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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DELPHINE / Cherie Claire
DELPHINE / Cherie Claire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DELPHINE

 

                   New Orleans, território da Louisiana, 6 de janeiro de 1778

A alegria desconhecia limites na cidade portuária de New Or­leans. Cercada por pântanos perigosos, algumas vezes por nativos hostis e pelos eternos usurpadores britânicos, os residentes franceses e espanhóis aproveitavam todas as oportunidades para satisfazer sua alegria de viver. Creoles ricos, assim chamados por terem nascido na colônia e serem de ascendência francesa e espa­nhola, compensavam os esforços da faina diária por meio de festas noturnas pródigas. Tanto marinheiros franceses e americanos como corsários gastavam seu dinheiro no jogo e com mulheres fáceis que moravam em antros à beira do rio. Também militares espanhóis, recém-chegados de Havana, faziam o mesmo, apesar da barreira da linguagem.

Alguns denunciavam essas diversões como decadentes. Líderes religiosos devotos apontavam os dedos, denunciando o relaxamen­to moral dos cidadãos do Novo Mundo. Philibert Bertrand consi­derava isso como uma defesa natural. Todo verão a cidade era assolada por alguma doença que dizimava a população. Tempes­tades vindas do Golfo do México fustigavam a cidade, destruíam lares e inundavam campos. Às vezes, uma chuva forte arruinava uma safra inteira. Vendavais faziam o rio Mississipi inundar New Orleans.

“Comemorem agora, pareciam dizer os cidadãos, pois amanhã poderão jazer em túmulos, no cemitério, nos arredores da cidade”.

Era seis de janeiro, dia de Reis, data do início das festas profa­nas, que culminavam no Carnaval e terminavam na quarta-feira de cinzas. Também era a temporada mais festiva de New Orleans. Até a terça-feira gorda os católicos da cidade comiam e bebiam até se fartarem e aproveitavam cada momento.

Esse dia coincidia com a data de aniversário de Gabrielle, a esposa acadiana de Jean Bouclaire, sócio e melhor amigo de Phil. Este havia prometido ir a sua festa tão logo a carga da embarcação fosse retirada e o lucro registrado no diário de bordo. Entretanto, a chegada de um pergaminho fizera Phil mudar seus planos. Precisaria partir logo e subir o rio outra vez.

Apesar das risadas e dos gritos provenientes das docas, Phil ouviu o som inconfundível de anáguas na prancha de embarque. Apenas uma mulher arriscaria –se aos mexericos ao visitar sozinha a embarcação La Belle Amie, no fim da tarde.

— O que está fazendo aqui, Phyney?

Fez a pergunta sem sequer levantar a cabeça do trabalho. Delphine Delaronde estava à porta da cabine. Phil acompanhara o crescimento da filha de seu sócio e sentia a presença da moça em qualquer lugar.

— Você prometeu ir à festa.

Phil tirou os óculos de leitura e olhou de relance para a moça quase tão alta quanto o pai corsário. Mesmo na escuridão do cre­púsculo, a beleza de Delphine era surpreendente. Os cachos escu­ros estavam presos no alto da cabeça e caíam em cascata sobre os ombros. Vários metros de seda amarela brilhavam ao redor dos quadris, um corpete acentuava as curvas generosas e o pescoço longo e gracioso. Não fosse pelo bronzeado da pele e pela covinha graciosa numa face, Delphine Delaronde passaria por um membro da elite social. Bastava um olhar e ficava claro que as pernas lon­gas, esguias, equilibravam-se num convés como as de um mari­nheiro experiente ou que sua pontaria era tão boa quanto a de um nativo.

— Está muito bonita.

Delphine virou-se para que Phil pudesse apreciar melhor seu novo vestido, comprado para a ocasião festiva.

— Gostou? Disseram-me que alguém com minha tez morena não deveria usar amarelo, mas acho que o brilho realça minhas feições, não acha?

Delphine estava querendo elogios. Vinha repetindo esse com­portamento nos últimos tempos. Era natural, pois estava prestes a completar vinte anos, devia sentir-se ansiosa para testar as águas matrimoniais e queria sua aprovação. Phil afastou o pensamento embaraçoso de lado. Não podia imaginar outro homem tocando sua Phyney.

— Acho-a encantadora e a cor a favorece muito.

— Estou usando esse vestido para alguém especial, que eu es­perava me convidasse para dançar esta noite.

Phil sentiu ciúme. Acostumara-se à ideia de que Delphine não era mais uma criança, mas conhecia demasiado o mundo e sabia o que se passava na cabeça dos homens. Seu próprio passado era prova de paixões masculinas fatais. Apesar de seu esforço para permanecer calmo, quando a conversa girava ao redor das pers­pectivas de casamento de Delphine, sentia vontade de socar qual­quer cortejador que ousasse beijar-lhe a mão.

— Quem é esse homem? — Ele tentou manter a voz normal, mas foi traído pelas emoções.

Os longos dedos de Delphine, ásperos pelo trabalho a bordo, puseram em ordem os objetos na escrivaninha, enquanto ela fitava um pergaminho.

— Foi isso que o impediu de ir à festa?

— Preciso subir o rio outra vez, pequena. Trata-se de negócios importantes. — Phil pegou o documento e o enfiou no bolso in­terno do colete.

— Do governador?

A jovem era demasiado perspicaz para seu próprio bem. Essa era outra razão pela qual Phil tinha uma atitude tão protetora pela filha teimosa do sócio. Delphine ansiava por aventuras, amava desafios, adorava a excitação de uma luta e a glória da vitória. Precisava de um homem que a protegesse, não tanto para defendê-la de um inimigo, pois era exímia no uso de um punhal e de uma arma, mas para protegê-la da própria natureza arrebatada.

— Não é da sua conta— replicou Phil, levantando-se e vestindo o casaco. — Não posso comentar sobre essa viagem.

— Meu pai sabe?

— Sim, seu pai sabe.

— Então por que não posso...?

Phil segurou-a pelos braços.

— Delphine, vou partir para uma missão perigosa. Nada posso dizer. Mas, quando voltar, contarei tudo a você.

— Promete?

— Prometo.

Delphine abaixou os olhos e tocou de leve um botão de bronze no colete de Phil. O gesto era íntimo e o fez sentir dificuldade de respirar. Estavam demasiado perto. Ele sentia o perfume da água de lilás que ela usava em seu banho e não conseguia se afastar.

— Não deveria acreditar em você. Prometeu-me uma dança.

Por um instante, Phil imaginou que ela havia comprado o ves­tido para ele. Mas isso era ridículo. Era dez anos mais velho.

— Quem é esse homem por quem você estava esperando, esse que não enxerga a mais interessante moça de New Orleans?

— Não sabe? — sussurrou Delphine. — Eu esperava por você.

Tantas vezes Phil havia sonhado em beijar aqueles lábios, re­preendendo-se sempre por seus pensamentos impuros pela moça a quem jurara proteger. Tantas vezes havia desejado que ela tam­bém o desejasse. Mas era apenas uma criança e a filha de seu sócio. Não devia pensar...

Nenhum dos dois soube quem se moveu primeiro. De repente seus lábios se encontraram e Delphine começou a fazer círculos em seu pescoço. Phil a enlaçou pela cintura e a atraiu com força, encantando-se com a sensação das costas sedosas.

Ao sentir seu cabelo ser afagado e o peito de Delphine apoiado sedutoramente contra o seu, ele soltou um gemido. Depois se afas­tou um momento para saborear a sensação da face delicada contra seus lábios, o delicioso perfume atrás de sua orelha. Sem saber como começou a beijá-la e acariciá-la e foi correspondido com igual intensidade.

Todos os ruídos das festividades desapareceram e cederam à paixão enquanto o mundo e todas as suas complicações eram es­quecidos.

— Leve-me com você — pediu Delphine.

Haviam compartilhado tantas viagens, viajado para o Caribe e para os postos avançados ingleses.

Mas Phil sentiu a realidade atingi-lo como um raio. Afastou-se abrupto e Delphine quase perdeu o equilíbrio. Só não caiu porque ele a segurou pelos ombros para firmá-la. Porém a manteve afastada.

— O que aconteceu?

Delphine o fitava surpresa, os lábios intumescidos pelos beijos acalorados, o vestido amassado pelos abraços. Phil sentia-se culpado.

— Por Deus, Delphine, jamais pretendi...

— Por favor, Phil, não diga isso.

Por todos os céus, ele havia se arrebatado com a filha de seu sócio! Phil tentou controlar a respiração ofegante.

—Não lamente o que aconteceu — suplicou Delphine, tocando seu braço. — Se quiser censurar alguém, então me censure.

Mas Phil não concordava. Fitando-a envolta na nuvem de seda amarela, só desejava beijá-la outra vez. E censurava-se por isso.

— Nunca deveria tê-la tocado desse modo.

— Eu o amo. Sempre o amei — sussurrou Delphine.

Em seus olhos brilhava uma lágrima.

— Tenho o dobro de sua idade.

— Você tem trinta anos, tenho vinte. Não é o dobro de minha idade.

— Mas sou muito velho.

— Segundo quem? — Delphine tirou um lenço da manga. — Conheço muitas moças que se casaram com homens de sua idade. É muito comum.

Casamento? Ela esperava casamento? Phil se aproximou da es­cotilha e encostou-se à parede. Casamento era para pessoas que viviam em terra, possuíam seus negócios e tinham casas e quartos para crianças, pessoas que viviam em lugares que não balançavam conforme a direção do vento.

Amor? Já havia amado uma vez e jurara nunca mais amar. Aquele caso do passado manchara o nome Bertrand para sempre. E havia muitas outras razões.

— Sou um plebeu — acrescentou, declarando o óbvio.

— E que importância tem isso?

Phil ajoelhou-se diante de Delphine e pegou suas mãos.

— Seu pai é um nobre.

— Meu pai casou-se com uma plebeia.

— Nenhum escândalo paira sobre a cabeça de seu pai.

— Eu o amo, Phil. Não me importa o que você tenha feito.

— Você é jovem, Delphine. Ainda precisa conhecer o mundo. É compreensível que tenha se apaixonado por mim, considerando as viagens que fizemos juntos. Mas com o tempo, poderá perceber seu engana e compreender que sente apenas uma paixão juvenil.

—Aconteceu com você? — rebateu ela com os olhos sombrios.

Delphine referia-se a Mane, à paixão da juventude de Phil. A memória daquele amor ainda ardia em seu coração.

— Então é isso? Ainda está apaixonado por ela? — indagou Delphine com lágrimas nos olhos.

Ainda amava Mane, após tantos anos? Por isso nunca havia aceitado o afeto de outra mulher ou mantido uma amante? Na verdade não sabia. Mas, pelo bem de Delphine, isso lhe propiciou uma saída.

— Sim, Delphine — mentiu ele. — Ainda amo Mane.

— Bem, então não há nada mais a dizer. — Delphine fechou os olhos como se isso a ajudasse a protegê-la das palavras penosas. Quando os abriu, as lágrimas corriam por sua face.

Phil não suportava fitá-la, não aguentava saber que havia abalado a única pessoa que jurara proteger, a única mulher que adorava mais do que a própria vida.

— Delphine...

Mas a moça se levantou e se dirigiu rapidamente para a porta.

— Preciso voltar à festa. Meu pai vai ficar preocupado.

— Ele sabe que você está aqui?

— Sim, foi ele quem me mandou para cá.

— Por favor, transmita a Gabrielle meu pedido de desculpas e avise seu pai que chegou uma resposta do governador.

Por um momento, Delphine ficou surpresa com a notícia, como se nada tivesse ocorrido entre eles, mas logo a tristeza retornou.

— Você disse que com o tempo eu poderia lamentar meu engano, vê-lo como uma paixão juvenil. — Todos os vestígios de tristeza desapareceram e uma mulher orgulhosa, resoluta ficou em pé à frente de Phil. — Sempre o amarei. Sempre. Nada mudará isso.

Essa declaração penetrou no coração de Phil como um punhal, fazendo-o lamentar cada palavra penosa que havia pronunciado. Decidiu contar a verdade sobre Mane, mas Delphine já havia saído. Correu para a prancha de embarque e tentou ajudá-la, mas ela recusou.

— Permita ao menos que eu a acompanhe até em casa.

— Tenho minha carruagem. Você tem trabalho a fazer.

Desolado, Phil observou Delphine entrar na carruagem. En­quanto o veículo se afastava em direção à cidade, ele sentia que o leme de sua viagem na vida desaparecera.

 

— Vamos esclarecer isso. Pretende trazer moradores das Ilhas Canárias para formar milícias rio acima? — in­dagou Phil ao novo governador espanhol da Louisiana.

— Os ingleses têm fortalezas em Manchac e Baton Rouge — respondeu o jovem líder. — Pretendo povoar a fronteira frente a esses postos com cidadãos espanhóis e franceses para impedir os ingleses de emigrarem para a Louisiana. Ficarei mais confiante quando o território estiver repleto de cidadãos católicos, simpáti­cos a nosso país. — O governador fez uma pausa e lançou um olhar a Phil, deixando bem claro que era um homem temível. — Mas isso não é novidade. Não foi o que você e seu sócio fizeram?

Phil deu um sorriso largo e forçado, fitando o vinho que o es­panhol gentilmente lhe oferecera. Estava claro que Galvez colhera informações sobre seu negócio de contrabando.

— Meu sócio, Jean Bouclaire, é casado com uma acadiana, canadense francesa, cuja família ficou separada quando os ingle­ses, em 1755, exilaram os acadianos da Nova Escócia e os disper­saram pelas colônias americanas, pelo Caribe e pela França — contou Phil.— Jean assumiu a missão de trazê-los para a Louisiana e ajudá-los a recriar aqui sua Acádia.

— Exatamente — replicou Galvez. — E nós os recebemos de braços abertos nesta colônia, demos-lhes terras e instrumentos para recomeçarem a vida.

— E por isso temos sido gratos, Vossa Excelência — declarou Phil.

— Mas não vai me ajudar neste novo esforço?

— Sir, não há dinheiro a ganhar trazendo exilados para este território. Compartilho a simpatia de meu sócio pela causa acadia­na, mas sou o braço financeiro de nossa operação. O que não tem sido fácil, pois os espanhóis proibiram o comércio com outras nações quando tomaram o controle da Louisiana.

— Nesse ponto mudei de posição — explicou o governador. — Abrimos o comércio com a França, Cuba e o Yucatán.

— Sim, sir e somos gratos por isso. Agora estamos em posição de diminuir o impacto do contrabando inglês e aumentarmos nos­sos lucros.

— E é por essa razão que mudei de posição — concordou o governador. — Não aceitarei que os cidadãos deste território en­cham os bolsos dos ingleses para satisfazer seu apetite por merca­dorias europeias.

— Estou mais do que feliz em satisfazer seus apetites através do comércio com a França e a Espanha e encher os bolsos de nosso próprio país.

— E o seu — acrescentou o governador com um sorriso apreciativo.

— E o meu — reconheceu Phil. — Mas há o problema das taxas.

— Faz jus a sua reputação, monsieur Bertrand.

— Um homem precisa sobreviver na fronteira, Vossa Excelên­cia. — Phil inclinou a cabeça de leve e sorriu reconhecido. — Saber como barganhar pode significar a diferença entre um inverno de fome e um confortável.

O governador se levantou, dirigiu-se a sua escrivaninha e es­creveu algo num papel.

— Isto cuidará das taxas — avisou ele sem, no entanto, entregar a Phil o pergaminho. — Então, vai nos ajudar?

O pedido soava falso para Phil. Havia algo maior em jogo.

— Quer que eu transporte os ilhéus das Canárias rio acima? Como lhe informei, sir, não sou um herói exilado. Deveria estar conversando com meu sócio.

—Já falei e ele está disposto a transportá-los. — Galvez pingou cera de uma vela sobre o pergaminho, depois o selou com a insígnia de seu anel.

— Então o que deseja de mim, sir?

Galvez sentou-se outra vez diante de Phil, ainda segurando o pergaminho, que valia milhares ácpiastras, entre os dedos.

— Os ilhéus são apenas uma peça de um enorme enigma para manter os ingleses afastados. Desejo que o senhor, monsieur Bertrand, seja outra peça.

— Sir, sou um contrabandista empenhado em ganhar a vida. Nada mais. Se estiver se referindo aos americanos e a suas tenta­tivas infrutíferas de soberania, não sirvo para causas.

— Os ingleses aumentaram de número em Pensacola. Estão patrulhando o lago atrás da cidade numa embarcação chamada West Florida. — Galvez inclinou-se para frente e apoiou os braços sobre os joelhos. Seus olhos escuros brilhavam assustadores à luz das velas. — Em Baton Rouge, seu número está aumentando den­tro de um forte que poderá cortar este território em dois se deci­direm bloquear o Mississipi.

— Sobre meu cadáver! — exclamou Phil sem conseguir se refrear.

Não era um patriota, mas morreria antes de desistir do controle de seu rio.

— Acho que estão planejando um ataque a New Orleans.

Se Galvez estava querendo instigar Phil, alcançou seu objetivo.

— Como? Quando?

— Quando chegar a hora certa—replicou o jovem governador. — Sabem que estamos despreparados no caso de sofrermos uma agressão e que a Espanha é neutra na guerra entre os ingleses e os americanos. Também que nós não os atacaremos primeiro. No momento, respeitam nossas fronteiras e respeitamos as deles. En­tretanto, se a França se aliar aos americanos, é provável que a Espanha faça o mesmo e então entraremos em guerra. Estamos à mercê de nossos vizinhos ingleses caso ataquem e reivindiquem este território.

Phil pensou nas consequências desse tipo de ação. Os milhares de refugiados acadianos na Louisiana, expulsos de seus lares na Nova Escócia anos antes por um governador impiedoso, ficariam à mercê de seus prévios atormentadores. Os espanhóis perderiam o Mississipi e o comércio com o território de Illinois e a Nova França. Os colonos americanos teriam seu inimigo firmemente plantado a suas costas.

Mas a imagem de Delphine foi a primeira a aparecer em sua mente. Phil levantou-se e fitou através da janela as ruas pacíficas de New Orleans. A cidade situava-se estrategicamente na curva do rio caudaloso, mas muito acima do Golfo e era cercada de água quase completamente, com um enorme lago atrás e pântanos ao redor. A menos que os espanhóis se dispusessem a aumentar suas fortificações na cidade e nas áreas circundantes, os ingleses pode­riam facilmente capturá-la. Levar rio acima os ilhéus das Canárias e armar as povoações acadianas era um bom plano. Mas seria o suficiente para manter a distância o exército mais poderoso do mundo?

Phyney ficaria em segurança?

Phil lembrou-se de como ela ficara abalada em sua cabine e fechou os olhos ao sentir a dor em seu coração. Três semanas não haviam diminuído o remorso por ter desapontado a única pessoa que jurara defender.

E outras memórias invadiram sua mente. Quando Jean o salvara de ser morto por um bando de piratas, Phil ficara desacordado muito tempo. Ao recuperar a consciência, avistara os olhos an­siosos de Delphine.

— Que tristeza, papai! — exclamara a menina chorando. — Ele vai sobreviver, não vai?

— Não sei — replicara Jean. — Passou muito mal durante a viagem pelo Atlântico.

— Não morra — sussurrara Delphine naquela manhã. — To­marei conta de você. Cuidarei para que recupere a saúde.

— Monsieur Bertrand? — O devaneio terminou.

Phil sentou-se à frente de Galvez, o soldado que ficara conhecido por sua luta contra os nativos Sioux, no Texas, o nobre disposto a arriscar a vida em nome do rei espanhol para proteger a cidade habitada em grande maioria por cidadãos franceses.

—O que deseja que eu faça?—Phil ergueu o copo em saudação a Galvez.

 

— Havana?—Jean fitava incrédulo o sócio, pois Phil não dava importância a causas. — Vai trazer armas e dinheiro de Havana para os colonos americanos?

Phil dava passos pela sala do lar de Jean, imaginando por que a casa parecia tão vazia. Onde estava Delphine?

— Phil?

Uma coisa era ter de explicar sua mudança de atitude em relação à política. Outra era pedir ao sócio a mão de sua filha. Ao olhar para Jean, perdeu a coragem. Haveria troca de acusações entre eles? Teria Delphine confessado tudo quando retornara para casa na noite da festa?

Não importava. Phil estava resolvido a agir corretamente e de­dicar sua vida a tornar Delphine feliz, mantê-la em segurança. Nunca pensara em casamento, mas ele lhe devia isso após seu comportamento tão vergonhoso na embarcação. Aliás, precisava reconhecer que casar com Delphine não era uma idéia desagra­dável. Porém, precisava vê-la primeiro.

— Phil? — Jean colocou a mão no ombro do amigo. — Pare de andar e me conte o que aconteceu.

Phil suspirou e sentou-se numa cadeira próxima ao fogo. An­siava pelo verão, pelos ventos do Golfo que o levariam para longe desse clima frio e úmido. Desta vez, levaria Delphine para o Ca­ribe. E com a bênção de Jean, compartilhariam uma cabine. Não, casamento não era uma ideia desagradável de modo algum.

— Precisamos conversar — disse Phil, afinal.

— É claro — concordou Jean rindo e servindo uma bebida ao amigo. — Precisa me explicar o que o levou a aceitar essa missão do governador.

— Galvez acredita que os ingleses estejam planejando um ata­que a New Orleans.

— Os espanhóis têm estado muito desconfiados desde que os ingleses assumiram o poder na Flórida Espanhola, isso não é ne­nhuma novidade — comentou Jean.

— Mas será, se a França se aliar aos americanos.

—Já ouvi isso.—Jean sentou-se pensativo e esfregou o queixo. — Como a França e a Espanha têm um acordo, a Espanha seguirá a França na guerra dos americanos. — Virou-se, então, para Phil, com um olhar cético. — Mas o que isso tem a ver com você? Não disse sempre que em primeiro lugar vêm os lucros e, em segundo, o país?

Phil gostaria de sorrir ao ouvir isso, mas seu desejo de prote­ger Delphine prevaleceu. Contou a Jean tudo o que Galvez lhe oferecera.

— Terei permissão de transportar mercadorias para Havana e retornar com o que eu quiser, sem taxas alfandegárias. Um terço do porão será reservado para as munições, escondidas junto com qualquer mercadoria que eu trouxer de volta. De fato, minhas mer­cadorias serão um engodo.

— E o dinheiro de Havana?

Desta vez Phil se alegrou. La Belle Amie tinha muitos compar­timentos secretos. Apesar do embargo da Louisiana contra o co­mércio com qualquer nação exceto a Espanha, Jean e Phil haviam conseguido contrabandear muitos itens franceses para dentro do território.

— Escondido nos lugares usuais — declarou Phil.

— Um terço do porão vai diminuir muito nossos lucros, mesmo com as taxas reduzidas — contestou Jean, ainda não convencido. — Não parece de seu feitio desistir de dinheiro pelo bem de uma causa, em particular uma com um resultado tão improvável.

Phil tinha muitas razões para ajudar os espanhóis e Delphine estava no topo da lista. E durante sua longa conversa com Galvez, mudara de opinião sobre os americanos.

— Não tenho tanta certeza de que os americanos estejam fada­dos ao fracasso — alegou Phil. — Se a França se aliar aos ameri­canos e Galvez ajudar a financiar os esforços americanos a partir da fronteira ocidental, os colonos terão boas chances. Se a Espanha se unir à França na guerra, os americanos poderão contar com o apoio de duas nações.

— Contra o melhor exército do mundo — lembrou Jean. — E apenas alguns anos após a Inglaterra ter vencido tanto os franceses quanto os espanhóis numa longa guerra. A Louisiana é um exem­plo dessa derrota. A França cedeu este território à Espanha para compensá-la pela perda do oeste da Flórida naquela guerra.

Jean serviu bebida para ambos e Phil começou a sentir-se mais à vontade.

— Há um americano, rio acima, que está usando a própria for­tuna para levar armas para Illinois — contou Phil.

— Oliver Pollock — completou Jean com um sorriso que fez aparecer a mesma covinha que Delphine tinha no rosto. — Encon­trei nosso astuto governador esta manhã.

— Com Galvez e Pollock, os americanos ganham um aliado em New Orleans. Galvez tem espiões em Pensacola e por isso os ingleses estão em desvantagem no Golfo.

— Ele o convenceu mesmo, não é? — indagou Jean.

Lembrando-se outra vez de Delphine e da razão por que viera, Phil levantou-se e começou a dar passos pela sala outra vez. Onde estava a moça?

— Por que a casa está tão quieta?

— Já é tarde, Phil. As crianças estão dormindo.

— E Delphine? — Phil engoliu em seco, compreendendo que seria agora ou nunca.

Pela expressão sombria no rosto de Jean, Delphine devia ter revelado tudo que transpirara entre eles.

— Jean... — começou Phil com delicadeza. — Posso explicar.

— Delphine está a caminho da França — informou Jean, sem ter ouvido o que o amigo dissera.

— França? — Nada preparara Phil para esse golpe.

— A avó está doente e a chamou — explicou Jean.

— Pensei que seus pais haviam morrido.

— Morreram — replicou Jean. — Estou me referindo à mãe do conde Delaronde.

— O que você fez? — gritou Phil sobressaltado pelo fato de Jean ter enviado a filha para a casa Delaronde.

— Delphine é minha filha, Phil, mas está legalmente ligada àquela família.

— Não vejo como — indignou-se Phil. — O que a família Delaronde já fez por ela?

Foi a vez de Jean começar a dar passos pela sala e Phil percebeu como a partida de Delphine abalara o amigo. Jean serviu-se de outra bebida e começou a fitar as chamas, na lareira, com melan­colia. Phil arrependeu-se de seu rompante.

Delphine era filha de Jean por nascimento, mas estava ligada legalmente aos Delaronde e ao rei. Fora o produto de uma festa orgíaca, quando Jean e Louise Herpin beberam demasiado vinho e procuraram conforto nos braços um do outro. Quando Jean soube que Louise estava grávida, fez uma proposta de casamento, mas Louise recusou, pois Jean era o segundo filho de um nobre, rece­bera uma pequena herança e era forçado a contrabandear para se manter. Em vez de aceitar Louise levou o rico e influente conde Delaronde para sua cama e fingiu que esperava uma criança sua.

Somente um cego não teria reconhecido que Delphine era filha de Jean, devido ao cabelo escuro, cacheado e à covinha Bouclaire, na face. O conde logo percebeu o embuste. Apossou-se do dote de Louise e retornou à França e nunca mais se comunicou nem com Delphine nem com Louise. Mesmo quando Jean viajara para St. Maio, na esperança de assegurar uma educação francesa para Delphine, o conde se recusara a recebê-lo no castelo Delaronde.

Jean sustentara as duas mulheres em New Orleans. Entrava fur­tivo pela porta dos fundos para visitar a filha, sem provocar es­cândalo. Ironicamente, quem causava mais tagarelices era a mãe, pois fazia companhia a homens ricos para alimentar seu apetite por belos trajes e diversões. Quando Louise morrera, oito anos antes, Delphine fora viver com Jean e Gabrielle. As duas se ado­ravam e tornaram-se inseparáveis.

— Será bom ela conhecer a França — disse Jean, afinal. — Precisa saber o que o mundo tem a oferecer.

Phil serviu-se de uma bebida e a tomou de um trago. Sua Phyney estava indo para St. Maio, a cidade que lhe ensinara cruéis lições.

— O mundo pode ser um lugar horrível. Delphine deveria estar aqui, em segurança, conosco.

— Os Delaronde são uma família influente — disse Jean, ob­servando Phil com atenção. — Delphine é a última descendente. Com a morte de seu pai, ela será a próxima na linha hereditária.

— Não pode estar falando a sério — indignou-se Phil. — Está sugerindo que Delphine renuncie ao nome Bouclaire para ter di­reito a uma fortuna?

— Não estou dizendo nada disso.

— Ela é feliz aqui. Conosco. — Phil fechou os olhos, preocu­pado por ter elevado a voz.

O que estava lhe acontecendo? Respi­rou fundo, tentando controlar o coração acelerado. Não podia ima­ginar sua Phyney navegando pelo Atlântico.

— Nunca lhe pedi para mudar o nome — contou Jean. — É uma Delaronde pela certidão de nascimento e por batismo. A me­nos que a avó deseje denunciá-la, Delphine herdará a fortuna e a propriedade e se tornará a próxima condessa Delaronde por ordem do rei.

Essa informação atingiu Phil com a força de um furacão. Caiu na cadeira. Uma coisa era ser filha de Jean, um nobre, mas possuir um título? Ser herdeira de grandes propriedades?

— Agora ela deverá desposar um nobre para não perder o título e os bens. — comentou Phil arrasado, com plena consciência de ter perdido Delphine para sempre.

 

Gabrielle entrou e cumprimentou o amigo com palavras amá­veis, mas Phil não tinha forças para uma conversa. Despediu-se e foi buscar conforto numa garrafa de rum.

Jean observou seu jovem sócio desaparecer na neblina, de om­bros caídos, infeliz.

— Venci a aposta, não foi? — indagou Gabrielle.

Jean tirou uma moeda de ouro do bolso e a deu à esposa, mas Gabrielle não estava satisfeita por ter vencido.

— Devo admitir que não fazia ideia de seus sentimentos até esta noite — confessou Jean.

— Acho que nem mesmo ele percebia — comentou Gabrielle. — Talvez não devêssemos ter permitido que Delphine partisse.

Jean teria lutado contra uma nação para manter Delphine em casa. Mas ela insistira e quando decidia algo, não havia como demovê-la.

— Talvez tenha sido melhor — acrescentou Gabrielle. — A separação pode fazer-lhes bem, tornar seu reencontro mais espe­cial. Em poucos meses, poderão resolver suas diferenças e nós lhes prepararemos um grande casamento.

Jean beijou a amada esposa. Tudo era simples para Gabrielle quando se tratava de assuntos do coração.

— Não poderão se casar. Delphine será uma nobre e terá um título. Mas nem tudo está perdido. Há um modo — afirmou Jean.

 

A imponente cidade murada de St. Maio começou a surgir de­vagar, enquanto os marinheiros manobravam o bote para perto dos muros fortificados. A maré não estava a favor e os rochedos ex­postos do promontório escarpado dificultavam o acesso à costa. Pela primeira vez, Delphine desejou estar de volta a sua colônia nativa.

Quando o bote chegou em terra firme, dois homens ofereceram as mãos a Delphine. Mas Charles Armand adiantou-se e tocou-a no cotovelo.

— Obrigado, senhores, mas levarei mademoiselle Delaronde para casa.

O proprietário de terras de New Orleans havia sido uma bênção durante a viagem torturante. Charles sempre contava histórias e casos engraçados sobre suas aventuras na colônia e na França. Por mais que Delphine desejasse se recolher a sua cabine, para mer­gulhar na tristeza, Charles sempre batia à sua porta e a levava para o convés. Estaria o nobre apaixonado por ela? Ela estava para receber um título e uma grande herança e só isso poderia ser um grande atrativo.

Ao seguir Charles pela longa escadaria que levava aos muros fortificados da cidade de ruas pavimentadas de pedras, Delphine lembrou-se da descrição das cidades europeias feita pelo pai: api­nhadas, malcheirosas e sujas. “Cuide de seus pertences e nunca ande sozinha pelas ruas”. New Orleans não era muito melhor, no entanto a imagem de St. Maio, com hordas de pessoas e ruas si­nuosas repletas de casas de granito, convenceu Delphine de que Jean estava certo.

Charles chamou uma carruagem. Cheiros estranhos no ar a fi­zeram recostar-se no interior de couro mofado e velho.

— Você vai amar a França — disse Charles. — Quando o sol nascer, verá que a Bretanha é o mais belo lugar na terra. Espero que goste muito daqui.

Independentemente do que herdaria, Delphine não tinha nenhu­ma intenção de ficar na França. Ou de desposar Charles Armand. Aliás, não tinha intenção de se casar com ninguém ou de se tornar a próxima condessa Delaronde. A carruagem parou de repente, despertando-a de seu devaneio.

—É esta a casa?—indagou Delphine, surpresa com o tamanho.

—Esta é apenas a casa da família na cidade—explicou Charles.

— A propriedade fica muito longe daqui. Se sua avó não estiver, os criados cuidarão de você até que seja organizada a viagem para o Castelo de La Ronde.

Delphine engoliu em seco, imaginando o tamanho da proprie­dade Delaronde comparada a essa monstruosidade. Quando entrou no vestíbulo da mansão, seu assombro duplicou. Vários criados esperavam em pé, enfileirados, com diferentes tipos de traje. Quan­do Charles anunciou Delphine, todos fizeram uma mesura.

— Bem-vinda, mademoiselle — cumprimentou o mordomo.— Sua avó a espera com ansiedade em seu quarto.

Charles virou-se e beijou a mão da moça, dando uma piscadela encorajadora antes de deixá-la sozinha com o exército de auxilia­res. Um criado apanhou sua bagagem de mão enquanto o mordomo dava instruções quanto ao resto de seus pertences.

Uma lady idosa a acompanhou pela escadaria imponente. Su­biram três lances de escadas e percorreram dois corredores som­brios e gelados até chegarem afinal ao aposento da avó. As espes­sas paredes de pedra e o ar eram tão úmidos quanto os pântanos na terra natal. Delphine se aconchegou mais ao xale e mordeu o lábio inferior para se impedir de tremer.

Entrou no quarto, onde uma única vela iluminava o rosto da avó e nada mais.

— Venha cá, filha.

Delphine aproximou-se do leito e olhou o rosto da mãe do conde que havia abandonado a família, deixando filha e mãe destituídas, não fosse a assistência financeira de Jean. Não havia a menor se­melhança entre ambas e a moça nada devia a essa senhora, mas algo em seus olhos tocou seu coração.

— Você é tão alta — disse a condessa. — Esse é um traço dos residentes do Novo Mundo?

O comentário deixou Delphine nervosa. Certamente a avó estava a par de sua ascendência e sabia que ela não era uma Delaronde.

— Sei quem é, filha, não se preocupe. Venha cá, quero dar uma boa olhada em você.

Delphine se aproximou mais do leito, observando a avó perante a lei. Madame Sandrine Magon, condessa Delaronde, matriarca da orgulhosa família Delaronde e herdeira de uma grande fortuna, tinha olhos da cor do mar do Caribe. Apesar da face pálida e da expressão severa, Delphine sentiu-se encantada e atraída por aque­les olhos.

— Não, em definitivo você não é minha parente de sangue. — Surpreendentemente, a avó deu uma risada após pronunciar essas palavras e depois mandou a criada se retirar. Quando ficaram so­zinhas, a avó pediu a Delphine para sentar-se na cama a seu lado.

— Não falaremos sobre seu pai — declarou a condessa. — Sua origem é um assunto que ficará entre nós, comprendes tu?

Delphine sentou-se ereta, sentindo ferver o sangue nas veias.

— Não renunciarei ao nome de meu pai nem me envergonharei por ter nascido de um caso ilícito. Compreendo que minha mãe induziu seu filho a desposá-la por astúcia. Mas o conde nos aban­donou e meu pai sempre pôs comida em nossa mesa e providenciou minha educação. Apesar do escândalo que cerca minha vinda a este mundo, sinto orgulho por quem sou e não fosse pelo aspecto legal, levaria o nome Bouclaire.

A condessa nada disse, apenas empalideceu. Delphine lamentou seu rompante. Não podia retirar suas palavras, mas repreendeu-se por ser rude com a avó estrangeira que havia pagado generosa­mente por sua visita à França.

— Desculpe-me — pediu Delphine abaixando a cabeça. — Es­tou cansada da viagem. Não pretendia...

— Pretendia dizer cada palavra — insistiu a avó.

Delphine fitou os olhos azuis e compreendeu que não adiantaria mentir, o que, aliás, não era sua intenção. A avó falava sem rodeios e não queria que concordassem com ela por causa de sua idade e saúde precária.

— Sim, madame. Falei cada palavra a sério.

— Eu entendi, filha, e respeito sua posição. Mas se vai herdar a fortuna Delaronde, deve manter sua ascendência em segredo, ao menos na França. Compreende?

Delphine se aconchegou mais ao xale. Rezou para parar de tremer.

— Vovó, não desejo parecer ingrata, mas não quero herdar o título nem a fortuna. Certamente, a senhora deve ter outro parente...

— Não deseja herdar? — indignou-se a avó, erguendo-se na cama. — Que tolice é essa?

Delphine respirou fundo. Não imaginara ter essa conversa tão cedo, mas talvez fosse melhor esclarecer tudo logo.

— Estou feliz com minha vida. Não desejo nada mais.

— Não deseja nada mais? Vai ser invejada por todas as jovens de St. Maio! Vai ser o partido mais procurado na Bretanha. Faz alguma ideia de quanto dinheiro possuo? Não apenas sou uma Delaronde, filha, mas provenho da família Magon, mercadores há várias décadas. Esta casa era de meu pai.

— Eu não saberia o que fazer com tudo isso — confessou Delp­hine. — Nunca me interessei por belas roupas ou propriedades. Posso ser filha de um nobre, mas ele é corsário e contrabandista. Cresci navegando nos remansos da Louisiana e na direção das índias Ocidentais. Amei essa vida. Repito, vovó, não desejo mais nada.

— Crocodilos, pântanos e corsários? É isso que você quer?

Delphine pensou em sua vida a bordo da La Belle Amie, nas aventuras frequentes e na sensação maravilhosa da brisa marítima e do ar salgado. Sim, queria isso mais do que tudo. Porém, o quadro não estava completo sem um homem. E ele havia deixado bem claro que amava outra.

Por que aceitara a viagem para a França? Curiosidade? Uma oportunidade para conhecer a cidade de nascimento de Phil? Vi­sitar o lugar em que o conde Delaronde vivera seus últimos anos enquanto a esposa perecia em New Orleans? Ou fora apenas uma oportunidade para colocar um oceano entre ela e Phil? Viera para diminuir a dor que assolava seu coração.

— Não me contou tudo — disse a avó.

Delphine levantou-se e começou a andar pelo quarto.

— Está muito frio aqui, vovó. Deveria aquecer este aposento. Não é de estranhar que esteja doente.

— Estou morrendo, menina. Estou acostumada ao frio.

Delphine percebeu a tristeza nos olhos sábios da avó. Sem pen­sar, pegou sua mão e sentou-se a seu lado. Não sabia explicar a razão, mas sentia afeto por ela. E não queria que morresse.

— Tenho alguma experiência com ervas. Gabrielle, a esposa de meu pai é acadiana e ensinou-me muitas coisas. Talvez eu possa ajudá-la.

— Já consultei os melhores médicos e minha hora está chegan­do. Enfrentarei meu fim com dignidade. Mas você, querida, sente tanto medo assim de se tornar a próxima condessa?

— Estou aterrorizada. Mas agora que a conheci...

Delphine não conseguiu terminar de falar. Começou a chorar.

Era a primeira vez que se encontravam, mas algo nos olhos da avó indicava uma nova direção para sua vida. Algo familiar pairava entre ambas.

— O que ainda não me contou? — repetiu a avó.

As lágrimas corriam pelo rosto de Delphine. Estava cansada de ser corajosa, de sorrir às piadas de Charles, de esconder de Ga­brielle e Jean que se havia jogado nos braços de Phil e arruinado a melhor amizade de sua vida. Cansada de afastar a lembrança penosa.

— Estou apaixonada por um homem — contou, afinal. — E ele ama outra.

— Falaremos sobre a herança amanhã. — A avó apertou a mão de Delphine e depois abriu os braços. — Venha cá. Conte-me tudo sobre ele.

 

Elise, a criada designada para Delphine, apertou os cordões de seu espartilho. A condessa levara uma semana para convencer a moça a aceitar uma sessão com um modista.

— Nada extravagante, espero — pediu Delphine. — Ouvi dizer que as mulheres na França estão usando perucas tão altas que che­gam ao teto.

— Você vai se trajar na última moda de St. Maio, mas nada exagerado — garantiu a condessa. — Os Delaronde são conheci­dos por seu refinamento.

A avó estava sentada em sua cadeira de encosto alto, toda bor­dada. A cor retornara a seu rosto e ela parecia estar se recuperando. Segundo o médico, o fato de estar animada prolongava sua vida.

— Mande entrar monsieur Galvant, Elise.—A condessa tentou sentar-se ereta na cadeira, mas era visível seu esforço.

Delphine colocou um travesseiro nas costas da avó e recebeu um beijo agra­decido na face.

— Não se preocupe — sussurrou a condessa. — Nada muito extravagante para minha bela neta pirata.

Delphine recebeu com um sorriso o dândi em cujo traje havia uma grande quantidade de renda no pescoço e nos pulsos.

—Monsieur Galvant a seu serviço, mademoiselle. Seu humilde servidor, condessa — disse ele curvando-se.

A avó ignorou os cumprimentos.

— Minha neta precisa de trajes elegantes e sofisticados.

— E práticos — acrescentou Delphine, fazendo monsieur Gal­vant franzir a testa.—Ela havia recusado numerosos convites para atividades sociais e esperava que suas novas roupas fossem mais apropriadas para a vida diária do que para bailes elegantes.

O rosto de monsieur Galvant se iluminou e ele começou a andar em volta de Delphine examinando-a da cabeça aos pés.

—Bem, o que sugere? — indagou a avó, impaciente.

Monsieur Galvant estalou os dedos e duas auxiliares se apro­ximaram e começaram a tomar as medidas de Delphine. Quando uma delas levantou a saia para medir o tamanho dos sapatos e das meias, sobressaltou-se e recuou assustada.

— O que foi? — indagou a condessa, irritada.

Delphine abafou uma risada, depois levantou as anáguas. En­fiada dentro de uma liga, ao redor da perna, havia uma longa adaga de punho vermelho.

Monsieur Galvant empalideceu, um criado cobriu a boca para esconder um sorriso e as auxiliares fitavam horrorizadas.

— Minha neta, monsieur, vive em lugar ermo na Louisiana — explicou a avó, em tom arrogante. — Essa deve ser a norma para as senhoritas do local.

—Na verdade, vovó, foi presente de um amigo para me proteger contra perigos maiores. Os predadores de duas pernas.

O dândi arregalou os olhos. A condessa acenou impaciente para ele voltar ao trabalho.

— Esse amigo ao qual se referiu como se chama? — indagou a avó.

Delphine suspirou, sentindo a dor familiar que não diminuíra nos últimos três meses.

— Entendo. É aquele homem horrível, não é? — A avó franziu a testa, sentindo pena da neta e fúria contra Phil.

— Já lhe contei, vovó. Praticamente cresci com ele a bordo da embarcação de meu pai. Ele me ensinou muitas coisas, inclusive as regras do mar.

— Você nunca disse seu nome. Como se chama?

Delphine ficou paralisada. Temia pronunciar o nome, pois fi­caria abalada e também queria que ninguém soubesse de sua as­sociação com um dos episódios mais escandalosos da cidade.

A avó percebeu sua indecisão. Mandou as criadas saírem do aposento e pediu a monsieur Galvant para trazer suas amostras de tecido. Ao ficaram sozinhas, Delphine ajoelhou-se ao lado da avó.

— Talvez a senhora o conheça.

— Como seria possível, querida?

— Ele é de St. Maio.

— Muitos homens, em particular corsários e mercadores das índias Ocidentais partiram de St. Maio — comentou a avó. — Se ele é plebeu, duvido...

— É plebeu, mas talvez o tenha conhecido, vovó. Quando eu ainda não tinha dez anos e não queria frequentar a escola em New Orleans, meu pai viajou a St. Maio para tentar convencer o conde a me educar na França.

— Nunca soube disso — aparteou a condessa.

— O conde recusou-se a vê-lo.

— Eu teria agido de modo diferente. Você teria florescido sob minha tutela.

— Sou muito grata por não ter feito isso, vovó. Se tivesse, eu teria perdido as coisas que amo tanto, inclusive os últimos anos de vida de minha mãe.

— Mas o que isso tem a ver com esse homem terrível?

A imagem de Philibert deitado semimorto na cabine do ime­diato do pai era tão familiar a Delphine como a cena do encontro fatal em que ela lhe declarara seu amor.

— No caminho para o porto, meu pai resgatou um homem que fora brutalmente espancado e jogado no mar para morrer. Cuidou dele durante a viagem de volta para a Louisiana. Ele sobreviveu e tornou-se o melhor amigo de meu pai e também seu sócio.

— E qual o nome desse homem? — insistiu a condessa.

— Quando jovem, ele se apaixonou por uma aristocrata que estava prometida a outro —prosseguiu Delphine. — Ele pretendia navegar para as índias, para tentar apagá-la de sua mente, mas ela lhe enviou uma carta, pedindo para vê-lo antes de partir. Quando ele chegou-a sua casa naquela noite, deparou-se com a cerimônia de seu casamento. Foi desafiado pelo noivo e os dois duelaram no jardim. Ele venceu o duelo, embora tivesse apenas ferido o marido. Outros homens da nobreza o surraram até ele ficar sem sentidos e depois atiraram seu corpo nas águas do porto. E foi assim que meu pai o encontrou.

— Philibert Bertrand — pronunciou a condessa com profunda tristeza.

— Sim — afirmou Eíelphine, imaginando o que a avó sabia sobre o escândalo.

— Eu estava na cerimônia — sussurrou a condessa. — Todos estávamos. Íamos jantar quando ele irrompeu na casa. Mais tarde os homens se vangloriaram por terem assassinado aquele pobre rapaz que tivera a arrogância de se aproximar de Marie no dia de seu casamento. Lembro-me de seus olhos. Tão ansiosos e tristes. Parecia que havia sido traído.

A porta foi aberta e monsieur Galvant voltou acompanhado das auxiliares. O dândi fez uma galante reverência, depois colocou o tecido na frente das duas Delarondes e começou a descrever a qualidade da seda e as cores apropriadas para Delphine. Esta pouco ouvia, assustada com as palavras da avó.

— Ela é realmente tão bela?

— Perdão, mademoisellel — Toda a conversa cessou e mon­sieur Galvant ficou confuso.

A condessa o ignorou e sorriu para a neta.

— Sim, Delphine, Marie Labárthe, condessa de La Candelier, é a mais bela mulher de St. Maio.

Delphine imaginou se a mulher deslumbrante que Phil adorava, a nobre pela qual ele tudo arriscara, ainda vivia e andava pelas ruas de St. Maio.

— Gostaria de conhecê-la? — indagou a condessa.

O aposento ficou mergulhado em silêncio. Delphine sentiu que precisava tomar cuidado. Monsieur Galvant e suas auxiliares cer­tamente falariam a outros do misterioso punhal que a neta Delaronde trazia no corpo. Devia ficar atenta, pela avó e por si própria. Se encontrasse Marie, não queria que soubesse do paradeiro de Phil. Pelo menos não até conseguir o que desejava de Marie.

— Regra número quatro dos piratas — Phil costumava instruí-la. — Conheça o inimigo.

— Sim — sussurrou Delphine para a avó, sentindo o coração bater acelerado ante a perspectiva de encontrar a rival. — Desejo encontrá-la.

— Farei isso por você, minha filha, mas deve me prometer duas coisas.

Delphine concordou, embora temesse ouvir as condições.

— Prometa-me frequentar a sociedade, conhecer outros ho­mens, aprender a agir como uma Delaronde.

Tudo o que Delphine mais temia, mas aquiesceu.

— E, mais do que tudo, nunca, jamais se torne uma mulher como Marie Labárthe. — continuou a avó, abaixando a voz para ser ouvida apenas por Delphine.

 

—Saia dessa janela — admoestou a avó. — Uma lady não espia seus convidados.

Não se tratava de um convidado qualquer. Era Marie Labárthe, a mulher que roubara o coração do homem que ela amava.

— Em que está pensando, menina?

Delphine se afastou da janela e começou a dar passos pelo apo­sento.

— Estava pensando que se estas roupas fossem um pouco mais apertadas eu morreria por sufocação.

— Sente-se a meu lado. — A avó deu uma palmadinha no assento.

Delphine suspirou. Respirar em pé já era difícil. Sentada seria pior.

— Não posso, vovó. Meu espartilho está muito apertado.

— Não é só ele que está apertado — disse a condessa rindo. — Relaxe.

— Como posso relaxar quando a ruína de minha vida está para entrar?

— Marie não chega a seus pés, menina — disse a avó com sinceridade. — Além disso, você é dez anos mais jovem.

Lembrando-se das observações de Phil sobre a diferença de idade entre ambos, Delphine duvidava que vinte e um anos fossem um atributo. Em particular quando se tratava da "mais bela mulher de St. Maio".

—Vovó, a senhora não vai mencionar Philibert, vai?

— Concordei com este encontro sob a condição de você não imitar essa mulher, Delphine, e espero que honre nosso acordo. Guardarei o destino de Philibert pára mim apenas enquanto você não começar a imitar Marie. Se esse plebeu não tem o bom senso de preferir você a Marie Labárthe, então está perdendo seu tempo com um tolo.

Delphine sorriu, tranquilizada pelo fato de ser apreciada pela avó. O sentimento era mútuo. Mas suas palavras eram estranhas.

— A senhora não gosta de Marie, não é?

— Não, não gosto — declarou a condessa, sem hesitar.

— Por quê?

— Não sei explicar. — Nervosa, a condessa mudou de posição. — Acho que há algo errado com essa mulher. Talvez seja sua maneira condescendente com seus subordinados. Uma coisa é ser aristocrata, receber privilégios e educação, outra coisa é acreditar que se é melhor do que os outros.

— A senhora é uma revolucionária, vovó?

— Tolice. Todos têm seu lugar, inclusive a aristocracia. Mas nós da nobreza devemos mostrar compreensão e caridade por todos abaixo de nós.

— Não consegue me enganar. — Delphine se aproximou dos livros nas estantes e tocou vários títulos. Olhando sua biblioteca, presume-se que a senhora concorde com esses radicais.

— Não esqueçamos de Thomas Paine e Os Direitos do Homem. — A avó deu um sorriso ambíguo. — Adquiri esse livro polêmico de um americano em visita. Mas meu exemplar é em inglês. Será que você lê ou fala essa língua horrível?

Delphine conseguira aprender umas poucas palavras em inglês, em suas viagens para Baton Rouge, quando ela e Phil haviam vendido rum aos soldados ali alojados.

— Não, não falo inglês — respondeu Delphine.

— Marie fala.

— Há algo que essa mulher não faça? — indagou Delphine, encolhendo-se.

 

Ouviram-se rodas de carruagem sobre o pavimento de pedras e os passos de Étienne, o mordomo, ressoaram no corredor.

— Ela não compreenderia Paine, tampouco concordaria com suas idéias — alegou a condessa. — Pare de se comparar a ela. Pare já com isso.

Não era fácil obedecer. Delphine era filha de um contrabandista, de um corsário a serviço do governador espanhol e transportava refugiados acadianos para a Louisiana. Fora criada a bordo de uma escuna e se acostumara a enfrentar tempestades e não mulheres maravilhosas pelas quais homens duelavam. Seu melhor vestido fora feito para a festa de Gabrielle e monsieur Galvant o conside­rara uma desgraça. Como poderia competir com "essa mulher", a famosa Marie Labárthe?

Étienne abriu a porta e anunciou a condessa de La Candelier. Nada preparara Delphine para a imagem delicada que entrou na sala. Marie usava um vestido azul-claro da mais fina seda oriental e um corpete que acentuava a cintura fina. Renda enfeitava o busto atraente e um fio de pérolas perfeitas adornava o pescoço elegante. O cabelo lembrava seda castanho-avermelhada e caía atrás dos ombros sob um amplo chapéu que protegia seu rosto e era enfei­tado por uma majestosa pluma de avestruz. Quando Marie se in­clinou diante da avó, Delphine examinou seu rosto perfeito: cílios longos e sensuais, nariz pequeno impecável, face aristocrática e lábios desejáveis; Em suma, era deslumbrante.

— Condessa Delaronde, obrigada por me convidar. Há tempos não nos encontramos.

— Obrigada, Marie. Não tenho passado bem.

— Nada sério, espero.

— Nada para se preocupar.

Enquanto as duas mulheres conversavam, em nenhum momen­to, Marie olhou na direção de Delphine. Esta se teria sentido in­visível não fosse a quantidade de tecidos que a envolvia no último estilo de Paris. Quando se vestira, sentira-se espetacular, mas ago­ra, na presença desta deusa, tornava-se uma flor de parede.

— Marie, quero apresentar-lhe minha neta, Delphine Delaron­de, recém-chegada da colônia da Louisiana.

A mulher tão invejada de St. Maio e o objeto do amor de Philibert virou-se para Delphine e ofereceu-lhe a mão.

— Sua neta! — exclamou Marie. — Que maravilhoso! É um grande prazer conhecê-la. A semelhança é impressionante.

Delphine havia ensaiado mil réplicas, mas não conseguiu se lembrar de nenhuma, em particular diante de mentira tão ostensiva.

—Minha neta sente-se mais confortável com crocodilos do que com membros da própria classe — afirmou a avó. — Talvez você possa me ajudar a treiná-la para se tornar uma lady apropriada, capaz de herdar meu título.

— Será uma honra, Condessa. — Um brilho dissimulado apa­receu nos olhos castanhos de corça. — Ouvi histórias maravilhosas sobre a corajosa colonizadora que carrega uma adaga no corpo.

— Exatamente por isso você é necessária, Marie. Gostaria que minha neta fosse orientada sobre os aspectos mais requintados da vida em sociedade.

Marie examinou Delphine com um olhar penetrante.

— Que tal fazermos um pacto? — propôs Marie, afinal.

— Um pacto? — estranhou a condessa.

— Será um grande prazer compartilhar meus conhecimentos com esta moça encantadora se ela me contar, em troca, histórias sobre a Louisiana.

— Está interessada em ouvir sobre minha vida? — indagou Delphine.

— Imagino que vão chegar a um acordo — A condessa se ergueu, apoiando-se numa bengala. — Preciso descansar. Fiquem à vontade. Eu as encontrarei para tomarmos chá.

A condessa saiu, deixando Delphine sozinha com Marie.

— Sente-se a meu lado e me conte tudo sobre sua colônia fas­cinante.

Marie tomou o lugar da avó, retirou o chapéu e o xale e se acomodou entre as almofadas. Ainda era o quadro da perfeição.

— Há muito a contar. — Delphine sentou-se perto de Marie, mas não se reclinou, pois o espartilho incomodava demais. — Por que se interessa pela Louisiana?

— Sempre quis visitar o Novo Mundo — disse Marie, sonha­dora. — Parece estranho?.

— Parece, vindo de uma lady tão refinada.

Marie fez beicinho e corou de leve. Era uma mestra em sedução.

— Você também é uma lady, Delphine. É uma Delaronde e uma Magon, faz parte de duas das mais ilustres famílias francesas. Certamente deve levar uma vida a sua altura na Louisiana.

Sim, havia bailes e festas dadas pelos creoles, os aristocratas franceses nascidos na colônia, mas nada à altura de Marie. E Del­phine desprezava a maioria das festas em New Orleans, preferindo navegar em mar aberto com Phil e o pai.

— Lamento, mas não frequento a sociedade creole, madame.

— Então, como passa seu tempo? — Marie estava surpresa.

—Meus familiares se dedicam a negócios da marinha mercante. Tive permissão para acompanhá-los em suas viagens às índias Ocidentais.

— Fascinante. Preciso ouvir tudo — declarou Marie, aguçada curiosidade.

Mas Delphine tinha seus objetivos, e histórias sobre as índias Ocidentais estavam longe de sua mente.

— Em relação a nosso pacto, madame. vai me ensinar tudo o que sabe?

— Tudo o que sei? — Marie deu risada. — Isso levaria muito tempo.

—Ficarei eternamente grata se me aceitar sob sua tutela. Aspiro portar-me com elegância igual à sua.

Marie sorriu feliz, com o elogio. Ajeitou o cabelo, sem neces­sidade.

— Comece chamando-me por Marie.

— De acordo — aquiesceu Delphine sorridente, ansiosa para conhecer os segredos da condessa.

— Vamos nos encontrar pela tarde. De início uma aula sobre elegância e leveza do porte, depois uma história sobre a terra mis­teriosa do outro lado do oceano.

Delphine não entendia a razão do fascínio dessa deusa pelas terras pantanosas que eram seu lar. Mas não tinha importância. Havia se encontrado com a inimiga e ia conhecê-la.

 

Delphine ignorara sua intuição e atendera aos desejos da avó, o que fora um erro. O baile, dado por úma família proeminente de St. Maio, em honra da visita de Charles Armand, ocorrera no lado oposto da cidade. Agora, precisava suportar o longo trajeto de carruagem para casa.

— Não pode ir mais depressa? — indagou ao cocheiro, através da janela.

— Estamos indo o mais depressa possível, mademoiselle.

Delphine sentia-se impaciente. Por que não ouvira seu coração e ficara em casa? Vestia seu mais belo traje, o cabelo fora levantado em cachos no alto da cabeça e usava as belas jóias da família. Mas fora longe demais esta noite.

A avó queria uma condessa que herdasse o título e os bens familiares e, para agradá-la, no último ano de sua vida, Delphine aprendera regras sociais, linguagem apropriada e gestos cerimo­niosos. Tudo sob a tutela de Marie.

No primeiro evento, a sociedade de St. Maio mostrara-se an­siosa para conhecer a "mulher do punhal", originária dos lugares ermos da Louisiana. Tal como Marie, todos ficavam fascinados com as narrativas sobre nativos e crocodilos. Delphine contava suas aventuras no mar, acautelando-se para ser moderada. Contava como, durante os meses de primavera, o rio às vezes se elevava acima dos telhados de New Orleans, protegida apenas por uma pequena barragem. Falava sobre os ingleses em Baton Rouge e sobre as relações do governo espanhol com os residentes franceses.

A entrada de Delphine na sociedade de St. Maio foi um sucesso imediato, e a elite da cidade passou a convidá-la para todos os eventos importantes.

Delphine se divertia. Gostava de falar sobre sua terra natal. Mas ansiava ficar ao lado da avó, em particular pelo fato de a saúde da condessa ter se deteriorado durante a primavera. Esta noite teria ficado em casa não fosse a insistência da condessa.

Afinal a carruagem chegou e Delphine saltou sem esperar por ajuda.

— Por favor, agradeça a monsieur Charles pelo uso de sua carruagem — pediu ela, correndo para a porta da frente.

Étienne, muito perturbado a encontrou no vestíbulo e a ajudou a tirar o xale.

De repente, Delphine sentiu um medo igual ao que sentira quan­do a mãe morrera. Apressou-se a subir a escada.

Há mais de um ano, Delphine vivia na França e sabia que um dia qualquer seria o último para a avó. Mas nada a preparara para a imagem pálida da amada amiga, deitada imóvel. Aproximou-se e se ajoelhou perto da cabeceira.

— Vovó. — Delphine pronunciou o nome quase como uma ordem, na esperança de trazer a avó de volta.

A condessa abriu os olhos, mas o esforço a consumiu.

Delphine pegou sua mão e a levou aos lábios.

— Conhecê-la foi o maior prazer de minha vida — sussurrou a condessa.

— Não me deixe — suplicou Delphine chorando.

— Achava que minha pirata não tinha medo de nada — disse a avó tentando sorrir.

— Eu a amo, vovó. Por favor, não parta.

— Não tema nada, menina. Seu futuro vai lhe trazer possibili­dades maravilhosas — a condessa conseguiu falar, respirando com dificuldade.

Casar-se com um nobre a quem não poderia amar, bens que não desejava administrar, seu lar a milhares de léguas de distância. Pelo bem da avó, Delphine concordou.

— Farei tudo para que sinta orgulho de mim. Sim, vovó. Tudo.

— Seja feliz.

E com estas palavras finais, madame Sandrine Magon, condessa Delaronde, faleceu.

 

O porto à noite não era lugar para uma lady, muito menos para a próxima condessa Delaronde, mas Delphine precisava ver o mar e respirar o ar salgado. Vestiu sua capa escura sobre o vestido que usara ao chegar a St. Maio e escondeu o rosto com o capuz.

Não se preocupava que alguém a reconhecesse. Um agudo sen­so de isolamento apertava seu coração.

A carta de seu pai estava no bolso da capa e a confortava. Como seria bom se a embarcação atracada no porto essa noite fosse La Belle Amie. Ia escrever imediatamente e pedir-lhe para vir buscá-la. Enquanto ele não chegasse, colocaria as propriedades em ordem e providenciaria um administrador para cuidar do castelo no cam­po. Pediria a Charles mais tempo para considerar sua proposta de casamento.

E reveria Phil. Em vez de mágoa, sentia-se irada. Ele não es­crevera nenhuma vez desde que ela partira, nem enviara lembran­ças nas cartas de Gabrielle e de Jean. Os dois haviam mencionado que fizera numerosas viagens ao Caribe e que ele raramente era visto em New Orleans, mas nada desculpava sua desatenção. Sen­tia-se rejeitada pelo melhor amigo e confidente. Ainda o amava. Mas nunca o perdoaria.

Uma carruagem virou a esquina da rua e Delphine se abrigou nas sombras da muralha.

— Desculpe-me, mademoiselle, mas este lugar tem dono.

Delphine sobressaltou-se e se afastou da voz masculina. Quan­do o rosto do homem surgiu ao brilho de um lampião próximo, Delphine temeu pela própria sanidade. Em pé, a sua frente, estava a imagem perfeita de Phil, mas vestido em traje acadiano.

— Não era minha intenção assustá-la — disse o desconhecido, sorrindo. — Mas pisou em meus pés.

Tiras de couro amarradas com um cordão serviam de sapatos para o sósia de Phil que, ao se perceber examinado, recuou para as sombras.

— O que esperava de quem vive de caridade? — indagou o homem amargurado. — Não recebemos uma boa acolhida após sermos brutalmente arrancados de nossos lares pelos ingleses e depois aprisionados por anos.

Os olhos do homem eram demasiado escuros para serem de Phil. O cabelo muito ondulado, e ele não era tão alto. Usava roupas parecidas com as de Gabrielle e de outros acadianos que ela co­nhecera na Louisiana. Estaria vendo coisas?

— Phil? — indagou, com voz tremula.

— Acho que está me tomando por outra pessoa.

Pela voz estava claro que não era Phil. Mas quem seria esse acadiano, que surgira como por encanto em seu desespero? Lu­tando para conter os soluços, Delphine fez um aceno e começou a andar na direção de sua casa, mas logo outra carruagem virou a esquina.

— Uma lady não deveria estar sozinha nas ruas — disse o des­conhecido, segurando-a pelo cotovelo e puxando-a para as som­bras até a carruagem passar. — Permita que eu a acompanhe.

Delphine não queria olhar para o homem misterioso que a fazia se lembrar de seu amado, pois temia irromper em choro.

— Por favor, mademoiselle, não tem nada a temer de mim.

Delphine não sabia explicar a razão de ter aceitado. Era perigoso permitir a um homem acompanhá-la e ver onde morava. Mas con­cordou, confortada pelo sósia de Phil a seu lado.

— Meu nome é Delphine. Lamento ter me sobressaltado, mas seu rosto lembra-me alguém.

— Já me disseram isso várias vezes. É compreensível, pois tenho família aqui.

— É acadiano?

Desta vez, ao passarem sob um lampião, Delphine viu o sorriso que fazia seu coração acelerar. Embora os traços diferissem um pouco dos de Phil, o desconhecido era igualmente encantador.

Sua roupa estava em farrarjos. O tecido pesado, de lã, devia ser de fabricação caseira. Os outros acessórios não combinavam e estavam em mau estado.

— É claro que sou acadiano — declarou o homem ao perceber que a moça o examinava. — Quem mais usaria estes farrapos nesta bela cidade?

Delphine não sabia que havia acadianos em St. Maio. Sua vida na França consistia em bailes e festas e em passar o tempo com a avó na biblioteca.

Chegaram, e Delphine relutava em se despedir desse misterioso acadiano que se parecia com Phil. E desejava conhecer sua história.

— Aceita um café?

O homem a fitou, desconfiado. Por que uma mulher de seu nível ofereceria algo a um refugiado?

— Sou da Louisiana — confidenciou ela. — Meu pai é casado com uma acadiana.

— Ouvi falar que muitos acadianos foram para lá — disse o homem, surpreso.

— Muitos — garantiu Delphine. — Centenas de acadianos fo­ram recebidos pelos espanhóis que lhes deram terras e ferramentas para recomeçarem a vida. A Louisiana está sendo chamada de a Nova Acádia. Deve estar com frio. — Delphine tocou a manga do homem. — Por favor, entre, vamos comer alguma coisa.

— Não, obrigado. Estou cansado de caridade.

— Mas não é caridade. — Como podia Delphine explicar que oferecer café e roupas era uma oportunidade para curar seu coração solitário? Queria falar-lhe, ouvir a cadência única de seu francês, fechar os olhos e fingir que estava sentada na cozinha de Gabrielle.

O homem misterioso ficou em silêncio, mas pegou sua mão e a levou aos lábios. Fez uma reverência e se virou para partir.

— Espere — sussurrou Delphine.

Nesse momento, a porta da frente foi aberta e Étienne saiu apressado.

— Condessa, estávamos tão preocupados.

Diversos criados seguiam o mordomo, todos aflitos. Delphine sentiu remorso. Seus criados também estavam de luto e ela os havia desertado pelo conforto do mar. Mas precisava saber o nome do acadiano, precisava saber se havia outros. Ao se virar, avistou o desconhecido desaparecendo atrás do portão.

— Espere — pediu Delphine. — Diga-me seu nome.

Mas não houve resposta.

 

— Meu nome é Jean Bouclaire e preciso ver a condessa.

Era a primeira vez que Phil usava o nome de seu sócio como disfarce e as palavras lhe causaram estranheza. Mas era seu único recurso para entrar em St. Maio, a cidade que o tinha como morto. Philibert Bertrand estava morto para os residentes dessa cidade temível.

O mordomo observou a roupa de Phil, a começar por suas botas de couro de cano alto e o sabre pendendo a seu lado, até a camisa amassada e o casaco longo, que permitia liberdade de movimentos e ajudava a esconder armas, quando necessário. Phil pensara em usar roupas mais adequadas para visitar a condessa Delaronde, mas sentia-se mais confortável em sua roupa usual. Considerando sua ansiedade, a última coisa de que necessitava era um colete sufocante, meias de janota e fivelas nos sapatos. E jamais viajava sem sua espada.

— A condessa está ocupada, monsieur. Ê assunto urgente?

Phil queria gritar que sim. Já fazia mais de um ano que Delphine partira para a França e estava na hora de voltar para a Louisiana. Se precisasse arrastá-la, então que fosse. Mas sua primeira tática seria aproximar-se da condessa e convencê-la de que a presença de Delphine era necessária em sua terra natal.

— É importante — disse ao mordomo. — Não tomarei muito tempo da condessa.

O mordomo hesitou. Depois abriu a porta da biblioteca e fez um gesto para Phil entrar.

— Posso lhe oferecer uma bebida, monsieur?

Phil sentia grande vontade de aceitar, mas recusou. O mordomo saiu da biblioteca e percorreu um corredor em direção a um apo­sento de onde saíam vozes. Phil apoiou-se no consolo da lareira e ensaiou a fala que havia praticado durante a viagem de dois meses da América, os argumentos que convenceriam a condessa a man­dar a neta de volta para a! colónia.

Na verdade, não tinha o direito de estar ali. Nem sequer tinha a aprovação de Jean. Ao voltar de Havana e ficar sabendo que Delphine ainda não estava em casa, decidira ir buscá-la. Jean es­tava ocupado com assuntos ao norte da cidade, por isso Phil anun­ciara a Gabrielle que ia partir com a maré e lhe comunicara que voltaria com Delphine no fim do verão.

Phil tinha uma desculpa. O governador Galvez lhe confiara uma missão urgente na França. Um rico francês desejava doar armas e dinheiro para a causa americana e Phil lhe forneceria o transporte. Também havia um grupo de acadianos expatriados que haviam ido para St, Maio, depois de terem sido aprisionados pelos ingleses.

Era a desculpa de que necessitava. Partira o mais rápido possível para a França. Nada daquilo importava de fato. Precisava ver Phyney e curar a mágoa que causara irrefletidamente.

Mais de um ano se passara e todos os dias ele era atormentado por seu comportamento na cabine, na noite em que a afastara. Não se perdoava por ter arruinado a melhor amizade de sua vida. E sempre sonhava repetir o beijo do último encontro.

A elegante biblioteca, a encadernação de couro dos livros e as ricas tapeçarias fizeram Phil se lembrar das diferenças entre ele e Delphine e o título que ela herdaria. Era sua Phyney, a menina que jurara proteger e que, no entanto, estava prestes a se tornar intocável.

Serviu-se de uma bebida e desfrutou a sensação ardente do lí­quido. Desde sua humilhação no casamento de Marie, Phil des­prezava a aristocracia. Sua Phyney podia ser uma nobre, mas não ia permitir que a avó a corrompesse. Mais um ano junto com essa gente, e ela chegaria a se imaginar acima dos outros, concordaria com um matrimônio sem amor e um estilo de vida frívolo que só lhe traria miséria. Precisava levá-la para casa, de volta às colônias, onde a liberdade pairava no ar e a igualdade não era uma idéia vazia.

Passos apressados ressoaram no corredor. Phil imaginou que o mordomo havia enviado um criado para dispensá-lo. Sem dúvida a condessa se recusara a recebê-lo e resolveu mandá-lo embora. Preparou-se para insistir por uma audiência com madame Dela­ronde quando as portas se abriram. Em pé, na soleira da porta, estava Delphine.

De início Phil se esqueceu do nome com que se apresentara ao mordomo, esqueceu que Delphine havia se apressado para a bi­blioteca para ver o pai. Além do sorriso ansioso e dos olhos bri­lhantes, percebeu as resmas de seda negra se espalhando como fontes ao redor de seus quadris. Seu cabelo estava levantado no alto da cabeça e jóias maravilhosas adornavam as orelhas e o pes­coço. Apesar de sua ansiedade infantil, Delphine tinha a postura de uma rainha. Mas ficou surpresa e paralisada. Seu sorriso desa­pareceu e seus olhos exprimiram assombro.

— Condessa — chamou o mordomo, do corredor. — Precisa de ajuda?

— Non, merci, Étienne. É um velho amigo de família.

O mordomo se retirou e fechou a porta. Phil sentia vontade de abraçá-la, mas a mulher a sua frente não era a Phyney que ele conhecia.

— Pedi para ver a condessa.

— Então não veio para me ver? — indagou Delphine, intrigada.

— Vim para levá-la para casa. Queria falar primeiro com a condessa.

Delphine avançou com movimentos graciosos. Parecia mais forte, mais confiante. Os olhares de adoração que ela costumava lançar-lhe haviam sido substituídos pelo olhar frio e aristocrático de uma mulher adulta que ele não reconhecia.

— Não compreendo.

— Acho que sim — contestou Phil, observando o traje dispen­dioso realçado pela bela renda negra. Parecia uma estranha, uma mulher de outro mundo e isso o aborrecia. — Acho que sabe por que vim.

— Provavelmente deve se tratar de negócios — disse Delphine, em tom irascível e frio.

— Vim a negócios, sim. Há refugiados acadianos em St. Maio e planejo transportá-los comigo para a Louisiana.

— Acadianos? — surpreendeu-se Delphine.

Estivera demasiado ocupada vivendo uma vida de lazer para perceber a pobreza a seu redor, pensou Phil, como os outros mem­bros de sua classe desprezível.

— Há acadianos aqui, pessoas que necessitam de nossa ajuda. Você saberia disso se não tivesse passado tanto tempo devotada a coisas triviais.

— Não é justo. O que sabe de mim? — Os olhos escuros de Delphine ensombreceram ainda mais, indignada pela observação de Phil.

— Sei o que vejo.

— Você não sabe de nada. — Delphine cruzou os braços a sua frente e seus olhos se estreitaram.

— Vim por você.

Ele sabia tudo sobre Delphine Bouclaire Delaronde e não ia permitir que a aristocracia a arrebatasse.

— Veio? Sentiu falta de mim? — indagou Delphine dando ri­sada.

— A pergunta, pequena, é de quem você sentiu falta. Pelo jeito, está vivendo bem. Suponho que, após experimentar o gosto da sociedade, esteja planejando fixar residência aqui.

— Nunca planejei ficar.

— Já faz mais de um ano, Phyney.

— Que diferença faz quanto tempo estou na França? Minha avó precisava de mim.

— Está querendo dizer que você necessitava de sua avó e de tudo o que ela lhe deu. Deve ter apreciado as vantagens de ser uma Delaronde. Diga-me, Phyney, também renunciou ao nome Bouclaire?

Phil era um mestre, quando se tratava de reagir, um especialista com o florete e uma arma de pederneira. Sempre dormia com um ouvido atento ao que o cercava. Ninguém o surpreendia. Mas não percebeu o tapa de Delphine chegando. Ela o atingiu no rosto com força brutal.

— Como ousa!

— Acho que mereci isso. — Phil levou a mão à face dolorida, imaginando qual insulto a irritara, a observação sobre seu nome de família ou as liberdades que ele tomara com ela em sua cabine naquela noite angustiante.

Delphine não conseguia conter as lágrimas. Ergueu o queixo e, por um momento, a antiga Delphine emergiu.

— Sim, Philibert, você mereceu isso.

Ele se aproximou, decidido a se desculpar, mas Delphine se aproximou da mesa e se serviu de um conhaque.

— Mais de um ano e nenhuma palavra de sua parte, Phil. E entra aqui como se eu lhe pertencesse.

Embora sentisse uma faísca de esperança de que ela ainda gos­tasse dele, Phil decidiu não insistir, considerando o abismo entre eles. Como no ano anterior, decidiu manter distância.

— Achei que era o melhor a fazer.

— Achou melhor me descartar de sua vida. — Os olhos de Delphine brilhavam de fúria.

— O que esperava de mim? Agora deverá se casar com um homem abastado e de boa linhagem. Não necessita de um plebeu para lembrá-la de seus erros passados.

— Erros passados? — Delphine o fitou, incrédula. — É o que sou, um erro passado?

Phil queria dizer que Marie fora um erro do passado, que Del­phine significava mais para ele do que a própria vida, mas ficou zangado com o problema que sua herança acarretava, zangado pelo pouco que sua vida valia no grande esquema da vida.

— Entendo. — Delphine sorriu com tristeza.

— Não, não entende.

—Foi tolice minha pensar que você gostava de mim tanto quan­to eu de você — disse ela com meiguice, expressando em cada palavra, a dor que sentia.

Phil voltou-se para a mulher que conhecia há anos, a menina que cuidara de seu corpo e alma em sua hora mais difícil. Ainda era sua Phyney, não era? A mesma menina corajosa que ele ensi­nara a velejar, a atirar, a navegar para as índias Ocidentais. Colocou a mão em sua face e deixou seu polegar explorar a pele sedosa. Delphine fechou os olhos. Céus, era bela, tão delicada e tão forte ao mesmo tempo.

— Eu a amo, Phyney.

Não devia ter dito isso. A confissão nada resolvia, só podia causar mais dor. Mas as palavras o libertaram.

Para sua surpresa, ela abriu os olhos e se afastou. Olhou-o com uma mistura de mágoa e ira.

— Pare de me chamar assim. Meu nome é Delphine.

Phil não sabia o que dizer, não entendia por que ela estava zangada.

— Sei que me ama, tio Phil — continuou ela, chamando-o como costumava fazer quando criança. — Mas não é esse tipo de amor que desejo.

Phil queria explicar melhor, mas não conseguia encontrar as palavras adequadas. Enquanto sua mente buscava a resposta apro­priada, alguém bateu na porta.

— Delphine, querida, está tudo bem?

Algo naquela voz fez acelerar a respiração de Phil. Um alarme soou em seu cérebro. Também Delphine reagiu à voz feminina, retraindo-se. Seria possível?

Bom Deus, pensou Phil. Não podia ser. Mas quando olhou pa­ra Delphine, buscando uma negação, viu que ela o olhava com piedade.

— Posso entrar? — perguntou a voz.

— Sim, Marie. Entre — respondeu Delphine derrotada.

O mundo pareceu de repente parar quando Phil avistou Marie Labárthe, a deusa por quem uma vez estivera apaixonado, a mulher que havia trazido escândalo ao bom nome de sua família e arrui­nado sua vida. Deixou cair o copo de conhaque no chão.

Delphine observava horrorizada como seu mais querido amigo e sua atual mentora, brutalmente separados pela classe social e pelo escândalo, se olhavam. Ouviu o copo se espatifar no chão de pedra ao mesmo tempo que Marie ofegava e levava a mão à boca. Ignorando o próprio coração, enquanto ele se estilhaçava como o copo, Delphine chamou Phil e correu para o lado de Marie segun­dos antes de ela desmaiar.

Phil segurou Marie nos braços e a levou para o sofá, o tempo todo fitando o rosto maravilhoso como um rapaz loucamente apai­xonado. Delphine já vira muitas vezes aquele olhar nos rostos de homens apaixonados de St. Maio, os pretendentes que Marie afas­tava desde a morte do marido. Agora os olhos de Phil refletiam a mesma adoração.

Ele segurou a mão de Marie, sussurrando seu nome com uma reverência que não diminuíra ao longo dos anos. Toda a esperança de Delphine desapareceu. Estava claro que Marie era a dona do coração de Phil, e isso nunca mudaria.

Phil olhou Delphine, com olhos questionadores. Mas ela pre­cisava se ocupar de uma mulher desmaiada no sofá e com a che­gada de outras pessoas.

— O que aconteceu? — perguntou Charles. — Posso ajudar?

O mordomo e dois criados também haviam se aproximado.

— A condessa sentiu-se mal, mas está melhor. Étienne, por favor, traga um copo de água e Charles, por gentileza, peça a Gilbert para buscar a carruagem de Marie.

Charles fez uma curvatura galante, ansioso para agradar, depois saiu. Marie estava tentando sentar-se. Depois se lembrou da razão de sua tontura. Olhou de esguelha para Phil e Delphine temeu que ela voltasse a desmaiar.

Étienne deu o copo a Delphine e esta o apertou nas mãos de Marie, mas os olhos da condessa estavam fixos em Phil.

— Você morreu — sussurrou ela. — Ou estou vendo um fan­tasma?

— Não, minha cara. Não morri — respondeu Phil.

— Mas como...?

— Marie, este é um amigo de minha família — interveio Del­phine, preocupada com a necessidade de anonimato para Phil. — Seu nome é Jean Bouclaire.

Os olhos castanhos de Marie, em geral suaves e indiferentes, examinaram sua pupila com olhar penetrante e animosidade evi­dente. Delphine sempre suspeitara que havia um lado sombrio na condessa, como imaginara sua avó e agora não havia mais dúvida.

— A carruagem chegou.

Delphine agradeceu por ter um amigo como Charles que sempre a salvava em momentos, difíceis. Pena não amá-lo, pois, com sua natureza afetuosa, daria um marido maravilhoso.

Mas o homem que ela amava ainda segurava a mão de Marie, ainda estava preso ao passado. Delphine queria afastá-los, insistir que seu amor por essa mulher era um erro. Em vez disso, levantou-se com altivez e agiu como uma descendente das famílias no­bres Delaronde e Magon.

— Sua carruagem chegou, Marie — avisou Delphine. — Cer­tamente monsieur Bouclaire a acompanhará a sua casa.

Phil olhou para Delphine como se quisesse rejeitar a sugestão, mas incapaz de fazê-lo.

— Ficaria muito grata por isso, monsieur Bouclaire — agrade­ceu Marie, enviando a Delphine um olhar intimidador e dando-lhe o copo de água. — Boa noite, Delphine. Rezo para que durma bem esta noite.

Delphine conteve as lágrimas. A mulher invejada por toda St. Maio estava saindo pela porta com seu amor e também a estava censurando. Era demais.

— Dormirei bem esta noite, Marie. Rezo para que o mesmo lhe aconteça.

— Acho que não dormirei de modo algum — sussurrou Marie e se retirou com um sorriso convencido.

— Voltarei logo — disse Phil, segurando a mão de Delphine.

— Eu o verei pela manhã, monsieur Bouclaire, para continuar­mos a discutir nosso assunto.

Phil hesitava. Em seus olhos não havia adoração por Marie nem rancor por Delphine. Só havia resignação. E isso assustava Del­phine mais do que tudo.

— Pela manhã, então — sussurrou ele e seguiu Marie.

Delphine sentiu Phil sair, ouviu a porta da frente abrir e fechar, depois o som das rodas da carruagem sobre as pedras. Esquecida da presença de Charles, jogou o copo de água na lareira.

Tentou respirar fundo, mas faltava-lhe ar. Lágrimas queimavam em seus olhos, suas têmporas latejavam. De repente, duas mãos enormes a seguraram e a fizeram voltar e apoiar-se num peito masculino. Delphine enrijeceu ao contato, ainda furiosa por ter sido vencida por Marie, mas, devagar, ele esgotou suas defesas, acariciou seu cabelo de leve, sussurrou palavras de conforto. Fi­nalmente Delphine se rendeu ao abraço.

— Então foi por essa razão que estava desolada durante a viagem.

Delphine queria suavizar o golpe de contar que amava outro, mas um nó na garganta a impedia de falar. Concordou com um gesto de cabeça, enquanto lágrimas escorriam por sua face.

— Eu sabia que se tratava de um homem.

Engraçado, pensou Delphine, ele não parecia magoado pela no­tícia. Afastou-se um pouco e Charles lhe sorriu.

— Lamento, não queria magoá-lo — disse ela, preocupada. — Lamento não amá-lo, Charles. Lamento muito.

— Eu a adoro, Delphine, mas também não a amo. Lamento também.

O que estava ele dizendo? Havia pedido sua mão!

— Minha mãe quer que eu despose uma francesa — explicou ele. — Eu a pedi porque você conhece a Louisiana e ia querer viver lá. Detestaria ter uma esposa que desprezasse meu lar. Amo aquelas terras.

— E ajudava o fato de eu ter um titulo e uma fortuna — com­pletou Delphine.

— Sim. Faço muitos negócios em St. Maio e nas índias Oci­dentais. Nosso casamento teria sido proveitoso em todos os aspec­tos, inclusive para seu pai.

O sorriso de Delphine desapareceu. Estaria Charles se referindo a Jean ou ao conde Delaronde?

— Sei quem é seu pai, Delphine — confirmou Charles. — Vivo fora de New Orleans e conheço todos os homens que navegam no rio. E sei que o homem que se apresentou aqui não é Jean Bouclaire. Acredito que seja Philibert Bertrand, o sócio de seu pai.

Ao ouvir o nome de Phil, Delphine reviveu a agonia por que passara. Virou-se para a lareira.

— Ele ama Marie.

Charles pegou a mão de Delphine e a levou para o sofá, fazen­do-a sentar-se a seu lado.

— Quem não está apaixonado por Marie? — perguntou ele. — A condessa tem metade desta cidade na palma da mão.

— Phil a ama há mais de uma década. Amava-a antes de ela se ter casado. Foi tolice minha achar que podia competir com ela.

— Marie Labárthe não chega a seus pés, Delphine.

Eram as mesmas palavras que a avó havia pronunciado. E Char­les não era de falar por falar. No entanto, nesse momento, Marie Labárthe, condessa de La Cahdelier, estava indo para casa com o homem que ela amava. E era duvidoso que fosse dormir, na La Belle Amie, essa noite.

 

Enquanto a carruagem saía do pátio Delaronde, Marie se segu­rava com força aos lados para se apoiar, ainda sentindo ver­tigem por ter encontrado Phil na biblioteca. Haviam se fitado como se cada um esperasse pelo desaparecimento do outro.

Mas Phil sabia que a beldade a sua frente não era uma aparição. Passara anos sonhando com o rosto delicado de Marie, revivendo o toque de sua pele e o som de sua voz. A deusa a seu lado era de carne e osso.

— Como é possível? — Marie interrompeu afinal o silêncio. — Contaram-me que você havia morrido.

Não, ele não estava morto. Por intervenção divina, Phil havia sobrevivido para encontrar-se outra vez em sua presença. No en­tanto, seus sentimentos por ela há muito se haviam desintegrado pelo tempo e pela distância.

— Contaram-lhe errado.

Os olhos de Marie se arregalaram e Phil se perguntou se ela ainda dominava os corações masculinos com um mero olhar. Cer­tamente ele havia sido um dos escravos, obediente a todas as suas exigências. Mas era um rapaz ingênuo, de dezessete anos. Dife­renças de classe não importavam para pessoas apaixonadas, dis­sera ele à família e aos amigos. As palavras de Marie lhe haviam ensinado. Diferenças de classe importavam. E sempre seria assim.

— Contaram-me que o atiraram nas águas do porto — prosse­guiu Marie. — Que você havia se afogado.

Phil lembrou-se da noite fatal em que diversos nobres o surra­ram até ele ficar sem sentidos e o lançaram na água para morrer.

— Fui salvo.

— Então minhas preces foram atendidas — sussurrou Marie. — Um anjo desceu do céu e apiedou-se de meu coração descon­solado.

Quanta ironia, pensou Phil! O verdadeiro anjo que se apiedara de seu coração mutilado ao vê-lo ser retirado semimorto das águas do porto, neste exato momento devia estar sofrendo na enorme biblioteca de uma família da nobreza. Irônico também, que ao pensar em Delphine, sentisse vontade de saltar da carruagem e correr de volta para ela, mesmo com Marie Labárthe sentada a sua frente.

— Em que está pensando?

Alguma coisa naqueles olhos mágicos mudou. Seria culpa? Os membros da aristocracia tinham consciência? Ou era outra coisa? Quando rapaz, Phil se atirava às cegas em qualquer situação, os impulsos dominavam seu cérebro. Aproximar-se da casa do conde de La Candelier, na noite do matrimônio de Marie, era um bom exemplo disso. Marie o chamara, implorara para que a levasse embora antes do casamento e ele atendera a seu pedido e invadira sua casa como um mosqueteiro.

Agora, capitão e contrabandista experiente, não se precipitava jamais, mas esperava e observava, estudando os sinais, examinan­do as possibilidades.

— Oh, Philbert — sussurrou Marie. — Como posso ser tão afortunada após tantos anos? Tê-lo de volta, são e salvo?

Ela colocou a mão sobre seu braço, mas Phil não estava pronto para esquecer. Afastou-se um pouco, deixando cair sua mão.

— Como está o conde? — Ele tentava esconder a ira da voz, procurando permanecer calmo, mas autodomínio não era seu forte. — Imagino que sua casa esteja cheia de crianças.

— Não tenho filhos. George adoeceu após o duelo. Um mês depois contraiu uma febre e nunca se restabeleceu.

— Lamento. — Essas palavras soavam amargas e ressentidas.

— Ele morreu, há muitos anos. — Marie fez beicinho. Parecia magoada.

Phil sentiu-se tocado, afinal, pegou a mão de Marie e a apertou.

— Meus pêsames.

— Não, Phiíibert, quem lamenta sou eu. Nunca tive intenção de ferir você.

— Por quê? — perguntou com tanta dureza que ela se encolheu no assento. — Por que me chamou na noite de seu matrimônio?

— Chamei-o no dia anterior. Você chegou demasiado tarde. — Uma lágrima escorria pela face de Marie, enquanto ela abanava a cabeça.

Phil foi invadido por pensamentos atropelados. Lembrou-se do rapaz que chegou ofegante em sua embarcação e entregou-lhe o pergaminho com a letra de Marie, lembrou-se da tinta borrada pela pressa em escrever. Não havia percebido a data em sua ansiedade para salvá-la?

Enquanto ponderava sobre o que ouvira, Marie se aproximou e apoiou o queixo em seu ombro. Seu perfume era lavanda e seu cabelo sedoso. Phil não se conteve. Fechou os olhos e saboreou o momento.

— Sempre o amei — sussurrou ela. — E sempre o amarei.

Phil virou-se para fitar os olhos que outrora faziam seu coração parar e que agora suplicavam. Poderia perdoá-la? Ainda a amava? Seus lábios estavam tão perto, tão ansiosos. Marie envolveu seu pescoço e o beijou. Ela tinha sabor de vinho. Tão macia, tão atraen­te, tão poderosa. Enlaçou-a pela cintura, Marie se aproximou mais e tocou com a mão o tecido de sua camisa. Quando ela afastou os lábios de leve, encorajando Phil a aprofundar o beijo, ele mordeu a isca.

Marie aprendera muito desde seu último encontro. Agora, mos­trava suas habilidades amorosas com segurança. Phil sentiu o mun­do girar e todo o bom senso desapareceu.

A carruagem parou e Marie se afastou com discrição. O lampião da porta da frente se refletia em seus olhos e algo neles fez Phil hesitar. No entanto, quando ela se inclinou outra vez e tocou sua orelha com os lábios, ele fechou os olhos, desfrutando a sensação.

— Fique comigo esta noite.

O cocheiro abriu a porta. Depois de sair, Phil ajudou Marie a descer. Parecia uma rainha, confiante e dominadora, dando ordens aos criados a seu redor. Era o momento de que Phil necessitava para recuperar a razão.

Quando Marie estendeu a mão, Phil beijou seus dedos e depois fez uma reverência.

— Boa noite, condessa — cumprimentou e depois desapareceu na noite escura de St. Maio.

 

Ainda sentindo o beijo de Marie em seus lábios e o calor do conhaque nas veias, Phil caminhava. Precisava recuperar seu equi­líbrio e sua sanidade.

No entanto, o que ele mais precisava naquele momento, encon­trava-se numa rua, nos arredores da cidade.

Parou numa esquina, indeciso. Treze anos haviam se passado, nos quais havia sido dado como morto. Seu irmão o receberia bem ou o expulsaria?

Precisava ao menos tentar ver o irmão mais novo. Seu pai os chamava de sal e pimenta, referindo-se às diferenças na cor de cabelo, mas as diferenças em suas personalidades também eram muitas. Sempre brigavam, quase se matavam e diziam que se odia­vam. Céus, como sentia falta de seu irritante irmão caçula.

Alain Bertrand se casara bem e trabalhava como chefe de estre­baria para uma das melhores famílias de St. Maio e vivia numa casa modesta. A notícia deixara Phil orgulhoso e aliviado pelo fato de seu escândalo não ter arruinado a vida de Alain.

Phil se aproximou da casa pelos fundos. Entrou no pátio e parou junto à porta de trás.

Ficou perto da janela da cozinha, rezando pelo melhor, espe­rando por um sinal. Recebeu um, de um corpo que mal alcançava sua cintura.

— Você é um pirata? — perguntou uma voz infantil.

Phil olhou para baixo e viu um menino vestido para dormir, carregando um balde de água quase tão grande quanto ele. Ele devia ter entre oito e nove anos.

— Por que pergunta? — indagou Phil.

— Está vestido como um pirata.

De repente o menino sentiu medo, atirou a água nos arbustos e subiu a escada em direção à porta.

— Não sou um pirata — tranquilizou Phil. — Sou capitão de uma embarcação.

— Meu bisavô François era um capitão — contou o menino. — Um dia navegou para Newfoundland e jamais retornou.

De repente, a porta do fundo foi aberta e surgiu uma mulher, segurando uma faca de cozinha. Ao avistar Phil, seu rosto se sua­vizou.

— Lawrence, vá chamar o papai — pediu ao menino.

Quando a esposa de Alain olhou bem para Phil, seus olhos ficaram gélidos.

— Você não é François.

Quem seria François? Phil não fazia a menor ideia. O avô mor­rera há muito tempo. E ele próprio não poderia ser confundido com um homem idoso.

— É um pirata — disse o menino, voltando para perto da mãe.

— Não é um pirata, Lawrence — sussurrou ela ao menino. — Acho que é seu tio.

Nesse momento, Alain apareceu. Seus olhos arregalaram e ele ficou paralisado. Phil preparou-se para o pior, esperando ser expulso.

Tudo aconteceu muito rapidamente. Alain se aproximou emo­cionado. Phil recuou, enquanto o irmão o agarrava pelos ombros e o abraçava. Phil demorou a entender o que estava acontecendo, que seu irmão, seu melhor amigo e único parente no mundo, estava chorando e o apertava com força.

— Você vai me sufocar — disse Phil, devolvendo o abraço. — Sempre foi emotivo.

— Contaram-me que você havia morrido.

— Sabe como é um Bertrand. É difícil se livrarem de nós. — Phil puxou o cabelo louro do irmão, como costumava fazer quando ambos eram crianças.

Pela primeira vez Aíain sorriu. Os irmãos se abraçaram outra vez, felizes por seu reencontro.

 

Phil recostou-se na cadeira, bem alimentado e satisfeito. A es­posa de Alain, Vírginie, havia lhe servido pratos deliciosos. Olhan­do o lar modesto, mas confortável, e os três rostos observando cada movimento seu, Phil sentia-se feliz.

— Você saqueia embarcações inimigas no Golfo do México ou prefere o Caribe?

A pergunta do sobrinho fez Phil sorrir. St Maio tinha uma his­tória intrincada de pirataria e produzira alguns dos mais famosos corsários franceses, que haviam trazido quase toda a riqueza da região.

— Já lhe disse, Lawrence, não sou um pirata.

— Então por que tem uma adaga na bota? — O menino estava satisfeito por ter conseguido essa informação secreta. — E por que tem essa espada?

— Não sou pirata. — Phil tirou a adaga e a deu ao sobrinho. — Transporto mercadorias do Caribe e do México para a Louisiana. Navego com uma carta de autorização do governador espanhol da Louisiana. Se um navio inglês me atacar ou tentar interromper meu negócio, sou livre para retaliar e pilhar sua mercadoria e ar­mamentos em nome da Espanha. E carrego uma espada porque preciso estar sempre em guarda.

— Já matou alguém?

— Chega, hora de dormir Lawrence — interveio Alain.

— É tarde — concordou Phil. — Conversaremos outra hora.

Virginie pegou a mão do filho, despediu-se do cunhado e beijou Alain. O amor do casal transparecia nos pequenos gestos. Phil sentiu alívio pela felicidade do irmão. Por um momento, Phil de­sejou um filho, uma esposa que o acompanhasse em suas viagens e compartilhasse seu leito. Mas isso era impossível. Havia duas mulheres em sua vida e ambas eram condessas!

— Preciso lhe contar algo desagradável — disse Alain.

Phil já antevia o que estava para acontecer. Ninguém havia mencionado o escândalo, no entanto ele pairara no ar a noite inteira.

— Não se preocupe. Vi Marie esta noite — disse Phil.

— Fique longe dela — alertou o irmão. — Não confio naquela mulher.

Phil tinha muitas razões para não confiar em Marie Labárthe, mas também seu irmão? No entanto, criados ouviam e viam muito no interior das casas.

— O que você ouviu?

— Muitas coisas. — Os olhos de Alain ficaram gélidos.

Phil lutou para não estremecer. Deviam ser boatos. Marie La­bárthe inspirava paixões, mas possuía um coração de ouro.

— Depois do duelo, o conde adoeceu — começou Alain. — Sofreu um ferimento no ombro e os médicos previram um com­pleto restabelecimento.

Phil lembrou-se do conde e de seus insultos na noite de seu matrimônio com Marie. Havia perdido um duelo e ordenara que seu oponente fosse morto.

— Mas ele nunca se recuperou — continuou Alain, abaixando a voz. — Começou a ter febre e problemas de estômago. Os mé­dicos não compreenderam o que acontecia. Então Marie disse a todos, inclusive aos criados, que o conde estava se recuperando bem e que ela cuidaria pessoalmente do marido.

— Soube que nunca se recuperou.

— Morreu no dia seguinte — contou Alain.

— Deve ter piorado — alegou Phil, que compreendera a insi­nuação do irmão, mas não se convencera.

— O conde morreu sozinho. Sem testemunhas. Sem os últimos rituais.

Essa informação atingiu o alvo. Certamente Marie teria com­preendido que o marido estava mortalmente doente e chamara um padre.

— Não é tudo. Depois de enterrarem o conde, Marie começou a vender seus garanhões premiados e bens de família e desaparecia por meses. Ouvia-se dizer que ia para outros países.

Isso era estranho. O que Marie ia fazer fora da França? Detes­tava viajar, tinha horror ao mar e aos estrangeiros.

— Não faz sentido.

— Não, não faz — concordou Alain. — Também nunca voltou a se casar, o que é estranho.

— Talvez estivesse esperando pelo retorno de seu amante. — Phil falou com sarcasmo, mas algo em seu íntimo esperava que isso fosse verdade.

— Ela precisa de dinheiro — contou Alain. — Dizem que está falida.

Estranho, pensou Phil. Marie se vestia de renda e sedas e não parecia em dificuldades financeiras.

— Então, Phil, o que o traz a St. Maio? Não me diga que é Marie.

— Não, não é Marie. Vim a trabalho e para buscar a filha de meu sócio.

— Filha de seu sócio? — indagou Alain, surpreso.

— Antes que você comece a ter ideias, ela é a próxima condessa Delaronde.

— Ora, isso é interessante. Você e a mulher do punhal. De vez em quando eu a ajudo com seus cavalos.

— Há algo que você não saiba? — Indagou Phil dando risada.

— Sei tudo sobre Delphine Delaronde — afirmou Alain. — É o assunto da cidade.

— Como assim? — estranhou Phil, sentindo, de repente, ne­cessidade de proteger Delphine.

— Deus do céu, não me diga que você também está apaixonado por ela!                           — Alain, o que estão dizendo?

— Nada de mais. Quando ela experimentava as roupas que a, avó encomendou, encontraram uma adaga dentro de uma liga na perna. Por isso ganhou o apelido de a moça do punhal. Todos querem ouvir suas histórias de piratas e crocodilos.

Delphine, com sua adaga na liga e contando histórias para a aristocracia de St. Maio? A adaga com que ele lhe presenteara quando fizera quinze anos e depois lhe ensinara a usá-la? Phil deu risada, cheio de orgulho e admiração. Mas não era de estranhar. Delphine podia conquistar o mundo se o quisesse.

— Phil, você ama essa condessa da Louisiana?

Condessa? Esse era um título apropriado para mulheres como Marie, não para sua companheira de aventuras. Se tudo corresse bem, Phil partiria em poucos dias, junto com Delphine, sem esse título medonho. Retornariam à Louisiana, voltariam à normalidade e à situação em que viviam antes daquele beijo perturbar seu mun­do. Tão logo ele conversasse com a avó e a convencesse a encontrar algum outro parente para herdar o título.

— Alain, por que você continua a chamá-la de condessa?

— Não soube? A condessa Delaronde, sua avó, morreu há duas semanas.

Nesse momento o mundo girou, levando Phil e todas as suas esperanças. Chegara demasiado tarde. Havia perdido Delphine para sempre.

 

Delphine avistou os mastros da La Belle Amie e a bandeira francesa flutuando no alto, à brisa da manhã, como um chamado à liberdade. Ficou emocionada e sentiu vontade de correr para o porto, mas lembrou-se das instruções da avó. Agora era uma con­dessa e tinha uma reputação a zelar. E pretendia fazer isso. Até o navio zarpar e se dirigir para o ocidente.

Aproximou-se devagar da embarcação, observando os homens ocupados em suas tarefas. Mathurin Hébert, o segundo no coman­do abaixo de Phil, estava inclinado contra o parapeito do tomba­dilho superior dando ordens. Sebastien Charré cuidava do cabo para orçar a embarcação e Vincent Nerault jogava água no convés. No porto, os homens cumpriam seus deveres, mas em ritmo tran­quilo, visitando a cidade à noite, em turnos.

Quem avistou Delphine em primeiro lugar foi Vincent, que cor­reu a seu encontro na prancha de embarque e a abraçou. Depois foi a vez do tímido Sebastien abraçar a visitante. Os olhos de Ma­thurin, o acadiano que ela conhecia quase há tanto tempo quanto Phil, encheram-se de lágrimas ao vê-la.

Delphine abraçou o velho amigo, apreciando o cheiro de sal de suas roupas e um vestígio de tabaco.

— Senti tanta falta de vocês. — Lágrimas corriam pela face da moça e ela enterrou o rosto no ombro de Mathurin para escondê-las.

— Está em casa agora, amiga querida — consolou Mathurin.

— Sim, Mathurin, estou em casa.

— Está elegante — comentou Sebastien. — Agora é uma con­dessa?

Mathurin observou o vestido e franziu a testa. Delphine rezou para que eles não a tratassem de modo diferente por causa de seu título

— Por que está vestida de preto, querida?

— Minha avó faleceu há duas semanas — contou Delphine, com lágrimas nos olhos.

— Lamento, Phyney — consolou Mathurin. — Você gostava dessa condessa? Foi boa para você?

— Sim, Mathurin. Eu a amava muito. Do mesmo modo como amo vocês todos.

Lágrimas corriam no rosto dos três marinheiros. Para evitar mais embaraços, Delphine mudou de assunto.

— Onde está Phil?

— Passou a noite bebendo. Só chegou há pouco.

— Ainda está dormindo — explicou Sebastien.

Tudo o que ela temera se tornara realidade. Então Phil passara anoite com Marie!

Delphine tentou se controlar. Não tinha nenhuma intenção de deixá-lo saber quanto sofria.

— Vou fazer-lhe uma surpresa — decidiu ela, com um sorriso forçado.

Desceu a escada para a cabine principal, abriu o trinco e entrou, silenciosa.

 

Phil estava deitado de costas, totalmente vestido, inclusive de botas. Seu cabelo escuro, espesso, solto, caía sobre a testa. Obser­vou as linhas de seu semblante. Era um rosto belo, que impressio­nava o coração das mulheres quando ele sorria.

Delphine examinou seu corpo, as longas pernas estendidas. Não se parecia em nada com os nobres com quem havia dançado no ano anterior. Philibert era real, sólido.

A espada estava a seu lado, sempre a seu alcance. Delphine deslizou os dedos debaixo da arma, tentando tirá-la da cama. Em segundos, a mão de Phil agarrou seu pulso.

— Estou contente por ver que Marie não arruinou seus reflexos.

Phil franziu a testa, soltou o pulso e se sentou. Seus olhos se iluminaram ao vê-la.

— Não percebe que é errado tocar minha espada?

— Tem certeza? — indagou Delphine, colocando as mãos nos quadris e o olhando com um sorriso sedutor.

Phil desejou por um momento sorrir à insinuação, mas optou por representar o protetor.

— Foi isso que lhe ensinaram? Falar desse jeito?

— Aprendi com a melhor de todas — retrucou Delphine, pas­sando os dedos pela espada e lembrando-se de quem lhe dera as lições.

Com um movimento rápido, Phil sentou-se na cama, pegou a mão de Delphine e a atraiu para perto.

— Desculpe-me, Delphine.

— Pelo quê? Lamenta por ter ido me ver ontem à noite, para me dar ordens ou por ter me beijado?

— Lamento por sua avó. Eu não sabia.

Delphine não o olhava. Ele estava demasiado perto, no entanto fora de seu alcance.

— E lamento por invadir seu lar e fazer exigências. Sabe como me sinto em relação a nobres.

Delphine queria argumentar que nem todos da nobreza se ajus­tavam à descrição de Phil, mas ficou em silêncio.

— Quanto a beijá-la, Deus me ajude, mas nunca lamentei.

Os rostos de ambos estavam tão próximos que ele poderia fa­cilmente beijá-la outra vez. Mas Delphine só conseguia pensar em Marie.

— Philibert, você é o homem mais intolerável que já enconlrei.

Ele ficou chocado, levantou-se da cama e começou a dar passos pelo quarto.

— Delphine, o que eu disse para irritá-la tanto? A voz de Phil exprimia preocupação genuína, mas ela não se importou. Limitou-se a olhar os telhados de St. Maio através da escotilha.

— Você fala em beijo depois de passar uma noite com Marie.

Phil foi até a escrivaninha onde havia um jarro de água e uma bacia.

— Não passei a noite com Marie.

Delphine sentiu-se irada. Ele nunca lhe mentira antes. Ao virar-se para confrontá-lo, Phil havia tirado a camisa e estava lavan­do o rosto e o pescoço. Os músculos de suas costas se definiam quando ele se movia. Já o havia visto de peito nu antes, mas es­quecera como seus ombros eram largos.

— Não minta para mim — tentou dizer com firmeza. Mas sua voz era fraca.

— Não estou mentindo — declarou Phil, começando a vestir uma camisa limpa.

— Mathurin disse que você só voltou há duas horas. Duvido que Marie o deixaria escapar de suas garras.

—Não passei a noite com Marie—declarou ele com um sorriso afetado pelo comentário de Delphine. — Eu estava com meu ir­mão.

Isso era novidade. Ou Phil estivera guardando segredos todo o tempo, ou estava mentindo outra vez.

— Você nunca me contou que tinha um irmão.

— E você nunca me contou que conhecia Marie.

— Quando eu poderia ter lhe contado? Ao responder todas as cartas que você me escreveu?

— Desculpe-me, Phyney... Delphine. Honestamente, achei que era o melhor a fazer.

Algo na voz de Phil atingiu seu coração. Ele jamais lhe havia mentido antes, por que começaria agora?

— Qual é o nome dele?

— Quem? — indagou Phil suspirando.

Delphine juraria que em seus olhos brilhava o amor.

— Seu irmão.

— Alain Gabriel Joseph Firmin Bertrand. Bem, agora sabe que não estou mentindo. Quem inventaria um nome desses?

— Acho que tenho de acreditar. Você não é tão inteligente a ponto de inventar um nome tão depressa. Alain é a razão de sua vinda para St. Maio?

— Vim para buscá-la.

— Você veio a negócios. É o que disse ontem à noite.

— Alguém aqui de St. Maio deseja contribuir com armas e dinheiro para a causa americana. Vim para transportar essa carga e também levar uma família de acadianos para a Louisiana. — Phil segurou a mão de Delphine e beijou as pontas dos dedos.

Delphine ainda duvidava. Phil jamais fora dado a atos heróicos. Lucros eram sempre seu objetivo.

— Vim para buscá-la — afirmou Phil, como se tivesse lido os pensamentos da moça. — Tudo o mais não passa de uma desculpa conveniente.

— Então você não é patriota.

— Parece desapontada, Phyney.

— De fato, estou. Gosto da idéia da independência. Achei que sentia a mesma coisa.

—Você não mudou nada—disse Phil, com os olhos brilhantes.

— É claro que mudei.

— Senti sua falta—sussurrou ele, aproximando-a de seu corpo.

Delphine não conseguia olhar para ele, temerosa do que podia acontecer. Havia prejudicado uma grande amizade com um beijo imprudente e não queria repetir o erro.

— Também senti sua falta — afirmou ela, dando um passo para trás. Ainda estavam muito próximos e ela resolveu mudar de assunto. — Posso fazer-lhe um chá para a dor de cabeça.

— Não é o que preciso realmente—respondeu ele, aproximan­do-se outra vez e olhando-a com intensidade.

Todas as defesas de Delphine desapareceram e ela envolveu seu pescoço com os braços. Phil não precisava de encorajamento para fazer o mesmo e a abraçou. Ficaram assim por vários mo­mentos, enleados pelo contato.

Mas Phil relaxou a pressão e se afastou. Há mais de uma década, eram grandes amigos e camaradas de armas. O elo entre eles jamais seria quebrado, apesar das tolices que ela cometera na cabine na­quela noite.

No entanto, algo como uma paixão escondida brilhava nos olhos de Phil e dava esperança a Delphine. Talvez a desejasse tanto quan­to ela o desejava. Delphine animou-se e desceu a mão pela frente de sua camisa, parando em cima do coração.

— Como gostou daquele último beijo, não quer outro? — sus­surrou ela.

Phil sentia-se dividido e lutava contra seu conflito interior. Mas essa era uma batalha que Delphine podia vencer, pois ela ficou na ponta dos pés e aproximou seu rosto a ponto de os lábios de ambos quase se tocarem. Nesse momento os passos de Mathurin ressoa­ram na escada.

— Capitão, uma pessoa deseja vê-lo. — Os dois se afastaram sobressaltados, tentando recuperar a serenidade.

Phil pegou a gravata e vestiu o casaco. Olhava com tanta inten­sidade para Delphine que ela se sentia derreter por dentro.

— Deve ser seu contato — disse ela, endireitando-se, tentando voltar ao estado normal. — Deve ser o homem que quer ajudar os americanos.

— Dez da manhã. Acho que está certa — concordou Phil. — Mande-o entrar, Mathurin!

Delphine esperava ansiosa para descobrir qual residente de St. Maio vivia a vida secreta de um compatriota americano. Mas quem surgiu foi a única pessoa que ela jamais teria esperado. Também era a última pessoa que Delphine desejava ver na La Belle Amie.

— Bom dia, Delphine — cumprimentou Marie entrando na cabine. — Bem, no que se refere a surpresas, estamos quites.

Pela segunda vez em vinte e quatro horas, Phil ficou sem palavras.

— Quer se sentar? — ofereceu, afinal, agindo com cortesia.

Marie sorriu e sentou-se na única cadeira na cabine. Mesmo numa embarcação no porto malcheiroso de St. Maio, conseguia ser graciosa.

— Sei por que você veio para cá, Phil. — Temos negócios a conversar.

— A bandeira...? — indagou Phil, passando a mão pelo cabelo na testa.

— A bandeira verde que há na proa de seu barco, o sinal... — Marie ajeitou as saias. — Estou à espera há duas semanas. Que boa surpresa saber que você será meu transporte. Podia ter me contado ontem à noite. Bem, então havia outras coisas em nossas mentes — completou ela com um sorriso vaidoso.

Delphine estava tensa. Marie lançou-lhe um olhar desafiador e depois a ignorou.

— Podemos conversar em particular, Philibert?

— Delphine, por que não nos traz um café? — pediu ele, sen­tindo-se embaraçado.

Café! Ele lhe havia mentido a respeito de sua noite, dissera que gostara de seu beijo, inclusive pensara em conseguir outro, até Marie entrar na cabine. Agora, ela era relegada a fazer café en­quanto eles, sem dúvida, discutiriam sobre negócios.

Delphine tentou conter sua ira, não queria que Marie tivesse a satisfação de vê-la embaraçada. Fechou a porta com força, depois entrou intempestivamente na cozinha.

— O que a está incomodando? — indagou Mathurin ao vê-la entrar.

Delphine não conseguia falar, só fazia ranger os dentes e gemer. Queria esmagar algo. Melhor ainda, varrer o olhar presunçoso do rosto de Marie ou dar um soco em Phil por permitir-lhe pensar que ainda a amava.

— Sente-se, Delphine — pediu Mathurin, com delicadeza.

— Não posso. — Ela começou a dar passos na pequena área que usavam para cozinhar suas refeições. — Foi com essa mulher que Phil passou a noite. Esta é a razão de ele chegar tão tarde. E teve a coragem de dizer que esteve com um irmão!

— O capitão? Passou a noite com aquela mulher bem vestida? Ela parece da nobreza.

Delphine respirava fundo e rezava para se acalmar. Seu coração batia tão alto que ela jurava poder ouvi-lo.

— É Marie Labárthe.

— Marie Labárthe? — indagou Mathurin, sentando-se.

Delphine anuiu e começou outra vez a dar passos. Como poderia competir com uma lenda?

— Meu Deus!

Delphine sentia as têmporas latejarem. Precisava acalmar-se, mas sentia-se incapaz.

— Sente-se, minha querida — pediu Mathurin, tocando sua mão. — Vou preparar um café.

— Eu a conheço há um ano. Todo esse tempo nunca vi de fato... — Delphine sentou-se na cadeira.

— Viu o quê, pequena?

— O que minha avó viu. Ela me fez prometer que eu jamais imitaria Marie.

— E ela viu... — conjeturou Mathurin.

— Nada, de fato. — Era difícil explicar. — Só disse que havia algo errado com Marie. Mas senti isso na noite passada. E sinto hoje também.

O acadiano serviu o café bem adocicado como era do agrado de Delphine, que logo começou a relaxar, sentindo-se outra vez uma criança, livre para falar o que pensava e ser mimada por ho­mens tão caros a ela. Quando Mathurin sentou-se a sua frente, ela lhe contou tudo sobre o ano anterior, como Marie a havia orientado e apresentado à sociedade, as promessas que fizera à avó, as pro­postas que havia recebido de Charles e de outros. Ao ouvir esta última notícia, Mathurin se alegrou.

— Aceitou alguma dessas propostas?

A velha dor voltou ao coração de Delphine quando pensou que o único homem que jamais amaria fora cativado pela deusa de St. Maio.

— Jamais amarei outra pessoa.

— Ela não chega a seus pés — confortou Mathurin.

Esse comentário provocou mais dor. Delphine se encolheu, ge­meu e abaixou a cabeça desolada.

— O que foi que eu disse?

— Agradeço sua consideração, Mathurin, mas já ouvi isso an­tes. Como eu poderia ser melhor do que a melhor? Nunca vi essa mulher sem estar imaculadamente vestida, bem penteada, as unhas perfeitas. Quando Marie entra em uma sala, todas as cabeças se voltam. Homens esperam do lado de fora de sua casa para avistá-la através de uma janela. Seus pés pequenos, graciosos...

— Beleza não significa unhas e pés pequenos, Delphine — contestou Mathurin.

Delphine acreditava nisso, de verdade, mas não era ela quem estava sentada na cabine de Phil nesse momento. Nem fora ela quem passara a noite a seu lado e fizera amor com ele.

— Phil a ama — sussurrou Delphine, incapaz de conter as lágrimas.

— Se ele ama Marie tanto assim, então por que ficou tão ator­mentado desde que você saiu de New Orleans?

— Porque me joguei em seus braços uma noite. Beijei-o em sua cabine na noite da festa de aniversário de Gabrielle — contou Delphine.

— Isso explica tudo — concluiu Mathurin sorridente.

— Explica o quê?

— Phil preocupou-nos muito no ano passado, Phyney. Ele não via a hora de sair de New Orleans. Quando estávamos no Caribe, queria voltar logo para a Louisiana. Dizia que era por causa de Galvez, mas sabíamos que não era verdade, sentíamos que havia algo entre vocês dois; Na última vez em que chegamos a New Orleans e ele soube que você ainda não havia voltado para casa, quis partir logo para a França, sem se importar em trazer algum carregamento. Se não conseguirmos um patrocinador a caminho do ocidente, ficaremos sem provisões em Havana.

Isso não era típico de Phil, navegar para um lugar com o porão vazio. Era famoso por sempre fazer grandes lucros.

— Por que não carregou alguma mercadoria antes de partir? Açúcar, por exemplo?

— Por que será? — refletiu Mathurin com um sorriso.

Mais confiante, Delphine abraçou Mathurin, depois pegou xí­caras e o bule de café e colocou tudo numa bandeja. Dirigiu-se à grande cabine e parou na porta para bater.

— Espero que seja café — comentou Marie.

Delphine mordeu os lábios para controlar a vontade de derramar o líquido no penteado de Marie. Em vez disso, entrou na cabine e sorriu.

— Então estamos de acordo — disse Phil em pé, junto à esco­tilha. — Vamos nos encontrar à noite para arranjarmos tudo.

Delphine deixou cair a bandeja sobre a mesa, fazendo derramar um pouco de café.

— Cuidado, querida — alertou Marie com suavidade.

Quando Delphine encontrou seu olhar, poderia jurar ter visto um desafio.

— Phil, posso conversar com Marie? — pediu Delphine.

— Certamente. — Ele se serviu de uma xícara e saiu.

Delphine sentou-se no canto da cama para ficar frente a frente com a outra.

— Marie, quero me desculpar. Isso deve parecer muito estra­nho, mas não falei sobre Phil por uma boa razão.

— É claro, minha querida. Está apaixonada por ele.

Ignorando a observação, Delphine continuou.

— Achei melhor não mencionar nada, considerando a história entre vocês dois.

— Não fique no meu caminho, Delphine — ameaçou ela. — Sempre jogo para vencer e não permitirei que ninguém roube meu amante. Estou sendo clara?

Era essa a delicada Marie Labárthe? Delphine levantou-se de­vagar e sua altura lhe permitiu olhar para baixo para a rival. Marie deu um passo para trás, mas não se intimidou.

— Agradeço tudo o que fez por mim, Marie. Sua amizade e orientação fizeram meu ano em St. Maio muito mais fácil e sou-lhe reconhecida por isso.

O semblante de Marie suavizou-se um pouco, como se Delphine estivesse pronta para consentir. Delphine continuou, pronunciando cada palavra devagar para dar mais ênfase.

—Mas agora está em meu navio, condessa. Ninguém me amea­ça dentro da La Belle Amie. Estou sendo clara?

Marie não vacilou, mas havia captado a mensagem. Delphine saiu da cabine e subiu a escada para o convés, de dois em dois degraus. Ao chegar em cima, respirou o ar puro do mar e pela primeira vez nessa manhã sentiu-se confiante.

Delphine teria se sentido vencedora se Marie não surgisse no convés e solicitasse a ajuda de Phil para ir para sua carruagem. Antes de levantar as saias e entrar no veículo, abraçou Phil e bei­jou-o na frente de todos.

A coragem que levara Delphine a confrontar Marie desapare­ceu. Seria uma longa viagem para a Louisiana.

 

Delphine sentou-se na proa. O que pensaria Gabrielle sobre suas demonstrações de ciúme naquela manhã? Ambas eram muito parecidas, mas Gabrielle confrontava a adversidade com seu tem­peramento suave e determinação. Delphine se parecia mais com Phil. Ambos sorriam pela dificuldade de controlar as emoções.

Delphine precisava se controlar se ia navegar para o Novo Mun­do com Marie a bordo. Mas, sem dúvida, seria uma viagem longa e horrível.

Um par de botas apareceu a seu lado, mas Delphine se recusou a levantar o olhar. Primeiro precisava dominar o batimento acele­rado de seu coração. Levantou o queixo e endireitou as costas.

— Não é o que você está pensando. Delphine, eu não fazia a menor idéia.

Respire, ordenou-se ela. Pare de agir como uma amante rejei­tada. Phil ama Marie que o quer de volta e este é o fim da história.

— Você não pode desposá-la. — disse Delphine, afinal, sem se conter como gostaria.

Para sua surpresa, Phil deu risada.

— Quem falou em casamento?

Delphine ficou confusa. Tudo não acabava em casamento?

— Então o que vocês dois estão planejando?

Phil sorriu e a fitou, mas de perto agora. Céus, ele ainda con­seguia enlevar seu coração com um simples sorriso. Uma tristeza profunda invadiu seu coração. De repente, Delphine não conseguia respirar. Phil percebeu seu desconforto, pegou sua mão e a acariciou.

— O plano é transportar armas para a Louisiana — contou ele com seriedade. — Nada mais.

— Transportar armas junto com Marie.

— Ela ofereceu pagar uma grande soma da qual nós precisamos. — Phil suspirou. — Além disso, ela insiste em fazer a viagem junto com seu carregamento.

— Marie quer ficar com você, Phil. Ela me contou isso e tam­bém disse que nunca perde um jogo. Sempre vence. Ameaçou-me, se eu ficar em seu caminho.

— Delphine... — começou Phil.

— O que você planeja fazer com Marie é assunto seu — con­tinuou Delphine teimosamente. — Não ficarei em seu caminho. Mas, como amiga, devo alertá-lo. Ela não merece confiança.

Seguiu-se um silêncio profundo. Então Delphine ouviu o sino das onze chamar para a missa na Catedral, do outro lado da cidade.

— Alerta registrado — disse Phil afinal, em tom de voz frio e irritante e estendendo a mão para ajudar Delphine a se levantar.

— Você vem? — indagou ele.

— Onde? — Perguntou Delphine, mas seguindo-o sem esperar resposta.

— Precisamos tratar de negócios.

Phil deu precedência a Delphine e, quando seus pés tocaram a prancha, ele não resistiu a uma troça.

— Precisa de ajuda, condessa?

— Acredito que me confundiu com outra pessoa, capitão.

Ela levantou a cabeça e desceu pela prancha, mas as palavras de Phil a seguiram.

— Sem comparações — afirmou ele.

Sem comparações mesmo, pensou Phil, observando Delphine descer sem esforço, numa postura perfeita, e com a cabeça erguida. Nunca encontrara uma mulher que se equiparasse a sua Phyney.

Ela parou no cais e olhou-o com ceticismo. Estava claro em quem estava pensando, mas ele não tinha uma explicação. O que levara Marie a beijá-lo em público? Estaria reivindicando seus direitos? Sentia algo de verdade por ele?

Duvidoso, pensou Phil. Delphine devia estar certa em sua ava­liação de que a condessa não merecia confiança. Mas os beijos de Marie ainda permaneciam em sua memória. Uma chama minús­cula, no recesso profundo de seu coração, indo contra a voz da razão, o fez sentir esperança de que Marie ainda o amasse.

Delphine o esperava, impaciente, Era um tolo em pensar em Marie. E agora tiha que lidar com duas condessas. De todas as situações perigosas em que se atirara nos últimos dez anos, esta era a mais traiçoeira.

Phil desceu e segurou Delphine pelo cotovelo.

— Aonde estamos indo? À casa de seu irmão?

— Sim, para a casa de meu irmão.

— Alin Bertrand. Devo admitir, Phil, você é mais inteligen­te do que pensei, inventando um nome tão impressionante tão depressa.

— Não foi tão difícil. Eu estava presente em seu batizado — replicou Phil e logo em seguida assobiou para chamar o cocheiro de uma carruagem de aluguel.

— A qual assunto você se referiu? — perguntou Delphine, já dentro do veículo.

— A Acadianos. Há vinte e duas pessoas em St. Maio, que foram enviadas para prisões inglesas depois de serem exiladas de seus lares na Nova Escócia. Os franceses intercederam em seu favor e os trouxeram para cá, mas nada mais fizeram além de lhes oferecer algumas moedas de caridade e...

— Promessas vazias — completou Delphine.

Phil alegrou-se. Então sua condessa não estivera preocupada só com futilidades como imaginara.

— Galvez espera que eu os convença a irem comigo para a Louisiana.

— Há centenas de acadianos aqui, Phil, não apenas vinte e dois.

— Centenas?

— Chegaram aqui há alguns anos, vindos da Inglaterra, a bordo de embarcações apinhadas, onde muitos sucumbiram de varíola. — Delphine parou de falar e a dor se espelhara nos olhos. Sentia pesar pela sorte dos acadianos, que ainda viviam em condições precárias, em exílio, após o deslocamento forçado da Nova Escócia vinte e quatro anos antes. — Receberam pouca assistência do rei, exceto uma ínfima pensão — prosseguiu Delphine. — Esses aca­dianos possuíam fazendas no Canadá e não desejam ficar sujeitos ao sistema feudal francês. Ajudaram a formar uma nação, perde­ram tudo quando os ingleses assumiram o poder e agora a França deseja agradecer-lhes tornando-os camponeses.

Phil sentia orgulho ao ouvir Delphine. Como pudera imaginar que ela havia mudado e se tornado um membro frívolo da nobreza?

Mal chegaram à porta da casa modesta, Alain surgiu e abraçou Phil com afeto.

— Estava começando a imaginar que tudo fora um sonho — disse Alain soltando o irmão.

— Ou melhor, um pesadelo — disse Phil em tom brincalhão. — Seu irmão escandaloso retornou dos mortos.

— Condessa Delaronde — cumprimentou Alain, empalidecen­do ao reconhecer Delphine e fazendo uma reverência.

— Delphine, este é meu irmão, Alain Bertrand — apresentou Phil.

— É uma honra, condessa — gaguejou Alain.

— Por favor, monsieur Bertrand, chame-me Delphine.

— Não, condessa, não posso fazer isso — disse Alain com os olhos baixos.

— Por que não? — perguntou Phil. — Faço isso.

Alain lançou um olhar de censura e desgosto para o irmão. Títulos e classe podiam ser ignorados na Louisiana, mas jamais na terra natal.

— É apenas um título, monsieur, que jamais imaginei receber até este ano. Fui criada a bordo de um navio, com seu irmão, por isso somos quase família, não é? — Delphine sorriu e segurou o cotovelo de Alain.

— Mas cuido de seus estábulos, condessa.

— É claro. Sabia que já o havia encontrado antes. Cuidou de meu cavalo doente no mês passado.

 

— Espero que ele esteja bem.

— Muito bem, graças ao senhor.

Virginie saudou os três na entrada, fazendo uma reverência diante de Delphine. Lawrence chegou correndo e abraçou Phil pelas pernas, dando risada.

— Peguei você, pirata — disse a criança, satisfeita. — Agora é meu prisioneiro.

Com um movimento rápido, Phil agarrou Lawrence e começou a balançá-lo no ar.

— Ponha essa criança no chão — admoestou Delphine. — Deve ter acabado de tomar o café da manhã.

— Ímos nos sentar para o almoço — disse Virginie, tímida.

— Céus! — exclamou Phil — Estamos tão atrasados?

— Bem, você e seu irmão foram dormir muito tarde ontem à noite — comentou Virginie. — Venham, por favor, sentem-se conosco.

Todos esperaram pela condessa, mas Delphine se ajoelhou diante do menino e lhe ofereceu a mão.

— Qual seu nome, sir?

— Lawrence — disse o menininho, aceitando a mão.

— É um prazer conhecê-lo, Lawrence. Meu nome é Delphine, mas pode me chamar Phyney.

— Seu nome é esquisito — disse Lawrence.

— Desculpe-me, condessa -— pediu Virginie, empalidecendo.

— Não há razão para pedir desculpas. Quando criança eu tam­bém fazia isso. Aliás, esse é um traço Bertrand, não é?

— Para seu bem, Alain, rezo para que seu filho saia a você — disse Phil, lembrando-se de como era naquela idade.

— Duvido — disse Alain. — É mais provável que ele siga seus passos, Phil. Ou os de François. Lawrence é apaixonado pelo mar.

— Quem é François? — indagou Delphine, mas Virginie a le­vou para a cozinha.

— Minhas desculpas, outra vez, condessa — pediu Alain. — Se soubéssemos que íamos receber convidada tão ilustre, teríamos preparado algo mais apropriado.

— Não poderia pedir uma refeição mais deliciosa. Sinto-me honrada. Mas só comerei se me chamarem de Delphine.

Alain e Virginie trocaram olhares desconfortáveis, claramente nervosos por falarem com uma condessa de modo tão informal.

— Talvez isso ajude — Delphine colocou um pé sobre uma cadeira e levantou a saia na altura da bota, mostrando uma adaga de cabo vermelho.

— Hurra! — exclamou Lawrence. — Ela também é pirata!

Todos deram risada e a tensão foi rompida. Sentaram-se para almoçar. Quando Virginie trouxe a sobremesa, a palavra condessa não era mais mencionada.

— Então onde está François? — indagou Phil, pegando seu café.

Depois de uma refeição farta e saborosa, o grupo foi tomar café no pátio.

— Ele disse que viria para o almoço — respondeu Alain. — Mas François não é conhecido por sua pontualidade.

— Quem é François? — indagou Delphine pela segunda vez nesse dia.

— Tio François — contou Lawrence.

— Outro irmão? — indagou ela a Phil.

— Não exatamente — disse Alain, levantando-se. — Delphine, gostaria de lhe apresentar nosso primo, François Bertrand.

Antes de Delphine se virar e encontrar o olhar do acadiano moreno em pé, atrás dela, já sabia quem era François. Não com­preendia como ou por que o sósia de Phil havia aparecido em St. Maio como refugiado acadiano, mas ao menos um mistério havia sido resolvido.

— Condessa, é um prazer reencontrá-la—cumprimentou Fran­çois fazendo uma reverência.

— O prazer é todo meu, monsieur. — Delphine estendeu a mão, que François beijou com delicadeza. — Nunca lhe agradeci por me acompanhar até em casa naquela noite.

— Já se encontraram! — surpreendeu-se Phil, levantando-se e impondo sua altura aos dois.

A atitude possessiva de Phil quase fez Delphine rir. Phil não mudara. Duvidava que estivesse com ciúme, mas ela achou que podia se divertir.

— Realmente, Phil, acredita que seu gêmeo andaria pelas ruas de St. Maio e eu não o encontraria?

— Como vocês se conheceram? — indagou Phil, cruzando os braços e observando o primo.

François sorriu. Sem dúvida estava se divertindo tanto quanto Delphine. Era encantador e um belo homem avaliou Delphine,

— Esse vai ser nosso segredo — respondeu François, dando uma piscadela para Delphine. — Um segredo entre mim e a con­dessa.

— Temos negócios a tratar, cavalheiros, não temos? — inter­veio Alain.

— Meu primo, condessa, deseja que eu vá à Louisiana com vocês. — contou François. — Opus-me a essa idéia ontem à noite, mas à luz do dia posso mudar de idéia.

— Espero que faça isso, monsieur — comentou Delphine. — A Louisiana é mais hospitaleira do que a França e um bom lugar para começar de novo. O governador Galvez ficará satisfeito por acolher mais residentes católicos dispostos a resistir aos ingleses, caso eles ameacem nossas fronteiras.

— Diga-me, Phil, vai transportar mercadorias para a Louisiana junto com nosso pequeno grupo? — indagou François.

— Sim. Mas não tenho autorização para contar quais são essas mercadorias — respondbu Phil, pouco à vontade.

— Sabia que os ingleses atacam os navios que deixam esta cidade, confiscam as cargas destinadas às colónias quando dão a volta perto da Bretanha? — indagou François.

— Sim. Era de se esperar agora que a França se aliou aos ame­ricanos e está outra vez em guerra contra a Inglaterra.

— Corre a voz pelo porto que um espião dos ingleses vem traindo nossos navios. Passo a maior parte de meus dias perto do mar, por isso ouço muita coisa.

— Como o quê? — indagou Alain.

— Há especulações — respondeu François. — Alguns dizem que um homem chamado Charles Armand é responsável pelos recentes ataques aos navios franceses.

— Charles Armand? É impossível! — exclamou Delphine.

— Conhece esse homem também? — indagou Phil com estra­nheza.

— É um bom amigo — garantiu Delphine. — Vive ao norte de New Orleans, costuma vir a St. Maio anegócios. De fato, ele sabe...

Sabe demais, pensou Delphine de repente.

— O que ele sabe, Delphine? — perguntou Phil.

— Não, Charles não pode ser um espião — disse Delphine mais para se convencer do que aos outros. Não o caro Charles. — Aliás, ele sabe que Jean é meu pai.

— Quem é Jean? — perguntou François.

— Esse é um segredo entre mim e a condessa — interveio Phil.

— Charles Armand pediu para voltar para casa conosco — contou Delphine. — Procurou-me ontem à noite e disse que pa­garia generosamente pela viagem.

— Não parece prudente — ponderou François. — Recuse-o.

— Já ouvi que esse homem é muito misterioso, entra e sai do porto com frequência. Ele se ajusta às descrições — comentou Alain.

— Não — insistiu Delphine. — Se Charles fosse um espião, o que tenho certeza que não é, por que pediria para se juntar a nós? Não informaria os ingleses e os deixaria atacar nosso navio? Por que iria se colocar em perigo estando a bordo?

— Delphine tem razão — refletiu Alain. — Ou talvez Charles pretenda saltar da embarcação depois de sinalizar aos ingleses.

— Vocês estão esquecendo um elemento importante. — Para surpresa de todos, Phil sorriu e abanou a cabeça. — Ninguém sobe a bordo da La Belle Amie sem minha aprovação. Nenhum inglês vai pegar coisa alguma.

— Phil, está me pedindo para arriscar as vidas de vinte e duas pessoas e a da condessa sem nenhuma garantia de segurança — interveio François, nada convencido.

— Ninguém sobe a bordo da La Belle Amie — repetiu Phil, sombrio. — Ninguém. E quanto à condessa sou perfeitamente ca­paz de tomar conta dela.

—Phil, imagino que esteja querendo partir o mais cedo possível — comentou Alain.

— Tão logo Delphine termine seus arranjos — respondeu Phil.

— Considere-os feitos — respondeu ela, esperando trazer de volta a cordialidade à conversa. — Meu primo, Pierre Magon, concordou em cuidar de minha propriedade no campo e contra­tei um administrador para tratar de meus assuntos financeiros na cidade.

— Seu primo? — estranhou Phil.

— Garanto-lhe, meu primo não se parece comigo como o seu se parece com você. Mas gosto muito dele — disse Delphine, lembrando-se do fazendeiro roliço e simpático com um bando de filhos.

François desatou a rir fazendo Phil franzir a testa em desagrado pelas demonstrações familiares de François.

Sim, o gêmeo era extremamente encantador, pensou Delphine. Mas Charles, seu amigo querido, seria um espião inglês? De re­pente, a temível viagem de dois meses, na qual precisaria tolerar a corte entre Phil e Marie, pareceu muito interessante. Agora, havia um mistério a decifrar e a família de Alain para morar em sua casa na cidade. As coisas começavam a melhorar.

 

Delphine passou a semana ocupada com intermináveis provi­dências e idas e vindas a bordo da La Belle Amie. Convencer os Bertrand a se instalar em sua casa fora muito difícil, mas quando argumentou que precisava de alguém para se ocupar dos estábulos em sua ausência, Alain concordou. E o administrador indicado pela avó revelou-se uma bênção dos céus.

Pegou um último livro, depois olhou para cima e em silêncio agradeceu a Sandrine Magon, condessa Delaronde, por um dos melhores anos de sua vida.

— Pronta, querida? — indagou Charles, aparecendo na bi­blioteca.

Delphine anuiu e seguiu o amigo pelo corredor, onde os criados estavam alinhados.

— Quero agradecer-lhes por tornarem minha visita tão agradá­vel. Aprecio tudo o que fizeram pôr minha avó e por mim — despediu-se ela. — Depois abraçou Etienne, orgulhoso, apesar das lágrimas. Apressou-se a sair e entrou em sua carruagem. Estava com o rosto coberto de lágrimas. O que estava errado? Estava indo para casa e devia sentir-se feliz, no entanto não conseguia parar de soluçar.

Charles pegou sua mão, deu-lhe um lenço. Depois a envolveu com um braço e a aproximou. Apesar das suspeitas de Phil e de François, Charles não podia ser culpado de traição. Ou podia?

— Charles, o que acha da posição da França em relação aos americanos? — perguntou ela, afinal.

— Por que me pergunta isso?—retrucou Charles, com ar sério.

— Sinto curiosidade, considerando o fato que estamos vol­tando.

Charles franziu a testa, claramente embaraçado.

— Sou um filho da Louisiana e, portanto, um filho da França. Eu a apoio. Sempre o farei.

— Lamento que você precise compartilhar uma cabine com Phil — comentou ela. — Mas é a cabine principal e na melhor parte do navio. Nunca dormi lá, mas o leito foi comprado para minha madrasta e é muito confortável.

— Não faz diferença. Estou muito contente por compartilhar uma cabine. Teria de esperar um mês pelo próximo navio para a Louisiana e sou grato a você e a monsieur Bertrand por sua ajuda.

Havia poucas cabines devido a Marie e sua criada pessoal. Del­phine tinha sua própria cabine, e os acadianos haviam sido rele­gados aos beliches no enorme porão. Phil insistira que Charles compartilhasse sua cabine para mantê-lo sob vigilância. Se Charles os traísse, Phil seria o primeiro a saber e poderia agir de modo adequado. François e Alain desaprovaram o plano, mas Phil pre­tendia capturar o traidor.

— Em que está pensando? — indagou Charles. — Parece preo­cupada.

— Vai ser uma viagem difícil.

— Por que acha isso?

A carruagem parou antes de Delphine responder. Ela desceu, mas, antes de alcançar a prancha de embarque, Charles a deteve.

— Se precisar, poderá sempre contar comigo — sussurrou ele.

Phil estava no tombadilho superior, dando ordens aos homens.

Nesse momento, Charles se inclinou e beijou-a cautelosamente nos lábios.

Toda a atividade na embarcação pareceu cessar. Delphine fixa­va os olhos em Charles, tentando decifrar suas intenções. Mas ele não parou aí. Pegou sua mão e a levou aos lábios.

— Concordamos em ser amigos na outra noite. Sei que você jamais me amará, Delphine — continuou Charles. — Mas não jogue fora sua vida se a pessoa que você ama não retribui seu amor. Você merece o melhor. Como já lhe disse, considero-a uma amiga querida. E sempre poderemos ser bons sócios.

Charles segurou-a pelo braço e a acompanhou pela prancha, sob os olhos de todos.

— E se necessitar de mim para que uma certa pessoa sinta ciúme, sou seu homem, condessa — declarou Charles.

Delphine sorriu para Charles, soltou seu braço e subiu a bordo.

— Lawrence, Michel! — gritou Virginie.

Delphine fez cócegas em Lawrence e o outro menino desapa­receu de vista.

— Quem é essa criança? — Perguntou Delphine a Virginie.

— Seu nome é Michel Fontenot. É um dos órfãos.

— Pensei que havia apenas quatro e todos com mais de doze anos. Nunca ouvi falar em Michel.

— Não faz parte do grupo. Ficou órfão há pouco e costuma vaguear pelas docas, à procura da mãe. François o conheceu, fi­caram amigos e irão juntos — continuou Virginie.

Nesse momento Michel se aproximou. Delphine lhe sorriu, mas ele fugiu.

— Onde está François? — indagou Delphine.

— Ajudando a trazer seus baús a bordo — respondeu o acadia-no, lutando para segurar o baú que continha livros. — O que há neles? Ouro?

— Não é ouro, François, mas seu equivalente.

— Agrada-me ouvir isso — disse ele, suando muito. — Detes­taria fícar sabendo que estava lutando para carregar anáguas.

Delphine sentiu-se inútil. Todos estavam ocupados e ela parecia uma rainha no convés.   .

— Preciso fazer alguma coisa — disse a Virginie.

— Não se preocupe. Phil disse que a melhor coisa que as mu­lheres podem fazer é ficar fora do caminho.

— Onde está Marie? — perguntou Delphine.

— No convés inferior. Phil disse-lhe para ficar fora do caminho e ela obedeceu com prazer. Não parecia estar bem. Acho que viajar não a agrada.

— Virginie, ainda não saímos do porto!

— Mas ela me pareceu indisposta.

Delphine resolveu ir ver Marie. Foi em direção à escada do convés inferior e bateu à porta da cabine de Marie. Depois de bater pela segunda vez, a criada abriu.

— Vim ver como está a condessa — explicou Delphine. — Ela está bem?

A criada hesitou, sem dúvida recebera ordem para afastar visitas.

— Está doente? — perguntou Delphine. — Posso ajudar?

A criada abriu a porta para permitir a entrada de Delphine. Marie estava deitada no escuro, com um lenço molhado sobre os olhos.

— Ela sofre de enjôo no mar, madame — sussurrou a criada.

Delphine aproximou-se da cama, sentou-se na cadeira ao lado e pegou a mão delicada de Marie.

— Quem está aí?

— Suas mãos estão frias, Marie. Deveria ficar no convés, ao ar livre.

— Deveria estar em casa, em minha cama quente.

— Ainda não partimos e você pode voltar, Marie. Garanto que Phil tomará conta de sua carga.

— É o que você gostaria, não é, Delphine?

— Não quero discutir, Marie. Quero que sejamos amigas.

— Você me enganou e quer que sejamos amigas?

— Honestamente, achei que eu ia voltar para a Louisiana e você jamais reveria Phil.

— Você tinha esperança que eu nunca mais o visse. — Marie ergueu-se e ficou apoiada nos cotovelos.

— Sim, Marie, esperava que você nunca mais o visse. Como pode me censurar? Meu pai cuidou dele quando estava a beira da morte. Estava deitado nessa mesma cama quando o encontrei pela primeira vez, seu corpo todo estava coberto de.,.

— Pare, Delphine. Não fui responsável pelos atos de meu ma­rido.

— Phil é meu melhor amigo — continuou Delphine. — Não quero que seja magoado outra vez.

Marie estava disposta a continuar a troca de palavras, mas o navio balançou e ela caiu na cama com um gemido.

— Vou lhe trazer um chá — ofereceu Delphine. — Ou café. Beba aos poucos. Pão puro também ajuda, em pedaços pequenos.

Antes de sair da cabine, Delphine olhou a figura sofredora na cama. Entendeu afinal que a avó tinha razão. Ciúme, competição, vingança. Nada disso combinava com uma condessa. De repente, Marie deixou de ser a bela deusa que Delphine venerara durante meses. Não queria mais ser como ela.

— Vou me recuperar — disse Marie.

— Espero que sim — disse Delphine e dirigiu-se para o convés superior.

Antes que o sol rompesse no horizonte, zarpariam. Dentro de dois meses, Delphine estaria outra vez cercada pela família. Fe­chou os olhos e sentiu a brisa fresca do mar. Estava finalmente indo para casa.

Alain e Virginie se despediram e desceram da embarcação com Lawrence.

— Todos os visitantes devem descer em terra — gritou Phil. —Preparem-se para zarpar!

Em poucos minutos o navio se afastou da doca em direção ao mar aberto. E logo St. Maio desapareceu de vista.

Delphine passou a manhã tratando das necessidades dos acadianos, ajudando as oito mulheres a se instalarem , em seus beliches, e Mathurin com o café da manhã. As quatro crianças a bordo brincavam no convés e olhavam os marinheiros trabalharem. Os nove homens acadianos ajudavam a tripulação. Almoçaram, em turnos, sua primeira refeição no mar.

Quando Mathurin forçou Delphine a se sentar no tombadilho e pegar seu prato, ela compreendeu^que estava de volta ao mar. De­vorou sua comida.

— Feliz? — Phil não se afastou de seu lugar no timão, mas devia estar sorrindo.

— Sim, muito — confessou ela. — Vou dançar quando pisar nas terras da Louisiana.

— Marie comeu algo? — indagou ele.

— Duvido. Estava verde quando a vi.

Phil se virou, com olhar questionador.

— Tentei ajudá-la, mas não aceitou nada — contou Delphine.

— Ela é uma mulher orgulhosa, Delphine.

— Vou vê-la daqui a pouco — prometeu Delphine, com um suspiro.

Ao meio-dia, Delphine bateu outra vez na porta de Marie e insistiu que ela desse uma volta pelo convés. Marie declinou, mas aceitou o prato de alimento, o que, para Delphine, já significava uma melhora.

Cumprido seu dever, Delphine decidiu procurar Michel. O menino devia estar com fome e talvez assustado. Quando ela entrou no porão e começou a procurá-lo entre os caixotes e os baús, François tocou seu ombro.

— O menino está bem — disse Françòis. — Já comeu.

 

Charles já havia acordado, ele e Phil iam dormir, em turnos, usando a mesma cama, e começara a ajudar Mathurin a preparar o jantar. Quando Delphine entrou na cozinha e tentou fazer café, ambos a expulsaram. As mulheres acadianas cochilavam ou cuidavam de seus filhos. Delphine finalmente ficou junto ao parapeito e fitou o pôr-do-sol.

— Café? — perguntou Phil, aproximando-se. Ela sentiu o coração leve e um enorme sorriso estampou-se em seu rosto. Havia esquecido como costumava servir-lhe café enquanto ele registrava as atividades no diário de bordo.

— Espere-me em sua cabine — disse Delphine tentando esconder sua excitação.

Ela preparou uma bandeja e depois entrou na cabine onde Phil estava em seu lugar habitual, transcrevendo os eventos do dia no livro de bordo. Apoiou a bandeja sobre a escrivaninha e serviu-lhe uma xícara de café com um pouco de açúcar. Phil a observava com o canto do olho e sorria, sem levantar o olhar.

— Imagino que a condessa não faça isto por você. — Mal acabou de falar Delphine se arrependeu. Por que mencionara Marie? Aliás, o que estava fazendo na cabine de Phil? Não deveria estar rodeando o sócio de seu pai que deixara claro que amava outra.

Encaminhou-se à porta, mas algo prendeu sua saia. Ela se virou para soltar o tecido e viu que Phil o segurava.

— Onde vai? — indagou ele.

— Eu não devia estar aqui — replicou Delphine.

— Por que não?

— Porque...

Precisava sair antes de fazer alguma tolice, antes que se repetisse a mesma cena que ocorrera nessa cabine quase dois anos antes. No entanto, aproximou-se. Tocou os ombros de Phil e ele a segurou pela cintura. De repente, soltou-a e a beijou apaixonadamente.

Ouviu-se uma batida forte na porta. Delphine endireitou-se e Phil se apressou a vestir o paletó.

— Quem é? — gritou ele.

— Capitão, sua presença é necessária no convés, com urgência — explicou Vincent. — Os ingleses estão a boreste da proa e preparam-se para nos atacar.

 

A fragata inglesa se aproximava à distância de várias léguas. Ainda era um ponto no horizonte, no entanto suas intenções eram claras para Phil e a tripulação. Através da luneta, Phil avistou a bandeira do Reino Unido adejando na popa, homens se prepa­rando para ação, no convés, e os canhões prontos para ação.

— Droga! São vinte e quatro canhões.

Não havia outra opção além de enfrentar os ingleses em conflito aberto. Estavam muito longe de St. Maio para voltarem a tempo. A poderosa fragata poderia alcançá-los em poucas horas. La Belle Amie fazia boa velocidade, mas o barco inglês era maior quanto à tripulação, às armas e ao tamanho.

— Capitão, há outra embarcação atrás de nós — alertou Vincent.

Phil virou-se e avistou um navio de igual tamanho aproximan­do-se pela popa, mas a distância era ainda muito grande para ser identificado.

— Todos os homens no convés! — gritou Phil, entregando a luneta para Vincent, para ele observar melhor a embarcação atrás deles. — Todas as mulheres, crianças, todos no convés. Quero que os ingleses vejam quem está a bordo.

— Eu avisei que isso ia acontecer. — François segurou Phil pelo braço. — Você vai colocar as vidas de todas essas pessoas em perigo.

— E eu lhe disse que ninguém vai correr perigo enquanto ou for capitão deste navio.

O que havia com esse primo que fazia ferver seu sangue ?, pen­sou Phil. Ele flertava com Delphine, discutia suas decisões e de­safiava sua autoridade. Nunca sabia quando ficar calado como sua tripulação.

— François, mantive esse navio à tona por mais de uma década — esbravejou Phil. — Nunca perdi um homem. — Com o canto do olho Phil avistou Charles subir a escada e se dirigir ao tomba­dilho. — Se quiser censurar alguém, censure-o.

— São os ingleses? — indagou Charles, ansioso.

— Sim, Charles, são os ingleses. — Phil queria estrangular o aristocrata. — Estranho que você saiba disso.

— Estamos passando ao lado da Inglaterra — disse Charles, mal controlando a ira. — Como não ia saber?

Com as velas a barlavento, a fragata inglesa logo os alcançaria. A embarcação que os seguia atrás estava navegando contra o vento, como eles, e não os alcançaria tão depressa. Isso lhes permitiria combater um navio por vez. Mas, primeiro, Phil precisava escla­recer alguns detalhes.

— Sebastien! — chamou Phil. — Guarde monsieur Armand sob vigilância.

— O quê? — gritou Charles. — Está louco? Não sou um ini­migo.

— O que o fez pensar que achamos isso?

— Por qual outro mptivo me vigiariam?

Sebastien agarrou o braço de Charles e tentou levá-lo para o mastro principal, mas Charles lutou.

— Estão cometendo um grande erro.

— Não faça isso. Ele não pode ser culpado — interveio Del­phine, segurando a manga de Phil.

— São apenas precauções, minha querida.

— Não é justo — redarguiu ela, puxando-o com mais força.

Phil estava farto. Seu único objetivo era a segurança de seu navio e dos passageiros. Ele próprio pegou o braço de Charles e o levou embora.

— Não sou eu — sussurrou Charles, com os olhos em fogo.

— Não é você o quê? — interrogou Phil.

O homem era idiota? Estava se expondo a cada palavra que pronunciava.

Quando chegaram ao mastro principal, Phil soltou o braço de Charles para Sebastien amarrá-lo.

— Não aperte muito — alertou Phil. — Nós o queremos bem o suficiente para ser enforcado quando chegarmos a Havana.

Charles manteve a dignidade enquanto Sebastien o amarrava. Seus olhos não deixaram Phil um momento sequer.

— Não confie em ninguém, em particular em quem você gosta — gritou Charles.

Phil queria perguntar o que aquilo significava, mas as mulheres acadianas e as crianças começaram a se espalhar pelo convés, an­siosas e aflitas. Delphine ajudou-as a ficar em lugares seguros enquanto os homens preparavam os canhões. Em poucos minutos, o navio ficou preparado, embora os armamentos estivessem bem escondidos. Só lhes restava esperar que a fragata os abordasse.

— Solte Charles — sussurrou Delphine para Phil. — Ele não é culpado disso.

— Se não é culpado, então não tem nada com que se preocupar.

Todos ficaram em silêncio quando a fragata inglesa se aproxi­mou. Phil semi-engatilhou sua arma de fogo e ajustou a faixa que prendia sua espada.

— Onde está a condessa?—perguntou Charles tão calmo quan­to o mar nesse momento.

— Está doente — respondeu Phil.

— Não duvido disso. Mas ela não vai querer perder o que vai acontecer — comentou Charles.

Nesse momento, Marie apareceu como uma rainha, vestindo um de seus mais belos trajes. Pálida, de cabeça erguida, aproxi­mou-se de Phil.

— Os ingleses estão aqui? — perguntou ela.

Ninguém respondeu enquanto a fragata se alinhava ao longo da La Belle Amie. Tinham cinquenta homens enquanto Phil dispunha de vinte e quatro apenas.

— Falo inglês. Quer que eu fale com eles? — perguntou Marie.

— Não confie em ninguém — gritou Charles.

— Vincent, ponha uma mordaça nesse homem—mandou Phil.

— Diga-lhes que transportamos apenas passageiros — pediu Phil a Marie. — Conte-lhes que há mulheres e crianças a bordo.

Marie começou uma longa conversa com o capitão inglês.

— Ele não acredita em você — contou ela a Phil. — Quer vir a bordo inspecionar seu navio.

— Sobre meu cadáver — retrucou Phil.

— Você está em menor número, Phil. Deixe-o vir a bordo e olhar tudo. Não vão encontrar nada e continuaremos nosso cami­nho — aconselhou Marie.

Phil sentia que algo estava errado. Nunca permitira ninguém a bordo da La Belle Amie e não ia começar agora. As armas para os americanos estavam bem escondidas. No entanto, se Charles os havia traído, os ingleses sabiam das armas e se recusariam a partir.

—Não! — negou Phil.—Ninguém sobe a bordo de meu navio.

— Eles vão nos atacar — sussurrou Marie. — Não seja tolo.

Phil não se importou por ter sido chamado de tolo. Tampouco se importou com o tom de voz e o lampejo nos olhos de Marie, que o fizeram recordar o dia em que ela negara conhecê-lo e per­mitira que seu marido o desafiasse em duelo.

— Diga-lhes que não subirão em meu navio!

Marie fez afinal o que Phil lhe pedira, discutindo com o inglês, enquanto Charles lutava contra as cordas e a mordaça.

— Façam-no calar — ordenou Phil e Sebastien deu um soco no rosto de Charles que emudeceu, mas ficou consciente,

— Eles dizem que você deve permitir que subam a bordo ou vão abrir fogo — contou Marie.

— Abrir fogo? — Phil olhou para o inglês, cujo rosto estava iluminado pelo brilho de diversas lanternas. — Está louco? Pre­tende colocar vidas inocentes em perigo?

— Ele declarou que não confia em nos — continuou Marie, com a voz trêmula. — Diz que se você o deixar inspecionar a embarcação e não encontrar nada, vai nos deixar prosseguir.

— Marie, não sabe o que os ingleses fazem aos navios confis­cados e a seus passageiros? — Phil olhou para seus homens, preparados para ação. — Não sabe que esses ingleses vão mandar os acadianos de volta para suas prisões?

Marie se inclinou, tocando os seios no peito de Phil que ficou surpreso por ela estar fazendo papel de sedutora num momento tão crítico.

— Quem se importa com os acadianos? — sussurrou Marie. — Pense em nós. Sou uma aristocrata. Não me farão mal e garan­tirei que nada façam a você.

Por um momento, sua vida inteira ficou clara e ele se perguntou como destruíra tanta coisa apaixonando-se por Marie. Olhando-a agora, só sentia desprezo.

— Ninguém vem a bordo — repetiu em tom gélido. — Diga-lhes que, se insistirem em colocar as vidas de meus passageiros em perigo, abrirei fogo.

Marie endireitou-se e se virou para os tripulantes atrás deles.

— Seu capitão se recusa a permitir que os ingleses venham a bordo. Querem vir em paz, mas ele é demasiado teimoso para permitir isso. Vão concordar que ele os exponha a esse perigo? — indagou Marie.

Os acadianos permaneceram silenciosos, encarando Phil com temor. Tantas separações, tanto sofrimento. Estavam navegando para o Novo Mundo na esperança de começar de novo. E agora os ingleses, uma vez mais, pretendiam destruir esse sonho.

Phil olhou para Delphine. A pistola enfiada no cinto, estava pronta para entrar em ação. Seus olhos se encontraram e estava claro que ela o apoiava. Ele se virou para François.

— Ninguém sobe a bordo da La Belle Amie — disse François. — Vamos lutar antes que os ingleses nos prendam outra vez.

François sorriu, afastou o casaco para o lado, revelando uma pistola. Depois se juntou aos acadianos e ficou a sua frente como seu protetor.

— Não faça isso — implorou Marie. — Pelo amor de Deus, Phil, você vai matar todos nós.

— Recuso-me! — disse Phil, cujo conhecimento de inglês lhe permitiu expressar essa exclamação.

O capitão inglês pareceu surpreso e olhou para Marie, irritado. Conversaram rapidamente.

— O que ele disse? — perguntou Phil.

— Repetiu o que já disse. — Marie tirou um lenço da manga e começou a enxugar a transpiração do pescoço. — Deixe-o subir.

— Está suando, Marie. Nunca pensei que veria esse dia—disse Phil quase rindo.

— Está louco? — disse Marie quase histérica. — Estamos para ser atacados pela maior Marinha do mundo e você está falando sobre minha...

— É melhor descer, condessa — sugeriu Delphine. — Vai ser um caos quando dispararem os canhões.

Marie empalideceu. Ainda não estava pronta para desistir. Vi-rou-se para o capitão inglês e começou a trocar gritos com ele. Finalmente, o capitão deu uma ordem e os soldados no convés ergueram seus rifles.

— Ele disse que vai atirar em nós — traduziu Marie.

Phil puxou a pistola da cintura e seu gesto movimentou a tripulação. Vincent e Sebastien tiraram os lençóis que cobriam os canhões carregados no convés e Delphine puxou sua arrna. Phil abaixou a pistola e fez mira com cuidado na cabeça do capitão.

Por vários momentos, todos se encararam, os soldados ingleses com seus rifles e a tripulação experiente da La Belle Amie pronta para lutar. Enquanto estavam nesse impasse, ouvia-se o outro navio aproximar-se pela popa.

Phil e o capitão inglês esperavam e se vigiavam mutuamente. Todos estavam conscientes do navio que se aproximava com a bandeira britânica desfraldada. O capitão inglês sorria.

— Rendam-se — gritou o inglês para Phil. — Vocês estão cercados.

Phil compreendeu as palavras, mas se recusava a acreditar no pior. Não podia aceitar uma derrota sem lutar.

— Capitão — sussurrou Sebastien a sua direita.

— O que foi Sebastien? — indagou Phil sem tirar os olhos do capitão inglês.

— O outro navio.

— Droga! Sei que o outro navio chegou.

—Rendam-se—gritou o inglês outra vez.—Não têm escolha.

— O outro navio, sir — insistiu Sebastien.

— Sei do outro navio—retorquiu Phil. — Junte alguns homens lá atrás.

— Mas sir...

Antes de Phil ter tempo de repreender Sebastien por insubordinação, um tiro de canhão ressoou na noite calma. Phil virou-se para a popa, viu um cano de canhão soltando fumaça no navio atrás e preparou-se para o impacto. Mas a explosão ocorreu na fragata inglesa enquanto a bala do canhão estraçalhava sua proa a estibordo.

Nesse momento, o navio atrás arriou a bandeira britânica e hasteou outra com faixas vermelhas e brancas e estrelas num canto. Então o navio lançou fogo outra vez, explodindo uma parte de um mastro da fragata inglesa.

— É um navio americano! — gritou Mathurin.

— Fogo! — gritou Phil, sem perder tempo e aproveitando que os ingleses estavam ocupados com seu atacante.

Vincent, Sebastien e François obedeceram e três balas de canhão foram disparadas arrebentando os lados da fragata. Outra bala de canhão do navio americano atingiu a vela mestra da fragata inglesa provocando fogo em algumas partes do convés.

Os americanos continuaram atirando por trás até os ingleses fugirem afinal. Nem um único tiro das pistolas ou rifles da La Belle Amie fora disparado.

Os tripulantes do navio americano deram gritos de alegria e os acadianos se juntaram a eles. Phil suspirou de alívio. Quando o navio americano se aproximou ao lado da La Belle Amie, Phil encontrou afinal seu companheiro de armas.

— Saudações — gritou o capitão do outro navio. — Espero estar entre amigos.

— Receba meu melhor agradecimento, sir — gritou Phil de volta. — E lhe seremos gratos para sempre por sua ajuda.

— É o senhor amigo ou inimigo da causa americana? — prosseguiu o capitão, falando francês com um sotaque peculiar.

— Ele é um patriota, sir — interveio Delphine, com um sorriso. — Como eu.

— Todos somos — acrescentou François. — E somos gratos por sua ajuda.

— Sinto-me feliz por ter atirado contra um navio inglês — continuou o capitão desconhecido. — Mas diga-me, com quem estou falando?

— Capitão Philibert Bertrand, da França e de sua colônia, a Louisiana. — Phil fez uma reverência polida. — A seu serviço.

— John Paul Jones a seu serviço, sir. — O capitão de rosto corado também fez uma reverência. — Estou a serviço da Marinha Americana, com a assistência generosa da França. Este navio é um presente do rei Luís.

— E é uma bela embarcação — elogiou Phil.

— Eu o chamo Bonhomme Richard, em homenagem ao patriota Benjamin Franklin, pois foi ele quem arranjou minha comissão e Richard é seu pseudônimo como escritor.

O capitão Jones começou a dar ordens a seus homens mandando-os orientar as velas para perseguir a fragata.

— Pretende seguir aquele navio inglês? — indagou Phil.

— Meu caro sir — respondeu o capitão Jones. — Ainda nem comecei a lutar.

Passaram-se horas até os passageiros se acomodarem para dormir. Por volta da meia noite, os acadianos desceram para seus beliches, gratos pela paz que afinal descera em suas águas.

As crianças estavam demasiado estimuladas para dormir, por isso Delphine cantou-lhes suaves baladas para acalmá-las.

François observava as crianças adormecerem aos poucos e se lembrou do tempo em que criava sua família sem medo do governo inglês. Ele e seus vizinhos haviam prometido não tomarem partido nas guerras europeias. So desejavam cultivar suas terras e praticar sua religião em paz. Parecia ter sido em outra vida.

Michel surgiu de trás de um engradado, aproximou-se e apoiou a cabeça no colo de François fazendo a dor familiar retornar. Há quanto tempo perdera Marguerite e Jean Pierre? Tantos anos, havia perdido a conta. No entanto, a agonia continuava igual.

Michel suspirou e fechou os olhos. François afagou o cabelo castanho da criança. Não queria que o órfão visse sua própria dor, mas lágrimas cegavam seus olhos.

— Não está se sentindo bem?

François piscou, tentando ver Charles através das sombras. Charles continuava amarrado ao mastro, mas Phil havia pedido que alguém o vigiasse até deixarem a costa inglesa e François havia se oferecido como voluntário.

— Nada tenho a lhe dizer, traidor — replicou François. — Fique calado!

— Não sou um inimigo — negou Charles.

— Conte isso ao governador quando chegarmos a New Orleans.

— O governador Galvez e eu somos velhos amigos. — Charles deu risada. — Ele vai achar isso muito engraçado.

— É o que veremos. — François mudou de posição para ter melhor acesso à arma em sua cintura.

— Você perdeu alguém. Posso ler a mágoa em seus olhos. — Charles observava François à luz fraca da lua minguante.

Não fosse por Michel, François teria puxado o punhal escondido em sua bota e cortado a garganta do prisioneiro. Nunca falava sobre o passado. Nunca!

— Lamento — apressou-se Charles a dizer.

— Cale-se! — exclamou François em tom ameaçador.

— Fui noivo uma vez — começou Charles com um suspiro. — Era um casamento arranjado, mas no momento em que nos vimos apaixonamo-nos perdidamente. Eu era o homem mais feliz do mundo.

François olhou para longe, duvidando que o nobre já tivesse sofrido de verdade.

— Minha noiva morreu há dois anos, da febre que assola a Louisiana no verão — contou Charles, com lágrimas nos olhos.

— Lamento — disse François.

— Não, você não lamenta — disse Charles, surpreendendo François.

— Perdi tudo o que tinha — reagiu François. — Tudo. Minha fazenda, minha criação, minha vontade de viver.

— Sei... começou Charles.

— Não sabe de nada! Os ingleses nos enfiaram em navios e nos enviaram para as colónias. Fomos para Nova York onde não nos permitiram desembarcar. Depois nos levaram para a Inglaterra. Todos os dias alguém morria de varíola ou de outra doença. Meu filho morreu primeiro — continuou ele, lágrimas queimavam em seus olhos.—Depois minha esposa parou de comer. Os dois foram jogados ao mar. Diga-me, monsieur Armand, pode visitar o túmulo de sua prometida? Pode colocar flores em sua sepultura?

— Não sou um inimigo — repetiu Charles.

— Como posso saber disso? — indignou-se François.

— Porque sou leal à coroa francesa. — Charles levantou o queixo. — E sei quem é o espião entre nós.

— E quem seria?

— Monsieur Bertrand, eu falo inglês.

 

A lua desceu no horizonte, mas Phil recusou-se a dormir. Preferia fícar vigiando com seus homens enquanto estavam perto da costa inglesa. Mais um ou dois dias, estariam na direção aos Açores e ele poderia relaxar e dar mais controle a seus tripulantes. No momento, precisava fícar alerta e no convés.

Quando segurava o timão, olhou para Delphine, adormecida com uma criança em cada braço. Enterneceu-se. Queria proteger seu anjo, dar-lhe o que ela desejava, um lar e uma família.

— Você é um tolo, — Phil fez uma careta ao ouvir François.

Estava extenuado e não sentia disposição para ouvir as críticas de seu primo.

— Não devia estar vigiando nosso espião?

— Eu estava. Estou. — François recostou-se ao parapeito, parecendo também exausto. — É sobre isso que queria lhe falar.

— E isso tem algo a ver com eu ser um tolo?

François franziu a testa, como se não fizesse a ligação, depois olhou para Delphine.

— Não. Sim.

— Vá para a cama, François. Você nâo faz sentido.

— Eu não faço sentido? — François endireitou-se, tentando afastar o sono. — Não sou eu quem está apaixonado pela mulher errada.

— O que você sabe sobre mim? — Phil estava cansado da intromissão do primo em seus assuntos pessoais.

— Mais do que imagina.

— Fale claro, François. É demasiado tarde para enigmas.

— Não confio nela.

— Em quem?

— Quem está agora falando em enigmas? — François sorriu.

— Por que você não confia em Marie?

— Acho que você deve fazer essa pergunta a seu espião.

Phil olhou para Charles, que estava acordado e bem amarrado.

— O que ele tem a ver com isso? — indagou Phil.

— Ele acha que Marie traiu você — sussurrou François.

Droga, sim, ela me traiu, pensou Phil, mas isso foi há muito tempo. Apesar de tudo o que havia ocorrido anos antes, a condessa não podia ser uma espia assassina. Era impossível.

— Pergunte-lhe — disse François. — Pergunte a Charles o que ele sabe.

Phil não acreditava que Marie pudesse ser tão culpada, mas, para ter certeza, decidiu que ia ouvir o que Charles tinha a dizer.

— Vincent — chamou Phil. — Venha pegar o timão.

François e Phil se aproximaram de Charles e sentaram-se perto do parapeito, frente ao prisioneiro.

— Primeiro de tudo, esta conversa nada significa — avisou Phil. — Não confio em você e duvido que consiga mudar minha opinião.

— De acordo — replicou Charles. — Respeito isso.

— O que você quer que eu saiba?

— Sua embarcação não corre o menor perigo. Não poderia me soltar?

Charles tinha razão. Estavam sozinhos no meio do Atlântico. Phil inclinou-se e soltou as cordas. Charles suspirou e esfregou os pulsos.

— Obrigado, capitão.

O aristocrata não parecia um traidor. Apesar de tudo o que acontecera, era quase agradável. Mas Phil não se deixava impressionar com facilidade,

— O que você quer, Charles? Meu tempo é precioso.

— É claro, capitão. Vou ser breve.

— Ele fala inglês — interveio François.

— Tenho certeza que sim — caçoou Phil.

—Falo inglês porque faço negócios com os ingleses.—Charles passou a mão pelo cabelo desalinhado. — Tenho uma plantação próxima a Baton Rouge. Um de meus vizinhos, Oliver Pollack, é americano.

— Conheço monsieur Pollack — comentou Phil. — Cuidado, pois poderei checar com ele todas as suas declarações.

— Então sabe que ele é um patriota e gasta a própria fortuna para ajudar os americanos em sua luta.

Phil nada disse, observava apenas na esperança de ver algum traço de falta de sinceridade. Mas o rosto de Charles nada revelava.

—Costumo viajar para St. Maio. Compro armas e arranjo transporte para levá-las para a América — contou Charles. — Desde a morte de uma pessoa próxima, fico ansioso para deixar a Louisiana, para afastar memórias penosas. A chance de ajudar os americanos tem sido um grande atrativo para mim. Acredito na liberdade e em tudo o que ela implica.

— Tenho certeza que sim — disse Phil sarcástico.

— Desta vez fui a St. Maio para negociar um carregamento de armas forjadas por monsieur Moulineaux — continuou Charles. — Esse negociante marca as extremidades de cada rifle de sua fabricação com as iniciais "RM" e uma estrela em cima.

— E o que isso tem a ver comigo? — argumentou Phil.

— Na noite em que o vi na casa de Delphine, resolvi pedir-lhe para transportar as armas para a Louisiana. Sei tudo a seu respeito e sobre seu sócio na Louisiana, Por isso, visitei monsieur Moulineaux nessa mesma noite para falar sobre o assunto, mas ele havia sido assassinado e seu carregamento roubado.

— Mas o que isso tem a ver...?

— Tudo. — Charles ficou sério. — Uma bandeira verde na proa significa algo?

As coisas estavam começando a se encaixar. Galvez havia dado a Phil instruções estritamente confidenciais.

— Seu contato devia encontrá-lo às dez da manhã, depois de avistar a bandeira verde na proa de sua embarcação — sussurrou Charles. — E ela foi içada, capitão. Eu estava lá. Eu a vi. Entretanto, não fui o primeiro a contatá-lo.

Phil sentiu uma ponta de medo, mas reagiu. Charles devia estar mentindo.

— Está tentando me dizer que a condessa é uma espia?

— Sei que é ela. — Charles inclinou-se para perto.

— Como assim? — Phil tentou forçar-se a ficar sereno.

— Sei o que ela disse ao capitão inglês e ela não estava suplicando por nossas vidas.

— E suponho que devo aceitar sua palavra no assunto? — Phil cruzou os braços na frente do peito.

— Posso provar isso.

— Como? — disseram Phil e François ao mesmo tempo.

— As armas estão em seu porão. — Charles sorriu. — Sei que estão lá, ninguém me contou. Elas devem ter a marca de seu fabricante. Se examinar os rifles, verá as iniciais de monsieur Moulíneaux nelas.

— Isso ainda não prova muito — disse François.

— Você poderia ter matado Moulineaux?

— Sim, eu poderia — concordou Charles. — Mas como as armas chegaram às mãos da condessa?

— Você poderia estar de combinação com ela — sugeriu François.

— Dificilmente. — Charles deu risada. — Ela sempre me ignorou, limitando-se a um mero aceno quando nos encontrávamos.

Isso era verdade. Marie havia cumprimentado Charles a bordo, mas apenas isso. Ele não tinha o dinheiro ou o título para atrair Marie. A menos que tudo fosse um embuste.

— Seu marido foi um dos grandes partidários da última guerra da França contra a Inglaterra — continuou Charles. — Ele morreu de modo misterioso, sabia disso? E o que é ainda mais misterioso é que sua fortuna desapareceu.

:— Está dizendo que ela desposou o homem para envenená-lo, roubar sua fortuna e dá-la à Inglaterra? Isso é insanidade.

— Estou falando mais do que isso, capitão. Estou dizendo que ela conseguiu a ajuda de um amante para matar seu marido em duelo, mas como esse resultado não ocorreu, ela própria terminou o trabalho.

— Eu poderia matá-lo por isso! — Fhil sentiu uma dor tão intensa que não conseguia respirar.

— Compreendo. Minhas desculpas, capitão. Mas estamos em guerra. Ninguém merece confiança.

A vela mestra adejou enquanto o barco dava uma guinada demasiado à ré. Phil gritou para Vincerit endireitar o curso, acordando duas crianças. Delphine também acordou e olhou questionado-ra para cima, depois se acomodou outra vez quando Vincent se desculpou.

—Não precisa acreditar em mim, capitão—continuou Charles num sussurro. — Pode examinar as armas, conferir as iniciais e ainda assim não confiar em mim. Mas se eu estivesse em seu lugar não faria isso.

— É exatamente o que vou fazer — declarou Phil.

— Ela contou ao capitão inglês para onde estamos indo. — Charles inclinou-se para frente outra vez e tocou o antebraço de Phil. — Disse especificamente Havana, logo depois de implorar-lhe para resgata-la de seu navio. Mantenha-me prisioneiro, amarre-me, mas, por favor, mude seu curso. É uma armadilha. Tenho certeza.

Apenas a tripulação, Delphine e Marie sabiam aonde estavam indo. Phil tomara precauções especiais para garantir que Charles nada soubesse.

— Vá para qualquer lugar, menos Havana — continuou Char­les. —Não me conte nada nem a ninguém. Apenas mude de curso. Pelo bem de todas as vidas nesta embarcação, não conte a ninguém.

Phil levou vários momentos para digerir a informação, mas concordou, afinal. Não confiava em Charles, mas não podia se arriscar.

— Tudo o que falamos esta noite permanece entre nós — disse Phil, olhando para os dois homens. — Compreendem?

— E Delphine? — indagou Charles.

— Delphine não deve saber — respondeu Phil. — Ela é muito curiosa, para seu próprio bem. Não desejo colocá-la em perigo..

— Está lhe fazendo um mau serviço, sir — aparteou Charles.

— Sei o que é melhor para ela — encerrou Phil, levantando-se.

— Não tenho certeza, sir, se sabe. Ela o ama. Mais do que possa imaginar — declarou Charles, encarando Phil.

— Está enganado. — Phil estava cansado de ouvir conselhos. — Conheço Delphine mais do que ela própria. E não falaremos sobre isso outra vez.

— Então conhece seu coração — interveio François. — Seu coração lhe pertence e apenas a você.

Phil irritou-se. O que acontecia com esses homens? E como ficara ele atrelado a pessoas tão aborrecidas, incluindo Marie. Só desejara buscar Phyney e levá-la para a Louisiana, mais nada.

— Talvez, monsieur Armand, não tenha percebido que Delphine é uma condessa e eu um plebeu. — acrescentou Phil, antes de se afastar. — Além de nossa amizade, não há nenhum futuro para nós.

— O amor é mais importante que um título — disse François com tristeza. — A vida é muito curta. Por que perder seu tempo com coisas que, na realidade, não importam?

— No Novo Mundo, capitão, títulos e diferenças de classe não importam — alegou Charles.

Phil levou meia hora para examinar a seção do porão onde parte do armamento estava escondida. Quando afinal pegou um rifle, examinou-o perto da luz. Encontrou as iniciais "RM", sob uma estrela.

Isso ainda não provava a inocência de Charles, mas a evidência se inclinava nessa direção. E apesar do rifle em suas mãos, era o instinto que determinava a culpa de Marie. Phil compreendia a quem cabia a culpa pela abordagem do navio inglês e tinha certeza de que ela só lhe enviara a missiva pedindo para ir resgatá-la na data da noite de seu casamento. Sentiu isso no momento em que ela discutiu no convés com ele e suplicou-lhe para se render aos ingleses em troca de suas vidas.

Phil suspirou. Estava surpreso pela própria calma, pois a mulher pela qual se apaixonara não apenas o havia usado e entregue aos mortos anos antes como ameaçara repetir a mesma coisa essa noite. De fato, Phil sentia-se vazio, como se tivesse esperado pela traição.

Não estava sequer zangado, o que era ainda mais surpreendente. Não desejava colocar Marie num bote e abandoná-la aos tubarões. Não, pretendia fazer seu jogo e se divertir com as artimanhas por ela tramadas. Ela queria vencê-lo, usá-lo como um peão em sua conspiração? Pois ia encontrar um desafio à altura.

Phil colocou o rifle em seu esconderijo. Era hora de voltar ao convés e mudar o curso para águas seguras. Hora de representar o tolo enamorado e de descobrir o que Marie pretendia.

 

Outro dia se passou e Delphine sentiu-se mais frustrada do que nunca. Em seu primeiro dia no mar, ela se havia ocupado de cuidar dos passageiros e da tripulação, mas agora ninguém precisava mais de seus cuidados.

Ao acordar, durante a noite anterior, surpreendera Charles conversando com Phil e François. Mas, ao se aproximar de Charles para saber sobre o que haviam falado, o amigo apenas sorriu.

Também François evitou suas questões. Não falou sobre o encontro da noite anterior e disse a Delphine para não importunar Phil sobre o assunto.

Isso não seria possível, pois Phil estava demasiado ocupado acompanhando Marie no convés, mostrando-lhe tudo e ficando a seu lado enquanto ela fazia sua refeição no tombadilho.

Como podia Phil ser amigo daquela mulher?, pensava Delphine, horrorizada. Marie o desafiara no dia anterior e recusara-se a seguir suas ordens. Até o chamara de tolo! No entanto, Phil prestava atenção a tudo o que Marie dizia com um sorriso amoroso estampado no rosto.

Desgostosa e sem apetite, Delphine desistiu de comer.

— O que foi, pequena? — indagou Mathurin, sentando-se a seu lado e segurando um caldeirão.

Delphine sentia-se como uma criança abandonada pelos companheiros, mas Mathurin compreendia e deixou suas tarefas de cozinheiro por um momento.

— Você é uma mulher presa entre dois mundos — disse o amigo. — De um lado é a filha de um capitão e viaja pelo mundo em sua embarcação. De outro é uma condessa na França, muito bem-recebida por seus pares. Mas lembre-se, precisará lutar para alcançar o que quiser — completou Mathurin olhando para Phil e dando uma piscadela.

Como se sentisse estar sendo o objeto do assunto da conversa, Phil virou-se e levantou uma sobrancelha.

— Se deixar aquela mulher vencer, nunca a perdoarei — sussurrou Mathurin.

De repente, todas as dúvidas de Delphine desapareceram. O velho amigo estava certo. Não ia desistir sem lutar. E sabia o que precisava fazer.

— Não se preocupe, Mathurin — disse Delphine, encarando Phil. — Marie não sabe o quem tem pela frente.

 

Delphine segurava a bandeja de café com uma das mãos e com a outra bateu à porta.

— Quem é? — indagou Phil.

— Delphine. Com seu café.

Phil logo abriu a porta. Ela costumava entrar e sentia-se bem sozinha com ele em sua cabine. Mas esta noite tinha um plano. Passou ao lado de Phil e colocou a bandeja sobre a escrivaninha, perto do diário de bordo, percebendo que diversas páginas haviam sido dedicadas ao confronto com os ingleses. Porém, Phil, fechou o livro.

— Você deve ter muito trabalho, considerando tudo o quê aconteceu desde que deixamos St. Maio.

— Delphine, precisamos conversar — disse Phil, ignorando o comentário e segurando sua mão.

— Phil, você devia dormir um pouco. Há quase dois dias não descansa — disse Delphine, servindo-lhe uma xícara de café.

O tom de voz de Phil exprimia pesar por suas ações passadas. Um sermão fraternal ia se seguir e, numa tentativa de evitar isso, Delphine se aproximou da cama.

— Tem razão, Phil. Precisamos conversar.

— Sobre a noite passada...

— Terrível. O que teríamos feito se monsieur Jones não tivesse vindo em nossa salvação?

— Eu não estava me referindo a... — Phil franziu a testa.

— Tenho certeza que sua coragem e liderança teriam vencido a noite.

Os olhos deles se encontraram e nos de Phil estava refletida uma grande tristeza. Delphine queria lançar-se em seus braços e beijá-lo.

— Delphine, eu...

— Não posso permitir que ela o roube. — As palavras saíram de seus lábios antes de ela ter tempo para pensar.

— Quem? — Phil estava confuso.

— A condessa, quem mais?

Delphine sentou-se na cama e Phil junto à escrivaninha, estendendo as longas pernas para a frente e cruzando as mãos no colo.

— Ela não serve para você — disse Delphine, afinal.

Phil apenas anuiu.

— Não merece confiança.

— É o que você acabou de dizer Delphine.

— Mas você não acredita em mim.

Phil fez uma careta e Delphine temeu o pior. Devia estar loucamente apaixonado pela condessa para ignorar suas falhas evidentes.

— Você a ama? — indagou Delphine, sem se conter.

Uma expressão de dor se estampou no rosto de Phil e Delphine sentiu medo enquanto esperava pela resposta.

— Esqueça, Phil, não quero saber.

— Você merece alguém melhor do que eu — disse Phil, pegando sua mão outra vez. — Agora que tem uma fortuna, terras e um título, poder ter qualquer homem que desejar.

— Só desejo você.

Phil segurou-a pela cintura e a aproximou. Delphine esperava que ele estivesse afinal abrandando. Mas ele se endireitou e a afastou. Voltou-se para a escrivaninha e ao diário de bordo.

— Tenho muito trabalho para fazer esta noite, pequena.

— Não vai ser tão fácil. — Delphine estava desapontada, mas não desistira.

— O que não vai ser fácil?

— Resistir a mím.

Ao ouvir isso, Phil a fitou nos olhos. Delphine aproveitou o momento, inclinou-se, beijou-o de leve e depois se afastou.

— Vou seduzi-lo, Philibert — sussurrou ela.

Phil ia replicar, mas não teve a oportunidade. Delphine levantou o queixo e caminhou sedutoramente para a porta, do modo como Marie lhe ensinara. Depois o deixou sozinho com a lembrança de seu beijo.

 

As semanas se passaram e Delphine ainda se deleitava em embaraçar Phil quando ela se aproximava. Ainda não havia cruzado a fronteira entre a amizade e a sedução, mas toda noite se aproximava um pouco mais, e a tensão o deixava nervoso. Duas noites antes, ao lhe levar café, usara seu vestido mais revelador, que oferecia uma bela vista de seus seios. Na noite anterior, roçara nele, fazendo-o derramar a tinta.

Na maioria das vezes, quando Delphine exagerava, Phil a punha para fora. Mas toda noite ele a esperava para o café. Era apenas uma questão de tempo até Delphine conseguir quebrar suas defesas.

—Mais uma canção?—indagou Delphine às crianças sentadas a seu redor nessa manhã.

O pequeno grupo gritou aprovando, exceto Michel, que os observava a distância, ao lado de François. Mais tarde, Mathurin chegou, anunciando o jantar e Delphine encerrou seu dia.

— Amanhã vou lhes contar sobre os crocodilos — avisou o grupo.

Os adultos levaram as crianças para baixo e só então Delphine deu-se conta de como as crianças eram cansativas.

— Não deveria passar tanto tempo no convés — comentou Marie. — Está ficando horrivelmente bronzeada.

—Estou voltando a minha cor nativa—afirmou Delphine com um sorriso.

Vestida em trajes que cobriam todo o seu corpo, o rosto escondido sob um chapéu, Marie abanou a cabeça.

—Não aprendeu nada durante sua temporada na França? Como vai atrair um marido com essa aparência selvagem?

— Talvez eu espere atrair um marido selvagem — retrucou Delphine olhando para Phil.

— Você é incorrigível — disse Marie desgostosa. — Não sei por que passei tanto tempo com você.

— Fez isso em atenção a minha avó — respondeu Delphine. — E também porque queria informações sobre a Louisiana. Foi um bom acordo, não foi?

— Quase nada. O que lhe ensinei é inestimável.

Marie estava certa. Tudo o que Delphine havia aprendido estava lhe sendo muito útil.

— Sou-lhe grata — disse Delphine. — Garanto-lhe que fez muita diferença em minha vida.

— Não faz se você se recusar a manter a pele alva e continuar a se associar com outros abaixo de seu nível. Você deveria estar em sua cabine, aperfeiçoando suas habilidades no bordado.

— Eu devia estar embaixo tramando para conquistar o creole mais rico da Louisiana, é o que você está dizendo.

Começou a chover e a condessa sumiu. Mas Delphine não saiu do convés.

— Vincent, assuma o timão — gritou Phil.

A chuva ficou mais forte, colando suas roupas à pele e fazendo seu cabelo cair na testa. Delphine queria ficar ali a noite inteira, molhando-se num longo banho, mas Phil se aproximou, segurou-a pelo cotovelo e a levou para a escada.

— Só mais um minuto — implorou ela.

— Venha — sussurrou Phil. — Tenho uma surpresa para você.

Ela o seguiu e quase tropeçou numa grande banheira de ferro em sua cabine.

— Coletamos mais água do que precisamos na chuva pela manhã — explicou Phil. — Não conte a ninguém ou o navio inteiro vai querer um banho.

Como água fresca era um prémio a bordo, banhos eram um luxo. E como havia muitos passageiros na La Belle Amie, nenhum banho seria permitido até alcançarem Havana, uma ordem inquietadora para Marie, que se queixara em voz alta a esse respeito.

— Não faça barulho — pediu Phil, fechando a porta atrás e sorrindo.

— Serei silenciosa como a noite—garantiu Delphine.

Faltavam apenas uma ou duas semanas para alcançarem Havana, no entanto a ideia de entrar numa banheira cheia de água era tão paradisíaca como desfrutar uma refeição de verdade cozinhada em fogo aberto com frutas frescas e creme de sobremesa. Não via a hora de entrar na água.

— Onde você vai ficar? — perguntou para Phil, com um sorriso coquete.

— No convés — declarou ele com firmeza. — Uma tempestade está para desabar e precisarei ficar lá quase a noite inteira, por isso não tenha pressa.

— Podíamos compartilhar este banho — convidou Delphine, tocando os botões do casaco de Phil.

— Se-seu pai estivesse aqui, ia dobrá-la sobre o joelho — declarou Phil indignado.

— Se meu pai estivesse aqui, eu o faria amarrá-lo ao mastro por me ignorar.

— Ignorá-la? — Phil sorriu outra vez. — Isso, minha querida, é impossível.

— Então por que você não...

— Você sabe muito bem a razão — respondeu Phil pronunciando cada palavra bem devagar.

— Se o banho está fora de questão, então que tal um beijo de boa noite? — insistiu Delphine.

— Você nunca desiste — disse Phil encarando-a incrédulo.

Delphine testou a água, uma pouco fria para um banho, mas não importava.

— É claro que não desisto. Você já devia ter percebido isso.

— Este não é um jogo, Phyney.

— Nunca achei que fosse. E meu nome é Delphine, lembra-se? E há mais de dez anos meu pai não me dobra sobre seu joelho.

— Isso não muda o fato de que está agindo como uma criança.

Se ele queria magoá-la conseguiu.

— Pode sair agora — disse Delphine, tentando ocultar a dor em sua voz.

Phil ia sair, mas antes a segurou pelos ombros com afeto. Em silêncio, devagar, inclinou-se para frente e beijou sua testa. Depois enterrou o rosto em seu cabelo e fechou os olhos, sussurrando seu nome.

Delphine não perdeu tempo. Beijou-o no pescoço enquanto era beijada atrás da orelha. Então ele a abraçou e ficaram alguns momentos em silêncio.

Todas aquelas semanas em que ela se empenhara em seduzi-lo, não lhe ocorrera que um amor puro os ligava, uma paixão construída ao longo de anos de amizade e respeito. Ela o amava, sempre o amaria. E o desejava com loucura. Mas, em momentos como esse, Delphine sentia algo maior.

O navio balançou, arrastado por uma onda enorme e a tempestade desabou. Nenhum dos dois perdeu o equilíbrio.

— É melhor você ir para o convés — disse ela com meiguice.

— Aproveite seu banho — sussurrou ele, saindo rápido da cabine.

Com lágrimas nos olhos e o coração pesado, Delphine tirou a roupa e entrou na água fria. Mesmo se estivesse quente, seu mal-estar persistiria. Amava um homem que não pertencia mais a seu mundo e nenhum tipo de sedução resolveria o problema.

A tripulação permaneceu em silêncio enquanto La Belle Amie atravessava a passagem traiçoeira entre as ilhas de Porto Rico e Hispaniola, ultrapassando as ilhas inglesas. Se tudo corresse bem, chegariam em São Domingos pela manhã. No dia seguinte iriam para noroeste da Jamaica e para a Cuba Espanhola sem ninguém suspeitar.

A distância, Phil avistou as luzes de Hispaniola. Se os ventos se mantivessem na mesma direção, e não encontrassem nenhuma oposição, seria possível desembarcar ao nascer do sol. Eleja sentia o gosto de galinha assada de Carmelita e o vinho adocicado.

— Imagino que essa terra não seja inglesa.

Só François estaria acordado a esta hora, pensou Phil. O homem parecia estar sempre a suas costas.

— É Hispaniola — respondeu Phil. — Os franceses dominam o Haiti, a parte ocidental da ilha. Conseguimos ultrapassar as Grandes Bahamas e as ilhas inglesas.

— Imagino o que nossa condessa pensará sobre isto.

Porto de escala em solo seguro seria o teste final de Marie. Se ainda houvesse alguma dúvida quanto a sua culpa, sua reação determinaria seu destino de uma vez para sempre.

— Conseguiu descobrir alguma coisa? — indagou François em tom de critica.

— A condessa fez muitas perguntas sobre Galvez e o governo espanhol na Louisiana — contou Phil.

— É uma traidora. Sinto isso.

— Amanhã saberemos. — Phil detestava conversar sobre Marie. Ainda que agora só sentisse desprezo, ela o havia usado e ameaçara a vida de todos a bordo. A dor ainda era recente. Como uma ferida aberta.

— Você é um homem feliz — disse François, e Phil entendeu muito bem a que ele se referia.

— Não posso tê-la — disse Phil, grato por poder confiar em alguém, ainda que fosse seu primo. — Eu a vi crescer, até salvei sua vida numa ocasião, mas sou a última pessoa que ela deveria desposar.

— É a única pessoa que ela deveria desposar — contestou François.

— Como? Não vejo saída.

— O amor é a única coisa que importa neste mundo — disse François com solenidade. — Já tive tudo uma vez. Terra, alimento na mesa, e o amor de uma boa mulher. —

Tudo isso era novidade para Phil, que jamais soubera da vida do primo na Acadia?

— François... — começou Phil, mas foi interrompido.

— Em poucos meses perdi tudo — contou François. — Não jogue fora um presente apenas por causa de títulos e heranças inúteis. Avise-me quando chegarmos ao porto — disse François levantando-se.

— Será o primeiro a saber.

— Não, permita esse prazer à condessa de La Candelier — re­plicou o acadiano.

Phil observou François se aproximar do pequeno Michel adormecido perto do mastro principal. Sentiu remorsos. Havia negligenciado François, estava causando dor em sua amada Phyney e ainda sentia-se ferido pela traição de Marie. Mas amanhã seria um novo dia. Estavam finalmente no outro lado do Atlântico, perto de casa. Tudo ia acabar se acertando.

 

— Estamos onde? — gritou Marie.

— Hispaniola — explicou Vincent. — Na parte espanhola da ilha. Estamos em segurança aqui.

Delphine observou Marie empalidecer. Por que não estava feliz? Ia ficar livre do navio do qual tanto se queixava. Sua reação era peculiar.

— Não! — Marie abanou a cabeça. — Nossa direção era Havana. Está enganado. Estas ilhas devem ser as Bahamas.

— Não, Porto Rico é a da esquerda e Hispaniola a da direita, madame.

— Você disse que estávamos indo para Havana! — Marie gritou, aproximando-se de Phil.

Para surpresa de Delphine, Phil não desviou o olhar, concertrando sua atenção na travessia da passagem perigosa entre as ilhas. Todos os tripulantes estavam no convés ajudando a La Belle Amie ao porto.

— Phil, não vai me responder? — Marie bateu o pé no chão.

— Eu a ouvi, Marie. Agora desça antes de ser atirada pela força das ondas para fora — replicou Phil sem desviar a atenção.

— Como ousa falar comigo desse jeito? Mereço uma explicação.

— Estamos indo para o porto de São Domingos. Marie. Mas há hotéis elegantes ali.

— Por que Hispaniola? — indagou Marie para Delphine

— É uma ilha encantadora, Marie, meu pai tem uma casa lá. Uma senhora idosa, Carmelita, vive nela e costuma cozinhar refeições deliciosas quando chegamos. É um pouco rústica, mas você será tratada como uma rainha.

Uma expressão de pânico surgiu no rosto de Marie, Delphine sentiu um calafrio. Phil também percebeu, mas não se surpreendeu.

— Vou para o hotel — decidiu Marie derrotada. — Não ficarei à clemência deste navio ou de sua tripulação por mais tempo.

— Vamos lançar âncora logo — avisou Phil. — Sairemos no dia seguinte. Espero que fique pronta.

Marie desceu logo para sua cabine, parecendo um animal acuado.

— Meu Deus, o que ela queria fazer em Havana? — surpreendeu-se Sebastien.

Trair-nos, pensou Delphine. A condessa fora responsável pelo ataque inglês. Phil devia ter discutido o fato com Charles e François na outra noite. Havia mais alguma coisa acontecendo, e Delphine pretendia descobrir tudo durante o resto da viagem.

 

José apressou-se a saudar Delphine enquanto ela caminhava para a casa de seu pai. O jovem tornara-se um belo homem.

— Phyney! — exclamou ele.

—Hola, José — respondeu Delphine. — Como está sua vovó?

— Viu seu navio chegar pela manhã e está preparando sua refeição de boas-vindas agora.

— Gracias, José. Não vejo a hora de fazer uma refeição caseira.

— Preciso ir para minha casa. Minha esposa vai dar à luz.

Delphine seguiu sozinha para o fim da rua até avistar uma chaminé solitária acima de uma floresta. Carmelita saiu correndo a seu encontro.

— Bom-dia, Delphine. Faz tanto tempo.

— Sim, Carmelita, demasiado tempo.

— E receio que será ainda mais longo.

— O que aconteceu? — indagou Delphine, abrindo a porta e esperando Carmelita entrar. Mas isso não aconteceu.

— A esposa de José está esperando um bebé. Deixei sopa no fogão e há frutas frescas sobre a mesa. Ficarei fora vários dias, mas se necessitar de mim mande me chamar.

— Vá para junto de sua família, Carmelita. Cuidaremos de nós próprios.

— Nós? — indagou Carmelita. — Seu pai ou Philibert está com você?

— É Philibert.

— Ainda tenho aquela banheira velha da qual você gosta tanto. Está na varanda do fundo e limpa.

Delphine sorriu. O banho na cabine de Phil fora há duas semanas. Molhar-se na enorme banheira seria delicioso, antes de apreciar as frutas frescas que Carmelita deixara.

— Obrigada — agradeceu Delphine.

Carmelita abraçou a moça e depois começou a descer a rua.

Entrou na pequena casa imaculada. No fogão havia um caldeirão de sopa de legumes e sobre a mesa abacates, mangas e bananas. Também havia uma garrafa de vinho e um jarro de água. Delphine bebeu primeiro, deliciando-se com o gosto da água limpa. Depois apagou o fogão, pois a temperatura estava muito alta na casa.

— Agora, o banho — disse em voz alta.

A varanda ficava atrás do quarto e, no caminho, Delphine achou um vestido de algodão leve sobre a cama. Carmelita deixara o vestido espanhol de alguma neta para Delphine usá-lo. Era agosto, fazia muito calor e Delphine não aguentava ficar um minuto mais em seu corpete sufocante e com a pesada saia. Resolveu se trocar antes mesmo do banho. Tirou a roupa que estava usando e enfiou o vestido de algodão pela cabeça.

Sentindo-se mais leve, puxou a grande banheira, colocou-a no centro do quarto maior e depois foi diversas vezes ao poço do jardim para buscar água. Arranjou uma toalha, sabão e um prato de fruta cortada ao lado e ficou pronta para seu delicioso banho.

— Falta uma coisa—decidiu, dirigindo-se ao jardim onde Carmelita cultivava rosas.

Phil esperava ser saudado por uma falante Carmelita ao entrar, mas a casa estava vazia, exceto por um banho convidativo. Viu o caldeirão de sopa de aroma delicioso na cozinha. Carmelita devia ter precisado sair. Ao ver o banho preparado, Phil enviou uma oração silenciosa a Carmelita, pois a chance de se livrar do suor e do sal de dois meses era irresistível.

Em menos de um minuto Phil livrou-se das roupas, entrou na banheira e sentou-se de pernas dobradas. Afundou na água fria, fechou os olhos e se afastou do mundo. Por alguns momentos abençoados, ia se esquecer de seus problemas. Marie havia se instalado num hotel da cidade com apenas Charles a vigiá-la e ainda não se sabia quem era o traidor.

Alguém entrou. Uma pessoa se aproximava da banheira. Quando tentaram pegar sua espada, Phil se moveu rápido e capturou um pulso, depois olhou para cima e viu quem era o inimigo a sua frente.

— Nunca desiste? — indagou ele.

Delphine soltou o cabo da espada e ficou imóvel. Só estava usando um vestido espanhol de algodão puro, bordado ao redor do pescoço e cobrindo até os tornozelos. Os pés estavam enlamea­dos e os braços expostos bronzeados. Seu cabelo negro, livre das presilhas habituais, caia em cascata sobre os ombros nus, Era a mais bela criatura que eleja vira. DeJphine se endireitou, colocou as mãos nos quadris e sorriu.

— Eu me preocuparia menos com a espada e mais com o fato de você estar completamente nu.

Horrorizado, Phil agarrou o prato de frutas e o colocou sobre o colo.

— Delphine, o que está fazendo aqui?

—Este banho era para mim. — Delphine abriu as mãos e pétalas de rosas caíram na água.

— Se você se virar, vou me levantar.

Delphine mergulhou os dedos na água, deixando a mão de propósito roçar a perna de Phil, provocando uma reação instantânea.

Em seguida foi para a cozinha e parou junto à mesa para abrir uma garrafa de vinho. Enquanto Phil olhava seus quadris através do algodão fino, sua reação aumentava. Não queria que Delphine o surpreendesse nesse estado de excitação. Mas não podia se banhar com um prato de fruta no colo.

Ao observá-la abrir a garrafa, sua imaginação enlouqueceu. Quanto mais seu corpo o traía, mais ele ansiava por aqueles dedos que seguravam a garrafa de vinho.

— Quer um pouco de vinho?

— Delphine, deixe-me em paz.

— Já o vi nu antes, Philibert,

Phíl tentou se lembrar quando isso ocorrera. Delphine aproximou-se, quase dando risada ao ver o prato de fintas e estendeu-lhe uma caneca de vinho. Depois ela se inclinou e pegou uma fatia de manga. Se Phil não tivesse controle, a teria puxado para dentro da banheira.

— Quando me viu nu?

— Na primeira vez em que o encontrei—explicou ela. — Você não se lembra, tenho certeza. Estava muito ferido, eu o banhei, então, e ajudei meu pai a cobrir seus ferimentos. Não parava de murmurar algo sobre anjos.

— Lembro-me bem.

— Não poderia. Não estava acordado.

— Você estava chorando.

Os olhos de Delphine escureceram diante da revelação e seu sorriso desapareceu.

— Foi a primeira vez que vi um homem tão ferido — sussurrou ela. — E senti algo...

— Sentiu o quê?

Ela deslizou um dedo na água, fazendo círculos ao redor de uma pétala de rosa.

— Senti uma conexão — continuou Delphine. — Senti que se você morresse, uma parte minha também morreria. Parece loucura, não é?

Esquecendo-se do prato, Phil inclinou-se para frente e tocou a face de Delphine.

— Carmelita saiu para ajudar no nascimento do bebe de José. Ficará fora alguns dias.

Phil soltou a mão, fazendo Delphine perder o equilíbrio.

— Você deve sair. Não podemos ser vistos deste jeito.

Mas Delphine não se moveu. Phil sentiu-se encurralado. Não podia sair da banheira e não conseguia fazê-la sair.

— Delphine, não pode ficar aqui. Sou um homem que ficou num navio há...

— Sim, eu sei. — Delphine deslizou a mão dentro da água outra vez, brincando com outra pétala.—Durante dois meses não esteve com uma mulher.

Phil ficou surpreso por ela achar que estivera com outra mulher na França. Depois, lembrou-se de Marie. É claro que Delphine pensava que ele dormira com Marie.

— Não estive com nenhuma mulher desde que você saiu de New Orleans.

Foi a pior coisa a dizer. Delphine iluminou-se. Seus olhos brilharam como se ele tivesse aberto uma porta e a acolhido dentro. De repente, Phil sentiu a mão em sua perna, isso o sobressaltou, e ele deixou o prato escapar. Com um movimento rápido, Delphine pegou o prato com a mão livre e o colocou no chão.

Antes que Phil pudesse reagir, sua mão se moveu para cima.

— Agora você é meu, capitão — sussurrou Delphine.

 

Phil agarrou o pulso de Delphine e o segurou com força.

— Pare com isso.

Mas ela não o atendeu e continuou a acariciá-lo de modo íntimo. Ele não abaixou os olhos, pois jamais romperia a regra número um dos piratas: jamais perder o controle. Mas tampouco conseguia se defender. Quanto mais ela o manipulava, mais seu corpo reagia de modo involuntário.

De repente, Delphine sentiu-se envergonhada. Phil era seu salvador, seu melhor amigo e seu campeão. E ela estava recorrendo a um método de batalha barato, usando ardis femininos contra os quais Phil não tinha defesa.

Quase parou, mas a respiração de Phil tornou-se difícil e ela continuou com as carícias. Finalmente o corpo dele pulsou inundado por ondas de libertação. Delphine não sabia se também o havia machucado, além de roubar seu orgulho.

O que ia fazer agora? Sentiu remorsos e vontade de desaparecer. Abaixou o olhar e começou a se levantar, mas sentiu um aperto no braço.

— Desculpe-me, Phil.

Delphine esperava ser rejeitada. Em vez disso, Phil a segurou também pelo outro braço e a puxou para dentro da banheira. A água começou a correr para fora enquanto os dois se chocavam. Ela tentou se endireitar, mas não conseguiu.

Phil a beijou na boca, com desejo e paixão. Delphine inclinou-se para frente, envolveu-o pelo pescoço e se abraçou a seu peito forte.

Desta vez as sensações a atravessaram como o fogo de um canhão. Algo em seu íntimo pedia liberação, Arqueou as costas e levantou a cabeça, não se importando por perder o controle. Ele a beijou, acariciou seu corpo todo até ela sentir alívio e sonolência.

Então Phil saiu da banheira levando-a junto. Envolveu-a numa toalha, beijou seu rosto e escovou seu cabelo. Levantou-a nos braços, levou-a para o quarto e a deitou na cama.

Estava claro para Delphine que haviam feito amor sem consumá-lo. Estaria Phil tão realizado quanto ela? Não tinha forças para perguntar. Suspirou e adormeceu.

Phil observou seu anjo precioso e beijou-a no rosto. Céus, o que havia feito? Era seu protetor e havia perdido todo o controle. Havia profanado Delphine numa banheira, nada menos. Bastara um toque e todas as emoções que ele lutara tanto para dominar foram libertadas. No entanto, a adorava, jamais havia sentido tanto prazer ao fazer amor com uma mulher e tinha certeza de que fora recíproco.

Mas o que seria deles? Não havia solução, nem resposta fácil. Haviam chegado ao fim de sua viagem sem um porto seguro.

—Eu a amo também Phyney—sentindo uma profunda tristeza.

Deitou-se e adormeceu.

Quando Phil acordou, o sol entrava pelas janelas. Será que Charles já teria chegado e ido embora? E se Charles os tivesse visto juntos? Levantou-se, vestiu as roupas limpas que havia trazido, e esvaziou a banheira.

Antes de sair do quarto, observou a respiração suave de Delphine e seu rosto resplandecente. Gostaria de acordar todas as manhãs com Phyney a seu lado, fazer amor com ela de modo apropriado, como um marido.

Pegou a garrafa de vinho e foi para a varanda. Tomou um gole. Apoiou os cotovelos nos joelhos e passou a mão pelo cabelo desalinhado.

— Parece que você teve uma noite pesada. — disse Charles, emergindo da folhagem na frente do pátio de Carmelita.

Bem, pelo menos Charles não havia testemunhado nada, pensou Phil.

— Algum progresso com a Condessa?

Charles sentou-se. Além das grandes olheiras, seus olhos estavam vermelhos. Pegou a garrafa da.mão de Phil e tomou um longo trago.

— Marie entrou no hotel e foi para seu quarto. Pensei que ia ficar lá a noite inteira, depois de passar dois meses a bordo. Mas uma hora depois apareceu no saguão, vestida como uma rainha e belíssima — contou Charles.

Phil lembrou-se do tempo em que seu corpo doía à mera visão de Marie. Agora, só conseguia pensar numa jovem corsária que usava adagas escondidas entre as saias. Sorriu.

— Não está apaixonado por Marie, está? — perguntou Charles ao vê-lo sorrir.

Phil não queria conversar sobre Delphine com Charles nem com ninguém, mas os pensamentos escaparam.

— Depois que meu sócio, o pai de Delphine, se casou com uma acadiana, há dez anos, ele passou a levar refugiados acadianos para a Louisiana — começou Phil — Essa caridade custa caro, por isso tenho cuidado da parte financeira de nossa operação, contrabandeando mercadorias para a colônia e o interior americano.

— Estou a par disso. Você e Jean Bouclaíre são uma lenda no Mississipi.

— Mas não sabe que no ano passado meus lucros diminuíram muito. — Phil pegou a garrafa e tomou um trago

— Devido aos esforços em favor dos americanos, suponho.

Phil gostaria de confiar no aristocrata agradável, mas temia ser traído como havia sido por Marie.

— Vamos dizer que por causa de certas circunstâncias, Jean e eu estamos em situação difícil.

— É tão grave assim?

Phil sentiu vontade de rir. Em vez disso, afogou a ansiedade com outro trago de vinho.

— Sim, a situação está mal.

— É por isso que você reluta em pedir a mão de Delphine?

— Nada tenho para lhe oferecer. Se ela se casar comigo, perderá tudo. As terras, o título e a herança.

—Mas certamente você não acredita que essas coisas importem para Delphine. Ela o ama.

— Jean e eu estamos insolventes, Charles. Não ganhei nada nesta viagem. Talvez sejamos forçados a vender La Belle Amie.

— Gostaria de ajudá-lo, mas doei toda a minha fortuna para a causa americana. — Charles riu e depois deixou a cabeça cair. — E pensar que minha pobre mãe achava que eu estava viajando com frequência para a França em busca de uma esposa abastada. Mas você não pretende ficar sentado e vê-la casar-se com outro apenas para manter os negócios do pai em pé?

Sobre meu cadáver, pensou Phil, mas em que mais estivera pensando? Era um plebeu, não podia se casar com Delphine. Isso significaria a perda de sua fortuna e arruinaria sua família. Para manter a herança, ela precisava ou desposar um nobre ou ficar solteira. Era um paradoxo.

— Delphine sabe de seus problemas financeiros? — indagou Charles.

— Não, e prefiro que não saiba.

—Não a subestime, meu amigo,— Charles levantou-se e pegou a garrafa, bebendo o resto do vinho. — Você lhe esconde coisas demais.

— Estou fazendo o melhor por ela.

— Está mesmo? — O olhar de Charles não vacilou um momento sequer. — A guerra não vai durar para sempre, Phil.

A guerra já durava há muito tempo, no que dizia respeito a Phil e lhe custara demasiado. E na mais irônica das circunstâncias, a mulher que uma vez roubara seu coração havia reentrado em sua vida apenas para traí-lo outra vez. Arrependia-se de ter aceitado a proposta de Galvez. Deveria ter desposado Delphine naquela noite em que ela lhe declarara seu amor. E continuado seus negócios sem pensar na França e na independência americana.

— Então Marie foi ao saguão — disse Phil, concentrando-se nos problemas do momento. — E o que aconteceu então?

— Não muito, pelo que pude ver. Ela jantou, falou com alguns outros hóspedes. Conversou com um espanhol.

— Quem a está vigiando agora?

— François. Mas Marie já havia se deitado quando ele chegou. — Charles parecia surpreso pela pergunta.

— Você compreendeu o que o espanhol disse?

— Bem, agora que estou pensando nisso, acho que temos um problema — disse Charles, preocupado. — O espanhol contou a Marie que a Espanha entrou na guerra e se aliou à França contra a Inglaterra. Não sei se isso é verdade ou não, mas Marie poderia usar essa informação...

Antes de Charles terminar a sentença, Phil segurou-o pelo casaco e o fez levantar-se.

— Hora de partir, declarou.

— Mas ainda não comi nem dormi — protestou Charles.

— Está bem. Fique aqui. Há sopa no fogão e um catre na sala. Espere um momento aqui — pediu Phil e entrou depressa na casa.

Fechou a porta do quarto de dormir, colocou todas as roupas de Delphine ao pé da cama, inclusive o vestido de algodão, que já estava seco. Depois pegou seu casaco e foi para a porta.

— Delphine está dormindo lá dentro — contou a Charles. — Não a perturbe.

Charles fez um gesto de assentimento e Phil sentiu-se grato por não haver mais perguntas. Se Charles suspeitou de algo, disfarçou bem.

— Não lhe diga nada. Lembre-se, Delphine não deve saber sobre nossos problemas com Marie — recomendou Phil antes de partir.

 

Delphine acordou ao som das vozes na varanda. Deviam ser dois homens. Levantou-se. Suas roupas estavam secas e bem dobradas. Vestiu seu corpete e saia, desejando poder usar o vestido de algodão. Mas devia enfrentar o mundo como uma condessa.

Ao entrar na cozinha, encontrou Charles sentado à mesa, saboreando um enorme prato de sopa.

— Boa noite, condessa—disse ele alegre. — Gostaria de tomar a sopa mais deliciosa que já experimentei?

Estranho, ser saudada por Charles na casa de seu pai. Mas estava faminta e o protocolo era de pouca importância na ilha Hispaniola.

— Gostaria sim. — Delphine sentou-se à mesa enquanto Charles lhe servia os legumes e o caldo num prato fundo. — Mas eu gostaria de saber por que você está aqui.

— Não se preocupe, minha cara. Ninguém, exceto Phil, sabe que estou aqui.

— Onde está Phil?

— Com Marie. Quero dizer, ele precisou verificar algo na cidade — corrigiu-se Charles, nervoso.

Delphine não conseguia respirar nem engolir.

— Ele foi tratar de negócios na cidade — acrescentou Charles. — Negócios importantes. Pediu-me para lhe dizer que vai encontrá-la no navio ao romper do dia.

Delphine parou de comer, perdera o apetite. Seu mundo girava e seu coração se despedaçara. Através da intensa dor, sentiu a mão de Charles confortando-a, segurando seu braço.

— Não é o que você está pensando, Delphine.

Em que ela pensava? Não fazia a menor idéia. De repente, ficou-surda e muda a tudo a seu redor, inclusive às explicações de Charles.

— Está me ouvindo, Delphine? São apenas negócios.

Delphine anuiu e conseguiu sorrir.

— Estou exausto — disse Charles quando terminou seu prato. — Importa-se se eu for dormir? Phil disse que há um catre na sala.

Então, Phil desaparecera para tratar de "negócios" com Marie e deixara Charles para compartilhar a casa com ela. Por mais que gostasse de Charles,ficar com ele essa noite era uma afronta para tudo o que ela e Phil haviam compartilhado horas antes.

— É claro — compreendeu Delphine. — Por favor, fique à vontade.

Charles dava a impressão de que ia adormecer na mesa. Sorriu e foi para a sala. Logo caiu em sono pesado.

Delphine nada sentia, sentada na escuridão no jardim. Finalmente, quando não suportou mais a angústia, tomou uma decisão.

Se Phil ainda amava Marie, então não havia nada em seu poder para impedi-lo. Mas tinha certeza de que havia algo mais na situação. Ia descobrir o que estava acontecendo.

Mathurin bloqueou o caminho de Delphine no momento em que ela tentou subir a bordo.

— Sou eu — sussurrou Delphine.

— O que está fazendo aqui, Phyney? Pensei que estava dormindo.

— Esqueci de uma coisa.

— O que há com você? — indagou Mathurin. — Não me diga que veio sozinha. As mulheres não têm cabeça?

Delphine sorriu com doçura e depois se apressou para a escada, mas, antes de começar a descer, um movimento no convés chamou sua atenção. Ao lado direito do timão, estava Michel.

— Você devia estar dormindo — admoestou ela, num sussurro.

A criança levantou-se e pegou a mão de Delphine.

— Fique aqui comigo. Não gosto daquela lady.

Delphine não compreendeu as palavras do menino.

— Qual lady?

— Aquela que grita sempre conosco.

— A condessa?

— Tenho medo dela — concordou Michel — E tenho medo deste lugar.

Perto, François mudou de posição e começou a roncar alto.

— Não corre o menor perigo com tanto barulho a seu redor — disse Delphine com um sorriso. — Você se sentiria melhor se eu lhe deixasse minha adaga?

Michel anuiu. Delphine pegou a adaga e a deu ao menino.

— Vai me devolver pela manhã — alertou ela.

Michel nada disse e voltou para perto de François apertando a adaga com força.

Delphine desceu a escada. Entrou em silêncio na cabine de Marie. Deixou a porta aberta para permitir a entrada de luz e começou a olhar ao redor, mas a cabine estava imaculada. Começou a procurar em todos os lugares, embaixo dos baús e da mobília.

Em sua pressa e ira, Delphine fez barulho. Sentou-se no chão, ao lado da cama, sem conter as lágrimas. Como Marie conseguia? Como conquistara o coração de Phil? E como podia ele amar uma mulher tão vazia?

Enxugando as lágrimas; percebeu um objeto minúsculo debaixo do colchão. Era o canto de um pergaminho. Devagar, puxou o documento. Era uma carta endereçada a Marie. Estava escrita em inglês. Mas Delphine reconheceu a assinatura. Céus! Estavam correndo perigo terrível.

— Está procurando algo?

Delphine virou-se e viu a silhueta da condessa na porta, bloqueando a luz. Depressa, colocou a mão atrás das costas, ainda segurando o pergaminho.

— Na realidade estou — gaguejou Delphine. — Não sei onde coloquei um de meus livros favoritos e esperava encontrá-lo aqui.

Marie entrou nacabine. Segurava uma bandeja de chá nas mãos.

— Quer me fazer companhia?

Delphine escorregou para trás no colchão e escondeu a carta dentro da cintura da saia.

— O que está fazendo aqui, Marie?

A condessa sorriu, depois começou a servir duas xícaras de chá.

—Quem deveria fazer essa pergunta sou eu, minha cara. Afinal, esta é minha cabine.

Delphine tentou manter a calma embora tenha sentido um calafrio quando Marie lhe estendeu uma xícara.

— Já lhe contei, estou procurando um livro. Parece que não está aqui, por isso vou seguir meu caminho.

— Se não me engano, você gosta muito de açúcar. Uma colher ou duas? Senti falta de nossa amizade, Delphine. — A condessa sentou-se na única cadeira da cabine. — Passamos horas maravilhosas juntas.

Enquanto Delphine olhava para a mulher que uma vez quisera como sua mentora, só sentiu desprezo.

— Acho que queremos coisas diferentes — afirmou Delphine.

— Duvido — contestou Marie, levando a xícara aos lábios. — Ambas amamos o mesmo homem, mas até isso pode ser superado quando uma boa amizade está em jogo.

— E como propõe fazer isso?

— Sei onde está a lealdade dele — disse Marie, resignada. — Sei quanto ele gosta de você. Jamais cortarei o elo precioso entre vocês. Tem minha palavra. Beba, vamos fazer as pazes e começar de novo.

Boa ideia, pensou Delphine. Melhor beber logo e correr para o convés superior e mostrar a carta para Phil. Bebeu todo o chá, depois colocou a xícara e o pires sobre a bandeja.

— Vou embora — disse Delphine, mas Marie estendeu a mão num gesto amigável.

— Vamos apertar as mãos, então?

Delphine fitou a mão estendida com desgosto, mas precisava sair com a prova da culpa de Marie. Levantou-se da cama e apertou a mão.

Nesse instante sentiu uma tontura que anuviou sua razão.

— O barco está balançando? — indagou Delphine.

— Não, minha cara, não está. — Soltando a mão, Marie empurrou-a de volta para a cama.

Delphine percebia que havia sido drogada e que Marie estava revistando suas roupas. E logo encontrou a carta.

— Philibert nunca a amou — ouviu Marie sussurrar. — E você não viverá para ver a costa da Louisiana.

Delphine estava encurralada dentro de um abismo. Mesmo que conseguisse gemer, ninguém a ouviria. Mas recusava-se a desistir sem lutar.

— Acabo de vir da cama de Phil — disse ela com o mínimo de força que ainda lhe restava. — E eu a verei ser enforcada em New Orleans, sua bruxa traiçoeira.

Marie deu um tapa no rosto de Delphine.

— Você jamais verá um novo dia — ouviu Marie dizer antes de mergulhar na escuridão.

Quando Delphine despertou, o barco balançava muito e o sol se filtrava através das tábuas acima de sua cama. Deviam estar atravessando o golfo do México. Ou dirigindo-se para as Bahamas dominada pelos ingleses.

Onde estava Phil e por que ninguém viera em seu socorro? Estava amarrada à cama de Marie há mais de um dia e cada vez que abria os olhos, a horrível criada enfiava um líquido medonho por sua garganta e ela perdia a consciência outra vez. Se ao menos tivesse forças para se recusar a engolir, mas seus lábios e garganta estavam secos e seu corpo não tinha forças para sustentá-la. A criada fazia o líquido descer segurando seu nariz até ela sentir náusea. Quanta droga havia consumido? O suficiente para matá-la, certamente.

— Já a drogou hoje?

Delphine ficou de olhos fechados, atenta para que suas carcereiras não soubessem que estava acordada.

— Ela tomou uma quantidade enorme de láudano, madame. Não sobreviverá a outra dose.

Delphine sentiu Marie observando-a e ouviu o farfalhar de suas anáguas ao lado da cama.

— É o que desejo, Josephine.

— Mas o capitão não vai suspeitar?

Sim, Delphine queria gritar, Phil viria em sua defesa. Mas onde estava?

— Até agora acreditou em minha história, mas isso não vai continuar por muito tempo. — disse Marie para a criada. — Precisamos fazer isso rapidamente para podermos jogá-la no mar. Se esperarmos muito e chegarmos mais perto da Louisiana, Phil vai insistir em levar o corpo para New Orleans. Estamos muito longe da costa do Haiti para manter um corpo a bordo.

Deus, pensou Delphine, mais um dia e seria demasiado tarde. Onde estaria Phil?

— Precisamos mesmo matá-la?

— Ela encontrou a carta, Josephine. Conhece nossos planos junto ao governador inglês da Flórida. Como não conseguimos entregar este navio em mãos britânicas nas Bahamas, precisaremos mandar um aviso aos ingleses em Baton Rouge. O tempo é pouco agora que os espanhóis se aliaram aos franceses. Pelo que sabemos, o governador Galvez está planejando um ataque a Baton Rouge.

— Só se ele estiver sabendo do envolvimento espanhol.

— Então precisamos antes passar essa informação aos ingleses.

Delphine sentiu o olhar de Marie sobre ela outra vez. Rezou para respirar mais devagar para esconder que estava acordada.

— Quanto você lhe deu na última vez? — perguntou Marie à criada.

— O suficiente para matá-la, tenho certeza. — A voz de Josephine exprimia medo. — Mon Dieu, madame, precisamos fazer isso?

— Tem medo de um simples assassinato? — A condessa deu risada.

Delphine sentiu Marie erguer sua mão o máximo que as amarras permitiam, depois a deixou cair na cama.

— Mas precisamos...

Marie virou-se para a criada e Delphine sentiu a tensão em seu corpo.

— Se você tivesse levado a carta ao hotel, como instruí, nada disso teria acontecido.

— Não imaginei que ela ia fazer uma busca em sua cabine.

— Mas agora você deve corrigir seu erro.

Delphine ouviu o farfalhar das anáguas de Marie em direção à porta.

— Vou ficar lá em cima no convés, aplacando o capitão e os outros. Termine o trabalho, Josephine.

Delphine decidiu ficar quieta, continuando a fingir. A sorte es­tava a seu lado, pois a criada suspirou, depois sentou na cadeira e começou a cochilar.

Quando Delphine abriu os olhos a criada roncava. As cordas em seus pulsos estavam amarradas, mas não o suficiente para restringir todo o movimento. Lembrou-se de ter emprestado a adaga a Michel e perdeu a coragem. Como ia retirar as cordas? Como se defenderia? Precisava se libertar dessa prisão, encontrar uma saída.

Concentre-se, ordenou a si própria. Pensou em Phil, nas lições de piratas que aprendera com ele ao longo dos anos.

Delphine começou a afrouxar as cordas. Afinal, após o que pareceu uma eternidade, soltou as mãos e começou a tirar as amarras dos tornozelos.

— Vai a algum lugar?

A criada agarrou seu cabelo e ajogou de costas sobre a cama, depois lhe deu uma bofetada, apertou seu nariz e despejou uma xícara de líquido entre seus lábios.

Por mais que Delphine tentasse cuspir o veneno, a maior parte deslizou pela garganta, aumentando a sensação de torpor que já devorava seu corpo. Longe de desistir, com a mão livre, agarrou a chaleira ao lado da cama e a esmagou contra a cabeça de Josephine. Os olhos da criada se reviraram e ela desabou no chão.

Delphine dispunha de pouco tempo. Precisava subir ao convés, tinha de expelir a droga de seu corpo, avisar alguém sobre o que estava acontecendo. Sentindo dor a cada passo, ela se levantou da cama e cambaleou para o corredor. Devagar, subiu a escada, passo a passo.

Quando afinal sentiu a brisa marítima no rosto, a esperança voltou. Inclinou-se no parapeito, enfiou um dedo na garganta e expeliu o resto da droga que acabara de engolir. A última coisa que viu, antes de desmaiar no convés, foi o rosto aflito de Michel.

— Ela é uma espiã — Delphine sussurrou ao menino.

 

Quase dois dias, pensou Phil. O que poderia manter Delphine longe por dois dias?

— Já lhe contei, Philibert — disse Marie, com um sorriso doce. — São problemas femininos.

Delphine devia sofrer dos mesmos problemas da maioria das mulheres, mas ele jamais a vira doente um dia sequer em sua vida.

— Preciso vê-la, Marie. — Phil escondeu a emoção da voz, mas na verdade não ia esperar mais.

— Está sendo ridículo, Phil. Delphine contou-me que algo aconteceu entre vocês dois e que precisava ficar sozinha. E não está se sentindo bem. Não vamos embaraçá-la conversando sobre esse assunto.

— Preciso falar com ela.

— Phil, já lhe disse, ela não quer vê-lo.

— Preciso ver Delphine agora, Marie.

François ouvia a conversa com atenção. Tanto ele quanto Charles haviam discutido sobre a doença de Delphine e não acreditavam na história de Marie.

— Ela ainda está sofrendo por seu ciclo — sussurrou Marie no ouvido de Phil. — Talvez esteja sofrendo até mais.

Phil encarou a condessa, percebendo ciúme em seu sorriso forçado.

— A que está se referindo?

A condessa deu de ombros, endireitando as saias como se conversasse diariamente sobre esse assunto.

— Ela mencionou que vocês dois compartilharam intimidades — declarou Marie. — Só posso presumir o resto.

Phil desejava estrangular a espiã traidora, desejava ter insistido para que Marie fosse presa em São Domingos pelas autoridades espanholas. Mas não tinha provas. Galvez aceitaria sua palavra e mandaria encarcerá-la. Precisava esperar até alcançarem New Orleans.

Nesse momento sentiu um pequeno puxão na calça. Era Michel, que correu para se esconder atrás de François.

— O que há de errado com essa criança?

Michel apenas apontou um dedo para o parapeito.

 

De repente tudo virou uma tremenda confusão a vista de Del­phine inconsciente no chão. Todos correram para ajudá-la, mas Phil chegou primeiro e segurou sua cabeça entre as mãos. Phil endireitou-se e fitou Marie com dureza.

— O que você fez com ela? — gritou.

Marie recuou devagar para a escada, pronta a se trancar em sua cabine, mas Charles bloqueou seu caminho.

— Contei que ela estava doente — começou Marie, nervosa. — Ela deve ter subido para respirar ar fresco.

Phil aninhou a cabeça de Delphine em seu colo, afagou seu cabelo e a chamou pelo nome.

— Deve ter piorado. Fiz tudo o que pude — defendeu-se Marie.

Charles ajoelhou-se ao lado de Phil, examinando Delphine de perto. François pegou sua mão para verificar o pulso.

— Tem pulso, mas muito fraco — avisou François.

— Não entendo o que a fez adoecer tão depressa — disse Charles.

— Ela estava bem pela manhã — interveio Marie e algo em seu tom irritou todos os presentes. François sentia a tensão crescer no grupo.

Todos ficaram quietos enquanto observavam Delphine, espe­ravam por um sinal, rezavam por ela. Marie dirigiu-se outra vez para a escada.

— Não vai a lugar nenhum — gritou François para a condessa. — Não até nos contar o que aconteceu.

— Não tenho nada a lhe dizer, camponês. — Marie ergueu o queixo. — Delphine adoeceu, é tudo.

François agarrou a condessa pelo braço e a prendeu.

— Não é tudo e você sabe. Em nome de Deus, vou descobrir o que você fez.

— Solte-me — exigiu Marie, dando um chute na canela de François, que gemeu de dor, mas não a atendeu.

Nesse momento, Michel se aproximou e deu um chute na perna de Marie.

— Tome isso, lobisomem — gritou Michel para Marie, depois a chutou outra vez.

— Devagar, menino. — François afastou o pequeno para o lado sem soltar Marie, que começou a gritar obscenidades. Charles in­terferiu e exigiu ordem, sem resultado.

Afinal, a voz do capitão se fez ouvir acima das demais e todos se aquietaram. Phil colocou a cabeça de Delphine com gentileza no colo de Mathurin, levantou-se e se aproximou devagar de Marie enquanto puxava a adaga da bota.

— Por que chamou a condessa de espiã, Michel? — indagou ele ao menino, sem tirar os olhos de Marie.

— Antes de cair, Delphine disse que a condessa é uma espiã.

O olhar feroz de Phil e sua determinação chocaram François, que soltou Marie, Num instante, Phil a segurou pela gola e encos­tou a lâmina da adaga contra sua jugular.

— O que você fez? — gritou Phil.

Os olhos de Marie se arregalaram enquanto o sangue jorrava onde a ponta da lâmina tocara o precioso pescoço marmóreo.

— Delphine está drogada — declarou Charles. — Seu estado não é normal.

A ira de Phil se intensificou e ele enfiou a adaga um pouco mais.

— Conte-me ou vai ser arrastada atrás deste navio e os tubarões vão cortá-la em pedaços. Depois que eu cortar sua garganta aris­tocrática!

— Láudano — disse Marie, afinal. — Dei-lhe láudano.

— Céus! — exclamou Charles.

 

Phil gostaria de matar a condessa, mas foi convencido a mandar prendê-la. Seria enforcada em New Orleans.

— Leve essa traidora para sua cabine e cuide para que ela e a criada não saiam de lá até chegarmos à Louisiana — disse Phil para Sebastien.

Phil retornou ao lado de Delphine e a levantou com amor em seus braços. Ninguém falou enquanto o seguiam a sua cabine, onde Delphine foi colocada sobre a cama. Ele se ajoelhou a seu lado, beijando-lhe a mão e sussurrando seu nome.

—Traga cobertas — ordenou Charles para Mathurin que estava para explodir em lágrimas. — Também água e uma colher.

François segurou a outra mão de Delphine e mediu seu pulso, ainda pouco nítido.

— O láudano é letal? — indagou François para Charles.

— É uma droga usada para ajudar doentes, mas pode ser fatal em grandes doses — respondeu Charles.

Mathurin retornou com várias cobertas e um jarro de água. Phil não se movia, apenas segurava a mão de sua amada Phyney e acariciava seu cabelo emaranhado enquanto lágrimas corriam por sua face.

— Acho que ela ficou sem alimento e água nos últimos dois dias — disse Charles. — Pode morrer por falta de água.

François deu o jarro e a colher para Phil.

— Talvez ela não consiga engolir — explicou Charles. — Mas se conseguir dar-lhe alguma nutrição, mesmo apenas uma colher de chá, isso poderá salvar sua vida.

Phil fitou os dois homens e em seus olhos havia choque e dor. Mas compreendeu. Anuiu, aninhou a cabeça de Delphine em seus braços, enquanto François derramava uma quantidade minúscula de água na colher. Com delicadeza, Phil deslizou o líquido entre os lábios de Delphine, mas a água não entrou.

— Continue tentando — sussurrou Mathurin.

Quase uma hora se passou até o jarro ficar vazio. Ela permanecia imóvel como um cadáver, sua respiração era superficial e seu pulso apresentava um batimento muito fraco.

— Nada pode nos ajudar agora — explicou Charles. — Só o tempo dirá.

Todos saíram exceto Phil que ficou cuidando de Delphine e falando-lhe em voz alta como a amava.

 

Quando Delphine conseguiu abrir as pálpebras pesadas, sentia a cabeça latejar e a boca ressecada.

Havia alguém perto para ajudá-la ou estava outra vez presa? Lembrava-se vagamente de ter subido a escada, mas o que acon­tecera depois?

Não ousava se mexer, mas estava num lugar mais bem ilumi­nado do que a cabine de Marie, e alguém estava a seu lado. Deus do céu, rezou ela, que seja a cabine de Phil.

Levantar a cabeça um pouco causou enorme dor, mas lhe per­mitiu ver que Phil estava adormecido com a cabeça em seu colo. Apertou a mão de Phil e sussurrou seu nome.

Phil acordou sobressaltado. Seus olhos vermelhos se arregala­ram alarmados e linhas de preocupação marcavam seu rosto. Mas era a visão mais querida que Delphine já vira.

— Água — sussurrou ela, surpresa por conseguir falar com a garganta tão seca.

Em vez de se apressar a ajudá-la, Phil beijou sua mão e seus dedos várias vezes. Céus, ele estava chorando?

— Estou bem — tranquilizou ela. — Água.

Phil gritou por François. Este entrou fazendo o sinal da cruz, mas, ao ver Delphine acordada, lutou contra as lágrimas. Delphine sentia medo de morrer a qualquer momento se não lhe dessem de beber.

— Água — gritou Phil. — Ela precisa de água.

François correu para a porta, enquanto Phil tentava erguer os ombros de Delphine.

— Phil — murmurou ela. — Por favor, deixe-me deitar.

— Desculpe, pequena. — Ele colocou sua cabeça de volta no travesseiro, mas continuou a tocá-la como se tivessem ficado se­parados por anos. — Lamento tanto.

Desculpava-se por tê-la deixado na casa de Carmelita para visitar Marie ou porque agora conhecia a verdadeira natureza da condessa? Lágrimas começaram a correr dos olhos de Delphine. François entrou trazendo água. Pela clareza do líquido, Delp­hine avaliou que haviam deixado São Domingos, onde havia su­primento de água fresca, há poucos dias e deviam estar entrando no Golfo do México. Em uma semana alcançariam a Louisiana.

— Poderá algum dia me perdoar? — indagou ele, ainda segu­rando sua mão.

— Não — disse ela com firmeza, pois a água restaurara sua energia.

Ele a havia traído do pior modo ao deixá-la, optando pelo leito de outra mulher. Isso era imperdoável.

— Preciso dormir — insistiu ela. — Por favor, deixe-me.

Phil a fitou por vários momentos. Depois saiu da cabine. Quan­do François colocou a mão em sua testa, Delphine começou a soluçar.

— Não o julgue com tanta severidade — pediu François. — Ele a ama muito.

Podia ser verdade, pensou Delphine. Mas havia tantas contra­dições e sua cabeça doía muito. Soluçou até ser vencida pelo sono.

 

Os dias se passaram, e Delphine se restabelecia devagar. Uma fila interminável de acadianos e tripulantes entrava na cabine para levar-lhe alimento e água. Mas seu organismo ainda se ressentia dos efeitos do láudano.

Phil vinha vê-la diariamente, mas permanecia distante e silen­cioso. Delphine não desejava falar com ele nem abordar o assunto de sua infidelidade. Ela não via a hora de estar de volta a New Orleans. Precisava de seu pai e de Gabrielle para ajudá-la a enten­der tudo o que acontecera.

Uma tarde, Delphine acordou após um longo cochilo. A cabine estava em silêncio. Não havia ninguém perto, nem mesmo as mu­lheres acadianas. De repente, ela ouviu Phil gritar ordens. Se não estava enganada, estavam subindo o Mississipi.

Delphine desejou correr para o convés. Sua cabeça ainda girava, mas ela se vestiu devagar e conseguiu subir.

Charles aproximou-se, ofereceu-lhe o braço e a ajudou a sen­tar-se. Ela sentia-se feliz ao ver a cidade natal aninhada no cres­cente do rio caudaloso.

— Então esta é a terra prometida! — exclamou François. — Olhe, Michel, esta será nossa nova Acádia.

— Vamos nos ver outra vez, Phyney? — indagou Michel, tí­mido.

— É claro que sim. Você vai ficar em minha casa como meu hóspede até receberem suas concessões.

— Quer sua adaga de volta agora?

— Guarde-a, Michel. Agora é sua.

Delphine ficou perto de François e de Charles, ao lado do mas­tro principal, enquanto o navio se dirigia ao porto.

— Ahoy — gritou um soldado.

— Senor—respondeu Phil. — Preciso de vários soldados, pois há duas prisioneiras a bordo.

Quando La Belle Amie já estava ancorada, a primeira pessoa a subir foi Jean que, em poucos segundos, abraçou a filha.

Jean olhou preocupado para Phil enquanto abraçava a figura esguia de Delphine.

— Vou lhe explicar depois—disse Phil, com o coração pesado.

Afinal, quando Delphine olhou para Phil, lágrimas escorriam por sua face pálida. Céus, como ele gostaria de corrigir todos os erros ocorridos desde que deixara a França, pegá-la em seus braços e beijá-la até apagar todas as mágoas. Mas como? Ela continuava a evitá-lo.

Phil aproximou-se de Jean e os homens apertaram as mãos, enquanto Delphine se virava e tentava se recompor.

— Minha carruagem está aqui — avisou Jean. — Vou levar Phyney para casa e contar a Gabrielle que teremos vários convi­dados para o jantar.

— Há vinte e três acadianos e um gentleman, Charles Armand, que apreciaria descansar em algum lugar antes de voltar para sua casa rio acima.

— Serão todos muito bem-vindos — disse Jean, — Quem é aquela lady?

Os soldados arrastavam as prisioneiras. Marie ainda tinha boa aparência, usava seu mais belo traje, seu cabelo estava penteado na última moda.

— Marie Labárthe, condessa de La Candelier — contou Phil.

— Está brincando? — Incrédulo, Jean fitava Phil.

— Gostaria de estar — disse Phil, novamente amaldiçoando o dia em que conhecera Marie. — Ela se apresentou como meu contato na França, mas era uma impostora. É uma espiã, trabalhando para a Inglaterra. Descobrimos isso quando uma fragata inglesa nos atacou.

— Meu Deus! — exclamou Jean, e Phil se perguntou se ele estava atônito por causa da espionagem ou pelo fato de ela e Phil se terem reencontrado. Era a mais irônica das circunstâncias, em particular porque fora Jean quem resgatara Phil das águas do porto quando Marie o traíra pela primeira vez. — O que aconteceu com sua garganta?

Sebastien chegou pedindo instruções, e um soldado esperava para ouvir os detalhes dos crimes de Marie.

— Vamos. Voltarei dentro de uma hora e conversaremos — avisou Jean.

 

— Ela fez o quê?

Gabrielle mudou de posição enquanto tentava desembaraçar o cabelo de Delphine.

— Estou bem — disse Delphine, que estava sentada dentro da tina de banho. — Sobrevivi.

— Conte-me tudo. Seu pai já sabe? — pediu Gabrielle.

— Contei-lhe que estive doente, mas não acreditou.

— Você nunca ficou doente, por que ele ia acreditar?

Gabrielle levantou-se e serviu para ambas um copo de vinho. Quando estendeu o copo para Delphine, esta tomou um grande gole, esperando que o vinho diminuísse seu sofrimento. Mas a bebida só fez surgirem lágrimas.

— Quero saber de tudo — repetiu Gabrielle, enxugando o rosto de Delphine. — A começar do momento em que você chegou a St. Maio.

Delphine tornou mais um gole, depois colocou o copo no chão. Afundando mais na tina, contou tudo, começando pelo encontro com a avó até o pedido de desculpas de Phil na cabine. Gabrielle ouviu com atenção, depois se levantou e pegou um pente. Ao voltar, foi para trás da tina e começou a desembaraçar o cabelo de Delphine.

— Ele não dormiu com Marie — afirmou Gabrielle. — Phil jamais teria feito isso com você. Nunca.

De repente, Delphine se sentiu culpada por não ter dado a Phil a oportunidade de se explicar.

— Então por que me deixou? Por que foi para seu hotel?

— Se já sabia que Marie era uma espiã, por que não?

Delphine lembrou que Phil contara a Jean, logo à chegada, que sabia da traição de Marie desde o ataque inglês. Nesse caso todos os seus flertes com a condessa, durante a viagem, haviam sido encenados, sem dúvida para obter informações.

— Phil ama você — afirmou Gabrielle. — Veio aqui logo depois que você partiu. Quando lhe contamos que você estava a caminho da França ele foi embora sem sequer se despedir. Delphine, antes de Phil saber que você se havia tornado uma condessa, Jean e eu podíamos jurar que ele ia pedir sua mão.

Lágrimas começaram a escorrer pela face de Delphine.

 

Jean recebeu bem as notícias, considerando que sua filha estivera tão perto da morte. Phil só desejava poder se perdoar com tanta facilidade.

— Não foi culpa sua — disse Jean.

— É claro que foi. Eu devia ter contado tudo a Delphine.

— Ela está sempre se envolvendo em problemas — comentou Jean. — Você agiu corretamente.

— Não, eu estava errado. Devia ter-lhe contado tudo. Delphine pensou que eu ainda estava apaixonado por Marie e eu a deixei acreditar nisso.

— E você está?

Phil encarou seu sócio. Jean teria presumido que ele ainda gostava da condessa todos esses anos?

— Não — declarou ele, com firmeza.

Jean não pareceu nada surpreso.

— Mesmo assim, você não tem nada a se censurar. Conheço Delphine. Ela teria amado a ideia de ter uma espiã a bordo, particularmente sua ex-amante.

— Eu deveria ter lhe contado.

— E aí ela poderia ter sido envenenada no início da viagem.

Phil não concordava. Ele merecia censura. Delphine era sua confidente, sempre fora. E ela sempre suspeitara de Marie.

— O que você não me contou? — inquiriu Jean.

— Amo sua filha — disse Phil, afinal. — Desculpe-me, Jean, mas não posso viver sem ela,

O rosto de Jean nada revelava. Limitava-se a fitar o sócio.

— §ei que ela vai perder tudo — disse Phil — Mas nós nos amamos. Vou fazê-la feliz pelo resto de meus dias, juro. Nunca vai lhe faltar nada enquanto eu viver, asseguro-lhe.

— Já era mais do que tempo — disse Jean, sorrindo e adiantando-se com as mãos estendidas. —Não poderia ter um genro melhor.

— Então não está aborrecido?

— Pareço aborrecido?

— Mas ela vai perder tudo se casar com um plebeu — argumentou Phil suspirando.

O sorriso no rosto de Jean diminuiu, mas apenas um pouco. Ele pegou uma garrafa de rum e serviu a ambos uma bebida.

— Preciso lhe contar algo — disse Jean dando a Phil seu copo. — Não estamos em situação tão crítica como você pensa. Temos um novo sócio, desde que você partiu para a França. De fato, é de St. Maio.

Phil estava completamente confuso, mas deixou Jean continuar.

— Ele me escreveu da França, dizendo que havia conhecido nossa amada Delphine, ouvira suas histórias sobre a Louisiana e estava arrebatado por nossa missão. Anexou milhares de libras em sua carta e pediu para ser um terceiro sócio em nossa operação.

— Quem é esse homem?

— Chama-se Pierre Magon. Parece familiar?

Phil deu risada. Magons eram tão comuns em St. Maio como corsários.

— E confia nesse homem?

— Ele nos enviou uma pequena fortuna, sem fazer perguntas. Se foi tão descuidado a ponto de enviar dinheiro para dois piratas, então acho que merece confiança. Além disso, investiguei-o, enviei cartas para a França e recebi uma resposta afirmativa,

— Há quanto tempo recebeu esse dinheiro?

— Este barco necessita de uma boa limpeza — desviou Jean, olhando o tombadilho sujo.

— Jean?

—Eu ia lhe contar, mas surgiu algo—disse Jean, sem se voltar.

— Por que não me conta agora?

— Gastei o dinheiro — contou Jean.

— Confio em seu julgamento. Certamente você não acha que preciso saber tudo o que você faz. — Phil relaxou.

Jean colocou o copo vazio sobre a escrivaninha. Enfiou a mão no bolso de dentro de seu casaco e retirou um pergaminho.

— O que é isso? — indagou Phil.

—Uma concessão de privilégio.—Jean estendeu o documento ao amigo.

Que brincadeira era aquela? Mas Phil abriu a carta e viu a assinatura do rei Luís embaixo.

— É uma lettre patente — explicou Jean, enchendo os copos outra vez. — Bastou uma carta de Galvez e uma boa soma e o rei Luís o declarou nobre.

Surpreso, Phil leu rapidamente a carta até reconhecer seu nome.

— Não fique muito animado — aconselhou Jean. — É apenas um nobre, como eu. Mas quando desposar Delphine terá um título também.

Phil precisou sentar-se. Era demais para absorver de uma vez. Seria possível que todos os seus problemas desaparecessem com um simples pergaminho?

— Se for verdade, você salvou minha vida pela segunda vez — disse Phil com um nó na garganta.

— É verdade, meu amigo. — Jean sorriu, levantando seu copo. — Para você e Phyney. Que sejam tão felizes como Gabrielle e eu temos sido nos últimos dez anos.

— Não sei o que dizer. — Phil tomou o rum.

— Considere como um investimento — disse Jean. — Espero que vocês dois tornem nosso negócio lucrativo outra vez.

Phil sentiu-se abençoado. A felicidade estava finalmente a seu alcance.

— Só que. isso vai ter de esperar um pouquinho mais — disse Jean, muito sério.

Phil devia ter sabido, considerando que a Espanha havia acabado de entrar na guerra contra a Inglaterra. Se os ingleses estavam, de fato, planejando tomar New Orleans, iam fazer isso tão logo soubessem que a Espanha se aliara a França.

— O tempo é vital — alertou Jean. — Segundo Galvez, os ingleses não sabem da entrada da Espanha em guerra. Ele planeja atacar Baton Rouge antes que os ingleses ataquem New Orleans.

— Quando partimos? — indagou Phil, entendendo a urgência da situação.

 

— Você está mirando muito alto, Michel. Precisa segurar a lâmina na frente, do peito.

Ao demonstrar o uso correto dos floretes, Delphine arremessou-se para frente um pouco para fazer Michel reagir. Para uma criança pequena, ele se defendeu muito bem do golpe.

— Bom — cumprimentou Delphine com um sorrio. — Você aprende depressa.

— Vou poder defender a cidade se os ingleses atacarem — disse o menino, orgulhoso.

Delphine abaixou a lâmina, lembrando-se do conflito em Baton Rouge. Enquanto seus pensamentos estavam com Phil e o resto de sua família, Michel atacou e arrancou a lâmina dos dedos de sua instrutora.

— Nada mal — exclamou Delphine.

— Na verdade foi excelente. — Michel fez uma reverência. — Desarmei a famosa Delphine Delaronde.

— Você dois não fizeram nada mais hoje além de esgrimirem? — indagou Gabrielle, entrando no pátio acompanhada das duas irmãs.

Todas as manhãs elas iam à missa, rezar pelos maridos, enquanto Delphine cuidava das crianças. Ensinar esgrima usando calções masculinos era preferível a chorar dentro da Catedral Saint Louis.

— Eu a venci — disse Michel, orgulhoso.

— É verdade — confirmou Delphine ante o olhar questionador de Gabrielle. — Acho que chegou a hora de eu me aposentar.

— Isso, minha querida, seria muito difícil de acreditar. — Gabrielle pegou Julian, seu caçula.

— Sei como se sente — disse Emilie, a irmã mais velha de Gabrielle. — Se meus filhos fossem mais velhos, eu os teria acompanhado na guerra.

— Lorenz e os outros jamais permitiriam isso — disse Rose, a mais jovem das irmãs Gallant e mãe de dois pares de gêmeos muito ativos.

— Isso não a deteve antes — comentou Gabrielle, com um sorriso.

Quando a família chegara à Louisiana e começara a busca pelo pai, Emilie havia seguido o melhor amigo, Lorenz Landry. A história das irmãs Gallant, que haviam reunido os pais apartados pelo exílio acadiano, havia se tomado uma lenda na Louisiana. Lorenz se tornara parte da família, junto com o marido de Rose, Coleman, e com Jean.

— Detesto esperar — disse Delphine. — Por que as mulheres sempre são deixadas para trás?

Desde que os homens haviam partido para a guerra, Delphine sentia o coração despedaçado.

Gabrielle enlaçou Delphine com um braço e Emilie fez o mesmo com Rose.

Graças a Deus pelos entes queridos, pensou Delphine, reconfortando-se com a família adotiva.

De repente, um soldado apareceu no fundo do pátio, batendo com força no portão.

— Desculpem-me senhoras. Estou procurando por mademoiselle Delaronde.

— Sou eu — Delphine deu um passo à frente, esquecendo-se que estava usando calções masculinos.

— Mademoiselle Delaronde, preciso de sua ajuda.

— Em que posso ajudá-lo, sir?

— Uma prisioneira que estava sob nossos cuidados escapou, roubando uma de nossas carruagens. Ela se dirigiu para o norte. Pensamos que, talvez, possa conhecer...

— Marie Labárthe?

— Ela mesma — confirmou o outro soldado nervoso. — Enganou um de nossos jovens camaradas com seu poder de sedução.

Delphine não pensou duas vezes. Pegou sua espada, colocou-a na bainha, depois se voltou para as irmãs.

— Vou pegar a arma e seu cavalo — disse Emilie, e foi para o estábulo junto com Rose.

— Vou lhe preparar algumas provisões. — Gabrielle levantou as saias e correu para a cozinha.

Apenas os soldados pareceram confusos.

— Sabe onde a condessa de La Candelier está, mademoisellel

Delphine vestiu o casaco do pai, depois rolou as mangas para cima.

— É claro que sei. Está indo para o lago Pontchartrain. Há um navio inglês lá, patrulhando a área há dois anos. Ela deseja informar aos ingleses que nossas forças estão subindo o rio. Se não a detivermos, Galvez vai perder os benefícios de um ataque de surpresa.

— Como sabe disso? — indagou o primeiro soldado.

Emilie retornou com uma arma de fogo, que Delphine colocou no ombro, enquanto Gabrielle chegava com uma provisão de alimentos. E Michel deu-lhe sua adaga.

— Sei disso, senhor, porque eu contei à condessa sobre este navio. Infelizmente, senor, conheço a condessa muito bem e asseguro-lhe que está indo para o lago. Dirigir-se a Baton Rouge significaria atravessar o pântano e nossa delicada condessa não tem o temperamento adequado para tal viagem. Agora, se desejam me acompanhar, aconselho-os a montarem já.

Delphine montou no animal e partiu em direção do lago Pontchartrain enquanto os soldados se esforçavam para segui-la.

Logo o grande lago e um navio navegando à distância tornaram-se visíveis. Mas os soldados espanhóis estavam muito atrás. Quando Delphine viu uma carruagem abandonada junto a uma casa de fazenda, ela desmontou e amarrou o cavalo num cipreste.

Em silêncio, ela se aproximou da casa, preocupada. Teria chegado demasiado tarde? Ao ouvir ruídos e o som de uma mulher praguejando, Delphine soube que a sorte estava a seu lado. Tirou a adaga da bota e entrou na habitação, movendo-se sem fazer ruído.

Marie estava em pé ao lado da parede, no fundo, usando uma saia rasgada em vários lugares. Com o cabelo todo embaraçado, praguejava como seria natural a um marinheiro enquanto tentava alisar o corpete sujo.

— Essas palavras não são adequadas a uma condessa.

— O que você está fazendo aqui? — indagou Marie, chocada.

— Não aprendeu nada com nossas conversas, Marie? Ou não acreditou que a Louisiana era pantanosa?

Marie ergueu a mão para bater em Delphine, mas esta foi mais rápida e a impediu, virando seu braço para trás.

— Cuidado comigo, condessa — sussurrou Delphine. — Está em solo meu, agora.

— Solte-me, sua vadia — gritou Marie.

Delphine atendeu ao pedido, soltando Marie tão de repente que ela caiu no chão.

— Ele nunca a amou — disse Marie com desprezo. — Possuo o corpo e a alma de Philibert.

Delphine inclinou-se ao lado da mesa da cozinha e examinou a lâmina de sua adaga.

— Ele visitou minha cabine todas as noites da viagem. Estávamos planejando casarmos. — Marie apertou os olhos e ergueu o queixo, ainda deitada no chão.

— Eu sabia exatamente onde ele estava no navio, Marie. Como espera que eu acredite na palavra de uma traidora como você?

A condessa tentou se levantar, mas não passou do canto da mesa. Delphine pisou em seu ombro com uma bota, ela caiu contra a parede e ficou encolhida num canto.

Marie sentiu a parede nas costas, depois olhou para os dois lados.

— Não pode me prender aqui. Os ingleses estão a caminho. Já fiz sinal para seu navio. Vou mandar prendê-la e enforcá-la.

— Sem dúvida, condessa. Tenho certeza de que dormiu com um número suficiente de ingleses para ter muita influência sobre eles.

—Ao menos irei para minha sepultura sabendo que fui adorada. E você será conhecida pelo que, Delphine? Uma bastarda de quem a sociedade ri pelas costas?

Foi a palavra bastarda que inflamou Delphine. Ajoelhou-se no chão diante de Marie e encostou a famosa adaga na garganta perolada.

— Chame-me outra vez assim, Marie. Ouse insultar meu pai.

— Pare — pediu Marie engasgando. — Você ainda é uma condessa. O que sua avó pensaria de você agora?

Na verdade, a avó teria aprovado. Mas Delphine não tinha intenção de fazer nada além de assustar Marie.

— Minha avó nunca gostou de você. Desde seu casamento, na noite em que você traiu Phil na frente de todos os seus convidados. Acredita que todos a adoravam?

— Eles não sabiam de nada — disse Marie, com orgulho. — Nem mesmo depois que matei meu marido e mandei seu dinheiro para o outro lado do Canal. Durante anos enviei franceses para suas sepulturas.

Torcendo a lâmina um pouco, Delphine rompeu a pele onde havia uma cicatriz feia. Marie ofegou, enquanto um filete de sangue descia por seu colo, e fechou os olhos, esperando pela morte. De repente a porta foi aberta e uma voz trouxe Delphine de volta à razão.

— Solte a lâmina, Delphine.

Ao som da voz de Charles, Delphine soltou a adaga. Marie segurou a garganta para se certificar de que ainda estava intacta.

— Soldados espanhóis estão vindo — contou Delphine. — Nós a seguimos até aqui depois que ela escapou. Devem chegar a qualquer momento para levá-la de volta para a cidade.

— Não tem importância — disse Charles. — Já tomamos o lago. Dispomos de muitos homens.

Delphine não entendera bem o que Charles dissera, mas estava demasiado cansada para perguntar. Observou enquanto ele e três outros homens armados escoltavam Marie para fora da casa.

— Subimos o rio com os homens de Galvez, prontos para conquistar os fortes ingleses de Manchac e Baton Rouge — explicou Charles ao voltar. — Mas, ao longo do caminho, encontramos um americano chamado William Pickles que desejava tomar o navio inglês West Florida no lago Pontchartrain. Se ele conseguisse isso, forneceria uma defesa espanhola-americana para New Orleans.

Delphine olhou para fora da janela e percebeu que o navio que avistara antes estava ancorado na margem. O navio carregava doze canhões, uma defesa impressionante.

— Nós decidimos nos unir a ele — prosseguiu Charles.

— Nós? — indagou Delphine, sentindo a respiração se tornar difícil.

Antes de Delphine ter tempo para fazer mais perguntas, a porta foi aberta e Phil entrou.

— Deixe-nos a sós, por favor, Charles.

—Não seja muito duro com ela, Phil. Delphine conseguiu pegar nossa prisioneira — contou Charles, antes de sair.

— Marie está lá fora — disse Delphine em defesa própria. — Os soldados vão levá-la de volta à cidade. Se quiser conversar com ela, faça isso agora.

Phil mal a fitava, e isso deixou Delphine nervosa.

— Os soldados espanhóis vieram a minha casa, Phil. Contaram que Marie havia escapado e eu sabia onde ela iria.

Phil continuava em silêncio e Delphine queria gritar. Ele se aproximou tenso.

— Lamento não ter ficado em casa. Sei que devia estar lá...

Antes de ela terminar a sentença, os braços de Phil a envolveram e ele a beijou.

— Eu a amo, Delphine — sussurrou ele, e o mundo inteiro desapareceu.

Delphine se virou e o beijou outra vez. Phil a levantou no ar e ela desatou a rir. Foram interrompidos pelo som da porta sendo aberta.

— Desculpe-me incomodá-los — disse François com um sorriso malicioso. — Mas os soldados estão à espera de ordens.

— Envie alguns com a condessa para New Orleans e garanta que ela seja acorrentada — disse Phil. — Dê instruções explícitas para que ela não receba nenhum tipo de tratamento especial.

— E o restante dos homens?

— Diga-lhes para ficarem no convés junto com Pickles. Acredito que nosso bom capitão queira viajar para o lado norte do lago e clamar sua posse em nome dos Estados Unidos.

— E de que mais necessita, capitão — indagou François, sorrindo para Delphine.

— Chame o padre Felician. Diga-lhe que necessito de seus serviços.

Ao ouvir isso, Delphine se afastou um pouco.

— Padre Felician?

— Um padre que encontramos em St. Gabriel, um acadiano que insistiu em ajudar a combater os ingleses.

—Posso ter a honra de ser seu padrinho? — perguntou François ao primo,

— Será uma honra e um privilégio — replicou Phil. François fez-lhes uma reverência, depois saiu da casa.

— Padre Felician? — repetiu ela.

Phil imediatamente se ajoelhou. Segurou a mão de Delphine e a beijou.

— Mademoiselle Delphine Bouclaire, condessa Delaronde, peço a honra de se tornar minha esposa.

Delphine o fitava atônita. Quando tentou responder, Phil continuou.

— Será minha sócia, compartilhará meu navio, minhas viagens, minha cabine? — ele fez uma pausa antes da última palavra.

Seus olhos brilhavam enquanto um sorriso brincava em seus lábios.

— Phil, eu...

— Trará meu café, lutará contra um crocodilo se necessário?

Ela queria dar-lhe um tapa por brincar desse modo e estava para dizer que homem horrível ele era quando, de repente, seu sorriso desapareceu.

— Phyney. Por favor, termine meu sofrimento e conceda a felicidade de me aceitar pelo resto de minha vida. Por favor, diga a palavra que será minha salvação. Diga que se casará comigo.

— Por que demorou tanto tempo para perguntar? — sussurrou Delphine.

 

Tudo aconteceu tão depressa que só quando a cerimônia terminou Phil percebeu que a esposa parecia mais um homem do que uma noiva enrubescida. Seu cabelo estava desalinhado e as roupas cobertas de poeira. Até as botas tinham lama.

— Casei-me com um rato do pântano — sussurrou ele, aproveitando a oportunidade para roçar sua orelha.

Delphine estremeceu, afastando-se do alcance de Charles e François.

— Ah, mas sou uma condessa.

— Delphine, precisamos conversar.

— Já lhe afirmei que títulos nunca me importaram — disse ela.

Nesse momento, François propôs um brinde.

— Para meu primo favorito deste lado do Atlântico — começou ele.

— Para seu único primo — retificou Phil.

— Para meu único primo, a quem me afeiçoei apesar de sua natureza teimosa. E que seu enlace perdure até o fim de seus dias, com saúde, paz e prosperidade.

Delphine se aproximou de François e beijou sua face, depois pensou melhor e o abraçou com afeto.

Charles abraçou Delphine, apertou a mão de Phil e lembrou a François que estava na hora de ambos retornarem ao navio.

— Qual a razão de tanta pressa? — indagou o sacerdote, surpreso por ver que todos começaram a se despedir.

— Recém-casados — explicou Charles. — Devem ficar sozinhos.

— No meio da tarde? Certamente não! — chocou-se o padre.

A última coisa que Phil observou foi Charles e François empurrando o padre para fora. François retornou rapidamente para pegar outra garrafa de vinho. Então a porta foi fechada e o casal ficou sozinho. Chegara a hora de contar as novidades para a noiva.

— Delphine preciso contar-lhe uma coisa — disse Phil, mas logo foi interrompido com um beijo.

— Depois — sussurrou ela. — O quarto fica no segundo andar.

Phil não precisava de mais encorajamento e carregou a noiva pela escada acima. Os dois se deitaram na cama, mas os pés de Phil tocaram em algo duro no chão. Ao se virar, ele percebeu que não estava num quarto, mas num depósito que fora rapidamente limpado e adaptado para duas pessoas dormirem. Em seu centro havia dois colchões colocados juntos e cobertos com lençóis e uma colcha. E, ao redor do ninho de amor, havia garrafas de rum cheias de flores silvestres.

— Charles e François fizeram isso — contou Delphine. — Enquanto você estava conversando com o padre Felician, trouxeram os colchões e os lençóis do navio.

Os olhos de Delphine brilhavam de felicidade. A verdadeira bênção estava para acontecer.

E Phil fez amor com ela deixando bem claro que nessa viagem era ele o capitão. E desta vez ela foi inundada por um contentamento intenso, uma sensação de puro êxtase. Pela primeira vez em sua vida, Delphine teve certeza de ser feliz.

— Delphine, precisamos conversar.

Se fosse algo relacionado a Marie, ela preferia não saber.

— Quando poderemos repetir tudo?

— Ficaria feliz de jamais deixar esta cama, mas acho que você precisa de um descanso — respondeu Phil, sorrindo.

— Descanso?

— Eu devia ter imaginado que você nunca necessita de descanso. — o olhar de Phil tornou-se solene. — Mas realmente precisamos conversar.

— Concordo. Mas só se eu começar.

Ele começou a afagar seu cabelo, com reverência. Havia tanto amor em seus olhos que ela se envergonhou de uma vez ter acreditado que ele a traíra.

— O que deseja me contar? — indagou Phil.

Ela se aproximou mais, inquieta. Como aceitaria ele a notícia?

— Você me pediu para ser sua sócia—disse ela com suavidade. — Bem, já sou.

— Como assim? — indagou Phil.

—Na realidade, perdi minha posição quando nos casamos, mas eu era sócia até uma hora atrás.

— Delphine, sobre o que você está falando?

— Estou a par dos negócios. Sei sobre La Belle Amie. Sei que você e papai têm tido problemas financeiros.

Phil franziu a testa, mas ela prosseguiu.

— Sei que papai nunca aceitaria minha ajuda, por isso enviei-lhe dinheiro sob o nome de outra pessoa. Pedi-lhe para me tornar sócia e papai concordou.

— Pierre Magon!

Delphine sentiu um aperto no peito. Phil já soubera do pacto e o fato de não estar sorrindo a inquietou.

— Só queria ajudar, Phil. Nunca perdoarei vocês dois por não me contarem. Se não fosse por um comentário de Gabrielle e eu examinar os livros...

— Você examinou nossos livros? — Phil sentou-se e cruzou os braços.

— É claro que sim. De que outro modo eu poderia saber sobre nossos negócios?

De repente, ele percebeu o absurdo da situação e começou a rir. Foi a vez de Delphine cruzar os braços diante do peito.

— O que é tão engraçado?

— Seu dinheiro — disse ele, afinal. — Sabe em que seu pai o gastou?

— Ele o gastou para manter os negócios.

Phil afagou a face de Delphine. Céus, ele a amava. Ela arriscara a vida por sua família, dera sua fortuna ao pai para salvar seu navio e desistira de seu título por amor. Nenhuma mulher chegaria jamais aos pés de Delphine Bouclaire Bertrand, condessa Delaronde.

— Ele gastou tudo na compra de uma lettre patente para mim.

— Você é um nobre agora? — indagou Delphine, surpresa.

— Bem, sempre me considerei nobre, mas agora é oficial.

— Philibert Bertrand — disse Delphine com uma risadinha. — Conde Delaronde.

— Capitão Bertrand — corrigiu ele.

— Tarde demais. — Delphine deu risada. — Já se casou comigo.

— Chame-me desse modo outra vez e terei de abandonar esta cama.

— Conde Delaronde — repetiu ela, para provocá-lo.

Todas as defesas de Phil desapareceram e ele a beijou. Quando se afastou e fitou a esposa, sabia que títulos eram para outras pessoas, em outra parte do mundo.

— Não poderíamos ser apenas Bertrand?

— Posso ser sua sócia? — indagou ela, enlaçando-o pelo pescoço.

Phil desatou a rir. Depois começou a beijar o rosto de Delphine, sem parar.

— Sempre foi minha sócia. Eu não esperaria nada menos numa vida casado com você.

— Sou uma boa sócia. Posso contribuir com uma fortuna.

— Pensei que você tivesse enviado tudo a seu pai — comentou Phil, sem entender.

Foi a vez de Delphine rir.

— Aquilo não foi nada. Tenho muito mais. Certamente não achou que herdei apenas alguns milhares de libras.

Alguns milhares de libras eram a maior fortuna que Phil podia imaginar. Ele a fitou como se ela fosse a rainha da França.

— Phil, você é um homem muito rico.

Sim, era, pensou Phil com orgulho, mas não tinha nada a ver com dinheiro. No entanto, a idéia de ficar livre de problemas financeiros fazia sua cabeça girar. Poderiam continuar a transportar acadianos para a Louisiana, levar armas para os americanos.

— É um patriota, não é? — indagou Delphine, lendo os pensamentos do marido.

Phil pensou na razão pela qual começara sua longa aventura para ajudar Galvez e os americanos. No início, só quisera proteger seu anjo. Mas agora era muito mais. A causa da liberdade queimava em suas veias. A idéia de independência não era irrealizável. Desde que sempre tivesse Delphine a seu lado.

Logo Phil subiria o rio para uma possível batalha. Pretendia saborear o presente, seus momentos juntos. Faria amor com ela uma última vez.

Mas ainda tinha explicações a dar sobre uma condessa traidora e a razão pela qual mentira a Delphine naquela noite distante na cabine, quando se haviam beijado.

— Delphine — disse ele outra vez. — Precisamos conversar.

 

— Os britânicos têm dezoito canhões, nós apenas dez — disse Galvez enquanto dava passos pela tenda. — Suas tropas experientes contam mais de quatrocentos soldados, as nossas, muito menos. E há o resto de nosso grupo: camponeses, índios e negros, sem disciplina ou subordinação.

Jean sentiu o cabelo eriçar. Bastou um rápido olhar para seu cunhado acadiano, Lorenz, e percebeu que não estava sozinho em suas preocupações. O marido de Emilie podia ser um camponês, mas era muito capaz com um canhão, além de estar disposto a enfrentar os britânicos, responsáveis pela morte de seus pais e de sua família, duas décadas antes.

— Estou preocupado que os ingleses sejam superiores a nossas forças — declarou o governador. — Entretanto, capturamos Manchac, interceptamos suas forças em Pensacola e os detivemos na passagem de Natchez.

— Poderíamos retardá-los — sugeriu um dos oficiais. — O forte de Baton Rouge está isolado. Os ingleses vão acabar se rendendo.

Jean não aprovava a espera. Haviam sido quase duas semanas de marcha para tomar o primeiro forte inglês em Manchac, depois quase duas semanas para Baton Rouge. Ansiava por voltar ao convívio de sua família.

— Muitos dos nossos adoeceram — acrescentou Coleman Thorpe, o marido de Rose, que havia sido criado como um inglês, mas se considerava americano. Nas duas últimas semanas havia sofrido vários acessos de febre. Como Jean, ele achava que chegara a hora de enfrentar o inimigo e voltar para casa.

Todos os homens voltaram a atenção para Galvez. Vários minutos se passaram até o governador falar.

— Sei que muitos de vocês são chefes de família — disse, afinal. — E uma vitória custosa encheria toda a província de dor e luto. Mas devemos atacar imediatamente.

A moral dos homens dentro da tenda se elevou. Todos estavam mais do que prontos a combater os ingleses.

— Nosso primeiro problema é colocar a artilharia em posição — disse Galvez. — De certo modo, o forte é indestrutível.

Jean e os cunhados Coleman e Lorenz concordaram enfáticos.

— Se me der licença, governador, talvez tenhamos uma solução para seu problema —afirmou Jean.

 

Jean abriu caminho com os cotovelos em direção à frente do arvoredo, sentindo a terra lamacenta sob os pés. Era uma posição estratégica para ele e seus homens.

— Posso alcançá-los daqui — disse Lorenz, puxando o rifle para frente.

Jean se virou e fez um sinal para seu pequeno destacamento. Logo começaram a derrubar árvores e a construir trincheiras.

— Hora de diversão — disse Lorenz, ao dar um tiro em direção ao forte, fazendo cair o chapéu de um soldado inglês.

Percebendo que o exército de Galvez estava tomando posição contra eles, os ingleses haviam se arregimentado e passaram a dar tiros em sua direção. Seu forte era muito sólido e cercado por um fosso de cerca de cinco metros de largura. Mas seus tiros tocaram a casca das árvores, soltando galhos sobre a cabeça de Lorenz.

— É isso tudo o que podem fazer? — gritou Lorenz, dando outro tiro.

Coleman começou a carregar seu mosquete como um soldado experiente.

Jean sorriu. Se seu plano funcionasse, o dia seguinte faria história.

Quando o sol surgiu pela manhã os ingleses ainda concentravam sua atenção no arvoredo. De repente, um grupo de homens começou a gritar de dentro do forte. Haviam descoberto o segredo de Jean.

— Vamos lá! — gritou Jean, um pouco antes de ouvir a explosão do tiro de canhão nos muros do forte.

Enquanto Jean e os outros fingiam tomar posição para sua artilharia, Galvez instalara seus canhões num terreno do lado oposto do forte. Os ingleses haviam passado a noite brincando de tiro ao alvo com Lorenz e Coleman enquanto Galvez postara sua artilharia sem fazer ruído.

Os ingleses logo viraram seus canhões em direção aos espanhóis e aos americanos da Louisiana e começou a batalha. Mas Galvez havia conseguido uma vantagem desde o primeiro tiro. Não demorou muito e ele explodiu vários pontos das laterais do forte.

A batalha foi intensa, por várias horas, mas no meio da tarde os ingleses estavam derrotados. Às três e meia, dois oficiais ingleses saíram do forte com uma bandeira branca em sinal de rendição.

— Os ingleses não vão mais nos incomodar no Mississipi e poderemos viver neste território livres da tirania—disse Coleman.

Nossa participação chegou ao fim e podemos afinal brindar a nosso sucesso e ir para casa — declarou Jean.

Todos os combatentes cantavam felizes e erguiam seus copos em triunfo ao redor de uma enorme fogueira. Jean deteve um dos jovens que enchiam os copos e pegou uma garrafa em sua mão.

— Onde encontrou isso? — Jean virou a garrafa entre os dedos, observando o vidro. — Parece familiar.

—É claro que é familiar—interveio Phil. — Contrabandeamos esse carregamento de Barbados no verão passado. — Estou contente por ver que ainda está vivo — completou Phil.

— Estou contente por você ter trazido o vinho — retorquiu Jean. — Chegou na hora certa.

— Conheço várias mulheres que vão ficar satisfeitas ao verem que você está intacto e com boa saúde — comentou Phil, dando risada e estendendo uma garrafa para Lorenz e Coleman.

— O que aconteceu com Pickles? — perguntou Coleman. — Quando vi vocês pela última vez, estavam se dirigindo ao lago Pontchartrain,

— O lago é nosso — contou Charles, orgulhoso, enquanto colocava uma caixa de vinho a seus pés. François tirou a tampa e vários homens pegaram garrafas. — Pickles continua patrulhando o lago, mas decidimos subir o rio com provisões.

— Estou muito contente por terem feito isso, rapazes — disse Lorenz, sorrindo.

— Há alimento a bordo dessa embarcação? — indagou Coleman, fazendo um gesto para os mastros que apareciam por cima das árvores. — Bem que podíamos fazer uma refeição decente.

— O paraíso os espera a bordo, meus amigos. Todos os alimentos que possam desejar. — Phil fez uma reverência.

 

— Por que estão demorando tanto? — indagou Emilie nervosa.

— Phil queria que ficássemos longe do perigo — interveio Rose.

Apenas Gabrielle permanecia silenciosa, observando a costa como um falcão enquanto crianças corriam ao redor. Até Michel parecia preocupado.

— Todos estão bem — afirmou Delphine, para se acalmar.

Tiros de canhão ecoavam sobre o Mississipi. Mas ressoavam como uma celebração.

De repente, avistaram Phil e em seguida Jean, Coleman e Lorenz. A vista dos maridos, as três irmãs correram pela prancha, tropeçando e rindo, ao mesmo tempo, e logo todos se abraçaram. Phil deixou os três casais e se aproximou de Delphine, que olhou para seu pai e murmurou uma oração de agradecimento por revê-lo.

— Você não acreditou que algo ia acontecer a um Bouclaire, não foi?

—Estou presumindo que vencemos—disse Delphine, olhando para Phil.

— É claro que vencemos. — Phil abraçou a esposa. — Os ingleses se renderam há poucas horas.

Delphine recuou um pouco ao ouvir a notícia, mas não teve tempo para inquirir mais. Phil a beijou e o mundo desapareceu para ambos.

Quando se separaram perceberam que Jean os fitava como se tivessem perdido o juízo.

— Papai, quero lhe apresentar o conde Delaronde.

— Acho que vamos dispensar os títulos — disse Phil, como se tivesse acabado de morder um limão.

— Não puderam esperar — contou Gabrielle ao marido. — Mas prometeram deixar-nos fazer uma grande festa quando voltarmos para New Orleans.

— Que vocês sejam muito felizes — sussurrou Jean.

— Algumas coisas estavam destinadas a acontecer — disse Gabrielle, com um grande sorriso, e dando o braço para Jean. — E algumas pessoas estavam destinadas a ficarem juntas.

Independentemente da vitória de Galvez, as mulheres e os membros da tripulação trabalharam noite adentro descarregando provisões para o exército e ajudando os soldados doentes e feridos a bordo. Perto da meia noite, o barco partiu para New Orleans com os conveses repletos de enfermos.

Finalmente, um silêncio abençoado desceu na embarcação, exceto pelas velas adejando quando mudavam de rumo nas curvas do rio caudaloso.

— É tão mais fácil ir a favor da corrente, não é?

Delphine estava sentada no tombadilho, grata pela chance de descansar os pés perto de Michel. François também estava cansado, e a cabeça do menino repousava em seu colo.

— Não subiremos o rio outra vez — avisou Phil, segurando o timão. — É território de Jean — O mais provável é viajarmos logo para a França.

— Mais armas? — indagou François.

— É claro, mais armas — disse Charles.

Na última meia hora o patriota estivera estendido ao longo do parapeito, parecendo dormir. Levantou o chapéu e olhou na direção dos amigos. — Vencemos uma batalha, mas a guerra continua nas colônias.

— Ficarei ao lado de Galvez — afirmou Jean. — Continuarei a levar armas pelo Mississipi, mas ficarei perto de casa. Com duas crianças engatinhando e outra a caminho...

— Você deve tomar o lugar de seu pai no mar—disse Gabrielle, apontando o dedo para Delphine. — Porque agora é sócia.

— Então quando partimos para a França? — indagou Charles.

— Tão logo eu convença François a ir comigo — contou Phil.

François considerou a possibilidade de navegar com eles de novo, seus olhos iluminando-se à perspectiva, mas quando olhou para Michel, a luz desapareceu.

— François — interveio Delphine. — Michel já tornou seus desejos claros. Quer ser um pirata. Ele ia detestar deixar você para trás, mas se precisar navegar sem você...

—Bem, então—decidiu François, dando risada.—Não posso deixar meu filho adotivo com tratantes como vocês.

 

—Aonde está indo?—perguntou Phil vendo a esposa se dirigir para a escada.

Delphine não respondeu, apenas lançou-lhe um olhar brincalhão. Nesse instante, Phil se moveu tão depressa que a deixou surpresa. Chamou Mathurin para pegar o timão, ordenou a Vincent para cuidar da vela mestra e num instante chegou a seu lado. Charles e François desataram a rir.

— Ora, ora, — disse Delphine exultante descendo a escada e sendo seguida por Phil.

Ela entrou correndo na cabine, mas não conseguiu fechar a porta a tempo. Phil deslizou atrás dela, segurou-a pela cintura e a abraçou enquanto fechava a porta com o pé.

Estavam no mesmo lugar na cabine, onde haviam ficado na noite em que Delphine confessara seu amor. De repente, ela se lembrou de algo que Phil dissera naquela noite.

— Separe os lábios — sussurrou-lhe com um sorriso travesso.

Phil obedeceu e começou a tirar as roupas de Delphine enquanto ela o ajudava a tirar o colete. Ela aproximou a mão da faixa em sua cintura, mas Phil segurou seu pulso.

— Quantas vezes preciso lhe dizer para não tocar em minha espada? — avisou ele entre beijos.

— Tem certeza de que é o que você quer? — replicou ela com um sorriso provocador.

Beijaram-se e Delphine sentiu-se completa e rejubilou-se por ter cumprido a promessa à avó. Essa felicidade era real, nos braços de um corsário, numa embarcação que se dirigia a litorais distantes.

 

                                                                                Cherie Claire  

 

                      

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