Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DEIXA-ME CHAMAR-TE MEU AMOR
Tanto quanto era humanamente possível, ele tentava afastar Suzanne dos seus pensamentos. Por vezes, conseguia alcançar paz de espirito por algumas horas ou mesmo dormir uma noite inteira. Era a única maneira de ele conseguir funcionar, de prosseguir a tarefa diária, de sobreviver.
Ainda a amava ou odiava-a apenas? Nunca conseguia ter a certeza. Ela fora tão bela, com aqueles seus olhos luminosos e trocistas, aquela nuvem de cabelo escuro, aqueles lábios que sabiam sorrir de umaforma tão sedutora oufazer beicinho, como uma criança a quem recusam um doce.
E agora, quase onze anos depois, Kerry McGrath não estava disposta a deixar Suzanne descansar em paz. Perguntas e maisperguntas! Era intolerável. Ela tinha de acabar com aquilo. E ia acabar - pensou ele. Fosse lá como fosse.
KERRY alisou a saia do tailleur verde-escuro, endireitou a fina corrente de ouro que tinha ao pescoço e passou os dedos pelo cabelo louro- escuro, que lhe chegava aos ombros. Andara toda à tarde numa correria louca, saíra do tribunal às 2.30 para ir buscar Robin à escola, fora pelo trânsito congestionado das Estradas 17 e 4, atravessara a Ponte George Washington até Manhattan e, estacionando finalmente o carro, chegara ao consultório do médico mesmo a tempo da consulta de Robin, às 4 horas.
Agora, depois de toda aquela correria, Kerry apenas podia sentar-se e esperar. Gostaria muito de estar com Robin enquanto lhe tiravam os pontos, mas a enfermeira fora inflexível e não o permitira.
- O Dr. Smith não permite a presença de ninguém na sala com o doente, para além de uma enfermeira.
- Mas ela só tem dez anos ! - protestara Kerry. Depois, lembrou a si própria que devia sentir-se grata por ter sido o Dr. Smith a ser chamado depois do acidente. As enfermeiras do St. Luke's-Roosevelt Hospital haviam-lhe assegurado que ele era um excelente cirurgião plástico. O médico de serviço nas urgências tinha-o mesmo apelidado de milagreiro.
Evocando esse dia, há uma semana atrás, ela deu-se conta de que ainda não tinha recuperado do choque do telefonema. Ficara a trabalhar até tarde no Tribunal de Hackensack, a preparar a instauração de um processo de homicídio, aproveitando o facto de o pai de Robin e seu ez-marido, Bob Kinellen, ter inesperadamente convidado a filha para ir ao Circo Big Apple de Nova lorque.
Às 6.30, o telefone tocou. Era Bob. Tinha havido um acidente, uma carrinha chocara contra o seu Jaguar no momento em que ele saía do parque de estacionamento. O rosto de Robin ficara cortado pelos estilhaços de vidro que saltaram, fora levada rapidamente para o St. Luke's-Roosevelt e tinha sido chamado um cirurgião plástico. Para além disso, parecia encontrar-se bem, embora estivessem a fazer-lhe exames para se saber se havia lesões internas.
Recordando aquela tarde terrível, Kerry abanou a cabeça. Tentou afastar do seu espírito a angústia da precipitada viagem de automóvel de Nova Jérsia até Nova Iorque, com o corpo sacudido por soluços sem lágrimas, os lábios articulando uma prece:
Por favor, meu Deus, não permitas que ela morra. Ela é tudo o que eu tenho. Por favor, é apenas uma criança. Não ma leves.
Robin estava na sala de operações quando Kerry chegou ao hospital, pelo que se sentou na sala de espera com Bob a seu lado - com ele, mas sem ele. Agora, tinha outra mulher e mais dois filhos. Kerry sentia ainda o enorme alívio que tinha experimentado quando o médico finalmente aparecera e, com uma atitude formal e peculiarmente condescendente, declarara:
- Felizmente, os ferimentos não penetraram muito profundamente na derme. Robin não vai ficar com cicatrizes. Quero vê-la no meu consultório daqui a duas semanas.
Ficou demonstrado que os golpes tinham sido as únicas lesões, e Robin recuperara do acidente, tendo perdido só dois dias de aulas. Fora apenas nesse dia,quando iam a caminho de Nova Iorque para a consulta, que ela parecera assustada ao perguntar:
- Eu vou ficar bem,não vou,mãe? Quer dizer,a minha cara não
vai ficar com marcas?
Com os seus grandes olhos azuis,o rosto oval,a testa alta e as feições bem desenhadas,Robin era uma criança muito bonita,igualzinha ao pai.Kerry sossegara-a com uma convicção que esperava ardentemente que fosse verdadeira. Agora, para se distrair, Kerry percorreu com os olhos a sala de espera mobilada com gosto, com vários sofás e
cadeiras forrados com um padrão de flores miúdas.Sentada num deles, com uma ligadura no nariz, estava uma mulher com aspecto de ter uns quarenta e poucos anos. Uma outra, com um ar algo ansioso, confidenciava à sua atraente companheira:
- Agora que aqui estou, sinto-me contente por me teres convencido a vir.Estás com um aspecto fabuloso.
E está mesmo, pensou Kerry, embaraçada, enquanto procurava
na mala a caixa do pó-de-arroz. Abriu-a e viu-se ao espelho, concluindo que nesse dia parecia exactamente os trinta e seis anos que tinha, nem um minuto a menos.Empoou o nariz,tentando esconder as suas tão detestadas sardas; examinou atentamente os olhos e concluiu que,quando estava cansada,como nesse dia,o respectivo tom de avelã mudava de esverdeado para um castanho-terroso.Com um suspiro,fechou a caixa
do pó-de-arroz,puxando para trás a franja,que estava a precisar de ser aparada. Ansiosa, dirigiu rapidamente o olhar para a porta que dava para as salas de consulta.Porque é que demorava tanto tempo tirarem os pontos a Robin?
Instantes depois,a porta abriu-se. Kerry ergueu os olhos,na expectativa. Em vez de Robin, contudo,apareceu uma mulher de cerca de vinte e cinco anos,com uma nuvem de cabelo escuro emoldurando-lhe a beleza petulante do rosto.Kerry examinou-lhe as maçãs do rosto proeminentes, os lábios de contorno perfeito com um trejeito amuado, os olhos luminosos,as sobrancelhas arqueadas. Sentiu um aperto na garganta. Eu conheço-a, pensou. Mas de onde? Engoliu em seco.
Quando a mulher saiu,Kerry foi ter com a recepcionista e explicou-lhe que tinha a impressão de conhecer a senhora que acabava de sair do gabinete do médico.Quem era?
O nome Barbara Tompkins,no entanto,não lhe disse absolutamente nada.Devia estar enganada.Apesar disso, ao sentar-se de novo, sentiu-se possuída por uma irresistível sensação de desagrado. O efeito foi tão arrepiante que ela até sentiu um calafrio.
KATE CARPENTER trabalhava como enfermeira do Dr. Charles
Smith há quatro anos, assistindo-o nas operações que ele realizava no consultório. Considerava-o um génio. Apesar disso, muitas vezes perguntava a si própria por que razão continuava com ele. Era tão brusco com toda a gente, quer com o pessoal, quer com os doentes, que chegava a parecer malcriado. Ultimamente, o seu mau feitio piorara. Po tenciais novos clientes sentiam-se melindrados com os modos dele i cancelavam as marcações com uma frequência cada vez maior. As úni cas pessoas que ele tratava com delicadeza eram as que recebiam a fisionomia especial, e essa era outra das coisas que incomodavam Kate Carpenter.
Olhou para o relógio. Tal como previra, depois de o Dr. Smith ter acabado de examinar Barbara Tompkins, a mais recente beneficiária de tal fisionomia, ele dirigira-se para o gabinete e fechara a porta. Que teria lá dentro? pensou ela. Ele não podia deixar de reparar que estava a atrasar-se. Aquela pequenita, Robin, já estava na sala de espera há meia hora. Depois de examinar uma das suas pacientes especiais, o médico parecia sempre necessitar de algum tempo para si próprio.
- Mrs. Carpenter...
Sobressaltada, a enfermeira levantou os olhos da secretária. o Dr. Smith olhava-a fixamente.
- Parece-me que já fizemos esperar Robin Kinellen o suficiente - disse ele em tom acusador. Os seus olhos eram gelados por detrás d óculos sem aros.
- NÃO gosto do Dr. Smith - declarou Robin com simplicidade no momento em que Kerry conduzia o carro para fora do parque de estacionamento existente no cruzamento da Rua 9 com a Quinta Avenida.
Kerry olhou bruscamente para ela.
- Porquê?
- Mete-me medo. Quando vou ao Dr. Wilson, ele está sempre a dizer piadas, mas o Dr. Smith nem sequer me sorriu. Parecia que estava zangado comigo. Disse qualquer coisa do género: algumas pessoas têm a beleza enquanto outras a conquistam, mas, em qualquer dos casos, ela não deve ser desperdiçada.
Robin era na verdade bastante bonita, mas por que motivo um médico diria uma coisa tão bizarra a uma criança?, interrogou-se Kerry.
- Já estou arrependida de lhe ter dito que ainda não tinha acabado de apertar o cinto de segurança quando a carrinha bateu no carro do pai. - acrescentou Robin. - Foi nessa altura que o Dr. Smith começou a pregar-me um sermão.
Kerry olhou de novo para a filha. Robin punha sempre o cinto de segurança. Tentou reprimir uma nota de zanga na voz ao comentar:
- O pai, provavelmente, saiu da garagem à pressa.
- Não, só não reparou que eu não tive tempo de o apertar - replicou Robin na defensiva, percebendo a rispidez na voz da mãe.
Kerry sentiu-se deprimida por causa da filha. Bob Kinellen tinha-as abandonado quando Robin era bebé. Agora, estava casado com a filha do sócio principal da firma onde trabalhava e era pai de uma rapariga de cinco anos e de um rapaz de três. Robin adorava o pai, e este, quando estava com ela, mostrava-se muito expansivo. Mas desapontava-a muitas vezes, telefonando à última hora para desmarcar uma combinação. Como a segunda mulher não gostava que lhe lembrassem que ele tinha outra filha, Robin nunca era convidada para ir lá a casa. Em consequência disso, ela mal conhecia os meios-irmãos.
Numa das raras ocasiões em que ele finalmente aparece para a levar a sair, acontece uma coisa destas, pensou Kerry. Decidiu não insistir mais no assunto. Em vez disso, sugeriu:
- Porque é que não tentas dormir uma soneca enquanto não chegamos a casa do tio Jonathan e da tia Grace?
- Está bem. Aposto que eles têm um presente para mim.
Enquanto esperavam que Kerry e Robin chegassem para jantar, Jonathan e Grace Hoover partilhavam o habitual martini do fim da tarde na sala da sua casa de Old Tappan, Nova Jérsia, com vista para o lago Tappan.
Com pouco mais de sessenta anos, estavam casados há quase quarenta, ligados por laços e razões que iam para além do afecto e do hábito. Ao longo do tempo, quase tinham ficado parecidos um com o outro: ambos tinham feições aristocráticas emolduradas por luxuriantes cabeleiras - a dele completamente branca e ondulada, a dela curta e encaracolada, ainda com alguns vestígios de castanho. Havia, contudo, uma nítida diferença no que respeitava ao resto do corpo. Enquanto Jonathan estava sentado numa cadeira de braços de costas altas, Grace encontrava-se reclinada num sofá à sua frente, com uma manta sobre as pernas inúteis e uma cadeira de rodas junto a si, pois há muitos anos que era vítima de artrite reumatóide.
Jonathan permanecera-lhe dedicado. Sócio principal de uma firma de advogados de Nova Jérsia, fora também senador durante cerca de vinte anos, tendo no entanto recusado por diversas vezes a oportunidade de se candidatar a governador. Qualquer pessoa que o conhecesse bem sabia que era Grace o motivo dessa recusa, interrogando-se intimamente se ele não albergaria um vago ressentimento por a invalidez dela ter prejudicado a sua carreira. Se assim era, porém, nunca o deixara transparecer.
Naquele momento, enquanto bebia o martini, ela olhou ansiosamente para o relógio que estava sobre a cornija da lareira.
- Elas não estão a atrasar-se?
- Kerry é boa condutora - tranquilizou-a Jonathan. - Não te preocupes.
- Eu sei. Só que...
Não precisou de completar a frase; Jonathan entendia perfeitamente. Desde a altura em que Kerry, então com vinte e um anos e prestes a entrar na Faculdade de Direito, respondera ao seu anúncio para empregada doméstica, eles tinham-se progressivamente habituado a encará-la como filha adoptiva. Isso fora há quinze anos atrás, e durante todo esse tempo Jonathan auxiliara Kerry muitas vezes, guiando-a e encaminhando-a na sua carreira e, mais recentemente, usando a sua influência para conseguir colocar o nome dela na lista de candidatos a juiz do governador.
Dez minutos depois, o agradável som da campainha da porta anunciou a chegada de Kerry e Robin. Como Robin tinha previsto, havia um presente à sua espera: um livro e um jogo de computador. Depois do jantar, ela levou o livro para a biblioteca e enroscou-se numa cadeira,enquanto os adultos ficaram mais um pouco a tomar café. Com Robin a uma distância a que não podia ouvi-la, Grace perguntou baixinho:
- Kerry, aquelas marcas na cara de Robin vão desaparecer, não vão?
- Perguntei o mesmo ao Dr. Smith. Ele não só praticamente garanti u o seu desaparecimento, como também me fez sentir como se eu o tivesse insultado ao exprimir essa preocupação.
Ao dar o último gole no café, Kerry recordou a mulher que vira anteriormente no escritório do Dr. Smith. Olhou para Jonathan e Grace que estavam sentados do outro lado da mesa.
- Aconteceu uma coisa estranha enquanto eu estava à espera de Robin - observou ela. - Havia uma pessoa no consultório do Dr. Smith que me pareceu tão familiar que eu cheguei mesmo a perguntar à enfermeira como é que ela se chamava. Tenho a certeza de que não conheço, mas não fui capaz de me livrar da sensação de que já nos tínhamos visto. Senti um arrepio de horror. Não é estranho?
- Qual era o aspecto dela?
- Era uma brasa do género insinuante e sensualmente atraente - respondeu Kerry com ar pensativo. - Talvez fosse uma das antigas na moradas de Bob. - Encolheu os ombros. - Enfim, vou ficar a matutar nisto até acabar por descobrir.
O SENHOR mudou a minha vida, Dr. Smith. Fora o que Barbara Tompkins lhe dissera ao sair do consultório nesse dia. E ele sabia que era verdade. Ele transformara-a de uma mulher banal, quase insignificante, numa verdadeira beleza. Na realidade, mais do que numa beleza. Agora, ela tinha personalidade. Não era a mesma jovem insegura que viera ter com ele um ano antes.
Vi o que fez por uma das suas clientes, dissera ela. Acabei de herdar algum dinheiro de uma tia. Pode fazer que eu fique bonita?
Nessa altura, ela trabalhava numa pequena firma de relações públicas de Albany. Agora, estava empregada numa grande e prestigiada firma de Manhattan. Sempre havia sido inteligente, mas a combinação dessa inteligência com aquela beleza especial tinha, de facto, mudado a vida dela.
O Dr. Smith viu o seu último doente desse dia às 6.30. Depois, percorreu a pé os três quarteirões da Quinta Avenida até à casa onde vivia, em Washington Mews, uma cocheira remodelada. Tinha por hábito ir até lá para se descontrair um pouco, bebendo um whisky com soda, e só depois decidia onde ia jantar. Vivia sozinho e quase nunca comia em casa.
Nessa noite, foi acometido por uma inquietação pouco habitual. De todas as mulheres, Barbara Tompkins era a mais parecida com ela. O simples facto de ver Barbara era uma experiência emocional, quase ca tártica. Ouvira-a dizer a Mrs. Carpenter que nessa noite ia jantar com um cliente ao Oak Room do Hotel Plaza.
Levantou-se quase com relutância. O que aconteceria a seguir era inevitável. Iria até ao Oak Room e veria se havia uma mesa pequena de onde pudesse observar Barbara enquanto jantava. Com um pouco de sorte, ela não o veria. Mas, mesmo que isso acontecesse, ele limitar-se-ia a fazer-lhe um aceno. Não tinha qualquer razão para suspeitar de que ele a seguia.
DEPois de chegarem a casa, a seguir ao jantar com Jonathan e Grace e muito depois de Robin ter adormecido, Kerry continuava a trabalhar. O seu escritório ficava numa pequena divisão da casa para onde se mudara a seguir ao divórcio. Tinha conseguido comprá-la por bom preço numa altura em que o mercado imobiliário estava em baixa e gostava imenso dela. Era uma construção com uns cinquenta anos, com um telhado de duas águas com mansardas, no meio de um lote de terreno densamente arborizado com cerca de um hectare.
No dia seguinte, ela iria fazer o contra-interrogatório a um réu num caso de homicídio. Ele era um bom actor. Ao depor, a sua versão dos acontecimentos parecia inteiramente plausível. Sustentava que a mulher, que era sua superior hierárquica, o humilhava constantemente, de tal modo que um dia ele tinha perdido a cabeça e a matara. O advogado estava pronto a aceitar a tese de homicídio involuntário. A tarefa de Kerry era demonstrar que se tratava de uma vingança premeditada contra uma chefe que, por motivos justificados, fora promovida em vez dele, e isso custara-lhe a vida. Agora, ele tem de pagar, pensou Kerry. Era uma da manhã quando Kerry se deu por satisfeita com o esboço feito de todos os pontos que desejava focar. Cansada, subiu as escadas até ao andar de cima, espreitou Robin, que dormia tranquilamente, e atravessou o corredor até ao seu quarto.
Cinco minutos depois, vestida com a sua camisa de noite preferida, aconchegou-se na enorme cama de latão que comprara em promoção. Fechou os olhos, perguntando a si própria por que razão se sentia tão nervosa.
Acordou às 5, e ainda conseguiu dormitar até às 6. Foi durante essa hora que teve o sonho pela primeira vez. Estava na sala de espera de um consultório médico. No chão jazia uma mulher, fitando o vazio com uns enormes olhos desfocados. Uma nuvem de cabelo escuro emoldurava a beleza petulante do seu rosto. À volta do pescoço tinha uma corda com um nó. Enquanto Kerry a observava, a mulher levantou-se, tirou a corda do pescoço e dirigiu-se à recepcionista para marcar uma consulta.
DURANTE o serão, a ideia de telefonar para saber como correra a consulta de Robin passou diversas vezes pelo pensamento de Bob Kinellen, mas esses pensamentos tinham surgido e desaparecido sem serem postos em prática. Anthony Bartlett, seu sogro e sócio principal no escritório de advogados em que trabalhava, aparecera lá em casa depois de jantar para discutir a estratégia a seguir no julgamento de Forrest Weeks, o mais importante - e controverso cliente da firma. Empresário do ramo imobiliário com um volume de negócios de vários milhhões de dólares, contribuía com somas importantes para diversas campanhas políticas e era um benemérito de várias organizações de caridade. Corriam também rumores de que tinha ligações com a Mafia, e o gabinete do procurador-geral dos Estados Unidos tinha, durante anos a fio, tentado descobrir algo que o incriminasse. Representá-lo - em termos financeiros - durante essas investigações tinha sido a compensadora tarefa de Bartlett e Kinellen.Até ao momento,os omens do FBI nunca tinham conseguido arranjar provas suficientes para uma acusação combases sólidas.
- Desta vez, Jimmy está metido num grande sarilho - declarou Anthony, sentando-se em frente ao genro no escritório da casa
dos Kinellens,em Englewood Cliffs,Nova Jérsia.Deu um gole no
brandy.- O que evidentemente,significa que também nós estamos
metidos num grande sarilho.
Durante os dez anos que se seguiram à entrada de Bob na firma,ele vira-a transformar-se quase numa extensão das empresas Weeks de tal modo estavam entrelaçadas.Na verdade se Jimmy fosse declarado culpado, a viabilidade da firma de advogados Bartlett e Kinellen acabaria.
- É com Barney que estou preocupado - murmurou Bob.
Barney Haskell era o contabilista-chefe de Jimmy Weeks e co-arguido no referido processo.Estava a ser objecto de grandes pressões para se apresentar como testemunha de acusação em troca de um acordo judicial.
Anthony Bartlett acenou afirmativamente.
- Concordo.
- E por mais do que um motivo - prosseguiu Bob.
- Já lhe falei do acidente e de que Robin foi assistida por um cirurgião plástico, mas não lhe disse o nome dele.É Charles Smith.
Anthony Bartlett endireitou-se bruscamente na cadeira.
- Não me digas que é o mesmo que..?
- Exactamente.Conhecendo a minha ex-mulher,magistrada do Ministério Público, trata-se apenas de uma questão de tempo até ela fazer a ligação.
- Oh,era só o que nos faltava! - exclamou Bartlett com ar infeliz.
O gabiNETE do procurador do Bergen County ficava no segundo andar do edifício do tribunal. Albergava trinta e cinco delegados do procurador, setenta investigadores e vinte e cinco secretárias, além de Franklin Green, o procurador. Apesar da enorme quantidade de trabalho e da natureza séria, por vezes até macabra, do mesmo, existia no ga binete um ambiente de camaradagem. Kerry adorava trabalhar ali. Recebia com regularidade ofertas sedutoras de firmas de advogados, mas, apesar das tentações financeiras, ela optara por ficar ali e agora já chegara à posição de chefe de processo. Ao longo do tempo, conquistara a reputação de profissional inteligente, implacável e escrupulosa.
Dois juízes tinham acabado de se reformar, e na sua qualidade de senador, Jonathan Hoover sugerira o nome de Kerry para preencher uma das vagas. Ela não confessava, nem mesmo a si própria, quanto o desejava. As grandes firmas de advogados pagavam muito mais, mas a magistratura representava o tipo de conquista que não há dinheiro que compense.
Segundo os padrões dos cubículos sem janelas que eram distribuídos aos novos delegados, o gabinete de Kerry tinha dimensões razoáveis, e ela conferira-lhe um toque pessoal, com plantas nos parapeitos e molduras com fotografias de Robin.
Olhou para as pilhas de processos que cobriam por completo a sua velha secretária de madeira, sentou-se e pegou num deles. O assunto em questão era o julgamento, que se iniciaria dali a uma hora.
A supervisora assassinada tinha dois filhos adolescentes que educara sozinha. Quem iria cuidar deles agora? Se me acontecesse alguma coisa a mim, pensou Kerry, para onde iria Robin? Certamente que não ia viver com o pai; não seria feliz nem bem-vinda na nova família dele. Mas Kerry também não conseguia imaginar a sua mãe e o padrasto, ambos com mais de setenta anos e a viverem no Colorado, a criarem uma criança de dez anos. Deus queira que eu continue por cá, concluiu ela, concentrando a sua atenção no processo que tinha à frente.
Às 8.50, o telefone tocou. Era Frank Green, o procurador.
- Kerry, eu sei que estás de saída para o tribunal, mas vem cá um minuto.
- Claro.
Encontrou Green sentado à secretária. Com um rosto de feições vincadas e olhar arguto, mantinha aos cinquenta e dois anos o físico vigoroso que fizera dele uma estrela do futebol universitário. O seu sorriso aparecia estranho, pensou ela. Teria arranjado os dentes? Se arranjou, fica bem. Vai fazer bom efeito nas fotografias de apresentação da candidatura, em Junho.
Ninguém tinha dúvidas de que Green andava a preparar-se para a campanha eleitoral para governador. A atenção que andava a dedicar ao guárda-roupa era evidente. Um editorial afirmara que, uma vez que o actual governador servira tão bem durante dois mandatos e que Green fora o sucessor por ele designado, parecia provável que fosse ele o escolhido para chefiar o estado. Depois disso, Green tornou-se conhecido entre os seus colaboradores como o Nosso Chefe.
Kerry admirava as capacidades jurídicas de Green. A sua única reserva em relação a ele era o facto de, por várias vezes, ter deixado pendurado um delegado que cometera um erro involuntário. Green era leal, antes de mais nada, para consigo próprio.
Naquele momento, disse-lhe:
- Entra, Kerry. Só queria saber como está Robin.
Ela contou-lhe rapidamente acerca dos exames médicos.
- Robin estava com o pai no momento do acidente, não estava?indagou ele.
- Sim, era Bob quem ia a guiar.
- A propósito, a sorte do teu ex-marido pode estar a acabar-se. Não me parece que ele consiga safar Jimmy desta vez. Consta que vão deitar-lhe a mão, e espero bem que o façam. É um vigarista e talvez ainda pior do que isso. - Fez um gesto de despedida. - Hoje, vais contra-interrogar o réu, não vais?
- Vou.
- Sabendo como tu és, quase tenho pena dele. Boa sorte.
Quase duas semanas depois, Kerry ainda gozava os louros do julgamento,agora já terminado. Ela conseguira a desejada condenação por assassínio.Pelo menos,os filhos da mulher assassinada não teriam de crescer sabendo que o assassino da mãe andaria pelas ruas daí a cinco ou seis anos.Era o que teria acontecido caso o júri tivesse aceitado a teoria do homicídio involuntário apresentada pela defesa.A condenação por homicídio implicava uma sentença obrigatória de trinta anos,sem direito a liberdade condicional.
Agora,sentada uma vez mais na sala de espera do Dr.Smith, Kerry abriu a pasta e tirou um jornal.Aquele era o segundo exame de Robin, e em princípio era de rotina,por isso podia estar descansada.Para além disso,estava ansiosa por ler os últimos desenvolvimentos do julgamento de Jimmy Weeks.Tal como Frank Green dissera,o consenso era de que o processo não iria correr de feição para o arguido.Investigações prévias de suborno,negócios ilegais com informações sigilosas e
branqueamento de dinheiro tinham sido abandonadas por falta de provas suficientes. Desta vez, dizia-se que o procurador tinha um caso irrefutável.
Em tempos, Bob apresentara Kerry a Jimmy Weeks num dia em que ela tinha deparado com eles num restaurante. Ela observou atentamente : a fotografia em que ele estava sentado com o seu ex-marido na mesa da defesa. Tirem-lhe o fato de mil dólares e aquela sofisticação postiça e ficamos com um rufia, pensou ela. Na imagem, o braço de Bob estava pousado paternalmente sobre as costas da cadeira de Weeks e tinham as cabeças juntas. Kerry recordou que Bob costumava ter aquele gesto.
Deu uma vista de olhos pelo artigo e voltou a guardar o jormal na pasta, lembrando-se de como ficara consternada quando, pouco depois do nascimento de Robin, Bob lhe anunciara que aceitara um emprego na Bartlett and Associates.
- Todos os clientes deles estão com um pé na cadeia - protestara ela. - E o outro pé também devia lá estar.
- Mas pagam as contas a tempo e horas - replicara Bob. - Kerry, fica tu no gabinete do procurador, se quiseres. Eu tenho outros planos.
Um ano depois, ele anunciara que esses planos incluíam também o seu casamento com Alice Bartlett.
Águas passadas, disse Kerry para consigo, olhando para as salas de observação, cuja porta se abria naquele preciso momento.
Acto contínuo, Kerry imobilizou-se, e a olhadela rápida transformou-se num olhar fixo. A jovem que surgira tinha o rosto emoldurado por uma nuvem de cabelo escuro, lábios salientes, olhos afastados, sobrancelhas arqueadas. Não era a mesma mulherque ela vira da última vez - mas parecia-se com ela. Seriam parentes. Se eram doentes, não era possível que o Dr. Smith estivesse a tentar torná-las parecidas, - pensou - E porque é que aquele rosto lhe lembrava tanto outra pessoa com que até tivera um pesadelo?
- Ms. McGrath.
Kerr voltou-se e viu Mrs. Carpenter a enfermeira, fazendo-lhe um gesto para que fosse ao gabinete do médico. Seguindo no seu encalço Kerry perguntou :
- Aquela senhora que acabou de sair... como é que ela se chama?
- Pamela Worth - respondeu Mrs. Carpenter. - Ora cá estamos. Robin estava sentada diante da secretária do médico com as mãos cruzadas no colo, numa postura invulgarmente rígida. Kerry notou expressão de alívio no rosto da filha quando os olhares de ambas se cruzaram. O médico fez um gesto para que Kerry se sentasse na cadeira ao lado de Robin. A sua expressão era veemente.
- Expliquei a Robin que muitas pessoas vêm ter comigo em busca do tipo de beleza com que ela foi abençoada. É dever dela preservá-la. Robin contou-me que era o pai quem ia a guiar na altura do acidente. Recomendo-lhe vivamente que o avise de que deve tomar mais cuidado com a filha. Ela é insubstituível.
No caminho para casa a pedido de Robin, pararam para jantar no
Restaurante Valentino,em Park Ridge.
- Gosto dos camarões de lá - explicara Robin.Mas quando já estavam instaladas à mesa,acrescentou: - O pai trouxe-me cá uma vez.
- O tom da sua voz era melancólico.
Então é por isso que este é o restaurante preferido dela, pensou Kerry.
Desde o acidente, Bob telefonara a Robin apenas uma vez e a
uma hora em que ela estava na escola. A mensagem no atendedor de chamadas dizia que ele calculava que ela estivesse na escola, o que queria dizer que ela devia estar óptima. Não havia qualquer sugestão para ela retribuir a chamada.
Depois de o criado ter tomado nota dos pedidos,Robin declarou:
- Mãe,não quero ir mais ao Dr.Smith.Ele mete medo.
Kerry sentiu um aperto no coração. Era exactamente o que ela pensava. A seguir, ocorreu-lhe que não tinha qualquer garantia, senão a palavra dele,de que as linhas vermelhas e inflamadas do rosto de Robin acabariam por desaparecer.
Tenho de arranjar outro médico para a examinar, pensou ela.
Tentando parecer despreocupada,replicou:
- Oh,penso que não é má pessoa,apesar de ter aquele feitio idiota.- Foi recompensada com um sorriso de Robin.- De qualquer maneira - continuou -,ele só te quer ver daqui a um mês e depois talvez nunca mais,por isso não te preocupes.Não é culpa dele se nasceu sem nenhum encanto.
Robin riu-se.
- Esqueça o encanto.Ele é uma pessoa horrível.
Quando a comida chegou,provaram ambas daquilo que a outra tinha escolhido e tagarelaram um pouco.Robin tinha a paixão da fotografia e estava a tirar um curso de técnicas básicas.Presentemente o seu trabalho consistia em captar as transformações nas folhas de Outono.
- Sei que as que tirei esta semana,no auge das cores,vão ficar óptimas.Agora estou ansiosa por que uma boa tempestade comece a espalhar tudo.Não vai ser maravilhoso?
- Não há nada como uma boa tempestade a espalhar tudo - concordou Kerry.
Decidiram não comer sobremesa. O criado tinha acabado de regressar com o cartão de crédito de Kerry quando esta viu Robin ficar boquiaberta.
- O que é, Rob? - estranhou Kerry.
- O pai está ali. Vai ver- nos. - Robin pôs-se de pé num salto.
- Espera, Rob. Deixa-o vir ter contigo - aconselhou Kerry em voz baixa. Voltou-se e os seus olhos arregalaram-se. Seguindo o chefe de mesa, vinha Bob, acompanhado de outro homem: Jimmy Weeks.
Como de costume, o ex-marido estava com um aspecto formidável. Nem mesmo um longo dia no tribunal deixava sinais de fadiga no seu rosto atraente.
Nunca tens uma ruga nem um vinco, reflectiu Kerry consciente de que, na presença de Bob, tinha sempre o impulso de verificar a maquilhagem, alisar o cabelo, endireitar o casaco.
Robin, por seu lado, parecia extasiada enquanto o pai se aproxi mava. Feliz, retribuiu o abraço de Bob.
- Tenho pena de não ter atendido a sua chamada, pai. Oh, Robin, pensou Kerry. Depois, apercebeu-se de que Jimmy Weeks estava a olhar para ela.
- Fui-lhe apresentado no ano passado - cumprimentou ele.Tenho muito prazer em vê-la outra vez, Mrs. Kinellen.
- Deixei de usar esse nome há muito tempo, o meu nome voltou a ser McGrath. Mas o senhor tem boa memória, Mr. Weeks. - O tom de voz de Kerry era impessoal.
- Pode crer que tenho boa memória. - O sorriso de Weeks fez que a sua observação parecesse uma piada. - É muito útil quando nos lembramos de uma mulher muito atraente.
Poupa-me, disse Kerry para consigo com um sorriso contrafeito: Virou-se no momento em que Bob largava Robin e lhe estendia a mão.
- Kerry, que surpresa agradável.
- É geralmente uma surpresa quando te encontramos, Bob.
Kerry mordeu o lábio. Odiava-se a si própria quando atacava Bob em frente da filha. Forçou um sorriso.
- Estamos de saída.
QUANDo estavam sentados à mesa, Jimmy Weeks comentou:
- A tua ex-mulher não te aprecia muito, Bobby.
Kinellen encolheu os ombros.
- Kerry devia animar-se mais. Leva tudo demasiado a sério. Quem me dera que ela encontrasse alguém.
- O que é que aconteceu à cara da tua miúda?
- Estilhaços de vidro num choque sem importância. Vai ficar boa.
- Certificaste-te de que ela teve um bom cirurgião plástico?
- Sim. O que é que te apetece comer, Jimmy?
- Como é que se chama o médico? Talvez seja o mesmo que a minha mulher consultou.
Bob Kinellen amaldiçoou o azar de ter encontrado Kerry e Robin e ter de aturar Jimmy a fazer perguntas sobre o acidente.
- Charles Smith - respondeu ele por fim.
- Charles Smith? Só podes estar a brincar.
- Quem me dera que estivesse.
- Bem, ouvi dizer que ele vai reformar-se em breve. Tem problemas de saúde.
Kinellen pareceu surpreendido.
- Como é que sabes isso?
Jimmy olhou-o friamente.
- Tenho-o sob vigilância. Podes imaginar porquê. Já não deve demorar muito tempo.
NEsSA noite,o sonho voltou.Kerry estava novamente num consultório médico.Deitada no chão encontrava-se uma jovem com uma corda em volta do pescoço,o cabelo escuro emoldurando um rosto com enormes olhos desfocados, a boca aberta ansiando por respirar,a ponta da língua cor-de-rosa de fora.No sonho,Kerry tentou gritar,mas dos seus lábios apenas saiu um protesto abafado.Momentos depois,Robin estava a sacudi-la.
- Mãe.Mãe,acorde.O que é que se passa?
Kerry abriu os olhos.
- Oh,Rob! que pesadelo horrível.Obrigada.
Depois de Robin ter voltado para o seu quarto, Kerry permaneceu acordada, reflectindo sobre o sonho.Daquela vez,havia flores espalhadas em cima do corpo da mulher.Rosas.Sweethearr Roses,(as rosas do amor).
Sentou-se repentinamente.Era isso! As mulheres do consultório do Dr. Smith.Agora,sabia com quem elas eram parecidas.
Suzanne Reardon,a vítima do Caso do Crime por Amor.Tinham
passado quase onze anos desde que ela fora assassinada pelo marido, Skip Reardon. Fora objecto de grande atenção por parte da imprensa - um crime passional e rosas espalhadas sobre a bela vítima.
O dia em que eu comecei a trabalhar no gabinete do procurador foi aquele em que o júri declarou o marido culpado, recordou Kerry. Os jornais estavam cheios de fotografias de Suzanne. Tenho a certeza de que tenho razão disse para consigo. Mas por que motivo seriam duas das doentes do Dr.Smith sósias de uma vítima de homicídio?
PAMELA WORTH tinha sido um erro. Aquele pensamento manteve o Dr. Smith praticamente sem dormir durante toda a noite de segunda-feira. Nem mesmo a beleza do rosto que acabara de criar podia com pensar a falta de encanto da sua postura, a voz áspera e estridente.
Eu devia ter percebido, pensou ele.
E, na verdade, percebera, mas não fora capaz de se conter. A sua estrutura óssea fazia dela uma candidata extremamente fácil para a transformação. E sentir essa transformação a realizar-se sob as suas mãos permitira-lhe reviver parte dos momentos da primeira vez. Que iria fazer quando já não lhe fosse possível operar?, perguntou a si próprio. O momento aproximava-se. O tremor da mão direita iria agravar-se.
Acendeu a luz que iluminava o quadro pendurado na parede frente à sua cama. Olhava-o todas as noites antes de adormecer. Ela era tão bonita! Mas agora, olhando-a sem os óculos, a mulher do quadro parecia distorcida, tal como depois de morta.
- Suzanne - murmurou ele.
Depois, inundado pelo desgosto da recordação, tapou os olhos com o braço, bloqueando a imagem. suponha recordar como ela ficara nessa altura, despojada da sua beleza, com os olhos dilatados, a ponta da língua sobre o lábio inferior frouxo e o maxilar pendente.
Na TERçA-FEIRA, a primeira coisa que Kerry fez ao chegar ao escritório foi telefonar ao seu mentor e amigo Jonathan Hoover.
Como sempre, foi reconfortante ouvir a voz dele. Kerry foi direita ao assunto.
- Jonathan, Robin foi examinada pelo Dr. Smith ontem e parece estar tudo bem, mas eu ficava mais descansada se tivesse uma segunda opinião. Conhece algum bom cirurgião plástico?
- Não, mas deixa-me fazer umas investigações. Aconteceu alguma coisa que te fizesse tomar essa decisão?
- Sim e não. Quando estiver consigo, conto-lhe.
- Volto a falar contigo logo à tarde para te indicar um nome.
- Obrigada, Jonathan.
- De nada, Meritíssima Juíza.
- Jonathan, não diga isso. Dá azar. - Ao desligar o telefone, ouviu-o dar uma risadinha.
Em seguida, Kerry ligou para Joe Palumbo, um dos melhores investigadores do gabinete do procurador. Quande ele atendeu com o seu ha bitual Sim, ela perguntou:
- Joe, tens planos para o almoço?
- Não, Kerry. Queres levar-me ao Solari's?
Kerry riu-se.
- Adorava, mas a minha ideia é outra. Tu não estiveste envolvido com o homicídio Reardon há uns dez ou onze anos? Aquele que os meios de comunicação social apelidaram de Crime por Amor.
- Esse foi uma coisa em grande. Não, não estive, mas, se bem me lembro, foi um caso bastante rápido. O Nosso Chefe ganhou a sua reputação à custa dele.
Kerry sabia que Palumbo não morria de amores por Frank Green.
- Aconteceu uma coisa que me faz ficar intrigada com esse caso. Queria que me descobrisses tudo o que o Record publicou sobre o assunto - pediu ela, imaginando o bom do Joe a revirar os olhos.
- Por ti, Kerry, tenho muito gosto. Mas porquê? Esse caso está arrumado há muito tempo.
- Pergunta-me depois.
O almoço de Kerry foi uma sanduíche à secretária. À 1.30, Palumbo entrou com um gordo envelope na mão.
- Conforme solicitado.
Kerry olhou-o afectuosamente. Baixo, grisalho, com dez quilos a mais e um sorriso pronto, Joe tinha um ar de bonomia desarmante que não reflectia a sua capacidade para esmiuçar pormenores aparentemente irrelevantes. Tinha trabalhado com ele em alguns dos seus processos mais importantes.
- Fico em dívida - agradeceu ela.
- Deixa lá isso. Até logo.
Kerry tencionava levar o dossier para casa e lê-lo depois do jantar, mas não foi capaz de resistir à tentação de tirar o primeiro recorte. Era um apontamento recente referindo que o quinto requerimento de Skip Reardon para a realização de um novo julgamento, que fora indeferido pelo Supremo Tribunal de Nova Jérsia e que o seu advogado, Geoffrey Dorso, fizera a promessa solene de encontrar fundamentos para um novo recurso. As suas palavras foram, textualmente:
Vou continuar a insistir até que Skip Reardon saia da prisão completamente ilibado. Ele está inocente.
Claro, todos os advogados dizem o mesmo, pensou Kerry.
PELA SEGUNDA noite consecutiva, Bob Kinellen jantava com o seu cliente Jimmy Weeks. Estavam ambos sorumbáticos. Era quase certo que Barney Haskell - o co-arguido de Weeks, ia negociar um acordo.
- Mesmo que Haskell acabe por negociar o acordo, julgo que consigo desacreditá-lo no interrogatório - assegurou Bob Kinelle, - Jimmy.
- Julgas que consegues desacreditá-lo. Isso não chega, Bob. Estou a começar a ficar preocupado contigo. Acho que já é altura de arranjares um plano de emergência.
Bob Kinellen não reagiu à observação e abriu a ementa.
- Combinei ir ter com Alice mais logo a casa de Jason Arnott. Estavas a pensar lá ir?
- Não, livra! Dispenso mais apresentações dele, devias saber. Já me prejudicaram o suficiente.
KERRY e Robin estavam sentadas na sala de estar em silêncio, fazendo companhia uma à outra. Como a noite estava fria, tinham decidido acender a lareira, o que, no seu caso, significava abrir a torneira a gás e carregar no botão que acendia as labaredas dos troncos artificiais. Kerry era alérgica ao fumo, como costumava explicar às visitas.
Robin dispôs as fotografias da mudança de estação em cima damesa de apoio.
- Que noite maravilhosa! - exclamou ela com satisfação.
- e ventosa. Não vai tardar muito até eu conseguir as fotografias que tirei a Árvores nuas e muitas folhas no chão.
Kerry estava sentada na sua cadeira de braços preferida, com os pés em cima de um tamborete, e levantou os olhos.
- Não me fales em folhas que fico cansada.
- Porque é que não arranja um limpa-folhas?
- Dou-te um no Natal.
- Que graça. O que é que está a ler, mãe?
- Vem cá, Rob. - Kerry pegou num recorte de jornal com a fotografia de Suzanne Reardon. - Conheces esta senhora?
- Estava no consultório do Dr. Smith ontem.
- És boa observadora, mas não é a mesma pessoa. -
Kerry tinha começado naquele momento a ler o relato da morte de Suzanne.
O marido, o empreiteiro milionário Skip Reardon, sustentava que a tinha encontrado à meia-noite caída no chão do vestíbulo da sua mansão em Alpine. Fora estrangulada e havia rosas espalhadas sobre o cadáver.
Passados vinte minutos, Kerry leu o recorte que a fez abrir a boca de espanto: Skip Reardon tinha sido acusado de homicídio depois de seu sogro, o Dr. Charles Smith, ter declarado à Polícia que a filha vivia aterrada pelos ciúmes irracionais do marido. O Dr Smith era o pai de Suzanne Reardon!
É incrível, pensou Kerry. Será por isso que ele dá o rosto dela a outras mulheres? Que coisa bizarra.
- O que é, mãe? Está com uma cara estranha - observou Robin.
- Não é nada. É apenas um processo em que eu estou interessada. - Kerry olhou para o relógio que estava sobre a lareira. - São nove horas, Rob. É melhor arrumares isso e ires para a cama. Eu já vou lá acima dar-te as boas-noites.
Enquanto Robin juntava as fotografias, Kerry deixou cair um recorte oo colo. Já tinha ouvido falar de pais que nunca conseguiam recuperar do choque provocado pela morte de um filho, que deixavam o seu quarto exactamente como ele o deixara. Mas recriá-la, e fazê-lo repetida mente? Aquilo ia muito para além do desgosto, não tinha qualquer lógica.
Lentamente, levantou-se e seguiu Robin pelas escadas acima. Depois de ter dado à filha um beijo de boas-noites, voltou para baixo, fez uma chávena de chocolate e prosseguiu a leitura.
O processo contra Skip Reardon parecia bastante simples. Este admitira que ele e Suzanne tinham discutido ao pequeno-almoço na manhã da sua morte. Admitira que chegara a casa às 6 horas e a encontrara a pôr rosas numa jarra. Quando lhe perguntara de onde é que as rosas tinham vindo, ela respondera-lhe que ele não tinha nada a ver com isso. Declarou que lhe dissera que quem quer que lhas tivesse enviado podia estar à vontade porque ele ia sair. Depois, afirmou que regressara ao escritório, tomara um par de bebidas, adormecera no sofá e voltara à meia-noite para casa, onde a encontrara morta.
No entanto, não tinha havido ninguém que corroborasse a sua versão. O dossier continha parte da transcrição do julgamento, incluindo o testemunho de Skip. O procurador pressionara-o até ao ponto de ele se sentir confuso e parecer contradizer-se.
O advogado fizera um trabalho péssimo ao prepará-lo para depor, pensou Kerry. Tinha perfeita consciência de que, com as fortes provas circunstanciais de que o procurador dispunha, era imperativo que Reardon se sentasse para depor e negasse ter morto Suzanne. Mas era óbvio que o contra-interrogatório contundente de Frank Green o desorientara completamente. Não há dúvida, pensou ela, de que Reardon ajudou a cavar a sua própria sepultura.
Kerry até fora assistir à leitura da sentença e recordou esse dia. Quando o juiz lhe perguntara se ele queria dizer alguma coisa antes de aquela ser lida, ele afirmara, uma vez mais, a sua inocência.
Geoff Dorso estivera com Reardon nesse dia na sua qualidade de assistente do advogado de defesa. Embora Kerry não o conhecesse pessoalmente e nunca o tivesse defrontado em tribunal, Geoff construíra, ao longo dos dez anos seguintes, uma sólida reputação como advogado de defesa em processos-crime.
Chegou ao recorte sobre a condenação. Este incluía uma citação das palavras de Skip Reardon:
Estou inocente da morte da minha mulher. Nunca lhe fiz mal. Nunca a ameacei. O pai dela, o Dr. Charles Smith, está a mentir. Perante Deus e este tribunal, juro que ele está a mentir.
Apesar do calor da lareira, ela sentiu um arrepio.
Toda a gente sabia, ou pensava que sabia, que Jason Arnott tinha fortuna de família. Vivia em Alpine há quinze anos, desde que comprara a velha Casa Halliday, uma mansão de vinte divisões com uma vista soberba sobre o parque interestadual de Palisades.
Com pouco mais de cinquenta anos, Jason era de estatura média, tinha cabelo ralo castanho, olhos atentos e porte aprumado. Viajava muito, falava vagamente de investimentos no Oriente e era um apreciador da beleza. A sua casa, com requintado mobiliário antigo, belos quadros e delicados objectos de arte, era um regalo para os olhos. Anfitrião perfeito, Jason recebia sumptuosamente e era, por sua vez, assediado por convites dos poderosos, dos quase-poderosos e dos que eram apenas ricos. Os seus amigos achavam-no pitoresco, um pouco misterioso e profundamente sedutor.
O que eles ignoravam é que Jason era um ladrão. Nunca ninguém parecera deduzir que, após um espaço de tempo conveniente, praticamente todas as casas que ele visitava eram assaltadas. Ninguém imaginava que Jason tinha várias identidades e uma residência secreta numa área remota das montanhas de Catskills, onde era conhecido como um eremita pelos seus raros vizinhos. Se a casa de Alpine era requintada, a de Catskills era impressionante, pois era aí que Jason guardava as peças furtadas de que não conseguia separar-se.
Tudo o que havia em Alpine fora adquirido com o dinheiro proveniente dos objectos roubados que Jason vendera. Não havia nada que alguma vez pudesse chamar a atenção de alguém com memória fotográfica para bens roubados. Jason podia dizer com confiança: Sim, é muito bonito, não é? Comprei-o no ano passado num leilão da Sotheby's.
Apesar disso, ele tivera algumas fugas precipitadas. Uma das piores ocorrera onze anos antes, quando a sua mulher-a-dias em Alpine deixara cair a carteira de documentos, espalhando o seu conteúdo. Ao apanhá-lo, esquecera-se da folha de papel que continha os códigos de acesso de quatro residências de Alpine. Jason anotara-os, colocara o pa pel no mesmo lugar antes de a mulher se aperceber de que desaparecera e depois, não conseguindo resistir à tentação, assaltara as quatro casas: a dos Ellots, dos Ashtons, dos Donatellis. E a dos Reardons. Jason ainda estremecia ao recordar-se daquela noite terrível.
Mas isso fora há muitos anos, e Skip Reardon estava, felizmente, na prisão. Nessa noite, a festa estava animada. Jason agradeceu, sorri dente, os cumprimentos efusivos de Alice Bartlett Kinellen.
- Espero que Bob consiga vir - comentou Jason.
- Ah, há-de aparecer. Ele sabe que é melhor não me desapontar.
Alice era uma bonita loura do tipo Grace Kelly, mas sem qualquer vestígio da simpatia e do encanto da falecida princesa. Alice era fria Como o gelo. E também maçadora e possessiva, pensou Jason. KComo é que Bob Kinellen a suporta?
- Foi jantar com Jimmy Weeks - confidenciou Alice enquanto bebia uma taça de champanhe.
- Bem, espero que Jimmy também venha - replicou Jason com sinceridade. - Simpatizo com ele. - Mas sabia perfeitamente que não viria. Weeks não aparecia nas suas festas há anos. Na verdade, evitava Alpine desde o assassínio de Suzanne Reardon. Onze anos antes, Jimmy Weeks conhecera Suzanne numa festa em casa de Jason Arnott.
ERA evidente que Frank Green estava irritado. Não havia sequer vestígios do sorriso que brilhava tão prontamente, exibindo os
seus dentes recentemente embranquecidos, no momento em que ele olhou para Kerry, do lado oposto da secretária.
Devia ter adivinhado, pensou ela, que Frank seria o primeiro a não querer ouvir ninguém a levantar questões sobre o processo que o lançou na ribalta, sobretudo agora, com os insistentes rumores sobre a sua candidatura a governador.
Depois de ler o dossier com os recortes de jornais sobre o Caso do Crime por Amor, Kerry fora deitar-se, tentando decidir o que devia fazer quanto ao Dr. Smith. Deveria confrontá-lo, perguntar-lhe directamente porque é que ele andava a recriar a filha nos rostos de outras muIheres? O mais provável seria ele expulsá-la do consultório e negar tudo. Finalmente, concluíra que o melhor seria começar por Frank
Green, uma vez que ele participara no julgamento. Agora, que lhe tinha explicado a razão pela qual andava a investigar o caso, era óbvio que a sua pergunta Pensa que há alguma possibilidade de o Dr. Smith ter mentido quando testemunhou contra Skip Reardon, não ia receber uma resposta amigável.
- Kerry - disse Green -, Skip Reardon matou a mulher. Ele sabia que ela andava a traí-lo. No próprio dia em que a assassinou, tinha telefonado ao seu contabilista para saber quanto é que o divórcio lhe custaria, e ficou doido quando soube que lhe ia sair bem caro. Ele era um homem rico, e Suzanne abandonara uma lucrativa carreira de modelo para ser mulher dele a tempo inteiro. Perante isto, pôr em causa a credibilidade do Dr. Smith é pura perda de tempo.
- Mas há qualquer coisa de errado com o Dr. Smith - replicou Kerry lentamente. - Frank, eu não estou a tentar arranjar problemas, mas asseguro-lhe que o Dr. Smith é mais do que um simples pai abalado pelo desgosto.
Green olhou para o relógio.
- Kerry, acabaste de resolver um processo importante, estás prestes a começar outro, tens a perspectiva de uma carreira na magistratura. Foi um azar Robin ter sido tratada pelo pai de Suzanne Reardon: Quanto muito ele não foi a testemunha ideal, não demonstrou o mais leve vestígio de emoção ao falar da filha. Fiquei até aliviado por o juiz ter acreditado no testemunho dele. Faz um favor a ti própria e esquece o assunto.
Era evidente que a reunião acabara.
De regresso ao seu gabinete, Kerry sentou-se, olhando o vazio. Ela compreendia que Frank Green ficasse alarmado pelo facto de ela andar a fazer perguntas acerca da sua principal testemunha no Caso do Crime por Amor. Provavelmente, o Dr. Smith não passa de um pai obcecado pelo desgosto, disse ela para consigo, e Skip Reardon é mais um dos inumeráveis assassinos que clamam a sua inocência.
Ainda assim, ela sabia que não podia deixar as coisas ficarem por ali. No sábado, quando levasse Robin ao cirurgião plástico que Jona than lhe recomendara, perguntaria ao médico se alguma vez consideraria a possibilidade de dar o mesmo rosto a várias mulheres.
Nesse dia, às 6.30, Geoff Dorso deu uma vista de olhos pela Folha de mensagens que tinham chegado enquanto ele estivera no tribunal.
Com trinta e oito anos, Geoff era alto e magro. O seu cabelo negro-azeviche e a pele morena comprovavam a sua ascendência italiana.
Os olhos, de um azul intenso, eram herança da avó, meio inglesa, meio irlandesa. Ainda solteiro, a sua aparência revelava este facto. As suas gravatas i calças eram escolhidas sem qualquer critério, e as roupas tinham, em geral, um ar ligeiramente amarrotado. Mas a pilha de mensagens era uma prova da sua excelente reputação como advogado.
Ao folheá-las, ergueu subitamente as sobrancelhas. Havia um pedido para ele telefonar à delegada do procurador, Kerry McGrath, que indicara os seus números de telefone, tanto do escritório como de casa.
Que será?, perguntou a si próprio.
Ao longo dos anos, tinha visto Kerry nos jantares da Ordem dos Advogados e sabia que ela estava lançada para uma carreira na magistratura, mas não a conhecia muito bem. Aquele telefonema intrigou-o. Era demasiado tarde para a apanhar no escritório. Decidiu telefonar-lhe de imediato para casa.
- Eu atendo - disse Robin quando o telefone tocou.
O mais certo é ser para ti, pensou Kerry,provando o esparguete.
Sempre pensei que a doença do telefone não se manifestasse antes da adolescência, reflectiu.Nessa altura,Robin gritou-lhe que era para ela.Atravessou a cozinha apressadamente até ao telefone e ouviu uma voz desconhecida dizer:
- Kerry?
- Sim.
- Fala Geoff Dorso.
Deixara-lhe o recado num impulso.Depois,ficara nervosa por tê-lo feito.Se Frank Green viesse a saber que ela tinha contactado o advogado de Skip Reardon,não ficaria muito satisfeito.
- Geoff,isto é,provavelmente,irrelevante mas a minha filha teve um acidente há pouco tempo e foi tratada pelo Dr.Smith.
- Charles Smith? - interrompeu Dorso.- O pai de Suzanne
Reardon !
- Sim,e o problema é esse mesmo.Passa-se qualquer coisa bizarra com ele.- Falou-lhe então das duas mulheres parecidas com Suzanne.
- Queres dizer que Smith está mesmo a dar-lhes a cara da filha?! - exclamou Dorso.- Mas que diabo se passa?
- É isso que me preocupa.Ocorreu-me que,se eu lesse a transcrição completa do julgamento,poderia ficar com uma ideia mais clara sobre o Dr.Smith.Posso arranjar uma através do gabinete,mas levaria o seu tempo,e eu não quero que se espalhe que ando a investigar.
- Faço-te chegar uma cópia ao escritório amanhã - prometeu
Dorso.
- Não, é melhor mandares-ma aqui para casa. Eu dou-te a morada.
Enquanto a anotava,ele acrescentou:
- Gostava de a levar em mão e conversar contigo.Amanhã,pode
ser? Por volta das seis e meia?
- Acho que sim.
- Então,até amanhã.E obrigado,Kerry.
O telefone deu um estalido.
Kerry olhou para o auscultador.Não lhe tinha escapado a nota de excitação na voz de Dorso. Não devia ter usado a palavra bizarro - pensou ela. Fui despoletar uma situação que posso não conseguir parar.
NEssE dia, o Dr. Smith tinha desmarcado todos os seus compromissos. Ao descer a Rua 68, a caminho do prédio de tijolo onde estava sediada a firma de relações públicas em que Barbara Tompkins trabalhava,os seus olhos arregalaram-se com a sorte que tivera.Havia um lugar para estacionar mesmo em frente à entrada do prédio; podia ficar ali sentado à espera que ela saísse.
Quando finalmente ela apareceu à porta, ele sorriu involuntariamente.Estava linda.Como ele sugerira,usava o cabelo solto em redor do rosto - a melhor maneira de emoldurar as suas novas feições.
Quando ela fez sinal a um táxi,ele ligou a ignição do seu Mercedes preto e começou a segui-la.Dirigiram-se para sul,e o táxi acabou por parar diante do Four Seasons,na Rua 52 Este.
Barbara deve ir encontrar-se lá com alguém para tomar uma bebida, pensou ele.
O bar devia estar cheio àquela hora.Ser-lhe-ia fácil entrar sem ser visto.
Abanando a cabeça,resolveu ir antes para casa.Vê-la de relance tinha sido o suficiente.Quase demasiado.Por instantes,chegara mesmo a acreditar que ela era Suzanne.
Enquanto dirigia pelo centro da cidade,repetia sem cessar:
- Perdoa-me, Susanne.
Quando, por aCAso, Jonathan Hoover estava em Hackensack, costumava tentar convencer Kerry a acompanhá-lo num almoço rápido. Nesse dia, enquanto comiam um hamburger no Solari's, o restaurante da esquina junto ao tribunal, contou-lhe todos os pormenores sobre as sósias de Suzanne Reardon e a reacção pouco favorável do u chefe perante a possibilidade de ela poder vir a examinar o velho caso de homicídio.
Jonathan ficou profundamente apreensivo.
- Kerry, eu não me lembro bem desse processo, mas penso que não te deves meter nisso, especialmente tendo em conta o empenhamento de Frank Green, bastante notório, se bem recordo, em garantir a condenação. Sê realista. O governador Marshall já cumpriu dois mandatos e não pode candidatar-se a um terceiro mandato consecutivo, mas gosta imenso daquilo que faz. Quer que Frank ocupe o seu lugar, e, aqui para nós, eles negociaram um acordo. Green assume o cargo de governador durante quatro anos; depois, candidata-se ao Senado dos Estados Unidos com o apoio de Marshall.
- E Marshall regressa à mansão do governador.
- Precisamente. Neste momento, é praticamente certo que Green vai conseguir a nomeação. Mas se tu reabrires o caso Reardon, sabes o que os meios de comunicação social fariam se se levantasse a suspeita de que Green fizera condenar um homem inocente a prisão perpétua?
- Jonathan, está a ir mais longe do que eu pretendo. Eu não estou a partir desse pressuposto. Sinto apenas que o Dr. Smith tem um grave problema e que isso pode ter influenciado o seu testemunho. Se ele mentiu, fico realmente com dúvidas sobre a culpabilidade de Reardon.
A expressão de Jonathan tornou-se grave.
- Kerry, se embaraçares Frank Green e puseres a nomeação dele em causa, o mais provável é teres de dizer adeus à magistratura. - Fez uma pausa e depois pegou na mão de Kerry. - Pensa bem nisso antes de fazeres seja o que for. Tenho a certeza de que vais tomar a decisão correcta.
Às 6.30 DA tarde, o toque da campainha fez que Robin corresse a saudar Geoff Dorso. Kerry dissera-lhe que ele vinha para estudarem um processo. Robin tinha prometido ir para o quarto acabar os trabalhos de casa enquanto Kerry estivesse ocupada.
Ela examinou Dorso com benevolência e conduziu-o até à sala.
- A minha mãe já desce - disse ela. - Chamo-me Robin.
- E eu, Geoff Dorso. Como é que o outro tipo ficou? - perguntou Geoff. Com um sorriso, apontou para as marcas ainda bem visíveis no rosto dela.
Robin sorriu.
- Deixei-o estendido no chão. Bem, na verdade, foi um pequeno acidente de automóvel, com vidros a voarem.
- Parece estar a cicatrizar bem.
- O Dr.Smith,que é o cirurgião plástico,diz que sim.A mãe
diz que u senhor o conhece.Eu acho que ele é uma pessoa horrível.
- Robin!
Kerry tinha acabado de descer as escadas.
- Disse uma grande verdade.
- Kerry,prazer em ver-te. - comentou Dorso,sorrindo.
- Também gosto de te ver,Geoff.
Espero estar a ser sincera pensou ela ao pousar os olhos na pasta a abarrotar que Dorso trazia debaixo do braço.
- Robin...
- Já sei.Os trabalhos de casa.- Com um aceno de despedida, Robin dirigiu-se para as escadas.
Depois de ela ter saído,Geoff Dorso sorriu.
- É uma miúda simpática,Ke me faz crer que, daqui a alguns anos, vais ter de barricar a porta. e é uma brasa.
- Que perspectiva assustadora.Tomas um café,uma bebida, um copo de vinho,Geoff?
- Não,obrigado.Não quero roubar-te muito tempo.- Pousou
a Pasta em cima da mesa de apoio.- Queres examinar o que tenho aqui?
- Claro.- Sentou-se ao lado dele no sofá,enquanto ele tirava dois grossos maços de papéis atados.
- A transcrição do julgamento - explicou ele.- Mil páginas. Para falar francamente, tenho vergonha do modo como a defesa foi montada.Skip nãn estava devidamente preparado para depor.As testemunhas de acusação não foram interrogadas com convicção,e só convocámos duas testemunhas abonatórias do carácter de Skip quando devíamos ter convocado vinte.
- Porque é que as coisas foram conduzidas assim?
- Em tempos,Tim Farrell foi um bom advogado de defesa,mas
quando Skip Reardnn o contratou,ele já tinha perdido o ânimo e garra.Pura e simplesmente,não estava interessado em mais outro processo de homicídio.
- E tu não podias ter compensado essa falha?
- Não,na realidade não.Eu tinha acabado de sair da faculdade. tinha pouca experiência.De facto,a minha participação no julgamento foi muito reduzida.Basicamente,não passei de um moço de recados. Mas, apesar da minha inexperiência,foi para mim bastante óbvio que o julgamento foi mal conduzido.
- E Frank Green deu cabo dele no contra-interrogatório.
- Como podes ler,conseguiu levar Skip a admitir que ele e Suzanne tinham discutido nessa manhã, que ele tinha falado com o contabilista para averiguar quanto é que um divórcio custaria, que tinha chegado a casa às seis horas e discutido com Suzanne mais uma vez. O mé dico-legista estimou que a morte teria ocorrido algures entre as seis e as oito, pelo que Skip podia, de acordo com o seu próprio testemunho, ter estado no local à hora do crime.
- Segundo o relato que li, Reardon afirmou que regressou ao escritório, tomou uma ou duas bebidas e adormeceu. Isto é muito pouco consistente.
- É pouco consistente, mas é a verdade. Skip tinha montado um negócio bastante bem-sucedido de construção de habitações de luxo. iNos últimos tempos, expandira-se para a área dos centros comerciais. Frequentemente, vestia o fato-macaco e passava o dia com os trabalhadores. Fora isso que fizera nesse dia antes de regressar ao escritório. O pobre estava cansado.
Skip estava convencido - prosseguiu ele - de que Suzanne andava envolvida com outro homem, talvez mesmo com mais do que um. O que precipitou a segunda discussão, quando ele foi a casa às seis horas, foi o facto de a ter encontrado a arranjar um ramo de rosas vermelhas, rosas do amor, penso que foi assim que a imprensa lhes chamou, que ele não lhe tinha enviado. A acusação afirmou que ele perdeu a cabeça, a estrangulou e depois atirou as rosas sobre o seu cadáver. Ele jura que não o fez, que, quando saiu de casa, Suzanne ainda continuava muito bem-disposta a arranjar as flores.
- Alguém se lembrou de investigar junto das floristas locais para saber se as flores tinham sido encomendadas em alguma delas?
- Pelo menos isso, Farrell investigou. Não se descobriu nada.
Geoff pôs-se de pé.
- Eu sei que é pedir muito, Kerry, mas depois de leres a transcrição gostava que viesses comigo à prisão de Trenton State ! para falares pessoalmente com Skip. Juro que vais perceber que ele diz a verdade quando ouvires a sua história. Ela acompanhou Geoff à porta.
- Telefono-te dentro de uns dias - prometeu ela.
NA prisão de Trenton State, Skip Reardon estava deitado no catre da sua cela a ver o noticiário das 6.30. Após dez anos naquele lugar, conseguira, na generalidade, encontrar um modo de vida passável. A princípio, flutuara entre uma espécie de esperança louca durante os trâ mites de um recurso e o mais profundo desespero quando ele era recusado. Agora, o seu estado de espírito habitual era de uma resignação cansada.
Em momentos de maior desânimo, Skip permitia-se recordar os anos que haviam antecedido o assassínio, apercebendo-se de como tinha sido louco. Ele e Beth Taylor estavam praticamente noivos. instado por Beth, fora sozinho a uma festa dada pela irmã dela e marido, que era cirurgião. Beth estava doente, com um vírus qualquer, mas não queria que ele deixasse de se divertir.
Sim, muito divertido, pensou Skip com ironia, relembrando adita noite.
Suzanne e o pai estavam lá. Mesmo agora, não conseguia esquecer-se do aspecto dela quando a vira pela primeira vez. Percebeu imediatamente que ela iria trazer-lhe problemas, mas, mesmo assim, apaixonara-se.
Agora, o sonho que acalentava era por um milagre qualquer, ficar em liberdade e voltar à construção civil. Tinha blocos de folhas cheios de projectos. Sempre que Beth vinha visitá-lo, mostrava-lhe os mais recentes, e ficavam a conversar sobre eles, como se um dia ele pudesse realmente voltar ao trabalho de que tanto gostava - construir casas.
Só que agora ele tinha de perguntar a si próprio: em que espécie de casas viveriam as pessoas quando ele conseguisse, finalmente, sair daquele lugar terrível?
KERRY começou a ler a transcrição do julgamento depois de Rob ter ido para a cama. Quando acabou, tinha várias páginas de notas e dúvidas.
As rosas: se Skip Reardon não as enviara, quem o fizera? Dolly Bowles, a babysitter que estava na casa em frente à dos Reardons afirmara que na noite do homicídio vira um carro diante da casa dos Reardons às 9 horas. Mas a essa hora uns vizinhos estavam a dar uma festa, e alguns dos convidados tinham estacionado os carros na rua. Dolly fora uma testemunha muito pouco convincente em tribunal. Frank Green sublinhara o facto de ela já ter apresentado queixa de pessoas com aspecto suspeito no bairro em seis ocasiões diferentes naquele ano. De todas essas vezes viera a descobrir- se que o suspeito era, pura e simplesmente, um funcionário de entregas perfeitamente honesto.
Tinha havido uma série de assaltos em Alpine na época em que Suzanne Reardon fora morta. Skip Reardon afirmara que algumas jóias de Suzanne tinham desaparecido, mas na cómoda foi encontrada a salva cheia de jóias valiosas.
Nessa noite, enquanto se despia para ir para a cama, Kerry decidiu que havia duas coisas que tinha de fazer: falar com o Dr. Smith e ir à prisão estadual de Trenton visitar Skip Reardon.
No sábado de manhã, às 10 horas, Kerry e uma Robin impaciente encontravam-se em Livingston, Nova Jérsia, no consultório do Dr. Ben Roth, um reputado cirurgião plástico.
- Vou perder o jogo de futebol - queixou-se Robin.
- Só vais chegar um bocadinho atrasada - acalmou-a Kerry.Não te preocupes.
- Muito atrasada - protestou Robin. - Porque é que ele não podia ver-me logo à tarde depois do jogo?
- Se tivesses mandado a tua agenda ao doutor, talvez ele pudesse ter marcado outra hora - brincou Kerry.
- Oh, mãe.
- Robin pode entrar agora, Ms. McGrath - anunciou a recepcionista.
O Dr. Roth,um homem de trinta e tal anos,simpático e afável,era um agradável contraste em relação ao Dr. Smith. Examinou atentamente o rosto de Robin.
- As lacerações tinham,provavelmente,bastante mau aspecto após o acidente,mas eram aquilo que costumamos designar por superficiais. Não penetraram profundamente na derme.Não há qualquer problema.
Robin pareceu aliviada.
- Óptimo.Obrigada,Sr.Doutor.Vamos embora,mãe.
- Espera por mim na recepção,Robin.Eu vou já.Quero falar com o Sr.Doutor.- A voz de Kerry tinha o timbre a que Robin costumava chamar o tom e que significava Nada de discussões.
- Está bem - anuiu Robin com um suspiro exagerado,saindo da sala.
- Eu sei que tem mais doentes à espera, pelo que serei breve, mas há uma coisa que tenho de perguntar-lhe, doutor - declarou Kerry.
Poucos minutos depois, Kerry foi ter com Robin e dirigiram-se apressadamente para o campo de futebol. Ao contrário de Kerry, Robin não era uma atleta nata, e Kerry passara longas horas a treinar com ela, porque Robin estava firmemente decidida a ser uma boa jogadora. Naquele momento, ao ver Robin a chutar com confiança a bola para dentro da baliza, reflectiu na resposta clara do Dr. Roth à sua pergunta:
É um facto que alguns cirurgiões dão a toda a gente o mesmo nariz, o mesmo queixo ou os mesmos olhos, mas considero extremamente insólito que um cirurgião faça, no fundo, a cópia dos rostos dos seus pacientes.
Às 11.30, o seu olhar cruzou- se com o de Robin, e ela acenou em sinal de despedida. Depois do jogo, Robin ia com a sua melhor amiga, Cassie, passar a tarde em casa dela.
Kerry pôs-se então a caminho da prisão estadual de Trenton. Tinha combinado encontrar- se lá com Geoff Dorso à 1.45.
KeRRy encontrou Geoff à sua espera na área destinada ao registo dos visitantes.Pouco falaram enquanto esperavam pelo encontro com Skip Reardon,às 3horas.Às 3em ponto,um guarda aproximou-se deles e disse-lhes que o seguissem.
Kerry não sabia exactamente o que havia de esperar do aspecto actual de Skip Reardon.Tinham passado dez anos desde a leitura da sentença.A impressão que retivera dele era a de um jovem alto e bem- parecido de cabelo ruivo.Mas,mais do que a sua aparência,foram as suas palavras que lhe ficaram gravadas na memória:
- O Dr.Charles Smit está a mentir.Perante Deus e este tribunal,juro que ele está a mentir!
Reardon apareceu com as calças de algodão e a camisa sem colarinho que os prisioneiros usavam.O cabelo ruivo estava raiado de cin zento,mas,à excepção das rugas em redor dos olhos,continuava bastante semelhante à imagem que Kerry tinha dele.Um sorriso brilhou no seu rosto quando Geoff o apresentou.Um sorriso de esperança,notou Kerry com angústia.
Geoff foi directo ao assunto.
- Skip,como te disse,Ms.McGrath gostaria de fazer-te algumas perguntas.
Kerry sorriu e foi direita à questão que motivara aquele encontro.
- No seu depoimento,o Dr.Smith jurou que a filha dele,a sua mulher,o receava e que o senhor a ameaçara.O senhor afirma que ele estava a mentir,mas qual seria o objectivo dele ao mentir sobre isso?
As mãos de Reardon estavam entrelaçadas sobre a mesa à sua frente.
- Ms. McGrath, se eu possuísse qualquer explicação para os actos do Dr. Smith, talvez não estivesse aqui neste momento. Suzanne e euestivemos casados quatro anos e, durante esse período de tempo, pouco vi o Dr. Smith. De vez em quando, ela ia até Nova Iorque para jantarem juntos ou ele ia lá a casa, mas geralmente eu encontrava- me ausente em viagem de negócios. Naquela altura, o meu negócio de construção estava em franco progresso, tinha obras em todo o estado. Ausentava-me com frequência por uns dias. Quando estava com o Smith, ele nunca deu a entender que não gostava de mim. muito nenos agiu como se pensasse que a filha estava em perigo.
- Qual era a atitude dele em relação a ela?
- Quando eu andava no colégio, as freiras zangavam-se connosco por falarmos na igreja e diziam-nos que devíamos ter reverência num lugar sagrado. Bem, era assim que o Dr. Smith a tratava. Com reverência.
Estranha palavra para definir a atitude de um pai para com a filha, pensou Kerry.
- Era também muito protector - acrescentou Reardon. - Uma noite, íamos os três de automóvel jantar a qualquer lado quando ele reparou que Suzanne não tinha posto o cinto de segurança. Então, começou a pregar-lhe um sermão, dizendo que ela tinha de tomar cuidado com a sua pessoa. Chegou mesmo a ficar zangado por isso.
Da mesma maneira que me pregou um sermão a mim e a Robin, pensou Kerry.
- Como é que ela se comportava com ele?
- Respeitosamente, na maior parte das vezes. Embora para o fim, antes de ser assassinada, parecesse um pouco irritada com ele.
Kerry debruçou-se então sobre outros aspectos do processo, interrogando Skip sobre a declaração dele de que, pouco antes do homicídio, reparara que Suzanne usava jóias valiosas que ele não lhe tinha oferecido.
- Ms. McGrath, gostava que falasse com a minha mãe, ela explica-lhe. Tem uma fotografia de Suzanne de um jornal qualquer, tirada numa festa de caridade, em que ela está com um alfinete de diamantes antigo na lapela do casaco. A fotografia foi tirada apenas duas semanas antes de ela ser assassinada. Juro-lhe que aquele alfinete e mais um par de outras jóias nenhuma das quais lhe dei, estavam no guarda-jóias naquela manhã. Lembro-me porque essa foi uma das razões pela qual dis cutimos, e essas peças não estavam lá no dia seguinte.
- Quer dizer que alguém as levou?
- Não sei se as levaram ou se ela as devolveu mas afirmo que faltavam jóias na manhã seguinte. Eu contei isto à Polícia, mas foi bem evidente, desde o início, que eles não acreditaram em mim. Pensaram que eu estava a tentar dar a ideia de que ela fora assaltada e morta por um intruso.
Outra coisa - continuou Reardon. - O meu pai combateu na Segunda Guerra Mundial e esteve na Alemanha durante dois anos depois de a guerra terminar. Trouxe consigo uma pequena moldura que ofereceu à minha mãe quando ficaram noivos. A minha mãe deu-me essa moldura quando Suzanne eu nos casámos. Suzanne pôs-lhe uma fotografia dela, a minha preferida, e tinha-a na mesa-de-cabeceira. Quando a minha mãe e eu separámos as coisas de Suzanne antes de eu ser preso, ela reparou que a moldura tinha desaparecido. Eu sei que estava lá naquela última manhã.
- Está a dizer que, na noite em que Suzanne morreu, alguém entrou lá em casa, roubou algumas jóias e uma moldura? - perguntou Kerry.
- Estou a dizer-lhe aquilo que sei que desapareceu.
Kerry levantou os olhos dos apontamentos e olhou a direito para os olhos do homem que tinha à sua frente.
- Skip, como era o seu relacionamento com a sua mulher? Reardon suspirou.
- Quando a conheci, fiquei completamente estonteado. Ela era linda, o tipo de mulher que põe a cabeça de um homem a andar à roda. Depois de nos casarmos... - Fez uma pausa. - Era só fogo, não havia nenhum calor. Fui educado a pensar que uma pessoa deve esforçar-se para que o casamento funcione, que o divórcio é o último recurso. E, claro, houve alguns bons momentos. Se eu era feliz? Não, mas andava tão ocupado a fazer crescer a minha empresa que conseguia evitar encarar o problema de frente.
Quanto a Suzanne, ela parecia ter tudo o que queria. Dinheiro não faltava. Ia todos os dias ao clube jogar golfe, eu construí-lhe a casa dos seus sonhos e ela passou dois anos a decorá-la. Há um tipo que vive em Alpine - Jason Arnott - que percebe imenso de antiguidades. Ele levava Suzanne aos leilões e dizia- lhe o que havia de comprar. Ela era como uma criança que queria que todos os dias fossem Natal. Adorava ir a festas que tivessem a cobertura da imprensa para que a sua fotografia viesse no jormal. Eu pensava que ela era feliz, mas, ao olhar para trás, tenho a certeza de que ela só continuava comigo porque não tinha encontrado nada melhor.
- Até que... - interrompeu Geoff.
- Até que alguém que ela conheceu se tornou importante - prosseguiu Reardon. - Foi nessa altura que eu reparei em jóias que nunca tinha visto. Algumas eram peças antigas, outras muito modernas. Ela afirmava que fora o pai quem Ihas dera, mas eu sabia que era mentira. É o pai que tem todas as jóias dela agora, incluindo as que eu lhe dei.
Quando o guarda fez sinal de que o tempo acabara, Reardon levantou-se e olhou a direito para Kerry.
- Ms. McGrath, eu não devia estar aqui. Algures, lá fora, o homem que matou Suzanne anda à solta. E também algures tem de haver alguma coisa que o prove.
Geoff e Kerry foram juntos até ao parque de estacionamento.
- Não queres almoçar qualquer coisa rápida? - sugeriu ele.
- Tenho de voltar para o escritório. Geoff, devo dizer-te que, pelo que ouvi hoje, não encontro uma única razão para que o Dr. Smith tivesse mentido acerca de Skip Reardon. Reardon afirma que eles tinham uma relação relativamente cordial. Ouviste-o dizer que ele não acreditou em Suzanne quando esta lhe disse que o pai lhe dera algumas jóias. Se ele começou a ficar com ciúmes por causa dessas peças, bem... Não acabou a frase.
No DoMINGo de manhã, Robin ajudou à missa das 10 horas. Kerry pensou que, quando era pequena, só os rapazes ajudavam à missa.
Como as coisas mudam, reflectiu ela. Nunca imaginei ver a minha filha no altar; nunca imaginei que me iria divorciar; nunca imaginei que um dia seria juíza. Poderia vir a ser juíza, corrigiu. Sabia que Jonathan tinha razão: embaraçar Frank Green podia ser um golpe fatal para a sua nomeação. A visita da véspera a Skip Reardon podia ter sido um grave erro. Porquê estragar a vida novamente? Já fizera isso uma vez.
Sabia que tinha conseguido ultrapassar todas as etapas do seu en volvimento emocional com Bob Kinellen - amando-o a princípio, depois ficando com o coração destroçado quando ele a deixara, a seguir ressentida com ele e desprezando-se a si própria por não se ter apercebido até que ponto ele era oportunista.
Se ao menos Bob tivesse sido a pessoa que eu imaginei que era, pensou ela. Se ele fosse ao menos a pessoa que ele pensa que é. Então, já estariam casados há onze anos. Então, ela já teria certamente tido mais filhos. Sempre desejara ter três.
Enquanto observava Robin a levar até ao altar a galheta de água nos preparativos para a consagração, a filha levantou os olhos e o seu olhar cruzou-se com o de Kerry. O breve sorriso da filha enterneceu Kerry.
De que é que eu estou a queixar-me?, interrogou-se. Tenho-a a ela. No que respeita a casamentos, o meu e o de Bob pode estar longe de ter sido perfeito, mas, pelo menos, alguma coisa boa resultou dele. Mais ninguém, senão nós, podia ter tido exactamente esta criança maravilhosa, reflectiu ela.
Continuando a observá-la, lembrou-se de outro pai e de outra filha, do Dr. Smith e de Suzanne. Ela tinha sido o produto único dos seus genes e dos da sua ex-mulher. No seu depoimento, o Dr. Smith declarara que, depois do divórcio, a mulher se tinha mudado para a Califórnia e voltara a casar, e ele permitira que Suzanne fosse adoptada pelo segundo marido dela, pensando que isso seria o melhor para a filha.
Mas depois de a mãe morrer, ela veio ter comigo, dissera ele. Precisava de mim.
Skip Reardon tinha dito que a atitude do Dr. Smith para com a filha era quase de reverência. Quando Kerry ouviu aquilo, ocorreu-lhe ao espírito uma dúvida que a deixou sem respiração. O Dr. Smith tinha transformado outras mulheres de modo que elas ficassem parecidas com a filha, mas nunca ninguém se interrogara se ele não operara Suzanne.
Kerry e Robin tinham acabado de almoçar quando Bob telefonou, sugerindo que podia levar Robin a jantar fora nessa noite. Explicou que Alice tinha levado as crianças para passarem uma semana na Florida e que ele ia de automóvel até às Catskills para ver uma casa na neve que estavam a pensar comprar. Quereria Robin ir com ele?
A entusiástica reacção de Robin teve como resultado Bob ir buscá-la uma hora depois. A inesperada tarde livre deu a Kerry a oportunidade de passar mais tempo a analisar a transcrição do julgamento de Reardon.
GEoFF Dorso adorava futebol americano e era um ardente adepto dos Giants. No entanto, no domingo à tarde, sentado no estádio dos Giants, a sua atenção estava menos virada para a disputa renhida com os Dallas Cowboys do que para a reacção de Kerry McGrath sobre Skip Reardon e a transcrição do julgamento. Já a teria lido?, perguntou a si próprio. Tivera esperança de que ela mencionasse o assunto enquanto estavam à espera para se encontrarem com Skip, mas ela nada dissera. Tentou convencer-se a si próprio de que ela fora treinada para ser céptica, que a sua atitude aparentemente negativa após a visita a Skip não queria forçosamente dizer que ela lavava as mãos do caso. Quando os Giants alcançaram por fim a vitória com um ponto no último minuto, Geoff partilhou do entusiasmo, mas recusou juntar-se aos amigos para umas cervejas. Em vez disso, foi para casa e telefonou a Kerry.
Ficou exultante quando ela admitiu que tinha lido a transcrição e que esta lhe suscitara algumas dúvidas.
- Gostava que nos encontrássemos novamente - disse ele.
Então, foi assaltado por um pensamento:
Ela vai de certeza recusar, ao mesmo tempo que perguntava: - Por acaso, hoje estás livre para jantar?
DoLLY BowLEs tinha sessenta anos quando se mudara para Alpine para ir morar com a filha. Isso fora há doze anos, quando enviuvara. Não queria impor a sua presença, mas a verdade é que tinha receio de ficar sozinha. E, de facto, havia um motivo para esses receios. Quando era criança, abrira a porta a um homem que, fingindo ir fazer uma entrega, era, afinal, um ladrão. Ainda tinha pesadelos sobre o modo como ele as tinha amarrado, a ela e à mãe, enquanto saqueava a casa. Em consequência disso, tornara-se desconfiada em relação a qualquer desconhecido, e por várias vezes irritara o genro ao carregar no botão de emergência do sistema de alarme quando, estando sozinha em casa, ouvia ruídos estranhos.
A filha, Dorothy, e o genro, Lou, viajavam com frequência. Os filhos deles ainda estavam em casa quando Dolly se mudara para lá, e ela fora uma grande ajuda a tomar conta deles.
Quando os netos foram viver sozinhos, Dolly tornara-se a babysitter do bairro, o que resultava na perfeição, pois ela gostava verdadeiramente de crianças. A única altura em que as pessoas se aborreciam era quando ela fazia um dos seus telefonemas para a Polícia a queixar-se de pessoas de aspecto suspeito. Mas há dez anos que ela não fazia isso, desde que fora testemunha no julgamento do processo de homicídio de Reardon. Estremecia todas as vezes que se lembrava disso. O procurador tinha-a feito fazer figura de tonta, e Dorothy e Lou haviam ficado constermados.
- Mãe, eu supliquei-lhe que não falasse à Polícia - dissera a filha asperamente na altura.
Mas Dolly conhecia Skip Reardon, gostava dele e sentira que tinha de tentar ajudá-lo. Além disso, ela e Michael, o rapazinho de cinco anos com problemas de aprendizagem de quem ela estava a tomar conta naquela noite, tinham realmente visto aquele carro. Dolly tinha a certeza de que vira um 3 e um L na chapa de matrícula, mas o procurador exibira uma chapa de matrícula do fundo da sala do tribunal, e ela não conseguira lê-la. E ele também a forçara a admitir que gostava muito de Skip, porque uma noite ele lhe desatolara o carro da neve.
Dolly sabia que o facto de Skip ter sido simpático para com ela não significava que ele não pudesse ser um assassino, mas, no seu íntimo, sentia que ele estava inocente. Por vezes, ainda agora, lembrava-se da noite em que Suzanne fora assassinada. E lembrava-se do pequeno Michael - a família tinha-se mudado há vários anos - apontando para o estranho carro negro e dizendo: O carro do pai.
Dolly não podia imaginar que, nesse domingo à noite, enquanto estava sentada diante da janela a olhar para a antiga casa dos Reardons, a uns quinze quilómetros de distância Geoff Dorso e Kerry McGrath estavam a falar dela.
PoR uM acordo tácito, Kerry e Geuff abstiveram-se de qualquer referência ao caso Reardon até à altura de o café ser servido. Durante a refeição, Geoff falou da sua infância e adolescência em Manhattan com as quatro irmãs.
- Invejo-te - confessou Kerry. - Sou filha única, e adorava ir a casa dos meus amigos que tinham grandes famílias. O meu pai morreu quando eu tinha dezanove anos, e a minha mãe voltou a casar quando eu tinha vinte e um e mudou-se para o Colorado. Vejo-a duas vezes por ano.
O olhar de Geoff suavizou-se.
- Isso não te dá grande apoio familiar - comentou ele.
- Não, realmente não, mas Jonathan e Grace Hoover ajudaram a preencher essa lacuna. Têm sido maravilhosos comigo, quase como se fossem meus pais.
Durante o café, debruçaram-se finalmente sobre o caso Reardon. Kerry começou por declarar com franqueza:
- Eu assisti à leitura da sentença, há dez anos, e a expressão no rosto de Skip e as suas declarações ficaram-me gravadas na memória: Tenho ouvido muitas pessoas que são culpadas jurarem que estão inocentes, mas houve qualquer coisa no depoimento dele que me tocou.
- Porque ele estava a falar verdade.
Kerry olhou-o a direito.
- Aviso-te, Geoff, de que tenciono fazer de advogada do Diabo, e, embora a leitura da transcrição me suscite uma série de perguntas, não me convenceu de que Skip está inocente. Nem a visita de ontem. Ainda continuo a pensar que é significativo que, no próprio dia em que Suzanne morreu, Reardnn tenha discutido a questão do divórcio e, aparentemente, perdido a cabeça quando soube quanto é que isso lhe podia custar.
- Kerry, Suzanne já tinha custado a Skip uma fortuna. Ela era uma gastadora desenfreada, comprava tudo o que lhe apetecia. - Fez uma pausa. - Não. Zangar-se e barafustar é uma coisa, mas há uma grande diferença entre perder as estribeiras e matar. Quanto muito, e apesar de o divórcio vir a ser dispendioso, ele estaria aliviado com a perspectiva de aquele falso casamento estar para acabar e de poder retomar a sua vida.
Falaram sobre o ramo de rosas.
- Estou absolutamente convencido de que ele não as levou nem as mandou entregar - afirmou Geoff. - Se aceitarmos esse facto, temos de considerar que há outra pessoa envolvida.
Enquanto Geoff pagava a conta, ambos concordaram que o depoimento do Dr. Smith fora o elemento-chave da condenação de Skip Reardon.
Pensa nisto - pediu Geoff.- O Dr. Smith afirmou que Suzanne tinha medo dos ataques de ciúmes de Skip.Mas se ela tivesse assim tanto medo dele,como seria possível ela estar ali à frente dele a arranjar flores que outro homem lhe enviara? Para além disso,ninguém testemunhou a corroborar o depoimento de Smith.Os Reardons eram um casal conhecido.Certamente que,se Skip maltratasse Suzanne,alguém teria aparecido a declará- lo. - Talvez - concedeu Kerry.- Mas com base na informação posta ao dispor do júri,eles não tinham qualquer motivo para não acreditar no Dr.Smith.
No regresso,mantiveram-se ambos silenciosos.Quando Geoff acompanhou Kerry à porta,pegou-lhe na chave.
- A minha mãe ensinou-me que devíamos sempre abrir a porta a uma senhora.Espero que isto não seja muito machista.
- Não,pelo menos eu não acho,mas talvez eu seja bota-de-elástico.- O céu estava negro-azulado e cintilante de estrelas.Soprava um vento cortante,e Kerry teve um arrepio de frio.
Geoff apercebeu-se disso,deu rapidamente a volta à chave e abriu a porta,sem dar qualquer sinal de que esperava que ela o convidasse a entrar.Em vez disso,perguntou:
- E agora,o que se segue?
- Vou visitar o Dr.Smith o mais rapidamente possível.
- Então,daqui a uns dias falamos.- Geoff esboçou um breve sorriso e começou a descer as escadas.
Kerry fechou a porta e dirigiu-se para a sala,mas não acendeu imediatamente a luz.Deu-se conta de que ainda estava a saborear o momento em que Geoff lhe tinha tirado a chave da mão para lhe abrir a porta. Depois, foi até à janela e ficou a observar o carro dele até desaparecer ao fundo da rua.
O PAI É Tão divertido, pensou Robin.Não o via muitas vezes, mas quando estavam juntos,ele era fantástico.
Tinham ido ver a casa na neve que Bob Kinellen estava a pensar comprar.Ela achou que era gira,mas Bob ficou desapontado.
- Quero uma em que possamos vir de esquis até à porta - dissera ele,e depois dera uma gargalhada.- Vamos continuar à procura.
Agora, estavam a conversar enquanto comiam camarão e vieira. Ele tinha acabado de lhe prometer que a levaria a esquiar, só os dois.
- Um dia destes, quando a mãe sair com um amigo. - Piscou olho.
- Oh, a mãe não sai muito com amigos - comentou Robin. - No outro dia foi um advogado lá a casa. Era simpático, mas acho que era só trabalho.
Bob Kinellen tinha estado apenas parcialmente atento à conversa, mas aquilo despertou-lhe a atenção.
- Como é que ele se chamava?
- Geoff Dorso. Levou uma grande pasta para a mãe ver.
Ao ver o pai subitamente calado, Robin teve a sensação de culpa que talvez tivesse falado demais, de que talvez ele estivesse zangado com ela. Quando ele a deixou em casa, ficou contente por ter chegado.
SEGUNDA-FEIRA de manhã, a primeira coisa que Kerry fez foi telefonar para o consultório do Dr. Smith.
Foi Mrs. Carpenter quem atendeu.
- Preciso de marcar hora para falar com o Dr. Smith o mais depressa possível - disse Kerry. - É importante.
- Qual é o assunto, Ms. McGrath?
Kerry decidiu arriscar.
- Diga ao doutor que é sobre Suzanne.
Ela esperou quase cinco minutos e depois ouviu a voz fria e clara do Dr. Smith.
- O que é que pretende, Ms. McGrath? - inquiriu.
- Queria trocar umas impressões consigo acerca de Skip Reardon, doutor, e gostaria muito que fosse o mais depressa possível.
Quando desligou, ele acedera em recebê-la no consultório às 7. da manhã do dia seguinte. Isso queria dizer que ela teria de sair de casa por volta das 6.30, pelo que tinha de pedir a uma vizinha que telefonasse a Robin para se certificar de que ela não se deixava adormecer. De resto, Robin ficaria bem. Ia sempre a pé para a escola com duas amigas e já tinha idade para arranjar a sua tigela de cereais sozinha.
Imediatamente antes da hora do almoço, Kerry pediu a Joe que passasse pelo seu gabinete.
- Tenho aqui um pequeno problema extracurricular. preciso da tua ajuda - explicou ela quando o investigador se deixou cair numa cadeira em frente da sua secretária. - O processo Reardon. - Contou-lhe acerca das sósias de Suzanne e do Dr. Charles Smith. Com alguma hesitação, admitiu também ter visitado Reardon na prisão e que começava a ter algumas dúvidas acerca do modo como o processo fora conduzido.
Palumbo assobiou.
- Peço-te que isto fique só entre nós, Joe. Frank Green não está muito satisfeito com o meu interesse no caso.
- Pergunto a mim próprio porquê - murmurou Palumbo.
- A questão é que o próprio Green me disse que o Dr. Smith foi uma testemunha pouco emotiva. Estranho para o pai de uma vítima de homicídio, não achas? No banco das testemunhas, o Dr. Smith declarou que ele e a mulher se tinham separado quando Suzanne era bebé e que, uns anos depois, tinha dado autorização para que ela fosse adoptada pelo padrasto, um homem chamado Wayne Stevens, e que ela fora criada em Oakland, na Califórnia. Estou interessada em saber que tipo de criança era Suzanne, como foi o seu crescimento, e queria ver uma fotografia dela na adolescência.
Tinha tirado da pasta várias páginas da transcrição do julgamento de Reardon. Atirou-as por cima da mesa em direcção a Palumbo.
- Aqui tens o testemunho de uma babysitter que assegura ter visto um carro desconhecido diante da casa dos Reardons na noite do crime. Ela vive, ou vivia, com a filha em Alpine. Procura-a, está bem?
Os olhos de Palumbo reflectiam um vivo interesse.
- Será um prazer, Kerry. Adorava ver o Nosso Chefe numa situação difícil, para variar.
- Ouve, Joe, Frank Green é boa pessoa - protestou Kerry. - Não estou interessada em tornar as coisas difíceis para ele, mas se houver a possibilidade de um homem estar preso injustamente, sinto que o meu dever é investigá-la.
- Não me interpretes mal - replicou Palumbo. - Green é um tipo porreiro. Só que eu preferia alguém que não corresse a esconder-se de cada vez que as coisas aquecem neste escritório.
Ao Fim Da TARde, a secretária de Geoff Dorso falou-lhe pelo inter comunicador.
- Miss Taylor está aqui e diz que é importante.
Para Beth Taylor aparecer sem avisar, tinha de ser importante.
- Mande-a entrar - respondeu Geoff.
Quando a secretária acompanhou Beth ao gabinete, Geoff levantou-se, rodeou a secretária e beijou-a afectuosamente. Sempre que a via, o mesmo pensamento acorria-lhe ao espírito: Como a vida de Skip teria sido difr ente se ele se tivesse casado com Beth Taylor!
Beth era da mesma idade de Skip, quase quarenta anos, media cerca de um metro e sessenta e cinco, vestia um confortável número 42, tinha cabelo castanho, olhos castanhos muito vivos e um rosto que irradiava inteligência e simpatia. Era professora quando namorara com Skip, há quinze anos atrás. Desde aí, fizera o mestrado e trabalhava agora como orientadora pedagógica numa escola das proximidades.
Pela sua expressão naquele dia, era óbvio que estava profundamente perturbada. Foi direita ao assunto.
- Geoff, falei com Skip pelo telefone ontem à noite. Parecia terrivelmente deprimido. Estou preocupada. Fala-se tanto de acabar com os repetidos recursos por parte dos assassinos condenados... Skip tem-se praticamente mantido vivo na esperança de que um dia um dos recursos seja aceite. Se perder essa esperança, vai querer morrer. Falou-me da visita da delegada do procurador e está convencido de que ela...
- não acredita que ele está a começar a pensar em suicídio? - perguntou Geoff muito depressa. - Porque, se assim é, tenho de avisar o director.
- Não, não! Nem penses em comunicar uma coisa dessas! Eu não estou a dizer que ele fizesse alguma coisa neste momento. Ele sabe que isso também seria fatal para a mãe dele. - Mrs. Reardon tivera um ataque cardíaco pouco depois da condenação de Skip e um segundo há cinco anos.
Beth levantou as mãos num gesto de impotência.
- Geoff - explodiu ela. - Podemos dar-lhe alguma ajuda?
- Se isto se tivesse dado há uma semana, ter-lhe-ia respondido que não.
O telefonema de Kerry McGrath, po rém, alterara a situação. Tendo o cuidado de não parecer demasiado encorajador, falou a Beth das duas mulheres que Kerry tinha visto no consultório do Dr. Smith e do crescente interesse dela em relação ao processo.
Os olhos de Beth marejaram-se de lágrimas.
- Então, Kerry McGrath ainda está a examinar o processo.
- Sem dúvida. Ela é uma pessoa especial, Beth. - Ao ouvir-se a si próprio a pronunciar estas palavras, Geoff viu a imagem de Kerry: o modo como ela ajeitava uma madeixa do cabelo louro por detrás da orelha quando estava a concentrar-se, a alegria orgulhosa que emanava dela quando falava da filha. Ouviu a sua voz ligeiramente rouca e viu o sorriso quase tímido que ela lhe dirigira quando ele lhe tinha tirado a chave e aberto a porta.
- Geoff, se houver fundamentos para um novo recurso, achas que foi um erro não termos dito nada sobre mim?
A pergunta de Beth trouxe-o de volta ao presente. Ela estava a referir- se a um aspecto do caso que nunca tinha vindo a lume. Poucos tempos antes da morte de Suzanne, Skip e Beth tinham-se encontrado por acaso, e Skip insistira em levá-la a almoçar. Ele confessara-lhe como era infeliz e de como lamentava a ruptura entre ambos.
Skip e Beth começaram a encontrar-se novamente. Na noite em que Suzanne morrera, tinham combinado jantar juntos. À última hora, porém, ela teve de cancelar o jantar, e foi nessa altura que Skip voltou para casa e encontrou Suzanne a arranjar as rosas.
Na altura do julgamento, Geoff tinha concordado com o advogado principal de Skip, Tim Farrell, que pôr Beth no banco das testemunhas era uma faca de dois gumes. A acusação iria, sem dúvida, tentar demonstrar que, para além de evitar as despesas de um divórcio Skip tinha outra razão de peso para matar a mulher. Por outro lado, o depoimento de Beth poderia ter sido útil para pôr em causa a alegação do Dr. Smith de que Skip era loucamente ciumento em relação a Suzanne.
Até Kerry lhe ter falado do Dr. Smith e das sósias, Geoff estava convencido de que tinham tomado a decisão correcta. Agora, já não tinha tanta certeza disso. Olhou honestamente para Beth.
- Quero que Kerry te conheça e ouça a tua história. Se tivermos fundamentos para um novo recurso, com hipóteses de ser bem-sucedido, todas as cartas têm de estar em cima da mesa.
QuANDO FICOU pronta para sair para a sua entrevista matinal com o Dr. Smith, Kerry foi acordar Robin, que protestou.
- Vamos, Rob - insistiu ela. - Estás sempre a dizer-me que eu te trato como um bebé.
- E trata - murmurou ela.
- Está bem. Estou a dar-te uma oportunidade de provares a tua in dependência. Levanta-te agora. Mrs. Weiser vai telefonar às sete horas para ter a certeza de que tu não voltaste a adormecer. Deixei-te cá fora cereais e sumo.
Robin bocejou e fechou os olhos.
- Rob, por favor.
- Está bem. - Com um suspiro, Robin balançou as pernas para fora da cama. O cabelo caiu-lhe para a cara enquanto esfregava os olhos.
Kerry pôs-lho para trás e deu-lhe um beijo na cabeça.
- Agora, lembra-te, não abras a porta a ninguém. Eu vou ligar o alarme. Quando estiveres pronta para sair, desliga-o e depois volta a ligá-lo.
- Eu sei. Eu sei. - Robin suspirou com um ar dramático. Kerry sorriu.
- Já sei que te fiz o mesmo discurso mais de mil vezes. Até logo. Allison está cá às três horas.
Allison era a estudante que ficava com Robin até Kerry chegar a casa.
- Até logo, mãe.
Robin ouviu os passos de Kerry a descer as escadas.
- É só um minuto, pensou Robin, enfiando-se novamente dentro da cama. Fico deitada só mais um minuto.
Às 7 horas, depois de o telefone ter tocado seis vezes, ela sentou-sa e atendeu-o.
- Oh, muito obrigada, Mrs. Weiser. Sim, claro que estou a pé.
Agora já estou, pensou ela enquanto saía da cama apressadamente.
Foi o PRóPRio Dr. Smith quem abriu a porta a Kerry. Até aquela mínima cortesia que ele demonstrara nas consultas de Robin tinha desaparecido nessa manhã. Não a cumprimentou, limitando-se a dizer:
- Posso dispensar-lhe vinte minutos, Ms. McGrath, nem mais um segundo. - Conduziu-a ao seu gabinete.
Se é assim que queres, pensou Kerry, tudo bem.
Quando se sentou na cadeira em frente à secretária dele, declarou:
- Dr. Smith, depois de ver duas mulheres extraordinariamente pa recidas com a sua filha assassinada, Suzanne, a saírem deste consultório, fiquei suficientemente curiosa acerca das circunstâncias da morte dela para arranjar tempo, durante a semana que passou, para ler a trans crição do julgamento de Skip Reardon.
Não passou despercebida a Kerry a expressão de ódio no rosto do Dr. Smith à menção do nome de Reardon. Ela inclinou-se para a frentte.
- Dr. Smith, o seu depoimento é a razão pela qual Skip Reardon está na cadeia. O senhor disse que ele era loucamente ciumento, que sua filha tinha medo dele. Ele jura que nunca a ameaçou.
- Ele é mentiroso. - A sua voz era fria, inexpressiva.
- Mas se Suzanne receava pela sua vida, porque é que continuava a viver com ele?
O sol matinal inundou a sala e cintilou nos óculos sem aros de Smith, pelo que ela não podia ver-lhe os olhos. Poderiam estar tão frios como a voz?, interrogou-se Kerry.
- Porque, ao contrário da mãe, a minha ex-mulher, Suzanne estava empenhada no seu casamento - respondeu ele após uma pausa. - O grande erro da vida dela foi ter-se apaixonado por Reardon. Um erro ainda maior foi não ter levado a sério as ameaças dele.
Kerry apercebeu-se de que não ia conseguir nada. Era chegada a altura de lhe fazer a pergunta que lhe ocorrera anteriormente.
- Dr. Smith, o senhor alguma vez operou a sua filha? Tornou-se imediatamente evidente que a pergunta o ofendia.
- Ms. McGrath, eu pertenço àquela escola de médicos que nunca, a não ser numa terrível emergência, tratariam um membro da família. Para além do mais, a pergunta é insultuosa. Suzanne era uma beleza natural.
- O senhor tornou pelo menos duas mulheres parecidas com ela. Porquê?
O Dr. Smith olhou para o relógio.
- Vou responder-lhe a essa última pergunta e depois tem de me desculpar. - Tirou os óculos e esfregou a testa. - Eu opero mulheres que se olham ao espelho e vêem pele flácida ou papos nos olhos. Levanto e fixo a testa sob a linha do cabelo. Estico a pele e puxo-a para trás das orelhas. Tiro vinte anos à sua aparência, mas, mais do que isso, transformo a autodepreciação delas em auto-estima.
A sua voz subiu de tom:
- Podia mostrar-lhe fotografias do antes e depois de vítimas de acidentes a quem eu ajudei. Pergunta-me porque é que várias das minhas pacientes se parecem com a minha filha. Eu digo-lhe porquê: porque, ao longo destes dez anos, algumas mulheres feias e infelizes vieram ao meu consultório e eu fui capaz de lhes dar o tipo de beleza dela.
- O Dr. Smith levantou-se. - E agora esta conversa está encerrada.
Kerry não podia fazer outra coisa senão segui-lo para fora do gabinete. Ao caminhar atrás dele, notou que ele mantinha a mão rigidamente ao lado do corpo. Estaria a tremer? Sim, estava.
Já à porta, concluiu:
- Ms. McGrath, deve compreender que a simples menção do nome de Skip Reardon é algo de repugnante para mim. Por favor, telefone a Mrs. Carpenter e dê-lhe o nome de outro médico a quem ela possa enviar a ficha de Robin. Nunca mais quero ouvir falar de si nem vê-la, a si ou à sua filha.
Estava tão perto dela que Kerry recuou involuntariamente. Havia qualquer coisa verdadeiramente assustadora naquele homem. Os olhos dele, faiscantes de ódio, pareciam trespassá-la.
Se ele tivesse uma arma neste momento, tenho a certeza de que a usaria, pensou Kerry.
DEPois de fechar a porta à chave e de começar a descer as escadas, Robin reparou no pequeno carro preto estacionado do outro lado da rua. Carros desconhecidos não eram vulgares por ali, sobretudo àquela hora, e, sem saber porquê, aquele provocou-lhe uma sensação estranha. Estava frio. Passou os livros para debaixo do braço esquerdo e subiu o fecho de correr até ao pescoço, estugando o passo. Ia encontrar-se com Cassie e a outra amiga na esquina do quarteirão seguinte e já estava uns minutos atrasada.
A rua estava calma. Agora que as folhas já quase haviam desaparecido, as árvores tinham um aspecto seco, pouco agradável. Robin desejou ter-se lembrado de pôr as luvas.
Quando chegou ao passeio, olhou para o outro lado da rua. Ajanela do condutor do carro desconhecido estava a abrir-se devagar. Ela olhou lá para dentro, na esperança de ver um rosto familiar. Foi então que viu uma mão estender-se para fora apontando-lhe qualquer coisa. Subitamente tomada de pânico, Robin começou a correr. Com um ronco, o automóvel moveu-se rapidamente na sua direcção. No preciso momento em que julgou que o automóvel ia subir o passeio e atropelá-la, este fez inversão de marcha e afastou-se a toda a velocidade pela rua abaixo. A soluçar, Robin atravessou o relvado de casa dos vizinhos e começou a tocar à campainha freneticamente.
Quando Joe Palumbo telefonou a Dolly Bowles e explicou que era investigador do gabinete do procurador do Bergen County, ela pareceu ficar um pouco na defensiva. Mas quando acrescentou que Kerry McGrath, delegada do procurador, estava interessada em saber informações acerca do automóvel que Dolly tinha visto diante da casa dosj Reardons, na noite do assassínio, ela comentou que tinha seguido o recente julgamento em que Kerry participara e que estava muito contente pelo facto de o homem que matara a mulher ter sido condenado. Declarou a Palumbo que, se Kerry McGrath queria falar-lhe, ela acedia.
- Bem, na verdade - replicou Joe com alguma hesitação -, eu gostaria de ir falar consigo agora. Kerry talvez vá posteriormente.
Houve uma pausa. Palumbo não podia adivinhar que Dolly estava a recordar-se da expressão escarninha do promotor Frank Green no momento em que a contra-interrogara no julgamento.
Finalmente, respondeu:
- Julgo que me sentiria mais à vontade para falar sobre essa noite com Kerry McCrath - afirmou com dignidade.
Já eRam 9.45 quando Kerry chegou ao tribunal, muito mais tarde do que era seu hábito. Antecipando a possibilidade de ser chamada à atenção por causa disso, ela telefonara a avisar que tinha um assunto a tratar e que ia chegar atrasada. Sabia que Frank teria um ataque se soubesse que o assunto era ir visitar o Dr. Smith.
Ao digitar o código de acesso ao gabinete do procurador, a operadora do painel de controle levantou os olhos e disse:
- Kerry, vá já ao gabinete du Dr. Green. Ele está à sua espera.
Ai, meu Deus, pensou Kerry. Mas assim que entrou no gabinete de Green, percebeu que ele não estava zangado. Como habitualmente, foi direito ao assunto.
- Kerry, Robin está com a tua vizinha, Mrs. Weiser. Está bem.
Kerry sentiu um nó na garganta.
- Então, qual é o problema?
- Não sabemos bem. De acordo com Robin, tu saíste de casa às seis e meia. - Nos olhos de Green houve um lampejo de curiosidade.
- É verdade.
- Mais tarde, quando Robin saiu, reparou num carro desconhecido : do outro lado da rua. Quando chegou ao passeio, a janela do condutor abriu-se e ela viu uma mão segurando um objecto qualquer. Não percebeu o que era e não conseguiu ver a cara do condutor. Então, o carro guinou na direcção dela tão repentinamente que Robin pensou que ia galgar o passeio e atropelá-la, mas acabou por inverter a marcha e desaparecer. Robin fugiu para casa da vizinha.
Kerry deixou-se cair numa cadeira.
- Ela está lá agora. Podes telefonar-lhe ou ir para casa, se isso te faz sentir mais sossegada. Kerry, Robin tem uma imaginação exacerbada ou dar-se-á o caso de alguém ter tentado assustá-la e, em última análise, a ti?
- Porque é que alguém quereria assustar Robin ou a mim?
- Isso já aconteceu aqui no gabinete. Acabaste agora mesmo um caso que atraiu grandemente as atenções dos meios de comunicação social. O tipo que conseguiste condenar por assassínio era um verdadeiro patife e ainda tem amigos.
- Sim, mas os que conheci pareceram-me ser pessoas bastante decentes - objectou Kerry. - E quantu à primeira pergunta, a minha filha é uma miúda bastante equilibrada. Nunca iria inventar uma coisa destas.
- Telefona-lhe - ordenou Green.
Robin atendeu o telefone de Mrs. Weiser logo ao primeiro toque.
- Já sabia que ia telefonar, mãe, eu já estou bem. Quero ir para a escola, e Mrs. Weiser disse que me levava lá de carro. E, mãe, ainda tenho de sair logo à tarde, é o dia das Bruxas.
Kerry raciocinou rapidamente. Robin estaria muito melhor na escola do que sentada em casa a pensar no incidente.
- Está bem, mas vou buscar-te à escola às três e um quarto. Não quero que vás a pé para casa.
E vou contigo quando andares de porta em porta a pedir as guloseimas, pensou ela. Quando desligou, pediu:
- Frank, não há problema se eu sair mais cedo hoje?
O sorriso dele foi genuíno.
- Claro que não. Kerry, escusado será dizer que deves interrogar Robin com todo o cuidado. Precisamos de saber se há alguma possibilidade de alguém ter estado realmente à espera dela.
Mais tarde, Joe Palumbo passou pelo gabinete de Kerry e informouda conversa telefónica com Dolly Bowles.
- Ela só quer falar contigo, Kerry.
- Vou telefonar-lhe agora.
A sua curta saudação Como está, Mrs. Bowles? Fala Kerry cGrath, teve como resposta um monólogo de dez minutos do outro lado. Palumbo recostou-se na cadeira e ficou, algo divertido, a observar Kerry a tentar, sem sucesso, articular uma palavra. Finalmente, ela disse:
- Dolly Bowles não está muito satisfeita com o modo como foi tratada por este gabinete há dez anos atrás - esclareceu Kerry. - Isto foi mais ou menos o teor desta nossa conversa. Para além disso, a filha e o genro disseram-lhe que não querem que ela fale mais do assassínio nem do que viu, e eles regressam de viagem amanhã. Se eu quiser vê-la, tem de ser hoje, por volta das cinco horas. E isso vai exigir-me alguns malabarismos. - E contou a Palumbo o incidente que se dera com Robin nessa manhã.
O investigador levantou-se.
- Eu vou ter a tua casa às cinco - sugeriu ele. - Enquanto tu vais falar com Mrs. Bowles, eu levo Robin a comer um hamburger. Gostava de falar com ela sobre o que se passou esta manhã. - Ao ver a expressão de desagrado no rosto de Kerry, acrescentou: - Kerry, tu és inteligente, mas não vais ser objectiva em relação a este assunto. Não queiras fazer o meu trabalho.
Kerry observou Joe pensativamente. Estava sempre com um ar um pouco desalinhado, mas era dos melhores no seu tipo de trabalho. Seria uma grande ajuda se ele se interessasse pelo caso.
- Está bem - anuiu ela.
Na terça-feira à tarde, dia das Bruxas, Jason Arnott saiu de Alpin de automóvel em direcção à remota região das Catskills, onde a sua enorme casa de campo, escondida no meio das montanhas, dissimulava o valor incalculável dos seus tesouros roubados. Sentia-se sa tisfeito por partir. Estava cansado.
Durante o fim-de-semana, tinha ido ao Maryland e assaltado uma casa de Chevy Chase onde estivera numa festa há uns meses. Nessa reunião, a anfitriã, Myra Hamilton, tagarelara sobre o casamento do filho em Chicago, no dia 2 1 de Outubro, deixando desse modo escapar a informação de que a casa estaria vazia nessa data.
A casa não era grande, mas era soberba, cheia de peças valiosas. Jason ficara com água na boca ao ver um sinete Fabergé azul-safira, com cabo de ouro em forma de ovo. Isso e uma tapeçaria Aubusson de um metro por metro e meio com uma rosácea central que estava na parede, encontravam-se agora no seu porta-bagagem a caminho do seu refúgio. Involuntariamente, Jason franziu a testa. Não sentia a habitual sensação de triunfo por ter cumprido o seu objectivo; importunava-o um vago desconforto. Mentalmente, passou em revista a operação Hamilton.
Depois de sair de casa dos Hamiltons, ao avançar lentamente no trânsito em direcção à Estrada 240, dois carros da Polícia, com as sirenes a tocar e as luzes a piscar, tinham-no ultrapassado a grande velocidade e virado à esquerda para a rua de onde ele acabara de sair. Era evidente que se dirigiam para a residência dos Hamiltons. Isso queria dizer que ele tinha, de algum modo, feito accionar um qualquer alarme silencioso, independente do sistema geral, que ele desactivara ao entrar.
Que outro sistema de segurança teriam os Hamiltons?, perguntou a si próprio. Era tão fácil esconder câmaras hoje em dia. Tinha posto a meia de nylon que costumava usar durante os assaltos, mas, a certa altura, puxara-a para cima para examinar uma estatueta de bronze, uma atitude imprudente - a peça não tinha grande valor.
Há uma probabilidade num milhão que a câmara tenha apanhado a minha cara, disse para consigo para se tranquilizar ao entrar na estrada. Maddie, a mulher-a-dias - uma mulher impassível e discreta -, deveria ter deixado tudo a brilhar. Ele sabia que ela não conseguia distinguir entre uma tapeçaria Aubusson e uma carpete de saldo a dez dólares o metro quadrado, mas tinha orgulho no seu trabalho. Em dez anos, nunca havia lascado uma chávena sequer.
Estacionou o carro junto à porta lateral e, com a precipitação ansiosa que sempre o assaltava à chegada, entrou em casa e estendeu a mão para o interruptor. Uma vez mais, a visão de tantos objectos belos tornaram- lhe os lábios e as mãos húmidos de prazer. Minutos depois, com os novos tesouros já a salvo dentro de casa, fechou a porta à chave e colocou a tranca. O serão havia começado.
A sua primeira tarefa foi levar o sinete Fabergé para o primeiro andar e pô-lo sobre o toucador antigo do quarto principal. Uma vez no seu lugar, inclinou-se e comparou-o com a moldura em miniatura que estava há onze anos na sua mesa-de-cabeceira.
Aquela moldura representava uma das poucas vezes em que ele tinha sido enganado. Era uma cópia razoável de um Fabergé, mas não era, certamente, autêntica. Isso parecia-lhe bem evidente agora. O esmalte azul parecia baço quando comparado com a tonalidade profunda do sinete. O remate de ouro, incrustado de pérolas, não tinha nada a ver com o trabalho do autêntico Fabergé. Mas, no interior da moldura, o rosto de Suzanne retribuía-lhe o olhar.
Não gostava de recordar aquela noite, há quase onze anos. Tinha entrado pela janela da sala da suite do quarto principal, que estava aberta. Sabia que a casa deveria encontrar-se vazia. Nesse mesmo dia, Suzanne falara-lhe do seu compromisso parajantar e do facto de Skip não estar em casa. Conhecia o código de segurança, mas, quando chegou, viu que a janela estava aberta de par em par. Ao entrar no quarto, avistou a pequena moldura sobre a mesa-de-cabeceira. À distância, parecia autêntica. Estava a examiná-la de perto quando ouviu uma voz: Su zanne!, Tomado de pânico, enfiara a moldura no bolso e escondera-se num armário.
Olhando de novo para a moldura, Jason interrogou-se sobre que perversa razão o teria impedido de retirar dela a fotografia de Suzanne. Mas, ao fitá-la, compreendeu que a fotografia o ajudava a apagar da memória o esgar medonho e distorcido de Suzanne no momento em que ele se pusera em fuga.
GEOFF DORSO telefonou a Kerry precisamente no momento em que ela se preparava para sair do escritório.
- Estive com o Dr. Smith hoje de manhã - disse-lhe ela apressadamente - e vou encontrar-me com Dolly Bowles por volta das cinco da tarde. Agora não tenho tempo para falar. Tenho de ir buscar Robin à escola.
- Kerry, estou ansioso por saber o que se passou com o Dr. Smith e o que Dolly Bowles te vai dizer. Podemos jantar juntos?
- Esta noite não quero sair, mas se não te importares de comer pasta. . .
- Esqueces-te de que sou italiano?
- Por volta das sete e meia?
- Lá estarei.
QUaNdo foi buscar Robin à escola, Kerry apercebeu-se de que a filha estava muito mais preocupada com o dia das Bruxas do que com o incidente dessa manhã. Pegando na deixa, Kerry não tocou no assunto, pelo menos naquele momento. Ao chegarem a casa, dispensou a baby- sitter durante o resto da tarde.
É assim que as outras mães vivem, pensou enquanto seguia com várias delas no rasto de um magote de miúdos mascarados. Ela e Robin chegaram a casa mesmo a tempo de abrir a porta a Joe Palumbo.
Ele trazia consigo uma volumosa pasta, a que deu umas palmadinhas de satisfação.
- Isto são as investigações do gabinete sobre o processo Reardon - anunciou ele. - Deve conter o depoimento original de Dolly Bowles. Vamos compará-lo com o que ela tem a dizer agora. - Olhou para Robin, que estava mascarada de bruxa. - Mas que bela fatiota, Rob.
- Ou era isto ou um cadáver - disse Robin.
Kerry só se apercebeu de que estremecera quando viu o olhar de compreensão de Palumbo.
- É melhor eu ir andando - disse ela apressadamente. Durante os vinte e cinco minutos que durou a viagem até Alpine, Kerry deu-se conta de que tinha os nervos em franja. Finalmente, conseguira que Robin se referisse por breves momentos ao incidente dessa manhã. Naquele momento, Robin estava a tentar não dar muita importância ao caso. Kerry queria acreditar que alguém tinha parado apenas para pedir indicações de uma morada e que depois se apercebera de que estava no quarteirão errado. Mas Kerry sabia que a filha não era criança para empolar o episódio.
LoGo que Kerry estacionou no caminho que conduzia à enorme casa Tudor, a porta abriu-se. Dolly Bowles era uma mulher de pequena estatura, cabelo grisalho e expressão perscrutadora. Já estava a falar quando Kerry se acercou dela:
-... tal e qual a sua fotografia no Record. Tive tanta pena de não poder ir ao julgamento daquele homem horrível que assassinou a chefe dele.
Falando sem parar, conduziu Kerry até um vestíbulo cavernoso e indicou- lhe uma saleta à esquerda.
- Vamos para ali. Aquela sala de estar é grande demais para o meu gosto.
É uma mulher simpática, pensou Kerry, mas eu hoje não estou com disposição para isto.
- Mrs. Bowles, vamos falar da noite em que Suzanne Reardon morreu.
Passado um quarto de hora, depois de ouvir tudo sobre Michael, o rapazinho de quem Dolly estava a tomar conta naquela noite, e os seus graves problemas de desenvolvimento, Kerry conseguira isolar uma pequena informação.
- A senhora afirma que o carro que viu estacionado diante de casa dos Reardons não pertencia a nenhum dos convidados dos vizinhos. Porque é que tem tanta certeza disso?
- Porque eu falei com eles pessoalmente. Tinham convidado outros três casais, todos de Alpine, e depois de Mr. Green me ter obrigado a fazer aquela figura de idiota no banco das testemunhas, telefonei a todos. E sabe que mais? O carro do pai não pertencia a nenhum dos convidados.
- O carro do pai? - estranhou Kerry.
- Foi assim que Michael lhe chamou. Compreende, ele tinha um grande problema com as cores. Se lhe apontássemos um carro e lhe perguntássemos de que cor era, ele não sabia. Mas era capaz de distinguir um que lhe fosse familiar ou lhe parecesse familiar. Quando disse o carro do pai, naquela noite, tinha de estar a referir-se ao Mercedes preto de quatro portas. Está a ver, é que ele chamava pai ao avô e adorava andar com ele de automóvel, um Mercedes preto de quatro portas. Estava escuro, mas o candeeiro do caminho de acesso a casa dos Reardons estava aceso, e ele viu-o claramente.
- Mrs. Bowles, a senhora declarou que tinha visto o automóvel.
- Sim, embora não estivesse lá às sete e meia, quando eu cheguei a casa de Michael, e quando ele o apontou, o carro estava a afastar-se, pelo que não consegui vê-lo muito bem. Mesmo assim, tive a impressão de que havia um 3 e um L na chapa de matrícula. Tentei contar isto ao advogado de Skip Reardon. Chamava-se Farrer... não, Farrell, e ele disse-me que uma prova baseada numa coisa que eu tinha ouvido dizer a uma criança mentalmente diminuída só iria enfraquecer a minha declaração de que eu tinha visto o carro. Mas não percebo porque é que eu não poderia ter dito ao júri que Michael ficara todo entusiasmado ao pensar que vira o carro do avô. Penso que isso teria ajudado.
JONATHAN HOOvER não estava a saborear devidamente o seu martini de aperitivo para o jantar nessa noite. Geralmente, apreciava muito aquela hora do dia em que se sentava na sua cadeira de braços em frente à lareira a tomar uma bebida e a conversar com Grace.
Olhou para a mulher. Agora, vestia sempre túnicas compridas, que dissimulavam a progressiva deformação das pernas e dos pés. Apoiada como estava, semi-reclinada sobre o sofá, a curvatura da coluna não éra visível, e os seus luminosos olhos cinzentos eram muito belos sobre o fundo de alabastro da sua pele. Apenas as mãos, de dedos retorcidos e deformados, eram indicadores visíveis da sua doença devastadora. Ela dirigiu-lhe um sorriso contrafeito.
- Estás preocupado com qualquer coisa, Jon.
Jonathan ergueu as sobrancelhas.
- Com Kerry, Grace. Temo bem que ela não tencione largar o caso Reardon. Ontem à noite, convenci o governador a adiar a apresentação ao Senado dos nomes dos candidatos para a magistratura.
- Jonathan !
- Era a única coisa que eu podia fazer, caso contrário teria de pedir-lhe que suspendesse a nomeação de Kerry por enquanto. Não tive outra alternativa. Grace, Prescott Marshall tem sido um governador fora de série. Ao trabalhar com ele, tive a oportunidade de levar o Se nado a legislar sobre reformas urgentes. Quero que Marshall esteja de volta daqui a quatro anos. Não sou grande fã de Frank Green, mas como governador, ele será a continuidade necessária e não irá desfazer aquilo que Marshall e eu conseguimos realizar. Por outro lado, se Green falhar e o outro partido ganhar, tudo o que conseguimos será destruído.
Subitamente Grace reparou que ele estava com um aspecto cansado, aparentando bem os seus sessenta e dois anos.
- Vamos convidar Kerry e Robin para jantar no domingo - sugeriu Grace. - Assim, terás uma oportunidade de a chamar à razão. Julgo que ninguém deve sacrificar o seu futuro por causa desse tal Reardon.
GEoFF DoRso tocou à campainha às 7.30 em ponto e, mais uma vez, foi recebido por Robin que ainda estava com a máscara e a naquilhagem de bruxa. As sobrancelhas tinham sido engrossadas com carvão, a pele estava coberta de pó branco, excepto nas zonas onde os golpes lhe atravessavam o queixo e o pescoço. Uma peruca de cabelo preto desgrenhado caía-lhe sobre os ombros.
Geoff deu um salto para trás.
- Assustaste-me.
- Óptimo - replicou Robin com entusiasmo.- Vou a uma festa
e há um prémio para a máscara mais horripilante.
- Vais conseguir uma vitória esmagadora - vaticinou Geoff, entrando no vestibulo. Depois, fungou.
- Cheira bem.
- A mãe está a fazer pão de alho - informou Robin, chamando em seguida:
- Mãe,Mr.Dorso já chegou.
A cozinha ficava nas traseiras.Geoff sorriu ao ver a porta a abrir-se e Kerry aparecer,limpando as mãos a uma toalha.Estava com umas calças de fato de treino verdes e uma camisola verde com capuz.Geoff não pôde deixar de notar os reflexos dourados que a luz do tecto lhe conferia ao cabelo e as sardas que lhe salpicavam a zona em redor do nariz.
Parece ter vinte e três anos, pensou Geoff,reparando que o sorriso afável dela não disfarçava uma nota de preocupação no olhar.
- Geoff,ainda bem que chegaste.Entra e põe-te à vontade.Tenho de levar Robin a uma festa ali ao fundo da rua.
- Porque é que não me deixas fazer isso? - sugeriu Geoff.- Ainda tenho o casaco vestido.
- Acho que sim - disse ela lentamente -,mas leva-a mesmo até dentro de casa.Não a deixes ficar à porta.
- Mãe - protestou Robin -,já não estou com medo.A sério.
- Mas estou eu.
Estão a falar de quê?, perguntou Geoff a si próprio,mas em voz alta disse:
- Kerry, eu fartava-me de ir levar e buscar as minhas irmãs,e Deus me livrasse de não as deixar dentro de casa em segurança.Robin, vai buscar a tua vassoura.
Enquanto caminhavam pela rua sossegada,Robin contou-lhe do carro que a assustara.
- A mãe finge ter calma,mas eu percebo que está muito nervosa - confidenciou ela. - Ela preocupa-se demais comigo.Já estou um
pouco arrependida de lhe ter contado.
Geoff estacou de imediato e olhou para ela.
- Robin,ouve o que te digo.É muito pior não contares à tua mãe quando uma coisa dessas acontece.Promete-me que não vais cometer esse erro.
- Está bem,Mr.Dorso.Eu já prometi à mãe.- Os lábios pintados de bruxa abriram-se num sorriso malicioso.- Eu sou muito boa a cumprir promessas,excepto quando se trata de me levantar a horas.Detesto levantar- me cedo.
- Também eu - concordou Geoff com convicção.- E podes tratar-me por Geoff.
Cinco minutos depois,sentado num banco alto da cozinha a ver Kerry a fazer a salada,Geoff decidiu abordá-la directamente.
- Robin contou-me o que se passou esta manhã - declarou.- Há algum motivo para te preocupares?
Kerry estava a cortar uma alface acabada de lavar para dentro da saladeira.
- Um dos nossos investigadores,Joe Palumbo,falou com Robin esta tarde.Ele está preocupado.Robin disse claramente que umajanela se abriu e uma mão apareceu com qualquer coisa apontando para ela.
Joe sugeriu que alguém podia ter- lhe tirado uma fotografia.
Geoff percebeu o tremor na voz de Kerry.
- Mas porquê?
- Não sei. Frank Green pensa que pode ter a ver com aquele caso que eu acabei de levar a julgamento,mas não creio que seja.Talvez al gum paranóico tenha visto Robin e ficado com alguma fixação em relação a ela.- Começou a rasgar a alface com violência.- A questão é: como é que eu a protejo?
- É bastante duro carregar esse peso sozinha - observou Geoff em voz baixa.
- Queres dizer,por eu estar divorciada? Porque não há cá em casa um homem que tome conta dela? Tu viste como ela tem a cara.Aquilo aconteceu quando ela estava com o pai.Robin e eu estamos muito melhor sozinhas.- Cortou um pedaço de alface e depois acrescentou em tom apologético:
- Desculpa,Geoff.Neste momento,não sou lá grande companhia.Mas isso agora não interessa.O que interessa são os meus encontros com o Dr.Smith e Dolly Bowles.
Enquanto comiam a salada e o pão de alho,Kerry falou-lhe da sua entrevista com o Dr.Smith.
- Ele odeia Skip Reardon - declarou ela.- Mas é um ódio de tipo diferente.Quero dizer,habitualmente os parentes das vítimas desprezam o assassino e querem que ele seja castigado,mas a cólera está de tal modo misturada com o desgosto que as duas emoções explodem ao mesmo tempo.Os pais mostram-te fotografias de bebé da filha assassinada,contam-te como ela ganhou um concurso de ortografia no oitavo ano.Depois,deixam-se abater pelo desgosto e choram.E um deles, geralmente o pai,dir-te-á que o seu desejo era ser ele mesmo a carregar no botão na execução do assassino.Mas com Smith não foi nada assim.Nele só vi ódio.
- E o que é que concluis disso? - perguntou Geoff.
- Concluo que precisamos de saber mais acerca da relação de Smith com Suzanne.Não te esqueças de que,de acordo com o seu próprio testemunho, ele não lhe pôs a vista em cima desde o tempo em que era criança até ter completado vinte anos. Pelas fotografias podes verificar que ela era uma rapariga invulgarmente atraente. - Kerry levantou-se. - Pensa nisso enquanto eu preparo a pasta. Depois, quero falar- te de Dolly Bowles e do carro do pai.
Geoff mal se apercebeu de como os linguine com molho de amêijoa estavam deliciosos ao ouvir o relato de Kerry sobre a sua visita a Dolly Bowles.
- A questão é esta - concluiu Kerry. - Pelo que Dolly me disse, o pequeno Michael poderia ter sido uma testemunha bastante credível.
- Foi Tim Farrell quem entrevistou Dolly Bowles - recordou Geoff. - Tenho uma vaga ideia de uma referência ao facto de um rapazinho de cinco anos com problemas de aprendizagem ter visto um automóvel, mas não prestei grande atenção a isso.
- É uma tentativa com muito poucas probabilidades de êxito - admitiu Kerry -, mas Joe Palumbo, o investigador que falou com Robin, trouxe-me o processo de Reardon esta tarde. Quero examiná-lo para ver se aparecem alguns nomes... de homens com quem Suzanne se relacionasse intimamente. Não deve haver grandes dificuldades para se verificar, através do Departamento de Registo Automóvel, se algum deles possuía um Mercedes preto há onze anos. - Olhou para o relógio que estava por cima da lareira. - Temos bastante tempo - disse ela.
Geoff percebeu que ela se referia a ir buscar Robin.
- A que horas acaba a festa?
- Às nove. Queres café?
- Quero, e enquanto o tomamos vou pôr-te ao corrente da relação de Skip Reardon com Beth Taylor.
Quando acabou de lhe contar acerca de Beth e Skip, Kerry comentou:
- Eu percebo porque é que Farrell receava usar Beth como testemunha. Mas se Skip estava apaixonado por ela na altura do assassínio, isso retira alguma credibilidade ao depoimento do Dr. Smith.
- Precisamente. A reacção de Skip ao ver Suzanne a arranjar flores oferecidas por outro homem pode definir-se em poucas palavras: uma boa ocasião para se ver livre dela.
O telefone tocou, e Geoff olhou para o relógio.
- Eu vou buscar Robin enquanto tu atendes a chamada.
- Obrigada. - Kerry estendeu a mão para o auscultador.
- Estou. - Ficou à escuta e depois disse em voz afectuosa:
- Oh, tio Jonathan, já tencionava telefonar-lhe.
Geoff levantou-se com um gesto de despedida e foi buscar Robin. No regresso a casa, Robin contou-lhe que se tinha divertido bastante na festa, apesar de não ter ganho o prémio da máscara.
- Umas vezes ganha-se, outras perde-se, Robin.
No momento em que Kerry lhes abriu a porta, Geoff percebeu imediatamente que alguma coisa de grave se passava. Estava a ser obviamente um grande esforço para Kerry manter um sorriso enquanto ouvia a entusiástica descrição da festa feita por Robin. Finalmente, Kerry declarou:
- Pronto Robin. Já passa das nove e tu prometeste...
- Já sei. Vou para a cama. - Robin beijou Kerry rapidamente. Gosto muito de si, mãe. Boa noite, Geoff. - E pulou pelas escadas acima.
Geoff viu os lábios de Kerry começarem a tremer.
- O que é que se passa?
Ela tentou manter a voz firme.
- O governador ia amanhã propor ao Senado três nomes para serem nomeados para cargos judiciais, e o meu seria um deles. Jonathan pediu ao governador para adiar a proposta.
- O senador Hoover fez-te uma coisa dessas? - exclamou Geof! - Pensei que ele era o teu grande amigo. - Olhou-a fixamente. - Espera. Isto tem alguma coisa a ver com o caso Reardon e Frank Green?
Ele não precisou que ela abanasse afirmativamente a cabeça para saber que tinha acertado.
- Kerry, isso é horrível. Mas tu falaste em adiamento, não em retirada da proposta.
- Eu sei. Mas não posso exigir que Jonathan fique em apuros por minha causa. Disse-lhe que tinha estado com o Dr. Smith e com Doll Bowles, mas isso não o impressionou. Acha que, ao reabrir este processo, eu estou a pôr em causa a competência de Green e a desperdiçar dinheiro dos contribuintes num caso que ficou encerrado há dez anos! Sublinhou que cinco recursos judiciais tinham confirmado a culpa de Reardon. - Abanou a cabeça como se estivesse a tentar aclarar ideias.
- Perdoa-me por ter desperdiçado o teu tempo desta maneira mas julgo que Jonathan tem razão. Um assassino está na prisão, condenado por um júri, e os tribunais têm, sistematicamente, confirmado a sua condenação. Porque é que eu hei-de saber mais do que eles? Vou esquecer o assunto.
O rosto de Geoff fechou-se, reprimindo a cólera.
- Muito bem. Adeus, Meritíssima - proferiu ele. - Obrigada pela pasta.
No LaboRATóRIo do quartel-general do FBI, em Washington, DC, quatro agentes observavam a imagem no monitor do computador
imobilizar-se no perfil do ladrão que assaltara a residência dos Hamil tons, em Chevy Chase, durante o fim-de-semana. A princípio, a imagem registada pela câmara oculta parecia irremediavelmente desfocada, mas, depois de alguns retoques electrónicos, alguns pormenores do rosto tornaram-se mais nítidos.
Ainda é bastante difícil ver mais alguma coisa para além do nariz e do contorno da boca, pensou Morgan, o agente mais graduado. No entanto, talvez possa avivar a memória de alguém.
- Imprimam umas duzentas cópias da imagem e façam-nas circular pelas famílias que foram vítimas de assaltos com um padrão semelhante ao do caso Hamilton. Não é muito, mas pelo menos agora temos uma hipótese de deitar a mão a esse filho da mãe. - O rosto de Morgan tornou-se feroz. - E espero que, quando o apanharmos, possamos identificar as suas impressões digitais com as que encontrámos naquela noite em que a mãe do congressista Peale perdeu a vida por ter cancelado os seus planos de ir passar o fim-de-semana fora.
Ainda era bastante cedo, e Wayne Stevens estava sentado a ler o jornal na sala de estar da sua confortável casa de estilo espanhol, em Oakland, na Califórnia. Reformado há dois anos do seu modestamente bem-sucedido negócio de seguros, era um homem satisfeito. Estava casado com a terceira mulher, Catherine, há já oito anos, e, durante esse período de tempo, acabara por aperceber-se de que os seus dois primeiros casamentos tinham deixado muito a desejar. Foi por isso que, quando o telefone tocou, não teve qualquer pressentimento de que o interlocutor fosse evocar recordações desagradáveis.
A voz tinha uma acentuada pronúncia da Costa Oeste.
- Mr. Stevens, chamo-me Joe Palunbo e sou investigador do gabinete do procurador do Bergen County, na Nova Jérsia. A sua enteada era Suzanne Reardon?
- Suzanne Reardon? Não conheço ninguém com esse nome. Espere - disse ele. - Não está com certeza a referir-se a Susie, pois não?
- Era assim que tratava Suzanne?
- Eu tive uma enteada a quem nós chamávamos Susie, mas o verdadeiro nome dela era Sue Ellen, não Suzanne. - Apercebeu-se então de que o investigador utilizara o pretérito. - Aconteceu-lhe alguma coisa?
Joe Palumbo apertou o auscultador com força.
- O senhor não sabe que Suzanne, ou Susie, como lhe chama, foi assassinada há onze anos?
- Santo Deus. - A voz de Wayne Stevens tornou-se num murmúrio. - Não, não sabia. Mando-lhe um cartão todos os natais ao cuidado do pai, o Dr. Charles Smith, mas não tenho notícias dela há anos.
- Quando foi a última vez que a viu?
- Há dezoito anos, pouco depois de Jean, a minha segunda mulher e mãe dela, ter morrido. Susie era uma criança perturbada, infeliz e, para falar a verdade, dificil. Eu era viúvo quando a mãe dela e eu casámos. Tinha duas filhas pequenas, e adoptei Susie. Jean e eu criámos as três juntas. Depois da morte de Jean, Susie recebeu dinheiro de um seguro e anunciou que ia mudar-se para Nova Iorque, tinha então dezanove anos. Alguns meses depois, recebi um bilhete dela dizendo que não queria ter mais nada a ver com nenhum de nós. Anunciava que ia viver com o seu verdadeiro pai. Bem, eu telefonei ao Dr. Smith, mas ele foi extremamente mal-educado. Disse-me que tinha sido um grave erro dar-me autorização para adoptar a filha. O que é que lhe aconteceu?
- Há dez anos, o marido dela foi condenado por tê-la assassinado, enraivecido pelos ciúmes.
Várias imagens acorreram ao espírito de Wayne Stevens: Susie o bebé chorão, a adolescente gorducha e carrancuda. Susie, olhando, furiosa, para as suas verdadeiras filhas quando os namorados iam buscá-las.
- Ciúmes por ela estar envolvida com outro homem? - inquiriu ele lentamente.
- Sim. - Joe percebeu a nota de perplexidade na voz do outro e soube que a intuição de Kerry estava correcta quando lhe pedira que investigasse o passado de Suzanne.
- Mr. Stevens, importa-se de descrever a aparência física da sua enteada?
- Sue era... - Stevens hesitou. - Não era uma rapariga bonita.
- Tem fotografias dela?
- Claro, mas se isso aconteceu há mais de dez anos, porque é que está a levantar a questão agora?
- Simplesmente porque uma das delegadas do procurador está convencida de que há mais neste caso do que aquilo que foi revelado em tribunal.
E, caramba, o palpite de Kerry estava certo! pensou Joe ao desligar o telefone, depois de ter obtido de Wayne Stevens a promessa de lhe enviar fotografias de Susie por correio expresso.
NA QUARTA-FEIRA de manhã, mal Kerry acabara de se instalar no seu escritório, a secretária anunciou-lhe que Frank Green queria vê-la. Este não esteve com rodeios.
- O que é que aconteceu, Kerry? Soube que o governador adiou a apresentação dos candidatos à magistratura. Segundo parece, ele estava com um problema em relação à inclusão do teu nome. O que é que se passa? Há alguma coisa que eu possa fazer?
Bem, de facto há, pensou Kerry. Pode dizer ao governador que considera bem-vinda qualquer investigação que possa revelar um erro de justiça, mesmo se isso o atingir pessoalmente. Podia ser um tipo com coragem, Frank.
Em vez disso, respondeu:
- Oh, tenho a certeza de que tudo se resolverá em breve. - Não estás de relações cortadas com o senador Hoover, pois não?
- É um dos meus melhores amigos.
No momento em que ela se voltou para sair, o procurador acrescentou:
- Kerry, é horrível esperar pelas nomeações. Olha, eu até tenho pesadelos com medo de que a minha nomeação vá por água abaixo por qualquer razão.
De novo no seu gabinete, ela tentou desesperadamente concentrar-se no julgamento que tinha agendado. O júri de instrução acabara de indiciar um suspeito num assalto atabalhoado a uma bomba de gasolina. O empregado fora baleado e estava no hospital nos cuidados intensivos. Se acabasse por morrer, a acusação seria de homicídio.
Eles tinham planeado que Robin seguraria na Biblia quandu ela prestasse juramento. Jonathan e Grace tinham insistido em oferecer-lhe a toga.
Eu, Kerry McGrath, juro solenemente...
Vieram-lhe as lágrimas aos olhos ao recordar a voz impaciente de Jonathan:
Kerry, cinco recursos confirmaram a culpa de Reardon. O que é que se passa contigo?
Bem, ele tinha razão. Mais logo, nessa manhã, ela iria telefonar-lhe e dizer-lhe que decidira esquecer o assunto.
Mrs. REARdoN apercebera-se do desânimo na voz do filho quando tinham conversado ao telefone na terça-feira, razão pela qual decidira, na quarta, empreender a longa viagem até à prisão de Trenton para o ver.
Mulher de baixa estatura que legara ao filho o seu cabelo ruivo e os doces olhos azuis, Deidre Reardon parecia exactamente a idade que tinha, que em breve seria setenta anos. O seu andar perdera grande parte da vitalidade. A falta de saúde obrigara-a a desistir do lugar de vendedora na A&S, e, presentemente, complementava o cheque da Segurança Social com um trabalho nos serviços administrativos da paróquia. O dinheiro que poupara durante os anos em que Skip estava bem na vida e era generoso com ela tinha desaparecido, gasto, na sua maior parte, em recursos fracassados.
Chegou à prisão a meio da tarde. Como era um dia de semana, só podiam comunicar pelo telefone, separados por uma janela. No momento em que viu o rosto de Skip, Deidre percebeu que tinha acontecido aquilo que ela mais temia. Skip perdera a esperança.
- Skip, o que se passa?
- Mãe, Geoff telefonou ontem à noite. Aquela procuradora que veio cá ver-me... não vai continuar a investigação. Lavou as suas mãos do meu caso. Eu forcei Geoff a dizer-me a verdade. - Skip informou-a de que se recusara a falar com Beth ao telefone nesse dia. - Beth tem de seguir a vida dela. E isso nunca vai acontecer se estiver constantemente preocupada comigo.
- Skip, Beth está apaixonada por ti.
- Ela que se apaixone por outra pessoa. Foi o que eu fiz, não foi?
- Oh, Skip. - Deidre Reardon sentiu a falta de ar que precedia invariavelmente a punhalada de dor no peito. O médico avisara-a de que ela precisava de ser operada para lhe colocarem um bypass, caso a angioplastia que ia fazer na semana seguinte não resultasse. Ela não tinha dito nada a Skip e também não ia fazê-lo agora.
Deidre sufocou as lágrimas ao ver o sofrimento reflectido nos olhos do filho. Involuntariamente, estendeu a mão e tocou no vidro.
- Skip, não te atrevas a desapontar-me falando dessa maneira.
O tempo da visita escoou-se demasiado depressa. Deidre conseguiu não chorar até ao momento em que o guarda conduziu Skip de volta. Depois, esfregou insistentemente os olhos e esperou que a dor no peito passasse antes de sair apressadamente.
PaRECE que estamos em Novembro - pensou Barbara Tompkins enquanto percorria a pé os dez quarteirões de distância entre o escritório e o seu apartamento. Devia ter trazido um casaco mais quente. que importavam alguns quarteirões de desconforto quando ela se sentia tão bem? Tinha sido um ano vertiginoso desde que se mudara de A bany para Manhattan. Vertiginoso, mas emocionante. Barbara estava a viver uma fase maravilhosa. Não se passava um dia sequer em que não se regozijasse com o milagre que o Dr. Smith operara nela.
Porém, no momento em que chegava ao último quarteirão antes do apartamento, lançou uma espreitadela inquieta sobre o ombro. Na noite anterior, jantara no The Mark Hotel com uns clientes. À saída, reparara no Dr. Smith, sentado sozinho numa mesa a um canto. No mês anterior, avistara-o no Oak Room, no Plaza. E na semana anterior, quando ela ia encontrar-se com uns clientes no The Four Seasons, tivera a impressão de que alguém a vigiava de dentro de um carro estacionado do outro lado da rua quando ela chamava um táxi.
Barbara sentiu uma onda de alívio quando o porteiro a cumprimentou. Depois, uma vez mais, espreitou por cima do ombro. Um Mercedes preto estava parado no trânsito, mesmo em frente ao edifício de apartamentos. Não teve dúvidas quanto ao condutor: era o Dr. Smith.
Barbara entrou rapidamente para o vestíbulo do prédio. Enquanto esperava pelo elevador, pensou: Ele anda a seguir-me. Mas o que é que eu posso fazer?
Às 9 HoRas, Kerry foi ter com Robin, que estava na cama a ler.
- Horas de apagar a luz - lembrou ela, aproximando-se para a tapar.
Aconchegando-se sob os cobertores, Robin disse:
- Mãe, eu gosto de Geoff. É simpático.
Geoff. Kerry não queria lembrar-se do tom escarninho e de desprezo do comentário dele à saída nessa noite:
Adeus, Meritíssima.
- Quando é que ele volta? - perguntou Robin.
Kerry foi evasiva.
- Oh, não sei. Na verdade, ele só cá veio por causa de um processo em que tem estado a trabalhar.
Robin pareceu preocupada.
- Acho que não devia ter falado disso ao pai.
- O que é que queres dizer com isso?
- Não foi minha intenção falar-lhe de si, mas contei-lhe que um advogado tinha vindo cá a casa em trabalho, e o pai perguntou quem era.
- E tu disseste que era Geoff Dorso. Não há mal nenhum nisso.
- Não sei. O pai pareceu ficar zangado comigo. Estávamos muito divertidos e depois ele ficou calado e disse que era altura de ir para casa.
- Rob, o teu pai, neste momento, está envolvido num processo muitíssimo complicado. Talvez tu tenhas conseguido ajudá-lo a abstrair-se durante algum tempo e depois ele tenha recomeçado a pensar nele.
- Acha mesmo que sim? - Os olhos de Robin brilharam.
- Acho que sim - replicou Kerry com convicção, apagando a luz. Desceu as escadas com a intenção de verificar as contas do livro de cheques. Mas quando chegou junto da secretária, olhou demoradamente para o processo Reardon que Joe Palumbo lhe trouxera. Depois, abanou a cabeça.
Esquece, disse para si própria. Não te metas nisso.
Também não faz mal dar só uma olhadela, raciocinou. Pego nele, levou-o para a sua cadeira favorita, pousou-o no tamborete que es tava aos seus pés e estendeu a mão para o primeiro maço de papéis.
O registo revelava que a chamada dera entrada ao meio-dia e vinte. Skip Reardon ligara para a telefonista gritando-lhe que o pusesse em contacto com a Polícia de Alpine.
A minha mulher está morta. A minha mulher está morta, repetia ele vezes sem conta.
A Polícia informava que o tinham encontrado ajoelhado ao lado dela a chorar. A jarra onde tinham estado as rosas estava caída, as flores espalhadas sobre o cadáver.
Os olhos de Kerry semicerraram- se quando viu que um tal Jason Arnott tinha sido interrogado no decurso das investigações. No seu depoimento, Jason descrevia-se a si próprio como um perito em antiguidades que, a troco de uma comissão, acompanhava mulheres a leilões, aconselhando-as sobre os lances. Afirmou que gostava muito de receber e que Suzanne comparecia às suas festas com frequência, por vezes com Skip, mas habitualmente sozinha. O investigador interrogara amigos comuns de Suzanne e Arnott e não encontrara indícios de qualquer ligação romântica entre ambos.
Isto não traz nada de novo, decidiu Kerry quando já ia a meio do processo.
Lamento muito, Geoff. Tinha os olhos a arder. No dia seguinte, daria uma vista de olhos ao resto. Mas no momento em que ia fechar a pasta, o seu olhar deteve-se no relatório seguinte - uma entrevista com um cuddie do Country Club de Palisades, de que Suzann e Skip eram membros. Um nome chamou-lhe a atenção, e ela pegou no resto dos papéis, esquecida da sua intenção de ir dormir.
O cuddie, Michael Vitti, era um manancial de informações sobre Suzanne.
Toda a gente gostava de lhe transportar os tacos, ela dava boas gorjetas. Jogava com muitos dos homens, era boa jogadora, quer dizer, mesmo bua. Muitas mulheres ficavam furiosas porque todos os homens gostavam dela.
Perguntaram a Vitti se, na sua opinião, Suzanne estaria envolvida com outro homem.
-Oh, não sei, respondera ele. Nunca a vi a sós com ninguém. Mas, quando pressionado, confessou que talvez pudesse haver qualquer coisa entre Suzanne e Jimmy Weeks.
Fora o nome de Jimmy Weeks que atraíra a atenção de Kerry. De acordo com as notas do investigador, Weeks, ao ser interrogado sobre Suzanne, negara categoricamente que alguma vez a tivesse visto fora do clube. Afirmara que tinha uma ligação séria com outra mulher na altura, e, para além disso, tinha um álibi de ferro para toda a noite do assassínio.
Então, Kerry leu o final da entrevista ao coddie. Admitiu que Mr. Weeks tratava todas as mulheres mais ou menos da mesma maneira e que chamava à maior parte delas coisas como doçura, querida e fofa.
Perguntaram ao coddie se Weeks tinha algum nome especial para Suzanne.
A resposta foi: Bem, uma ou duas vezes ouvi-o tratá-la por meu amor.
Kerry deixou cair os papéis no colo. Jimmy Weeks. O cliente de Bob. Teria sido por isso que a atitude de Bob mudara tão repentinamente quando Robin lhe contara que Geoff Dorso a tinha visitado em trabalho? Era do conhecimento geral que Geoff representava Skip Reardon e andava há anos a tentar conseguir um novo julgamento. Teria Bob, como advogado de Weeks, receio do que esse novo julgamento pudesse acarretar para o seu cliente?
Uma ou duas vezes ouvi-o tratá-la por meu amor.
Aquelas palavras não saíam da cabeça de Kerry.
QUINTA-FEIRA de manhã, Kate Carpenter chegou ao consultório às 8.45. A primeira doente não chegaria antes das 10 horas, por isso o Dr. Smith ainda não tinha chegado. A recepcionista estava sentada à secretária com uma expressão preocupada.
Kate, Barbara Tompkins pede para lhe telefonares e recomendou expressamente que o Dr. Smith não fosse informado de que ela telefonara. Diz que é muito importante. Eu disse-lhe que tu estavas quase a chegar, e ela disse que está em casa à espera que lhe telefones.
Kate dirigiu-se para o pequeno gabinete usado pelo contabilista, fechou a porta e marcou o número. Com consternação crescente, ouviu Barbara relatar a sua convicção de que o Dr. Smith andava a segui-la.
- Não sei o que hei-de fazer - confessou ela. - Estou-lhe muito grata. Mas tenho medo.
- Ele nunca a abordou?
- Não.
- Então deixe-me pensar sobre o assunto e falar com algumas pessoas. Suplico-lhe que não fale disto a mais ninguém. O Dr. Smith tem uma excelente reputação. Seria terrível que ela ficasse destruída.
- Nunca poderei pagar o que o Dr. Smith fez por mim - disse Barbara em voz baixa. - Mas, por favor, dê-me notícias depressa.
ÀS 4 Da tarde de quinta- feira, Joe Palumbo recebeu por correio expresso uma encomenda enviada por Wayne Stevens de Oakland, na Califórnia. Abriu-a imediatamente e tirou lá de dentro dois molhos de fotografias unidas com elásticos. Num deles, preso com um clipe, estava um bilhete que dizia:
Caro Mr. Palumbo
O verdadeiro abalo pela morte de Susie só me atingiu depois de eu ter começado a juntar estas fotografias para lhe enviar. Susie não foi uma criança fácil de criar. Julgo que estas fotografias serão bastante esclarecedoras. As minhas filhas eram muito atraentes, e Susie não. Isso deu origem a fortes ciúmes e infelicidade por parte de Susie. A mãe de Susie, minha mulher, tinha grande dificuldade em ver as enteadas desfrutarem da sua adolescência, enquanto a sua própria filha praticamente não tinha amigos. Lamento dizer que esta situação causou grandes tensões em nossa casa. Sempre tive esperança de que uma Susie mais madura um dia nos batesse à porta e tivesse um maravilhoso reencontro connosco.
Por agora, espero que estas fotografias possam ser úteis. Com os melhores cumprimentos, Wayn e Stevens
Vinte minutos depois, Joe foi ao gabinete de Kerry e deixou cair as fotografias sobre a secretária.
- Isto é só para o caso de pensares que Susie se tornou uma beldade por causa de um novo corte de cabelo - comentou ele.
Às 5 HORAS, Kerry telefonou para o consultório do Dr. Smith. tinha saído e nesse dia já não voltava. Tendo previsto isso, perguntou em seguida:
- Mrs. Carpenter está disponível?
Quando Kate Carpenter atendeu o telefone, Kerry inquiriu:
- Mrs. Carpenter, há quanto tempo trabalha para o Dr. Smith?
- Há quatro anos, Ms. Kerry.
- Porque estava interessada em saber se a senhora já aí estaria quando o Dr. Smith operou a filha dele, Suzanne, ou pediu a um colega que o fizesse. Posso dizer-lhe como ela era. Tanto Barbara Tompkins como Pamela Worth são sósias perfeitas da filha do Dr. Smith.
A mulher soltou um grito abafado.
- Eu nem sabia que o Dr. Smith tinha uma filha.
- Morreu há quase onze anos... assassinada pelo marido, segundo o veredicto do júri. O Dr. Smith foi a principal testemunha contra ele. Mrs. Carpenter, preciso de falar com o Dr. Smith, mas duvido muito de que ele aceda a receber-me. Ele vai estar aí na segunda-feira?
- Sim, mas tem a agenda muito preenchida. Não ficará livre antes das quatro.
- Estarei aí a essa hora mas não lhe diga que vou.
Uma Pergunta acudiu ao espírito de Kerry:
- Que carro tem o Dr. Smith?
- Tem o mesmo que sempre teve. Um Mercedes preto de quatro portas.
Kerry apertou o auscultador com mais força.
- A senhora diz que sempre teve. Quer dizer que ele escolhe sempre um Mercedes preto?
- Quero dizer que ele tem o mesmo carro pelo menos há doze anos.Sei porque o ouvi falar sobre isso com um dos seus doentes que, por sinal,é um executivo da Mercedes.
- Muito obrigada,Mrs.Carpenter.
Quando Geoff Dorso chegou a casa na quinta-feira à noite,aproximou-se da janela do seu apartamento,em Meadowlands,e ficou a contemplar a silhueta dos edifícios contra o céu de Nova Iorque.A recordação da forma sarcástica como se dirigira a Kerry,chamando-lhe Meritíssima, atormentara-o durante todo o dia.
Que raio de petulância a minha, pensou. Kerry teve a honestidade de me telefonar e pedir para ler a transcrição.Teve a honestidade de falar com o Dr.Smith e Dolly Bowles.Fez a viagem até Trenton para conhecer Skip.Por que razão não haveria de se preocupar com o facto de perder o cargo de juíza sobretudo se não acreditava verdadeiramente na inocência de Skip? Tenho de pedir-lhe desculpa, embora não a critique se ela me desligar o telefone na cara.
Cheguei a insinuar que ela estava a ser oportunista.
De tudo aquilo,porém,tinha resultado algo de positivo,recordou a si próprio. Kerry talvez não acreditasse na inocência de Skip, mas tinha aberto duas linhas de investigação que ele iria continuar a explorar: a história de Dolly Bowles acerca do carro do pai e a bizarra compulsão do Dr. Smith para reproduzir o rosto de Suzanne em outras mulheres.
Geoff estendeu a mão para o telefone, respirou fundo e marcou o número de Kerry.
DEPoIs de Kerry chegar a casa e de a babysitter ter saído, Robin olhou-a atentamente.
- A mãe parece morta de cansaço. Foi um dia difícil?
- Sim, podes chamar-lhe isso. Como correu o teu?
- Bem. Acho que Andrew gosta de mim.
- A sério? - Kerry sabia que Andrew era considerado o rapaz mais giro do quinto ano. - Como é que sabes?
- Ele disse ao Tommy que, mesmo com a minha cara toda desfeita, ainda sou mais bonita do que a maior parte das patetas da aula.
Kerry sorriu.
- Ora aí está aquilo a que eu chamo um elogio.
- Foi o que eu pensei. O que é o jantar?
- Que dizes a um cheeseburger ?
- Optimo.
O telefone tocou, e Robin atendeu. Era para ela, mas Robin estendeu o auscultador à mãe, dizendo:
- Eu atendo lá em cima, está bem? É Cassie.
Quando ouviu o exuberante Já cá estou" de Robin, Kerry pousou o auscultador, levou o correio para a cozinha e começou a examiná-lo. Despertou-lhe a atenção um envelope branco vulgar com o seu nome e morada em letras maiúsculas. Abriu-o, tirou uma fotografia do seu interior e ficou gelada. Era uma Polaruid a cores retratando Robin a descer o passeio em frente à casa. Estava com as calças de fato de treino azul-escuras que tinha no dia em que se assustara com o automóvel.
Kerry sentiu os lábios secos. Estava com uma respiração arquejante e rápida.
Quem é que fez isto? Quem é que iria tirar uma fotografia a Robin, acelerar o carro em direcção a ela e depois enviar- me a fotografia pelo correio?
Ao ouvir o barulho de Robin a descer as escadas, enfiou a fotografia no bolso.
- Mãe, Cassie lembrou-me de que eu tenho de ver o Discovery Channel agora. O programa é sobre a matéria que andamos a estudar em Ciências. Isto não conta como entretenimento, pois não?
- Não, claro que não. Vai ver.
O telefone tocou novamente no preciso momento em que Kerry se deixava cair numa cadeira. Era Geoff Dorso. Ela cortou-lhe as desculpas.
- Geoff, acabo de abrir o correio. - E contou-lhe da fotografia.
- Robin tinha razão - disse ela num murmúrio. - Havia alguém a observá- la dentro daquele carro. Imagina que a tinha puxado lá para dentro !
Geoff apercebeu-se do medo e desespero na voz dela.
- Kerry, não digas mais nada. Eu vou pôr-me já a caminho. Estou aí dentro de meia hora.
NESSa mesma hora, o Dr. Smith estava sentado na biblioteca, na sua cadeira habitual, a beber o habitual cocktail depois de um dia de trabalho. Fora um erro terrível seguir Barbara Tompkins na noite anterior. Quando o carro ficara parado no meio do trânsito, em frente ao edifício de apartamentos onde ela morava, pensou que ela talvez o tivesse visto. Por outro lado, o centro de Manhattan era um sítio onde as pessoas avistavam frequentemente gente conhecida. Por isso, a sua presença ali não era, realmente, tão fora do vulgar.
Mas uma olhadela rápida e casual não era suficiente. Ele queria ver Barbara de novo. Vê-la de facto, falar-lhe. Ela não era Suzanne, ninguém podia sê-lo. Mas, tal como Suzanne, quanto mais Barbara se habituava à sua beleza, mais a sua personalidade a realçava. Recordou a criatura taciturna e sem graça que tinha aparecido pela primeira vez no seu consultório; um ano depois da operação, Suzanne completara a transformação com a mudança radical da sua personalidade.
Smith sorriu debilmente ao recordar a provocante linguagem corporal de Suzanne, os subtis movimentos que faziam que todos os homens se voltassem para a observar. Ela tinha mesmo tornado a voz mais grave até ficar com um tom rouco e sensual. Quando ele comentara a transformação operada na sua personalidade, ela respondera:
- Tive duas boas professoras... as minhas supostas irmãs. Nós in vertemos o conto de fadas. Elas eram as beldades, e eu era a feia Cinderela. Só que, em vez de uma fada madrinha, eu tenho-o a si.
Para o final, porém, a sua fantasia de Pigmaleão transformara-se num pesadelo. O respeito e a afeição que Suzanne parecia ter por ele começaram a desvanecer-se. Ela já não escutava os seus conselhos. Para o final, tinha ido muito além do namoriscar inconsequente. Quantas vezes a avisara de que ela estava a brincar com o fogo, de que Skip Reardon seria capaz de a matar se descobrisse como ela se comportava? Qualquer marido de uma mulher tão desejável seria capaz de matar, pensou o Dr. Smith.
Com um estremecimento, olhou encolerizado, para o copo vazio. Agora, não haveria outra oportunidade de atingir a perfeição que alcançara com Suzanne. Teria de abandonar a cirurgia antes que ocorresse algum acidente. Era demasiado tarde. Sabia que estava na fase inicial da doença de Parkinson.
Se Barbara não era Suzanne, era, de entre todos os seus pacientes vivos, o mais notável exemplo do seu génio. Estendeu a mão para o telefone.
Não, aquilo não podia ser tensão na sua voz, pensou ele quando Barbara Tompkins pegou no auscultador e disse Estou.
- Barbara, minha querida, há algum problema? Fala o Dr. Smith.
O grito abafado dela foi perfeitamente audível, mas apressou-se a responder:
- Oh, não, claro que não. Como está, doutor?
- Estou bem. Vou passar pelo Lennox Hill Hospital para visitar um velho amigo em estado terminal e sei que vou sentir-me um bocado deprimido. Quer ter piedade de mim e vir jantar comigo? Podia passar por sua casa por volta das sete e meia.
- Eu não... não sei...
- Por favor, Barbara. - Tentou parecer brincalhão. - Foi você que me disse que me devia a sua nova vida. E não me dispensa duas horas do seu tempo?
- Claro que sim.
- Óptimo. Às sete e meia então.
- Está bem, doutor.
Quase parecia que ele a obrigara ao encontro, pensou o Dr. Smith ao desligar o telefone. Se assim era, aquele era mais um aspecto em que ela começava a ficar parecida com Suzanne.
JasoN não conseguia afastar a sensação de que qualquer coisa se passava. Tinha passado o dia em Nova Iorque com Vera Shelby Todd, de cinquenta e dois anos, numa busca interminável de tapetes persas.
Oriunda da família Shelby, de Rhode Island, Vera vivia numa das elegantes casas senhoriais de Tuxedo Park, em Nova Iorque, e estava habituada a fazer o que queria. Depois da morte do primeiro marido, casara-se com Stuart Todd, mas decidira manter a casa de Tuxedo Park. Agora, utilizando o aparentemente inesgotável livro de cheques de Todd, Vera aproveitava-se frequentemente da intuição infalível de Jason para encontrar raridades e pechinchas.
Jason conhecera Vera numa festa de gala que os Shelbys tinham dado em Newport.Quando ela soube que Jason vivia relativament perto da casa de Tuxedo Park,começou a convidá-lo para as suas festas. Jason divertira-se imenso quando ela lhe contou todos os pormenores da investigação policial sobre o assalto de Newport,que ele fizera uns anos antes.
- A minha prima Judith ficou muito transtornada - confidenciara ela.- Não conseguia perceber porque é que alguém roubaria o Picasso e deixava o Van Eyck.Por isso,levou-o a um perito de arte,que lhe disse que se tratava de um criminoso arguto: o Van Eyck é uma falsificação.
Judith ficou furiosa,mas para nós,que tínhamos tido que aturar as suas gabarolices acerca do seu incomparável conhecimento dos grandes mestres,tornou-se uma anedota de família.
Nesse dia,depois de terem examinado exaustivamente vários tapetes absurdamente caros sem que Vera encontrasse nenhum a seu gosto,Jason estava ansioso por se ver livre dela.Mas,perante a sua insistência, almoçaram no Four Seasons.O agradável interlúdio animou Jason até ao momento em que,quando estava a acabar o café,Vera comentou:
- Ah,já lhe tinha dito? Lembra-se de lhe ter contado que há cinco anos,a casa da minha prima Judith em Rhode Island foi assaltada?
Jason comprimiu os lábios e respondeu.
- Claro.Uma experiência terrível.
Vera acenou afirmativamente.
- Sem dúvida.Mas ontem Judith recebeu uma fotografia do FBI. Recentemente,houve um assalto em Chevy Chase,e uma câmara escondida filmou o ladrão.O FBI pensa que pode ser a mesma pessoa que assaltou a casa de Judith.
Jason sentiu um formigueiro por todo o corpo.Cruzara-se com Judith Shelby apenas meia dúzia de vezes e já não a via há quase cinco anos.Obviamente,ela não o tinha reconhecido.Por enquanto.
- A fotografia estava nítida? - perguntou ele casualmente.
Vera deu uma gargalhada.
- Não,nada.Judith diz que só se conseguia ver com dificuldade o nariz e a boca.Deitou-a fora.
Jason reprimiu um suspiro de alívio.
- De acordo com a informação que acompanhava a fotografia,o
homem é perigoso - prosseguiu Vera.- É procurado para interrogatório sobre o caso do assassínio da mãe do congressista Peale. Aparentemente, ela surpreendeu-o por acaso durante o assalto a sua casa.Judith esteve quase a voltar mais cedo na noite em que a casa dela foi assaltada.Imagine só o que poderia ter acontecido se ela o tivesse encontrado.
Nervoso, Jason comprimiu os lábios. Tinham-no relacionado com a morte de Peale!
A caminho de Alpine, Jason recordou aquela noite terrível em casa do congressista Peale. Estava no corredor a transportar o quadro quando ouviu o barulho de passos a subir a escada. Mal tivera tempo de segurar o quadro em frente do rosto quando a luz inundou o corredor. Depois, ouvira o grito sufocado e trémulo:
Oh, meu Deus!
e percebeu que era a mãe do congressista. Não tinha tido a intenção de fazer-lhe mal. Correra na direcção dela, segurando o quadro como um escudo, pretendendo apenas derrubá-la e tirar-lhe os óculos. Passara um bom bocado a falar com ela na festa de inauguração da casa dos Peales e sabia que, sem os óculos, ela não via um palmo à frente do nariz.
Mas a pesada moldura bateu-lhe na cabeça com mais força do que ele tencionava, e ela caiu pelas escadas abaixo. Jason apercebeu-se, pelo extertor final que fez antes de ficar imóvel, de que estava morta. Durante vários meses, depois disso, ele olhava frequentemente por cima do ombro à espera de que alguém viesse ter com ele com umas algemas.
Deveria fugir?, perguntou a si próprio no momento em que atravessava a Ponte George Washington. Sob outras identidades, tinha bastante dinheiro em títulos negociáveis. Talvez devesse abandonar o país imediatamente. Por outro lado, se a fotografia era tão pouco nítida como Judith Shelby achara...
Na altura em que virou na saída para Alpine, já tomara a sua decisão. À excepção daquela fotografia, tinha quase a certeza de que não deixara quaisquer pistas. Não, não ia entrar em pânico. Mas nada de mais trabalhinhos nos próximos tempos. Aquilo fora um aviso.
Chegou a casa às 3.45 e examinou o correio. Um envelope despertou-lhe a atenção e ele abriu-o, retirou o que estava no seu interior e desatou a rir. Não era possível que alguém o relacionasse com aquela figura vagamente cómica, com uma meia a servir de máscara puxada para cima, e uma caricatura granulosa de um perfil a poucos centímetros da cópia da estatueta de Rodin.
- Bem podem comprar uma câmara melhor! - exclamou Jason. Instalou-se no escritório para fazer uma sesta. A torrente ininterrupta de palavras de Vera tinha-o esgotado. Quando acordou, eram horas do noticiário das 6. A notícia principal era o rumor de que o co-réu de Jimmy Weeks, Barney Haskell, estava a negociar um acordo com o procurador-geral. Ele insinuara que podia relacionar Jimmy com um assassínio pelo qual uma pessoa estava a cumprir pena.
Isso não é nada comparado com o acordo que eu podia negociar, pensou Jason. Era um pensamento reconfortante. Mas, é claro, isso nunca viria a acontecer.
RoBIN desligou o documentário sobre ciência justamente no momento em que a campainha tocou. Ficou encantada ao ouvir a voz de Geoff Dorso na entrada e apareceu a correr para o saudar. Percebeu que tanto o seu rosto como o da mãe estavam sérios.
Talvez tenham discutido, pensou ela, e queiram fazer as pazes.
Durante o jantar, Robin reparou que a mãe se encontrava invulgarmente silenciosa, enquanto Geoff estava divertido a contar histórias das irmãs.
Geoff é tão simpático, pensou Robin. Fazia-lhe lembrar Jimmy Stewart naquele filme que ela e a mãe viam todos os natais, It s a Wonderful Life. Tinha o mesmo género de sorriso tímido e meigo, a mesma voz hesitante e o tipo de cabelo que parecia nunca conseguir manter-se no lugar.
Mas Robin notou que a mãe parecia estar pouco atenta às histórias de Geoff. Era óbvio que se passava qualquer coisa entre eles e que precisavam de falar - sem a presença dela. Por isso, decidiu fazer o grande sacrifício de ir para o quarto trabalhar no seu projecto de ciências. Depois de ter ajudado a levantar a mesa, anunciou os seus planos e apercebeu-se da expressão de alívio nos olhos da mãe.
Geoff ficou à espera de ouvir o barulho da porta do quarto de Robin a fechar-se, dizendo em seguida:
- Mostra-me lá a fotografia.
Kerry meteu a mão no bolso, tirou-a e entregou-lha.
Geoff examinou-a atentamente.
- Parece-me que Robin descreveu com grande precisão o que aconteceu - observou ele. - Alguém a apanhou bem de frente no momento em que ela saía de casa.
- Portanto, tinha razão quando disse que o carro se dirigiu para ela a toda a velocidade. Mas porquê, Geoff?
- Não sei, Kerry. O que sei é que isto tem de ser tomado a sério. Já contaste a Bob?
- Céus, nem me ocorreu. É claro que Bob tem de ser informado disto.
- Eu quereria saber se ela fosse minha filha - concordou Geoff. - Ouve, porque é que não lhe telefonas enquanto eu sirvo outro café?
Bob não estava em casa. Alice foi friamente educada com Kerry.
- Ele ainda está no escritório - informou a mulher. - Quer que lhe dê algum recado?
Apenas que a filha mais velha está em perigo, pensou Kerry.
- Eu telefono-lhe para o escritório. Boa noite, Alice.
BOb empalideceu ao ouvir o relato de Kerry sobre o que acontecera a Robin. Não tinha quaisquer dúvidas sobre quem tirara a fotografia. Tinha estampada a assinatura de Jimmy Weeks. Era assim que ele trabalhava. Começava uma guerra de nervos e depois avançava. Na próxima semana haveria outra fotografia. Nunca uma ameaça nem um bilhete. Apenas uma fotografia. Uma situação do tipo: ou percebes a mensagem ou então...
Quando desligou, Bob bateu com o punho na mesa. Jimmy estava a ficar descontrolado. Ambos sabiam que seria o fim se Haskell negociasse o acordo com o procurador-geral. Sobretudo se chegasse aos ouvidos de Haskell que a ex-mulher de Kinellen andava a investigar o processo Reardon. Podia ocorrer-lhe que havia outra maneira de me lhorar o acordo que ele andava a tentar fazer com a acusação.
Weeks calculou que Kerry iria, provavelmente, telefonar-me por causa da fotografia, pensou Bob. É a maneira de ele me dizer que eu devo avisá-la de que deve afastar- se do processo Reardon. Mas o que Weeks não sabe é que Kerry não se deixa intimidar. De facto, se ela suspeitasse de que a fotografia era uma ameaça, isso seria o mesmo que agitar uma capa vermelha diante de um touro.
O DR. Smith levou Barbara Tompkins ao Le Cirque, um restaurante muito chique e caro no centro de Manhattan. Fora buscá-la ao apartamento e não lhe passara despercebido o facto de que ela estava logo pronta para sair. Tinha o casaco em cima de uma cadeira na entrada e a bolsa em cima da mesa ao lado. Não lhe ofereceu qualquer aperitivo.
Não quer ficar sozinha comigo, pensara ele.
Mas no restaurante, com tanta gente à volta e o chefe de mesa por perto, Barbara mostrou-se visivelmente mais descontraída.
- Isto é tão diferente de Albany - disse ela. - Ainda me sinto como uma criança a fazer anos todos os dias.
Por um momento, ele sentiu-se atordoado com aquelas palavras: Suzanne comparara-se a uma criança com uma eterna árvore de Natal e presentes sempre à espera de serem abertos. Mas de uma criança deslumbrada Suzanne transformara-se numa adulta ingrata.
Eu exigia tão pouco dela, pensou. Não teria um artista direito a desfrutar da su obra de arte?
Agora, sentia-se reconfortado ao ver que, naquela sala cheia de mulheres atraentes e elegantes, os olhares de soslaio eram dirigidos a Bar bara. Ele chamou-lhe a atenção para o facto. Ela abanou levemente a cabeça, como se repudiasse a sugestão. Os olhos dele tornaram-se frios.
- Não os desvalorizes, Suzanne. Seria um insulto para mim.
Só mais tarde, depois de a ter acompanhado de volta ao apartamento, é que ele perguntou a si próprio se lhe teria chamado Suzanne. E, se assim fosse, quantas vezes teria tido o mesmo lapso?
Suspirou e recostou-se, fechando os olhos. Enquanto o táxi atravessava a cidade, Charles Smith recordava como fora fácil passar de automóvel pela casa de Suzanne quando estava sequioso de a ver. Ela estava invariavelmente sentada diante do televisor e nunca se preocupava em correr os cortinados. Podia vê-la enroscada na sua cadeira favorita, ou, por vezes, era forçado a observá-la sentada no sofá com Skip Reardon, com os respectivos ombros a tocarem-se naquela intimidade fortuita que ele não podia partilhar.
Barbara não era casada. Pelo que sabia, não havia ninguém especial na sua vida. Nessa noite, ele pedira-lhe que o tratasse por Charles. Pensou na pulseira que Suzanne usava quando morrera. Deveria oferecê-la a Barbara? Conseguiria com isso conquistar a sua estima?
Tinha dado várias jóias a Suzanne. Belas jóias. Mas depois, ela começara a recebê-las de outros homens e a exigir que ele mentisse por ela.
Charles Smith sentiu a exaltação de ter estado com Barbara a desvanecer-se.
GEOFF perscrutou o rosto sério de Kerry depois de esta ter telefonado a Bob, atento à ponta de tristeza nos seus olhos cor de avelã, à vul nerabilidade que emanava da sua postura. Apeteceu-lhe rodeá-la com os braços, dizer-lhe que se apoiasse nele. Mas sabia que ela não desejava isso. Kerry McGrath não esperava nem queria apoiar-se em ninguém. Tentou novamente pedir-lhe desculpa pelo seu comentário da outra noite.
- Tive um grande descaramento - confessou ele. - Sei perfeitamente que, se estivesses realmente convencida de que Skip estava inocente, tu, mais do que ninguém, não hesitarias em ajudá-lo. És uma pessoa às direitas, Kerry.
Serei mesmo?, interrogou-se ela. Aquele não era o momento para partilhar com Geoff a informação que obtivera acerca de Jimmy Weeks no processo do procurador. Antes disso, queria avistar-se novamente com o Dr. Smith. Ele negara, ofendido, ter operado Suzanne, mas nunca dissera que não a tinha mandado a outro cirurgião qualquer.
Quando Geoff estava de saída, alguns minutos depois, pararam no vestíbulo por momentos.
- Gosto de estar contigo - disse-lhe ele -, e isto não tem nada a ver com o processo Reardon. - Inclinou-se para ela e roçou-lhe levemente os lábios pela face.
A NEGOCIAÇÃO do acordo não estava a correr muito bem a Barney Haskell. As 7 da manhã de sexta-feira, encontrou-se com o advogado Mark Young no escritório deste, em Summit. Chefe da equipa de defesa, Young tinha mais ou menos a idade dele, cinquenta e cinco anos, mas as semelhanças ficavam-se por aí, pensou Barney com acrimónia. Young estava elegante até àquela hora da manhã, com o seu fato de mil dólares que parecia assentar- lhe como uma segunda pele. Bar ney comprava os fatos no pronto-a-vestir. Jimmy nunca lhe pagara o suficiente para que ele pudesse fazer de outro modo. Agora, enfrentava a perspectiva de vários anos na prisão se continuasse ligado a Jimmy.
Barney sabia que tinha o ar inocente de um empregado bancário pateta, um aspecto que lhe fora sempre de grande utilidade. As pessoas tinham tendência para não repararem nele ou esquecerem-se dele. Mesmo os indivíduos mais próximos de Jimmy não lhe prestavam grande atenção. Nenhum deles se dera conta de que era ele quem transformava o dinheiro ilícito em investimentos e controlava contas bancárias em todo o Mundo.
- Podemos incluir-te no Programa de Protecção de Testemunhas - dizia Young. - Mas só depois de teres cumprido um mínimo de cinco anos.
- É demasiado - grunhiu Barney.
- Ouve, tens andado a insinuar que podes relacionar Jimmy com um assassínio - replicou Young. - Barney, tens de avançar ou calar-te.
Os agentes federais pelavam-se por incriminar Weeks por homicídio. Se ele for condenado a prisão perpétua, a organização provavelmente desmorona-se. É isso que eles têm em mira.
- Eu posso relacioná-lo com um. Depois, têm de provar que ele cometeu. Não se diz que Brandon Royce, o procurador- geral deste caso, pensa candidatar-se a governador, concorrendo contra Frank Green?
- Se ambos conseguirem ser nomeados pelos respectivos partidos - comentou Young. - Barney, tens de te deixar de rodeios. E tens de confiar em mim e contares-me isso que andas por aí a insinuar. Caso contrário, não vou conseguir ajudar-te.
Barney franziu por momentos o seu rosto de querubim. Depois, a testa desanuviou-se, e ele declarou por fim:
- Está bem, eu conto-te. Lembras-te do Caso do Crime por Amor, o que envolveu aquela jovem sexy que foi encontrada morta com rosas espalhadas pelo corpo todo, o processo com que Frank Green se tornou famoso?
Young acenou afirmativamente.
- Lembro. Ele conseguiu que o marido fosse condenado. - Os seus olhos semicerraram-se. - Não estás a querer dizer que Weeks estava ligado a esse caso?
- Lembras-te de o marido ter afirmado que não tinha oferecido aquelas rosas à mulher? - Perante o aceno afirmativo de Young, Haskell prosseguiu: - Foi Jimmy Weeks quem mandou essas flores a Suzanne Reardon. Eu sei; fui eu quem lhas foi entregar a casa na noite em que ela morreu. A acompanhá-las ia um bilhete escrito pelo punho de Jimmy. Eu mostro-te o que dizia.
Barney estendeu a mão para a caneta e para o bloco das mensagens telefónicas. Pouco depois, estendeu-lhe o bloco.
- Jimmy tratava Suzanne por amor" - explicou ele. - Tinha um encontro com ela nessa noite.
Young examinou o papel. Tinha seis notas de música com quatro palavras escritas por baixo: Estou apaixonado por ti. Estava assinado J. Cantarolou as notas e olhou para Barney.
- São as primeiras notas da canção Deixa-me Chamar-te Meu Amor - disse ele.
- Pois são. Seguidas do resto do primeiro verso da canção: Estou apaixonado por ti.
- Onde está esse bilhete?
- Aí é que está. Ninguém mencionou a existência dele lá em casa quando o corpo foi encontrado. Mas Jimmy estava louco por aquela mulher e ficava de cabeça perdida por ela se divertir com outros homens. Quando lhe enviou aquelas flores, já lhe tinha feito um ultimato: ela tinha de se divorciar... e manter-se afastada de outros homens.
- Qual foi a reacção dela?
- Oh, ela gostava de lhe fazer ciúmes. Um dos nossos tentou avisá-la de que Jimmy podia ser perigoso, mas ela limitou-se a rir. O meu palpite é que nessa noite ela foi longe demais. Atirar com as rosas para cima do cadáver é precisamente o tipo de coisa que Jimm faria.
- E o bilhete desapareceu?
Barney encolheu os ombros.
- Não se ouviu qualquer referência a ele em tribunal. Eu recebi ordens para manter a boca calada em relação a ela. O que eu sei é que ela fez Jimmy esperar ou faltou ao encontro nessa noite. Alguns dos homens contaram-me que ele se atirou ao ar e disse que a matava. Tu conheces o mau génio de Jimmy. E havia ainda outra coisa: Jimmy tinha-lhe comprado umas jóias caras. Eu sei porque fui eu que as paguei e guardei uma cópia dos recibos. Falou-se muito de jóias nojulgamento, coisas que o marido assegurava que não lhe tinha dado. Mas tudo o que encontraram o pai jurou que lhe tinha dado.
Mark Young tirou a folha do bloco, dobrou-a e guardou-a no bolso interior do casaco.
- Barney, penso que vais poder gozar uma vida nova e maravilhosa no Ohio. Deste ao procurador-geral a oportunidade não só de deitar a mão a Jimmy por homicídio, mas também de aniquilar Frank Green por acusar um homem inocente.
Sorriram um ao outro.
- Diz-lhes que eu não quero viver no Ohio - gracejou Barney.
Saíram do gabinete juntos e caminharam pelo corredor até aos elevadores.
Quando chegou e as portas começaram a abrir-se, Barney pressentiu logo que alguma coisa de errado se passava. Lá dentro, a luz não estava acesa. O instinto fê-lo voltar-se para fugir.
Foi demasiado tarde. Morreu de imediato, momentos antes de Mark Young sentir a primeira bala trespassar a lapela do seu fato de mil dólares.
KERry soube do duplo homicídio através da estação de rádio WCBS, a caminho do emprego. Os cadáveres haviam sido descobertos pela secretária particular de Mark Young. Mike Murkowski, o procurador do Essex County, declarou que parecia que os dois homens tinham sido assaltados. Podiam ter sido seguidos até ao edifício por potenciais larápios e terem perdido a vida ao tentarem resistir. Barney Haskell fora alvejado na nuca e no pescoço.
O repórter da CBS perguntou se o facto de circularem rumores de que Barney Haskell estava prestes a relacionar Jimmy Weeks com um homicídio podia ser considerado como um móbil possível para as duas mortes. A resposta desabrida do procurador foi:
Sem comentários.
Parece um trabalho da Mafia, pensou Kerry ao desligar o rádio: E Bob representa Jimmy Weeks. Meu Deus, que grande confusão!
Bob KinELEN não soube da notícia sobre Barney Haskell e Mark Young senão quando entrou no tribunal, às 8.50, e os jornalistas se precipitaram para ele. Logo que soube o que tinha acontecido, deu-se conta de que já estava à espera de uma coisa daquelas. Como podia Haskell ter sido estúpido ao ponto de pensar que Jimmy o deixaria vi ver para testemunhar contra ele?
Kinellen conseguiu aparentar uma conveniente consternação e es capuliu-se para dentro da sala de audiências.
Jimmy já lá estava e perguntou-lhe:
- Soubeste do que aconteceu a Haskell?
- Soube, Jimmy.
- Ninguém está em segurança. Os assaltantes estão por todo o lado.
- Assim parece, Jimmy.
- Bem, pelo menos isto equilibra o jogo, não é, Bobby?
- Sim, creio que sim.
- Mas eu não gosto de jogos equilibrados.
- Eu sei, Jimmy.
- Pois sabes.
Bob mediu as suas palavras.
- Jimmy, alguém enviou à minha ex-mulher uma fotografia da nossa filha, Robin. Foi tirada quando ela ia a sair para a escola, na terça-feira, por uma pessoa que estava dentro de um carro que fez inversão de marcha mesmo à frente dela. Robin pensou que iam atropelá-la.
- Conheces as anedotas que contam acerca dos condutores de Nova Jérsia, Bobby.
- Jimmy, é melhor que não aconteça nada à minha filha.
- Não sei do que estás a falar. Quando é que nomeiam a tua mulher juíza e a tiram do gabinete do procurador? Ela não devia andar a meter o nariz nos assuntos dos outros.
Bob sabia que a sua pergunta tinha tido resposta. Fora um dos homens de Jimmy quem tirara a fotografia a Robin. Ele, Bob, teria de fazer que Kerry abandonasse a investigação do caso Reardon. E era melhor para ele que Jimmy fosse declarado inocente naquele processo.
- Bom dia, Jimmy. Bom dia, Bob.
Bob ergueu os olhos e viu o sogro, Anthony Bartlett, esgueirar-se para a cadeira ao lado de Jimmy.
- Lamentável o que aconteceu a Haskell e Young - murmurou Bartlett.
- Trágico - replicou Jimmy.
Nesse momento, o delegado do xerife fez um sinal para que o procurador, Bob e Bartlett se dirigissem ao gabinete do juiz. Da sua secretária, o juiz Benton levantou os olhos sombriamente.
- Presumo que já todos têm conhecimento da tragédia que vitimou Mr. Haskell e Mr. Young.
Os advogados assentiram rapidamente com a cabeça.
- Por muito difícil que venha a tornar-se, julgo que este julgamento deve prosseguir, dado o tempo que nele já foi investido. Felizmente, o júri está isolado e não ficará exposto a estas notícias, incluindo as especulações sobre o possível envolvimento de Mr. Weeks. Limitar-me-ei a anunciar-lhes que o processo de Mr. Haskell já não será objecto da deliberação deles. Dar-lhes-ei instruções no sentido de não especularem sobre o que se teria passado e de não permitirem que isso influencie a sua decisão sobre o processo de Mr. Weeks. Pronto, vamos continuar.
Regressaram à sala de audiências, e o júri entrou. Bob notou os olhares intrigados nos rostos dos jurados ao verem as cadeiras vazias de Haskell e Young. Enquanto o juiz lhes dava instruções para que não especulassem sobre o que tinha acontecido, Bob sabia muito bem que era precisamente isso que eles estavam a fazer.
Eles estão a pensar que Haskell se declarou culpado, pensou Bob. E isso não vai ajudar-nos.
KERRy estava a sair do escritório, às 5 horas, quando Bob telefonou. Apercebeu-se imediatamente da tensão na voz dele.
- Kerry, preciso falar contigo por breves minutos. Estás em casa daqui a uma hora, mais ou menos?
- Estou.
- Então, até já - disse ele, e desligou.
Que razão levaria Bob a ir lá a casa?, perguntou a si própria. Preocupação pela fotografia de Robin que ela tinha recebido. Estendeu a mão para o casaco, lembrando-se com ironia de como, durante o ano e meio que durara o seu casamento, corria alegremente para casa depois do trabalho, na perspectiva de passar a noite com Bob Kinellen.
Quando chegou a casa, Robin olhou-a acusadoramente.
- Mãe, porque é que Alison me foi buscar à escola de carro? não me quis dizer porquê, e eu senti-me a fazer figura de idiota.
Kerry voltou-se para a babysitter.
- Não te quero prender, Alison. Obrigada.
Quando ficaram a sós, Kerry olhou para o rosto indignado de Robin.
- Aquele carro que te assustou... - começou ela.
Quando acabou,Robin estava sentada,muito quieta.
- É um bocado assustador,não é,mãe?
- É.
- Preferia que me tivesse dito ontem à noite.
- Não sabia como havia de fazê-lo, Rob.Eu própria estava demasiado tensa.
- Então,o que fazemos agora?
- Tomamos todas as precauções até descobrirmos quem é que estava do lado de lá da rua na terça-feira passada e porquê.
- Pensa que,se ele voltar,me vai atropelar da próxima vez?
Kerry desejou gritar Não, não. Em vez disso,mudou-se para o
sofá onde Robin estava sentada e rodeou-a com o braço.
Robin encostou a cabeça ao ombro da mãe.
- Por outras palavras,se o carro vier outra vez na minha direcção, fujo.
- É por isso que o carro não vai ter essa oportunidade, Rob.
- O pai sabe disto?
- Telefonei-lhe ontem à noite. Daqui a bocado vem aí. Robin endireitou-se.
- Porque está preocupado comigo?
Ela está contente, pensou Kerry, como se Bob lhe tivesse feito um favor.
- Claro que está preocupado contigo.
- Fixe. Mãe, posso contar a Cassie?
- Não enquanto não soubermos quem é que está por detrás disto...
- E lhe termos deitado a mão! - concluiu Robin.
- Exactamente. Quando isso acontecer, podes contar.
- Está bem. O que é que vamos fazer esta noite?
- Vamos mandar vir uma piza. Eu aluguei uns filmes.
O olhar maroto que Kerry adorava assomou ao rosto de Robin.
- Para maiores de 17, espero.
Ela está a tentar animar-me, pensou Kerry. Não vai dar-me a entender como está assustada.
Às 5.50, Bob chegou. Com um grito de alegria, Robin correu para os braços dele.
- O que é que acha disto de eu estar em perigo? - perguntou ela.
- Vocês os dois conversem um pouco enquanto eu vou mudar de roupa - disse Kerry.
Bob largou Robin.
- Não te demores, Kerry - pediu ele muito depressa. - Só posso ficar uns minutos.
Kerry viu o desgosto instantâneo no rosto de Robin e sentiu vontade de estrangular Bob. Lutando por manter um tom de voz neutro, replicou:
- Desço já.
Vestiu rapidamente um fato de treino, mas esperou propositadamente dez minutos lá em cima. Depois, quando se preparava para descer, ouviu bater à porta e Robin chamar:
- Mãe.
- Entra. - Kerry ia começar a dizer Estou pronta quando viu a expressão do rosto de Robin. - O que é que se passa?
- Nada. O pai pediu-me para esperar cá em cima enquanto fala consigo.
- Estou a perceber.
Bob estava de pé no meio do escritório obviamente pouco à vontade. O que é que ele teria feito que perturbou tanto Robin?, perguntou Kerry a si própria. Provavelmente, passou o tempo todo a dizer-lhe que estava com pressa.
Ao ouvir os passos dela, Bob virou-se.
- Kerry, preciso de voltar para o escritório, mas há uma coisa muito importante que tenho de dizer-te. - Tirou uma pequena folha de papel do bolso. - Soubeste do que aconteceu a Barney Haskell e Mark Young?
- Claro.
- Kerry, Jimmy Weeks tem maneira de obter informações. Por exemplo, ele sabe que tu foste visitar Reardon à prisão.
- Sabe? - Kerry olhou fixamente para o ex-marido. - E que diferença é que isso lhe faz?
- Kerry, não brinques, eu estou preocupado. Jimmy está desesperado. - Estendeu-lhe a folha de papel. Nela estavam escritas seis notas musicais e as palavras Estou apaixonado por ti. Estava assinada J.
- O que é isto? - perguntou Kerry enquanto trauteava mentalmente as notas.
Então, antes que Bob tivesse tempo de responder, ela compreendeu, e o seu sangue ficou gelado. Eram os primeiros acordes da canção Deixa-me Chamar-te Meu Amor.
- Onde é que arranjaste isto e o que é que significa? - perguntou ela com brusquidão.
- É a cópia de um bilhete que foi encontrado no bolso interior do casaco de Mark Young, e a letra é de Haskell. Tenho a certeza de que está relacionado com o acordo que Haskell estava a tentar negociar.
- O acordo? Queres dizer que o homicídio que ele andava a insinuar que podia relacionar com Jimmy Weeks era o Caso do Crime por Amor? - Kerry nem queria acreditar no que estava a ouvir. - Jimmy estava envolvido com Suzanne Reardon, não estava? Bob, estás a dizer-me que quem tirou a fotografia a Robin e quase a atropelou trabalha para Jimmy Weeks e que este é o modo que ele usa para me pressionar a afastar-me do caso?
- Kerry, eu não estou a dizer nada, excepto que deixes as coisas como estão. Para bem de Robin, deixa as coisas como estão.
- Weeks sabe que estás aqui?
- Sabe que, para bem de Robin, eu te avisaria.
- Espera um minuto. - Kerry olhou para o ex-marido, incrédula. - Deixa-me ver se entendo. Estás aqui para me avisar, porque o teu cliente, o bandido e assassino que tu representas, te encarregou de me transmitires uma ameaça. Oh, Bob, nunca pensei que descesses tão baixo.
- Kerry, estou a tentar salvar a vida da minha filha.
- A tua filha? De repente, ela tornou-se assim tão importante para ti? Fazes ideia de quantas vezes a magoaste por não apareceres para a ver? É insultuoso. Agora, sai. - No momento em que ele se voltava, ela arrebatou-lhe o papel da mão. - Mas eu fico com isto.
- Dá cá isso. - Kinellen agarrou-lhe a mão, obrigando-a a abrir os dedos, e tirou-lhe o papel.
- Pai, largue a mãe!
Ambos se voltaram rapidamente e viram Robin à porta, as cicatrizes descoloridas brilhando de novo sobre a palidez do seu rosto.
O DR. SMitH tinha saído do consúltório às 4.20,um ou dois minutos depois de a última doente se ter ido embora.
Kate Carpenter sentiu-se contente por vê-lo sair. Ultimamente, enervava-se só de estar ao pé dele.Tinha reparado que o tremor da mão dele se acentuara,mas a sua inquietação ultrapassava o problema físico.
Os telefonemas de Barbara Tompkins e Kerry McGrath tinham-na convencido de que,mentalmente,havia também qualquer coisa de profundamente errado no médico.O mais frustrante para Kate,porém,era que ela não sabia a quem recorrer.Charles Smith era - ou pelo menos tinha sido - um cirurgião brilhante.Não queria vê-lo expulso ignominiosamente da profissão.
Às 4.30,Barbara Tompkins telefonou.
- Mrs.Carpenter,estou farta. Ontem à noite,o Dr.Smith telefonou e praticamente exigiu que eu jantasse com ele,mas depois estava constantemente a chamar-me Suzanne.Lamento imenso,sei que lhe devo muito, mas isto está a dar-me cabo dos nervos. Sinto que, mesmo quando estou no emprego, não paro de olhar para trás à espera de o ver escondido em qualquer lado. Não aguento mais.
Kate Carpenter percebeu que não podia continuar com evasivas. A única pessoa em quem ela podia confiar era na mãe de Robin Kinellen, Kerry McGrath. Kate sabia que ela era delegada do procurador mas também uma mãe que estava muito grata por o Dr. Smith ter tratado da filha numa emergência. Kate tinha também consciência de que Kerry McGrath sabia mais acerca do passado do Dr. Smith do que ela própria ou qualquer outra pessoa que trabalhava com ele. Não sabia exactamente porque é que Kerry tinha andado a fazer averiguações sobre o médico, mas Kate não achava que fosse com o objectivo de o prejudicar.
Sentindo-se um pouco traidora, Kate deu a Barbara Tompkins o número de telefone da delegada do procurador do Bergen County, Kerry McGrath.
Durante muito tempo, depois de Bob ter saído, Kerry e Robin permaneceram sentadas no sofá, ombro com ombro, com as pernas em cima da mesa de apoio. A certa altura, medindo cuidadosamente as pa lavras, Kerry disse:
- O que quer que a cena a que acabaste de assistir pudesse implicar, o pai gosta muito de ti, Robin. A preocupação dele é por tua causa. Eu não admiro grandemente as confusões em que ele se mete, mas respeito os sentimentos dele para contigo.
- A mãe zangou-se quando ele disse que estava preocupado co migo.
- Ora, aquilo saiu-me da boca para fora. Ele às vezes irrita- me. De qualquer maneira eu sei que não vais ser o tipo de pessoa que se deixa arrastar para problemas que são óbvios para toda a gente e que depois evoca uma ética condicional; quero dizer, Isto pode estar errado, mas é necessário.
- É isso que o pai está a fazer?
- Eu acho que sim.
- Ele sabe quem é que me tirou a fotografia?
- Ele suspeita que sabe. Tem a ver com um processo em que Geoff tem andado a trabalhar e para o qual tentou obter a minha ajuda. Ele está a tentar tirar da prisão um homem que pensa que está inocente.
- E a mãe está a ajudá-lo?
- Na realidade, eu tinha chegado à conclusão de que, ao envolver-me, estava a agitar um ninho de vespas sem nenhum motivo válido.
Mas agora começo a pensar que podia estar enganada,que o cliente de Geoff pode ter sido condenado injustamente.Mas não vou,de certeza,fazer-te correr qualquer espécie de perigo para o provar.Isso garanto-te.
Robin olhou fixamente em frente por um momento e depois voltou-se para a mãe.
- Mãe,isso é completamente injusto.Está a criticar o pai por uma coisa e agora está a fazer exactamente o mesmo.Então,não ajudar Geoff se pensa que o cliente dele não devia estar na prisão não é também ética condicional?
- Robin !
- Estou a falar a sério.Agora,podemos encomendar a piza? Tenho fome.
Chocada,Kerry ficou a olhar para a filha enquanto esta se levantava e estendia a mão para o saco onde estavam as cassetes de vídeo que elas planeavam ver.Robin examinou os títulos,escolheu um e pô-lo no videogravador.Antes de o ligar,observou:
- Mãe,eu estou mesmo convencida de que aquele homem que ia no carro estava só a tentar assustar-me.Não me importo se a mãe me deixar na escola e a Alison me for buscar.Qual é a diferença?
Kerry olhou fixamente para a filha e depois abanou a cabeça.
- A diferença é que eu me sinto orgulhosa de ti e envergonhada de mim. - Deu um abraço a Robin e foi à cozinha para encomendar a piza.
Minutos depois,enquanto tirava os pratos para a piza,o telefone tocou e uma voz hesitante anunciou:
- Ms.McGrath,o meu nome é Barbara Tompkins.Peço desculpa de a incomodar,mas Mrs.Carpenter,do consultório do Dr.Smith,sugeriu que eu lhe telefonasse.
Enquanto a ia ouvindo,Kerry pegou numa caneta e começou a tomar notas num bloco: Barbara consultou o Dr.Smith...Ele mostrou-lhe uma fotografia...Perguntou se ela queria ficar parecida com aquela mulher...Operou-a...Agora,chama-lhe Suzanne e persegue-a.
Finalmente Tompkins desabafou:
- Ms.McGrath,eu estou muito grata ao Dr.Smith.Ele mudou
completamente a minha vida.Não quero denunciá-lo à Polícia nem
apresentar queixa dele,mas não posso permitir que isto continue.
- Alguma vez se sentiu fisicamente ameaçada por ele? - quis saber Kerry.
Houve uma breve hesitação antes de Tompkins responder lentamente:
- Não propriamente. Quer dizer, ele nunca me pressionou fisicamente. Mas, de vez em quando tenho de facto a sensação de uma cólera contida e terrível que pode ser facilmente libertada, talvez sobre mim.
- Barbara, eu vou falar com o Dr. Smith na segunda-feira. Ele não sabe, mas vou. Por aquilo que me conta, julgo que ele sofre de uma espécie de esgotamento, e espero que seja possível convencê-lo a procurar ajuda. Mas não posso aconselhá-la a não falar à Polícia se está assustada. Na realidade, penso mesmo que devia fazê-lo.
- Para já, não. Há uma viagem de trabalho que eu planeava fazer para o mês que vem, mas posso mudar a minha agenda e ir na próxima semana. Gostava de falar consigo quando voltar; nessa altura, decidirei o que fazer.
QUaNDO desligou, Kerry deixou- se cair numa cadeira da cozinha. A situação estava a tornar-se muito mais complicada. O Dr. Smith andava a perseguir Barbara Tompkins. Teria também perseguido a sua própria filha? Nesse caso, era provável que fosse dele o Mercedes que Dolly Bowles e o pequeno Michael tinham visto diante da casa dos Reardons na noite do assassínio. Teria Joe Palumbo comparado a matrícula incompleta que Bowles declarava ter visto com a do carro de Smith?
Mas se o Dr. Smith se tivesse virado contra Suzanne da maneira que Barbara Tompkins receava que ele fizesse com ela, se era o responsável pela sua morte, porque estaria então Jimmy Weeks com tanto medo de ser relacionado com o assassínio de Suzanne Reardon?
Preciso de saber mais acerca do relacionamento do Dr. Smith com Suzanne antes de ir falar com ele, pensou Kerry. Aquele negociante de antiguidades, Jason Arnott, talvez fosse a pessoa indicada para lhe dizer. Segundo as notas do processo, ele ia frequentemente a leilões em Nova Iorque com Suzanne. Talvez o Dr. Smith se encontrasse com eles de vez em quando. Ligou para Arnott deixando-lhe uma mensagem para que ele lhe telefonasse. Em seguida, reflectiu sobre se devia ou não fazer outro telefonema.
Este seria para Geoff, pedindo-lhe que organizasse um segundo encontro com Skip Reardon na prisão. Só que desta vez, ela queria que tanto a mãe como a namorada dele, Beth Taylor, também estivessem presentes.
JASON ARNOTT tencionara ficar calmamente em casa na sexta-feira à noite, mas quando Amanda Coble telefonou a convidá-lo para jantar no Ridgewood Country Club, aceitou de bom grado. Os Cobles eram o seu tipo de pessoas - podres de ricos, mas encantadoramente despretensiosos. Richard era um banqueiro internacional, e Amanda, designer de interiores. Jason sabia que ela apreciava os seus conhecimentos sobre antiguidades. Seriam uma agradável distracção depois das horas in quietantes que passara na véspera em Nova Iorque com Vera Todd.
Parou o automóvel diante da entrada do clube no preciso momento em que os Cobles entregavam o carro ao arrumador. Entrou pouco depois deles, e ficou à espera enquanto cumprimentavam um casal de aspecto distinto que estava de saída. Reconheceu o homem imediatamente: era o senador Jonathan Hoover. Jason tinha estado num ou dois jantares políticos em que Hoover participara, mas nunca se haviam encontrado cara a cara.
A mulher estava numa cadeira de rodas, mas, mesmo assim, conseguia ter um aspecto magnífico, com um fato de toilete azul-escuro cuja saia lhe descia até à extremidade dos sapatos de atacadores. Jason ouvira dizer que Mrs. Hoover era inválida, mas nunca a tinha visto. Com um olhar que captava de imediato os mais ínfimos pormenores, ele reparou na posição das mãos dela, entrelaçadas, ocultando parcialmente as articulações deformadas dos dedos.
Deve ter sido muito bonita quando era nova e antes da doença, pensou ele ao estudar as suas feições ainda invulgarmente atraentes, dominadas pelos olhos azul-safira.
Amanda Coble ergueu os olhos e viu-o.
- Jason, já chegou. - Chamou-o com um gesto e fez as apresentações. - Estamos a falar daqueles terríveis assassínios em Summit hoje de manhã. Tanto o senador Hoover como Richard conheciam o advogado Mark Young.
- É bastante óbvio que se trata de um ataque da Mafia - comentou Richard Coble, encolerizado.
- Concordo - replicou Jonathan Hoover. - E o governador também. Todos sabemos que ele foi implacável no combate ao crime durante estes oito anos, e agora precisamos que Frank Green continue esse bom trabalho.
- Jonathan - murmurou Grace Hoover reprovadoramente. - Vê-se logo que estamos em ano de eleições, não é verdade, Amanda?
Todos sorriram, e ela acrescentou:
- Bem, não vamos reter-vos por mais tempo.
- A minha mulher põe-me na ordem desde o dia em que nos conhecemos - explicou Jonathan Hoover a Jason. - Prazer em conhecê-lo, Mr. Arnott.
- Mr. Arnott, nunca fomos apresentados? - perguntou Grace
Hoover subitamente. - Tenho a sensação de que já o conheço.
Jason sentiu despoletar-se o seu alarme interno, enviando-lhe um aviso muito forte.
- Não creio - respondeu ele devagar.
Tenho a certeza de que me lembraria, pensou. O que é que a levará a pensar que já nos conhecemos?
- Bem, com certeza estou enganada. Boa noite.
Embora os Cobles fossem interessantes, como de costume, Jason passou o serão a desejar intimamente ter ficado em casa.
Quando lá chegou, às 10.30, aquele dia ainda se tornou mais desagradável ao ouvir a única mensagem que tinha no gravador. Era de Kerry McGrath, que se apresentava como delegada do procurador do Bergen County, lhe dava o seu número de telefone e lhe pedia que lhe ligasse para casa até às 11 ou no dia seguinte de manhã cedo. Explicava que pretendia falar com ele em particular sobre a sua falecida vizinha e amiga, vítima de homicídio, Suzanne Reardon.
Na sExTa-FEiRA à noite, Geoff Dorso foi jantar a casa dos pais, em Essex Fells. A sua irmã Marian, o marido, Don, e os seus dois filhos gémeos, de dois anos, tinham vindo de Boston para passar o fim-de-semana, e a mãe tinha planeado uma reunião de família.
Geoff estacionou em frente da grande casa de estilo Tudor que os pais tinham comprado há vinte e sete anos por um décimo do seu valor actual. Percorreu o passeio e penetrou na atmosfera afectuosa e barulhenta, tão característica das ocasiões em que as três gerações do clã Dorso se reuniam.
Depois das saudações efusivas ao ramo de Boston e do Olá, casual aos parentes que via com regularidade, Geoff conseguiu escapar-se com o pai para o escritório forrado de livros. Edward Dorso serviu um whisky ao filho. Agora na reforma, fora um advogado especialista em contencioso de empresas, conhecera e estimara Mark Young e estava ansioso por conhecer os pormenores de bastidores sobre o seu assassínio que Geoff pudesse ter ouvido no tribunal.
- Não lhe posso dizer grande coisa, pai - confessou Geoff. - É difícil de acreditar que uns bandidos quaisquer, por acaso, se tivessem atrapalhado durante um assalto e morto Young precisamente na altura em que a outra vítima estava a negociar um acordo em troca do seu testemunho contra Jimmy Weeks.
Antes que o pai pudesse fazer um comentário, um coro de vozes ergueu-se do lado de fora do escritório:
- Avô, tio Geoff, o jantar está na mesa.
- Vá andando, pai. Eu vou já; quero ver se tenho al uma mensagem.
Quando Geoff ouviu a voz grave e um pouco fraca de Kerr na gravação, encostou o auscultador ao ouvido com mais força. Estaria ela realmente a dizer que queria voltar à prisão para ver Skip? Que queria que a mãe dele e Beth Taylor estivessem presentes?
- Aleluia! - exclamou ele em voz alta, dirigindo-se para a sala de jantar.
Depois de o pai ter dado graças pela refeição, a mãe acrescentou:
- E graças a Deus por termos Marian, Don e os gémeos aqui connosco.
- Mãe, nós não vivemos propriamente no Pólo Norte - protestou Marian, piscando o olho a Geoff. - Boston fica a três horas e meia de caminho.
- Podem rir-se de mim - admoestou a mãe -, mas eu adoro ver a minha família toda junta. É maravilhoso ver três das minhas filhas casadas e Vicky noiva de um rapaz tão simpático como Kevin.
Geoff observou-a atentamente enquanto ela dirigia um sorriso de júbilo ao casal.
- Agora, se eu conseguisse que o nosso único rapaz encontrasse a rapariga certa...
A sua voz extinguiu-se no momento em que todos se voltaram com um sorriso indulgente para Geoff, que fez uma careta e depois retribuiu o sorriso, lembrando a si próprio que, quando a mãe não estava com aquelas manias, era uma mulher muito interessante que leccionara Literatura Medieval na Universidade de Drew durante vinte anos. De facto, ele chamava-se Geoffrey por causa da grande admiração que ela tinha por Chaucer.
Entre dois pratos, Geoff esgueirou-se de novo até ao escritório e telefonou a Kerry. Ficou emocionado por ela parecer satisfeita ao ouvi- lo.
- Kerry, podes ir visitar Skip amanhã? Eu sei que a mãe dele e Beth largam tudo para lá estar quando tu fores.
- Eu queria, Geoff, mas não sei se posso. Fico angustiada por deixar Robin mesmo em casa de Cassie.
- Tenho uma ideia melhor. Vou buscar-vos às duas e podemos deixar Robin aqui, em casa dos meus pais. A minha irmã, o meu cunhado e os miúdos estão cá, e os outros netos também vão aparecer. Robin vai ter imensa companhia, e, se isso não chegasse, o meu cunhado é capitão da Polícia Estadual do Massachusetts. Podes ter a certeza de que ela fica em segurança.
JaSoN ARNott ficou acordado na cama durante quase toda a noite, tentando decidir como havia de reagir ao telefonema da delegada do procurador, Kerry McGrath. Por volta das 7 da manhã, a sua resolução estava tomada. Retribuía o telefonema e dizia-lhe que teria imenso prazer em encontrar-se com ela, desde que isso não tomasse muito tempo. Desculpava-se com o facto de estar prestes a partir em viagem de negócios. Para as Catskills, prometeu Jason a si próprio. Escondo-me em casa. Entretanto, isto morre por si. Tomada a decisão, caiu finalmente num sono profundo.
A primeira coisa que fez quando se levantou, às 9.30, foi telefonar a Kerry McGrath. Ficou aliviado ao pressentir na voz dela aquilo que lhe pareceu um tom de genuína gratidão.
- Mr. Arnott, agradeço-lhe o seu telefonema e asseguro-lhe que isto não é oficial - declarou ela. - O seu nome surgiu por ter sido amigo e conselheiro de antiguidades de Suzanne Reardon. Houve alguns novos desenvolvimentos neste caso, e eu gostaria de ter a oportunidade de falar consigo acerca de Suzanne e do pai dela, o Dr. Charles Smith. Prometo-lhe que lhe roubarei apenas uns minutos do seu tempo.
Ela estava a dizer a verdade. Jason sabia detectar falsificações - fizera carreira disso -, e ela não era uma falsificação, era genuína. Não lhe seria difícil falar sobre Suzanne, disse para consigo. Tinha ido muitas vezes com ela às compras, tal como fizera com Vera Shelby Todd no outro dia. Suzanne estivera em muitas festas suas, mas isso era verdade em relação a dúzias de outras pessoas. Ninguém podia tirar qualquer conclusão desse facto.
Jason mostrou-se completamente aberto à sugestão de Kerry de o visitar dentro de uma hora.
Kerry decidiu levar Robin consigo quando fosse a casa de Jason Arnott. Sabia que Robin tinha ficado perturbada ao vê-la discutir com Bob por causa do bilhete na noite anterior, e a viagem de automóvel até Alpine iria permitir que elas conversassem durante uma meia hora em cada trajecto. Sentia-se culpada por causa da cena com Bob. Devia ter calculado que ele não a deixaria ficar com o bilhete. De qualquer modo, sabia o que dizia e copiara-o logo a seguir para o mostrar a Geoff.
Estava um dia cheio de sol e revigorante, daqueles que animam o espírito. Agora que se dispusera a descobrir toda a verdade do processo Reardon,estava firmemente decidida a fazê-lo rapidamente.Falou a Robin do plano de a levar a visitar a família de Geoff enquanto ela ia a Trenton em trabalho.
- Porque está preocupada comigo - replicou Robin sem rodeios.
- Estou - admitiu Kerry.- Quero que fiques num sítio onde eu
saiba que estás bem.- Deitou uma olhadela às indicações que anotara. - Já não estamos longe.Agora,Rob,quando chegarmos a casa de Mr. Arnott,tu entras comigo,mas sabes que eu tenho de conversar com ele em particular.Trouxeste um livro?
- Trouxe.Pergunto a mim própria quantos sobrinhos e sobrinhas de Geoff lá estarão hoje.Ora vejamos,ele tem quatro irmãs.A mais nova não é casada.A que é a seguir a Geoff tem três filhos,um rapaz de nove - é o que é mais da minha idade - uma rapariga com sete e um rapaz com quatro.A outra tem quatro filhos,e,finalmente,há aquela que tem os gémeos de dois anos.
- Rob,por amor de Deus,como é que soubeste isso tudo? - estranhou Kerry.
- No outro dia,ao jantar.Geoff falou deles.A mãe estava um bocado distraída; quer dizer,eu percebi que não estava a ouvir.Bom,vai ser giro ir até lá.
Cinco minutos depois,estavam a subir o caminho sinuoso que conduzia à mansão de Jason Arnott,uma impressionante combinação de pedra, estuque, tijolo e madeira,com enormes janelas de vitrais.
- Uau! - exclamou Robin quando Kerry estacionou no caminho em frenta à casa.
A recepção de Jason foi cordial.
- Ms.McGrath...e esta é a sua assistente?
- Eu disse-lhe que não era uma visita oficial,Mr.Arnott.- Kerry apresentou-lhe Robin.- Talvez ela possa esperar em qualquer sítio enquanto nós falamos?
- Ela fica bem instalada no escritório.- Arnott indicou uma sala à esquerda do vestíbulo.- Nós podemos ir para a biblioteca.
Esta casa parece um museu, pensou Kerry enquanto seguia Arnott.Teria gostado muito de parar para apreciar os belíssimos quadros.
Concentra-te no que estás a fazer, lembrou a si própria.
Quando estavam sentados frente a frente em elegantes cadeirões de pele,ela começou:
- Mr.Arnott,há umas semanas atrás,Robin sofreu uns ferimentos no rosto num acidente de automóvel e foi assistida pelo Dr.Charles Smith.
Arnott ergueu as sobrancelhas.
- O pai de Suzanne Reardon?
- Exactamente. Nas duas consultas que se seguiram, eu vi uma doente no consultório dele que tinha uma desconcertante semelhança com Suzanne Reardon.
Arnott olhou-a atentamente.
- Por coincidência, espero. Com certeza não me está a dizer que ele está deliberadamente a recriar Suzanne?
- Uma interessante escolha de palavras, Mr. Arnott. Eu estou aqui porque preciso de conhecer melhor Suzanne. Preciso de saber qual era o tipo de relacionamento que ela tinha tanto com o pai como com o marido.
Arnott recostou-se, olhou para o tecto e entrelaçou as mãos sob o queixo.
- Deixe-me começar pela altura em que conheci Suzanne. Deve estar a fazer doze anos, agora. Certo dia, ela pura e simplesmente tocou-me à campainha. Devo dizer-lhe que era uma rapariga extraordinariamente bonita. Apresentou-se e explicou que ela e o marido estavam a construir uma casa nas imediações, que queria mobilá- la com peças antigas e que tinha ouvido dizer que eu costumava ir com os meus amigos a leilões para os ajudar nos seus lances.
- E tornou-se conselheiro de Suzanne?
- Sim, acabámos por tornar-nos bons amigos; na realidade, sinto muito a falta dela. Ela animava muito as minhas festas.
- Skip vinha com ela?
- Raramente. Aborrecia-se e, para falar francamente, os meus convidados não o achavam simpático. Mas não me interprete mal; ele era um rapaz bem-educado e inteligente, mas muito diferente da maior parte das pessoas que eu conheço. Era o tipo de homem que se levantava cedo, trabalhava muito e não tinha qualquer interesse em conversas frívolas.
- Como é que definiria o relacionamento entre Suzanne e Skip?
- Desprendido. A princípio, pareciam dedicados um ao outro, mas acabou por ficar claro que ela estava farta dele. Para o final, faziam muito poucas coisas juntos.
- O Dr. Smith declarou que Skip tinha ciúmes de Suzanne e que a tinha ameaçado.
- Se o fez, Suzanne não mo confidenciou.
- Conhecia bem o Dr. Smith?
- Tão bem como qualquer um dos amigos dela, suponho. Se eu fosse a Nova Iorque com Suzanne num dia em que o consultório estivesse fechado, ele ia muitas vezes ter connosco. Para o fim, no entanto, a dedicação dele parecia irritá-la. Não fazia qualquer esforço para ocultar a sua impaciência.
- Sabia que ela tinha sido criada pela mãe e pelo padrasto?
- Sim, ela contou-me que tivera uma infância infeliz. As filhas do padrasto tinham ciúmes da sua aparência. Uma vez disse: Por falar em Cinderela... em certos aspectos, tive uma vida semelhante.
Isto responde à minha próxima pergunta, pensou Kerry. Pelos vistos, Suzanne não tinha confidenciado a Arnott que crescera sendo a irmã desengraçada chamada Susie.
- Sabe se Suzanne estava envolvida com outro homem, Mais concretamente, ela andava com Jimmy Weeks?
Arnott pareceu reflectir antes de responder.
- Eu apresentei-a a Jimmy Weeks exactamente nesta sala. Ficaram bastante interessados um pelo outro. Como provavelmente sabe, Weeks tem uma aura de poder, e foi isso que seduziu Suzanne. Depois de se terem conhecido, ele começou a aparecer com frequência no Country Club de Palisades, um local onde ela passava grande parte do tempo. Jimmy também era sócio.
- E ela sentia-se feliz com isso?
- Ah, imenso, embora pense que ela não o deixava transparecer a Jimmy. Gostava de lhe provocar ciúmes. Lembra-se daquela cena em E Tudo o Vento Levou em que Scarlett colecciona os namorados de toda a gente? Bem, Suzanne era assim. O que não a tornava muito popular entre as mulheres.
- E qual era a reacção do Dr. Smith à coqueteria dela?
- Escandalizava-o, diria eu. Julgo que, se isso fosse possível, o Dr. Smith teria erguido uma barreira à vólta dela para manter os outros afastados.
- Se a sua teoria está correcta, Mr. Arnott, essa não seria uma razão para o Dr. Smith estar ressentido com Skip Reardon?
- Penso que era mais do que isso. Penso queele o odiava.
- Mr. Arnott, o senhor tinha alguma razão para pensar que Suzanne recebia jóias de algum homem que não o marido ou o pai?
- Se isso aconteceu, eu não tive conhecimento. O que sei é que Suzanne tinha algumas peças muito valiosas. Skip comprou-lhe algumas, e ela também tinha várias outras peças mais antigas, que penso que foi o pai que lhe deu.
Ou disse que deu, pensou Kerry levantando-se.
- Mr. Arnott, acha que Skip Reardon matou Suzanne?
Ele levantou-se também.
- Ms. McGrath, considero-me um bom conhecedor de antiguidades. Sou menos competente a avaliar pessoas. Mas não é verdade que o amor e o dinheiro são os dois motivos mais fortes para matar? Lamento, mas neste caso ambos parecem aplicar-se a Skip.
DE umA das janelas, Jason observou o automóvel de Kerry a afastar-se pelo caminho de acesso. Meditando no breve encontro, sentiu que tinha sido suficientemente pormenorizado para parecer cooperante e suficientemente vago para que ela, tal comn os advogados de acusação e de defesa há dez anos atrás, concluísse que não havia razões para o interrogarem de novo.
Se eu acho que Skip Reardon matou Suzanne? Não, não acho, Ms. McGrath, pensou ele. Acho que, como muitíssimos outros homens, Skip poderia ter sido capaz de assassinar a mulher. Só que, naquela noite, alguém se lhe adiantou.
SKiP REARdoN tinha vivido aquela que fora, provavelmente, uma das piores semanas da sua vida. Desde que Geoff lhe dissera que a delegada do procurador já não estava interessada no seu caso, era como se um coro de tragédia grega entoasse sem cessar na sua cabeça: Mais vinte anos. Mais vinte anos. Durante toda a semana, em vez de ler ou ver televisão à noite, Skip contemplara demoradamente as fotografias emolduradas que tinha nas paredes da sua cela.
A maior parte delas eram de Beth. Ele já tinha tomado uma decisão: não iria permitir que Beth o visitasse mais. Ela tinha de seguir a vida dela, raciocinou. Ia fazer quarenta anos, devia conhecer outra pessoa, casar-se, ter filhos. Ela adorava crianças. Skip decidira ainda outra coisa: não ia perder mais tempo a desenhar casas, movido pelo sonho de que um dia conseguiria construí-las. Na altura em que saísse da prisão - se é que algum dia viria a sair -, já teria mais de sessenta anos. Seria demasiado tarde para começar de novo.
Foi por isso que no sábado de manhã, quando Geoff telefonou e lhe disse que Kerry McGrath ia vê-lo, bem como a mãe dele e Beth, a notícia o encolerizou.
- O que é que Kerry McGrath pretende, Geoff? - perguntou ele. - Mostrar à minha mãe e a Beth que estão a perder tempo a tentar tirar- me daqui?
- Está calado, Skip - atalhou Geoff bruscamente. - O interesse de Kerry por ti e por este processo está a causar-lhe sérios problemas, incluindo uma ameaça à sua filha de dez anos, caso ela não desista.
- Uma ameaça? De quem? - Skip olhou para o auscultador como se este subitamente se tivesse transformado num objecto desconhecido.
Era incompreensível que a filha de Kerry McGrath tivesse sido ameaçada por sua causa.
- Estamos convencidos de que esse alguém é Jimmy Weeks. Por uma razão qualquer, ele está com medo de que o processo seja reaberto. Agora, ouve: Kerry quer passar a pente fino todos os pormenores deste caso contigo, com a tua mãe e com Beth. Esta é a melhor oportunidade que alguma vez tivemos de te tirar daí. E pode também ser a última.
Skip ouviu o estalido. Contra a sua própria vontade, o lampejo de esperança que ele julgara extinto reavivou-se de novo.
GEoFF foi buscar Kerry e Robin à 1 hora. Quando chegaram a Essex Fells, entrou com elas em casa e apresentou-as a toda a gente. No final do jantar da véspera, explicara aos adultos da família os motivos pelos quais ia lá levar Robin para uma visita. A intuição da mãe pressentira imediatamente que a mulher a quem Geoff insistia em chamar a mãe de Robin talvez pudesse ter um significado especial para o filho.
Naquele momento, ele detectou o olhar aprovador da mãe ao avaliar a aparência de Kerry. Ela estava com um casaco de pêlo de camelo, cinto e umas calças a condizer. Uma camisola de gola alta verde-seco acentuava as tonalidades esverdeadas dos seus olhos cor de avelã. O cabelo caía- lhe solto sobre a gola.
Robin ficou encantada ao saber que os nove netos estavam todos algures lá em casa. Ficou a observar quando os dois gémeos de dois anos passaram por eles a correr, perseguidos pelo primo de quatro.
- Parece que há um engarrafamento de bebés por aqui - comentou ela alegremente. - Até logo, mãe.
NO CARRO, Kerry recostou-se no banco e deu um grande suspiro.
- Não estás preocupada, pois não? - perguntou Geoff muito depressa.
- Não, de modo algum. Isto foi um suspiro de alívio. E agora deixa-me pôr-te ao corrente daquilo que ainda não te contei.
- Como, por exemplo?
- Por exemplo, a infância e adolescência de Suzanne. Por exemplo, o que o Dr. Smith anda a fazer com uma das doentes a quem deu o rosto de Suzanne. E, por exemplo, o que eu soube esta manhã através de Jason Arnott.
DEIDRE REARDON e Beth Taylor já se encontravam na sala dos visitantes quando Geoff e Kerry chegaram à prisão. Enquanto esperavam que os chamassem, Kerry conversou com Beth, com quem simpatizou imediatamente.
Às 3 horas em ponto, foram conduzidos à área em que era permitido aos familiares e amigos contactarem de perto com os prisioneiros. Estava mais concorrida do que no dia da visita anterior de Kerry. Quando trouxeram Skip e lhe retiraram as algemas, Beth manteve-se afastada enquanto Deidre abraçava o filho. Depois, Kerry observou Beth e Skip no momento em que olharam um para o outro. As expressões de ambos e a contenção do seu beijo foram mais reveladoras do que existia entre eles do que o mais ardente dos abraços. Kerry reviu com nitidez aquele dia no tribunal em que vira o sofrimento no rosto de Skip ao ser condenado a trinta anos de prisão e ouvira o seu comovente protesto de que o Dr. Smith estava a mentir. Ao recordá-lo, apercebeu-se de que naquele dia tivera a sensação de que algo na voz de Skip Reardun soava a verdade.
Kerry trouxera consigo um bloco-notas amarelo onde anotara uma série de perguntas. Rapidamente, contou-lhe tudo o que a impelira a efectuar aquela segunda visita: a história de Dolly Bowles acerca do Mercedes na noite em que Suzanne morrera; o facto de Suzanne ter sido uma rapariga bastante desengraçada na infância e adolescência; a bizarra recriação que o Dr. Smith fazia do rosto dela ao operar pacientes actuais; a atracção de Smith por Barbara Tompkins; o facto de o nome de Jimmy Weeks ter surgido durante a investigação, e, finalmente, a ameaça a Robin.
Kerry sentiu ser um ponto a seu favor o facto de, após o choque inicial ao ouvirem aquelas revelações, não terem perdido tempo a comentá-las uns com os outros. Beth Taylor deu a mão a Skip, ao mesmo tempo que perguntava a Kerry:
- O que é que nós podemos fazer agora?
- Em primeiro lugar, vamos desanuviar o ambiente dizendo que, neste momento, tenho grandes dúvidas acerca da culpabilidade de Skip e que farei o que estiver ao meu alcance para ajudar Geoff a conseguir que o veredicto seja anulado. Há uma semana, Skip achou que eu não acreditava em si. Isso não é exactamente verdade. O que eu pensei foi que não havia nada que eu tivesse ouvido, a favor ou contra si, que constituísse fundamento para um novo recurso. O testemunho do Dr. Smith é a principal razão por que foi condenado, Skip. A única verdadeira esperança é desacreditar esse testemunho. E a única possibilidade que eu vejo de o fazer é encurralando-o ao confrontá-lo com algumas das suas mentiras.
Durante o resto da visita, Kerry fez-lhe uma série de perguntas.
- Skip, Suzanne alguma vez se referiu a Jimmy Weeks?
- Só de passagem - replicou ele. - Eu sabia que ele era sócio do clube e que, por vezes, jogavam golfe os dois.
- Weeks não é aquele homem que está a ser julgado por evasão fiscal? - indagou Deidre Reardon.
Kerry acenou afirmativamente e depois voltou-se para Skip.
- Quero que descreva as jóias que pensa que Suzanne recebeu de outro homem.
- Uma das peças era uma pulseira de ouro com figuras do zodíaco, sendo o símbolo do Capricórnio o motivo central. Era nitidamente uma peça muito cara. Ela disse-me que fora o pai quem lha dera, mas quando eu lhe agradeci a generosidade para com ela, ele não percebeu do que eu estava a falar.
- Esse é o tipo de peça que talvez consigamos localizar. Para começar, podemos enviar um panfleto aos joalheiros de Nova Jérsia - declarou Kerry.
Skip falou-lhe de um anel de esmeraldas e diamantes que parecia uma aliança de noivado.
- Outra jóia que ela afirmou ter sido oferecida pelo pai?
- Sim. A versão dela era que ele estava a tentar compensá-la por todos os anos em que não lhe dera nada. Declarou que algumas das peças eram jóias de família que tinham pertencido à mãe. Isso era mais fácil de acreditar. Também tinha um alfinete de diamantes em forma de flor que era, visivelmente, muito antigo.
- Lembro-me desse - observou Deidre Reardon. - Tinha um alfinete mais pequeno, em forma de botão, ligado ao maior por uma corrente. Ainda tenho uma fotografia que recortei de um jornal local que mostrava Suzanne com ele numa festa de caridade qualquer. Uma outra peça do tipo jóia de familia era a pulseira de diamantes que Suzanne tinha posta quando morreu, - disse Skip.
- Onde estavam as jóias de Suzanne naquela noite?
- Exceptuando o que ela ostentava, no guarda-jóias, em cima do toucador - respondeu Skip.
- Skip, de acordo com o seu testemunho, faltavam vários objectos no seu quarto naquela noite.
- De dois tenho a certeza. Um deles era o alfinete da flor. E posso jurar que a moldura pequena que estava na mesa-de-cabeceira desapareceu.
- Descreva-ma - pediu Kerry.
- Deixa-me ser eu a fazê-lo, Skip - interrompeu Deidre Reardon. - Compreende, Kerry, aquela pequena moldura era lindíssima, de esmalte azul, em forma oval, com uma cercadura de ouro incrustada de pérolas. Era considerada um Fabergé. O meu marido comprou-a na Alemanha depois da guerra. Foi o meu presente de casamento para Skip e Suzanne.
- Suzanne pôs-lhe uma fotografia dela - acrescentou Skip.
- Quando é que viu a moldura pela última vez, Skip? - perguntou Kerry.
- Estava lá naquela última manhã, quando eu me vesti. Nessa noite, quando os detectives me anunciaram que iam deter-me para in terrogatório, um deles acompanhou-me ao quarto enquanto eu fui buscar uma camisola, e a moldura tinha desaparecido.
- Se Suzanne estava envolvida com alguém, seria possível que lhe tivesse dado aquele retrato nesse dia?
- Não - afirmou Skip. - Era uma das suas melhores fotografias, e ela gostava de a ver. E penso que nem mesmo ela teria a coragem de dar o presente de casamento da minha mãe.
- E a moldura nunca apareceu? - quis saber Kerry.
- Nunca. Mas quando eu tentei dizer que podia ter sido roubada, o procurador argumentou que, se um ladrão lá tivesse estado, todas as jóiâs teriam desaparecido.
A campainha assinalou o fim da hora da visita. Quando Skip se levantou, pôs um braço em volta da mãe, outro em volta de Beth e puxou-as para si.
- Kerry, se descobrir uma maneira de me tirar daqui, construo-lhe uma casa tão bonita que nunca mais quererá de lá sair enquanto for viva. - Depois, riu-se. - Não posso acreditar que tenha dito isto neste lugar.
No outro lado da sala, o condenado Will Toth estava sentado com a namorada, mas a maior parte da sua atenção recaía sobre o grupo que estava com Skip Reardon. Na semana anterior, reconhecera Kerry McGrath quando esta visitara Skip. Reconhecê-la-ia em qualquer lado - McGrath era a razão pela qual ele estava naquele buraco infernal. Tinha sido a representante da acusação no seu julgamento.
Ao dar à namorada um beijo de despedida, Will murmurou:
- Telefona ao teu irmão assim que chegares a casa e diz-lhe que espalhe a notícia de que Kerry McGrath esteve aqui hoje outra vez a ti rar montes de apontamentos.
MoRGaN, o agente do FBI encarregado de investigar o assalto aos Hamiltons, estava no seu gabinete no sábado à tarde a examinar umas folhas de computador. Havia pedido aos Hamiltons, como era hábito fazer com as vítimas de roubo em casos semelhantes, que lhe fornecessem os nomes de todos os convidados que tivessem estado presentes em reuniões em sua casa nos meses anteriores ao assalto. O computador criara uma lista alfabética com cerca de uma dúzia de nomes que apareciam com frequência. O primeiro desses nomes era o de Arnott, Jason.
Este não dá nada, - pensou - Arnott fora discretamente investigado havia um par de anos e considerado livre de qualquer suspeita. Talvez não fizesse mal investigá-lo outra vez, mas Morgan estava mais interessado noutro nome: Sheldon Landi, que tinha uma firma de relações públicas. Landi convive de perto com os ricos e famosos, não há dúvida, reflectiu - Não ganha muito dinheiro, mas vive à grande.
O FBI tinha feito circular seiscentos panfletos com a imagem captada pela câmara de segurança entre as pessoas cujos nomes figuravam nas listas de convidados. Até ao momento, tinham recebido trinta informações, entre as quais a de uma mulher que pensava que o culpado podia ser o seu ex-marido. Roubou-me descaradamente durante todo o tempo em que estivemos casados e também tem o mesmo tipo de queixo pontiagudo que vejo na fotografia, explicara ela.
Agora, recostando-se na cadeira, Morgan recordou aquele telefonema e sorriu. O ex-marido daquela mulher era senador.
KERRY E ROBIN iam a caminho da casa de Jonathan e Grace Hoover
para o jantar de domingo.
O domingo é mesmo um dia para a família, pensou Kerry enquanto conduzia. Robin e eu temos muita sorte em ter Jonathan e Grace.
Robin interrompeu-lhe os pensamentos.
- A mãe de Geoff acha que ele gosta de si, mãe, e eu também. Estivemos a conversar sobre isso.
- Estiveram o quê!
- Estivemos a conversar sobre isso. Mrs. Dorso diz que Geoff nunca, mas nunca, leva amigas lá a casa. Contou-me que a mãe foi a primeira desde os tempos dos bailes de estudante. Explicou-me que era porque as irmãs costumavam pregar partidas às raparigas com quem ele saía e que ele se tornou muito cauteloso.
- Provavelmente - replicou Kerry muito depressa. Desviou o pensamento para que, no regresso da prisão, se sentira tão cansada que fechara os olhos por instantes, tendo acordado com a cabeça pousada no ombro de Geoff. E de que isso lhe parecera muito natural e apropriado.
A visita a Jonathan e Grace foi, como era de esperar, bastante agradável. Kerry sabia que, a determinada altura, acabariam por discutir o processo Reardon, mas não antes do café. Era nessa altura que Robin tinha licença para se levantar da mesa e ir ler ou experimentar um dos novos jogos de computador que Jonathan tinha sempre para ela.
Enquanto jantavam, Jonathan distraiu-as falando sobre as sessões legislativas e o orçamento que o governador tentava fazer aprovar.
- Estás a ver, Robin - explicou ele -, a política é como um jogo de futebol. O governador é o treinador, e os líderes do seu partido, no Senado e na assembleia, são os guarda-redes.
- O tio Jonathan é guarda-redes, não é? - interrompeu Robin.
- Bem, suponho que podes chamar-me assim - anuiu Jonathan.
Kerry sorriu.
- Robin, espero que te apercebas de que tens muita sorte por poderes aprender coisas acerca do funcionamento do Governo com uma pessoa como o tio Jonathan.
- Não é nada desinteressado - assegurou Jonathan. - Na altura em que Kerry for nomeada para o Supremo Tribunal, em Washington, já estaremos a eleger Robin e a preparar a sua carreira.
Chegou o momento, pensou Kerry, e disse:
- Rob, se já acabaste podes ir ver o que há de novo no computador.
- Tens lá uma coisa de que vais gostar - disse Jonathan Quando a empregada serviu o café.
Chegou a hora da verdade, pensou Kerry.
Não esperou que Jonathan a interrogasse sobre o caso Reardon, contou-lhe ela, a ele e a Grace, tudo o que sabia e concluiu, dizendo:
- É evidente que o Dr. Smith mentiu em tribunal. É também evidente que Jimmy Weeks tem alguma razão de peso para não querer que o caso seja reaberto. Se assim não fosse, porque é que ele, ou alguém por ele envolveria Robin no assunto?
- Bob Kinellen ameaçou mesmo que alguma coisa poderia acontecer a Robin - A voz de Grace soou gélida de desprezo.
- Avisou é um termo mais apropriado julgo eu. - Kerry voltou-se para Jonathan num gesto de apelo. - Reparem, têm de compreender que eu não pretendo criar dificuldades a Frank Green. E eu, obviamente, quero ser juíza, Jonathan. Sei que posso fazer um bom trabalho.
Mas que espécie de juíza seria eu se, enquanto delegada do procurador, virasse as costas a algo que cada vez mais parece um flagrante erro judicial?
- Suponho que fazemos aquilo que temos de fazer - observou Grace calmamente.
- Eu não estou a tentar armar-me em estrela. Se alguma coisa está errada, gostava de descobrir o que é e deixar que Geoff Dorso conduza o processo. Amanhã, vou visitar o Dr. Smith. A solução é desacreditar o testemunho dele. Estou sinceramente convencida de que ele está à beira de um esgotamento nervoso. Perseguir uma pessoa é um delito. Se eu conseguir pressioná-lo o suficiente para o levar a admitir que mentiu, que não deu aquelas jóias a Suzanne, que outra pessoa qualquer pode ter estado envolvida, então o caso muda de figura. Geoff Dorso pode apresentar um requerimento para um novo julgamento. Por essa altura, Frank Green já pode ser governador.
- Mas tu minha querida, podes não ser um membro do poder judicial - lembrou Jonathan. - És muito persuasiva, Kerry, e admiro-te, mesmo apesar de estar preocupado com o que isso pode vir a custar-te. Primeiro que tudo, porém, está Robin. Deves levar a sério a ameaça que lhe foi feita.
- E levo, Jonathan. Ela não vai ficar sozinha nem um minuto.
- Kerry, se sentires que a tua casa não é segura, deixa-a aqui - advertiu Grace. - A nossa segurança é excelente.
Kerry pousou a mão nos dedos de Grace e apertou-os levemente.
- Gosto muito de vocês os dois - disse ela com simplicidade.Jonathan, por favor, não fique desapontado por eu sentir que devo fazer isto.
- Até fico orgulhoso, acho eu - replicou Jonathan. - Vou fazer os possíveis por manter o teu nome na lista para a nomeação, mas...
- Mas não tenhas demasiadas esperanças. Eu sei - concluiu Kerry lentamente. - Meu Deus, há opções bem difíceis de tomar, não há?
- Bom, é melhor mudarmos de assunto - atalhou Jonathan bruscamente. - Mas mantém-me informado, Kerry.
Reunidos em isolamento, os jurados do julgamento de Jimmy Weeks não tiveram conhecimento do assassínio de Barney Haskell
e Mark Young, mas os meios de comunicação social estavam a tratar de assegurar que todas as outras pessoas soubessem.
Uma testemunha receosa, cuja identidade não foi revelada, havia finalmente telefonado à Polícia. Tinha ido levantar dinheiro a uma máquina Multibanco e vira um Toyota azul-escuro entrar no parque de es tacionamento do pequeno edifício onde era o consultório do advogado Mark Young. Isto ocorrera às 7.10. O pneu dianteiro do lado direito do carro da testemunha parecera-lhe pouco seguro, e o homem encostara para o examinar. Estava debruçado sobre ele quando viu a porta do edifício do escritório abrir-se novamente e um homem correr para o Toyota. Não conseguiu distinguir-lhe o rosto, mas viu que tinha na mão aquilo que parecia ser uma arma de grande calibre. A testemunha registara uma parte da matrícula do Toyota, que não pertencia àquele estado. Um eficiente trabalho policial conseguira seguir a pista do automóvel e identificá-lo como uma viatura roubada na quinta-feira à noite em Filadélfia. Na sexta-feira ao fim do dia, o Toyota foi encontrado em Newark queimado.
Perante tais indícios tornou-se óbvio que se tratara de uma operação da Mafia, sem dúvida mandada executar por Jimmy Weeks. Mas a Polícia não sabia como prová-lo. A testemunha não podia identificar o atirador, o carro desaparecera e a arma já estava, certamente, no fundo de um rio.
NA SEGUNDA-FEIRA de manhã, Grace Hoover ficou na cama até mais tarde do que o habitual. Embora a casa estivesse confortavelmente aquecida, o frio de Inverno conseguia, mesmo assim, penetrar-lhe nos ossos e nas articulações. As mãos, os dedos, as pernas e os joelhos doíam-lhe terrivelmente.
Há anos atrás, no início da sua doença, Grace tomara a resolução de nunca sucumbir à autocompaixão. Mesmo assim, nos dias piores, ela admitia para si própria que para além das dores cada vez mais fortes, era traumatizante ter de reduzir as suas actividades. Ela era uma das poucas mulheres que apreciavam sinceramente assistir aos inúmeros eventos em que um político como Jonathan tinha de participar. Sentia um enorme prazer na adulação de que Jonathan era alvo. Tinha um grande orgulho nele. Ele devia ter chegado a governador. Grace tinha perfeita consciência disso.
Gostara muito de irjantar ao clube no outro dia. Fora a primeira vez que saíra desde há várias semanas. Mas aquele Jason Arnott... não é estranho que eu não consiga afastá-lo dos meus pensamentos?, pensou. Falara nele a Jonathan outra vez, mas ele limitara-se a sugerir que talvez ela tivesse estado nalguma festa de caridade a que Arnott também tivesse ido.
Tinham-se passado doze anos desde a última vez que Grace assis tira a um desses acontecimentos sociais. Nessa época, ela já andava de muletas e tinha aversão a multidões que se acotovelavam. Não, tinha sido outra coisa qualquer que lhe avivara a memória. Ora", disse con sigo própria, hei-de acabar por me lembrar.
A empregada, Carrie, entrou no quarto com um tabuleiro.
- Imaginei que por esta altura já estaria pronta para outra chávena de chá - disse ela alegremente.
- E estou, Carrie. Obrigada.
Carrie pousou o tabuleiro e ajeitou-lhe as almofadas.
- Pronto. Assim está melhor. - Meteu a mão no bolso e tirou uma folha de papel dobrada. - Ah, Mrs. Hoover, isto estava no cesto da papéis do escritório do senador. Eu sei que ele ia deitá-lo fora, mas mesmo assim, queria perguntar-lhe se não há problema que eu o leve. O meu neto não fala noutra coisa senão em ser agente do FBI. Ia ficar doido ao ver um panfleto verdadeiro, desses que eles costumam pôr a circular. - Desdobrou-o e estendeu-o a Grace.
Grace deu-lhe uma olhadela rápida e ia começar a devolvê-lo quamdo se deteve. Jonathan tinha-lhe mostrado aquilo na sexta-feira à tarde em tom de brincadeira: Alguém que tu conheças? A carta explicava que aquele panfleto estava a ser enviado a todas as pessoas que tivessem sido convidadas para casas que haviam sido assaltadas pouco tempo depois. A fotografia, cheia de grão e quase imperceptível, era a de um criminoso em flagrante delito de roubo. Era considerado responsável por muitas violações de domicílio semelhantes, quase todas a seguir a uma festa ou qualquer outro evento social. Uma das teorias era a de que ele podia ter sido um dos convidados.
- Sei que a casa dos Peales foi assaltada há alguns anos - comentara Jonathan. - Um acontecimento lamentável. Eu tinha lá estado, na festa de comemoração da vitória de Jock. Duas semanas depois, a mãe dele voltou para casa mais cedo e deve ter surpreendido o ladrão. Foi encontrada ao fundo das escadas com o pescoço partido, e o quadro de John White Alexander tinha desaparecido.
Talvez fosse por eu conhecer os Peales que prestei tanta atenção a esta fotografia, pensou Grace enquanto segurava o panfleto. A câmara devia estar num plano mais baixo, pelo ângulo em que está o rosto.
Examinou a imagem desfocada - o pescoço fino, o nariz pontiagudo, os lábios franzidos. Não é nisso que se repara quando olhamos directamente para o rosto de uma pessoa, pensou ela. Mas quando olhamos para cima, de uma cadeira de rodas, é desse ângulo que a vemos.
Iria jurar que este se parece com o homem que conheci no clube naquela noite, Jason Arnott, pensou Grace. Será possível?
- Carrie, gostava de guardar isto por uns tempos. Passas-me o telefone, por favor? - Pouco depois, Grace estava a falar com Amanda Coble, que lhe apresentara Jason Arnott no clube. Confessou que ainda continuava com a irritante sensação de que já o vira algures e, por isso, perguntou-lhe onde é que ele vivia e o que fazia.
Depois de desligar, Grace bebeu o chá, que já estava morno, e examinou novamente a fotografia. Segundo Amanda, Arnott era perito em antiguidades e frequentava os melhores círculos sociais, de Washington a Newport.
Grace telefonou a Jonathan para o escritório. Contou-lhe que estava convencida de que Jason Arnott era o ladrão procurado pelo FBI.
- Isso é uma acusação bastante grave, querida - replicou Jonathan, prudente.
- Eu sou boa observadora, Jonathan. Sabes muito bem.
- Pois sei - concordou ele calmamente. - E, francamente, se fosse outra pessoa que não tu, hesitaria muito em fornecer o nome dele ao FBI. Não quero pôr nada por escrito, mas dá-me o número confidencial que vem no panfleto. Eu vou telefonar.
- Não - discordou Grace. - Desde que concordes em que não há problema em falar ao FBI, faço eu o telefonema. Se estiver completamente enganada, tu não ficas associado ao facto. Se tiver razão, vou sentir que fiz qualquer coisa de útil outra vez. Gostei muito da mãe de Jock Peale quando a conheci há uns anos. Gostaria muito de ser a pessoa que descobriu o seu assassino. Ninguém devia ficar impune da morte de uma pessoa.
O DR. CHARLES SMITH estava de muito mau humor. Passara um fim-de- semana solitário, e o seu isolamento tornara-se ainda mais frustrante por não ter conseguido contactar Barbara Tompkins. Sábado tinha estado um dia tão bonito que ele pensou que ela talvez gostasse de dar um passeio ao longo do Hudson. Conseguiu, no entanto, deixar recado no atendedor de chamadas, mas ela não lhe retribuiu o telefonema. O domingo não correu melhor.
Na segunda-feira de manhã, tentou apanhar Barbara no escritório, tendo sido informado de que ela partira para a Califórnia numa viagem de trabalho de duas semanas. Então, ficara verdadeiramente aborrecido, pois sabia que era mentira. No jantar de quinta-feira, Barbara tinha dito qualquer coisa acerca de estar muito entusiasmada com um almoço de trabalho no La Grenouille na quarta-feira.
Durante o resto do dia de segunda-feira, Smith teve dificuldade em concentrar-se nas suas doentes. Não porque a sua agenda estivesse muito sobrecarregada. Parecia que cada vez tinha menos clientes, e as que vinham a uma primeira consulta muito raramente voltavam. Na realidade, ele não se importava muito - muito poucas tinham potencial para uma genuína beleza. Quando a consulta das 3.30 foi cancelada, decidiu ir para casa cedo. Tencionava ir buscar o carro e ir até ao escritório de Barbara. Geralmente, ela saía uns minutos depois das 5, mas ele queria estar lá antes dessa hora, pelo sim, pelo não. A ideia de que ela andava propositadamente a evitá-lo era-lhe intolerável. Se isso fosse verdade. . .
Estava precisamente a sair do átrio do edifício do seu consultório para a Quinta Avenida quando viu Kérry McGrath aproximando-se.
- Dr. Smith, ainda bem que o apanhei - disse Kerry. - É muito importante que eu fale consigo.
- Ms. McGrath, Mrs. Carpenter e a recepcionista ainda estão no consultório. Qualquer ajuda de que necessite pode ser-lhe prestada por elas. - E tentou seguir em frente.
Ela começou a caminhar a seu lado.
- Dr. Smith, nenhuma delas é responsável por enviar um inocente para a prisão.
Charles Smith reagiu como se ela lhe tivesse lançado alcatrão quente.
- Como é que se atreve! - Parou e agarrou-lhe o braço. Kerry apercebeu-se, de súbito, de que ele estava quase a agredi-la. Tinha o rosto distorcido de fúria. Um homem que passava olhou para eles com curiosidade, parou e perguntou:
- Está tudo bem, menina?
- Está tudo bem, doutor? - desafiou Kerry em voz calma. Smith largou-lhe o braço.
- Claro. Claro. - Começou a descer rapidamente a Quinta Avenida.
Kerry acompanhou-lhe a passada.
- Dr. Smith, o senhor vai ter de falar comigo, mais cedo ou mais tarde. Seria muito melhor escutar-me agora, antes que qualquer coisa de muito desagradável aconteça.
Ele não respondeu.
Ela continuou a seu lado e deu-se conta de que ele estava ofegante.
- Dr. Smith, não me preocupo com a velocidade com que possa andar. Eu consigo correr mais do que o senhor. Voltamos para o consul tório ou há por aí algum sítio onde possamos tomar um café? Precisamos de falar. Se assim não for, receio bem que venha a ser preso e acusado de perseguição furtiva.
- Acusado... de... quê? - Mais uma vez, Smith virou-se para a encarar.
- O senhor assustou Barbara Tompkins com o seu obsessivo interesse por ela. E também assustou Suzanne, doutor? O senhor esteve lá em casa na noite em que ela morreu, não esteve? Duas pessoas viram um Mercedes preto em frente da casa. Uma delas recordava-se de parte da matrícula... um 3 e um L. Hoje, soube que a sua matrícula tem um 8 e um L. Bastante parecido, diria eu. Então, onde é que vamos conversar?
Ele ficou a olhá-la fixamente por longos momentos, com a cólera ainda chispando nos olhos. Kerry observou-o enquanto a cólera cedia gradualmente, dando lugar à resignação.
- Vivo ao fundo desta rua - proferiu ele já sem a olhar. Estavam perto da esquina, e ele apontou para a esquerda.
Kerry interpretou aquelas palavras como um convite. Estarei a co meter um erro ao entrar com ele?, interrogou-se. Mas decidiu que talvez não voltasse a ter aquela oportunidade.
No número 28 da Washington Mews, Smith tirou a chave do bolso e, com um gesto preciso, introduziu-a na fechadura, rodou-a e abriu a porta.
- Entre, já que tanto insiste, Ms. McGrath - convidou ele.
As INFoRMAçõEs de pessoas que tinham sido visitas em uma ou mais das casas assaltadas continuavam a chegar ao FBI. Tinham, naquele momento, doze potenciais pistas, mas Morgan pensou que havia encontrado um tesouro quando, na segunda-feira à tarde, o seu principal suspeito, Sheldon Landi, admitiu que a sua firma de relações públicas era uma fachada para a sua verdadeira actividade.
Landi tinha sido chamado para interrogatório, e, por breves instantes, Morgan julgou que estava prestes a ouvir uma confissão. Então, Landi, retorcendo as mãos, murmurou:
- Já alguma vez leu o Tell All ?
- É um desses tablóides que se vendem nos supermercados, não é? - perguntou Morgan.
- Sim, um dos de maior circulação. - A voz de Landi tornou-se sumida ao acrescentar: - Isto não pode sair daqui, mas eu sou o redactor principal. Se se vier a saber, todos os meus amigos me abandonarão.
Daqui não levo mais nada, pensou Morgan depois de Landi ter saído. Aquele negociantezito de mexericos não teria coragem para fazer nenhum daqueles trabalhos.
Às 3.45, um dos três investigadores que estavam a trabalhar no caso Hamilton entrou no gabinete.
- Morgan, há uma pessoa na linha confidencial do caso Hamilton com quem acho que devias falar. Chama-se Grace Hoover. O marido dela é o senador Hoover, do estado de Nova Jérsia, e ela pensa ter visto o homem que procuramos. É um dos fulanos cujo nome já apareceu: Jason Arnott.
- Arnott! - Morgan agarrou o auscultador. - Mrs. Hoover, fala Morgan.
Enquanto a ouvia, Morgan decidiu que Grace Hoover era o tipo de testemunha com que todos os agentes da lei sonhavam deparar. Explicou com lógica e objectividade como, ao olhar para cima, a partir da posição na cadeira de rodas, os seus olhos se encontravam, provavelmente, no mesmo ângulo que as lentes da câmara de vigilância de casa dos Hamiltons.
- Ao olharmos de frente para Mr. Arnott, somos levados a pensar que o seu rosto é mais cheio do que quando o vimos numa perspectiva de baixo para cima - explicou ela. - Para além disso, quando eu lhe perguntei se já nos conhecíamos, ele franziu os lábios. Julgo que deve ser um hábito dele quando está a tentar concentrar-se. Repare bem como também os tem enrugados na vossa fotografia. A minha sensação é de que, quando a câmara o surpreendeu, ele estava totalmente concentrado naquela estatueta, tentando concluir se ela era ou não genuína. Uma amiga minha disse-me que ele era bastante entendido em antiguidades.
- Sim, nós sabemos que isso é verdade. - Morgan estava entusiasmado. - Mrs. Hoover, muitíssimo obrigado, nem calcula o quanto apreciei o seu telefonema.
Quando Morgan desligou, mandou chamar os três investigadores. Disse-lhes que queria Arnott vigiado durante as vinte e quatro horas do dia. Explicou- lhes que, a avaliar pela investigação que lhe fora feita há dois anos, se o ladrão era ele, tinha feito um excelente trabalho na dissimulação do seu rasto. Seria portanto melhor ser seguido por uns tempos. Talvez assim ele os conduzisse ao local onde guardava os objectos roubados.
- Se isto não for mais uma pista falsa e conseguirmos obter provas de que foi ele quem praticou os assaltos - declarou Morgan -, o nosso próximo passo é incriminá-lo pelo homicídio Peale. O patrão quer prioridade máxima na resolução desse caso. A mãe do presidente costumava jogar bridge com Mrs. Peale.
O escritório do Dr. Smith era limpo mas desmazelado, notou Kerry. Os abat jours de seda cor de marfim, parecidos com os que se lembrava de ver em casa da sua avó, estavam escurecidos pelo tempo, e um deles encontrava-se queimado. Kerry teve a sensação de que aquela sala parara no tempo.
Tirou o casaco, mas o Dr. Smith não fez menção de o segurar. Ela pousou-o no braço de uma cadeira e sentou-se.
Smith instalou-se, muito direito, numa cadeira de espaldar à frente dela.
- O que é que pretende, Ms. McGrath? - Os óculos sem aros aumentavam- lhe os olhos, que a examinavam com uma hostilidade de fazer gelar o sangue.
- Quero a verdade - replicou Kerry tranquilamente. - Quero saber porque é que afirmou ter dado a Suzanne jóias que lhe foram, na realidade, oferecidas por outro homem. Quero saber porque é que mentiu acerca de Skip Reardon. Ele nunca ameaçou Suzanne. Que motivo teria para jurar que ele o fez?
- Skip Reardon matou a minha filha. Estrangulou-a de uma forma tão perversa que os olhos dela saíram das órbitas, a língua pendeu-lhe da boca como a de um animal... - A voz extinguiu-se-lhe. Aquilo que começara como uma explosão de cólera acabara quase num soluço.
- Compreendo como lhe deve ter sido doloroso ver essas fotografias, Dr. Smith. - Kerry falava em voz baixa. - Mas porque é que culpou sempre Skip pela tragédia?
- Ele era o marido dela e doentiamente ciumento. Toda a gente percebia isso.
- Doutor, o senhor está enganado. Skip não tinha ciúmes de Suzanne. Ele sabia que ela andava com outra pessoa. - Kerry fez uma pausa. - Mas ele próprio também andava.
A cara de Smith estremeceu como se tivesse levado uma bofetada.
- Isso é impossível. Ele estava casado com uma mulher perfeita e adorava-a.
- O senhor adorava-a, Dr. Smith. - Kerry não esperava dizer aquilo, mas, ao fazê-lo, soube que era verdade. - O senhor imaginou-se no lugar dele, não foi? Se fosse marido de Suzanne e tivesse descoberto que ela estava envolvida com outro homem, teria sido capaz de matar, não teria? - Olhou-o fixamente.
Ele não pestanejou.
- Como é que se atreve! Suzanne era minha filha! - replicou ele friamente. - Agora, saia. - Levantou-se e dirigiu-se para Kerry como se fosse agarrá-la para a expulsar.
Kerry pôs-se em pé de um salto, segurando o casaco, e recuou. Com uma olhadela, verificou se, caso fosse necessário, podia passar por ele e chegar à porta.
- Não, doutor - contrariou ela -, Susie Stevens é que era a sua filha. Suzanne foi uma criação sua, e o senhor sentiu que ela lhe pertencia, tal como pensa que Barbara Tompkins lhe pertence. Doutor, o senhor esteve em Alpine na noite em que Suzanne morreu. Foi o senhor quem a matou?
- Eu matar Suzanne?! Está louca?
- Mas esteve lá.
- Não estive nada!
- Ah, esteve sim, e vamos prová-lo. Vamos reabrir o processo e libertar da prisão o homem inocente que o senhor condenou. O senhor tinha ciúmes dele, Dr. Smith. Castigou-o por ele ter permanente acesso a Suzanne, coisa que o senhor não tinha.
- Isso não é verdade. - As palavras escaparam-se-lhe dos dentes cerrados.
Kerry notou que a mão de Smith estava a tremer violentamente. Baixou a voz e falou num tom mais conciliador.
- Dr. Smith, se não foi o senhor quem matou a sua filha, outra pessoa o fez. Mas não foi Skip Reardon. Acredito que, à sua maneira, o senhor amava Suzanne. Acredito que queria que o assassino dela fosse punido. Mas não vê o que fez? Ilibou o assassino de Suzanne. Ele anda por aí, cantando-lhe louvores por lhe ter dado cobertura. Se tivéssemos as jóias que Skip sabe que o senhor não deu a Suzanne, podíamos tentar localizá-lo, tentar descobrir quem é que realmente lhas ofereceu. Skip está convencido de que pelo menos uma desapareceu e que pode ter sido roubada naquela noite.
- Ele está a mentir.
- Não, não está. E foi roubada mais outra coisa nessa noite... um retrato de Suzanne que estava numa moldura e costumava estar na mesa-de-cabeceira. Foi o senhor que a tirou?
- Eu não estive lá em casa na noite em que Suzanne morreu!
- Então, quem é que lhe pediu o Mercedes emprestado naquela noite?
- Saia! - disse o Dr. Smith com um uivo gutural.
Kerry percebeu que era melhor não ficar ali mais tempo. Passou por ele descrevendo um círculo, mas, à porta, voltou-se para ele outra vez.
- Dr. Smith, Barbara Tompkins falou comigo. Ela está alarmada. Antecipou uma viagem de trabalho unicamente para o evitar. Quando ela voltar, irei pessoalmente acompanhá-la à Polícia para apresentar queixa de si.
Abriu a porta da antiga cocheira, e um sopro de ar frio varreu a entrada.
- A menos que - acrescentou ela - o senhor aceite o facto de que precisa de ajuda. A menos que consiga convencer-me de que me contou toda a verdade sobre o que aconteceu na noite em que Suzanne morreu. E a menos que me dê as jóias que o senhor suspeita que lhe podem ter sido dadas por outro homem que não o senhor nem o marido dela.
Ao MEtER as mãos nos bolsos para percorrer os três quarteirões de distância até ao carro, Kerry não se apercebeu nem dos olhos perscru tadores de Smith, examinando-a por detrás dajanela do escritório, nem do desconhecido sentado dentro de um carro estacionado na Quinta Avenida e que pegou no telefone celular para comunicar a sua visita a Washington Mews.
O PROCURADOR-GERAL Brandon Royce em colaboração com os gabinetes dos procuradores de Middlesex e Ocean County, obteve um mandado de busca para a residência permanente e para a casa de férias do falecido Barney Haskell. Vivendo longe da mulher durante a maior parte do tempo, Barney residia em Edison numa agradável moradia construída em vários níveis. Os vizinhos declararam que ele nunca Ihes tinha prestado grande atenção, mas era sempre educado quando se cruzavam.
A sua outra casa - uma construção moderna de dois andares com vista para o mar, na ilha de Long Beach, era o local onde a mulher residia todo o ano. Os vizinhos daí disseram que, durante o Verão, ele estava lá bastantes vezes. Passava grande parte do tempo a pescar no seu Chris- Crafr de sete metros, e o seu outro passatempo era a carpintaria. Alguns vizinhos afirmaram que a mulher os convidara para lhes mostrar o enorme armário de carvalho para guardar jogos que Barney construíra no ano anterior. Parecia ser o seu grande orgulho.
Os investigadores sabiam que Barney tinha de ter sólidas provas contra Jimmy Weeks para apoiar a sua tentativa de negociar um acordo. Sabiam também que, se não as descobrissem depressa, os homens de Jimmy tratariam de as destruir.
Apesar dos protestos da viúva de Barney, que gritava que a casa era dela e que eles não tinham o direito de a destruir, eles desmontaram tudo, incluindo o armário de carvalho, que estava pregado à parede da sala da televisão. Ao arrancarem a madeira do estuque, descobriram um grande cofre.
Com os meios de comunicação social concentrados à porta, as câmaras de televisão registaram a entrada de um antigo arrombador de cofres, agora ao serviço do Governo dos Estados Unidos. Quinze minutos depois, o cofre foi aberto, e, passado pouco tempo, às 4.15 dessa mesma tarde, o procurador-geral Royce recebeu um telefonema do investigador-chefe Les Howard.
Tinha sido encontrado um segundo conjunto de livros de contabilidade da Weeks Enterprises, bem como as agendas dos últimos quinze anos, nas quais Barney havia registado todos os compromissos de Jimmy e as suas próprias anotações. Havia também caixas de sapatos com cópias de recibos de objectos caros, incluindo jóias para as várias namoradas de Jimmy, que Barney tinha assinalado: Não foram pagos impostos.
- É uma mina, um verdadeiro tesouro - assegurou Howard a Royce. - Barney deve ter-se preparado desde o primeiro dia para negociar a sua liberdade em troca da denúncia de Jimmy, caso alguma vez viessem a ser incriminados.
Quando Royce desligou o telefone, saboreou aquelas esplêndidas notícias.
- Obrigado, Barney - disse ele em voz alta. - Eu sabia que havias de conseguir.
Jason ARNorr tinha acordado tarde no sábado de manhã, com sintomas de gripe, e decidiu não ir para a casa das Catskills como havia planeado. Em vez disso, passou o dia na cama, levantando-se apenas o tempo suficiente para preparar umas refeições leves. Levou livros e jornais para o quarto e passou o dia a ler, com intervalos para beber sumo de laranja e dormitar. De vez em quando, porém, pegava compulsivamente no panfleto do FBI para se tranquilizar, dizendo a si próprio que não havia qualquer hipótese de alguém o relacionar com aquele desfocado arremedo de fotografia.
Na segunda-feira à noite, sentia-se muito melhor e tinha-se mentalizado de que o panfleto não constituía qualquer ameaça. Não havia quaisquer dúvidas, estava em segurança. Prometeu a si próprio que no dia seguinte ou quarta-feira iria para as Catskills, onde passaria uns dias gozando os seus tesouros.
Jason não podia saber que os agentes do FBI já tinham obtido uma ordem do tribunal para porem o seu telefone sob escuta nem que estavam agora a vigiar-lhe discretamente a casa. De agora em diante, não faria um único movimento sem ser observado e seguido.
NA SEGUNDA-FEIRA à noite, quando Kerry chegou a casa, constatou que Alison já se tinha ido embora e encontrou Geoff e Robin a conversar na cozinha.
- Pensei que talvez gostasses de uma refeição caseira à moda de Dorso - disse Geoff. - Um menu muito simples: costeletas de borrego, salada e batatas assadas.
Kerry deu-se conta de que estava tensa e cheia de fome.
- Parece delicioso - suspirou ela enquanto desabotoava o casaco. Geoff apressou-se a segurá-lo. Pareceu perfeitamente natural que, ao mesmo tempo que o pousava sobre um braço, a rodeasse com o outro e lhe desse um beijo na face.
- Dia difícil lá na fábrica?
Por breves momentos, ela pousou o rosto na zona cálida sob o pescoço dele.
- Já tive dias mais fáceis.
Robin anunciou:
- Mãe, vou lá para cima acabar os trabalhos de casa, mas penso que, como sou eu que estou em perigo, devia saber exactamente o que está a passar-se. O que é que o Dr. Smith disse quando a mãe foi falar com ele?
- Acaba os trabalhos de casa primeiro. Prometo-te um relatório pormenorizado mais logo.
- Está bem.
Geoff tinha acendido a lareira a gás na sala. Trouxera sherry e tinha posto dois copos ao lado da garrafa em cima da mesa de apoio.
- Espero que não esteja a pôr-me demasiado à vontade - desculpou-se ele.
Kerry deixou-se cair no sofá e tirou os sapatos. Abanou a cabeça e sorriu.
- Não, não estás.
- Fala-me de Smith.
- Consegui pô-lo nervoso, Geoff, sei que consegui. O tipo está a ceder. Se não começar a contar a verdade, o meu próximo passo é convencer Barbara Tompkins a apresentar queixa dele por perseguição furtiva. Essa perspectiva chocou-o, percebi perfeitamente. Julgo que, em vez de se arriscar a que isso aconteça, ele prefere confessar, e então teremos algumas respostas.
Olhou para a lareira, ficando a observar as chamas a lamberem os troncos artificiais. Depois, acrescentou devagar:
- Eu disse a Smith que o facto de ele se ter mostrado tão ansioso por ver Skip condenado talvez fosse por ter sido ele próprio quem matou Suzanne. Geoff, penso que ele a amava, não como filha, talvez mesmo não como mulher, mas como uma criação sua.
Ela voltou-se para ele.
- Imagina esta hipótese. Na noite do assassínio o Dr. Smith mete-se no automóvel e vai visitar Suzanne. Skip tinha ido a casa e voltado a sair, tal como afirmou. Suzanne está no átrio a arranjar as flores oferecidas por outro homem. Não te esqueças de que o cartão nunca foi encontrado. Smith está zangado, magoado e ciumento. Agora não é só com Skip que ele tem de competir; é também com Jimmy Weeks. Num acesso de raiva, estrangula Suzanne e, porque sempre odiara Skip pega no cartão e inventa a história de que Suzanne andava com medo de Skip.
- Faz sentido - disse Geoff lentamente. - Mas nesse caso porque estaria Jimmy tão preocupado com a reabertura do processo?
- Também pensei nisso. E, de facto, pode argumentar-se que ele estava envolvido com Suzanne, que discutiram naquela noite e que ele a matou.
- Conseguiste arranjar óptimos argumentos para as duas hipóteses - admitiu Geoff. - Por acaso, ouviste o noticiário quando vinhas a caminho de casa?
- O meu cérebro precisava muito de descansar. Vim a ouvir velhos êxitos.
- Fizeste uma boa escolha, mas se tivesses ouvido um posto com notícias, ficarias a saber que o material que Barney Haskell estava a planear usar para negociar o acordo se encontra neste momento nas mãos do procurador-geral. Aparentemente, Barney guardava registos como mais ninguém. Amanhã, se Frank Green for esperto em vez de contrariar a tua investigação, há-de solicitar informações sobre todos os documentos que consigam encontrar acerca de jóias que Weeks tenha comprado nos meses que antecederam a morte de Suzanne. Se conseguirmos relacioná-lo com peças como a pulseira do zodíaco teremos a prova de que Smith estava a mentir. - Pôs-se de pé. - Eu diria, Kerr McGrath, que mereces o teu jantar. Espera aqui. Quando estiver pronto, chamo-te.
GEOFF foi-se embora às 9 horas. Quando a porta se fechou atrás dele, Robin perguntou:
- Mãe, esse homem que o pai está a defender. Pelo que a mãe disse, o pai não vai ganhar o caso. Isso é mau para ele?
- Ninguém gosta de perder um caso, mas não. Penso que a melhor coisa que podia acontecer ao teu pai era que Jimmy Weeks fosse condenado.
- Tem a certeza de que Jimmy Weeks é a pessoa que anda a tentar assustar-me?
- Sim, tanto quanto me é possível ter. É por isso que, quanto mais depressa conseguirmos descobrir a sua ligação a Suzanne Reardon, mais depressa ele ficará sem motivos para tentar assustar- nos.
- Geoff é advogado de defesa, não é?
- É.
- Acha que ele alguma vez defenderia um tipo como Jimmy Weeks?
- Não, Robin. Tenho a certeza de que não.
- Eu também penso que não.
Às 9.30, Kerry lembrou-se de que tinha prometido informar Jonathan e Grace de como correra o seu encontro com o Dr. Smith.
- Na tua opinião, ele pode ceder e confessar que mentiu?
- Julgo que sim.
Grace estava na outra extensão.
- Vamos contar a Kerry as minhas novidades, Jonathan. Kerry, hoje, das duas uma: ou fui uma boa detective ou fiz uma terrível figura de parva.
Kerry não tinha considerado importante referir o nome de Arnott no domingo quando falara a Jonathan e Grace do Dr. Smith e de Jimmy Weeks. Quando ouviu o que Grace tinha para contar sobre Arnott, fi cou satisfeita por nenhum deles conseguir ver a expressão do seu rosto. Jason Arnott - o amigo de Suzanne Reardon. Se ele era um ladrão e se, de acordo com o panfleto do FBI que Grace descrevera, era também suspeito de homicídio, onde é que ele se encaixava no quebra-cabeças do Caso do Crime por Amor?
O DR. CHARLES SMITH permaneceu sentado por longas horas depois de ter intimado Kerry a sair. Perseguição furtiva! Assassino! Mentiroso! As acusações que ela lhe lançara fizeram-no estremecer de indignação. A mesma indignação que sentia quando olhava para um rosto feio ou defeituoso. Podia sentir o frémito que percorria todo o seu ser na ânsia de o transformar, de o redimir.
Perseguição furtiva ! Dizer que ele a perseguia porque um breve vislumbre da quase-perfeição que criara lhe dava prazer! E seria possível que ela pensasse que ele assassinara Suzanne? Foi atingido por uma dor lancinante ao reviver de novo o momento em que encontrara Suzanne no vestibulo. Suzanne - não era Suzanne. Aquela criatura distorcida com olhos protuberantes e ensanguentados - aquela não era a criatura delicada que ele criara. Até o corpo parecia desajeitado e disforme, en roscado como estava com a perna esquerda retorcida sob a direita, as viçosas rosas vermelhas espalhadas sobre ela, num grotesco tributo à morte.
Recordou como amaldiçoara Suzanne por não ter dado ouvidos aos seus conselhos. Tinha-se casado com Reardon contra a sua vontade.
- Espera - recomendara-lhe. - Ele não é suficientemente bom para ti.
- Aos seus olhos nunca ninguém será suficientemente bom para mim - gritara-lhe ela em resposta.
Tivera de suportar o modo como eles olhavam um para o outro, o modo como as suas mãos se entrelaçavam sobre a mesa, o modo como eles se sentavam, lado a lado, no sofá. Ter de passar por tudo aquilo fora terrível, mas tornara-se totalmente insuportável quando Suzanne começara a sentir-se insatisfeita, a encontrar-se com outros homens, todos indignos dela e depois viera ter com ele pedindo-lhe favores, dizendo: Tem de deixar Skip acreditar que me comprou isto... e mais isto... e mais isto...
Ou então dizia: Porque é que está tão irritado? Não me disse que eu tinha direito a gozar todos os bons momentos que não tive? Pois bem, é o que estou a fazer, estou a gozá-los agora. Skip trabalha demais. Não é divertido.
Assassino? Não, Skip é que era o assassino. De pé, junto ao corpo de Suzanne, Smith soubera exactamente o que tinha acontecido. Aquele palerma do marido dela tinha chegado a casa, surpreendera-a com as flores oferecidas por outro e explodira.Tal como eu explodiria, pensara Smith quando os seus olhos se haviam detido no cartão meio es condido pelo corpo de Suzanne.
Fora então que ali, de pé, junto a ela, todo o cenário lhe acorrera ao espírito. Skip, o marido ciumento - um júri podia ser benevolente com um homem que matara a mulher num momento de loucura. Ele podia safar-se com uma pena leve, ou talvez nem chegasse a ser condenado. Não vou permitir que isso aconteça, jurara ele. Smith recordava como lhe fechara os olhos, apagando a imagem desfigurada que tinha à sua frente e vendo, em seu lugar, Suzanne em toda a sua beleza. Prometo-te, Suzanne !
Não lhe tinha sido difícil cumprir a promessa. Tudo o que tivera a fazer fora tirar o cartão que acompanhava as flores e depois ir para casa e esperar pelo inevitável telefonema que o informaria de que Suzanne, a sua filha, estava morta.
Quando a Polícia o interrogara, dissera que Skip era loucamente ciumento, que Suzanne receava pela sua vida, e, obedecendo ao último pedido que ela lhe fizera, afirmou que fora ele quem lhe dera todas as jóias que Skip tinha questionado.
Não, Ms. McGrath pode dizer tudo o que quiser. O assassino está na prisão. E era lá que ia ficar.
Eram quase 10 horas quando Charles Smith se levantou. Estava tudo acabado. Nunca mais podia operar. Já não tinha qualquer desejo de ver Barbara Tompkins. Ela causava-lhe repulsa. Entrou no quarto, abriu o pequeno cofre que estava dentro do armário e tirou de lá uma arma. Seria muito fácil. Para onde iria?, interrogou-se. Ele acreditava que o espírito continuava. Reencarnação? Talvez. Talvez agora renascesse como o par de Suzanne. Talvez se apaixonassem um pelo outro. Um sorriso assomou-lhe aos lábios.
Quando estava prestes a fechar o cofre, olhou para o guarda jóias de Suzanne.
Suponhamos que McGrath tinha razão. Suponhamos que não tinha sido Skip quem roubara a vida a Suzanne. McGrath dissera que essa pessoa estava a rir-se agora, com gratidão trocista pelo testemunho que tinha condenado Skip.
Havia uma maneira de corrigir isso. Se Reardon não era o assassino então McGrath devia ter tudo o que necessitava para descobrir o homem que matara Suzanne.
Smith estendeu a mão para o guarda jóias, pousou a arma sobre ele e levou-os consigo para a secretária do escritório. Depois, com gestos precisos, tirou uma folha de papel e a tampa da caneta. Quando acabou de escrever, embrulhou o guarda- jóias e a carta e enfiou-os na máquina de franquiar do Federal Express, que tinha em casa para maior comodidade. Endereçou o embrulho à Delegada do Procurador Kerry McGrath, Gabinete do Procurador do Bergen County, Hackensack Nova Jérsia,. Depois, vestiu o casaco e percorreu a pé os oito quarteirões até ao marco do correio do Federal Express.
Eram 11 horas em ponto quando ele chegou a casa. Tirou o casaco, pegou na arma, foi até ao quarto e estendeu-se na cama ainda vestido. Apagou todas as luzes, excepto a que iluminava o retrato de Suzanne. Acabaria aquele dia com ela e começaria uma vida nova ao bater da meia-noite. Tomada a decisão, sentiu-se calmo, até mesmo feliz.
Às 11.30, a campainha tocou. Quem será?, interrogou-se ele. Irritado, tentou ignorá-la, mas um dedo persistente continuava a premi-la. Tinha quase a certeza de que sabia quem era. Uma vez, houvera um acidente na esquina e um vizinho tinha corrido a pedir-lhe ajuda. Afinal ele era médico. Se tivesse havido um acidente, as suas capacidades podiam ser utilizadas uma última vez.
O Dr. Charles Smith destrancou e abriu a porta e depois caiu de en contro a ela no momento em que uma bala lhe deixou uma marca entre os olhos.
Na tERça-FEiRa de manhã, Deidre Reardon e Beth Taylor já estavam na sala de espera do escritório de Geoff Dorso quando este chegou, às 9 horas.
- Geoff, peço imensa desculpa por aparecer sem avisar - disse Beth -, mas Deidre tem de ir amanhã de manhã para o hospital para fazer uma angioplastia. E sei que ela ficará mais descansada se tiver a oportunidade de falar contigo durante uns minutos.
- Claro - respondeu Geoff cordialmente. - Venham até ao meu gabinete. Tenho a certeza de que a máquina do café está ligada.
- Só demoramos cinco minutos - prometeu Beth enquanto Geoff punha à sua frente uma chávena de café. - É uma bênção do céu pensar que, finalmente, há verdadeira esperança para Skip. E estamos gratas por tudo o que tens feito.
- Kerry falou ontem com o Dr. Smith - informou Geoff. - Ela acha que conseguiu enervá-lo. Mas há mais novidades. - Contou-lhes acerca dos registos de Barney Haskell. - É possível que, finalmente, tenhamos a oportunidade de determinar a proveniência das jóias que pensamos que Weeks deu a Suzanne.
- Essa é uma das razões por que estamos aqui - explicou Deidre Reardon. - Lembra-se de eu lhe ter dito que tinha uma fotografia que mostrava Suzanne com o alfinete de diamantes que desapareceu? Com toda aquela conversa sobre as jóias, no outro dia, achei que era importante que a tivesse em seu poder.
Entregou-lhe um envelope de papel acastanhado, do qual ele retirou uma página do Palisades Community Life, um semanário de formato ta blóide. A fotografia de grupo do Country Club de Palisades ocupava quatro colunas. Geoff reconheceu imediatamente Suzanne Reardon. A sua beleza notável destacava-se na página. Estava de pé, um pouco de lado, e a máquina tinha captado com grande nitidez a jóia cintilante na lapela do seu casaco.
- Este é o alfinete duplo que desapareceu - explicou Deidre, apontando para ele.
- Fico contente por ter isto - afirmou Geoff. - Quando conseguirmos uma cópia daqueles registos que Haskell mantinha, talvez consigamos localizar o alfinete.
Era quase doloroso ver a esperança ansiosa dos rostos delas. Não permitas que eu as desaponte, rezou ele enquanto as acompanhava de volta à recepção. À porta, abraçou Deidre.
- Agora, não se esqueça, faça essa angioplastia e ponha-se boa. Não podemos tê-la doente quando abrirem a porta a Skip.
- Geoff, eu não suportei este inferno todo para desistir agora.
Depois de ter despachado uma série de telefonemas e questões de clientes, Geoff decidiu telefonar a Kerry. Talvez ela quisesse que ele lhe enviasse um fax com a fotografia que Deidre trouxera. Ou talvez eu queira apenas falar com ela, admitiu para si próprio.
Quando a secretária passou a chamada, a voz assustada de Kerry causou-lhe calafrios.
- Acabei de abrir um pacote do Federal Express que o Dr. Smith me enviou. Lá dentro estava um bilhete, o guarda-jóias de Suzanne e o cartão que devia acompanhar as rosas. Ele admite que mentiu acerca de Skip e das jóias. Afirma que na altura em que eu ler isto já se terá suicidado.
- Meu Deus, Kerry, ele...
- Não. Sabes, é que ele não se suicidou, Geoff. Mrs. Carpenter, que é enfermeira no consultório dele, telefonou-me agora mesmo. Como o Dr. Smith não apareceu para uma consulta que tinha de manhã cedo e não atendeu o telefone, ela foi lá a casa. Encontrou o corpo dele no vestíbulo alvejado com um tiro e a casa revistada. Seria alguém à procura das jóias? Geoff, quem é que anda a fazer isto? Será Robin a próxima vítima?
Na terça-feira, Jason Arnott acordou às 9.30. Para além de alguns vestígios de dores nas pernas e nas costas, tinha recuperado do vírus que o deitara abaixo durante o fim-de-semana e estava ansioso por conseguir finalmente ir para o seu esconderijo. Decidiu telefonar para lá a avisar, pois sentia grande prazer em chegar e ter o aquecimento ligado e o frigorífico abastecido.
No interior do que parecia ser uma carrinha do piquete da Companhia do Gás e Electricidade, apareceu um sinal de que Arnott estava a fazer uma chamada telefónica. Ao ouvi-la, os agentes sorriram um para o outro com ar de triunfo.
- Parece-me que estamos prestes a apanhar o matreiro Mr. Arnott na sua toca - observou o agente mais graduado. Continuaram à escuta até Jason terminar a sua conversa, dizendo:
- Obrigado, Maddie. Devo chegar por volta da uma.
FRANK GREEN estava num julgamento, e só ao meio-dia Kerry conseguiu apanhá-lo no gabinete e pô-lo ao corrente do assassínio de Smith e do pacote do Federal Express que recebera dele nessa manhã.
Green examinou cuidadosamente o conteúdo do guarda-jóias, comparando cada peça com as que Smith mencionara na carta que incluíra no pacote enviado a Kerry.
- Pulseira do zodíaco - leu ele. - Está aqui. Anel de esmeraldas e diamantes, está aqui. Pulseira de diamantes antiga. - Pegou nela.É linda.
- Pois é. Talvez se lembre de que Susan a tinha posta quando foi assassinada. Havia mais uma peça, um alfinete duplo de diamantes antigo que Skip descreveu. O Dr. Smith não o refere e, aparentemente, não o tinha, mas Geoff acabou de me enviar um fax com a fotografia de um jornal local em que Suzanne está com ele posto. Nunca apareceu entre os objectos que foram encontrados lá em casa. Como pode ver, é muito semelhante à pulseira antiga.
Ao olhar mais de perto a imagem esborratada, esta fez-lhe lembrar a imagem de uma mãe com o filho. O alfinete tinha duas partes, explicara Deidre, sendo a maior uma flor e a mais pequena um botão. Estavam ligadas por uma corrente. Kerry examinou-o por momentos, perplexa por lhe parecer estranhamente familiar.
- Vamos ficar atentos em relação a este alfinete para ver se ele é mencionado nos recibos de Haskell - prometeu Green. - Agora, vamos lá a esclarecer uma coisa. Tudo o que o médico referiu, à excepção desse alfinete constitui a totalidade das jóias que Suzanne lhe pediu para dizer a Skip que fora ele quem lhas tinha dado?
- Sim, de acordo com o que Smith afirma na carta e que, de facto, coincide com o que Skip Reardon me disse.
Green pousou a carta de Smith.
- Kerry, achas que foste seguida ontem, quando foste ver o Dr. Smith?
- Agora, penso que, provavelmente, fui. É por isso que estou tão preocupada com a segurança de Robin.
- Vamos pôr um carro-patrulha à porta de tua casa esta noite, mas eu ficava mais descansado se tu e Robin estivessem num local mais seguro até tudo isto terminar.Jimmy Weeks é um animal encurralado. É possível que consigam incriminá-lo por fraude fiscal,mas com o que tu desvendaste podemos acusá-lo de assassínio.
- Quer dizer,por causa do cartão que Jimmy mandou com as flores ?
- Exactamente.Não foi um empregado da florista que escreveu aquelas notas musicais.Imagina-te a descrever uma mensagem daquelas pelo telefone.Pelo que eu sei,Weeks é um músico amador razoável.Com esse cartão,e se as jóias coincidirem com os recibos,o caso Reardon muda completamente de figura.
- E se for concedido um novo julgamento a Skip,ele terá direito a sair sob fiança até ao julgamento...ou até as acusações lhe serem retiradas?
- Se esta hipótese estiver correcta,eu próprio farei uma recomendação nesse sentido - concordou Green.
- Mas,Frank - objectou Kerry -,pode haver uma razão para
esta hipótese não estar correcta,mesmo que consigamos associar Jimmy Weeks a Suzanne.- E Kerry informou-o da ligação de Jason Arnott com Suzanne e da teoria de Grace Hoover de que ele era um ladrão profissional.
- Mesmo que seja,achas que ele tem alguma coisa a ver com o assassínio de Suzanne Reardon? - inquiriu Green.
- Não tenho a certeza - disse Kerry lentamente.- Depende de ele estar ou não envolvido nesses tais assaltos...
- Espera aí.Podemos pedir ao FBi que nos mande o panfleto por fax imediatamente.- Green premiu o botão do intercomunicador.- Vamos saber quem é que está a dirigir as investigações.
Menos de cinco minutos depois,a secretária trouxe-lhe o panfleto.
Green apontou para o número confidencial.
- Diga-lhes para me ligarem ao responsável por este caso.
Meio minuto depois,Green já estava a falar ao telefone com Morgan e ligou o altifalante do telefone para que Kerry pudesse ouvir a conversa.
- Está a rebentar agora - esclareceu Morgan.- Arnott tem outra casa nas Catskills.Decidimos tocar à campainha e ver se conseguimos que a empregada fale connosco.Mantê-lo-emos ao corrente do que se passa.
Kerry voltou-se na direcção da voz desprendida que provinha do altifalante.
- Mr.Morgan,isto é terrivelmente importante. Se ainda conseguir contactar o seu agente,peça-lhe que ele a interrogue sobre uma peça de esmalte azul, rodeada de pérolas. Pode ter a fotografia de uma mulher muito bonita de cabelo escuro. Se lá estiver, poderemos estabelecer a ligação entre Jason Arnott e um homicídio.
- Vou dizer ao meu agente para perguntar por ela e depois digo-lhe qualquer coisa.
- Que conversa era essa? - perguntou Green ao desligar o telefone.
- Skip Reardon jura a pés juntos que desapareceu uma moldura do quarto no dia em que Suzanne morreu. Isso e o alfinete antigo são os únicos objectos cujo paradeiro desconhecemos. - inclinou-se para a frente e pegou na fotografia de Suzanne com o alfinete. - Não é esquisito? Tenho a sensação de que já vi um alfinete como este.. quero dizer, o pequeno ligado ao grande.
Pousou a fotografia e prosseguiu:
- Jason Arnott estava muitas vezes com Suzanne, Frank. Suponhamos que também se apaixonou por ela, que lhe deu o alfinete e a pulseira. São exactamente o tipo de jóias que ele escolheria. Depois, percebeu que ela andava a divertir-se com Jimmy Weeks. Talvez ele tenha lá chegado naquela noite e visto as rosas e o cartão que pensamos que Jimmy mandou.
- Queres dizer que ele a matou e levou o alfinete?
- E a fotografia. Pelo que Mrs. Reardon me disse, a moldura é linda.
- E porque não a pulseira?
- Hoje de manhã, enquanto estava à sua espera, estive a ver as fo tografias que foram tiradas ao corpo antes de ser removido. Suzanne ti nha uma pulseira de ouro no pulso esquerdo, vê-se na fotografia. A pul seira de diamantes, que estava no outro braço, não se vê. Eu verifiquei os registos. Estava puxada para cima, debaixo da manga da camisa, pelo que não se via. Ela pode tê-la escondido porque sabia que o atacante viera buscá-la. Se assim foi, resultou. Ele não a encontrou.
Enquanto esperavam que Morgan lhes telefonasse, Green e Kerry prepararam em conjunto um panfleto com fotografias das jóias em questão para distribuir pelos joalheiros de Nova Jérsia.
A determinada altura, Frank observou:
- Kerry, já te apercebeste bem de que uma informação da mulher do nosso senador pode permitir que se apanhe o assassino da mãe do congressista Peale? Assim, se Arnott for relacionado com o caso Reardon. . .
Frank Green, candidato a governador, pensou Kerry. Já está a imaginar como há-de dourar a pilula por ter condenado um homem ino cente! Bem, a política é mesmo assim, acho eu.
MAE PLATT, a empregada de Jason Arnott, não teve consciência de que estava a ser seguida por um automóvel quando parou no mercado. Nem reparou que ele a seguiu até à grande casa de campo que pertencia ao homem que ela conhecia como Nigel Grey.
Entrou, e, dez minutos depois, ficou intrigada ao ouvir a campainha. Naquela casa nunca aparecia ninguém. Mais, Mr. Grey dera-lhe ordens rigorosas para nunca deixar entrar fosse quem fosse. Ao espreitar pela janela, avistou um homem bem vestido no topo das escadas. Este viua e exibiu um distintivo que o identificava como agente do FBI.
- FBI, minha senhora. Importa-se de abrir a porta, por favor, para eu falar consigo.
Nervosa, Maddie abriu a porta. Nessa altura, ficou a escassos centímetros do distintivo com o inconfundível símbolo do FBI e a fotografia do agente.
- Boa tarde, minha senhora. Sou agente do FBI e chamo-me Milton Rose. Não é minha intenção sobressaltá-la ou inquietá-la, mas é muito importante que eu fale consigo sobre Mr. Jason Arnott. A senhora é a empregada, não é verdade?
- Meu senhor, eu não conheço nenhum Mr. Arnott. Esta casa pertence a Mr. Nigel Grey e há muitos anos que trabalho para ele. Ele chega hoje à tarde; na verdade, não deve tardar muito. E posso dizer-lhe desde já... tenho ordens rigorosas para não deixar entrar ninguém sem a permissão dele.
- Minha senhora, eu não estou a pedir-lhe para entrar, não trouxe um mandado de busca. Mas, mesmo assim, preciso de falar consigo. O seu Mr. Grey é, na realidade, Jason Arnott, que suspeitamos ter sido responsável por dezenas de assaltos que envolveram peças de arte e outros objectos valiosos. Pode ser até responsável por um assassínio.
- Oh, meu Deus ! - arquejou Maddie. Realmente, Mr. Grey sempre fora um solitário, mas ela tinha presumido que aquela casa das Catskills era o seu refúgio para um pouco de privacidade e descontracção. Apercebia-se agora de que ele podia perfeitamente refugiar-se ali por motivos bem diversos.
O agente Rose prosseguiu, descrevendo-lhe muitos dos objectos de arte roubados e outras peças que tinham desaparecido de casas onde Arnott havia estado previamente, participando em eventos sociais. Tristemente, Maddie confirmou que praticamente todos esses objectos se encontravam naquela casa. E, sim, era verdade, a pequena moldura azul com uma mulher estava em cima da mesa-de-cabeceira dele.
- Minha senhora, tenho de pedir-lhe que me acompanhe. Tenho a certeza de que a senhora não sabia o que se passava e não vai ter qualquer espécie de problemas. Mas vou fazer um requerimento telefónico para a obtenção de um mandado de busca para podermos revistar a casa de Mr. Arnott e proceder à detenção dele.
Com delicadeza, o agente Rose conduziu a aturdida Maddie até ao carro que se encontrava à espera.
- Não posso acreditar! - gemeu ela. - Eu não sabia de nada.
KERRv voltou para o seu gabinete depois do telefonema de Morgan. Estava agora convencida de que Arnott estava irreversivelmente ligado, de uma maneira ou de outra, à morte de Suzanne Reardon. Até que ponto, porém, era algo que teria de esperar para saber, até que ele estivesse sob a custódia do FBI e ela e Frank Green tivessem a oportunidade de o interrogar.
Havia uma pilha de mensagens sobre a secretária. Uma delas, de Jo nathan Hoover, estava assinalada Urgente. Telefonou-lhe de imediato.
- Obrigado por teres telefonado, Kerry. Tenho de ir aí a Hackensack e quero falar contigo. Posso convidar-te para almoçar?
Há umas semanas atrás, ele tinha começado a conversa com um Posso convidá-la para almoçar Meritíssima?. Kerry sabia que a omissão de hoje não era acidental. Jonathan era frontal. Se o resultado político da investigação dela custasse a Frank Green a sua eleição, ela teria de esquecer a magistratura, por muito justificados que tivessem sido os seus motivos.
- Claro, Jonathan.
- À uma e meia no Solari's.
Tinha a certeza de que sabia a razão por que ele estava a telefonar.
Ouvira as notícias acerca do Dr. Smith e estava preocupado com ela e com Robin.
Ligou para o escritório de Geoff. Estava a almoçar uma sanduíche, sentado à secretária.
- Ainda bem que estou sentado ! - exclamou quando ela o pôs ao corrente do que fora descoberto sobre Arnott.
- O FBI vai fotografar e catalogar tudo o que for encontrado na casa das Catskills. Quando Green e eu formos lá falar com Arnott, queremos que Mrs. Reardon venha connosco para identificar a moldura. Já telefonaste a Skip por causa da carta do Dr. Smith?
- Logo a seguir a ter falado contigo.
- Como é que ele reagiu?
- Começou a chorar. - A voz de Geoff tornou-se rouca. - Ele vai sair em liberdade, Kerry, e graças a ti.
- Não, graças a ti e a Robin. Eu estava preparada para lhe voltar as costas.
- Discutimos isso noutra altura. Kerry, tenho Deidre Reardon na outra linha. Amanhã vai ser internada para fazer uma angioplastia, mas eu vou pedir-lhe que adie a operação. Falo contigo mais logo. Não te quero a ti e a Robin sozinhas em casa esta noite.
Antes de Kerry sair para ir encontrar-se com Jonathan, ligou para o telefone celular de Joe Palumbo, que atendeu logo ao primeiro toque.
- Palumbo.
- Joe, fala Kerry.
- O intervalo acabou. Robin já voltou para dentro da escola. Estou estacionado mesmo à entrada. Eu levo-a para casa e fico lá com ela e com a babysitter. Não te preocupes, mamã, que eu trato bem do teu bebé.
- Eu sei que tratas. Obrigada, Joe.
Eram horas de ir ter com Jonathan. Ao sair apressadamente para o corredor e correr para o elevador, cujas portas estavam prestes a fechar-se, Kerry não parava de pensar no alfinete desaparecido. Havia qualquer coisa nele que lhe parecia familiar. As duas peças. A flor e o botão, como mãe e filho. Uma mãe com um bebé. Porque é que aquilo lhe vinha à lembrança?
Jonathan já estava sentado à mesa. Levantou-se ao vê-la chegar. O seu abraço, breve e familiar, reconfortou-a.
- Pareces muito cansada, menina - observou ele. - Ou direi antes tensa?
Sempre que ele falava com ela naquele tom, Kerry sentia uma onda de gratidão pelo facto de Jonathan ter sido, sob vários aspectos, uma espécie de pai para ela.
- Até agora tem sido um dia e peras - respondeu ela, sentando-se. - Já soube do Dr. Smith?
- Grace telefonou-me. Ouviu a notícia quando estava a tomar o pequeno-almoço. Parece mais um trabalhinho de Weeks. Estamos os dois profundamente preocupados com Robin.
- Também eu, mas um dos nossos investigadores está com ela.
O criado estava à espera.
- Vamos pedir - sugeriu Kerry - e depois eu ponho-o a par de tudo.
Ambos escolheram sopa de cebola, que chegou quase imediatamente. Enquanto comiam, ela falou-lhe do embrulho com as jóias e da carta do Dr. Smith.
- Fazes-me sentir envergonhado por ter tentado dissuadir-te da in vestigação, Kerry - confessou Jonathan em voz baixa. - Vou fazer os possíveis, mas se o governador concluir que a nomeação de Green está comprometida, ele é pessoa para descarregar em ti.
- Bem, pelo menos há esperança - replicou Kerry. - E podemos agradecer a Grace pela informação que deu ao FBI. - Contou a Jonathan o que soubera acerca de Jason Arnott. - Frank Green está morto por anunciar que o perigoso ladrão que assassinou a mãe do congressista Peale foi capturado devido a uma informação fornecida pela mulher do senador Hoover. Vai fazê-lo passar a si pelo melhor amigo dele, e quem é que pode criticá-lo por isso? Deus sabe que Jonathan Hoover é, provavelmente, o político mais respeitado de Nova Jérsia.
Jonathan sorriu.
- Podemos sempre tornear um pouco a verdade e dizer que Grace consultou primeiro Green e que este a aconselhou a fazer o telefonema.
- O sorriso desvaneceu-se. - Kerry, há alguma possibilidade de ter sido Arnott quem tirou a fotografia a Robin?
- Nem pensar. O pai de Robin transmitiu o aviso e, no essencial, admitiu que Jimmy Weeks tinha mandado tirar aquela fotografia.
- Qual é o próximo passo?
- Frank Green e eu vamos levar Deidre Reardon às Catskills, amanhã de manhã, para identificar a moldura. Arnott deve estar a ser preso neste momento. Para já, vão mantê-lo na prisão local. Quando começarem a relacionar as mercadorias roubadas com assaltos concretos, vão mover-lhe processos em vários locais. Suspeito que eles estão ansiosos porjulgá- lo, antes de mais nada, pelo assassínio da mãe do congressista Peale. E, evidentemente, se ele foi responsável pela morte de Suzanne Reardon, vamos quere rjulgá-lo aqui.
- E vamos supor que ele não fala?
- Vamos enviar panfletos a todos os joalheiros de Nova Jérsia. O meu palpite é que um deles irá reconhecer as jóias mais recentes e ligá-las a Weeks e que a pulseira antiga acabará por descobrir-se que pertence a Arnott. Quando foi encontrada no braço de Suzanne, tinha um fecho novo, e a pulseira é tão invulgar que é provável que algum joalheiro se recorde dela.
- Então, tencionas partir de manhã cedo para as Catskills?
- Sim, mas claro que não vou deixar Robin sozinha. Se Frank quiser pôr-se a caminho bem cedo, peço à babysitter que durma lá em casa.
- Tenho uma ideia melhor: deixa Robin connosco esta noite. A nossa casa tem uma segurança excepcional, sabes perfeitamente. Eu estarei lá, evidentemente, e não sei se é do teu conhecimento ou não, mas até Grace tem uma arma na gaveta da mesa-de- cabeceira. Ensinei-a a usá-la há anos. Além do mais, penso que seria bom para Grace ter a visita de Robin. Tem andado um bocado em baixo ultimamente, e Robin é uma companhia muito divertida.
- Lá isso é - concordou Kerry. Reflectiu por um momento. - Jonathan, isso pode ser realmente uma boa ideia. Queria passar o processo de Reardon a pente fino antes de interrogar Arnott. Robin é doida pelos dois e adora o quarto de hóspedes cor-de-rosa.
- Era o teu, lembras-te?
- Claro. Como poderia esquecer- me?
JasoN ARNott pressentiu que havia algo de terrivelmente errado no momento em que transpôs a porta da sua casa das Catskills e se apercebeu de que Maddie não estava lá.
Se Maddie não está cá e não deixou nenhum bilhete, é porque se passa qualquer coisa. Está tudo acabado, pensou. Quanto tempo demoraria até o apanharem? Não muito, tinha a certeza.
Subitamente, sentiu fome. Dirigiu-se apressadamente ao frigorífico e tirou uma garrafa de Pouilly- Fuissé e o salmão fumado que pedira a Maddie para comprar. Preparou um prato de salmão e encheu um copo de vinho. Depois, com ambos na mão, começou a percorrer a casa. Uma espécie de visita final, pensou ele, avaliando as riquezas que o rodeavam. A tapeçaria da sala de jantar - preciosa. O Aubusson da sala - um privilégio caminhar sobre tal beleza.
Iria precisar de um advogado, claro. Um bom advogado. Mas quem? Um sorriso crispou-lhe os lábios. Já sabia quem: Geoffrey Dorso, que durante dez anos trabalhara incansavelmente para Skip Reardon. Dorso devia estar disposto a aceitar um novo cliente, sobretudo se este pudesse fornecer-lhe provas que o ajudassem a safar o pobre Reardon da prisão.
A campainha da porta da frente tocou, e Arnott ignorou-a. Tocou de novo e continuou a tocar com insistência. Depois, a campainha da porta das traseiras começou a retinir.
Estou cercado, pensou. Ah, paciência.
Ele sabia há muito que aquilo acabaria por acontecer, mais cedo ou mais tarde. Se ao menos tivesse seguido os seus instintos na semana anterior e saído do país... Bebeu o resto do vinho, decidiu que lhe saberia bem outro copo e voltou à cozinha. Agora, havia rostos em todas as janelas, rostos com expressões de satisfação.
Arnott acenou-lhes com a cabeça e levantou o copo num brinde trocista. Enquanto bebia dirigiu-se para a porta das traseiras, abriu- a e desviou-se enquanto eles entravam de rompante.
- FBI, Mr. Arnott - gritaram. - Temos um mandado para revistar a casa.
- Meus senhores, meus senhores - murmurou ele. - Peço-lhes que tenham cuidado.
KERRy telefonou a Robin às 3.30. Ela e Alison estavam no computador, disse-lhe Robin, a jogar um jogo que o tio Jonathan e a tia Grace lhe tinham dado. Kerry contou-lhe o plano:
- Hoje à noite tenho de trabalhar até tarde e amanhã tenho de sair por volta das sete. Jonathan e Grace gostariam muito que ficasses com eles e eu ficava mais descansada se lá estivesses.
Robin ficou encantada.
- Vou pedir à tia Grace se posso ver os velhos álbuns de fotografias outra vez - exclamou ela. - Gosto imenso de ver as roupas e pen teados antigos e talvez me dêem algumas ideias, porque o nosso próximo trabalho, nas aulas de fotografia, é criar um álbum de família, de modo que conte realmente uma história.
- Sim, têm algumas fotografias óptimas. Eu costumava adorar folhear aqueles álbuns quando estava a tomar conta da casa - recordou Kerry. - Costumava contar o número de criados que a tia Grace e o tio Jonathan tinham quando eram pequenos. Ainda penso neles às vezes quando estou a aspirar.
Robin deu uma risadinha.
- Tenha calma. Talvez um dia ganhe a lotaria. Beijinhos, mãe.
Às 5.30, Geoff telefonou-lhe do carro.
- Adivinha ! - Não esperou pela resposta. - Jason Arrnott quer falar comigo imediatamente. Quer que eu seja advogado dele.
- E tu tencionas fazê-lo?
- Não posso, porque ele está ligado ao caso Reardon, e, mesmo que pudesse, não o faria. Eu disse-lhe isso, mas, mesmo assim, ele in siste em falar comigo.
- Geoff! Não o deixes dizer-te nada que te obrigue a manter a relação de confidencialidade entre advogado e cliente.
Geoff deu uma gargalhada.
- Obrigado, Kerry. Nunca me teria lembrado disso.
Kerry riu-se também, e depois falou-lhe dos planos que fizera para Robin passar a noite. Geoff despediu-se, prometendo telefonar e contar- lhe o que se passara depois do encontro com Arnott.
ERAM 10 HORAS quando Kerry acabou o trabalho e saiu do escritório, então já silencioso. Portanto, concluiu Kerry, o assassino é o homem que visitou a casa entre a hora a que Skip saiu, seis e meia, e a altura em que o médico chegou, por volta das nove. Qual deles terá morto Suzanne?, perguntou a si própria. Jason Arnott? Jimmy Weeks? Tudo girava em torno das jóias. Se ela conseguisse provar que Arnott oferecera a Suzanne aquelas valiosas peças antigas, não havia qualquer possibilidade de ele escapar afirmando que eram um presente de pura amizade.
Apercebendo-se subitamente de que estava cheia de fome, levou o carro até ao café-restaurante da esquina e pediu um hamburger com batatas fritas e café. Substituindo o café por uma coca-cola, temos a refeição preferida de Robin, pensou ela, suspirando intimamente. Tenho de confessar que tenho saudades do meu bebé.
A mãe e o bebé... A mãe e o bebé.
Porque é que aquela toada monótona não parava de ecoar na sua cabeça? Havia nela qualquer coisa de errado, de terrivelmente errado. Mas o quê? Devia ter telefonado a dar as boas-noites a Robin antes de sair do escritório, pensou ela. Porque é que não o tinha feito? Kerry comeu rapidamente e voltou para o carro. Eram vinte para as onze - já era demasiado tarde para telefonar. Estava a sair do parque de estacionamento quando o telefone do carro tocou. Era Jonathan.
- Kerry - disse ele em voz baixa e tensa -, Robin está com Grace e não sabe que estou a telefonar- te. Não queria que ficasses preocupada. Mas depois de ter adormecido, Robin teve um pesadelo horrível. Acho que devias vir até cá. Têm acontecido demasiadas coisas. Ela precisa de ti.
- Vou já para aí. - Kerry carregou no acelerador e apressou-se a ir ao encontro da filha.
Foi uMA viAGEM longa e desgraçada pela estrada de Nova Jérsia até às Catskills. Uma chuva gelada começou a cair perto de Middletown, e o trânsito arrastava-se lentamente. Eram 9.45 quando um Geoff Dorso cansadíssimo e esfomeado chegou à Esquadra de Ellenville, onde Jason Arnott se encontrava detido.
Algemado, Arnott foi escoltado até à sala de reuniões. Geoff não voltara a ver o homem durante os quase onze anos que tinham passado desde a morte de Suzanne. Examinou-o atentamente. Arnott tinha o rosto um pouco mais cheio do que Geoff recordava, mas continuava com a mesma expressão cortês e enfastiada. As rugas em volta dos olhos sugeriam fadiga, mas a camisola de gola alta de caxemira continuava impecável sob o casaco de tweed. O estilo de senhor rural, de pessoa culta e educada pensou Geoff. Mesmo nestas circunstâncias, desempenha o seu papel.
- É muita bondade sua ter vindo, Geoff - saudou Arnott com ar afável.
- Na verdade, nem sei porque é que estou aqui - replicou Geoff.
- Como lhe disse ao telefone, você agora está relacionado com o caso Reardon. O meu cliente é Skip Reardon. Devo preveni-lo de que nada do que me possa dizer é sujeito a confidencialidade. Eu não sou u seu ad vogado. Repetirei tudo o que me disser ao procurador, porque tenciono tentar provar que você esteve na casa dos Reardons na noite da morte de Suzanne.
- Ah, eu estive lá, estive, e é por isso que o mandei chamar. Tenciono ser testemunha de Skip. Mas em troca, e depois de ele ser ilibado, quero que me defenda a mim. Nessa altura, não haverá qualquer con flito de interesses.
- Ouça - declarou Geoff -, passei dez anos da minha vida a representar um homem inocente que foi condenado à prisão. Se você matou Suzanne ou sabe quem o fez e deixou Skip a apodrecer na cela durante todo este tempo, eu preferia arder no inferno a levantar um dedo para o ajudar.
- Ora aí está, esse é o tipo de determinação que eu pretendo con tratar. - disse Arnott
- Muito bem, então vejamos as coisas desta maneira. sabe quem são os especialistas de defesa mais competentes em processos-crime. Prometa que me arranja o melhor advogado que o dinheiro pode comprar, e eu conto-lhe tudo o que sei acerca da morte de Suzanne Reardon. A propósito, não sou eu o responsável. ..
Jeof olhou-o fixamente por momentos, avaliando a proposta.
- Está bem, mas quero uma declaração assinada e com testemunhas de que qualquer informação que me dê não será confidencial e de que posso usá-la como bem entender para ajudar Skip Reardon.
- Claro.
Uma estenógrafa tomou nota da breve declaração de Arnott. Depois de esta assinada por ele e por duas testemunhas, Jason Arnott perguntou:
- Já pensou no advogado que eu devo ter?
- Sim - respondeu Geoff. - George Symonds, de Trenton. É um excelente advogado em tribunal e um negociador excepcional.
- Eles vão tentar condenar-me por homicídio qualificado na morte de Mrs. Peale. Juro que foi um acidente.
- Se houver alguma maneira de reduzir a acusação para homicídio involuntário, ele descobre-a. Pelo menos não terá de enfrentar a pena de morte.
- Telefone-lhe agora.
Geoff sabia que Symonds vivia em Princeton porque uma vez tinha ido a casa dele jantar. Lembrava- se também de que o telefone de Symonds vinha na lista no nome da mulher. Com o telefone celular, Geoff fez a chamada na presença de Arnott. Eram 10.30.
Dez minutos depois, Geoff guardou o telefone.
- Pronto, já tem um bom advogado. Agora, fale.
- Tive o azar de estar em casa dos Reardons quando Suzanne morreu - começou Arnott, assumindo repentinamente um tom solene.Ela era tão descuidada com as jóias que a tentação foi demasiado grande. Suzanne dissera-me que Skip não estaria em casa nessa noite e que ela tinha um encontro com Jimmy Weeks. Por estranho que pareça, ela estava bastante apaixonada por ele.
- Ele estava lá em casa enquanto você lá esteve?
Arnott abanou a cabeça.
- Não, segundo tinha percebido, ela ia encontrar-se com Jimmy ao princípio da noite. Obviamente, enganei-me. Havia umas luzes acesas no rés-do-chão quando cheguei a casa de Suzanne, mas isso era normal, acendiam-se automaticamente. Das traseiras vi que as janelas do quarto principal estavam abertas. Era uma brincadeira de crianças trepar até lá, porque o telhado da casa, de estilo moderno, vem quase até ao chão.
- Que horas eram nessa altura?
- Eram oito em ponto. Eu ia a caminho de um jantar em Cresskill. Uma das razões para a minha longa e bem-sucedida carreira é que, quase invariavelmente eu tinha condições de apresentar um conjunto extremamente credível de testemunhas do meu paradeiro em determinadas noites.
- Você entrou então dentro de casa - encorajou-o Geoff.
- Sim. Não se ouvia um único barulho, pelo que assumi que todos tinham saído, tal como previsto. Não fazia a mínima ideia de que Suzanne ainda estava lá em baixo. Atravessei a sala da suite do quarto de dormir e dirigi-me à mesa-de-cabeceira. Só tinha visto a moldura de passagem e nunca tivera a certeza se seria um genuíno Fabergé. Peguei
nela e estava a examiná-la quando ouvi a voz de Suzanne a gritar com alguém.
- O que é que dizia?
- Qualquer coisa do género: Tu deste- mas e são minhas. Agora, vai-te embora. Aborreces-me.
Tu deste-mas e são minhas. Referia-se às jóias, pensou Geoff.
- Então, isso deve querer dizer que Jimmy Weeks esteve lá - raciocinou ele.
- Não, não. Eu ouvi um homem gritar:
Tenho de as reaver, mas era uma voz demasiado requintada para ser a de Jimmy Weeks, e não era, de certeza, a do pobre Skip. - Arnott suspirou. - Nessa altura, deixei cair a moldura no bolso quase inconscientemente. Era uma imitação horrível, como acabei por descobrir mais tarde, mas gostei de ficar com a fotografia de Suzanne. Ela era tão divertida! Tenho muitas saudades dela.
- Deixou cair a moldura no bolso - incitou Geoff.
- E apercebi-me, subitamente, de que alguém vinha a subir as escadas. Saltei para dentro do roupeiro de Suzanne e tentei esconder-me por detrás dos vestidos compridos. Mas não fechei a porta completamente.
- Viu quem era?
- Não, a cara não.
- O que é que essa pessoa fez?
- Foi direita ao guarda-jóias, remexeu nas bugigangas de Suzanne e tirou qualquer coisa. Depois, aparentemente, não encontrando tudo o que queria, começou a revistar freneticamente as gavetas. Poucos minutos depois, ou encontrou o que procurava ou desistiu. Felizmente, não procurou nada no roupeiro. Esperei o máximo que pude e depois, consciente de que algo de grave se passava, esgueirei-me até ao rés-do-chão. Foi então que a vi.
- Que jóia é que o assassino de Suzanne tirou da caixa?
- De acordo com o que ouvi em tribunal, deve ter sido o alfinete da flor e do botão. Era realmente uma peça muito bonita.
- Será que a pessoa que deu esse alfimete a Suzanne lhe deu também a pulseira antiga?
- Ah, sim. Estou convencido de que estava a tentar encontrar também a pulseira.
- Sabe quem deu a pulseira e o alfinete a Suzanne?
- Claro que sei. Suzanne tinha poucos segredos para mim. Agora, repare, eu não posso jurar que tenha sido ele quem esteve lá em casa naquela noite, mas faz sentido. O meu testemunho pode ajudar a encontrar o verdadeiro culpado. É por isso que eu sou digno de alguma con sideração, não concorda?
- Mr. Arnott, quem ofereceu a Suzanne a pulseira e o alfinete?
Arnott sorriu.
- Quando eu lhe disser, nem vai acreditar.
KERRY demorou vinte e cinco minutos a chegar a casa dos Hoovers, em Old Tappan. Ao volante, cada curva parecia interminável. Robin, valente Robin, que tentava sempre esconder como estava assustada! finalmente, aquilo tornara-se demasiado para ela. Nunca a devia ter deixado ficar com mais ninguém, pensou Kerry. Nem mesmo com Jonathan e Grace. De agora em diante, eu tomo conta do meu bebé, prometeu Kerry solenemente.
A mãe e o bebé. Lá estava aquela frase outra vez.
Estava a chegar a Old Tappan. Agora, eram só mais uns minutos. Robin mostrara-se tão contente com a perspectiva de ficar com Grace e Jonathan e de ver os álbuns de fotografias.
Os álbuns de fotografias.
Kerry entrou no caminho que conduzia à casa dos Hoovers. Quase inconscientemente, deu-se conta de que as luzes automáticas não se tinham acendido.
Os álbuns de fotografias.
O alfinete da flor e do botão.
Ela já o vira antes. Em Grace.
Há anos atrás, quando Kerry começara a trabalhar para Jonathan, Grace costumava usar jóias. Muitas fotografias do álbum mostravam-na com ele posto. Grace brincara quando Kerry lhe elogiou o alfinete, chamando- lhe a mãe e o bebé. é
Naquela fotografia de jornal, Suzanne Reardon tinha o alfinete de Grace! Isso devia querer dizer... Jonathan? Seria possível ele ter-lho dado?
Lembrava-se agora de que Grace lhe dissera ter pedido a Jonathan que pusesse todas as jóias num cofre do banco.
- Não posso pô-las sem ajuda, não posso tirá-las sem ajuda, e só iria ter preocupações com elas se continuassem cá em casa.
Na noite passada, quando cheguei a casa, disse a Jonathan que pensava que Smith ia acabar por ceder, recordou Kerry. Oh, meu Deus! Ele deve ter matado Smith.
Kerry parou em frente da elegante casa de pedra. Abriu a porta do carro com violência e correu pelas escadas acima.
Robin estava com um assassino.
Kerry não ouviu o toque abafado do telefone do carro no momento em que o seu dedo premiu a campainha.
GEoFF tentou telefonar para casa de Kerry. Como não obteve resposta, tentou o telefone do automóvel. Onde é que ela estaria, perguntou a si próprio, ansioso. Estava a ligar para o escritório de Frank Green quando o guarda levou Arnott embora.
O gabinete do procurador está fechado. Em caso de emergência, ligue. . .
Geoff praguejou enquanto ligava o número de emergência. Robin estava em casa dos Hoovers. Onde estaria Kerry? Finalmente, alguém atendeu a linha de emergência.
- Fala Geoff Dorso. Preciso urgentemente de contactar Frank Green. Tem a ver com um caso de homicídio. Dê-me o número de casa dele.
- Posso dizer-lhe que ele não está lá. Foi chamado por causa de um homicídio em Oradell.
- Consegue pôr-me em contacto com ele?
- Sim, só um momento.
Decorreram uns bons três minutos antes de Green aparecer em linha.
- Geoff, estou no meio de um trabalho. É bom que seja importante.
- É, é muito importante. Tem a ver com o caso Reardon. Frank, Robin Kinellen está a passar a noite em casa de Jonathan Hoover. Acabei de saber que foi Jonathan Hoover quem deu aquela jóia antiga a Suzanne Reardon. Tinha um caso com ela. Penso que é ele o nosso assassino, e Robin está com ele.
Houve uma longa pausa. Depois, em voz inexpressiva, Frank Green declarou:
- Estou em casa de um velhote que é especialista em restauro de jóias antigas. Foi assassinado ao princípio da noite. Não há quaisquer sinais de roubo, mas o filho disse-me que o ficheiro com os nomes dos clientes desapareceu. Vou mandar a polícia local a casa de Hoover imediatamente.
JonAtHanN abriu a porta a Kerry. A casa estava fracamente iluminada e silenciosa.
- Ela já se acalmou - declarou ele. - Está tudo bem.
Os punhos de Kerry estavam escondidos nos bolsos do casaco, cerrados de medo e cólera. Ainda assim, conseguiu sorrir.
- Oh, Jonathan! isto é um grande incómodo para si e para Grace. Eu devia ter adivinhado que Robin estaria assustada. Onde é que ela está?
- Já voltou para o quarto. Está a dormir.
Terei enlouquecido?, interrogou-se Kerry enquanto seguia Jona than pelas escadas acima. Terei deixado que a minha imaginação ficasse descontrolada? Ele parece tão normal.
Chegaram junto da porta do quarto de hóspedes - o quarto cor-de-rosa, como Robin lhe chamava por causa das paredes e dos tecidos rosa-claros. Kerry abriu a porta. À luz de uma pequena lâmpada, viu Robin deitada de lado, com os longos cabelos castanhos espalhados sobre a almofada. Em duas passadas, Kerry estava ao lado da cama.
A face de Robin repousava sobre a palma da mão, e a sua respiração era regular. Kerry olhou para Jonathan. Este estava aos pés da cama, olhando-a fixamente.
- Ela estava muito nervosa. Depois de chegares, decidiste levá-la para casa - disse ele. - Estás a ver... o saco com as roupas para a escola e os livros está pronto. Eu levo-to.
- Jonathan, não houve pesadelo nenhum. Ela não acordou, pois não? - disse Kerry com voz firme.
- Não - corroborou ele com indiferença. - E seria mais fácil para ela não acordar agora. - Na penumbra, Kerry viu que ele empunhava uma pistola.
- Jonathan, o que é que está a fazer? Onde está Grace?
- Grace está a dormir profundamente, Kerry. Foi melhor assim. Por vezes, percebo que é necessário dar-lhe um dos sedativos mais fortes para lhe aliviar a dor. Dissolvo-o no cacau quente que lhe levo todas as noites.
- Jonathan, o que é que pretende?
- Quero continuar a viver exactamente como vivemos agora. Quero ser presidente do Senado e amigo do governador. Quero passar os anos que me restam com a minha mulher, a quem ainda amo verdadeiramente. Por vezes, os homens desorientam-se, Kerry, deixam-se iludir por mulheres jovens e bonitas. Talvez eu estivesse vulnerável por causa do problema de Grace. Sei que foi uma loucura da minha parte; sei que foi um erro. Depois, o que eu queria era apenas reaver as jóias que estupidamente tinha dado a Suzanne Reardon, aquela rapariga ordinária, mas ela não queria separar-se delas.
Agitou o revólver em direcção a Robin.
- Pega nela. Não há tempo a perder.
- Jonathan, o que é que vai fazer?
- Apenas o que tenho de fazer e com grande desgosto. Kerry, Kerry, porque é que achaste que tinhas de lutar contra moinhos de vento? O que é que interessava que Reardon estivesse na prisão? O que é que interessava que o pai de Suzanne tivesse afirmado ser um presente dele a pulseira que podia ter-me incriminado irremediavelmente? Foi o destino que assim o quis. Eu estava destinado a continuar a servir o estado que amo e a viver com a mulher que amo. Já foi castigo suficiente saber que Grace tinha descoberto a minha traição com tanta facilidade.
Jonathan sorriu.
- Ela é realmente maravilhosa. Mostrou-me aquela fotografia no jornal e disse: Não te faz lembrar o meu alfinete da flor e do botão? Estou com vontade de o usar outra vez. Faz-me um favor, vai buscá-lo ao cofre, querido. Ela sabia, e eu sabia que ela sabia, Kerry. E, de repente... senti-me sujo.
- E matou Suzanne.
- Ela não só se recusou terminantemente a devolver-me as jóias da minha mulher, como teve o desplante de me dizer que tinha um novo namorado... Jimmy Weeks. Meu Deus, o homem é um bandido. Um mafioso.
- Mãe. - Robin agitou-se. Os seus olhos abriram-se. Sentou-se.
- Mãe. - Sorriu. - Porque é que está cá?
- Levanta-te, Rob. Vamos embora agora.
Ele vai matar-nos, pensou ela. Rodeou Robin com o braço. Pressentindo que alguma coisa de errado se passava, Robin encolheu-se de encontro a ela.
- Mãe?
- Está tudo bem - sossegou-a Kerry.
- Tio Jonathan? - Robin tinha visto a arma.
- Não digas mais nada, Robin - disse Kerry baixinho.
Que posso eu fazer?, pensou ela. Ele está louco. Está descontrolado. Se ao menos Geoff não tivesse ido falar com Jason Arnott... Geoff teria ajudado. De um modo qualquer, Geoff teria ajudado.
Ao descerem as escadas, Jonathan disse em voz baixa:
- Dá-me as chaves do teu carro, Kerry. Eu sigo-vos até lá fora, e então tu e Robin entram para o porta-bagagem.
Oh, meu Deus, pensou Kerry. Ele vai matar-nos, leva-nos até um sítio qualquer e abandona o carro, e vai parecer que se tratou de um homicídio da Mafia. Será atribuído a Jimmy Weeks.
Ao atravessarem o vestíbulo, Jonathan falou de novo:
- Lamento muito, Robin. Kerry, agora abre a porta devagar.
Kerry inclinou-se para beijar Robin e murmurou-lhe:
- Rob, quando eu me voltar, tu foges. Corre para os vizinhos e não pares de gritar.
- A porta, Kerry - insistiu Jonathan.
Lentamente, ela abriu-a. Jonathan apagara as luzes do pórtico, portanto a única iluminação provinha da luz ténue do candeeiro ao fundo do caminho.
- As chaves estão no bolso - disse ela.
Deu uma volta e gritou:
- Foge, Robin !
Ao mesmo tempo lançou-se para dentro do vestíbulo em direcção a Jonathan. Ouviu o disparo da arma no momento em que se arremessava de encontro a ele, depois sentiu uma dor abrasadora de um dos lados da cabeça, seguida de vertigens. O chão de mármore do vestíbulo precipitou- se ao seu encontro. A sua volta, apercebeu-se de um ruído desagradável: outro tiro. Robin gritando por socorro, a sua voz dissipando-se na distância. Sirenes que se aproximavam.
Depois, subitamente, a exclamação desalentada de Grace:
- Perdoa-me, Jonathan. Não podia permitir que o fizesses - gemeu ela. - A Kerry e a Robin, não.
Kerry conseguiu soerguer-se e apertar a mão de encontro à cabeça. O sangue corria-lhe pelo rosto, mas as tonturas estavam a diminuir. Ao olhar para cima, viu Grace escorregar da cadeira de rodas para o chão, deixar cair a pistola dos dedos deformados e tomar nos braços o corpo do marido.
A SALA DO TRIBUNAL estava apinhada para a cerimónia de juramento de Kerry McGrath. O vozear festivo transformou-se em completo silêncio quando a porta da sala de audiências se abriu e uma procissão solene de juízes, com as suas togas pretas, entrou para dar as boasvindas à nova colega.
Kerry aproximou-se muito calmamente, vinda de uma zona lateral da sala de audiências, e ocupou o seu lugar situado do lado direito da bancada dos juízes, enquanto estes, por sua vez, se encaminhavam para as cadeiras que lhes estavam reservadas, de frente para todos os convidados.
Ela percorreu a assembleia com o olhar. A mãe e o padrasto tinham vindo expressamente de avião do Colorado para assistirem à cerimónia. Estavam sentados com Robin, muito direita na borda da cadeira, com os olhos arregalados de excitação. Já quase não havia vestígios dos ferimentos que as tinham conduzido àquele encontro fatídico com o Dr. Smith.
Geoff estava na fila seguinte com os pais. Kerry lembrou-se de como ele embarcara apressadamente no helicóptero do FBI para ir ter com ela ao hospital, como conseguira acalmar o nervosismo de Robin, levando-a depois para junto da sua família quando o médico insistira para que ela passasse a noite no hospital. Naquele momento, Kerry conteve as lágrimas ao ver o significado da expressão de Geoff quando ele lhe sorriu.
Kerry pensou em Jonathan e Grace. Eles também tinham planeado estar presentes. Grace mandara-lhe um cartão.
Vou voltar para a Carolina do Sul e viver com a minha irmã. Responsabilizo-me a mim própria pelo que aconteceu. Eu sabia que Jona than estava envolvido com aquela mulher. Também sabia que não ia durar. Se ao menos eu tivesse ignorado aquela fotografia em que ela estava com o meu alfinete, nada disto teria acontecido. Eu não estava preocupada com ajóia. Aquela foi a minha forma de avisar Jonathan de que a deixasse. Por favor, perdoa-me, e perdoa a Jonathan, se fores capaz.
SEREI CAPAZ?, pensou Kerry. Grace salvou-me a vida, mas Jonathan ter-me-ia morto e a Robin para se salvar a ele. Grace sabia que Jonathan estivera envolvido com Suzanne e que podia até ter sido o seu assassino, e, no entanto, deixara Skip apodrecer na prisão durante todos aqueles anos.
Skip a mãe e Beth estavam algures no meio da multidão. Skip e Beth tinham o casamento marcado para a semana seguinte; Geoff ia ser o padrinho.
Era costume alguns amigos mais íntimos ou colegas de trabalho proferirem algumas palavras antes do juramento. Frank Green foi o primeiro.
- Buscando na minha memória, não consigo imaginar outra pessoa, homem ou mulher, que esteja mais à altura de assumir este prestigiado cargo do que Kerry McGrath. O seu sentido de justiça levou-a a pedir-me a reabertura de um processo de homicídio. Juntos, vimo-nos perante o facto aterrador de um pai vingativo ter condenado à prisão o marido da filha, enquanto o verdadeiro assassino gozava a sua liberdade.
Nós... Ele é assim mesmo", pensou Kerry. Dar a volta por cima. Mas, em última análise, Frank tinha-a apoiado. Tinha-se encontrado pessoalmente com o governador e insistido para que o nome dela fosse apresentado ao Senado para aprovação.
Tinha sido Frank quem esclarecera a ligação de Jimmy Weeks a Suzanne Reardon. Uma das suas fontes, um marginal de segunda ordem que servira de moço de recados a Jimmy, fornecera a resposta. Suzanne tinha efectivamente estado envolvida com Jimmy, e ele oferecera-lhe jóias. Também lhe enviara rosas naquela noite e estava combinado encontrar-se com ela para jantar. Ao ver que ela não aparecia, ficara furioso e, descontrolado pela bebida, chegara a afirmar que a mataria. Como Weeks não era dado a ameaças vãs, alguns dos seus homens chegaram a pensar que ele tinha sido realmente o assassino. Ele sempre receara que, se a sua ligação com ela viesse a lume, a autoria da morte dela lhe fosse atribuída.
Agora, era o juiz que iria empossá-la que estava a discursar, comentando que, quando Kerry viera pela primeira vez ao tribunal, há dez anos atrás, recém-nomeada delegada do procurador, lhe parecera tão jovem que ele pensara que se tratava de uma estudante num emprego de férias.
Era recém-casada também, pensou Kerry amargamente. Bob ainda era delegado do procurador nessa altura. Só espero que ele tenha juízo suficiente para se manter afastado de Jimmy Weeks e dos da sua laia de agora em diante, reflectiu ela. Weeks fora considerado culpado de todas as acusações. Agora, tinha pela frente outro processo por suborno a um jurado, e Bob escapara por pouco de ser acusado também. Talvez tudo aquilo atemorizasse Bob antes que fosse demasiado tarde.
O juiz McDonough estava a sorrir-lhe.
- Bem, Kerry, penso que é chegada a altura - anunciou ele.
Robin avançou, transportando a Bíblia. Kerry levantou a mão direita, pousou a esquerda sobre a Bíblia e disse, repetindo as palavras do juiz McDonough:
- Eu, Kerry McGrath, juro solenemente...
Está uma esplêndida tarde de Primavera e Mary Higgins Clark acaba de chegar de uma estafante sessão de quatro horas de autógrafos. Se ela está exausta, não o dá a entender. Detém-se por momentos a mostrar a um visitante a vista deslumbrante do terraço do seu apartamento num décimo sexto andar de Manhattan. Depois, instala-se para conversarmos um pouco sobre o seu último romance.
Mary Higgins Clark explica que ela e Michael Korda, o seu editor de há longa data na Simon & Schuster - ele próprio um conceituado romancista - têm uma tradição.
- Sempre que eu acabo um livro, Michael dá-me cerca de uma semana de férias; depois, convida-me para jantar para discutirmos o próximo.
No caso de Deixa-me Chamar-te Meu Amor, foi Korda quem sugeriu que ela escrevesse sobre um cirurgião plástico. E foi logo ali, no restaurante, que ela começou a delinear a história.
- A palavra mágica nos livros policiais é suponhamos" - prossegue a autora. - Perguntei a mim própria: suponhamos que um cirurgião anda a reproduzir o mesmo rosto em várias mulheres. Porque é que ele o faz?
As suposições de Mary Higgins Clark conduziram-na a uma cadeia ininterrupta de catorze best sellers, bem como à presidência da associação Mystery Writers of America, a um doutoramento honoris causa pela Universidade de Villanova e até mesmo ao Grande Prémio Francês de Literatura Policial. E, no meio de tudo isso, um sem-número de sessões de autógrafos!
Mary Higgins Clark
O melhor da literatura para todos os gostos e idades