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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEPOIS DO GELO Vol. 1 / Steven Mithen
DEPOIS DO GELO Vol. 1 / Steven Mithen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Este livro é uma história do mundo entre 20.000 e 5.000 a.C. Foi escrito para aqueles que gostam de pensar no passado e desejam saber mais sobre as origens da agricultura, das cidades e da civilização. E também para os que pensam no futuro. O período em discussão foi o de aquecimento global, durante o qual surgiram novos tipos de plantas e animais - espécies domésticas que sustentaram a revolução agrícola. Essas novas variantes genéticas de espécies selvagens têm uma incrível ressonância com os organismos geneticamente modificados que hoje se fabricam, enquanto o aquecimento global também recomeçou. Aqueles que se preocupam com o impacto com a maneira como os OGMs (Organismo Geneticamente Modificado) e a mudança do clima afetarão nosso mundo talvez desejem saber como novos tipos de espécies e aquecimento global já afetaram nosso passado.
Por si só, o passado é digno de estudo independente de qualquer lição que encerre para os dias atuais. Este livro faz as simples perguntas sobre a história humana: o que aconteceu, quando, onde e por quê? Oferece respostas entremeando uma narrativa histórica com argumentos causais. Ao fazê-lo, atende também aos leitores que perguntarão: "como sabemos disso?" - muitas vezes uma pergunta muito apropriada quando os indícios arqueológicos parecem tão escassos. E Depois do Gelo faz outro tipo de pergunta sobre o passado: como era viver em tempos pré-históricos? Qual era a experiência do dia-a-dia daqueles que viveram o aquecimento global, uma revolução agrícola e a origem da civilização?

 

 

 

 

 

 

 

 

O COMEÇO
O Nascimento da História
Aquecimento global, indícios arqueológicos e história humana
A história humana começou em 50.000 a.C. ou por aí. Talvez 100.000 a.C., mas certamente não antes. A evolução humana tem um pedigree bem mais longo - pelo menos
3 bilhões de anos se passaram desde a origem da vida, e 6 milhões desde que nossa linhagem se cindiu à do chimpanzé. A história, desenvolvimento cumulativo de fatos
e conhecimento, é assunto recente e surpreendentemente curta. Pouca coisa de importância aconteceu até 20.000 a.C. - as pessoas apenas continuaram vivendo como caçadores-coletores,
exatamente como vinham fazendo seus ancestrais por milhões de anos. Viviam em pequenas comunidades e jamais permaneciam muito tempo em um assentamento. Pintaram-se
algumas paredes de cavernas e fizeram-se algumas armas de caça mais ou menos excelentes; mas não houve fatos que influenciassem o curso da história futura, que criassem
o mundo moderno.
Então vieram uns espantosos 15 mil anos que testemunharam a origem da agricultura, das cidades e da civilização. Em 5.000 a.C., as fundações do mundo moderno já
se haviam estabelecido, e nada do que veio depois - a Grécia clássica, a Revolução Industrial, a era atômica, a Internet - jamais se igualou ao significado desses
fatos. Se 50.000 a.C. assinalou o nascimento da história, 20.000-5.000 a.C. foi a sua maioridade.
Para que a história começasse, as pessoas precisavam da mente moderna - uma mente bem diferente da de qualquer ancestral humano ou de outras espécies hoje vivas.
É uma mente com poderes de imaginação, curiosidade e invenção aparentemente ilimitados. A história de suas origens é a que contei - ou pelo menos tentei contar -
em meu livro The Prehistory of the Mind [A Pré-história da Mente], de 1996. Se a teoria que propus- de que múltiplas inteligências especializadas se fundiram para
criar uma mente "cognitivamente fluida" - é inteiramente correta, errada ou alguma coisa intermediária, isso não constitui problema para a história que vou contar
agora. O leitor tem apenas de aceitar que há 50 mil anos evoluiu uma mente singularmente criativa. Este livro trata de uma questão simples: que aconteceu depois?
O auge da última era do gelo ocorreu por volta de 20.000 a.C. e é conhecido como o último máximo glacial, ou LGM (na sigla inglesa). Antes dessa data, as pessoas
eram escassas na Terra e lutavam com um clima em deterioração. Sutis mudanças na órbita do planeta em redor do Sol haviam feito com que enormes camadas de gelo se
expandissem por grande parte da América do Norte, norte da Europa e Ásia. O planeta foi inundado pela seca; o nível do mar baixara, deixando à mostra vastas planícies
costeiras, muitas vezes estéreis. As comunidades humanas sobreviveram às mais severas condições retirando-se para refúgios onde ainda se podiam encontrar lenha e
alimentos.
Logo após 20.000 a.C, começou o aquecimento global. Inicialmente, foi meio lento e desigual - muitas pequenas subidas e descidas na temperatura e chuva. Em 15.000
a.C., as grandes camadas de gelo começaram a derreter-se; em 12.000 a.C., o clima começara a flutuar, com impressionantes ondas de calor e chuva seguidas por súbitos
retornos de frio e seca. Logo depois de 10.000 a.C., houve um assombroso surto de aquecimento global que pôs fim à era do gelo e introduziu o mundo do Holoceno,
em que vivemos hoje. Foi durante esses 10 mil anos de aquecimento global e seu resultado imediato que o curso da história humana mudou.
Em 5.000 a.C., muita gente em todo o mundo vivia da agricultura. Novos tipos de animais e plantas - espécies domesticadas - haviam aparecido; os camponeses habitavam
aldeias e cidadezinhas permanentes, e sustentavam artesãos especializados, sacerdotes e chefes. Na verdade, pouco diferiam de nós; cruzara-se o Rubicão da história
- de um estilo de vida de caça e coleta para o da agricultura. Os que continuaram como caçadores-coletores também viviam de maneira bastante diferente da de seus
ancestrais no LGM. O objetivo desta história é examinar como e por que ocorreram tais fatos - se levaram à agricultura ou a novos tipos de caça e coleta. É uma história
global, de todas as pessoas que viviam no planeta Terra entre 20.000 e 5.000 a.C.
Não foi a primeira vez que o planeta passou por um aquecimento global. Nossos ancestrais e parentes - o Homo erectus, H. heidelbergensis e o H. neanderthalensis
da evolução humana - haviam atravessado períodos equivalentes de mudança de clima quando o planeta ia e vinha de eras de gelo a cada 100 mil anos. Eles reagiam fazendo
em grande parte o mesmo que sempre haviam feito: as populações expandiam-se e contraíam-se, adaptavam-se a ambientes diferentes e ajustavam as ferramentas que fabricavam.
Em vez de criarem história, simplesmente empenhavam-se numa interminável ronda de adaptação e readaptação a seu mundo instável.
Tampouco foi a última. No início do século XX d.C., o aquecimento global começou de novo e hoje continua à toda. Mais uma vez, criam-se novos tipos de plantas
e animais, desta vez por meio de engenharia genética intencional. Como esses novos organismos, nosso atual aquecimento global é um produto apenas da atividade humana
- queima de combustíveis fósseis e desflorestamento em massa. Isso aumentou a extensão de gases de estufa na atmosfera e pode elevar as temperaturas globais muito
além do que poderia fazer a natureza sozinha. Os futuros impactos de um novo aquecimento global e organismos geneticamente modificados em nosso ambiente e sociedade
são inteiramente desconhecidos. Um dia, se escreverá uma história de nossos tempos futuros para substituir a multidão de especulações e previsões com as quais nos
debatemos hoje. Mas antes disso temos de ter uma história do passado.
As pessoas que viveram entre 20.000 e 5.000 a.C. não deixaram cartas nem diários descrevendo suas vidas e os fatos que geravam e testemunhavam. Era preciso que houvesse
cidades, comércio e artesãos para que ocorresse a invenção da escrita. Assim, em vez de usar registros escritos, esta história examina o lixo que as pessoas deixaram
para trás - pessoas cujos nomes e identidades jamais serão conhecidos. Nossa história se apóia em instrumentos de pedra, vasos de cerâmica, detritos de alimentos,
moradas abandonadas e muitos outros objetos de estudo arqueológico, como monumentos, túmulos e arte rupestre. Usa indícios de mudança ambiental passada, como grãos
de pólen e asas de besouro presos em antigos sedimentos. De vez em quando, ganha alguma ajuda do mundo moderno, porque os genes que trazemos e as línguas que falamos
podem nos falar do passado.
O risco de ter de depender de tais indícios é que a história resultante pode tornar-se pouco mais que um catálogo de artefatos, um compêndio de sítios arqueológicos
ou uma sucessão de ''culturas" espúrias. História mais acessível e atraente é a que oferece uma narrativa sobre as vidas das pessoas; que trata da experiência de
viver no passado e reconhece a ação humana como causa de mudança econômica e social. Para conseguir tal história, este livro conduz alguém dos tempos modernos aos
pré-históricos: alguém para ver os instrumentos de pedra sendo feitos, os fogos ardendo nos lares e as moradas ocupadas; alguém para visitar as paisagens do mundo
da era do gelo e vê-las mudar.
Escolhi um rapaz chamado John Lubbock para essa tarefa. Ele visitará cada um dos continentes, começando no oeste da Ásia e seguindo pelo mundo afora: Europa, as
Américas, Austrália, leste da Ásia, sul da Ásia e África. Viajará da mesma forma como os arqueólogos escavam - vendo os mais íntimos detalhes das vidas das pessoas,
mas incapaz de fazer qualquer pergunta e com sua presença inteiramente desconhecida. Farei comentários para explicar como os sítios arqueológicos foram descobertos,
escavados e estudados; as formas como contribuem para nossa compreensão de como surgiram a agricultura, as cidades e a civilização.
Quem é John Lubbock? Ele vive em minha imaginação como um rapaz interessado no passado e com medo do futuro - não o seu próprio, mas o do planeta Terra. Tem o mesmo
nome de um polímata vitoriano que, em 1865, publicou seu próprio livro sobre o passado e intitulou-o Prehistoric Times [Tempos pré-históricos],
O John Lubbock vitoriano (1834-1913) era vizinho, amigo e seguidor de Charles Darwin. Foi um banqueiro que instigou reformas financeiras-chave, um membro liberal
do Parlamento que apresentou a primeira legislação para proteção de monumentos antigos e férias em bancos (públicos), um botânico e entomologista com muitas publicações
científicas em seu nome. Prehistoric Times tornou-se um livro didático padrão e best-seller, com a sétima e final edição publicada em 1913. Foi uma obra pioneira,
uma das primeiras a rejeitar a cronologia bíblica que dizia que o mundo teria uns meros 6 mil anos: introduziu os termos paleolítico e neolítico, Velha e Nova Idades
da Pedra, hoje reconhecidas como períodos-chave do passado pré-histórico.
Mas as intuições do John Lubbock histórico eram igualadas por uma pavorosa ignorância. Ele pouco sabia da data e duração da Idade da Pedra: seus indícios de estilos
de vida e ambientes antigos eram escassos: jamais ouvira falar de Lascaux, da Jericó pré-histórica e de inúmeros outros sítios hoje conhecidos como marcos milenares
do passado humano. Quando planejava este livro, pensei em mandar o John Lubbock vitoriano a tais sítios, como gratidão por ele ter escrito Prehistoric Times. Mas
o tempo dele passou; mesmo com a experiência de Lascaux e Jericó, julguei improvável que abandonasse a atitude vitoriana padrão de que todos os caçadores-coletores
eram selvagens com mentes de criança.
Um beneficiário mais adequado de uma viagem pré-histórica é alguém que ainda não deixou sua marca no mundo. E,assim vou mandar um John Lubbock dos dias de hoje
para os tempos pré-históricos, levando um exemplar do livro de seu xará. Lendo-o em remotos cantos do mundo, ele apreciará tanto os feitos do John Lubbock vitoriano
quanto o notável progresso que os arqueólogos fizeram desde a publicação de Prehistoric Times menos de 150 anos atrás.
Uso John Lubbock para assegurar que esta história é mais sobre vidas de pessoas que apenas os objetos que os arqueólogos encontram. Meus próprios olhos não podem
escapar do presente. Sou incapaz de ver além dos descartados instrumentos de pedra e detritos de alimentos, das ruínas de casas vazias e lareiras frias ao toque.
Embora as escavações ofereçam portas para outras culturas, essas portas só podem ser entreabertas à força, jamais atravessadas. Posso, porém, usar a imaginação e
espremer John Lubbock por entre as frestas, para que ele veja o que é negado a meus olhos, e tornar-se o que o escritor de narrativas de viagem Paul Theroux descreveu
como um "estranho em terra estranha".
Theroux escrevia sobre seu desejo de experimentar a "alteridade até o limite"; o fato de tornar-se um estranho permitia-lhe descobrir quem era e o que representava.
É isso que a arqueologia pode fazer por todos nós hoje. À medida que a globalização conduz a uma delicada homogeneidade cultural em todo o mundo, a viagem imaginativa
a tempos pré-históricos talvez seja a única forma de podermos agora obter essa extrema alteridade por meio da qual nos reconhecermos. E foi a única forma que encontrei
de traduzir os indícios arqueológicos no tipo de história humana que desejo escrever.
Quando olho as moradas desertas descobertas por minhas escavações, muitas vezes partilho os pensamentos de outro grande escritor de narrativas de viagem, Wilfred
Thesiger. Em 1951, ele viveu com os árabes do pântano do sul do Iraque. Ao voltar lá no ano seguinte, chegou ao amanhecer e viu os vastos capões de juncos silhuetados
contra o nascer do Sol. Lembrou a primeira visita - as canoas nos ribeirões, o grasnar dos gansos, casas vermelhas construídas sobre a água, os búfalos molhados,
meninos cantando na escuridão, o coaxar das rãs. "Uma vez mais senti", escreveu depois, "o anseio de partilhar aquela vida, e ser mais que um mero espectador."
As técnicas da arqueologia possibilitaram-nos tornar-nos espectadores da vida pré-histórica - embora através de lentes embaçadas. Como Thesiger, anseio por ir
além: experimentar a própria vida pré-histórica, e usar essa experiência para escrever história humana. Thesiger podia partir em sua canoa; tenho apenas a imaginação,
informada por um meticuloso e exaustivo estudo de indícios arqueológicos. E assim, nas páginas deste livro, Lubbock realiza meu desejo de tornar-me mais que um mero
espectador. Por meio dele, torno-me igual a Theroux e Thesiger, um estranho viajando por terras estranhas - no meu caso, as dos tempos pré-históricos.



2
O Mundo em 20.000 a.C.
Evolução humana, causas de mudança do clima e a datação por radiocarbono
O mundo em 20.000 a.C. é inóspito, um planeta frio, seco e ventoso, com freqüentes tempestades e uma atmosfera coberta de poeira. O baixo nível do mar juntou algumas
massas de terra e criou extensas planícies costeiras. Tasmânia, Austrália e Nova Guiné são uma só; também o são Bornéu, Java e Tailândia, que formam cadeias de montanhas
dentro da maior extensão de floresta tropical do planeta Terra. O Saara, Gobi e outros desertos de areia aumentaram muito de tamanho. A Grã-Bretanha não é mais que
uma península da Europa, o norte soterrado sob o gelo, o sul um deserto polar. Grande parte da América do Norte está abafada sob um gigantesco domo de gelo.
As comunidades humanas foram obrigadas a abandonar muitas regiões que habitavam antes do último máximo glacial, ou LGM; outras regiões têm condições de assentamento,
mas permanecem desocupadas, porque todas as rotas de colonização foram bloqueadas por secos desertos e muralhas de gelo. As pessoas sobrevivem onde podem, enfrentando
temperaturas congelantes e seca persistente. Pensem, por exemplo, nas que vivem num lugar da Ucrânia de hoje que se tornará conhecida dos arqueólogos como Pushkari.
Nesse período, cinco moradias formam mais ou menos um círculo na tundra. Dão para o sul, longe do frio mordente e perto do meandro de um rio semicongelado. As
casas parecem iglus, mas foram construídas com osso e couro de mamute, em vez de blocos de gelo. Cada uma tem uma entrada imponente, formada por duas presas desse
animal, com as pontas para cima formando um arco. As paredes têm enormes ossos como suportes verticais, entre os quais se empilharam mandíbulas para criar uma densa
barreira ao frio e ao vento. Outras presas foram empregadas no telhado, para prender no lugar couros e torrões de turfa sustentados por uma estrutura de ossos e
galhos. A fumaça sai suavemente pelo telhado de uma casa; os gritos de um bebê varam o grosso couro de outra.
Adiante da aldeia, um trenó carregado de imensos ossos é puxado do rio. Os que trabalham têm os rostos envoltos em nuvens de quente respiração, por trás das quais
bastas barbas e cabelos compridos pouca pele deixam à mostra. Vestem roupas forradas de peles. Não simples invólucros de couro, mas roupas costuradas com arte. E
meados do inverno, e essa aldeia fica não mais de 250 quilômetros ao sul das geleiras. A temperatura pode cair a 30°C negativos, e são nove meses disso para suportar.
O rio fornece materiais de construção: ossos de animais que morreram no norte e as carcaças foram arrastadas corrente abaixo.
A vida é dura: puxar os ossos, construir e consertar casas, cortar e quebrar presas em partes para que os artesãos da aldeia possam fazer utensílios, armas e jóias.
A luz do Sol é preciosa - apenas umas poucas horas por dia, e depois longas horas na escuridão, contando histórias em torno das fogueiras. Uma pequena fogueira arde
constantemente entre as choupanas, a chama fornecida por um único toro nodoso. Isso oferece um foco para meia dúzia de homens e mulheres que se sentam muito juntos,
joelhos encolhidos contra o peito e braços cruzados, minimizando a exposição ao vento enquanto costuram novas roupas.
Perto da fogueira, mata-se um animal, e o ar recende a carne e sangue. Era uma rena, encontrada a vagar isolada do rebanho - uma bem-vinda surpresa para um grupo
que fora buscar pedras de um afloramento próximo. Mataram-na e agora podem comer carne sem esgotar a caça guardada no congelador - um buraco no chão. Nada se perderá
da carcaça. A carne será dividida entre as cinco famílias que vivem em Pushkari nesse inverno. Da galhada se farão cabos de faca e arpões, roupas e sacos do couro,
os tendões fornecerão linha e corda. O coração, pulmões, fígado e outros órgãos serão comidos como pitéus, os dentes brocados para fazer pingentes decorativos, o
osso guardado para combustível.
Uma das moradas tem o interior iluminado pela pequena chama de uma lâmpada de gordura animal. É quente, abafado e encardido lá dentro. O piso é macio, atapetado
com couros e peles que cercam uma lareira central cheia de cinzas. Crânios e ossos de pernas de mamutes provêm os móveis; uma variedade de sacos de couro, vasos
de osso e madeira, instrumentos de galhada e pedra espalham-se pelas paredes e pendem dos caibros - uma cena de bagunça doméstica da Idade da Pedra. A luz tremulante
mostra o rosto de um homem. Parece velho, mas pele e osso envelhecem depressa no mundo da era do gelo. Esse homem usa o cabelo em trancas, tem pingentes de marfim
e dentes furados em torno do pescoço. Os dedos trabalham rápido com uma agulha e um fio de tendão.
Do lado de fora da morada, um homem e algumas mulheres sentam-se juntos batendo nódulos de pedra apoiados nos joelhos. Tiram lascas, cujas maiores são cuidadosamente
postas de lado; outras são deixadas onde caíram ou jogadas ao acaso entre as lascas espalhadas em volta. Há conversas e uma ou outra risada; algum xingamento quando
um golpe atinge um polegar, em vez da pedra.
O interior de outra morada não tem sinal algum de vida doméstica. O piso é coberto de densas peles; um crânio de mamute particularmente grande domina o aposento,
pintado com listras vermelhas. Junto a ele, baquetas e flautas feitas de ossos de pássaros. Numa laje de pedra, duas estatuetas de marfim, cada uma de não mais que
alguns centímetros de altura. Fora isso, a morada está inteiramente vazia. É aí que se fazem as reuniões especiais; quando chegam visitantes, quase toda a aldeia
se reúne aí dentro para ouvir as notícias e trocar presentes. Torna-se muito quente e malcheiroso; e também barulhento, quando todos se põem a cantar.
Mas por enquanto, o único barulho é o da vida diária no LGM: o estalar de pedra contra pedra, a suave conversa de vozes humanas, os arquejos do trabalho pesado.
Esses sons são levados tundra afora pelo vento gelado e implacável, que ganhará força com o uivo dos lobos ao cair a escuridão. Quando isso acontece, as pessoas
de Pushkari se amontoam em redor da fogueira. Carne assada foi dividida, histórias contadas. A temperatura cai outra fração e cruza um tácito patamar que faz as
pessoas dispersarem-se para suas moradas e o conforto das peles.
Os que vivem em Pushkari são Homo sapiens - seres humanos modernos, anatômica e mentalmente iguais a vocês e eu. Em 20.000 a.C., todas as outras espécies humanas
já se extinguiram, de modo que esse é o único tipo que John Lubbock vai encontrar em suas viagens. Uma breve explicação de quando e por que isso aconteceu é portanto
um útil prelúdio à história que está para começar.
O registro fóssil da evolução humana começa 7 milhões de anos atrás, com um espécime descoberto em 2002 d.C. no Chade, no centro-norte da África, uma das mais
importantes descobertas de todos os tempos, e designado como Sahelanthropus tchadensis. Após 4,5 milhões de anos atrás, várias espécies de criaturas semelhantes
a macacos, que andavam sobre duas patas e usavam instrumentos de pedra, são conhecidas pelo registro fóssil da África. Logo após 2 milhões de anos atrás, apareceu
a primeira espécie semelhante à humana, que os arqueólogos chamam de Homo ergaster. Foi o primeiro dos nossos ancestrais que se espalharam pela África, Fez isso
com extraordinária rapidez, alcançando o sudeste asiático talvez há 1,6 milhão de anos.
O Homo ergaster teve pelo menos dois descendentes, H. erectus no leste da Ásia e H. heidelbergensis na África. O último dispersou-se na Europa e deu origem aos
Neandertais - Homo neanderthalensis - por volta de 250 mil anos atrás. Os Neandertais foram um beco sem saída evolucionário, como o foi o H. erectus na Ásia. Mesmo
assim, os dois foram espécies de extremo êxito, que atravessaram grandes oscilações do clima.
Foi durante um período glacial especialmente severo, à 130 mil anos atrás, que o Homo sapiens evoluiu na África - sendo o primeiro espécime descoberto em Omo Kibish,
na Etiópia. Essa nova espécie comportava-se de maneira bastante diferente das que a antecederam: o registro arqueológico começa a mostrar vestígios de arte, ritual
e numa nova gama de tecnologia, refletindo uma mente mais criativa. O H. sapiens logo substituiu todas as espécies humanas existentes, empurrando os Neandertais
e o H. erectus para a extinção.
Logo após 30.000 a.C, o Homo sapiens era o único tipo de humano que restava no planeta; foi descoberto em toda a África, Europa e grande parte da Ásia. Uma admirável
sede de viagem levou alguns de seus membros aos extremos limites sul da Australásia, que se tornariam a futura ilha da Tasmânia. A essa altura, porém, o clima se
encaminhava para as profundezas da última era do gelo: a temperatura despencava; as secas eram persistentes; geleiras, camadas de gelo e deserto expandiam-se; o
nível do mar baixava. Plantas, animais e pessoas tinham que se adaptar onde e como viviam ou ser extintos.
Quantas pessoas havia vivas no planeta no LGM? Levando-se em conta as grandes áreas de regiões inabitáveis, as severas condições climáticas que levavam à mortalidade
precoce, e o fato de que a moderna genética sugeriu que apenas 10 mil seres humanos modernos estavam vivos 130 mil anos atrás, podemos supor uma cifra de em torno
de 1 milhão. Mas trata-se de fato de uma suposição; tentar estimar tamanhos de populações passadas é uma das mais difíceis tarefas que enfrentam os arqueólogos.
Enquanto os caçadores de Pushkari constroem suas moradas e lascam suas pedras, um enorme rebanho de mamutes procura comida do outro lado do mundo, na América do
Norte, numa vizinhança do que se tornaria conhecido como Hot Springs, em Dakota do Sul. É uma tarde de inverno, e a luz do Sol se vai enquanto os grandes animais
reviram a neve com as presas para encontrar o mato embaixo. Dirigem-se para matagais mais extensos e pequenas moitas que cercam as águas fumegantes de um lago próximo.
Em 20.000 a.C., as Américas continuam inteiramente desprovidas de assentamento humano, embora suas paisagens sejam ricas em caça, de modo que esses animais não temem
caçadores humanos.
O aquecimento global a caminho irá não apenas condicionar a história humana que John Lubbock experimentará, mas a de todas as outras espécies, algumas das quais
- como os mamutes - serão extintas antes que ele complete suas viagens. Ao contrário do aquecimento global que enfrentamos hoje, o que veio após 20.000 a.C. foi
inteiramente natural. Foi apenas a mais recente virada de um período "quente e úmido" para outro ''seco e frio" na história da Terra - de um estado "glacial" para
um "interglacial". A última causa de tal mudança climática está nas alterações regulares da órbita da Terra em torno do Sol.
O cientista sérvio Milutin Milankovitch avaliou pela primeira vez o significado dessa mudança orbital na década de 1920. Com base em suas teorias, os cientistas
estabeleceram que a cada 95.800 anos a órbita da Terra muda de mais ou menos circular para elíptica. Quando isso acontece, o Hemisfério Norte desenvolve maior sazonalidade,
e o contrário acontece no Sul. Isso provoca o surgimento de camadas de gelo no Norte. Quando retorna a órbita circular, reduzem-se os contrastes norte-sul na sazonalidade,
ocorre o aquecimento e as camadas de gelo se derretem.
As alterações na inclinação da Terra durante sua órbita também têm implicações climáticas. A cada 41 mil anos, a inclinação da Terra muda de 21,39 para 24,36 graus
e retorna. Quando esse ângulo aumenta, as estações se tornam mais intensas: verões mais quentes, invernos mais frios. A Terra também tem uma oscilação regular em
seu eixo de rotação, com seu próprio ciclo de 21 mil 700 anos. Isso influencia o ponto na órbita em torno do Sol em que a Terra se inclina com o Hemisfério Norte
dirigido para o Sol. Se isso se dá quando a Terra está relativamente próxima do Sol, os invernos são curtos e quentes; e o contrário, se a Terra se acha relativamente
distante do Sol quando assim inclinada, os verões são mais longos e mais frios.
Embora essas mudanças na forma, inclinação e oscilação da órbita da Terra alterem o clima, os cientistas pensam que não são suficientes, em si, para responder
pela imensa magnitude e rapidez de mudanças climáticas do passado. Processos que acontecem no próprio planeta devem ter amplificado substancialmente as leves mudanças
que elas produziram. Vários são conhecidos: mudanças em correntes oceânicas e atmosféricas, acúmulo de gases de estufa (sobretudo dióxido de carbono) e o aumento
das próprias camadas de gelo (que refletem cada vez mais radiação solar quando crescem de tamanho). O impacto combinado de mudança orbital e mecanismos de ampliação
tem sido o vaivém do clima de glacial para interglacial e vice-versa a cada 100 mil anos, muitas vezes com uma mudança extraordinariamente rápida de um estado para
outro. Uma das mais impressionantes dessas mudanças ocorreu em 9.600 a.C., resultante de 10 mil anos de altos e baixos em precipitação pluvial e temperatura desde
o extremo climático do LGM.
A linha dentada no gráfico anterior mede a mudança de temperatura global entre 20.000 a.C. e o tempo atual. Baseia-se em mudanças na composição química do gelo
de um núcleo retirado da Groenlândia, como uma medida por '"procuração" - uma medida indireta da temperatura global. Mais especificamente, as proporções entre dois
isótopos de oxigênio, 16O e 18O, são registradas como desvios relativos de um padrão de laboratório (180%o). Quando esse valor é alto, significa que o planeta estava
relativamente quente e úmido; quando baixo, frio e seco. Como se vê no gráfico, a linha que mede esse valor e aumenta irregularmente aos poucos de um ponto baixo
em 20.000 a.C. até 12.700 a.C. é alcançada; nessa data, dispara para cima, assinalando o início de um período de relativo calor e umidade conhecido como interestadial
glacial tardio. Há vários pequenos picos nesse período, sendo o primeiro conhecido como Bolling e o segundo Allerod, mas só na Europa eles podem ser distinguidos.
O traço-chave a notar é simplesmente o período geral de calor entre 12.700 e 10.800 a.C.

O grande mergulho seguinte é chamado de Jovem Dryas, e desempenha um grande papel na história humana no Hemisfério Norte, mas também nesse caso não pode ser notado
no Sul. Suas condições muito frias e secas tiveram um fim súbito em 9.600 a.C., quando houve um segundo aumento impressionante de temperatura; isso assinala o verdadeiro
término da última era do gelo. Na verdade, assinala a transição entre dois grandes períodos na história da Terra, o Pleistoceno e o Holoceno. Após essa grande elevação,
a linha continua a flutuar, chegando aos poucos a um pico em 7.000 a.C. e dando um visível mergulho em 6.200 a.C. Fora isso, o clima do Holoceno na Terra tem sido
notavelmente estável - embora esta estabilidade possa agora chegar ao fim, pois começou recentemente um novo período de aquecimento global causado pelo homem.
A construção de moradas de ossos de mamute, a costura de roupas, a feitura de instrumentos de pedra e a aquisição de comida não eram as únicas atividades humanas
em andamento no LGM. Os artistas trabalham nas cavernas do sudoeste da Europa. Um conjunto de lâmpadas alimentadas a gordura animal arde no chão da caverna que se
tornará conhecida como Pech Merle na França. Outra lâmpada é segura no alto por um menino para oferecer iluminação aos rápidos movimentos da mão de um pintor. Este
é um homem velho mas lépido, de compridos cabelos grisalhos, nu mas com a pele pintada. Faz parte de uma comunidade que vive da caça de renas na tundra do sul da
França. Em meio às lâmpadas estão suas pinturas. Torrões de ocre-vermelho foram reduzidos a pó e depois misturados numa gamela com água de poças no chão da caverna.
Outra gamela contém um pigmento negro; bastões de carvão espalham-se entre elas, junto com pedaços de couro e pele, bastões esfiapados e pincéis de pêlos. Um cheiro
gostoso paira no ar; ervas fumegam sobre um fogo. Aos poucos, o artista se ajoelha e inala profundamente, para renovar a visão em sua mente.
Na parede, dois cavalos foram pintados de perfil, costa com costa e traseiros sobrepondo-se. O pintor cria grandes manchas dentro da silhueta; toma bocados de
tinta na boca e cospe-a através de um decalque de couro para fazer círculos na parede. Sua respiração é o elemento-chave para fazer os cavalos ganharem vida. Depois
volta às ervas, troca o pigmento e agora põe a mão na parede para cuspir e deixar a silhueta dela.
O artista trabalha hora após hora, parando apenas para trocar o pigmento ou o decalque, o pincel ou a esponja, tornar a pôr gordura dentro das lâmpadas e intoxicar
a mente. Fala e canta para os cavalos, cai de quatro e empina como um garanhão. Faz novas manchas e decalques com a mão. As cabeças e pescoços dos cavalos são pintados
de preto. Quando chega ao fim, o artista está fisicamente exausto e mentalmente esgotado.
Os arqueólogos só ficaram sabendo da data em que as moradas de osso de mamute foram construídas em Pushkari e as pinturas feitas em Pech Merle com o uso de seu mais
precioso instrumento científico - a datação por radiocarbono. Sem essa técnica, seria inteiramente impossível escrever uma história humana dos tempos pré-históricos,
pois os arqueólogos não saberiam pôr os sítios que escavam - os assentamentos vivos que John Lubbock vai visitar - na ordem cronológica certa. E assim, como um prelúdio
final à história que se segue, convém oferecer um breve resumo dessa notabilíssima técnica da ciência arqueológica.
O princípio por trás é bastante direto. A atmosfera contém três isótopos de carbono: 12C, 13C e 14C. São átomos de carbono com diferentes números de nêutrons (seis,
sete e oito respectivamente). As coisas vivas absorvem os isótopos de carbono no corpo na mesma proporção que eles existem na atmosfera. Com a morte, o 14C dentro
do corpo começa a decompor-se, enquanto os outros permanecem inteiramente estáveis. Pode-se estabelecer a data em que ocorreu a morte medindo-se a proporção de 12C
para 14C e sabendo-se o ritmo em que o 14C se decompõe.
Para ser datado, um objeto tem de conter carbono, o que significa que deve ter sido vivo um dia. Os instrumentos de pedra, a descoberta pré-histórica mais ubíqua,
não podem ser diretamente datados eles próprios, nem as paredes ou vasos de barro. Em vez disso, os arqueólogos precisam depender da descoberta de artigos em estreita
associação com material datável, como ossos de animais ou restos de plantas, sendo o ideal o carvão. Também tem de restar 14C suficiente na amostra. Infelizmente,
isso não ocorre em qualquer amostra anterior a 40.000 a.C, o que estabelece o limite cronológico para a datação por radiocarbono.
Há mais duas complicações. A primeira é que a data por radiocarbono jamais é um valor exato, mas apenas uma estimativa definida por uma média e um desvio-padrão,
como, por exemplo, em 7500 ± 100 AP. "AP" é o termo usado pelos arqueólogos para referir-se a "Antes do Presente" (tendo-se combinado que o presente é 1950). Neste
exemplo, o 7500 oferece a média e o 100 o desvio-padrão para a distribuição de datas dentro das quais se situa a verdadeira data. Isso nos diz que há 68% de possibilidade
(i. e., duas possibilidades em três) de que a verdadeira data se situe dentro de um desvio-padrão da média, neste caso entre 7.400 e 7.600, e uma possibilidade de
95% de que se situe entre dois desvios-padrão, i.e., entre 7.300 e 7.700 AP. Prefere-se, claro, o menor desvio possível. Mas como é improvável que isso caia abaixo
de 50 anos, as datas de acontecimentos passados permanecerão sempre aproximadas.
A segunda complicação é que os anos do radiocarbono não têm a mesma extensão dos do calendário, e na verdade não têm a mesma extensão uns dos outros. Um artefato
que o radiocarbono data de 7.500 AP não é 100 anos de calendário mais velho que um artefato com uma data de 7.400 AP. Isso se dá porque a concentração de 14C na
atmosfera decresceu com o tempo, o que faz o ano parecer mate longo. Felizmente, pode-se resolver esse problema "calibrando-se" a data de radiocarbono com a dendocronologia,
também conhecida como datação por anéis de idade das árvores.
Com os anéis das árvores, pode-se contar para trás no passado anos de calendário individuais. Ligando madeiras de diferentes idades, estabeleceu-se uma seqüência
contínua de árvores pelos últimos 11 mil anos. A madeira de qualquer um desses círculos pode ser datada por métodos de radiocarbono, e daí derivou o desvio entre
a data do calendário real e a do radiocarbono. Assim, quando se adquire uma data por radiocarbono de um sítio arqueológico, pode-se levar em conta esse desvio e
estabelecer uma data nos anos do calendário. Quando as datas são calibradas, são também muitas vezes convertidas de AP (antes de 1950) para a.C. (antes de Cristo,
i.e. "0"; às vezes, isso é expresso como AEC, "Antes da Era Comum"). Assim, após a calibração, a data por radiocarbono de 7500 ± 100 AP indica que a verdadeira data
tem 68% de possibilidade de se situar entre 6434 e 6329 a.C. Não se dispõe de anéis de troncos de árvores de antes de 11 mil anos atrás, mas os arqueólogos descobriram
novos meios de calibrar suas datas. Isso mostrou que a distância entre os "anos do radiocarbono" e os "anos do calendário" alarga-se aos poucos (embora de forma
irregular) à medida que se recua no tempo. Em 13 mil anos atrás, há uma diferença de mais de 2 mil anos entre uma data proporcionada pelo método do radiocarbono
e sua verdadeira idade em anos do calendário. Todas as datas que se seguem neste livro são em anos a.C. do calendário; minhas notas finais oferecem as próprias datas
de radiocarbono junto com seus valores exatos calibrados segundo um desvio-padrão.
Enquanto as pessoas de Pushkari costuram suas roupas e o artista pinta dentro de Pech Merle, outros caçam cangurus nos matagais da Tasmânia, antílopes nas savanas
do leste africano e pescam no Mediterrâneo e no Nilo. Esta história visitará esses e outros caçadores-coletores, e depois examinará como o aquecimento global mudou
as vidas de seus descendentes. Começa, porém, no Crescente Fértil - um arco de montanhas ondulantes, vales fluviais e bacias lacustres hoje coberto pela Jordânia,
Israel, Palestina, Síria, sudoeste da Turquia e Iraque. É onde surgirão os primeiros camponeses, cidades e civilizações.
Um sítio de acampamento de caçadores-coletores floresce na margem oeste do lago Tibérias, também conhecido como mar da Galiléia. Quando escavado por arqueólogos,
o sítio será chamado de Ohalo e reconhecido como um dos assentamentos mais bem preservados do LGM. Localizado longe das camadas de gelo e paisagens de tundra, a
floresta de carvalho não fica distante. As moradas são feitas de galhos de arbustos, as pessoas usam roupas de couro e fibras vegetais. Uma nova choupana está em
construção: arbustos cortados foram enfiados no chão e são trançados para formar um domo. Montes de galhos folhudos e couros de animais foram preparados para ser
usados como material para o telhado. Esse trabalho de construção envolve muito menos esforço que o necessário em Pushkari; na verdade, a vida em Ohalo parece mais
atraente em todos os aspectos.
Muita gente se espalha ao longo da margem do lago: alguns grupos conversam sentados, crianças brincam, velhos dormitam ao sol da tarde. Uma mulher aproxima-se
das choupanas, vindo da beira d'água, com uma cesta de peixes recém-pescados, e outras penduram redes sobre barcos recobertos de couro para secar. A mulher chama
os filhos para entrar com ela em sua moradia, onde os peixes serão enfiados em cordões e pendurados para secar.
Duas mulheres saem da mata trazendo raposas e lebres recém-abatidas. Seguem-se vários homens com uma gazela amarrada numa vara. Aparecem mais mulheres, e depois
crianças, com sacos e cestos carregados de todas as formas imagináveis - na cabeça, arrastados pelo chão, pendurados nos ombros, amarrados na cintura. As carcaças
são postas junto de uma fogueira e sacos e cestos esvaziados em couros. Caem montes de frutas, sementes, folhas, raízes, cascas e talos de plantas. Haverá um banquete
esta noite. Um rapaz está parado no meio dessa movimentada cena aldeã, inteiramente despercebido pelos que trabalham e brincam. É John Lubbock, e Ohala em 20.000
a.C. é onde começam suas viagens pela história humana.


ÁSIA OCIDENTAL

 


3
Fogos e Flores
Caçadores-coletores e a estepe florestal,
20.000 - 12.300 a.C.
Incapaz de dormir, John Lubbock fica sentado à beira do lago, vendo os morcegos em ação e desfrutando a brisa noturna. Do outro lado da água, silhuetas de gamos
que pastam recortam-se ao luar na borda da mata. Ele tem às suas costas as choupanas de Ohalo, a alguns metros da beira d'água e agora inteiramente vazias, pois
as pessoas dormem sob as estrelas, em torno da fogueira fumegante. Os pisos da choupana foram deixados sujos - alguns com lascas de pedra espalhadas, outros com
os detritos de uma refeição recente. Fieiras de peixes e feixes de ervas pendem dos caibros lá dentro, cestos de vime e gamelas amontoam-se contra as paredes.
Alguém suspira e se vira, uma criança chora e é consolada. As árvores farfalham quando uma brisa forte sopra entre as choupanas de Ohalo; a fogueira emite um estalo
e uma faísca fulgente eleva-se no ar. Sobe em espiral e depois desce flutuando, não na fogueira, mas adiante, no mato seco que cobre o telhado de uma choupana.
Fumaça de madeira. Lubbock inspira-a fundo, supondo que vem como uma fagulha do fogo que morre. Mas a fumaça continua e aumenta; torna-se uma nuvem pungente, visível.
Tossindo e voltando-se, ele vê a choupana em chamas. As pessoas acordaram e a desmontam, abafando o fogo com os pés e correndo em busca de água. Mas a brisa suave
derrota com facilidade tais esforços frenéticos - levanta uma dezena de talos, folhas e galhos ardentes e espalha-os por toda a volta. Uma segunda e uma terceira
choupana estão agora em chamas. As pessoas se retiram. Protegendo os rostos e apertando com força as crianças, juntam-se à beira do lago para ver arder seu acampamento.
O incêndio em Ohalo pode não ter levado mais de alguns minutos para reduzir um grupo de choupanas a círculos de tocos calcinados. Se começou dessa forma ou por outro
meio, não se sabe em absoluto - talvez fosse um incêndio deliberado das choupanas infestadas de pulgas e piolhos. Mas o que pode ter sido trágico para as pessoas
de Ohalo foi uma bênção para os arqueólogos do século XX. Dentro de poucos anos, a água do crescente nível do lago inundou o sítio, protegendo-o da decomposição.
Ohalo perdeu-se da vista e da memória humanas até que uma seca em 1989 causou uma queda de 9 metros no nível da água e deixou à mostra círculos de carvão onde antes
havia as moradas feitas de arbustos.
Dani Nadel, da Universidade de Haifa, iniciou a meticulosa escavação de um sítio realmente notável; ele e arqueólogos de todo o mundo ficaram pasmos com a diversidade
de plantas e animais que haviam sido usados pelas pessoas de Ohalo no LGM. Após a imensa excitação dessa primeira temporada de escavação, seguiu-se uma espera de
10 anos até os níveis da água ficarem de novo suficientemente baixos para Nadei continuar. Por muita boa sorte, eu estava lá quando ele começou a fazê-lo em 1999.
Foi a escavação mais idílica que já vi - sol quente, água azul reluzente, valas sombreadas revelando os detritos de vidas antigas.
De manhã, as pessoas de Ohalo vasculham as cinzas quentes e os restos ainda fumegantes de seu acampamento. Pegam uns poucos artigos valiosos - um cabo de faca de
osso com lâmina de pedra encaixada, um tapete tecido que escapou às chamas, um arco queimado que pode ser consertado. Com essas coisas, partem para a floresta de
carvalho, em busca de outro lugar para acampar.
Fossem eles camponeses, em vez de caçadores-coletores, o incêndio teria destruído mais que choupanas de arbustos; com muita probabilidade, moradas feitas de madeira,
currais de animais, cercas e grãos armazenados; seus rebanhos poderiam ter fugido ou mesmo morrido nas chamas. Em vez de abandonar o sítio à natureza, os camponeses
teriam tido de permanecer e reconstruir, por causa de seu investimento na Terra em volta: abertura de clareiras na floresta, construção de cercas e plantio de safras.
Mas as pessoas de Ohalo podem simplesmente desaparecer na mata, dirigindo-se para a planície costeira mediterrânea a oeste. Lubbock decide que a mata pode esperar
e parte para contornar o lago, meter-se no matagal e entre as árvores, rumo às baixas colinas a leste.
A estepe florestal - uma paisagem de matagais, arbustos e flores que crescem exuberantes sob árvores muito esparsas - foi crítica para o curso da história humana.
Isso se deu porque a imensa diversidade de alimentos vegetais que ofereceu aos caçadores-coletores incluía os parentes selvagens das primeiras safras domesticadas:
trigo, cevada, ervilha, lentilha e linho. Comunidades de plantas comparáveis dificilmente existem hoje, e certamente não mais se encontram nas Colinas de Golan,
nome de hoje das colinas a leste do lago Tibérias.
A reconstituição da capa de vegetação de paisagens pré-históricas é uma exigência para compreender o passado. Muitas vezes consegue-se isso pela análise de grãos
de pólen: as células reprodutivas masculinas, ou gametas, de sementes de plantas cujo objetivo é alcançar a parte fêmea da flor, onde ocorre a fertilização. Felizmente,
muitas não conseguem e caem inutilizadas no chão. Se recuperada pelos cientistas, talvez muitos milhares de anos depois que as flores morreram, podem cumprir um
papel diferente - o de dizer-nos que planta floresceu um dia nas paisagens em evolução do mundo da era do gelo.
Os grãos de pólen de diferentes espécies de plantas são bastante distintos. São minúsculos ciscos a olho nu, mas parecem únicos quando vistos sob um microscópio
binocular. Os grãos de pólen de pinheiro, por exemplo, têm duas bolsas laterais, enquanto os de carvalho parecem granulares, com três cortes em torno de cada borda.
Quando ampliados com um microscópio eletrônico, apresentam uma exótica gama de esferas espinhosas em três dimensões e outras formas maravilhosas.
Os grãos de pólen caem aos montes das flores de capins, arbustos e árvores, e muitas vezes se entranham na lama de um poço ou lago. São enterrados quando mais
lama se acumula, com seu próprio pólen. Quanto mais lama, mais pólen, talvez vindo de um conjunto de plantas inteiramente diferente que começaram a brotar perto.
E assim por diante, talvez durante milhares de anos, até o lago ser completamente coberto de aluvião.
Pode-se extrair um "núcleo" desses sedimentos, uma fina coluna da muda ou turfa, cada centímetro da qual nos leva de volta no tempo. Os palinologistas - os que
se especializam no estudo de grãos de pólen - fatiam esses núcleos como salame. Retiram os grãos de pólen de cada fatia separada e descobrem quais plantas davam
na vizinhança quando aquela camada particular de lama se achava na superfície. Comparando o pólen de sucessivas fatias, reconstroem como a vegetação mudou no correr
do tempo. E obtendo datas de radiocarbono de fragmentos de talo, folha ou semente presos dentro do núcleo, podem estabelecer a história da mudança da vegetação.
Enquanto Lubbock viaja pela Europa, terá muitos "núcleos de pólen" para examinarmos. Eles mostram como suas tundras viraram florestas e retornaram ao primeiro
estado. Mas o oeste da Ásia tem muito poucos núcleos, e dificilmente algum desses estará muito fundo ou terá pólen bem preservado. Um núcleo, porém, é de imenso
valor, pois foi extraído dos sedimentos da bacia de Hula, 20 quilômetros ao norte do lago da Galiléia. Com 16,5 metros de extensão, remonta aos sedimentos deitados
no LGM, quando as pessoas de Ohalo acampavam à margem do lago; poderá nos dizer que pólen flutuava no ar.
O indício do pólen deixa claro que quando os caçadores-coletores se mudaram para leste, afastando-se das terras costeiras mediterrâneas, a floresta desapareceu,
deixando algumas árvores espalhadas dentro de matagais, arbustos e ervas - uma estepe florestal. Assim que se cruzava o Jordão, as árvores se tornavam menos abundantes,
embora sobrevivendo nas encostas que levavam ao planalto; e quando se andava mais para leste, os próprios matagais e arbustos diminuíam até vir o deserto - exatamente
como existe hoje. Mas dentro desse deserto havia oásis, notadamente em Azraq, onde lagos interiores atraíam não apenas muitos pássaros e animais, mas também caçadores
e coletores. E é para Azraq que Lubbock se dirige agora, após um descanso em meio a um campo de vibrantes papoulas vermelhas na estepe.
O indício do pólen por si só não é capaz de oferecer um quadro exato da estepe na era do gelo. Diferentes espécies de mato - incluindo o cereal selvagem - não
podem ser facilmente distinguíveis por seus grãos de pólen, e quaisquer plantas polinizadas por inseto ficariam sub-representadas, devido à limitada quantidade de
pólen que produzem. Assim, os arqueólogos examinaram as poucas áreas restantes de estepe no oeste da Ásia, sobretudo as que escapam da forte pastagem de carneiros
e cabras, como reservas naturais e terrenos de treinamento militar. Essas áreas proporcionam intuições sobre antigas comunidades de plantas que não podem ser recolhidas
apenas dos indícios arqueológicos.
Gordon Hillman, do Instituto de Arqueologia de Londres, é um dos mais destacados "arqueobotânicos" do mundo. Durante mais de 30 anos, ele vem estudando modernas
comunidades de estepes, e influenciou toda uma geração de alunos a fazer o mesmo. Mostrou que a estepe pré-histórica teria sido composta de arbustos perenes à altura
dos joelhos, com pequenas folhas carnosas, conhecidas dos botânicos como losna e quenópodes (membros da família dos pés-de-pato), e uma rica mistura de matos. Alguns
destes se haveriam transformado em pequenas moitas rijas, enquanto o mato emplumado mais alto produzia - nas palavras de Hillman - um mar de plumas prateadas ondulando
ao vento. Toda primavera a estepe explodia em cores e cheiros - o desabrochar de cardos centáureas, funcho silvestre e miríades de outras plantas.
Os arqueobotânicos estudaram não apenas as comunidades de estepes sobreviventes, mas também como as pessoas de sociedades tradicionais, como os nativos americanos
e os aborígines australianos, exploraram essas plantas para obter alimento. Mostraram que a estepe estaria transbordando de comidas básicas e petiscos para os que
tinham conhecimento botânico sobre o que comer. Plantas como gerânio, pelargônio e pastinaga selvagens podiam oferecer raízes densas e bulbosas; as quenópodes dariam
abundantes quantidades de sementes; e os matos selvagens forneceriam grãos.
Uma compreensão do valor nutritivo dessas plantas é vital para reconstituir a vida pré-histórica na estepe. Infelizmente, são muito limitados os indícios sobre
quais plantas específicas se colhiam. Ao contrário dos artefatos de pedra, os restos de plantas se decompõem quase na mesma hora quando jogados fora, a não ser que
isso seja inibido por extrema aridez, inundação ou intenso calcina-mento - como aconteceu em Ohalo. Mas mesmo dentro dos restos queimados desse sítio não havia vestígios
de legumes e folhas carnosos, os mais prováveis de terem sido colhidos.
Com a visão retrospectiva da história, sabemos que os cereais selvagens eram as plantas mais importantes a dar na estepe florestal. A diferença-chave entre as variedades
selvagens e domesticadas está nas espigas de grãos. Nas formas selvagens, elas são muito quebradiças, de modo que, quando maduras, se rompem espontaneamente e o
grão se espalha pelo chão. As formas domesticadas não fazem isso; as espigas permanecem intatas e o grão precisa ser retirado na debulha. Assim, sem cuidado humano,
as formas domesticadas não sobrevivem, pois elas próprias são incapazes de se reabastecer de sementes.
O mesmo ocorre com ervilhas, lentilhas, ervilhaca e grão-de-bico - os outros grãos domesticados primeiro. Como explicou certa vez Daniel Zohary, especialista em
genética de cereais selvagens e domesticados da Universidade Hebraica em Jerusalém, as formas domesticadas de cereais e legumes "esperam pelo comedor". Ele revelou
que a mudança de uma para outra depende da mutação de um único gene. Outra conseqüência é a mudança no padrão de germinação. Diferentes indivíduos dentro de um bosque
de plantas selvagens germinam e amadurecem em tempos ligeiramente diferentes - isso garante que alguns deles pelo menos amadureçam e forneçam semente para o ano
seguinte em condições de chuva imprevisíveis. As variedades domésticas, porém, germinam e amadurecem todas ao mesmo tempo; não apenas esperam pelo colhedor, mas
também tornam muito mais fácil a vida dele - ou provavelmente dela.
A origem da agricultura está intimamente ligada ao surgimento dessas variedades domesticadas de cereais e legumes, assim como do linho usado para produzir os primeiros
tecidos dessa fibra. Como veremos, isso só poderia ter acontecido com a intervenção humana no ciclo vital das plantas - as pessoas estão no ramo de modificação genética
dos alimentos há muito tempo mesmo.
Mas não as pessoas de Ohalo e seus contemporâneos. Eles colhiam cereais selvagens batendo nas plantas com paus para que o grão caísse em cestos seguros embaixo.
Esse era o método usado por muitos povos recentes, como os índios norte-americanos, quando colhiam sementes de mato selvagem. Para ser eficiente, deve-se fazer a
colheita no tempo certo - se os cereais não amadureceram, poucos dos grãos cairão nos cestos; ao contrário, se os cereais passaram do ponto, muito do grão já terá
caído no chão. Alguns entravam em fendas, eram mantidos aquecidos, regados pela chuva, e forneciam novos brotos na primavera; outros grãos - na certa a grande maioria
- seriam avidamente devorados pelos pássaros e roedores.
As plantas eram importantes para as pessoas de Ohalo; também o eram os animais que viviam na mata e estepe. A presa favorita delas em toda a região era a gazela,
presente em várias espécies diferentes, cada uma adaptada a um diferente habitat: a gazela montanhesa na zona mediterrânea, as dorcas nas regiões pedregosas, a persa
na estepe oriental. O gamo pastava nas regiões montanhosas do Líbano, o jumento selvagem na estepe e a cabra selvagem entre os penhascos das áreas altas. Bisões
(bois selvagens), alcéfalos e javalis foram descobertos dentro das matas, junto com muitos mamíferos menores, pássaros e répteis.
Os ossos de animais escavados de Ohalo nos dizem que várias dessas espécies eram caçadas. Pegava-se peixe no mar da Galiléia, e talvez no Mediterrâneo. A linha
costeira pode ter oferecido muitas variedades, junto com caranguejos, algas e moluscos. Mas se estes eram coletados, podemos apenas especular: muito antes de os
arqueólogos poderem trabalhar, a linha costeira foi inundada e quaisquer assentamentos costeiros que tivesse foram varridos pelo nível ascendente do mar, causado
pelas águas derretidas das grandes camadas de gelo no norte.
Azraq, o lugar que T. E. Lawrence chamou de rainha dos oásis, aparece quando John Lubbock sobe o último cume de pedregulhos de lava. Ele viajou 100 quilômetros desde
o mar da Galiléia, grande parte deles estéril deserto com temperaturas noturnas enregelantes. Agora olha o outro lado por cima das águas do lago, que reluzem aos
primeiros raios do sol matinal. Gazelas atravessam delicadamente o pântano em volta; o que fora uma simples mancha roxa adiante transforma-se em folhagem, uma rica
seleção de verdes, amarelos e marrons, à medida que as árvores ganham forma; o novo dia é recebido por pássaros de doce canto e minúsculos fiapos de fumaça de fogueiras
nos muitos acampamentos que cercam o lago.
São de caçadores que se reuniram em Azraq para os meses de inverno, depois de passarem o verão dispersos por toda a estepe e o deserto. Agora tornam a juntar-se
para trocar notícias, renovar amizades e talvez celebrar um casamento. Também trazem artigos de comércio; conchas das margens do mar Vermelho e do Mediterrâneo,
gamelas de madeira escavada e peles.
Lubbock passa o dia explorando os pântanos, vendo as aves andar e nadar no lago. Quando descansa, folheia seu exemplar encadernado em couro e meio esbagaçado de
Tempos pré-históricos, impressionado com os elegantes desenhos de artefatos e tumbas. O título completo é bastante revelador: Tempos pré-históricos ilustrados com
restos antigos e as maneiras e costumes de selvagens modernos. Grande parte do livro é dedicado aos últimos, com descrições de povos tribais como os aborígines australianos
e os esquimós (Inuit) como representantes vivos da Idade da Pedra. Lubbock escolhe um capítulo para ler ao acaso, e descobre que embora o autor vitoriano achasse
que as pessoas pré-históricas tinham mentes infantis, apreciou as habilidades delas na fabricação de instrumentos, sobretudo no trabalho em pedra,
No fim da tarde, Lubbock chega a um pequeno acampamento logo abaixo do afloramento de basalto e ao lado de um poço de água doce que brota de uma fonte. Tem um
abrigo simples: couros de gazela amarrados com tendões e apoiados num pau de cumeeira e estacas mantidas eretas por calços de pedra. Nada desse abrigo restará para
os arqueólogos descobrirem, em contraste com as atividades do lado de fora, onde um homem e uma mulher geram uma enorme quantidade de lascas de pedra enquanto fazem
instrumentos. Sentam-se de pernas cruzadas, usando colares feitos de conchas tubulares conhecidas por nós como dentálio. Uma criança sentada ali perto brinca com
nódulos de pedra, e sem o saber aprende as artes de fazer instrumentos. Uma outra muito mais jovem dorme à sombra do abrigo, onde uma velha mói devagar sementes
num pilão de basalto. Uma lebre pende do pau de cumeeira.
Outro membro do grupo empenha-se numa tarefa crucial para a sobrevivência humana em todo o mundo pré-histórico: fazer fogo. Uma jovem agachada prende um pedaço
de madeira no chão com os dedos dos pés. Tem nas mãos uma fina vareta de madeira mais mole, que gira com muita rapidez num pequeno buraco na madeira mais dura, tendo
acrescentado alguns grãos de areia para aumentar o atrito. Dentro de poucos instantes, acumula-se um montinho de pó, que depois arde. Ela põe uns fiapos de mato
seco e logo tem fogo para uma fogueira próxima. Lubbock verá essa técnica usada repetidas vezes em todo o mundo; uma técnica que ele próprio vai aperfeiçoar. Também
verá outra: fazer fagulhas batendo pedras quebradiças uma na outra. Mas no momento, seu interesse é observar a fabricação de instrumentos de pedra, para ver se seu
xará vitoriano estava correto sobre o grau de habilidade exigido.
Os nódulos de pedra - ou núcleos - usados vêm dos afloramentos de calcário perto de Azraq, salpicados com blocos de sílex. Empregando martelos de basalto, formam-se
os núcleos tirando-se grossas lascas da crosta do calcário. Uma vez preparadas, estas finas estilhas de sílex são cuidadosamente retiradas do redor das bordas dos
núcleos. Essas estilhas, ou lâminas, variam de 5 a 10 centímetros de comprimento; muitas são jogadas fora com os outros detritos, mas umas poucas são postas de lado.
Os que trabalham com pedra conversam enquanto o fazem, às vezes praguejando quando uma ótima lâmina se quebra acidentalmente, às vezes comentando uma concha fóssil
que aparece quando o nódulo se parte pela metade. Lubbock pega um nódulo e um martelo de pedra e tenta fazer uma lâmina; mas consegue apenas duas grossas lascas
e um dedo ensangüentado. Lembra-se de um trecho de Tempos pré-históricos sobre instrumentos de pedra: "Por mais fácil que pareça fazer tais lascas, um pouco de prática
convencerá qualquer um que tente fazê-lo, de que é preciso um certo jeito; e que também é necessário ter cuidado na escolha da pedra."
Os quebradores de pedra modelam as lâminas escolhidas com imensa habilidade, usando pedras pontudas para tirar minúsculas lascas e transformar as lâminas numa
variedade de minúsculos instrumentos - alguns de ponta afiada, outros de costas curvas ou pontas em forma de cinzel. Mais exatamente, são pedaços de instrumentos:
esses microlitos - como os chamam os arqueólogos - são inseridos em juncos usados como varas de flecha e em cabos de osso para fazer facas. As pontas quebradas e
rombudas já terão sido retiradas e jogadas no monte de detritos. Qualquer novo microlito que não se encaixe é também jogado fora - os artesãos preferem passar alguns
momentos fazendo outros a arriscar-se a danificar a muito mais preciosa vara.
As pessoas de Ohalo fizeram microlitos semelhantes; na verdade, tais artefatos foram feitos por todo o oeste da Ásia desde o LGM, e continuarão a ser produzidos
durante muitos milhares de anos. Coleções de microlitos - em várias formas e tamanhos - e o detrito de sua fabricação dominam o registro desse período no oeste da
Ásia e são usados para definir a "cultura Kebaran".
Os conjuntos de microlitos e lascas de pedra cuja fabricação Lubbock observou acabou sendo escavado por Andy Garrard, hoje na Universidade de Londres. Na década
de 1980, como diretor do Instituto Britânico em Amã, Jordânia, ele empreendeu um grande programa de escavações na bacia de Azraq, documentando a presença de caçadores-coletores
e camponeses pré-históricos. Em Wadi el-Uwaynid, a 10 quilômetros do lago Azraq, encontrou dois densos ajuntamentos de lascas e microlitos, junto com uma mó de basalto,
algumas contas de dentálio, ossos de gazela, tartaruga e lebre.
O trabalho de Garrard revelou um grande número desses sítios, e demonstrou que alguns haviam sido usados repetidas vezes durante muitos milhares de anos, resultando
em imensos depósitos de artefatos. A atração de Azraq teriam sido os rebanhos de gazelas que iam beber e pastar na vegetação da beira do lago; muito provavelmente
faziam isso em grandes números e em momentos previsíveis do ano e do dia. Os caçadores-coletores teriam sabido desses momentos e chegado em massa para capturar a
presa vulnerável, na certa retornando ao acampamento que tinham usado no ano anterior. Instrumentos desgastados, e os detritos da feitura de novos, eram jogados
nas grandes pilhas já presentes - contribuindo para o que seria um dia o desafio de escavação de Andy Garrard.
Quase 20 mil anos antes de Garrard iniciar seu trabalho, Lubbock observa dois homens chegarem ao acampamento em Wadi el-Uwaynid. Eles andaram caçando sem muito
sucesso. Com o cair da noite, a lebre é assada num espeto e comida com uma grossa papa servida em cascos de tartaruga. Chegam visitantes de acampamentos próximos,
exigindo que se prepare mais comida e se ponha mais lenha na fogueira. Logo, pelo menos vinte pessoas estão reunidas, e suas conversas fundem-se imperceptivelmente
num canto baixo. Lubbock sobe num penhasco de basalto próximo e olha o tênue abrigo embaixo, a fogueira e a multidão sentada. Estrelas surgem e a lua sai. É uma
cena repetida não apenas por todo Azraq, mas também por todo o oeste da Ásia - um mundo de caçadores-coletores conhecido dos arqueólogos apenas pelos depósitos de
artefatos de pedra que deixaram para trás.
Nos 4.500 anos seguintes, as plantas e as pessoas nessa região se tornarão muito mais densas no terreno. O que fora estéril deserto a oeste de Azraq estará coberto
de matagal, arbustos e flores em 14.500 a.C. As árvores se espalharão pelo que foi estepe descampada.
À medida que o oeste da Ásia se tornava mais quente e úmido, plantas e animais tornavam-se mais abundantes. Indícios diretos dessa mudança ambiental vêm do núcleo
de Hula que, de cerca de 15.000 a.C, mostra um acentuado aumento em densas matas com carvalho, pistache, amêndoas e pêra. Esse período de calor e umidade crescentes
culmina em 12.500 a.C. - o interestadial glacial tardio.
Essas mudanças na vegetação levam a um vasto aumento na existência de plantas comestíveis na estepe. Plantas com raízes comestíveis antes raras são agora abundantes
- nabos, crocos e muscari selvagens. Os capins selvagens florescem, desfrutando não apenas de condições mais clementes, mas também do aumento de sazonalidade - invernos
mais frios e úmidos e verões mais quentes e secos. Devemos imaginar vastos campos de trigo, cevada e centeio selvagens aparecendo na estepe, cercados por árvores
espalhadas. Na verdade, houve um vasto aumento na oferta de plantas comestíveis selvagens para os caçadores-coletores em todo o Crescente Fértil.
A população humana aumentou nesse mundo mais quente e mais úmido; com melhor alimentação, as mulheres puderam ter mais filhos, e mais destes sobreviveram à infância
e acabaram por reproduzir-se no devido tempo. Dispersaram-se pelas novas matas e estepes; começaram a caçar nos planaltos antes demasiado frios e secos.
Embora as populações fossem maiores, os estilos de vida humanos pouco se modificaram em relação ao das pessoas que acampavam em Ohalo e Azraq no LGM. Mesmo assim,
os arqueólogos descobrem uma nova uniformidade na cultura humana. Depois de 14.500 a.C., as pessoas, do rio Eufrates ao deserto do Sinai, e do Mediterrâneo à Arábia
Saudita, já haviam adotado microlitos e métodos de fabricação semelhantes. Com maiores números, viagens mais extensas e freqüentes ajuntamentos de pessoas, as velhas
e diversas tradições de feitura de instrumentos se eclipsaram. As pessoas em toda essa região preferiam microlitos retangulares e trapezoidais, favorecidos sobre
todos os demais durante os 2 mil anos seguintes.
Os maiores sítios continuam sendo encontrados na bacia de Azraq e nas matas das colinas mediterrâneas. Surgem novos assentamentos, como o de Neve David, estabelecido
no pé das encostas ocidentais do monte Carmelo em Israel. Escavações feitas por Daniel Kaufman, da Universidade de Haifa, revelaram os restos de uma pequena cabana
circular e muro de pedra, junto com muitos instrumentos de pedra, um pilão e sua mão de basalto, tigelas de calcário, contas feitas de conchas marinhas e uma tumba
humana. O esqueleto fora posto sobre o lado direito, com os joelhos fortemente dobrados sob o corpo. Entre as pernas, pusera-se uma mó, um pilão quebrado sobre o
crânio e uma tigela quebrada atrás do pescoço e ombro. A colocação de instrumentos de triturar grãos na cova sugere a importância dessa atividade e fonte de alimento
para o povo de Neve David. Kaufman julga importante o fato de o pilão estar quebrado: assim estava "morto", como a pessoa na cova.

De Wadi el-Uwaynid, Lubbock viajou 150 quilômetros e mais de seis milênios para chegar de volta às densas matas da região mediterrânea. A data é 12.300 a.C., e ele
está parado na margem ocidental do lago Hula numa tarde de outono, olhando as colinas cobertas de carvalhos, amêndoas e pistache a oeste. Aninhado na encosta voltada
para o leste, vê-se um assentamento com os vermelhos, castanhos-avermelhados e marrons de moradas de couro e arbustos fundindo-se de forma quase inconsútil com a
mata em volta. É muito maior que qualquer outro assentamento que Lubbock já viu, e merece realmente ser chamado de aldeia.

4
Vida na Aldeia na Floresta de Carvalhos
Primeiras comunidades caçadoras-coletoras natufianas,
12.300 - 10.800 a.C.
Por entre brechas nas folhudas árvores John Lubbock vê cinco ou seis moradas alinhadas ao longo da mata da encosta. São cortadas na própria Terra, com pisos subterrâneos
e baixas paredes de pedra que sustentam telhados de palha e couro. Com moradas tão bem construídas e ordenadas, a aldeia parece muito diferente do que agora parecem
assentamentos planejados ao acaso e construídos às pressas em Ohalo e Azraq. É evidente que as pessoas planejaram viver nessa aldeia o ano todo. É Ain Mallaha, uma
aldeia do novo estilo de vida surgido dentro das florestas de carvalho que crescem por todas as montanhas mediterrâneas. Mais que um novo estilo de vida - uma cultura
completamente nova, que os arqueólogos chamam de natufiana. Ofer Bar-Yosef, professor de arqueologia em Harvard e deão da arqueologia do oeste asiático, acredita
que essa cultura seja o "ponto sem retorno" na estrada para a agricultura.
Parado no limiar da aldeia, Lubbock observa sua gente a trabalhar. São altos e saudáveis, bem vestidos com roupas feitas de pele, alguns usando pingentes de conchas
e contas de osso. Exatamente como em Ohalo, o trabalho principal é transformar plantas selvagens em comida, plantas colhidas na mata e na estepe florestal. Mas o
empreendimento deles é agora bastante diferente, em escala muito maior e trabalho muito mais árduo. Os pilões de pedra que usam têm proporções de rochedos. São muitos
braços no trabalho - moendo, malhando, debulhando e cortando. Cestas de glandes e amêndoas esperam para ser abertas e depois trituradas em farinha e pasta.
Lubbock passeia entre os trabalhadores, olhando por cima de seus ombros, roubando um pouco de polpa de amêndoa para provar. Aromas de gostos vegetais triturados
e fumaça de lenha fundem-se com o pilar ritmado dos pilões, a conversa em voz baixa dos adultos e o riso das crianças. Mas nem todos os adultos trabalham; alguns
sentam-se ociosos ao sol da tarde; pelo menos duas mulheres estão no término da gravidez. Outra encosta-se na parede de uma morada com um cachorro adormecido no
colo. Lubbock passa e entra na morada. Os restos da habitação acabarão por ser escavados pelo arqueólogo francês Jean Perrot em 1954 e ficarão conhecidos sem nenhum
glamour como n° 131.
A morada 131 é um pouco maior que as outras, talvez 9 metros de largura, permitindo que cinco ou seis pessoas se sentem ou durmam com conforto. Partes do interior
são escuras e bolorentas; por toda parte, raios partidos de sol da tarde entram pelo telhado de palha, sustentado por mourões internos mantidos de pé e estabilizados
por calços de pedra. Peles forram as paredes de pedra e tapetes de palha cobrem o chão.
Logo após a entrada há cinza espalhada onde uma fogueira ardeu na noite anterior para impedir as mordidas dos insetos à solta. Outro fogo agora fulge no centro
do piso; um homem agacha-se ao lado e depena uma fieira de perdizes. Corta as aves nas juntas e as põe para assar sobre lajes de pedra quente. Atrás dele, uma terceira
fogueira arde, servindo de centro para alguns jovens que consertam arcos e flechas. Usam-se pedras chatas com fundos sulcos paralelos para endireitar finos galhos
que serão usados como varas; lascas de pedra afiadas como navalha são pregadas usando-se resina para formar pontas e barbelas.
Pilões e almofarizes de pedra, cestas de vime e gamelas de madeira empilham-se junto às paredes em volta. Dos caibros do telhado pende um grupo de instrumentos
bastante diferentes de qualquer um que Lubbock tenha visto antes - foices. Os cabos de osso são enfeitados com desenhos geométricos ou foram esculpidos em forma
de jovem gazela. As lâminas são feitas de cinco ou seis lascas de sílex, presas firmemente num sulco com resina. Ao balançarem, girarem e pegarem a luz do sol, as
lâminas brilham, pois foram polidas pelos muitos milhares de talos de plantas que cortaram.
Jean Perrot encontrou os restos dessa cena doméstica quando escavou a morada 131 em Ain Mallaha - buracos e grupos de pedras onde haviam estado os esteios, ossos
de aves espalhados em torno de lajes de pedra dentro de uma antiga lareira, núcleos e lascas de sílex, pedras com sulcos, almofarizes de basalto e lâminas de sílex.
Muitas das lâminas têm "brilho de foice", indicando que foram usadas para cortar um grande número de talos de plantas, mais provavelmente de trigo e cevada selvagens.
Claro que Perrot não encontrou os tapetes de palha, os couros, cestas de vime e gamelas - só podemos supor a presença deles para proporcionar algum conforto, e fazer
o melhor uso dos muitos materiais existentes na mata.
A curta distância da morada 131, Lubbock encontra outra, abandonada - o telhado e as paredes há muito desabaram, as fundações de pedra roubadas para uso em outra
parte. Na ausência de vivos, essa morada desertada e dilapidada tornou-se um cemitério. As covas são sem marcas, mas contêm corpos ricamente enfeitados. Jean Perrot
encontrou onze homens, mulheres e crianças, todos em covas separadas e provavelmente membros de uma mesma família. Quatro deles tinham colares e braceletes gastos
feitos de ossos de patas de gazelas e conchas marinhas, notadamente as longas, finas e naturalmente ocas conchas de dentálio, já vistas em Azraq. Uma mulher usara
uma elaborada touca na cabeça, feita com camadas sobre camadas dessas conchas.
Dentro de poucos anos, a morada 131 também será abandonada e abrigará os mortos de outra família de Ain Mallaha. Doze indivíduos serão enterrados ali, cinco deles
enfeitados de forma semelhante. Um dos mortos será uma velha; estará com um filhote de cachorro, enroscado como ferrado no sono. Ela terá a mão sobre o pequeno corpo
- como fez durante grande parte da curta vida do animalzinho.7
Há um grande pilão de pedra escavado num pedaço de rocha aflorado perto do centro da aldeia, no qual Lubbock se senta para apreciar a cena. Quando me sento na
mesma pedra em 1999, Ain Mallaha acabou de passar por novas escavações de outro arqueólogo francês, François Valia. O lugar estava deserto e silencioso, fora o canto
de um pássaro na mata. Mas Lubbock vê transformarem grandes nódulos de basalto em almofarizes e pilões, a superfície de um sendo enfeitada com um complexo desenho
geométrico. Ouve o quebrar da pedra, a conversa de vozes e o latido dos cachorros. Observa as pessoas fazendo contas - cortando conchas de dentálio em segmentos
e enfiando-os num barbante. A gamela onde pegam as conchas também contém um bivalve das águas do Nilo. Talvez tenha sido trocado de pessoa a pessoa, assentamento
a assentamento, até viajar pelo menos 500 quilômetros para o norte; ou talvez fosse a lembrança de uma longa viagem feita por um dos aldeões de Ain Mallaha.
Como acontecia em Ohalo e Azraq, as pessoas lascam nódulos de pedra. Em Ain Mallaha faz-se um novo desenho de microlito: finas lâminas retangulares de sílex são
cuidadosamente lascadas em meias-luas - ou lunatos, como os arqueólogos as chamam. Algumas são usadas em foices, outras como farpas em flechas. Continua não sendo
claro por que esse desenho de microlito em particular ganhou tal popularidade - na certa apenas porque as pessoas são seguidoras tão compulsivas da moda.
Lubbock deixa a aldeia pela mata quando a luz começa a morrer. Diminuem as batidas, perde-se o ritmo, e depois param, como pára a quebra das pedras. As pessoas
de Ain Mallaha voltam para suas moradas ou reúnem-se em volta das fogueiras. A conversa em voz baixa transforma-se num canto baixo. Camundongos e ratos saem para
alimentar-se de nozes e sementes que caíram no chão; os cachorros, para espantá-los.
Com a última luz, Lubbock lê mais um pouco de Tempos pré-históricos. Embora decepcionado por não encontrar nada sobre o oeste da Ásia, dois trechos parecem importantes
para Ain Mallaha. Num, o xará vitoriano reuniu minúsculos fiapos de indícios para sugerir que os cachorros foram a primeira espécie domesticada. Mas em outro parece
haver errado completamente:
o verdadeiro selvagem não é livre nem nobre; é um escravo de suas necessidades, suas paixões; imperfeitamente protegido do clima, sofre de frio à noite e do calor
do sol durante o dia; ignorando a agricultura, vivendo da caça, e imprevidente no sucesso, enfrenta sempre a fome, que muitas vezes o leva à pavorosa alternativa
de canibalismo ou morte.

O John Lubbock moderno desejaria poder mostrar ao xará as sólidas casas, as roupas e os alimentos agora comidos na aldeia - tudo feito pelas pessoas que ignoram
inteiramente a agricultura, mas parecem nobres e livres. Cai no sono quando o canto natufiano se funde imperceptivelmente com o das corujas e o arranhar dos besouros.
Ain Mallaha foi apenas uma das muitas aldeias natufianas estabelecidas cerca de 12.500 a.C. nas matas das colinas mediterrâneas. Outra ficava 20 quilômetros a sudoeste,
na Caverna Hayonim. Ofer Bar-Yosef e seus colegas começaram a escavar essa caverna em 1964, e continuaram durante onze temporadas de trabalho de campo. Dentro da
caverna, encontraram-se seis estruturas circulares, cada uma com cerca de 2 metros de diâmetro, algumas com paredes de pedra ainda de pé, de 70 centímetros de altura,
e pisos pavimentados. Uma fora usada mais como oficina que moradia, primeiro para uma caieira e depois para trabalho em osso. Perto da parede da caverna, encontrou-se
um depósito de costelas de gado selvagem, algumas parcialmente transformadas em foices. Também se recuperaram contas feitas de ossos de boi e pernas de perdizes
- material jamais usado dessa forma pelas pessoas de Ain Mallaha. Por outro lado, os ossos preferidos pela gente de Ain Mallaha para joalheria, de patas de gazela,
eram extremamente raros em Hayonim.
Essa diferença em adereços sugere que as pessoas natufianas de cada aldeia se preocupavam em afirmar sua própria identidade. O casamento entre pessoas de Ain Mallaha
e Hayonim parece ter sido raro, pois as duas populações eram biologicamente distintas. Como evidenciam seus restos mortais, as de Hayonim eram significativamente
mais baixas, e uma grande proporção delas tinha "agenese" do terceiro molar - o que significa que esse dente simplesmente jamais surgia - um mal muito incomum em
Ain Mallaha. Esse mal hereditário teria estado igualmente presente nas duas aldeias se houvesse casamentos regulares entre suas gentes. Contudo, parece improvável
que qualquer das aldeias tivesse habitantes suficientes para serem uma comunidade reprodutiva viável por si mesma. O povo de Hayonim pode ter sido ligado ao de outra
aldeia natufiana, conhecida hoje como Kebara. Estas duas aldeias partilham objetos de ossos decorados com desenhos geométricos quase idênticos, e complexos.
Cada aldeia tinha seu próprio cemitério, muitas vezes contendo corpos ricamente enfeitados. Alguns dos túmulos mais espetaculares foram encontrados no cemitério
de El-Wad, um sítio no monte Carmelo, em Israel. Quase 100 pessoas natufianas achavam-se enterradas ali, principalmente como indivíduos, embora algumas covas contivessem
vários corpos.
El-Wad foi um dos primeiros sítios natufianos descobertos, escavado por Dorothy Garrod, da Universidade de Cambridge, na década de 1930. Ela foi uma figura notável
- a primeira professora naquela universidade e chefe de várias grandes expedições ao Oriente Médio. Descobriu a cultura natufiana quando escavou a Caverna Shukbah,
no lado Oeste das colinas da Judéia e passou a acreditar que os povos natufianos eram camponeses - idéia que hoje se sabe ser incorreta. Dentro do cemitério de El-Wad,
Dorothy encontrou alguns enfeites particularmente ornando vários dos corpos. Só um homem adulto usava um elaborado adereço de cabeça, um colar e uma faixa ou liga
em torno de uma perna, tudo feito de conchas de dentálio.
Continua não sendo claro se tal adereço era usado em vida, como na morte. O mais elaborado adereço enfeitava jovens adultos, homens e mulheres - embora tivesse
mais homens que mulheres enterrados. Pode haver denotado identidade social, talvez indicando riqueza e poder. Grande parte dos adereços era feita de conchas de dentálio,
que podiam ser recolhidas da costa mediterrânea pelos próprios natufianos. Mas Donald Henry, um arqueólogo da Universidade de Tulsa, EUA, que fez extensos estudos
no sul da Jordânia, sugere outra possibilidade. Ele pensa que as conchas podem ter sido adquiridas de caçadores-coletores que viviam na estepe aberta do deserto
de Negev de hoje, em troca de cereais, nozes e carne.
Para os natufianos, bem pode ter sido o controle desse relacionamento comercial que proporcionou aos indivíduos riqueza e poder - e a chave para a manutenção disso
pode ter sido limitar a circulação das conchas dentro da aldeia. A maneira mais eficaz de fazer isso era a retirada regular de grandes quantidades, enterrando-as
com os mortos. Essas covas eram como hoje nossos cofres de bancos cheios de ouro, destinados a assegurar que a pequena quantidade que permanece em circulação - de
ouro ou contas marinhas - mantenha seu valor, para conferir status ou prestígio aos seus poucos donos.
Os primeiros raios de sol que atravessam os folhudos galhos mosqueiam o chão; Lubbock acorda e ouve passos e vozes que se aproximam vindo da mata. Quatro homens
e dois meninos retornam a Ain Mallaha após uma excursão de caça de madrugada. Trazem três carcaças de gazelas, já estripadas e parcialmente cortadas, mas deixando
uma trilha de sangue entre as árvores.
Na aldeia, as carcaças são penduradas dentro de uma morada, longe do sol e das moscas. Quando assadas, a carne será zelosamente dividida entre a família e os amigos.
Os caçadores são acolhidos de volta e contam a história da caça - como os homens esperaram emboscados enquanto os meninos perseguiam e espantavam os animais em meio
a uma chuva de flechas. Conversa-se sobre as várias pegadas e trilhas de animais que viram, e as mulheres ficam sabendo de plantas comestíveis que pareciam prontas
para a coleta. Duas moças pegam um cesto e saem para um campo de cogumelos, esperando alcançá-lo antes dos gamos. Lubbock decide segui-las.
Todas as aldeias natufianas partilhavam a mesma base econômica de Ain Mallaha. Na verdade, todas as aldeias se encontram em cenários muito semelhantes- numa junção
de densa mata e estepe florestal, localidades com probabilidade de ter abastecimento de água permanente, adequadas à caça da gazela e oferecendo plantas comestíveis
nos dois habitats contrastantes. Ossos de gazela são abundantes nas escavações em sítios natufianos. Também se pegavam outros animais, como o gamo e caça pequena
- raposas, lagartos, peixes e pássaros. Os ossos de gazela revelam mais que apenas a dieta natufiana: mostram que as pessoas provavelmente viviam nas aldeias o ano
todo.
Ficamos sabendo disso pelos dentes das gazelas. Como os dos mamíferos, os delas são em grande parte compostos de cimento que cresce devagar, em discretas camadas,
durante toda a vida do animal. Na primavera e no verão, quando o crescimento é restringido, eles são negros. Assim, tirando-se uma fatia de um dente e inspecionando
a última camada de cimento depositada, pode-se identificar se o animal foi morto no verão ou inverno.
Daniel Lieberman, um arqueozoólogo da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, EUA, usou essa técnica para estudar dentes de gazelas de sítios natufianos em todo
o oeste asiático. De todos que examinou, alguns animais teriam sido mortos na primavera/verão, e alguns no outono/inverno; ele tomou isso como significando uma ocupação
permanente - ou "sedentarismo", como chamam os arqueólogos. Suas descobertas sobre os dentes de gazelas de sítios mais antigos mostraram que a ocupação ocorria ou
durante o verão ou o inverno, refletindo o estilo de vida móvel dos caçadores-coletores.
Outras linhas de indícios apóiam a idéia do sedentarismo natufiano - embora alguns arqueólogos tenham a forte crença em que as pessoas do Natufiano Inicial continuaram
como caçadores-coletores nômades. Não parece provável que se haja despendido tamanho esforço na construção de casas de pedra se eram para ser usadas apenas algumas
semanas ou meses todo ano. Os muitos ossos de ratos, camundongos e pardais no meio do lixo da aldeia também são reveladores; cepas domésticas apareceram pela primeira
vez no Natufiano, e podem ter evoluído aproveitando um novo nicho criado por assentamentos humanos permanentes.
Isso pode também ter ocorrido com o cachorro. O túmulo de um filhote em Ain Mallaha é o sinal mais convincente de que lobos selvagens já haviam evoluído para cachorros
domesticados na época do Natufiano. Outro túmulo de cachorro está em Hayonim, onde três humanos e um cachorro foram cuidadosamente arrumados juntos numa cova. Esses
animais não eram simplesmente lobos domesticados, mas realmente cães domesticados - muito menores que os ancestrais lobos. Todas as espécies animais têm o tamanho
reduzido quando surgem as variantes domesticadas, como veremos depois com carneiros, cabras e bois.
As primeiras aldeias teriam sido atraentes para os lobos, que vinham catar os permanentes montes de lixo e pegar os camundongos e ratos. Como tais, prestariam
um serviço ao povo natufiano, mantendo as pragas sob controle; alguns animais podem ter sido domesticados e usados para a caça ou como companhia para os velhos e
doentes. Outros podem ter sido usados como cães de guarda, para avisar sobre estranhos que se aproximavam. Quando isolados das populações selvagens, esses animais
domesticados podem ter-se tornado logo geneticamente distintos, à medida que o povo natufiano controlava sua reprodução para assegurar a proliferação mais de algumas
características que de outras. A conseqüência foi uma nova espécie que entrava no mundo: o cão domesticado.
Nem todos os natufianos viviam em aldeias o ano todo - talvez nenhum o fizesse. Vários assentamentos no lado leste do vale do Jordão, como Tabqa e Beidha, parecem
ter sido usados apenas por breves períodos. Não têm nem moradias nem túmulos, e parece mais provável que tenham sido acampamentos temporários de caça, talvez pouco
diferentes dos que Lubbock viu em Azraq. As pessoas em Beidha caçavam cabra, íbis e gazela, e tinham conchas de dentálio do mar Vermelho. Continua incerto se passavam
parte do ano numa aldeia mesmo, ou viviam um estilo de vida inteiramente transitório como o do muito anterior povo kebarano.
Um cachorro decide seguir as duas moças. Passa saltando por Lubbock, muito parecido com um lobo, e logo desaparece no mato baixo. A tentativa de segui-las logo é
abandonada por Lubbock, pois as mulheres andam depressa, usando um labirinto de trilhas minúsculas mas bem palmilhadas que serpenteiam entre grupos de carvalhos
e amendoeiras e passam por macegas de tremoços e moitas de pilriteiro. O arqueólogo perde a trilha delas e vê-se em mato mais aberto perto dos pântanos que bordejam
o lago da bacia Hula. As trilhas continuam e tratos de plantas cultivadas encontram-se à sombra dos carvalhos. Entre estas, há ervilhas e trigo selvagem com pesadas
espigas de grãos curvadas. Lubbock senta-se junto a um desses campos para descansar, ouvindo o cachorro latir ao longe.
Os cachorros domesticados, tratados como animais de estimação ou de trabalho, são mais ou menos como crianças. Precisam ser cuidados e podem tornar-se objetos
de intensos relacionamentos: são tanto "o melhor amigo do homem" no Natufiano quanto hoje. Essa atitude de cuidado com os animais pode ter estendido para as plantas
colhidas pelo povo natufiano. Não devemos pensar neles colhendo grãos de cereais, pegando frutas e nozes em amenos termos econômicos - sem outra preocupação além
de maximizar sua produção imediata com o mínimo de esforço. Nenhum grupo de caçadores-coletores registrado pelos antropólogos foi assim, e não há motivo para pensar
que o foi na Pré-História.
Os boxímanos da África do Sul, os aborígines da Austrália e os índios do Amazonas demonstraram todos um imenso e íntimo conhecimento sobre as plantas à sua volta,
mesmo as sem valor econômico. Partes de raízes e grumos de espigas de sementes são muitas vezes deixadas no chão, para assegurar que serão plantas a colher no mesmo
lugar no ano seguinte. Usou-se freqüentemente o fogo para queimar velhos troncos e encorajar o nascimento de novos brotos.

Christine Hastorf, arqueóloga de Berkeley, Califórnia, acentua a importância de "criar a planta" compreendendo-se os primeiros estágios de sua domesticação. Lembra-nos
de que, com muito poucas exceções, as plantas eram colhidas e cultivadas por mulheres que com freqüência tinham as mesmas atitudes e cuidados com elas que com os
filhos em casa. As mulheres natufianas podem ter sido como as do povo dos barasana no noroeste da Colômbia, que mantêm "hortas" perto de suas moradas. A maioria
das plantas dessas hortas é de espécies selvagens, mas ainda assim são criadas para uso como comida, remédios, anticoncepcionais e drogas. Os barasana freqüentemente
trocam mudas com os amigos e parentes, para que cada planta acrescentada à horta venha com uma história que serve para manter laços sociais. Além disso, muitas plantas
têm significado simbólico ligado a mitos de origem do povo barasana. Nas palavras de Christine: "Andar em meio à horta de uma mulher [barasana] é ver seu estilo
de vida diário, sua linhagem ancestral e uma história das relações sociais de sua família."
Qualquer jardineiro hoje entenderá isso: em meu próprio jardim no subúrbio, por exemplo, minha esposa tem plantas que foram dadas como presentes, plantas que marcam
onde nossos bichos de estimação foram enterrados, plantas que arrancamos e levamos conosco de jardim em jardim quando nos mudamos nos últimos 20 anos. Todo ano minha
esposa colhe com todo cuidado sementes de cravo-de-defunto para semear no ano seguinte. Muitos anos atrás, a avó dela deu-lhe as sementes de cravo-de-defunto que
ela própria colhera e semeara cada ano durante toda a sua longa vida.
Não temos conhecimento do que o povo natufiano pensava das plantas em sua volta. Mas em vista da permanência de seus assentamentos, das muitas bocas precisando
ser alimentadas e da abundância de mós, pilões e almofarizes, as plantas selvagens parecem ter sido administradas de uma forma que reconheceríamos como cultivo.
Desconfio que os campos de cereais selvagens, os bosques de nogueiras, as moitas de tremoços, ervilha selvagem e lentilha eram tratados como uma horta selvagem,
e que eram manipulados e administrados, usados em relação social e infundidos com significados simbólicos, exatamente como as plantas nas hortas dos barasana. Dorothy
Garrod pode ter errado ao pensar nos natufianos como camponeses; mas eles foram com a máxima certeza jardineiros um tanto especiais.
Nesse aspecto, alguns artefatos de sítios natufianos assumem maior significado, porque podem na verdade descrever as próprias hortas. Em Hayonim, uma laje regular
de calcário, de cerca de 10 por 20 centímetros, tinha inscritas linhas que dividiam a superfície em áreas distintas. Ofer Bar-Yosef e Anna Belfer-Cohen, especialistas
em arte da Universidade Hebraica em Jerusalém, propõem que esse desenho "pode ser visto como designando algum tipo de territórios ou 'campos' definidos", talvez
separados por minúsculas trilhas. Essa laje não é única; outras têm desenhos semelhantes, e embora talvez não sejam mapas espacialmente exatos de campos ou hortas,
podem representá-los de algum modo abstrato - exatamente como o mapa do metrô de Londres.
John Lubbock passa a manhã lendo Tempos pré-históricos e observando pássaros no mundo natufiano da bacia do Hula. Depois que o sol subiu e queimou as poucas e ralas
nuvens matinais, dois abutres circularam no limpo céu azul; uma revoada de gansos chegou ao lago e depois pássaros canoros pousaram no trigo selvagem para alimentar-se
do grão. Exatamente quando Lubbock decide voltar a Ain Mallaha, chega um grupo de mulheres e posta-se bem a seu lado para inspecionar o trigo. Praguejam um pouco,
porque o grão amadureceu mais depressa que o esperado e elas sabem que grande parte agora será perdida. Dentro de minutos, as mulheres estão em ação, cortando os
talos com as foices de lâmina de sílex que Lubbock vira penduradas dentro da morada 131. Cortam os talos na base, para terem a palha, além do grão; exatamente como
temiam, as espigas se despedaçam quando tocadas, espalhando muitas das espiguetas - a semente com o longo talo pegado - no chão. Trabalhando rápido, elas pegam os
montes de talos e espigas e amarram-nos em feixes.
De volta à aldeia, as espigas são malhadas em gamelas para soltar as espiguetas que restam; pedras em brasa são acrescentadas e mexidas em volta. Lubbock depreende
que isso torra as espiguetas e as deixa bastante quebradiças. Depois, são despejadas em pilões de madeira e moídas para soltar o grão; despejam-se os pilões em bandejas
de casca de árvore, que são agitadas para fazer a separação e tirar a casca. O grão volta aos pilões e é então finamente triturado, tornando-se farinha; após ser
misturado com água e transformado em massa, é cozido como panquecas chatas em pedras quentes, não mais que poucas horas depois de estarem crescendo nas hortas selvagens
de Ain Mallaha.
Sabemos que o povo natufiano cortava cereais com foices. À luz dos cabos decorados dessas ferramentas, essa pode ter sido uma atividade com sentido simbólico, como
colher cravos-de-defunto para minha esposa. Cortar com foices teria sido muito mais eficiente que bater o grão em cestos, porque reduziria a quantidade caída sem
colher no chão. Outro impacto desse novo método de colheita permaneceu desconhecido para o povo natufiano: o corte com foices estabeleceu as fundações para a transição
das formas selvagens para as domesticadas.
Lembrem-se de que a principal diferença é a condição quebradiça da espiga - as cepas selvagens se abrem quando maduras, espalhando as sementes no chão, enquanto
as domésticas permanecem intactas, "à espera do comedor". Dentro dos campos de cereais selvagens, teria havido algumas plantas relativamente não-quebradiças - raras
mutantes genéticas, estimadas por Gordon Hillman como uma ou duas para cada 2-4 milhões das quebradiças.
Os que batiam os talos e colhiam os grãos em cestos postos embaixo não os teriam colhido dessas mutantes genéticas. Só quando cortadas com foices os grãos dessas
teriam sido colhidos junto com os das plantas normais quebradiças. Imaginem uma situação em que um pequeno grupo de natufianos chegava para cortar um campo de cereais
selvagens. Se o trigo ou cevada já amadurecera, grande parte dos grãos das plantas quebradiças já se teria espalhado. Mas as raras plantas não-quebradiças ainda
estariam intactas. Assim, quando se cortavam os talos, os grãos dessas plantas seriam muito mais abundantes na colheita do que se elas estivessem na mata ou na estepe.
Agora imaginem o que teria acontecido se o povo natufiano começasse a semear campos de cereais selvagens espalhando grãos poupados de uma colheita anterior, ou
talvez plantando-os em buracos feitos com um pau ou mesmo em terreno arado. Essa semente teria tido uma freqüência relativamente alta das variantes não-quebradiças.
Quando o novo campo fosse cortado com foices, as variantes não-quebradiças teriam sido favorecidas mais uma vez e com isso ganho uma presença muito mais alta entre
os grãos colhidos. Se se repetisse esse processo muitas vezes, as plantas não-quebradiças passariam aos poucos a predominar. Acabariam por ser o único tipo de planta
presente - teria surgido a variante domesticada que "espera pelo colhedor". Mas se abandonada, a cepa domesticada iria aos poucos desaparecendo; incapaz esta de
gerar novas mutantes genéticas, as de espigas quebradiças como as plantas selvagens originais seriam as únicas capazes de reproduzir-se e rapidamente passariam a
dominar mais uma vez o campo.
Gordon Hillman e Stuart Davies, geólogos da Universidade do País de Gales, usaram seu conhecimento de genética de plantas e antigas técnicas de colheita - em grande
parte adquirido por experimentação - para avaliar quanto tempo levaria a mudança de cepas selvagens para domésticas. Empregando simulação em computador, mostraram
que, em circunstâncias ideais, apenas vinte ciclos de colheita e ressemeadura em novos campos poderiam ter transformado o tipo selvagem e quebradiço de trigo na
variante não quebradiça domesticada. Em condições mais realistas, de 200 a 500 anos é o período de transição mais provável.
Os indícios arqueológicos deixam claro que essa transição não se deu durante o natufiano. Há diferenças microscópicas entre a forma do grão de cereais domésticos
e variedades selvagens, e embora os grãos de cereais sejam raros no registro arqueológico natufiano, todos os conhecidos são claramente de cereais selvagens. Só
dentro de mais outro milênio, pelo menos, encontramos os primeiros grãos domesticados - de assentamentos em Abu Hureyra e Tell Aswad, na Síria, e em Jerico, na Palestina.
Assim, o povo natufiano parece ter cortado os campos de cereais selvagens com foices por até 3 mil anos sem o salto evolucionário de plantas quebradiças para não-quebradiças.
Parece haver uma explicação muito simples para isso, identificada numa pesquisa notável por Romana Unger-Hamilton na década de 1980 quando trabalhava no Instituto
de Arqueologia em Londres. Sob a orientação de Gordon Hillman, ela passou vários meses reproduzindo o estilo natufiano de colher cereais selvagens. Usando foices
idênticas feitas com cabos de osso e lâminas de sílex, cortava campos de cereais selvagens nas encostas do monte Carmelo, em torno do mar da Galiléia e no sul da
Turquia, numa série de experiências controladas. As lâminas eram então examinadas com microscópio em busca de sinais de "brilho de foice" - a textura, localização
e intensidade do brilho variam com os diferentes tipos de cereais e em diferentes estágios de amadurecimento.
Romana descobriu que o brilho de foice nas verdadeiras lâminas natufianas era muito semelhante ao das lâminas que ela usava para colher cereais ainda não-maduros.
Nesse estado, as plantas quebradiças teriam dado apenas um pouco de seus grãos, de modo que seriam colhidos de variantes não-quebradiças praticamente nas mesmas
proporções que as das plantas dentro do campo. Assim, mesmo que o povo natufiano plantasse sementes para gerar novos campos de cereais selvagens, as variantes não-quebradiças
seriam incapazes de tornar-se dominantes. Colher as espigas não-maduras era perfeitamente sensato, pois evitava a perda da maior parte dos grãos das plantas quebradiças,
que já teriam caído no chão.
Outro fator provavelmente impediu o surgimento de cereais domesticados entre os natufianos: seu estilo de vida sedentário, Patrícia Anderson, do Instituto de Pesquisa
Jalès em Paris, empreendeu um programa de pesquisa semelhante ao de Romana Unger-Hamilton e confirmou muitos dos seus resultados. Descobriu que, quando campos selvagens
são ceifados com foices, mesmo ainda em estado "verde", o grão que cai no chão é inteiramente suficiente para garantir a safra do ano seguinte. Assim, os natufianos
só teriam precisado semear se estivessem iniciando um campo inteiramente novo de cereais - de outro modo, poderiam contar com o "rebrotar" dos campos existentes.
Mesmo que os grãos colhidos pelo povo natufiano tivessem uma alta proporção das variantes não-quebradiças, e a menos que se fossem criar novos campos de cereais
em novos lugares, essas variantes jamais teriam tido a oportunidade de tornar-se a forma dominante. E como o povo natufiano era sedentário, jamais se criavam campos
novos. Os natufianos continuaram como cultivadores de cereais selvagens nas hortas selvagens das matas mediterrâneas.
Estes argumentos sobre o povo natufiano, suas hortas selvagens e suas atividades de coleta de plantas têm uma fraqueza óbvia: muito poucos restos botânicos foram
recuperados de seus assentamentos. Isso se deve em parte à má preservação, e em parte ao fato de muitas escavações predatarem as modernas técnicas de recuperação.
Para encontrar indícios diretos da natureza da coleta de plantas, John Lubbock tem de deixar a mata mediterrânea e a cultura natufiana. Precisa viajar 500 quilômetros
até outra aldeia de caçadores-coletores a nordeste, descoberta nas planícies aluviais do Eufrates: o surpreendente sítio de Abu Hureyra.

5
Nas Margens do Eufrates
Abu Hureyra e o surgimento do sedentarismo dos caçadores-coletores,
12.300 - 10.800 a.C.
O mato e as flores da estepe estão molhados de orvalho quando John Lubbock se aproxima da aldeia de Abu Hureyra. É o amanhecer de um dia de meados do verão em 11.500
a.C. Sua jornada de Ain Mallaha trouxe-o das densas florestas de carvalho das colinas mediterrâneas, por campo aberto e finalmente a estepe desprovida de árvores,
até o que é o hoje noroeste da Síria. Passou por várias aldeias próximas de rios e lagos, todas desconhecidas do mundo moderno. Agora pára para contemplar a vista
- ao longe há uma planície além da qual uma linha de árvores bordeja um largo rio, o Eufrates. Além disso, apenas um vago horizonte, à luz leitosa do dia nascente.
Mais alguns minutos de caminhada fazem-no avistar a aldeia; mas é preciso olhar duas vezes. Ela se funde em seu terraço de calcário, exatamente como Ain Mallaha
se fundia com a mata em volta, mais parecendo ter sido gerada pelo sol e moldada pelo vento do que construída por mãos humanas. A cada passo, os baixos e planos
telhados cobertos de junco, reunidos à borda da planície aluvial, se tornam um pouco mais nítidos. Mesmo assim, a fronteira entre natureza e cultura permanece profundamente
obscura.
As pessoas de Abu Hureyra dormem. Cães farejam-se uns aos outros e o chão, alguns coçando-se e outros roendo ossos. Os telhados chegam à altura da cintura, sustentados
nas pequenas molduras de madeira de moradas cortadas em pedra mole. Lubbock desce numa delas e encontra um pequeno e estreito quarto circular de pouco mais de três
metros de largura. Um homem e uma mulher dormem sobre peles e um colchão de capim seco; uma moça faz o mesmo numa trouxa de peles.
O piso está juncado de artefatos e lixo - não pilões e almofarizes como em Ain Mallaha, mas mós planas e côncavas. Artefatos de pedra lascada espalham-se pelo
chão, junto com cestos de vime e tigelas de pedra, e até um monte de ossos de animais coberto de moscas. Uma pequena tigela contém minúsculos microlitos em meia-lua
feitos de sílex, muito parecidos com os de Ain Mallaha. Num lado da morada há um monte de entulho - a parede desabou e entrou a terra do lado de fora. Paira no ar
um fedor nauseante de carne podre e ar viciado.
Grande parte da vida da aldeia se passa além dessas paredes - não encerram casas como pensamos nelas hoje. Nos espaços externos há cozinhas, montes de varas, feixes
de junco, folhas de casca de árvore e grupos de mós. Evidentemente, muita gente trabalha junto na preparação das plantas colhidas de hortas selvagens na estepe e
na mata pantanosa à beira do rio. Lubbock curva-se e deixa que as multicoloridas cascas, talos, galhos e folhas que cercam as pedras lhe escorram entre os dedos.
São detritos, deixados exatamente onde caíram das mós ou desbastados dos feixes de plantas e flores. Perto dali há cestos e tigelas de pedra transbordando de nozes
e sementes de variadas formas e cores.
Em outra parte da aldeia, ele encontra mais um conjunto de mós; mas estão cercadas por torrões de pedra vermelha e pó, em vez de cascas de sementes e galhos de
plantas. As pedras de moer têm manchas vermelhas, da fabricação de pigmento usado para decorar corpos humanos. Ali perto, três gazelas foram estripadas mas ainda
não esquartejadas; as carcaças são deixadas penduradas fora do alcance dos cachorros. As pessoas de Abu Hureyra dependem tanto da caça de gazelas quanto da coleta
de plantas. Mas esses animais são caçados apenas durante pouco mais de algumas semanas cada verão, quando grandes bandos passam perto da aldeia.
Começa a vida diária em Hureyra. As gazelas não aparecem e os caçadores partem para vasculhar o vale do rio em busca de javalis e jumentos selvagens. Poucos animais
vivem agora nos arredores da aldeia, por isso eles ficarão decepcionados. As mulheres e as crianças trabalham nas hortas selvagens, capinando, matando insetos e
colhendo o que quer que haja amadurecido ao sol.
Dentro de poucos dias chegam os bandos, e começa a matança anual de gazelas. Os visitantes são bem-vindos na aldeia. Trazem reluzentes obsidianas negras do sul
da Turquia como presentes e recebem em troca conchas de dentário, um dia colhidas nas margens do Mediterrâneo e trazidas por visitantes anteriores a Abu Hureyra.
Durante mais de mil anos os caçadores-coletores de Abu Hureyra continuarão a caçar gazelas. Os animais são tão numerosos que sua matança não tem impacto sobre o
tamanho dos rebanhos. As mulheres e crianças continuarão a cuidar das hortas selvagens e a colher uma rica safra. O acúmulo de sujeira, areia, artefatos perdidos
e outros detritos dentro das moradas se tornará insuportável ou simplesmente impedirá o acesso. E então as pessoas de Abu Hureyra construirão novas moradas, agora
totalmente acima do solo. Mas os tempos difíceis acabarão por chegar. A seca do Jovem Dryas perturbará as gazelas e dizimará a produtividade da estepe. A aldeia
será abandonada, e as pessoas voltarão à vida nômade.
Retornarão em 9.000 a.C., não como caçadores-coletores, mas agricultores. Construirão casas de adobe e cultivarão trigo e cevada na planície aluvial. Os rebanhos
de gazelas terão retomado suas migrações e serão caçadas por mais mil anos, até o povo de Abu Hureyra de repente passar para rebanhos de carneiros e cabras. As casas
serão repetidas vezes reconstruídas para que se forme um monturo, ou tell [montes artificiais, formados pelo acúmulo de detritos], de meio quilômetro de largura,
8 metros de profundidade e contendo mais de um milhão de metros cúbicos de depósitos. Os restos das primeiras moradas subterrâneas de Abu Hureyra serão enterrados
fundo e perdidos da memória humana.
Em 1972, o arqueólogo Andrew Moore escavou parte do tell. Como era uma Operação de resgate antes da construção da barragem, seu trabalho se limitou a duas temporadas.
Hoje o tell jaz inundado sob as águas do lago Assad. Na pequena área que pôde escavar, Moore encontrou várias moradas e pontas de lixo dos mais antigos habitantes
de Abu Hureyra. Não havia sinal de cemitério ou na verdade de qualquer túmulo. Isso o deixou perplexo. Que tinham eles leito com seus mortos, e teria as mesmas diferenças
de riqueza evidentes em Am Mallaha?
Apesar disso, naquelas duas temporadas de trabalho adquiriu-se uma abundância de informações sobre a aldeia. Foi uma das primeiras escavações a usar métodos para
assegurar a recuperação até do mais minúsculo e frágil resto de planta. Incluíam a "flutuação", em que se fazem flutuar literalmente sementes calcinadas desprendidas
do sedimento que as continha, para depois recolhê-las e prepará-las para estudo. Gordon Hillman descobriu que nada menos que 157 espécies diferentes teriam sido
levadas para a aldeia, e desconfiou de que pelo menos outras 100 teriam sido colhidas mas não deixaram traços arqueológicos.
Pôde determinar pelo menos duas temporadas de coleta: da primavera ao início do verão, e no outono. Mas ele pensa que as pessoas ficavam em sua aldeia o ano todo;
aonde mais teriam ido no inverno, quando as condições na estepe e montanhas em volta seriam sombrias? No alto verão, o recurso mais crucial provavelmente era a água
do vale. Permanecendo em Abu Hureyra, elas poderiam desfrutar de plantas comestíveis que atingiam o auge no verão, como os tubérculos de juncos - embora não se encontrassem
restos arqueológicos.
Peter Rowley-Conwy e Tony Legge, dois dos mais destacados arqueozoólogos do Reino Unido, estudaram a matança anual de gazelas. De duas toneladas de fragmentos
de ossos, mostraram que apenas dois adultos, os recém-nascidos e filhotes teriam sido mortos. Isso indicava que o abate ocorrera no início do verão: só nessa época
do ano essa gama específica de idades estaria presente.
Esse notável trabalho de Moore, Hillman, Rowley-Conwy, Legge e muitos outros arqueólogos mostra que os caçadores-coletores de Abu Hureyra desfrutavam das mais
atraentes condições ambientais em muitos milhares de anos, desde muito antes do LGM. Em nenhuma outra época tinham os animais e plantas sido tão abundantes, diversos
c previsíveis em disponibilidade - como foram para os habitantes do Natufiano nas matas mediterrâneas. Isso lhes forneceu a oportunidade de abrir mão do estilo móvel
de vida que servira à sociedade humana desde seu primeiro surgimento 3,5 milhões de anos atrás na savana africana. Mas por que fazer isso?
Por que criar as tensões sociais que surgem inevitavelmente quando temos vizinhos de porta permanentes numa aldeia? Por que expor-nos a detritos e lixo humanos
e aos riscos para a saúde que acompanham um estilo de vida mais sedentário? Por que arriscar o esgotamento dos animais e plantas perto de nossa aldeia?
Quase podemos ter certeza de que as pessoas não foram obrigadas a adotar esse estilo de vida por superpovoação. Os sítios natufianos não são mais abundantes que
os de tempos anteriores; se houve um tempo de pressão populacional, foi em 14.500 a.C. que se deu um impressionante aumento no número de sítios kebaranos e a padronização
de formas microlíticas. Não há indício de aumento de população dois milênios depois, quando aparecem as primeiras aldeias natufianas. Além disso, pelos indícios
de seus ossos, o povo natufiano gozava de razoável saúde - inteiramente ao contrário de povos obrigados a adotar um estilo de vida indesejável por escassez de alimentos.''
Anna Belfer-Cohen, da Universidade Hebraica de Jerusalém, estudou os indícios de esqueletos e descobriu poucos sinais de trauma, como fraturas curadas, deficiências
nutritivas ou doenças infecciosas. As pessoas sob tensão tendem a criar finas linhas no esmalte dos dentes - chamadas hipoplasias. Indicam períodos de escassez de
alimentos, muitas vezes imediatamente após o desmame. As linhas são menos freqüentes nos dentes natufianos que nos dos povos agrícolas. Mas os dos natufianos e os
dos primeiros povos agrícolas são muito gastos. Isso confirma a importância das plantas em sua dieta: quando sementes e nozes eram moídos em pilões de pedra, entrava
areia na farinha ou massa resultante. E quando a comida era ingerida, essa areia lixava os dentes, muitas vezes deixando-os quase sem esmalte algum.
O povo natufiano parece ter sido inteiramente pacífico, além de saudável. Não há sinais de conflito entre grupos, como flechas enterradas em ossos humanos - ao
contrário da tradição que Lubbock encontrará em suas viagens européias, australianas e africanas. Os grupos caçadores-coletores natufianos eram bons vizinhos; havia
terra abundante, hortas e animais para todos.
É possível que os povos natufianos e abu-hureyranos estivessem dispostos a aceitar o lado negativo da vida em aldeia - as tensões sociais, os rejeitos humanos,
o esgotamento de recursos - em troca dos benefícios. François Valia, escavador de Ain Mallaha, acredita que as aldeias natufianas simplesmente surgiram das reuniões
sazonais do povo kebarano. Ele lembra a obra do antropólogo social Marcel Mauss, que viveu com caçadores-coletores no Ártico na virada do século XIX para XX. Mauss
reconheceu que as reuniões periódicas se caracterizavam por intensa vida comunitária, festas e cerimônias religiosas, discussão intelectual e muito sexo. Em comparação,
o resto do ano, quando as pessoas viviam em grupos pequenos e distantes, era meio chata.
Valia sugere que a agregação de caçadores e coletores móveis antes do natufiano pode ter sido semelhante, e o povo natufiano simplesmente teve a oportunidade de
estender esses períodos de agregação até efetivamente continuarem o ano todo. Na verdade, todos os elementos-chave das aldeias natufianas já se achavam presentes
em Neve David: moradas de pedra, mós, contas de dentálio, cemitérios humanos e ossos de gazelas. À medida que o clima foi-se tornando mais quente e úmido, e as plantas
e animais mais diversos e abundantes, as pessoas permaneciam mais tempo e voltavam mais cedo aos sítios de agregação de inverno, até algumas permanecerem o ano todo.
Os sedentários caçadores-coletores de Ain Mallaha, Abu Hureyra e na verdade de todo o Oeste da Ásia entre 12.500 e 11.000 a.C. gozavam a boa vida. A abundância de
indícios arqueológicos e a excelência da pesquisa nos permitem captar na mente algumas vividas imagens dessa vida. Podemos imaginar prontamente as bolotas sendo
transportadas em cestos para Ain Mallaha, e depois reduzidas a uma pasta, os caçadores do lugar tendo a primeira visão das gazelas que se aproximam, e os trajes
de um morto com um adereço de cabeça de conchas, colar e faixa de dentálio na perna em El-Wad, pronto para o enterro.
Mas a imagem a ser lembrada é de algumas famílias desfrutando um dia na estepe florestal - longe dos latidos dos cães, dos fedorentos montes de lixo, dos rabugentos
que ficaram para trás na aldeia. Eles não buscam caça nem plantas para colher. É um dia de descanso, e eu os vejo sentados, cercados por miríades de flores estivais.
As crianças fazem guirlandas e os jovens amantes esgueiram-se para dentro do mato alto. Alguns conversam, outros dormem. Todos gozam o sol. Têm a barriga cheia e
nenhuma preocupação.
John Lubbock senta-se com eles, após passar alguns dias trabalhando em Abu Hureyra. Lê seu livro, descobrindo o que o xará sabia sobre a mudança do clima - muito
pouco. O John Lubbock vitoriano compreendera que teriam ocorrido imensas variações no clima porque visitara cavernas cheias de ossos de rena no ensolarado sul da
França, descobrira carvalhos dentro de pântanos de turfa e vira vales cortados por rios antigos. Mas em 1865 não tinha consciência da complexidade da mudança de
clima, pois a idéia de múltiplas glaciações só ganhou favor no início do século XX, e acontecimentos-chave como o Jovem Dryas permaneceram desconhecidos até tempos
recentes. Mesmo assim, o moderno John Lubbock se impressionou com o seu xará, sobretudo quando leu que as causas sugeridas de mudanças climáticas incluíam variação
na radiação solar, alteração no eixo da Terra e mudanças nas correntes oceânicas - todas as quais foram provadas desde então e permanecem no primeiro plano do estudo
científico.
Por um momento, John Lubbock esquece seu lugar na história; as borboletas, as flores, o sol e o vento são inteiramente atemporais. Mas a data é 11.000 a.C., e
está para ocorrer uma dramática mudança no clima; as famílias que se sentam despreocupadas na estepe oscilam à beira de uma calamidade ambiental: está para chegar
o Jovem Dryas.
Por várias gerações desde o LGM, a vida para as pessoas no oeste da Ásia vem-se tornando cada vez melhor. Altos e baixos ocorreram: anos de clima relativamente
frio e seco, quando plantas comestíveis e caça foram mais difíceis de encontrar, anos em que foram particularmente abundantes. Mas a tendência foi para um clima
mais quente e mais úmido, maior diversidade de plantas, maiores produções de sementes, frutas, nozes e tuberosas, maiores e mais previsíveis rebanhos de animais,
e uma vida cultural e intelectual mais rica. Isso culminou na vida de aldeia que Lubbock viu em Ain Mallaha e nas margens do Eufrates. As famílias de Abu Hureyra
que desfrutam o sol de verão na estepe eram sem dúvida as afortunadas, e é provável que soubessem disso. Mas não podiam saber muito bem o quanto. Pois dentro de
algumas gerações a maré da mudança do clima já virará, e a vida jamais voltou a ser tão boa de novo.

6
Mil Anos de Seca
Economia e sociedade durante o Jovem Dryas
10.800 - 9.600 a.C.
Mais uma vez, John Lubbock está parado na margem ocidental do lago Hula e olha a aldeia de Ain Mallaha do outro lado. Cinqüenta gerações, 1.500 anos, se passaram
desde que ele testemunhou uma vibrante atividade na aldeia em meio aos carvalhos, amendoeiras e pistaches. Os tempos mudaram. As matas são esparsas. As árvores e
o mato baixo não têm o exuberante crescimento que parecia embalar as pessoas de Ain Mallaha com a promessa de comida abundante. Dentro da aldeia, telhados e paredes
ruíram, e algumas moradas não passam de montes de detritos. Há agora novas construções circulares, mas são coisas pequenas e desconjuntadas.
Cinqüenta quilômetros a sudoeste, a aldeia de Hayonim foi inteiramente abandonada. Após 200 anos de ocupação, as pessoas deixaram a caverna para viver no terraço,
usando as moradas anteriores para o enterro de seus mortos. Mas mesmo essas novas casas se acham agora desertas. Galhos e mato seco, cobras e lagartos, líquens e
musgos são os únicos moradores, quando a natureza começa a retomar sua pedra, acolhendo as paredes de calcário, os pilões de basalto e as lâminas de sílex de volta
à terra. O mesmo se dá em Abu Hureyra - as pessoas se foram, as moradas vazias deixadas para desmoronar, artefatos abandonados e esquecidos.
A data é 10.800 a.C. A vida sedentária da aldeia existe apenas nas histórias, passadas de geração em geração, de pessoas que vivem em acampamentos transitórios
espalhados por todas as matas que resistem e a agora estepe que mais parece deserto. A conquista cultural dos natufianos persiste não mais como um débil eco nos
artefatos, trajes e costumes sociais dessas pessoas - pessoas às quais os arqueólogos se referem como natufianos tardios. Muitas delas se reúnem periodicamente em
Ain Mallaha, El-Wad ou Hayonim, trazendo os ossos de seus mortos para reenterrá-los junto dos ancestrais, no que se tornaram sítios sagrados, existindo naquele mundo
de sombras entre a história e o mito.
O experimento de vida aldeã sedentária durou quase 2 mil anos, mas acabou fracassando, obrigando as pessoas a retornarem a um estilo de vida peripatético mais antigo.
Antes de fazê-lo, a cultura natufiana espalhara-se muito além das inatas mediterrâneas que segundo Ofer Bar-Yosef foram sua "terra natal". A assinatura dessa cultura
- os microlitos em forma de meia-lua - se espalharam por todo o oeste asiático, com assentamentos dos natufianos tardios aparecendo desde os desertos do sul da península
arábica até as margens do Eufrates.
A disseminação da cultura natufiana sugere que as aldeias sedentárias foram em parte vítimas de seu próprio sucesso. É provável que seus habitantes tenham aumentado
em número sem cessar. Os caçadores-coletores móveis têm uma restrição natural a seus números, pois precisam carregar não apenas suas posses, mas também as crianças,
quando se mudam de um sítio para outro. Os partos têm de ser espaçados em intervalos de 3 a 4 anos, uma vez que não é possível carregar mais de uma criança de cada
vez. Os moradores natufianos de Ain Mallaha, Hayonim e outras aldeias podiam reproduzir-se mais livremente.
Parece provável que a disseminação da cultura natufiana tenha resultado em parte de grupos de pessoas que deixavam suas aldeias para estabelecer novos assentamentos.
Pode ter sido esta a única forma de rapazes e moças ambiciosos adquirirem poder para si mesmos. Mas outro motivo de dispersão também se apresenta: não tinha mais
comida suficiente para todos. Os natufianos tardios que se dirigiam para o deserto de Negev, para estabelecer aldeias como Rosh Horesha e Rosh Zin, ou as próximas
da costa mediterrânea como Nahal Oren, ou assentamentos como Mureybet nas margens do Eufrates, podem ter sido alguns dos migrantes originais.
As pessoas da aldeia tinham começado a explorar demasiado os animais e plantas selvagens dos quais dependiam. Os ossos de gazela de seus montes de detritos oferecem
uma história reveladora de tentativas de administrar os rebanhos que acabaram por sair pela culatra e levaram à escassez de comida. Carol Cope, da Universidade Hebraica
em Jerusalém, fez estudos meticulosos dos ossos de gazela de Hayonim e Ain Mallaha. As gazelas montanhesas caçadas por gente dessas aldeias se comportavam de forma
bastante diferente das caçadas em Abu Hureyra. Permaneciam na vizinhança dos assentamentos natufianos o ano todo, jamais formando os enormes rebanhos emboscados
perto do Eufrates.
Carol descobriu que as pessoas natufianas preferiam matar os animais machos. Isso era evidente porque os ossos das patas (os astragali) que estudou se dividiam
facilmente em dois grupos com base no tamanho, os maiores superando em número os menores em quatro por um. Grandes patas implicam grandes corpos, e para as gazelas,
esses corpos seriam machos.
Quando o povo kebarano usara a Caverna de Hayonim, 5 mil anos antes de os natufianos se estabelecerem, matava gazelas machos e fêmeas em igual proporção. Ao escolherem
de preferência os machos, os natufianos tentavam provavelmente conservar as populações de gazelas. Embora os dois sexos nascessem em igual proporção, só uns poucos
machos eram de fato necessários para manter os rebanhos. Carol Cope pensa que o povo natufiano decidiu que os machos eram sacrificáveis, reconhecendo ao mesmo tempo
a necessidade de que o maior número possível de fêmeas desse à luz novos machos.

Se esse era o objetivo deles, deu horrivelmente errado. Os natufianos cometeram o erro de não apenas caçar os machos, mas de escolher os maiores que encontravam
para matar. Assim, as gazelas fêmeas eram deixadas para reproduzir-se com os machos menores - que provavelmente não seriam a sua escolha natural. Como pais pequenos
dão origem a filhos pequenos, e os natufianos matavam os filhos maiores, as gazelas foram-se reduzindo em tamanho a cada geração. Daí os ossos encontrados nos montes
de detritos da Caverna Hayonim serem de animais muito maiores que os dos montes do terraço - tendo entre os dois 500 anos de diferença.
Gazelas menores significavam que havia menos carne para alimentar uma população sempre crescente. Essa escassez era agravada pela exploração exagerada das "hortas
selvagens": tinham-se cortado demasiados talos de cereais selvagens e colhido demasiadas bolotas e amêndoas para que ocorresse o reabastecimento natural.
A saúde do povo nalufiano começou a ressentir-se disso, sobretudo a das crianças. Isso se evidencia nos dentes. Os dos natufianos enterrados em Hayonim têm uma
freqüência muito mais alta de hipoplasias que seus antecessores pré-natufianos. Também lhes restavam menos dentes ao morrer, e os dentes que resistiam tinham cáries
- mais dois sinais de má saúde.
A escassez de alimentos pode levar a crescimento físico medíocre - como é evidente entre as vítimas de fome endêmica hoje. Isso pode explicar por que muitos dos
natufianos tardios, como os enterrados em Nahal Oren, eram mais baixos que os que viveram primeiro em Ain Mallaha. Assim como no mundo moderno, os homens eram mais
afetados que as mulheres, e assim os sexos do natufiano tardio eram mais semelhantes em tamanho físico do que ocorrera antes.
Não se pode atribuir apenas as escassezes de alimentos nas aldeias natufianas, levando à emigração e eventual abandono, aos próprios natufianos, que não conseguiram
controlar seus números. É provável que os problemas de crescimento populacional hajam sido eclipsados por alguma coisa sobre a qual as pessoas não tinham controle
algum: a mudança climática.
O Jovem Dryas, mil anos de frio e seca, foi provocado pelo enorme influxo de águas glaciais derretidas no Atlântico Norte, quando as camadas de gelo norte-americano
desabaram. O impacto disso nas paisagens do oeste asiático é logo visto nos grãos de pólen do núcleo de Hula. Os sedimentos depositados dentro desse lago após 10.800
a.C. mostram uma impressionante redução na quantidade de pólen de árvores, indicando que grande parte da mata morrera por falta de chuva e de calor. Na verdade,
dentro de 500 anos já haviam retornado a condições pouco diferentes das do LGM: um devastador colapso das reservas de alimentos, exatamente quando os níveis de população
tinham alcançado um pico recorde.

Com o duplo impacto de pressão populacional e deterioração climática, não ficaremos surpresos com o colapso da vida aldeã do Natufiano Inicial. Mas as pessoas
não podiam simplesmente voltar ao modo como seus antepassados kebaranos tinham vivido. Não apenas eram seus números populacionais substancialmente maiores, mas o
povo do Natufiano Tardio tinha um legado de vida sedentária: nova tecnologia, novas relações sociais, novas atitudes em relação a plantas e animais, novos conceitos
sobre terra e moradias, talvez mesmo sobre posse e propriedade.
Não tinha retorno dessas idéias, embora as pessoas retornassem ao antigo estilo de vida de acampamentos transitórios e pés cansados.
Antes de seguirmos a história dos natufianos tardios do vale do Jordão e retornarmos à das viagens de Lubbock, temos de fazer uma breve visita mil quilômetros a
leste. Isso nos leva além da agora deserta aldeia de Abu Hureyra, além do Eufrates e pelas encostas das montanhas Taurus e Zagros adentro. Ali, em vez de as aldeias
serem abandonadas durante o Jovem Dryas, foram criadas pela primeira vez.
A região das Zagros tem fronteiras maldefinidas e é topograficamente diversa; inclui a parte superior da planície mesopotâmia, colinas ondulantes, vales profundos,
penhascos e picos de montanhas. As mudanças em exposição e altitude criaram impressionantes diferenças na medida de chuva e temperatura, produzindo muitos bolsões
localizados de exuberante vegetação mesmo quando as condições gerais eram de seca e frio.
Em toda a região, as temperaturas caíram e a chuva diminuiu, abatendo muitas das árvores que se haviam recentemente disseminado a partir da costa mediterrânea.
Mas os protegidos vales das terras baixas ofereceram um refúgio para bosques de carvalho, pistacho e tamariz, assim como para animais de caça obrigados a descer
das encostas mais altas agora demasiado frias.
Os caçadores-coletores tiveram de seguir as plantas e animais e assentar-se entre esses vales em muito mais altas densidades do que quando vagavam pelas colinas.
Entre os vales, construíram uma das mais elaboradas arquiteturas já vistas na história do mundo, Hallan Çemi Tepesi, encontrada nas margens de um riozinho nos contrafortes
das montanhas Taurus, é a mais intrigante dessas novas aldeias. Em 1991, o sítio arqueológico foi ameaçado pela construção de uma barragem. Uma equipe conjunta de
americanos e turcos fez escavações e descobriu vestígios de estruturas com fundações de pedra e paredes de taipa. Exatamente quando foram construídas, ainda não
está claro; as poucas datas por radiocarbono abrangem mais de 200 mil anos, mas o principal período de ocupação parece ter sido por volta de 10.000 a.C. As pessoas
de Hallan Çemi Tepesi tinham reunido uma ampla variedade de plantas comestíveis, incluindo amêndoas, pistacho, ameixa e legumes. Caçavam cabras selvagens, gamo e
javali.

Algumas das construções eram moradas domésticas com lareiras, utensílios para moagem e artefatos utilitários. Mas outras tinham estatuetas, vasos de pedra decorados
e obsidiana vinda de 100 quilômetros ao norte. As tarefas domésticas tinham sido excluídas dessas construções, reservadas para atividade social ou ritual.
Os vasos de pedra decorados eram feitos de fino calcário; alguns tinham bases chatas, e outros redondas, com lados furados para suspensão sobre uma fogueira. Muitos
eram enfeitados com arabescos, ziguezagues e meandros gravados. Alguns tinham imagens de animais - uma fila de três cachorros na superfície de um vaso. Vários almofarizes
tinham sido muito polidos; um tinha o cabo esculpido na forma da cabeça estilizada de uma cabra. Encontraram-se muitas contas, em várias formas e tamanhos, e feitas
de pedras coloridas. As chamadas estatuetas eram feitas da mesma pedra branca usada para fazer os vasos.
Hallan Çemi Tepesi parece demasiado sólida para um acampamento sazonal de caçadores-coletores; investiu-se muita mão-de-obra nas construções, e os vasos de pedra
maiores foram evidentemente feitos como mobília. A cultura material altamente desenvolvida e o comércio de obsidiana sugerem uma sociedade tão complexa quanto a
que floresceu em Ain Mallaha - e talvez mais imersa num mundo de símbolos e ritual. John Lubbock só descobrirá a conseqüência desses fatos muito mais tarde em suas
viagens - quando chegar à Mesopotâmia em 11.000 a.C., após ter viajado por quase todo o mundo.
Os arqueólogos ainda se esforçam por entender o novo estilo de vida que o povo do Natufiano Tardio dos vales do Jordão e Eufrates adotou durante o Jovem Dryas. Uma
fonte reveladora de indícios é sua prática de sepultamento, e como isso mudou em relação à dos seus ancestrais que moravam em aldeias. Talvez o fato mais impressionante
seja que as pessoas não eram mais enterradas usando elaborados adereços de cabeça, colares, braceletes e pingentes feitos de ossos de animais e conchas marinhas.
O fato de que um quarto dos natufianos iniciais tinham sido enterrados desse jeito sugere que alguns eram muito mais ricos e poderosos que outros.
Riqueza e poder evidentemente dependiam do estilo de vida sedentário da aldeia. Isso proporcionou a uma elite a oportunidade de controlar o comércio que trazia
conchas marinhas e outros artigos para as aldeias. O retorno a estilos de vida móveis varreu a sua base de poder e a sociedade tornou-se mais uma vez igualitária,
em grande parte como fora no período kebarano. A ausência de conchas marinhas enfeitando os mortos não se devia ao fato de essas conchas não mais estarem disponíveis
- são encontradas em abundância nos assentamentos do Natufiano Tardio. Em vez de serem postas nos mortos, eram simplesmente jogadas fora com o lixo doméstico, junto
com contas e pingentes de osso. As conchas tinham perdido o valor porque não havia mais controle de sua distribuição - os caçadores-coletores podiam catar conchas
marinhas por si mesmos e negociá-las com quem quisessem.
Outro sinal de retorno a uma sociedade mais igualitária foi a mudança do enterro de pessoas predominantemente em grupos - na certa como membros de uma única família
ou linhagem - para os enterros individuais. É evidente que o fazer parte de uma mesma família não mais tinha o mesmo significado - as pessoas eram valorizadas com
base em seus feitos e personalidades, e não de seus laços familiares. Mas é uma terceira mudança nas práticas de enterro que mais revela sobre a mudança na sociedade
durante o Natufiano. Grande proporção de enterros natufianos é uma amontoada coleção de ossos, ou um esqueleto incompleto - freqüentemente sem o crânio.
Esses são conhecidos dos arqueólogos como enterros secundários. Mostram que os ritos funerários eram muito mais que o simples fato de pôr o corpo na cova e deixá-lo
lá. Em vez disso, tinha pelo menos dois, talvez vários, estágios no ritual de sepultamento - com toda probabilidade culminando quando muitos grupos se reuniam para
o passamento final dos mortos.
É um dia de outono em 10.000 a.C. A noite desce sobre o lago Hula, aparentemente anunciada por uma revoada de gansos. John Lubbock instala-se perto de sua pequena
fogueira, feliz por ver a escuridão baixar e o sono chegar. Mas em , poucos minutos é perturbado por vozes humanas que vêm de um grupo cansado da estrada que passa
a caminho de Ain Mallaha. Alguns são velhos e andam com cajados; outros são jovens e carregados pelos cansados pais. Altos latidos vêm da aldeia caindo aos pedaços,
respondidos por pouco mais que ganidos dos cachorros que viajam com essas pessoas. Para os cachorros, Ain Mallaha será apenas mais um de muitos assentamentos visitados
no correr de um ano. Mas para as pessoas, é um lugar sem igual - é seu lar ancestral e esta é a primeira visita que lhe fazem em muitos anos.
Suas viagens os levaram a vários outros dos seus acampamentos temporários - sítios abandonados quando a caça e as plantas locais ficaram demasiado esgotadas para
sustentar a sua presença. Visitaram lugares onde pessoas tinham morrido e sepultadas. Em cada cova os ossos foram exumados e postos em cestos para serem trazidos
para Ain Mallaha. De algumas, trouxeram esqueletos quase completos, mantidos inteiros pela pele seca e os tendões; de outros, apenas o crânio. Sempre que descansavam
na viagem, os velhos recordavam as visitas que seus pais e avós haviam feito a Ain Mallaha, trazendo os ossos de seus mortos para reenterro. Os jovens ouviam avidamente.
Sabiam as histórias de cor: que os ancestrais tinham morado em Ain Mallaha o ano todo; que tinha abundância de comida; que eles enfeitavam os corpos com roupas elaboradas
e jóias; que o lobo se tornara cachorro.
Lubbock junta-se ao grupo e entra na aldeia de Ain Mallaha, onde se fazem respeitosos e formais cumprimentos com o punhado de gente que vive nas decadentes moradas
e guardam o sítio. Os cestos e os poucos pertences que eles trazem são arriados. Acende-se uma fogueira e partilha-se um pouco de comida antes que o sono os reclame
a todos.
Durante os poucos dias seguintes, chegam mais grupos a Ain Mallaha, cada um trazendo cestos com os ossos dos seus mortos. Quase cem pessoas já se reuniram, prontas
para reviver o passado ancestral. Passam-se mais dois dias, enquanto se batem as matas em busca de caça e plantas comestíveis para os banquetes. Contam-se histórias,
e torna-se a contá-las.
Lubbock ajuda na limpeza dos detritos de uma das moradas desabadas: pedras, galhos, madeiras podres e a Terra. Os antigos cemitérios de Ain Mallaha são reabertos.
Em meio a hinos e cantorias, retiram-se os corpos dos novos mortos dos cestos e colocam-nos na Terra. Fazendo isso, o passado e o presente juntam-se num só. O ato
de reenterro, os dias de festejos que se seguem, a vida comunitária, as histórias contadas e os banquetes recriam para os vivos os dias do passado ancestral. Esquece-se
momentaneamente do desafio do presente - a luta pela sobrevivência durante a severidade da seca do Jovem Dryas.
As pessoas permanecem em Ain Mallaha o quanto suas reservas de comida permitem - dez dias, talvez duas semanas no máximo. Falam sem parar de onde estiveram, e
do que pode guardar o futuro. Trocam presentes: pedras, conchas e, o mais intrigante de tudo, bolsas de couro com grãos de cereais, ervilha e lentilha.
Finalmente, os grupos partem para lados diferentes, cada um tendo ganhado novos membros e perdido outros. Estão todos agradecidos pela volta ao seu estilo de vida
transitório nas áridas paisagens das colinas mediterrâneas, no vale do Jordão e além. Afinal, é o único estilo de vida que conheceram, e que adoram. Lubbock passou
a adorá-lo também, sobretudo quando na companhia dessas pessoas que têm urna história para contar sobre cada vale e cada colina, cada poço e cada conjunto de árvores.
Ele entra num grupo que parte caminhando para o sudeste, dirigindo-se para o vale do Jordão. Mochilas de sementes pendem de suas cinturas e balançam como pêndulos,
parecendo conscientes do próprio tempo, sabendo que pouco resta para os que caçam e coletam seu alimento.
Não há indício arqueológico evidente de que o povo do Natufiano Tardio levava mochilas de cereais, lentilha e ervilha. Mas se o fazia, e depois espalhava as sementes
quando chegava a seus campos outonais e colhia a safra de verão, antes de passar a viver em outra parte, isso explicaria como evoluíram o trigo e a cevada domesticados.
O trabalho experimental de Patrícia Anderson mostrou que o replantio de campos existentes - como podem ter feito os natufianos iniciais - teria causado pequena
diferença na proporção de variantes não-quebradiças, devido à quantidade de sementes já existentes no solo. O que era necessário para que ocorresse a domesticação
era que novos tratos de cereais, ervilha e lentilha fossem regularmente semeados e colhidos, e isso é provável que muitos latufianos tardios tenham feito. Mas que
poderia tê-los levado a fazê-lo?
Sabemos que os tempos eram difíceis nas paisagens cada vez mais áridas do Jovem Dryas, mas ainda não está claro o grau de dificuldade. As secas certamente fizeram
com que muitos poços e rios desaparecessem por completo, e os lagos maiores diminuíssem de tamanho. As pessoas que viviam no sul, nos hoje desertos de Negev e Sinai,
com toda probabilidade foram as mais atingidas. Retornaram a um estilo de vida inteiramente transitório, muito semelhante ao das pessoas kebaranas. A sobrevivência
exigiu melhores armas de caça: os animais tornaram-se escassos, e portanto o sucesso se tornou essencial quando era possível um abate. E, assim, vemos a invenção
da ponta Harif - uma ponta de flecha de forma rombóide.
Mais ao norte, o impacto do Jovem Dryas pode ter sido menos severo. Mas a sobrevivência ainda exigia mais que apenas um retorno ao estilo de vida móvel do caçador-coletor,
sobretudo porque muito mais pessoas precisavam de comida agora do que no período kebarano, antes da experiência do Natufiano Inicial com moradias permanentes. Uma
das respostas foi caçar uma gama bem mais ímpia de animais que antes; e daí encontrarmos em assentamentos do Natufiano Tardio os ossos de muitas espécies de caça
miúda, além da sempre presente gazela.
Outra resposta foi continuar, e talvez expandir, o cultivo de plantas. Os cereais selvagens foram particularmente atingidos pelo Jovem Dryas, devido ao decréscimo
na concentração de dióxido de carbono (C02) na atmosfera. Essa diminuição, cuidadosamente documentada em bolhas de ar presas no gelo antártico, inibiu sua fotossíntese
e reduziu sua produção. Em conseqüência, quaisquer práticas de cultivo iniciadas durante o Natufiano Inicial - capinai, transplantar, regar, controlar pragas - podem
ter-se então tornado essenciais para garantir comida suficiente. E isso pode ter criado as primeiras cepas domesticadas.
Parece que foi o que ocorreu em Abu Hureyra pouco antes do seu abandono. Quando Gordon Hillman estudou os grãos de cereais no sítio, descobriu alguns grãos de
centeio de plantas que tinham passado pela transição para formas domésticas. Ao serem datadas, mostrou-se que se situavam entre 11.000 e 10.500 a.C. - os mais antigos
grãos de cereal de qualquer parte do mundo. Junto com esses grãos, Hillman encontrou sementes dos matos que brotavam tipicamente em solo cultivado. E assim, parece
que, à medida que a disponibilidade de plantas selvagens declinava devido à instalação do Jovem Dryas, as pessoas de Abu Hureyra passaram a investir um volume cada
vez maior de tempo e trabalho em cuidar do centeio selvagem, e ao fazerem isso transformaram-no sem querer numa safra doméstica. Mas mesmo isso não pôde sustentar
a aldeia - foi abandonada, quando as pessoas se viram obrigadas a retornar um estilo de vida móvel, talvez carregando bolsas de grão de cereais. O centeio domesticado
de Abu Hureyra voltou ao estado selvagem.
Como seu maior interesse no cultivo, os natufianos tardios vagaram das matas esgotadas onde antes seus antepassados tinham prosperado. Foram atraídos para os solos
aluviais dos vales, não apenas os do rio Jordão, mas também os encontrados junto a grandes rios da planície mesopotâmia, e na proximidade de lagos e rios por todo
o Oriente Próximo. Grandes extensões desses solos ricos e férteis tornaram-se disponíveis quando os rios e lagos encolheram de tamanho durante o Jovem Dryas. Cereais
selvagens, mas cultivados, davam bem nesse solo, sobretudo quando perto de nascentes, poços e regatos que sobreviviam nas condições áridas.
Os poucos grãos de centeio de Abu Hureyra são o único indício existente de que tal cultivo no Natufiano Tardio criou um tipo domesticado de cereal - um tipo "que
esperava pelo colhedor". É possível que trigo, cevada, legumes e linho fossem igualmente transformados pelas técnicas de plantio e colheita empregadas durante o
árido Jovem Dryas. A verdade é que no momento simplesmente não sabemos exatamente quando ou onde apareceram as primeiras cepas domesticadas, ou se elas evoluíram
apenas uma para cada espécie, ou independentemente ou em grupos. Um estudo pioneiro em 1997 comparou a genética do trigo selvagem de campos sobreviventes no Crescente
Fértil com a de trigo domesticado moderno e afirmou que as colinas do sudeste da Turquia, conhecidas como Karacadag, são o provável local da domesticação - cerca
de 200 quilômetros ao norte de Abu Hureyra - embora isso precise de posterior confirmação. Veremos em breve que um notável sítio arqueológico se encontra nas proximidades
dessas colinas.
Pode ter levado outros mil anos ou mais para que aparecessem o trigo, cevada e legumes domésticos - possivelmente isso só aconteceu quando novas aldeias e mesmo
cidades já haviam sido estabelecidas. Mas meu palpite é que em algum ponto do Crescente Fértil, em alguma época durante o Jovem Dryas, um ou mais bandos de caçadores-coletores-cult
ivadores começaram a andar com novos tipos de sementes. Eles podem ter notado que suas safras teriam se tornado muito melhores, mas com certeza não sabiam que aquelas
sementes eram dinamite cultural. E o curto pavio delas começou a arder quando o Jovem Dryas chegou ao seu dramático fim.
Em 9.600 a.C., as temperaturas subiram 7°C em menos de uma década. Foi uma fenomenal e tumultuada mudança de clima. Há um súbito aumento na quantidade de pólen de
árvores nos sedimentos do núcleo de Hula, embora a mata jamais voltasse à densidade e exuberância gozada pelas pessoas do Natufiano Inicial de 12.500 a.C.
O impacto sobre as pessoas do Natufiano Tardio foi sentido dentro de uma geração. Localidades que não tinham podido sustentar mais que um acampamento sazonal ofereciam
a possibilidade de um lar permanente. Mais uma vez, abundavam as plantas comestíveis selvagens, seguidas de perto por crescentes populações animais. Regatos e rios
corriam com renovado vigor; lagos retomaram os solos que por tanto tempo tinham abandonado. Os cereais selvagens beneficiaram-se do maior CO2 na atmosfera.
Os segredos do cultivo, que não tinham proporcionado mais que magros suplementos à dieta de alimentos selvagens durante a seca do Jovem Dryas, agora produziam
abundantes quantidades de grão, ervilha, lentilha. Assim surgiu a oportunidade para que se empreendesse de novo o experimento de vida de aldeia do Natufiano Tardio
- um experimento talvez lembrado pelas histórias passadas de geração a geração, um estilo de vida quase mítico que podia tornar-se realidade mais uma vez. A oportunidade
foi agarrada - e desta vez realmente não tinha retorno.
Para os natufianos iniciais, a chave da vida em aldeia fora a gazela, os produtos do carvalho, amêndoa e pistacho, e a riqueza de plantas comestíveis colhidas
do mato baixo da mata e da estepe florestal. Quando chegou a salvação do Jovem Dryas em 9.600 a.C., a chave era um ambiente inteiramente diferente: foi nos solos
de vales aluviais que a nova fase da história humana começou. Os arqueólogos chamam-na de Neolítico - a Nova Idade da Pedra.

7
A Fundação de Jericó
Arquitetura neolítica, enterro e tecnologia do vale do Jordão,
9.600 - 8.500 a.C.
John Lubbock está parado na sombra da noite das colinas palestinas, olhando um grupo de pequenas moradas redondas no vale embaixo. Possuem telhados planos de palha
e se misturam com abrigos de palha, não diferentes dos que ele viu em Ohalo em 20.000 a.C. Mas as casas agora são completamente novas. Salgueiros, choupos e figueiras
cercam a aldeia, evidentemente alimentados por uma nascente local e crescendo exuberantes no novo mundo emente e úmido do Holoceno. Mais adiante, pântanos chegam
até a beira do lago Lissan - conhecido hoje como mar Morto.
Muitas árvores foram derrubadas para fornecer material de construção e criar pequenos campos para cevada e trigo. Se essas safras são biologicamente domésticas
ou selvagens, parece inteiramente sem importância, uma vez que com certeza chegou o novo mundo da agricultura. A data é 9.600 a.C. e John Lubbock olha para Jericó,
aldeia que assinala uma virada na história do oeste asiático.
Minha primeira visão de Tell es-Sultan, a antiga Jericó, foi igualmente impressionante, mas menos pitoresca. Também eu fiquei parado à sombra das colinas palestinas,
cerca de meio quilômetro a oeste do que se tornara um grande monte constituído por vários milênios de construções desmoronadas e detritos humanos, erodidos pelo
sol, pelo vento e pela chuva. Muito a leste, faixas de brilhantes amarelos e deslumbrantes brancos do vale do Jordão ainda ardiam ao sol; imediatamente abaixo de
mim, os prédios de blocos cinza-opaco da cidade palestina que hoje cerca o antigo sítio. Mas ali, no centro de minha visão, estava Tell es-Sultan, famosa como a
"mais antiga cidade do mundo". Parecia uma pedreira antiga, ou mesmo uma zona de bombardeio.
Isso, claro, era culpa da minha profissão - os arqueólogos que começaram a cavar o monte em 1867. Poucos anos depois, o Capitão Charles Warren fora procurar as
muralhas derrubadas pelas trombetas de Josué e seus israelitas, acreditando que Tell es-Sultan era a antiga Jericó bíblica. Uma equipe de estudiosos alemães o seguiu
entre 1908 e 1911, e depois John Garstang, da Universidade de Liverpool, na década de 1930. Mas foram as grandes escavações de Kathleen Kenyon, entre 1952 e 1958,
que revelaram ao mundo a antiga Jericó.
Kathleen escreveu que "o oásis está quase como imaginamos o Jardim do Éden". As verdes árvores e a Terra agrícola arável que cercavam a Jericó para a qual eu olhava
espalhavam-se por muitos quilômetros além do belo oásis que Kathleen vira. Irrigação moderna hoje leva água de Ain es-Sultan - a nascente que deu origem à aldeia
- a campos distantes no vale. Assim, usei a imaginação para abater aquelas árvores distantes e plantei muito mais palmeiras em torno do monte. Demoli as construções
de concreto e blocos pré-moldados e plantei campos de maiz no lugar. Depois armei um conjunto de tendas brancas que Kathleen usara no pé do monte. Uma vez erigidas,
eu via um rio de trabalhadores deixando o monte ao fim do dia de trabalho, os arqueólogos e estudantes instalando-se para o chá, antes de começar a classificar as
descobertas.
Esse foi o dia em que eles tiveram a primeira sugestão da mais antiga construção dentro do monturo. A cidade da Era do Bronze e a de prédios retangulares do Neolítico
Tardio já eram bem conhecidas. Mas nesse dia, que eu sabia ter sido em algum momento em 1956, "ficou claro", Kathleen escreveria depois, "que estávamos penetrando
numa diferente fase abaixo... os pisos eram de terra, não de gesso... as paredes eram curvas e as plantas das casas pareciam ser redondas".
Sabemos que grupos de pessoas natufianas acamparam junto à nascente, porque ali se encontraram espalhados seus instrumentos em forma de meia-lua. Com toda probabilidade
plantaram cereais, ervilhas, lentilhas, e conseguiram uma magra colheita antes de partirem para viver em outra parte no vale ou nas colinas.
Por volta de 9.600 a.C., as secas de verão chegaram ao fim. Novas chuvas alimentaram os rios que se precipitaram pelas colinas palestinas; o Jordão começou a inchar.
Grossas camadas de fértil solo foram depositadas em todo o vale do rio por novas enchentes anuais, e aguadas pela nascente que jorrava com recém-descoberto vigor.
As safras cultivadas floresceram, muito provavelmente substituindo as plantas selvagens não cuidadas como principais fornecedoras de alimentos. Os natufianos tardios
estenderam a duração de sua estada, até que a história se repetiu e a vida sedentária da aldeia renasceu longe das matas mediterrâneas preferidas pelos natufianos
iniciais. E assim foi fundada Jericó, e com ela sua gente se tornou camponesa.
As pessoas continuaram a viver em Jericó até hoje. A primeira aldeia foi sepultada sob casas, armazéns e santuários construídos por sucessivas gerações, as que
usaram cerâmica, bronze, e depois entraram nos anais da história do Velho Testamento. E assim um gigantesco monturo foi criado pela nascente de Ain es-Sultan, de
250 metros de comprimento e mais de 10 de altura. Consistia de paredes de adobe desmoronadas e camada sobre camada de pisos de casas e lixeiras; mas, além de detritos
humanos, o monturo continha os bens perdidos e os túmulos ocultos de 10 mil anos de história humana.

Kathleen Kenyon (1906-1978) chegou a Jericó querendo aplicar o que para ela eram técnicas moderníssimas de escavação. Como Dorothy Garrod, que descobrira o natufiano,
Kathleen foi uma das grandes arqueólogas britânicas do século XX. As duas venceram no que era em essência um mundo masculino, a primeira estudando em Oxford na década
de 1920 e depois dirigindo escavações na Inglaterra e na África. Atuou como diretora do Instituto de Arqueologia do University College, em Londres, durante a guerra,
e acabou por tornar-se diretora do St. Hugh's College, em Oxford. Recebeu muitas honrarias, que culminaram com a concessão do título de Dama do Império Britânico
em 1973.
Seu objetivo em 1952 era explorar mais as fases finais da antiga cidade, aquelas relacionadas com a história bíblica, e descobrir os primeiros restos, que julgava
mais importantes e merecedores de "completa exploração". Tinha toda razão. Isso se tornou evidente para o mundo em 1957, quando ela publicou uma história popular
de seu trabalho, Digging Up Jericho [Desenterrando Jericó]. Os acadêmicos, porém, tiveram de esperar até o início da década de 1980 para que saíssem os volumes adequadamente
enormes descrevendo a arquitetura, a cerâmica e a seqüência-chave de camadas dentro do monte. Infelizmente, Kathleen havia morrido alguns anos antes de sua publicação.
John Lubbock está agora dentro da aldeia, ajudando a construir uma casa de adobe. Há muita obra de construção em andamento, pois os abrigos de sapé são aos poucos
substituídos por construções mais perenes. Com as certas chuvas de verão, safras produtivas e abundante caça selvagem dentro do vale, o povo de Jericó não precisa
partir. Sempre que eles preferem passar várias semanas ou meses fora, visitando amigos e parentes ou cm longas expedições de caça ou comércio, sabem que voltarão
a Jericó. E assim estão dispostos a investir tempo e energia na construção de casas de adobe c abrir campos. Uma vez construídas umas poucas casas, Jericó atraiu
novos moradores dispostos a deixar seus grupos de caçadores-coletores e juntar-se ao novo estilo de vida de cultivar safras.
Lubbock passou essa manhã cavando barro do fundo do vale e carregando-o num trenó de madeira para a aldeia; ali, o barro é misturado com palha e cortado em tijolos
oblongos que são deixados a secar ao sol. Serão unidos com uma argamassa de lama para fazer as paredes das moradas redondas, cada uma com cerca de 5 metros de diâmetro
e pisos rebaixados. As paredes superiores serão feitas de varas e galhos, o piso de junco besuntado de barro.
Nessa noite, depois de se banhar na fonte, Lubbock anda pela aldeia e conta nada menos que cinqüenta moradas - algumas dispostas em torno de pátios para uso de
grandes famílias, outras sós ou em grupos isolados. Há fogueiras dentro e fora, e um denso véu de fumaça paira entre os becos. As pessoas sentam-se em pátios, algumas
trançando tapetes e cestos, outras trocando noticias e fazendo planos para o dia seguinte. Em 9.600 a.C., provavelmente quinhentas pessoas moram em Jericó -talvez
a primeira vez na história humana em que uma população completamente viável viveu no mesmo lugar ao mesmo tempo
Dentro de 500 anos, Jericó já se tornara ainda maior, com mais de setenta mora dias, talvez com uma população de mil habitantes. Uma parte bem maior da mala em redor
foi aberta e grandes áreas se achavam em cultivo. Muitas das moradias originais já haviam desabado ou sido deliberadamente derrubadas para construírem-se outras
sobre suas ruínas. Mas a diferença mais impressionante em relação à aldeia era que seu lado oeste, de frente para as colinas palestinas, fora fechado por uma enorme
muralha de pedra e erguera-se uma grande torre circular do lado de dentro.
Kathleen Kenyon descobriu essas construções durante suas escavações em 1956. Parece improvável que a muralha, de 3,6 metros de altura e 1,8 de largura na base,
tenha cercado toda a cidade, pois nenhum vestígio dela se encontrou no lado leste. Dentro desse muro ela descobriu os restos da torre, de 8 metros de altura e 9
de diâmetro na base, com um peso estimado de mil toneladas. Uma escada interna, com 22 degraus de pedra, conduzia ao topo. Tal arquitetura era inteiramente sem precedentes
na história humana, e é a mais notável das descobertas de Kathleen - seriam necessários pelo menos 100 homens, trabalhando durante 100 dias, para construir a muralha
e a torre. Como ela própria sugeriu, "em concepção e construção, essa torre não faria vergonha diante de um dos mais grandiosos castelos medievais". A muralha e
a torre permanecem inteiramente únicos para esse período.
Kathleen supôs que foram construídos para defender a cidade de ataque, uma conclusão aparentemente incontestável, em vista das ligações bíblicas de Jericó. Só
em 1986 Ofer Bar-Yosef fez algumas perguntas óbvias: quem eram os inimigos de Jericó? Por que a muralha não foi reconstruída depois de ser sepultada por detritos
de casas após não mais que 200 anos? Por que não há outros locais fortificados da mesma data no oeste asiático?
Bar-Yosef concluiu que as muralhas eram para defesa, mas não contra um exército invasor- o inimigo era a água e a lama das enchentes. Jericó vivia em perpétuo
perigo quando a chuva aumentava e o desflorestamento desestabilizava sedimentos nas colinas palestinas, que podiam então ser carregados para a borda da aldeia pelos
wadis próximos. Quando o lixo da aldeia sepultou as muralhas, o nível de assentamento já tinha literalmente se elevado pelo acúmulo de casas desmoronadas e lixo
humano. Isso afastou as ameaças da água e lama das enchentes. Simplesmente não se precisava mais de uma muralha.
Ofer Bar-Yosef descartou a idéia de que a torre se destinava a fortificação. Ficou impressionado com sua ótima conservação, e sugeriu que isso pode ter sido ajudado
pela presença de uma plataforma de adobe em cima da construção de pedra. A própria Kathleen encontrou, ligadas ao lado norte da muralha, vestígios de construções
que julgou que poderiam ter sido usadas para armazenar grãos. Em vista disso, Bar-Yosef sugeriu que a torre era de propriedade pública ou estava a serviço da comunidade,
talvez como um centro de cerimônias anuais. Não parece provável que algum dia se encontre uma resposta definitiva - embora mais escavações nas vizinhanças da torre
certamente ajudassem. O que é claro é que, com a construção da muralha e da torre, as pessoas criavam arquitetura e atividade comunal em escala inteiramente nova.
Começara uma nova fase da história humana.
Em fins da década de 1950, assentamentos de aldeias semelhantes na Europa - embora muito mais novos em idade -já haviam sido descritos como neolíticos. Na década
de 1920, Gordon Childe, o principal arqueólogo do período pré-guerra, cunhara a expressão "Revolução Neolítica" para referir-se ao súbito aparecimento de assentamentos
do que, ele acreditava, refletia uma completa mudança de maré no estilo de vida. Isso não apenas envolvia agricultura, mas arquitetura, cerâmica e machados de pedra
polida. Childe pensa que isso formava um "pacote neolítico", sempre adquirido como um todo único, indivisível.
Kathleen Kenyon descobriu que ele estava errado. Embora as casas, túmulos e estilo de vida deles em geral se encaixassem bem no molde neolítico, os primeiros aldeões
em Jericó não dispunham de um dos elementos cruciais do pacote neolítico: a cerâmica. As poucas tigelas, vasos, pratos ou copos que sobreviveram eram feitos de pedra;
é provável que muitos mais tenham sido feitos de madeira ou fibras vegetais. E assim Kathleen cunhou um novo termo para a cultura inicial de Jericó: o Neolítico
Pré-Cerâmica (PPN na sigla em inglês). Na verdade, designou a primeira aldeia em Jericó como pertencente ao "Neolítico Pré-Cerâmica A" - um período que hoje se sabe
não durou mais de mil anos após o início do Holoceno.
Aqueles que viveram na aldeia "PPNA" de Jerico, viveram literalmente com os mortos. Kathleen descobriu nada menos que 276 túmulos, embora escavasse apenas 10%
do assentamento. Estavam todos associados às construções, de uma forma ou de outra; ficavam embaixo do piso, sob a estrutura das casas, entre paredes e dentro da
torre. Continuava a tradição-chave de enterro do Natufiano Tardio: as pessoas tendiam mais a ser enterradas sós que em grupos; muito poucos artefatos, quando tinha
algum, eram enterrados com os mortos.
Após os enterros, e muito provavelmente quando toda a carne já se havia decomposto, cavavam-se freqüentemente covas para tirar os crânios, muitos dos quais eram
depois reenterrados em outro lugar dentro da aldeia. Uma coleção de cinco crânios de bebês foi colocada dentro de uma cova abaixo do que Kathleen julgava fosse um
altar. Mas a maioria das crianças e bebês, que representavam 40% dos enterros, foi deixada intacta - eram principalmente os crânios dos adultos os removidos para
exposição e eventual reenterro.
Por que havia tal interesse pelos crânios? Era um interesse que se tornaria muitíssimo elaborado à medida que a aldeia de Jericó se tornava uma cidadezinha, levando
à cobertura dos crânios com máscaras de gesso e olhos de conchas de caurim. Kathleen pensou que houvera um culto aos ancestrais e estabeleceu uma comparação com
o povo do rio Sepik na Nova Guiné, que em tempos recentes usava os crânios de venerados ancestrais em seus rituais. Mas jamais vamos saber exatamente por que as
pessoas de Jericó - e na verdade de todo o oeste asiático e além - exumavam e reenterravam crânios humanos, talvez após um período de exposição.
Como acontecia com essas práticas funerárias, os instrumentos usados pelos aldeões de Jericó eram muito semelhantes aos do Natufiano Tardio, embora tenham algumas
grandes inovações tecnológicas. A mais impressionante foi o uso de adobe para construção - trabalho de muita mão-de-obra que demonstrava o compromisso com a vida
da aldeia. Contudo, muitos dos artefatos de pedra continuaram em grande parte sem mudança. Ainda se faziam microlitos, assim como uma gama de lâminas, raspadores
e foices. Machados e enxós de pedra, o que não surpreende, foram encontrados em número muito maior que antes. Eram usados para derrubar a vegetação para os campos.
Esse desmatamento pode ter contribuído para a erosão do solo, aumentando a necessidade de uma muralha defensiva. Um artigo, porém, merece especial atenção: um novo
tipo de ponta de flecha, conhecida pelos arqueólogos como ponta "el-Khiam". Era de forma triangular, com duas ranhuras laterais usadas para prender ao cabo, e batizada
com o nome do sítio onde foram descobertos os primeiros espécimes.
Assim como os microlitos geométricos e lunares tinham vindo e passado de moda, o mesmo aconteceu com as pontas el-Khiam. Elas atingiram o auge da popularidade
por volta de 9.000 a.C, quando aparecem quase simultaneamente em todas as regiões ocidentais e centrais do Crescente Fértil. Como tal, não esta claro onde se originou
o novo desenho, ou por que se tornou tão largamente adotado por toda essa vasta região. Muitas têm desenho aerodinâmico, e bem podem ter levado a uma substancial
melhora na eficiência da caça. Mas nova pesquisa, empregando estudo microscópico, mostrou que um grande número dessas pontas foi usado mais como sovelas e puas que
como pontas de projéteis, como se supunha tradicionalmente.
As gazelas continuaram a ser o alvo principal dos caçadores. Mas com a disseminação da mata, passou-se a ter uma gama maior de animais como presa - daí os ossos
de gamos e javalis junto aos das gazelas e íbis dentro dos monturos de Jericó. Raposas e pássaros, sobretudo aves de rapina, também se tornaram predominantes. É
improvável que tenham sido caçados como comida: pele de raposa, garras, elegantes penas de asas e caudas podem ter sido artigos cruciais de adorno do corpo. Podem
ter feito parte das redes de comércio que se desenvolvia rapidamente no vale do Jordão e além. Pois Jericó não estava sozinha nesse novo mundo neolítico.


8
Pictogramas e Colunas
Ideologia, simbolismo e comércio neolíticos,
9.600 - 8.500 a.C.
Jericó foi a primeira das aldeias neolíticas do "PPNA" a ser descoberta, e continua sendo a mais famosa. Mas sua posição de destaque há tanto tempo mantida, como
constituindo a origem do Neolítico e de um estilo de vida agrícola, foi seriamente contestada nos últimos anos por novas descobertas no vale do Jordão e nos limites
norte do Crescente Fértil, que proporcionaram intuições novas e inteiramente surpreendentes da religião neolítica.
Na década de 1980, descobriram-se e escavaram-se várias aldeias do PPNA na região da margem Ocidental do vale do Jordão, mais notadamente Netiv Hagdud e Gilgal.
Ficavam a não mais de 20 quilômetros de Jericó e eram muito menores em tamanho, facilmente imagináveis como aldeolas nas vizinhanças daquela próspera aldeia. Como
esses assentamentos não viraram tells pelo acúmulo e colapso de construções de adobe pré-históricas posteriores, as escavações puderam revelar áreas maiores das
mais antigas moradas do Neolítico do que foi possível em Jericó. Essas escavações trouxeram mais clareza e detalhes aos tipos de arquitetura, túmulos e práticas
econômicas do que Kathleen Kenyon tinha descoberto. E assim essa região da margem Ocidental, mais que a própria Jericó, ficou caracterizada como a origem e centro
do mundo neolítico.
Em fins da década de 1990, também se começou a descobrir e escavar sítios neolíticos do PPNA no lado oriental do vale, ao sul do mar Morto, na moderna Jordânia.
Eles mostraram que o Neolítico Inicial floresceu numa área mais extensa do que se supunha antes. Zad, atualmente escavada por Phillip Edwards, da Universidade La
Trobe, em Melbourne, Austrália, tem uma arquitetura sobretudo impressionante, pois as paredes das construções em forma de ferradura foram construídas com pedra.
A não mais de 2 quilômetros de Zad, o sítio de Dhra está em escavação por Bill Finlayson, diretor do Conselho de Pesquisa Britânica no Levante, e Ian Kuijt, da Universidade
Notre-Dame, de Indiana, EUA. Eles descobriram uma construção circular de paredes de barro particularmente impressionante, com colunas internas que podem ter sustentado
um piso de macieira.
Setenta e cinco quilômetros a sul, fica minha própria escavação em andamento, feita em conjunto com Bill Finlayson no sítio WF16 - o décimo sexto descoberto numa
pesquisa de Wadi Faynan, no sul da Jordânia. Quando descobrimos esse sítio em 1996, um importante arqueólogo me sugeriu que pouca coisa relevante seria encontrada,
pois o WF se situa muito longe de Jericó. Mas nossas escavações revelaram um dos mais bem preservados poços de pisos e detritos do PPNA, uma mistura de estilos arquitetônicos
e uma rica variedade de túmulos, artefatos e objetos de arte: o mais antigo neolítico evidentemente florescera nos limites sul e no lado oriental do vale do Jordão.
Todas essas escavações, de Netiv Hagdud ao WF16, confirmaram o caráter da cultura PPNA que Kathleen Kenyon identificou primeiro em Jericó: pequenas moradas circulares,
túmulos sob os pisos, rituais associados a crânios, dependência da caça e do cultivo de cereais selvagens ou talvez domesticados junto com uma diversa gama de plantas.
Não há dúvida de que Jericó continua sendo o maior assentamento neolítico do PPNA - não se descobriu em outra parte nada comparável à sua torre e muralha. Mas está
claro que não mais podemos identificar esse sítio com a origem do próprio neolítico. Isso se tornou mais evidente à luz de escavações nos limites norte do Crescente
Fértil. Elas sugerem que o vale do Jordão como um todo pode ter sido inteiramente periférico em relação aos fatos econômicos e sociais que criaram o mundo neolítico.
Quinhentos quilômetros ao norte de Jericó, fica o sítio de Mureybet - ou melhor, ficava, porque foi inundado pela criação do lago Assad para a Represa de Tabaka,
o mesmo destino que coube a Abu Hureyra. Os dois sítios foram descobertos com menos de 50 quilômetros de distância um do outro em lados opostos do Eufrates. Parece
provável que os que abandonaram Abu Hureyra simplesmente cruzaram o rio e iniciaram uma nova aldeia em Mureybet. Esse assentamento ocorreu durante o Natufiano Tardio,
e a nova aldeia se desenvolveu e virou um tell como o de Jericó, constituído por casas desmoronadas e detritos humanos de vários milênios de ocupação.
Escavações feitas em 1971 por Jacques Cauvin identificaram níveis do Neolítico Inicial contemporâneos da primeira aldeia em Jericó. Mas a arquitetura de Mureybet
fora mais complexa, com moradas interligadas consistindo de vários aposentos. Cauvin as reconstrói como semi-subterrâneas, com mourões centrais internos sustentando
caibros de madeira, que se irradiavam e repousavam sobre as paredes em volta. As moradias tinham áreas elevadas, provavelmente usadas para dormir, mós instaladas
no chão e áreas de armazenamento para grãos.
Embora a gama de artefatos de pedra seja semelhante à dos sítios do vale do Jordão, Cauvin descobriu um emprego muito maior de barro cozido do que se descobrira
em outros lugares, e do qual fora usada parte para se fazer pequenas tigelas, que não poderiam tecnicamente ser descritas como cerâmica por não terem material de
tempera como osso, pedra ou pedra triturada para impedir o barro de rachar-se no forno. Mas as tigelas foram endurecidas no fogo, e esse foi talvez o primeiro passo
para a produção de cerâmica no oeste asiático.
Também se usara barro para moldar estatuetas femininas, que também eram esculpidas em pedra. Embora fossem de caráter esquemático, com braços diminutos e sem detalhes
faciais, eram mais realistas que as formas humanas quase completamente abstratas encontradas em Netiv Hagdud. Com base nessas estatuetas, Cauvin sugeriu que existira
um culto da "deusa mãe" não apenas em Mureybet, mas em todo o mundo neolítico. A essa divindade se juntara - segundo Cauvin - uma outra: o touro. Embora não se encontrasse
nenhuma estatueta ou desenho de touro em Mureybet, ele escavou crânios e chifres de gado selvagem enterrados sob pisos e dentro de suas paredes.
Como todos os restos de plantas e animais do sítio eram de espécies selvagens, Cauvin afirmou que o novo culto do Neolítico a tais divindades precedia e, por algum
meio não declarado, provocou o desenvolvimento da agricultura. Poucos arqueólogos hoje endossam a idéia de uma "deusa mãe neolítica", mas a opinião de que a mudança
ideológica veio antes da econômica encontrou sustentação em dois outros sítios neolíticos, Jerf el Ahmar e Göbekli Tepe.
Jerf el Ahmar fica 120 quilômetros ao norte de Mureybet e é outro sítio hoje embaixo de um lago artificial. Danielle Stordeur, da Universidade de Lyon, França,
escavou o sítio entre 1995 e 1999, como uma operação de resgate, imediatamente antes da inundação. Suas primeiras fases são também contemporâneas da primeira aldeia
em Jericó. São visíveis as semelhanças arquitetônicas entre as construções de Jerf el Ahmar e as de Mureybet e do vale do Jordão. Mas, uma vez mais, a arquitetura
é notadamente complexa e duas construções são sobretudo impressionantes.
Uma localizava-se no centro da aldeia, e parece ter sido usada para armazenagem comunitária de grãos de cereais de safras selvagens, mas cultivadas. Dividia-se
em seis pequenos aposentos em torno de uma área central com dois bancos, e estava extraordinariamente bem preservada, as paredes em pé, de mais de 1 metro de altura.
Essa construção pode sugerir uma comunidade muitíssimo cooperativa e que partilhava tudo. Por outro lado, pode-se adotar uma visão mais sombria e imaginar que o
armazenamento centralizado de grãos permitiu a um indivíduo ou família adquirir poder controlando sua distribuição à comunidade. O uso final desse prédio parece
ter sido para um ato ritual: sob os detritos do telhado desabado encontrou-se um esqueleto humano esparramado no chão. Faltava apenas o crânio - o corpo fora decapitado.
Que o ritual e a ideologia desempenhavam papéis de destaque na vida dos habitantes de Jerf el Ahmar, é evidente por outra construção. Esta era pequena e redonda,
e fora deliberadamente incendiada. Em seu piso, Danielle encontrou quatro grandes crânios de gado selvagem, que tinham sido um dia pendurados das paredes, oferecendo
outro indício de que esses animais tinham tido significado religioso. Esse aposento em Jerf el Ahmar lembra outro no assentamento de Hallan Çemi Tepesi, no Jovem
Dryas - 300 quilômetros a noroeste, nas montanhas Zagros - onde o crânio de um boi selvagem também fora pendurado na parede.
A arquitetura de Jerf el Ahmar é apenas um dos aspectos da importância do sítio. Ele também oferece vários depósitos rituais intrigantes, como crânios humanos
colocados num poço de cremação e depois lacrado com uma camada de pilhas. As obras de arte de Jerf el Ahmar também são notáveis, incluindo vasos de pedra com decoração
geométrica de intricada escultura e estatuetas de pedra de aves de rapina. Mas talvez a descoberta mais importante tenham sido quatro plaquetas de pedra, cada uma
com cerca de 6 centímetros de comprimento e com signos gravados que parecem pictogramas: cobras, aves de rapina, animais quadrúpedes, insetos e símbolos abstratos.
Se esses sinais não tivessem sido descobertos no sítio do Neolítico Inicial 6 milênios antes da invenção da escrita, não hesitaríamos em descrevê-los como um código
simbólico - hieróglifos neolíticos. Danielle Stordeur sugeriu que pareciam "evocar algum tipo de registro" e "conter uma mensagem". Exatamente o que era tal mensagem,
permanecerá desconhecido até decifrarmos esse código neolítico. Para isso, precisaremos de muito mais exemplos de pictogramas, mas como Jerf el Ahmar se acha agora
sob um lago, eles terão de ser descobertos em outra parte.
Os exemplos mais próximos dos pictogramas de Jerf el Ahmar que vi estavam gravados em colunas de pedra num sítio 100 quilômetros mais ao norte. Este não corre o
risco de ser inundado, pois se acha no cume de uma colina de calcário no sudeste da Turquia. É conhecido hoje como Göbekli Tepe. As escavações desde 1994 deixaram
pasmo o mundo arqueológico, e deram mais ânimo aos que desejam pôr Jericó e o vale do Jordão na periferia das origens neolíticas.
Göbekli Tepe foi localizado pela primeira vez na década de 1960, quando uma pesquisa naquela região feita pelas Universidades de Istambul e Chicago registrou "um
complexo de morrotes de terra vermelha" no cume de uma colina de calcário fora isso estéril. Registraram-se uma densa área de artefatos de sílex e um grande número
de lajes de calcário. Supôs-se que estas eram restos de um cemitério, provavelmente de data bizantina, o que combinava com alguns cacos de cerâmica medieval encontrados
pela pesquisa. Mas não se fizeram outros comentários sobre a muito alta densidade de artefatos de sílex. Na década de 1960, a idéia de um sítio do Neolítico Inicial
empoleirado numa colina era simplesmente inconcebível.
O sítio foi ignorado ou esquecido durante 30 anos, até Klaus Schmidt, do Instituto Arqueológico de Istambul, subir a colina em 1994. Ele reconheceu imediatamente
os artefatos de sílex como neolíticos e desconfiou de que as lajes de calcário eram restos de arquitetura contemporânea. As escavações continuaram desde então, revelando
um sítio neolítico espetacular e verdadeiramente único. Quando Klaus me mostrou a área numa tarde de outubro, ao fim de sua temporada de escavação de 2002, eu me
senti completamente esmagado pelo que ele descobrira e a grandeza do cenário.
Muito pouco depois de 9.600 a.C., ao mesmo tempo em que se construíam as primeiras moradias circulares de Jericó, as pessoas tinham ido a Göbekli e talhado enormes
Colunas "em forma de T" da pedra calcária. Muitas tinham 8 metros de altura e pesavam 7 toneladas. Estas se erguiam dentro de construções circulares afundadas na
colina para criar o que pareciam porões na terra. Colocavam-se duas colunas de pedra no centro de cada construção e até oito outras regularmente espaçadas em torno
da sua borda, entre as quais se haviam construído bancos. As faces de muitas colunas haviam sido esculpidas e mostravam animais - cobras, raposas, javalis, gado
selvagem, gazelas e cegonhas -junto com sinais enigmáticos como os pictogramas de Jerf el Ahmar. Na face de uma coluna fora esculpido um braço humano, e as próprias
colunas pareciam imensos torsos humanos.
Quatro construções adjacentes desse tipo tinham sido reveladas quando fiz minha visita, e simplesmente me tiraram o fôlego. Schmidt suspeita que há várias outras
ainda profundamente enterradas abaixo da superfície da colina. Quando o sítio foi abandonado, as pessoas do Neolítico Inicial deliberadamente enterraram suas construções
e colunas rituais sob várias toneladas de terra.
O tempo e trabalho envolvidos em extrair a pedra, esculpir, transportar e erguer tais colunas por pessoas equipadas com não mais que instrumentos de sílex é estonteante.
E mesmo as colunas de 7 toneladas não tinham satisfeito inteiramente as necessidades delas. Quando Klaus me mostrou as pedreiras localizadas a 100 metros das construções,
apontou uma coluna "em forma de T" inacabada ainda em parte presa à rocha - se retirada, teria tido não menos de 15 metros de comprimento e 50 toneladas de peso.
Não surpreendentemente, nossos pés pisavam um denso tapete de lascas de sílex dos instrumentos usados para esculpir a pedra. Estes eram feitos de muitos milhares
de nódulos de sílex levado para cima da colina de uma fonte a vários quilômetros de distância.
Todo esse trabalho fora feito por pessoas que dependiam inteiramente de caça e plantas selvagens como alimento. Embora as escavações tenham produzido vários restos
de ossos de animais e plantas, nem um único destes é de uma espécie domesticada. As pessoas de Göbekli caçavam gazelas, gado selvagem e javalis; sabemos que colhiam
amêndoas, pistacho e cereais selvagens, e desconfio que as "hortas selvagens" em torno de Göbekli teriam facilmente produzido pelo menos tantas plantas comestíveis
quanto as identificadas em Abu Hureyra, 200 quilômetros ao sul. Mas embora os restos dessas comidas fossem jogadas fora no monturo, não há vestígios de quaisquer
moradias - casas, lareiras ou poços.
Schmidt conclui que Göbekli foi um centro ritual, que ele descreve como santuário da montanha, e conseqüentemente único entre todos os sítios neolíticos no oeste
asiático. Ele acredita que era um lugar de reunião de muitos grupos diferentes que viviam num raio de 100 quilômetros da colina, ou talvez mais longe ainda. Reuniam-se
em Göbekli uma ou duas vezes por ano para fins de natureza inteiramente religiosa. É muito provável que essas reuniões envolvessem pessoas de Jerf el Ahmar. Além
das semelhanças na escolha de signos abstratos e a gama de animais desenhados, os dois sítios partilham características arquitetônicas, em especial o uso de construções
circulares com bancos.
O que, exatamente, significam o animal e as imagens simbólicas, e que tipo de atividades rituais tinham lugar em Göbekli, não é provável que venhamos a descobrir.
As imagens podem ter sido totens de clãs ou representações de deuses neolíticos - mas não houve "deusas mães" em Göbekli. Todos os animais são machos, e há uma escultura
em calcário, do sítio, de uma figura humana com o pênis ereto. Na verdade, em vez de idéias de fertilidade e reprodução integrais, os temas religiosos que surgem
tanto de Jerf el Ahmar e Göbekli são sobre medo ( o perigo do agreste. Ainda assim, a idéia de Cauvin, de que a mudança ideológica precedeu os fatos econômicos que
criaram comunidades agrícolas ganhou maior apoio. Infelizmente, ele morreu após uma longa doença em 2001 e jamais chegou a ver as colunas de Göbekli Tepe.
Que a ideologia por trás das imagens e colunas pode ter desempenhado um papel na criação da agricultura me ocorreu quando Klaus me apontou umas colinas pequenas
não menos de 30 quilômetros do outro lado da planície abaixo de Göbekli. Ele observou casualmente que eram as Karacadag.
Em 1997, o trigo selvagem que ainda dava nas Karacadag foi identificado como o mais próximo parente genético conhecido do moderno trigo doméstico. A necessidade
de conseguir comida suficiente para os que haviam trabalhado e colhido para as cerimônias em Göbekli - talvez várias centenas pode ter levado ao cultivo intenso
de cereais selvagens que criou as primeiras cepas domésticas. Nesse aspecto, a domesticação do trigo pode bem pouco ler tido a ver com pessoas lutando contra as
condições severas do Jovem Dryas. Pode ter sido apenas um produto lateral acidental da ideologia que levou os caçadores-coletores a esculpir e erigir enormes colunas
de pedra no topo de uma colina no sul da Turquia.
Parado naquele topo de colina numa tarde de outubro de 2002 d.C., senti que realmente fora em Göbekli, e não em Jericó, que a história do mundo virará. Ao ver
os trabalhadores curdos que retornavam a suas aldeias e os arqueólogos aos seus acampamentos, imaginei outros fazendo uma partida semelhante - as pessoas neolíticas
a deixarem Göbekli depois que acabaram suas cerimônias. Sabendo da farta produção que proporciona o trigo de Göbekli Tepe, algumas podiam ter carregado sacos de
grãos para semear em suas próprias hortas selvagens. Ao fazerem isso, estavam espalhando não apenas novas sementes, mas também um novo estilo de vida para as aldeias
de caçadores-coletores-cultivadores de Jerf el Ahmar, Mureybet e talvez para a própria Jericó.
É provável que a semente de grãos tenha feito parte da rede de comércio neolítica que se estendeu da Turquia aos limites sul do vale do Jordão. Sabemos que tal comércio
existiu porque a obsidiana, um vidro vulcânico muito fino, negro e brilhante originado de uma única fonte nas colinas do sul da Turquia, é encontrada em todos os
sítios do Neolítico Inicial. Para os que dependiam do relativamente embaciado sílex no vale do Jordão, a obsidiana deve ter sido um material muitíssimo valorizado.
Muitos caçadores-coletores modernos, como os aborígines australianos, atribuíram a pedras brilhantes poderes sobrenaturais, e o mesmo certamente deve ter acontecido
com a obsidiana no período neolítico; suas finas lascas são de fato transparentes; as grossas podem ser usadas como espelhos; tem o gume mais afiado entre todas
as pedras, e pode ser talhada em formas complexas. É verdadeiramente um material mágico.
A obisidiana, com a máxima probabilidade, foi comerciada de assentamento em assentamento, junto com uma legião de outros bens hoje invisíveis: peles, penas, grão,
carne e nozes. Corno a quantidade de obsidiana encontrada em Jericó era desproporcional ao tamanho da aldeia, esta deve ter sido um centro-chave da rede de comércio.
Foi talvez dentro dessa rede de troca que a nova semente de grão se espalhou aos poucos pelo oeste asiático - sementes de grão das plantas que, na expressão de Daniel
Zohary, "esperavam pelo colhedor" - e finalmente transformou os cultivadores neolíticos em agricultores completos. Essa transição criou os mais antigos assentamentos
da fase seguinte do Neolítico, a que Kathleen Kenyon chamou de Neolítico Pré-Cerâmica B. Para compreender como esses assentamentos contrastavam de forma impressionante
com as primeiras aldeias neolíticas de Jericó e semelhantes, temos de viajar do extremo norte ao extremo sul do Crescente Fértil e visitar meu próprio sítio de escavação
em Wadi Faynan.
Wadi Faynan é uma paisagem árida mas de beleza espetacular. Chega-se lá passando de carro pelo extremo sul do mar Morto na estrada de Aqaba, e depois seguindo para
oeste pela aldeia de Qurayqira - casas de pré-moldado amontoadas construídas para os beduínos locais, muitos dos quais preferem permanecer em suas tendas. Depois
de Qurayqira acaba a estrada, e seguimos por uma trilha de terra (se encontramos uma) ao longo da base do wadi seco até a borda da íngreme escarpa que sobe para
o planalto do Jordão. E melhor chegar à noite, colhendo porcos-espinhos e gerbos na luz dos faróis, debatendo se é a trilha certa ou não, e comemorando a chegada
no acampamento da escavação com uma cerveja gelada ao luar.
Em Wadi Faynan dormimos sob as estrelas e deixamos para trás as tensões da vida universitária e familiar para reconquistar a emoção infantil da arqueologia - sujar
as mãos, desenterrar coisas, revelar o passado. Trabalhando com Bill Finlayson, tento reconstituir o assentamento pré-histórico desse wadi desde os tempos mais remotos
até as primeiras comunidades agrícolas. Muitos sítios foram descobertos, alguns com artefatos feitos por neandertais e possivelmente até tipos humanos precedentes.
Mas o sítio mais importante que descobrimos é a aldeia PPNA do Neolítico Inicial a que demos o nome nada romântico de WF16.

Encontramos vestígios dessa aldeia em nossa primeira visita ao wadi, uma época em que apenas dois dos nossos foram lazer um reconhecimento. Após vários dias exaustivos
andando no calor implacável, quando nos sentíamos desanimados com a falta de verba, decidi acabar o dia examinando dois pequenos monturos logo acima do leito do
wadi. Para minha imensa excitação, o terreno estava juncado de artefatos de pedra: pedaços de sílex lascado e mós. Junto com estes havia vestígios de pequenas construções
circulares: círculos de pedra surgindo de debaixo de sedimentos trazidos pela chuva das colinas e penedias em volta, e que teriam enterrado o que esperava pudesse
ser uma aldeia.
Vários anos depois, sabemos que WF16 foi de fato um pequeno assentamento do Neolítico Inicial, contemporâneo da primeira fase de Jericó, 250 quilômetros ao sul.
Tinha talvez 10 ou 12 moradas circulares, cada uma de apenas 4 metros de diâmetro e erguidas poucos metros separadas entre si, para que se pudesse andar facilmente
entre elas. As pessoas de WF16 caçavam cabras selvagens, faziam armadilhas para falcões e desentocavam raposas. Colhiam figos, legumes e cevada selvagem. Alguns
de seus mortos tinham sido enterrados dentro das moradas, às vezes individualmente, e deixados intactos, às vezes como montes de ossos. Adquiriam conchas do Mediterrâneo
e do mar Vermelho, esculpiam desenhos geométricos nos artefatos de osso e pedra, e faziam contas verdes de minério de cobre dos penhascos em volta. Também se adquiriu
obsidiana vinda da Turquia - embora até agora só tenhamos encontrado uma única lasca dessa pedra em meio aos muitos milhares de sílex.
Nossas escavações estão longe de se considerarem concluídas. Ainda temos de determinar se as pessoas viviam em WF16, o ano todo ou se era apenas um acampamento
sazonal. Não sabemos ainda quantas moradas havia, e se as atuais foram construídas simultaneamente ou uma a uma entre 10.000 e 6.500 a.C. - o período da ocupação.
Foram seus habitantes caçadores-coletores, cultivadores de cereais selvagens ou agricultores com safras domesticadas?
Minha própria interpretação do sítio muda à luz de novas descobertas em outras partes. Antes pensava que as raposas haviam sido caçadas simplesmente para fornecer
peles; mas depois de ver as gravuras nas colunas de Göbekli Tepe, imagino se houve motivos mais ideológicos que utilitários por trás da captura delas. Tenho preocupações
semelhantes sobre os muitos ossos que encontramos de aves de rapina - talvez, em vista das esculturas de Jerf el Ahmar, capturados por outros motivos além de apenas
para fornecer plumas decorativas. Assim como em Göbekli, a imagística masculina parece importante. Encontramos um falo de pedra esculpida, enquanto alguns dos supostos
almofarizes utilitários têm uma aparência tão fálica que sugerem que a moagem de plantas comestíveis foi investida de algum tipo de simbolismo sexual.
É 9.000 a.C., e John Lubbock viajou de Jericó para o sul e acha-se no que se tornará o monturo WF16. Está cercado pela grandeza do wadi, que tem uma cor verde vibrante,
em vez dos amarelos e marrons crestados de hoje. Onde vi estéreis desertos, ele vê árvores de carvalho e pistacho; figo, salgueiro e choupo crescem junto a um rio
que corre pelo que hoje é um wadi inteiramente seco e sem árvores. Escuta conversa humana, o atrito de pedra contra pedra e o latido de cachorros. O cheiro de junípero
recém-cortado impregna o ar. Pessoas neolíticas sentam-se diante de suas moradas fazendo e usando os mesmos artefatos que nós encontraremos um dia. Usam colares
de contas e penas dos falcões cujos ossos escavaremos. Pontas el-Khiam são fixadas em juncos e puas de arco; pilões e almofarizes estão em ação; paredes são construídas
com varas de junípero.
Visitantes chegam trazendo obsidiana para trocar por contas de diorito e fardos de pêlo de cabra. Lubbock observa os banquetes que têm lugar quando a caça foi
boa e a moagem de minúsculas sementes secas quando foi ruim. Observa o enterro de um velho dentro de uma morada, a cabeça do cadáver posta num travesseiro de pedra.
Depois que o piso de terra foi socado até ficar de novo plano, o crânio continua à mostra, possibilitando às pessoas trabalharem e dormirem em volta, confortadas
pela continuação dessa presença em suas vidas.
Em 8.500 a.C., WF16 torna-se silenciosa e Lubbock vê-se sozinho. Os aldeões neolíticos desapareceram e suas moradas foram abandonadas à natureza e quem quer que
possa encontrar e escavar o sítio. Lubbock ouve vozes que sobem do wadi, onde ele serpeia dobrando uma curva e as rochas viram penhascos, e onde hoje se torna conhecido
como Wadi Ghuwayr. Lubbock segue a margem do rio, roçando juncos luxuriantes, gansos e patos assustados. Não anda mais de 500 metros na margem do rio de rápida correnteza
e encontra pessoas trabalhando. Algumas são de WF16, mas outras vieram de longe, talvez de outra parte no vale do Jordão ou de uma distância muito maior. Juntas
constroem não apenas uma nova aldeia, mas também um tipo inteiramente novo de aldeia.
Trabalham na encosta acima da margem do rio a 10 ou 20 metros da beira d'água. Constroem casas retangulares; casas com sólidas paredes de pedra e pisos de argamassa.
Fizeram-se terraços, e as posições das paredes de casas com 10 metros de comprimento e 5 de largura foram marcadas no chão. Algumas já se acham na metade da construção;
as paredes chegam à altura do peito, feitas com seixos alisados pela água. Pedras pequenas e argamassa são empilhadas entre filas paralelas de seixos para fazer
uma sólida parede de 50 centímetros de espessura - coisa muito distante das paredes de pedra seca de WF16. Em algumas casas, puseram-se mourões de madeira pouco
para dentro das paredes, prontos para sustentar o peso de caibros.
Perto do sítio de construção arde uma fogueira para fazer a cal para os pisos de argamassa. Muitas centenas de nódulos de calcário foram colhidas dos limites superiores
de Wadi Ghuwayr e são queimadas dentro de um poço. Quando se atinge a temperatura suficientemente alta, as pedras se desintegram em pó de cal. Em outra, parte da
cal já está sendo misturada com água e despejada em grossa camada sobre uma base de pedras no chão de uma casa quase pronta. A argamassa aplaina todas as quinas,
lendas e um raso poço central que será a lareira. Uma vez seca e dura, será pintada de vermelho e depois polida. Mais argamassa cobrirá as paredes, por dentro e
por fora. Estas serão mantidas num branco brilhante,
Conheço bem essa aldeia, mas não como um sítio de construção nem como um lugar de viver. Conheço-a como ruínas expostas por escavação. Mohammed Najjar, do Ministério
de Antigüidades da Jordânia, e Alan Simmons, da Universidade de Nevada, descobriram e escavaram o sítio. Eles vão a Wadi Ghuwayr todo ano, para ir aos poucos revelando
sua arquitetura, notadamente diferente da de WF16 e no entanto construída dentro de uma única geração de seu passamento.
Essas aldeias com casas retangulares de dois andares surgiram por todo o Crescente Fértil pouco depois de 9.000 a.C. Com a máxima probabilidade, originaram-se
em Jerf el Ahmar e Mureybet, onde se encontraram construções da transição de redondas para retangulares. A nova arquitetura espalhou-se rapidamente; um sinal das
transformações sociais e econômicas que ocorreram agora que a nova agricultura com safras domesticadas realmente começou, e os números das populações subiram às
alturas. Essas novas construções caracterizam a fase do Neolítico que Kathleen Kenyon designou como Neolítico Pré-Cerâmica B (PPNB na sigla em inglês). É outro mundo
neolítico que John Lubbock tem de explorar agora.

9
No Vale dos Corvos
Arquitetura, têxteis e domesticação de animais,
8.500 - 7.500 a.C.
Deixando os penhascos acima de Wadi Gjuwayr, John Lubbock anda para o sul até a noite começar a cair, num dia de primavera de 8.000 a.C. Isso o leva a uma espetacular
paisagem de calcário que corre como uma prateleira abaixo do planalto jordaniano. Depois de cruzar para lá e para cá o oeste asiático do Mediterrâneo ao Eufrates,
está familiarizado com as árvores e reconhece com facilidade o carvalho, o pistacho e o espinheiro, embora ainda não tenham atingido o pleno reverdor. Enquanto anda,
vê não apenas cabras selvagens sobre os rochedos, mas vislumbra um chacal que inicia seu trabalho noturno e uma lebre que encerra o dia. Reconhece as pegadas de
javali e os restos da presa de um leopardo. Com tais animais cm volta, dorme inquieto ao abrigo de um rochedo de calcário, que muda de cor quando o sol se põe em
todo o vale do Jordão.
No dia seguinte, Lubbock continua a atravessar a mata, equilibrando-se de vez em quando à borda de precipícios rochosos para olhar o futuro deserto de Negev do
outro lado de um vasto abismo sem árvores. Após ter viajado cerca de 30 quilômetros desde Wadi Ghuwary, chega à entrada de um vale amplo e aberto, com uma densa
cobertura de árvores e definido por altos penhascos de calcário. Vê, muito apropriadamente, dois pássaros negros gritando alto, pois esse é Wadi Gharab - o vale
dos corvos. Abriga a primeira cidade que Lubbock tem a oportunidade de visitar; é de fato uma das primeiríssimas cidades do mundo: Beidha.
A trilha de cabras transforma-se num caminho bastante utilizado no meio da mata onde muitas árvores foram derrubadas. Isso logo dá lugar a pequenos campos com
cerrais que acabam de brotar, ervilhas e pequenos brotos de uma safra desconhecida - linho. E então ele vê, ouve e sente o cheiro de cidade - uma massa de moradas
de pedra retangulares, vozes humanas, latidos de cachorros, cabras balindo e fumaça de lenha. Aí não há indefinições entre os domínios da natureza e a cultura humana,
como havia em Ain Mallaha e Abu Hureyra. A cidade de Beidha é uma impressionante afirmação do desligamento humano do mundo natural, epitomizado pelos ângulos agudos
e a ordenada disposição das construções, as cabras em seus cercados, a terra capinada para o plantio.
A oportunidade de visitar Beidha foi proporcionada pelo terceiro membro de um notável trio de arqueólogas. Já reconhecemos a contribuição de Dorothy Garrod e Kathleen
Kenyon. Agora, devemos apreciar o trabalho de Diana Kirkbride. Após estudar egiptologia no University College, em Londres, na década de 1930, e trabalhar em Jericó
com Kathleen, ela passou vários meses em 1955 escavando em Petra para o Departamento de Antigüidades da Jordânia. Durante esse tempo, descobriu a cidade neolítica
de Beidha.
Os espetaculares templos e túmulos de 2 mil anos de Petra não conseguiram conter o interesse de Diana, e nos dias de folga ela saía à procura de "sítios de sílex"
próximos. Com a ajuda de guias beduínos, encontrou vários, alguns extremamente antigos. Também descobriu um pequeno tell que se tornou o sítio de Beidha, localizado
a cerca de uma hora de caminhada por entre as colinas de calcário ao norte de Petra.
Diana começou a escavar ali em 1958, e concluiu a última de suas oito temporadas de campo em 1983, quando já havia descoberto 65 construções. Era, e continua sendo,
de longe a mais extensa escavação de um assentamento do Pré Neolítico, oferecendo uma intuição única da disposição de uma das primeiras cidades. O trabalho dela
revelou que Beidha cresceu de uma pequena aldeia de moradas circulares interligadas para a cidade de prédios retangulares de dois andares à qual Lubbock agora chegava.
Para entrar na cidade, ele atravessa uma baixa muralha que cerca as construções. É uma barreira ao solo arenoso que ameaça cobrir os pátios, agora que foi liberado
pela derrubada das árvores. Uma trilha leva Lubbock por entre prédios para um pátio murado de cerca de 8 metros de diâmetro. É o centro da cidade. À frente dele,
vêem-se quatro câmaras construídas de pedra com grãos espalhados no chão - os restos de uma colheita; à esquerda/direita, a fachada de um prédio particularmente
grande. Ele atravessa sua porta e entra num aposento de um branco reluzente - o piso, paredes e mesmo o teto densamente rebocados. A única cor é uma grossa faixa
vermelha em torno da base das paredes. No centro, ergue-se uma coluna de pedra não cortada de 1 metro de altura. Atrás dela, há uma entrada para um segundo e maior
aposento. É igualmente escasso e deslumbrante, com os mesmos reboco branco e faixa vermelha, que também circundam uma lareira no meio do pico e urna bacia de pedra
perto da entrada. No canto oposto, um poço revestido de pedra. E é só isso. Nenhum móvel a sugerir uma casa, nem pedra lascada ou fragmentos de ossos a sugerir uma
oficina, nem efígies esculpidas a sugerir um lugar de ritual ou culto, e - o mais assustador - nenhuma pessoa visível a trabalhar ou brincar.
Embora escavada por Diana, a mais substancial tentativa de interpretar a arquitetura de Beidha foi feita por Brian Byrd, da Universidade da Califórnia. Ele ficou
particularmente impressionado com o tamanho do prédio em que Lubbock entrou, avaliando que só o reboco exigiu mais de 2 mil quilos de cal viva e 9 mil quilos de
madeira para os fornos. Assim, mesmo que famílias individuais tivessem construído suas casas dentro da cidade, esse prédio exigiu trabalho comunitário, e a questão-chave
- não apenas no caso de Beidha, mas de todas as novas cidades com tais prédios - foi se o trabalho foi feito por vontade própria ou sob coerção de chefes das cidades.
É de fato difícil imaginar uma comunidade do tamanho de Beidha, talvez de 500 pessoas, existindo sem comando. Talvez esse viesse de anciãos respeitados que desempenhavam
papel destacado na tomada de decisões que afetariam a comunidade como um todo. Ou talvez houvesse indivíduos que exerciam o poder pela força.
Brian Byrd julgou provável que esse prédio fosse usado para tomar tais decisões, um lugar em que famílias separadas podiam reunir-se. Pareceu importante que no
pátio diretamente defronte da sua entrada ficasse a instalação de armazenamento de grãos. O muro circundante fora um acréscimo recente - antes, as pessoas atravessavam
livremente o pátio. O novo muro, junto com outros fatos arquitetônicos, era evidentemente usado para controlar os movimentos das pessoas pela cidade e influenciar
o que elas podiam ver. Supõe-se que isso fosse uma vantagem dos que tinham autoridade: os depósitos de grãos - e o conhecimento de quantos grãos eles continham -
eram fontes de poder para os que controlavam sua distribuição.
Deixando o grande prédio, Lubbock anda entre as casas até chegar a outro pátio - menor que o último, não pavimentado e dando acesso a duas casas vizinhas. Cada
uma tem de três a quatro degraus para um andar de cima, e um número semelhante para um porão embaixo. Lubbock escolhe uma casa na qual ouve vozes, sobe a escada
e entra num aposento em que oito ou nove pessoas se sentam em tapetes de palha, em torno de uma lareira central. Há adultos e crianças, homens e mulheres; alguns
dividem pão e carne, outros inalam fumaça de folhas. Todo o aposento está cheio de fumaça que só lentamente atravessam os juncos que formam o telhado. Os olhos de
Lubbock enchem-se de lágrimas.
As pessoas espremem-se juntas; parece provável que uma família esteja recebendo outra. Suas roupas impressionam - atestado de outra pequena revolução que ocorreu
durante o último milênio, e que passou praticamente despercebida pelos arqueólogos. Todas as pessoas citados anteriormente nessa história usavam roupas feitas de
couro ou pele, ou muito ocasionalmente de fibras trançadas. As de Beidha vestem com elegância tecidos feitos de tecelagem; usam a primeira forma de linho, tingido
de verde e transformado em túnicas e saias.
Não era provável que tais roupas, feitas quando as artes de fiar e tecer se achavam na infância, durassem mesmo umas poucas gerações antes de apodrecerem ou se desfazerem,
quanto mais por muitos milênios desde que as pessoas se sentaram comendo em Beidha. Contudo, algumas sobreviveram, não em ruínas de cidades, mas dentro da minúscula
caverna de Nahal Hemar, localizada a meio caminho entre Beidha e Jericó, na fronteira norte do deserto de Negev, longe de qualquer assentamento humano. Beduínos
saquearam essa caverna na década de 1960, quando buscavam mais uma coleção dos Manuscritos do mar Morto. Em 1983, ela foi redescoberta pelo arqueólogo israelense
David Alon, que escavou os depósitos sobreviventes com Ofer Bar-Yosef. Encontraram muitos pedaços de tecido, cordas e cestos. Todos eram contemporâneos das primeiras
cidades do oeste asiático.
Os tecidos haviam sobrevivido porque os sedimentos eram absolutamente secos - sem umidade, as bactérias destrutivas não puderam concluir seu trabalho. Tinham sido
feitos de junco, palha e capim, usando uma variedade de fiação, costura e técnicas manuais de tecelagem. Os cestos tinham sido feitos de cordas de fibras vegetais
trançadas, em forma de vaso e tornadas à prova d'água por revestimento de betume de jazidas naturais em torno das margens do mar Morto. As espátulas de osso da caverna
era, com a máxima probabilidade, instrumentos para a fabricação de cestos.
Alguns tecidos tinham sido feitos de fio de linho que vinham das fortes fibras dos talos de flax. Eram fiadas e depois combinadas por tricô ou tecelagem manual,
usando-se um método conhecido como "junção de trama", que pode ter sido feito sobre uma tábua. Este é o mais simples tipo de tecelagem, e usado até recentemente
por sociedades tribais em todo o mundo. Encontraram-se várias lançadeiras de osso que introduziam a trama, ou fio vertical, na urdidura, ou fio vertical.
Infelizmente, os fragmentos de tecido de Nahal Hemar são pequenos demais para reconstruir os artigos do vestuário do Neolítico - com uma exceção, um adereço cônico
de cabeça. Fez-se uma faixa tecida para pôr em torno da testa, enfeitado com um único diorito; o chapéu então se elevava e formava um cone em forma de diamante,
acabando num nó em cima e borlas. Como se trata de uma descoberta única, não temos idéia se se tratava de uma peça do dia-a-dia do povo neolítico ou um artigo de
traje cerimonial usado apenas por pessoas especiais em ocasiões especiais. A última hipótese é talvez mais provável, em vista da localização isolada da caverna e
dos outros objetos que continha.
Como aconteceu com o trigo e a cevada, o linho também brotara como uma espécie selvagem dentro da estepe florestal do oeste asiático, e depois fora cultivado com
os cereais e legumes. Fragmentos dele foram encontrados em Jericó, Tell Aswad e Abu Hureyra, mas não foi possível saber se vinham de plantas selvagens ou domesticadas.
Meu palpite é que também se plantava linho em Beidha; não se encontrou nenhum, mas a preservação e recuperação de plantas nesse sítio foram particularmente ruins.
Embora as roupas e cestos deixados em Nahal Hemar possam ter sido usados em ocasiões cerimoniais, lembram-nos do que deve ter sido um aspecto que impregnava a
vida diária durante o Neolítico. O corte de junco e o cultivo de linho. É provável que a fiagem, tecelagem, trançagem, costura e tricotagem das fibras fizessem parte
da vida de muitas pessoas. Elas observavam e manuseavam tecidos todo dia, sentindo o grão grosseiro contra a carne. O cheiro de betume, do trabalho com vime e pano
de linho estaria sempre presente. E no entanto, praticamente tudo o que os arqueólogos sabem de suas roupas são os poucos fragmentos descobertos na caverna de Nahal
Hemar.

Lubbock continua dentro da casa em Beidha, examinando cestos impermeáveis no chão e uma pilha de tricô. Pedras quentes da lareira são de vez em quando jogadas dentro
dos cestos, para aquecer o líquido dentro - chá de hortelã. Um denso monte de peles, couros e tecidos no outro lado da sala sugere uma área de dormir. Uma criança
jaz sobre elas com uma pele pálida e doentia. Como Lubbock tantas vezes viu em outras partes, a mortalidade infantil em Beidha é alta - uma coisa que Diana Kirkbride
descobriu quando desenterrou os muitos esqueletinhos enterrados sob os pisos.
Lubbock descobre que o trabalho se faz sobretudo no porão. Este tem um piso de terra e grossas paredes que contêm seis pequenas câmaras, três de cada lado de um
curto corredor. Lajes de pedra no chão proporcionam sólidas superfícies de trabalho - algumas cobertas com lascas de pedra, outras com fragmentos de osso e chifre
cortados jogados fora. Algumas câmaras foram usadas para triturar pedras em contas, outras para trabalhar couro. As duas câmaras mais próximas da entrada têm grandes
mós usadas para fazer farinha de trigo e cevada.
Aí, pois, está outra mudança radical, não apenas em relação aos assentamentos natufianos, mas também às primeiras aldeias agrícolas de Jericó e Netiv Hagdud. Muitas
atividades foram transferidas para dentro de casa e aposentos dentro de construções individuais agora definiram funções: alguns são dedicados a comer, dormir e receber,
outros a atividades artesanais e armazenagem. Parece ter não apenas uma nova ordem na arquitetura e planta da cidade, mas também nas vidas das pessoas.
A transição das pequenas moradas circulares típicas de assentamentos do PPNA como Jericó, Netiv Hagdud c WF16 para os prédios relativamente grandes, retangulares
e muitas vezes de dois andares de Beidha e outros assentamentos do PPNB documentam uma grande transformação social. Kent Flannery, da Universidade de Michigan, afirmou
que isso reflete uma mudança de uma sociedade voltada para o grupo - em que qualquer excedente de alimentos é reunido e disponível para todos - para outro em que
as famílias são a unidade social. Em vez de espalharem-se entre várias pequenas cabanas circulares, essas famílias consolidaram sua presença com múltiplos aposentos
dentro de uma única moradia. Eram donas e armazenavam um pouco ou talvez todo o excedente de comida que geravam, muitas vezes construindo depósitos especiais como
parte de suas casas.
O passeio de Lubbock entre os becos e pátios de Beidha oferece-lhe novas experiências. Nos assentamentos de caçadores-coletores que visitou houve poucas surpresas
- ele quase via de um extremo da aldeia ao outro, e todos pareciam conhecer os assuntos de todos os demais. Ali, como em outras cidades neolíticas, dobrar quase
qualquer esquina pode levar a uma surpresa - inesperados grupos de pessoas, uma lareira ao ar livre, uma cabra amarrada. As pessoas simplesmente não podem saber
o que se passa em outra parte da cidade - mesmo apenas a alguns metros de distância - porque muita coisa se passa por trás de grossas paredes. O número de habitantes
se tornou demasiado grande para as pessoas conhecerem os assuntos e parentes umas das outras. Lubbock sente que há uma atmosfera de desconfiança e ansiedade, trazida
pelo impacto da vida urbana numa mentalidade que evoluiu para viver em comunidades menores.
Junto com os carneiros, as cabras foram os primeiros animais a serem domesticados depois do cachorro, e completaram a passagem da caça e coleta para um estilo de
vida agrícola. Exatamente onde, quando e por que ocorreu essa domesticação, ainda é muito debatido pelos arqueólogos.
A cabra é muito rara nas coleções de ossos de aldeias do Natufiano e do Neolítico Inicial, dominadas pela gazela - a presa preferida desde o LGM. Assim, a abundância
de cabras encontradas em Beidha - 80% de todos os ossos de animais - sugere mais pastoreio que caça.
As cabras de Beidha eram também pequenas, comparadas com as cabras selvagens conhecidas. A redução do tamanho do corpo ocorre com todos animais assim que se tornam
domesticados - os porcos são menores que os javalis, as vacas que o gado selvagem. Com a máxima probabilidade, isso resulta de pobre alimentação materna e a matança
seletiva dos adultos machos pela , carne. Esse padrão de matança é evidente em Beidha, onde a maioria dos ossos vem de animais de cerca de 2 anos de idade, sugerindo
que foram mantidos vivos até atingirem todo o seu tamanho, mas mortos antes que comessem demasiada forragem. O fato de que muito poucos dos ossos de Beidha vieram
de animais jovens é um sinal seguro de que as cabras não eram mantidas pelo leite; nessa prática, os recém-nascidos são mortos para que o leite possa ser tomado
para uso humano.
A domesticação cedo de cabras e carneiros não surpreende, pois o comportamento selvagem deles presta-se de imediato ao controle humano. Os dois animais são muitíssimo
territoriais; relutam em desgarrar-se do rebanho e vivem dentro de grupos fortemente hierárquicos. Daí cabras e carneiros se disporem a seguir o animal maior, o
que os torna susceptíveis a gravar a idéia de um ser humano como chefe. As construções de pedra proporcionavam substitutos para as cavernas em que as cabras e carneiros
selvagens naturalmente se abrigam.
Permanece incerto exatamente onde e quando começou o pastoreio. Com base no tamanho e abundância, carneiros e cabras foram domesticados pela primeira vez na parte
central (i.e., Síria, sudeste da Turquia) ou oriental (i.e., Iraque, Irã) do Crescente Fértil em 8.000 a.C., ou possivelmente muito antes. Sabemos que os ocupantes
de Abu Hureyra à margem do Eufrates pastoreavam carneiros e cabras em 7.500 a.C. Nessa data, construiu-se um novo conjunto de casas de adobe, enterrando a aldeia
de caçadores-coletores que Lubbock visitou. O novo povo citadino continuou inicialmente a prática do Natufiano Tardio de matar as gazelas durante a migração anual.
Em 7.500 a.C., porém, já haviam passado a matar carneiros e cabras, animais mantidos em rebanhos controlados. Mas devemos buscar mais a leste as mais antigas cabras
domesticadas, nas aldeias do Neolítico Inicial hoje encontradas no centro do Irã.
Dessas, a aldeia conhecida como Ganj Dareh oferece o indício que mais se impõe. É um pequeno monturo no extremo sul do vale de Kermanshah, com menos de 40 metros
de diâmetro e 8 de altura. A maior parte consiste de construções de adobe desmoronadas erguidas primeiro em alguma data entre 10.000 e 8.000 a.C. As pessoas que
viviam em Ganj Dareh mataram grande número de cabras, proporcionando uma coleção de quase 5 mil ossos para estudo. Brian Hesse, da Universidade do Alabama, e Meinda
Zeder, do Smithsonian Institute, empreenderam esse trabalho, descobrindo um sinal revelador de domesticação na presença de grande número de machos novos abatidos.
Os próprios rebanhos ou a simples idéia do pastoreio pode ter corrido para oeste e depois para o sul, como a prática da agricultura arável espalhou-se para o leste.
Assim, o pastoreio de cabras teria alcançado o vale do Jordão por volta de 8.000 a.C. Mas também é possível que as cabras tenham sido domesticadas de forma inteiramente
independente em outras partes, mesmo nas vizinhanças de Beidha. No momento, os arqueólogos simplesmente não sabem.
Exatamente como se deu e foi posta em prática a idéia do pastoreio de cabra/carneiro, também é questão de debate. Frank Hole, da Universidade de Yale, acha que
os caçadores tomaram consciência de uma crescente escassez de animais selvagens e tomaram medidas deliberadas para administrá-los. Isso pode ter envolvido o armazenamento
de forragem para o inverno, a construção de cercas para controlar os movimentos do rebanho c o cuidado dos animais órfãos.
Muitos caçadores-coletores historicamente documentados, como os aborígines australianos, mantinham animais domesticados como bichos de estimação, e devemos supor
que o mesmo se passava com as pessoas do Natufiano e do PPNA. Quando seus descendentes passaram a viver em assentamentos permanentes, é provável que alguns desses
bichos de estimação se tenham tornado sexualmente maduros e reproduzido dentro dos limites do assentamento. Esses animais, isolados dos selvagens, teriam fornecido
a base para os rebanhos domésticos. A reprodução seletiva desenvolveu intencionalmente determinadas características - temperamento plácido, rápido crescimento, alta
produção de leite e lã densa. Presume-se muitas vezes que o cuidado de animais domesticados em grupos de caçadores-coletores era tarefa de mulheres e crianças, portanto
devem ter sido estas, e não os caçadores homens, que desempenharam o papel mais crítico na domesticação dos animais.
Assim que os carneiros e cabras foram domesticados, dentro de algumas centenas de anos seguiram-se o gado e os porcos. Mas os cavalos e jumentos domesticados só
chegaram vários milhares de anos após o florescimento das cidades do Neolítico. Surgiram com a máxima probabilidade como animais de carga para a movimentação de
minério e combustível destinado aos centros de fundição, assim que teve início a metalurgia na Idade do Bronze.
É hora de Lubbock deixar Beidha. Embora novos prédios ainda estejam sendo construídos, a cidade será abandonada dentro de poucas gerações. Beidha não se situava
no mais vantajoso dos locais: os limites sul do vale do Jordão mal recebia chuva suficiente para sustentar a agricultura, e a mais próxima fonte permanente ficava
a mais de 5 quilômetros e uma subida de 400 metros de distância. Nessas condições, os solos em Wadi Gharab são simplesmente pobres demais para suportar cultivo intenso
e repetido, e instáveis demais sem as árvores. A cada ano, as cabras são levadas mais longe da aldeia para encontrar forragem, enquanto as safras diminuem e logo
entrarão em colapso. E assim, por volta de 7.500 a.C., os últimos habitantes de Beidha partirão, após uma constante hemorragia à medida que a vida se tornou demasiado
difícil.
Muitas pessoas irão para uma próspera cidade nova 12 quilômetros ao sul, hoje conhecida como Basta. Só foi descoberta pelos arqueólogos em 1986, e desde então
tem proporcionado um pouco da mais impressionante arquitetura neolítica, com paredes de pedra de 2 metros de altura, janelas, portas e tudo. Basta cresceu para mais
de 12 hectares de extensão, uma das maiores cidades do Neolítico. Deve ter encontrado um nicho particularmente fértil, permitindo ultrapassar de muito Beidha em
tamanho. Mas mesmo essa cidade não sobreviveu além de 6.000 a.C.
A viagem de Lubbock não é para Basta, mas para o norte - um retorno a Jericó, e depois para a cidade de Ain Ghazal. Sua temporada cm Beidha ofereceu apenas uma
visão parcial dos novos habitantes de cidades da era neolítica - uma visão em grande parte centrada em suas vidas domésticas - e portanto ele tem de visitar esses
assentamentos para ficar sabendo mais sobre o mundo sagrado delas.
10
A Cidade dos Espectros
Ritual, religião e colapso econômico,
7.500 - 6.300 a.C.
De Beidha, John Lubbock encaminha-se diretamente para oeste, seguindo um rio em meio a um vale de mata até as baixadas e por fim o rio Jordão. A vegetação é luxuriante,
junco e papiro dos dois lados do rio, mas fora isso trata-se de uma paisagem seca e estéril. Além do Jordão, a terra sobe e logo se torna o que é hoje o deserto
de Negev. Amanhece. Do outro lado do rio, ergue-se um preguiçoso fiapo de fumaça de uma fogueira.
O fogo arde para um grupo de homens de Jericó que se dirige para o sul com cestos de excedente de grãos. Uma dúzia deles carregou o pesado fardo, indo a um encontro
com caçadores-coletores que vivem dentro do Negev. O grão será trocado por conchas marinhas e carne de caça selvagem.
Os desertos de Negev e Sinai foram colonizados pouco depois do fim do Jovem Dryas. Fizeram-se novos assentamentos no deserto exatamente no mesmo lugar dos do Natufiano
Tardio, como Abu Salem no centro do Negev. Os novos ocupantes talvez tenham permanecido no deserto o ano todo, vivendo como caçadores-coletores; ou talvez fossem
apenas visitantes de verão, passando os invernos nas cidades neolíticas como Beidha. Em qualquer dos casos, podem ter fornecido carne aos citadinos.
À medida que os animais domesticados se tornavam a principal fonte de carne, é provável que a caça selvagem tenha virado uma comida de prestígio para as pessoas
dentro das cidades. Os moradores de Beidha e outros assentamentos fizeram uma variedade de flechas e pontas-de-lança, sugerindo que a matança de caça selvagem adquirira
então um status especial. Em Ain Ghazal - cidade nos arredores da moderna Amã - estavam presentes os restos de não menos que 45 espécies selvagens, incluindo algumas
espécies de gazela, gado selvagem, javali e pequenos carnívoros. Parece provável que uma tal gama podia ser caçada nas vizinhanças da cidade, e portanto alguns desses
ossos podem ter chegado em juntas de carne adquirida de caçadores-coletores do deserto.
Conchas do mar Vermelho também chegavam às cidades por algum meio. O interesse em sua aquisição, por troca ou por expedições ao litoral, remonta até o LGM e atingiu
antes um pique no Natufiano Inicial. Mas teve uma mudança nos tipos mais desejáveis: o interesse pelas conchas tubulares de dentálio parece ter sido substituído
pelo gosto por caurins.
Enquanto os mercadores se dirigem para o sul, Lubbock viaja para o norte, para visitar Jericó uma segunda vez. Segue a base das montanhas da Judéia, ao longo da
margem ocidental do mar Morto. Wadis, alguns contendo pequenos riachos que logo secarão sob o sol quente, cortam as colinas. Lubbock passa por rebanhos de cabras
que são levadas a pastar por meninos, e pequenos grupos que recolhem betume e sal.
Chega em 7.000 a.C. O assentamento mudou desde quando ele viu o primeiro trigo sendo semeado: os conjuntos de pequenas moradias circulares foram substituídos por
esparramados prédios retangulares em meio não apenas a campos aráveis e rebanhos de cabras, mas a filas e filas de adobe secando ao sol. Jericó passou de uma aldeia
de caçadores-coletores-cultivadores a uma cidade de camponeses, artesãos e mercadores.
Lubbock atravessa pátios e entre as casas, envolvido pelo clamor da vida neolítica. Muito trabalho se faz ao ar livre - preparação de comida, corte de pedra, fabrico
de cestos, tecidos e artigos de couro. Ele se lembra de Beidha; enquanto passeia pela cidade, vê bandos semelhantes de cachorros que revolvem o lixo, e o mesmo fluxo
entre o fedor de carne pendurada, a simplicidade da fumaça e a fragrância de ervas fumegantes. Pára para observar uma mulher socando um pilão; o instrumento é tão
grande que ela se senta numa ponta e curva repetidas vezes as costas ao estender-se com a mão de pedra até a outra - trabalho de incontáveis futuras gerações.
As casas são construídas mais de adobe que de pedra. Têm um só andar e parecem de desenho um tanto mais simples que as de Beidha, não tendo sinal dos prédios com
corredores. Lubbock escolhe uma ao acaso. Portas de madeira dão-lhe acesso a três aposentos retangulares sucessivos, cada um com piso de reboco polido e tapetes
de palha. Não há ninguém em casa, e pouca coisa à guisa de móveis. Um monte de tapetes e couros sugere uma área de dormir, cestas e tigelas de pedra parecem ser
bens valiosos.
No terceiro aposento, vêem-se numa parede três estatuetas de barro, todas femininas e com cerca de 5 centímetros de altura. Uma é particularmente impressionante
- veste o que parece uma túnica solta e foi esculpida com os braços cruzados, de modo que cada mão repousa em um seio. Junto a elas, há o que parece uma cabeça humana.
Lubbock ergue-a com cuidado - é literalmente uma cabeça humana, ou pelo menos uma caveira cujo rosto foi delicadamente modelado com reboco.
Enquanto anda pela cidade, Lubbock encontra mais cabeças rebocadas em outras casas, junto com simples caveiras colocadas em quinas de quartos ou dentro de nichos
nas paredes. Após muito procurar, encontra um homem sentado dentro de casa trabalhando num rosto. Está sendo modelado na caveira de seu pai, o homem que construiu
a casa em cujas mãos deitaram o piso de argamassa sob o qual agora repousam seus ossos. Depois que o corpo ficou enterrado durante vários anos, a cova foi reaberta,
o crânio removido e o piso remendado com nova argamassa. Agora o filho homenageia o pai.
O homem que trabalha está de cócoras ao lado de bacias de argamassa branca, tinta vermelha e uma variedade de contas. As cavidades nasais e órbitas oculares já
foram tapadas e deixadas a secar; nivelou-se a base do crânio, para que se mantenha em pé sem apoio. Agora aplica-se a camada final de fina argamassa, que logo será
pintada de vermelho. Contas de caurim serão inseridas como olhos, e depois se exporá o crânio dentro da casa. Enquanto ele amassa, afila e modela a argamassa, sua
esposa colhe lentilhas nos campos, lutando com o peso do bebê amarrado às costas. Um dia esse filho exumará com amor e modelará a cabeça do pai, para assegurar que
também ele continue a viver dentro da casa, mesmo depois de ter os ossos enterrados sob o piso.
As caveiras rebocadas de Jericó foram talvez a mais impressionante das descobertas de Kathleen Kenyon. Ela encontrou sete dentro de um único poço, junto com vários
crânios isolados sob pisos domésticos. A maioria era mais ou menos quadrada, uma vez que rostos inteiros haviam sido moldados sobre crânios sem a mandíbula inferior.
Mas um estava completo, e a escultura de argamassa parece um elegante retrato de um reverenciado ancestral. Se os crânios foram expostos, pertenciam aos "fundadores"
da casa e aspiravam a ser retratos, são questões especulativas. Tudo o que sabemos é que em algum momento eles foram enterrados em poços, talvez um ato final de
lembrança ou como o último passo para chegar à outra vida.
Desde as escavações de Kathleen em Jerico, encontraram-se crânios rebocados em inúmeros sítios neolíticos, fazendo-os cada assentamento de forma sutil-mente diferente
mas segundo o mesmo desenho básico.
Um diferente tipo de crânio enfeitado foi encontrado em Nahal Hemar - a caverna da qual se recuperaram os fragmentos de tecido. Ali, restos de seis crânios foram
encontrados, todos com faixas de betume dispostas num desenho de rede de um lado a outro do crânio, talvez usadas para grudar cabelos, mas sem argamassa nos ossos
faciais.
Juntava-se a esses crânios na caverna uma série de outros objetos ritualísticos, além das peças de tecido. Entre eles achavam-se os fragmentos de duas máscaras
de pedra pintadas com faixas vermelhas e verdes alternadas, e é provável que tenham tido cabelos e barba grudados. Encontraram-se quatro esculturas de rostos humanos,
cada um feito de um pedaço de um comprido osso e enfeitado com argamassa, ocre-vermelho e betume para assinalar os olhos, cabelos e barba, aplicados em várias ocasiões,
o que sugere que a figura foi intencionalmente "envelhecida". Fragmentos de argamassa foram encontrados em chumaços de capim que, à luz das descobertas que em breve
descreverei, é provável que tenham sido figuras de argamassa moldadas. Havia muitas contas dentro da caverna, várias centenas feitas de conchas marinhas do Mediterrâneo
e do mar Vermelho, e outras de pedra, argamassa e madeira.
David Alon e Ofer Bar-Yosef, os escavadores de Nahal Hemar, esforçaram-se para explicar por que uma coleção tão preciosa de objetos fora colocada dentro de uma
minúscula caverna a muitos quilômetros de distância de qualquer assentamento conhecido. A caverna deve ter sido reverenciada por causa de sua localização na fronteira
entre dois territórios sociais, e na verdade dois tipos distintos de paisagem - os desertos do Negev e da Judéia - e portanto usada como depósito de objetos ritualísticos.
Pouco mais se pode dizer no presente. Tudo o que podemos fazer é visitar a caverna, descrever seus objetos e admitir nossa lamentável ignorância sobre o mundo sagrado
do Neolítico.
De Jericó, uma viagem de 100 quilômetros para noroeste levaria Lubbock às colinas de Nazaré e ao centro funerário de Kfar HaHoresh. Este é vigiado por guardas residentes,
e é para onde as pequenas cidades e aldeias da região levam seus mortos para enterrá-los - ou, com mais freqüência, reenterrá-los, depois que os ossos foram exumados.
Em Kfar HaHoresh ocorre uma legião de práticas rituais: modelagem facial com argamassa, matança e enterro de animais selvagens, colocação de superfícies de argamassa
cercadas por baixos muros em que os ossos são às vezes colocados de modo a imitar uma morte recente, e banquete comunal. Na verdade, à medida que Nigel Goring-Morris,
da Universidade Hebraica em Jerusalém, continua suas escavações, iniciadas em 1991, vem à luz uma gama sempre maior de práticas exóticas.
De Ktar HaHoresh, mais uma caminhada de 30 quilômetros levaria Lubbock à costa mediterrânea abaixo do monte Carmelo. Visto que lhe tomou cerca de 500 anos, ele
poderia então visitar a comunidade costeira de Atlit-Yam. Embora seu povo plante cereais, e tenha gado, cabras e porcos, esta era basicamente uma aldeia de pesca.
Barcos partiam diariamente para pegar com redes cangulos, que viviam no leito arenoso e rochoso. Mas o mar acabará por trazer a morte da cidade, à medida que os
níveis crescentes do mar inundam a costa mediterrânea, deixando Atlit-Yam inteiramente submersa.
O tempo de Lubbock na era neolítica do oeste asiático esgota-se rapidamente. Ele tem portanto de abrir mão de visitas a Kfar HaHoresh e Atlit-Yam, e viajar 50
quilômetros até o lado oriental do vale do Jordão, onde encontrará a maior das cidades neolíticas, a hoje conhecida como Am Ghazal. E assim, durante dois dias, ele
atravessa a densa mata do vale, subindo sua íngreme escarpa oriental e entrado em terras de mato baixo pontilhadas de árvores espalhadas.
O primeiro sinal de uma cidade estar próxima é quando as trilhas de cabras que ele segue se alargam em estradas bem palmilhadas entre pequenos campos, alguns plantados
com lentilhas e ervilhas, outros com trigo e cevada. Mulheres e crianças trabalham, colhendo as lentilhas e partindo aos pares e trios para levar suas pesadas cargas
até a cidade. Muitos cestos esperam para ser levados, c assim Lubbock toma um nos ombros e segue uma mulher com seus dois cansados filhos. Acompanha-os no vale hoje
conhecido como Wadi Zarqa; há caminhos de pedra para atravessar o rio, onde se amarraram muitas cabras. Uma trilha conduz então diretamente ao coração da cidade.
Enquanto anda, Lubbock nota que todo trato de solo disponível foi plantado. O motivo logo se torna claro - a cidade é três ou talvez quatro vezes maior que Jericó.
Os lados do vale de Wadi Zarqa próximos, porém, são inteiramente estéreis - o solo exaurido pelas repetidas safras, e depois levados pelas chuvas do inverno depois
que a vegetação restante foi cortada para fornecer lenha. Algumas das encostas foram aterradas para a construção de novas casas, e famílias vivem em tendas e abrigos
de taipa temporários. Ain Ghazal "desfruta" de uma explosão populacional, em parte de seus próprios habitantes, em parte do influxo de pessoas cujas próprias aldeias
já foram abandonadas devido à erosão e exaustão da terra circundante.
A data é 6.500 a.C., e a cidade é um labirinto de construções - algumas novíssimas, algumas em reparos, outras caindo aos pedaços e abandonadas. São construídas
de pedra bruta, madeira, juncos, barro e argamassa. As pessoas retornam às suas casas com o cair da noite; algumas se põem a comer, outras se preparam para dormir.
Lubbock deixa o cesto diante da casa da mulher a quem seguiu, que agradecerá às crianças por terem-no carregado, para grande surpresa delas. Durante a hora seguinte
ele explora a cidade, espiando por janelas e por cima dos ombros de outras pessoas. Muita coisa é igual a Beidha e Jerico, com cabeças rebocadas c pequenas estatuetas
de barro exibidas em destaque. Numa das casas, ele vê um excelente modelo de uma raposa - na verdade, modelos de animais parecem particularmente importantes para
as pessoas que aí vivem, sobretudo de gado, embora se doméstico ou não permanece incerto.
Em outra casa, um grupo senta-se em torno de uma fogueira em chamas, enquanto lâminas de obsidiana, peças de coral e pedras de cores fortes passam de mão em mão.
Vêm de um homem de roupas e estilo de cabelo distintos - um mercador que chegou recentemente do norte. Espiando pela porta, Lubbock vê pequenas esferas, discos e
pirâmides de barro que são contados e postos em bolsas de couro. Esses artigos são inteira novidade para ele, mas o cansaço vence a curiosidade e ele encontra uma
casa abandonada para dormir.
Na manhã seguinte, Lubbock acorda e encontra a cidade silenciosa e deserta: não se cozinha nos pátios, mulheres não partem para os campos, homens não erguem madeiras
e deitam pisos de argamassa. Enquanto atravessa os becos entre as casas, um baixo murmúrio se transforma num baixo balbucio de vozes. Ao dobrar uma esquina, encontra
uma reunião de várias centenas de pessoas. Meninos sentam-se nos ombros dos pais, as crianças mais velhas subiram em muros e balaustradas de janelas. Todos clamam
por uma visão. No momento em que Lubbock chega, as portas de madeira de um prédio se abrem e sai uma procissão. Pairam o silêncio e a quietude.
Seis homens vêm à frente, usando máscaras, túnicas e adereços de cabeça muito parecidos aos descobertos em Nahal Hemar. Trazem uma plataforma contendo um grupo
de estátuas, feitas de feixes de junco revestidos de argamassa amarrados para formar torsos, braços e pernas. Há talvez doze estátuas de argamassa, algumas de cerca
de 1 metro de altura, outras muito menores. Têm corpos achatados, pescoços alongados, grandes caras redondas, olhos arregalados com profundos centros negros. Os
narizes são modelados como tocos; os lábios mal existem. A argamassa é branco puro; algumas estátuas estão envoltas em finas peças têxteis. Uma tem os braços cruzados
sob os seios, projetando-os para o espectador, ao qual prende com seu olhar acerado.
A multidão clama para ver as estátuas, sabendo que será a sua última oportunidade, pois elas serão enterradas. Mas as pessoas também sabem que dentro de alguns
anos outro conjunto de estátuas será trazido por essas portas de madeira, e depois outro e mais outro; nova vida sempre seguirá a morte, como as plantas da primavera
sempre seguem a colheita.
Lubbock junta-se à procissão até uma casa abandonada e espreme-se lá dentro para ver a cerimônia de enterro e ouvir as preces e cantos. Cada estátua é erguida
e depois cuidadosamente colocada num poço cavado no piso. Mais preces, e fecha-se o poço. Os "sacerdotes" retornam ao prédio de onde saíram, as portas fecham-se
com estrondo. A multidão se dispersa; algumas pessoas parecem em estado de choque, algumas enlutadas, outras confusas.
A cidade de Ain Ghazal foi descoberta em fins da década de 1970, quando a construção de uma nova estrada revelou paredes e ossos humanos. As estátuas de argamassa
foram encontradas em 1983, durante a terceira temporada de escavação dirigida por Gary Rollefson, então da Universidade de San Diego. Ele e seus colegas também encontraram
vários crânios com argamassa, muitos túmulos humanos, indícios de artigos trocados com obsidiana da Turquia e coral do mar Vermelho, junto com numerosos "sinais"
de barro que podiam ser mecanismos de fazer conta, talvez representando a distribuição de campos a determinadas famílias. Também se escavou uma enorme quantidade
de ossos de animais, a maioria vinda de cabras que evidentemente eram mantidas em grandes rebanhos.
Rollefson pôde documentar a prosperidade e eventual fim dessa cidade agrícola. Assim, mesmo sem as estátuas de argamassa, Ain Ghazal teria fornecido mais intuições
sobre a vida econômica, social e religiosa dos primeiros camponeses do Neolítico. Mas são as estátuas que distinguem Ain Ghazal de todas as outras cidades neolíticas.
Embora pedaços de argamassa com impressões de juncos fossem encontradas em Nahal Hemar e Jericó, só em Ain Ghazal as encontraram intactas.

Dois grupos foram descobertos. O primeiro consistia de doze estátuas e treze bustos, todos colocados no mesmo poço, com as figuras maiores alinhadas num eixo leste-oeste.
Dois anos depois, encontrou-se um segundo poço, menor, datando de cerca de 2 mil anos depois na história de Am Ghazal. Suas estátuas eram de desenho muito semelhante,
embora um pouco maiores e mais padronizadas. Incluídos nessa segunda cova havia três espetaculares bustos de uma figura de duas cabeças.
Denise Schmandt-Besserat, da Universidade do Texas, buscou nas práticas religiosas de civilizações babilônicas muito posteriores pistas para o que as estátuas
representavam, acreditando que as origens daquelas crenças babilônicas estão nas primeiras comunidades agrícolas do oeste asiático. Uma das possibilidades é que
as estátuas de argamassa fossem representações de fantasmas. As primeiras escritas babilônicas registram que às vezes se baniam fantasmas das casas enterrando-se
efígies longe das moradias ocupadas. Denise está segura de que as pessoas de Ain Ghazal teriam temido essas estátuas, e que sua aparência fantasmagórica - grandes
olhos fitos, cabeças desproporcionais, e num caso seis dedos nos pés - poderia sugerir espectros.
Assim, talvez Ain Ghazal tenha sido uma cidade cheia de fantasmas, que tinham de ser repetidamente banidos das casas e pátios, dos cercados de cabras e dos campos,
enterrando-os no chão. Mas Denise está mais convencida de outra possibilidade - a de que essas estátuas representem um panteão, os deuses e deusas do Neolítico.
Na literatura babilônica, o grande deus Marduk tem duas cabeças, muito parecido com algumas das estátuas de argamassa e semelhantes a figuras de duas cabeças na
arte das comunidades pré-históricas e históricas posteriores do oeste asiático. A estátua de massa que expõe os seios lembra uma deusa babilônica que adota uma pose
semelhante. Assim, surge a possibilidade de que as raízes da religião babilônica estejam na cultura neolítica do vale do Jordão por volta de 6.500 a. C.
Mas por que seriam enterradas as estátuas? O fato de que duas covas foram encontradas na minúscula parte escavada da cidade sugere que se fizeram outrora muitas
estátuas. Talvez isso se devesse a não outro motivo que uso e desgaste - as figuras de massa logo se rachavam e desfaziam, e assim o enterro era uma maneira de possibilitar
a fabricação de novas estátuas. Ou talvez, como em religiões posteriores, os deuses tivessem de "morrer" e depois renascer cada ano, para assegurar uma primavera
fértil.
As estátuas de massa indicam uma mudança para uma forma mais pública, e talvez centralizada, de atividade religiosa do que a antes presente no Neolítico. Isso
também é sugerido pelo aparecimento de construções que com toda probabilidade eram "templos". Esses prédios têm sido associados a Jericó e Beidha, mas os exemplos
mais convincentes vêm de Ain Ghazal. Por volta do fim da existência desse assentamento, surgem três novos tipos, diversificando o que fora um notável grau de homogeneidade
arquitetônica de moradias retangulares.
Gary Rollefson descreve o aparecimento de construções com extremidades apsidais que se espalharam por "bairros" de moradias: também se construíram pequenos prédios
circulares. Estes tinham os pisos repetidas vezes refeitos, e por isso ele os interpretou como santuários com várias famílias ou linhagens. Conhecem-se igualmente
dois prédios "especiais" das fases finais de Ain Ghazal. O mais impressionante localizava-se no alto de uma encosta em plena vista de todo o assentamento. É único
por não ter piso de argamassa e pela natureza de seus móveis e utensílios sobreviventes. Uma lareira quadrada pintada de vermelho, ficava no centro do aposento,
cercada por sete lajes planas de calcário; havia vários blocos de pé também de calcário e uma coluna de pedra antropomórfica. Rollefson sugere que o prédio pode
ter funcionado como templo para toda a comunidade.
A cidade de Ain Ghazal teve notável crescimento, alcançando mais de 12 hectares de extensão, transbordando para o lado leste de Wadi Zarqa e abrigando duas mil pessoas
ou mais. Em 6.300 a.C., porém, já se acha em avançado estado de declínio terminal. Há muitas casas abandonadas e os becos entre elas estão juncados de lixo neolítico.
Há pouco mais que um débil eco da outrora ebuliente cidade nas poucas casas habitadas e nos poucos homens e mulheres que ainda trabalham nos pátios. Qualquer casa
recentemente construída é pequena e pobre comparada com as da cidade original.
O rio dentro de Wadi Zarqa ainda corre, mas os lados do vale estão nus - não apenas em torno da aldeia, mas até onde a vista alcança. A exaustão e erosão do solo
devastaram a economia agrícola de Ain Ghazal. Não resta uma única árvore à distância de uma caminhada da cidade. Seu povo leve de viajar cada vez mais longe a cada
ano para plantar suas safras e encontrar forragem para suas cabras. A produção decaiu, o combustível tornou-se escasso e o rio poluído com detritos humanos. A mortalidade
infantil, sempre alta, atingiu proporções catastróficas, de modo que o nível populacional despencou, agravado pela constante partida de pessoas que voltavam à vida
em aldeias espalhadas. Essa é a história de todas as cidades do PPNB do vale do Jordão - completo colapso econômico.
Lubbock está agora parado acima do vale de Zarqa, e olha a cena chocante de degradação ambiental causada pela agricultura. Ele e os arqueólogos modernos se perguntam
se a agricultura poderia ter sido a única causa; os núcleos de gelo mostram que entre 6.400 e 6.000 a.C. houve um período de temperaturas particularmente baixas
e chuvas incertas, se não seca. Mas parece inteiramente impossível desenredar os impactos relativos de agricultura humana e mudança do clima na agora estéril paisagem
em torno de Ain Ghazal.
Ao longe, um rebanho de cabras é pastoreado para as colinas. Lubbock observa-as buscando caminho entre as rochas e desaparecendo de vista. Esse rebanho retornará
a Ain Ghazal, mas não por muitos meses, uma vez que surgiu uma nova economia. A vida na cidade não é mais sustentável no vale do Jordão e foi substituída pelo pastoreio
nômade, o estilo de vida que continua até hoje. Dentro de poucos anos, Ain Ghazal não será mais que um lugar de encontro sazonal para pastores de cabras nômades,
que erguerão frágeis abrigos nas ruínas da cidade, enquanto seus animais pastam nos cardais que brotaram nas moradias desertas e locais de enterro dos deuses.

11
Céu e Inferno em Çatalhöyük
Florescimento do Neolítico na Turquia,
9.000 - 7.000 a.C.
John Lubbock aproxima-se do fim de sua jornada pela revolução neolítica no oeste asiático, que transformou os caçadores-coletores de Ohalo nos agricultores, artesãos,
mercadores e sacerdotes de Ain Ghazal. Dessa cidade, ele viajou 500 quilômetros para noroeste, em companhia de pastores e mercadores, atravessando o deserto sírio
de oásis em oásis. Isso o levou ao Eufrates, onde na confluência com o rio Khabur ele visita a cidade de Bouqras, estabelecida num promontório que dá para a planície
aluvial. Em seus prédios, encontra pinturas de parede - imagens de grandes gaivotas, grous ou cegonhas - a primeira visão de uma quantidade sempre crescente de obras
de arte que vai encontrar nos estágios finais de sua jornada oeste asiática.
Mas Bouqras, como Ain Ghazal, já passou do seu auge; muitas das casas de adobe entraram em decadência. A planície aluvial antes provinha ampla terra para caça,
pastagem e civilização. Agora chegaram os tempos difíceis, e a população diminuiu de mil para pouco mais de duas centenas no máximo. Alguns artesãos especializados
continuam a trabalhar, produzindo ótimas tigelas de mármore e alabastro.
Lubbock parte para nordeste, seguindo o Eufrates pelas montanhas Taurus a leste e entrando nas ondulantes encostas de colinas do planalto Anatólio. Ali, o rio
muda de direção, fazendo um arco para oeste por entre colinas estéreis de calcário entremeadas de planícies com florestas. Ali, não mais de 3 quilômetros ao sul
do Eufrates, ele encontra a aldeia de Nevali Çori a cavaleiro das margens de um pequeno riacho tributário. Há cerca de 25 prédios abandonados - todos de um só andar,
retangulares e construídos de blocos de calcário ligados com argamassa de barro - mas nenhuma pessoa. A aldeia está deserta, só se vêem camundongos e ratos que correm
de um lado para outro.
Várias casas foram alinhadas num terraço, com estreitas passagens entre si. Algumas são particularmente grandes, com quase 20 metros de comprimento, e divididas
em aposentos vizinhos. A maioria tem piso de argamassa; onde estes decaíram, surgem canais de escoamento de pedra e túmulos.
Os pisos estão cobertos de lixo - ossos de animais, pilões quebrados, instrumentos de sílex e cestos desgastados. É evidente que o abandono da aldeia foi uma coisa
feita aos poucos, com um lento declínio dos padrões de higiene e ordem. Em meio ao lixo, Lubbock encontra estatuetas de barro e sílex que caíram de prateleiras de
madeira. Um rosto humano estilizado parece conhecido; lembra as máscaras usadas pelos "sacerdotes" de Ain Ghazal, que por sua vez eram semelhantes às máscaras de
Nahal Hemar.
A área diante das casas também é uma bagunça. Vários grandes poços de assar começaram a encher-se de aluvião; outros ainda mostram os revestimentos de pedras.
Cercados de animais desabaram, e ainda há grupos de pedras de moer em meio a casas e palha. Quem quer que tenha vivido em Çori evidentemente foi agricultor como
o povo de Beidha, Jerico e Ain Ghazal; mas os daqui tinham crenças religiosas bastante diferentes, como Lubbock avalia ao entrar no que os arqueólogos chamam de
"prédio de culto".
Fica na ponta noroeste do terraço, um prédio quadrado com os fundos na encosta natural. O telhado de junco quase desabou inteiramente, e as paredes desmoronam.
Lubbock tem de espremer-se por entre madeiras caídas para descer os poucos degraus até o interior. Ao fazer isso, uma legião de cobras brota de debaixo do lixo no
piso.
Um banco de pedra corre ao redor das paredes, dividido em partes por 10 colunas de pedra. Há outras colunas parecendo lages no meio do aposento. Estas têm capitéis
em forma de T e parecem ombros humanos; quando ele olha de perto, vê um par de braços humanos esculpidos em baixo relevo em cada face. Dos degraus, olha um nicho
na parede defronte. Contém uma cabeça humana, sobre a qual repousa uma cobra - cabeça e cobra esculpidas em pedra. As paredes em volta foram outrora densamente rebocadas
e cobertas com exóticos murais pintados em vermelho e preto. Mas a maior parte do reboco caiu no chão, deixando as pinturas como as peças de um quebra-cabeça embaralhado.
Lubbock encontra outras esculturas, algumas de pé, algumas embutidas nas paredes e colunas. Há um grande pássaro, talvez abutre ou águia; uma terceira ave de rapina
encima uma coluna com duas cabeças femininas esculpidas. E assim prossegue - mais pássaros, rostos que parecem parte animal e parte humano, outra cobra.
As escavações cm Necali Çori foram dirigidas por Harald Hauptmann, da Universidade de Heidelberg, entre 1983 e 1991, antes de o sítio ser inundado por um novo lago
atrás da Represa de Atatürk. O assentamento foi criado na mesma época das cidades do PPNB do vale do Jordão, entre 8.500 e 8.000 a.C. Seus habitantes foram agricultores
com trigo domesticado e rebanhos de carneiros e cabras, embora também se praticasse a caça e a coleta. Quando descobertos, as esculturas e entalhes de Nevali Çori
não tinham nenhum precedente no Neolítico, embora tenham nítida origem nos de Göbekli Tepe, o centro de ritual no topo de monte do Neolítico Inicial localizado a
não mais de 30 quilômetros de distância. Na verdade, foi só por escavar em Nevali Çori que Klaus Schmidt pôde reconhecer de pronto as lages de calcário naquele lugar
como tendo vindo de colunas esculpidas do Neolítico.

O desenho do prédio de culto de Nevali Çori, com suas colunas de pé e bancos, tem uma impressionante semelhança com os prédios do PPNA de Göbekli Tepe, com exceção
de sua forma mais retangular que circular. Em 8.500 a.C. porém, prédios retangulares eram também só o que se podia ver sobre aquela colina de calcário. As construções
circulares, com suas grossas colunas esculpidas, tinham sido deliberadamente enterradas por toneladas de terra, e a área, onde ficavam, demarcada por um muro de
pedra. Novos prédios retangulares foram construídos além desse muro, deixando um espaço vazio onde antes ficavam os prédios anteriores agora sepultados. Dentro desses
novos prédios, ergueram-se de novo colunas esculpidas com animais selvagens, de forma idêntica aos enterrados sob a terra mas sem seu tamanho monumental. Como Schmidt
ainda não encontrou vestígios de atividade doméstica ligadas a esses novos prédios, ele desconfia de que Göbekli continuou como um centro ritual até ser abandonado,
provavelmente por volta de 7.500 a.C.
O prédio de culto em Nevali Çori, porém, fizera parte de um assentamento dominado por moradias, da mesma forma que se encontraram prédios especiais na aldeia de
caçadores-coletores de Hallan Çemi Tepsi - o assentamento de 10.000 a.C. localizado 200 quilômetros a leste de Nevali Çori. Também se encontraram prédios de culto
num assentamento localizado a meio caminho entre as duas, conhecido hoje como Çayönü. Isso oferece mais indícios do florescimento de uma cultura no sudeste da Turquia.
Çayönü tem um histórico de escavação muito mais longo que Nevali Çori e Hallan Çemi Tepsi - começou em 1962 e continuou até 1991. O sítio fica na extensão mais
ao norte das baixadas mesopotâmicas, localizado na planície de Ergani, que é cortada pelo Eufrates e o Tigre. Fica à sombra das montanhas Taurus, numa paisagem inteiramente
árida - embora um rio sazonal ainda corra pelo sítio. Quando ocupado, havia mangues e pântanos próximos, onde os castores e lontras eram capturados. É um sítio impressionante
para visitar-se, um lugar de imensa tranqüilidade c com um forte senso de seu passado pré-histórico - um enorme alívio após termos lido de passar pelas várias barreiras
militares que bloqueiam hoje as estradas do leste da Turquia.
A ocupação começou em Çayönü pelo menos em 9.500 a.C, tornando-a contemporânea das primeiras ocupações de Jericó e da construção do centro ritual de Göbekli Tepe.
Seu primeiro povo também construiu moradias circulares, cultivou o trigo e continuou dependendo de animais selvagens, sobretudo porcos, gado e gamo. Em 8.000 a.C.,
porém, já praticava uma forma inteiramente diferente de arquitetura. Fizeram-se grandes prédios retangulares de pedra, usando uma "planta de grade" como fundação
- quer dizer, uma série de baixas paredes paralelas sobre as quais se pusera um piso de madeira e argamassa. Tratava-se provavelmente de proteção contra o chão úmido
e as periódicas inundações. Pelo menos 40 desses prédios com "planta de grade" foram construídos, os maiores divididos em múltiplos aposentos e oficinas. Asli Özdogãn,
da Universidade de Istambul, escavador mais recente, acredita que pelo menos seis fases arquitetônicas são visíveis nos estilos e formas ligeiramente novos de prédios
adotados.
A grande expansão da aldeia refletiu a adoção de uma economia agrícola mista plenamente desenvolvida - provavelmente um dos primeiros assentamentos a fazer isso.
Construiu-se uma "praça" central, supostamente para reuniões e cerimônias públicas, junto com o prédio de culto onde se faziam enterros coletivos e guardavam-se
crânios humanos - nada menos que 70 foram descobertos dentro de um único aposento. Embora não se encontrassem objetos de arte monumental em Çayônü para comparação
com os de Nevali Çori e Göbekli Tepe, mais de 400 estatuetas de barro, sobretudo de seres humanos e animais, foram escavadas do meio do lixo doméstico. Mas apesar
desse uso do barro, e de uma ampla gama de atividades artesanais que incluem a feitura de tigelas de pedra, não se encontrou na aldeia nenhum vestígio de vasos de
cerâmica. Mesmo assim, o povo de Çayönü certamente forçava as fronteiras da tecnologia - pegavam minério de cobre de jazidas a 20 quilômetros de distância e martelavam-no
em contas, ganchos e folhas de metal.
Lubbock parte de Nevali Çori para oeste e faz uma longa viagem, cruzando as montanhas Taurus e entrando no planalto da Anatólia central. Passa por várias pequenas
aldeias e algumas cidades maiores. Durante parte da jornada, ele viaja com pastores e em outra com pessoas que visitam parentes em aldeias distantes ou se dirigem
para as "brilhantes colinas negras".
Essas colinas são feitas de obsidiana e encontradas na região que descrevemos hoje como Capadócia. Mesmo em 7.500 a.C. as pessoas já as vinham visitando havia
vários anos, para recolher o vidro vulcânico depois comerciado e trocado em todo o oeste asiático. A obsidiana que Lubbock viu em Abu Hureyra, Jericó e Ain Ghazal
veio da Capadócia - muito provavelmente depois de passar por muitas mãos e famílias diferentes no caminho.
Não surpreende, portanto, que grandes montes de lascas e núcleos jogados fora cerquem muitas das obras em obsidiana, da qual só os melhores pedaços foram retirados.
As oficinas, nas quais se podem obter enormes lucros da pedra em troca de contas, peles e minério de cobre, são abundantes. Mas a obsidiana cobre uma área demasiado
grande para que se controle todo acesso. E Lubbock passa por muitos pequenos grupos que ou pegam grandes nódulos no chão ou simplesmente quebram grandes lascas de
afloramentos da altamente valorizada pedra negra.
Seus companheiros se dirigem para a cidade que conhecemos hoje como Asikli Höyük, localizada na parte oeste da Capadócia, um espraiado assentamento de prédios
de adobe. Mas Lubbock toma um rumo diferente, e atravessa o planalto anatólio até sua planície mais ao sul, indo para a cidade neolítica de Çatalhöyük.

Durante toda sua viagem desde Nevali Çori, a vegetação mudou constantemente de estepe para mata e de mata para estepe, sensível as muitas variações na topografia
e água - vale de encostas a pique, colinas ondulantes e planície chã cortada por muitos rios. Algumas das matas são agora compostas de enormes carvalhos, por entre
os quais ele capta passageiros vislumbres de gamo e gado. Enormes aves de rapina parecem circular interminavelmente no céu.
É 7.000 a.C., e Çatalhöyük se acha no seu auge. Quando Lubbock se aproxima, entra numa paisagem densamente cultivada. Os sinais de derrubada de árvores são comuns
- a mata evidentemente se transforma num precioso recurso, pois os cortes mais novos são das árvores menores. Aparecem pequenos campos, em que mulheres e crianças
completam seu dia de trabalho, e meninos conduzem rebanhos de carneiros e cabras de volta à segurança noturna da cidade. Esta agora se torna visível, surgindo como
uma sólida massa à meia luz do entardecer.
Çatalhöyük é inteiramente diferente de qualquer lugar que Lubbock já viu. Parece ter um muro perimetral contínuo, que não tem entrada nem desejo de receber hóspedes
indesejáveis. Olhando mais de perto, Lubbock percebe que não é de modo algum um muro único, mas o resultado de muitas paredes juntas de prédios individuais que se
apegam uns aos outros como com medo do que há fora deles. Um rio sujo, coalhado de lixo, estagna-se ao longo de um lado, levando a mangues e pântanos fedorentos
atrás da cidade. Do outro lado há uma lagoa lodosa, em torno da qual se instalam as cabras para passar a noite.
Lubbock observa os trabalhadores do campo que voltam para casa; eles sobem em escadas de madeira para os telhados, dispersam-se e desaparecem por um labirinto
de caminhos ali em cima, degraus e escadas que conduzem de nível em nível e de casa em casa. Entre os caminhos há telhados de barro planos, alguns evidentemente
usados como oficinas para fabricação de instrumentos e cestos. Uns poucos desabaram, deixando buracos escancarados que revelam os aposentos embaixo. Às vezes os
caminhos beiram pátios inteiramente cercados por paredes de adobe; destes vem o fedor de detrito humano.
Cada casa tem um alçapão de entrada no lado sul e pequenas janelas em qualquer parede exposta acima do telhado vizinho. Algumas portas estão abertas, soltando
fumaça e a luz de tremulantes lâmpadas de azeite no ar frio da noite; às vezes um brilho mais ousado, mais forte, emana de uma lareira bem alimentada.
Escolhendo uma porta aberta, Lubbock desce por uma escada de madeira para a área de cozinha de um pequeno aposento retangular. Vê à sua frente uma lareira elevada
- uma plataforma com um rebordo para evitar algum transbordamento de cinzas. Emite um profundo fulgor e um baixo calor do combustível de estrume animal. Próximo,
construiu-se um forno na parede, revelando adobes ordenados, e ao lado uma bilha de barro com um buraco na base, do qual caem lentilhas. Há utensílios espalhados,
um cesto com raízes e uma cabra pequena amarrada na parede. Como tal, é uma cena doméstica conhecida, que poderia ser encontrada em Jericó ou Am Ghazal. Mas então
Lubbock se volta e vê uma cena monstruosa de touros irrompendo da parede.
São três, à altura da cintura - cabeças brancas com raias pretas e vermelhas, das quais brotam enormes chifres pontudos que parecem ameaçar toda a vida humana
dentro da casa. Ao lado de Lubbock, uma mulher e um homem sentam-se numa plataforma elevada vizinha aos touros, cabisbaixos, comendo pão em silêncio. Entre eles,
uma criança deixou seu pão intocado no prato de madeira.
Em volta dos touros as paredes são pintadas com fortes desenhos geométricos - imagens nítidas e opressivas acima de impressões palmares em preto e vermelho semelhantes
às pintadas na caverna francesa de Pech Merle no LGM. Mas enquanto aquelas mãos de caçadores-coletores da era do gelo eram acolhedoras, estendidas em saudação aos
visitantes dentro da caverna, estas mãos agrícolas de Çatalhöyük parecem mais uma advertência ou um pedido de socorro - seu povo está preso dentro de um bestiário
do qual não pode escapar.
E assim começa a excursão noturna por Çatalhöyük, uma visão de pesadelo do mundo que a agricultura trouxe a esses membros da humanidade. Primeiro, Lubbock rasteja
por uma pequena entrada para escapar do aposento, mas isso não leva a parte alguma, apenas a um depósito onde se empilham cestos e couros. Por isso ele retorna ao
telhado e tenta outra casa, e depois outra e mais outra. Em cada uma, encontra a mesma coisa - a lareira, o forno, a bilha de grão, a plataforma, tudo disposto de
forma idêntica, em aposentos de tamanho e forma quase idênticos. Muitos aposentos têm estatuetas de barro dentro de pequenos nichos, ou simplesmente no chão; algumas
são evidentemente de mulheres, outras de homens, mas muitas parecem inteiramente sem sexo. A mais espantosa é uma mulher que se senta num trono, ao lado de uma bilha
de grão. Tem de cada lado um leopardo; repousa uma mão em cada cabeça, e as caudas dos animais se enroscam em seu corpo.
Os touros variam de aposento para aposento, mas são sempre chocantes, sobretudo quando encontrados nos fortes raios de luar que agora entram pelas minúsculas janelas,
ou pelas chamas que dão vida às feras. Há cabeças de touros com longos chifres retorcidos, outras com as caras cobertas de desenhos exóticos, e ainda outras empilhadas
umas em cima das outras do chão ao teto. Alguns aposentos têm colunas de pedra com chifres, ou longas filas de chifres postas em bancos, desafiando qualquer um a
sentar-se ao seu alcance.
Juntam-se a desenhos geométricos imagens de grandes abutres negros atacando perversamente pessoas sem cabeça, e cenas de gamos e bois enormes cercados por minúsculas
pessoas em frenesi. As pessoas reais dormem em suas plataformas. Jazem em posições contorcidas, às vezes acordando de repente e olhando Lubbock que passa, como se
pudessem ver mais um intruso em suas vidas.

Lubbock sobe e desce escadas, de aposento em aposento, de horror em horror, até cair exausto e jazer prostrado diante de outra parede esculpida. Põe-se de joelhos
de frente para um par de seios femininos que emergem do adobe e reboco. Os dois mamilos estão divididos, e dentro há crânios de abutres, raposas e fuinhas: a própria
maternidade violentamente conspurcada. Lubbock não agüenta mais e rasteja pelo chão para a escuridão de breu de um depósito. E ali se esconde, na esperança de que
a luz do dia traga libertação desse inferno neolítico.
Era um frio dia de novembro de 1.958 quando James Mellaart, bolsista do Instituto Britânico de Arqueologia em Ancara, chegou ao monturo de Çatalhöyük. Ele vinha
buscando sítios arqueológicos na planície de Konia, no planalto anatólio, desde 1951, e na verdade vira o monturo de longe em seu segundo ano de trabalho. Quando
por fim o examinou, este encontrava-se coberto de mato, a superfície batida pelos ventos sudoeste, que haviam revelado os inequívocos vestígios de paredes de adobe
e exposto artefatos como pontas de flecha de obsidiana e fragmentos de cerâmica. Mellaart soube imediatamente que fizera uma descoberta importante. Ao seu olho treinado,
os artefatos eram inequivocamente do Neolítico, um período de assentamento então desconhecido na região. E o monturo era enorme, de 450 metros de comprimento e cobrindo
13 hectares. Mas ele não tinha idéia de como aquilo ia se revelar importante. Çatalhöyük simplesmente mostrou ser o mais notável assentamento neolítico já descoberto
- embora esse status deva agora ser dividido com Göbekli Tepe, ou talvez mesmo a ele cedido.
Mellaart escavou o assentamento entre 1961 e 1966, revelando não mais que uma minúscula fração da quina sudoeste. Suas descobertas de paredes pintadas, cabeças
de touros, túmulos e estatuetas humanos logo se tornaram famosas em todo o mundo. Junto com estes havia uma impressionante série de artefatos, incluindo espelhos
feitos de obsidiana e cabos de adaga delicadamente talhados.
Mas que descobrira ele, exatamente? Havia uma série de aposentos: os maiores e mais elaborados julgados santuários, os menores, moradias domésticas. E no entanto,
apesar das esculturas e pinturas, sinais de artesãos especializados e complexidade arquitetônica, não havia indício de casta sacerdotal, chefes políticos ou prédios
públicos.
Mellaart entrou no Instituto de Arqueologia de Londres, onde suas aulas na década de 1970 eram fascinantes, sobretudo para um universitário chamado Ian Hodder.
Em 1993, Hodder se tornou professor de arqueologia em Cambridge, e era tido por muitos como o mais inventivo arqueólogo de sua geração. Foi pioneiro no estudo do
simbolismo pré-histórico, e portanto não causou grande surpresa que se sentisse atraído para Çatalhöyük - o desafio último para os que desejavam entrar nos mundos
simbólicos de pessoas do passado.

Hodder começara a planejar seu trabalho em Çatalhöyük em 1991, desejando não apenas fazer novas escavações, mas assegurar que se conservasse, restaurasse e administrasse
adequadamente o sítio como parte da herança da Turquia. O resultado foi um dos maiores projetos arqueológicos do mundo atual, que aplica os últimos avanços na ciência,
métodos e teorias arqueológicos. Alguns dos resultados mais informativos vieram de estudos microscópicos de depósitos no piso e reboco de parede, feitos por Wendy
Matthews - colega minha na Universidade de Reading. Esses estudos mostraram que algumas paredes tinham até 40 camadas de pintura e reboco, sugerindo que podem ter
sido retocadas todo ano, ou talvez toda vez que se fazia um novo enterro embaixo da parede.
Hodder duvida que tenha havido algum prédio público, sacerdotes ou chefes políticos no assentamento. Também questiona a distinção feita por Mellaart entre santuários
e casas domésticas - o estudo microscópico de depósitos no piso dos chamados santuários mostrou que ocorriam nesses aposentos atividades de rotina como fabricação
de instrumentos, da mesma forma como nos Outros. Hodder acredita que as atividades ritualísticas e domésticas eram tão intimamente interligadas que é improvável
que as próprias pessoas fizessem alguma distinção entre as duas.
A base econômica de Çatalhöyük também foi posta em questão. Mellaart linha pouca dúvida de que um tal assentamento devia depender de uma economia agrícola eficiente,
baseada em cereais e gado. Mas suas provas eram frágeis. Encontraram-se alguns cereais calcinados, mas o equipamento de moagem é raro dentro das casas e pátios,
em comparação com a abundância nas aldeias do vale do Jordão. Plantas e animais selvagens, como tuberosas e gamo, podem ter tido muito maior importância do que acreditava
Mellaart. Estudos iniciais do material recém-escavado sugerem uma economia não diferente de qualquer outro assentamento de sua era, baseada em carneiros e cabras
domésticos, cereais e legumes.
O trabalho de Hodder, no entanto, confirmou muitas das opiniões originais de Mellaart. Este acentuara a ordem dentro do assentamento, a maneira como cada aposento
seguia os mesmos arranjos espaciais, e a notável uniformidade no desenho de artefato durante toda a história do assentamento. Hodder descobriu mais indícios dessa
ordem. Quando as casas precisavam de reconstrução, eram feitas segundo o mesmo desenho e no mesmo lugar, mantendo as mesmas áreas paia cada atividade que se exercia
dentro delas. Ele sugere que diferentes tipos de pessoas - velhos e jovens, homens e mulheres, fabricantes especializados de instrumentos e os sem qualificações
- eram bastante restringidos quanto a onde podiam sentar-se e trabalhar dentro de cada aposento. A mim, parece-me que cada aspecto de suas vidas se tornara ritualizado,
toda independência de pensamento e conduta esmagada por uma opressiva ideologia manifesta em louros, seios, caveiras e abutres.

Isso parece a vida num inferno neolítico, o que é irônico, porque, quando visitei o monturo numa tarde de outono em 2002 d.C., o sítio se assemelhava mais a um
paraíso arqueológico. Estava deserto, só havia a presença do guarda, e parecia esplêndido no meio da planície de Konya. As valas recentemente escavadas por Hodder
eram protegidas por cobertas e vi o reboco das paredes, lareiras e toda uma gama de traços arquitetônicos maravilhosamente preservados: fendas nas paredes onde houvera
escadas, entradas e quartos de depósitos, bilhas de grãos e plataformas abaixo das quais se tinham feito enterros. Igualmente impressionantes eram o laboratório,
oficinas e instalações para os arqueólogos in loco, as exposições para os visitantes e a moradia reconstruída para eles verem. Lembrei-me de que lera uma entrevista
dada por Ian Hodder em que lhe pediram para descrever o projeto de seus sonhos. Ele respondeu, o que não surpreende, que já o achara e pretendia prosseguir com a
escavação de Çatalhöyük por muitos anos.
É o amanhecer em Çatalhöyük em 7.000 a.C. Cansado após sua atormentada noite, Lubbock tornou a subir para o telhado e encontrou um ponto privilegiado do outro lado
da planície. O sol ainda não nasceu e faz frio. Um pastor de cabras já deixou a cidade em busca de pasto para seu rebanho; uma mulher capina os campos que cercam
a cidade. Lubbock volta-se para o leste, em direção a Nevali Çori e Göbekli Tepe, cujas obras de arte pareciam prever Çatalhöyük. Mas também o fizeram, ele pensa,
os pássaros pintados de Bouqras, as estatuetas de bois e as figuras de massa de Ain Ghazal.
Voltando-se para o sudeste, para as modernas terras de Israel e Jordânia onde começou sua viagem, ele lembra que as aves de rapina haviam sido reverenciadas e
as cabeças retiradas de corpos humanos nas primeiras aldeias agrícolas: Jericó, Netiv Hagdud e WF16, E assim as pinturas e esculturas de Çatalhöyük talvez não sejam
tão horríveis afinal - simplesmente uma expressão da mitologia que surgiu junto com os campos de trigo quando a agricultura foi inventada e desenvolvida no oeste
asiático.
Ele então olha mais atrás ainda no tempo, sua chegada a Ohalo antes de seu incêndio, suas viagens pela estepe e deserto, a ceifa de trigo nas hortas selvagens
de Ain Mallaha. Que teriam pensado de Çatalhöyük aqueles caçadores-coletores kebaranos e natufianos? O mais provável é que tivessem ficado confusos e aterrorizados,
pois pareciam confiar no mundo natural, na verdade serem eles próprios parte dele. O povo de Çatalhöyük, por outro lado, parecia temer e desprezar o agreste.
Com outra volta, Lubbock olha para oeste, para a Europa. Uma jornada por aquele continente será a próxima etapa de suas viagens pela história global. Começará
nas profundezas da Era do Gelo, no extremo noroeste, onde as pessoas caçam renas e vestem-se de peles. Mas primeiro ele tem de visitar o que ainda continua sendo
uma casa intermediária entre a cultura européia e a oeste asiática - a ilha mediterrânea de Chipre.

12
Três Dias em Chipre
Extinções, colonização e estase cultural,
20. 000 - 6.000 a.C.
Alan Simmons equilibrava-se precariamente à beira de um penhasco acima de um brilhante mar Mediterrâneo. Eu escutava com atenção a descrição de sua escavação da
Caverna de Aetokremnos em Akrotiri - agora pouco mais que uma plataforma no lado do penhasco, depois que o teto desabou muitos milhares de anos atrás. Eu me agachava
no seu piso; tinha à minha frente Alan, de costas para o mar, um forte vento assanhando-lhe a massa de sedosos cabelos grisalhos. Muito acima, aves de rapina circulavam
nas correntes termais - talvez soubessem que Aetokremnos significa penhasco dos abutres.
Alan disse que havia duas camadas principais no chão, a de cima com instrumentos de pedra, um bolo de conchas c ossos de pássaros; a de baixo entupida de ossos
de hipopótamos - mas não como os animais da África hoje. Esses eram hipopótamos pigmeus, do tamanho de porcos, e mais de 500 deles foram escavados dos restos da
minúscula caverna.
Alan explicou que eles haviam sido caçados por volta de 10.000 a.C. pelas primeiras pessoas a chegarem a Chipre; Aetokremnos era o lugar para onde levavam as carcaças,
assavam-nas, e depois as esquartejavam para tirar a carne, gordura e ossos. Meu colega estava excitado, agitava os braços, especulando que os animais eram enxotados
dos lugares onde comiam e obrigados a pular da beira do penhasco para a morte. Um passo atrás, eu pensava, e ele iria se juntar a eles nos rochedos embaixo, cobertos
pelas ondas.
Entre 20.000 e 10.000 a.C., não havia habitantes humanos em Chipre. Tampouco havia cabras selvagens, javalis ou gamos. Cercada por mares profundos, Chipre, como
outras ilhas mediterrâneas, ficara isolada de outras massas de terra durante milhões de anos, e assim mal tinha alguma fauna.
Havia sem dúvida bastante forragem e pastagem, pois a ilha era coberta por uma mistura de densa mata e estepe, as proporções e composições mudando à medida que
o clima passava por seus altos e baixos rumo ao mundo do Holoceno. Em 10.000 a.C., grande parte da ilha foi coberta por florestas de carvalho; pinheiros cresciam
nas montanhas, junto a esplêndidos cedros com seus grandes galhos espraiados e forte cheiro.
Além de camundongos e seu pequeno e peludo predador noturno, o gineto, os únicos animais que cresciam na ilha eram hipopótamos e elefantes pigmeus. Os primos em
tamanho natural deles tinham vivido outrora nos pântanos costeiros do oeste asiático inundados pelo mar em elevação. Numa data muito antiga, elefantes e hipopótamos
como os conhecemos hoje nadaram até a costa cipriota. Na ausência de ameaça de um predador, a evolução transformou seus descendentes em anões - os grandes volumes
eram desnecessários se a única preocupação era proporcionar alimento e sexo suficientes para assegurar a sobrevivência dos genes.
Elefantes e hipopótamos assumiram aos poucos o tamanho de porcos grandes, os últimos muito mais numerosos e com um comportamento parecido ao dos próprios porcos.
Eram bons nadadores, mas pareciam mais felizes correndo de um lado para outro pelo mato baixo, comendo folhas e brotos. Os hipopótamos matavam a sede em fontes de
água doce no topo dos penhascos. No tempo frio, abrigavam-se nas cavernas costeiras, pois sabiam subir e descer encostas íngremes. As cavernas também podem ter sido
usadas para parir, amamentar os filhotes, e como lugar onde morrer assim que se completava a vida do hipopótamo.
Em 10.000 a.C., John Lubbock senta-se sem ser visto numa nesga de praia arenosa com outros cinco viajantes - três homens e duas mulheres. Acabaram de puxar sua canoa
para a praia abaixo da Caverna de Aetokremnos, aliviados por chegarem à terra seca após uma exaustiva travessia marítima de 60 quilômetros, vindos da costa do oeste
asiático. Evidentemente famintos, logo se põem a catar mariscos nas rochas e poças rasas, sabendo exatamente onde procurar. Dois seixos de praia bem mirados derrubam
dois patos que ondulavam na água, inteiramente despreocupados com a ameaça representada pelos estranhos recém-chegados.
Os canoeiros avistaram a caverna quando contornavam a costa sul de Chipre. Agora dentro dela, acham-na acanhada e curvam-se para não arranhar a cabeça. Usando
pedras como picaretas e pás, começam a cavar o solo arenoso para fazer uma fogueira; ao fazerem isso, surgem ossos que são ou jogados fora ou adotados como um instrumento
melhor. Lubbock agacha-se atrás, joelhos encolhidos sob o peito, na cabeça um machucado roxo de uma batida no teto da caverna.
Dentro do raso poço, os companheiros de Lubbock acendem uma fogueira com madeira recolhida na praia e quebrada de arbustos secos. Enquanto os patos são mais ou
menos depenados, os canoeiros dão uma segunda olhada nos ossos desenterrados dentro da gruta. Lubbock observa-os passar um crânio em volta, examinando os dentes
e depois ignorando a que animal poderia pertencer. Apesar de caçadores experimentados, jamais viram tais ossos antes. Uns poucos são reunidos, espanados de areia
e postos nas chamas na esperança de que ardam, para fazer durar a lenha.
Minha chegada a Chipre fora no dia anterior àquele em que Alan me levou à Caverna de Aetokremnos. Tinha apenas três dias para passar na ilha, enquanto participava
de uma conferência sobre sua pré-história inicial. Enquanto Alan Simmons conduzia uma excursão ao sítio, outros 20 delegados à conferência se agachavam no penhasco
onde ficara outrora a Caverna de Aetokremnos.
A caverna era o mais controvertido sítio discutido na conferência em setembro de 2001. Fora objeto de quase contínuo debate desde as escavações de Alan e suas
provocativas afirmações de que o grande número de ossos calcinados da caverna ofereciam prova conclusiva de que seus ocupantes haviam matado e comido os hipopótamos.
De que outro modo poderiam os restos de tantos hipopótamos pigmeus ter chegado dentro da caverna na metade de uma íngreme escarpa?7
Havia alguns fatos incontestes sobre o sítio: seres humanos tinham feito uma fogueira na caverna por volta de 10.000 a.C., deixando espalhados instrumentos de
pedra e contas feitas de conchas marinhas. Ninguém questionava que essas pessoas também tinham sido responsáveis pelos milhares de conchas de mariscos e os ossos
de uma variedade de patos e pássaros. Alguns dos ossos de hipopótamo tinham inquestionavelmente sido queimados, mas como tinham originalmente chegado dentro da caverna
era motivo de intensa discussão.
Os críticos de Alan indicavam a raridade de artefatos de pedra encontrados com os próprios ossos de hipopótamo, sugerindo que os poucos na camada de baixo podiam
ter facilmente escorregado por fendas ou levados por roedores que se entocavam na gruta. Também indicavam a completa ausência de marcas de cortes de instrumentos
de pedra em qualquer dos 218 mil ossos de hipopótamos desenterrados. Só marcas de corte podiam oferecer a prova incontestável de que eles tinham sido caçados e esquartejados;
sem eles, os ossos podiam simplesmente ser um depósito natural como os encontrados em muitas cavernas em toda a costa cipriota, talvez acumulando muitas dezenas
de milhares de anos antes da chegada de gente.
Quando preparava seu relatório, Alan convidara Sandi Olsen, do Museu Carnegie de História Natural, em Pittsburgh, EUA - uma especialista em identificar esquartejamento
por seres humanos -, para examinar os ossos. Infelizmente para ele, ela também se tornou sua mais severa crítica. Sandi sugeriu que as pessoas na Caverna de Aetokremnos
tinham simplesmente escavado seus depósitos para abrir mais espaço para si mesmas; isso desordenou os ossos de hipopótamo, alguns dos quais tinham sido queimados
por suas fogueiras e se misturado com os detritos deixados para trás. Os ocupantes podem até mesmo ler tentado usar os ossos como combustível. Sandi julgou provável
que os ossos de hipopótamo fossem vários milhares de anos mais velhos que a ocupação humana. Mas explicou que quaisquer datas de radiocarbono para os próprios ossos
não eram confiáveis, devido a alterações químicas causadas pelo fogo.
Eu pesei os dois lados da discussão. Alan era um defensor convincente da existência de caçadores de hipopótamos, mas sem marcas de corte nem datas de radiocarbono
confiáveis não me convencia. As constantes mudanças de clima e ecologia entre 20.000 e 10.000 a.C. teriam perturbado os padrões de reprodução dos hipopótamos pigmeus;
a disseminação de mata densa em 12.500 a.C. - o interestadial glacial tardio - pode ter tido um efeito devastador. E assim desconfio de que em 10.000 a.C., depois
que as primeiras canoas chegaram à praia de Chipre, não havia hipopótamos e elefantes pigmeus bebendo nas fontes no topo dos penhascos - apenas aves de presa circulando
ociosas nas correntes termais. Nessa data os hipopótamos já haviam despencado da borda - não do penhasco, mas da própria existência.
Se eram caçadores de hipopótamos ou não, os artefatos de pedra de Aetokremnos e a datação por radiocarbono de suas fogueiras de aproximadamente 10.000 a.C. proporcionam
o mais antigo indício conhecido de presença humana em Chipre. Por que foram eles para a ilha? A data pôs a ocupação dentro do Jovem Dryas que transformara a vida
no oeste asiático. Se as pessoas se assentaram em Ain Mallaha ou na Caverna de Hayonim em Israel, ou em Abu Hureyra no Eufrates, retornaram a um estilo de vida transitório
quando a produção de suas hortas selvagens entrou em colapso. A chegada delas a Chipre pode ter sido mais uma conseqüência da tensão econômica que enfrentavam. A
existência da ilha certamente teria sido conhecida, ou por ser ela própria visível de picos de montanhas ou suspeitada por distantes formações de nuvens, correntes
reveladores ou detritos flutuantes trazidos pelas ondas.
O que os caçadores encontraram lá deve ter sido uma decepção - não havia caça, e só poucos cereais para colher. Como Aetokremnos é atualmente o único sítio de sua
era conhecido na ilha, parece que os primeiros visitantes partiram sem demora. Quase 2 milênios teriam de se passar para que as pessoas voltassem a Chipre; quando
o fizeram, foram mais bem preparadas, levando não apenas sementes de grãos nos barcos, mas cabras selvagens e javalis para abastecer a ilha.
No segundo dia de minha visita, fiquei olhando o poço do Neolítico com Paul Croft, diplomado por Cambridge e hoje arqueólogo residente em Chipre. Ele descrevia a
descoberta e escavação do poço. A menos de 100 metros, turistas bronzeavam-se nas areias de uma baía abrigada e tomavam coquetéis sob as sombrinhas de falsa palha
de um bar de praia.
Desde 1989, Paul vem trabalhando com uma equipe da Universidade de Edimburgo num "relatório de observação" no balneário em rápido desenvolvimento de Mylouthkia,
no sudoeste da ilha. Um "relatório de observação" arqueológico é exatamente isso - observar o que uma pedreira ou obra de construção revela, e poder mandar parar
se aparece alguma coisa de importância arqueológica.
Já se sabia que Mylouthkia era rica em restos da Idade do Bronze de Chipre, começando por volta de 2.500 a.C. mas a descoberta desses poços antigos foi uma completa
surpresa. Os únicos outros exemplos neolíticos fora de Chipre vinham da aldeia submersa de Atlit-Yam, ao largo da costa Israelense, mas essas novas descobertas eram
consideravelmente mais antigas. Na verdade, podiam ser os poços mais antigos conhecidos do mundo.
Paul explicou que os poços - tinham seis espalhados em torno e dentro de um novo complexo hoteleiro - tinham sido descobertos como círculos de solo escuro no chão,
ou como longas colunas de solo que foram fatiadas ao comprido, quando a pedra em torno foi cortada. A princípio se supôs que eram da Idade do Bronze e não mais que
poços rasos. Mas a escavação revelou que desciam pelo menos 10 metros na rocha macia. Os detritos que os haviam enchido continham muitos artefatos reveladores do
Neolítico, sendo de particular significação a completa ausência de cerâmica. Datas de radiocarbono confirmaram que eram do Neolítico Inicial, e com isso estenderam
a antigüidade da agricultura em Chipre em pelo menos 200 anos.
Em vez de serem abandonados quando não mais necessários, ou quando os rios subterrâneos secaram, os poços foram deliberadamente enchidos. Um deles revelou conter
um grande número de vasos de pedra fragmentados, juntos com martelos de pedra e lascas de sílex usados na sua manufatura. Estes muito provavelmente vinham de um
monte de lixo perto do poço. Outro tinha disposições ritualísticas. Continha 23 carcaças de cabras completas, um crânio humano cuidadosamente posto em posição e
uma elegante cabeça de maça feita de pedra cor-de-rosa polida.
Paul disse que os poços tinham sido cortados com picaretas de galhada de veado e que apoios para mãos e pés ainda sobreviviam em suas paredes para subir e descer.
Mas antes que eu tivesse uma oportunidade de pedir permissão, ele já conduzira os delegados da conferência para longe. Desejava mostrar-nos um recém-descoberto e
ainda não escavado poço no quintal de um apartamento do hotel.
É 8.000 a.C., e Lubbock espia dentro do mesmo poço. Há uma cerca protetora de vime em torno da abertura que se tem de passar por cima. Perto dali, três ou quatro
adultos e alguns adolescentes talham vasos de pedra sob um frágil abrigo. Usam martelos de pedra para quebrar, depois trabalhosamente talham a pedra em modelos brutos,
e em seguida os lixam e esculpem em tigelas e pratos. Para fazê-lo, têm de despejar água continuamente sobre as pedras. Lubbock calcula que é por isso que trabalham
tão perto do poço.
Não há construções em volta do poço, nem uma única cabana, quanto mais uma aldeia neolítica à vista no raquítico matagal que chega até a margem de uma enseada,
a uns 200 metros de distância. Lubbock senta-se na oficina e observa que um dos homens tem uma faca com uma lâmina brilhante enfiada no cinto. Como o homem se concentra
muito em seu trabalho, Lubbock se esgueira com cuidado e descobre, como imaginou, que é afiada como uma navalha - exatamente a mesma pedra que ele viu em grande
quantidade na Capadócia, quando viajava para Çatalhöyük. Assim, ou esses artesãos cipriotas vieram um dia do sul da Turquia ou foram ligados àquela região pelo comércio.
O trabalho deles chega a uma abrupta pausa quando um barco aparece dentro da enseada. É inteiramente diferente da canoa de tronco que chegou a Aetokremnos um milênio
e meio atrás; este vaso é construído com tábuas e tem mastro e vela. Em alguns minutos, o barco já ancorou e mais ou menos uma dezena de pessoas vem por dentro d'água
ate a praia, saudados pelos artesãos que correm ao seu encontro.
Lubbock também vai até o barco e logo está ajudando a descarregar - sacos de trigo e cevada, algumas cabras e um jovem gamo, todos com as pernas firmemente amarradas
e com muito má aparência. As pessoas - duas famílias - não parecem muito melhor; as crianças em particular têm o ar de bastante enjoadas.
Enquanto os recém-chegados bebem sedentos água do poço, Lubbock reflete sobre a data, 8.000 a.C., e o que deve esperar encontrar em outra parte da ilha. Quando
esteve no oeste asiático, nessa data, ele visitava Beidha - uma cidade com prédios retangulares de dois andares, uma casa de assembléia pública, celeiros e pátios.
Essas aldeias e pequenas cidades foram descobertas por todo o Crescente Fértil. Lubbock lembrou-se do homem rebocando o crânio do pai em Jerico e que viu o enterro
de estátuas em Ain Ghazal. Teria Chipre aldeias ou mesmo cidades neolíticas semelhantes? Como os agricultores da ilha devem ter vindo do oeste asiático, supõe-se
que sim. Assim, Lubbock deixa o poço, artesãos e recém-chegados em Mylouthkia e dirige-se para o interior, em busca de vida aldeã.
Há pelo menos dois assentamentos na Chipre contemporânea dos poços de Mylouthkia. Um, o sítio de Shillourokambos, é outra descoberta recente. Aprazivelmente situado
entre renques de oliveiras, a poucos quilômetros da costa sul da ilha, as escavações estão sendo feitas desde 1992 pelo arqueólogo francês Jean Guilaine. Tínhamos
visitado esse sítio antes de vermos os poços de Mylouthkia.
Guilaine, muito francês com suas alpercatas, dar de ombros e charme, ofereceu uma excursão por suas escavações em andamento. Também descobrira poços, junto com
os vestígios de um cercado possivelmente usado outrora como curral de animais, talvez de hábitos e formas ainda selvagens. Encontrara em seu sítio ossos de gado
- outro animal que deve ter sido trazido em barcos do oeste da Ásia.
Shillourokambos teve uma longa história de ocupação, mas a preservação arquitetônica é precária; na verdade, quase inexistente, uma vez que qualquer pedra útil
ali há muito foi retirada para construção em outra parte. Pelo que Guilaine detectou de buracos de estaca e poços, suas moradas tinham desenho circular. Como tal,
assemelhavam-se aos prédios em Tenta, outro assentamento neolítico de data semelhante. Mas também condiziam com as casas em todos os assentamentos de fins do período
neolítico na ilha, até 5.000 a.C. e além.

A longa tradição de moradias circulares em Chipre foi reconhecida desde a década de 1930, quando começaram as escavações no mais conhecido sítio neolítico cipriota,
Khirokitia. O assentamento cobre toda a encosta de uma colina a alguns quilômetros de Tenta. Era do tamanho das cidadezinhas do Neolítico Pré-Cerâmica B do oeste
da Ásia - embora, quando Khirokitia atingiu seu auge, essas cidades já estivessem há muito abandonadas. E no entanto, a construção de Khirokitia partiu de pequenas
casas de um só andar e circulares. São as mais comparáveis às das primeiras aldeias do oeste da Ásia, como Netiv Hagdud, no vale do Jordão, e Jerf el Ahmar, no vale
do Eufrates, as duas datando de cerca de 9.500 a.C.
Tenta foi a mesma coisa, fornecendo indícios de um estilo arquitetônico que evidentemente sobrevivera por muitos milênios em Chipre após ter sido substituído em
outras partes. Iann Todd, trabalhando para o Departamento de Antigüidades do Chipre, escavou a aldeia na década de 1970. Revelou um aglomerado de pequenas casas
circulares em volta do cume de um morrote, algumas feitas de pedra e outras de adobes. No cume em si, havia uma estrutura circular muito maior, com três paredes
concêntricas cercadas por pequenas celas.
A estrutura tem tamanho, forma e desenho quase idênticos a uma encontrada mais de 500 quilômetros a leste, e que pode ter sido construída mil anos antes. Esta
foi descoberta no assentamento de Jerf el Ahmar, escavado por Danielle Stordeur na década de 1990 e hoje inundada pelo lago Assad. Com paredes concêntricas e celas
radiais, Danielle sugeriu que a estrutura de Jerf el Ahmar poderia ter sido um celeiro central para a aldeia, construído por esforço comunal.
A impressionante semelhança entre as estruturas de Tenta e Jerf el Ahmar foi observada por Eddie Peltenburg, arqueólogo da Universidade de Edimburgo que dirige
escavações em Chipre e na Síria. Na apresentação de uma conferência, Peltenburg destacou várias outras ligações entre a arquitetura neolítica em Chipre e a das mais
antigas aldeias neolíticas no Iraque, Síria e Turquia, que datam do Neolítico Pré-Cerâmica A. As duas, por exemplo, utilizavam pilares grossos no interior das casas;
estas tinham sido descobertas em Qermez Dere e Nemrik, no Iraque (como veremos num capítulo posterior), e em Nevali Çori e Göbekli Tepe, na Turquia. Além disso,
pelo menos um dos pilares em Tenta fora pintado com uma figura antropomórfica dançando, que lembrava as obras de talha nos dois sítios posteriores. Como as casas
em Chipre tinham paredes grossas, Peltenburg descartou a idéia de que os pilares eram necessários como suportes de telhado. Julgou que eram desprovidos de qualquer
função utilitária e carregados de sentido simbólico.
Com base nessas semelhanças arquitetônicas e as constatadas nos detalhes técnicos de instrumentos de pedra, Peltenburg propôs que os primeiros agricultores em
Chipre se tinham originado no oeste da Síria ocidental: não dos próprios assentamentos de Jerf el Ahmar ou Nevali Çori, pois estes ficam muito para o interior, mas
de assentamentos contemporâneos perto da costa com as mesmas tradições arquitetônicas e culturais. Não se conhecem hoje assentamentos como esses. Qualquer um que
talvez tivesse existido na própria costa encontra-se agora a grande profundidade abaixo do mar. Peltenburg especulou que ainda devem existir outros na atual faixa
costeira da Síria, não descobertos apenas porque ninguém se deu ao trabalho de procurá-los. É exatamente o que ele agora pretende fazer.
O arqueólogo defendeu a convincente hipótese de que os primeiros agricultores de Chipre embarcaram na costa síria. Enquanto as primeiras chegadas em Chipre foram
impulsionadas pela tensão econômica causada pelo Jovem Dryas, os novos desembarques foram motivados pela oportunidade de colonização oferecida por uma economia agrícola.
Trouxeram com eles não apenas sementes de grãos, porcos, gado, carneiros e cabras, mas as tradições arquitetônicas e culturais que também foram encontradas mais
a leste em Jerf el Ahmar e Göbekli Tepe.
Assim que chegaram a Chipre, logo após 9000 a.C, esses colonizadores mantiveram suas tradições culturais por todo o Neolítico, embora novos estilos arquitetônicos
- prédios retangulares de dois andares - se desenvolvessem pelo continente do oeste da Ásia. Em 6.000 a.C., quando casinhas circulares de paredes de barro continuavam
sendo construídas em Tenta e Khirokitia, o vale do Eufrates abrigou substanciais cidades; maiores ainda, e com arquitetura mais imponente, que as vistas por Lubbock
em Ain Ghazal e Bouqras.
No terceiro dia de minha visita a Chipre, fui conhecer Tenta e Khirokitia. As duas eram fascinantes e decepcionantes em igual medida. A arqueologia em si destacava-se.
As casas de adobe em Tenta tinham paredes sobreviventes à altura da cintura e aglomeravam-se compactas em volta da estrutura circular feita de pedra no cume da colina.
Pareciam as fotografias que vi da estrutura de Jerf el Ahmar. Muitas das moradias conservavam vestígios de grossos pilares quadrados, quase não deixando espaço de
vida algum para os ocupantes.
Uma passarela de madeira fora construída para que se tivesse uma visão de cima do sítio. Era coberta por uma enorme tenda cônica que tapava o sol, a brisa e a
vista. Essas medidas serviam para proteger as frágeis construções dos prédios de barro de Tenta. Por mais excelentes que parecessem as habitações, porém, como não
pude caminhar entre as moradias nem entrar nelas, tocar a pedra ou agachar-me ao lado das paredes, achei quase impossível imaginar as pessoas que haviam vivido em
seu interior.
A arqueologia de Khirokitia pareceu-me mais impressionante e ainda menos evocativa do passado Neolítico. Como sítio do "Patrimônio Mundial", era cuidadosamente
administrado com passarelas e quadros de informação, guias e casas reconstituídas. As escavações na década de 1930 e 1970 revelaram um grande aglomerado de casas
circulares feitas de pedra, tão apertadas entre si por uma encosta que de certa distância o sítio parecia mais uma ladeira coberta de seixos que as ruínas de uma
aldeia pré-histórica. Vistas mais de perto, as paredes de muitas casas circulares sobreviveram à altura dos joelhos; algumas tinham pilares internos, lareiras e
mós.
Não me demorei. Percorri apenas a rota demarcada colina acima e abaixo em meio aos barulhos e cheiros do tráfego de imensas rodovias que bramiam perto, depois
fui tomar uma cerveja no bar local. Anunciava uma "Salada Neolítica" que acabou sendo igual a qualquer outra na ilha. Parecia que Chipre decidira manter seu passado
pré-histórico firmemente no presente: minha visita à Gruta Aetokremnos fora perturbada pelo estrondo de aeronaves militares da base aérea de Akrotiri, próxima dali,
e os poços neolíticos de Mylouthkia eram cercados por empreendimentos turísticos.
Eu devia estar com Lubbock no passado, na encosta da colina de Khirokitia em 6.000 a.C. A aldeia estava apinhada de pessoas que tinham de apertar-se ao passarem
umas pelas outras para chegar às suas casas ou visitar-se umas às outras após todo um dia de trabalho nos campos. Aglomerados de casas de telhado reto distribuíam-se
em volta de pequenos pátios, atravancados com os detritos da vida doméstica: bacias de pedra, esmeris, foices com lâmina de sílex. Os conjuntos, que abrigavam uma
família numerosa, eram tão próximos uns dos outros que as pessoas se irritavam com os que tentavam passar por ali ou tinham jogado seu lixo perto demais. Felizmente,
Lubbock conseguiu sentar-se inteiramente invisível num canto, dividindo-o com duas cabras que soltavam peidos. Cães latindo e crianças chorando dominavam a cacofonia
de barulho neolítico. Toda a aldeia fedia a fezes humanas e animais; cobria-a uma espessa mortalha de fumaça acre, pois cada pátio tinha sua própria fogueira e cozinhava
sua própria comida.
A vida em Khirokitia pareceu profundamente desagradável a Lubbock - não de uma forma ameaçadora, mas bagunçada, claustrolóbica. Os tipos de casas e pátios que
empregavam tinham sido originalmente construídos para comunidades de no máximo 50 pessoas. Pelos cálculos de Lubbock, um número 10 vezes maior de pessoas acocorava-se
em torno de suas fogueiras na colina. Enquanto as que viviam no oeste da Ásia tinham adotado novos tipos de arquitetura com o crescimento de suas populações, a gente
de Khirokitia simplesmente continuara a acrescentar o mesmo tipo, resultando naquele assentamento espraiado, disfuncional.
A nova arquitetura no oeste da Ásia fora acompanhada das novas normas e regulamentos para a vida em conjunto. Estes eram impostos pelos sacerdotes, como vira Lubbock
em Ain Ghazal, ou acertadas em casas de assembléias públicas como a de Beidha. Mas nada desse tipo de autoridade nem de tomada de decisão para o bem comum surgira
em Khirokitia. Cada família numerosa cuidava de lato apenas de si mesma - produzindo e estocando sua própria comida, enterrando seus mortos, chegando até a ter suas
crenças religiosas pessoais.

Lubbock procurara em vão prédios públicos onde talvez tivessem ocorrido planejamento, culto ou ritual religioso coletivos. Tampouco conseguiu encontrar qualquer
sinal de figuras de autoridade que pudessem ter estabelecido regras e resolvido disputas. Embora esses grupos familiares independentes fossem viáveis onde existia
bom suprimento de água doce, terra e lenha, estas achavam-se agora seriamente esgotadas. O resultado era tensão e conflito incessantes na cidade superpovoada.
Meu avião ia partir do aeroporto de Larnaka na manhã seguinte. Tinha uma última oportunidade de envolver-me com o passado cipriota. E assim, saí apressado do bar
de Khirokitia e fui de carro até as montanhas Troodos, onde se permitira mais uma vez que vicejasse a antiga floresta de pinheiros e carvalhos que outrora cobrira
a ilha.
Cheguei ao anoitecer. Meu destino era o vale do Cedro no centro da floresta, o último habitat natural dos cedros nativos que outrora deviam florescer por toda
a ilha. As estradas macadamizadas tinham-se tornado desde, tempos atrás pistas florestais acidentadas, que repelidas vezes roçavam meu impróprio carro alugado. A
luz ia-se extinguindo, à medida que o sol mergulhava abaixo das encostas cobertas de árvores. Eu já pensava em desistir, quando, ao contornar uma das infindáveis
curvas fechadas, surgiu uma cabra selvagem na pista e se encaminhou sem pressa para as árvores. Parei e nos entreolhamos por um instante; com seus grandes chifres
curvos, vigorosos quartos dianteiros e pêlo marrom-escuro, era o mais próximo possível de uma cabra neolítica que se podia encontrar. De repente, virou-se e fugiu,
deixando-me apenas com o barulho de pedras a rolar pelo declive rochoso quando desapareceu.
Sentindo-me estimulado, passei por um guarda-florestal e perguntei o caminho para o vale do Cedro.
- Mais uns 20 quilômetros - respondeu ele; no mínimo, uma hora de carro na pista cada vez mais deteriorada. - Volte amanhã - continuou o homem - vai estar escuro
como o breu quando chegar lá.
Não era uma opção. Mas ele tinha razão, pois quando acabei descendo do carro e desliguei as luzes, nada mais restava a ser visto. Encaminhei-me hesitante para
as árvores, os grossos troncos surgindo um por um à medida que meus olhos se ajustavam. Ergui-os, na esperança de ver os galhos horizontais como um guarda-chuva
de cedro; mas não se via contorno nem forma alguma, todos os galhos dos pinheiros, plátanos, cedros e carvalhos uniam-se numa única silhueta escura vazada aqui e
ali pelo céu enluarado.
Tateei de tronco em tronco, sentindo sua casca e tentando lembrar se a do cedro era áspera ou lisa. Sem os olhos, meus ouvidos assumiram o controle: as cigarras
reverberavam, minúsculas gotas d'água respingavam ruidosas, tumultos no mato rasteiro - besouros ou camundongos - soavam como carneiro selvagem, gamo ou até javali.
De repente, sentia-me mais perto do mundo pré-histórico do que ocorrera em Aetokremnos ou Mylouthkia, em Tenta ou Khirokitia. Eu fora totalmente envolto numa surpreendente
fragrância de cedro e pinho, de folhas e cascas de árvore em decomposição, teias de aranha e riachos florestais. Talvez fosse a única sensação que poderia partilhar
com os que teriam primeiro chegado para explorar e viver na ilha.

 

 

                                                   Steven Mithen         

 

 

 

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