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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DELICIOSA MENTIRA / Max du Veuzit
DELICIOSA MENTIRA / Max du Veuzit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DELICIOSA MENTIRA

 

Embalado pela cadência contínua do trepidar do comboio, Norberto Chantal meditava.

A partida de Paris fora brusca e inesperada. Por vezes, os acontecimentos precipitam-se por tal forma que destroem os planos mais bem arquitectados.

Nunca encarara a possibilidade de, aos vinte e seis anos, ser obrigado a trabalhar, a deixar a França, a expatriar-se para ir ganhar a vida longe dos seus.

O pai sempre lhe parecera um industrial bem cotado na praça de Paris, e tinha sido precisa a terrível crise do excesso de produção, que atingia naquele momento todos os países, para comprometer uma situação tão solidamente estabelecida.

Até então, o pai provera a todas as suas despesas. Depois dos estudos, que levara até à filosofia, depois do Regimento, onde permanecera quinze meses no posto de alferes, sempre esperara poder seguir sem obstáculos a carreira das letras. Sonhava ser escritor. Os artigos e temas de romances fervilhavam-lhe no cérebro. Calculava ter diante de si úm brillhante futuro e de repente o edífício tão bem construído ruía como um castelo de cartas.

Recordava ainda a conversa que tivera com o pai, no vasto escritório de pesada mobília de carvalho escuro e donde este dirigia toda a fábrica; evocava o querido rosto paterno, pálido e abatido pelas preocupações que constantemente o assaltavam, pelas horas difíceis, pelas noites de insónia e ouvia a voz austera e um pouco angustiada do industrial expor-lhe a situação.

Esta, se não era ainda desesperada, era grave. O pai mostrara-lhe primeiro números que falavam claro.

-Não tenho contas a dar-te, meu querido Norberto, mas julgo que é meu dever, antes de mais nada, demonstrar-te a imperiosa necessidade em que me vejo de contrariar as tuas aspirações.

E patenteava-lhe colunas e colunas de algarismos. esse pobre trabalho que durante dias e noites inteiras organizara para ele; balanço formidável onde as verbas em débito anunciavam a derrocada.

- Como vês - concluiu - a casa pode lutar ainda. Tem elementos para resistir, valendo-se de todos os seus recursos, cingindo-se à mais estricta economia, abstendo-se de qualquer despesa inútil. reduzindo o pessoal e vivendo o mais possível das mercadorias acumuladas. Compreendes agora? Além disso, dificuldades que ùltimamente surgiram impedem-me de continuar a fabricar como antigamente. Ora uma casa que paralisou o fabrico e vive apenas das reservas, está fatalmente condenada a morrer. Quanto tempo me poderei manter, ainda não to sei dizer. Dou-te a minha palavra Noxberto, que lutarei até ao fim e com todas as minhas forças, para te conservar este património que vem de teu avô e do qual me considero simples depositário. Pelo teu lado, meu filho queres ajudar-me, tentando ganhar a tua vida?

Conseguirás. És instruído e tens talento, talvez.

Conseguirás arranjar o suficiente para te manteres? Seria para mim uma grande preocupação de menos se soubesse a tua existência garantida por um trabalho bem remunerado. Desejaria tanto que tua mãe não chegasse a sofrer privações e que tua irmã ignorasse sempre o lado trágico

da nossa situação!

- Está combinado, pai - respondera NorbertoAsseguro- lhe que não terá de se apoquentar mais por minhha causa. Vou procurar emprego, o que, de resto, me será fácil; tenho conhecimentos, relações, utilizarei uns e outras e verá que sairemos vencedores da situação.

Pronunciara estas palavras com afectuosa despreocupação. Queria sossegar o pai, que adorava e mostrar-lhe que era tão forte e corajoso como ele.

Mas intimamente estava aniquilado! Ruíra todo o belo edifício das suas esperanças literárias! Na sua vida fácil de rapaz rico, que gasta sem contar, que ignora as aflições dum fim de mês sem dinheiro, nunca pudera supor que chegasse um dia em que se visse obrigado a trabalhar para viver.

De súbito, a ave vagabunda da sua fantasia exaltava de ideais e sonhando êxitos fáceis de atingir, tombara a seus pés, inanimada. agonizante. E esse golpe deixava-o como que desamparado!

Via o seu futuro destruído. Para comer e ocorrer a todas as despesas, teria que trabalhar, sujeitar-se a um emprego regular, submeter a inteligência e a vontade às exigências de outrem!

Encontrou, porém, o olhar do pai, onde se avivou de súbito um clarão de esperança. Naquele rosto de feições fatigadas e transtornadas, a bondade e indulgência paternal prevaleciam apesar de tudo. Norberto pensou na mãe, no que seria para ela a revelação da ruína. por tal forma inesperada. tão imprevista, na verdade!

Então envergonhou-se das suas hesitações. Sentiu-se no o em toda a acepção da palavra. e quis ser homem de acção.

-Não se apoquente mais comigo, pai. Agora, compete-me ajudá-lo. e conto consegui-lo. Em todo o caso, a partir de hoje não quero continuar a ser um encargo para si.

E fora a seguir a esta conversa que Norberto Santal tinha partido.

Deixava a França.

Um amigo conseguira-lhe um lugar de preceptor, lugar que ia desempenhar na Dylvânia, em casa dum velho aristocrata da Galícia, o Conde de Uskow, grande amigo da França e que não desejava entregar a educação de seu filho único senão a um francês.

Estava-se na primavera. O comboio rodava em território alemão. As florestas sucediam-se às planícies férteis, respirando frescura. Não obstante o facciosismo de que em geral enfermam todos os franceses, Norberto admirava o trabalho metódico dos alemães, que sabem valorizar os mais pequenos recantos e tirar partido dos terrenos menos produtivos.

Contudo, apesar do interesse da viagem e da novidade do cenário, um pouco de melancolia velava a alma de Chantal.

Recordava o momento em que se separara da mãe. Com que ternura a mãezinha adorada o estreitara nos braços!

Contemplava com orgulho aquele belo rapaz cujo entusiasmo lhe causava admiração. Não tinha ele afirmado que partia porque desejava conhecer a Europa Central? E assim, ela despedira-se sorrindo, na esperança dum rápido regresso.

A irmã fizera Norberto acreditar também que só a sua sede de aventuras, de novas paisagens e de estudos sociais o atraíam à Dylvânia.

As duas mulheres, julgando tratar-se de uma separação relativamente curta, haviam ocultado o seu pesar. Norberto beijara-as com o habitual carinho, mais demoradamente talvez, para gravar bem no seu ser toda a quente ternura daquelas duas afeições.

E em seguida partira. para a sua nova vida. essa vida de assalariado às ordens dum patrão que desconhecia por completo.

As despesas de viagem haviam sido pagas pelo Conde de Uskow, que demonstrara, naquela circunstância e em todos os seus actos, a maior generosidade. O ordenado era mais do que suficiente e livre de qualquer encargo, visto Norberto dever comer com os donos da casa e partilhar inteiramente a sua vida.

Assim, feitas as contas e passado o balanço, tanto às futuras despesas como às futuras receitas, calculava poder ajudar o pai às ocultas da mãe, sem que por isso fosse obrigado a restringir-se.

Evidentemente, compreendia-o bem, as poucas notas de cem francos enviadas para casa seriam uma gota de água nas finanças do industrial; mas pensava também que essas pequenas somas chegariam talvez para pagar um pouco do supérfluo para a mãe e esse pensamento galvanizava-o e incitava-o às maiores economias.

A separação de Maud Glory, a gentil artista, fora para ele um pouco mais dolorosa.

É que Maud Glory era bonita, na verdade! Possuía todas as qualidades indispensáveis para lisonjear a vaidade áum homem, e ainda a graça e a meiguice duma mulher apaixonada.

Ainda que, até aquele dia, tivesse mantido completamente a sua encantadora companheira, não deixava por isso de ter no seu íntimo a incerteza de ser amado por si próprio; mas as saudades da gentil cabecita de vento que, na véspera, na estação de Leste, chorara sentidamente, encostada ao seu ombro, aumentavam a tristeza nostálgica áo seu espírito.

Quando chegou a Khéta, ponto do seu destino, tentou em vão fazer-se compreender pelos empregados da estação. Nenhum deles falava francés, o que era natural.

Escreveu num papel o nome e a direcção do Conde de Uskow e dispunha-se a utilizar um dos carros de aluguer alinhados no largo, para o conduzir à morada nele indicada, quando a sua hesitação foi notada por um camponês, que observava com atenção todos os viajantes que saíam. O homem dirigiu-se-lhe e esboçou um cumprimento. Depois, sem pronunciar palavra, estendeu-lhe um sobrescrito, apontando a direcção.

Norberto leu o seu nome. A carta era para ele. Continha um bilhete áo Conde de Uskow dizendo-lhe que podia confiar inteiramente no homem que lhe enviava para o conduzir a seus domínios.

Seguiu, portanto, o desconhecido, tendo primeiro conseguido fazer-lhe compreender, por gestos, que trazia bagagens consigo.

O homem indicou-lhe um automóvel, bem conservado, mas de modelo antigo e que devia ter sido construído, pelo menos, havia vinte anos.

Aquele remoto exemplar da indústria automobilista fez sorrir Norberto, habituado a ver em Paris os mais luxuosos veículos.

Logo que as bagagens se encontraram instaladas no carro, ao lado do motorista, puseram-se a caminho.

Saindo de Kétha, a estrada cortava pelo vale bem cultivado, com as suas niés (aldeias) alcandoradas pelas margens, em declives, do Un, que correndo em múltiplos meandros, banhava aquele fértil cantinho da Dylvânia.

As montanhas dos Cárpatos desenrolavam-se no horizonte e o carro parecia dirigir-se para os seus cumes toucados de neve.

Muitas horas depois, deixando para trás Bonuk, tomaram pela estrada que um pouco mais adiante, transpunha a garganta de Kino.

A medida que avançavam, o aspecto da paisagem apresentava-se cada vez mais selvático; atravessavam grandes florestas de pinheiros, carvalhos, onde rareavam as habitações. A viagem durou quase todo o dia e só à tarde atingiram Trzy-Krôl.

A moradia, pesada, construída com a pedra escura da região, parecia enorme. Não tinha estilo definido, mas as grossas paredes e as pequenas, mas numerosas janelas, davam-lhe a aparência duma habitação prin cipesca, mormente naquela região inculta onde a alvenaria era um luxo.

E, conquanto Norberto tivesse a impressão de estar contemplando uma prisão e não um castelo, depois de ter visto, pelo caminho, tanto casebre de madeira ou de terra amassada, compreendeu que a casa do Conde de Uskow personificasse no país a luxuosa moradia dum fidalgo dylvaniano.

Como a sua mútua incompreensão o impedia de pedir e obter qualquer informação, não trocou palavra com o motorista.

Norberto contava encontrar, à chegada, alguém com quem pudesse entender-se e que o conduzisse junto do castelão que o devia esperar.

Ficou, portanto, desapontado e ao mesmo tempo divertido com a recepção que teve.

Logo que o carro parou, apareceu à porta uma mulher de certa idade, uma criada, sem dúvida, mas que devia desempenhar funções de confiança.

Vestia blusa de fazenda escocesa, cingida por um cinto de cabedal vermelho e calçava grossos sapatos de pele, com fitas entrelaçadas que apertavam as meias até aos joelhos. Com a cabeça coberta por um boné também de pele, a mulherzinha era verdadeiramente pitoresca, tanto pelo trajo invernoso como pelas proporções do corpo que lhe davam o aspecto dum tonel ambulante.

Muito calada, viu-o descer do automóvel, mas, quando todas as bagagens acabaram de ser descarregadas, saudou-o com acolhedor gesto e fez-lhe sinal para que a seguisse.

Guiado por ela, subiu uma escada de madeira que desde a sua construção não devia ter tomado conhecimento com a escova e o sabão, sendo varrida, por muito favor, uma ou duas vezes por ano. Por um corredor bastante comprido e para o qual abriam numerosas portas, conduziu- o até um dos extremos da vasta moradia.

A criada empurrou, então, o batente duma portazinha apertada e baixa, que dava acesso a enorme aposento.

No meio deste, um leito de acaju indicava que estava destinado a quarto de dormir.

Era uma destas camas estreitas que o Segundo Império tornou vulgares em França e que ainda hoje ornamentam muitas casas provincianas.

Estava guarnecida com lençóis e cobertores, o que devia constituir um luxo naquele país, onde a maior parte das vezes se dorme em bancos encostados às paredes.

Havia ainda no quarto algumas cadeiras rústicas, mesa e, provàvelmente, como expressão máxima do conforto moderno, em cima dum caixote, ao canto do aposento, uma bacia e um jarro cheio de água.

Norberto sorriu.

Aquela mobília primitiva deu novo encanto à instalação. Lembrou-se imediatamente da quantidade de objectos que disporia no quarto: as almofadas aninhadas nas cadeiras, para as tornar mais cómodas, a toalha branca e macia que desdobraria en cima do rudimentar lavatório, os retratos que sorririam de cima da pedra do fogão, agora nua, os quadros que disporia nas paredes, os livros que se alinhariam em prateleiras... etc... etc

A criada fez-lhe compreender por gesto que lhe iam trazer as malas, e, de facto logo a seguir, dois homens entravam com elas e depuseram-nas a um canto.

Reparou, então, que naquele quarto pitoresco, mas sem estilo, existia ainda um riquíssimo armário, artisticamente esculpido em madeira maciça, todo ele trabalhado à mão por qualquer artista de talento, armário que era verdadeira maravilha e no qual Norberto arrumou a roupa com respeito quase religioso.

A mulher ajudava-o, sempre em silêncio. Com uma espécie de curiosidade admirava as camisas e tomava o peso aos fatos, parecendo achá-los extremamente leves. Com alegre sorriso, apontou-lhe a sua blusa forrada de pele e fez-lhe compreender que os leves trajos que usava em França não bastariam ali para o defen der do frio.

Norbrto percebeu o que a sua mímica queria dizer e como resposta indicou-lhe o sobretudo que trouxera na bagagem; ela, porém, tornou a abanar a cabeça e, continuando sempre a apontar-lhe os seus abafos, tentou fazer-lhe compreender que, naquele cantinho dos Cárpatos, impossível se tornava viver sem se andar confortàvelmente vestido.

- Mandarei vir de Paris o que me faltar - volveu - ou irei comprá-los a Kétha, à vossa capital.

Depois pediu para ver o Conde de Uskow. Teve de repetir o nome várias vezes. A sua companheira parecia não o compreender; sorria sem responder e continuava a arranjar o quarto com toda a impassibilidade.

Quando acabou, apontou-lhe a cama, querendo assim dizer-lhe que já podia descansar se quisesse.

Depois, indicou-lhe com os dedos o número cinco, do que Norberto depreendeu que o Conde de Uskow o receberia a essa hora.

A falta de melhor, Norberto decidiu-se a seguir o silencioso conselho. Arrependeu-se, porém.

Com ar desconsolado, olhou primeiro para a cama, depois para a parede e finalmente agitou negativamente a cabeça. Indicando a boca, fez-lhe compreender que tinha vontade de comer e que não pensava em dormir antes de ter restaurado as forças.

Esta mímica pareceu divertir a mulherzinha. Conduziu o rapaz a uma sala do rés-do-chão e serviu-lhe sopa, creme e pão de centeio que o nosso amigo comeu com apetite.

- Que casa tão original - pensou - O seu dono não aparece a receber os hóspedes e estes, depois duma fatigante viagem em automóvel, que durou sete horas, ainda são obrigados a declararem que têm fome, para lhes darem de comer!

Felizmente, o pão estava mole, o creme delicioso e depois da frugal refeição, Norberto recuperou todo o seu bom humor.

-Uma mudança como esta é quase uma viagem de descoberta. E ainda há quem vá aos confins da África ou da Ásia procurar sensações extraordinárias, quando as poderia encontrar bem mais perto nas regiõns quase inexploradas da Europa! Quem tal poderia supor, na verdade! Tenho a impressão de estar a milhares de léguas de Paris e de todo o mundo civilizado. Para compensar a ausência total de conforto, terei abundância de pitoresco e de inédito. Vou escrever as minhas aventuras e coleccionarei assim belas recordações para o futuro.

Quando deram cinco horas, Norberto Chantal foi introduzido no aposento onde o aguardava o Conde de Uskow, uma espécie de escritório, fracamente iluminado por três estreitas janelas e com mobília riquíssima, mas um tanto severa. Na penumbra avistou o castelão de Trzy-Krôl.

Baixinho, de olhar extremamente vivo, cobria-lhe metade do rosto úma barba grisalha. Era magro, de aparência doentia e a mão fina, de unhas compridas e bem tratadas, indicava a distinção do seu nascimento.

- Bom-dia, meu caro senhor - cumprimentou à entrada de Norberto.

E esta frase acolhedora, dita em francês, soou agradàvelmente ao ouvido do pobre exilado, que havia quarenta e oito horas não ouvia falar a sua língua natal.

-E que tal, a viagem? Boa?

A cordial recepção dispôs bem o rapaz. Sentado em frente do Conde de Uskow teve de responder às perguntas que este lhe fazia, sobre o seu nome, idade, relações, e ainda a respeito da França, de Paris, sobre a sua política e até sobre os homens de Estado franceses, cujos nomes citava com grande desembaraço.

O castelão parecia tanto ou mais ao facto da vida francesa, do que qualquer habitante das províncias de França.

O constrangimento que dominava Norberto desde a sua chegada a Trzy-Krôl dissipou-se por completo.

Para responder às múltiplas perguntas daquele homenzinho vivo e conversador, recuperou o costumado bom humor.

Até ali a conversa incidira sobre generalidades dum interesse medíocre e, contudo, o olhar em extremu penetrante do Conde de Uskow procurava descobrir na fisionomia e na voz de Norberto, mais ainda do que nas suas palavras, o que seriam as opiniões, ideias, e principalmente, o carácter do recém-chegado.

Este respondia com a naturalidáde própria dum homem de sociedade e com a ponderação dum espírito cultivado e reflectido. A impressão do seu interlocutor

foi sem dúvvida excelente, porque quase logo o castelão terminou a conversa.

- Estou convencido, caro senhor, de que só tenho a felicitar-me por lhe ter confiado a educação de meu filho; possui os diplomas necessários, e, o que para

mim é o principal, parece possuir já, não obstante a sua pouca idade, experiência da vida.

- Paris é uma espécie de estufa onde os cérebros sazonam precocemente.

- É que desejo, principalmente - continuou o conde - desejo mesmo essencialmente que o preceptor de meu filho seja um homem. percebe?. Um homem na verdadeira acepção da palavra.

Calou-se, pensativo, quase preocupado, a testa vincada por funda ruga.

Não tinha até ali feito qualquer alusão às funções que Chantal iria desempenhar. De súbito entrou abertamente no assunto:

-O senhor vem para dirigir a educação de meu filho Frederico. O pequeno precisa de ter a seu lado um companheiro enérgico. precisa mesmo muito! Não porque tenha qualquer coisa a censurar-lhe sob o ponto de vista dos estudos. Estou satisfeito com ele. É inteligente e para a idade está bastante adiantado. Mesmo um filho meú nunca poderia estar intelectualmente em atraso. longe disso. Há, porém, uma outra coisa que me preocupa.

O Conde de Uskow hesitou mais uma vez. Dáva a impressão de que, tendo no coração um peso enorme, sentia pudor em revelá-lo. Mesmo humilhação. Ou quem sabe se até vergonha!

Enfim, como acontece muitas vezes em casos semelhantes, desabafou de súbito e com uma espécie de raiva concentrada, que deixou Chantal assombrado, pronunciando estas palavras:

- Um garoto insignificante. Um enfezado, quase um aleijado! Diga-me o senhor, isto é coisa que se possa admitir?

Ah! sim. Norberto admitia perfeitamente que o senhor Conde de Uskow, aquele anão quase disforme que tinha na sua frente, não pudesse gerar senão um filho fraco e doente!

O contrário tê-lo-ia surprendido. Mas abstinha-se, é claro, de transmitir estas reflexões àquele pai visivelmene ulcerado.

Entretanto, este último, não esperando, de facto, qualquer resposta, prosseguiu o doloroso monólogo:

-De resto, vai já vê-lo; não é feio, evidentemente. não posso dizer que seja feio. mas tão fraco, tão delicadinho! Ombros estreitos. braços sem bíceps. nada de músculos. nada de energia. Uma verdadeira menina! É triste dizê-lo!

- É talvez muito novinho - ousou NorbertoPode ainda desenvolver-se.

- Muito novo! Vai fazer dezoito anos - ripostou o conde com vivacidade - Eu bem sei que nessa idade nem sempre o desenvolvimento atingiu os seus limites e que o esqueleto pode ainda completar a sua ossificação. Mas a estatura, essa deve já ter atingido a altura normal, com pequena diferença de alguns centímetros! E ainda mesmo que meu filho cresça esses centímetros, nunca deixará de ser um homem baixo. Além disso - e o que é pior - Frederico é tímido, medroso e cobarde.

Encarou Norberto, que o escutava em silêncio, sem deixar perceber as suas impressões.

Mas o conde não precisava de aprovações.

-Decidi, portanto, colocar junto de meu filho um preceptor que seja, ao mesmo tempo, um inspirador de energia moral e um professor de cultura física. Desejo que combata a sua fraqueza por todos os meios ao seu alcance. Quero que desperte nele tendências pelos jogos violentos. É preciso transformar o garoto franzino que ele é, num homem viril. a sua hesitação em energia. a timidez silenciosa em ruidosa alegria.

Chantal aprovou com a cabeça. Até ali a sua tarefa parecia-lhe fácil de cumprir. Com doçura, revestida de firmeza, pode encorajar-se um tímido e convencer um medroso de que os seus temores não têm razão de existir.

Entretanto, o conde de Uskow prosseguia, a fisionomia animada pela cólera:

- Não posso admitir que um filho meu, o representante duma ininterrupta estirpe de dylvanianos fortes e impetuosos, seja um ente débil e sem vigor. um nervoso que desmaie quando vê matar uma galinha e que treme quando de noite uiva um cão!

Calou-se, sufocado pela cólera.

- Parece maldição! - continuou, depois de ter aspirado fortemente o ar duas ou três vezes -. É humilhante para o meu orgulho de pai ter um filho assim! O carácter da mãe, exactamente! E quando se é, como eu, autor etnógrafo, e quando já se escreveram quarenta e três volumes sobre as diversas raças que povoam a terra, é doloroso verificar que o nosso descendente é um pigmeu e um cobarde!

Mais uma vez Norberto sentiu o enorme desejo de fazer notar àquele pai - que desabafava o seu rancor e humilhação por forma tão colérica - que sendo ele próprio tão baixo e de débil constituição, nunca poderia ter gerado um gigante!

Não pôde também deixar de notar que entre as teorias escritas do sábio e as observações que exprimia verbalmente, existia flagrante contradição.

O conde, porém, como se quisesse responder aos secretos comentários de Norberto, prosseguiu:

- Todos os meus antepassados eram de alta estatura e de sólida construção! Por uma fatalidade inexplicável, a minha infância foi pouco saudável e, contràriamente a todos os meus, que gozavam excelente saúde, o meu desenvolvimento deixou muito a desejar. Foi para mim um enorme desgosto ficar assim, baixinho. e toda a minha vida tenho sofrido este súplício reconhecer que o meu cérebro brilhante, a minha vasta inteligência, estão encerrados num corpo irrisório, pequeno e indigno deles.

Os lábios vincaram-se num ricto de amargura. Não obstante o belo desprendimento, cheio de filosofia, não obstante o orgulho provocado pela sua superioridade intelectual, sentia-se a existência da chaga sempre viva que envenenara e amesquinhara a vida inteira daquele homem.

- Se a minha fama de sábio me tornou grande - acrescentou com azedume - ao menos os meus contemporâneos não podem zombar da minha estatura, visto que me isolei em Trzy-Krôl, donde apenas saio quando os meus trabalhos o exigem.

Norberto contemplara com certa inquietação aquele extraordinário ente que podia admitir tal reclusão.

Por momentos perguntou a si próprio se não se trataria dum macabro gracejo. Mas não, o conde de Uskow falava a sério; as feições contraídas, os olhos brilhantes, tinham uma expressão de verdadeira maldade, dessa maldade amarga e consciente, peculiar a certos homens concentrados e de constituição enfezada.

Depois de novas aspirações, com as quais o castelão parecia renovar as suas energias nervosas, continuou no mesmo tom desiludido:

-E fique o senhor sabendo. Para não correr o risco de ter um filho de tão exígua estatura como a que me coubera em sorte, casei com uma mulher que tinha mais trinta centímetros de altura do que eu. Era boa pessoa, um tanto primitiva, mas de estatura imponente. Não exigia dela senão que me desse descendentes dignos do nosso nome e dos nossos antepassados. E finalmente deu-me Frederico. que é ainda mais fraco do que eu. Felizmente que ela teve a boa ideia de morrer poucos dias depois do nascimento do filho. Fez bem, porque nunca lhe teria perdoado a partida que me pregou!

Chantal ouvia-o assombrado e experimentando verdadeira sensação de mal-estar.

Que drama obscuro se desenrolara na singular moradia, perdida naquela longínqua e selvática região dos Cárpatos!

O rapaz encontrara na sua vida muitos originais, mas parecia-lhe que nenhum se comparava ao dono de Trzy-Krôl. Calculava também quanto a criança teria sofrido com a má vontade e com as exigências deste excêntrico. E no fim de toda esta história de estaturas baixas e de pessoas fracas, perguntava a si próprio qual o papel que lhe destinariam, a ele, Norberto. E sem aspereza, mas por forma clara, emitiu a pergunta.

- Oh, o meu caro senhor - respondeu o condeprocurará fazer de Frederico um homem. Não lhe peço mais nada. Bem sei que não pode puxar-lhe pelos pés, esticá-lo para o tornar mais alto! Mas, ao menos, dê-lhe um carácter belicoso. Que goste da caça, dos desportos e jogos violentos. e isso para mim já será alguma coisa. Prefiro que ele seja um selvagem, gostando de brigar, de dar e levar socos, de ver sangue, que me apareça cheio de contusões, do que continue sendo o adolescente tímido, sonhador, entregue a leituras românticas.

Chantal a custo dominava o espanto que lhe causava tal programa.

Era tão raro um homem desejar transformar um filho dócil e meigo num impetuoso e indisciplinado!

Que vida teria sido a daquele rapaz de dezoito anos, junto de semelhante pai?

Cheio de compaixão pelo futuro aluno, Norberto ficou calado, entregue a bem pouco alegres pensamentos.

De resto, que resposta daria às últimas palavras do conde? Felizmente, este dizia o que tinha a dizer, sem se importar com o que lhe poderiam objectar.

-Foi justamente por causa da direcção que eu pretendia dar à educação de Frederico que, antes de lhe dizer para vir, desejei saber se gostava de desporto e qual o seu carácter. O meu amigo, o filósofo Marsot, deu- me informações suficientes. Peço-lhe que em vez de cultivar no coração de meu filho a flor azul da sentimentalidade, desperte nele todos os ímpetos cavalheirescos que eu desejo vê-lo possuir. Com os diabos, faça-me dele um homem e pelo amor de Deus transforme aquela doce pomba em abutre. Está compreendido?

Por uma instintiva piedade pela criança cuja educação lhe ia ser confiada, Norberto aparentou aceitar imediatamente os pontos de vista do conde.

-Farei todo o possível para satisfazer os seus desejos - prometeu - Não é difícil modificar o carácter dum rapaz tão novo como seu filho. Será fácil, quer com exercícios quotidianos, quer com conselhos, despertar nele o sentimento da coragem e do arrojo.

-Que ele, quando tiver uma espada na mão, a saiba manejar. Que saiba montar um cavalo fogoso e dominá-lo. Deite-o à água para que aprenda a lutar durante uma hora com os elementos. Desarticule-o, se tanto for preciso, mas não consinta que contemple o céu azul ou se preocupe com a cor e o perfume das flores!

- Espero que ficará satisfeito comigo - assegurou de novo Chantal, não querendo discutir tudo quanto este programa tinha de exagerado.

- E agora, visto que estamos de acordo, vou apresentar-lhe o seu discípulo - concluiu o conde de Uskow. - Peço-lhe que tenha a generosidade de não rir, diante de mim, do ridículo aborto que vai ver!

Depois destas palavras, Chantal esperava ver aparecer um pobre enfezado e raquítico, de rosto delicado mas precocemente envelhecido, como deveria ter sido o do pai, mesmo em plena mocidade. Esperava até ver aparecer um aleijado.

Qual não foi, porém, o seu espanto, quando lhe apresentaram um adolescente, de pequena estatura, é certo, mas bem proporcionado, de rosto inteligente e simpático, onde brilhavam dois grandes olhos escuros, que naquele momento o fitavam com altivez.

As botas de cabedal amarelo moldavam as pernas de tornozelos finos. Envergava grosso pullover e um casaco de fazenda forte, que mais escondiam do que acusavam a elegância dos ombros e do busto, talvez demasiado delicado. Mas o que em Frederico mais chamava a atenção, eram as feições, duma beleza e correcção inexcedíveis, e a alvura da tez, resplandecente de saúde e mocidade.

A surpresa emudeceu o preceptor.

- Então, Frederico - repreendeu o conde de Uskow - não dizes nada?

Um sorriso zombeteiro descerrou os lábios do recém-chegado.

- Seja bem-vindo a Trzy- Krôl, senhor - cumprimentou no mais puro francês - Sinto-me feliz por meu pai o ter chamado para junto de nós.

A voz era harmoniosa, ainda que nela vibrasse leve ironia e arrogância.

Chantal inclinou-se, sem pronunciar palavra. Depois do preâmbulo do conde de Uskow esperava tão pouco semelhante discípulo, que perguntava a si próprio se o castelão não teria querido zombar dele e se de facto era aquela a criança a que se referia.

O dono da casa não tardou a desvanecer-lhe todas as dúvidas.

-E então? Fisicamente, que pensa do seu discípulo?

- um interessante rapazinho - retorquiu vagarosamente Chantal.

- Muito magrito - replicou o pai, com desprezo.

- E com respeito à altura, que me diz?

- Que o seu pequenino corpo pode encerrar uma nobre alma! Pascal, Thiers e também Poincaré, não eram altos.

-Mas eram enérgicos e invencíveis, e Frederico não passa dum garoto sem vontade própria. Se o chamei, a si, para alguma coisa foi. Quando o conhecer, verá que tenho razão. Será necessário incutir a coragem e sangue-frio nesse corpinho que de tudo tem medo, até da própria sombra!

- Medo! - protestou o adolescente - Creio, meu pai, que está exagerando um pouco.

- Cala-te, Frederico. Como se eu não soubesse que és o perfeito retrato de tua mãe. Como ela, só gostas de flores, ouvir o canto dos passarinhos, sonhar! Tudo tolices que eu detesto.

O rapazito pareceu aprovar com um movimento de cabeça; depois, com um arzinho de enfado, pôs-se a olhar para fora.

-E agora, até à hora de jantar, travem mútuo conhecimento. E o senhor professor faça-me o obséquio de nada desculpar a Frederico. Quero que meu filho seja um homem! Um homem, ouviu?

E sublinhou estas últimas palavras com um formidável soco despedido sobre a secretária.

Chantal inclinou-se em silêncio. Naquele momento era-lhe desagradável formular qualquer promessa. O desprezo irónico que o pai evidenciava pelo filho, parecia- lhe bastante ridículo. Quanto a este último, era por enquanto um enigma que se propunha decifrar.

- Quer dar um passeio pelo bosque - ofereceu Frederico com delicadeza despida de servilismo e que nem sequer demonstrava desejo de agradar.

-Com todo o gosto.

Caminharam alguns minutos sem falar. De repente, o rapazito soltou uma gargalhada trocista.

- Por que motivo ri assim? - indagou Chantal, admirado.

- Então não acha divertido que estejamos os dois aqui reunidos hoje?

- Como é natural que estejam um professor e um discípulo em idênticas circunstâncias.

-Mas nem sequer sabe o que me há-de dizer.

- Penso nas recomendações do seu pai e procuro estudar o procedimento a adoptar para consigo. Não me parece que seja o garoto timido que o conde de Uskow me descreveu.

Súbito rubor coloriu as faces de Frederico.

- E contudo, meu pai tem razão - reconheceu francamente - Há ocasiões em que, de facto, não consigo dominar a minha timidez e enleio.

- Só em condições especiais, segundo creio - concordou Norberto, generosamente - Até agora tem respondido às minhas perguntas sem dificuldade. Tenho esperança de que em breve seremos dois bons amigos e que entre nós reinará a maior confiança.

- Talvez - concedeu o rapazito com hesitação.

- Como, talvez?. Duvida? - protestou Norberto calorosamente - Asseguro-lhe, Frederico, que simpatizei logo consigo e que ambicionei imediatamente vê-lo partilhar essa simpatia, para que a minha tarefa se torne mais fácil e dê os resultados desejados.

-E eu julgo que, para agradar a meu pai, uma demasiada comunhão de ideias entre nós será intempestiva.

-Estou convencido do contrário. Para conseguir fazer de si um ente forte e enérgico, terá de me conceder a sua estima e seguir, com absoluta e serena confiança, os meus conselhos.

- E eu creio que nunca poderei seguir cegamente esses conselhos ou exemplos. Perdoe-me, senhor Chantal, se lhe causo uma decepção. Mas sou de opinião que cada um tem o seu carácter, a sua personalidade própria. e essa personalidade obriga-nos a proceder por forma bem diferente. A minha, por exemplo. a despeito das suas observações e de toda a minha boa vontade, ressentir-se-á sempre das nossas diferenças físicas. O senhor é alto e eu sou baixo; é forte e eu sou fraco. Perante o mesmo perigo ou tendo ambos idêntica resolução a tomar, os nossos instintos agirão diversamente.

Norberto aprovou, sem querer discutir, esta dedução que indicava uma força de raciocínio muito rara na idade de Frederico. Contudo, insistiu para que o discípulo se submetesse a um programa de exercícios indicados para conseguir o desenvolvimento físico ambicionado pelo conde de Uskow.

Tinham atingido um dos extremos do grande pátio empedrado que se prolongava na retaguarda da habitação e substituía, segundo parecia, o recinto tapetado de relva, usado nos castelos franceses. Um muro baixo limitava, desse lado, o domínio, separando-o das estufas escalonadas até às profundidades do vale. Este ponto de Trzy-Krôl formava como que um terraço dominando os arredores.

Frederico adorava-o e foi o primeiro onde instintivamente seduziu o preceptor.

- É este o meu cantinho predilecto - declarou. - Daqui pode ver-se a tempestade nascer e avançar. contemplar o sol que desponta, rompendo as brumas da madrugada e iluminando com os seus raios cor de fogo os raros telhados disseminados pela planície. De resto, são eles, segundo creio, os únicos vestígios de civilização que existem nesta região. Àparte isso, por todos os lados a natureza ostenta a sua selvática independência.

- A criança possui uma alma de poeta - pensou Norberto com alegria - Infelizmente, parece-me que essas tendências desagradam deveras ao conde Uskow. Resta saber se me assiste o direito de esmagar os dons maravilhosos deste rapaz para os substituir pelo culto da força e da actividade. Poder incutir um, sem destruir os outros! Eis o que seria uma esplêndida tarefa!

Enquanto o preceptor estabelecia de si para si este dilema, o adolescente apoiara os cotovelos no rebordo do muro que cercava o terraço e, pensativo, contemplava a paisagem esbatida nas sombras crepusculares.

Como se adivinhasse os pensamentos do professor, observou a meia voz:

-Fazer de mim um homem, foi o que disse há pouco, senhor Chantal? E julga, na verdade, que me prestará com isso grande serviço?

-Não blasfeme, Frederico! Visto que o destino o catalogou na espécie masculina, não tem outro remédio, parece-me, senão possuir as características do seu sexo.

- Quer dizer, terei de ser violento, combativo, arrebatado. - replicou o outro, animando-se de repente

-Terei a preocupação de ferir em vez do ideal da justiça! Para agradar a meu pai deverei ser sanguinário, duro e cruel! Os homens inventaram a guerra, o box, o duelo e as lutas no circo! Se são esses os tesouros que conta prodigalizar-me, muito obrigado! E está certo de que será motivo para ficar orgulhoso, prestar-me semelhante benefício?

Norberto sorriu.

- É evidente, Frederico, que se eu não lhe desse a conhecer senão os defeitos do nosso sexo, não teria que me orgulhar da minha obra. Mas há outras qualidades masculinas que é necessário cultivar, e é dessas apenas que desejo falar-lhe.

-Boas qualidades, que sejam estritamente masculinas! - zombou o garoto, sorrindo por forma enigmática - Gostaria imenso que mas apontasse! Por muito que as tivesse procurado, nunca as encontrei no conde Uskow, meu pai. E ficaria satisfeitíssimo se descobrisse agora algumas em si! Vamos, senhor meu professor! Enumere essas maravilhas, próprias do sexo masculino, essas virtudes que não possuo e que devo cultivar, visto que não foi chamado a Trzy-Krôl senão para mas ensinar!

Assim intimado a falar, Norberto de Chantal sentiu-se desarmado e não encontrou resposta a dar-lhe.

Reagiu, contudo, para não deixar sem réplica o extraordinário garoto que, pela força do destino, tinha de modificar.

- Qualidades próprias do sexo masculino - começou - mas há muitas. Temos primeiro a destreza.

Mas Frederico interrompeu-o.

-De que espécie? A dos equilibristas no circo ou a dos batoteiros nas casas de jogo?. E mesmo em qualquer delas existem mulheres que podem levar a palma aos homens. Não me serve, adiante!

- Se prefere, poderá dizer agilidade - emendou Nurberto, divertido.

-Essa é mais animall Os macacos são ases na matéria.

- A coragem -- enumerou alegremente o preceptor, com a oculta esperança de que o outro encontraria novo argumento para o combater.

E foi o que aconteceu.

- A coragem não é qualidade exclusivamente masculina. Parece-me que Joana d, Arc e Joana Hachette a possuíram e no mais alto grau. Isto para não citar senão duas mulheres da sua raça!

- Oh! mas não nego que, excepcionalmente, existam mulheres que possam possuir dons que em geral são apanágio dos humens.

- Ora ainda bem que o confessa! Logo, se admite a possibilidade de existirem mulheres, fracas rapariguitas até, detentoras das nossas virtudes, não percebo a razão por que meu pai e o senhor pretendem desenvolver as minhas forças físicas para que eu adquira essas mesmas qualidades. Segundo me parece, nem a estatura nem o peso têm tido até hoje influência na nossa superioridade masculina!

- Temos ainda o sangue-frio - prosseguiu Chantal, que estava achando graça.

-Apontaram-me enfermeiras que, durante a guerra, ajudavam os médicos a operar os feridos. Ouvi também dizer que um dos vossos generais, herói admirável, muitas vezes ferido nos campos de batalha, empalidece quando vê uma aranha.

Norberto sorriu.

- Donde conclui, Frederico. - perguntou com bom humor.

-Que o sangue-frio não tem sexo! Há mulheres que o possuem, e homens, cuja coragem é indiscutível, que não têm nenhum.

- Não nego o valor feminino; mas não julgo útil, nem mesmo vejo a necessidade de o comparar, como está fazendo, ao do homem.

-Ah! É que o senhor não pode sequer supor o desprezo que o conde nutre pelo sexo oposto! Ora já verifiquei que a maior parte das qualidades que meu pai elogia e desejaria ver-me possuir, não passam de defeitos. defeitos que as mulheres aborrecem porque em geral as sacrificam e as fazem sofrer! Não é tanto a minha fraqueza física que meu pai me censura. Lamenta apenas que eu não seja bruto e slvagem!

Norberto pensou que de facto o discípulo não devia exagerar muito. No entanto, por instinto, tomou a defesa do castelão.

- Quero acreditar, para honra do conde de Uskow, que está um pouco enganado e que as suas aspirações têm um móbil mais nobre do que aquele que lhe atribui.

- É porque não o conhece bem - replicou o rapazito com tranquilidade - Depois de passar alguns meses em lrzy-Krôl, veremos se ainda se arvora em campeão de meu pai! Nessa altura então falaremos.

Chantal conservou-se prudentemente calado. No seu íntimo, achava úm pouco estranho ouvir Frederico falar com tal liberdade do autor dos seus dias.

Recordava o sentimento de respeito, mas ao mesmo

tempo de afecto, que nutria por seu pai, tão bom, tão compenetrado dos seus deveres paternais.

Como aquele paralelo foi agradável ao seu coração de viajante desamparado!

Para abandonar o assunto que lhe era doloroso, atacou o seu juvenil interlocutor por outro lado, procurando encontrar o seu ponto fraco.

- Já reparei, Frederico, que defende calorosamente a mulher. Será, por acaso, feminista?

Escurecera quase por completo, o que impediu Norberto de ver o rubor que subiu ao rosto do discípulo.

- Não, não sou - replicou este com firmezaPelo menos, suponho-o, porque não convivo com mulheres. e com homens, também não, de resto. Adoro a minha independência e vivo em Trzy-Kxôl como um selvagem. Mas como me poderia desinteressar do outro sexo, se meu pai não pode ouvir falar duma mulher sem a esmagar com o seu desprezo?

-Ainda há pouco o ouvi gabar certas qualidades femininas. logo, é porque as aprecia!

- Pode fazer-se justiça a alguém sem que se abrace a sua causa.

Calou-se por momentos e depois continuou com voz mais suave.

- No fim de contas, talvez haja em mim apenas um espírito de oposição que me leva a contradizer todas as opiniões paternais. Daí esta necessidade de defender tudo quanto meu pai ataca. Pode ser também que me baseie em exemplos.

- Exemplos? - repetiu Chantal, interessado, porque reparava que Frederico, por distracção ou pela necessidade de lhe falar de si, lhe patenteava os seus íntimos pensamentos.

- Sim. O duma ingénua rapariga que eu conheço um pouco.

Olhando vagamente o espaço, como a evocar uma visão que lhe devia ser infinitamente doce, o filho do conde de Uskow, continuou:

- É leal. e pura! É dotada, creio, duma alma generosa e nobre. Uma palavra de ternura transporta-a de alegria e julgo que o seu coração tem para os desgraçados tesouros de bondade.

Como se calasse, Norberto observou com brandura:

- Apre! Que entusiasmo! Estará apaixonado, Frederico?

O rapazito encolheu os ombros com certo desprezo.

-O amor não é ainda da minha competência! Além disso, será a minha amiga suficientemente bonita para ser amada? Não posso dizê-lo porque sou leigo no que diz respeito a beleza feminina. Mas tudo me leva a crer que a sua beleza é vulgar e daquelas que não se impõem à primeira vista, porque vive só e sem afeições. O seu valor moral, porém, é indiscutível; ignora a mentira e o ódio. Pois bem, tenho a certeza de que, se em lugar do garoto insignificante que sou, meu pai possuísse uma filha encantadora como esta de quem lhe falei, a teria implacàvelmente expulso da sua presença, como se ela fosse um monstro, um ente que lhe pudesse trazer desgraça.

Chantal perguntou:

- E essa rapariga? É sua irmã?

Frederico estremeceu.

- Engana-se - declarou - Sou filho único, o que foi uma grande coisa para o bom nome de meu pai. Se a pobre senhora que foi sua mulher e minha mãe, tivesse tido a triste ideia de o presentear com uma filha, teria havido um crime nesta casa.

- É extraordinário - comentou simplesmente o preceptor.

Depois, mudando de tom, continuou:

-Sabe o que se diz em França no que se refere à atitude dos homens para com as mulheres?

- Os seus romancistas têm, em geral, ideias muito originais.

- Não só eles. É um axioma estabelecido. Diz-se que quanto mais um povo respeita a mulher mais civilizado é.

- Daí se conclui então - ripostou a criança, rindo

- que meu pai é semelhante aos bárbaros que outrora invadiram este cantinho da Europa! Resulta também que a França não está ainda tão civilizada como parece, visto que é o único dos grandes países onde os homens consideram as suas companheiras tão pouco inteligentes que não lhe concedem o direito de votar!

E depois desta réplica, sublinhada com uma gargalhada o mais zombeteira possível, Frederico precipitou-se para casa.

- Está a tocar para o jantar! - bradou de longe, correndo -- Se não quer travar conhecimento com as desagradáveis reflexões do meu progenitor, não se demore, senhor Chantal, e dirija-se para a casa de jantar quanto antes.

Norberto, que desejaria repreender o estouvado pela sua impertinente apóstrofe contra os franceses, teve de se contentar em seguir o seu conselho, um pouco assombrado com o feitio trocista do discípulo.

A vasta casa de jantar era escura e glacial. Um único lustre, de ferro forjado, suspenso por cima de enorme mesa, espalhada apenas uma avara claridade, absorvida ainda pelas tapeçarias que revestiam as paredes e mesmo pelo tecto de carvalho, apainelado e enegrecido pelo tempo.

Os toros que ardiam na alta chaminé, acesos para combater a temperatura fresca daquele final do dia, conseguiam apenas tornar um pouco mais alegre o ambiente, sem chegar a dar-lhe calor.

A mesa estava posta com a mesma ausência de harmonia que Norberto já notara no arranjo do seu quarto.

Dispostos sobre a toalha de linho finíssimo, visivelmente usada, viam-se pesados talheres de prata, com as armas dos condes de Uskow gravadas, enquadrando os pratos de louça ordinária. Um majestoso centro de prata dourada, completamente desguarnecido de flores, ostentava-se ao lado dum saleiro de vidro azul, de gosto deplorável e ainda por cima com o rebordo partido.

Em compensação, os copos, em pesado cristal da Boémia, facetados como diamantes, pareciam jóias preciosas onde se reflectiam os mil clarões das chamas que dançavam no fogão.

Evidentemente, sentia-se naquela casa a falta duma mulher.

O conde sentara-se na cabeceira da mesa. Adivinhava-se que seu pai. seu avô, toda uma geração de antepassados havia ocupado, antes dele, aquela poltrona de carvalho escuro e de espaldar brasonado.

O homenzinho, sentado na confortável cadeira de braços e diante da mesa enorme, parecia ainda mais pequeno e definhado do que no escritório, perto dos seus livros. O tipo perfeito do sábio, do verdadeiro xato de biblioteca, acentuava-se mais e Norberto admitia em que o castelão nunca pudesse ter sido um anfitrião jovial, presidindo a sumptuosos banquetes ou o comensal alegre, adorando as refeições copiosas e bem regadas.

A conversa do conde de Uskow era a única coisa que animava aquele triste jantar.

Verdadeiro fidalgo, amável e delicado, esforçava-se por prender a atenção de Chantal. Contudo, a sua ideia fixa afirmava-se constantemente e no seu desejo de vincar bem no espírito do filho e do novo preceptor o que exigia deles, só falava de desporto.

Chantal respondia-lhe, um pouco admirado ao verificar que aquele velho sábio, escondido num recanto dos Cárpatos e fisicamente tão pouco favorecido, estava completamente documentado sobre as grandes provas desportivas de todo o Mundo, discutindo o valor dos diferentes campeões e dando a sua opinião sobre a organização das próximas Olimpíadas.

De si para si, Chantal pensava:

-O velhote deve passar o seu tempo a devorar todas as revistas desportivas do Mundo! Que distracção tão pouco própria para um etnógrafo! Nada interessante e bem pouco divertida! Procederá assim por dedicação paternal?

Com efeito, o conde de Uskow só abandonava o assunto desporto para observar o filho.

- Vejo que mais uma vez recusaste o assado. Que significa isso, Frederico?

O interpelado ergueu o rosto pálido e pensativo.

-Apenas duas coisas, meu pai - retorquiu, sorrindo - primeiro, que não gosto de pato, e depois, mesmo que gostasse, não o comeria, porque hoje não tenho apetite.

Falava devagar, em tom aborrecido e, se assim se pode dizer, com impertinente respeito.

O conde encolheu os ombros.

-Hoje não tens apetite! Mas todos os dias é a mesma coisa! Quando não é pato é pombo ou carne de vara que recusas!

-O pai bem sabe que gosto pouco de carne.

- Mas é isso que eu não quero - exclamou o conde, animando-se - É justamente carne e carne em sangue que precisas comer. É a única coisa que te pode criar músculos. E se queres ser forte, deves tomar o dobro do alimento que toma qualquer outro rapaz da tua idade.

Frederico calou-se. Baixara as pálpebras e depois voltou a erguê-las com ar fatigado; e até ao fim do jantar não tornou a pronunciar palavra.

Chantal observava, por um lado, aquele homem nervoso, irritável. moralmente ferido, aquele homem que devia amar o filho, mas cuja solicitude paternal se traduzia, quase sempre, numa espécie de cólera contra o pequeno ou em frases desdenhosas e ofensivas.

Por outro lado, examinava Frederico, objecto de tantos cuidados e de tantos ralhos.

O filho do conde de Uskow estava sentado diante de Norberto, observando bem aquela cabeça, iluminada pela claridade das velas que caía do alto, reparava agora melhor quanto os cabelos eram louros e finos, quanto as fontes, sulcadas por delgadas veias azuis, eram delicadas e transparentes.

Na verdade, o conde tinha razão para se alarmar: o garoto não era disforme nem desproporcionado, mas que fragilidade, que delicadeza tão pouco viril!

Sem receio de humilhar o filho, o conde de Uskow voltou ao assunto favorito:

- Como conseguir fazer um homem deste maricas sem energia e sem músculos. - resmungou.

Ao ouvir este desagradável comentário, Fredrico franziu a testa. Depois teve um ligeiro encolher de ombros.

Responder? Para quê? Calou- se.

Norberto, porém, compreendeu a irritação do rapazito e a pequena ferida que, naturalmente, lhe atingira o amor-próprio.

Aquela mesma observação, feita sem testemunhas, teria sido menos humilhante do que na presença dum estranho. e, vendo bem, o conde de Uskow não estava com cerimónia naquela noite!

Chantal lançou ao discípulo um olhar de encorajamento.

-Músculos?-replicou-Criar-se- ão com o tempo. É uma questão de exercícios físicos que principiaremos a partir de amanhã. Verá como será fácil, não é verdade, Frederico?

Um movimento afirmativo de cabeça foi a única resposta que obteve do garoto. Dir-se-ia que a presença do pai o paralisava. Mas, ao mesmo tempo, lançava a Chantal um olhar rápido, desta vez despido de ironia, um olhar que era ao mesmo tempo de adesão e de agradecimento.

O jantar terminara. O conde de Uskow levantou-se; depois, devagar, como se cumprisse um rito habitual, dirigiu-se para a alta chaminé e sentou-se numa cadeira de braços que se encontrava a um dos lados.

Frederico, de rosto impassível, colocou-se ao lado do pai, de pé, o cotovelo apoiado ao espaldar de carvalho esculpido.

Os pés do velho sábio mal tocavam o alto tamborete de madeira, sem o qual nunca conseguiria sen tar-se na enorme cadeira, que deveria outrora ter sido construída para uso dum gigante, naquele tempo senhor e dono do castelo.

Um gigante ou talvez um diabólico tirano querendo dominar do alto, quem sabe!

Frederico, junto do pai, não seria mais do que um encantador adolescente, prisioneiro dum anão infernal, subjugado pelos seus sortilégios mágicos e maléficos.

Todas estas fantásticas visões, passaram rápidas pelo espírito de Norberto, também de pé, a alguma distância, do outro lado da chaminé.

- Por que não se senta, senhor Chantal - convidou de súbito o dono da casa com voz afável, que nada tinha de sobrenatural e era bem a do conde de Uskow.

E aquele som dissipou por completo em Norberto a extraordinária fascinação do cabalístico ambiente.

O conde de Uskow continuou:

- Como sabe, habitamos um país onde as antigas tradições perduram; uma delas é a saudação que todas as noites nos vem fazer o pessoal. uma cerimónia demorada. bastante aborrecida para nós, mas é um hábito muito arreigado nos criados e eu não quis modificar costumes que datam de muitos séculos. Olhe, eles aí vêm!

No topo da sala abriu-se uma porta. Precedidos pela governanta Iola, que recebera Norberto à chegada, entraram todos os criados da casa, e uns atrás dos outros, como numa procissão, dirigiram-se ao conde.

A velhota, que vinha à frente, envergando a saia curta, de fartas pregas e o casaco guarnecido de peles, trazia na mão um castiçal aceso, castiçal simbólico, naturalmente com muitos séculos de existência, mas que conservara, apesar da iluminação eléctrica, único modernismo introduzido no castelo.

-Esplêndido motivo para figurar num quadro!

-pensava Norberto, que desejaria poder mandar à família a reprodução daquele pitoresco cerimonial.

Quase todos os criados estavam vestidos segundo o uso do país, com excepção do criado de quarto, que também servia à mesa e que estava vestido à francesa, e o cozinheiro, que ostentava um amplo avental branco.

Aparte estes dois, os outros envergavam o trajo dos camponeses da região: véstia de couro, calção apertado nos joelhos, para os homens; blusa de fazenda e saia rodada e curta, para as mulheres. E para todos, os fortes sapatões de cabedal, seguros por correias enlaçadas nas pernas e o gorro redondo de peles, que os homens conservavam na mão esquerda.

Um a um passaram diante do dono da casa. Curvavam-se desejando-lhe boa-noite e solenemente beijavam a mão fria e magra, sempre crispada no braço da cadeira, e depois faziam o mesmo à de Frederico, que a estendia num gesto cansado.

Não faltava nenhum e os homens estavam em maioria. Exceptuando Iola, uma rapariguita, ajudante do cozinheiro, que devia ser sua filha e a roupeira, velha e de óculos, todo o pessoal de Trzy-Krôl era masculino.

Norberto reconheceu o motorista que o fora buscar à estação de Kétha, e o conduzira ao castelo, e que lhe dirigiu uma respeitosa saudação.

Havia ainda os palafreneiros e os criados, os fogueiros, cujas atribuições, no inverno, eram importantíssimas, e os jardineiros, cujo chefe, um velho de comprida barba branca, foi o último a beijar a delicada mãozita do louro adolescente.

- Todos estes usos nos transportam à Idade-Média

- comentou o conde, sorrindo, quando os criados saíram -- Como se deve sentir longe da Praça da Ópera, senhor Chantal!

- É certo - concordou Norberto - Devo confessar que estava longe de assistir a semelhante espectáculo, na Europa e em pleno século vinte.

- Nós vivemos aqui como numa espécie de ilha que a civilização moderna envolve sem penetrar. Para os que não nasceram aqui ou que viajaram muito como eu, todas estas cerimónias parecem estranhas; contudo, esta boa gente, que acaba de ver, acha estes costumes naturalíssimos! Consideram-se como constituindo uma só família, da qual eu sou o chefe e o pai. a vida patriarcal que ainda existe para eles.

Frederico esperava sempre, de pé, ao lado da hierárquica cadeira.

- Podes ir deitar-te, meu filho - disse-lhe o conde com certa benevolência.

Então o rapazito curvou-se e beijou a mão paterna como o haviam feito os criados; cumprimentou Norberto, de passagem, e retirou-se.

Assim, era bem aquele o regime patriarcal e esta circunstância veio em parte explicar ao moço francês porque motivo o seu discípulo era, na aparência, tão respeitador daqueles usos e costumes quando, de facto, a sua índole trocista e sem dúvida revoltada se manifestava nos olhares aborrecidos, na ironia amarga dos sorrisos e na expressão desiludida das palavras.

- Esta criança é o singular conjunto de duas gerações - observou Norberto, pensativo.

Pouco depois, despediu-se por sua vez do conde, porque se sentia extremamente fatigado, não só pela sua interminável viagem, mas também por todos os acontecimentos daquele dia.

Não obstante a fadiga, Norberto não dormiu bem a primeira noite que passou debaixo dos tectos do conde de Uskow.

A recordação dos comentários do futuro discípulo perseguiu-o até de madrugada.

As observações daquele garoto, de tão precoce raciocínio, não deixavam de ter graça; mas Chantal, que nunca leccionara e nem sequer tivera um irmãozito mais novo para aconselhar, perguntava a si próprio se teria a necessária competência para dirigir um carácter tão curioso.

Na manhã seguinte, um incidente que se deu durante o almoço veio demonstrar-lhe quanto o conde de Uskow esperava dele e dar-lhe ao mesmo tempo uma ideia da índole implacàvelmente trocista do discípulo.

O conde falava dos acontecimentos mais recentes, dos quais fora inteirado pela leitura dos principais jornais europeus, recebidos essa manhã. Explicava também, não sem certo orgulho, que o correio era todos os dias transportado por um avião que sobrevoava Trzy-Irôl.

- O piloto é hábil. O saco que contém a minha correspondência cai quase sempre no mesmo ponto do terraço.

Calado e indiferente às explicações dadas pelo pai, Frederico comia, um pouco encostado à mesa de acaju, o pensamento muito longe daquela sala austera, a julgar pela expressão vaga com que os grandes olhos escuros fixavam o espaço através da janela aberta.

De súbito, o conde interrompeu a conversa para o apostrofar:

- Frederico!

- Que foi? - volveu o rapaz, estremecendo. - Aconteceu alguma coisa?

- Endireita-te!

O adolescente, sob a influência do olhar severo que o fitava, endireitou-se.

- Já te tenho repetido centos de vezes que te mantenhas direito, à mesa - continuou o conde de Uskow com aspereza - E contudo, meu pobre pequeno, bem sabes que não podes diminuir a tua estatura um centímetro que seja! E sabendo-o, estás para aí curvado, torcido. com aspecto de cansado! Mostra que és enérgico, com os diabos! Que ideia vai fazer de ti o senhor Chantal!

Mais uma vez Frederico cravou no pai um olhar indiferente.

- Aquela que lhe apetecer - respondeu em tom indolente - Este senhor tem, segundo me parece, idade suficiente para não necessitar que lhe imponham opiniões.

Falara num francês correcto, com voz meiga e um pouco arrastada. Mas era impossível adivinhar em que grau se confundiam nas suas palavras o respeito fingido e a ironia.

Adivinhava-se que estava já habituado às repreensões paternas e que estas o feriam apenas por serem dadas diante dum terceiro.

E Norberto, observador atento, julgou perceber que, como sucedera durante a refeição da véspera, enquanto os olhos do garoto pareciam sorrir, um jeito de amargura lhe vincava os lábios vermelhos.

O conde de Uskow, não querendo talvez continuar a provocar diante dum estranho a dissimulada impertinência do filho, não insistiu.

No entanto, voltou-se para Chantal.

-Já pode fazer ideia do trabalho que vai ter.

Este pequeno não aceita de boa vontade qualquer observação.

- Protesto, meu pai - bradou a voz clara do rapazito - Obedeci imediatamente.

- Mas todos os dias tenho de te repetir a mesma coisa!

- Porque é impossível evitar um gesto habitual e necessário à natureza.

- Que estás tu para aí a dizer, Frederico?

- Afirmo que o facto de me encostar maquinalmente à mesa, não significa o intuito de desobedecer às suas ordens, mas apenas que o meu corpo necessita de apoio para conservar a respeitosa imobilidade que devo manter quando o meu pai está a falar.

- Ah! Ah! - escarneceu o castelão - Está a ouvir, senhor Chantal! Meu filho, para amparar o corpo débil, necessita dum ponto de apoio e as minhas palavras exigem respeitosa imobilidade. Não achas, Frederico, que para me assegurar o respeito que me é devido, em vez de te obrigar a uma imobilidade tão prejudicial à tua estética, eu faria melhor se te cortasse a língua?

Chantal a custo repremiu um gesto de susto perante tão inesperada sugestão. Seria apenas uma ameaça impensada provocada pela cólera?

Ao ouvir as palavras do pai, o rapazito empalideceu também. Não deixou, contudo, de retorquir com temeridade:

- Essa solução teria a vantagem de ser radical e de se harmonizar com os processos de força que professa, meu pai

O conde fulminou-o com o olhar. Norberto, observando-o, supôs, por instantes, que se os olhos do castelão fossem balas, teriam voluntàriamente prostrado o temerário que assim o desafiava.

-Toma cautela, Frederico! Não me tentes nunca a pôr em prática as minhas ameaças!

Os lábios do filho entreabriram-se para proferirem nova e impertinente réplica, mas Chantal, sobremaneira incomodado com a discussão, cortou-lhe a palavra com um gesto.

- O dia está nublado e receio que não acabe sem chuva - observou Norberto com voz firme e a sua calma impressionante constrangeu os outros a calarem-se - Não quer, Frederico, mostrar-me os arredores enquanto o tempo o permite?

O tom de firmeza usado pelo preceptor teve o condão de levar aos espíritos uma concepção mais calma da conversa.

No conde deu-se então como que o apaziguamento de todos os seus nervos, as pálpebras pestanejaram sob o impulso duma reacção interior que pareceu restituir-lhe o sangue- frio. As feições, contraídas pela cólera, distenderam-se pouco a pouco e, depois de ter volvido aos dois um olhar um pouco desvairado, aprovou, numa voz que de novo se tornara atenciosa.

- Vão, vão - disse - Aproveitem a manhã e dêem um passeio. Não há nada melhor do que o exercício ao ar livre. O footin é excelente para acalmar os nervos de Frederico.

Desta vez, o jovem revoltado não protestou, nem mesmo, como de costume, velou com as pálpebras a expressão irónica com que habitualmente acolhia os desagradáveis remoques que o pai lhe dirigia.

Submisso, dobrou o guardanapo e seguiu Norberto, que em grandes passadas alcançava o jardim, impelido pela imperiosa necessidade de se subtrair à atmosfera electrizada daquela primeira refeição matinal.

Quando se encontraram os dois sòzinhos na comprida avenida que um pálido sol de primavera escassamente alegrava, deram alguns passos em silêncio.

- Então, Frederico, está satisfeito com a cenazinha que acaba de se dar? - interrogou Norberto, que esperava algum tempo para fazer a pergunta. o tempo suficiente para que a rapidez da marcha acalmasse um pouco o companheiro.

-Não tenho motivos para me alegrar nem para me entristecer - replicou orgulhosamente o indisciplinado - Meu pai censura-me constantemente pela minha fraqueza física e nem sequer tenho, como os outros rapazes, o direito de estar cansado e repousar. E não hei-de protestar contra tão injusta falta de indulgência?

- Seu pai julga talvez proceder assim para seu bem.

-Engana-se, senhor Chantal. O conde de Uskow só pensa em si, no seu prestígio, no seu amor-próprio! Fere-lhe a vaidade eu não ser um Hércules que pudesse lisonjear o seu orgulho masculino. Nem sequer se lembra de que, se eu fosse, como ele deseja, um rapagão atrevido e temível, não teria a satisfação de me dirigir constantemente, como me dirige, as alfinetadazinhas que lhe dão tanto prazer. O filho de temperamento aguerrido que ele sonha, far-lhe-ia engolir as palavras mesmo antes que ele as acabasse de pronunciar.

-Ah! Que belos sentimentos filiais, Frederico. Felicito-o pela forma como se exprime, falando de seu pai!

O rapaz encolheu os ombros num movimento irritado.

- Ria se quiser - resmungou - Sei muito bem a forma por que devo falar de meu pai e as minhas justas observações em nada diminuem o meu respeito filial. É culpa minha se o conde de Uskow nem sempre segue a linha de conduta que os seus deveres paternais lhe impõem?. Acredite, senhor professor, o meu maior desejo seria poder amar meu pai, como o fazem todos os filhos, livremente, sem constrangimento! Por que razão, em vez de aceitar e corresponder às minhas carícias, parece lamentar o meu nascimento e até a minha existência?

-Talvez a sua vinda ao mundo fosse para ele motivo de grande desgosto - lembrou Chantal, conciliador - Não foi ela a causa da morte da sua mãe?

Frederico agitou a cabeça num gesto negativo.

- Ah, se soubesse começou.

Mas calou-se sem concluir a frase.

- E depois, que importa! - exclamou - Como ninguém pode modificar o que está feito, temos ambos de nos conformar: meu pai em ter um filho de estatura tão pequena e eu em possuir um pai como ele.

- Ora até que enfim o ouço dizer uma coisa sensata. E há com certeza entes muito mais dignos de dó que seu pai e Frederico. Desgraçadas crianças, verdadeiros mártires daqueles qae deviám ser os seus protectores naturais. pais desonrados pelos crimes dos filhos. É preciso ter visto certas misérias para podermos comparar e apreciar a nossa sorte.

- Oh, eu bem sei - retorquiu o rapazito - Não ignoro que.

De novo a frase ficou em meio.

Suspirou.

- Mas não falemos mais nisso - continuou, com o seu costumado ar de enfado - Que ao menos a sua presença me seja benéfica, visto que me dá um companheiro adequado à minha idade, um amigo que saberá libertar o meu cérebro do apertado círculo de Trzy-Krôl.

Admirado da voz um pouco abafada do jovem conde, Chantal voltou-se para ele.

E viu Frederico um pouco pálido, o olhar perdido no horizonte distante. Sob a franja escura das pestanas, as pupilas cobriam-se dum véu húmido.

Estes evidentes sinais do desgosto do discípulo comoveram mais Norberto do que se o rapazito tivesse exprimido a sua dor por palavras.

Não quis, contudo, dar-lhe a conhecer que adivinhava as suas lágrimas prestes a correr. Podia ferir o orgulho juvenil do garoto e prejudicar a sua futura camaradagem.

Parou e aparentou tomar o maior interesse pela paisagem.

- Dê-me a conecer um pouco este cantinho dos Cárpatos, Frederico - pediu - Esta região é na verdade maravilhosa na sua beleza selvática. Qual é o ponto exacto onde nos encontramos?

O adolescente aceitou com docilidade o derivativo.

- Deste lado - designou - temos a região de Lazes, com as suas célebres minas de sal. Além Khéta e Stanow. A esquerda a garganta de Roc, Black.

A direita a de Uskak, donde deriva o nome dos meus antepassados.

- E os domínios de seu pai abrangem, sem dúvida, extensos territórios para esse lado?

- Oh! muito extensos, sim. Milhares de hectares de terreno. charnecas, florestas, geleiras.

- Que nem sequer conhece, naturalmente?

- É verdade. Em primeiro lugar há pontos que são inacessíveis. Depois, como se encontram frequentemente ursos pardos, animais bastante perigosos, seria imprudente percorrer sòzinho certas regiões mais afastadas das povoações. Finalmente, meu pai deve ter-lhe dito que não gosto das aventuras arriscadas que se procuram pelo único prazer de experimentar sensações fortes. Consiste nisto o que o conde chama a minha cobardia.

- Qual é então o seu ideal em matéria de existência - inquiríu Norberto, sem parecer ouvir as últimas palavras.

-Confesso, sem pejo, que me sorria uma vida sossegada e agradável - disse Frederico com simplicidade - Uma vida calma no ambiente suave dum lar afectuoso, vendo-me cercado por amigos dedicados e sinceros. é isto, segundo creio, o que chamam em França uma vida burguesa.

- Não, não é bem isso - protestou Chantal com generosidade - Essa aspiração duma vida familiar e tranquila não implica necessàriamente a mediocridade de instintos. mesmo vivendo pacatamente junto dos entes queridos, se pode cultivar a arte, a literatura, ou simplesmente a leitura instrutiva.

-E de facto eu adoro a leitura! Mas talvez não gostasse tanto de ler se isso não me trouxesse o esquecimento e não me varresse do espírito as mesquinhas preocupações quotidianas.

- Lê muito?

- muitíssimo.

- E que lê?

- Literatura estrangeira, principalmente a francesa.

- Realmente - exclamou Norberto, com alegria.

- É verdade. Poder-lhe-ia repetir algumas páginas escolhidas dos clássicos franceses.

Um momento de pausa, o tempo de respirar. Depois citou de cor:

"O homem não passa dum frágil arbusto, mas um arbusto que pensa". Como vê, tenho lido e relido os Pensamentos! É belo e faz-nos esquecer os nossos aborrecimentos - acrescentou com alegria.

Continuaram conversando, discutindo os autores modernos, que Frederico conhecia muito melhor do que o preceptor poderia imaginar.

Causava-lhe grande surpresa encontrar nos confins dos Cárpatos, naquele sombrio castelo que se chamava Trzy-Krôl, um juvenil cérebro de dezassete anos tão cultivado. e com uma cultura tão retintamente francesa.

Felicitou Frederico.

- Com o conhecimento intelectual que tem do meu país, poderia dar lições a mais dum estudante francês, da sua idade.

- Meu pai - explicou, verificando a admiração de

Chantal - pertence a uma geração em que todo o dylvaniano da sua categoria falava francês tão bem como a sua própria língua. Aperfeiçoou os seus estudos em Paris e eu próprio, logo em pequeno, tive uma professora francesa.

- Até agora? - admirou-se Norberto, que não podia compreender como o conde de Uskow, aspirando com tanto empenho ao desenvolvimento físico do filho, o deixasse até aos dezassete anos entregue a uma mulher.

- Oh, não - respondeu alegremente Frederico, que compreendera o espanto de Norberto - A senhora Laurin apenas foi minha professora até eu fazer catorze anos. E nessa idade já eu falava o francês tão bem como falo hoje. De resto, continuei sempre a praticá-lo com meu pai. quando este se digna condescender a conversar comigo.

- E depois dessa professora não teve preceptor?

-Tive. Um prior de Khéta, tímido e bondoso. Os olhos de Frederico cintilaram de malícia.

- Oh! Dei-Lhe bastante que fazer! - exclamou, rindo - A minha exuberância de vida assustava o pobre abade! Fechava-se no quarto como se o diabo o perseguisse!

Nos últimos tempos só o via durante as lições. E aparentava um ar tão engraçado. Dir-se-ia que tinha medo.

- Medo! De quê?

- Sei lá. Talvez de mim.

- Não posso compreender porquê - observou Norberto, encarando o companheiro - Por que razão teria o bom do prior medo de si? Era assim tão mau para ele?

O rapazito recomeçou a rir.

- Mau, creio bem que não. Julgo que era apenas muito endiabrado. Tanto o assustavam os meus impulsos de afeição como os meus caprichos infantis.

Frederico continuou a rir com certo nervosismo e acrescentou:

- E depois, por certo compreende, este homem não convinha a meu pai. Não percebia nada de desporto. Oh! o seu ar espantado quando meu pai exigiu que ele me desse lições de natação! Ah! ah! como era cómico. O pobre padre ia adiando. procurando evasivas. Até que, por fim, teve de confessar que também ele não sabia nadar!.. Calcule como fiquei satisfeito.

- Satisfeito! Purquê?

-Porque não tenho o menor desejo de aprender a nadar - respondeu Frederico com tranquilidadeA água fria causa-me horror.

Chantal não insistiu. Recordava a formal recomendação do conde:

É preciso que daqui a oito dias saiba nadar. Se ele hesitar, deite-o à água!

Começava bem! A questão da natação prometia ser das mais cómodas, com aquele rapaz extraordinário que se revelava trocista, voluntarioso e cujas reacções eram tão imprevistas!

De momento, Chantal pensou que seria melhor não insistir nesse ponto, para não se arriscar a comprometer, logo de princípio, uma autoridade que o professor, ao cruzar o olhar irónico do discípulo, adivinhava bem frágil e periclitante.

As reflexões de Frederico sobre o anterior preceptor deixaram-lhe também má impressão. Não chegara a explicar ou explicara mal, porque razão o padre tinha medo dele e se fechava no quarto. Um endiabrado - como ele dissera - pode dar que fazer a um professor, a ponto deste se assustar até com as suas demonstrações de afecto?

De que maldades ou de que perversidades seria capaz aquele rapaz?

Chantal examinava, pensativo, o rosto delicado e pálido sob a massa dos cabelos leves. A expressão dos grandes olhos escuros era mais sonhadora do que perversa; o sorriso, quando não exprimia ironia, era meigo.

- Esta criança é, na verdade, muito bonita -pensou Norberto, que apreciava a correcção das linhas. - Tem uma distinção requintada, conhece-se a raça como dum animal de preço. Pena é que seja tão baixinho! Isso é que não se pode negar!

E como Frederico o fixasse com os seus belos olhos de tão franca expressão, o professor sorriu, tranquilizado.

-Não pode haver perfídia num olhar destes. Parece-me que não tenho motivo para desconfiar da lealdade do seu possuidor.

De facto, as pupilas de Frederico exprimiam franqueza.

Sob a comprida franja das pestanas arqueadas, olhavam a direito, calmas, risonhas ou imperiosas, mas sempre prontas a sustentarem qualquer exame ou a desvanecerem qualquer suspeita.

- Recomeçaram o passeio, percorrendo num passo ágil e em sentido inverso o caminho já feito.

As palavras trocadas com o juvenil companheiro tinham bastado para dar ao preceptor uma ideia dos diferentes aspectos do seu carácter.

Em conclusão, era um espírito zombeteiro orgu lhoso e de raciocínio fácil. Isto saltava aos olhos de qualquer pessoa menos observadora. Por outro lado, o caso revelara-lhe que Frederico tinha uma alma sensível aos espectáculos da natureza e aberta aos sentimentos generosos. Vibrava pela mais pequena coisa. Não admirara, na véspera, com entusiasmo, a paisagem que o crepúsculo esbatia suavemente? Não gabava também, em termos vibrantes de emoção, a bondade e a generosidade de certa rapariga que dizia conhecer?.

Por fim, ainda há pouco, aquela pequenina lágrima, brilhando na extremidade das pestanas, não demonstrava claramente as faculdades emotivas da sua alma ingénua?

Chantal pensou que poderia tentar profundar um pouco mais o conhecimento dos sentimentos daquela alma que teria de uiar na idade perigosa em que o adolescente se transforma em homem.

- Tenho ainda algumas perguntas a fazer-lhe. Responda-me francamente e sem se ofender. É necessário que, desde o primeiro dia, o nosso mútuo conhecimento seja completo.

- E quando me tiver voltado por todos os lados, poderei, por minha vez, fazer-lhe certas ubservações?inquiriu Frederico, impertinente.

- Se tem muito gosto nisso, consinto.

-E responder-me-á também sem subterfúgios?

- Prometo que sim.

- Então, aceito a sua proposta. Pergunte, que eu responderei.

- Para principiar. Crê ser inteligente?

Frederico ficou embaraçado e não pôde evitar um sobressalto.

Há perguntas que são, pelo menos, inesperadas.

- Por que me pergunta isso?

- Porque não tenho outro meio de o saber. Responda-me, conforme lhe pedi, com simplicidade, sem falsa modéstia.

-É difícil - volveu o rapaz, que parecia reflectir

-Não é fácil uma pessoa fazer a sua própria apreciação. Apenas lhe posso dizer que a estupidez foi a única coisa que meu pai nunca me censurou. Devo concluir daqui que sou inteligente?

- É possível, de facto - assentiu Norberto com placidez.

A resposta do discípulo agradara-lhe porque não tinha demonstrado fanfarronada, afectação ou fingida modéstia.

Querendo, porém, conservar-se no papel de professor que sabe manter as distâncias, não manifestou aprovação ou censura. Continuou apenas o interrogatório.

- Mais uma pergunta. esta agora essencial. Visto termos chegado à conclusão de que é inteligente, compreenderá sem custo que sobre a pergunta que vou fazer-lhe se basearão as nossas relações de professor e discípulo. a nossa convivência de todos os dias! Portanto, pergunto-lhe com toda a confiança e muito sèriamente: é leal?

- Sou.

Desta vez a resposta não demorara um segundo. O suu havia sido pronunciado com energia e decisão; ao mesmo tempo que cravava, bem a direito, em Chantal, o seu belo olhar límpido, despido, naquela ocasião, de toda a ironia.

Por que razão insistiu este?

Aquela resposta sincera não necessitava de confirmação.

Por que motivo, então, voltou a perguntar quase maquinalmente.

- Portanto, é incapaz de mentir e posso ter absoluta confiança em túdo que me disser?

Enquanto falava, Chantal fixava-o bem de frente. E viu, com a maior surpresa, perpassar uma espécie de terror nas feições de Frederico, como se este acabasse naquela ocasião de descobrir qualquer facto terrível até então inapercebido.

As pupilas transparentes dilataram-se sób a acção dum pensamento de angústia. A sua perturbação não durou senão um momento. um momento tão breve que o professor pôde julgar ter-se enganado nos sinais de hesitação que observara.

E logo Norberto ouviu a voz um pouco zombeteira responder-lhe:

- Pode-se lá saber do que uma pessoa é capaz?. Falta de lealdade seria responder afirmativamente à sua pergunta.

Uma gargalhada sublinhou esta ambígua explicação.

- Acabou o exame? - inquiriu Frederico, que retomara a sua expressão irónica.

Chantal não respondeu logo. Qualquer coisa de indefinido, uma espécie de constrangimento talvez, caíra entre eles.

de novo pensou:

-Que extraordinário rapaz! julga-se compreendê-lo, está comovido, parece sincero. e pff! foge-nos!

Seria preciso muito tempo para conhecer apenas pelas aparências as qualidades e os pontos fracos do seu carácter.

Um tanto desiludido, não quis, contudo, insistir. A confiança entre eles viria a seu tempo. Era a ele que competia, como professor, inspirá-la ao discípulo.

Procurava assunto para encetar uma conversa mais frívola, mas antes que o tivesse encontrado, Frederico precipitou-se dum salto e desapareceu, correndo por uma avenida orlada de tílias bastante frondosas e cujos ramos, formando por cima das suas cabeças uma abó bada de verdura, quase interceptavam a luz do dia.

O professor tomou a direcção que seguia o companheiro, pensando mais uma vez que, decididamente, com um discípulo tão bizarro, lhe seria difícil tomar qualquer iniciativa.

- Venha depressa, senhor Chantal - bradava familiarmente na sua voz alegre, soando detrás das espessas sebes - Venha depressa porque desejo apresentar-lhe dois dos meus melhores amigos.

Chantal olhou em volta de si. Avançara um tanto distraído e agora via-se em dificuldades para se orientar.

A rua onde desaparecera o seu fantástico discípulo contornara um maciço de aveleiras e depois dividia-se em duas veredas, em tudo iguais, formando uma espécie de labirinto pouco complicado para quem o conhecesse, mas bastante confuso para quem nele penetrasse pela primeira vez.

- Mas afinal que foi feito de si? - impacientou-se Frederico - Nunca mais aparece?

O professor, que não se decidira ainda a escolher uma das duas veredas, ouviu mais uma vez o seu riso trocista ecoar através da verdura.

- Ah, bem já sei! Perdeu-se! Oh, como é engraçado!.. Espere com coragem, meu caro senhor e não trema! Corro em seu socorro!

Alegres ladridos soaram de mistura com as gargalhadas de Frederico que, segundos depois, chegava, correndo, junto do professor, acompanhado por dois canzarrões que saltavam atrás dele.

Vendo umestranho, os cães deixaram de saltar e pararam, mostrando os dentes com ar ameaçador. Rosnavam surdamente e seguiam com o olhar brilhante os menores áestos do recém-chegado.

O seu aspecto de lobos ferozes e a expressão do focinho escorrendo baba, eram, na verdade, medonhos.

- Vamos, quietos - ordenou-lhes com autoridade

-Não vêem que este senhor é um amigo, seus palermas.

E como os animais não parecessem muito convencidos e continuassem a rosnar, Frederico avançou para eles. Agarrou-os pelas coleiras, manteve-os seguros, pelo esforço violento dos braços retesados, enquanto em dylvaniano lhes falava depressa e com voz imperiosa.

Os dois animais calaram-se; mas Norberto sentia-os ainda inquietos e prontos a atirarem-se.

Intimamente, admirava a temeridade do seu discípulo.

-E afirma o pai que ele é um cobarde e um medroso! Não percebi ainda se fala ou não com razão, mas neste momento o rapaz é destemido!

Frederico continuava a sacudir os cães pela coleira, enquanto com palavras rápidas lhes acalmava pouco a pouco o ardor belicoso.

Dominados, enfim, os dois animais ergueram para o jovem domador um olhar húmido e meigo, olhar de bons cães fiéis e dedicados e que parecia dizer:

Perdoa-nos se o instinto levou muito longe o nosso zelo. Somos teus amigos e queríamos defender-te...

- Idiotas - bradou Frederico como se os tivesse compreendido.

Depois, dirigindo-se a Chantal, que assistiu à rápida cena, imóvel e a respeitável distância:

- Apresento-lhe os meus dois amigos... são eles e o meu ponney os meus únicos companheiros...

Chamam-se Ding e DonB'... como vê são nomes franceses!

- Sim? - admirou-se delicadamente o professor.

-É verdade; li estes nomes, em pequeno, num conto francês - explicou o rapaz, imperturbável.

Depois acrescentou com o seu ar irónico:

-Agora, se me dá licença; vou dar-lhe um conselho, senhor preceptor! Venha tomar conhecimento com os meus amigos. Acaricie-os, faça-lhes festas enquanto os tenho seguros, porque se não consegue quebrar o gelo e conquistar-lhes as simpatias nesta primeira entrevista, receio bem que nunca mais possa entender-se com eles.

- Tem razão - assentiu Norberto sem deixar perceber a menor indecisão.

Teria preferido outra distracção, porque os molossos, mesmo submissos, não tinham uma aparência lá muito tranquilizadora e os delicados braços de Frederico não pareciam poder segurá-los por muito tempo. Mas o seu prestígio estava em jogo e não teve sequer uma hesitação.

Enquanto acariciava o pêlo fúlvo dos animais, ouvia o discípulo pronunciar, quase em voz baixa, interjeições guturais que actuavam como mágico e benéfico sortilégio sobre os animais, totalmente dominados.

E quando este lhes largou as coleiras, os cães começaram a saltar e a brincar alegremente ao lado dos dois passeantes que haviam recomeçado a andar.

- Vejo que é corajoso - observou por fim Chantal, julgando que o merecido elogio daria prazer a Frederico.

Mas este carregou o sobrolho e replicou num tom que de súbito se tornou altivo:

- Evidentemente! Nem um homem da minha raça, um Oskow, poderia deixar de o ser.

O preceptor adivinhou o motivo oculto deste tom quase agressivo.

Então, para experimentar o grau de paciência do companheiro, com propositada incompreensão, insistiu desastradamente:

-O Frederico é ainda tão fraco, tão delicado!

- Ah, também o senhor! - bradou este com cólera.

-julga que não basta meu pai estar constantemente censurando a minha altura e a minha fraqueza? Há dezassete anos que ouço todos os dias a mesma cantiga e acho que já é suficiente!. Mais do que suficiente até, fique sabendo!

Falava com certo nervosismo e visível irritação.

- A meu pai não posso responder. Exaspera-me com os seus comentários, mas tenho de o deixar falar. O respeito filial é também uma das tradições da minha família. E depois.

Suspendeu a frase, soltando dolorosa gargalhada.

- E depois. o quê? - indagou Chantal, impassível.

- Nada - respondeu Frederico com aspereza. Houve ligeira pausa por fim, o rapaz repetiu:

- Nada! Quero apenas dizer- lhe, meu caro senhor e preceptor, ou antes quero pedir-lhe, com toda a delicadeza, com todas as atenções que a minha qualidade de discípulo me impõem, que não torne a falar-me da minha baixa estatura. da minha fragilidade. de qualquer coisa, enfim, que se refira à minha aparência física. Isso irrita-me. sem necessidade. Quer fazer-me esse favor?

- Para lhe dar prazer, com todo o gosto - respondeu Chantal, muito calmo perante tão funda emoção.

- E mesmo se se mostrar sempre tão enérgico e viril, serei o primeiro a tratá-lo como um homem.

Estas palavras tiveram o dom de acalmar Frederico, que, continuando a expor o seu pensamento, prosseguiu:

- Parece-me que nem a altura nem a força dum ser humáno poderão dar a medida do seu valor. Meu próprio pai, aliás, serve de exemplo: não ignora, por certo, que é um grande sábio?

- Marsot disse-me que tem trabalhos admiráveis. Segundo creio, sobre a origem das raças que povoam o globo.

E sobre este assunto continuaram a conversar até que a hora do almoço os fez regressar ao castelo.

E durante todo este tempo falaram apenas do conde de Uskow, das suas obras universalmente conhecidas e do esforço considerável que o pai de Frederico deveria ter dispendido para obter tão maravilhosos resultados.

No decorrer da conversa, Norberto pôde verificar que Frederico elogiava e se regozijava com absoluta sinceridade, pelos trabalhos e êxitos do pai.

Contràriamente ao que era de esperar dum carácter tão impetuoso e observador, o elogio do conde foi feito pelo filho sem facciosismo e sem o mais pequeno indício de rancor.

O filho admirava sem restrições a obra do pai que, no entanto, a cada passo e tão pouco generosamente o metia a ridículo; o rapaz nem sequer parecia admitir que restringissem os limites de tal superioridade. E Chantal, que ao primeiro almoço pudera observar aquela espécie de fúria colérica que dominava o etnógrafo, não pôde perceber se se tratava apenas duma incompreensível cólera de ocasião ou de manifestações duma verdadeira crise nervosa, indícios de futura e mais grave desordem mental.

- Serve-se de molho, senhor professor? Maquinalmente, Norberto deitou sobre a já inquietante mistura que tinha no prato uma colherada servida da molheira que o discípulo lhe apresentava.

Frederico, cuja expressão era particularmente irónica naquela manhã, seguia com divertido olhar todos os gestos de Chantal.

- Vejo que aprecia a cozinha complicada - observou, trocista.

- Para dizer a verdade - respondeu prudentemente Chantal - não posso dar opiniões sobre uma coisa que quase não conheço.

- Ah! Nesse caso ainda é mais cómico - exclamou, soltando um gargalhada - Ao vê-lo proceder à sábia combinação que tem no prato, julguei que fosse alguma especialidade inventada por si. Deve ser saborosíssima toda essa trapalhada, não é assim?

- Talvez - disse o francês em tom indiferente. Percebera de súbito que ò discípulo troçava dele e aguardava maliciosamente a careta de repulsa provocada pela primeira garfada da excêntrica miscelânea.

Chantal lançou uma rápida olhadela ao molho, que começava a alterar-se em contacto com os pepinos de conserva e com os quais não fora por certo destinado a vizinhar.

O mais indicado, para não dar motivo ao riso irreverente do educando, era pôr o prato de lado.

- Ah! Por mim lavo as mãos neste assunto! disse sem se irritar. - Em primeiro lugar, participo-lhe que nada percebo de culinária e costumo comer o que me dão, sem replicar! Por isso, toda a responsabilidade da mistura cabe-lhe a si, Frederico!

- Ora essa! A mim?

- A si. Apresentou-me todos estes pratos e azeitoneiras. Distraído com a conversa e pensando noutra coisa, servi-me de tudo. E tão absorvido estava pelas ideias que nem pensava na comida. Se quisesse, ter-me-ia feito pôr um bocado de tijolo no prato sem que eu reparasse.

- Não é guloso. tem graça - murmurou Frederico, desapontado por ver que a sua pequenina travessura não dera resultado - julguei que os franceses gos tavam de boa mesa.

- E disse muito bem: gostamos de boa mesa, seja ela qual for, mas a qualidade seduz-nos mais que a quantidade ou o nome dos manjares.

Chantal estava satisfeitíssimo por ter conseguido frustrar a malícia de Frederico, tomando ainda a atitude superior dum filósofo, pairando muito acima das mesquinhas preocupações da vida ordinária.

Estavam os dois, preceptor e educando, na enorme sala do rés-do-chão, onde no dia da chegada Iola servira a Norberto uma ligeira refeição. Naquela manhã, sòzinhos, sem a presença do conde de Uskow, tomavam o pequeno almoço antes de principiarem o dia por uma lição de equitação, que estava marcada para as oito horas.

- E agora, a cavalo!

A esta frase, dita pelo professor em tom alegre, mas que não admitia réplica, levantaram-se da mesa e saíram para o pátio.

Dois palafreneiros, de tamancos, seeguravam os cavalos, já aparelhados.

Eram dois animais nervosos e de raça, cujas patadas e estremecimentos dos jarretes indicavam impaciência e vivacidade.

Frederico aproximou-se do que estava mais perto, um vigoroso ponney espanhol e cujo pescoço acariciou.

Depois, sem auxílio e com espantosa agilidade, saltou para o selim.

-Está pronto, senhor meu professor?

Pronto! Ah, não estava! Não se entendia lá muito bem com o animal que lhe estava destinado, o diabo dum garrano alazão, nervoso e irrequieto, que parecia pouco disposto a deixar-se montar.

Chantal, após alguns esforços, conseguiu saltar para a sela, mas aquela dificuldade imprevista, o tom zombeteiro de Frederico e, principalmente, a frase senhor meu professor, que este sabia tornar o mais irónica possível, deixaram-no um pouco nervoso.

E, ao agarrar nas rédeas, deu-lhes tão brusco esticão que o cavalo começou a escarvar e depois a recuar em pequenos passos.

Não conhecendo a índole do animal e percebendo que se estava tornando ridículo, o francês corou de contrariedade.

A lição de equitação começava bem, não havia dúvida!

Frederico, divertidíssimo, observava o companheiro.

O garrano continuava a escarvar, relinchando e recuando, até que desastrada esporada o fez empinar por forma verdadeiramente perigosa.

- Tome cuidado - avisou o discípulo de Norberto, com impassibilidade - Paddy é manso, mas tem as barras muito sensíveis. Se continua a apertar-lhe tanto a rédea, acho-o capaz de recuar assim até às fronteiras da Dylvânia. Abrande-lhe a mão, creia-me! E verá como tudo correrá melhor.

Chantal não respondeu, mas apressou-se a seguir o conselho, e de facto tudo caminhou melhor. Mas ao nervosismo viera ainda juntar-se uma pequenina ferida de amor-próprio, por ver que, logo no princípio, era o discípulo quem dava ao professor uma lição de equitação.

Meteram os cavalos a trote e durante bastante tempo seguiram calados.

Haviam já saído dos domínios do conde de Uskow e caminhavam agora por pitorescos atalhos que atravessavam em ziguezague a floresta, e ainda não tinham trocado palavra.

Frederico parecia satisfeito. Chantal nunca lhe vira as faces tão rosadas e o olhar tão brilhante e regozijava-se com estes sintomas, indício de que aquela criança tão oprimida começava enfim a sentir os benéficos resultados dum pouco de liberdade e de calma.

O filho do conde montava com desembaraço e elegância; o trote rápido e cadenciado do cavalo parecia dar-lhe prazer.

- O terreno agora presta-se para um galope disse de súbito - E vai ver como os animais gostam!

O adolescente lançou o animal num curto galope e o garrano imitou-o.

Aquele andamento rápido parecia de facto agradar tanto aos animais como ao jovem cavaleiro, que os incitava alegremente com a voz.

A vereda através da floresta era quase plana.

O solo, macio e igual, fazia dela como que uma pista natural, e a Chantal bastava-lhe deixar o animal à vontade.

Galoparam assim durante um bom quarto de hora e por fim o atalho terminou. Contudo, o galope do vigoroso ponney acelerou-se. Sem afrouxar, Frederico deixava-o correr pelo coração da floresta.

Norberto, porém, naquela ocasião preferia não estabelecer comparações imediatas com o discípulo...

É verdade que o nosso amigo montava com correcção... Mas, enfim, era obrigado a reconhecer que actualmente a equitação em França é um desporto de luxo, moderadamente praticado.

Chantal recebera lições num dos picadeiros de Paris; depois dera no Bosque uns pacatos passeiozinhos num cavalo de toda a confiança; ora estas prudentes exibições em nada se comparavam com as doidas correrias em terrenos acidentados e perigosos a que Frederico estava habituado desde pequeno. E o professor tinha de convir que, referente a exercícios hípicos, pelo menos, ficava muito aquém do seu discípulo.

Norberto era bastante inteligente e justo para deixar de reconhecer a superioridade de Frederico; mas era novo também e cheio de amor-próprio! Por conseguinte, a verificação desse facto tornava-se-lhe muito desagradável.

O seu mau humor aumentava. E para não o deixar perceber, confinava-se num silêncio absoluto, como se o prazer daquela cavalgada matinal lhe absorvesse toda a atenção.

Esta atitude não pareceu surpreender Frederico, habituado às prolongadas caminhadas solitárias. Assim o passeio prosseguiu sem incidente.

Contudo, quando desciam para o castelo, por um verdadeiro atalho de montanha, serpenteando em ziguezagues, Norberto verificou que, um pouco mais abaixo, o caminho dividia-se em dois. O da direita internava- se pela floresta. enquanto o da esquerda, contornando um barranco, se transformava em vereda estreitíssima, para mais, interrompida por profunda fenda que cortava o flanco da montanha. O preceptor compreendeu imediatamente o perigo que apresentava esta segunda pista.

Sem dizer palavra, procurou passar adiante de Frederico, que não reparou nesta manobra, e, quando chegaram à bifurcação do caminho, o francês tomou deliberadamente pelo da direita, o mais largo e seguro.

-Não costumo ir por aí - exclamou Frederico, obrigando o cavalo a alcançá-lo - Pelo outro caminho é muito mais bonito. Vamos por ele.

- Não. Por hoje prefiro este.

O próprio Chantal se admirou com a forma decidida e autoritária como dera a resposta.

Pareceu-lhe que Frederico o observava com ar admirado, onde a surpresa se misturava a uma espécie de irónico desdém.

Teria ele adivinhado que o companheiro preferia a estrada da direita por ser mais segura e por ter verificado quanto a da esquerda era perigosa?

Fosse como fosse, o rapaz não opôs mais objecções e seguiu dòcilmente o preceptor; depois do almoço, porém, como a conversa recaísse nas diferentes características dos povos - assunto predilecto do velho etnógrafo - Frederico observou à queima- roupa:

- Segundo parece, os franceses são bastante prudentes. Não gostam de se arriscar inùtilmente.

E sem esperar qualquer resposta, fosse do pai ou do professor, prosseguiu com certa impertinência que Norberto apreendeu, sem o deixar perceber:

- A prudência é sem dúvida uma das suas principais qualidades. Não acha, senhor professor?

Norberto tê-lo-ia esbofeteado com prazer. Contentou-se, porém, em responder com a maior calma que lhe foi possível:

- Segundo a boa sabedoria, nenhum esforço deve ser inútil. Os povos primitivos e as crianças fazem muito barulho para despertarem a admiração dos tolos. Daí resultam as suas pouco proveitosas e ridículas bravatas.

Frederico não replicou, mas cravou no professor um olhar onde brilhava um clarão sombrio.

Era a segunda vez, em vinte e quatro horas, que Chantal sentia a satisfação de dizer a última palavra. satisfação em grande parte diminuída pela irritação causada pelo sorriso irónico de Frederico, a quem a presença do pai obrigava a respeitoso silêncio.

- Pegue num florete de lâmina número cinco.

-       É muito pesado.

- Mas uma lâmina número cinco tem outra superioridade. Vamos, em guarda!. Bem. não, não é bem assim. A curva do braço esquerdo mais acentuada. o florete mais alto. Firme-se melhor nas pernas.

Com muito custo, Frederico rectificou a posição.

- Baixe um pouco o ombro esquerdo. Volte-se , mais de lado! - continuou Norberto, que não deixava escapar o mais pequeno pormenor.

Tratava-se duma lição de esgrima e nesse campo, pelo menos, o professor marcava nitidamente a sua superioridade sobre o aluno, e valia-se dela para consolidar o seu prestígio que o carácter trocista do discípulo punha constantemente em cheque.

Gravemente, num tom um pouco doutoral, explicava:

-Como deve compreender, se não baixar um pouco mais o ombro esquerdo, oferecerá ao adversário um esplêndido alvo! O cotovelo direito mais para dentro! Levante a cabeça. Repare que, na posição defeituosa que tomou, nada será mais fácil do que atingir-lhe o peito.

Desta vez o discípulo foi mais pronto em seguir-lhe o conselho.

-Atenção, Frederico. estenda o braço, a fundo. A perna esquerda bem estendida. Em guarda! Finta de estocada directa, destaque. Em guarda! Pare quarta e responda directa. Bem!

Estas ordens, lançadas em tom claro e preciso, eram o único som que interrompia o silêncio pesado do vasto aposento, comprido e bem iluminado, que servia de sala de armas.

- Finta de destaque para quarta e engane o meu contra de sexta por um doble para quarta!.. Em guarda! Pare terça e responda directa! Oh, muito largo. repita!

Frederico reprimiu a custo um suspiro de aborrecimento e sem entusiasmo repetiu o movimento. Via-se que a lição não lhe dava grande prazer!

- Foi melhor, desta vez! Pare segunda e responda segunda.

-A lição ainda dura muito tempo?

- Mas se nós ainda agora principiámos!

Frederico calou-se; estava visivelmente farto, mas sabia que o pai tinha grande empenho naquelas sessões de esgrima e que nada ganharia se protestasse.

O professor, em voz monótona e indiferente, adequada às circunstâncias, continuou:

-Batimento de sexta e resposta um! dois! vertical! Em guarda! Finta por um, dois, e, sobre a minha extensão, pare quarta directa.

O rapaz seguiu estas instruções com gestos cansados.

- Assim não, Frederico, não é nada disso! - atalhou o professor com súbita animação - Deve cair a fundo com elegância e rapidez! Não está a manejar um cacete, mas sim um florete! Olhe. veja bem! é apenas um movimento de pulso, sòmente do pulso.

Aproximara-se do rapaz e, colocando-se-lhe ao lado, agarrou-lhe o braço para o obrigar a executar o movimento que acabara de lhe explicar.

Mas que enorme surpresa experimentou ao agarrar o pulso frágil e delicado de Frederico.

Seria possível que um homem, mesmo de pequena estatura, pudesse ter as articulações tão delgadas?

Atónito, calou-se, contemplando o pulsozinho minúsculo, adivinhando a pequenez da mão que mal enchia a luva e a custo sustentava o florete, apesar deste não ser muito pesado.

Instintivamente, Norberto tirou-lhe a luva e levantou a parte inferior da manga.

Completa ausência de músculos! -pensou. A fisionomia devia ter exprimido ao mesmo tempo um ar compassivo, porque bruscamente Frederico retirou a mão.

- Deixe-me! - exclamou.

Súbito rubor coloria-lhe as faces.

-Tenho de lhe mostrar como se executa este movimento, Frederico. senão, nunca conseguirá fazê-lo com perfeição. Dê-me a sua mão e deixe que eu a guie. sem resistência. para melhor compreender.

E tentou agarrar de novo o pulso delicado. Mas, desta vez, Frederico libertou-se com certa violência.

Bradou:

- Deixe-me, já lhe disse. Esta lição irrita-me. Não me interessa! É complicado e fatigante!...

E antes que Chantal o pudesse evitar, atirou com o florete pela sala fora.

Agora arrancava a máscara com movimentos desajeitados, nervoso, febril, e exclamando numa voz de desusadas estridências:

- Estou farto. farto, percebeu? Acabe por uma vez com estas estúpidas lições de esgrima. Já não as pósso suportar! Se pudessem calcular como todos me aborrecem com essa mania do desporto intensificado!

A voz traduzia cólera e desespero. Era evidente que o fatigavam os exercícios que lhe impunham.

Não obstante o habitual domínio de si próprio, Norberto enrugara a testa com desagrado.

Os modos do discípulo afiguravam-se-lhe particularmente agressivos, naquele dia.

- Descanse um bocadinho - aconselhou, com calma - Está talvez um pouco cansado.

O rapaz soltou uma gargalhada nervosa. quase dolorosa.

- Cansado. Oh sim, deve ser isso! Ah! ah! Estou mais que cansado. estou saturado de todas estas maçadas!

- Mas a que maçadas se refere, Frederico?

- Oh! não compreende, naturalmente. já era de esperar!

Girava em torno da sala, agitando-se como uma fera enjaulada.

De repente, reparou no olhar profundo e admirado com que Norberto o fixava.

- Oh! não fique para aí a olhar para mim de boca aberta. - gritou-lhe com uma espécie de irritado receio - Não sou nenhum fenómeno!

-É, pelo menos, bastante impertinente, meu rapaz.

- Impertinente, acha isso? Oh meu querido preceptor, como o senhor é cómico! Mais do que cómico, até! Completamente ridículo, fique sabendo.

Deu meia volta nos calcanhares e soltou nova gargalhada, prolongada, irónica, que feriu Norberto como uma chicotada.

Saiu por fim e afastou-se, rindo sempre com esse riso nervoso, inquietante, que desorientava e desmoralizava completamente o preceptor.

Havia quinze dias que Chantal se encontrava em Trzy-Krôl.

E verificara já que o conde de Uskow era um original, tão capaz de intermináveis discursos como de obstinados mutismos.

Depois de ter evidenciado severos princípios e exposto intangíveis teorias sobre a educação do filho, parecia agora ter-se desinteressado por completo, tanto delas como do professor.

Norberto e o seu discípulo apenas viam a barba grisalha e a desagradável carantonha do castelão à hora das refeições.

E mesmo algumas vezes este ordenava que lhe levassem ao gabinete de trabalho uma ligeira merenda, para não ser obrigado a interromper durante o dia os seus interessantes estudos.

O horário, organizado nos primeiros dias com tanto cuidado, fora completamente posto de parte.

É certo que o professor procurava ainda segui-lo o mais possível, tanto quanto lho permitia a fantasia do discípulo, porque este, sem motivo aparente, estava sujeito às mais assombrosas reviravoltas.

De facto, Frederico, quando estava bem disposto - e, digamo-lo em seu louvor, era esse quase sempre o seu estado normal - sabia ser amável e agradável companheiro. Mas sucedia também algumas vezes, em certas circunstâncias que Chantal não sabia definir, Frederico dar provas de verdadeiras insubordinações, durante as quais tomava uma atitude irónica e retraída, bastante desanimadora para o pobre professor, que nem sempre conseguia compreender a causa de tais despropósitos.

Norberto, então, só tinha um caminho a seguir: aparentar uma indiferença completa. Este desinteresse feria o amor-próprio de Frederico, que instintivamente se tornava mais dócil e tentava fazer-se perdoar.

Até ali o professor conseguira conservar o domínio de si próprio suficiente para não abandonar esta linha de conduta; mas é forçoso confessar que o carácter do discípulo era de molde a submeter-lhe a paciência e o sangue-frio a uma difícil prova.

Além disso, Chantal não tinha a mais pequena diversão nestes aborrecimentos quotidianos. A presença de Frederico e a conversa, por vezes singular, do dono da casa, eram as únicas distracções que se ofereciam ao preceptor, naquela terra onde, exceptuando o conde e o filho, ninguém falava francês, e da qual Norberto desconhecia por completo a língua.

E assim, muitas vezes, o nosso amigo pensava com saudades em Paris e na família que tivera de deixar em tão dolorosas circunstâncias. Evocava, então, a sua vida despreocupada doutros tempos, vida que tinha a alegrá-la o meigo sorriso de Maud Glory e os prazeres sem conto que a situação de rapaz rico e sem obrigações lhe proporcionava. E todas estas recordações lhe apareciam tanto mais encantadoras quanto o presente se mostrava desagradável.

Sempre que Chantal deixava o pensamento relembrar este passado tão recente ainda, mas irremediàvelmente abolido, sentia-se dominar por profunda melancolia.

Certa tarde, depois de ter recebido da irmã uma afectuosa carta na qual esta ingènuamente lhe perguntava se a viagem nunca mais acabava, o nosso amigo sentiu-se mais triste e desamparado do que nunca. Para mais, nesse dia, Frederico mostrara-se demasiadamente implicador. como se para evitar a perspicácia do professor não tivesse outro argumento senão a ironia, com a qual ocultava toda a sua vida íntima.

Sòzinho na comprida avenida do parque, onde agora se ostentavam todas as galas primaveris, o juvenil professor esperava que anoitecesse e passeava a sua nascente neurastenia.

- De ordinário, o meu feitio não é dado a tristezas - pensava com certa irritação - É este isolamento moral que me deprime.

Precisava recordar a conversa que tivera com o pai e que determinara a sua partida, para recuperar a energia necessária, a fim de prosseguir a sua tarefa em Trzy-Krôl.

- Ah! Se pudesse ir-me embora. partia hoje mesmo para junto daqueles que me são queridos. Aqui ninguém me estima. ninguém se interessa pelos meus pensamentos ou desejos. A amizade e a simpatia foram, segundo parece, banidas desta casa! Vivo aqui moralmente isolado. completamente só!

Teria murmurado estas últimas palavras a meia voz? Ou seria apenas simples coincidência? Nunca chegou a percebê-lo. O caso é que, precisamente naquele momento, sentiu uma leve pressão no braço e ouviu uma voz muito meiga dizer-lhe familiarmente:

- Esquece-se de mim, senhor Chantal. Estou eu aqui.

Subitamente transportado da querida visão do seu lar para o ambiente melancólico de Trzy-Krôl, Norberto sobressaltou-se.

Frederico estava a seu lado, fixando-o com os grandes olhos escuros.

E, como acontecera na tarde da sua chegada, quando à mesa Chantal tomara a defesa do rapazito, aquelas pupilas aveludadas não exprimiam a menor ironia. Pelo contrário, qualquer coisa brilhava nelas que se poderia tomar por emoção.

- Esqueceu-se de mim.

Comovedora censura que um sorriso atenuava, mas que respondia com tanta precisão ao pensamento do professor, que este ficou convencido de ter, sem dar por isso, exprimido o seu nostálgico queixume em voz alta.

Em silêncio, olhou Frederico, sentindo no braço, através da fazenda do casaco, o calor tépido da sua mão.

- E, na verdade, tê-lo-ia esquecido, Frederico. - observou por fim com propositada meiguice - Foi tal vez mesmo por sua causa que o meu pensamento perdeu um pouco de coragem ao recordar os entes queridos, cuja falta se faz sentir, por vezes, bem terrivelmente.

- Se o desgostei, perdoe-me, mestre - desculpou-se o adolescente, em tom lamentoso.

- Por que motivo é o Frederico tão desconcertante por vezes?

Os grandes olhos escuros vacilaram antes de se ocultarem com as pálpebras franjadas pelas compridas pestanas.

- Perdoe-me - repetiu com voz pouco segura daqui em diante farei o possível por me modificar.

Norberto mais uma vez encarou o discípulo. Aquela atitude submissa parecia-lhe anormal e provocava-lhe um pouco de desconfiança.

-O Frederico é sincero neste momento e agradeço-lhe as boas intenções - aprovou, no entanto Mas qual o motivo das suas reviravoltas inexplicáveis? Dessas cóleras sem pés nem cabeça! Dessa irritação injustificada que às vezes se manifesta contra mim?

- Oh! contra si, não!

O protesto brotou-lhe espontâneo dos lábios. E este facto causou a maior alegria a Norberto.

- Contra quem, então? - inquiriu.

O outro encolheu os ombros por forma imperceptível e maquinalmente mordeu o lábio inferior.

- Eu sei lá! Contra o tempo, talvez - murmurou por fim, para evitar mais perguntas.

Chantal, porém, não se contentou com tão fútil desculpa.

-Então torna-se violento e irascível sem saber porquê? Vejamos, Frederico, é inverosímil essa afirmação.

O rapaz não respondeu. Voltou a cabeça e o olhar sombrio procurou ao longe as campinas e as florestas i que, banhadas em purpurina luz, se estendiam a perder de vista.

-Não tem confiança em mim, Fred? Não quer dizer-me sinceramente o que pensa?. o que há na nossa convivência que tanto lhe desagrada?

- Aparentemente, nada. Que lhe hei-de dizer?

Que tenho de reconhecer que não podia encontrar professor mais perfeito?

-E, contudo, há ocasiões em que esse professor o irrita singularmente.

Novo encolher de ombros. Depois, em tom infinitamente desiludido, replicou:

- Não, o mestre é irrepreensível, já lho disse - insistiu - Bem sei que todas as culpas são minhas. Sou um discípulo caprichoso, indisciplinado, não é assim?

- Não disse semelhante coisa, Frederico.

-Mas, por meu lado, nada me custa confessar que sou o causador de todo o mal que acontece em Trzy- Krôl.

- Que exagero!

- Não é exagero; e senão, pergunte a meu pai. Ele lhe dirá que esta casa seria um céu aberto se não tivessem aparecido nela, primeiro minha mãe. e depois eu, causa constante do seu mau humor.

Um sorriso iluminou as feições de Chantal.

-Mas no que me diz respeito, não perfilho as opiniões do conde de Uskow. Se não me tivesse aparecido um certo Frederico para educar, nunca teria vindo aos Cárpatos. e ele próprio não existiria se, antes dele, não tivesse vivido neste castelo uma jovem mamã, tão cedo desaparecida. Abençoo, portanto, a memória duma e regozijo-me com a presença do outro. e se a minha sincera amizade tem, para este último, qualquer valor, porque motivo me recusará em troca a sua, quando tenho tanto desejo de a obter?

Os lábios de Frederico tremeram sob o impulso de súbita emoção.

- Pensou bem no que acaba de me dizer, senhor Norberto? -inquiriu com voz abafada. Ao mesmo tempo, o seu olhar profundo fixava, ansioso, aquele que pronunciara tão consoladoras palavras.

- Nunca digo senão o que penso - replicou o preceptor em tom que pretendia ser áspero, mas que mal escondia a comoção que lhe causara a perturbação do discípulo.

Entretanto, estendia a mão francamente aberta, procurando a deste último, que imediatamente correspondeu ao gesto de amizade.

Por momentos, ficaram calados e bem unidos por aquele aperto de mão que equivalia a um pacto.

Foi Frederico, quem tal diria, quem primeiro recuperou a calma.

-Senhor Chantal, não se esqueça de que devia dar-me uma lição. Prometeu-me uma sessão de alteres para hoje de tarde e estive à sua espera mais de vinte minutos.

- Tem razão - assentiu Norberto, caindo de súbito na realidade - Vamos depressa.

Frederico demonstrou muita aplicação, maior docilidáde e um evidente desejo de agradar ao moço preceptor.

E Norberto, que não ousara esperar tão belos resultados, sentiu-se reanimar com a imprevista amabilidade do discípulo.

Mas o sentimento de alegria que nascia no mais íntimo do seu ser causava-lhe ao mesmo tempo a maior surpresa.

Que poder haveria no olhar daquele rapaz, que desejo instintivo de agradar emanava dele, para que duas ou três palavras afectuosas, pronunciadas pela sua voz meiga, fossem bastantes para lhe restituir a coragem?

E, enquanto ia indicando com método os exercícios, Norberto procurava com insistência a solução deste problema, admirando-se ao mesmo tempo pela importância que lhe ligava.

Frederico fazia agora a flexão dos joelhos, ordenada pelo professor.

Envergava um calção curto e largo que deixava a descoberto as pernas nuas.

O olhar de Chantal fixou de súbito a barriga das pernas, bem torneada, e os tornozelos delicados, e pensou:

-Este rapaz não tem músculos. Quando o vejo assim e não lhe olho para a cara, faz-me lembrar minha irmã. Por muito empenho que o conde seu pai faça nisso, nunca será um verdadeiro desportista: vigoroso e forte.

Este prolongado exame foi desastroso para o acordo que acabavam de firmar. o que prova que nem sempre está na nossa mão evitar as catástrofes!

-Por que me olha dessa maneira?-bradou de repente Frederico, com voz bastante áspera - São as minhas pernas que lhe despertam tanto interesse?

Arrancado tão bruscamente aos seus singulares pensamentos e chamado à realidade, Norberto estremeceu:

- Exactamente - afirmou devagar, sem suspeitar a crise que ia desencadear.

-Ora essa! Mas que têm as minhas pernas de extraord inário?

O preceptor tomou o seu tom mais doutoral.

-Com efeito, nada têm de extraordinário. São umas pernas como outras quaisquer.

- Então?

-São apenas muito brancas e delicadas; estava a pensar que precisam tomar banhos de sol, mais nada.

- Detesto os banhos de sol - foi a resposta rápida e definitiva.

Por uma daquelas bruscas reviravoltas de génio que lhe eram habituais, e não obstante o afectuoso acordo tão amigàvelmente estabelecido entre os dois, meia hora antes, Frederico pusera-se sùbitamente de mau humor.

O olhar brilhante, nos lábios uma espécie de desafio, mostrava-se agora tão desagradável quanto fora amável havia dez minutos.

- Além disso, já estou farto destes exercícios idiotas! Os seus alteres cansam-me, ouviu?. E todos estes movimentos me aborrecem.

E, como já fizera ao florete e à luva, atirou com os pesos de ferro fundido, que rolaram pelo chão com grande ruído: depois, sem moderar os gestos irritados, saiu a correr, deixando o professor completamente assombrado.

- Catrapus! Que bicho lhe mordeu? - pensou Chantal, que não conseguia dominar o espanto.

Não podia compreender semelhantes ataques de cólera.

- Chego a convencer-me de que é maluco! Se eu estava a falar nas pernas!

Mas pensou em seguida que talvez Frederico tivesse visto nas suas palavras nova alusão à sua falta de bíceps ou à sua pouca altura.

- Chega a ser obsessão. Daqui a pouco, passo a não saber como hei-de falar.

Pensativo, o professor apanhou os alteres e arru mou-os na caixa que lhes estava destinada.

Quando acabou, bateu vagarosamente com as mãos uma na outra para sacudir a poeira que se lhe agarrara aos dedos.

de súbito, como se tivesse finalmente encontrado solução para o difícil problema que o preocupava, monologou a meia voz:

-No fim de contas, é digno filho do conde de Uskow! E pergunto a mim mesmo se da disparatada união desse anão intelectual que é o pai, com a corpulenta criatura, um pouco idiota, que deveria ser a mãe, não saira um filho maluco! É caso para apurar!

O desporto que mais agradava aos dois rapazes era a equitação.

Montando todos os dias, Norberto tornara-se um cavaleiro quase tão hábil como o discípulo, identifi cando-se bem com os movimentos do cavalo e evitando cansá-lo inùtilmente, o que nem sempre acontecia com Frederico, que gostava de fazer executar à montada fantasias complexas e movimentadas.

Naquela manhã, saíram os dois para o habitual passeio, indo Frederico à frente, como de costume.

Escolheu um caminho estreito, que contornava o bosque e escalava a montanha numa subida gradual e suave.

Chantal não conhecia o atalho; enveredou, por tanto, por ele, sem desconfiança, tanto mais que havia já alguns dias que só tinha a congratular-se pela boa disposição do discípulo.

Decorrida meia hora de marcha, num trote rápido, pareceu ao preceptor que o atalho que seguiam quase acompanhava a orla do planalto. Havia pontos, mesmo, em que contornava a floresta e dominava por forma bastante perigosa os terrenos que se estendiam para o vale, numa inclinação brusca e em barrancos impraticáveis. Não era aquele o mesmo caminho que recusara seguir dias antes?

- Allô, Frederico - bradou - Esta estrada não lhe parece perigosa? Tenho a impressão de que bastaria um desvio dos nossos cavalos para nos colocar em dramática situação! Não há meio de abandonarmos este maldito atalho e tomarmos por caminho mais seguro?

Sem afrouxar o andamento, Frederico voltou um pouco a cabeça e observou:

- Acaso terá medo, senhor professor? Sempre ouvi dizer que os franceses eram destemidos e intrépidos. Cá por mim, tenho seguido centenas de vezes este carreiro sem me preocupar com o perigo que possa correr.

- Não é o perigo que me preocupa - replicou Chantal com arrogância - mas a inutilidade de me expor sem proveito para ninguém. Os franceses são, de facto, como acaba de dizer, bastante corajosos e arriscam fàcilmente a vida, mas nunca o fazem, como já observei, senão por motivos determinados. Graças a Deus, no nosso país, ainda que sejamos um pouco estouvados e impulsivos, não costumamos ter inúteis bravatas, e preocupamo-nos mais em realizar um acto realmente útil do que em deslumbrar os papalvos. Mais uma vez lhe peço, Frederico, que procuremos à direita qualquer outra estrada, ainda que, para a alcançarmos, tenhamos de caminhar pelo meio do arvoredo.

- O senhor Chantal tem medo - gritou alegremente Frederico - Que cómica descoberta eu fiz agora! Mas não se assuste, o meu prudente e ponderado mestre. mais umas centenas de metros e encontraremos a estrada larga e segura por que tanto anseia.

Vamos, um pequeno galope e chegaremos lá mais depressa!

E chicoteando o cavalo e apertando a rédea com a indiscutível segurança dum bom cavaleiro, incitou o animal com a voz e partiu num galope rasgado.

- Frederico! Está doido, com certeza! Pare! – bradou mais uma vez o professor, assustadíssimo com mais esta extravagância do discípulo - De que lhe serve expor-se assim? Basta um capricho do seu cavalo para ser precipitado no barranco.

O rapaz respondeu apenas com uma gargalhada que o eco multiplicou durante muito tempo.

Além disso, na louca correria em que o imprudente se precipitara, não deviam chegar-lhe aos ouvidos as palavras do preceptor, mas sòmente o tom encolerizado, que era para o seu ardor indisciplinado maior estímulo do que se este o tivesse incitado com palavras de aprovação.

Norberto não teve outro remédio senão seguir o indócil cavaleiro. Fê-lo sem precipitação, apesar da correria insensata de Frederico lhe causar profunda inquietação.

- Diabo de rapaz! - murmurou - Há-de sempre estragar os meus momentos mais felizes! Tem hoje o demónio no corpo e gostaria bem de ter o direito de lhe dar um bom sopapo para lhe fazer compreender a necessidade de obedecer às minhas ordens.

O caminho apresentava ligeira subida. Oh! não muito íngreme, mas o suficiente para obrigar o cavalo amoderar o passo... Ora justamente nesse momento, Norberto avistou mais uma vez, cortando o solo escarpado, a perigosa fenda para a qual o discípulo avançava despreocupadamente.

Gritando o mais possível, bradou:

- Pare, Frederico, pare!

Novamente o eco lhe trouxe aos ouvidos uma gargalhada de troça.

O professor via-se na ímpossibilidade de alcançar o intrépido cavaleiro.

Assistiu, portanto, de longe e impotente, visto o seu cavalo ser muito mais pesado do que o dele, à arriscada proeza do filho do conde de Uskow.

Algumas chicotadas aplicadas com mão nervosa na garupa do possante ponney, as rédeas apertadas com vibrante impaciência e o animal, levantando as patas, transpôs num salto magnífico o perigoso obstáculo.

Do outro lado, Frederico parou o cavalo, que todo tremia ainda pelo esforço empregado, e voltado para Chantal, o imprudente incitou-o com voz bastante irónica:

- Vamos, cabe-lhe agora a vez, cauteloso francês! Dizem que em Longchamps os cavaleiros transpõem com facilidade a ribeira. Este salto não é mais difícil. Vamos. Trouxe comigo o Kodak e prometo-lhe obter a mais bela foto que até hoje tem possuído.

Mas Chantal parara com toda a prudência.

-Se aceitasse o seu desafio era mais doido de que o próprio Frederico - ripostou com mau humor Não conheço as possibilidades do meu cavalo para arrastar para semelhante imprudência. Além disso, já lhe disse que tenho horror aos actos ridículos e inúteis como o que acaba de praticar. Não lhe farei, portanto, esse gosto, Frederico.

E como visse o ar de zombaria do discípulo, acrescentou, deixando, de súbito, transparecer a cólera:

-Julga talvez que admirei a sua temeridade? Engana-se. Ainda que isso cúste ao seu orgulho, só vi estupidez e inutilidade no gesto que acaba de realizar. Se espera que o felicite, tem muito que esperar, senhor Frederico de Uskow! Para mim, não passa dum garoto insignificante que procura elevar-se por meios mais ridículos ainda do que ele.

Depois deste discurso, pronunciado com irritação fácil de calcular, Norberto obliquou deliberadamente à direita e penetrou por entre o arvoredo.

Caminhando do outro lado da fenda, Frederico acompanhava-o, de sorriso nos lábios e aspecto trocista.        De cabeça levantada, assobiava com fisionomia por tal forma alegre que Norberto sentia o seu descontentamento crescer a cada instante.

Andaram assim uns duzentos metros.

Chegados à extremidade da fenda onde os dois caminhos se encontravam, Frederico meteu esporas ao cavalo e partiu adiante a todo o galope.

- Até já, meu caro e prudente senhor! - bradou- lhe irònicamente em ar de despedida.

Norberto calculou logo que o rapaz se afastara para não ouvir a reprensão que não deixaria de lhe dar.

- Toca a pôr ao largo - pensava efectivamente o adolescente - Nada de conversas com o meu mentor. Tenho horror às complicações e aquele pobre senhor Chantal é às vezes tão maçador que prefiro vê-lo, pelo menos neste momento, bem longe de mim.

Por seu lado, Norberto, irritado, não se preocupou em correr atrás do indisciplinado e deixou-o afastar à sua vontade, o que não o impediu de ir resmungando com todo o mau humor:

-Corre, meu menino, corre! Se me apetecer, a todo o tempo é tempo de te apanhar! E se imaginas que vou ligar-te a importância de te ralhar, enganas-te, meu caro amigo. Procuras por todas as formas que os outros se ocupem de ti, mas eu não estou para te satisfazer os caprichos! Não passas dum aroto insignificante! Agora já te conheço bem, amigo Fred, e estou certo de que dás provas de muito maior prudência quando estás só e não tens quem admire as tuas proezas...

Enquanto assim monologava, aproximava-se do castelo.

Meteu o cavalo a passo, o que lhe permitiu, graças à extensão do caminho, acalmar a cólera e reflectir com tranquilidade no procedimento que iria adoptar para com Frederico.

Não seria melhor avisar o conde de Uskow do que se passava?

- Prevenirei o pai de que me é impossível impedir as imprudências do garoto. Se o caminho estivesse vedado, Frederico não poderia tomar por ele, e o assunto ficaria solucionado. É isso! Pedirei que lhe ponham uma vedação; é melhor resolução do que passar a vida a gritar.

Esta decisão tranquilizou-o, ainda que não deixasse de guardar certo rancor a Frederico por todos os cuidados que lhe dava.

- O rapazito é levado do demónio e pode gabar-se de me complicar a tarefa! Nunca supus ter de desempenhar o papel de galinha que chocou um pato! É aborrecido! Tudo quanto há de mais aborrecido!

E, mais uma vez, o pensamento recordou Paris e os dias felizes que ali passara, quando a fortuna lhe sorria e o futuro se lhe apresentava nimbado pela alegria

e pela glória. Paris. onde floria o meigo sorriso de Maud.

- Para que diabo me vim eu meter nesta prisão?

- resmungou.

Naquele momento esquecera por completo a imperiosa necessidade que a isso o obrigara.

O esquecimento pouco durou e como aos vinte e cinco anos as tristezas passam depressa, soltou de súbito uma gargalhada e com despreocupada resignação murmurou:

- Ora! Assim era preciso. Não pensemos mais nisso!

E como a teimosa recordação de Maud continuasse a persegui- lo, acabou por encolher os ombros:

- Vamos, nada de pieguices! Além disso, lembremo-nos de que a Maudezinha nem sempre era um modelo de bondade! Havia mesmo dias em que não se podia aturar, a pobre pequena! E a respeito de ironia, também era mestra no assunto!

Exactamente! E uma comparação moral lhe saltou aos olhos.

O carácter nervoso, despótico e até trocista do rapazinho, fazia-lhe lembrar o de Maud, igualmente caprichoso e variável.

- É tal qual uma menina! Uma criança no corpo e na mentalidade. É assim mesmo, não passa duma menina, o meu discípulo! E o pai tem razão, não dá honra ter um filho como ele!

E, ao verificá-lo, o próprio professor se sentia humilhado.

Quando Norberto penetrou no átrio do velho solar, a sineta dava o primeiro sinal para o jantar.

Naquele dia o conde, alegando grande fadiga, mandou pedir desculpa a Norberto e jantou nos seus aposentos.

O preceptor teve, portanto; de adiar para mais tarde a conversa que desejava ter com ele. Contudo, como no dia seguinte, Frederico, quando saísse a cavalo, poderia lembrar-se de repetir a proeza, Chantal mandou um criado obstruir a estrada com alguns troncos de árvore, a uns vinte metros do ponto perigoso.

- Assim - pensou - o cavalo não poderá tomar impulso e Frederico ficará impossibilitado de reeditar o arriscado salto.

O professor levou a sua prudência ao extremo de avisar Frederico, antes de saírem, de que o seu caminho favorito estava obstruído.

-Além disso, proíbo-lhe que torne a repetir tão perigosa façanha e espero ser obedecido desta vez.

O juvenil cavaleiro encolheu os ombros com desdenhosa comiseração.

- Não vejo motivo para essa proibição - replicou raivosamente - há dez anos que todos os dias salto aquela fenda e nunca me aconteceu coisa alguma.

- Uma desgraça acontece em poucos minutos. Enquanto eu estiver em Trzy-Krôl não consentirei que se arrisque assim.

Um sorriso de troça contraiu os lábios de Frederico.

-Com que então o senhor meu preceptor receia que me suceda qualquer desastre? - observou em tom irónico - Sim, por mais duma razão isso seria muito desagradável para si!

Se Norberto compreendeu o sentido injurioso destas palavras, teve contudo a coragem suficiente para se conservar impassível,ainda que o sangue lhe fervesse nas veias.

- As suas impertinências não me ferem, meu rapaz - retorquiu com frieza - Se isso o alivia, destile o seu veneno à vontade. Contanto que cumpra as minhas ordens quando sairmos juntos, o resto é-me indiferente.

-Oh, bem sei o pouco interesse que lhe mereço, meu caro senhor, e que lhe é indiferente contrariar-me ou não, contanto que a sua tranquilidade esteja assegurada. completamente assegurada. Mas descanse, visto que isso o incomoda, trataremos de não ferir a sensibilidade de S. Ex. a!

E dando uma gargalhada, chicoteou o cavalo que partiu a galope.

Nem sequer esperara por Chantal, que apertava uma fivela do selim, e quando este conseguiu enfim montar, já o terrível parceiro lhe levava um avanço de mais de trezentos metros; assim, era Frederico quem mais uma vez dirigia o passeio e escolhia o itinerário.

De princípio tudo correu bem. Os caminhos eram desconhecidos para o francês e devido aos mil rodeios feitos pelo discípulo através da floresta, Chantal julgou ter tomado direcção totalmente oposta à da célebre fenda.

De súbito, porém, o solo pedregoso e avermelhado despertou-lhe a atenção. Procurou orientar-se.

- Vejamos, aquele rochedo que se ergue quase à altura das árvores não fica perto do precipício. Nesse caso, o atalho que seguimos vai ter a um dos lados do barranco. sempre o maldito a aparecer-me!

Allô, Frederico!

Mas o outro não respondeu. Tocando alternadamente com a ponta do chicote nos flancos do cavalo para que este dobrasse os joelhos, fazia-o dançar, exercício que o ínteligente animal executava com toda a boa vontade.

Frederico ria, feliz com o resultado obtido e aparentava nem sequer ouvir Norberto, cada vez mais inquieto.

- Ouça, Frederico! Não será este atalho cujo acesso lhe proibi que seguisse?

Mas bem podia gritar. Com algumas chicotadas vigorosamente aplicadas, Frederico estimulou o cavalo, que partiu à rédea solta.

E já longe, soltando irônica gargalhada, declarou a Norberto, assombrado com tanta audácia:

- Não se assuste, senhor professor. Eu e o meu cavalo vamos verificar se os troncos de árvore são, como supôs, um obstáculo à nossa excursão quotidiana.

O atalho descia num declive rápido e as pedras rolavam debaixo das patas do animal, sem que o intrépido cavaleiro parecesse preocupar-se com isso.

Norberto esforçava-se para o alcançar, mas o seu cavalo, mais pesado do que o outro, recusava-se a correr naquela pista tortuosa, muito áspera para os seus cascos. O preceptor não teve, portanto, outro remédio senão avançar devagar.

De resto, não obstante a sua ansiedade, preferiu internar-se na espessura da floresta. Não seria melhor abandonar Frederico do que excitá-lo e desafiá-lo com a sua presença, inútil naquela ocasião? Bem sabia que o discípulo, vendo-se sòzinho, não levaria tão longe a sua temeridade.

Chantal calculava também que, estando os troncos colocados do lado do castelo, Frederico, descendo a colina do lado oposto, poderia à vontade obrigar o cavalo a formar o salto, sem que nada o detivesse. Contava além disso com a perícia do cavaleiro para levar a bom termo o perigoso exercício.

Esta convicção, que de facto se confirmou, diminuiu em parte a inquietação de Norberto, mas não foi suficiente para lhe restituir o bom humor, e dez minutos depois, quando Frederico apareceu do outro lado da fenda, com modos triunfantes, sorriso nos lábios e aspecto zombeteiro, Chantal volveu-lhe sombria olhadela carregada de ameaças.

O outro afectou não dar por ela; contudo, decorridos alguns minutos, deixou de assobiar, a fisionomia perdeu a sua expressão irónica, esforçou-se por caminhar a par de Norberto e quando os dois carreiros se confundiram, não tentou passar-lhe adiante como fizera na véspera.

Toda esta submissão não desarmou o preceptor. Assim, quando, andados uns duzentos metros, professor e discípulo se encontraram lado a lado, o primeiro voltou-se para o rapazito e num gesto brusco levantou o chicote, que sibilou, e fustigou com força os ombros do desobediente.

- Para outra vez, meu pequeno - preveniu - se tornar a arriscar-se estùpidamente como acaba de o fazer, não o castigarei com uma chicotada. Baixar-lhe-ei os calções e dar-lhe-ei um bom par de açoites, como se faz às crianças teimosas que não obedecem às palavras e que só compreendem o que desejamos quando empregamos os meios violentos!

Frederico não esperava semelhante castigo. Atingido pela chicotada brutal, curvara-se instintivamente. Depois, muito pálido, a expressão desvairada, contemplou o professor, cujo olhar traduzia violenta cólera.

- Bruto! - bradou fora de si.

O furor dementava-o e não podia admitir a correcção que acabavam de lhe infligir.

- A sua chicotada, senhor Chantal, não ficará sem resposta, pode estar certo! Nunca deixei de retribuir ofertas dessa natureza! Afirmo-lhe que jamais esquecerei o seu delicado mimo e que lho pagarei com juro e capital!

Chicoteou o cavalo e partiu numa carreira desordenada.

Seguindo-o de perto e quase tão pálido como ele, Norberto, de olhar sombrio e mal restabelecido ainda do seu arrebatamento, precipitou-se com igual velocidade.

Chegaram diante das estrebarias quase ao mesmo tempo.

Frederico desmontou.

Tinha ainda a fisionomia alterada e os grandes olhos negros chamejavam sob a acção da ira que a reflexão parecia ter aumentado em vez de diminuir.

- Studowl! Toma conta do cavalo e avia-te, grande estúpido! Levas uma hora para obedecer! Vamos, despacha-te, maldito lacaio! Precisas que te dê duas ou três chicotadas para me ouvires melhor?

Impassível na aparência, Norberto desmontara por sua vez e com gestos vagarosos, precisos, sem o mais pequeno nervosismo, deu-se ao cuidado de desaparelhar o cavalo por suas mãos.

Foi então que Frederico se aproximou dele.

- Creio que há pouco me tratou como se eu fosse um criado!

Chantal levantou os olhos para o rosto delicado que a cólera decompunha.

- Como um criado! - exclamou - Oh! Nem pensar nisso! No meu país não usamos bater nos criados.

Também não costumamos chamar-lhes lacaios, nem os insultamos como acaba de fazer. Só os fracos ou os déspotas injuriam os seus inferiores. Lamento mais uma vez, Frederico, mas não posso felicitá-lo. Está muito longe de proceder como um homem!

- Homem ou não, pouco me importa! - replicou o intrépido rapaz - Só sei que há pouco me bateu e que lhe afirmei que nunca admitiria que alguém, fosse quem fosse, levantasse a mão para mim!

Num gesto rápido que Norberto não pôde prever nem evitar, Frederico levantou a mão e assentou tremenda bofetada na face do professor.

Após este bofetão tão vigorosamente aplicado, seguiram-se uns minutos de trágico silêncio.

O olhar de Chantal traduziu inexcedível assombro. Nunca supusera Frederico capaz de tão insólito procedimento e instintivamente recuara três passos.

O seu rosto lívido, onde apenas sobressaía a mancha violácea produzida pela mão do garoto, exprimia mais do que espanto. exprimia cólera, indignação. mas também um sentimento doloroso. infinitamente triste, quase dramático.

- As nossas contas estão liquidadas - declarou Frederico, cuja voz sibilava.

- Mais do que supõe - respondeu Chantal em voz surda e terrivelmente calma - Foi a última vez que me ocupei de si, Frederico. Amanhã abandonarei Trzy-Krôl.

- Boa viagem! - retorquiu o rapaz, cujo ressentimento parecia inextinguível.

Sob o impulso da cólera, todo ele tremia.

- Até que finalmente me verei livre de si, francês maldito! - bradou - Desde que o conheci nunca mais tive um momento de sossego! Contrariou todas as minhas aspirações! Quase deixei de respirar, com receio de lhe desagradar. com medo das suas censuras. do seu sorrisu zombeteiro. do seu olhar irónico que pretendia subjugar o meu. Odeio-o! Ah, como o odeio e estou satisfeito. satisfeitíssimo mesmo com a sua partida! nunca mais o verei e recuperarei a minha tranquilidade. a vida livre que levava antes da sua chegada.

A cólera esvaiu-se num soluço e correndo atravessou o relvado e precipitou-se, tomando a direcção da floresta.

Convulso soluçar lhe sacudia o peito e fugia talvez com receio de que o outro fosse testemunha da sua fraqueza, fruto duma exasperação elevada ao paroxismo.

Esta rápida cena não tivera testemunhas. O pobre Studow, fustigado pelas ásperas palavras do seu jovem amo, afastara-se, submisso, conduzindo os dois cavalos.

Por instantes, Norberto ficou imóvel, pregado no mesmo sítio e como que fulminado pelo assombro. Aquela bofetada tão magistralmente aplicada e por tal forma imprevista. aquela explosão de ódio mais inesperada ainda. as frases indicando um estado de espírito exasperado que estava longe de suspeitar. tudo parecia deixá-lo estupefacto.

O seu primeiro impulso foi deixar Frederico afastar-se, sem mais se preocupar com um personagem tão vingativo e grosseiro.

Pensou também que lhe seria infinitamente agradável, naquele momento, poder refugiar-se no seu quarto e, ali, pensar com todo o sossego na linha de conduta que iria adoptar até ao momento da partida. e em seguida, no que faria longe de Trzy-Krôl daí em diante.

Mas uma vaga inquietação, nascida no mais profundo do seu ser, paralisou-lhe o desejo de isolamento e de indiferença.

Frederico afastara-se em direcção à floresta num estado de verdadeiro desespero. Aquele gaiato nervoso e exaltado ao máximo por uma destas cóleras irreprimíveis que o tornavam irresponsável, não seria capaz, no meio do seu desvairamento, de cometer um acto irreparável?

E, ainda que profundamente ofendido, Norberto não deixou de medir a sua responsabilidade de homem calmo e sensato perante um ser frágil.

O instinto que leva os fortes a proteger os fracos, foi mais imperioso nele que o desejo egoísta de não mais se preocupar com um discípulo tão recalcitrante.

Como se invisível mão o impelisse em seguimento de Frederico, tomou a direcção que este levara.

Caminhava sem entusiasmo, classificando a sua piedade de ridícula, fazendo protestos de indiferença e dizendo de si para si que depois do que se tinha passado, dava provas de grande estupidez em se ocupar com um rapaz tão mal-educado. Contudo, continuava a avançar, verdadeiramente inquieto com o destino do endiabrado.

Como atingisse a pequena porta que dava para o bosque, viu aquele que procurava caído por terra, num campo de relva cuidadosamente aparada por meticuloso jardineiro.

Parou.

Do ponto onde estava podia ver Frederico, mas era impossível a este dar por ele.

O rapazito estava de bruços, estendido ao comprido, o rosto oculto nos braços encruzados. Um movimento convulsivo agitava-lhe os ombros, o que perturbou bruscamente Chantal.

Frederico chorava.

Se bem que vivesse há quatro meses a seu lado, nunca o professor o vira chorar.

E ao contemplá-lo agora ali, sacudido pelos soluços, indescritível emoção dominou Chantal.

Ficou comovido, hesitante, perturbado pelas lágrimas que via correr, mas continuando ao mesmo tempo ofendido e melindrado com o impertinente. Norberto era sensato, senhor dos seus nervos e decidido. Tanto a sua força física como a moral, permitiam-lhe encarar com são critério os acontecimentos mais extraordinários e as situações mais inesperadas.

Em face daquele rapaz que chorava, todo o seu desejo de vingança se esvaiu. Afirmara-lhe que partiria no dia seguinte e não modificava esta resolução. As lágrimas de Frederico não podiam destruir o que se tinha passado, nem fazê-lo mudar de tenções. Mas o carácter daquele homem era suficientemente nobre para não triunfar com a derrota do adversário.

O seu instinto generoso impelia-o a proteger aquele ente mais fraco do que ele e resolutamente avançou para Frederico.

Em pé, junto do rapaz que não dera pela sua chegada e continuava a soluçar, contemplou-o durante um momento.

E de súbito, verificou, admirado, que todo o seu rancor desaparecera. As lágrimas do discípulo haviam-lhe dissipado o ressentimento, como se delas emanasse um fluido dissolvente da sua energia.

- Levante-se, Frederico - disse-lhe por fimPor que chora assim? Se é a minha chicotada a causa de tanta aflição, porque a considera deprimente e injuriosa, sossegue, a minha cólera visava mais a sua imprudencia que poderia ter tido consequências fatais, do que os seus sarcasmos e ironias infantis.

Curvou-se para o corpo estendido e tocou-lhe ao de leve no ombro.

- Vamos, levante-se, Frederico! Torno a repetir-lhe: o incidente não merece tantas lágrimas.

Nem sequer reparava que estava dando provas duma inacreditável generosidade para com o insolente gaiato.

Fora sempre um discípulo caprichoso, estouvado e muitas vezes insubordinado. Fora para com ele de uma grosseria inclassificável. Levara a a sua insolência ao extremo de levantar a mão para ele. Contudo, naquele minuto, qualquer sentimento incompreensível o dominava. uma inexplicável comoção lhe amargurava a alma. Como se as lágrimas choradas pelo outro o esmagassem com um peso enorme.

Calado, o olhar sombrio, analisou o vulto delicado estendido no chão; os ombros arredondados sacudidos pelos soluços. o pescoço alvo, tão frágil, a nuca mimosa como a duma criança. a cabeça airosa e pequena sob a cabeleira farta e loura e cujos sedosos anéis mal encobriam o lóbulo minúsculo da orelha.

Com uma espécie de atracção, Norberto analisava aquela frágil delicadeza e opunha-lhe a sua alta estatura, as formas elegantes, a sua força potente de homem desportivo e robusto.

Sentiu a garganta contraída por forma anormal ao recordar a chicotada que vibrara naquele ente fraco. E horrorizou-se. O pescoço branco, onde o cordão do chicote deixara ligeiro vergão, fascinava-o! Teve como que um deslumbramento. Tudo aquilo lhe fez lembrar ao mesmo tempo a irmã, Maud Glory e uma outra mulher que em tempos amara.

O corpo esbelto, o pescoço grácil, aquele vulto estendido. que recordações lhe despertavam! Sentiu-se perturbado e admirou-se com a emoção que experimentava.

Atribuiu toda a sua comoção às lágrimas de Frederico.

Então, compassivo, mais uma vez exclamou:

- Vamos, meu filho, não chore mais - pediu num tom que concedia o perdão completo, antes que o outro Lho tivesse implorado.

Com meiguice, segurou-o pelos ombros e levantou-o. Debaixo das mãos, encontrou, através da lã da camisola, umas formas brandas e roliças que mais uma vez o surpreenderam.

Desta vez extraordinário pensamento fez enrugar a fronte de Norberto, e como Frederico se levantasse com o rosto ainda húmido das lágrimas, o rapaz inclinou-se para os grandes olhos escuros, procurando ler nas pupilas cor de treva não se sabe que inconcebível revelação.

Por momentos, os olhares do professor e do discípulo cruzaram-se, penetraram-se.

Que choque súbito e estranho se produziu entre eles? Chantal sentiu- se como que sufocado e Frederico, num indefinido constrangimento, voltou a cabeça e ocultou com o lenço o rosto inundado de lágrimas.

Perplexo, Norberto teve de empregar enorme esforço para se conservar calmo; o discípulo surgia-lhe como um ser invulgar. desconhecido. um fenómeno.

- Limpe os olhos, Frederico, e acabemos com isto

- observou - Vá para casa e banhe o rosto para que seu pai não descubra o vestígio das lágrimas e, como não desejo que seja castigado por minha causa, não falarei ao conde de Uskow neste incidente. Dir-lhe-ei apenas que uma carta de minha família me força a partir.

Enquanto falava, tentava conduzir Frederico para o castelo, mas este libertava-se.

- Sempre é verdade, senhor Chantal? Quer partir?

- Parece-me a melhor solução, Frederico! Arrebatado pela cólera, deixou adivinhar sentimentos que criariam entre nós uma atmosfera de frieza.

- Estava como doido. não sabia o que dizia.

Fique e esqueça as palavras que o arrebatamento me ditou.

- Pelo contrário, julgo que devo partir - replicou Norberto com tristeza - Mesmo contra a nossa von tade, esta cena nunca mais esquecerá. a sua revolta. a minha cólera.

No olhar ingénuo que fixava Norberto, passou uma sombra de terror.

- Parte porque lhe desobedeci. e parte por causa da bofetada, diga, não é verdade?

- Eu não o acuso de insubordinação, Frederico. Fui eu que não soube conquistar a sua afeição e fazer-me obedecer. Desconhecia por completo o meu papel de preceptor. Era a primeira vez que o desempenhava, só tinha a minha boa vontade e a minha sinceridade para lhe oferecer. Se apenas consegui servir de alvo às suas zombarias e ferir os seus desejos de independência, a culpa deve ter sido só minha.

O tom de amargura empregado por Chantal tornava-se num suplício para o adolescente.

- O senhor não sabe. não, não pode compreender! Sou um desgraçado de quem todos troçam e sofro atrozmente pela situação que me criaram na minha própria casa! A ironia é a minha única defesa e a minha vingança. Com ela retribuo todas as feridas que me vibram.

E torcia as mãos com desespero.

- Oh! Não me abandone, mestre - suplicou. - morreria de desgosto! Se para ficar exige que me ajoelhe a seus pés e lhe peça perdão, fá-lo-ei. eu que nunca ajoelhei nem aos pés de meu pai.

- E por que razão o fará agora, meu filho. Nunca desejei que se humilhasse.

-Ah! para obter o seu pexdão e para que não parta, o que não farei!

Norberto, de olhar fixo no do rapazito, que todo tremia, parecia hesitar.

- Deseja realmente que fique, Frederico? - perguntou, dominado por uma emoção na verdade demasiada para tão insignificante escaramuça.

- E ainda o pergunta?

-E não é o medo de seu pai que motiva essa insistência?

-Medo de quê? Conheço a sua generosidade e sei que partiria sem me acusar. Não acabou há pouco de declarar que alegaria uma carta de sua família para explicar a sua partida?

- Nesse caso não é por isso que deseja que fique?

-Oh! não, com certeza!

- Então porquê?

O outro corou e encolheu os ombros. Depois, de olhos baixos, tentou, com dificuldade, encontrar uma explicação.

-Talvez porque sinta que tem sobre mim benéfica influência. Sempre gostei de reconhecer as minhas culpas e penso. Oh! oh! É medonho! Eu, eu ousei bater-lhe... não! não! Ah! estava doido, com certeza!

Como Norberto continuasse hesitante, bastante céptico e pouco decidido a modificar a sua resolução, Frederico teve um movimento de revolta contra o que ele supunha ser incredulidade.

Ah! senhor Chantal, para que precisa de tantas explicações? Fique, sou eu que lho peço! E faria eu tal pedido se não o estimasse?

- Contudo, ainda há pouco. aquelas palavras cheias de ódio.

- De cólera, mais nada!

-Afirmou que me detestava!

-Eu sabia lá o que dizia! Já lhe declarei que estava doido.

O preceptor hesitou mais uma vez. Depois inquiriu, com voz grave:

-E se eu ficar, Frederico, promete não tornar a saltar aquele perigoso barranco?

Foi então o adolescente quem hesitou. Contudo, fez a promessa solicitada.

- Prometo. Renunciei a este exercício. por sua causa, só para lhe agradar.

- Para me agradar? - repetiu Norberto, mergulhando o olhar no do rapaz, que corava por ter de fazer   tal declaração.

-Sim, sim! Para lhe agradar, já disse.

- Dá-me a sua palavra de honra?

- Dou-lhe a minha palavra.

- Contudo, para que não surja a tentação de recomeçar, fica combinado que pedirei a seu pai para mandar vedar as duas entradas do maldito atalho.

- Se isso o tranquiliza, peça... mas asseguro-lhe que bastava a minha promessa.

- Confesso que ficarei mais sossegado se o caminho estiver vedado.

- Nesse caso faça o que quiser.

-Estamos de acordo?

-Completamente de acordo.

- Bem. Então seja como deseja. Fico.

- Ah! Obrigado!

- E agora esqueçamos tudo. O meu castigo e a sua arrebatada resposta.

De novo os olhos de Frederico se encheram de lágrimas.

- Outra vez a chorar?

- Porque tenho muita pena... e sou muito infeliz...

Oh! muito. Não pode calcular...

- Calculo, sim!... Eu também tenho muita pena...

pela sua desobediência e pelas desagradáveis consequências que dela resultam...

Bateu com meiguice no ombro do jovem conde.

- Vamos, meu filho, acabaram-se as lágrimas...

Enxugue depressa os olhos... Agora somos amigos, e nunca mais haverá desinteligências entre nós, não é verdade?

- Assim o espero! - afirmou o rapazito, limpando os olhos - Julguei que o perderia e tive tão grande desgosto com isso! Para a outra vez tratarei de ser menos arrebatado.

Norberto não respondeu, mas, ao contemplar o delegado vergão avermelhado que destacava no pescoço do rapaz, nervosa emoção o tomou e de si para si fez idêntica promessa.

Depois desta cavalgada tão fértil em emoções, Chantal mal teve tempo de subir aos seus aposentos para mudar de fato. Não tornou, portanto, a ver Frederico senão quando se sentou à mesa para a refeição da noite.

Pareceu-lhe divisar no discípulo uma maior tristeza, mas tomou a resolução de não tornar a fazer diante dele qualquer alusão ao facto passado nessa tarde, visto que, se o perdoara, convinha não prolongar mais o desagradável incidente.       

Em compensação, pensava, conforme decidira, falar ao pai, após o jantar. Para bem de todos, o perigoso atalho deveria ser vedado e Norbèrto só ficaria sossegado depois de o conseguir.

Por infelicidade, o conde tinha naquela noite um ar totalmente abstracto. Entregue, sem dúvida, a qualquer problema etnográfico, comia, distraído, e parecia ter esquecido por completo o filho e o seu preceptor, que      por seu lado se conservavam também silenciosos.

A refeição decorreu, portanto, numa atmosfera glacial de tristeza e aborrecimento e quando terminou, Norberto teve de apelar para toda a sua coragem, para se dirigir ao conde de Uskow que já se encaminhava para o gabinete de trabalho. Constrangido, deteve-o e   pediu-lhe:

- Poderia conceder-me um momento de atenção?       

- Diga-me, meu caro senhor - respondeu com modos bruscos - Há uma hora que está para aí mudo como um peixe, não pronunciou palavra durante o jantar e é agora, quando este terminou e me propunha ir trabalhar, que se resolve a desatar a língua!

- Preciso falar-lhe em particular - insistiu Norberto, apesar deste acolhimento pouco animador.    

- Oh! oh! Temos audiência secreta? – comentou o conde - Seja!.. Vamos, então, para o escritório.

e para não me fazer perder muito tempo!

Durante este curto diálogo, Frederico afastou-se.       

Sabia já que não seria convidado a assistir à entrevista, e a sua dignidade ordenou-lhe que aparentasse não o notar.

Antecipou-se mesmo à ordem de retirada que não deixariam de lhe dar, sendo o primeiro a dizer ao conde:

- Se o meu pái me dá licença, ir-me-ei embora. Sinto-me um pouco fatigado e não desejaria assistir à saudação do pessoal. Desejo-lhe uma noite feliz e consinta que me retire.

- Boa-noite, meu filho. Vai dormir, vai. De resto, não fizeste outra coisa durante o jantar.

Depois desta alfinetadazinha, estendeu a mão ao filho, que lha beijou, com o habitual sorriso, onde se confundiam à maravilha a ironia e afectado respeito.

Mas o que nem o conde de Uskow nem Norberto repararam ao afastarem-se, foi na expressão melancólica e no olhar sombrio e mais triste do que nunca, em que Frederico os envolveu.

Mal chegaram ao gabinete de trabalho do velho sábio, este intimou Norberto a falar.

- Sente-se nessa poltrona, senhor Chantal. Pode fumar se quiser. e agora, que estamos instalados e sós, diga o que tem a dizer.

O preceptor havia preparado o discurso e escolhido nos acontecimentos daquele dia o que convinha contar.

-Quero apenas dizer-lhe o seguinte: Frederico é uma criança temerária e imprudente, e não consigo evitar as suas perigosas proezas.

- Ah, isso não é comigo!

- Mas, senhor.

- Não! Não! Acabemos com isto! Cada qual tem as suas obrigações.

- Contudo, é preciso que lhe explique. Mas o conde de Uskow, parecendo achar imensa graça à perturbação e ao ar grave de Chantal, atalhou com modos zombeteiros:

- Não me venha cá matar o bicho do ouvido com as audácias do maroto do meu filho! Se tomei um preceptor foi justamente para não ter de me preocupar com o génio de Frederico.

A sua expressão irónica pareceu acentuar-se quando acrescentou:

- É justamente nisso que consiste a educação dum rapaz, isto é, modificar tudo quanto o seu carácter tiver de defeituoso. Ora, repito, o senhor Chantal não está aqui para outra coisa.

Calou-se, significando com o seu silêncio uma despedida, visto que no seu entender nada mais havia a dizer.

Como o professor parecesse não compreender e procurasse reatar a conversa, o conde de Uskow atalhou ainda:

-Além disso, o que classifica de imprudência e temeridade não me parece que sejam os defeitos dominantes de Frederico. E mesmo que o fossem, em vez de os querer destruir, afigura-se-me que seria muito melhor cultivar o que eu chamo nobres qualidades, visto    elas existirem no estado embrionário no carácter de meu filho. Depois do que lhe disse no dia da sua chegada, era a única coisa que tinha a fazer, senhor Chantal...  

E agora tenho o prazer de lhe dar as boas-noites.

Desta vez a despedida era bem clara. Contudo Norberto não desistiu.     

- Não é uma questão de carácter mas uma questão de acções: Frederico comete imprudências, não impulsionado por verdadeira coragem, o que seria desculpável, mas apenas pelo prazer de desafiar o perigo, porque me refiro a actos que ameaçam a sua existência.

O conde de Oskow encolheu os ombros sem replicar.

Mas como o seu interlocutor parecesse aguardar uma resposta acabou por indagar com ar aborrecido:

- Que actos?. Explique-se por uma vez.

-Conhece a fenda profunda que interrompe o atalho da montanha próximo da saída do parque?

- Não, não conheço... Bem sabe que nunca saio!

Que fenda é essa?

- Um corte na rocha, com a largura de metro e meio pouco mais ou menos, mas muito profundo. Uma simples prancha de madeira, lançada dum lado para o outro, serve de ponte aos raros passeantes que ousam aventurar-se a transpô-la. Esta ponte rudimentar, porém, não é tão larga nem tão forte que possa aguentar com o peso dum cavalo. Portanto, o cavaleiro que desejar passar para o outro lado, terá de saltar o abismo.

- E depois?

- É muito arriscado.

- Que mais?

- E seu filho salta. a cavalo. o profundo barranco.

- É isso que o preocupa?

- Considero tal salto como louca temeridade.

- Ora deixe-se disso. Se o pequeno salta é porque não é tão perigoso como isso! Segundo creio, Frederico é bom cavaleiro. Quer agora com esses temores e precauções de menina medrosa destruir a única qualidade que possui?

-Frederico monta bem, não há dúvida e sobre equitação nada tenho a ensinar-lhe. Mas nem por isso

o perigo é menor: os flancos da fenda são de rocha e a pique. Um passo em falso do cavalo, que não encontraria o mais pequeno ponto de apoio, traria consequências fatais, tanto para ele como para o imprudente cavaleiro.

O velho sábio batia distraidamente com a faca de papel, em marfim, num livro a cuja leitura desejava ardentemente entregar-se.

Quando Chantal se calou, volveu-lhe um olhar aborrecido e pronunciou com indiferença:

- Que deseja que lhe faça?

O preceptor mal podia acreditar no que ouvia.

- Mas que pai é este que tão pouco se interessa pela vida do filho?

Em voz alta, fazendo o possível para se conservar calmo, não obstante a irritação de que se sentia possuído:

- Poderia ordenar - sugeriu - que colocassem barreiras junto do precipício, de forma que, sem cortar a passagem pela ponte, impedissem o cavalo de saltar...

- Ah! ah! ah! -- gargalhou o conde - barreiras! E porque não obriga Frederico a praticar a equitação dentro de casa. ou não restringe os seus passeios dentro dum parque em miniatura. e num cavalo de pasta? Ponha-lhe cueiros, se lhe parece!

Ria com malícia; mas de súbito a cólera fez explosão e, dando um grande soco em cima da secretária, bradou:

- E foi para me dizer asneiras dessa natureza que veio interromper o meu trabalho. roubar-me um tempo precioso que devia ser consagrado à ciência?

O seu riso diabólico soou mais uma vez e Chantal tornou a encontrar nos olhos chamejantes o mesmo clarão que os iluminava no dia da sua chegada, quando o cruel anão falara na morte da mulher.

- Ah! a ciência!- vociferava o outro - Se conhecesse o amor pela ciência, que lhe importariam essas miseráveis ninharias?. A imprudência dum garoto débil e enfezado que dá, a cavalo, um salto de metro e       meio! Mas o senhor desconhece por completo a etnografia! Ignora a lei da selecção natural que preside ao desenvolvimento das raças: o fraco deve desaparecer... o forte, o que tem condições de existência, pode viver e nada tem a recear... é fatal!

- Não creio que essa lei de selecção natural desempenhe qualquer papel num desastre... E se acontecesse seu filho cair no precipício...

Mas o minúsculo velho não o deixou continuar a expor o seu pensamento. Com outro murro na secretária, interrompeu Norberto.

Os olhos cintilavam de indignação.

- Deixe-o saltar e faça votos para que seja sempre bem sucedido. É esse o seu papel...    

Suspendeu-se e, mudando de tom, estendeu a mão a Chantal.

-E agora, adeus, meu caro senhor. Pela segunda vez lhe desejo uma noite feliz... Amanhã com certeza   já não será tão pessimista. Não o quero demorar mais.

Imite o seu discípulo e vá-se deitar.

Norberto ergueu-se, gelado por aquela ironia cortante. Despedindo-se do conde, saiu do gabinete de trabalho sem dar mais uma palavra.

No comprido corredor lajeado encontrou Iola com o castiçal aceso na mão, seguida pelo cortejo dos criados. Dirigiam-se para o escritório do amo a cumprir a tradicional cerimónia do beija-mão, segundo o hábito de todas as noites.

Quando se afastaram, Norberto voltou-se e contemplou por momentos o grupo pitoresco e um pouco cómico.

- Pobres diabos! - pensou - Como lamento esta noite não saber dylvaniano! Gostaria de lhes dizer: Por que vão os meus amigos beijar a mão desse homem? É um ente sem coração e sem sentimentos que nem sequer merece o nome de pai, nome de que se serve para ridicularizar o filho e não para o proteger e amar como devia. Todos vocês são bons, compassivos e caridosos. Se um dos vossos estivesse em perigo, os outros apressar-se-iam a socorrê-lo, mesmo com risco da própria vida. Ah! como os considero superiores a esse sábio incensível. a esse monstro de egoísmo que nem sequer se interessa pela vida do próprio filho! Servidores dedicados e fiéis, guardem o vosso respeito e afeição para quem seja mais digno deles. Esse homem é um malvado! Afastem-se dele, abandonem-no ao seu destino. Ah! como seria agradável poder dizer-lhes tudo quanto sinto e me oprime. Mas. não conheço o idioma dylvaniano.

Começou a subir a íngreme escada que conduzia aos seus aposentos.

- E depois, mesmo que lhes falasse na sua língua, o resultado seria o mesmo; a nossa maneira de pensar e de sentir é tão diferente que possivelmente não me compreenderiam.

Dominava-o agora um sentimento de compaixão que o predisponha à indulgência.

- E o velho sábio será na verdade um malvado? Quem sabe?. Está talvez apenas insensibilizado pela aridez da ciência. Vê a vida através dos seus livros e não por um prisma real. Deve ter no lugar do coração um poeirento pergaminho. Dizem que o génio se confunde com a loucura. Será este homem responsável por ser um génio, no seu género?

Enquanto no grande quarto, bizarramente mobilado, ia fazendo os preparativos nocturnos, continuava o intimo monólogo, que passara agora a analisar o próprio destino.

-Como é divertido viver neste castelo maldito! Entre o endiabrado garoto que tantas preocupações me dá e o velho maluco que faz ouvidos de mercador e não me facilita a tarefa, não sei qual hei-de escolher!

E o desejo de partir, de abandonar aquele emprego difícil, cheio de responsabilidades e de aborrecimentos e sem a menor compensação, mais uma vez o dominou.

- Deixar Trzy-Krôl. E por que não? Por que teria eu modificado a minha resolução com tanta facilidade? Não me seria difícil encontrar em qualquer parte, e até num meio mais agradável e divertido, um lugar de preceptor, idêntico a este. ou até melhor, quem sabe!

Mas esta ideia ocasionou-lhe fundo mal-estar. sem que pudesse bem definir o que sentia. Prometera ao discípulo ficar. Seria essa promessa a causa da sua má disposição. Ou então, que tinha ele?

Pensou ainda:

- Só o compromisso que tomei com Frederico me retém em Trzy-Krôl. A casa é triste, sem comodidades e mal servida, não obstante o batalhão de criados, todos mais ou menos estúpidos. É uma região isolada. bela, sem dúvida, mas completamente inculta e onde nem sequer posso entregar-me aos saudáveis prazeres do campo e do alpinismo. Estou quase prisioneiro neste velho castelo. E a vida aqui. Ah! não, não é nada alegre. O velho nem mesmo me trata com a amabilidade e delicadeza dos primeiros dias! Há pouco, quase me pôs fora com insolência! E tenho de suportar tudo isto! Quanto a Frederico? Ah! esse, por seu lado, está-se tornando insuportável... Então? Para que estou aqui?

Neste momento a porta do quarto rangeu e a cabeça de Frederico passou pela abertura.

- Posso entrar, senhor Norberto?

- Entre, entre!

A presença do discípulo acendeu-lhe na alma uma chama de prazer. E de súbito compreendeu porque a ideia de deixar Tzry-Krôl o perturbara tanto.

Era isso! Podia partir! Mas havia Frederico... Frederico a quem teria de deixar e a quem, reconhecia-o,

se afeiçoara mais do que talvez ele merecia.

- Esta agora é engraçada! Excede toda a lógica! Afeiçoei-me tanto a este garoto endiabrado que chego ao ponto de me sentir infinitamente feliz com a sua presença. depois dos desgostos que me causou. das inquietações que sofri pelas suas loucas temeridades. do seu obstinado silêncio durante o jantar. do seu aspecto amuado. e da inclassificável recepção do pai . sim, não compreendo bem porquê mas existe em mim um indizível sentimento de felicidade, não posso negá-lo! Compaixão. por o ter visto chorar?. Seria ingenuidade de mais!

Norberto analisava o seu caso com perspicácia e não pretendia, como se vê, iludir-se sobre os seus pró prios sentimentos. A alegria instintiva e intensa que naquele momento o avassalava, só podia compará-la à que noutros tempos experimentava quando, depois duma questão com Maud Glory, esta tomava a iniciativa da reconciliação e voltava para ele confusa e mais encantadora do que nunca.

Mas não se tratava agora da sua antiga companheira das horas felizes; tratava-se apenas de Frederico, que, depois do convite do professor, entrava no quarto, fechando a porta atrás de si.

Chantal conteve-se para não deixar transparecer a alegria imensa que a sua presença lhe despertava na alma. Teve mesmo a coragem de encarar, com expressão um pouco dura e fria, Frederico, que parara diante dele, ruborizado e de olhos baixos.

-Então ainda não se deitou, Frederico?

- Ainda não! Não podia dormir sem ter a certeza de que não estava zangado comigo.

Esta frase, dita com toda a simplicidade e franqueza, comoveu Norberto, que, no estado de espírito em que se encontrava, a considerou como uma resposta aos seus próprios pensamentos.

- Desgostou-me hoje profundamente, bem o sabe.

- disse o professor, cuja voz tremia um pouco - mas visto que o caso está liquidado, não falemos mais nisso.

- Fiz mais do que desgostá-lo. Fui mau. brutal. atrevido.

Baixava a cabeça, envergonhado com esta evocação dolorosa. Depois, levantou os olhos e acrescentou rapidamente e com invulgar sinceridade:

-E aquela bofetada!.. Oh! quando me lembro disso! Não me sai do pensamento e bem percebi durante o jantar que ainda pensava nela também.

- Lamentava principalmente este exílio. longe dos meus. Quando o presente nos fere, evoca-se sempre o passado.

- Sim. bem o compreendi esta tarde quando vi que dos seus lábios desaparecera o bom sorriso habitual. E então senti um grande pesar.

- Na verdade?

-Sim, e principalmente porque a minha desobediência o ia obrigar a um passo humilhante para as suas prerrogativas de preceptor. e também porque não ignorava que o conde de Uskow pouca importância ligaria ao que lhe dissesse.

- Ora essa! - admirou-se Chantal - Sabia que seu pai.

Calou-se por lhe parecer difícil a conclusão da frase. Foi Frederico quem a terminou.

-Uma única coisa preocupou sempre meu pai: a sua pessoa e que não o perturbem nos seus estudos.

Estas palavras foram pronunciadas sem amargura por aqueles lábios juvenis, mas profanavam por tal forma o ideal que todo o homem normal deve fazer dos sentimentos paternais que Norberto não pôde ocultar a profunda compaixão que elas lhe despertavam!

- Pobre criança! - balbuciou, comovido - e tanto assim, pode crer. O conde de Uskow ama-o, a seu modo talvez.

Frederico era naturalmente propenso à generosidade. Não deixou, portanto, o professor concluir a difícil defesa.

- Meu pai é um doente - afirmou com doçura. - um intoxicado pela ciência! O infeliz tem vivido até hoje como um cego, ignorando por completo tudo quanto há de belo na natureza e na humanidade. Sei perfeitamente que é mais digno de piedade do que de censura. e se alguma vez o ofendeu, senhor Chantal, peço-lhe que lhe perdoe. asseguro-lhe que ele não é responsável pelos seus actos.

A forma como acentuou o pronome pessoal, fez sorrir Norberto.

- Quer dizer que o Frederico é responsável pelos seus?

- Sem dúvida! - afirmou o outro com verdadeira franqueza - Eu tenho a noção exacta do bem e do mal.

- Nesse caso, por que procede mal tantas vezes?

Frederico encolheu os ombros como se quisesse demonstrar que era impotente para dominar a fatalidade que o esmagava.

- Pode lá saber-se os motivos que nos levam a contrariar aqueles que nos rodeiam? O que para os outros representa falta de juízo, é talvez sensatez para mim. Quem sabe se é justamente nas ocasiões em que me sinto mais infeliz que me torno insuportável. Há na vida situações muito dolorosas e imerecidos desesperos. Ah! muito felizes são aqueles que podem viver confiantes junto dos pais e professores!

- Confiantes! - exclamou Chantal, a quem esta palavra melindrava um pouco - não correspondi à sua expectativa. esperava outra coisa de mim? Contudo, desde que cheguei empreguei toda a minha boa vontade em lhe agradar.

- Também eu - replicou pensativamente o discípulo - Todavia, quantas vezes nos temos ofendido mùtuamente?

- Pela minha parte, sem querer.

- Pela minha, da mesma forma! Mas não obstante ter o máximo empenho em lhe ser agradável, muitas vezes não está na minha mão consegui-lo.

Chantal olhou-o em silêncio, durante algum tempo. Depois, com doçura e talvez um pouco contra vontade. observou:

- Logo de princípio simpatizei consigo, Frederico. Instintivamente, tentei conquistar a sua confiança. e foi para mim muito doloroso verificar que não o tinha conseguido. Sinto que qualquer coisa em si, que eu não compreendo, repele a minha afeição.

- A sua afeição?

Um frémito agitou a boca delicada de lábios vermelhos.

- A sua afeição - repetiu mais baixo o adolescente, cerrando os olhos como se o brilho quente daquela palavra o deslumbrasse.

- Duvida dela, Frederico?

- Ah! não sei - exclamou este com um gesto de desânimo - Como verificá-lo? A afeição dos homens não é toda ela baseada no desejo de dominar?. Um homem que ama quer, antes de mais nada, subjugar. Amar, para eles, é submeter, impor, dominar. Comigo, o senhor Chantal tem sido sempre perfeito, mas o seu objectivo é apenas um: a total anulação da minha personalidade pela sua vontade. A sua afeição - foi a palavra que empregou - deseja apenas conseguir a minha obediência passiva e uma submissão cega.

-E o Frederico gosta pouco de obedecer? Novo encolher de ombros do singular rapaz.

- Sei lá! Serei, por ventura, capaz de lhe obedecer na própria ocasião em que o exige?

-O quê? Não compreendo o que quer dizer!

- Digo eu que, sem que dê por isso, nem sempre me será possível cumprir uma ordem sua.

-Excepto quando lhe proíbo que tome por um caminho perigoso ou quando lhe peço para não expor estùpidamente a sua vida num salto arriscado e sem utilidade.

O filho do conde de Uskow não respondeu e baixou a cabeça um pouco confuso.

- Vê, Frederico? Vê que em certas ocasiões poderia ser razoável sem custo e sem alegar impossibilidades?

O seu olhar parecia evitar o do preceptor; depois, num tom abafado, observou:

- Esta tarde procedi assim, impulsionado por uma necessidade de afrontar o destino. Queria morrer.

- Morrer! Oh! Falar assim na sua idade!

-As dores que ferem os homens não podem medir-se pelo número dos seus anos. Por mim, creio que nunca os meus dezoito anos poderão minorar o desespero que me esmaga.

- Desespero, Frederico?. Porquê? É a severidade de seu pai que o faz sofrer?. Mas hoje, justamente, nem sequer lhe ralhou.

- Não, o senhor não pode saber, não pode compreender a causa do meu sofrimento.

Chantal pareceu hesitar.

- Com certeza - concordou - Muitas vezes não consigo discernir o que o apoquenta. e lamento jus tamente não conhecer o motivo das suas revoltas, das suas bruscas mudanças de génio.

Calou-se, e como Frederico permanecesse diante dele, imóvel, o olhar fixando vagamente o recanto obscuro do quarto, o ar abatido como se a fatalidade o perseguisse, encaminhou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro, que pareceu vergar com a leve pressão.

- Uma coisa lhe posso afirmar, Frederico. É que desejaria ser seu amigo e conquistar um pouco da sua afeição. dar-lhe o carinho que seu pai lhe recusa, substituir a família que não possui. Ser, principalmente, o companheiro fiel das boas e das más horas. o confidente pelo qual o seu isolamento anseia. Nunca pensou, Frederico, que as nossas idades se aproximam e que eu posso ser para si um irmão mais velho?

Profunda emoção toldou o olhar de Frederico e, para não deixar ver as lágrimas, ocultou o rosto com as mãos.

Norberto atraiu a si o pobre rapaz.

- Seja meu amigo, Frederico - insistiu com a voz trémula de comoção - Eu tanbém me vejo só e sinto a necessidade duma afeição sincera. Há pouco, quando o vi entrar no meu quarto. porque não podia dormir sabendo-me zangado consigo. o meu coração estremeceu de alegria e senti o desejo imenso de o apertar nos braços, como o faria a um irmão que julgasse perdido e voltasse de novo a encontrar.

Enquanto falava, o preceptor pousou os lábios na fronte pálida do companheiro. Mas não teve tempo de concluir aquele acto de ternura. Frederico purpureou-se e subtraiu-se ràpidamente ao contacto de Norberto.

Evadiu-se dos braços que o retinham prisioneiro, e bradou numa espécie de soluço:

-Não, não! Cale-se, senhor Chantal! Não pode. não deve saber. estou só, e só devo continuar a viver. Não posso aceitar nem retribuir qualquer afeição.

- Repele a minha amizade - exclamou Norberto, admirado com o retraimento do discípulo.

Frederico fez um gesto de desespero.

- Não posso aceitá-la, não posso! Confiança, amor, amizade, três sentimentos que me estão interditos.

- E porquê?

- Porque ninguém deve sondar a profundidade do meu mal e porque não devo corresponder à confiança com mentiras e aceitar uma afeição que me seria dada por engano. ou por ignorância!

O professor não podia ocultar a sua admiração. Que significavam as enigmáticas reticências do discípulo?

Em alguns minutos fez, na verdade, todas as suposições permitidas; mas como nenhuma delas lhe parecia verosímil, repeliu-as umas após outras e contentou-se em o contemplar com infinita comiseração. Então, com voz grave e profunda observou:

-Ofereço-lhe a minha dedicação sem nada lhe pedir em troca, meu filho. Sinto-me por tal forma atraído para si, que, para o estimar, não preciso forçar a sua simpatia e confiança. Guarde os seus segredos, se quiser, Frederico. Não necessito das suas confidências. E mesmo se lhe é impossível dar-me qualquer prova de afecto, não ma dê. Não lhe peço nada, a minha amizade não quer retribuições! Só desejo que, nas horas de tristeza e desânimo, se lembre de que sou seu amigo e que pode contar comigo para tudo, suceda o que suceder.

Sim - repetiu devagar, com os olhos fitos nos do rapaz, pálido e comovido - Suceda o que suceder. Ouviu bem, Frederico? Tudo lhe ofereço: amizade, carinho, dedicação, sem exigir nada em troca. nada, senão o olhar confiante desses olhos de bom amigo. onde, apesar de tudo, leio tantos e tão leais pensamentos. nada mais quero do que o afectuoso aperto de mão que vai selar o nosso pacto.

As duas mãos estreitaram-se num aperto franco, prolongado, silencioso.

Mas nas pupilas escuras, afogadas em lágrimas, brilhantes de emoção e talvez também de alegria, que se erguiam para ele, Norberto viu tanto reconhecimento, tanta confiança e mesmo tão grande afeição, que se sentiu transportado de alegria.

Foi como se na noite do seu exílio e do seu solitário abandono, um astro fulgurante de esperança e de felicidade acabasse de nascer.

 

- Arriba, marinheiro. arriba!

Frederico surgiu então da ramaria dos salgueiros e respondeu, rindo:

- Aqui estou, patrão.

- Desfraldo a vela?

- Com certeza.

Tinham percorrido, de carro, sessenta quilómetros, para poderem dar na ribeira um passeio de barco.

- Ergueram-se ao romper do dia, e bem fornecidos de mantimentos preparados pela previdente Iola, deixaram Trzy-Krôl quando o sol mal despontava no horizonte, tingindo ao de leve os farrapos cinzentos que manchavam o céu e a crista dos outeiros, onde os pinheiros se erguiam altivos.

Um dia, Norberto dissera ao discípulo:

- Se for bem comportado, Fred - dava-lhe agora muitas vezes este afectuoso deminutivo - daremos grandes passeios pelos arredores. partiremos de manhãzinha e só voltaremos à noite. Já tenho consentimento de seu pai. Levaremos o almoço e comeremos sobre a relva, em qualquer parte onde o nosso capricho nos levar. Verá como será delicioso!

E para uma das primeiras excursões escolheram as margens daquele ribeirinho, tendo fàcilmente alugado um barquito onde tomaram lugar para um passeio.

Norberto tinha o seu pensamento reservado. Para vencer o horror de Frederico pela água e obrigá-lo pouco a pouco a tomar banhos e a nadar, era necessário fazer-lhe experimentar o prazer dos divertimentos náuticos e tomar gosto por eles.

Até ali tudo havia caminhado segundo as previsões do professor. O discípulo parecia encantado e não escondia o seu entusiasmo pela perspectiva daquele dia passado sobre a água.

- Está pronto para a manobra, Frederico? - perguntou Norberto, que se sentara à retaguarda, junto ao leme.

Segurando-se a um ramo de salgueiro, conservava o barco encostado à margem, para que o companheiro pudesse subir por sua vez.

- Então. vem?

- Oh, pronto. e com todo o prazer - respondeu o rapaz.

O rosto irradiava alegria. Esta excursão, longe dc Trzy-Krôl e em toda a liberdade, dava-lhe a impressão duma fuga.

A forma um pouco brusca como saltou para a canoa, ia fazendo os dois homens darem um mergulho.

Com o seu peso, a embarcação começou a oscilar, inclinando-se por forma inquietante.

- Olá, atenção - bradou Norberto - Tem movimentos muito bruscos e inesperados, meu amigo. Repare que uma canoa não é um transatlântico. Falta-lhe a estabilidade, bem sabe.

- Ora! Não se assuste - respondeu Frederico, despreocupado e de bom humor - A ribeira é estreita e pouco profunda. Nem um gato se afoga aqui.

Os seus progressos em francês eram notáveis, conhecendo até um pouco de calão, facto este que lhe cáusava não pouco orgulho.

- Pelo contrário, assustei-me. e bem sabe porquê, seu grande teimoso!

O outro não se desconcertou com esta amigável censura e sem parecer ofendido, notou, rindo:

-Canta sempre o mesmo estribilho, senhor de Chantal.

- Sempre! Enquanto não souber nadar, não estarei sossegado. e afirmo-lhe que é sempre com certa angústia que o vejo embarcar numa casquinha de noz tão frágil e pouco segura como esta. É uma imprudência que eu não devia consentir.

- Oh! não se arrependa! sinto-me tão feliz! - protestou o outro - O que não me impede de verificar que cada vez está mais medroso, senhor meu preceptor.

- Por favor, Fred; já me tinha prometido não me tornar a dar esse título ridículo e irritante. Quanto a ser medroso só o sou por sua causa. e quando de facto existe um perigo real.

Acentuara a palavra real, lançando-lhe ao mesmo tempo uma olhadela levemente trocista.

- Real. ouviu bem, Frederico?. Não se trata agora de hesitar e ter medo de passear no parque sòzinho e de noite.

O discípulo sorriu, corou ao de leve ao recordar a pequenina fraqueza que manifestara dias antes.

- Oh! não fale mais nisso. para que está sempre a recordar esse insignificante pormenor. Não é generoso!

- Ora essa. um rapaz de dezoito anos, tão temerário à luz do dia. e que receia as trevas da noite! É caso para admirar!

Uma sombra velou por momentos os grandes olhos escuros.

- Confesso que a escuridão me impressiona.

É nervoso, segundo creio.

-Será nervoso, não há dúvida! E é justamente nisso que está o mal. Vejo que é impressionável como uma mulher. Uma verdadeira menina!

- O quê. - exclamou Frederico, inquieto e corando violentamente, desta vez - Que pretende dizer?

- Oh! oh! nada que o possa contrariar, marinheiro!

-volveu Norberto, que reparara na perturbação do companheiro - Quero apenas observar que parece, como em geral fazem todas as mulheres, temer perigos imaginários e não ter a menor noção de certos perigos evidentes.

- Que são.

-Ora, por exemplo, os que podem advir dum passeio de barco, principalmente num barco à vela, quando não se sabe nadar.

- Ah! bem! Percebo! Cá me parecia que acabaria por chegar aí, mais uma vez - exclamou o garoto, recuperando o bom humor.

Decididamente, não havia maneira de tomar a sério aquela questão da natação.

O professor, contudo, não desanimava.

-Afirmo-lhe que faço empenho em que aprenda a nadar o mais depressa possível, Fred.

- E eu asseguro-lhe, senhor Norberto, que se continua a insistir dessa maneira, acabará por. como dizem os senhores em França, por... ah! sim: repisar como um velho que voltou à segunda meninice.

- Não vejo porque motivo! - volveu Norberto, um tanto irritado com o pouco êxito da sua tentativa.

- Ora essa! Só o ouço dizer: é preciso saber nadar, Fred. aprenda a nadar, Fred! Chega a ser monótono.

- Monótono, mas útil.

Soou uma gargalhada cristalina.

-Pelo contrário, perfeitamente inútil. Bem sabe que eu não quero e portanto não aprenderei.

- Não é razoável, Fred.

- Razoável ou não, nada há a fazer. Já o abade que o precedeu se viu obrigado a desistir.

- Mas não vejo um motivo sério para essa oposição.

- Perdão! - volveu o garoto com vivacidade Já lhe declarei que tenho horror à água fria!

- É por isso que afirmo que não vejo pretexto á recusa. justamente a água nesta estação não podo estar fria...

De facto, o verão, violento e esplêndido como é próprio da Europa Central, tornara de repente a temperatura quente em extremo. Em poucos dias os campos haviam-se transformado: A vegetação hesitante da primavera desabrochara toda ao mesmo tempo, como se a tivesse tocado a mágica varinha duma fada.

Além disso, aquele rio de águas transparentes era tentador e só por temeroso capricho Frederico recusava obstinadamente o prazer dum esplêndido mergulho.

As últimas palavras de Norberto toldaram o olhar do discípulo.

O aspecto, tão alegre momentos antes, ensombrou-se de repente. O preceptor percebeu-o e compreendeu quanto a sua insistência era intempestiva.

- Vamos - pensou com um suspiro de desilusão

-por hoje é melhor não falarmos mais no assunto, senão temos o dia estragado! É tão raro Frederico estar de bom humor! Aproveitemos hoje, e amanhã será sempre tempo de voltar a insistir neste ponto, no qual teima por tal forma que chega a tornar-se desagradável!

Portanto, mudando de tom, bradou:

- Vamos, marinheiro, à manobra. Solte a amarra e dê-me a escota.

Frederico executou a ordem em silêncio, mas com cuidado.

Na minúscula embarcação desempenhavam um o papel de patrão, o outro o de tripulação.

Como esta última se compunha apenas do rapaz, tão depressa este era marinheiro como grumete. Por seu lado, Chantal conservava ciosamente o cargo de patrão. Esta ordem hierárquica ficara combinada no dia em que o passeio náutico se decidira; enquanto o discípulo não soubesse nadar, não teria o direito de manobrar a vela nem de governar o leme.

Frederico, de resto, não demonstrava grande pesar pela proibição.

Meio estendido no fundo da canoa, parecia experimentar intenso prazer na contemplação do triângulo de lona vermelha que formava a vela do frágil barquito e que sobre o fundo luxuriante das margens cobertas de verdura parecia deslizar para um destino ignorado e indefinido. Depois, de olhos no céu, divertia-se a ver correr as nuvens, farrapitos de seda num fundo de anil.

- Se o aborrece estar inactivo - sugeriu Chantal

- podemos amainar a vela. Quase não corre vento, e assim não conseguiremos avançar. A remos iremos mais depressa.

- Oh, acho até que vamos muito depressa - protestou o filho do conde de Uskow - asseguro-lhe que não me aborreço por nada ter que fazer. Sinto-me tão bem assim!

- Sempre é muito extraordinário, Fred!

- Porquê?

-Umas vezes não pode estar quieto, todo o espaço é pouco para si. outras, e sem bem se compreenderem as causas dessa mudança, entrega-se a uma tal indolência. direi mesmo preguiça.

-Diga, pode dizê-lo porque é esse o termo exacto. Se falasse a esse respeito com o meu venerável e sábio pai, ele lhe diria que essas características, de que lhe dou esplêndida amostra, são próprias da raça eslava em geral. e da dylvaniana em especial.

- Ah! Muito bem! E visto que parece orgulhar-se tanto em as possuir.

- Oh! isso não tem discussão. É delicioso estar sem fazer nada!

E acomodando-se mais confortàvelmente no fundo da pequena embarcação, com as mãos cruzadas debaixo da nuca para preservar a cabeça do contacto pouco macio da madeira, o adolescente começou a cantarolar:

Ah! como é bom éstar ocioso

Quando o trabalho se agita em volta de nós

A voz corria num fio doce e melancólico. Quase não era canto, mas um murmúrio lento e embalador que subia na atmosfera calma e tépida, cortada pelo zumbido dos insectos e pelo sopro da brisa, e encantava Norberto.

Um pouco sério, de olhos fechados para melhor seguir as íntimas visões que o canto nostálgico evocava, Chantal escutava, com a alma opressa por indefinida emoção, a voz cristalina e juvenil, tão pura como a da irmã.

Sim, aquela voz acordava nele a sensação duma presença feminina. dessa presença feminina porque ansiava desde que chegara a Trzy-Kxôl, e cuja ausência aquele canto, como música estranha que lhe enlouquecesse o cérebro e lhe perturbasse os sentidos, mais imperiosamente lhe faria lembrar.

Depois, o cantor calou-se e tudo recaiu em silêncio. Para Norberto foi como se na natureza um vácuo se tivesse cavado de súbito.

O barquito, impelido por vento fraco, deslizava suavemente, sem ruídos, sem choques.

O céu, luminoso, reflectia-se no espelho líquido, polido e sereno como um cristal imenso onde todo um mundo se agitasse. Só o canto dum passarito subia alegre na paz daquela hora calma e de infinito encanto.

Norberto, prendendo a escota com uma das mãos e dirigindo, sem que tivesse necessidade de se des locar, o leme com a outra, deixava o barco deslizar.

Naquele ponto da ribeira não existiam obstáculos nem curvas; portanto, não tinham mais do que abando nar-se à corrente.

Indolentemente deitado, com os olhos meio fechados, Frederico parecia dormir.

Chantal, sentado à ré; observava-o maquinalmente. A delicadeza dos ombros, a finura dos pulsos e dos tornozelos, a extrema alvura dos braços, o pescoço delgado, toda aquela fragilidade, enfim, lhe saltou de novo aos olhos.

Ao ver o rapaz assim estendido, sentiu um grande aborrecimento, impressão que não lhe era já desconhecida, mas que o incomodava sempre, por não conseguir explicar bem a sua natureza.

Teria preferido um discípulo turbulento, vigoroso e destemido, àquele garoto efeminado e débil.

Existiam naquele rapaz pequenos nadas que o irritavam verdadeiramente.

- É preciso confessar, Fred, que para um passeio de barco e com este tempo quente, escolheu um trajo pouco apropriado - observou de repente e com certa rudeza.

O outro ergueu-se sobre um cotovelo com extrema indolência.

-Ora essa! então um fato à marinheira não é próprio para passear de barco?

Envergava, de facto, uma camisola sem mangas, de riscas azuis e brancas e umas calças de flanela azul-escura, segura aos ombros por suspensórios da mesma fazenda.

- Com este calor, o único trajo adequado para um passeio de barco é o fato de banho ou melhor ainda, um slip e o tronco completamente nu, como eu trago. Deixa-nos os movimentos livres, o sol bronzeia-nos a pele e, o que é melhor, estamos sempre prontos para dar um mergulho se tivermos desejo de o fazer.

- Ora. nunca sentirei tal desejo.

- Sabe-se lá!

Frederico começou a rir.

- Decididamente, não desiste.

- Gostaria de satisfazer seu pai, pelo menos nesse ponto. Além disso, tenho a certeza de que depois de tomar o primeiro banho e de aprender a nadar, se sentiria felicíssimo.

-Realmente? Para se ser feliz é preciso saber nadar? Agora já compreendo melhor omotivo do constante mau humor de meu pai. Estragou a sua felicidade por falta de banhos frios que lhe refrescassem o cérebro.

- Fred!- protestou o preceptor, que teve de se reprimir para não rir da irreverente observação do rapazito.

-Que quer, caro mestre, preciso apenas explicar o motivo porque meu pai tem tanto empenho em que eu pratique um desporto que por sua parte desprezou. Se gosta tanto, por que não começa por me dar o exemplo?

Soltou uma gargalhada, tão cómica era a perspectiva desta evocação.

-Não acha, senhor Chantal, que seria engraçadíssimo o espectáculo do conde de Uskow a chapinhar, de maillot, nas transparentes ondas?

Desta vez o professor teve de morder os lábios para conservar a seriedade. Contudo, nem por isso deixou de replicar em voz severa:

- Enquanto não podemos contemplar esse soberbo espectáculo, sabe de que sinto desejos, Frederico?. De o atirar pela borda fora!.

Tirar-lhe-ia o medo da água... Para começar, vai despir a camisola, que não é conveniente.

- Ah! lá isso não! Isso é que não dispo! Sinto-me assim muito bem.

- E eu quero habituá-lo ao ar livre. Vamos, Fred!

Tire a blusa.

O rapazito começou a assobiar.

-Então, então! Sossegue, senhor professor! Bem sabe que não tem probabilidades nenhumas de ser obedecido.

- Se não a tirar de vontade, empregarei a força.  

Frederico ergueu-se, um pouco assustado com a ameaça.

- Que bicho lhe mordeu?... Não fala sério, com certeza

- Tudo quanto há de mais sério, meu rapaz. Está vestido de mais. Descubra-me esse tronco... os músculos peitorais desenvolver-se-ão melhor... Tome banhos de sol, com os diabos! Afirmo-lhe que é esplêndido para a saúde.

A recusa do rapaz enervava o professor, que desejaria fortalecê-lo. O outro, porém, retomava a posição primitiva.

- Bem sei! Não tardaria que os banhos de sol se transformassem num banho na ribeira. Não caio nessa!

-Chega a ser ridícula tanta esquisitice! Vou eu próprio ajudá-lo a tirar esse maldito pull-over.

Ergueu-se do seu lugar e avançou para Frederico, mas este, com imprevista agilidade, pusera-se de pé e recuara para a proa.

O movimento dos dois homens impulsionou o barco por tal forma que tiveram de se agarrar um ao outro para não caírem à água.

- Nada de brincadeiras, hem! - protestou Frederico, que a custo conservara o equilíbrio - Se se aproxima de mim, master Chantal, faço voltar a canoa e não tem de se admirar se os fatos se estragarem e as provisões se perderem. A culpa é sua.

Mas já Norberto retomara prudentemente o seu lugar à ré; não pôde, porém, ocultar o seu descontentamento.

- Sente-se, Fred. Essa posição é perigosa. é insuportável e lamento que seja tão pouco amigo de fazer vontades.

O pequeno obedeceu de bom grado. Quis, no entanto, fazer notar ao professor que lhe caberia toda a responsabilidade se houvesse um desastre.

- Por que teima em me obrigar a fazer o que não quero? Estou pronto a satisfazer-lhe todos os desejos. mas bem sabe que na questão da natação não conseguirá convencer-me. Ora é justamente nesse ponto que insiste. Seja razoável, mestre. Se tenta empregar a força comigo ou colher-me de surpresa, destruirá toda a confiança que depositei em si. Não me obrigue a desconfiar! Ou é isso o que deseja?

- Só quero o seu bem, Frederico, e mais nada. Já o devia ter compreendido.

-Pois bem! Admito que assim seja! Mas justamente quando eu desejava tanto que fossemos bons amigos, verifico, seu grande teimoso e exigente, que parece ter um demónio no corpo a impeli-lo a levantar atritos entre nós!

- Tem um feitio muito extraordinário, Fred. Pela persuasão e pela meiguice nada se consegue de si.

- Pela força também não, fique certo! - ripostou o adolescente, em cujos olhos escuros se acendeu de súbito um relâmpago de dureza.

- Quem sabe! Em todo o caso, não é hábito meu empregá-la. Mesmo assim, se há pouco estivéssemos em terra firme, teria experimentado um certo prazer em conseguir tirar-lhe a maldita camisola, a bem ou a mal.

- Não seria tão fácil como supõe, asseguro-lhe; a pontapé, arranhando-o, mordendo-o, ter-me-ia oposto por todas as formas aos seus despóticos projectos.

-Oh! Aí está uma ameaça que não me causa susto. O Frederico não vê que sou mais forte e que, numa luta leal, conseguiria sempre vencê- lo?

- Entre mim e si nunca poderia travar-se uma luta leal, visto que incontestàvelmente seria sempre o vencedor. A lealdade na luta exige forças e armas iguais. E desde o momento em que este equilíbrio desapareça, passa a haver uma vítima e um agressor. Para honra da raça francesa, faço votos para que este último não seja o senhor.

Estas observações, feitas com a maior calma, tiveram o dom de desarmar Norberto.

Começou a rir com vontade.

-Tem argumentos a que não se pode resistir, Fred! Façamos as pazes e não falemos mais nisso.

- Oh! Não desejo outra coisa. Se promete não tornar a ameaçar o meu pullover, acabou-se a questão.

- Está prometido.

- Tomo nota da promessa e confio em si. Com toda a tranquilidade, deixou-se escorregar de novo para o fundo do barco e retomou a sua posição meio deitada.

Norberto ficou sensibilizado com a confiança espontânea do discípulo que demonstrava a fé na palavra dada.

Visto que não duvidava da lealdade dos outros, devia ser leal também.

E mais estimou Frederico, naquele momento. Cortando o silêncio, o canto embalador recomeçou:

Dormir é um prazer celeste.

Enquanto dormes, a felicidade virá.

E Chantal fechou os olhos, subjugado de novo pelo estranho devaneio que lhe evocava a mulher que amara em França, e lhe desorientava os sentidos.

Era a hora do almoço.

Como de costume, Frederico comia em silêncio, enquanto o pai, bem disposto naquele dia, falava com volubilidade.

Os acasos da conversa levaram-no a pensar na educação desportiva que fazia dar ao filho. E como este comia pouco, o conde de Uskow lembrou-se de responsabilizar por isso o preceptor. Deste assunto, e depois de lhe ter dirigido vários remoques cheios de azedume, o pensamento do homenzinho passou a recordar a defunta esposa, que deveria ter-lhe dado, como agradecimento pela grande honra que lhe fizera, desposando-a, em vez daquele filho que era quase um aborto, um rapagão forte e robusto como ela.

Destes comentários nasceu de súbito uma ideia no cérebro de Norberto.

Desejaria apenas irritar o conde ou teria empenho em que a conversa prosseguisse no mesmo sentido?

O caso é que observou, interrompendo as lamentações do castelão:

-O senhor conde de Uskow já pensou alguma vez que a sua esposa lhe poderia ter dado uma filha em vez de um filho?

-Mas que gracejo de mau gosto é esse agora? Uma filha? Havia de ter que ver, eu ser pai duma rapariga!

- Meu Deus! - replicou Chantal, sorrindoNada mais simples de acontecer a todo o homem que seja pai! Se o filho não é um rapaz, é, com certeza, uma rapariga. a menos que não nasçam os dois, um casal de gémeos, por exemplo.

Um jeito de desdém vincou os delgados lábios do conde.

- A qualquer homem vulgar pode ser, mas não a mim.

Norberto abriu muito os olhos.

- Oh! oh! senhor de Uskow, permita-me que o contradiga muito respeitosamente, mas, nesse ponto, nem os mais sábios da terra - nos quais o incluo - podem impor a sua vontade.

- Eh! eh! Os antigos afirmavam que a persuasão desempenhava importante papel na maternidade.

- A persuasão. Não vej o como!

Fique, então, sabendo que, se minha mulher tivesse a disparatada ideia de me tornar pai duma rapariga, segundo as suas injuriosas suposições, não me teria conformado com tal presente.

Como Norberto sorrisse, um pouco desnorteado com a certeza expressa na afirmação do seu interlocutor, o gnomo continuou:

- Preveni simplesmente a condessa minha mulher de que, se se lembrasse de me dar uma filha, a faria chicotear até que não pudesse sentar-se! Está vendo agora o papel da persuasão? Porque, apesar de pouco esperta, a minha cara metade sentiu poucos desejos de travar conhecimento com o knout. e absteve- se, portanto, como deve calcular, de me dar uma filha.

Desde que o pai começara a falar naquele tom, misto de zombaria e de crueldade que os maridos pretensiosos e autoritários em geral empregam, Frederico deixara de comer.

O olhar triste carregara-se com súbita gravidade. De ouvido atento para não perder uma única palavra pronunciada pelo conde, a respiração opressa causava a impressão de que nele se dera uma súbita suspensão da vida.

Quando o pai declarou que não hesitaria em fazer chicotear a sua infeliz esposa, aquela que escolhera para companheira, Frederico empalideceu. e por tal forma que dir- se-ia não correr uma gota de sangue nas suas faces lívidas.

Por momentos fechou os olhos, como se o atingisse também a cruel ameaça que pairara sobre a cabeça da mãe; depois, fora de si, não obstante o grande desejo de se conservar calmo, repeliu o prato.

- Por Deus, meu pai! - bradou - Lembre-se de que diante de seu filho nunca deveria pronunciar tão abomináveis palavras!

Espantado com o tom em que o rapazito falara, o conde voltou-se para ele.

- Olá, meu franganote! - repreendeu - domina a tua indignação e nada de te meteres a criticar os desejos e esperanças das pessoas mais velhas. Queria que nascesse um rapaz e empreguei para isso todos os meios ao meu alcance.

Frederico endireitou-se na cadeira e a sua pequena estatura pareceu crescer de repente.

Inclinou o corpo sobre a mesa na direcção daquele que acabara de falar. E numa voz por tal forma abafada que chegava a ser impressionante, observou:

- E o meu pai nunca pensou que esse filho um dia seria homem e poderia querer vingar as dores sofridas por sua mãe?

A criança estava tão pálida e trémula de indignação, mas tão débil também na sua fragilidade, que lhe era necessária uma grande dose de coragem para ter a ousadia de falar assim diante do terrível velho que se torcia na cadeira como um tigre pronto a formar o salto.

O coração de Norberto parecia querer saltar-lhe do peito.

Desde o começo da singular escaramuça se arrependia de ter sido o causador da tempestade.

Naquele momento, em que Frederico, como frágil cordeirito, ousava afrontar o lobo feroz e cruel que era o pai, toda a simpatia. diremos mesmo, toda a afectuosa compaixão de Chantal ia para o primeiro.

Para defender o discípulo, Chantal era capaz, naquela ocasião, de agredir o conde de Uskow e de o fazer sofrer, a ele, o senhor de TrzyKrôl, o sábio universalmente conhecido, o odioso suplício que o seu cérebro genio, de degenerado físico concebera para os outros.

O chicote! Ah! com que prazer Norberto teria maltratado, espancado com todas as forças, de todo o coração, aquele velho odioso que só sabia ameaçar a torto e a direito!

Desafiando assim a cólera do pai, teria Frederico calculado que não corria o menor perigo e que antes de ser atingido por qualquer golpe, um peito generoso e forte se teria lançado entre ele e o seu antagonista? Quem o poderia saber; mas o que é certo é que não desarmou e se conservou firme na sua atitude, apesar do ataque iminente do dono da casa.

Com efeito, ao ouvir a audaciosa reflexão do filho, o conde de Uskow empertigara-se como um galo belicoso pronto a combater.

- E se eu te fizesse saborear também os prazeres do knott, Frederico, que dirias tu?

- Que começo a convencer-me de que meu pai é capaz de tudo.

E o seu olhar sombrio, cintilante e mesmo severo, sustentou, sem ceder, o olhar do castelão, cujas pupilas claras brilhavam de furor.

Durante segundos, os dois homens observaram-se em silêncio.

Foi um momento atroz para Norberto, que não podia calcular a que gestos instintivos seria capaz de se entregar para defender o discipulo.

Teria o conde compreendido que, apesar da sua fraqueza, Frederico estava disposto não só a resistir-lhe, mas, como acabava de declarar, a retribuir-lhe agressão por agressão, a responder ao seu arrebatamento colérico por outro não menos violento e igualmente perigoso?

É de crer que, ao fixá-lo, o filho não tivesse expressão muito tranquilizadora, porque o pai deixou- se cair de novo na cadeira, com estranho sorriso nos lábios.

- Que ideia é a tua hoje, Frederico, de te ofenderes com as minhas palavras?

A voz do rapaz não deixou adivinhar o prazer da vitória obtida sobre o energúmeno; contentou-se em responder, conservando um tom implacàvelmente correcto.

- Tratava-se de minha mãe, senhor. E ainda que a pobre senhora tivesse feito melhor se não me pusesse neste mundo - porque me prestou com isso bem triste favor - não deixa de ser minha mãe, aquela que pagou com a vida o meu nascimento e cuja perda lamento desde que tenho uso de razão!

Um riso irónico sacudiu o conde.

-Oh! Deus, como és ridículo, Frederico, quando pretendes ser sentimental! Ah! ah! ah! que coisa tão cómica! E, no entanto, já por mais duma vez tentei destruir as tuas ideias romanescas.

-Bem sei. Empregando o chicote, o cárcere, o pão e água. Eu não esqueço, meu pai. São recordações que nunca se apagam e se guardam preciosamente, como documento valioso que se encaderna em cabedal forte para que o tempo não o deteriore! Quando o ouço falar, como há pouco acabou de fazer, lamento ter de lhe dizer, senhor conde de Uskow, que, ao folhear esse livro de nova espécie, que é a minha memória, encontro recordaeções que nem sempre lhe são favoráveis.

O pai encolheu os ombros. Um sorriso de compaixão lhe franziu os lábios delgados.

- A acanhada inteligência com que a natureza te dotou, meu pobre filho, não está à altura de compreender nem de criticar as acções dum homem que pode considerar-se, verdadeiramente, um homem.

-Um homem como meu pai, não é verdade? Mesquinho, insensível, implacável.

-O que aí vai de palavras vazias de sentido e empregadas irreflectidamente!

- Porque me referi a si, não é assim?

- Porque não sabes o que dizes, mais nada. Já te afirmei, e torno a afirmar que não te sobeja inteligência. és um fraco, um indolente. Considero-me muito superior a ti pelos conhecimentos que adquiri!

- Pelo seu génio, meu pai.

- Seja pelo meu génio, se assim o queres. Comparado comigo, não passas dum verme rastejando na poeira.

Frederico abriu a boca, no intento bem evidente de responder por nova réplica não menos acerada do que as precedentes, mas Norberto, que parecia adivinhar as intenções do discípulo, não lhe consentiu que a formulasse.

-Com licença! Consintam que, por minha vez, intervenha no diálogo. Quero, em primeiro lugar, pedir-lhe desculpa, senhor conde de Uskow, por ter provocado este incidente, emitindo a hipótese, tão provável, do céu lhe ter concedido uma filha, em vez dum filho. Agora, porém, cabe- me, segundo me parece, a vez de defender a minha tese, visto que o senhor já defendeu a sua. Segundo vejo, é de opinião que, sendo o homem o rei da criação, a mulher não pode ser considerada por ele senão como criada ou escrava. Eu, pur mim, tenho outra concepção da humanidade! E quero acreditar que uma inteligência tão esclarecida como a sua, não se ofenderá se, sob esse ponto de vista, eu não partilhar as suas convicções.

-Mas sob qual ponto?

- Na questão dos sexos.

- E que interesse pode ter para mim a sua opinião?

- a dum homem moderno.

-Quer dizer, grotesco.

-Se assim o entende, não vejo inconveniente nisso. A palavra não me fere, porque, se de facto o homem descende do macaco, as gerações que nos precederam deveriam ter sido mais simiescas do que nós. O nosso grotesco actual vale mais ou menos do que a animalidade de outrora? um assunto para estudar!.. Voltemos, porém, à questão dos sexos. posso discuti-la, não é verdade?

Norberto, tendo conseguido assim desviar de Frederico a atenção do conde de Uskow, esperava, sorri dente, a resposta do castelão, que, desorientado por momentos pela intervenção do professor, seguiu imediatamente o rumo das ideias que este lhe oferecia.

- Não tenho o menor empenho em ouvir a série de tolices que vai com certeza dizer sobre a igualdade dos sexos. Adivinho já, meu caro senhor, que se dispõe a repetir todas as baboseiras com que em França elogiam a beleza, a meiguice e outras qualidades da mulher.

- Não - atalhou Norberto - contentar-me-ei apenas em lhe falar numa linguagem que todo o homem de coração adopta. mesmo o homem superior e de esclarecida razão.

- Que linguagem é essa? - inquiriu o conde de Uskow, um pouco aturdido - julga que ignoro todas as patetices que, no decorrer dos séculos, se têm divulgado sobre a mulher?

- E aind a é poucotudo quanto se diga - retorquiu Norberto - Nada há de mais comparável para um coração que a certeza, infinitamente doce, de possuir uma ternura feminina onde se refugie. áo instinto irresisti vel que impele o homem forte para a graça frágil duma mulher, seja ela sua companheira ou sua filha. Necessidade de proteger, de defender, de amar, de se completar, enfim.

- Devagar! devagar! Fala na generalidade! Mas há excepções! Eu, por exemplo, nunca experimentei essa tal necessidade! E muitos outros como eu. Homens ilustres e indiscutivelmente superiores. desprezaram o sexo contrário e viveram sem desejar conhecê-lo.

- E o senhor não pensou já que esses sábiosapesar de toda a sua inteligência, tão extraordinàriamente desenvolvida, que atinge os limites da loucura, ou talvez mesmo por isso - não passam de monstros humanos. duns seres anormais ou degenerados. sem coração, sem sensibilidade?

-Sabe que mais, senhor Chantal? Tudo quanto acaba de dizer me provoca o riso! Porque considera como homem superior aquele que se submete aos seus instintos e animalidade. e não aquele que justamente subjuga os sentidos e se isenta dos gestos primitivos?

- Tenho o máximo empenho em perfilhar a sua opinião, senhor conde. Mas primeiro exijo que me apresente úm homem cujo cérebro tenha tanto império sobre os sentidos que consiga dominar os instintos da fome, da sede, da actividade, da necessidade de falar e de andar. um homem que seja suficientemente forte para viver sem dormir, sem respirar, sem tossir. para conseguir dominar a doença, a transpiração, a fadiga, o sono. Ah que cérebro esplêndido e rico seria aquele que, como tão acertadamente diz, pudesse ser superior a todas as exigências da natureza, a todos os instintos da animalidade. Sim, perante semelhante exemplo, abdicaria das minhas opiniões. Mas enquanto me apresentar um homem cuja superioridade consista apenas em dispensar a presença e a ternura duma mulher, continuarei a desprezá-lo como um mutilado de sentimentos e de coração e considerar-me-ei infinitamente superior a ele.

- Patetices, tudo isso! A mais pequena vitória que um ser humano obtenha sobre os seus instintos naturais, equivale a libertar-se dum fardo e é um passo que dá para o seu aperfeiçoamento.

- Oh, não iludamos a questão! Refiro-me apenas aos laços imperativos que atraem o homem para a mulher e criám uma ternura especial de pai para o filho.

- É ridículo, tudo quanto acaba de dizer. A sensibilidade paternal só existe nos cérebros doentes ou fracos. Para um homem superior só uma coisa tem valor: a raça que se perpetua, o nome que não morre. E assim, à rapariga sensaborona e estúpida, preferirá sempre o rapaz, o continuador da raça, graças ao qual não desaparecerá por completo, sejam quais forem os cataclismos que fulminem a pobre humanidade.

- Evidentemente - concordou Norberto - O que afirma é razoável. Mas nunca ouvi dizer que um homem bastasse. Quer queira, quer não, terá sempre de haver uma mulher na sua vida!

- E então?. - inquiriu o conde de Uskow, com certa acrimónia.

- Então - continuou Chantal, com brandura. - porque não hei-de estimar esse ser feminino que será a mãe dos meus descendentes, que lhes há-de formar a alma e inspirar o amor pelos seus antepassados, contanto que ela desempenhe a sua tarefa conforme o meu desejo e me conceda de bom grado a graça do seu sorriso e o refúgio da sua terna afeição?

- Mas que ideia é a suahoje - interveio Frederico, com ironia - de contrariar assim meu pai? Na nossa família nunca tivemos grande predilecção por mulheres! Meu avô e aqueles que o precederam desprezaram o sexo fraco. Quanto a mim, respeito a memória de minha mãe e venero-a de talforma que não consinto que se fale dela com ironia ou a insultem, mas quanto ao sexo, em geral, desprezo-o profundamente!

Norberto levantou os olhos e contemplou com infinita piedade o adolescente, cujas faces se coloriam com leve rubor.

- Pobre pequeno! - pensou - Para justificar uma profissão de fé, da qual nem sequer está convencido, vai buscar razões absurdas e que não compreende!

Frederico percebeu o olhar do professor, prolongado, silencioso, mas duma eloquência bem evidente. Os lábios estremeceram numa leve tremura. revolta ou emoção. Mas, cómo se o quisesse desafiar, continuou em tom de maior azedume:

- Porque se admira, senor zneu pxofessor, e porque me olha com tanta insistência? Assemelho-me por acaso a um pato coxo, a um vitelo com duas cabeças ou a um cão com cinco patas?

Esta observação teve o dom de restituir o bom humor ao conde de Uskow, que saboreara com infernal alegria os ásperos comentários do filho a respeito do sexo feminino.

- Não, Frederico, tu não és um fenómeno e compreendo muito bem que não te agrade o olhar admirado com que o teu professor te observa. Um fenómeno! Nada disso! És simplesmente um abortozinho. um rapazelho pouco apto a impor a sua opinião. o que me causa bastante pesar, podes crer!

Frederico calou-se. Levantou os olhos para o tecto e um sorriso indefinido Lhe vincou os lábios.

Quanto a Chantal, contemplou o dono da casa com verdadeira irritação. Se com o olhar o pudesse reduzir a cinzas, tê-lo-ia feito sem hesitação. Aquele homem tinha o condão de o exasperar e como naquela altura Frederico parecia perfilhar as abomináveis teorias expendidas pelo pai, em vez de as reprovar, Chantal mandava-o também para o diabo.

- Esta manhã fiz zangar seu pai - disse Norberto quando se encontrou só com Frederico - Estou desolado por ter, com a minha desastrada conversa, provocado aquela irritação contra si. Parece-me que há ocasiões em que o conde toma a seu respeito atitudes agressivas. como se o responsabilizasse por certos factos que o desgostam.

- Meu pai é um exaltado - volveu Frederico, impassível - Felizmente, é incapaz de pôr em execução todas as suas ameaças.

- O caso é que há pouco estava furioso consigo. Leve sorriso pairou nos lábios do adolescente.

-Por princípio, meu pai está permanentemente descontente comigo. Já estou habituado e não me assusto.

Norberto fixou o rapazito, cujos grandes olhos tristes pareciam seguir ao longe o voo duma nuvem no espaço.

A expressão desiludida da boca graciosa, o vinco de desânimo cavado ao canto dos lábios, nada escapou ao olhar perspicaz do preceptor.

Por veneração filial ou por fanfarronada, podia ainda tomar a defesa do autor dos seus dias, mas nem por isso a fisionomia deixava de traduzir infinita amargura.

- Fale-me de sua mãe - pediu, com doçura, o francês - Bem sei que não chegou a conhecê-la, mas, enfim, ela viveu nesta casa. era a mulher do conde de Uskow. Nunca ninguém lhe falou dela?

Uma sombra toldou o olhar infantil.

- Minha mãe só conheceu as delícias do matrimónio durante um ano, visto ter morrido logo que eu nasci. Deus, na sua infinita misericórdia, compadeceu-se dela, e em vez de a obrigar a desfiar um rosário de dias dolorosos, ao lado dum marido inteiramente dominado pela paixão da ciência, enviou-lhe a morte, a libertadora abençoada pelas pessoas para quem a vida já não oferece a menor esperança.

Estas palavras foram ditas em voz baixa, com gravidade quase dolorosa.

- De que morreu ela? - inquiriu Norberto, no mesmo tom angustiado.

- Morreu. de morte natural, julgo poder afirmá-lo - declarou Frederico com voz mais segura Iola garantiu-me sempre que, materialmente, meu pai não teve a menor intervenção no triste caso, porque, pela sua pergunta. adivinho que estabelece uma aproximação entre o conde de Uskow e a morte de sua mulher.

Norberto não negou. Contentou-se em observar:

- Disse morte natural. Mas nem só o veneno, o punhal ou uma bala, podem matar. Há martírios lentos que matam com mais segurança do que uma arma.

Antes de responder, Frederico deixou vaguear o olhar pelos campos.

Em seguida retorquiu:

-Julgo que o verdadeiro causador da morte de minha mãe. fui eu. Não correspondia em coisa alguma ao que o conde de Uskow esperava dela. Desejava um herdeiro robusto e eu nasci fraco. Queria um rapagão alto e eu era quase minúsculo. Perante o bebé tão frágil e tão pouco conforme aos desejos do marido, penso que, de facto, o melhor que a condessa tinha a fazer era desaparecer. Assim, pelo menos, eximia-se às ásperas censuras que não deixaria de lhe dirigir um homem tão autoritário e arbitrário como o conde de Uskow.

- Suicidou-se - perguntou ainda Norberto, estremecendo.

As pupilas escuras do rapaz exprimiram profundo horror.

- Não, creio que não - afirmou - Muitas vezes interroguei os criados mais antigos, porque Iola, por afeição por mim, poderia ter-mo ocultado. Todos eles me garantiram a mesma coisa. Pode ser que não mo tivessem querido revelar; mas pode ser também que dissessem a verdade. Porque havemos nós de pensar o pior?. Na dúvida, abstém-te! E para meu pai é um bem o mistério que envolve os últimos momentos de minha mãe. Por compaixão e respeito filial, nunca lhe atribuí semelhante responsabilidade. Apesar do seu esplêndido talento, de que tanto se orgulha e com razão, pelo

seu péssimo carácter, tem já á sua conta actos tão censuráveis e tantas acções más, que não precisa de mais essa.

De novo Frederico desviou o olhar, que foi cravar-se vagamente nos campos adormecidos.

Um silêncio pesado como chumbo caiu entre eles; depois, Chantal inquiriu:

- Já alguma vez, Frederico, pensou, no que seria a vida longe de Trzy-Krôl?

O outro abanou a cabeça.

- Para quê? As portas desta prisão nunca se abrirão para mim. Que faria o conde meu pai se não me tivesse a seu lado para me injuriar constantemente?. Porque, apesar das aparências e ainda que isso pareça extraordinário, estou convencido de que me ama, a seu modo, está claro! Pode ser que essa maneira de amar não seja a melhor, mas, na verdade, julgo sincera a sua afeição.

- Mas o Frederico - insistiu o preceptor -nunca ambicionou ver novos horizontes?

- Creio que já uma vez lho confessei. Poder deixar tudo isto, partir para longe daqui. ter a vida de toda a gente, a liberdade de pensar, de ir onde me apetecesse. viver, enfim, na verdadeira acepção da palavra, não será esse o sonho de todo o ser quando a mocidade lhe sorri? Ah! Mas quando em nós despertam certas aspirações é necessário aniquilá-las. O pensamento diz-nos Amanhã quem sabe. mas a lógica responde: Nunca.

Nunca, é palavra que não se pronuncia na sua idade, Frederico. A vida destrói todas as nossas previsões. Se lhe falei assim, foi porque me lembrei de que nem sempre estarei a seu lado e que mais cedo ou mais tarde será preciso separarmo-nos.

O discípulo estremeceu.

-Ainda não há seis meses que chegou a Trzy-Krôl e já pensa em me abandonar?

- Não, por enquanto não. Queria apenas conhecer os seus pensamentos, lembrando-me do futuro. É bom encará-lo por todos os prismas. Já pensou que um dia poderia ser obrigado a trabalhar para viver? Os acontecimentos políticos, por exemplo, modificam, por vezes, a situação social duma pessoa.

-Se tal caso se desse, ver-me- ia bastante embaraçado.

- É evidente. Primeiro, porque desconhece por completo o mundo e estaria sem defesa perante todas as suas maldades; depois. porque não lhe proporcionaram elementos para poder ganhar a vida.

O moço conde ficou pensativo.

- Há já alguns anos pedi a meu pai que me mandasse para uma universidade. em Berlim, em Paris ou em Londres. Teria obtido o diploma de médico ou outro qualquer que me garantisse o futuro. O conde de Uskow nem sequer me consentiu que justificasse o meu desejo. Parece que, naturalmente ainda por causa da minha pequena estatura, eu iria envergonhá-lo perante o mundo inteiro.

- Semelhante aberração é extraordinária no conde

-comentou Norberto, que observava Frederico dos pés à cabeça - Um cérebro tão bem organizado prende-se com semelhante ninharia! E depois, o Frederico não é tão ridiculamente pequeno como ele pretende.

Mas o outro interrompeu-o, sorrindo.

- Não vale a pena querer suavizar os comentários de meu pai senhor Chantal. Tenho no meu quarto um espelho onde todos os dias me vejo e conheço bem o meu aspecto físico para saber que não sou nenhum hércules.

- De facto, se fosse rapariga. era melhor. Teria sido uma mulher admiràvelmente proporcionada.

- Oh! senhor Chantal, não vá agora recomeçar a discussão desta manhã. Creio ter-lhe dito que os Uskow pouco caso fazem do belo sexo.

Norberto fez um gesto de protesto.

- O Frederico não deve repetir, com esse orgulho, uma frase tão estúpida.

- Estúpida, porquê?

-Porque nem mesmo sabe a tolice que está dizendo.

- Ah, perdão! Sei muito bem que não há mulher nenhuma que não conheça o desprezo e o sarcasmo dos homens.

-Nos povos primitivos ou selvagens, talvez seja essa a regra. Mas um homem culto, civilizado e normal ama, respeita e protege a mulher.

-Sem deixar por isso de meter a ridículo a exiguidade da sua estatura e a sua fraqueza.

-Mas não é nada disso! Que ideia faz então o Fred, dum casal. O homem não se aborrece com a pequenez da sua companheira; pelo contrário, escolhe-a em geral de estatura mais baixa do que a sua. Em compensação, exige- lhe que seja mais meiga, mais paciente e amorável do que ele. É sempre com admiração e orgulho que um pai ou um marido fala das virtudes das mulheres que vivvem no seu lar.

-Muito me admira tudo isso, senhor Chantal, palavra de honra! Nunca ouvi meu pai falar dessa maneira.

- Porque o conde de Uskow é um homem excepcional. Embirrou para ali e não diz senão heresias. E foi por isso que há pouco, quando ouvi os seus lábios de vinte anos blasfemarem contra o sexo a que sua mãe pertencia, seu pai ficou satisfeitíssimo. Mas eu afirmo-lhe que essas teorias são abomináveis. e que, pelo contrário, todo o homem de sentimentos ámá e respeita a mulher e lhe dá o primeiro lugar para onde quer que vá.

Enquanto Norberto expendia argumento sobre argumento para convencer o discípulo, um sorriso enigmá tico brincava nos lábios deste último.

- Então a mulher não é um ser desprezível?inquiriu, quando Norberto parou para respirar - Pode crer que estava convencido de que Deus criara o homem à sua imagem e semelhança e a mulher à do Diabo. para melhor perder o primeiro e precipitá-lo no inferno.

Norberto soltou uma gargalhada.

-Ah! Parece-me ouvir falar o conde de Uskow. Reconheço as suas frases habituais! E, com franqueza, julga que seu pai necessita do auxílio duma mulher para ir parar ao inferno. Assim, sòzinho, irá direitinho ao Paraíso? Não costumo ser maldizente, mas, neste caso, penso que seu pai, mesmo sem ser comduzido por mão feminina. escolheu, para escapar às garras do demónio, os elementos bem pouco próprios da astúcia e da cólera! Acredita, na verdade, que se tivesse a seu lado uma esposa, paciente e bondosa, ela o faria pior do que é?

- Acredito, principalmente - respondeu o juvenil conde, rindo - que a pobre mulher que vivesse junto do autor dos meus dias teria o seu purgatório neste mundo; mas tenho também a convicção, deixe-me dizer-lho, ainda que isso lhe desagrade, de que não bastaria uma presença feminina para que as coisas corressem melhor em Trzy-Krôl. O meu excelente pai oprimiria por tal forma a esposa que não lhe deixaria nem a menor sombra de iniciativa, nem lhe consentiria a mais pequena influência. Calculo quantas lágrimas correriam, quantos lamentos. Daí resultariam ameaças e até mesmo pancadas, mas nunca um acordo afectuoso!

- Então supõe que nem a presença dum ente meigo e carinhoso ao lado do conde de Uskow teria o poder de lhe abrandar o carácter?

- Oh! Com certeza que não!

- Nesse caso é para lastimar

- comentou     Norberto, pensativo - Os próprios animais ferozes conhecem e amam as companheiras.

- Pois bem! Nem mesmo isso fazem os senhores de Trzy-Krôl!

- Então o Frederico... espera também ser mais tarde um deplorável marido?

Uma onda de sangue purpureou o rosto do rapaz.

- Eu? Oh! Eu nunca me casarei - protestou.

Norberto sorriu, incrédulo.

- Por desprezo pelo sexo fraco? - informou-se, divertido.

- Não... não. Por... Ah, palavra de honra que não sei, mas nunca me ocorreu que pudesse vir a casar.

-Todavia, Fred, no dia em que cheguei ouvi-o falar com entusiasmo numa rapariga que dizia conhecer... uma rapariga meiga, leal, um coração de ouro, enfim.     

Enquanto falava, o preceptor examinava o rosto delicado, a que um franzir de testa dava naquele momento uma expressão dura.

- Ah, sim... uma rapariga - murmurou Frederico, pensativo.

- E então?

- E então, se julgou que se tratava duma paixoneta, enganou-se, senhor Chantal.

- Pensei... Não é coisa que fique mal a um homem ter gravado na alma um nome de mulher.

-Não se trata disso, torno a afirmar-lhe.        Essa menina é... bonita... educada, mas, como eu, também não se casará!... E asseguro-lhe que nunca me passou pela cabeça apesar de ser seu amigo, que poderia um dia gostar dela... com amor... Ah! Nem por sombras

E um relâmpago travesso iluminou-lhe o olhar sombrio.

-É curioso como o senhor Norberto se recorda do que lhe disse a respeito... dessa pequena.

- Porque pensei que a presença duma mulher leal, delicada e meiga poderia atenuar as asperezas do carácter do senhor seu pai.

Desta vez foi Frederico quem soltou uma gargalhada.

- Já é teimosia, estou a ver. Pois bem, desengane-se, mestre, labora num erro, convença-se. A pessoa de quem falámos poderia viver muitos anos em Trzy-Krôl sem que o génio de meu pai sofresse a mais pequena modificação. Para transformar e seduzir o simpático senhor destes domínios seria preciso mais alguma coisa do que a influência duma pobre rapariga.

-Que outra coisa então?

- Oh! Eu sei lá Um ser pré-histórico. uma múmia bem conservada. a história dum faraó desconhecido. coisas, enfim, que não estão ao alcance de toda a gente.

- Pois eu não sou da sua opinião, Fred. A amiguinha de quem me falou, em carne e osso, valeria muito mais, creia-me. Suponha, por exemplo, que era o Fred essa rapariga!

As faces do rapazito mais uma vez se cobriram de intenso rubor.

- Que ídeia!

- Simples hipótese! Quero eu dizer que se em vez dum rapaz o Frederico fosse uma rapariga, tudo cami nharia melhor aqui.

- Ah! Por Deus, não diga isso!

- Digo, sim.

- Não, afirmo-lhe que não. Começa porque tál caso não poderia dar-se. Meu pai ter-me-ia suprimido ao nascer, se fosse do sexo feminino.

- Oh! Seria possível?

- Era, tenho a certeza.

O olhar de Norberto, durante esta troca de impressões, não se desviou da fisionomia de Frederico e viu as grandes pupilas escuras iluminarem-se ou perturbarem-se conforme os pensamentos enunciados. Depois da última afirmativa, tão gravemente expressa pelo rapaz, o professor não insistiu.

- Nunca supus que a aversão do conde de Uskow pelo sexo fraco fosse até ao ponto de ameaçar uma vida. E se ele tolera e admite a presença de algumas criadas, poderia também suportar a de sua própria filha.

- Bem vê como há pouco, acolheu as suas hipóteses.

- Tratava-se de mero gracejo.

- Esquece a forma como falou de minha mãe. do seu fim prematuro?

- Um homem pode não amar a mulher, mas adorar os filhos.

- Era preciso para isso que meu pai tivesse coração. Mas nele, infelizmente, só vibra o cérebro. um cérebro genial, náda mais.

Frederico fez uma pausa e depois concluiu, devagar e com triste sorriso:

- Creia-me, senhor Chantal, se não nos quer mal, não faça admitir ao autor dos meus dias a possibilidade de haver um dia, em Trzy-Krôl, uma mulher da sua raça. Fosse ela quem fosse, lembre-se bem que seria mais generoso nunca pensar em a encerrar debaixo destes tectos que acabariam por a esmagar.

Enquanto falara, Frederico evitara o olhar do professor. Mas. ao terminar o seu tímido conselho, ousou levantar os olhos para aquele que o escutava com atenta gravidade.

- E agora, mestre - continuou - deixo-o entregue aos seus sonhos de regeneração. Mas não se iluda. Calculo que seria mais fácil domesticar os tigres da selva do que comover o senhor de Trzy-Krôl. Eu, por mim, já renunciei a essa tarefa. Agora - acrescentou, mudando de tom - vou dar um passeio a cavalo. Preciso de distender os nervos e ficar-lhe-ia reconhecido se não me acompanhasse.

- Mas porquê?

- Porque me sinto incapaz de me dominar. Falámos de minha mãe. das agradáveis concepções de meu pai. e tudo isso é bastante doloroso para se ouvir com resignação. Sinto a imperiosa necessidade de estar só, para desabafar à minha vontade. Até logo, mestre!

E antes que Norberto tivesse tempo de protestar contra o passeio solitário, e talvez perigoso, que Frederico se propunha dar, este, ràpidamente, alcançou o poney, que havia já um bocado o esperava, completamente aparelhado, diante da porta da estrebaria.

O conde de Uskow concedia certa liberdade aos dois rapazes, consentindo-lhes que dispusessem do dia para os seus passeios, conforme entendessem, e, aproveitando essa liberdade, haviam saído de casa naquela manhã, quase de madrugada.      

Frederico, ao volante, seguia com o automóvel em andamento rápido.

A estrada desenrolava-se, serpenteando em curvas apertadas... curvas em u, como se costuma dizer.

- Prudência, Frederico - aconselhou o professor, bem humorado - Gostaria ainda de lhe ensinar muita coisa antes de partir desta para melhor!

O juvenil motorista protestou alegremente:

-Sossegue, mestre, não tenho empenho nenhum em quebrar os ossos em qualquer destes barrancos!

Logo que perca de vista Trzy-Krôl passo-lhe o volante.

- Para quê? Tenho confiança em si.

- Sim, mas eu quero descansar. Estas malditas viragens absorvem em demasia a atenção e com uma manhã tão bonita só me apetece não fazer nada e sonhar.

Chantal sorriu.

-Como há dias, no barco, não é verdade?

É curioso como as mesmas causas produzem em nós efeitos diferentes! Com este esplêndido sol e com a aragem fresca que nos fustiga o rosto, sinto despertar toda a minha energia!

-O senhor é extraordinário! Vejo-o sempre em actividade. Por mim, a minha energia é quase vegetativa! Penso muitas vezes que gostava de ser um arbustozinho, dormindo ao sol, num canto aconchegado da floresta e ao abrigo das tempestades.

Travou de repente o carro e saltou para a estrada, alegremente.

- Cabe-lhe a vez agora, senhor meu preceptor. Vou sentar-me ao seu lado e fazer o papel de lagarto. Mas antes de tornar a subir para o auto, apontou num gesto largo o horizonte em anfiteatro que se lhe estendia aos pés.

- Desta paisagem melancólica, destas planícies sem fim, das montanhas que ao longe parecem fechar o espaço, de tudo isto, enfim, não dimana nostálgica tristeza?

Chantal não foi da mesma opinião.

- Esta região é duma beleza selvática e acho que, pelo contrário, me incita à acção e ao movimento, meu rapaz! Expulse essas ideias tristes e observe tudo quanto o rodeia, com olhos de dezanove anos. olhos que devem compreender a obra de civilização a realizar neste deserto, mal cultivado quase todo ele e por isso mesmo improdutivo.

O rapazito encolheu os ombros e soltou um suspiro.

- Ora, quanto mais observo estes campos bravios e agrestes mais penso quanto me seria agradável afastar-me daqui! As perspectivas do futuro que tudo isto me oferece são bem pouco animadoras. E só de pensar no trabalho que seria necessário empreender para tornar luxuriante este cantinho perdido e inculto me sinto fatigado de antemão.

A voz exprimia um tal desânimo que Norberto se voltou para ele.

E viu então as compridas pestanas sombrearem as faces descoradas, faces demasiadamente pálidas para um rapaz criado em pleno campo.

Era evidente que o abatimento moral se reflectia no físico. As feições de Frederico não respiravam, por certo, resolução. Enfraquecia-o, pelo contrário, uma espécie de apatia invencível e talvez inata.

- Perspectivas de futuro, para quê? - admirou-se o professor - Se não lhe agrada viver aqui, porque não há-de mais tarde instalar-se noutro ponto? Ou supõe que seu pai poderá obrigá-lo a permanecer junto dele toda a vida, contra vontade?

- Sabe-se lá!

Frederico fixava agora o espaço com um olhar vago, sonhador, enigmático...

De súbito sacudiu a cabeça, como se quisesse expulsar pensamentos importunos e desagradáveis.

- No fim de contas, quem viver verá - concluiu.

- Dizem os sacerdotes em França que o futuro pertence a Deus. Se essa crença, que decerto é a sua também, não mente, de que nos serve querermos preparar um futuro que Deus de antemão destinou.

Norberto estremeceu.

- Não crê em Deus, Frederico? - perguntou com certa ansiedade.

- Oh sim, tenho fé! Mas não acredito na bondade dos homens, e parece-me que o céu nem sempre intervém quando deve, para impedir as suas maldadezinhas..

Pela portinhola oposta instalou-se dum salto no lugar que Norberto acabava de abandonar.

- A caminho! Sinto o imperioso desejo de me evadir. Quero hoje ir para longe. Uma verdadeira fuga em plena liberdade!

- Seja, a caminho - aceitou o francês, que se conservava pensativo com a revelação da desiludida fé do discípulo - Mas tem de me guiar, meu amigo.

Não conheço a região.

- Sempre a direito! Sempre a direito, se é lícito falar assim duma estrada em ziguezagues. Quero eu dizer que o caminho segue directamente, sem desvio, até ao ponto que desejo atingir.

Percorreram assim uns trinta quilómetros.

Sùbitamente, imensa toalha de água, a que o sol, já alto, arrancava cintilações metálicas, atraiu o olhar de Norberto, que parou o carro.

- Ah! que lago encantador! Porque não trouxemos nós os fatos de banho! Seria tão agradável mergulhar nesta água cristalina!

- Por mim, dispenso - atalhou Frederico – Bem sabe que não gosto de nadar, ou antes, que me desagrada a água fria.

- Mas a água tonifica o organismo e aviva as       ideias. Não me canso de lhe apregoar os benefícios.

- De mais o sei eu - volveu o outro um pouco rabugento - Para si, a água poderá ser muito agradável; para mim esse líquidò frio produz-me no corpo uma sensação de repugnância que não posso explicar.

como uma coisa morta. viscosa! Essa impressão causa-me horror.

Norberto protestou com um gesto.

- Mas o Frederico bem sabe, e torno a repetir-lho, que um rapáz moderno que não pratica a natação é uma anomalia! O seu pai já mais duma vez me tem aconselhado a agarrá-lo pelo colete e a deitá-lo à água, sem mais cerimónias, visto não o querer fazer de boa vontade. Depois de lá estar, seria obrigado, quer quisesse quer não, a fazer os movimentos necessários.

Frederico levou o caso para a brincadeira.

- Meu pai é muito persistente nas suas ideias mirabolantes. Mas eu também não sou menos teimoso e muito gostaria que o senhor Chantal experimentasse nele a receitazinha que lhe aconselhou. Talvez a frescura da água lhe esclarecesse as ideias e depois disso nos desse um artigo soberbo sobre os inconvenientes de deitar à água os gatos e as galinhas de estimação.

-Mas o Frederico não é gato nem galinha!

-No que respeita ao horror à água, pareço-me imenso com esses animais.

Conversando neste tom jovial, tinham-se aproximado das margens do lago.

Era uma espécie de lagoa, formada na cavidade da rocha pelas águas que corriam da montanha na época do degelo.

- Esta água deve estar frigidíssima - observou Frederico com um arrepio - A professora que tive apeteceu-lhe um dia tomar banho aqui. Mas saiu de lá tão transida que jurou nunca mais tentar a experiência.

- Fez mal. O corpo ter-se-ia habituado à temperatura. Mas veja ali - acrescentou Norberto - não é fumo que sobe atrás daquele arvoredo! Neste deserto existem então habitações?

- Existem. Começa aqui a vida civilizada. Naquele ponto deve haver, pelo menos, a choupana de algum carvoeiro. E olhe, não são crianças que brincam além?

- É verdade! Dois pequeninos! Haverá peixe no lago? Parece-me que os garotos se divertem a pescar. Nesse caso não está a água tão fria como dizia.

- Estão apenas a fingir que pescam - replicou Frederico, a quem o assunto parecia desagradar.

Atraído por outro aspecto da paisagem, chamou Norberto e apontou-lhe um ponto bastante afastado:

- Vê lá ao longe. muito longe. aquela espécie de nevoeiro que sobe no horizonte?

- Vejo. Devem ser nuvens um pouco baixas. Provàvelmente vai chover.

-Engana-se, não são nuvens! Trata-se de fumo produzido por fábricas importantes. Ali está situada Knoura, uma das cidades mais industriais da Europa Central e a mais rica talvez da nossa Dylvânia. A única cidade que conheço!

O rapazito conseguira fazer desviar a conversa para a questão industrial. Prosseguiram neste assunto, indagando Norberto a topografia e o tráfego comercial daqueles centros fabris.

De súbito, um grande grito ecoou atrás deles. um grito tão aflitivo que fez voltar Frederico, mas ao qual Chantal não deu grande atenção.

Absorvido na contemplação dos telhados que lhe recordavam as vilas da sua querida França, o professor deixava o pensamento voar para a pátria saudosa.

E naquele instante sentia-se tão longe dali. tão longe, que nem bem sabia onde estava.

Não ouviu o apelo soltado pelos garotos nem viu o discípulo afastar-se.

Com efeito, este, escutando os brados angustiosos dos petizes, pressentira um drama e instintivamente correu para eles. e para as águas geladas do lago!

Foram precisos novos clamores de terror para arrancar Chantal ao seu devaneio.

Sùbitamente perturbado pelos gritos infantis e não vendo o discípulo perto de si, teve o pressentimento dum desastre e atravessou, correndo, a pequena plataforma que o separava do lago, situado um pouco mais abaixo.

- Frederico, onde está?

- Aqui!

Qual não foi o espanto do professor quando o avistou dentro de água! Frederico, que não sabia nadar, atirara-se ao lago completamente vestido!

O primeiro pensamento de Norberto foi de admiração pelo rapaz que, não obstante todo o seu horror à água, não hesitara em se precipitar naquela, cuja temperatura era glacial.

Depois essa admiração transformou-se em assombro quando viu que o discípulo sabia nadar. Nadava com vigor e com método, para o pequenito que se debatia a dez metros da margem e estava prestes a submergir-se nas ondas traiçoeiras.

O seu discípulo nadava. Frederico sabia nadar com todas as regras!

Por que motivo então fizera sempre supor que desconhecia a natação?

Quase chegou a duvidar do testemunho dos seus olhos! Era espantosa aquela revelação imprevista, que deixou o professor completamente assombrado!

Entretanto, a ocasião era mal escolhida para desvendar o mistério, porque, de súbito, o drama revelou-se a Norberto com trágica rapidez. Uma das crianças, naturalmente, quisera avançar de mais para pescar e perdendo pé de repente, fóra envolvido pelas águas. A outra, assustada, só tivera forças para gritar.

Uma ansiedade imensa oprimiu o coração de Chantal, que, num gesto instintivo, despiu o casaco e o colete para se precipitar por sua vez em socorro de Frederico.

Mas este, entre duas braçadas, ordenou de lá:

- Espere. não vale a pena molhar-se. Já o agarrei.

O juvenil professor ficou, por conseguinte, na margem, não querendo, com a sua intervenção, diminuir o mérito do discípulo. Contudo, inquieto, de fronte enrugada, seguia com ansiedade todos os movimentos deste, porque ignorava até que ponto a resistência do rapazito o poderia sustentar.

Frederico conseguira agarrar a blusa da pequenina vítima; infelizmente, o petiz tinha ainda força suficiente para se debater e paralizar os movimentos do seu salvador.

O instinto da conservação fez mesmo com que se agarrasse aos braços de Frederico, de forma que este apenas conseguia manter-se à tona de água pelo movimento dos pés.

A situação tornava-se difícil. Tantos esforços inúteis esgotavam visivelmente o rapaz.

Norberto fora avançando até que a água lhe chegou aos joelhos; ia já atirar-se a nado, quando o juvenil salvador, com um sangue-frio que despertava a admiração do professor, com um soco vigoroso se libertou da criança, que quase perdera os sentidos. Só então o filho do conde de Uskow conseguiu transportá-lo para a margem.

Já não era sem tempo. O petiz estava desmaiado e quase asfixiado e Norberto teve de executar movimentos rítmicos para o reanimar e obrigar a respirar.

Ao mesmo tempo, Frederico, extenuado pelo esforço despendido, sentiu-se desfalecer e deixou-se cair em cima dos rochedos que orlavam o lago.

Entre os dois, Chantal não sabia o que fazer; então, tomou o pequenito nos braços e bradou:

- Depressa! Depressa! Venha comigo, Frederico! Mais uns momentos de coragem, peço-lhe! Esta pobre criança precisa de tratamento. Venha ajudar-me.

Foi esta a melhor maneira de o reanimar. Frederico, por si, não teria talvez dado um passo para ser socorrido. Mas desde o momento em que se tratava da criança, levantou-se, ainda que muito fraco. Cambaleava ao seguir Norberto, que ralhava com o outro petiz.

-Vamos, avia-te! Em vez de choramingar, conduz-nos a casa de tua mãe. Qual é o caminho mais rápido para as habitações que existem com certeza além, onde se vêem aquelas chaminés? O teu companheiro necessita dum cordial e de mudar de roupa. Avia-te!

Podia falar assim por muito tempo. O pequenito não o compreendia. Todavia, a linguagem dos gestos é sempre a mesma em qualquer país do mundo.

Desde o momento em que aquele senhor conduzia nos braços o seu companheiro doente, com certeza tencionava levá-lo a casa. E, portanto, o garotito instintivamente tomou o caminho da sua habitação.

O grupo trágico percorreu ainda uma centena de metros dum pequeno atalho que atravessava a floresta.

Norberto, carregado com o precioso fardo, impelia diante de si Frederico, que arquejava.

Alcançaram por fim uma casita feita de tábuas mal unidas, que se erguia numa pequena clareira.

Vendo o garotito naquele estado, uma camponesa, sua mãe, naturalmente - soltou agudos gritos e parecia disposta a injuriar fortemente aqueles que acabavam de se arriscar para lhe salvar o filho.

Frederico, com a roupa encharcada e tiritando, teve de lhe explicar em dylvaniano o que se passara e, então, a mulher, informada do terrível drama, confundiu-se em profundos cumprimentos e em obsequiosos agradecimentos.

Mas tantas palavras e demonstrações não agradavam a Norberto.

- Vamos! Vamos Basta de conversa - interrompeu - Dispa essa criança e meta-a na cama. E o Frederico vai já tirar o fato molhado. Esta mulher que lhe empreste roupa e um fato qualquer.

Frederico fez um trejeito de desagrado.

- Seria melhor tomarmos o auto e voltarmos para casa - propôs.

- Nada disso - protestou Norberto - exijo que tire imediatamente essas roupas ensopadas em água gelada.

Para agradar ao preceptor, o discípulo transmitiu à mulher o que desejava.

E enquanto esta, já um pouco restabelecida da comoção, procurava num armário os objectos pedidos, e Frederico, com mão trémula, ajudava a criança a despir-se, Norberto atirava para a chaminé um braçado de lenha e acendia um bom lume.

Isto feito, voltou para junto do discípulo, que não parecia muito apressado a mudar de roupa.

- Vamos, meu pequeno, tire essa camisola molhada e dispa as calças. Está gelado! Por que espera para se desembaraçar de tudo isso? Prefiro que fique nu, a vê-lo envolvido nessas roupas geladas.

Mas Frederico, corado e constrangido, cruzou os braços no peito, opondo aos desejos do professor verdadeira resistência passiva.

- Não se preocupe comigo! Daqui a pouco pensarei em mim. Tratemos da criança antes de mais nada!

- O garoto está bem. Despi-o, friccionei-o e meti-o na cama. Depois a mãe o vestirá. Mas, por seu lado, peço-lhe, Frederico, que não continue a demonstrar essa relutância em me obedecer. Que diria o conde de Uskow se voltasse para casa com uma bronquite? E ela é inevitável se persiste na sua teimosia.

Conseguira despojar Frederico do pull-over de lã, mas este defendia enèrgicamente a camisa.

- Todas estas histórias me aborrecem - resmungou o rapaz -- Parece que sou feito de açúcar e que me vou derreter! Ah! senhor Chantal, como o senhor é maçador em certas ocasiões! julga que é muito agradável envergar um fato que nem se sabe de quem é?

- Não diga tolices, Frederico. A camisa que esta mulher lhe oferece está lavada e não vê que a nossa hospedeira tirou do armário o melhor fatinho do marido.

- Bem vejo - retorquiu o rapaz - umas calças onde caberiam à vontade eu, minha mulher e sete filhos! Vou ficar bonito com essa farpela! Oh! como tudo isto é aborrecido!

O seu mau humor era evidente.

Norberto quis, apesar disso, ajudá-lo a despir as calças e a camisa. Mas Frederico, agarrando na roupa e no fato que a mulher lhe estendia, precipitou-se para a porta e desapareceu, ocultando-se com os matagais.

- Prefere estar só, para mudar de fato - tentou explicar a mulher, rindo da atitude pudibunda do pequeno. - Naquela idade receia-se sempre o ridículo!

Norberto não respondeu. pela simples razão de não ter compreendido uma palavra do que ela dissera! Além disso, a fuga precipitada do discípulo deixara-o pensativo. sempre a mesma dúvida que voltava a obsecá-lo.

Quando lutara com Frederico para o despojar da roupa encharcada, as suas mãos haviam aflorado o busto do adolescente, cujas formas se achavam completamente modeladas pela camisa molhada.

E que estranha sensação! Nos braços roliços nem a menor sombra de músculos. os ombros arredondados. e o decote deixava aperceber a pele branca e aveludada. Quanto ao seio.

O seio!

Norberto julgava sonhar! Aquela luta com Frederico mais uma vez lhe recordava Maud Glory.

-Meu Deus! Sempre a mesma aproximação, porquê?

Bem via que era ridículo comparar o corpo daquele rapaz efeminado com as formas esculturais de Maud.

Mas vá lá uma pessoa dominar as suas impressões?

O contacto de Frederico produzia no preceptor profunda perturbação, evocando-lhe a presença duma mulher.

De pé, diante da lareira, onde a chama bailava alegre, o nosso amigo meditava.

Os pensamentos sucediam-se rápidos, desordenados, mas sempre evocadores dos gestos do rapaz. de todos os seus gestos. e de todas as sensações experimentadas. havia meses!

Subitamente, o moço francês recordou tudo quanto lhe tinha causado certo espanto, desde a sua chegada a Trzy-Kxôl. Os comentários do pai, as revoltas do filho. O estranho carácter deste, tão impulsivo, tão agressivo e irónico e, contudo, de tão extraordinária sensibilidade. um autêntico carácter feminino.

E que significava também a incompreensível mentira, a propósito do horror que lhe causava a água.

E com que teimosia recusara tomar banho no dia em que tinham passeado de barco!

Finalmente, seria possível que o pai ignorasse que o filho sabia nadar?

Factos mais recentes aumentavam ainda a perturbação do preceptor.

Sim. aquele singular pudor. um pudor tão intempestivo e que nada tinha de masculino!

Ah! não havia dúvida de que todas aquelas observações eram extraordinárias e significativas talvez. Depois, o trajo de homem nem sempre é garantia do sexo.

De resto, tudo era anormal, naquele domínio de Trzy-Krôl. o pai, o filho e até a governanta Iola que o preceptor surpreendera um dia enlaçando estreitamente Frederico.

Na verdade, desde as pessoas aos objectos, tudo era equívoco naquele velho castelo perdido no fundo dos Cárpatos.

No entanto, Norberto hesitava ainda em definir as suas suspeitas.

Todavia. A pessoa menos observadora compreenderia tudo quanto havia de estranho na união daquele pai tão despótico, tão cruel. com um filho tão respeitosamente revoltado.

Nesse caso. Seria preciso acreditar. O pensamento do preceptor estava bem longe dali quando Frederico reapareceu na choupana.

Trazia o fato molhado pendurado num dos braços e com a outra mão segurava as calças que acabava de vestir.

Não viu o olhar estranho com que Norberto o envolveu.

-O senhor Chantal não achava melhor que esta boa mulher me desse uma ou duas almofadas para acabar de encher o cós das calças? O marido deve ter, pelo menos, metro e meio de cintura! Veja a minha elegância! Não estou bonito, assim? E não acha que seria agora a melhor ocasião de me ir pavonear para as raparigas cá do sítio me verem?

Norberto examinava atentamente o discípulo.

- Sim -- concordou, enigmático - talvez que um trajo de mulher lhe estiveesse mais adequado.

Frederico parou e, encarando o companheiro, observou com fingida tranquilidade:

-Desculpe contradizê-lo, senhor meu preceptor, mas prefiro o trajo do meu sexo! E ainda que suponha o contrário, sinto-me mais feliz com umas calças de homem, mesmo tão largas como estas, do que com uma saia apropriada à minha pequena estatura!

Depois deste pequeno discurso, não mais se ocupou de Norberto. Voltou-se para a camponesa, que ria por o ver assim mascarado e com ar imperturbável explicou-lhe em dylvaniano que a gratificaria pelo empréstimo do fato e que este lhe seria restituído por um criado do pai.

Depois, sem mesmo responder a Chantal, que insistia para que pedisse à mãe do pequeno afogado qualquer bebida quente para ele e para a criança que salvara, Frederico saiu do casebre e saltou para o auto, cujo motor pôs imediatamente em marcha.

Accionado pela sua mão nervosa, o klaxon vibrava em apelos sonoros, enquanto debaixo do pé impaciente, o motor estremecia, pronto a embraiar.

Norberto viu-se obrigado a seguir o turbulento discípulo, sem tentar fazer-se compreender pela pouco expedita aldeã.

Apressou-se mesmo a seguir Frederico, pois sabia que este, com o seu carácter impulsivo, era bem capaz, se a demora fosse maior, de partir sem ele; não era a primeira vez que durante os passeios a cavalo, o filho do conde de Uskow, quando qualquer coisa lhe desagradava, partia em precipitada correria, deixando-o para trás.

- Então, agora é o Frederico quem guia? - inda gou o preceptor, fleumático, sentando-se ao lado do impaciente rapazito.

- Oh! nem pensar nisso. Se já estava cansado antes do maldito banho, agora sinto-me completamente aniquilado. Ao contrário do que afirma, a água fria não me restituiu as forças.

- Então descanse e embrulhe-se bem na manta que está no fundo do carro.

-Deveras? Consente que eu me estenda aqui atrás?

- À sua vontade! Mas sente-se doente?

-Não. Tenho apenas sono.

E como Chantal se voltasse para ele e o examinasse com inquietação:

- Oh! Meu caro senhor e amigo - protestou, irónico - Rogo-lhe que não olhe para mim com esse ar assustado. Não esqueça que sou eslavo. Já estou habituado à fadiga e sou preguiçoso por natureza.

- Não é a sua indolência que me assusta. Só temo as consequências do banho gelado; duma boa constipação, pelo menos, não se livra, com certéza. A cautela, vamo-nos dirigir à aldeia mais próxima e ali tomará uma bebida qualquer, contanto que esteja bem quente.

- Ah, isso não! - protestou Frederico, indignado - recuso terminantemente sair do auto com a linda toilette em que estou.

- Pois não saia - insistiu Norberto - Eu próprio irei buscar a bebida e lha trarei ao carro.

E como lançasse nova olhadela ao seu juvenil companheiro, viu que este estava pálido e que ligeira tremura lhe agitava os lábios arroxeados pelo frio.

-Com os demónios! Faz favor de se embrulhar melhor - bradou com ar descontente - Que prazer tem o Frederico em desafiar a doença? Vejo-o a tiritar de frio.

-Não se assuste assim, meu caro professor. Eu já estava adoentado antes do mergulho, como quer que esteja melhor, agora?. Além disso, bem sabe o efeito que produz em mim a água fria. O rio que me faz bater os dentes é devido à reacção, mais nada.

Já tenho passado por outras piores e não estou habituado a que se preocupem tanto com a minha insignificante pessoa.

E com ar de troça, acrescentou:

- Vá falar na minha doença a meu pai e verá como ele lhe responde.

Norberto, de si para si, recordou a conversa que tivera com o conde de Uskow, na tarde em que o filho transpusera a fenda da montanha. E sem responder ao rapaz, acelerou o andamento do carro e perguntou:

- Essa tal aldeia ainda fica muito longe?

- Oh! Não. Nunca será tarde para lá chegarmos. A pouco menos dum quilómetro, logo verá a ignóbil hospedaria onde as moscas e a porcaria estabeleceram domicílio desde tempos remotos!

Com efeito, pouco depois, o condutor fazia parar o carro diante duma espécie de casebre, sobre cuja porta se ostentava un ramo de alecrim, ornado por fitas multicolores, à semelhança do que fazem os estalajadeiros franceses e doutros países que usam o ramo de pinheiro ou de louro, para chamar a atenção dos viajantes.

- Faço votos para que seja bem sucedido - troçou Frederico, vendo o professor penetrar na hospedaria

- Dou-lhe um doce - como vulgarmente se diz - se conseguir fazer-se compreender por esses estúpidos.

Mas tudo levou a crer que Norberto não encontrasse as dificuldades que o discípulo supunha, porque, minutos depois, aparecia de novo, trazendo na mão um copo com um grogue fumegante.

- Mau! Detesto bebidas alcoólicas - exclamou Frederico, aborrecido - Esta endiabrada beberagem vai pôr-me a garganta em fogo para todo o dia! Ah! senhor Chantal, que despótico autocrata o senhor me saiu!

Contudo, foi bebendo o líquido quente, não sem fazer uma série de caretas e sem conseguir evitar que as lágrimas lhe chegassem aos olhos pela força do álcool.

- É mal feito envenenar as pessoas com o pretexto de as beneficiar - protestou ainda, entregando o copo vazio a Norberto, que pacientemente esperava, encostado à portinhola. -- Vá para o diabo. senhor pedagogo, o senhor e as suas absurdas lembranças.

Nunca Frederico pronunciara palavras tão desagradáveis para o professor. Dir-se-ia que, desde que este o obrigara a mudar de fato, procurava o mais pequeno pretexto para o melindrar.

O professor, porém, pouco caso fazia deste mau humor e aceitava em silêncio todas aquelas injúrias que noutra ocasião não teria deixado passar sem repressão.

Como, depois duma hábil viragem, o carro regressava a Trzy-Krôl, Norberto perguntou de repente a Frederico, que se lhe sentara ao lado:

-Quer agora explicar-me, Frederico, a razão daquela comèdiazinha?

- Que comédia? - inquiriu o interpelado, pondo-se instintivamente na defensiva.

- A que representou há pouco. Tinha-me afirmado que não sabia nadar.

- Deveras? Foi isso o que afirmei?

- Não vejo outra significação para as suas palavras. Quando eu insistia para que aprendesse a nadar e o censurava pela sua recusa, podia bem ter-me dito que esse desporto não tinha segredos para si.

-Se o fizesse, teria cometido uma tolice de que se aproveitaria imediatamente para me obrigar a tomar banhos frios, que eu detesto.

- E, contudo, o Frederico não hesitou em se atirar à água há bocadinho?

- Ora! Ninguém é senhor das suas primeiras impressões. Quando vi a criança debater-se no lago e com preendi que ia morrer ali, à minha vista, sem mesmo reflectir, atirei- me à água.

E ria com a despreocupação própria da sua idade.

- É belo, o que acaba de fazer, sabe. E se às vezes o seu génio impetuoso o impele a cometer acções lamentáveis, o belo gesto que praticou foi suficiente para as fazer esquecer. Felicito-o por ele, Frederico!

O rapaz corou intensamente.

- Ah! - atalhou com mau modo - Pelo amor de Deus, não me fale mais nisso! Não mereço tantos elogios! Acabo de lhe dizer que o meu acto foi puramente instintivo. E agora, que penso melhor, verifico que fui apenas ridículo em me sujeitar àquele banho frio.

- Para que quer denegrir assim a beleza do seu gesto. certas acções bastam para dar a conhecer o carácter dum indivíduo. Só hoje o conheci bem, Frederico, e compreendi porque razão logo de princípio simpatizei consigo. proporcionou-se a ocasião para eu o conhecer como verdadeiramente é. e vejo que é capaz de belas e nobres acções.

- Oh! Não zombe de mim - bradou Frederico, corando - Não gosto que me façam tão exagerados elogios!... e, quando o ouço, lamento que o petiz não esteja agora aqui. Com que prazer o teria atirado outra vez à água, àquele idiota!

Chantal começou a rir.

-Bonito! E como naturalmente teríamos nova edição do tal gesto instintivo, dessa vez não se livraria duma boa bronquite.

-Se fosse essa á maneira de escapar aos seus delírios admirativos, dava-a por bem empregada.

-Que espírito de contradição o obriga a falar assim? Não vejo motivo para tanto azedume!

Norberto parou o carro e encostou-o a um dos lados da estrada.

Voltando-se para o companheiro, examinou-o com curiosidade.

-Por que motivo capricha em me ser desagradável?

- Porque detesto cumprimentos.

- Julgo não ter usado da menor hipérbole, dizendo que salvou uma criança que se afogava, com risco da própria vida. Não era isto mesmo o que lhe dizia a pobre mãe, quando, a chorar, queria ajoelhar-se- lhe aos pés?

O adolescente encolheu os ombros com impaciência.

- As mulheres ignorantes são pouco reservadas nas suas manifestações emotivas. Aquela aldeã ter-me-ia agradecido com igual efusão se a tivesse presenteado com uma porção de dinheiro.

-Oh! Frederico, como pode comparar as duas emoções! Não vê que, comentando assim o gesto inconsciente de gratidão daquela mulher, avilta o sentimento de amor maternal que a lançou a seus pés?

Uma sombra alterou a fisionomia altiva do rapaz.

- Muito lhe agradeceria - disse - se não falássemos mais nesse assunto! Se está encantado com o passeio, por meu lado não posso dizer o mesmo! A aventura só me deixou tristes recordações.

- Tristes? - protestou de novo Chantal - Que sensações precisa então o Frederico experimentar para que as suas recordações sejam alegres?

- O senhor faz-me essa pergunta porque se obstina em encarar o caso apenas pelo seu aspecto favorável. Eu, pelo contrário, conservo a desagradável impressão do arrepio que senti na água, do amplexo brutal da criança, que me paralisava os movimentos por tal forma que julguei por momentos que iamos morrer ali os dois. E crê que o resto também foi muito agradável para mim?

- Que resto?

-Tudo! Já disse! Os sapatos cheios de água que foi preciso tirar-lhe dos pés. sujos, quase negros. daqueles pobres pèzitos que nunca viram sabão na sua vida! E a mãe, obesa e barriguda como uma truta que está na engorda. e estúpida como a própria estupidez em pessoa.

Chantal não respondeu. Instintivamente, percebia que Frederico exagerava todos os seus sentimentos. e que um pensamento oculto, que devia ser doloroso, aumentava nele a necessidade da crítica e da ironia.

Calou, portanto, naquela ocasião, todas as respostas que poderia opor aos motejos do companheiro. Sem insistir, voltou a pôr o carro em andamento.

Como já se encontrassem perto de Trzy-Krôl, Norberto propôs que este retomasse o seu lugar ao volante.

- Não, não, continue a guiar até ao castelo - insistiu o rapaz- Não quero descer do carro envergando este trajo.

- Oh! Não passa ninguém.

-Sabe-se lá! Todo o ano os rachadores trabalham na floresta.

-E liga, realmente, grande importância ao que essa gente possa dizer?

- Sempre tive horror ao ridículo e há uma hora para cá que não faço outra figura.

Por consequência, Chantal continuou ao volante.

- Senhor Chantal - disse de súbito Frederico. - queria pedir-lhe que não contasse a meu pai os inciden tes do nosso passeio.

- Porquê - protestou o professor - Terei até grande orgulho em lhe narrar o seu magnífico procedimento.

- Por mim, ficarei muito aborrecido se ele o souber! Desculpe-me se insisto, mestre, mas afirmo-lhe que meu pai só encontrará palavras desagradáveis para comentar o que se passou. Além disso, nestes meses mais próximos bastará que eu tenha um arrepio, para que ele o atribua ao banho gelado que tomei no lago, e me censure por isso.

- Mesmo assim, não me calarei como me pede.

Seu pai deve saber... Não há homem nenhum que não se sentisse orgulhoso em ter um filho assim.

- Pois bem! Sob o ponto de vista de orgulho, calculo que o conde de Uskow pensará simplesmente que o imprudente garotito que salvei não vale o mais ínfimo ser pré-histórico... Se eu tivesse a felicidade de lhe descobrir os vestígios duma criança-macaco, de que ele pudesse descrever longa memória, então, sim... mas esta ridícula história de salvamento!

- Oh! Frederico, está exagerando!

- E eu afirmo-lhe, senhor meu professor, que desconhece por completo a alma dum etnógrafo, senão compreender-me-ia.

Como tivessem atingido o pátio interior do domínio, Frederico, um pouco atrapalhado para se mexer, saltou para o chão.

Por acaso Iola apareceu. Vendo o seu juvenil amo naquele trajo, a boa mulher ergueu os braços ao céu e, num fraseado incompreensível para Norberto, começou a ralhar com o adolescente.

De princípio o seu espanto fez rir Frederico que tomou o caso pelo seu lado cómico. Mas quando, depois das explicações dadas pelo rapaz, a criada limpava os olhos, comovida, e invocava a bênção do Senhor para tão esplêndido acto de coragem, Frederico, com garotice, saltou-lhe ao pescoço. Depois, enfiando-lhe o braço, arrastou a velhota para casa.

Norberto assistira, calado, à comovedora cena.

- Foi ela quem o criou - pensou - Pobre criança!

Foi a única afeição maternal que conheceu...

Mas, pensativo, observou o estranho par que se afastava.

-Aquela não deve ignorar coisa alguma do nascimento de Frederico. da morte da condessa de Uskow. e de mais alguma coisa.

Era este mais alguma coisa que perturbava singularmente Chantal.

É que, na verdade, o ódio manifestado ao sexo feminino pelo castelão, sempre impressionara profundamente Chantal e por tal forma que muitas vezes perguntava de si para si como teria morrido a mãe de Frederico? Aquela morte satisfazia tão bem os desejos vingativos do marido, que se tornava suspeita. - Iola deve saber. Só para interrogar aquela mulher, gostaria de saber a língua do país!

Pesar supérfluo. Chantal limitava-se a fazer deduções. E naquele dia não fez poucas!

Iola devia saber muita coisa! Mas falaria ela? O conde de Uskow inspirava-lhe tão terrível receio.

É de crer que as reflexões do professor o levassem longe de mais e se alguém tivesse ouvido o que mur murava para consigo, teria por certo ficado admirado.

- Em primeiro lugar, nada prova que o conde de Uskow conheça a verdade. se realmente qualquer coisa existe. Aquele homem apavorava toda a gente. a mulher. Iola e os outros.

Instantes depois, sempre pensativo, Norberto chegava a esta última conclusão:

- Se, de facto, o que eu suponho é verdadeiro, o pai deve ignorá-lo completamente.

E é de crer que esta perspectiva fosse agradável ao preceptor, porque o olhar brilhou-lhe de prazer e um sorriso zombeteiro descerrou os lábios delgados.

Despontara no mais íntimo de seu ser inconsciente alegria.

 

Quando Norberto acabou de descrever os dramáticos incidentes do passeio, o conde de Uskow encostou os cotovelos à mesa e fixou-o com ironia.

- Então, acha que o fedelho do meu filho praticou uma magnífica acção transformando-se em terranova?

- Acho que o seu gesto é digno de todo o elogio.

A cólera fez subir a cor ao rosto do velho.

- Arriscou a vida por um filho de maltrapilhos de gente grosseira e imunda! Acha isso uma obra útil?

- É um dever de humanidade.

É de crer que não fosse esta a opinião do cond porque, positivamente num rugido, bradou:

-A humanidade! Uma boa invenção dos homens modernos! Sempre desconfiei dessas palavras pomposas acabadas em ade que a vossa Revolução - com maiúsculas, aquela que levou à guilhotina o escol da vossa sociedade - inventou e divinizou! Liberdade, igualdade e fraternidade. três palavras que vão à maravilha no frontão dum edifício público, mas que não conseguem tornar feliz o povo francês, visto que ainda hoje, decorridos tantos anos, no seu país se procura uma nova fórmula para completa felicidade da populaça!

-Contudo, em França, a liberdade não é uma palavra vã.

- Bem sei! Têm liberdade para insultar as instituições quando estas não lhes dão de comer! Mas não é essa liberdade que os sustentará! E tal como as suas antecessoras, as vossas teorias actuais que apregoam humanidade, solidariedade, utilidade e muitas outras expressões com a mesma terminação, só servem para iludir as turbas imbecis, embriagadas pelas palavras e pelo álcool.

O chauvinismo de Chantal não consentiu que se conservasse impassível ao ouvir tais comentários. Foi, portanto, com vivacidade que lançou o seu protesto.

-Engana-se, senhor de Uskow. Em França não existem apenas frases magníficas.

- Que mais então?

- O ideal!

-Palavra áinda mais idiota do que as outras!

- Oh, que sacrilégio!

- Não é, não, senhor! Verdades e mais nada. Que ideal? E que significação dá a essa palavra? O ideall! Para a multidão que frequenta os vossos divertimentos populares, consiste ele em mais alguma coisa do que poder beber um litro de vinho a todas as refeições? O ideal para a mulher abastada é o automóvel luxuoso, para a costureirita, um par de meias de seda, para o francês de classe média, uma fitinha vermelha na lapela. Ah! ah! senhor Chantal, como é cómico quando emprega essas palavras enfáticas! Aposto que também sonha com a fraternidade e a igualdade?

A recordação da última guerra atravessou o pensamento de Norberto e esfriou o seu entusiasmo pela discussão.

- Não! - respondeu com tristeza - A fraternidade acaba onde começa o interesse. Quanto à igualdade.

Calou-se por momentos e o seu olhar um pouco sombrio caiu sobre o fantoche que, com um piparote seu, podia mandar para o outro canto da casa.

- Não creio na igualdade - continuou - Não passa duma ficção, infelizmente! A própria natureza fez selecções e criou as castas.

O velho troçou:

- Ah! ah! Era isso mesmo que eu queria ouvi-lo dizer. Não há igualdade possível entre os homens. Ah ah essa afirmação na sua boca é interessantíssima, senhor idealista!

Bruscamente, parou de rir. E de testa franzida e olhar duro, observou com voz ameaçadora:

- Nesse caso, se não pode existir igualdade entre dois indivíduos de castas diferentes, porque razão acha bem que Frederico arriscasse a vida para salvar a do filho dum lenhador ignaro?

Norberto não esperava a pergunta. Para aquele terrível homenzinho que não admitia nenhum dos generosos sentimentos que obrigam o homem a dedicar-se ao seu semelhante, que razões poderia invocar para justificar a acção corajosa de Frederico?

Felizmente para o professor, cujo cérebro procurava em vão um argumento que convencesse o conde de Uskow, foi o rapazito quem respondeu.

Depois de ter lançado uma olhadela irónica a Chantal, cujas confidências iniciais haviam provocado a discussão, e falando em tom o mais jovial possível, exclamou espontâneamente:

-- Oh! O pai supõe que, quando me atirei à água, me ocorreram todos esses especiosos argumentos?

- O senhor Chantal devia ter-tos lembrado.

- Pobrezito! Estava a mais de vinte metros de distância. Além disso, não podia prever o meu gesto instintivo.

-O que vem recordar a discussão do outro dia. Devemos sempre dominar todos os impulsos involuntários da nossa animalidade.

Não se ocupando mais com Frederico, voltou-se para o preceptor, que de novo interpelou:

- Como vê, senhor Chantal, os factos confirmam a minha opinião. O homem deve aniquilar o instinto que o obriga a cometer as maiores tolices.

Nas feições contraídas, as pupilas do conde faiscavam de novo. Regozijava-se por poder batalhar nas suas ideias favoritas, atacando assim os generosos sentimentos de Norberto.

- Seja como for - prosseguiu com a maior firmeza-nenhum dos nossos gestos deve ser inútil à raça. Ora não vejo a menor utilidade em se arriscar a nossa vida para salvar uma outra. mesmo existindo igualdade de valor, o que à primeira vista é impossível calcular, quando se desempenha o papel de terra-nova. Por conseguinte, meu filho não tinha nada que correr o risco de morrer afogado para tirar da água um vagabundo que lá tinha caído. E o senhor, como seu preceptor devia ter impedido que ele realizasse esse estúpido salvamento.

Parou para tomar fôlego. Depois, voltando-se sucessivamente para Norberto e para Frederico, examinou-os com atenção, como se quisesse fixar bem a expressão das suas fisionomias antes de prosseguir o que tinha para dizer.

Os olhos pequeninos brilhavam-lhe de contentamento e o rapazito, que conhecia bem as cruéis reacções de seu pai, perguntava de si para si, e com inquietação, que pensamento diabólico poderia tornar assim tão feliz o autor dos seus dias.

Não tardaria muito que os nossos dois amigos o soubessem.

- Sempre me convenci, senhor Chantal, de que, se a Espanha não tivesse tido o privilégio de inventar D. Quixote, seria o senhor quem o teria inventado. Com que então, o acto de coragem de Frederico parece-lhe digno de todo o elogio. Chama- lhe uma nobre acção?

- Não vejo outra que se lhe possa comparar - continuou Norberto, com entusiasmo.

- Ah, sim? Pois eu acho-o ridículo e parvo! qualquer coisa como o reflexo inconsciente duma sentimentalidade pouco própria numa pessoa do meu sangue.

- Dê-me licença!

-Não, não dou. Não consinto que aprove actos que eu condeno em meu filho!

E sublinhou a frase com um murro na mesa.

-Não consinto igualmente que deixe Frederico entregue aos seus instintos. principalmente os de carácter impulsivo. e inútil, torno a repetir! O senhor, como preceptor, não está aqui senão para o educar e corrigir. e quando a vida dele está em jogo, acho que deveria redobrar de cuidado e obrigá-lo a maior ponderação.

Como se sentisse verdadeiramente culpado de negligência nos seus deveres, Norberto corou violentamente. Frederico percebeu e sentiu-se perturbado.

- Mas, meu pai - interveio de novo - já lhe afirmei que o senhor Chantal não pôde prever o meu gesto nem impedi-lo, tão rápido foi.

- Alguém te perguntou a tua opinião, Frederico? Responde apenas quando eu te interrogar. Deixa- me primeiro demonstrar ao teu professor as lacunas de que enferma a educação que te dá. e depois pensarei em ti e afirmo-te que ficarás satisfeito, meu franganote.

Norberto, por sua vez, acudiu em defesa do discípulo.

-Se não me engano, o senhor de Uskow censura-me por ter consentido que Frederico salvasse um garotito que se afogava.

- Exactamente.

-Por ser um acto perigoso que poderia custar-lhe a vida?

- Indubitàvelmente.

- No entanto, há dias, quando tomei a liberdade de o prevenir de que o meu discípulo era impetuoso e que se arriscava com o cavalo em saltos perigosos, nos quais a sua vida corria perigo, não consentiu que moderasse a sua temeridade. Proíbe-me justamente que deixe desenvolver em Frederico o sentimento de verdadeira coragem. Numa proeza estúpida e sem beleza moral, pode arriscar-se. Mas não poderá fazê-lo se o seu heroísmo for útil a alguém.

Novo murro despedido pelo conde em cima da mesa coxtou-lhe a palavra.

- Com a breca! Não consinto que discuta as minhas observações. Quando eu classifico de inúteis e ridículos os actos de meu filho, exijo-lhe que seja da minha opinião.

- Nem sempre isso me será possível, senhor conde, porque muitas vezes não consigo compreender as suas considerações - replicou tranquilamente Norberto, que à cólera do castelão opunha a calma mais glacial.

Por exemplo, hoje - continuou no mesmo tom impassível mas decidido - à parte o valor moral que atribuo ao gesto cavalheiresco de Frederico, ainda que se obstine a negá-lo, acho que sob o ponto de vista desportivo devia estar satisfeitíssimo. Não está ao alcance de qualquer deitar-se à água, vestido, nadar como um peixe à conquista duma presa meio submersa e difícil de agarrar. Eu próprio o admirei, não me envergonho de o dizer! Nada maravilhosamente, apesar da sua pequena estatura. E numa situação tão dramática, demonstrou um sangue-frio e uma decisão que muitos homens mais fortes lhe invejariam.

O velhote acolheu este discurso com uma gargalhada de demente.

- Ah! Ah! como é cómico, senhor Chantal O meu minúsculo tubarãozinho procurando na onda pérfida uma presa submarina! Que linda metáfora! Na verdade, não lhe faltaram imaginação e palavras para a traduzir! Ah! ah! já não posso rir mais. ah! o sangue-frio de Frederico!

Chantal nem pestanejou com esta alegria diabólica que metia a ridículo todas as suas palavras, aproveitando-as ao mesmo tempo para amesquinhar o seu companheiro.

Um pouco pálido, fixava com olhar duro o castelão, que pulava de júbilo, como um títere.

- Pois bem - continuou este, sem parecer notar o aspecto sombrio do preceptor - visto que o Frederico tem coragem e sangue-frio, veremos como vai acolher a recompensa que lhe reservo pelos seus altos feitos. Porque tenho empenho em que não esqueça este dia memorável, e o meu amor paternal obriga-me a tirar- lhe para sempre o desejo de recomeçar a ridícula brincadeira a que oje se entregou.

Deu meia volta nos calcanhares e encarou o filho.

- Frederico - disse-lhe - agradece-me, meu rapaz! Teu pai vai recompensar com generosidade o teu heróico procedimento. vinte e cinco chicotadas bem aplicadas nas tuas nádegas rechonchudas, será o suficiente?

Ao ouvir esta cruel sentença, Norberto teve um sobressalto de indignação; Frederico, porém, que perante o sardónico sorriso do pai já esperava uma ameaça daquele género, nem sequer estremeceu. Limitou-se a sustentar, sem baixar o olhar sombrio, o reflexo cruel das claras pupilas do pai.

-E depois, vinte e cinco talvez seja pouco? - volveu o velho - Talvez fosse melhor trinta, não achas?

- Ou até cinquenta - replicou o adolescente, um pouco pálido.

-Lembras bem! Giskan aplicar- tas-á com pulso firme. em pêlo. com a assistência de todo o pessoal de Trzy-Krôl. Será divertidíssimo!

- Magnífico!

- Verão como o conde Uskow, quando o seu descendente faz das suas, o sabe meter na ordem.

Frederico conservou-se impassível, mas a sua palidez era tanta que debaixo da pele fina das faces dir-se-ia não correr a mais pequena gota de sangue.

- E verão que obedecem a um amo inteligente e ponderado - troçou.

- O temor pelo patrão é um dos princípios da prudência.

- E o desprezo a base da rebelião.

- Cala-te, Frederico.

- Porquê, meu pai? Se o aprovo e compreendo! Há um antigo ditado francês que diz que não se devem contrariar as pessoas intligentes de mais.

Tudo isto fora dito sem alteração, sem uma palavra mais alta do que outra. Ao ouvir, porém, as últimas frases do filho, cuja calma aparente o subjugava, o conde deu um salto como se tivesse sido mordido por um bicho venenoso.

- Maldição! - bradou - Esta criança impertinente ousa afrontar-me! Sou capaz de o exterminar!

E a cólera, levada ao auge, fazia-o positivamente dançar.

Todo ele se agitava: os braços, as pernas, o rosto contraído, as mãos que pareciam querer estrangular ou despedaçar carne viva e palpitante.

Não podendo alcançar Frederico, que se afastara prudentemente para se aproximar de Norberto, assombrado pela selvajaria daquela cena inesperada, o conde agarrou ao acaso os copos e pratos que estavam em cima da mesa e atirou-os ao chão, onde se despedaçaram em mil bocadinhos.

-Hei-de quebrar-te, meu garoto atrevido! Cinquenta chicotadas. nem menos úma! Bem aplicadinhas. bem aplicadas. até que o sangue espirre!

Ao ruído da louça quebrada, os criados acorreram e contemplavam admirados o amo, que, na crise de furor, rodopiava como se o tivessem posto em cima duma grelha levada ao rubro.

Era o espectáculo mais lamentável que um patrão podia dar aos seus inferiores. E o próprio Norberto e Frederico se sentiam um pouco envergonhados, não obstante toda aquela ira ser dirigida contra eles.

- Amanhã! - repetiu o energúmeno - Amanhã, Frederico apanhará cinquenta chicotadas! E quero que todo o pessoal de Trzy-Krôl assista ao castigo!

Ouviram-se exclamações sufocadas. Os criados, consternados, recuaram, confusos. Aquela execução que os convidavam a presenciar revoltava-lhes as consciências primitivas.

Apesar da sua vivacidade e dos seus acessos de mau humor, Frederico era estimado por todos os habitantes do domínio. Mostrava-se em todas as circunstâncias indulgente e amigo de fazer vontades; passara, muitas vezes, horas à cabeceira dos doentes; e quando o conde de Uskow castigava com dureza e crueldade qualquer dos criados que lhe dera motivos de queixa, era sempre Frederico quem tentava contemporizar e atenuar os efeitos da cólera do pai.

Naquele dia, mal Iola compreendeu o castigo corporal que o terrível pai reservara ao rapaz, a quem criara com tanto amor, em voz baixa despertou nos companheiros um gesto unânime de reprovação.

Não obstante o seu arrebatamento, adivinharia o conde de Uskow o modo de sentir do seu pessoal?É possível, porque, cada vez mais furioso, voltou-se para Chantal e apostrofou:

-E será o senhor, com a sua sentimentalidade francesa, quem há-de ministrar o castigo ao seu dis cípulo. Quero que as chicotadas sejam bem aplicadas, para se sentirem bem! Se sei que não emprega força suficiente, dar-lhas-ei eu. e garanto-lhe que não o pouparei.

- Nesse caso, meu caro senhor, é melhor ir-se preparando já para o fazer - volveu Norberto tranquilamente. Em França o ofício de carrasco é pouco apetecido e generosamente remunerado.

- Duplicarei os seus ordenados mensais, se assim o deseja - ripostou o disforme anão, com arrogância.

- Mais uma vez, obrigado - redarguiu Norberto - Em França, mesmo nas prisões e quartéis, há muito que foram abolidos os castigos corporais; não deve, portanto, estranhar, senhor de Uskow, que me recuse a tomar parte em divertimentos desse género. Cada raça tem os seus prazeres característicos. Afirmo-lhe que para conservar o meu equilíbrio moral não necessito de provocar o sofrimento dos outros.

A resposta, ainda que dada com fria polidez, era decisiva e não tinha réplica, e o conde ficou, por instantes, um pouco desorientado.

Todavia, recuperando imediatamente a consciência da sua situação privilegiada de omnipotente senhor de Trzy-Krôl, quis afrontar o seu pessoal.

Dando meia volta, procurou com os olhos o ponto onde momentos antes se encontravam os criados.

Já lá não estava nenhum. Aproveitando a ocasião em que o conde desviara a sua atenção para Norberto, Iola arrastara os companheiros consigo, para melhor lhes poder falar.

Seguindo o exemplo dado pela ama, o próprio Frederico se eclipsou.

O diabólico velho não teve, portanto, outro remédio senão contentar-se com o preceptor, o único habitante de Trzy-Krôl que ficara e ousava resistir-lhe.

- Um educador que inclui no seu programa tanta sensibilidade, é ridículo, senhor professor. quer queira, quer não, Frederico será castigado. porque é essa a minha vontade.

E novo soco despedido pelo energúmeno, que parecia atacado de loucura furiosa, fez saltar a mesa.

- Não se exalte assim - zombou o preceptor, sem se alterar- Pode chicotear quem quiser. À sua vontade, não vejo inconveniente nisso. Tem plenos poderes para o fazer Acho mesmo que, se o seu pessoal estiver pelos ajustes, o exemplo seria ainda mais proveitoso se todos eles, sem escapar um, recebessem uma boa carga de chibatadas! Os gritos das mulheres, os rugidos dos homens, o sangue espadanando pelas lajes do pátio. eis uma bela advertência para todos. Seria, segundo parece, ressuscitar em todo o seu esplendor uma cena da Idade-Média. O seu pessoal goza um bem-estar demasiado e debilitante, senhor de Uskow! É preciso despertá-lo! Seria uma bela página a acrescentar aos anais de Trzy-Krôl! E era até provável que, se escrevesse e enviasse para os jornais um artigo sobre a influência dos castigos corporais, como meio terapêutico moderno para cura do atrofiamento da inteligência, o mundo inteiro falasse no seu nome e nas suas teorias. Estou mesmo persuadido de que encontraria imitadores e que todos os sábios do universo estudariam as suas sugestões. Ah! o senhor conde demonstra demasiada timidez nas suas concepções e experiências. Chicotear Frederico pela simples culpa de ter salvo uma criança em perigo de vida, pode parecer crueldade. ou loucura! Mas chicotear todo o seu pessoal, do mais ínfimo moço à governanta, é uma esplêndida acção. Um magnífico acto de energia! Pense bem, conde. e siga o meu conselho, nada de meias medidas. é preciso coragem e decisão. e, principalmente, persistência nas ideias!

Norberto calou-se por falta de fôlego. Sentia um desejo furioso de rir ao ver a expressão espantada do conde Uskow, que escutara as singulares teorias com atenta curiosidade, de olhos dilatados, de boca semi-aberta, como se aspirasse um perfume desconhecido e maravilhoso.

O preceptor falara com tanta seriedade e com tal convicção que o velho não descobriu a oculta ironia.

E como Norberto se afastasse, repetindo:

- Nada de meias medidas. Pense bem, senhor de Uskow. nada de meias medidas, se quiser ser forte e temido!

O conde, com gulosa satisfação, passou a língua pelos lábios frios, que pareciam apenas um traço vermelho no rosto terroso, e pensativamente murmurou:

- É caso para pensar, palavra de honra! Chicote para todos! O diabo do francês tem ideias mira bolantes. Nada de meias medidas. E talvez não deixe de ter razão.

Ao abandonar o conde de Uskow, Norberto tomou a direcção das estrebarias, onde contava encontrar Yadlowz, o palafreneiro principal, única pessoa de quem conseguia fazer- se compreender.

Apareceu-lhe um ajudante: Yadlowz não estava. O preceptor tentou ainda parlamentar com o moço, tão boçal que nem sequer respondeu às poucas palavras do mau dylvaniano que Norberto conseguira aprender para as necessidades da vida quotidiana.

Porém, à força de repetir O senhor Frederico. Viram o senhor Frederico?. Onde foi o senhor Frederico? o homem, que untava com sebo os arreios dos cavalos de lavoura, encolheu os ombros em sinal de ignorância.

Contudo, apontando a floresta:

- Robyck. Robgck. - tentou explicar. E por gestos procurava indicar que Frederico montara Robyck, o garrano alazão, e partira.

- O senhor partiu a cavalo? - repetiu Norberto, interrogando.

O outro aprovou repetidas vezes com a cabeça e com o sorriso feliz dum homem que depois de aturados esforços conseguiu fazer-se compreender por um interlocutor cujo idioma ignora por completo.

- Para a floresta?

- Sim, sim! - afirmou ainda.

Norberto tomou a direcção indicada, a pé, nem sequer se lembrando de mandar selar, para procurar o discípulo, o poney ligeiro que habitualmente este montava.

- O pobre pequeno precisava de desabafar - pensou, sem grande inquietação - Deve estar transtornado por uma cena tão extravagante! O conde, decididamente, tem ocasiões em que parece um doido rematado. o que mais uma vez vem provar que o génio é irmão da loucura.

Amanhã, felizmente, quando o seu cérebro desorientado recuperar a calma, nem mais pensará nas suas violentas ameaças.

Era nisto que Norberto se enganava por completo, porque, enquanto percorria os caminhos da floresta à procura do discípulo, o pai deste, por sua própria mão, afixava na porta do corpo do edifício destinado ao pessoal um aviso, prevenindo de que deveriam reunir-se todos, no dia seguinte, às dez horas da manhã, no salão nobre do castelo, para assistirem ao castigo de knout aplicado a seu filho Frederico.

Acrescentava ainda que todo aquele que não obedecesse ao convite seria procurado e arrastado para a mesma sala, a fim de sofrer idêntica correcção.

Como se vê, o velho louco havia tomado a sério as disparatadas sugestões de Norberto, não percebendo o seu irónico exagero.

Porém, deixemos, por agora, o conde de Uskow saborear com alegria a sua crueldade, e os criados comentarem com verdadeiro rancor o singular espectáculo para que eram convidados, e voltemos a Chantal, que, após uma hora de inúteis pesquisas, começava a assustar-se com o solitário passeio do discípulo.

- Bem sei que é bom cavaleiro. Mas porque motivo escolheu o meu cavalo, que é mais difícil de dominar? Naturalmente para distender os nervos nalguma louca temeridade que lhe porá a vida em perigo.

Sem querer alarmar-se inùtilmente ou sem razão, aquele receio impunha-se-lhe cada vez mais ao espírito e sentia-se pouco a pouco dominado por vaga angústia.

- Depois duma discussão tão estúpida, é capaz das maiores loucuras.

E, ao mesmo tempo, o professor sentia-se culpado por ter revelado ao conde de Uskow o acto de coragem do seu herdeiro.

Involuntàriamente, julgava-se responsável pelo suplício com que o pai ameaçava o filho.

-Frederico não queria que falasse. Porque não segui o conselho. O pequeno conhece bem o pai, ao passo que eu me iludia ainda julgando existir naquele homem um sentimento de orgulho paternal.

E esta convicção errónea sobre o carácter duma pessoa que supunha ter acabado por conhecer, não era uma das causas menores do seu mal-estar.

- Até que ponto chegará a maldade do conde de Uskow?. Afirmei há pouco que amanhã aquele homem já não pensará no que disse. mas Frederico sabe melhor do que eu com que deve contar. Se o miserável alguma vez fez e cumpriu tão terríveis ameaças, Frederico é capaz de não voltar ao castelo.

Tal perspectiva enlouquecia Norberto.

- Oh, que aflição Pai e filho podem gabar-se de me ter feito o sangue negro! Quanto ao pai, que vá para o diabo! Mas aquele pobre pequeno! Se lhe acontece qualquer coisa, nunca mais terei consolação.

Ao mesmo tempo que sustentava este monólogo, ia subindo a colina na esperança de avistar o discípulo, pois do alto do planalto abrangiam-se largos horizontes.

Mas ai dele! Apesar de na encosta oposta rarearem os pinheiros, nenhum vulto humano vagueava por entre os seus troncos altivos.

- Oh! meu Deus! teria ido para os lados da fenda. movido pelo desejo de arriscar a vida?. Contudo, tinha-me prometido nunca mais tornar a saltá-la.

A visão do corpo delicado estendido ensanguentado no fundo pedregoso do precipício, fez perpassar pelas pupilas do professor um clarão de demência.

-Vejamos, eu estou doido! Frederico com certeza não pensou em semelhante coisa! Tem dezoito anos, que diabo! Já não é nenhuma criança e nessa idade raciocina-se como um homem.

Um homem?

Esta palavra fê-lo suspender. sùbitamente embaraçado. Um homem! Nunca reparara quanto o termo parecia estranho. mesmo deslocado, aplicado naquela ocasião a Frederico. depois das impressões dessa manhã.

- É uma criança. um pobre pequeno que é preciso defender e proteger. seja ele o que for - repetiu para melhor se convencer - Uma criança. seja ele o que for!

Mas é que justamente já não era uma criança. sem ser um homem também!

- Com dezoito anos. quase dezanove. mesmo sendo um rapaz, já não havia direito de ser tão infantill!

Que perturbadora suposição!

Era para desmoralizar Norberto. ou então exaltá-lo!

Com a ameaça do ignominioso chicote suspensa sobre a cabeça de Frederico, todo o seu ser estremecia.

Nunca como naquele minuto ele sentira a necessidade instintiva de proteger o adolescente, de o defender de tudo e contra todos... com risco da própria vida... se tanto fosse preciso.

- Ah! que aquele velho maluco não se lenbre de tocar no filho, sinto-me com coragem para lhe arrancar o chicote das mãos e despedaçar-lho nas costas! Frederico sofrer um castigo por ter sido heróico! Era lá possível deixar que tão ignóbil coisa se realizasse!

Diante dos olhos surgiu-lhe a imagem do corpo frágil, contorcendo-se debaixo dos golpes do açoite e isto era o bastante para fazer ferver o sangue de Norberto... Era revoltante e inadmissível!

Umas vezes exaltado, outras raciocinando com mais calma, Chantal percorreu uns poucos de quilómetros da floresta.

Mas teve de retroceder sem ter encontrado aquele que procurava.

Como, desanimado e cansado, passasse próximo das cavalariças,   Yadlowz, que já regressara, veio ter com ele.

- O senhor Frederico voltou... - explicou com dificuldade.

- Ah! ainda bem - exclamou Norberto, um pouco mais tranquilo.

- Bem... não Conde de Uskow prendeu o jovem amo no quarto.

- O quê.   .

-Sim...

Norberto sobressaltou-se.

- Oh! pobre pequeno!

- Pobre, sim... pobre senhor Frederico... Patrão velho não ser bom...

O preceptor ficou de novo sobressaltado com esta notícia, que demonstrava a cólera persistente do conde.

-Mas o senhor de Uskow não executará a sua ameaça, não é verdade? -disse, tentando convencer-se a si mesmo - Grita muito...    mas esquece depressa!

O homem abanou a cabeça com aspecto sombrio.

- Não. não, não esquecer! Pobre senhor Frederico.. Ir ver Iola, senhor Chantal... ver Iola... e falar com ela.

- Foi o senhor Frederico que disse para eu falar com Iola?

- Não... ser a mulher que disse querer ver senhor Chantal!

- Ah, foi Iola..

- Senhor Frederico não poder falar... Conde Uskow não deixar.

- Mas quem prendeu Frederico... Não foi o pai, com certeza?

- Não... o guarda Jacking.

- E bateu-lhe?

- Oh não... só amanhã.

Com o dedo apontou o cartaz que balouçava pendurado num prego, na parede, ao lado da porta da casa.

- Leia, aviso... Amanhã de manhã... Oh! Coisa abominável! Ser mau para Trzy-Krôl... Muito mau!

Norberto, completamente transtornado, foi ler o terrível cartaz.

- Este homem está doido! Aproveitou como boa a minha disparatada sugestão; é para uma pessoa se escangalhar a rir! Nem mesmo é capaz de discernir onde termina o ridículo e unde começa o absurdo! Desde que se trate de crueldade, tudo lhe parece admissível... é um velho tirano capaz de cometer as piores insânias.

Os acontecimentos tomavam tal carácter que Chantal julgava sonhar. Estava mesmo um pouco desorientado, porque os factos encadeavam-se com tanta rapidez que parecia que o demónio se comprazia em dar às mais pequenas coisas um carácter trágico.

Ainda naquela manhã Frederico e ele tinham deixado o castelo, tão felizes por irem dar o grande passeio que devia terminar em Knoura.

Fora preciso o mergulho dum garoto imprudente para transtornar todo u programa e obrigá-los a regressar a Trzy-Krôl, a fim de que o seu salvador pudesse mudar de fato.

Naquela ocasião, Norberto nem já sabia se Frederico tinha feito bem em salvar a criança prestes a afogar-se.

-Porque não me chamou? Ter-me- ia lançado à água em seu lugar. O conde, a mim, não poderia ameaçar- me com o chicote! Sofreria os seus motejos e ironias, mas isso nunca matou ninguém! Enquanto que o cnout. cinquenta chicotadas num corpo de criança! É um perfeito demónio, o velho sacripanta! Mas se imagina que o vou deixar proceder à sua vontade.

Porque naquela circunstância, para o preceptor tudo se resumia em impedir que a sentença fosse executada.

Não vira já Chantal referver a revolta no cérebro de Yadlowz?. E Iola não queria também falar- lhe?

Com certeza que a dedicada ama lhe ia proporcionar o meio de salvar Frederico. ela não ignorava que era necessário subtrair o rapaz à cólera imbecil do pai!

Norberto pôs-se, então, à procura da boa mulher, porque reconhecia a necessidade de se combinar o mais depressa possível com aquela aliada que havia tantos anos conhecia Trzy-Krôl, os seus habitantes e os seus recursos.

Agitava-o intensa febre e, contudo, de repente, sentiu-se infinitamente cansado, aniquilado, como se ele próprio estivesse ameaçado pelas chicotadas. cemelhante história cortava-lhe os braços e as pernas. Tinha sido por tal forma inesperada e disparatada! Além disso, as dúvidas sobre o verdadeiro sexo do juvenil conde excitavam nele um ardor desconhecido e violento.

- Contanto que o meu discípulo não desanime por se ver prisioneiro! As ameaças do conde de Uskow são, por tal forma grotescas, que Frederico devia compreender a sua inanidade. Estamos no século xx, que diabo! Deve calcular que não consentirei que o pai o maltrate!

Mas enquanto não encontrava meio de obrigar o conde de Uskow a mudar de opinião, tinha de falar com Iola.

Justamente naquela ocasião avistou-a encaminhando-se para a cozinha, com dois cântaros de leite na mão.

Ficou satisfeito por não ter de a procurar mais tempo, pois a paciência já se lhe havia esgotado.

Dirigia-se para ela apressadamente quando a mulher, ao avistá-lo, precipitou o passo, como se o quisesse evitar.

Ainda que um pouco admirado de princípio, Norberto logo compreendeu que ela não desejava que os vissem conversando um com o outro. De facto, enquanto podia ser apercebida do castelo, conservou a atitude indiferente. Só quando contornaram o ângulo do edifício ela lhe fez sinal para se aproximar.

-Esta noite, à meia-noite, venha ter comigo ao meu quarto - conseguiu fazer compreender ao preceptor.

- Está bem - acedeu - Mas até lá não posso ver Frederico? O pobre pequeno deve aborrecer-se sòzinho.

-Não pode entrar no quarto. O velho mocho fechou-o e tem a chave na algibeira. Estou convencida de que, do seu gabinete de trabalho, espreita os nossos passos.

- Mas enfim, por que razão o prendeu?

- Uma ideia infernal. Como são todas as que nascem naquele cérebro diabólico! Quando o nosso jovem amo entrou o pai fê-lo agarrar por jacking, que é a sua alma danada. Frederico, protestou, mas o pai ria, dizendo

É a vigília de armas, meu filho. Tens de te conformar com esses usos e costumes.

-Eu não compreendi muito bem o que o conde queria dizer, nem mesmo o que o filho lhe respondeu.

Norberto, ao ouvir estas últimas palavras, estremeceu.

- Pode repetir-me. pouco mais ou menos. as palavras de Frederico?

A sua alma inquieta procurava conhecer o estado de espírito do prisioneiro.

- Meu Deus - declarou a mulher, embaraçada. - É difícil repetir coisas que não se compreendem. Quer dizer a grande noite, meu pai - disse o pequeno. - Amanhã será o grande dia!

E começou a rir como se o facto lhe prometesse um alegre divertimento. Mas vê-lo rir, assim, enquanto o pai lhe volvia olhares furibundos, fazia-me mal.

A mulher calou-se e dpois interrogou o seu interlocutor com timidez:

- O senhor Chantal sabe o que é a grande noite?

Norberto esboçava vago sorriso.

- Sim, talvez. Fala-se assim quando há golpes de Estado.

- E que quer dizer?

-Oh! Nada de bom se Frederico estivesse sòzinho. Mas nós estamos aqui, Iola, e não devemos consentir que o rapaz se entregue ao desespero. Além disso, seria ignóbil que o conde de Uskow castigasse o filho por este ter praticado um acto de coragem. Todos os habitantes de Trzy-Krôl se devem unir para evitar semelhante selvajaria.

- Atrever-se-ão?

- Nesse caso vão consentir que tal crime seja consumado na sua presença?

- Por mim não permitirei que toquem em Frederico - declarou a mulher, com acento de feroz decisão. - Não sei o que farei, mas nem que tenha de bater no conde, ainda que este dpois me corte a mão!

Norberto fez um gesto de orror. Seria possível imaginar semelhantes atrocidades num século de civilização tão avançada?

- É impossível - protestou - Esse homem não ousaria fazer semelhante coisa!

- É poderoso. E nós não passamos duns pobres diabos. o conde pode dispor de nós assim como do filho. só temos que obedecer e mais nada!

Norberto correu a mão pela testa que a aguda tenaz da enxaqueca começava a apertar. E de repente avaliou bem a sua França, generosa e boa, que estava tão longe.

Naquele país longínquo. afastado de qualquer centro habitado, quem ousaria tomar abertamente a defesa duma criança ou dum servo contra o omnipotent senhor de Uskow! O senhor! como lhe chamavam os criados com respeitoso terror.

Cerrou os dentes, dominado por íntima revolta.

-Oh! cònde de Uskow encontrar-me-ei talvez sòzinho contra ti e contra todos, mas as tuas leis, os teus usos violentos não me assustam! E se ousas cometer tão revoltante acção, terás de te haver comigo! No entanto, tal perspectiva era alucinante! Ele, um homem bem educado e culto, ver-se obrigado, para proteger um pobre rapaz que pensavam em torturar, a lutar com um velho débil e quase aleijado!

Era inconcebível!

Desejava antes ter de se medir com Jacking, o guarda boçal de hercúleas forças.

- Homem contra homem, então, sim! Ele teria por si a força e a selvajaria, mas eu teria a meu favor a ciência desportiva e a frequência das salas de esgrima. Ah! permita Deus que se tiver de me bater o possa fazer com um adversário digno de mim.

Enraivecido, dirigiu-se para os seus aposentos, depois de ter combinado com Iola a entrevista para a meia-noite.

Quando passou diante da porta do quarto de Frederico, instintivamente caminhou mais devagar.

-O pobre pequeno deve espreitar a minha chegada. mas não estará o pai escondido aí por qualquer canto?

Volveu uma olhadela para o fundo do corredor, onde se abria o escritório do velho.

- É inútil provocar de novo a cólera do tirano. isso só serviria para agravar a situação de Frederico. ou precipitar os acontecimentos! Ora o tempo de que disponho é pouco para as importantes decisões que se impõem.

Norberto, com efeito, começava a pensar que o meio mais fácil era fazer evadír o rapaz.

- Que fuja com Iola. não importa para onde, contanto que nem um nem outro se encontrem aqui amanhã de manhã.

Mas, entretanto, impunha-se ser prudente e não despertar as suspeitas do velho lobo.

Felizmente que Norberto, ao sondar com o olhar o corredor escuro, pesado de sombras crepusculares, não viu qualquer vulto suspeito.

-Como tem a chave, o conde julga-se senhor de tudo.

Chantal, tranquilizado, bateu levemente na porta do quarto do discípulo.

- Frederico! Ouve-me. Nada receie. estou sòzinho.

Do outro lado, ouviram-se passos furtivos. depois uma voz juvenil respondeu:

- Já o esperava, senhor Norberto. Estranhava até um pouco a sua demora.

- Percorri toda a floresta em sua procura. Preocupava-me por sabê-lo assim sòzinho. e perseguia- me a lembrança da maldita fenda.

- E tinha razão, mestre, confesso-o!

- Contudo, tinha-me prometido.

- Eu pensava lá na promessa. parti como louco. com esperança de que o meu cavalo regressaria sem mim. Mas o nobre animal tem boas pernas e decidiu o contrário. Quanto a mim, faltou-me a coragem. e voltei por sua causa!

- Oh, Frederico!

- Foi por me lembrar de si, mestre, que não cometi qualquer tolice.

- Meu querido Frederico - balbuciou de novo Chantal.

- Sim! Pensei no desgosto que sentiria. conheço os seus exagerados escrúpulos. Iria ter remorsos. e era isso que eu não queria, porque sei que procedeu assim julgando favorecer-me.

Através da porta, as palavras afectuosas e confiantes crucificavam Norberto.

Muito pálido, o coração palpitante, apertava as mãos no peito, onde todo o sangue parecia ter afluído.

- Sim, meu filho, sim, para seu bem - disse, tentando aparentar calma - Só queria fazer-lhe justiça. Mas não esteja triste, Frederico, tenha confiança em mim. Esta história é por tal forma idiota que é preciso encará-la pelo prisma do ridículo. e rir. Ouviu, meu pequeno? Só serve para rir.

Mas enn vão esperou o riso que solicitava. Então, intensa angústia o oprimiu.

-Oh, Fred, por que não me responde?

Do outro lado da parede, Frederico evitava falar para não dar a conhecer que chorava.

Chantal teve de súbito essa intuição e atirou-se literalmente contra a porta, tentando abri-la e esquecendo a prudência que o mandava evitar o menor ruído.

Mas vá lá um homem de coração dominar o seu ardor quando a dois passos dele sente sofrer uma inocente vítima? E, na verdade, desde essa manhã podia o professor conservar-se em seu juízo quando se tratava de Frederico? De Frederico, o rapaz enigmático, cujas atitudes por vezes o surpreendiam. De Frederico, que era talvez. ou antes, que talvez não fosse.

Não, Norberto não podia conservar o seu sangue-frio e foi preciso que o discípulo, com a sua voz tímida, o chamasse à razão.

-Cuidado, mestre! Tenha prudência, não vá o conde de Uskow impedir que se ocupe de mim.

- Oh! Quero lá saber! Como se tivesse tempo para me preocupar comigo quando se trata de impedir que lhe faça mall! Para lhe tocar, Frederico, terá de passar por cima do meu corpo! E como sou muito mais forte do que ele, convença-se bem, meu filho, de que nada tem a temer enquanto eu estiver aqui.

-Mas se ele o obrigar a abandonar Txzy-Krôl, senhor Norberto?

-Que importa! Pior para ele!

- Não, mestre! - suplicou o pequeno - Não intervenha abertamente. Tenho pensado muito. Chicotadas. Não se morre delas!. As feridas cicatrizam e a dor acaba por desaparecer também. A verdadeira infelicidade é viver, como eu vivi tanto tempo só. sem um amigo Ora eu não quero perdê-lo, porque compreendi bem agora quanto me era dedicado. meu grande. meu único amigo!

A carícia daquela voz meiga fez correr nas veias de Norberto uma onda de fogo e o coração bateu-lhe

desordenadamente, pois já não duvidava de que Frederico fosse uma rapariga.

- Ah! Frederico! - implorou - Porque emprega esse tom afectuoso precisamente neste momento? A minha vida pertence-lhe, Frederico. meu querido Frederico.

Estava completamente louco e já não sabia bem o que dizia.

Entretanto, do outro lado da porta, a voz meiga prosseguiu as suas ardentes recomendações:

- É preciso que meu pai ignore que nos entendemos ambos tão bem. Nunca mais sossegaria enquanto não nos separasse. Portanto, senhor Norberto, não diga mais nada, não faça nada. Serei corajoso, prometo-lhe. Olhe, dou-lhe a minha palavra de honra que as chicotadas não me arrancarão nem um grito nem uma lágrima! Meu pai não poderá regozijar-se com os meus lamentos, porque, garanto, não os ouvirá!

-Cale-se, Frederico, não vê que me dilacera a alma?

- Não, não! É preciso que saiba com o que pode contar. Uma única coisa lhe peço, mestre, evite que me dispam. Invoque a moral, o escândalo. seja o que for. mas é um horror se me obrigam a tirar o fato. ficar completamente nu, diante dos nossos servidores de Trzy-Krôl! Preferia morrer antes de sofrer tal humilhação.

Tal pedido, em semelhante ocasião, tinha qualquer coisa de patético, mas era também tão inverosímil, que Norberto ficou completamente transtornado.

O pudor. o extraordinário pudor de Frederico sobressaía a todos os outros motivos de terror que o infeliz devia sentir. Era para confranger. e com a angústia renascia a certeza que se precisava.

Meu Deus. Podia Chantal continuar a duvidar! Com a cabeça encostada às almofadas da porta, de olhos fechados sobe a visão íntima dum corpo grácil e efeminado. um verdadeiro corpo de rapariga, entregue a todos os olhares, Norberto ficava para ali. as pernas enfraquecidas, incapaz de evocar imagem que não fosse esta: corpo de dezoito anos. esbelto. delicado, alvo. como um corpo de virgem.. Era para endoidecer!

Mas como perto dele a vozinha interrogava, inquieta com tão prolongado silêncio, Chantal recuperou instantâneamente a coragem perdida para tranquilizar o prisioneiro, que suplicava:

- Oh! mestre! Porque não me responde. Não quero que me dispam. Prometa-mo!

- Prometo, meu filho. Juro-lhe que não tocarão num fio do seu fato! Tenha confiança em mim, Frederico. Se llhe afirmo que não o despirão, pode estar sossegado.

E, através da porta, a resposta duma fé tão absoluta foi de molde a restituir-lhe todas as energias.

Esta confiança de Frederico era para Chantal um viático tão precioso e tão consolador, que depois disso não quis que mais nenhuma palavra fosse pronunciada.

- Vou deixá-lo, meu pequeno. Preciso pensar no meio a emprcgar para impedir que seu pai cumpra as suas ameaças. Adeus, Frederico.

- Até amanhã, mestre.

- Principalmente, meu filho, nada de desanimar. Lembre-se de que lhe prometi que ninguém lhe tocará, e tenha coragem.

- Confio em si, mestre, e vou adormecer pensando que, estando a seu lado, nenhum mal me pode atingir.

Sublime profissão de fé. de confiança. e, possivelmente, de amor! E ao ouvi-la, Norberto sentiu-se transportado e toda a alma lhe vibrou numa alegria louca, imensa.

Daí em diante já não se pertencia. alguém o havia conquistado, e fazia parte do seu próprio ser.

Confio em si.

Credo de amor que iguala o homem a Deus e que lhe dá todas as energias e o dispõe a todas as iniciativas! Mas Chantal, que julgava ter adivinhado tudo, não passava dum cego porque nem sequer sabia analisar e compreender os seus próprios sentimentos.

Norberto afastou-se de Frederico num estado de verdadeira desorientação.

O enigma que se lhe oferecia em semelhante momento tinha qualquer coisa de perturbador. E não podemos, deixar de dizer que representava também mais poderoso incentivo para Norberto abraçar a causa do discípulo.

É que, como já tivemos ocasião de referir, a alma generosa de Chantal vibrava de intensa emoção ao pensar que o seu companheiro podia ser uma mulher!

E, então, não era ùnicamente uma sede de justiça e de equidade que o abrasava. No estado de abandono e desamparo em que se encontrava havia seis meses, a ideia de uma presença feminina despertava nele, ins tintivamente, um mundo de sensações desconhecidas e deliciosas.

E de facto, não era verdadeiramente para causar vertigens recordar um a um todos os gestos do entezinho frágil que até aí considerara como um rapaz?

Os modos amedrontados do adolescente, o seu recato, as suas hesitações, os gestos de pudor, os pueris terrores quando o manto sombrio da noite envolvia a terra, as suas fanfarronadas quando Norberto o queria obrigar à obediência, o desgosto que manifestava quando o conde de Uskow lhe despertava a recordação da mãe, as cóleras quando o pai implacável falava das mulheres empregando frases insultantes e injuriosas, tudo, enfim, o que constitui a graça e o encanto do sexo fraco, era para Norberto causa de remorsos pela sua prolongada cegueira e também pretexto para uma admiração sem limites.

Frederico, rapaz tinha direito a toda a sua piedade e dedicação, mas Frederica, rapariga, despertava em todo o seu ser um ardor sem igual, tão vivo que estava pronto a afrontar os maiores perigos, ou até a morte, e a submeter-se a todos os sacrifícios para a defender da opressiva autoridade do pai e fazer triunfar a sua causa.

Bastava Chantal evocar os grandes olhos escuros do seu companheiro para que um frémito o percorresse dos pés à cabeça e se sentisse quebrado por delicioso torpor.

Sem que Norberto o reconhecesse; não era já a natural generosidade do homem forte para com uma criança fraca e oprimida que o impelia para a vítima do conde de Uskow; um sentimento mais suave, mais íntimo, nascera no mais profundo do seu ser. um sentimento que, sem ele próprio o reconhecer, lhe enchia o peito dum ardor até então desconhecido e lhe causava uma perturbação deliciosa, cheia de ternura, como nunca sentira outra igual, nem mesmo quando recordava Maud.

Se Frederico pudesse adivinhar o lugar que ocupava no coração de Norberto, teria compreendido que, protegido por essa dedicação sem limites, já nada teria a temer da maldade do pai.

Mas não bastava o preceptor dizer: Quero subtrair Frederico à selvajaria do conde de Uskow. para que os acontecimentos se modificassem imediatamente. Não; era preciso que ele os encaminhasse de forma a obter o resultado que desejava.

Contudo, o estado de sobreexcitação em que se encontrava Norberto, quando se afastou da porta que o separava de Frederico, teve pelo menos a vantagem de lhe fazer nascer no exaltado cérebro uma infinidade de projectos, qual deles o máis extravagante, mas todos tendentes ao mesmo fim.

Não se pode dizer que escolhesse o mais fácil de pôr em prática.

Todos nós sabemos que, em idênticas circunstâncias, na iminência de perigos, e obrigados pela escassez de tempo útil a agir sem perda dum minuto, se arquitectam justamente os planos mais complicados e de mais difícil execução.

O único mérito que se pode atribuir a Norberto, foi que, tendo encontrado naquela noite uma solução que lhe pareceu eficaz para submeter o conde de Uskow não procurou mais nenhuma e decidiu executá-la até ao fim.

Nessa ordem de ideias pôs-se imediatamente ao trabalho.

E durante duas horas, fechado no quarto, rodeado de papéis amarelados pelo tempo, de livros velhos, de encadernações desbotadas e de tintas de todas as qualidades, o preceptor trabalhou sem desfalecimento.

E quem o visse assim, curvado sobre um velho alfarrábio e estudando, de lente em punho, a forma das letras e a cor da tinta, poderia supor que se entregava a qualquer problema de alquimia, tão grande era a sua atenção.

Chantal contara com a refeição da noite para se aproximar do dono da casa.

Grande foi, porém, o seu desapontamento, pois teve de comer sòzinho na enorme sala, em cujos cantos flutuavam sombras:

Frederico não compareceu também ao jantar, precursor duma aurora que para ele despontaria sempre cedo demais. Quanto ao conde, ordenou que o servissem no seu gabinete de trabalho, como frequentes vezes sucedia quando estava de mau humor.

E ainda que esta ausência fosse usual, Norberto não augurou muito bem dela.

-Naturalmente, receia as observações que eu possa fazer-lhe. Aquele ente diabólico recua perante as responsabilidades e foge às explicações francas e leais. Mas não perde pela demora!. Preparo-lhe um mau bocadinho que terá infalivelmente de saborear.

Porque Norberto, habitualmente tão calmo e com placente, sentia nascer-lhe uma alma de carrasco.

- Ah! Neste mundo, para ele, só existem os seus livros e manuscritos. até ao ponto de esquecer que é pai. de ignorar todo o sentimento humano. Pois nós veremos, senhor conde de Uskow, se de facto não há meio de despertar a sua sensibilidade. É bom tentar a experiência e se ela der resultado ter-lhe-ei prestado um belo serviço!

Acompanhado por este monólogo, o jantar solitário do professor de Frederico terminou depressa.

Quando este único conviva se levantou da mesa tinha um ar tão decidido que se o conde de Uskow, oculto em qualquer canto, o pudesse ter visto, ficaria de certo impressionado.

-E agora vamos atacar o velho javali no próprio covill. Habitualmente, quando o vou surpreender numa das suas crises de demência, nem sequer me consente que fale, mas esta noite quer sim quer não, há-de ouvir-me, ainda que tenha de empregar a força!

Decorridos dois minutos, o preceptor encontrava-se diante da porta do gabinete de trabalho do castelão.

- Sobeja-me o tempo para me entender com este velho rato de biblioteca antes de me encontrar com Iola - pensou, compondo o fato - E entretanto terei feito talvez um bom trabalho e preparado o ambiente para o que desejo.

Abriu a porta do gabinete e ao mesmo tempo ia perguntando se o conde o podia receber e consagrar-lhe alguns minutos de atenção. Se não fosse esta atitude um pouco arbitrária, o velho tê-lo-ia despedido sem ceri mónia. Mas em face da intrusão violenta de Norberto, não podia de facto alear que estava deitado ou qualquer outro motivo para não o atender.

Além disso, logo à entrada Norberto lhe atalhou os protestos.

- O senhor de Uskow - disse-lhe, mal o viu - terá de me desculpar se venho interromper as suas meditações. Mas o acaso, Deus dos investigadores e dos etnógrafos, fez com que encontrasse nos seus arquivos um velho pergaminho.

- Não creio que haja na minha biblioteca qualquer coisa de interessante que eu desconheça - retorquiu o velho com bastante frieza, porque o à vontade com que Chantal lhe entrara pela porta dentro lhe desagradara imenso.

- Refiro-me a uns documentos muito antigos que se encontram no oratório, ao lado do quarto redondo.

-Creio ter já examinado todos esses alfarrábios.

- Bem! Nesse caso, visto que o senhor de Uskow os conhece, vai dar- me a sua opinião. É uma coisa por tal forma inverosímil que me deixou maravilhado. Ontem à noite, para me distrair, comecei a decifrar as garatujas dum velho pergaminho. Quando cheguei à última página fiquei verdadeiramente assombrado.

Os lábios da velha múmia franziram-se num trejeito de desdém.

- Que exagero, senhor Chantal! Estou certo de que o seu manuscrito, por muito remoto que seja, nada tem de extraordinário. Suponho até que o senhor nem sequer é capaz de distinguir se um papel é ou não antigo.

E ria com ironia, fixando Norberto, que, de pé, na sua frente, numa atitude modesta, quase ingénua, parecia em adoração diante da sua omnipotência.

- Não será o pensamento de Frederico que esta noite transtorna a sua perspicácia quanto ao valor dessas famosas páginas?

- Creio que não, palavra de honra. Ainda que não acredite, afirmo-lhe que a extraordinária singularidade da minha descoberta me fez quase esquecer o meu discípulo. O nome de Frederico nada tem que ver com a nossa conversa e não será pronunciado senão acidentalmente e como resultado dela. Asseguro-lhe que este velho documento é digno da maior atenção!

- Bem. então deixe-me ver - acedeu o conde, cujo instinto de coleccionador começava a despertar.

O preceptor puxou uma cadeira e sentou-se diante do conde. Separava-os apenas a larga secretária, batida pela luz da única lâmpada eléctrica que um grande abat-jour velava.

- Aqui o tem, senhor de Uskow - disse tranquilamente Chantal, apresentando ao seu interlocutor um delgado caderno de folhas amareladas, apertadas ao meio por fita de cabedal entrançado.

No conjunto tinha indiscutivelmente a aparência duma autêntica relíquia.

- Que é isto? - disse o dono da casa, interessado, a seu pesar, com o aspecto muitas vezes centenário daquele caderno de tintas desbotadas e sumidas.

-Trata-se dum alfarrábio que desencantei misturado nos arquivos da casa de Uskow. São lendas que datam de séculos, verdadeiras ou inventadas, mas em todo o caso bastante curiosas. Leia, senhor conde. E depois verá se exagero.

De novo as pupilas do velho penetraram as do rapaz. Aquela visita não o surpreendera. Já a esperava havia horas. Mas sempre calculara que viesse implorar-lhe o perdão de Frederico e o facto dele só lhe falar no velho pergaminho a decifrar desnorteava-o por completo.

- Leia! - disse o preceptor, impassível e calmo.

-Tem assim tanta pressa que eu examine estas páginas, meu rapaz?

-É que estou ansioso por saber a sua opinião, senhor conde. Neste assunto o senhor é uma autoridade. Eu posso estar enganado e atribuir a este pergaminho um valor que ele não tem. mas o senhor, habituado a decifrar enigmas pr-históricos, logo porá as coisas no seu lugar. Contudo, ainda que o pergaminho date apenas de alguns séculos, asseguro-lhe que é interessante.

Esta atitude do professor, que se humilhava e lisonjeava os méritos do conde, deu óptimos resultados.

Além disso, a sua curiosidade de etnógrafo não podia ficar impassível perante um documento tão antigo, que se podia relacionar com a sua ciência predilecta.

Ajustou os óculos, portanto, com impaciência febril.

Como pessoa prática, examinou o aspecto do caderno e depois a consistência do pergaminho e terminou pela correia ressequida que o atava.

- São pergaminhos do século xvi, o máximo. No entanto podem ser interessantes!

- Já o tinha prevenido de que o caderno era bastante antigo.

Entretanto, o conde folheava as páginas.

- Oh! oh! é curioso. empregaram o idioma francês, tão pouco vulgarizado entre nós nessa época. Aqui está agora uma página na antiga língua do país. e mais adiante italiano. Ah! e esta agora! Aqui está outra em latim.

- Sim, o caderno foi escrito todo pela mesma mão, mas, segundo parece, ditado por autores diferentes. É justamente a parte escrita em francês que diz respeito à casa de Uskow. Leia, senhor conde, e verá como é curioso.

O sábio compôs os óculos e encantado pelo festim inesperadamente oferecido às suas meninges, começou, como todo o leitor que se preza, a ler as primeiras páginas.

Na capa, em caracteres bem nítidos, leu primeiro estas palavras:

Profecias do ilustre Delfini sobre os destinos da casa de Uskow, devidamente registados pelo cavaleiro Phely, relator e fiel de TrzyKrõl. aos nove dias de Maio de mil seiscentos e noventa e dois.

Para bem as apreciar, lera devagar aquelas cinco linhas que serviam de título e que se ostentavam na capa do caderno, rodeadas por complicados arabescos.

- Mil seiscentos e noventa e dois - repetiu desdenhosamente o etnógrafo - Não chega a duzentos e cinquenta anos! Não é tão antigo como julgava.

- Oh, evidentemente!. Mas se está ao facto das aventuras porque a sua casa tem passado desde essa data, poderá dizer se as profecias do senhor Delfini se têm realizado.

- Profecias! Que está para aí a dizer?

- Diabo! Eu não sou muito forte na decifração de hieróglifos. mas neste caso estão escritos em francês. francês relativamente moderno para nós e fácil de com preender. Não é difícil também verificar se os acontecimentos preditos depois de 1692 se realizaram. Por último, no fim do caderno existe uma página que lhe

 

(N. T.) - O original francês dá-nos o pergamínho escrita em francês do século XVII.

Para se tornar mais fácil ao leitor resolvemos traduzi-lo, não para português da mesma época, como seria próprio e natural, mas em portugês contemporâneo.

 

diz respeito, senhor de Uskow, e foi essa principalmente que me Inpressionou.

-Amim?

- Sim, a si, repito. e indirectamente a seu filho,

e falo assim porque me parece que é a si e à sua descendência, mais do que a ninguém, que essa página se refere.

- O meu amigo fala por enigmas. Onde está essa tal pá gina?

O conde foi voltando as folhas manchadas de bolor. De vez em quando parava para ler alguma linha e ficava pensativo.

- Fala aqui em Aspreno - explicou - Aspreno é um dos meus antepassados do século xvi. A sua crónica diz, de facto, que sofreu grandes infelicidades e que partiu para o Cristo do Carmelo. em Itália, como peregrino, e aí passou a viver tranquilamente.

Continuou a folhear o caderno.

- Hum - comentou o conde mais adianteMoiza! Meu pai negava a sua existência. Mas este caderno parece admitir que tenha vivido em Trzy-Krôl!

- Verifico, conde, que lhe parecem ser familiares certos factos mencionados nesse livro.

-Não há dúvida! Mas seriam verdadeiras predições ou teriam servido estas palavras apenas de base à lenda?

- Ah! Nesse assunto só o senhor conde pode ser juiz. Mas continue, conde, e verá que não ficam por aí as profecias.

Haverá em TrzyKról mortes, sangue. carnificinas, até que os atacantes fujam espavoridos.

- Hé. Esta agora refere-se à revolta dos camponeses contra os assutiti, expulsos da Lombardia.

 

1 Assutiti: seres estranhos que diziam ser espíritos, mas que na realidade eram apenas gatunos e salteadores de estradas.

 

- Parece-me - observou Chantal - que o ilustre Delfini profetizou mais desgraças do que horas felizes.

- Ora! - ripostou o conde com convicção A vida não é toda ela uma perpétua maçada?

-Nesse caso, senhor de Uskow, lamento muito, mas parece-me que terá, receio-o bem, de passar alguns maus bocados.

- Quem lhe disse semelhante coisa? Até aqui não li ainda nada que me dissesse respeito.

- Assim é. Tudo quanto leu se refere ao passado, mas daí em diante começarão as profecias que me impressionaram tanto e que... são terríveis, na verdade!

- É muito amável em se preocupar por minha causa! Mas não creio na adversidade,   senhor Chantal... e bem sabe que a incredulidade basta para inutilizar os malefícios do diabo.

- Deus o ouça, senhor de Uskow. Ah! Aqui está justamente a página...

- Ora vamos então lê-la!... Mas desde já o previno de que não acreditarei uma palavra e que tudo quanto aqui está escrito só servirá para me fazer rir.

Num gesto decidido, afirmou melhor os óculos no nariz pontiagudo, e depois, com ar de troça,      preparou-se para ler.

Precisamente neste momento tão desejado, o preceptor pareceu arrepender-se. Cobriu com a mão a página aberta e fez uma tentativa para reaver o caderno.

-Pensando melhor, senhor conde, seria preferível que não conhecesse da lenda... senão aquilo que eu lhe pudesse contar... Não leia.

-E porquê? Por que pretende ocultar-ma?

- Porque vai talvez ferir as suas preferências e opiniões pessoais... O senhor está sossegado, para que se há-de alarmar... E depois, os nossos pais formavam da vida uma concepção muito diferente da que nós hoje formamos.

- O senhor é ridículo! - exaltou-se o sábio – As nossas ideias diferem apenas na forma de as exprimir não na essência, que é sempre a mesma através dos séculos. Além disso - acrescentou com autoridade só eu posso ser juiz num assunto que diz respeito à minha casa. Portanto, faça-me o favor de tirar a mão e de me deixar ler coisas que me interessam.

Não obstante a sua minúscula estatura e o seu perfil de polichinelo, o velhote sabia impor-se quando queria. O seu tom decisivo pareceu convencer Norberto, que, hesitando ainda e como que a seu pesar, largou os papéis.

Devemos dizer que a intervenção do moço professor, querendo impedir-lhe, em parte, a leitura do manuscrito, fizera o efeito duma gota de azeite lançada no braseiro da ardente curiosidade do velho.

Era evidente que o seu interesse despertara ao máximo e que a perspectiva daquela leitura inesperada o fazia delirar de alegria. e também o prazer de arrostar com os ridículos terrores e as fantasias daquele francezito sentimental.

A meia voz, leu do princípio ao fim a página seguinte:

Quando o último do último dos últimos dos senhores de Uskow.

À onda pérfida e revolta roubar a sua presa; o pai rirá, mas a ira virá e resolverá castigá-lo. Mas se lhe bater. por obra de Lucifer, arderão os pergaminhos.

O homem de conhecido saber verá todo o seu trabalho perdido. Dele só restarão cinzas.

Uskou chorará de desespero. Todas estas coisas se realizarão e quem as vir e ouvir ficará maravilhado.

Maravilhosa visão! E maravilha maior.

A águia transformar-se-á em pomba, vestirá saia em vez de calção.

Quando mudar o que deve mudar a rapariga voltará.

Facto maravilhoso de contemplar.

Ouvir-se-á a roca e o canto de novo e tornará a reinar em Trzy-Krõl uma época de aleria.

A esta primeira leitura seguiu-se profundo silêncio. Mentalmente, o conde relia certas passagens, Enquanto Norberto o observava com discrição através das pálpebras meio cerradas.

Foi o velho quem primeiro falou.

- Pois bem. Não vejo nada de extraordinário nem motivo para tão grande perturbação!

Chantal fez um gesto vago que podia exprimir indiferença.

- Talvez me tenha enganado. Dei uma significação a essas linhas. significação que me assombrou, confesso.

-Começo por não compreender o que querem dizer estas palavras:

Quando o último do último dos últimos dos senhores de Uskow.

Norberto interrompeu-o porque bem compreendia a sua má fé; mas fizera provisão de toda a sua paciência e estava decidido a sair dali só depois de lhe dizer tudo quanto pensara dizer-lhe.

-Deu-me a impressão de que se tratava de si e de Frederico - explicou com humildade - O senhor é filho único e não tem também senão um filho, portanto esse será o último do último dos últimos, visto que seu pai não tinha irmãos.

-Sim, é possível que seja assim!

-Mas a sua sucessão está assegurada em linha directa.

Vejamos agora o que se segue:

À onda pérfida e revolta roubar a sua presa.

Trata-se, com toda a evidência, de Frederico. As águas do lago, nesta época, estão bastante altas. geladas e perigosas. Finalmente, o último dos Uskow teve de mergulhar a grande profundidade para salvar a criança em perigo. Como vê, todos estes factos são exactos.

-Tem as suas probabilidades de verosimilhança!

- concordou o velho, que não queria parecer que aprovava imediatamente - O banho do rapazelho teria sido previsto. Oh, isso seria engraçadíssimo!

- Inquietante, diga antes! Se a profecia se realizou neste ponto, temos de admitir que se realizará também nos outros.

O castelão não respondeu à judiciosa observação de Norberto e voltou a ler com atenção:

O pai rirá, mas a ira        virá e resolverá

castigá-lo...

Mas se lhe bater por obra de Lucifer arderão os pergaminhos...

O homem de conhecido saber verá todo o seu trabalho perdido.

O velho fez uma careta, mas não comentou esta frase.

E dele só restarão cinzas.

- Só restarão cinzas - comentou o castelão em tom irritado, empertigando-se como um galo pronto a entrar em combate.

Levantou a cabeça e, fixando Norberto, perguntou com azedume e ironia:

- E para isto encontrou alguma explicação, senhor adivinho - perguntou.

Chantal esboçou um gesto vago.

- É bastante obscuro... só restarão cinzas... quer dizer nada.

- Nada?

- Oh, meu Deus Simples suposição minha.

- De todo o seu trabalho só restarão cinzas - repetiu o sábio - Hum!. aqui está uma ameaça perfeitamente disparatada:

- Acho-a príncipalmente aborrecida.

- Não! É, mais do que tudo, estúpida! Estas linhas não têm o mais pequeno sentido.

Norberto não protestou porque não queria atacar abertamente o disforme fidalgo; mas a meia voz recomeçou a ler o oráculo.

- Palavra de honra - declarou ao terminarReceio bem que esta predição se refira ao senhor conde e aos seus livros.

- Aos meus livros! Por Satanás! Mas o senhor está doido de todo!

- Pense o que quiser, pouco me importa. Das duas uma: ou a profecia é uma brincadeira ou virá a realizar-se. Em qualquer dos casos sempre é bom tomá-la em conta.

-Eh! Como quer que a tome em conta se não a compreendo?

- Valha-me Deus, este último dos Uskow que se atira à água e que ameaçam com o knout, deve ser Frederico. E mais adiante, este homem de desconhecido saber e de quem arderão os pergaminhos, não pode ser senão o senhor, que é universalmente conhecido pelo seu saber e que possui documentos preciosos. Enfim, este trabalho do qual só restarão cinzas, cuja perda o fará chorar de desespero, não serão os seus manuscritos? Esses manuscritos a que consagrou dia a dia a sua vida?

O conde soltou como que um rugido.

- Cale-se, meu rapaz, sou eu que lho peço! Essa história vai- se tornando ridícula.

-Se ganhar alguma coisa com o meu silêncio, estou pronto a calar-me.

Tanta submissão por parte do seu interlocutor redobrou a inquietação do sábio.

- Quem o ouvisse e verificasse a sua submissão - resmungou - diria, palavra de honra, que qualquer médico, sabendo-me em perigo de morte, lhe recomendara para me fazer todas as vontades e não me contrariar em coisa alguma.

- Mesmo que a profecia se realizasse, espero que não chegaria a causar-lhe a morte. Quanto à minha submissão, é apenas motivada pelo receio que a mesma profecia me causa. Os franceses são, em geral, generosos, e não se regozijam - pelo contrário - com o mal que possa atingir os seus amigos.

- Mas eu não sou seu amigo, senhor Chantal - observou o conde com irónica altivez.

- Mas eu, pelo menos, sou um dos seus sinceros admiradores. e esse laço, que une o profano ao sábio, comporta, implicitamente, da parte do primeiro, um tributo de dedicação que nem sequer penso em recusar-lhe. quanto mais não seja em benefício da ciência humana de que o senhor é um dos principais ornamentos.

A impecável resposta de Norberto correspondia tão bem ao conceito que de si próprio fazia o etnógrafo, que este não viu nela a menor adulação.

- Mas enfim - tornou, um pouco mais brando. - não acha que estes velhos autógrafos são absolutamente estúpidos? Pode-se admitir que um Ulkow. chore de desespero?. Meu filho, por exemplo, é bastante piegas para chorar! Mas estou bem certo de que não seria a perda dos meus livros que lhe arrancaria uma lágrima. O chicote talvez! Sim, pode bem ser!

-Não vejo quem possa ficar maravilhado com isso, então.

O conde levantou a cabeça num gesto tão rápido que parecia prestes a morder.

- E por que não? Com que gosto rirei quando vir o meu abortozinho contorcer-se debaixo dos golpes duma chibata bem manejada.

No olhar de Norberto perpassou involuntário clarão.    Não podia conservar a impassibilidade quando ouvia falar no castigo que ameaçava Frederico.

- E o seu pessoal assistirá talvez também maravilhado ao espectáculo duma alegre fogueira alimentada com os seus manuscritos. Essa gente rude não pode sequer calcular a soma de trabalho e inquietações que esses papéis representam e estou certo de que dançará em volta do braseiro como se tratasse duma fogueira de S. João. sem medir toda a extensão do irreparável desastre e da sua dor inconsolável. Maravilhosa visão!

O conde volveu-lhe um olhar carregado de relâmpagos.

-Parece-me que o senhor tem grande empenho em que os meus livros ardam!

- Ah, perdão, senhor conde! Ficaria desolado, pelo contrário, e foi mesmo por isso que insisti para lhe falar esta noite.

- Esta noite?

-Sim, com receio de que amanhã já fosse tarde.

- Tarde porquê?

- Ora essa! Pois a profecia não se baseia no banho de Frederico? Se lhe bater arderão os pergaminhos.

O conde começou a rir. Sùbitamente as feições distenderam-se-lhe.

- Ah! ah! Agora compreendo! Tem graça! Tentava conseguir fazer-me modificar os meus projectos, dando-me a ler esse velho oráculo. Não me conhece, meu rapaz! Amanhã terei o prazer de ver bailar o meu filho ao som do chicote! E depois, afirmo-lhe que nunca mais pensará em salvar os maltrapilhos que se afogam. ou então terá o bom senso de se afogar com eles.

- Como a condessa sua mãe, que teve a feliz ideia de morrer ao dá-lo à luz.

A frase terrível brotou irresistìvelmente dos lábios de Norberto. É que, naquele momento em que verificava o fracasso completo do seu estratagema, o nosso professor sentia crescer nele, pouco a pouco, o desejo terrível de estrangular o sábio sinistro e cruel que podia encarar com tão risonha impassibilidade a morte ou o suplício do seu filho único!

Para não obedecer ao impulso que o impelia a esmagar o velho, levantou-se, agarrou no caderno, agora inútil, e prudentemente afastou-se o mais possível do dono da casa.

-Cumpri o que julgava meu dever e agora retiro-me. Boa-noite, conde. desejo-lhe uma noite feliz.

- Olá! Olá! Senhor Chantal, não leve esse alfarrábio! Por que não mo deixa. Vou entreter-me a lê-lo até de madrugada, fique sabendo. Além disso, esqueceu-se ainda de me explicar o fim do oráculo. as últimas linhas. Quem será essa rapariga que voltará quando mudar o que deve mudar?

- Palavra de honra que não sei! Talvez a mulher de Frederico. a menos que o conde resolva tornar a casar-se...

As pupilas do sábio fulguraram.

-Desta vez, senhor professor, acho que leva a brincadeira longe de mais.

-Não quer dar o seu concurso para que em Trzy-Krôl volte a viver uma mulher? - ripostou Norberto com ar zombeteiro - É pena! Simplificaria muito as coisas. assim, é preciso procurar outra solução.

- Peço-lhe que não faça essas injuriosas suposições a meu respeito. Enquanto eu viver não tornará a entrar aqui mulher alguma!

- Nesse caso entrará depois da sua morte, porque o oráculo está bem claro: uma rapariga viverá normalmente em Trzy-Krôl e rejuvenescerá este velho domínio. não nos antecipemos, porém. Pensemos em factos mais próximos e isso bastará para nos pôr o cérebro à prova. Se me dá licença, retiro-me, e antes de adormecer pensarei em tudo isto. Talvez encontre solução mais adequada. Para mais, o oráculo não fala em casamento!

E com afectada gravidade e delicadeza, Norberto cumprimentou-o e, deixando o aposento, desapareceu.

Sòzinho, o conde tornou a pegar no velho caderno e começou a estudá-lo.

Enquanto se absorvia nesta ocupação, o preceptor, em passos furtivos, alcançou o quarto de Iola, onde se demorou mais de duas horas.

Norberto e a antiga ama de Frederico deviam ter trocado várias confidências e dado à língua a valer. Mas como saber exactamente o que disseram e as resoluções que tomaram se não admitiram ninguém àquela entrevista?

Tudo quanto podemos dizer, sem receio de nos enganarmos, é que os dois amigos de Frederico se entenderam às mil maravilhas e que se despediram um do outro perfeitamente de acordo.

Conspiraram, em resumo! Isso podemos afirmá-lo. e para a continuação desta história é quanto basta.

O pequeno almoço estava a terminar.

Sentado em frente de Norberto, silencioso, o conde de Uskow dobrava vagarosamente o guardanapo.

De repente comentou, com ar fatigado:

- Por Deus! Que calor.. Não me recordo dum dia tão quente como o de hoje.

Com efeito, ainda que todas as janelas estivessem abertas e provocassem correntes de ar, a temperatura da enorme sala parecia a dum forno crematório.

- Está de se morrer, positivamente! – acrescentou ainda o velho, enxugando o suor.

- De facto, sufoca-se - aprovou Norberto Vamos ter trovoada esta noite.

Dito isto, apoiou os cotovelos na mesa e com voz pausada e despreocupada fez a pergunta que havia uma hora lhe queimava os lábios.

- Então, senhor de Uskow, encontrou alguma significação às últimas linhas do oráculo?

O velhote fixou-o.

- E o senhor - ripostou sem amabilidade - encontrou outra diferente da que me deu e mais em harmonia com a minha maneira de pensar?

-Fiz diversas suposições.

- Oh! Não duvido! Já sabia que tinha uma esplêndida imaginação...

- Terá então uma solução muito mais simples do que penso - volveu o rapaz, com modos     lastimosamente cómicos.

Suspirou e depois continuou:

- Confesso que é ridículo, mas todas as significações que encontrei são em extremo romanescas.

- Quer dizer, absurdas!

- A primeira vista pode ser... mas, examinadas com maior atenção, serão talvez viáveis... E o senhor conde não encontrou qualquer sentido àquela na extraordinária profecia?

-Numa predição nunca pode haver sensatez: Baseia-se sempre na provável falta de critério de quem a leia.

-Nesse caso fiz mal em fatigar o cérebro!

- Muito mal.

-O mesmo não aconteceu com o senhor conde!

- Oh! engana-se! Li o velho pergaminho do princípio ao fim.

- E depois de o ler concluiu que não tinha o mais pequeno valor!

- Não. Apenas que menciona factos que tenho de verificar.

- Dar-me-ia grande prazer se me pusesse ao corrente das suas conclusões.

-Tanto o interessa a veracidade da profecia?

- É inacreditável, mas, como as crianças, as mulheres e as pessoas pouco complicadas, sempre adorei o maravilhoso. Acho interessante e muitíssimo extraordinário que um Delfini qualquer tivesse o poder de adivinhar o futuro da família de Uskow. Porquê esse Delfini e não um outro. Quem lhe deu tal, poder? O caso é interessante, examinado por todas as faces.

O conde ficou pensativo por instantes, depois explicou em voz monótona, e que exprimia aborrecimento por ter de contar histórias tão pueris:

-Delfini era um bardo siciliano que veio ter ao Continente não se sabe como.

Percorria estes campos cantando Miserere ou recitando graciosos poemas. Vivia como um santo e como tal era venerado. Encontrei todas estas informações nas crónicas dessa época, da minha família, que parecia ter em grande consideração esse singular personagem. Um dos condes de Uskow cita-o frequentemente numa carta escrita à sua dama. Parece que Delfini salvou uma senhora de grave doença. Acreditavam que o pão em que tocasse curava as enfermidades de garganta e que, finalmente, se um cavalo estivesse atacado de cólicas, bastaria que Delfini descrevesse três círculos em volta dele para que ficasse logo bom. superstições ridículas a que o descaramento do homenzinho sabia dar visos de verdade e das quais deveria ter tirado bom partido. Meu avô estimava-o muito e elogiava-o com uma sinceridade digna de melhor causa. O que li fez-me compreender melhor porque razão o senhor Phelip registou com tanto cuidado as profecias desse saltimbanco omnipotente. Mal sabia o meu antepassado o péssimo serviço que me prestaria com isso.

- Mas não dê importância às tolices desse profeta desastrado.

-Não dê importância! O senhor fala bem! Se julga que me deu grande prazer ouvir dizer que uma mulher rejuvenesceria a minha casa.

- Ora! Pode ser que já cá não esteja para a ver!.. Por outro lado, é preciso que Frederico case para garantir a sucessão da raça. Não é possível que morra o nome de Usków. que não haja descendentes que o usem e o continuem. ninguém para relembrar o ilustre sábio que foi seu avô! Seria um verdadeiro desastre e um sacrilégio Creia-me, senhor conde, tem de se conformar com esta perspectiva, que é ainda a mais simples: uma mulher vivendo nesta casa como mãe dos seus netos. É o melhor que lhe pode acontecer. a menos que.

- A menos que?

O conde não perdia palavra dos argumentos expostos por Norberto. É que, conquanto afectasse a maior incredulidade com respeito ao texto dos velhos pergaminhos, o senhor de Trzy-Krôl não deixava de se preocupar com eles e a fisionomia fatigada, o rosto lívido e o aspecto abatido, demonstrava à evidência que a recordação das ameaças preditas contra ele o perseguira toda a noite. ameaças estas que apesar de todo o seu cepticismo não conseguia esquecer.

- A menos que? - insistiu para Norberto, que não demonstrava grande pressa em precisar as suas conclusões.

-A menos que se trate duma mulher do seu sangue?

- Do meu sangue?

- Sim. Por exemplo, o senhor conde está certo de ser filho único?. Sua mãe poderia ter tido dois filhos. o senhor e uma irmã cuja existência ignorasse.

-Ah! Que ideia! E a primeira vez que ouço formular tal suposição!

-Nunca ouviu nada a esse respeito, qualquer comentário, qualquer manifestação de suspeita?

- Nunca! E meus pais viveram o tempo suficiente para que esteja certo de que era eu o seu único filho. quantas vezes os ouvi lamentarem-se por não terem outro.

- Então o meu raciocínio foi errado. Não se pensa mais nisso.

- Erradíssimo. Convença-se de que não tenho irmãos.

-E está bem certo de que sua mulher morreu? O velho sobressaltou- se.

- Mas que extravagantes suposições o senhor faz. Minha mulher está morta e bem morta. felizmente, porque era muito estúpida, conforme já lhe disse. Vi-a meter no caixão, com o maior prazer.

Perante aquela evocação e a manifestação da macabra e rancorosa alegria do velho, que um período de vinte anos não conseguira apagar, Norberto não pôde evitar um gesto de protesto.

Por instantes, desenhou-se-lhe diante dos olhos a trágica cena; a condessa morta e o minúsculo gnomo curvando-se para ela, de sorriso nos lábios, para se assegurar bem de que iam enterrá-la. Era alucinante.

Teve de fazer violento esforço para se dominar e continuar a conversa, porque não podia esquecer que a hora escolhida para o suplício de Frederico avançava inexoràvelmente. E o olhar do velho, fixando de vez em quando o relógio, provava que ele, por seu lado, não a esquecia também; Chantal sentia a coragem fugir-lhe ao contemplar o avanço lento e contínuo do ponteiro inconsciente.

- E está bem certo, senhor de Uskow - recomeçou - de que a condessa sua mulher não teve mais filhos senão Frederico?

-E quantos queria que tivesse? Cinco gémeos, cumo no Canadá?

- E foi pena que assim não fosse - ripostou Norberto, imperturbável - Escusávamos de estar agora a quebrar a cabeça para resolver este enigma incompreensível.

- Pois bem! Ainda que isso lhe desagrade, posso afirmar-lhe que minha mulher não teve cinco filhos.

- Nem dois?

-Apenas um, já lhe disse.

-E tem a certeza de que Frederico é seu filho?

Desta vez, o castelão, como que impelido por uma mola, deu um salto.

- De quem queria o senhor que ele fosse? A condessa era uma senhora honesta, peço-lhe para o acreditar.

- Pelo amor de Deus! Nunca duvidei de tal coisa, mas podiam ter-lhe trocado o pequeno na ama: Quando mudar o que deve mudar a águia transformar-se-á em pomba, usará saia em vez de calção? Veja o conde se consegue explicar as coisas doutra maneira: Quando mudar o que deve mudar o rapaz transformar-se-á em rapariga! É esta a significação exacta da frase que tanto nos intriga. E se não se trata do senhor conde, da sua mulher ou duma sua irmã, terá forçosamente de ser Frederico...

O conde estava desorientado de todo.

De olhar fixo, as veias do pescoço entumecidas, via-se que se lhe desencadeara no cérebro verdadeira tempestade. Levantou-se e começou a medir a casa em passos largos, como uma fera aprisionada.

De repente, parou em frente de Norberto e em voz abafada observou:

-É isso mesmo, meu rapaz! Nunca me ocorreu essa ideia... Frederico não é meu filho... Eis a razão porque esse garoto me desagradou sempre.

- Com quem se parece ele? - insistiu Norberto, que se comprazia em revolver o punhal na ferida.

- Nos olhos parece-se com a mãe... é moreno como ela.

- Mas tem a sua estatura... o seu ar aristocrático, as articulações delicadas e o mesmo porte altivo e orgulhoso.

- É tão estúpido como a condessa.

- Ora essa! Tem um espírito brilhante e malicioso. Compreende as coisas por meias palavras e assimila fàcilmente tudo quanto se lhe ensina.

- Está a exagerar. Frederico é sensível, compassivo e pende para a generosidade. É, portanto, três vezes idiota!

- É essa a sua maneira de ver, porque nesse ponto não o pode compreender. O senhor tem o génio inconsciente dum grande sábio! Ele uma alma nobre, tem lealdade, coragem e sensibilidade. todas as qua lidades que o senhor despreza e não possui. porque nunca quis admiti-las em si e desenvolvê-las.

- Vamos, meu rapaz, não faça cerimónia. Em conclusão, Frederico, é-me superior. E depois?

A exaltação de Norberto acalmou-se sùbitamente.

- Depois?. É aí que pára justamente a minha compreensão. Não há dúvida de que Frederico é seu filho, visto que possui tòdas as qualidades do pai. e aínda mais algumas. sòmente não vejo nisto tudo onde está a rapariga.

- Mas vejo eu chegar a hora do castigo que nos vai provar qual de nós dois, eu ou Frederico, é o mais forte - declarou o velho com sardónico sorriso.

- E também a hora escolhida pelos deuses para pôr as coisas no seu lugar. Porque, repare bem, conde de Uskow, os deuses velam por Frederico. protegem-no e defendem-no. Castigarão sòmente aqueles que lhe fizerem mal. E se a chibata e o chicote não trabalharem, nada sucederá aos seus preciosos manuscritos.

O conde voltou a rir com gosto.

-Os meus livros estão encerrados na biblioteca, que fechei à chave antes de vir almoçar. chegou a hora do knout para aquele que os deuses defendem. Veremos se depois do rapazelho receber os cinquenta açoites eles lhe enviam os seus anjos para lhe tratarem as feridas.

- A minha curiosidade está excitada ao máximo teve a coragem de ripostar Norberto, que principiava a encarar a possibilidade de desempenhar ele o papel de anjo, mas para se bater com o velho e impedir que maltratasse Frederico - Não lhe oculto, senhor de Uskow - acrescentou - que neste momento daria dez anos da minha vida para ver realizar-se a profecia...

Confesso mesmo que um milagre não me assustaria...

Mirabili visu. Maravilha das maravilhas: um Uskow chorar de desespero! Visão comica!

O enfezado velho fez horrível careta.

- Está então convencido de que se trata de Frederico?

- Estou, conde! Se o oráculo não mente, é a ele e a si que se refere...

-Então, senhor Chantal, ainda não é desta que me verá chorar, porque os meus livros estão bem acautelados!

Norberto inclinou-se com delicadeza.

- E se a profecia se realizar, conde, admirarei a sua grandeza de alma e ao mesmo tempo lamentarei a desgraça que o ferir!

O velho fidalgo mordeu os lábios, mas não respondeu.

Aquele francês do diabo tinha uma tal habilidade para dizer com solenidade as coisas mais ridículas, que o sábio ficou perturbado.

 

Na grande sala de Trzy-Krôl achava-se reunido o pessoal do castelo.

Mostravam todos má cara e um ar aborrecido.

O espectáculo repugnante a que os obrigavam a assistir, revoltava-lhes a consciência, e nas feições contraídas, no olhar sombrio, adivinhava-se todo o seu descontentamento.

Iola dissera-lhes:

- O nosso jovem amo salvou uma criança pobre, prestes a afogar-se, e o conde, devido a isso, quer castigá-lo com cinquenta chicotadas.

Como podiam aquelas almas compreender o impulso satânico que impelia o amo a cometer semelhante inj ustiça?

E, digamo-lo em louvor daquela boa gente, do mais novo ao mais velho, do mais humilde ao mais poderoso, até mesmo o tão falado Grafolw, o intendente do conde, todos estavam decididos a revoltarem-se contra a ignominiosa punição.

Que força poderiam ter porém, os lamentáveis protestos daqueles pobres diabos? Não dependiam eles do poderoso senhor de Trzy-Krôl? E se não optassem pela revolta declarada e tomassem a decisão de apelar para as autoridades superiores, quer dizer, para o Governo da Dylvânia, que importância poderia ter a indignação de trinta ou quarenta pessoas, que tantas eram as que se reuniam naquela manhã na grande sala do castelo?

Contudo, mal entrou, Norberto trocou com Iola um prolongado e interrogador olhar, ao qual a boa mulher respondeu por imperceptível sinal de assentimento, o que tranquilizou o preceptor.

- Está tudo pronto - pensou - Ah, conde de Uskow, fazes mal em sorrir assim, porque nesta altura já nada me pode deter para te infligir o castigo que mereces! E se tiver de ir até ao fim. pior para ti!

Ameaça de que o conde nem sequer suspeitava e que de resto pouco cuidado lhe daria.

- Vão buscar Frederico - ordenou depois de ter abrangido o grupo de criados com o olhar penetrante e de se ter assegurado de que nenhum faltara à reunião.

Da assistência ninguém dera um passo para executar a ordem, quando a porta se abriu e Frederico entrou.

- É inútil incomodar os criados, meu pai. Disse às dez horas, e, como vê, sou pontual.

O rapazito vestia um fato de veludo preto; rodeava-lhe o pescoço uma grande gola de renda da Irlanda.

que lhe acompanhava os ombros. Idêntica renda guarnecia as extremidades da manga comprida que caía sobre a mão fina e esguia. Os cabelos ondeados, penteados para trás deixavam a descoberto a fronte pura, que parecia modelada em marfim; por último, no semblante um pouco pálido, os grandes olhos escuros brilhavam numa bela expressão de inteligência e de enérgica audácia.

- Aqui estou, meu pai - repetiu, sorrindo, enquanto o olhar risonho fixava os espectadores.

Quando o juvenil conde apareceu, estes instintivamente haviam recuado; é que, apesar da sua pequena estatura, tinha qualquer coisa de majestoso, o último dos últimos dos senhores de Uskow! Qualquer outro pai ter-se-ia sentido orgulhoso; mas o castelão apenas viu o negro e singular trajo!.. trajo de cerimónia e de luto... aquele gibão de veludo que era a cópia exacta daquele que envergava úm rapazito retratado numa pintura a óleo que existia no castelo. um grande quadro em moldura oval que se ostentava naquela mesma sala, por cima da monumental chaminé, e para o qual todos os olhos se voltavam imediatamente.

Frederico parecia-se indiscutivelmente com a criança do retrato.

O mesmo rosto de expressão pensativa, a mesma delicadeza nas feições, a mesma suave inteligência.

Ora a criança retratada no retrato era um principezito órfão, cuja graça frágil e dolorosa um pintor célebre havia imortalizado dois séculos antes... graça infantil, mas triste... triste como a duma criança que não conhecera o doce sorriso de mãe... como a de Frederico, desde que nascera!

E todos os olhares, sem exceptuar o do conde, iam de Frederico para o quadro e deste para Frederico.

- Que significa esta palhaçada? - perguntou o pai, de testa franzida.

- Qual palhaçada?

-Esse trajo ridículo.

-Foi o que encontrei em cima da cama, esta manhã. E como durante a noite todo o fato restante desapareceu... concluí que devia vestir este, conforme o seu desejo.

- Fechei a porta do teu quarto à chave e tenho essa chave aqui na algibeira.

- Mais uma prova de que acertei e que foi meu pai quem lá mandou pôr este fato.

O velho agitou negativamente a cabeça e começou a resmungar entre dentes.

Já não estava muito satisfeito! Aquele trajo remoto e inesperado seria uma ameaça? Porque, facto digno de nota, aquele pai sem indulgência não duvidava do que afirmava o filho. O pequeno não tinha por hábito mentir e, portanto, o fato, como este havia declarado, aparecera por forma ignorada no quarto de Frederico.

Ora o conde não se recordava nunca de ter visto aquele trajo, e o facto deste parecer exactamente o mesmo que o pequenino príncipe do quadro envergara muitos séculos atrás, afigurava-se-lhe bem pouco tranquilizador.

Quem o descobrira? Quem o levara ao filho? Os Uskow eram pouco medrosos. O conde, portanto, reagiu contra a enigmática ameaça.

-Bom, mais tarde trataremos de esclarecer essa história. Mascarado ou não, vais apanhar as tuas cinquenta chicotadas.

-Estou pronto, meu pai.

Ao pronunciar estas palavras, o adolescente fizera-se um pouco pálido mas o olhar encontrou o de Norberto e nas pupilas do professor viu tanta coragem que um sorriso confiante lhe entreabriu os lábios.

Não podia haver homenagem mais bela à palavra de Chantal do que aquele sorriso de fé em semelhante momento! Com esse gesto não demonstrava Frederico a confiança sem limites que depositava nele?

Bem vê, como me pediu que tivesse confiança em si, não receio coisa alguma. visto que o vejo, sei que nada de mau me poderá acontecer estando a seu lado.

Era duma tal beleza aquele sorriso angélico, que Chantal sentiu-se transfigurado e para lhe agradecer desejaria poder abraçar Frederico diante de todos.

Como não o podia fazer, atreveu-se a animá-lo abertamente, porque o sentia tremer apesar de toda a sua coragem.

- Vamos, meu filho, chegou finalmente esta hora de alegria. Nada de medo, Frederico, encare a sorrir este inadmissível acontecimento que daria esplêndido motivo para um quadro moderno: a aplicação do knout no século XX por imposição do conde de Uskow, o ilustre etnógrafo cujos trabalhos são universalmente conhecidos... Amanhã a T. S. F. difundirá a extraordinária notícia e os seus não menos extraordinários resultados: Vai ser um magnífico espectáculo!

- Mas, meu caro senhor - protestou o velho, desnorteado pelo tom convicto do professor - não se trata dum gracejo; Frederico merece castigo e vai recebê-lo.

-Nem eu gracejo, também, senhor de Uskow.

Acredito piamente no que diz o oráculo! Todas estas coisas se realizarão e quem as vir e ouvir ficará maravilhado... Por Lucifer, boa gente de Trzy-Krôl, preparem-se para rir do singular espectáculo a que o vosso amo os convidou a assistir! E muito teremos que rir, na verdade, meus amigos, se a profecia se cumprir totalmente!

O conde fulminou Norberto com furioso olhar.

- Os seus comentários idiotas são tudo quanto há de mais ridículo -- observou, irritado - E proíbo os meus criados de se rirem seja do que for.

- Mas não está na minha mão nem na sua evitar que se cumpra o que está anunciado... e desde o momento em que há chicotadas, não pode deixar de haver o resto também.

- Apre! meu caro senhor! Já lhe disse que não me mace os ouvidos com as suas grotescas observações.

-Como queira, senhor conde! Visto que mo ordena, calar-me-ei... mas quando chegar a ocasião de rir não deixarei de o fazer.

Tanta credulidade e convicção acabaram por abalar o velho, que desinteressando-se de Norberto, se voltou para Frederico, que sentia a coragem e as forças prestes a abandoná-lo.

Mas o conde, admirado com a alma do filho, experimentou o imperioso desejo de o provocar.

-Supões, então, meu franganote, que vou renunciar a infligir-te o merecido castigo... O teu sorriso parece desafiar-me, mas vamos a ver se o conservas nos lábios por muito tempo. Vamos, rapazes! Agarrem Frederico e amarrem- no ao poste.

Como ninguém se movesse, dirigiu-se ao intendente.

- Tu, Grafolw, amarra Frederico ao poste que sustenta a viga e despe-lhe os calções. Seria pena estragar um fato tão bonito.

- Não me agrada a tarefa, senhor conde de Uskow - replicou o intendente, com mau modo - Tenho um filho da idade do nosso jovem amo e não desejaria vê-lo sofrer o castigo a que vai submeter o seu próprio filho.

-Nada de réplicas, Grafolw. Trata de obedecer se não queres que teu filho vá fazer companhia ao meu.

- Vou amarrar o seu filho ao poste - acedeu por fim o intendente - quanto a despi-lo, isso não faço, senhor de Uskow. Seria uma falta de respeito para com o nosso jovem amo, que também usa o nome de Uskow e um dia o há-de substituir, senhor conde.

E continuando a protestar contra a tarefa de mil diabos que o obrigavam a cumprir, o intendente aproximou-se de Frederico.

- Devo cumprir as ordens de seu pai, meu jovem amo - perguntou respeitosamente - Se exige que não as cumpra, obedecer-lhe-ei.

Ao verificar a deferência com que o intendente se dirigia ao filho, o conde deu positivamente um salto.

Na sua presença, o seu próprio intendente ousava pedir licença a Frederico para cumprir uma ordem dada por ele! Era caso para despertar a ira do velho fidalgo e fazê-lo sair completamente fora de si.

Mais afectado, pela rebelião do intendente do que pela censura espressa nas palavras deste, o conde bradou com voz ameaçadora:

- Ah! que quer isto dizer, meu patife? Desde quando precisas da autorização de Frederico para cumprir as minhas ordens? Obedece imediatamente, miserável, ou saberás quanto te custa!

O homem, inquieto, enrugava a testa sem saber o que fazer. Tentou ainda comover o tirano.

- Senhor conde - implorou - tenha piedade. Não pôde terminar.

O velho percebera-lhe a esitação e, obedecendo a um movimento de cólera agarrou no chicote, formado por delgadas tiras de cabedal rematadas por pequenas bolas metálicas e erguendo-o dispunha-se a descarregá-lo nas costas do intendente.

Foi então que Norberto, para evitar ser atingido pelas perigosas correias, recuou até ao meio da sala, exactamente para o ponto onde se encontrava um grande fogão de faiança... um fogão com dois ou três metros de comprido e em cuja fornalha arderia à vontade um tronco inteiro. Esse fogão, donde saíam numerosos tubos que se estendiam pelos diversos aposentos, permitia que, mesmo nas geladas noites de inverno, a temperatura da casa fosse agradável e suave...

Ora no seu instintivo movimento de recuo, o moço preceptor tropeçou involuntariamente no enorme fogão e para se amparar teve de se encostar à porta deste.

Deu-se então a catástrofe!

A porta estava quente!

A dor arrancou-lhe um grito.

- Ai! ai! - gemeu, agitando ostensivamente a mão - Apre! ai! Oh!

Todos se voltaram para Chantal.

- O senhor endoideceu, para gritar dessa maneira?

- observou o velho, tão impressionado com a violência do grito, que deixou o gesto em meio, ficando imóvel.

-Queimei esta mão, senhor conde! Parece que ardem ali dentro todas as chamas do inferno!

-Que tolices está para aí a dizer? Há mais de três meses que não se acende esse fogão!

- Ah! também eu assim o julguei! Ainda há pouco me encostei a ele, tentando minorar o calor desta temperatura tropical com a sensação agradável da frescura da louça.

- Bem, e depois?

- Eu disse ainda há pouco. Mas agora o fogão está quente!

- O senhor é maluco, repito. É impossível! Bem sabe que o fogão está apagado.

- Se está ou não, não sei! O que sei é que a mão me arde a valer.

-Decididamente, parece-me que estão todos doidos, hoje, nesta casa - resmungou o velho, enervado. Deixe cá ver a mão, meu rapaz, e acabe com essa estúpida teimosia.

Norberto examinou a palma da mão.

- curioso - exclamou, compungido - Não vejo nada.

- Eu bem dízia. Foi ilusão.

- Protesto. ainda sinto a dor.

- Mas é ridícula essa insistência! Está a assustar toda a gente. Não vê estes idiotas que já começam a falar no fogo do inferno e não sei em que mais! Denota estupidez aterrar assim a imaginação destes brutos.

Com efeito, os criados, cheios de pavor, de olhos muito abertos, tinham-se, aproximado da porta. Mas antes de lhe tocar, repreendeu- os:

- Estúpidos! - bradou-lhes - Ninguém sai daqui! Este homem está doido! Têm medo de quê, seus idiotas! Vêem. eu não receio tocar no fogão!

Mas a frase terminou por um rugido de dor.

- Oh! Ai! ai! Queimei-me! Com efeito está quente!

- Já o tinha prevenido!

-Dissesse doutra maneira, já eu o acreditaria.

- Era preciso acreditar, senhor conde, sem ir verificar.

O ritmo involuntário das palavras fez sorrir Frederico, que apreciava muito a música das rimas e adorava a poesia.

- Temos prosa rimada - comentou, gracejando, para Norberto, que sorriu.

Estas palavras, porém, foram ouvidas pelo conde, cujas pupilas despediram relâmpagos.

- Olá, meu garoto, trata de estar calado ou obrigar-te-ei também a pôr as mãos na chapa do fogão. Não é bonito rir quando os outros sofrem!

Sem se preocupar em manter a linha, o velho soprava os dedos contraídos pela dor.

- Mas, finalmente, quem acendeu o fogão? - resmungou - Agora já encontro explicação para a elevada temperatura desta sala. No mês de Agosto, acender o fogão, só uma pessoa doida! Quem seria o embecil

que se lembrou de tal disparate?

Sorrateiramente, examinava o pessoal, esperando descobrir o autor da brincadeira.

Mas aquela pobre gente contentava-se em agitar a cabeça com modos preocupados. Além disso, não ficariam muito satisfeitos, talvez, com a classificação de imbecis, dada por aquele ezaltado.

- Eu não acendi o lume - protestou o homem encarregado do aquecimento.

- Limpei o fogão antes do almoço e estava frio - afirmou Iola.

- A louça estava gelada quando Frederico entrou - confirmou Norberto.

-Há uns poucos de meses que não trago lenha para esta sala - disse outro.

- Se eu ainda não cortei a necessária para o próximo inverno.

- Nesse caso ninguém acendeu o fogão! - exclamou o conde, encolhendo os ombros.

- O pai queria torturar o filho. o fogo acendeu-se sem se saber como. Passam-se aqui factos bem extraordinários - atreveu-se a dizer em voz alta um velho criado de cabelos brancos.

E devia ser esta a opinião de todos os outros, porque alguns deles persignaram-se, enquanto os restantes, prudentemente, abandonavam a sala.

-Só pessoas idiotas como vocês acreditam com tanta facilidade em semelhantes patetices! - bradou o conde, cada vez mais encolerizado - Se o fogão está quente é porque alguém o acendeu.

- Ou talvez arda sem combustível - alvitrou Chantal, que parecia sincero.

E ao mesmo tempo volvia para Frederico, admirado por o ouvir formular tal suposição, um bom e tranquilizador olhar.

- Deus abandonou-nos então! - exclamou Iola

- Quem acendeu o fogo foi Satanás! Trzy-Krôl está amaldiçoado

- Façam calar essa mulher - gritou o conde

-A sua estupidez e credulidade vão assustar toda a gente.

De facto, em todos os olhares se lia um medo louco, aumentado pelos brados de Iola, que não havia maneira de se calar. Pelo contrário. Quanto mais crescia a agitação dos companheiros, mais ela evidenciava o seu terror.

-Os condes de Uskow e todo o seu pessoal são malditos! O diabo tomou posse desta casa! A desgraça cairá sobre os moradores de Trzy-Krôll!

A cena tomara o carácter de pânico! As mulheres e as crianças começaram a chorar, enquanto os homens se agrupavam em torno de Grafolw e observavam o conde com hostilidade.

Um quarto de hora antes, por falta de energia e por indecisão, teriam deixado maltratar Frederico. Mas naquele momento, impelidos pela superstição e pelo terror dos espiritos. em que acreditavam desde pequeninos, estavam dispostos, para conjurar o diabo e os seus malefícios, a resistir ao conde e mesmo a sacrificá-lo se tanto fosse preciso.

O velho senhor de Uskow não tardou a perceber o estado de espírito do seu pessoal. Pela primeira vez na sua vida, talvez, compreendeu que já não tinha força para se impor e submetê-los à sua vontade.

E, como nunca tivesse dado crédito às histórias sobrenaturais que corriam de choupana em choupana e que passavam de pais a filhos, quis demonstrar-lhes a inanidade dos seus terrores.

- Vejamos, meus amigos - disse-lhes, tentando mostrar-se benévolo - Não vão agora acreditar nas insensatas palavras dessa pobre Iola, sem se certificarem da verdade. Nesta sala não arde nenhum fogo do inferno. Se o fogão está quente é porque lhe deitaram combustível e o acenderam. Qualquer outra suposição é indigna dum cérebro civilizado. Sosseguem. Abram a porta da fornalha e vejam se não tenho razão.

Contudo, ninguém acudia a este convite. Conservaram-se afastados, contemplando o fogão com olhares assustados.

- Vamos, Grafolw - insistiu o conde, irritado com tanta cobardia - Um homem da tua força tem medo de abrir uma porta de faiança?. Antes de se assustarem, vejam ao menos se têm razão para isso.

- Medo, não tenho! - declarou o homem prudentemente - E não me importa de abrir a porta. Mas tanto eu como os meus camaradas receamos o fogo que arde lá dentro. Se as chamas são ateadas, pelo diabo, vamos morrer todos aqui!

Contudo foi-se aproximando e com o auxílio de forte tenaz fez girar a tranqueta de ferro que segurava a porta da fornalha.

Esta, enorme como um forno de padeiro, escancarou a sua boca avermelhada pelas labaredas de intensa fogueira.

- Então eu não dizia que havia combustível? Ah! ah!

O velho triunfava; mas de súbito curvou-se para ver melhor.

- Os meus livros! - rugiu.

Com efeito, o combustível que alimentava as chamas era inesperado. O imenso braseiro era constituído por um montão de papeis, manuscritos e livros, que o fogo já consumira em parte.

Uma verdadeira devastação! E a corrente de ar que a abertura da porta produzia, ateava novas chamas e activava o incêndio. porque outro nome não se podia dar àquela fogueira que assim destruía tão con sideráveis tesouros.

Diante da boca avermelhada da fornalha, o conde de Uskow agitava-se como atacado de loucura.

- Os meus livros! Os meus cadernos! - clamava, arrancando os cabelos com desespero - Pelo amor de Deus, salvem os meus livros!

Mas quem se atrevia a retirá-los de semelhante braseiro? A três metros de distância já ninguém se podia aproximar, tal era o calor que dele irradiava.

-Os meus cadernos! Todo o meu trabalho de cinquenta anos! - repetia o desgraçado, dançando frenèticamente diante da boca chamejante da imensa fornalha.

Como louco de braços estendidos e a fronte erguida para o céu, o olhar alucinado, o minúsculo fidalgo avançava para o fogo que assim aniquilava a sua obra.

Verificando a sua impotência, gesticulava, ofegante, proferindo com voz rouca as piores ameaças, vomitando injúrias e blasfémias, conjuntamente com súplicas e imprecações.

Condoído, Frederico quis aproximar-se do pai enlouquecido e desvairado, mas Norberto reteve-o.

-Deixe o destino cumprir-se, meu filho! Estava escrito que um dia seu pai seria castigado. Quis impor-se pela força e uma força maior o dominou. Que isto lhe sirva de lição!

- Oh! mestre! Mas a lição é cruel! Foi mais longe do que era preciso.

- Mais cruel do que os seus actos e o seu desejo de fazer sofrer? Levei horas, Frederico, para o convencer de que era necessário ser bom e justo. não o consegui. Ainda esta manhã evocava os mais cruéis suplícios. Só a sua malvadez e selvajaria provocaram a catástrofe. juro-lhe, meu pequeno, que seu pai estava prevenido!

Frederico calou-se. Ficou pensativo, mas pouco depois informou-se com voz branda:

-Garante-me, senhor Chantal que não interveio na destruição da obra de meu pai? Preferia sofrer o suplício do knout a pensar que os manuscritos que tanto trabalho lhe custaram foram destruídos por minha causa!

Norberto contemplou comovido o meigo rosto que se erguia para ele.

-Dou-lhe a minha palavra de honra, meu filho, de que a minha veneração pelos trabalhos do senhor de Uskow iguala a sua e que teria preferido feri-lo no corpo, do que na alma, destruindo-lhe a obra.

- Nesse caso não compreendo como lançaram isto ao fogo.

-Posso afirmar-lhe que nem sequer sei o que arde ali dentro -- declarou Chantal, hesitante - Mas acredite, Frederico, tudo o que acaba de acontecer é um bem para seu pai. Vendo que ninguém se opunha e que se cumpriam as suas ordens, por cruéis que fossem, acabou por se julgar autorizado a cometer as piores atrocidades. Não esqueça que não há ainda muitas horas desejou morrer. Não esqueça também sua pobre mãe.

O rapaz baixou a cabeça, de súbito entristecido.

- Minha mãe, é verdade - disse dolorosamenteMinha pobre mãe. morta, sim, morta de terror!

- Teve a feliz ideia de morrer, como dizia seu pai na sua ignóbil alegria.

O preceptor não acrescentou que o conde exprimira um desejo quase idêntico ao referir-se ao salvamento que Frederico realizara; mas o pequeno sentiu bem o horror que tais recordações lhe despertavam, porque escondeu o rosto nas mãos como se tivesse diante dos olhos um quadro repelente.

- Não posso estar aqui mais tempo, senhor Norberto. O espectáculo de meu pai dementado pela cólera, diante dos seus criados assustados, incomoda-me. Sinto-me aniquilado por tantas emoções.

Parecia, com efeito, prestes a desfalecer.

- Vá-se embora, Frederico, vá. e confie em mim, que tudo se há-de arranjar. Agora vou cuidar de seu pai e verei se consigo acalmá-lo.

O rapazito abandonou a sala sem olhar para o conde, que, com os lábios espumando, se agitava e contorcia numa verdadeira crise de nervos.

O preceptor avançou para ele.

-Sossegue, senhor conde, peço- lhe.

O fidalgo estremeceu e encarou- o com o olhar embrutecido, como se não o conhecesse.

- Mirabili visu - murmurou pouco depois numa voz sem timbre - O oráculo falava então verdade?

- Assim parece. E mesmo por isso, senhor de Uskow, não devia ter brincado com semelhante ameaça. Na dúvida àbstémte, diz um antigo ditado francês. e custava-lhe assim tanto a renunciar a chicotear Frederico?

- Frederico! oh! Frederico! Esse miserável garoto!

E tinha sido justamente esse pigmeu que os deuses haviam protegido! A criança fraca, não obstante a sua pequenez, fora mais forte do que ele.

Aniquilado o conde deixou-se cair numa grande poltrona de cabedal, onde quase desaparecia; mas, se não o viam, ouvia-se-lhe pelo menos a respiração ofegante, que sibilava na garganta ressequida.

Pela testa corriam-lhe grandes bagas de suor, empastando-lhe o cabelo, cujas madeixas caíam até aos olhos encovados. Várias vezes quis levantá-las com a manga do casaco.

Frederico!

Esta palavra parecia despertar na alma do ancião terríveis visões.

A condessa. o filho.

O filho enfezado de corpo e fraco de alma. Era um demónio, afinal, que a mãe pusera neste mundo. Um demónio que o pai não conseguira vencer.

Frederico!

Aquele garoto trocista cujo riso parecia soar-lhe ainda aos ouvidos. cujo olhar irónico comentava todos os gestos do pai. cujos sorrisos se assemelhavam a um desafio.

Frederico!

Frederico, enfim! Aquele ente caridoso, moço bondoso, cheio de coragem, que os pobres de Trzy-Krôl adoravam e que Norberto dizia ser superior ao pai , porque possuía um coração e uma consciência. Porque salvava crianças que se afogavam. porque. porque. A razão do infeliz vacilava; Frederico. O knout.

Delfini.

- Oh! o fogo.! os meus livros - clamou num sobressalto de horror - Os meus cadernos! O meu trabalho. Ardeu tudo. tudo!

Apoiando os braços na mesa, deixou cair sobre eles a cabeça. e, dolorosamente, começou a soluçar. num choro convulso. com toda a sua alma, como o teria feito não importa que outro homem perante um desastre irreparável.

Então, no grupo dos criados cessaram os risos, e os olhares que fixavam no velho perderam a sua expressão hostil e tornaram-se compassivos.

Mas o conde de Uskow, a chorar de desespero, era um facto tão formidável, tão assustador, que os criados, devagar, na ponta dos pés, foram desaparecendo furtivamente, sentindo-se mais aterrados com aquelas lágrimas anormais do que com as violências e cóleras do costume.

Norberto deixou-os sair, conservando apenas junto de si aqueles que o podiam ajudar a tratar do conde.

- Fique aqui, Grafolw, vai auxiliar-me a deitar o seu amo. E você, lola, prepare-lhe um bom cordial. Cipriano, corra a prevenir o médico para vir ao castelo o mais depressa possível. Quanto a si, Janika, vá ter com o senhor Frederico e diga-lhe que fui eu quem a mandou fazer-lhe companhia.

Agora que conseguira evitar a cena do knout, Norberto só pensava em tratar do conde de Uskow e minorar-lhe a dor causada pelos inesperados golpes que o destino lhe vibrara naquela inolvidável manhã.

Quanto a Iola, estava ao mesmo tempo encantada por Frederico ter escapado ao monstruoso suplício e desolada por ver o amo em tão lamentável estado, e asssim, enquanto um sorriso alegre lhe descerrava os lábios, as lágrimas corriam-lhe a quatro e quatro pelas faces...

Devemos observar que este facto nada tinha de extraordinário.

Se o velho sábio se conservasse em estado de fazer as suas observações, não deixaria de dizer que ter o riso nos lábios e as lágrimas nos olhos é coisa muito vulgar nas mulheres e que o acanhado cérebro destas nunca compreende para que lado se há-de inclinar. Diria ainda que o mais difícil de verificar, neste caso, não era a sua falta de equilíbrio, muito evidente, mas, sim, qual das duas coisas prevalecia, se as lágrimas, se o riso.

Pelo nosso lado, como não somos filósofos nem sábios, e receamos aflorar tão delicado assunto, não tentaremos resolver o problema. Contentar-nos-emos em dizer que Iola chorava, sim, mas de alegria.

Durante quinze dias o conde de Uskow esteve prostrado por violentíssima febre e Norberto viu-se obrigado a instalar-se à sua cabeceira para lhe prestar os cuidados necessários, pois o doente reclamava constantemente a sua presença. Com efeito, não estava o preceptor de Frederico ao corrente da terrível profecia de Delfini? Quem, senão ele, poderia conjurar a má sorte ou, pelo menos, ajudar o conde a descobrir a origem daquele infernal incêndio?

O castelão era menos idoso do que as suas feições diabólicas aparentavam e o organismo conservava-se felizmente mais robusto do que o cérebro esgotado pelas prolongadas lucubrações científicas a que se dedicara.

Portanto, aquela permanência no leito, obrigando-o ao repouso, longe de toda a papelada, teria sido benéfico para o conde se não o perseguisse a constante recordação dos seus livros destruídos e dos seus manuscritos queimados.

Não falava senão nisso e não tinha outra conversa com o professor; mesmo quando este tentava desviar-lhe o pensamento para outro assunto, havia sempre uma frase imprudente que vinha recordar ao velho os preciosos cadernos que o fogo consumira.

A lição, contudo, parecia ter acalmado o temperamento belicoso do sábio. Irritava-se menos e raciocinava com moderação. Mesmo as suas queixas não eram tão agressivas e parecia quase admitir que só a sua teimosia provocara a catástrofe.

Não que aceitasse a possibilidade duma intervenção divina ou de feitiçaria. Não! O conde de Uskow não admitia qualquer superstição. Nesse ponto, o cérebro conservava-se-lhe desempoeirado e lúcido.

Mas, enfim, existia alguém que ele desconhecia. e não calculava quem pudesse ser, mas que evidentemente era mais forte, visto que, menos escrupuloso, lhe subjugara a cólera e o obrigara a desistir dos seus projectos violentos.

Um ente misterioso. um ser tão terrível e tão mau, que ultrapassara a sua própria maldade. tão perigoso, que tivera poder para o dominar!

Era tudo quanto o conde deduzia de todo aquele mistério.

E sobre esse inimigo, que o vencera, não tinha sequer ilusões; considerava-o implacável e capaz das piores vinganças. E nesta ordem de ideias, o velho estava persuadido de que, se tivesse persistido no seu projecto de chicotear Frederico, toda a sua livraria, e até talvez mesmo o próprio castelo, teriam sido pasto das chamas.

Fora ùnicamente este temor que o obrigara a desistir do suplício do filho e que o constrangia a conservar-se fechado no quarto, cheio de medo e dominado.

Contudo, a reclusão não lhe impedia o cérebro de trabalhar e, durante as compridas horas de insónia, provocadas pela febre e pela depressão nervosa, o sábio procurava inùtilmente uma explicação para os extraordinários acontecimentos ocorridos em Txzy-Krôl.

O manuscrito encontrado por Norberto e que com tanta antecedência profetizara factos indiscutivelmente realizados muito tempo depois. a revolta dos criados. a satânica fogueira misteriosamente acesa e alimentada. e tantos outros pontos que não conseguia esclarecer.

Desejaria poder acusar alguém como autór dos malefícios.

Mas quem?

Norberto quase não o abandonara, pelo menos o tempo suficiente para preparar a fogueira! E depois, um homem instruído seria incapaz de tal barbaridade. Semelhante acto só era admissível num ignorante ou num selvagem.

Quanto a Frederico, desde a véspera do desastre que ficara fechado no quarto. e por conseguinte impossibilitado de dar os passos necessários para realizar a manigância.

Por outro lado, os preciosos manuscritos estavam fechados à chave; em estantes, no gabinete de trabalho, onde o conde se conservara constantemente. e até do seu quarto este podia vigiar o seu tesouro.

No entanto, alguém conseguira roubá-los para os atirar ao lume.

Mistério este que o conde não podia compreender. Então, nesta incerteza, era no filho que descarregava todo o seu rancor.

Não fora em favor de Frederico que se dera toda a série de acontecimentos? Era natural que a suspeita do lesado recaísse no beneficiado.

O adolescente tomava, portanto, no cérebro sobreexcitado do pai, as proporções inquietantes dum ente prejudicial e perigoso. um ser em quem não se podia tocar. que se esquivava à sua despótica escravatura. um ente que de súbito passava a ser para ele um estranho.

E estes pensamentos eram tão dissolventes e destruidores de todos os laços de sangue, quer dizer, tanto paternos como filiais, que o senhor de Trzy-Krôl chegava a preferir que Frederico nunca tivesse existido!

Era até muito possível que no seu íntimo, o velho, desde aquele momento considerasse o filho como a sombra negra ligada ao seu futuro pelo destino implacável.

E, desta forma, o conde, que confiava a Norberto todas as ideias que lhe passavam pela cabeça, evitava pronunciar o nome de Frederico.

Depois do momento em que, no seu delírio, o nome do filho lhe acudira mais de vinte vezes aos lábios, como um lamento, um espectro ou como um leitmotiv, e muito principalmente desde que chorara de desespero perante o desastroso resultado dum suplício preparado com tanto prazer, o pai nunca mais quis ver o adolescente nem consentia que Chantal lhe falasse do seu discípulo:

- Mas é seu filho, senhor de Uskow - observara o preceptor - O pobre rapaz todos os dias pergunta por si e aflige-se por saber que está doente.

-Deixe-me em paz! Há dezoito anos que esse maroto me importuna. Proíbo-lhe que me fale dele.

O tom era decisivo e não admitia réplica, e o preceptor julgou conveniente não insistir.

-Deixe-me ver o velho pergaminho do senhor Phelyp - reclamou nesse dia o doente, que achava aquele assunto de conversa muito mais interessante.

- Oh! Para que há-de o senhor de Uskow preocupar-se com o oráculo. O melhor é não pensar mais nisso.

- Perdão - ripostou o velho - há ainda quatro linhas cujo sentido me escapa.

Mas Norberto fazia-se desentendido.

- A que linhas se refere? Não me recordo - acrescentou, simulando grande espanto.

- As quatro últimas. as que anunciavam a vinda duma rapariga.

- Oh! Analisámos e procuramos tanto sem nada achar, que estou convencido de que não têm qualquer significação.

- Nós é que não a sabemos encontrar. A profecia terá a sua completa realização. Presentemente já não zombo do bardo Delfini. Tinha, na verdade, o dom de adivinhar.

Estas palavras produziram em Chantal um certo mal-estar. Contudo, procurou o manuscrito e deu-o ao velho.

O conde de Uskow, depois de o ter lido e relido, ficou pensativo por muito tempo.

- Uma mulher entrará nesta casa? - dizia para o preceptor, que, à força de lhe dispensar carinhosos cuidados, ganhara a sua confiança.

- Daqui a cem anos, talvez - gracejou o outroVejamos, senhor de Uskow, trata-se duma mulher da sua raça e não duma estranha. Ora como actualmente não existe nenhuma, os acontecimentos preditos; se se realizarem, virão muito tarde.

Mas o conde abanava a cabeça numa expressão de desagrado; agora esperava o pior e tinha a certeza de que não seriam os seus descendentes que sofreriam a presença duma mulher em Trzy-Krôl. Seria ele, que tanto odiava o sexo feminino, ele e mais ninguém!

- Terei de suportar esse último suplício, veráafirmava com gravidade - Deus sabe quanto sofri com a perda: os meus manuscritos, todavia, ser obrigado a viver lado a lado com uma mulher é para mim catástrofe maior, e verá que não escaparei a esse tormento!

E, englobando as criadas no seu exagerado desprezo pelo sexo, lamentava, com grande cópia de argumentos, tê-las admitido no seu pessoal.

- Nunca deveria ter consentido em Trzy-Krôl esse bando de fêmeas.

E como consequência, não permitia a Iola que lhe entrasse no quarto nem que lhe prestasse qualquer serviço.

- Tem mau olhado, aquela mulher do diabo. Só de entrar aqui é capaz de me envenenar a refeição!

Era esta agora a sua ideia fixa, e o francês, impotente para o dissuadir, via-se obrigado, pelo seu papel de enfermeiro, a ir buscar ao corredor a comida que Iola lhe trazia e a levá-la por suas mãos à cama do doente.

Como se vê, era uma comédia ridícula a que o obrigava o novo capricho do senhor de Uskow.

Norberto nunca contava estas coisas a Frederico, ainda mal restabelecido de todos os abalos porque passara naqueles últimos tempos.

-O perigoso mergulho na água gelada ter-lhe-ia feito mal? - inquietava-se o preceptor ao contemplar o semblante pálido do discípulo.

Quem o podería saber? Frederico não se queixava e quando alguém o interrogava respondia que nada tinha.

Um facto, porém, era evidente. Frederico tornara-se pensativo e a sua antiga exuberância fora substituída por um ar de gravidade, que não era habitual num garoto ordinàriamente tão buliçoso e expansivo.

- É curioso - comentou um dia Chantal para Iola

-É, então, necessário o riso satânico do conde de Uskow para dar animação a Trzy-Krôl? Desde que o seu velho dono está doente, tudo é tristeza e silêncio nesta casa!

E a observação era tão exacta que até os próprios criados pareciam menos expansivos. Desempenhavam o serviço que estava a seu cargo, muito calados e com uma espécie de actividade febril que causava espanto a Norberto.

Se o preceptor pudesse compreender a sua maneira de falar, um pouco rude, ficaria menos admirado, porque teria ouvido a forma como à noite, ao serão, os pobres diabos comentavam os acontecimentos, dando-lhes, conforme a sua superstição, um carácter sobrenatural.

E cada um deles comunicava aos outros as observações feitas durante o dia.

- O nosso jovem amo está a definhar. Anda tão pálido que faz lembrar a mãe.

-Oh! meu doce Jesus! Irá morrer como a pobre senhora? É ela que o chama para o seu lado, talvez.

- Tinha de ser!

-Parece que foi o velho quem recebeu as chicotadas e não o filho.

-Toda aquela papelada velha que passa a vida sempre a ler, devia estar enfeitiçada.

- E ele não via outra coisa no mundo.

-Quem acendeu aquela fogueira castigou-o bem das suas torpezas.

- Foi castigo do diabo!

- E sempre é verdade o patrão estar menos rabugento, agora?

- Pelo menos fala com melhor modo.

-Ora! Teve medo, é o que é!

- Ouvi dizer que o domínio cairá nas mãos duma mulher.

-Uma mulher nesta casa? Quem dera!

- Mas o conde morrerá de desgosto!

- Porquê. Toda a vida houve mulheres em TrzyKrôl. Foi preciso viver aqui o velho, com todos os seus alfarrábios, para mudar o que estava estabelecido há tantos séculos.

-Então alegremo-nos. O velho castelo voltará a ser o que era.

- Queira Deus que ao menos isso não venha prejudicar também o senhor Frederico. O pobre pequeno não tem culpa de coisa alguma.

- O que está escrito, está escrito. Ninguém o pode evitar.

-Mas se Trz-Krôl mudar de dono, o que será de nós?

E cada um pensava o pior.

E de dia para dia os acontecimentos eram contados de maneira diferente, comentados pela ignorância de todos eles, e tomavam por fim o aspecto de superstições inquietantes, aceitas e repetidas por aquela pobre gente, que acabava por se aterrar com as suas próprias invenções.

- Tenho feito pouco caso de si, nestes últimos dias, Frederico.

- Para poder tratar de meu pai, bem vi. e não sei como agradecer-lhe, senhor Chantal.

- O conde de Uskow agora está melhor. Já se levanta. E muito me alegra o seu restabelecimento, porque, na verdade, estava desolado por ter sofrido tão grande abalo.

Pensativamente, o discípulo fixou o preceptor.

- A destruição dos manuscritos foi terrível. Podia ter-lhe causado a morte.

- Oh! Nunca admiti semelhante resultado! - protestou o professor - O senhor de Uskow exterioriza demasiadamente os seus sentimentos para que pudesse produzir-se um choque cerebral de tanta importância. Em compensação, creio que esta história o obrigou a reflectir um pouco mais nos assuntos alheios à etnologia. Estou mesmo convencido de que é esta a primeira vez que seu pai se preocupa com qualquer coisa que não diga respeito aos seus livros. Há momentos em que me dá a impressão de que encara agora a vida e todas as suas ocorrências doutra maneira, como um cego de nascença ao recuperar a vista poderia contemplar o sol.

- Teria sido, então, um resultado magnífico. un resultado inesperado, obtido numa manhã tão mal começada.

- Queira Deus que não me engane e não veja a minha esperança desiludida nesse ponto!

Os dois rapazes trocavam estas impressões percorrendo com passo rápido a estrada que descia de Trzy-Król para o vale.

Norberto envolvia o discípulo num olhar carinhoso, sentindo-se feliz por se ver junto dele, mas o rapazito, com ar preocupado, parecia mais retraído do que nunca.

Teria Frederico, durante aquelas três semanas em que só falava com o professor iá hora das refeições, perdido a confiança absoluta que nele depositava? A menos que os acontecimentos um tanto graves que haviam precedido a doença do conde de Uskow fossem, em parte, a causa da discreta reserva do rapaz.

Era esta a pergunta que, um pouco contristado com o leve retraimento do seu jovem conpanheiro, Nor berto fazia a si próprio.

-Tem qualquer coisa que o preocupe, Frederico?

- indagou com solicitude, tentando quebrar o gelo e levar o outro a expandir-se.

- Não. por que me faz essa pergunta?

-Por que o vejo menos comunicativo que de costume.

- Não, não tenho preocupação de maior. contudo.

Calou-se, um pouco hesitante.

- Por causa de meu pai. sim.

- Por causa de seu pai? Mas está melhor, já lho disse.

-Por que razão não consente que eu entre no quarto. Continua zangado comigo?

- É difícil saber o que pensa o conde de Uskow. actualmente odeia todas as mulheres.

Frederico sobressaltou-se.

- Isso não é uma razão para que me odeie a mim. Eu não sou mulher!

-É filho da condessa.

- E não o era antigamente? Não é suficiente para me explicar porque motivo, por diferentes vezes durante estas semanas, não me recebeu quando o quis cumprimentar. Nunca me manifestou tão grande desdém.

-Não suspeita, com certeza; que eu influa por qualquer forma na atitude do conde de Uskow?

Uma onda de sangue coloriu o rosto juvenil e encantador.

- Não, nunca pensei semelhante coisa. Estou apenas admirado com a má disposição de meu pai.

- Também eu. Tenho tentado por várias vezes, mas inùtilmente, falar-lhe de si. Creio que o conde de Uskow está apenas magoado com a atitude que os criados demonstraram no outro dia. mormente com a do intendente. Era notório que todos tomavam o seu partido. Por outro lado, o Frederico possui tudo quanto lhe falta, incluindo a mocidade, a força e uma infinidade de outros predicados de que ele desdenhou sempre. Compreende?. Para ele, senhor despótico e autoritário, o Frederico é um pouco o usurpador, o sucessor, ou antes, o adversário mais favorecido. Já não é a primeira vez que encontro idêntico sentimento de inconsciente inveja nos pais que vêem os filhos crescer e apossarem-se pouco a pouco do seu lugar na vida.

- É um sentimento bem digno de censura - protestou Frederico - Meu pai nunca demonstrou ter por mim grande ternura, mas se passa agora a tratar-me como inimigo, que vida dolorosa vai ser a minha?

-Tanto mais que eu já cá não estarei para o consolar, meu querido Frederico.

Este estremeceu, porque a voz do professor tomara de súbito um tom mais grave.

- Oh! o senhor Norberto não pensa, com certeza, partir em breve?

- Só o destino dirige o nosso futuro - disse Norberto gravemente - Eu também tenho pais. família que me espera.

- Mas tinha -me dito que as contingências da crise mundial o obrigavam a ganhar a vida.

- É verdade! Eu que não sabia o que era trabalho, tive de me sujeitar a procurá-lo como os outros. e para mais, fora da minha casa.

-Foi duro, na verdade.

- Foi, mais do que tudo, inesperado. Não estava habituado! E justamente por causa disso muitas vezes o magoei sem querer, Frederico.

- Encontrei sempre em si um excelente camarada!

-atalhou o discípulo com vivacidade.

-É consolador para mim ouvir essa afirmativa. Mas, seja como for, recebi esta manhã uma carta de meu pai que me deu grande alegria. Depois de tantos dias de inquietação e sofrimento, durante os quais meu pobre pai perguntava a si próprio, no meio da maior angústia, se dun momento para o outro não se iria ver completamente arruinado e se a crise comercial que o perseguia tão atrozmente não lhe roubaria tudo, até mesmo a honra, pôde finalmente comunicar-me uma feliz notícia.

- Muito me alegra sabê-lo, por sua causa.

-Sim, Deus teve dó de nós! Justamente quando meu pai se encontrava na última extremidade, sem o menor vislumbre de esperança, tudo mudou de repente.

-Uma compensação muito justa.

- É certo. Precisamente na altura em que meu pai pensava abrir falência, recebeu uma encomenda inesperada! Foi mais do que a sorte, foi quase um milagre! O Estado necessitava duns automóveis pequenos, mas rápidos, para assegurar certas comunicações entre os grandes centros e as pequenas povoações. E não encomendou um ou dois; encomendou milhares, com um prazo de cinco anos. para a entrega total. Compreende agora, Frederico? É a felicidade, a segurança, a riqueza, enfim! Não só poderá readmitir todos os seus operários e fazer frente a todos os compromissos, mas ainda, quando tantas casas estão a quebrar, a nossa vê o seu futuro assegurado por cinco anos de trabalho intensivo! Consequentemente, como as grandes encomendas deixam sempre um certo lucro, bastará meu pai recuperar o seu crédito por uma boa administração, e, ficará para sempre livre de preocupações.

Pensou, então, encontrar em mim o seu mais precioso colaborador, que só eu o poderia ajudar com dedicação e lealdade, e escreveu-me nesse sentido, pedindo-me que, logo que pudesse libertar-me dos meus compromissos, regressasse a França.

Norberto falava sob a acção de intenso ardor filial que lhe absorvera toda a atenção. Não viu, portanto, que as feições de Frederico se alteravam pouco a pouco.

Ao olhar para ele, reparou então no perfil delicado que sùbitamente se transtornou.

- Vai-se embora - murmurou Frederico com voz trémula - Virá outro preceptor. Um preceptor que não será como o senhor, que não me compreenderá e contra o qual nem sequer terei o desejo de me revoltar.

E de repente, numa desesperada necessidade de expansão:

- Oh! senhor Norberto! E quanta desilusão teve também por minha causa. com certeza! Mas nunca soube. Não podia compreender a necessidade de luta que me impelia a resistir-lhe. Há recônditos da alma que nunca se compreendem por muito que se deixem adivinhar. Quando se afastar lembrar-se-á de mim apenas com leve simpatia, sem calcular que, neste cantinho dos Cárpatos, um ente chora de saudade, recordando aquele que iluminou a sua vida e lhe trouxe os únicos momentos de alegria que conheceu!

Norberto reparou que os olhos de Frederico se inundavam de lágrimas e, sùbitamente comovido, precipitou-se para ele.

-Engana-se, Frederico! Nunca o esquecerei e, se tivesse de partir sòzinho, deixaria aqui o melhor da minha alma.

Calou-se, subjugáado por intensa emoção que não o deixava falar. Pouco depois, porém, continuou, sem bem medir o alcance das palavras:

- Não, não pode saber o que sinto, Frederico. o lugar que ocupa no meu coração.

Tornou a parar, porque sentia subirem-lhe aos lábios ardentes palavras de amor e não queria deixar perceber que adivinhara o segredo tão ciosamente guardado pelo discípulo. Momentos depois, mais calmo, prosseguiu:

-De princípio vi em si o rapazito fraco que a minha força masculina quis proteger. depois aprendi a conhecer essa almazinha de eleição, vibrante e leal, e dei-Lhe toda a minha ternura, não só, por ser um ente fraco que dia a dia conhecia melhor, mas também porque compreendi a sua sede de afeição e porque me pareceu que o seu isolamento moral o aproximava mais de mim.

Frederico encostara-se ao parapeito de pedra da ponte que transpunha um precipício da estrada.

Sentia-se de súbito cansado, abatido. Com ternura, Norberto enlaçou o busto delicado que desejaria poder cingir com maior carinho.

-Sim, meu pequeno, afeiçoei-me a si instintivamente, pouco a pouco, sem mesmo pressentir que o laço que nos unia se estreitava cada vez mais. como certa noite lho confessei. Mas esse sentimento de ternura foi mais forte, talvez porque, coberto com a aparência frágil dum rapazito enfezado, senti que havia qualquer coisa que valia mais do que o invólucro. numa esplêndida realidade de que ninguém suspeitava.

A medida que falava, a terna pressão em volta dos ombros delicados tornava-se mais persistente, enquanto Frederico, com o rosto oculto nas mãos, chorava silenciosamente sem lhe responder.

- Perguntei-lhe um dia, Frederico, se nunca tinha encarado a possibilidade de viver longe de Trzy-Krôl. Hoje torno a perguntar-lhe: Quer abandonar o castelo?. Quer vir comigo para França?

- Consigo?

- Sim. visto que tenho de partir.

- Ah, é horrível.

Chantal sorriu e, meigamente, em tom de súplica:

-É horrível o quê? Que eu parta sòzinho ou que lhe peça para partir comigo?

- Partir consigo?

- Não queria confiar-me a sua vida. Faço-lhe este pedido em toda a sua amplitude. Conhece-me bem para saber que sou incapaz duma incorrecção ou duma deslealdade. Mede bem tudo quanto as minhas palavras e a minha proposta comportam para si? Quer vir comigo, Frederico?

Era uma prece, uma súplica apaixonada, mascarada com a aparência de simples camaradagem.

Frederico, ingènuamente, deixou-se iludir.

- Já uma vez lhe disse, mestre, que me era impossível aceitar lealmnte a sua amizade - afirmou.

- Porque me supõe mais cego do que sou. Iabituou-se há tanto tempo a viver concentrado em si próprio, que não lhe parece possível viver doutra forma. Mas pense bem, meu pequeno, no que lhe ofereço e no que lhe peço em troca. Nunca teve um amigo e eu dou-lhe a minha amizade; nunca soube o que era uma terna afeição e eu dou-lhe a minha, exclusiva, sem restrições, em toda a acepção da palavra. Partirá comigo e em tudo e por tudo encontrar-me-á a seu lado. sempre. definitivamente. porque a sua alma para mim não tem segredos e porque, por meu lado, não marco limite algum à oferta absoluta da minha dedicação.

O rapazito fixou-o, estranhamente perturbado. Abrangeria Chantal toda a extensão das palavras que pronunciava?

- Fugir? - balbuciou por fim, sem responder por forma directa à insistente súplica - Fugir consigo. sem avisar. como um criminoso! Está bem certo, senhor Chantal, de que a sua proposta é digna de mim?

- Quero antes de mais nada, obter o seu consentimento, Frederico. Quanto a obter o de seu pai, eu me encarrego disso.

- Ah, nunca o conseguirá - exclamou o pequeno, sem hesitação - Que lhe poderá dizer para o decidir a deixar-me partir. A sua afeição por mim cega-o, senhor Norberto. Não compreendeu ainda que ele seria até capaz de me matar se tivesse qualquer suspeita do nosso acordo! Nunca consentirá que me afaste daqui!

- Oh! Em parte tem razão - reconheceu Chantal - mas enfim, se eu conseguir demonstrar-lhe a necessidade desta permanência em França, a fim de completar a sua educação debaixo da minha direcção, para adquirir outra actividade e desenvolvimento, tomando contacto com a vida moderna.

- A minha estada em França duraria então apenas meses - indagou Frederico, pensativo.

Os olhos de Norberto cravaram-se com rudeza no rosto do companheiro.

- Alguns meses. ou toda a vida. sabe-se lá! O principal, julgo eu, é sair de Trzy-Krôl. Mais tarde, veremos. quando conhecer bem o mundo e a mim também. quando puder comparar, talvez me prefira aos outros.

As grandes pupilas de infantil expressão velaram-se, evitando o olhar perturbador enigmático que pesava sobre elas.

- É muito grave - disse Frederico - O senhor não sabe! Por muito que pense, não pode saber! Eu sou ainda muito novo e inexperiente, quer que eu parta consigo. sòzinhos os dois. sem que entre nós haja qualquer constrangimento, a mais pequena barreira. Por mim não sei se seria conveniente. Mudar assim de senhor. E, contudo, a sua proposta é tão ten tadora que seria preciso uma coragem que estou longe de ter, para a rejeitar, sem mais considerações. Quer dar-me tempo para reflectir?. Irei talvez aconselhar-me com Iola, que me viu nascer. Não leve a mal a minha hesitação, senhor Chantal. O senhor não pode compreendê-la.

Mais uma vez o olhar de Norberto mergulhou nas negras pupilas que o evitavam.

- Só lhe peço que tenha confiança na minha lealdade e honradez, Frederico. Quanto ao resto, não se preocupe com isso. Confie em mim até ao fim. Quanto à necessidade que todo o rapaz da sua idade tem duma companhia respeitável quando abandona o tecto familiar, deixa-me acreditar que posso ser essa companhia. por algum tempo. de resto, a nossa diferença de idade não é assim tão grande. mas conduzi-lo-ei junto de minha mãe, e nesse carinhoso ambiente verá que nenhum mal o poderá atingir. Reflita à sua vontade, mas pense antes de mais nada que, quando eu partir, ficará sòzinho em Trzy- Krôl. pobre rapazito cuja vida inteira decorrerá entre estas quatro paredes. Que ninguém compreenderá. e que eu, por muito que o deseje, nunca mais voltarei a ver.

- Tem razão - aprovou Frederico em voz baixa - O senhor afastar-se-á para bem longe e eu ficarei sòzinho. Fale a meu pai! - concluiu com firmezaNão tenho necessidade de pensar mais. Só a ideia da sua partida me causa vertigens como se um abismo profundo se abrisse a meus pés!... Só tenho um desejo: partir consigo. Ah! assim o senhor consiga obter para essa viagem o consentimento do conde de Uskow.

Devagar, a mão de Chantal procurou a mãozita infantil, e levemente. depois com mais força, estreitou numa pressão afectuosa os dedos gelados que não tentavam fugir àquele primeiro contacto. Ainda mais. Os lábios trémulos pousaram nos deditos esguios. demoradamente. castamente, numa homenagem de infinito respeito.

O conde de Uskow deu a sua autorização para a projectada viagem com muito mais facilidade do que Norberto calculara.

- É questão de meses - dissera o professorA viagem será proveitosa para o meu discípulo e arrancá-lo-á aos mórbidos devaneios a que dia a dia se entrega com maior insistência, principalmente desde que o senhor está doente. Escrever-lhe-ei pequenos bilhetes a informá-lo dos pormenores da viagem. Oh! nada de cartas extensas. seria para si uma fastidiosa tarefa! Quatro ou cinco linhas de três em trés dias serão suficientes para o pôr ao facto do que se passa, sem o maçar. Posso perguntar a Frederico se está de acordo?

O conde sobressaltou-se.

- Perguntar a Frederico? Para quê?

- Para saber a sua opinião e se lhe agrada viajar comigo.

- Sempre gostava de ver se se atrevia a ter opinião diferente da minha. Quem manda aqui sou eu e quando decido qualquer coisa, meu filho não tem mais nada a fazer senão obedecer.

Norberto aprovou com a cabeça. O conde de Uskow chegara onde ele queria.

- E em que poderia interessar a opinião do fedelho? - insistiu o pai, a quem a frase irritara.

- Frederico nunca saiu de Txzy-Krôl e vive aqui na mais completa liberdade - respondeu Chantal, que media as palavras com o maior cuidado - É natural que seu filho prefira esta solidão e independência à sujeição das cidades onde nunca viveu, o que deve assustá-lo um pouco... Além disso, deve calcular que lhe sentirá a falta...

- Oh! Quanto a isso...

- Sim, evidentemente. Esta ausência proporcionar-lhe-á um pouco de repouso... Mas seu filho não calcula isso! Por outro lado, pode considerar-me talvez severo de mais para um companheiro de viagem... Infelizmente, submeto-me em demasia às conveniências e tenho a mania de exigir que se conserve uma atitude correcta.

-Vamos, meu caro senhor, não esteja com cerimónias. Fale com franqueza! Diga simplesmente que o rapazelho é malcriado e um selvagem, e estamos de acordo.

Satisfeito com as reticências de Norberto que encobriam, segundo supunha, uma censura, para Frederico, o pai esfregava as mãos de contentamento.

- Eu bem sei que é um bruto sem a mais pequena noção de delicadeza - motejou – Quantas vezes me resistiu com a mais requintada grosseria!

O abade Geunix quis civilizá-lo, mas teve de desistir...

Todo o mal vem do mimo excessivo que lhe dava a professora francesa... De princípio também receei a sua sensibilidade, senhor Chantal. Mas quando vi que não se opunha à história do chicote, fiquei mais seguro da sua firmeza... Na verdade, posso confessar que desde esse dia se me tornou extremamente simpático.

Norberto nem pestanejou com aqueles elogios tão pouco merecidos. Contentou-se em agradecer ao conde de Uskow com ligeira inclinação de cabeça, a boa opinião que formava dele.

- As coisas nem sempre correm à medida dos nossos desejos - observou - Sou obrigado a deixá-lo justamente na ocasião em que começava a adquirir a sua confiança.

- Ah! Tenho pena, muita pena!

- E que resolução toma com respeito a Frederico?

- Oh! Só vejo uma! Leve-o, leve-o consigo. Estou farto até desse garoto buliçoso e trocista, que não me tem dado senão desilusões. Toda a gente admira o seu espírito malicioso, quando o mais sensato seria ajudarem-me a fazê-lo perder. Por causa desse maroto já quase não tenho autoridade sobre os criados. Leve-o consigo. E que não torne a aparecer-me diante dos olhos é o meu maior desejo... ensine-lhe um ofício... obrigue-o a ganhar o pão que há-de comer!  

- Nesta época de crise universal - declarou Norberto com a máxima gravidade - todo o homem tem obrigação de se tornar útil.  

-Isso mesmo! Frederico mais do que os outros, visto que eu seu pai, por possuir grande fortuna não deixo de trabalhar em prol da ciência. Mas enquanto esperamos que o garoto faça qialquer coisa de jeito, tire-mo diante da minha vista... Ah! como vou ser feliz por não o ter todos os dias agarrado aos calcanhares! Oh! oh! que coisa tão bem feita!

Os olhos brilhavam-lhe de maldade, e Norberto, que o contemplava, sentiu-se mal disposto por ser obrigado a simular aprovação à imprópria alegria do velho, com receio de prejudicar Frederico e não obter o que desejava.

- O senhor meu filho imagina que não posso passar sem ele? - continuava o conde - Supõe talvez, com a vaidade própria dos seus dezoito anos, que se me deixar ficarei como um corpo sem alma! O pequeno possui todas as ridículas pretensões da sua idade!

Quando partir leve-o consigo, senhor Chantal. E não lhe consinta expansões demasiadamente entusiásticas.

Deve ter ponderação e moderar os seus sentimentos e impressões. Contemple o progresso, admire à sua vontade as poderosas máquinas inventadas pelo homem, não para ficar de boca aberta como um basbaque diante dos cavalinhos de pau, mas para medir bem o poder do génio humano para se convencer de que ao homem nada é impossível e que foram cérebros humanos que  conceberam e realizaram todo este progresso, todo o poder dos maquinismos, todo o conforto que hoje desfrutamos e nos é tão necessário, ainda que nos afaste cada vez mais das leis naturais que presidiram à criação do homem... Que meu filho, ao menos uma vez, admire a ciência humana e que se compenetre de que foram os homens como eu, sábios entrégues às suas meditações e estudos, que do fundo dos seus gabinetes de trabalho fizeram sair a humanidade do seu invólucro primitivo e construíram o mundo actual.

A civilização moderna nasceu entre as paredes dos nossos gabinetes e quando, curvados em cima da papelada, nós estudamos e calculamos, os nossos cérebros colocam no edifício do futuro mais uma pedra, esculpida, trabalhada, que vai tornar maior o monumento da civilização universal.

O prolongado discurso do exaltado sábio fez pairar nos lábios de Chantal leve sorriso.

- Estou certo, senhor de Uskow, de que, quando tornar a ver seu filho, não o reconhecerá. Confie em mim e eu prometo transformá-lo e torná-lo simpático e amável. Quero que se sinta orgulhoso de ser seu pai e que, ao vê-lo, diga com satisfação: Esta criança da minha raça, honra o nome que usa.

- Bravo - exclamou o conde de Uskow - O programa é esplêndido, mas desde já o previno de que se ilude, senhor preceptor. Não me sinto, nem nunca me sentirei orgulhoso com Frederico, porque a única coisa que me teria dado alegria seria que ele fosse um homem alto... Ora, quanto a isso, a minha decepção foi total... e ele nada pode fazer para a remediar, o pobrezito!

- Facto tanto mais para lamentar, quanto é certo que Frederico sempre desejou agradar-lhe. O que lhe faltou foi a ocasião.

- Oh! Essa agora é inacreditável Frederico sempre desejou agradar-me! Vejo que está totalmente iludido quanto aos sentimentos de meu filho. Esse maroto não tem o mais pequeno valor, quer físico, quer moral. Tem medo da mais pequena coisa, como uma criança, comove-se como uma menina, e quando dá o seu parecer sobre qualquer assunto, fá-lo por forma tão acanhada que bem demonstra ter a inteligência tão curta como a da mãe.

- A crisálida transformar-se-á em borboleta - observou Norberto, já enervado com a constante animosidade manifestada contra o discípulo - Bastará dar tempo à metamorfose.

-Pois bem, se algum dia conseguir incutir em Frederico sentimentos e qualidades próprias do seu sexo, terei muito que lhe agradecer, senhor Chantal, porque há dezoito anos que me esforço, por obter esse resultado e devo confessar que até hoje meu filho só me tem dado desilusões.

Novo sorriso descerrou os lábios de Norberto, mas não opôs qualquer observação à enérgica afirmativa do conde.

-Quando poderemos partir, senhor de Uskow? - indagou.

-Quando quiser! Quanto mais depressa melhor. As malas de Frederico pouco tempo levam a preparar. Abrir-lhe-ei um crédito num banco de Paris e encarregar-se-á de o vestir com um pouco mais de elegância do que até hoje o têm feito os alfaiates cá da terra. Não me faça dele um snob. Desejo apenas que não envergonhe o companheiro que encontrará em si, nem o nome universalmente canherdo do pai! O filho do conde de Uskow, o célebre etnógrafo, tem de manter-se à altura dessa celebridade!

Teve um riso irónico e terminou, sarcástico:

- Pelo menos, dentro das suas possibilidades! Eu bem sei que daquele garoto nunca se fará nada com jeito!

Depois duns momentos de reflexão, sorriu a qualquer íntima visão e, esfregando de novo as mãos com alegria, monologou a meia voz:

- A viagem de meu filho é excelente, debaixo de todos os pontos de vista. para ele, que vai conhecer o mundo, e para mim, que fico livre dele. Vou aproveitar esta ausência oportuna para substituir certos elementos da criadagem. Aquela Iola, por exemplo, já está há tempo demasiado cá em casa! E Grafolw, em quem eu julgava poder confiar e que afinal no outro dia se mostrou tão bom como os outros! E Yadlow também pode ir passear, tomar ar. Jaxdotha não me convém igualmente. pessoal completamente novo será mais fácil de subjugar. Toda esta gente, como conheceu a condessa e viu nascer Frederico, imagina-se com plenos poderes em Trzy-Krôl. Trataremos de lhe mostrar que passu muito bem sem eles.

Norberto indignou-se pela maneira como o castelão punha assim à margem servidores que tinham envelhecido ao seu serviço. Em vez de reconhecer que, depois de tantos anos de dedicação, mereciam bem um pouco de indulgência, o autoritário è despótico fidalgo só pensava em lhes roubar o ganha-pão, numa idade em que lhes era difícil encontrar outra colocação.

Contudo, Norberto absteve-se de se manifestar. A sua alegria por poder anunciar ao discípulo a feliz notícia era tão grande, que não queria arriscar-se a comprometer tudo com uma compaixão que na verdade reconhecia ser inútil.

- Conforme-se, meu pequeno - anunciou com ar pesaroso a Frederico, que morria de ansiedade - Seu pai resolveu privar-se da sua companhia, e confiou-o à minha guarda para que o levasse comigo para França. Coragem e nada de lágrimas, meu filho. Partimos ainda esta semana.

Fréderico adoptou, para Lhe responder, o mesmo tom compungido do professor.

- Oh! que tristeza! - lamentou-se - Tenho então de deixar Trzy-Krôl! Decididamente, meu pai não aprecia a minha ternura! Diga-lhe que estou desolado com isso, senhor Norberto, mas diga-lho, não se esqueça!

Mas o alegre sorriso que os dois futuros companheiros trocaram, equivalia às mais entusiásticas demonstrações.

Professor e aluno punham-se a caminho poucos dias depois. Ainda que não tivesse conhecido em Trzy-Krôl muitas horas de alegria, o rapazito não abandonou a velha moradia, sem alguma comoção. O rostozinho pálido, o olhar magoado de gazela perseguida, e as lágrimas que a custo reprimia, bastavam para revelar os sentimentos que o agitavam ao afastar-se daquele cantinho onde lhe decorrera a infância.

Do pai, no entanto, despediu-se com facilidade, curvando-se respeitosamente para lhe beijar a mão, como usava fazer todas as noites.

- Adeus, Frederico, passa bem - disse-lhe o velho com frieza - Esforça-te por seguir os bons conselhos e os bons exemplos do senhor Chantal. Entregarei ao teu professor uma carta de apresentação para o senhor Marsot o conhecido erudito, que te receberá como ao filho do melhor amigo. quando regressares - se regressares algum dia - trata de me apareceres um pouco mais corado do que estás agora. Um rapaz criado em plena montanha e com essa cor de cera não faz honra nem à minha cozinha nem ao ar da região!

Tornou a estender a mão ao filho e depois voltou-lhe as costas com toda a tranquilidade. E até à hora da partida não se ocupou senão de Chantal.

Em compensação, Frederico despediu-se de todos os servidores de Trzy-Krôl e teve para cada um deles uma palavra agradável.

Também não se esqueceu dos seus bons amigos Ding e Dong. nem do vigoroso poney, fiel companheiro de tantos passeios.

Passou-lhe o braço pelo pescoço e deu-lhe amigável palmada.

- Adeus, meu velho amigo. meu companheiro das horas tristes, das horas em que muitas vezes sonhei morrer. Parto com um novo amigo, que talvez me dê maiores desilusões do que tu. Nunca te esquecerei, meu bom cavalo, e se algum dia o meu professor me causar desgosto, lembrar-me-ei com saudade de ti, que te submetias a todas as minhas loucuras, silencioso, obediente sem que alguma vez eu tivesse de me queixar! Adeus, meu velho! Quantas vezes afrontámos juntos a morte, durante as minhas perigosas correrias! E tu voavas como se compreendesses que só a velocidade tinha o poder de acalmar as revoltas do meu exaltado ser. Adeus, meu amigo. Parto sem ilusões. Sei que tornarei a voltar e talvez com mais alegria do que aquela com que hoje parto.

Para os cães teve os mesmos gestos afectuosos. Eram dois bons camaradas que lhe haviam proporcionado horas agradáveis.

Frederico, porém, só se comoveu verdadeira mente quando se despediu de Iola.

A boa mulher chorava.

-Então, meu pequeno, sempre é certo que vais partir? Vens dizer-me adeus?

- Ouve, lola - declarou, pensativo - acompanho-o com alegria!.. Se ele tivesse partido sem mim, morreria de desgosto. Só me pesa deixar-te, mas tu, que foste minha segunda mãe, hás-de esperar-me com paciência ou saberás ir ter comigo, se não tornar a voltar. porque, vês tu, Iola, há ocasiões em que pergunto a mim prróprio se ele não desconfiou já. se não tem suspeitas. se não adivinhou tudo.

- Talvez tenhas razão. Fez-me uma quantidade de perguntas que me atrapalharam bastante. Mesmo assim. nada lhe disse. Adeus, meu filho - continuou a boa mulher, lavada em lágrimas - E não me esqueças. Uma ama é quase uma segunda mãe. Esta deu-te a existência, mas eu conservei-ta e agora, que chegas a essa idade, posso dizer que se estás vivo o deves aos meus carinhos. e ao meu silêncio! Sê prudente, meu pequeno! Por mim, estou convencida de que o teu Chantal não sabe coisa alguma e é tão cego como os outros. Considera-te um bom rapazinho e mais nada! E, portanto, acautela-te. e não chores. Se teu pai te visse, não compreenderia essas lágrimas e teríamos novas complicações.

-Minha boa Iola!

Num ímpeto irresistível, Frederico estreitou-a nos braços e beijou-a com ternura.

-Nunca te esquecerei, Iola. Não sei como hei-de passar sem ti! Até hoje foste a única pessoa que verdadeiramente me estimou.

- Hum! Não tardaria que eu deixasse de ser a tua única afeição. Enfim, é a vida. Adeus, meu filho, sê feliz.

No auto que os transportava e que um criado conduzia, Norberto inclinou-se para o seu companheiro, que se conservava calado.

- Que é isso, Frederico. Está triste?

- Não - respondeu este com brandura - O que mais me custou foi ter de deixar aquela boa mulher que me criou. E depois dela, tenho pena do cavalo e dos cães. Não levo outras saudades.

Chantal soltou uma gargalhada.

- Esquece o conde de Uskow, meu jovem amigo!

- Meu pai. Ah! É verdade, tinha-me esquecido de meu pai! Sempre sou muito estouvado! Evidentemente, vai fazer-me muita falta e pergunto a mim próprio como irei substituí-lo. Julga que não será muito difícil viver sem ouvir a sua voz maviosa cumprimentando-me pela minha pouca altura e pela ausência de todos os atractivos masculinos que me faltam. Já não terei quem me repreenda nem quem me ameace com o knout!

- Sempre supus - observou Chantal com bom humor - que um chicote não era um objecto indispensável numa casa. Talvez o Frederico seja de opinião diferente.

Este sorriu.

- Quem sabe! Talvez! O knout exige pelo menos um carrasco e uma vítima que consinta em se deixar supliciar. enquanto que as outras torturas. como por exemplo as picadinhas de alfinete. as ironias. que se distribuem, sorrindo generosamente, a torto e a direito. Cheguei à conclusão de que as feridas produzidas por elas não saram com facilidade. pelo contrário.

Num impulso de compaixão, Norberto agarrou a mão do companheiro e apertou-a com carinho, como para o consolar.

- Esses remoques que tanto ferem, acabaram para si, Frederico. Em França, uma vida nova vai começar para os dois e desejo que considere a minha pátria tanto mais acolhedora quanto é certo que da sua vida desapareceram todo o constrangimento, todo o despotismo.

- Oh, bem sei, senhor Chantal

E o olhar profundo, brilhante de esperança. parecia sorrir à esplêndida aurora, tão ardentemente sonhada.

- Sinto-me tão feliz com esta viagem. tão satisfeito por ir conhecer a sua formosa França. esse país que dizem ser diferente dos outros. e tão tranquilo, também, por me encontrar junto de si.

Fechou os olhos por momentos e depois os lábios entreabriram-se numa profunda aspiração e os braços estenderam-se como para abraçar mais vastos horizontes.

-Tenho a impressão de que só hoje começo a viver. É uma ressurreição. quase um segundo nas cimento. Ah, senhor Chantal, como o céu está azul e brilhante, esta manhã! E como Deus foi misericordioso trazendo-o a Trzy-Krôl! Se não fosse o senhor, nunca teria saído daquele maldito deserto!

Norberto sorria, comovido com tanto entusiasmo. De si para si, exprimia igualmente desejos e arquitectava projectos. Mas, pelo menos por enquanto, abstinha-se de os comunicar ao impulsivo Frederico.

Foi já no comboio que este último pediu a Norberto para lhe explicar claramente os factos ocorridos em Trzy-Krôl naquelas últimas semanas.

- Não percebi nada do que se passou. Por exemplo, o incêndio dos livros. Afirmou-me que não ousaria sequer tocar numa só das obras de meu pai e, contudo, alguém as atirou para o fogão e lhes lançou fogo.

- Engana-se, Frederico. Não foram os manuscritos de seu pai que arderam. Esses, torno a repetir-lhe, eram sagrados para mim.

- O quê, então?

- Papelada sem qualquer valor.

- Contudo, reconheci as capas dos manuscritos do conde de Uskow, com os títulos feitos pela sua própria mão.

- De facto foram as capas. mas só as capas que arderam. Tanto eu como Iola levámos toda a noite a coser nos velhos manuscritos, encontrados no sótão, as capas que cobriam as obras do conde de Uskow. Em compensação, estas, cuidadosamente resguardadas com coberturas novas, continuam ainda alinhadas nas prateleiras das estantes, por detrás das cortinas verdes, onde seu pai as colocou.

- Ah! Essa agora! Nunca supus que tivessem semelhante trabalho.

- Assim era preciso, Frederico, para operar uma diversão no espírito do conde e levá-lo a renunciar ao suplício que tinha preparado.

- Mas como é que meu pai não deu pelo engano?

- Porque durante umas poucas de horas lhe preparei o espírito para uma intervenção sobrenatural a favor do filho. Uma profecia, datada de muitos séculos, perturbou-lhe o cérebro por tal forma, que o conde, ao ver a fogueira e ao reconhecer as capas, não teve uma hesitação: os manuscritos eram os dele. não poderiam çer outros!

O rapazito ficou calado por algum tempo.

-Mesmo assim, arriscou-se! Meu pai podia ter dado pela substituição.

- Nesse caso, Frederico - volveu Norberto com brandura - só me restaria o recurso de o defender e impedir que se efectuasse o atroz suplício que seu pai lhe reservava, empregando a força. Quero acreditar que não duvidou de que eu iria até ao fim.

- Sim, tinha confiança em si -- respondeu simplesmente Frederico - Quer crer que depois de o ouvir , pude dormir naquela noite sem a mais pequena preocupação. a tal ponto que nem sequer ouvi Iola entrar para trocar o meu fato pelo de veludo preto.

- Mas não foi Iola quem fez a substituição!

- Oh! Quem, então - exclamou Frederico, fazendo-se vermelho ao pensar que Norberto lhe penetrara no quarto enquanto dormia.

-Seu pai, calculo eu, porque ao interrogar Iola sobre o aparecimento do fato em cima da cama, ela me garantiu que estava completamente alheia ao facto.

- E supõe então que fosse meu pai?

- Suponho. Quem, senão ele, tinha a chave do quarto?. A porta, que examinei, tem uma fechadura antiga, complicada. Não julgo possível desaparafusá-la ou que a chave fosse fácil de imitar.

- Nesse caso deveria ter sido meu pai! Mas para quê? Não compreendo!

-Suponho que ao desejo de o fazer sofrer se misturou, no espírito do conde, um pouco de fantasia. O fato impressionaria os criados. e fá-los-ia talvez acreditar num malefício do demónio a seu favor. Os pobres diabos são bastante crédulos e aceitam com facilidade todas as superstições. Se conseguisse fazê-los crer que aquele fato era presente do diabo, aceitariam o knout com entusiasmo. Mas, repito, isto é suposição minha e talvez quisesse apenas preparar um cenário. ridículo e mesquinho, para melhor evocar as flagelações da idade média.

- Aí está um facto que bem demonstra o equilíbrio moral de meu pai.

- Infelizmente não lhe dou novidade nenhuma com isto, Frederico. Seu pai, em certas ocasiões é indiscutivelmente um inconsciente. As suas exageradas crises de furor não são mais do que ataques de loucura. o desejo insensato de castigar um filho por que ele praticou um belo acto de coragem, pode ter outra classificação?

O rapazito não respondeu. Relembrava todas as suposições feitas nos últimos dias, suposições que, a seu pesar, quase o tinham feito perder a confiança em Norberto.

- Sinto-me satisfeito por saber que os manuscritos de meu pai estão intactos. Quando ficar em estado de trabalhar, encontrá-los-á. O senhor tinha-me garantido que aquelas obras eram sagradas para si, mas eu estava certo de que haviam sido queimadas e sofria por não poder conciliar a sua afirrnativa com o testemunho dos meus olhos.

-O que vem provar que não é bom julgar os factos pelas aparências. Não lhe bastava a minha palavra, meu pequeno?

-Era justamente por não duvidar dela que não compreendia nada e cansava o cérebro para decifrar o enigma.

- Mas, digo eu agora - continuou - visto que os manuscritos existiam. por que não disse logo a verdade a meu pai quando o viu chorar de desgosto. Teria sido mais generoso sossegá-lo imediatamente.

Norberto encarou-o com um olhar de censura.

-E a ameaça do knout que pairava sobre a sua cabeça? - lembrou - Para que serviria todo o trabalho de preparar aquela cena se não a levasse até ao fim? Queria que o abandonasse?

- Tem razão Naquele dia, porém, em face do sofrimento de meu pai, já não pensava em mim próprio.

Depois, numa explosão de alegria:

-ah! como estou contente por conhecer essas coisas! Deus sabe se desejava escapar ao suplício, mas era pagar muito caro essa alegria devê-la a tão irremediável perda.

Mais uma vez Norberto admirou no seu foro íntimo a bondade do discípulo.

- O velho oráculo tudo previu, meu filho - afirmou com simplicidade.

- Oh, o oráculo, é verdade! E que dizia a profecia, senhor Norberto, posso saber?

O professor tirou da carteira delgada folha de papel.

- Aqui a tem - disse - Esperando já o seu pedido, copiei-a para lha mostrar.

Não acrescentou que a cópia estava incompleta. Faltavam as últimas quatro linhas, visto que Norberto não queria, por enquanto, abordar com Frederico certas explicações. absolutamente indispensáveis mais tarde.

- Oh, que predições tão curiosas! - bradou o rapazito, devòlvendo-lhe a folha de papel - Mas como foram elas ter à mão de meu pai, depois de tantos anos e tão a propósito!

- Prefiro dizer-lhe já que o autor da profecia fui eu. acrescentei-a no fim do caderno que continha já outras.

- E conseguiu que meu pai, habituado a decifrar manuscritos antigos, não descobrisse a origem recente das que tinha acrescentado?

-No fim do caderno havia algumas folhas em branco. Com tinta da China muito diluída, uma pena de pato e hipo-sulfato de soda bem doseado, consegui dar às que escrevi uma aparência de antiguidade, mesmo até na cor. A última página tinha exactamente o mesmo aspecto das primeiras e era impossível diferençá- las. Era preciso que o conde mandasse analisar os dois papéis para descobrir que um era mais recente do que o outro. Como é de calcular, nem pensou em tal. Os acontecimentos que profetizavam eram demasiado importantes para que se preocupasse com outra coisa.

Um sorriso aprovador acolheu esta exposição.

- Oh, Norberto - exclamou o juvenil conde. - nunca supus que fosse tão maquiavélico!

Corou de súbito ao reparar que tratara o preceptor familiarmente pelo nome.

- Oh, peço-lhe perdão - balbuciou.

Mas o outro agarrou-lhe nas mãos e apertou-as.

-Ora, Frederico. Peço-lhe que me trate sempre assim. O meu nome, pronunciado pelos seus lábios, significa tanta confiança e abandono. e depois a aproximação das nossas idades permite bem essa liberdade. Eu também lhe chamo só Frederico.

- Eu sou seu discípulo e o senhor é meu professor.

- Não. A partir de hoje o professor e o discípulo já não existem. Daqui para o futuro passarei a ser seu camarada, seu amigo, principalmente seu amigo. Diga-me, Fred, quer assim?

Um relâmpago de maliciosa alegria animou os olhos travessos.

- Fica combinado. Norberto! Pois passaremos a ser dois bons camaradas! E vamos levar até uma tal vida de estroinas, que chega a ser pena que meu pai não a possa apreciar!

Deu uma gargalhada para esconder a sua perturbação. Contudo, as pequeninas mãos não deixaram de corresponder à amigável e prolongada pressão das outras duas um pouco maiores.

Camaradas, dois amigos. E sê-lo-iam por muito tempo os dois viajantes?

- Para onde vamos nós agora - inquiriu Frederico, quando saíram, em Paris, da gare de Leste.

- Para minha casa - respondeu Chantal.

- Para sua casa - protestou com vivacidade Frederico; mas em seguida acrescentou mais calmo. - Não sabia que conservava casa sua?

- Sim, tive sempre aposentos propriamente meus. Quando os negóciios de meu pai não consentiram que os conservasse, passei-os a um amigo, que ficou encantado por encontrar uma casa mobilada, pronta a recebê-lo e ainda por cima com um criado de quarto bem ensinado e habituado ao serviço dum celibatário. Logo, porém, que meu pai me chamou para Paris, obtive por uma troca de correspondência com esse amigo, que me cedesse novamente a casa. portanto, é ali que vamos viver os dois, durante a sua permanência em França.

Uma sombra de susto passou nos grandes olhos escuros do nosso viajante:

- Vamos viver os dois. sòzinhos. uma casa em Paris?

Um relâmpago trocista fez brilhar os olhos de Norberto.

- Meu Deus, e por que não? - exclamou, contudo, com o ar mais simples do mundo - Nós dois, sim, professor e aluno, como dois bons camaradas. Vamos compartilhar a casa, prazeres e divertimentos. Não acha que assim deve ser, Frederico, entre dois amigos, dois verdadeiros companheiros que pretendem percorrer juntos todos os recantos da capital?

- Acho.- respondeu o rapazito. Mas a afirmativa foi feita sem convicção e na fisio nomia, que tomava grave expressão, lia-se uma espécie de perplexidade.

- Mesmo assim - disse pouco depois - foi pena que Iola não me pudesse acompanhar.

A ideia pareceu divertir Norberto.

- Sempre tem coisas, Frederico! Onde meteria eu uma mulher, em minha casa? Por acaso, não pode passar sem a sua ama.

- Oh, quero eu dizer. como cozinheira. ou criada de quarto.

- Sossegue - volveu o preceptor, impassível. - Baptista, o meu criado de quarto, conhece os meus hábitos. É ele quem o ajudará a vestir e pode estar tranquilo. no que diz respeito a fricções e maçagem, é um artista!

Frederico não insistiu, mas a físionomia expressiva deixou perceber uma espécie de terror.

O táxi que haviam tomado conduziu-os em poucos minutos à rua de Enghien, ao rés-do-chão onde Norberto tinha instalado dois elegantes aposentos: o quarto e a sala de fumo.

- Vá-se deitar, Frederico. Depois duma viagem tão fatigante precisa descansar.

- Deitar?

-Sim. Sirva-se do meu quarto. Ao lado tem a sala de banho. Se precisar de Baptista para lhe preparar o banho ou para o friccionar, chame.

- Mas. - atalhou Frederico com ar um tanto desorientado, ao contemplar os dois pequeninos aposentos onde Norberto pretendia instalá-lo - e o senhor. onde dorme?

- Eu? Vou estender-me no divã da sala de fumo... Podia propor-lhe para partilharmos ambos a cama, o que seria mais simples, mas detesto dormir acompanhado. Não estou habituado. Ficarei muito bem no dìvã e bastará fazer ligeiras modificações na pequena cozinha que se encontra perto, para possuir um gabinete-toucador muito apresentável. E desta maneira cada um de nós terá os seus aposentos. Está bem assim, Frederico?

- Oh, muito bem - replicou o outro com uma espécie de alívio - Penso apenas que o senhor Chantal não teria tanta maçada se tivéssemos ido para o hotel; o crédito que meu pai nos abriu é, segundo julgo, suficiente para essa despesa.

- Não se preocupe com isso - replicou o professor, cheio de indulgente serenidade - Há ainda a casa

de minha mãe onde tenho uma deliciosa irmã. E quando eu o apresentar a esses dois entes que me são tão queridos, tenho a certeza de que será recebido como um filho da casa.

Desta vez, um belo sorriso de confiança alegrou o rosto infantil.

- Assim, sim. Agrada-me a perspectiva. e tenho confiança em si, senhor Chantal.

- Vá, então, descansar, sem receio, meu filho. Quando tiver dormido algumas horas, pensaremos em escrever a seu pai, para lhe anunciar que chegámos bem.

Com efeito, à tarde, quando os dois rapazes estavam completamente restabelecidos das fadigas da viagem e bem dispostos com as recentes abluções, Norberto recordou a Frederico a carta que devia escrever ao conde de Uskow.

- Penso - alvitrou o filho deste último - que um simples telegrama nestes termos: Chegámos bem e estamos de saúde>, seria suficiente por hoje.

- Eu penso, pelo contrário, Frederico - observou Chantal gravemente - que temos de proceder por outra forma. Justamente hoje, primeiro dia da sua estada em Paris, é que tem de escrever a seu pai como deve ser. esta, sem dúvida, a primeira carta que lhe envia?

- Efectivamente - confirmou o rapaz com despreocupação - nunca me separei de meu pai e, portanto, não tive ocasião para trocar com ele qualquer correspondência.

- Pois bem - continuou o francês, conservando o seu ar de serenidade -é preciso que esta primeira carta seja sincera e leal.

- Mas não tenho a intenção de escrever a meu pai qualquer coisa menos exacta! - observou Frederico, admirado.

- Talvez. Dispõe-se com certeza a terminar a carta com estas palavras clássicas, ou outras análogas: Seu filho, muito afeiçoado.

- Sem dúvida.

-Pois eu creio, Frederico, que é preciso ter a coragem de escrever uma carta verdadeira.

- Não compreendoabsolutamente nada. declarou Frederico, um pouco interdito.

Norberto sorriu.

-Vou ajudá-lo a redigir, quer?

- Oh, se quero! Quando se trata de redacção sou terrivelmente preguiçoso. e para mais, duma carta! Mas não vejo de que poderemos falar-lhe, além da viagem, do calor que fazia no comboio, do movimento intenso das ruas, da altura dos prédios parisienses e da elegância dos seus habitantes. Que mais poderemos dizer ao meu ilustre progenitor, senão isto?

- Coisas mais interessantes - insistiu Norberto alegremente - Vamos tentar, quer?

Colocou uma folha de papel diante do rapaz e este, dòcilmente, depois de molhar a caneta, cravou no companheiro um olhar cheio de confiança:

- Pode começar, Norberto. Estou pronto!

E o professor, novamente sério, ditou:

Meu querido pai

É esta a primeira vez que lhe escrevo porque, como nunca nos separámos, nunca tive ocasião para o fazer.

Não quero, portanto, começar esta estreia epistolar por uma mentira, encobrindo-me com uma personalidade que não é a minha.

Surpreso, Frederico parou de escrever e olhou para quem ditava tais palavras.

- Não compreendo - disse um pouco perturbado.

-Continue, continue, Frederico! Já vai perceber onde eu quero chegar.

Mordendo os lábios, um tanto inquieto, voltou a pegar na caneta.

Estando perto de si, meu pai, nunca teria a coragem de lhe confessar o que vou dizer.

O seu enorme valor moral intimidava-me e o desprezo altivo que manifestava pelo sexo a que pertencia minha mãe, paralisava-me a língua.

- Então, Frederico! Por que fica de caneta no ar?

Perturbado, comovido, Frederico parecia assustado.

- Não. não sei. Para que me obriga a escrever estas coisas, senhor Chantal?

Este último pousou-lhe suavemente a mão no ombro.

- Assim é preciso, Frederico. Seu pai está longe. não sofrerá as consequências da sua cólera. Vamos, coragem, meu pequeno! Estás aqui junto de mim, ao abrigo das iras paternais.

- Afirmo-lhe que se engana. eu. eu não temo coisa alguma.

- Bem. Se me tiver enganado, rasgaremos a carta depois de escrita. Mas torno a dizer-lhe, Frederico, que tenha confiança em mim. Entre nós não deve haver equívocos.

Viu de súbito brilhar uma lágrima nos belos olhos inocentes que o fixavam.

- Vamos! Que sensibilidade a sua! Quer comover-me. a mim também?. Continuemos, sim?. E não chore! Isto tinha de ser, Frederico.

- Oh! Nunca supus que exigisse de mim tal coisa!

- exclamou o discípulo - Preparou-me uma armadilha! Se tivesse podido calcular, nunca o teria acompanhado.

Parecia um pobre animal encurralado pelo caçador.

- Silêncio, meu amigo, silêncio! Assim era preciso, repito. As coisas tinham de retomar a sua ordem normal. Não podia ficar toda a vida o Frederico, rapazinho débil e enfezado! Era uma exigência disparatada! Tenha confiança em mim e continuemos a carta.

Tantas vezes me censurou por ser um ente fraco, sem força física, de corpo débil, e pequeno de estatura, que nunca me atrevi a dizer-lhe: Não sou o que julga. Meu pai não tem um filho. O conde de Uskow não tem herdeiro.

Compreenda-me, meu pai, e não me fulmine com a sua cólera; sou apenas uma rapariga.

O conde de Uskow é pai, de facto. mas pai duma filha!

Quantas vezes estive para lhe bradar: Ame-me tal como sou e não como desejaria que fosse! Seja bom e não repila aquela que só deseja um pouco de afeição em troca do seu imenso carinho.

Era tão conhecido o seu desejo de ter um filho, que ninguém em Trzy-Krôl, quando eu nasci, se atreveu a dizer-lhe que a criança que acabava de vir ao mundo era do sexo detestado. Minha mãe morreu, vítima do susto e do terror, tanto receava a sua cólera. Para me salvarem a vida, o médico e a boa Iola tomaram a responsabilidade duma mentira que se manteve durante dezoito anos.

Neste ponto, Frederico tornou a parar:

- Iola?. Não pensou, senhor Chantal, que meu pai, num impulso de cólera, é capaz de a matar.

-Ao contrário, pensei, e tanto assim que, mal deixámos Trzy-Krôl, a boa mulher abandonou o castelo por sua vez.

- Iola já não está em Trzy- Krôl?

- Não- Já tinha idade para descansar. Acolheu-se a uma modesta pensão, à espera que a chame para junto de si ou que a Providência. permita que regresse à sua casa, de cabeça levantada.

- Oh! Isso não! - exclamou Frederico numa espécie de soluço - Nunca mais voltarei a Trzy-Krôl, se esta carta, que me obrigou a escrever, chegar lá. Meu pai matar-me-á. Ou, se por acaso me deixar a vida, tornar-me-á tão dolorosa, tão desgraçada, que não terei outro recurso senão o suicídio. Parece-me que o senhor Chantal só viu o lado romanesco desta confissão. Não ignora que aquele de quem dependo não sabe perdoar nem esquecer.

Quando acabou de falar sentiu de novo a mão de       Norberto pousar-lhe no ombro frágil.

- Pensei em tudo isso, Frederico, e creia que a sua segurança me é tão cara como a minha própria vida. Talvez me engane, mas calculei que a afeição que tenho por si é suficientemente forte e poderosa para o defender de todo o mal que possa atingi-lo. Lembre-se de que no dia em que, depois dum desacordo entre nós, eu quis deixar Trzy-Krôl, me declarou que se eu partisse só lhe restaria morrer de desgosto. Fui talvez vaidoso em tomar essas palavras à letra; mas desde esse dia dei- lhe o melhor lugar na minha afeição. O meu coração pertence-lhe. Se as minhas esperanças se realizarem, se os projectos que faço para o futuro se transformarem numa esplêndida realidade, não regressará a Trzy-Krôl sòzinha. Entrará ali apoiada no braço forte dum companheiro fiel, em quem depositará toda a sua confiança!

Frederico, muito comovido, ocultando nas mãos o rosto inundado de lágrimas, soluçou:

-Oh! Norberto, por que razão só agora me diz essas coisas? Por que não me falou antes de partirmos?. Estou por tal forma surpreendido com o que me acontece! Tinha adivinhado, compreendido o meu segredo e continuava a tratar-me como um rapaz.

- Duvidei por muito tempo. A sua presença perturbava-me. Os seus grandes olhos ingénuos e puros deixavam entrever o céu ao pobre isolado que eu era. Mas nada me provava que as minhas desconfianças fossem justificadas. Duvidava sempre. Parecia-me uma coisa tão impossível! Certo dia, porém, o seu pescoço muito branco, os pulsos delicados, foram para mim uma revelação. Mais tarde, aquele banho forçado. no lago, para sálvar a vida duma criança. e que tomou vestida, confirmou as minhas suspeitas. Desde essa ocasião. Frederico, deve lembrar-se de que não tornei a tratá-la como um rapaz. nem mesmo como um discípulo. E quantas vezes tive de reprimir violentamente os meus sentimentos para não me ajoelhar a seus pés e confessar-lhe todo o meu respeito, toda a minha adoração. É talvez cedo para lhe falar no futuro, mas está a chorar. que receia? É esse futuro que lhe mete medo? Eu não posso vê-la chorar! Não quero que se apoquente. Quero apenas dizer-lhe tenha confiança em mim. Farei tudo quanto possa para a tornar feliz. seja de que maneira for. ainda que tenha de sacrificar à sua a minha própria felicidade.

Chantal calou-se. A profunda e intensa comoção que o dominava não o deixava continuar. Além disso, reconhecia-se impotente para desviar o curso dos acon tecimentos que o arrastavam.

- Não receia - inquietou-se Frederico - que o conde de Uskow, ao receber esta carta, se meta no conboio e venha a Paris para se vingar de ter sido enganado. para me punir pelo meu prolongado silêncio?

Teve um frémito de horror e depois acrescentou em voz mais baixa:

- O nosso velho médico já morreu. meu pai nada pode contra ele, mas pode ainda alcançar Iola e arrastá-la aos tribunais. acusá-la de qualquer crime imaginário. duma troca de crianças, por exemplo, ou então matá-la como quem mata um cão danado. E a mim? Já pensou no que ele me poderá fazer. protegido pela lei que concede ao pai todos os direitos e toda a autoridade sobre os filhos?

-Não! O conde de Uskow não se entregará a semelhantes excessos, que recairiam sobre ele. Sabe muito bem que não pode tirax a vida a um criado que lhe caiu no desagrado... Quanto às outras suposições, também não me parece que lance mão desses meios.

Se acusar Iola de qualquer monstruosidade, esta poderia defender-se, apodando-o de louco... e, como deve reconhecer que de facto praticou alguns... actos lamentáveis... evitará levar Iola aos últimos extremos...

Quanto a si... Não estou eu aqui, Frederica... quem poderá atingi-la, enquanto eu viver?

Frederica - podemos dar-lhe este nome feminino, visto já sabermos qual o seu verdadeiro sexo – tentou recuperar a calma e tranquilizar-se. Estava também muito reconhecida a Norberto pela forma reservada como acusava o conde de Uskow. Por outro lado, não podendo por mais tempo manter perante o seu companheiro a mentira a que o medo a constrangera durante longos anos, tomoú, e até com certa alegria,    o partido de se instalar muito simplesmente no papel de rapariga.

-Em Paris posso usar o trajo do meu sexo? informou-se com timidez - Usei sempre o cabelo comprido. Mas poder envergar um vestido... calçar meias finas e sapatos leves... ser, enfim, mulher; dar-me-ia um prazer infinito.

- Já ia propor-lhe isso mesmo - replicou Chantal, que se sentia perturbado com a perspectiva de ver Frederica vestida de rapariga - daqui a pouco iremos os dois deitar no correio a carta, para       o conde de Uskow e enquanto esperamos pela hora do jantar, poderemos ir escolhendo alguma roupa interior e um ou dois vestidos já feitos e amanhã se encomendarão outros ao costureiro.

Os olhos de Frederica brilhavam de prazer. A sua garridice começava a despertar com a simples evocação desses farrapitos que tanto encantam as mulheres e dos vestidos que iria escolher.

- Oh! Norberto - confessou com a graciosa franqueza duma criança entusiasta - Parece-me que nunca mais me cansarei de encomendar vestidos... Deve ser tão divertido mudar de vestuário a todo o instante!

E tenho que tirar a desforra de tantos anos perdidos.

Alguns dias bastaram para transformar Frederico em elegante rapariga. Faltava-lhe, é certo, o hábito de usar saias e notava-se-lhe pouca habilidade para certos gestos que só a prática torna possíveis, como por exemplo, conservar constantemente e com graça a carteira na mão e ter nos ombros, sem ser presa, a raposa, comprida e sedosa, sempre pronta a escorregar.

De resto, todos estes desaires eram para ó seu feitio travesso motivo para riso.

Os sapatos de salto alto, que lhe provocavam repetidos desequilíbrios, divertiram-na em extremo.

-Faz-me o efeito de estar empoleirada numas andas! - dizia, rindo, para Norberto, e dando passi nhos curtos no chão encerado - Ponha aqui os olhos, meu grande amigo. Não acha que a minha primitiva educação me preparou o mais possível para estas elegâncias?

Ele contemplava-a com admiração e encantado com o aspecto interessante que o novo trajo revelava.

- É deliciosa, Frederica! Capaz de tentar um santo!

- Não seja lisonjeiro, Norberto! - protestava com severidade, depois de nova e desastrosa escorregadela que obrigara a agarrar-se a ele para não se estender ao comprido.

Mas o rapaz, que por momentos tivera nos braços o corpo encantador, não podia esconder a sua pertur bação.

- Repito, é a mais deliciosa desastradinha que tenho conhecido - insistia, devorando-a com os olhos.

O meigo rosto de timida expressão cobria-se de rubor e, durante alguns instantes, Frederica, muito séria, andava prudentemente ao ládo de Chantal, empregando todos os esforços para não perder mais uma vez o equilíbrio.

A resposta do conde Uskow chegou pouco tempo depois da remessa da reveladora missiva.

A carta tinha certa originalidade, segundo afirmação de Norberto, a quem era dirigida.

Então Frederico é uma rapariga! - escrevia ele - Aí está, palavra de honra, uma partida que eu não esperava do filho que me deixou a idiota da minha mulher. Uma rapariga! Afinal o rapaz não passava duma rapariga!     É claro que este incidente veio modificar todas as disposições que eu tinha tomado para o futuro desse maroto.

Um rapaz, mesmo minúsculo, ainda vá, mas uma rapariga! Nem por sombras! Não! Não estou para ver Trzy-Krôl transformado em império de saias e que nele volte a reinar uma era de alegria.

Enquanto eu for vivo, minha filha - sou obrigado a falar assim - não tornará a entrar em minha casa. Está muito bem em Paris, o chamado paraíso das mulheres. Que se deixe lá estar. e siga o destino que mais lhe agradar. Para mim, não quero tornar a ouvir pronunciar o seu nome.

Se a sua alma entusiástica e regeneradora quer ter a bondade de se ocupar dela até que se esgote o cheque que lhe dei e que não tornarei por certo a renovar, ela que lhe agradeça esse favor com todo o reconhecimento de que a alma feminina é capaz. Talvez depois Frederica possa ganhar a sua vida, fazendo exercícios equestres num picadeiro ou habilidades no circo.

Em todo o caso, se não lhe convier qualquer dessas situações tão adequadas às suas aptidões resta-lhe ainda o recurso de aproveitar o seu talento no campo da natação, como professora numa piscina ou em qualquer praia. A maior parte das suas semelhantes - refiro- me às criaturas do mesmo sexo - não têm tantos recursos a que lançar mão e Frederica deve agradecer à Providência o ter nascido em Trzy-Krôl, onde aprendeu coisas tão belas e tão úteis. por que foram bem estas as palavras com que classificou o salvamento do pequeno maltrapilho, há-de haver dois meses, não é verdade, mestre Norberto?

E enchia ainda mais duas folhas de papel com este fraseado irónico e desequilibrado.

O conde de Uskow não parecia muito admirado por o filho ser uma rapariga, mas, em compensação, mostrava-se extremamente ofendido por esta ter apelado para os seus sentimentos paternais.

A pretensão de Frederica, de amar e ser amada por seu pai, afigurava-se-lhe na verdade um desafio insensato e pedia a Chantal que, ainda que tivesse de cortar a mão a essa estúpida da sua raça, não consentisse que ela o importunasse com tão ridícula correspondência.

Depois da leitura desta carta, Norberto ficou pen sativo e Frederica, que julgava reconhecer num dos sobrescritos as garatujas do pai, perguntava a si própria qual o conteúdo da carta, para que o seu antigo preceptor tomasse tão grave aspecto.

Como o olhar deste último cruzasse com as pupilas interrogatórias da rapariga, Chantal pareceu hesitar.

- Afigura-se-me mais conveniente, Frederica, pô-la desde já ao facto da carta de seu pai. Não gosto de a entristecer, mas não quero também que passe os dias a espreitar o correio ou a fazer as piores suposições.

-Meu pai exige que volte para junto dele? inquiriu, assustada, fazendo-se extremamente pálida. Norberto sorriu, radiante pelo receio instintivo de Frederica.

- Não, minha amiguinha. Seu pai nem pensa em a obrigar a regressar a Trz-Krôl. Pelo contrário! Mas aqui tem! Leia a carta e ficará conhecendo a sua situação. pelo menos aquela que o conde lhe deseja!

Quando acabou de ler a extraordinária missiva do pai, Frederica ficou por sua vez silenciosa e pensativa.

- Nesse caso - disse por fim - o conde de Uskow desinteressa-se de mim?

- Infelizmente!

- Abandona-me. sem dinheiro e sem apoio!

- Oh! Frederica! E então eu?

- Sim, bem sei que posso contar consigo! Contudo, não é decente que uma rapariga da minha classe e da minha idade habite em casa dum rapaz solteiro e lhe confie a organização do seu futuro.

- Entre amigos é natural, Frederica.

Hesitou, fez-se muito corada e depois observou corajosamente.

- Entre pessoas de sexo diferente não é admissível, bem o sei. Perdoe-me, Norberto, mas confesso que me sinto de súbito constrangida com o oferecimento monetário que acaba de me fazer. Desejaria que entre nós nunca se falasse em tal coisa.

-Pois não se fala, acabou-se. De resto não é assunto urgente, visto que o senhor de Uskow, com o cheque a que alude na carta, assegurou a sua vida por muitos meses.

Frederica abriu a boca na intenção de se informar da totaliddade da importância posta à sua disposição, depois arrependeu-se. Aquelas questões de dinheiro repugnavam-lhe e preferia ignorar tudo a parecer que suspeitava de Chantal.

A breve meditação deu tempo a este para tomar uma resolução sobre um assunto em que empenhara a alma e a que se decidira desde que havia lido a carta do conde de Uskow.

- Frederica - disse-lhe, tentando reprimir a comoção que o dominava - tinha resolvido esperar que conhecesse meus pais, para lhe falar do futuro. É evidente que minha mãe saberia melhor exprimir-lhe o que tenho a dizer.

Frederica olhou-o.

Viu-o comovido, perturbado e percebeu que hesitava, que procurava termos apropriados.

Julgando compreender, corou e, para esconder a sua perturbação, começou a rir.

Creio que devemos responder a seu pai - continuou - Não é essa a sua opinião, minha amiguinha?

-É preciso responder-lhe, sim. mas que lhe diremos?

-Ora aí está! É isso que me obriga a falar imediatamente.

Hesitou de novo. Devia ser muito difícil de exprimir o que tinha para lhe dizer.

- Que diria a Frederica se propusesse a seu pai casá-la?

Esta teve um sobressalto e o colorido do rosto acentuou-se.

- Seria uma coisa muito engraçada - afirmou, pouco à vontade.

- E inesperada. também. Parece-me que desta vez o conde de Uskow se veria em sérias dificuldades para responder.

- Quer colocar meu pai em embaraços? Não pense nisso. Receie antes a sua ironia.

Ele atalhou:

-Quero, principalmente, fazer-lhe sentir que a crueldade da sua carta não a contristou. Se ele a repudia, outros braços se abrem para a acolher. e se ele a despreza porque é múlher. existe alguém a quem esse facto dá imensa alegria e a ama. justamente porque é mulher.

Não se atreveu a encará-lo quando lhe respondeu:

- Mesmo que seja mentira, pode-se mandar dizer isso a meu pai.

A fisionomia de Norberto exprimiu um pouco de tristeza.

-E não acredita, Frederica, que possa ser verdade?

- Não, não acredito. Uma rapariga que ninguém conhece. sem fortuna. sem posição. e quase sem família? Não, não admito que qualquer homem possa pensar em mim.

- Oh, Frederica! Então não compreende? Eu, por exemplo, seria tão feliz se quisesse considerar-me como candidato à sua mão.

Sem bem saber porque ria, Frederica soltou nova gargalhada. Talvez apenas para esconder a sua perturbação.

- Que boa ideia, Norberto - afirmou, entretanto - Vamos imediatamente escrever a meu pao, pedindo-lhe o seu consentimento. Oh! como vai ser engraçado! Desta vez proponho que seja eu quem dite a carta. Cabe-me agora a vez de anunciar ao autor dos meus dias notícias sensacionais.

Norberto encarou-a, um tanto desapontado.

- Nunca supus - observou em voz lastimosa - que os meus projectos lhe parecessem tão divertidos!

Um relâmpágo de malíciailuminou os grandes olhos escuros que o fitavam.

-Não creio, Norberto, que fizesse a declaração com o fito de me contristar. Encarei-a como uma comédia e como tal achei-lhe graça.

- Não supôs então que as minhas palavras pudessem ser simceras? - volveu com certa dureza.

- Oh! E por que não? - exclamou no mesmo tom alegre - Para mim é muito mais agradável supor que falava verdade! Asseguro-lhe que lisomjeou infinitamente a minha vaidade. vai ver à forma espirituosa como vou comunicá-lo a meu pai.

Norberto não respondeu, mas olhou-a com tal seriedade que ela se sentiu perturbada.

- Vamos começar, sim? - propôs com menos firmeza - Vamos. Sente-se agora ali. aqui tem papel e caneta.

- E é na verdade tudo quanto tem para me responder - inquiriu pausadamente.

- Por agora é. Cada coisa a seu tempo. Neste momento trata-se apenas de escrever a carta que vou ditar.

- Seja - acedeu, depois de breve silêncio.

- Aqui está o papel e a caneta - repetiu, impassível, como se não reparasse na sua expressão contristada.

Chantal fez um gesto de ironia.

-Sempre quero ver o que vai obrigar-me a escrever!

- Verdades, mais nada!

- Verdade, só conheço uma que se recusou ouvir.

-Porque devo ter juízo por dois... visto que o meu amigo não tem nenhum.

- Oh! É capaz de dizer isso?

-Sou, e então? É preciso respeitar os usos, as tradições, todo o cerimonial habitualmente seguido nestes casos. Mas o meu caro mestre quer caminhar muito depressa e atropela tudo.

- Diga-me apenas que não lhe desagrada a minha inpaciência e estarei por tudo quanto queira! Minha adorada Fred, tenha dó de mim.

A rapariga começou a rir.

- Pois se já lhe disse que estava encantada com a sua declaração. Que mais quer?

-É que diz essas coisas duma maneira!

- Ah! E preciso arranjar um ar solene?. Principiemos a escrever a carta e depois veremos se consigo arranjá-lo.

O garoto endiabrado doutros tempos não morrera ainda nela, segundo parecia, porque quanto mais Chantal se mostrava amuado, mais Frederica parecia satisfeita.

Preocupado, Norberto não deu réplica às maliciosas observações. Com a caneta na mão esperava que começasse.

Frederica voltou a perguntar:

- Está pronto?

- Estou.

A expressão lacónica deste estou fê-la sorrir, mas não se deixou comover.

- Vou principiar - anunciou.

E passeando de cá para lá, de braços cruzados, o pensamento ocupado apenas em encontrar as frases adequadas, ditou as seguintes palavras:

Meu caro senhor

A sua carta não me surpreendeu. Conhecia bem a sua animosidade contra o sexo fraco para não esperar a sua revolta. ou então teria sído preciso que sua filha, noutros tempos, tivesse sabido conquistar a sua estima.

Desejei poupar-lhe a decepção que Frederica lhe causou com a sua tardia confissão, mas aqela boneca teimosa e sem miolos quis por força comunicar-lhe a desagradável notícia e eu não tinha o direito de me opor à sua vontade.

Muito admirado, o rapaz parou de escrever.

-Mas, Fred, nem uma só palavra do que estou escrevendo é verdadeira.

- Bem sei - ripostou.

E sentenciosamente:

- Mas isso é comigo. Continuemos, mestre. Escreva!

As sugestões sobre o futuro de sua filha teriam a minha mais completa aprovação, se não temesse que a sua ridícula falta de experiência a obrigasse a cometer tolices sobre tolices que comprometeriam a retumbante glória do nome de Uskow.

Não acha que o mais urgente seria algemar Frederica com as cadeias do matrimónio. De Trzy-Krôl ao casamento não teria ocasião para fazer das suas, nem de contrair hábitos de independência. Na sua idade, um bom marido, quero dizer, um homem de pulso, com vontade firme, poderia domíná-la com facilidade.

- Oh! Fred! - protestou Norberto -Mas não tenho a mais pequena intenção de a subjugar! Pelo contrário, só quero adorá-la e satisfazer-lhe todos os desejos!

-Ora é a isso justamente que chamo um homem de vontade firme. Sabe perfeitamente e de antemão que é incapaz de proceder senão por forma que me agrade.

- Oh! minha querida. Quanto lhe quero e como admiro a sua subtileza.

-O Norberto deve saber também que um noivo respeitoso não fála com tanta liberdade.

-Acaba de dizer admiráveis verdades, meu amor. mas se um noivo não tem o direito de dizer tudo quanto pensa, parece-me que pode, pelo menos, beijar a sua amada.

E como se inclinasse para o lado de Frederica, esta, muito corada, levantou-se dum salto.

-Então, Norberto! Nunca supus que tivesse tão extravagantes pretensões! Previno-o de que, se passa das palavras aos actos, me vou fechar no quarto!

-Seria um desagradável contratempo, porque a nossa carta ficaria por terminar!

- Oh! Poderia muito bem ditá-la de lá. Estes aposentos são tão ridiculamente pequenos, que mesmo no quarto ouviría o rangér da pena correndo sobre o papel.

- Mas se não estiver ao pé de mim, perderei a vontade de escrever.

- Isso é um bocadinho de chantagem e entre nós não é permitida. Tenha juízo e acabemos com isto depressa. Onde estávamos nós?

- Ela dominaria sem custo um marido apaixonado...

-O quê? Não foi isso que ditei!

- Se não ditou. pelo menos pensou-o, com certeza.

Frederica, por cima dos ombros de Norberto, leu a carta.

-Vejamos, Norberto, não esteja a brincar. Faz-nos perder um tempo precioso. Não se trata agora, na carta, de maridos apaixonados.

-Se não se trata de amor, minha querida, que somos nós um para o outro, então?

- Um preceptor muito autoritário, muito cioso das suas prerrogativas, e o discípulo, um rapazinho muito indiscíplinado, muito independente. Se isto não chega para os nossos dois heróis se entenderem, que mais será preciso. Mas basta de conversa! Pegue na caneta e continuemos.

Ele suspirou com afectação.

- Obedeço, pois é a melhor maneira de me impor!

Desta vez foi Frederica quem começou a rir.

-Meu bom amigo, não se pode negar que tem verdadeira vocação para escritor de cartas!

- E ainda por cima faz troça de mim! - replicou alegremente Chantal, atirando-lhe um beijo nas pontas dos dedos.

-Dizíamos, então: Um bom marido poderá dominá-la com facilidade. Escreva:

Estou mesmo disposto a ser esse marido. se me julgar com energia suficiente para manter Frederica dentro das normas convenientes.

Por meu lado, ficaria encantado em ser um seu humilde servo, senhor conde; lamento apenas, com profundo desgosto, que a minha mediocridade não esteja à altura do seu génio...

- Agora assine - determinou a rapariga - e acrescente-lhe este P. S.

  1. -S. - Enquanto não tiver o seu consentimento não falarei a Frederica neste projecto de casamento. Talvez ela não queira aceitar um matrimónio tão rápido, justamente quando Paris llhe oferece as mais belas perspectivas; mas se tiver em meu poder a sua autorização por escrito e devidamente legalizada como o exigem em França, saberei obrigar sua filha a compreender que não é conveniente rejeitar uma solução tão vantajosa para ela. - Ora aí está! Magnífico! Agora, Norberto, se achar bem, termine com uma fórmula qualquer de delicadeza. Meu, pai ficará encantado com a carta e cõm a proposta.

Chantal voltou a ler vagarosamente a singular epístola que Frederica acabava de lhe ditar.

-É evidente - observou, pensativo - que nunca teria empregado semelhantes argumentos para pedir a sua mão ao conde de Uskow... Estou até convencido de que, em França, um pedido feito em termos idênticos, seria irremediavelmente rejeitado... Todavia, seu pai é tão extraordinàriamente diferente dos outros pais, que não duvido de que estas razões obtenham melhor êxito do que aquelas que eu poderia empregar.

- Meu pai ficará satisfeitíssimo por alienar a minha liberdade por forma tão rápida, principalmente se julgar que isso me desagrada.

-O conde de Uskow pode pensar assim. Eu, porém, sonhei outra coisa quando a vi, Frederica.

- O quê, então?

Apesar da sua firmeza, a voz traía súbita e intensa comoção.

É simples - prosseguiu Chantal - Sonhei com uma união muito doce, muito leal... uma completa comunhão de sentimentos e de pensamentos... Ah! Se soubesse, minha adorada pequenina, os sonhos de felicidade que arquitectei desde que adivinhei que era mulher...

Ela meneou a cabeça, pensativa.

- Bem sei - disse com voz sonhadora - O senhor é bom e generoso e o seu belo coração pensou imediatamente que seria uma boa acção arrancar-me à miséria moral em que vegetava em Trzy-Krôl... a tarefa era tão bela que a sua alma nobre não hesitou.

- Que vai agora imaginar, meu amor?

- O que qualquer pessoa pensaria, principalmente agora... Meu pai repudia-me, abandona-me sem recursos... Dentro em pouco encontrar-me-ei sòzinha neste turbilhão de Paris e terei de ganhar a minha vida... Por outro lado, como não tenho habilitações e não conheço ninguém, não posso esperar senão a miséria...

- Frederica! - tentou interromper Norberto.

- Não - opôs com brandura - deixe-me expor o meu pensamento até ao fim... Portanto, como a miséria me espreita, não tenho outra solução pára lhe fugir senão aproveitar a sua generosidade e valer-me dos sentimentos que lhe inspirei. E, então, nada de hesitações. Sem perder um só instante e mesmo antes de conhecer sua mãe - visto que só amanhã a verei - trato de agarrar um marido. obrigando-o a escrever a meu pai e a considerar-se meu noivo. Está tudo muito bem arquitectado e para uma rapariguita que nunca abandonou a sua aldeia encravada nos confins dos Cárpatos, não se saiu mal da empresa.

- Não posso continuar a ouvi-la, Fred. Está a dizer abominações!

- Isso sim! Verdades, mais nada. Qualquer pessòa pensaria desta maneira! E é preciso que esteja cego, senhor Chantal, para não ter percebido tudo há mais duma hora.

Levantou-se exaltadíssima.

Exactamente como outrora, no parque de Trzy-Krôl, quando o impetuoso rapazito abandonava subitamente o professor assombrado com a imprevista mudança, o desespero invadiu Frederica e nem mesmo diante de Norberto conseguia dominá-lo.

E por se ver fechada nos dois exíguos aposentos e por ter de constranger fisicamente as manifestações do seu enervamento, infinita angústia a oprimiu e começou a soluçar convulsivamente.

Chantal, aflito, precipitou-se para ela:

- Então, Frederica! Acalme-se, meu amor! Bem sabe que a amo e que a conheço bem para não fazer tais suposições. Para que está a quebrar a cabeça com semelhantes bagatelas. Pedi-lhe para ser minha mulher. recambiou-me para seu pai: Era normal e assim dava-me também o seu tácito consentimento. Não calcula como me sinto feliz agora.

- Mesmo assim há-de pensar que agarrei a ocasião pelos cabelos. Peguei-lhe muito depressa na palavra!

-Não pense em semelhantes disparates, minha adorada pequenina. Já me ouviu, por acaso, uma palavra que significasse tais dúvidas? Ou não consegui fazer-lhe compreender quanta alegria me dava? Consinta em ser minha mulher, Frederica; é a única coisa que lhe peço e não me canso de lhe repetir.

Podia continuar a falar assim por muito tempo. A pobre pequena nem sequer o ouvia. Com o rosto oculto na curva do braço, encostara-se, prostrada, á mesa, e soluçava dolorosamente.

Então com infinita meiguice, o rapaz puxou-a para si e embalando-a como se fosse uma criancinha, tentou acalmar aquele fundo desespero.

- Meu amor! Não chore mais! Qual o motivo dessas lágrimas e desse desgosto tão grande?! É por causa da carta que me ditou? Mas se quer, rasga-se e escrevemos outra. cem ela até, se for preciso! Contanto que não chore mais e não esteja assim desesperada!

Perturbado pelo contacto daquele corpo esbelto e impulsionado pelo desejo de a convencer e de a ani mar, Norberto estreitou-a com ardor. Por fim, pousou os lábios na cabeça inclinada.

Através da farta cabeleira, Frederica sentiu a discreta carícia; então, devagar, endireitou-se e desprendeu-se dos braços demasiadamente envolventes.

- Deixe-me, Norberto, e desculpe as minhas lágrimas. É a primeira vez que ao ser atingida por um desgosto eu tenho de o expandir, encerrada entre quatro paredes. Noutros tempos, nessas ocasiões, eu e o meu cavalo corríamos sem destino, até que a calma voltasse à minha alma impetuosa. Perdoe-me. A carta de meu pai causou-me profunda dor que eu desejava esconder. Quis aparentar coragem, supondo que bastaria rir e gracejar para dominar o meu desgosto. Mas não         podia mais. é muito doloroso o facto dum pai abandonar uma filha, só porque é mulher, sabendo que ela não pode prescindir dele para viver.

- Minha pobre pequena, para que se está a apoquentar com essa carta. Não sabia já que o conde de Uskow pensa e procede por modo diferente de todos os outros homens?

- Sabia. Mas não esperava da parte dele um tal rancor! Ser obrigada a dizer que não tenho ninguém no mundo! Ontem ainda tinha pai, um lar, um refúgio. Por muito cruel que fosse o conde, olhava por mim. Tinha título, nome, fortuna e o futuro assegurado. e de repente deixei de ter tudo isso! Porque o destino quis que eu fosse mulher, sou amaldiçoada e todos me abandonam! O meu futuro depende da piedade qqe lhe inspirei!

Lentamente, enquanto ela falava, Norberto ajoelhou-se-lhe aos pés, passou-lhe os braços pela cintura e puxou-a para si, de forma que a cabeça lhe roçava pela saia da rapariga. e, apaixonadamente, deixou falar o coração:

- Frederica, não queira causar-me remorsos. fui eu quem a obrigou a escrever a carta! Julguei que o inesperado da notícia modificaria seu pai na maneira de proceder para consigo.

Tinha reparado que dia a dia se mostrava mais agressivo para si e supus que fosse movido, pela instintiva inveja do pai que envelhece e vê filhos em plena mocidade. Talvez, passasse a ser indulgente para uma filha. Era uma fraca esperança, mas convinha tentá-la. Enganei- me. O conde de Uskow não pode gostar de ninguém. O seu cérèbro doentio só pro jecta maldades e vinganças. É um desgraçado demente. um irresponsável, por certo! Estou contentíssimo por ter podido arrancá-la às suas garras. Contudo; o meu grande erro foi não lhe ter declarado o meu amor e oferecido o meu nome em seguida a tê-la obrigado a escrever a confissão a seu pai. Queria que conhecesse primeiro a minha família. e queria, principalmente, que usando o trajo do seu sexo se compenetrasse da dignidade que ele lhe confere; desejava, também, dar-lhe tempo para reflectir e não a obter por surpresa. e ainda dar-lhe ocasião para comparar e escolher marido com toda a liberdade. Nunca imaginei que a inverosínil resposta de seu pai viesse precipitar os acontecimentos.

Ao ouvi-lo, Frederica pouco a pouco levantou a cabeça e enxugou os olhos. Agora tentava sorrir-lhe.

-Não compete a uma rapariga decidir do seu futuro. principalmente a uma rapariga da minha raça. do meu país! Os nossos próprios criados, quando querem casar, antes de dizerem o sim tradicional, vão ter com o amo de quem dependem, para obterem a sua autorização... Creia-me, Norberto, a carta que lhe   ditei será talvez uma espécie de mistificação com que correspondo às lucubrações de meu pai, mas é também a melhor forma de obter o seu consentimento...

-E foi por isso que me apressei a seguir o seu conselho, minha querida amiguinha...

Agarrara-lhe as mãozinhas e cobria-as de beijos apaixonados.

- Então! Então.. - defendia-se ela – Tenha juízo, mestre. Esquece que estes quartos são muito pequenos. Não consegui ouvir uma só palavra do que disse, devido a estas paredes que me sufocam... Estou completamente surda.

- Muito surda e terrivelmente traquinas, também, minha adorada... Por mim, se esta tarde tivesse respondido a certas perguntas, tê-la-ia ouvido na perfeição.

Frederica levantou-se e aproximou-se da janela.

Sufoca-se aqui - afirmou - Para poder ouvir bem todas essas coisas, deveria encontrar-me em vastos e majestosos aposentos...

- E num castelo com grande parque - gracejou, levantando-se também.

- Isso mesmo.. Por exemplo, em Trzy-Krôl, no cimo do planalto! Aí, pelo menos, haveria espaço!

-Sim! E seria até melhor estarmos cada um do seu lado da fenda - volveu, sempre com ar de troça

- Para uma declaração de amor seria perfeito!

- Perfeitissimo - aprovou com seriedade.     

E de repente, num impulso espontâneo:

- Oh! Norberto, como seria engraçado franquearmos juntos o precipício na altura da confissão... montados no mesmo cavalo. Nunca voltará a ter ocasião   tão oportuna para me fazer uma declaração de amor!       

Os pais de Chantal acolheram Frederica com o maior prazer.

A mãe estava ao facto, por uma carta, do romance de amor do filho. Sabia o que a pobre isolada representava para ele e os seus braços abriram-se maternalmente para a órfã que se via desamparada de qualquer outra afeição. O pai encarou o projectado casamento debaixo do ponto de vista pessoal e alegrou-se por sabèr que o filho nunca mais abandonaria a França e poderia ser sempre o seu melhor auxiliar.

Quanto à jovem irmã de Norberto, cuja idade se aproximava da de Frederica, ficou encantada por ter uma amiga, quase uma irmã, com quem corresse os quatro cantos da capital.

-Levá-la-ei a todos os lugares da moda. De inverno frequentaremos o teatro, e no verão divertir-nosemos na praia.

O noivo ouvia-as, encantado por verificar que todos haviam simpatizado com Frederica, mas também um pouco ciumento já, ao ver que açambarcavam a sua noiva.

A órfã nunca chegou a conhecer a resposta do pai à carta que ditara, e que fora hàbilmente modificada por Norberto.

Com efeito, esse absteve-se de lhe mostrar. a segunda missiva do conde de Uskow.

Contentou-se em lhe declarar que o velho senhor de Trzy-Krôl enviara simplesmente a autorização, sem qualquer comentário.

A verdade obriga-nos a dizer que o excêntrico etnógrafo não perdera a esplêndida ocasião para dizer mal das mulheres em geral e da filha em particular.

Então, meu rapaz -escrevera sem mais cerimónias - está decidido a fazer uma grande tolice? Lamento-o sinceramente porque sei muito bem que quando um homem está decidido a suicidar-se não há argumento que o demova do seu propósito! Não resta dúvida, não podia fazer maior asneira do que desposar Frederica. É uma mulher que viveu dezoito anos na mentira, por tal forma que, de hora a hora, nem uma só das suas palavras deixou de ser uma duplicidad. E é essa justamente que vai escolher!

Gostaria de lhe poder dizer que a velhaca se emendará quando se casar e não terá igual procedimento para consigo; mas seria afirmar o contrário do que penso. As mulheres mentem com a mesma facilidade com que respiram. o sorriso, os dentes, o cabelo e até o carminado dos lábios e das faces são enganosos e artificiais! Não espere, portanto, que se emende. mesmo que disponha dum pulso de ferro ou dum knout ideal! Antes do senhor, já eu conhecia essa raça maldita desse sexo exasperante, criado para nos fazer entrever o inferno durante o tempo de exilio na terra. Sempre pensei que a condessa minha mulher morrera muito cedo para melhor me aborrecer durante toda a vida; e con seguiu o que desejava porque, decorridos dezoito anos depois da sua morte, chego a lamentar que não tenha vivido mais tempo para me dar outro filho. Um segundo filho teria talvez a boa ideia de ser um rapaz alto como a mãe e tão genial como eu.

Depois de ter lido as principais passagens da carta do conde de Uskow, deve-se cálcular que Norberto não as comunicou à noiva.

Os dois jovens casaram, portanto, sem que o castelão de Trzy-Krôl levantasse o menor obstáculo. A cerimónia realizou-se seis meses depois da sua chegada a Paris. Ofereceram ao conde de Uskow irem visitá-lo na sua viagem de núpcias, mas este repeliu todas as tentativas e nunca mais quis recebê-los. Não obstante esta atitude malévola, foram felicíssimos. e tiveram filhos: dois rapazinhos e uma adorável pequenita vieram coroar a sua ventura.

E terminaríamos por aqui a nossa história se a ama desta última não pretendesse que certo dia um sujeito velho, uma espécie de anão diabólico, tinha querido deitar mau olhado à gentil bonequinha que estava encarregada de passear.

Foi à tarde, no parque de Muette, onde a ama levou as três crianças... De repente viu parar diante dela uma espécie de feiticeiro. um homenzinho muito diferente de todos os outros mortais! Era velho, baixinho, enfezado e muito feio!

- Tratava-se do diabo - afirmou ela - Nunca na minha vida vi cara tão enrugada e tão maliciosa... Só lhe faltavam os chifres para ser Mefistófeles... E ria...

Ah! e de que maneira Até fazia arrepios ouvi-lo. E de súbito curvou-se para a criancita deitada no carrinho.

- Monstro feminino - bradou em tom colérico

- Para que havia de nascer esta raça maldita, criada para tormento dos pobres homens! Dois olhos, nariz, boca e completa ausência de miolos. nem mais era preccso para fazer a desgraça do género humano... Ah!

Maldição! Quando será possível conseguir que nasçam só rapazes?

A ama acrescentou ainda que o susto a imobilizara, tornando-a incapaz de fazer um movimento ou mesmo de defender as crianças, se tivesse sido preciso.

Então - explicou, ainda impressionada - o pequenino Rodolfo, o mais velho dos rapazitos, que ia nos seis anos, teve a coragem de intervir.

Mas, diga-nos cá - bradou de narizíto no ar e cruzando orgulhosamente os bracitos - acaba ou não de resmungar e de olhar para a minha irmã? Fique sabendo que é uma rainha a valer! Reinará nos Cár    patos. um dia... foi o papá quem o disse... E tu, meu velho antiguinho, se não tens juízo, mandar-te-ão para Trzy-Krôl, para casa do meu avô, que é um grande sábio!... E se fizeres maldades, apanhas com o chicote, já sabes!

- Ah! és irmão dela - perguntou, estendendo o pescoço - Um verdadeiro Uskow, então? E não tens medo de mim, meu garoto?

Medo eu.. Oh! não sou nenhuma menina...

Sou um homem! E terrível como meu avô!

O velho sobressaltou-se e os olhos brilharam-lhe de maldáde.

Hum! um homem - troçou - Talvez uma amostra. E essa amostra, palavra de honra, ainda me parece pior do que outra!

Examinou mais uma vez o bebé e depois o petiz.

- Decididamente, para bem da humanidade, as crianças nunca mais deveriam nascer. nem raparigas nem rapazes! Seria então a felicidade completa!

E sorrindo a esta nova utopia, o velhote, que a ama afirmava ser o demónio saído das profundas do inferno, afastou-se radiante, satisfeito e saltitante. Não se tornou a ocupar das duas crianças. já nem sequer se lembrava delas! Descobrira uma nova ideia. e isto bastava para o tornar feliz, visto fazer parte de qualquer oculta mania.

Frederica ficou muito impressionada com esta narrativa e fez mil suposições com o marido, mas como os dois esposos não receberam qualquer visita e como Iola, qe viera viver com eles em Paris, não teve conhecimento, pelas cartas que recebia dos seus antigos companheiros, de qualquer facto que se pudesse relacionar com o que a ama contara, acabaram por concluir que esta tinha exagerado quando descreveu o incidente.

Contudo, as suspeitas renovaram- se quando um ano depois os chamaram com a maior urgência a Trzy-Krôl, onde o conde de Uskow estava prestes a morrer.

Chegaram para lhe fechar os olhos e o moribundo nem sequer os reconheceu, porque caira já em coma.

-A pequenita! Trzy-Krôl precisa duma rapariga e não dum rapaz. Não quero o irmão. Oh! o irmão, não! Morte aos homens!

Foram as suas últimas palavras.

E Frederica ficou bastante impressionada com elas, pois estas últimas palavras condiziam com a narrativa da ama.

- Meu pai teria ido a Paris e não teria procurado ver-me - pensou com tristeza.

Mas esta dolorosa suposição não se manteve por muito tempo; e quase se convenceu do contrário ao tomar conhecimento das derradeiras vontades do conde de Uskow.

O testamento deste último revelava, com efeito, através da multiplicidade das ideias expandidas, singulares pensamentos. Em primeiro lugar mostrava que nunca tinha esquecido a filha:

Apesar de não ter querido torná-la a ver, nunca deixei de a amar -afirmava ele.

E depois, teria conservado até ao fim a sua esplêndida lucidez de que tanto se orgulhava?

Lego todos os meus dominios e rendimentos, todas as minhas obras, a Frederica, minha filha única - escrevera e datara por sua própria mão.

Foi sempre um engraçado diabrete que me encheu de orgulho. Conservo dela uma boa recordação... muito melhor do que a que me deixou a mãe, uma mulher quanto possível desagradável, que possuia as ideias tão curtas quanto os pés

eram compridos!.. A estupidez é o pior dote que a esposa pode trazer ao marido!

Sinto-me felicissimo por meu genro não ter queimado os meus manuscritos, impedindo ao mesmo tempo que eu chicoteasse Frederica; cujo nome nessa época se escrevia doutra maneira!

Pouco tempo depois da partida de Chantal.

encontrei as minhas obras intactas. Estou-lhe infinitamente reconhecido por mas ter poupado. A história acabou por um casamento, como nos romances e nos contos de fadas. A vida é estúpida... Terrivelmente estúpida! E, contudo, correu tudo como eu desejava, naquela ocasião, porque já contava com esse casamento quando escrevi ao preceptor de Frederica, dizendo-lhe que, visto esta ser uma rapariga, já não queria saber dela para coisa alguma.

Como era natural num francês dos nossos tempos, um pouco tolo e que se honra de cultivar a florinha azul da sentimentalidade, o excelente rapaz quis desde logo proporcionar generosamente à pobre rapariga o lar e a ternura que eu lhe recusava! Era isso mesmo que eu queria!

Abençoo a ingenuidade de Norberto.

Evitou-me o trabalho de procurar um marido para minha filha.

Todos os pais compreenderão a sinceridade com que lhe agradeço!

Como todos nós devemos depreender, o conde de Uskow, ao escrever este testamento, continuava divagando.

 

                                                                                Max du Veuzit  

 

                      

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