numa tentativa de homicídio. Uma palavra de Emily que chegasse a Londres e a carreira de Barbara no Departamento Criminal acabara. Uma pessoa não aponta nem descarrega uma arma contra um oficial superior, pensando que não seria dada importância a esse momento de insanidade.
Porém, quando Emily se voltara a reunir com a equipa, o seu rosto não revelava quais eram as suas intenções. Entrou na sala, com ar calmo e a maneira como deu as ordens à equipa mostrou a Barbara que estava preocupada com o seu trabalho e não em se vingar.
Era preciso avisar a Interpol. O departamento criminal de Balford con tactaria com eles através da Polícia Metropolitana. O pedido era bastante simples. Não era preciso nenhuma investigação da parte do Bundeskriminalamt da Alemanha. Só era preciso fazer uma prisão; era o mais simples que havia, quando mais do que um país estava envolvido.
Mas a Interpol exigiria que os relatórios fossem mandados para a Alemanha. E Emily destacou vários membros da equipa para os começarem a fazer. Outros iriam tratar dos processos de extradição. Outros ainda teriam de recolher material para ser usado na manhã seguinte pelo gabinete de imprensa. E outros iriam recolher dados - relatórios de actividades, transcrições de interrogatórios, material forense - para serem entregues aos procuradores da justiça, logo que a polícia apanhasse Muhannad Malik. Nesta altura, empurrando mais um carrinho com café, apareceu Belinda Warner, para informar Emily que Mr. Azhar pedia para ser recebido por ela e pelo sargento.
Azhar desaparecera com a filha logo que a tivera nos braços. Abrira caminho por entre a multidão que se juntara no ancoradouro, não respondendo às perguntas que lhe iam sendo feitas, enfrentando estoicamente os flashes, que lhe tiravam fotografias para os jornais do dia seguinte. Transportara Hadiyyah até ao carro e fora-se embora deixando que a polícia recolhesse os cacos resultantes dos sarilhos que Muhannad arranjara.
- Levem-no para o meu gabinete - disse Emily. - E finalmente olhou para Barbara. - O sargento Havers e eu já vamos ter com ele.
O sargento Havers e eu. Barbara devolveu o olhar a Emily. Tentou ler a intenção das palavras do inspector. Mas o olhar de Emily era equilibrado, nada deixava entrever e ela voltou-se, saindo da sala de reuniões. Barbara foi atrás dela à espera de um sinal.
- Como está ela? - Perguntou Barbara, assim que Azhar entrou no gabinete de Emily.
- Está bem. - disse ele. - Mr. Treves foi simpático e tinha uma sopa à espera. Comeu, tomou banho e meti-a na cama. Foi vista pelo médico.
Mrs. Porter fica com ela até eu voltar. Levou a girafa para a cama, Barbara.
A que ficou estragada. Coitadinha disse ela. Não tem culpa de ter sido
pisada, pois não? Não sabe que está em mau estado.
- E quem há-de saber? - Replicou Barbara.
Azhar olhou-a por um momento e depois acenou lentamente com a cabeça, antes de se virar para Emily.
- Inspector, não sei o que Barbara lhe contou a respeito do nosso conhecimento. Mas receio que possa ter percebido mal o envolvimento dela com a minha família. Somos vizinhos em Londres. De facto ela tem sido muito boa para a minha filha na ausência... - hesitou, baixou os olhos e voltou a olhar para Emily. -... na ausência da mãe. E são essas as nossas relações. Ela não tinha ideia de que eu vinha para aqui ajudar a minha família num assunto de polícia. Igualmente, desconhecia também que a minha experiência não se limita ao meu trabalho na universidade, pois nunca lho tinha dito. Por isso, quando lhe pediu para que a ajudasse durante as férias, ela estava completamente inocente de qualquer conhecimento que pudesse ter...
- Eu o quê? - Perguntou Emily. - Eu fiz o quê?
- Não lhe telefonou? Não lhe pediu ajuda?
Barbara fechou os olhos por uns momentos. Bonito sarilho.
- Azhar - disse. - Não foi isso que aconteceu. Eu menti aos dois sobre a maneira como vim parar a Balford. Eu vim por vossa causa. – Ele tinha um ar tão perplexo, que Barbara tinha vontade de se meter pelo chão abaixo, sem mais explicações. Mas lá continuou. - Eu não queria que se metesse em complicações. Pensei que se cá estivesse, podia poupar-vos aborrecimentos. A si e a Hadiyyah. Obviamente falhei. Pelo menos no que diz respeito a Hadiyyah. Estraguei tudo.
- Não - disse Emily - Foi o sargento que nos levou para o mar. E era aí que estava a verdade.
Surpreendida, Barbara lançou-lhe um olhar de agradecimento, sentindo-se por fim aliviada. Não eram precisas justificações. O que se passara entre elas no mar poderia ser esquecido. As palavras de Emily disseram a Barbara que o inspector aprendera com a experiência e não iria ser feita qualquer participação a um oficial superior.
Entre elas houve um momento de silêncio. Ouviram-se os sons da equipa do inspector que organizava as informações, preparada para trabalhar durante a noite. Mas havia um certo tom de alívio no seu trabalho, o som de homens e mulheres que sabiam estar a terminar um trabalho difícil.
Emily voltou-se para Azhar.
- Até termos Malik para ser interrogado, apenas podemos imaginar os pormenores do que aconteceu. Podia ajudar-nos, Mr. Azhar. Parece-me que Querashi descobriu por acaso a rede de imigração ilegal, quando encontrou Muhannad por acaso em Parkeston na noite em que ele próprio tinha estado no Castle Hotel. Quis entrar na história. Ameaçou falar se não o incluíssem para ganhar aquele dinheiro. Muhannad protelou o assunto. Querashi agarrou em Kumhar e conseguiu enganá-lo, dizendo que tinha um plano para acabar com aquele esquema. Instalou Kumhar em Clacton, como uma espécie de refém, para obrigar os Malik a pagar. Mas as coisas não funcionaram como estava à espera. E mataram-no.
Azhar abanou a cabeça.
- Não pode ser. - Emily zangou-se.
Voltamos ao normal, pensou Barbara.
- Depois daquilo que Kumhar disse a respeito de Muhannad, de certeza que não pensa que Malik não esteja envolvido nesse homicídio. Esse homem atirou a sua filha ao mar.
- Eu não discordo do envolvimento do meu primo. Está é enganada a respeito de Mr. Querashi.
- Como assim? - Perguntou Emily franzindo as sobrancelhas.
- Não levando em conta a sua religião. - Azhar apontou para uma das cadeiras do gabinete de Emily. - Posso? - Perguntou. - Estou muito mais cansado do que pensava.
Emily anuiu. Sentaram-se todos. Mais uma vez Barbara ansiava por um cigarro e pensou que Azhar também pois os seus dedos dirigiam-se ao bolso de cima da camisa como se esperasse encontrar um maço lá dentro. Teriam de se contentar com um pacote de pastilhas de fruta extraído do fundo do saco de Barbara. Ofereceu-lhe um. Ele aceitou com um gesto de agradecimento.
- Havia um texto marcado no Corão de Mr. Querashi - explicou Azhar. - Era sobre lutar pelos fracos entre.
- A passagem que Siddiqi traduziu - interrompeu Emily. Emil continuou calmamente. - Conforme o sargento Havers poderia confirmar, Mr. Querashi fizera vários telefonemas para o Paquistão a partir do Burnt House Hotel nos dias anteriores à sua morte. Um fora para um mulla, um homem santo muçulmano a quem solicitou a definição da palavra fraco.
- O que têm os fracos a ver com isto? - perguntou Emily. Fracos poderiam ser desesperados, disse-lhe Azhar. Poderiam ser os que não tinham força, não fossem eficientes. Era uma palavra que poderia descrever uma alma sozinha acabada de chegar a este país, encurralada numa escravidão que parecia não ter fim. Emily acenou com a cabeça cautelosa. Mas o seu ar de dúvida mostrava que teria ainda de ser convencida pelos argumentos de Azhar.
O outro telefonema fora para um mufti, continuou Azhar, que era um entendido em leis. Falando com este homem procurou a resposta à pergunta: Poderia um Muçulmano culpado de um grave pecado, continuar muçulmano?
Emily. O sargento Havers já me disse tudo isso, Mr. Azhar - observou
- Então deve saber que um muçulmano não pode viver num desafio constante aos preceitos do Islão. E era isso que Muhannad fazia. E era com isso que Querashi queria acabar.
- Mas não estaria Querashi a fazer o mesmo? - Perguntou Barbara.
- E a sua homossexualidade? Disse-me que era proibida. Não poderia ter telefonado ao mufti para falar da sua alma e não da de Muhannad?
- Poderia ter feito tudo isso - reconheceu Azhar. - Mas se levarmos em conta tudo o resto que fez, não parece provável.
- A acreditar em Hegarty - disse Emily a Barbara - Querashi tencionava manter uma vida dupla, mesmo depois de casado, com Islão ou sem ele. Por isso não se deveria preocupar muito com a sua alma.
- A sexualidade tem muita força - admitiu Azhar. - Por vezes tem mais força do que o dever religioso. Estamos dispostos a arriscar tudo por ela. A alma. A vida. tudo o que temos e tudo o que somos.
Barbara olhou-o nos olhos. Angela Weston, pensou. Como teria sido essa decisão desesperada de fugir, enfrentando tudo o que conhecia, tudo aquilo que acreditava e tinha anteriormente afirmado, só para possuir o inatingível?
- O meu tio - continuou Azhar - é um homem devoto e não poderia saber de nada a respeito do esquema de Muhannad. Suponho que uma busca completa à fábrica e uma investigação a todos os documentos dos seus trabalhadores asiáticos, vão provar isso.
- Não me está a dizer que Muhannad estava nisto sozinho - disse Emily. Havia aqui outros sócios, disso não há dúvidas. Ouviu o que Kumhar disse: havia três homens. Um alemão e dois asiáticos, disse ele. E poderá haver muitos mais.
- Mas o meu tio não. Muhannad poderá ter sócios na Alemanha e sem dúvida outros aqui. Não questiono as palavras de Mr. Kumhar. Este esquema está em funcionamento há vários anos.
- Pode ter planeado tudo na universidade, Em - observou Barbara.
- Com Rakin Khan - reconheceu Emily. - O senhor álibi. Estiveram juntos na universidade.
- Aposto que um reconhecimento feito ao passado de Klaus Reuchlein vai mostrar que há uma história comum aos três - acrescentou Barbara.
Azhar encolheu os ombros, aceitando esta teoria.
- Seja qual for a origem do esquema, Haytham Querashi descobriu-a. - Com Hegarty, como este último nos contou - observou Barbara, na noite em que estiveram no Castle Hotel.
- O dever de Haytham como muçulmano seria pôr fim a tudo aquilo - explicou Azhar. - Afirmou a Muhannad que a sua alma imortal estava em perigo. E estava em perigo pela pior razão possível: ganância por dinheiro.
- Então, já agora, e a alma imortal de Querashi? - Insistiu Barbara. Azhar olhou directamente para ela.
- Penso que ele já teria tratado desse problema, justificando o seu comportamento de um ou de outro modo. É fácil para nós desculparmos o desejo físico. Chamamos-lhe amor, chamamos-lhe a busca por uma alma gémea, chamamos-lhe uma coisa mais forte do que nós. Mentimos para conseguir aquilo que queremos ter. E chamamos ao nosso comportamento a resposta às exigências do coração, predestinadas por um Deus que estimula as necessidades dentro de nós que têm obrigatoriamente de ser satisfeitas. Levantou as mãos com as palmas para cima, num gesto de aceitação. Ninguém está imune a esta forma de engano. Mas Haytham consideraria maior o pecado de Muhannad, o seu só o afectava a ele. As pessoas podem fazer o bem numa determinada área das suas vidas, enquanto praticam o mal
noutra. Há assassinos que adoram a mãe; violadores que estimam os cães; terroristas que põem bombas em lojas e que depois vão para casa embalar os filhos. Haytham Querashi poderia ter contribuído para melhorar as condições de vida das pessoas escravizadas por Muhannad e mesmo assim viver em pecado numa determinada área da sua vida, que ele punha de lado e desculpava. De facto, Muhannad fazia isso mesmo, organizando a Jum'a por um lado e um esquema de gansters por outro.
- A Juma dava-lhe uma boa imagem - argumentou Emily. - Ele tinha de pedir uma investigação à morte de Querashi por causa da Jum'a.
Senão as pessoas desconfiavam.
- Mas se Querashi quisesse acabar com o esquema de Muhannad - disse Barbara - porque não o denunciou simplesmente, não o entregou e não se queixou à polícia? Poderia ter feito isso tudo anonimamente. Teria o mesmo objectivo.
- Mas também teria servido para destruir Muhannad. Este iria para a prisão. Seria banido da família. E suponho que Haytham não queria isso. Preferia um compromisso, tendo Fahd Kumhar como garantia. Se Muhannad tivesse acabado com a operação, nada mais se diria sobre o assunto. Senão, Fahad Kumhar apareceria e denunciaria a rede de imigração ilegal entre Carachi, Hamburgo e o porto de Parkeston. Suponho que era esse o plano. E custou-lhe a vida.
Motivo, meio e oportunidade. Tinham tudo. Só não tinham o assassino. Azhar levantou-se. Disse que iria voltar para o Burnt House. Hadiyyah estava a dormir sossegada quando de lá saíra, mas não queria que acordasse sem encontrar o pai a seu lado.
Acenou às duas. Dirigiu-se à porta do gabinete. Depois voltou-se hesitante.
- Acabei por me esquecer da razão porque vim aqui - disse, como que pedindo desculpas. - inspector - disse para Emily - só mais uma coisa.
Emily olhou-o com cautela. Barbara viu um músculo do seu maxilar em movimento.
- Sim? - Disse ela.
- Queria agradecer. Poderia ter continuado. Poderia ter capturado Muhannad. Muito obrigado por ter parado e salvo a minha filha.
Emily acenou afirmativamente muito direita. Desviou os olhos dele e dirigiu-os na direcção dos armários encostados à parede. Ele saiu do gabinete.
Emily parecia muito abalada. O incidente no mar esgotara-as a ambas,
pensou Barbara. As palavras de gratidão pronunciadas por Azhar e tão completamente descabidas, apenas conseguiram juntar mais um peso à consciência do inspector, que já carregava outros. O seu carácter revelara-se no mar do Norte. Essa exposição ao seu lado pior e às suas tendências básicas deveria ter sido dolorosa.
- Crescemos todos neste serviço, sargento - dissera-lhe o inspector Lynley mais do que uma vez. - E se não o fizermos, o melhor é entregar o crachá e desistir.
- Em - disse Barbara para aliviar o seu peso. - Todos fazemos disparates de vez em quando. Mas os nossos erros...
- O que aconteceu lá fora não foi um erro - disse Emily calmamente.
- Mas tu não tiveste intenções de a deixar afogar. Nem pensaste nisso. E disseste-nos que lhe atirássemos o colete de salvação. Só não percebeste que não chegaria a ela. Foi o que aconteceu. Foi só isso que aconteceu.
Emily deixou de examinar os armários. Deitou a Barbara um olhar frio.
- Quem é o seu oficial superior, sargento?
- O meu...? O quê? Quem? És tu, Em.
- Não me refiro aqui. Refiro-me a Londres. Como se chama ele?
- Inspector Lynley.
- Não é Lynley. Acima dele. Quem é?
- O superintendente Webberly.
Emily pegou num lápis.
- Diz-me como se escreve.
Barbara sentiu um arrepio. Soletrou o nome de Webberly e ficou a ver o inspector escrevê-lo.
- Em - disse. - Que se passa?
- Disciplina, sargento. Ou melhor dizendo, o que se passa é que apontou uma arma ao seu superior e tentou obstruir uma investigação. É responsável por um assassino ter escapado à justiça e tenciono fazê-la pagar por tudo isso.
Barbara estava espantada.
- Mas Emily, tu disseste... - as palavras morreram-lhe na boca. O que tinha afinal dito o inspector? Foi o sargento que nos levou para o mar. Era aí que estava a verdade. E o inspector vivia essa verdade. Barbara não conseguira, até àquela altura perceber qual era.
- Vais denunciar-me - disse Barbara com voz cava. - Meu Deus, Emily vais denunciar-me.
- De facto vou - Emily continuou a escrever, demonstração viva das qualidades que Barbara tanto admirava. Era competente, eficiente e completamente inflexível. Conseguira ser promovida tão depressa no departamento criminal, pela sua força de vontade em conseguir o poder que fazia parte da sua posição. Não importavam as circunstâncias nem o seu preço. Barbara gostaria de saber o que a teria levado a concluir que o seu caso seria a única excepção das regras de actuação de Emily no seu posto?
Queria discutir com ela, mas percebeu que não conseguia. E a expressão de aço de Emily disse-lhe que mesmo que o conseguisse não valeria a pena.
- És cá uma coisa - disse Barbara finalmente. - Faz o que tens a fazer, Emily.
- Podes ter a certeza que faço.
- Chefe? - À porta do gabinete do inspector estava um agente. Tinha uma mensagem telefónica na mão e uma expressão perturbada.
- Que se passa? - Perguntou Emily. O seu olhar pousou sobre o papel que ele tinha na mão. - Raios, Doug, se esse maldito Ferguson...
- Não se trata de Ferguson - disse Doug. - Recebemos uma chamada de Colchester. Parece que foi cerca das oito horas, mas a mensagem ficou juntamente com as outras nas comunicações. Só a recebi há dez minutos.
- De que se trata?
- Já falei para lá, para ver o que era. Estive em Colchester no outro dia, lembra-se? Por causa do álibi de Malik.
- Despache-se, agente.
Ele pestanejou ao ouvir aquele tom de voz.
- Bem, hoje voltei lá quando estávamos a tentar encontrá-lo. Barbara sentiu o entusiasmo a aumentar. Nas feições do agente lia-se a palavra cautela, como se esperasse ser morto depois de ler o recado.
- Nem toda a gente estava em casa nas vizinhanças de Rakin Kahn quando eu lá estive nas duas ocasiões, por isso deixei o meu cartão. A chamada é a esse respeito.
- Doug, não estou interessada nas minúcias das suas actividades diárias. Vá direito ao assunto ou então saia do meu gabinete.
Doug aclarou a garganta.
- Ele estava lá, chefe. Malik estava lá.
- De que está a falar? Não podia lá estar, eu vi-o no barco.
- Não era hoje. Na sexta-feira à noite Malik estava em Colchester. Tal como Rakin Khan afirmou logo ao princípio.
- O quê? - Emily atirou com o lápis. - Tretas. Perdeu a cabeça?
- Isto - mais uma vez indicou o papel - é de um fulano chamado Fred Medosh. É viajante, vendedor. Tem um estúdio no prédio mesmo em frente da casa de Khan. Não estava em casa da primeira vez que eu lá fui e hoje, quando eu andava a tentar localizar Malik, também não. - O agente calou-se e mudou a posição dos pés. - Mas na sexta-feira à noite, estava em casa, chefe. E viu Malik. Em carne e osso. Às dez e um quarto. Dentro da casa de Khan, com mais outro tipo. Louro, óculos redondos, com os ombros um pouco curvados.
- Reuchlein - murmurou Barbara. - Que merda! - Percebeu que Emily empalidecia.
- Não é possível - murmurou.
Doug tinha um ar infeliz.
- O estúdio dele dá mesmo para a janela da casa de Khan. A janela da casa de jantar, chefe. E nessa noite estava calor, por isso a janela estava aberta. Malik estava lá. Medosh descreveu-o, rabo-de-cavalo e tudo. Estava a tentar adormecer e eles faziam muito barulho. Ele foi ver o que se passava. Foi nessa altura que o viu. Eu telefonei para o Departamento Criminal de Colchester. Vão mostrar-lhe uma fotografia de Malik, só para ter a certeza. Mas pensei que quisesse saber primeiro. Antes que a imprensa descubra... já sabe como é.
Emily afastou-se da secretária.
- É impossível - disse. - Não podia estar... como será que fez?
Barbara sabia no que ela estava apensar. Fora primeira coisa que também a perturbara. Como poderia Muhannad Malik ter estado em dois sítios ao mesmo tempo? Mas a resposta era óbvia: não podia.
- Não - insistiu Emily. Doug desaparecera do gabinete. Emily levantara-se da cadeira e dirigira-se à janela. Abanou a cabeça.
- Raios - disse.
E Barbara pôs-se a pensar. E pensou em tudo o que ouvira: de Theo Shaw, de Rachel Winfield, de Sahlah Malik, de Ian Armstrong, de Trevor Ruddock. Pensou em tudo o que sabiam: que Sahlah estava grávida, que Trevor fora despedido, que Gerry DeVitt estava a trabalhar na casa de Querashi, que Cliff Hegarty fora amante da vítima. Pensou nos álibis, em quem os tinha e em quem não os tinha, naquilo que cada um deles significava e onde cada um deles encaixava na grande estrutura do caso. Pensou...
- Deus do céu! - Levantou-se de repente, puxando ao mesmo tempo o saco que trazia ao ombro mas ignorando a dor aguda que sentiu no peito. Estava demasiado concentrada na súbita conclusão, horrorosa mas evidente a que tinha chegado. - Oh, meu Deus. Claro, mas claro.
Emily voltou-se da janela.
- O quê?
- Não foi ele. Ele fazia contrabando de imigrantes, mas não fez isto.
Em! Não vês...
- Não brinques comigo - disse Emily bruscamente. - Se estás a pensar escapar a um processo disciplinar atribuindo o crime a outra pessoa
que não seja Malik...
- Vai-te lixar, Barlow - disse Barbara impaciente. - Queres ou não o verdadeiro assassino?
- Está a passar das marcas, sargento.
- Óptimo. Qual é a novidade? Junta isso à queixa. Mas se queres encerrar o caso, vem comigo.
Não havia necessidade de pressas, por isso não utilizaram nem a sirene nem as luzes de emergência. Dirigiram-se a Martello Road e daí até à praceta, onde a casa de Emily estava às escuras; da praceta foram até ao Passeio Superior e deram a volta à estação de caminho-de-ferro. Entretanto Barbara explicava. E Emily resistia. E Emily discutia. E Emily apresentava razões pelas quais Barbara poderia estar a tirar uma conclusão precipitada.
Mas no espírito de Barbara, estava tudo claro e sempre estivera: o motivo, os meios e a oportunidade. Só não tinha conseguido vê-los, ofuscada pelos seus próprios preconceitos a respeito das mulheres que se submetiam a casamentos arranjados. Teriam de ser dóceis, pensara. Não teriam inteligência própria. Entregariam a sua vontade primeiro ao pai, depois ao marido, aos irmãos mais velhos, se os tivessem, e finalmente, seriam incapazes de agir mesmo que fosse preciso.
- É o que concluímos, quando pensamos nesse tipo de casamento, não é? - Perguntou Barbara.
Emily escutava com os lábios apertados. Estavam em Woodberry Way e passaram por uma fila de Fiestas e Carltons que estavam estacionados em frente da casa de um dos mais antigos bairros da cidade.
Barbara continuou. Como a cultura ocidental era tão diferente da oriental, afirmou, os ocidentais vêem as mulheres orientais como os ramos dos salgueiros, vergados a qualquer vento que sopre sobre as árvores. Mas o que os ocidentais nunca têm em conta é o facto de o ramo de salgueiro ser formado - de facto depois de uma completa evolução através dos tempos para resistir. O vento que sopre; as rajadas que assobiem. O ramo agita-se, mas fica agarrado à árvore.
- Nós olhámos para o que era óbvio - disse Barbara. - Porque o óbvio era tudo o que tínhamos, não é verdade? Procurámos os ininnigos de Querashi. Procurámos pessoas com razões de queixa dele. E encontrámo-las. Trevor Ruddock que fora despedido; Theo Shaw, que andava metido com Sahlah. Ian Armstrong que retomou o seu emprego depois da morte de Querashi. Muhannad Malik, que tinha tudo a perder se Querashi contasse o que sabia. Considerámos tudo. Um amante homossexual, um marido ciumento. Um chantagista. Bastava dizer e lá íamos nós examinar tudo ao microscópio. O que nunca pensámos foi o que significava para o esquema de vida mais geral de uma pessoa, o facto de Querashi ter desaparecido. Vimos o seu assassinato como se só tivesse a ver com ele. Ele meteu-se no caminho de alguém. Ele sabia uma coisa que não devia. Ele despediu uma pessoa. Por isso ele tinha de morrer. O que nunca vimos foi que este crime podia não ter a ver com ele. Nunca pensámos que pudesse ser o meio para um fim que nada tem a ver com o que nós, ocidentais, malditos ocidentais, podemos compreender.
O inspector abanou a cabeça com ar teimoso.
- Estás a deitar fumo para o ar. Isso não é assim.
Conduzia o automóvel por entre um bairro de classe média que fazia fronteira entre a antiga Balford e a nova, entre os edifícios eduardinos quase em ruínas que Agatha Shaw esperara restituir à sua antiga glória, e ás casas caras, elegantes, rodeadas de árvores que tinham sido construídas em estilos arquitectónicos a imitar os do passado. Havia falsas mansões Tudor, pavilhões de caça georgianos, casas de Verão vitorianas e fachadas clássicas.
- Não - respondeu Barbara bruscamente. Olha só para nós. Vê a nossa maneira de pensar. Nunca lhe pedimos um álibi. Nem pedimos a nenhuma delas. E porquê? Porque são mulheres asiáticas. Porque aos nossos olhos permitem que os homens as dominem, decidam o seu destino e determinem o seu futuro. Cobrem os seus corpos de boa vontade. Cozinham e limpam a casa. Curvam-se e passam dificuldades. Nunca se queixam. Não têm, pensamos nós, vida própria. Não têm, pensamos nós, inteligência própria. Mas por amor de Deus, Emily, e se nos enganámos?
Emily voltou à direita na Segunda Avenida. Barbara indicou-lhe onde era a casa. As luzes do rés-do-chão estavam acesas. Nesta altura já a família saberia da fuga de Malik. se não tivessem sido avisados por um dos vereadores da Câmara, sabê-lo-iam certamente pelos meios de comunicação, que já teriam telefonado a fazer perguntas, desejosos de conhecer a reacção dos Malik à fuga de Muhannad.
Emily estacionou, observou a casa por uns momentos, sem nada dizer. Depois olhou para Barbára.
- Não temos a mínima prova disto. Nem nada. Exactamente o que é que te propões fazer?
Era esta certamente a questão. Barbara tinha em consideração todas as repercussões. Principalmente, examinou a questão sabendo que o inspector tencionava inculpá-la da fuga de Muhannad. Tinha duas opções naquela situação. Uma era deixar que Emily se atirasse de cabeça ou que se escondesse por detrás das suas preferências ignóbeis, para além daquilo que realmente queria fazer. Poderia vingar-se ou assumir as responsabilidades; podia pagar ao inspector na mesma moeda ou podia dar-lhe o golpe para salvar a sua carreira. Quem escolhia era ela.
Claro que preferia a primeira hipótese. Desejava-a ardentemente. Mas os anos passados com o inspector Lynley, em Londres, tinham-lhe mostrado que uma má acção se podia levar a cabo, ficando, no fim, impune aquele que a praticava.
- Pode aprender muito, trabalhando com Lynley - dissera-lhe uma vez o superintendente Webberly.
As palavras nunca tinham sido mais verdadeiras do que neste momento e deram-lhe a resposta à pergunta de Emily:
- Fazemos exactamente o que acabaste de dizer, Emily. Vamos espalhar fumo. Até que a raposa saia da toca.
Akram Malik abriu a porta. Parecia muitos anos mais velho do que quando o tinham visto na fábrica. Olhou para Barbara e depois para Emily. Disse com voz átona, mas com uma dor tão grande a acentuar-lhe as palavras, que o tom era completamente desnecessário.
- Por favor, não me diga inspector Barlow. Ele não pode estar mais morto do que o que já está para mim.
Barbara sentiu uma onda de compaixão pelo homem.
- O seu filho não morreu, Mr. Malik - Respondeu Emily. - Tanto quanto sei vai a caminho da Alemanha. Tentaremos prendê-lo. Vamos pedir a extradição, se for possível. Vamos julgá-lo e terá de ir para a cadeia. Mas não estamos aqui para falar de Muhannad.
- Então... - Passou a mão pelo rosto e observou o suor que veio agarrado à palma. A noite estava tão quente como estivera o dia. E não havia uma janela aberta em casa.
- Podemos entrar? - Perguntou Barbara. - Gostaríamos de falar com a família. Com todos.
Ele afastou-se da porta. Elas seguiram-no até à sala. A mulher estava ali, movimentando inutilmente os dedos num bastidor onde estava preso um bordado de difícil padrão, com linhas e curvas, pontos e sinais, que estava a fazer em tecido dourado. Barbara levou algum tempo a perceber que eram palavras árabes que ela estava a bordar, semelhantes às que já tinha na parede.
Sahlah também lá estava. Tinha um álbum de fotografias aberto sobre uma mesa com tampo de vidro e retirava dele fotografias. À volta dela, no belo tapete persa estavam as caras do irmão, escrupulosamente recortadas das várias fotografias, à medida que o seu lugar na família era erradicado. Ao ver isto, Barbara sentiu arrepios.
Dirigiu-se à lareira onde antes tinha visto fotografias de Muhannad, da mulher e dos filhos. O retrato dele e da mulher ainda lá estava; ainda não fora vítima da tesoura de Sahlah. Barbara apanhou-o e viu aquilo em que não reparara antes: o sítio onde o casal fora fotografado. Estavam na marina de Balford, com um cesto de piquenique aos pés e atrás deles alinhavam-se os zodíacos de Charlie Spencer.
- Yumn está em casa, não é verdade Mr. Malik? - disse. - Importava-se de a ir buscar? Gostaríamos de falar com todos ao mesmo tempo.
O marido e a mulher olharam um para o outro, apreensivos, como se o pedido significasse que mais horrores se iam seguir. Sahlah falou, mas dirigiu as palavras ao pai e não a Barbara.
- Quer que eu a vá buscar, Abhy-jahn? - Mantinha a tesoura direita entre os seios e parecia a personificação da paciência, à espera que o pai falasse com ela.
- Peço desculpas - disse Akram a Barbara - mas não vejo necessidade de Yumn ter de enfrentar mais nada esta noite. Agora é viúva e os seus filhos não têm pai. O seu mundo ruiu. Foi para a cama. Por isso, se têm alguma coisa para comunicar à minha nora, tenho de vos pedir que mo digam primeiro, para que eu possa julgar se ela está preparada para a ouvir.
- Não posso fazer isso - disse Barbara. - Vai ter de a ir buscar ou o inspector Barlow e eu temos de ficar aqui até que ela esteja disposta a falar connosco. Lamento - acrescentou, porque sentia realmente pena da situação dele. Era óbvio que tinha sido apanhado no meio de um jogo de forças, cujos adversários eram o dever e a vontade. O seu dever era proteger as mulheres da sua família, mas adoptara a vontade inglesa e tinha de fazer o que era preciso: aceder a um pedido razoável que as autoridades lhe faziam.
Ganhou a vontade. Akram suspirou. Acenou afirmativamente a Sahlah. Esta colocou a tesoura sobre a mesa. Fechou o álbum de fotografias. Uns instantes depois ouviam-se os seus pés calçados com sandálias a subir a escada.
Barbara olhou para Emily. O inspector comunicava sem palavras. Não penses que isto vai mudar as coisas entre nós, dizia-lhe Emily. Estás acabada como polícia, se eu fizer o que tenciono. "
Faz o que quiseres", foi a resposta muda de Barbara. E pela primeira vez desde que se encontrara com Emily Barlow sentia-se realmente livre.
Akram e Wardah esperavam, pouco à vontade. O marido curvou-se sufocado e apanhou as fotografias cortadas de Muhannad. Deitou-as para a lareira. A mulher pôs o bordado de lado, espetando a agulha no pano, antes de cruzar as mãos no colo.
A seguir ouviram-se os passos de Yumn na escada atrás de Sahlah. Já se ouviam os seus protestos em voz queixosa.
- Que mais terei de suportar esta noite? Que vieram dizer-me? O meu Muni não fez nada. Levaram-no para longe de nós porque o detestam. Quem irá a seguir?
- Só querem falar connosco Yumn - disse Sahlah, com voz suave e delicada.
- Bom, se tenho de aguentar isto, não vai ser assim. Traz-me chá. E com açúcar verdadeiro e não com aqueles horríveis produtos químicos. Ouviste? Onde vais Sahlah? Eu disse para me trazeres o chá.
Sahlah entrou na sala, o rosto impassível.
- Eu pedi-te... - continuou Yumn, petulante. - Eu sou a esposa do teu irmão. Tens obrigação. - E seguiu a cunhada. Então olhou para as duas detectives. - Que mais querem de mim agora? - Perguntou. - Levaram-no, levaram-no, tiraram-no à família. E porquê? Porque são invejosas. Estão roídas de inveja. Não têm homem e não admitem que alguém tenha um. E não é um homem qualquer, mas um homem de verdade, um homem entre...
- Sente-se - disse-lhe Barbara.
Yumn engoliu em seco. Olhou para os sogros à espera que protestassem contra o tratamento que estava a receber. Uma estranha não lhe dizia o que havia de fazer, dizia a sua expressão. Mas ninguém protestou.
Dirigiu-se para uma cadeira de braços, com ar de dignidade ofendida. Se percebeu a importância do álbum de fotografias e da tesoura sobre a mesinha, não deu sinal. Barbara olhou para Akram, percebendo que ele tinha apanhado as fotografias do filho do chão e as atirara para a lareira, para poupar a nora a assistir às cerimónias preliminares da expulsão do marido da família.
Sahlah voltou para o sofá. Akram sentou-se noutra cadeira de braços. Barbara ficou onde estava, junto à lareira e Emily, junto a uma das janelas fechadas da sala. Olhou-a como se lhe apetecesse abri-la. O ar lá dentro estava morno e cheirava mal.
Barbara sabia que a partir daquele momento toda a investigação se tornaria um tiro no escuro. Respirou fundo e lançou os dados.
- Mr. Malik - disse - o senhor ou a sua esposa sabem dizer-nos onde estava o seu filho na sexta-feira à noite?
Akram franziu o sobrolho.
- Não vejo o objectivo dessa pergunta, a menos que tenham vindo a minha casa só com o propósito de nos atormentar.
As mulheres mantinham-se imóveis, com a atenção presa em Akram. Então Sahlah estendeu a mão e apanhou a tesoura.
- Certo - disse Barbara. - Mas se pensavam que Muhannad estava inocente até fugir esta tarde, então deveriam ter uma razão para isso. E a razão poderia muito bem ser o facto de saberem onde ele estava na sexta- feira. Não é assim?
Yumn disse:
- O meu Muni estava...
- Gostaria que fosse o pai dele a dizer - interrompeu Barbara. Akram disse lentamente, reflectindo ainda:
- Ele não estava em casa. Lembro-me porque...
Yumn disse:
- Abhy, deve ter-se esquecido que...
- Deixe-o responder - ordenou Emily.
- Eu posso responder - disse Wardah Malik - Muhannad estava em Colchester na sexta-feira à noite. janta lá uma vez por mês com um amigo da universidade. O nome dele é Rakin Khan.
- Sus, não - Yumn falava em voz alta, agitando as mãos. - Muni não foi a Colchester na sexta-feira. Isso deve ter sido na terça. Confundiram as datas por causa do que aconteceu a Haytham.
Wardhah parecia perplexa. Olhou para o marido, como que a pedir conselho. Lentamente, Sahláh olhava de um para o outro.
- Esqueceram-se - continuou Yumn. - É fácil, tendo em conta o que aconteceu. Mas de certeza que se lembram...
- Não - disse Wardah. - A minha memória é muito precisa, Yumn. Ele foi a Colchester. Telefonou do trabalho antes de ir, porque estava preocupado com os pesadelos de Anas e pediu-me para arranjar outra coisa para o lanche dos meninos. Pensou que talvez fosse a comida que lhe fazia mal.
- Oh, sim - disse Yumn. - Mas deve ter sido na quinta-feira, porque Anas teve um pesadelo na quarta à noite.
- Foi na sexta - disse Wardah. - Porque fui às compras como vou todas as sextas-feiras. Sabes muito bem, porque me ajudaste a guardar as mercearias e foste tu quem atendeu o telefone quando Muni ligou.
- Não, não, não - Yumn agitava a cabeça, frenética, dirigindo o olhar primeiro para Wardah, depois para Akram, depois para a própria Barbara.
- Ele não estava em Colchester. Ele estava comigo. Aqui nesta casa. Estávamos lá em cima por isso é que vocês se esqueceram. Mas eu e Muni estávamos no nosso quarto. O Abhy viu-nos. Falou connosco.
Akram nada disse, o seu rosto tinha um ar grave.
- Sahlah. Bahin, tu sabes que lá estávamos. Eu mandei-te chamar. Pedi a Muni que te fosse buscar. Ele deve ter ido. Ele deve ter ido ao teu quarto mandar-te...
- Não Yumn. Não foi assim - Sahlah falou com tanto cuidado, como se cada palavra estivesse envolvida numa fina camada de gelo que ela desejasse ter o cuidado de não a quebrar. Parecia aperceber-se do que cada palavra significava, enquanto falava. - Muni não estava cá. Não estava em casa. E... - hesitou. Tinha um ar tenso, como se talvez tivesse entendido a importância daquilo que ia dizer, como se compreendesse que as suas palavras iriam devastar as vidas de duas crianças inocentes. - E tu também não, Yumn. Tu também cá não estavas.
- Estava - exclamou Yumn - como te atreves a dizer que eu não estava em casa! Mas em que estás tu a pensar, estúpida?
- Anas teve um pesadelo - disse Sahlah. - Eu fui ter com ele. Estava a gritar e Bishr tinha também começado a chorar. Pensei: Onde está Yumn? Porque não veio atendê-los? Como consegue ter um sono tão pesado, que nem ouve este barulho horrível no quarto ao lado? Até pensei, na altura, que eras demasiado preguiçosa para te levantares da cama. Mas quando se trata dos meninos nunca és preguiçosa. Nunca foste.
- Insolente! - Yumn pôs-se de pé de um salto. - Insisto que digas que eu estava em casa. Sou a mulher do teu irmão! Ordeno-te que me obedeças. Ordeno-te que lhes digas.
Então era isso, compreendeu Barbara. O motivo. Enterrado numa cultura a respeito da qual sabia tão pouco, que não conseguia percebê-lo. Mas agora via-o. E via como funcionara, com uma energia desesperada, no cérebro de uma mulher que não tinha mais nada que a recomendasse aos sogros, senão um dote substancial e a capacidade de se reproduzir.
- Mas Sahlah já não teria de lhe obedecer, se se casasse com Querashi, pois não? - Perguntou. - Só a senhora teria de o fazer, Yumn. Obedecer ao seu marido, obedecer à sua sogra, obedecer a todos, incluindo aos seus filhos, em seu devido tempo.
Yumn recusou-se a submeter-se.
- Sus - disse a Wardah. - Abhy - virou-se para Akram. - Sou a mãe dos vossos netos - disse para os dois.
O rosto de Akram fechou-se, encerrou-se completamente. Barbara sentiu um arrepio pela espinha abaixo quando viu que nesse instante Yumn deixara simplesmente de existir no espírito do sogro.
Wardah retomou o seu bordado. Sahlah inclinou-se para a frente. Abriu o álbum de fotografias. Cortou a figura de Yumn da primeira fotografia. Ninguém falou, enquanto a imagem, retirada do grupo familiar, caiu no tapete aos pés de Sahlah.
- Eu sou... - Yumn sufocava as palavras. - A mãe... - hesitou. Olhou para todos eles, mas ninguém lhe retribuiu o olhar. - Os filhos de Muhannad
- disse desesperada. - Oiçam todos. Tem de fazer o que eu mandar. Emily mexeu-se. atravessou a sala e pegou no braço de Yumn. - Tem de se ir vestir - disse-lhe.
Yumn olhou para trás, enquanto era conduzida por Emily para a porta.
- Prostituta - disse a Sahlah. - No teu quarto. Na tua cama. Eu ouvi-te Sahlah, eu sei o que tu és.
Barbara olhou cautelosamente de Sahlah para os pais, com a respiração suspensa à espera da reacção deles. Mas viu nos seus rostos que não tinham dado importância à acusação de Yumn. Ela era afinal uma mulher que os decepcionara, enganado-os uma vez e que de boa vontade os voltaria a enganar.
JÁ PASSAVA DA MEIA-NOITE, quando Barbar finalmente voltou para
o Burnt House Hotel. Estava estafada. Mas não tanto, que não notasse que uma deliciosa brisa vinda do mar lhe acariciava as faces, quando saiu do Mini. Encolheu-se quando a dor no peito denunciou a utilização violenta que fizera das suas costelas durante todo o dia. Por um momento parou no parque de estacionamento e respirou cuidadosamente o ar salgado, na esperança que as suas tão apregoadas qualidades medicinais lhe apressassem a cura.
No halo de luz prateada de um dos candeeiros da rua viu os primeiros farrapos de nevoeiro, há tanto tempo desejado e que finalmente chegava à costa.
Aleluia, pensou ao ver as frágeis plumas de vapor de água. Nunca o regresso do húmido Verão inglês lhe parecera tão agradável.
Pôs o saco ao ombro e encaminhou-se para a porta do hotel. Sentia-se arrasada pelo caso, apesar (ou talvez por causa) de ter sido ela que o concluíra.
Porém, não precisava procurar muito para encontrar uma razão para tão grande
cansaço. Vira a razão em primeira mão e ouvira-a também.
O que vira estava nos rostos dos Malik mais velhos, que tentavam aceitar a enormidade dos crimes do filho para com o seu povo. Tinha representado o futuro para os seus pais, o seu próprio futuro e o futuro da família estendendo-se ao infinito, cada geração mais bem sucedida que a anterior.
Fora a promessa de segurança para a sua velhice. Fora a base sobre a qual tinham construído a maior parte das suas vidas. Com a sua fuga, e mais, com a razão da sua fuga, tudo fora destruído. Aquilo que poderiam ter previsto para ele e esperado dele, como seu filho único, desaparecera para sempre.
O que fora deixado em lugar da esperança era a ignomínia, a desgraça da família, transformada num pesadelo permanente e a verdadeira catástrofe da culpabilidade da nora no assassinato de Haytham Querashi.
O que Barbara ouvira fora a resposta calma de Sahlah à pergunta que
fizera à jovem, longe dos ouvidos dos pais. O que vai fazer agora? Gostaria de saber. O que vai fazer... acerca de tudo o que aconteceu? Tudo, Sahlah.
Claro que não tinha nada a ver com isso, mas, ao pensar que tantas vidas ficariam arruinadas, só pela ganância de um homem e pela necessidade de uma mulher cimentar a sua posição de superioridade, 'Barbara sentira-se ansiosa por um sinal que lhe desse a certeza de que alguma coisa de bom se ergueria da destruição que caíra sobre aquelas pessoas. Fico com a minha família, dissera-lhe Sahlah, respondendo com uma voz tão firme e segura, que não havia dúvida que ninguém a demoveria da sua resolução. Os meus pais não têm mais ninguém e agora as crianças precisam de mim, dissera.
Barbara pensara, e de que precisas tu Sahlah? Mas não fizera a pergunta, que acabara por compreender ser completamente estranha para uma mulher daquela cultura.
Suspirou. Compreendeu que sempre que lhe parecia estar quase a perceber os seus semelhantes, acontecia alguma coisa para lhe tirar o tapete debaixo dos pés. E naqueles últimos dias, quantas vezes isso não acontecera. Começara com a sua admiração por uma diva do Departamento Criminal; reconhecera, espantada, que o ídolo que escolhera tinha pés de barro. E no fim do dia, Emily Barlow pouca diferença fazia da mulher que acabara de prender por homicídio, tendo cada uma delas procurado apenas o meio, embora infrutífero e destruidor de ordenar o mundo.
A porta do hotel abriu-se antes que Barbara pudesse pôr a mão no puxador. Sobressaltou-se. As luzes estavam todas apagadas no rés-do-chão.
Na sombra não conseguira ver que alguém esperava a sua chegada, sentado na velha cadeira do porteiro, que estava logo à entrada.
Valha-me Deus, não seria Treves, pensou cansada. A ideia de voltar ao jogo de polícias e ladrões com o hoteleiro era demasiado para ela. Mas depois viu o brilho incandescente de uma camisa branca e logo a seguir ouviu-lhe a voz.
- Mr. Treves não quis sequer ouvir falar de deixar a porta aberta para si - disse Azhar. - Eu disse-lhe que esperava e fechava eu próprio a porta à chave. Ele não gostou da ideia, mas acho que percebeu que não o poderia dizer sem me ofender abertamente, em vez daqueles insultos atravessados que me costuma fazer. Mas penso que amanhã de manhã tenciona mesmo contar os talheres. - Apesar das palavras, havia um sorriso na sua voz.
Barbara riu.
- E tenho a certeza que vai fazer a contagem na sua frente.
- De certeza - disse Azhar. Fechou a porta e fez girar a chave na fechadura. - Entre disse.
Conduziu-a pelo vestibulo escurecido, onde acendeu apenas um candeeiro perto da lareira e foi para trás do bar. Deitou dois dedos de Black Bush num copo e pô-lo à frente de Barbara, do outro lado do balcão de mogno.
Serviu-se de um bitter limão para si. Depois deu a volta ao balcão e foi sentar-se com ela a uma mesa, colocando os cigarros ao dispor dela.
Ela contou-lhe tudo, do princípio ao fim. Não escondeu nada. Nem Cliff
Hegarty, nem Trevor Ruddock, nem Rachel Winfield, nem Sahlah Malik.
Descreveu-lhe o papel que Theo Shaw desempenhara e como Ian Armstrong entrara no quadro. Disse-lhe quais tinham sido as suas primeiras suspeitas, onde estas a tinham levado e em como tinham terminado na sala dos Malik, prendendo uma pessoa que nunca tinham suspeitado poder cometer um crime.
- Yumn - disse Azhar, um pouco confuso. - Barbara, como pode ser? Barbara disse-lhe como era. Yumn fora ter com a vítima e fizera-o, sem que a família Malik tivesse disso conhecimento. Levara um chádor - para cumprir a tradição, ou para se esconder - e conseguira, sem que ninguém em casa percebesse que o tinha feito. Vendo bem a estrutura daquela casa, particularmente a posição do caminho que a ela leva e da garagem em relação à sala e aos quartos lá de cima, percebe-se a facilidade com que poderia ter levado um dos carros, sem ninguém saber. Se o fizesse quando os filhos estivessem já deitados e quando Sahlah estivesse ocupada a fazer as suas jóias, quando Akram e Wardah estivessem a fazer as suas orações na sala, ninguém teria dado por nada. Afinal, como poderia Yumn ter falhado numa coisa que a polícia vira ter toda a simplicidade: observar Haytham Querashi o tempo suficiente para saber que ele ia regularmente ao Nez, levar um zodíaco para dar a volta ao Nez pelo lado oriental do promontório na noite em questão; estender um arame à frente de uns degraus decrépitos e mandá-lo para a morte.
- Sempre soubemos e sempre dissemos que poderia ter sido uma mulher a fazê- lo - disse Barbara. - Só não conseguimos perceber que Yumn tinha um motivo e uma oportunidade para levar a cabo esse plano.
- Mas que necessidade tinha de matar Haytham Querashi? - Perguntou Azhar.
E Barbara também lhe explicou. Mas quando lhe disse, tintim por tintim por que é que Yumn precisava de se ver livre de Querashi, pois queria manter Sahlah numa posição de subordinada dentro da casa, Azhar teve dúvidas. Acendeu um cigarro, inalou o fumo e examinou a cinza antes de falar.
- A acusação contra Yumn baseia-se nisso? - Perguntou cauteloso.
- E no testemunho da família. Ela não estava em casa, Azhar. E afirma que estava lá em cima com Muhannad, enquanto este estava a quilómetros de distância, em Colchester, facto esse que já foi confirmado.
- Mas para um bom advogado de defesa o testemunho da família será de pouca importância. Podem-lhes atribuir uma confusão de datas, uma animosidade em relação a uma nora difícil, um desejo de proteger aquele que a defesa pode considerar o verdadeiro criminoso: um homem, que muito convenientemente estava em fuga pela Europa. Mesmo que Muhannad seja trazido para este país para ser julgado por tráfico de imigrantes ilegais, uma sentença por esse crime será sem dúvida mais curta do que por assassínio premeditado. É o que a defesa pode argumentar, procurando provar que os Malik tinham razão para atribuir a culpa a outra pessoa, que não Muhannad.
- Mas eles já o baniram.
- De facto já - concordou Azhar. - Mas que júri ocidental compreenderá o impacto que tem para um asiático ser banido da família?
Ele olhou para ela com toda a franqueza. Não havia dúvidas no convite do seu olhar. Agora era altura para falarem da sua própria história: como começara e como terminara. Ela poderia saber da mulher que tinha em Hounslow, dos dois filhos que abandonara com ela. Poderia descobrir como tinha ele conhecido a mãe de Hadiyyah e as forças que dentro dele o tinham levado a pensar que valia a pena separar-se da família por ãmor a uma rapariga que lhe era proibida.
Lembrava-se de ter lido uma vez a desculpa que um realizador de cinema usara para explicar a traição à sua mulher de toda a vida, em favor de uma jovem trinta anos mais nova: O coração quer o que o coração quer, dissera. Mas Barbara perguntara a si própria há muito tempo se aquilo que o coração queria, teria na realidade alguma coisa a ver com o coração.
No entanto, se Azhar não tivesse seguido o seu coração - se é que era de facto essa a parte do seu corpo envolvida - Khalidah Hadiyyah não existiria. E isso teria duplicado a tragédia de se ter apaixonado e de ter negado a possibilidade desse amor. Por isso, talvez Azhar tivesse agido da melhor maneira quando sobrepusera a paixão ao dever. Mas quem poderia sabê-lo?
- Ela não vai voltar do Canadá, pois não? - Decidiu-se Barbara a perguntar. - Se é que alguma vez foi para o Canadá?
- Ela não vai voltar - admitiu Azhar.
- Porque não contou tudo a Hadiyyah? Porque é que a deixa agarrar-se à esperança?
- Porque eu também me tenho agarrado à esperança. Porque, quando uma pessoa se apaixona, tudo parece possível entre duas pessoas, não importa as diferenças nos seus temperamentos ou culturas. Principalmente porque, a esperança é sempre o último dos nossos sentimentos a apagar-se e a morrer.
- Tem saudades dela - e assim, Barbara afirmou aquilo que era tão evidente sob a sua reserva tranquila.
- A toda a hora do dia - respondeu. - Mas mais tarde ou mais cedo vai passar. Tudo passa.
Ele apagou o cigarro num cinzeiro. Barbara engoliu o resto do whisky irlandês. Apetecia-lhe outro, mas tomou esse desejo como um sinal de aviso que a pôs pouco à vontade. Beber não esclareceria coisa nenhuma e o desejo de beber era sinal de que alguma coisa precisava de ser esclarecida. Mas mais tarde, pensou. Amanhã. Na próxima semana. No próximo mês. Dentro de um ano. Esta noite sentia-se demasiado exausta para pesquisar na sua mente as razões pelas quais sentia aquilo que sentia.
Levantou-se. Espreguiçou-se. Encolheu-se com a dor.
- Bom. Tudo bem - disse à laia de conclusão. - Suponho que se esperarmos o tempo suficiente, os problemas acabam por se resolver, não é verdade?
- Ou então morremos sem os compreender - disse ele. Mas suavizou as palavras com o seu atraente sorriso. Era forçado, mas ao mesmo tempo agradável, fazendo-lhe uma oferta de amizade.
Barbara perguntou brevemente a si própria se quereria aceitar a oferta. Se quereria realmente enfrentar o desconhecido e arriscar-se a comprometer o seu coração - lá estava outra vez, esse órgão ardente e incerto - que poderia ficar despedaçado. Mas depois percebeu que, embora fosse um traiçoeiro juiz de comportamentos, o seu coração estava inteiramente comprometido desde o momento em que conhecera a fadazinha, filha daquele homem. Afinal, o que havia de tão aterrador em juntar mais uma pessoa à tripulação daquele navio tão desordenado, que atravessava a sua vida?
Juntos, deixaram o vestíbulo e subiram as escadas na escuridão. Não voltaram a falar até chegarem à porta do quarto de Barbara. Foi então Azhar quem quebrou o silêncio.
- Amanhã de manhã quer tomar o pequeno-almoço connosco, Barbara Havers? Hadiyyah vai ter nisso um especial prazer - e quando ela não respondeu imediatamente, levando em consideração com um inocente prazer, a confusão que o facto de comer com os asiáticos causaria à filosofia separatista e ao mesmo tempo equalitária de Basil Treves, ele disse:
- O prazer também seria meu
Barbara sorriu.
- Adorava - disse ela.
E essas palavras eram sinceras, apesar das complicações que traziam ao seu presente, apesar da incerteza que traziam ao seu futuro.
Elizabeth George
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