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DEPOIS DO GELO Vol. 3 / Steven Mithen
DEPOIS DO GELO Vol. 3 / Steven Mithen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Caçadores Clovis em Julgamento
Extinção da megafauna e estilos de vida Clovis,
11.500 - 10.000 a.C.
Quando a afirmação de que os caçadores Clovis haviam caçado as grandes feras da América do Norte e as levado à extinção foi discutida pela primeira vez por PaulMartin, na década de 1960, havia uma compreensão relativamente limitada das datas precisas nas quais haviam ocorrido essas extinções. Mas, à medida que se acumulavam indícios, a cultura Clovis e algumas extinções da megafauna na verdade parecem coincidir.
Em 1985, David Meltzer e Jim Mead, geólogo da Universidade do Arizona do Norte, conseguiram reunir não menos que 363 datas de radiocarbono de animais extintos, vindas de 163 localidades fósseis, sobretudo os poços de alcatrão do Rancho La Brea e as cavernas de ossos secos do sudoeste. Com as datas de radiocarbono reunidas, Meltzer e Mead eliminaram todas as que julgavam talvez suspeitas, como as possivelmente contaminadas por carbono antigo no terreno, o que os deixou com uma amostra de 307 datas. Alguns anos depois, Donald Grayson, da Universidade de Washington, outro especialista em datação por radiocarbono, julgou necessário retirar mais datas como inconfiáveis, reduzindo a amostra final a apenas 125 determinações por radiocarbono.
Tal rigor significou que não se poderia afirmar a data da extinção de vinte e nove espécies com nenhuma precisão maior do que tendo ocorrido em alguma época nos últimos 50 mil anos. Grayson advertiu contra a suposição de que esses animais foram extintos durante os últimos 1 mil 500 anos da era glacial, quando partilharam as paisagens norte-americanas com os primeiros americanos e os caçadores Clovis. Ainda assim, isso deixava os "sete da era de gelo": mamute, mastodonte, camelo, cavalo, tapir, preguiça do chão e o esmilodonte. Os últimos representantes norte-americanos vivos dessas espécies foram confiavelmente datados como tendo ocorrido entre 11.000 e 10.000 a.C. - exatamente quando os povos Clovis existiam em grande quantidade.
A afirmação de Paul Martin, de que os povos Clovis foram responsáveis pela extinção deles, apresenta um convincente argumento quando considerada com os indícios de sítios no vale do rio San Pedro. Diante dos restos de 13 mamutes, pontas-de-lança, instrumentos de chacina e lareiras na Fazenda Lehner, podemos de imediato imaginar o drama: caçadores Clovis emboscando uma pequena manada quando vinha beber, o resultante banho de sangue no arroio; fogueiras acesas quando começa a matança, o cheiro de carne assando; abutres sobrevoando em círculos acima e gigantescos teratornos empoleirados nas rochas próximas, à espera de banquetear-se com a carne e as entranhasjogadas fora. Este é exatamente o tipo de cena reconstituída a partir de um estudo dos ossos de mamute feito por Jeffrey Saunders, da Universidade de Illinois.
Talvez essas cenas se repetissem em todo o continente; não apenas com mamutes, mas também com as preguiças, o camelo, o gliptodonte e o castor gigante. Os caçadoresClovis eram simplesmente poderosos e astutos demais para suas presas; foram culpados de matança excessiva e levaram à extinção os sete da era do gelo.

 

 

 

 

 

 

Um cenário, mas é correto? Devemos dar aos povos Clovis um julgamento justo. O próprio Paul Martin sabia de uma grave fraqueza na acusação. Embora tenhamos alguns
(possíveis) sítios de matança de mamutes, não existem sítios semelhantes - com exceções muito raras ou altamente ambíguas - dos outros trinta e poucos animais extintos.
Martin tem uma astuta explicação: as matanças apocalípticas ocorreram tão depressa, e com animais tão sensíveis à predação, que houve muito poucos sítios. Tomando
emprestada a terminologia militar, descreveu isso como uma "guerra-relâmpago".
Ademais, afirmou Martin, as chances de os arqueólogos encontrarem qualquer sítio da última era de gelo são tão remotas que deveríamos ficar surpresos com o número
de sítios mamute/Clovis localizados, em vez de lamentarmos a ausência de sítios de matança de preguiças, camelos e gliptodontes. Esses animais talvez fossem mortos
em campinas ou nas colinas, onde ocorre erosão e não sedimentação. Ali, quaisquer ossos com marcas de corte e lareiras se teriam desfeito e desaparecido muito tempo
atrás - parte da poeira e terra sopradas e inundadas hoje em todo o continente.
Em 1970, a idéia de caçadores Clovis entrando numa paisagem virgem, avançando para o sul e realizando um ataque relâmpago aos animais ingênuos não podia ser provada
nem refutada, mas se encaixava nos indícios arqueológicos. Hoje isso não mais se aplica, em grande parte por causa de Monte Verde - um assentamento que nos diz que
pode ter havido pessoas na América do Norte milhares de anos antes da invenção da tecnologia Clovis e, mais significativamente, antes da extinção em massa. Se os
primeiros americanos não caçavam grandes animais, estes não poderiam ser a presa fácil sugerida por Paul Martin. Ao contrário, se foram caçadores de grandes animais,
não poderia ter havido um ataque relâmpago e deveríamos ter sítios de matança de preguiças, camelos e gliptodontes. Martin perde o debate nos dois casos.
Não são apenas os indícios circunstanciais de Monte Verde que vêm em defesa dos povos Clovis. De fato, eles têm um grande número de álibis em todo o continente -
os próprios sítios arqueológicos Clovis. Embora os do sudoeste tenham rendido uma substancial quantidade de ossos de mamute, os de outros lugares sugerem um estilo
de vida dedicado à caça de animais pequenos, captura de tartarugas e coleta de plantas comestíveis. Quando em Shawnee-Minisnik na Pensilvânia, os povos Clovis coletaram
bagas de pirilteiro e amoras silvestres; quando no sítio de Debert na Nova Escócia, caçaram caribu; e no lago Lubbock, no Texas, eram coelhos, gansos e perus selvagens.
Em outros lugares, como no sítio Old Humboldt, em Nevada, as pessoas Clovis jantavam trutas, ovos de pássaros e moluscos. Caçavam-se grandes animais em algumas ocasiões.
Se o mamute em Murray Springs, no vale de San Pedro, foi ou não caçado, uma manada de bisão certamente foi emboscada e chacinada num pântano. Mas mesmo nos sítios
onde predominam ossos de mamute, como na Fazenda Lehner, é a pequena caça presente que talvez seja mais representativa da dieta Clovis normal.
Os povos Clovis parecem ter sido oportunistas, catando todas as plantas e matando todos os animais existentes, em vez de especializadas na caça de grandes animais.
Pode, portanto, não ter sido mais que uma oportunidade única que os levou a fisgar com lança uma gigantesca tartaruga terrestre em Little Salt Spring, na Flórida,
ou a matar um mastodonte em Kimmswick, no Missouri. Se tivessem estado particularmente à procura de caça grande, poderíamos esperar ter encontrado pontas Clovis
em Big Boné Lick, no Kentucky, e Saltville, na Virgínia - afloramentos naturais de sal e ímãs durante toda a era glacial para enormes mamíferos, que talvez tivessem
oferecido fácil caça de animais grandes. Embora os dois sítios tenham sido vasculhados por duzentos anos e fornecido vastos números de ossos animais, jamais se encontrou
uma única ponta Clovis.''
Em conseqüência, os prováveis sítios de matança de mamutes parecem ser mais a exceção que a regra para a colonização Clovis - e mesmo estes talvez sejam menos
indicativos de caça do que parecem à primeira vista. O problema-chave é que vários acúmulos "naturais" de ossos de mamute na América do Norte parecem muito semelhantes
aos de sítios Clovis, a não ser pela ausência de detritos humanos. São de desastres naturais, por exemplo, quando manadas afundavam no gelo ao atravessarem um lago
congelado, ou ficavam atoladas em lama inesperada. Os animais teriam morrido juntos, inteiramente independente de ajuda humana.
Essa interpretação foi favorecida por Gary Haynes, antropólogo na Universidade de Nevada que estudou os sítios de morte natural de elefantes africanos durante
períodos de seca na década de 1980. Quando examinou o acúmulo e decomposição de carcaças em volta de buracos d'água secos, ele encontrou uma impressionante semelhança
com os restos de mamutes em sítios como Murray Springs e a Fazenda Lehner.
Haynes sugere que as pessoas Clovis foram espectadoras da morte natural de mamutes atacados pela seca, de vez em quando dando um coup-de-grâce para despachar um
animal surgido em seu caminho. Grande parte das carcaças foi deixada intocada porque havia nelas muito pouco para comer: não valiam nem o trabalho de quebrar os
ossos pelo tutano, pois esses animais tinham morrido de fome. Os mamutes na verdade talvez tivessem vivido durante um período de seca, logo antes ou logo depois
do Jovem Dryas - porém aqui, mais uma vez, os indícios não são conclusivos, com a gravidade e até a existência de secas nessa época em grande debate.
Coup-de-grâce, ou mesmo a passiva observação de mamutes morrendo de fome, apresentam uma visão do passado muito diferente das de Paul Martin e Jeffrey Saunders.
Na verdade, as próprias pontas Clovis poderiam ter tido uma função muito diferente da que primeiro se sugeriu; essas valiosas pontas de pedra talvez tivessem sido
postas perto dos animais mortos, ou até neles, como um sinal de respeito ou como parte de uma celebração religiosa.
Tal especulação é um lembrete de que o estilo de vida Clovis devia ser muito mais que apenas tentar encontrar a refeição seguinte. Lamentavelmente, os indícios
de crenças religiosas e da organização de suas sociedades são muito limitados. O que quer que fizessem com seus mortos, sem dúvida não os enterravam regularmente,
pelo menos em lugares onde os restos sobrevivessem ou onde os arqueólogos pudessem ver. Há apenas duas exceções: a Caverna Fishbone em Nevada forneceu os restos
de um esqueleto envolto em mortalha de casca de cedro, e os restos fragmentados de dois jovens adultos encontrados no sítio Anzick, Montana.
O sítio Anzick foi descoberto em 1968, numa pequena gruta desmoronada. Na terra seca, encontrou-se uma aglomeração de mais de uma centena de artefatos de pedra,
entre eles várias pontas-de-lança excelentes. Não foram jogadas fora ao acaso, mas intencionalmente postas num esconderijo de artefatos de pedra borrifado com ocre-vermelho.
Tesouros escondidos de artefatos de pedra semelhantes foram encontrados em outros lugares do continente. Se eram apenas estoques de artefatos a ser recuperados quando
um grupo de caça retornasse a uma região, o ocre-vermelho, o acabamento particularmente primoroso das pontas de pedra e a associação com um enterro em Anzick permanecem
sem explicação.
As impressionantes cores de várias pontas Clovis também sugerem que talvez fossem mais que objetos apenas utilitários. As pontas eram feitas de sílex córneo com
faixas alternadas de vermelho e marrom, calcedônia multicolores, jaspe vermelho, vidro vulcânico e madeira petrificada. Por que escolher uma variedade tão exótica
de matérias-primas coloridas? Os aborígines australianos faziam o mesmo por causa de suas crenças religiosas. Empregavam um sílex córneo vermelho-escuro por ter
sido formado do sangue de seres ancestrais; o quartzo era muito valorizado, porque seu brilho se relacionava com o tom do "arco-íris", que os aborígines acreditavam
ser a essência da vida.
As pessoas Clovis talvez tivessem tido razões semelhantes para escolher pedras coloridas. Mas se assim o fizeram, não deixaram nenhuma pintura rupestre como testemunho
de suas crenças religiosas. Só podemos supor que viveram num mundo social e simbólico em que essas pontas de pedra talvez fossem tão significativas quanto o eram
as esculturas de miniaturas para os caçadores-coletores da era do gelo, na Europa, ou as pontas de quartzo para os recentes aborígines da Austrália,
Embora haja decididamente sangue nas lanças, os indícios arqueológicos nos deixam em considerável dúvida sobre se as pessoas Clovis desempenharam o papel único,
ou na verdade qualquer um, na extinção em massa. Mas se são inocentes - ou pelo menos temporariamente libertadas sob fiança - quem ou o quê mais pode ser
detido para interrogatório?
Há duas alternativas, a primeira das quais se pode tratar rapidamente como uma idéia intrigant,e mas apenas hipotética: uma praga letal.
Ross MacPhee, paleontóloga do Museu de História Natural Americana, e Preston Marx, professor de Medicina Tropical da Universidade de Tulane, sugeriram que em 11.000
a.C., na América do Norte, um vírus saltou dos novos colonizadores humanos para a caça graúda. Essa "hiperdoença" teria sido mais letal que qualquer coisa conhecida
na história registrada. Mas não há um fio de indício, embora eles sugiram que uma praga poderia explicar vários dos fatos estranhos na extinção em massa, sobretudo
a rapidez e a preferência pelos grandes animais, que, afirmam, teriam sido mais suscetíveis, por causa de seus lentos índices de procriação. Teoricamente, se poderiam
encontrar indícios: talvez sobrevivam fragmentos do DNA nas infecções viróticas a serem extraídos dos ossos de animais extintos. Bem, talvez. Parece uma possibilidade
mínima, e recuperar DNA de osso antigo revelou-se imensamente mais difícil do que os cientistas tinham imaginado apenas alguns anos atrás.
A segunda alternativa para a excessiva matança é a mudança climática, e para ela temos um trio de promotores principais: Russell Graham, paleontólogo do Museu
de Denver, Ernest Lundelius, professor de Ciência Geológica da Universidade do Texas, e Dale Guthrie, professor de Paleontologia da Universidade do Alasca. Eles
acreditam que a mudança climática, com sua conseqüência para habitats animais, foi a causadora da extinção em massa. Segundo esse formidável trio, o clima não matou
diretamente as vítimas tornando os habitats demasiado quentes, frios, úmidos ou secos para elas, mas os destruiu. Sabemos que essa é a principal causa da extinção
animal no mundo moderno, logo devemos ser solidários com a hipótese deles. A afirmação de Graham e Lundelius é que a grave perda de habitats no fim da era glacial
foi conseqüência de mudança nos padrões de temperatura - os verões passaram a ser relativamente mais quentes c os invernos mais frios. Comunidades de animais e plantas
que tinham evoluído durante vários milhares de anos em condições de limitadas diferenças sazonais desmoronaram quando alguns membros se tornaram incapazes de tolerar
os invernos, e outros os verões.
Um dos mais surpreendentes aspectos das comunidades animais da era do gelo é o fato de espécies que hoje vivem a milhares de quilômetros de distância entre si,
em ambientes radicalmente diferentes, então roçavam ancas umas com as outras. Os primeiros americanos, percorrendo seu novo mundo, teriam visto o que hoje são espécies
de tundra do extremo norte, como caribus, boi almiscarado e lêmingues, vivendo lado a lado com o que para nós são espécies inteiramente sulistas (que vivem em florestas
ou em pradarias), como alce e bisão. Esses mosaicos animais puderam existir na era glacial porque o contraste entre as estações não era tão acentuado quanto agora.
Quando os invernos se tornaram mais frios, alguns animais foram impelidos para o sul; no sentido contrário, verões mais quentes impulsionaram outros para o norte.
Os dois tipos não mais poderiam encontrar-se em terreno neutro, pois esse lugar simplesmente deixara de existir. Os animais que encontraram novos nichos foram felizardos;
vários que não conseguiram adaptar-se extinguiram-se.
Dale Guthrie explicou por que alguns animais sobreviveram e outros não, reconstituindo o impacto da mudança climática na distribuição de comunidades vegetais.
No mundo de hoje, nós as vemos como faixas distintas: no extremo norte, uma faixa de tundra; ao sul desta, floresta de coníferas; mais uma vez ao sul, floresta transitória;
c depois pradarias. O mundo da era do gelo dos primeiros americanos não era nada parecido com esse; em vez de dispostas em faixas latitudinais, as comunidades vegetais
eram encontradas em "mantas xadrez" ou mosaicos - pedaços da tundra atual, floresta de coníferas, árvores transitórias e pradarias, tudo misturado. Foram os verões
mais quentes e os invernos mais frios que forçaram a separação dessas faixas.
Quando ocorreu isso, os animais que antes dependiam dessa mistura de tipos e planta sofreram - e eram predominantemente de tamanho muito grande: mamutes, mastodontes,
preguiças gigantescas, Esses animais sofreram devido ao encurtamento da estação de cultivo, restringindo o tempo existente para alimentar seu imenso volume. Também
sofreram com a acentuada redução da diversidade vegetal - dependiam de comer um enorme sortimento de plantas para obter suficiente energia e nutrientes. Quando as
estações passaram a ser mais acentuadas e a diversidade de plantas reduziu-se, alimentadores especializados ganharam ascendência. No extremo norte, foi o caribu
que contava apenas com líquen; no sul, o bisão, que se alimentava dos poucos tipos de matos de caules curtos, substituídos pela mistura de variedades de caules longos
e ervas preferidas pelos ruminantes generalistas. Essas novas plantas também chegaram com defesas químicas que os bisões podiam tolerar, mas eram tóxicas para vários
outros. Na verdade, tudo se amontoava contra os mamutes, mastodontes e preguiças. A hipótese de Guthrie é que a extinção era inevitável.
A competição entre espécies nos lembra que todos os animais são partes de comunidades, e assim que um elemento é perturbado, pode haver uma cascata de conseqüências
em toda a rede alimentar. Assim, a perda de carnívoros como o leão americano, o guepardo e o esmilodonte talvez se tenha devido simplesmente a perda de sua presa
preferida. E isso talvez explique também a extinção de aves gigantescas, a maioria das quais era de águias, abutres e condores. Todas se alimentavam de carne, como
os teratornos. Deviam depender de filhotes de camelos, cavalos e até de mamutes, como predadoras ou carniceiras.
A ecologista E. C. Pielou expressa cautela ao aceitar essas explicações ambientais e ecológicas para as extinções em massa. Por que, ela pergunta, seria o pequeno
castor moderno o vencedor na competição contra os imensos castorídeos? Por que não poderiam o leão americano e o esmilodonte alimentar-se dos vários animais de pasto
que não apenas sobreviveram, mas cujos números floresceram, como o bisão, o alce e o veado? E por que não poderiam as carcaças putrefatas de suas vítimas ter alimentado
os teratornos e os abutres? Não pensamos em geral nessas aves como comedores exigentes.
Um forte argumento, e que vem com um ainda mais forte - o simples fato de que, longe ser um acontecimento único, esse período de aquecimento global foi apenas
o mais recente na montanha-russa de mudança climática ao longo da qual nosso planeta vem sendo lançado pelo menos nos últimos milhões de anos. Períodos de impressionante
aquecimento global têm ocorrido aproximadamente a cada 100 mil anos, para logo depois o planeta retornar a condições da era do gelo. Em cada uma dessas ocasiões,
é improvável que as mudanças resultantes na sazonalidade e distribuições tenham sido significativamente diferentes das que ocorreram durante nosso período de interesse,
o milênio seguinte ao mais recente máximo glacial de 20.000 a.C.
Mas a megafauna sobreviveu a todas essas reviravoltas climáticas, perda de habitat e devastação climática anteriores. Não há a menor dúvida de que seus números
sofreram, mas se arranjaram, encontrando refúgios, talvez no extremo norte, onde as condições continuaram sendo suficientemente semelhantes às da era do gelo anterior.
E depois, assim que o clima reverteu, eles se dispersaram desses refúgios para tornar-se mais uma vez um elemento importante da fauna global. Por que, então, não
poderiam os mastodontes ter simplesmente mudado seu espaço para o norte no fim da última era glacial, para onde as florestas de espruce e pinheiro sobreviviam, e
ali esperado a partida daqueles dias horrivelmente quentes e úmidos do pós-glacial? Não poderiam o camelo de ontem, as preguiças gigantescas, os castorídeos e até
os cavalos ter encontrado algum lugar para sobreviver no imenso e espantosamente diverso continente da América do Norte? Mesmo que não dispusessem de nada ideal
ou acessível, não poderiam esses animais ter aprendido a adaptar-se aos novos habitats, e não teria a seleção natural dado uma mãozinha de ajuda, fazendo sutis mudanças
na fisiologia e comportamento deles? É exatamente isso que essas espécies devem ter feito várias vezes durante os milhões de anos anteriores. Então, por que a mesma
tática não funcionou no fim da mais recente era glacial?
Temos uma descoberta sensacional sobre uma tentativa de sobrevivência - um indício que chocou os cientistas quando veio a público, em 1993. Até março daquele ano,
acreditava-se que todos os mamutes no mundo morreram em 10.000 a.C. - ou pelo menos muito pouco depois. Mas aí veio o anúncio de que cientistas russos tinham encontrado
ossos de mamute que haviam sobrevivido até muito depois dessa data na Ilha Wrangel - um remoto e desolado ponto de terra no oceano Ártico, 200 quilômetros ao norte
da Sibéria. Esses mamutes haviam sobrevivido não apenas uma centena de anos, mas, espantosamente, mais 6 mil, até a época das pirâmides egípcias.
Há 12 mil anos, a Ilha Wrangel era parte da Beríngia, e os mamutes que vagavam por suas colinas eram exatamente iguais aos de qualquer lugar, cerca de 3 a quase
4 metros de altura no ombro. Quando o nível do mar subiu, eles ficaram isolados - mas pagaram um preço pela sobrevivência. Pois em cerca de quinhentas gerações o
tamanho deles encolheu, deixando-os anões; o último dos sobreviventes não tinha mais de l,80 m de altura. Não se trata de um fato único - vários outros casos de
minimamutes e minielefantes foram encontrados em épocas muito anteriores na história humana, como em Chipre, na ilha de Malta e em outras ilhas ao largo da Califórnia.
Alguns desses mamutes não eram maiores que cabras.
Tornar-se anão é uma boa estratégia de sobrevivência quando se vive numa ilhota isolada. Quando a quantidade de comida é limitada, ganha-se um prêmio de reprodução
com a redução do tamanho do corpo - pode-se alcançar pleno desenvolvimento e maturidade sexual mais depressa e, em conseqüência, transmitir mais rápido os próprios
genes à geração seguinte. E se um dos motivos para ter um grande casco era deter predadores, isto se torna desnecessário quando não há lobos, leões ou tigres-de-dente-de-sabre
por perto. Portanto, não devemos surpreender-nos com o fato de os mamutes da Ilha Wrangel serem meros anões, comparados com os que haviam sido mortos pelas pessoas
Clovis na Fazenda Lehner.
Embora essa descoberta fosse sensacional, pouco fez para resolver o mistério da extinção em massa em outras partes do mundo em 10.000 a.C. Os mamutes da Ilha Wrangel
muito provavelmente sobreviveram porque a ilha conservou uma rica diversidade de capim, ervas e arbustos, devido aos seus particulares clima e geologia. Assim, foi
na verdade um refúgio para mamutes, enquanto a tundra e florestas pantanosas se espalhavam por outros lugares. Um refúgio onde os mamutes poderiam ter-se expandido
em número e recuperado mais uma vez o tamanho total do corpo - mas só se a era glacial seguinte, a queda no nível do mar e o retorno de uma extensa estepe de mamute
tivessem ocorrido antes que os minimamutes de Wrangel também caíssem no poço da extinção.
Caíssem ou fossem empurrados? Na certa a última hipótese, pois a primeira data para a ocupação humana na Ilha Wrangel coincide com a última data para os mamutes.
Pouco sabemos sobre essa ocupação. Simplesmente temos alguns traços de artefatos de pedra que devem ter vindo de pessoas empurradas aos extremos limites de sua própria
sobrevivência numa terra tão inóspita. Mas que presa poderia ter sido mais fácil que os minimamutes, animais totalmente ingênuos sobre predadores e sem nenhum lugar
para onde ir?
As descobertas da Ilha Wrangel parecem pôr os caçadores Clovis no banco dos réus. Mostram que os mamutes podem ter encontrado refúgio no fim da última era do gelo,
mas assim que os seres humanos entram na equação, logo pode seguir-se a extinção. Assim, talvez tenham sido apenas aqueles poucos animais que as pessoas Clovis matavam
todo ano, representados em sítios como Naco, Murray Springs e Fazenda Lehner, que empurraram os mamutes por sobre a beira do abismo da extinção - animais cujas populações
se tenham fragmentado e esgotado em número, animais que se achavam fracos e com a saúde debilitada quando buscaram refúgio em condições de caos ecológico.
Precisamos fazer um retorno final ao continente norte-americano e investigar o que agora parece ser a única solução possível para a extinção. Pois embora nem os
caçadores Clovis nem a mudança climática pareçam ter tido suficiente impacto sozinhos, equivaleram a uma sentença de morte para mamutes, preguiças, mastodontes e
outras vítimas quando juntaram suas forças.
Ao realizar este julgamento final dos caçadores Clovis e conspiradores da mudança climática, vou recorrer à minha própria pesquisa do início da década de 1990. Por
mais que eu adorasse escavar um sítio de matança Clovis, esse trabalho foi feito com um computador, longe dos rigores do trabalho de campo. Assim como os economistas
usam computadores para prever o futuro, como o impacto de um aumento das taxas de juros no nível de inflação, os arqueólogos também podem construir modelos para
"prever" o passado. O objetivo de minha pesquisa foi examinar o impacto de índices de predação ligeiramente maiores, em conjunto com freqüências igualmente maiores
de secas, sobre o nível da população de mamutes na América do Norte.
Uma das habilidades que adquiri como aluno foi a de construir modelos matemáticos de populações animais e depois usar um computador para simular métodos de caça
pré-históricos. Eu trabalhara com um ecologista na criação de um programa de computador que simulava a dinâmica populacional de populações de elefantes na África.
Fizemos então experiências com as populações simuladas no computador, "atingindo-as" com anos de seca e caça predatória para examinar a probabilidade de os elefantes
sobreviverem como espécie viva pelo século seguinte.
Os mamutes e o problema Clovis sempre estiveram no fundo de minha mente. Por suas semelhanças no tamanho do corpo, a dinâmica populacional dos elefantes africanos
atuais e a dos mamutes norte-americanos pleistocênicos também terão sido semelhantes. Por isso, criei algumas versões alternativas das simulações geradas para a
caça de mamutes Clovis. Depois, como com os modelos de elefante, usei essas simulações para fazer algumas experiências: diferentes níveis de caça de mamutes, diferentes
estratégias - como a matança de manadas inteiras ou apenas animais de uma determinada idade ou sexo - e diferentes graus de tensão ambiental.
As constatações foram inteiramente surpreendentes. Era possível, claro, levar mamutes à extinção só com a mudança ambiental. Tornando a intensidade das secas ainda
mais severas e seu surgimento mais freqüente, acabaria eliminando qualquer população de mamute. A mortalidade infantil se tornaria tão alta, e o início da maturidade
sexual tão tardio, que as populações declinariam, em vez de aumentar. De modo semelhante, mesmo sem qualquer mudança ambiental, as populações de mamutes eram muito
suscetíveis à predação humana. Ainda que os caçadores estivessem tirando aleatoriamente animais de uma manada numa proporção de não mais que 4 a 5% a cada ano, as
populações entrariam em serio declínio e acabariam sofrendo extinção.
O motivo disso é simplesmente a lenta taxa de reprodução deles. É retirar algumas das fêmeas reprodutivamente ativas de um rebanho, que as conseqüências podem
ser imensas. Depois combinei uma pequena quantidade de caça com uma leve seca, nenhuma das duas sozinha teria sido suficiente para extinguir a população. A mistura,
porém, era poderosa. Em meu computador, vi populações de vários milhares de animais precipitando-se para a extinção em algumas décadas. Uma aluna minha, Melissa
Reed, construiu modelos mais sofisticados, que geraram o mesmo resultado.
Nada parecido com um ataque-relâmpago foi necessário para isso - o baixo nível de caça oportunista compatível com o registro arqueológico parece inteiramente suficiente.
Seguindo a analogia militar, a guerra de guerrilha teve conseqüências devastadoras. Além disso, a tensão ambiental c a caça não precisam ser concorrentes. As conseqüências
populacionais da matança de alguns mamutes, sobretudo fêmeas novas, talvez não se façam sentir antes de uma década; se é então que também ocorre a tensão ambiental,
seu efeito na população pode ser devastador.
A mesma explicação talvez bastasse para a extinção da preguiça do chão, do mastodonte, do cavalo americano, do camelo e do tapir. Contudo, deve-se lembrar que
há uma completa ausência de indícios arqueológicos de qualquer um desses animais, e que os indícios da seca durante o Jovem Dryas permanecem questionáveis. Além
disso, também precisamos tentar descobrir por que alguns grandes mamíferos evitaram a extinção, sobretudo o bisão, que precisa consumir imensos volumes de água para
sobreviver.
Na primavera de 1997, Melissa e eu viajamos para a Fazenda Lehner, Murray Springs e Naco com Paul Martin e Vance Haynes, o geoarqueólogo que escavou o sítio em fins
da década de 1960.
Havíamos feito um seminário sobre nossa pesquisa na Universidade do Estado do Arizona, descrevendo os resultados de meu trabalho e das novas simulações de Melissa.
Isso envolveu uma demonstração no monitor enquanto falávamos, para que Vance, Paul e outros pudessem ver encenada nossa versão da pré-história: gente colonizando
o Alasca, camadas de gelo recuando, pessoas passando pelo corredor livre de gelo e dispersando-se pela América do Norte, o surgimento da cultura Clovis e o início
das condições de seca no sul, e as populações de mamutes caindo em extinção.
Encaramos o seminário com certa apreensão. Vance e Paul haviam passado mais de trinta anos envolvidos com a questão da extinção do mamute; vinham trabalhando nela
antes de Melissa nascer; haviam escavado e visitado os sítios, publicado livros e trabalhos, participado das principais conferências apresentando as probabilidades
a favor ou contra a matança excessiva, quando eu ainda estava na escola. Desse modo, enquanto fazíamos nossa apresentação, mantive um olhar vigilante sobre eles,
preocupado, vendo-os sussurrar um com o outro, imaginando o que pensavam, e temendo que pudéssemos haver cometido algum erro fundamental que só eles podiam detectar.
Não havia motivo algum para ansiedade, pois Vance e Paul acabaram sendo construtivos nas críticas e generosos nos elogios. E ofereceram-se para levar-nos aos sítios
clássicos - Murray Springs, Fazenda Lehner e Naco, os sítios "do único que escapou". Antes disso, Paul proporcionou outro prazer - uma visita a seu laboratório no
topo da colina dando para Tucson e o deserto do Arizona. Num esplêndido gabinete, no qual pessoas mais simples teriam guardado moedas, medalhas ou borboletas alfinetadas,
ele tinha sua valiosa coleção de bolas de excremento.
Vance parecia querer reviver as escavações em Murray Springs. Para chegar lá, tivemos de deixar o veículo e seguirmos a pé por uma curta distância pelo deserto
coberto de matagal. No sítio, ele explicou a estratigrafia, apontando as camadas nas seções expostas que poderiam indicar seca prolongada no fim da era glacial,
e depois a transição para o Holoceno. Mostrou-nos o lugar exato onde Elouise fora descoberta - seu nome para o mamute fêmea que encontrara, intacta. Não revelava
sinal algum de ter sido morta, e julgou-se que tivesse morrido de causa natural. Vance supunha que as pessoas Clovis tinham comido sua carcaça. Vimos onde suas pegadas
tinham sido encontradas; talvez seus últimos passos, ou de outro animal, curioso e talvez interessado na fera agonizante. Paul tirou do paletó uma réplica de um
enigmático artefato encontrado no sítio: um pedaço de osso de mamute de uns 25 centímetros, esculpido e perfurado com um orifício, que se julgava fosse um retificador
de cabo de flecha. Pediu a Vance para que o pusesse no lugar exato onde fora encontrado, como se fosse um ato ritualístico. A alguns metros do sítio de Elouise,
mostraram-nos o sítio da matança de bisão; ali, encontraram-se os restos de uma manada de bisão que parece ter sido enxotada para um pântano e chacinada.
Os últimos mamutes norte-americanos morreram em alguma época por volta de 10.000 a.C. Se houve uma morte violenta, sangrenta, perpetrada por caçadores Clovis, ou
se morreram tranqüilamente, vistos apenas por abutres a sobrevoar em círculos, não se sabe. Numa data semelhante, a vida também deixou a última preguiça do chão
e mastodonte, o último dos gliptodonte, o camelo antigo e o cavalo americano. O mundo tornou-se um lugar muito mais pobre e menos interessante sem eles. O bisão
dominava as pradarias e os caribus eram os senhores da tundra pantanosa que substituiu a estepe de mamute, outrora habitat de tão magnífica variedade de mamíferos
da era glacial.
A América do Norte adquiriu sua aparência moderna. O sudoeste transformou-se em deserto; grandes planícies estenderam-se pelo centro do continente. No leste, estabeleceu-se
a floresta transitória e no norte a floresta conífera. As camadas de gelo quase desapareceram, e os grandes lagos logo vazaram, deixando os que conhecemos hoje.
O clima estabilizou-se, sem mais aquelas violentas oscilações dos últimos poucos milhares de anos.
Alguma coisa também acontecera: a última ponta Clovis fora fabricada, usada c jogada fora. Com a passagem dos animais selvagens da era do gelo, e o surgimento
de um ambiente mais estável, desaparecera o modo de vida Clovis. Com isso, a cultura humana sofreu o exato inverso de natureza diversificada, e tornou o continente
norte-americano um lugar muito mais rico e interessante. Todos os seus habitantes continuaram a viver como caçadores-coletores, mas jamais voltaria a ter para o
povo norte-americano a unidade encontrada durante os tempos Clovis.



28
Virgindade Reconsiderada
Caçadores-coletores da Terra do Fogo e no Amazonas
11.500 - 6.000 a.C.
É 11.000 a.C. A água gelada do arroio Chinchihuapi lambe os dedos dos pés de John Lubbock quando ele se senta tranqüilamente em sua margem, meditando sobre a viagem
seguinte, que o levará pela história até chegar a 5.000 a.C. A superfície reverbera com fachos de luz do sol recém-surgido que varam o dossel de folhas. Fora um
martim-pescador grande empoleirado acima num galho projetado sobre a água, Lubbock está sozinho. Monte Verde foi abandonado, mas em outras partes da América do Sul
vivem pessoas em quase todos os cantos e recantos ecológicos, e de basicamente todo tipo de caça e coleta imagináveis: alguns sobrevivem como caçadores de grandes
animais, alguns como pescadores, outros como coletores de plantas. Suas culturas também são variadas: alguns continuam usando os mais toscos instrumentos de pedra,
outros adotaram elegantes pontas lascadas de diversas formas. Na verdade, a América do Sul nessa data é muito mais culturalmente diversificada que sua vizinha do
norte, um continente onde a ponta Clovis e suas variantes menores penetram em toda parte.
De Monte Verde, Lubbock segue o Chinchihuapi até o vale do rio Maullín, e depois dirige-se para os Andes acima e caminha por eles. Ao fazê-lo, a floresta temperada
dá lugar à mata de abetos e depois à de pinheiros enfezados, escassos. Ele acaba caminhando por um tapete de capins e flores, atravessa uma passagem montanhosa entre
geleiras e contorna um lago azul cristalino. Picos de granito encimados por neve dominam acima, passando de cinza a róseo no sol brilhante. As geleiras estendem-se
abaixo pelas encostas ocidentais até as línguas de gelo que se precipitam vales adentro e além.
Lubbock ruma para o sul e começa a encontrar acampamentos abandonados e ossos de animal queimados espalhados. Os capinzais em que se encontram cobrem um imenso
planalto cortado por profundas ravinas. O planalto inclina-se suavemente para o oceano Atlântico, o litoral muito mais ao leste do que é hoje, pois o nível do mar
permanece na altura baixa da era do gelo. Durante os 10 mil anos seguintes, essas pastagens se tornarão inteiramente áridas, ficando tão estéreis que Charles Darwin
as considerará amaldiçoadas pela esterilidade quando também ele percorrer a Patagônia, no início do século XIX.
Lubbock chega a uma região de vales de fundo plano e raso, desfiladeiros e colinas baixas próximas ao litoral Atlântico. A ravina onde ele entra oferece abrigo
contra o exaustivo vento que tem sido um companheiro constante desde os Andes. Outros também encontram abrigo - um grupo de caçadores que retornam à sua caverna
na parede tipo penhasco na encosta do vale. São quatro, vestidos de peles e couros, e trazem pedaços de um cavalo. Lubbock acompanha-os ao interior.
O ar está enfumaçado e denso, da fogueira de um monte de estéreo a arder. Ao ajustar os olhos, Lubbock vê mais seis - mulheres, crianças e um velho - sentados
na caverna; ao fundo, outros corpos arrastam os pés na escuridão. Pedaços de preciosa lenha são acrescentados para reativar o fogo e filés de carne de cavalo postos
para assar. Lubbock senta-se junto ao fogo, tão grato quanto os caçadores pelo seu calor, e ouve a história da caça. Fica sabendo que eles encurralaram o cavalo
numa ravina, o emboscaram e mataram de cima com lanças de pontas de pedra. O animal foi esquartejado e as melhores postas trazidas para casa. Durante a viagem de
volta, os homens encontraram uma preguiça gigante recém-morta. Não tivessem matado o cavalo, estariam se alimentando de sua carcaça. Em vez disso, deixaram-na para
os abutres, pois sabiam que logo chegariam.
Durante os dias seguintes, Lubbock sabe que esse grupo de caçadores-coletores, usa várias cavernas diferentes, transferindo freqüentemente seus poucos pertences
e dependentes de um abrigo para outro. Um dos preferidos fica cerca de 30 quilômetros a oeste, localizado numa antiga cratera vulcânica. Além de cavalo e preguiça,
eles caçam guanaco - uma criatura semelhante à lhama que vive em pequenos rebanhos no matagal. São caçadores competentes, usando pontas-de-lança tão letais quanto
as usadas pelos caçadores Clovis muito mais ao norte, só que de desenho muito diferente. Faltam em suas pontas a flauta Clovis, a essencial ranhura rasa, mas têm
uma elegante haste longa.
Numa ocasião, Lubbock viaja com o grupo de caçadores até o extremo sul, ao que hoje chamamos Tierra del Fuego. Sentado num abrigo entulhado, conhecido como Tros
Arroyos, quase ensurdecido pelo vento a uivar e envolto na mais negra das noites, Lubbock sabe que chegou ao fim mesmo da própria terra. Do outro lado das brasas
incandescentes, seus companheiros conversam em voz baixa, decidindo se devem passar o dia seguinte à procura de cavalo ou montando armadilhas para raposa. Lubbock
abre Tempos pré-históricos e encontra suficiente luz de fogueira para ler o que seu xará pensava sobre os habitantes do século XIX dessa terra árida.
O vitoriano John Lubbock não tinha experiência pessoal alguma dos fueguinos, e assim recorreu ao relato de seu grande amigo e mentor Charles Darwin, que estivera
na Tierra del Fuego em 1834, durante sua viagem no Beagle. As pessoas que Darwin encontrou vinham vivendo inteiramente de caça e coleta, o que tornava o seu relato,
e os de outros viajantes vitorianos, de grande valor para os arqueólogos modernos, quando tentam interpretar os restos de cavernas pré-históricas como Tros Arroyos.
Na verdade, os fueguinos do século eram muito provavelmente descendentes diretos dos primeiros habitantes da Tierra del Fuego, os que tinham usado Tros Arroyos e
outras cavernas em 11.000 a.C. Mas os relatos vitorianos precisam ser lidos com grande cautela, a fim de separar observação útil de preconceito racial.
"Quando desembarcamos", explicava Darwin, "paramos ao lado de uma canoa com seis fueguinos. Foram os seres mais abjetos e miseráveis que já vi... Os pobres infelizes
eram enfezados, rostos hediondos lambuzados de tinta branca, pele imunda e gordurosa, cabelos emaranhados, vozes dissonantes, gestos violentos e sem dignidade. Vendo
esses homens, mal podemos fazer-nos acreditar que são criaturas irmãs e habitantes do mesmo mundo." Darwin dizia em seguida que eles "dormiam na terra molhada, enroscados
como animais", e evitavam a fome com o canibalismo e o parricídio (assassinato de um parente próximo). Robert Fitzroy, capitão do Beagle, achou que as mulheres deviam
ser chamadas de fueguinos fêmeas, e que "talvez servissem para... homens toscos, mas para pessoas civilizadas sua aparência é repugnante".
O John Lubbock vitoriano também extraíra descrições do relato de Darwin sobre a tecnologia do hábil artesanato e métodos sofisticados de caça e coleta - inteiramente
o contrário do que se esperaria de pobres e rústicos desgraçados. Os fueguinos tinham abrigos tipo oca, "flechas retas e bem acabadas" e "anzóis de forma quase igual
à dos nossos", como parte de uma ampla variedade de lanças de ponta de pedra, apetrechos de pesca, arcos e flechas. Tinham cães de caça muitíssimo bem treinados,
eram excelentes nadadores e evidentemente capazes na emboscada de lhamas. "Ao ler quase todo relato sobre os selvagens," concluíra John Lubbock, "é impossível não
admirar a destreza com que usam suas toscas armas e artefatos." É evidente que lutava para reconciliar as predominantes atitudes vitorianas em relação aos selvagens,
comungadas por ninguém menos que o próprio Charles Darwin, com sua própria admiração pelas habilidades exigidas pela feitura e emprego de instrumentos de caçadores-coletores.
A viagem do John Lubbock moderno de Monte Verde às cavernas do sul da Patagônia levaram-no de uma das mais recentes escavações na América do Sul a duas das mais
antigas. A primeira caverna em que ele entrou foi a Caverna de Fell; a da cratera vulcânica que fora Palli Aike. As duas foram examinadas em 1934, durante a pioneira
pesquisa arqueológica do sul da Patagônia feita por Junius Bird, do Museu de História Natural Americana. Suas escavações descobriram restos de lareiras, os instrumentos
de pedra típicos que logo se tornaram conhecidos como pontas "rabo-de-peixe" e ossos de cavalo, preguiça e guanaco.
Bird sabia que aqueles depósitos eram de grande antigüidade. Reconheceu os ossos de animais extintos, e constatou que os restos na Caverna de Fell tinham sido
vedados sob desmoronamento do teto, sobre o qual depois pessoas tinham acampado. Não tinha muita idéia sobre a idade das pontas rabo-de-peixe, nem o meio de encontrá-las,
pois a datação por radiocarbono ainda não fora inventada. Só em 1969 esta técnica revelou que a Caverna de Fell fora ocupada já em 11.000 a.C. Isso, claro, muito
antes da descoberta de Monte Verde, mas o sítio continua sendo um das mais antigas ocupações em todas as Américas.
Já é 10.800 a.C. Lubbock está na Amazônia, após viajar mais de 5 mil quilômetros pelo norte da Tierra del Fuego. Rema uma canoa num rio que um dia será conhecido
como o Tapajós, embora seu curso vá mudar várias vezes antes de receber esse nome. Na Europa e Oeste da Ásia, o Jovem Dryas acabou de chegar; caçadores em Stellmoor,
no vale de Ahrensbur, inspecionam seus arcos, e as casas de Ain Mallaha foram abandonadas. Mas ali na Amazônia o Jovem Dryas vai passar inteiramente despercebido.
Lubbock vê jacarés-de-papo-amarelo tomando sol nas margens arenosas do rio; um boto segue a canoa.
A Amazônia hoje é o maior museu na Terra, com um conteúdo que vale muito mais que os tesouros do British Museum, do Louvre e do Metropolitan de Nova York juntos.
Suas comunidades de plantas passaram pela era glacial quase inalteradas. E embora estejamos fazendo o máximo para destruí-lo hoje, esse museu sobrevive como um mundo
pré-histórico do século XXI. Acreditava-se antes que a Amazônia fora dizimada pela era do gelo. Supunha-se que as condições áridas tivessem fragmentado a floresta
contínua numa colcha de retalhos de bosques, savanas e campinas. Mas quando se coletaram amostras de pólen de sedimentos da era glacial, eles revelaram que a floresta
permanecera quase intata. Basicamente a mesma variedade de plantas e árvores em geral nas mesmas proporções continuara a florescer na bacia durante toda a queda
de temperaturas globais que culminaram no LGM e nas elevações de temperaturas até hoje. Alguns desmembramentos de fato ocorreram; em 20.000 a.C., as planícies amazônicas
abrigavam várias espécies de árvores que exigem um clima frio e limitam-se hoje às encostas orientais dos Andes. Mas sua exclusão quando as temperaturas se elevaram
não passou de um detalhe - a floresta tropical dificilmente chegou sequer a mudar.
Lubbock entrou na bacia amazônica após uma jornada pelos matagais e bosques espinhosos do leste da América do Sul, passando perto de Pedra Furada, onde Niède Guidon
iria escavar um dia. Encontrou várias comunidades de caçadores-coletores, mas passou depressa por eles, ansioso por chegar à floresta tropical. A mata fora-se aos
poucos tornando mais densa, as temperaturas elevaram-se, e logo ele passara a viajar por água em vez de terra. Animais e plantas tropicais surgiam quando um pequeno
tributário levava a outro e transportava Lubbock até o coração da floresta tropical.
O rio de Lubbock junta-se a outro muito maior, que corre mais rápido, de água escura em vez da cristalina - o próprio Amazonas. Uma tropa de macacos no dossel
das árvores alarma-se e põe-se a uivar, garças assustam-se e alçam vôo. Logo após entrar na nova corrente, Lubbock vê uma canoa atracada na margem defronte, e depois
dois vultos em pé perto do raso, prestando atenção à agitação. Eles dão as costas e desaparecem entre as árvores. Lubbock atravessa o rio, amarra seu barco ao deles
e segue a trilha, percorrendo uma faixa de mata pantanosa que leva então à densa floresta, e logo se torna um caminho bem batido.
Sob as árvores é mais frio e muito escuro, pois o denso dossel oferece poucas vigias ao sol. O solo, formado por grossas camadas de lixo de folhas em decomposição,
é macio embaixo dos pés; o ar espesso com a pungência da deterioração orgânica. Lubbock passa por uma imensa variedade de árvores florestais, várias com enormes
troncos verticais envoltos em gigantescas trepadeiras serpeantes. Algumas têm contrafortes tão imensos que parecem muros de madeira na floresta.
Ele capta ocasionais vislumbres dos dois homens, e repara que um deles leva um grande peixe pendurado nas costas, o rabo às vezes arrastando no chão. Andam apressados,
sem parar para descansar. Após quase 10 quilômetros, ergue-se em triunfo um pico de brilhante rocha vermelha acima das árvores, e logo Lubbock se vê diante de uma
coelheira de cavernas num morrote de calcário. Os carregadores do peixe desaparecem lá dentro, gritando que voltaram, Lubbock ouve saudações; uma piada é evidentemente
contada, pois se segue uma gostosa gargalhada.
Ao aproximar-se da entrada da caverna, ele vê pinturas na parede de pedra: círculos concêntricos em vermelho e amarelo, impressões manuais e uma figura esquemática
de cabeça para baixo, com raios emanando da cabeça como de um sol. Fazem-no lembrar as de Pedra Furada.
Lubbock chegou a Monte Alegre, e logo vai juntar-se aos ocupantes da Caverna da Pedra Pintada. Trata-se de um dos mais importantes sítios arqueológicos da bacia
amazônica - na verdade de toda a América do Sul. Foi descoberta em 1991, durante um levantamento na bacia amazônica inferior, por Anna Roosevelt, do Museu de Campo
de Chicago. Quando sua equipe escavou o sítio, encontrou provas de habitação humana em 10.800 a.C., comprovando - para surpresa de muitos antropólogos - que pessoas
conseguiram viver como caçadores-coletores na floresta tropical amazônica. Os antropólogos acreditavam antes que sem a agricultura de corte e queimada, elas não
teriam condições de adquirir suficiente comida da floresta, e em conseqüência a Amazônia tivesse permanecido desocupada até pelo menos 5.000 a.C. Mas, como está
prestes a descobrir Lubbock, os que vivem em Pedra Pintada caçam e coletam sozinhos.
No arejado interior da caverna há pelo menos 10 pessoas de pé em círculo, admirando a presa. Usam poucas roupas e lembram os índios amazônicos atuais - robustos,
pele cor de cobre, cabelos negros lisos e rostos elegantemente pintados. O chão é coberto de tapetes feitos de enormes folhas; vêem-se cestos e sacos empilhados
junto a uma parede; lanças, varas de pescar e arpões encostados num canto. Gamelas no fundo da caverna contêm grumos de pigmento vermelho esmagados e misturados
com água. Junto à outra parede, feixes de mato macio amarrados com fibras vegetais, que os transformam em almofadas. No meio, uma pequena lareira fumegando, ao lado
da qual jaz o peixe magnificamente no chão.
Uma mulher acocorada e com uma faca de pedra retira a cabeça do peixe. Oferece-a à um jovem, o primeiro portador, que a recebe com um sorriso radiante. Ele suga
cada órbita alternada, o sangue e outros fluidos escorrendo-lhe pelo peito. Feitas as preliminares, o peixe é levado para fora e estripado.
Lubbock passa os dias seguintes com as pessoas de Pedra Pintada, ajudando a catar mexilhões de água doce e colher um estonteante sortimento de frutas, nozes, raízes
e folhas. Algumas, como as castanhas-do-pará e castanhas-de-caju, ele conhece, enquanto outras são muito novas. Vê uma nova técnica de fabricação de instrumentos:
lascas de pedra são moldadas em forma de pontas-de-lança não a golpes de martelo de pedra, mas apertando pedaços pontudos de osso contra a pedra com tanta força
que se soltam minúsculas lascas. Isso é conhecido pelos arqueólogos como "lascar por pressão", e foi usado em todo o mundo pré-histórico para fazer artefatos especialmente
elaborados, como as pontas triangulares encontradas nesse sítio e as pontas Clovis da América do Norte.
Como Lubbock já viu muita caça e coleta de plantas em suas viagens à América do Sul, a sofisticação da cata a alimentos desses anfitriões desconhecidos não é surpresa
alguma. Nem sua habilidade e engenhosidade no uso de uma enorme variedade de material vegetal para fazer roupa e equipamento. Mas a extensão da pesca em água doce
é inteiramente nova para Lubbock, e nisso as pessoas se superam. Grandes peixes são lanceados das canoas, e os menores apanhados em redes. Amazonenses recentes usam
veneno para pegar peixes, e é fácil acreditar que as que habitaram Pedra Pintada em 10.800 a.C. também o fizeram.
Lubbock fica sabendo disso quando acompanha um grupo de homens, mulheres e crianças - cerca de uma dezena ao todo - à floresta. Vão até uma árvore específica a
um quilômetro da caverna. É de um tamanho monumental, a circunferência muito maior do que qualquer outra já vista por Lubbock. Vários metros além da base, o solo
florestal foi evidentemente perturbado muitas vezes antes. Ele vê o grupo espacejar-se e começar a cavar pequenos fossos, expondo uma rede de raízes. Em seguida,
empregam serras e facas de pedra para cortar pedaços, cada um do tamanho do antebraço de Lubbock, e empilhá-los em cestos. Assim que os enchem, o grupo parte, com
as jovens levando a carga na cabeça.
Uma estreita trilha é seguida até uma pequena clareira junto à margem de um arroio raso, onde se esvaziam os cestos no chão. Homens e mulheres desaparecem por
um momento na floresta; Lubbock fica com as crianças, atirando gravetos na água escura. Os homens retornam com paus resistentes e se põem a moer as raízes até formar
uma polpa, mantendo a boca bem fechada enquanto porções de fibra e seiva branca espirram no ar.
Nesse meio tempo, as mulheres retornaram com grandes folhas lisas enceradas. Em alguns minutos, amarram-nas a cestos maleáveis. A polpa de raízes é posta dentro
e os homens levam embora os cestos, tomando cuidado para evitar qualquer contato com a papa fibrosa a escorrer. Lubbock permanece com as mulheres e crianças, passando-lhes
galhos e folhas para construir uma represa no arroio. Os homens chegaram 500 metros corrente acima, onde patinham com a água na altura dos joelhos e despejam cestos
em volta, criando uma nuvem branca leitosa.
Na represa, as mulheres agora descansam, comendo algumas bagas. Os homens logo se juntam a elas, mas preferem mastigar chumaços de folhas. As crianças olham atentas
a água, e então soltam gritinhos quando vêem os primeiros peixes chegarem. Estes nadam literalmente para salvar a vida, tentando escapar ao veneno que corre rio
abaixo. Assim que chegam à represa, não têm mais para onde ir. Alguns se viram e voltam nadando para a morte imediata, e outros se debatem nos paus e folhas, onde
sufocam. Minutos depois, a superfície da enseada brilha com os corpos de peixes mortos. São apanhados pelas mulheres, que enfieiram cada um pelas guelras com agulhas
de osso. Logo todo o grupo retorna a Pedra Pintada envolto em sua pesca prateada. Mas Lubbock não está mais com eles: partiu para os distantes Andes a oeste.
A escavação de Anna Roosevelt encontrou os restos de vários animais e plantas ainda explorados pelos amazonenses hoje, entre eles os frutos da tarumã, usados como
isca de pesca. Embora mal conservados, os ossos de animais permitiram a identificação de uma imensa variedade de espécies, entre elas cobras, anfíbios, pássaros,
tartarugas e - em maior abundância - peixes, que variam entre os de apenas alguns centímetros aos de mais de l,5 m de comprimento.
Entre os restos de plantas, ossos de animais e lareiras, Anna encontrou mais de 30 mil lascas de pedra da feitura de instrumentos - porém não mais que vinte e
quatro peças acabadas - e centenas de grumos de pigmento vermelho. Ela tomou imenso cuidado de certificar-se de que era o mesmo pigmento que fora usado para fazer
as pinturas na caverna, examinando-o microscopicamente e analisando sua composição química. Na verdade, acabou-se revelando idêntico ao usado em várias das pinturas,
fornecendo um dos argumentos mais bem documentados em defesa da arte rupestre do Pleistoceno nas Américas.
Pedra Pintada foi abandonada logo após 10.000 a.C. Como em Monte Verde, não sabemos para onde foram as pessoas. Durante mais de 2 mil anos, a caverna ficou vazia,
o piso sendo coberto de areia soprada. E então novos ocupantes chegaram, passando a usar a caverna numa base muito mais casual e não tendo o menor interesse em pintar
as paredes. Também deixaram uma série semelhante de restos vegetais, animais e de peixes, junto com mais alguma coisa, uma coisa inteiramente nova em toda a América
do Sul - cerâmica. Em 6.000 a.C., os que viviam na Amazônia inventaram o uso de vasos de cerâmica, às vezes decorados com simples desenhos geométricos. Enquanto
surgia essa nova tecnologia, uma antiga desaparecia, pois as finas pontas de pedra triangulares eram abandonadas e os instrumentos de pedra passavam a ser apenas
simples lascas e pedras polidas amorfas. Seriam necessários outros 1 mil 500 anos para a cerâmica ser adotada na América Central, e mais 4 mil para encontrá-la nos
Andes centrais, embora sua gente já viesse domesticando plantas e animais.
Fragmentos de cerâmica semelhantes são encontrados em monturos de conchas que surgem entre as margens de rios após 6.000 a.C., mostrando que algumas das pessoas
da Amazônia tinham começado a especializar-se na fauna fluvial, moluscos e nas diversas variedades de peixe. Com o passar do tempo, surgiram aldeias ribeirinhas,
e iniciou-se por fim o cultivo da mandioca e do milho. Essas foram o tipo de pessoas encontradas primeiro por viajantes vitorianos, como o colega intelectual de
Darwin, Alfred Russel Wallace, muito depois de os caçadores-coletores da Caverna da Pedra Pintada - e talvez de outros lugares na bacia amazônica - terem desaparecido
da memória.
Acredita-se que as pontas-de-lança de pedra triangulares encontradas tenham vindo de horticultores pré-históricos, vivendo de modo muito parecido ao dos índios
amazônicos recentes. Contudo, sua forma e técnica de manufatura eram muito semelhantes às pontas encontradas em outros lugares na América do Sul, e já se sabia que
tinham uma data terminal da era glacial. E assim as escavações de Anna Roosevelt em Pedra Pintada foram na verdade muito especiais - não apenas estendendo a duração
de ocupação conhecida na floresta tropical amazônica, mas acrescentando mais um modo de vida para pessoas que viviam na época em que a era do gelo chegava ao fim.
A conseqüência mais intrigante do trabalho dela, porém, é que questiona a "virgindade" das florestas. Este foi o termo usado por Alfred Russel Wallace no relato
de 1889 de suas viagens amazônicas. Como todos os outros viajantes do século XIX, ele supôs que toda a floresta era inteiramente inalterada por mãos humanas. Mas
agora que Anna Roosevelt revelou mais 5 mil anos de ocupação humana, isso deve ser questionado. Surge a possibilidade de que os distintos agrupamentos de plantas
produtoras de alimento encontrados, como as castanhas-do-pará e de caju, sejam tanto uma conseqüência de atividade humana quanto da natureza. As exposições do grande
museu da Amazônia talvez tenham sido lenta e sutilmente rearrumadas por gerações de catadores de alimentos pré-históricos.

29
Pastores e o "Menino Jesus"
Domesticação animal e vegetal nos Andes, e forrageiros litorâneos,
10.500 - 5.000 a.C.
Com as pernas doendo, John Lubbock abriga-se de um vento violento, tomado de outra onda de tonteira. Além das rochas há uma planície coberta de mato, e depois um
lago que se funde imperceptivelmente com o céu distante. Ele se encontra nas campinas da puna, o planalto frio da cordilheira dos Andes peruana, após há muito ter
deixado os trópicos para percorrer vales íngremes, enquanto a floresta se reduzia a matagal e depois a árvores esparsas e mirradas. O ar se rarefez, sua mente e
corpo doem de fadiga e náusea.
A puna é uma paisagem de 4 mil metros de altura, com morros ondulantes e escarpas rochosas, sulcada por pequenas torrentes e esburacada de lagos. O que está diante
de Lubbock é o maior que ele viu; será conhecido como lago Junin, localizado 800 quilômetros a noroeste de seu maior e mais famoso lago Titicaca.
Lubbock precisa visitar a puna, pois essa se tornará a terra dos incas. Suas grandes cidades, estradas e templos vão surgir vários milhares anos depois que suas
viagens chegaram ao fim. Mas uma fundação da civilização deles agora pastoreia diante dele na planície. Não uma, mas todo um rebanho de criaturas mais ou menos do
tamanho de um gamo, com longos pescoços e orelhas pontudas. São vicunhas, os ancestrais selvagens da alpaca, que logo se tornará uma fonte essencial de comida e
lã.
Em sua viagem até a puna, e na verdade em todas as suas jornadas sul-americanas fora dos trópicos, ele encontrou um tipo semelhante embora maior de camelídeos,
como são chamados esses animais, o guanaco, que também vive em rebanhos, mas prefere elevações mais baixas e é menos ligado a torrentes e lagos. Este dará origem
a outro animal domesticado fundamental, que tem as costas largas e será o principal meio de transporte de produtos pelos altos Andes - a lhama.
Todos os animais que Lubbock viu são selvagens e assim permanecerão durante mais vários milhares de anos. A data é 10.500 a.C., e eles são caçados por pessoas
que já vivem nos prados da puna há muitas gerações. Um grupo de caçadores chega ao lado de Lubbock, seus passos e vozes silenciados pelo vento. São oito, vestidos
com peles grossas e armados com lanças de ponta de pedra. Em alguns minutos, quatro terão ido embora, partindo na direção oposta ao lago. Os outros se sentam e inspecionam
suas armas; precisam certificar-se de que as pontas das lanças estão seguras e afiadas. Um deles pega uma sovela da sacola e finca-a com tanta força na ponta da
lança que uma lasca é retirada perto do bico; isto aperfeiçoa a simetria e reforça sua capacidade de penetração.
Após uma hora de descanso, os homens partem em busca do rebanho de vicunha; a tonteira de Lubbock passou, e assim ele os acompanha, escalando o penhasco rumo ao
lago. Eles seguem devagar e calados, logo começando a acocorar-se em meio ao mato à altura do joelho. Pouco depois estendem-se de bruços rentes ao chão, serpeando
centímetro por centímetro por entre o capim molhado em direção a um animal selvagem. O alvo é o líder do grupo, o macho que raras vezes se afasta muito de seu harém
e cuida para que se mantenham nos limites territoriais.
Momentaneamente perturbada, a vicunha ergue a cabeça, fareja o ar e olha interrogativa em volta, mas nada vendo nem ouvindo, logo retorna ao mato. Lubbock avança
mais uma vez com os caçadores e acaba chegando tão perto que ouve o rasgar e triturar de talos duros de mato nos dentes das vicunhas.
Um sutil aceno da cabeça é dado c os caçadores levantam-se e atiram suas lanças em uníssono. As armas erram o alvo, mas nem tudo está perdido, pois, com Lubbock
observando, os caçadores recomeçam a caça, dispersando o harém c pondo o macho a correr direto para um segundo grupo de lanças. Estas vêm dos outros caçadores que
se esconderam nos juncos da margem do lago, no outro lado do harém.
Nesse anoitecer, Lubbock reúne-se com os caçadores c suas famílias na boca de uma grande caverna situada entre escarpas de calcário no lado sul do lago. Construíram-se
pequenos anteparos na boca da caverna para afastar o vento que persiste durante toda a ocupação de verão deles. Há uma espetacular vista do outro lado da água até
os picos distantes, antes cobertos de neve, mas agora silhuetas que se apagam com o dia chegando ao fim.
Quando John Rick, da Universidade de Stanford, escavou a Caverna Pachamachay, em 1974 e 1975, encontrou os restos da várias carcaças de vicunhas e as lanças usadas
para caçá-las. As de 10.500 a.C. estavam profundamente enterradas embaixo dos detritos deixados por muitas gerações posteriores de ocupantes, pois a caverna continuou
em uso durante 9 mil anos. Mas, enquanto os primeiros ocupantes tinham sido caçadores de vicunha e guanaco, os últimos de rebanhos de alpaca e lhama - ocorreu uma
mudança econômica, na certa mais como um deslocamento gradual da caça para o pastoreio do que uma súbita ruptura de estilos de vida. Embora seja impossível saber
exatamente quando se deu esse deslocamento, pois os ossos desses quatro animais são quase idênticos, o melhor palpite é que foi em torno de 5.000 a.C. Nessa data,
os camelídeos passam a corresponder à vasta maioria dos animais mortos, não apenas na Caverna Pachamachay, mas em todas as escavadas da puna peruana. Antes disso,
os caçadores vinham matando uma diversidade de caça muito maior, entre elas gamos e aves.
Talvez mais revelador seja que, por volta de 5.000 a.C., a proporção de recém-nascidos e animais jovens aumenta cerca de um quarto para a metade do total. Bruce
Smith, do Instituto Smithsonian, e um dos principais especialistas nas origens de produção alimentícia nas Américas, desconfia que isso reflete o aumento na mortalidade
infantil, que sobe quando os animais são mantidos em currais apinhados e doenças passam a grassar. Esses altos níveis de mortalidade por doença são uma disseminada
característica dos rebanhos de lhama atuais.
Os estudos de John Rick concluíram que os caçadores das pastagens da puna assentaram residência permanente na maior das cavernas logo após 10.500 a.C. Eram na
certa, vários grupos, cada um usando um território centrado numa bacia lacustre e contendo uma caverna como sua residência principal. A densidade e variedade de
artefatos na Caverna Pachamachay, junto com os indícios de paredes e constante limpeza, sugerem que a caverna foi usada de uma maneira muito diferente das ocupações
temporárias, de curta duração, dos caçadores-coletores sempre em movimento. E assim, como aconteceu com o povo Nafutiano do oeste da Ásia, o sedentarismo talvez
tenha sido um passo crucial para a agricultura. Mas neste caso, mais prelúdio da criação animal que do cultivo de plantas.
Pode-se logo imaginar caçadores estabelecidos desenvolvendo um íntimo conhecimento dos rebanhos na sua caverna, muito provavelmente identificando vários dos animais
individuais, sobretudo os machos que controlavam os haréns. Os outros machos viviam em tropas e talvez logo tivessem se tornado a principal presa, pois esses eram
descartáveis - sua perda não causava nenhuma ameaça à sobrevivência e reprodução da população como um todo. A caça seletiva talvez fosse então complementada pelo
fornecimento de forragem durante os invernos rigorosos, controlando assim os movimentos dos rebanhos. Animais feridos ou órfãos talvez tivessem sido tratados e cuidados,
o que acabaria proporcionando a base de um rebanho domesticado. Uma vez presentes esses rebanhos, talvez tenham desempenhado um importante papel trazendo outra espécie
da selva, não um animal, mas uma planta: a quina.
A quina é uma das duas plantas que dominaram as economias de produção alimentícia das bacias e vales de alta altitude dos Andes, a outra sendo a batata. Membro
do grupo de plantas da família das quenopodiáceas, mais conhecida por alguns como arroz-miúdo-do-peru, a quina passou a ser uma colheita essencial dos incas e continua
sendo cultivada hoje por agricultores de subsistência, que a valorizam pelo seu alto conteúdo protéico. Quando madura, as espigas de suas sementes multicolores chegam
à altura da cintura, e são colhidas para fazer biscoitos, pão e mingau. As duas diferenças básicas entre as variantes quenopodiáceas silvestres e domésticas são
as mesmas que as entre o trigo silvestre e doméstico do oeste da Ásia: as variantes domésticas "esperam pelo colhedor", e nenhuma das duas atrasa a germinação, o
que resulta no amadurecimento simultâneo de todas as plantas numa única colheita.
A mais antiga quina veio de outra caverna na bacia do Junin, a não mais de 30 quilômetros de Pachamachay e também escavada por John Rick. Trata-se da Caverna Panaulauca,
que contém uma variedade semelhante de artefatos e ossos animais, e foi muito provavelmente um acampamento-base usado por outro grupo de caçadores-coletores que
se estabeleceram na puna. As sementes quenopodiáceas da Panaulauca de 5.000 a.C. tinham pequenas "testas", comparáveis às das de quinua doméstica e indicativas da
reduzida capacidade de atrasar a germinação. Assim, nessa data, é possível que capões de quinua florescessem nas vizinhanças da caverna, talvez próximos a currais
onde se mantinham Ihamas e alpacas - ou talvez até dentro dos próprios currais antigos.
Os camelídeos gostam de comer as variedades silvestres da quina, mas não digerem as sementes. Estas passam pelas vísceras do animal ilesas e são depositadas com
um volume natural de fertilizante, muitas vezes longe de onde as plantas brotaram originalmente. Bruce Smith sugere que se os primeiros pastores tivessem começado
a encurralar seus rebanhos à noite, capões de quenopódio teriam brotado em seus solos orgânicos. Transferindo-se apenas os currais e usando-se as cercas para proteger
os novos capões florescentes do pasto, poderia ter surgido uma substancial fonte alimentar perto do assentamento. Teria sido então um pequeno passo para o cultivo
- capina, rega, transporte - dando início às sutis e não intencionais alterações genéticas dessas plantas, e transformando as quenopodiáceas silvestres em quina
doméstica.
Outra planta foi domesticada nos Andes, provavelmente na bacia do lago Titicaca. Mas ao contrário da quina, essa desempenhou importante papel na história global
depois que foi levada da América do Sul para a Europa no século XVI: a batata. Há diversas variantes de batatas silvestres e cultivadas hoje na América do Sul, e
a bacia do lago Titicaca é o centro de variabilidade genética - sinal de que foi ali que surgiram as variantes domesticadas.
Não se encontraram ainda quaisquer traços de cultivo anterior na bacia e vales fluviais em volta. Isso muito provavelmente, porém, reflete a limitada procura de
assentamentos abertos. Quase toda a escavação foi realizada nas cavernas do planalto, sem muita chance de fornecer uma imagem completa da vida pré-histórica no centro
do Peru. Bruce Smith acredita que assim que se descobrirem esses assentamentos abertos, se constatará que a domesticação da batata surgiu como parte de um pacote
conjunto com a lhama, a alpaca e a quina.
Mais uma espécie talvez estivesse também envolvida: os porquinhos-da-índia. Ossos desses animais foram encontrados por John Rick na Caverna Pachamachay, e sabe-se
que foi uma espécie muito caçada em todos os Andes, antes de tornar-se uma fonte domesticada de carne. Exatamente quando ocorreu isso, continua desconhecido. Como
os camundongos e ratos do oeste da Ásia, as variantes selvagens talvez tivessem sido atraídas aos primeiros assentamentos sedentários devido aos recursos alimentares
de detritos humanos ou colheitas. Os porquinhos-da-índia são suscetíveis à domesticação por causa de sua alta taxa reprodutiva e a facilidade de serem criados em
áreas confinadas - o que também os torna animais de estimação ideais para as crianças de hoje.
O dia começa devagar na Caverna Pachamachay. John Lubbock acorda ao amanhecer e vê que a maioria dos demais continua dormindo. Eles usam o fundo da caverna, que
tornam confortável e quente com acolchoamento macio e peles de animais. Uma jovem senta-se na entrada amamentando seu bebê; algumas crianças brincam com gravetos
por perto. Um homem acorda e reforça o fogo que ardeu a noite toda. Quando os outros tições se inflamam, pequenas esferas espinhosas são retiradas de um cesto de
palha e jogados nas cinzas. São as opúncias, frutos de cactos espinhentos, que dão em montes arredondados por toda a região da puna. Após alguns minutos, são arrastadas
ou retiradas com um piparote das cinzas. As opúncias agora sem espinhos e suculentas são passadas em volta, limpas com as mãos e comidas.
Todos os vegetais consumidos pelos moradores da Caverna Pachamachay são de espécies selvagens. Seus restos escavados foram analisados por Deborah Pearsall, da
Universidade do Missouri, que encontrou uma grande variedade de espécies, embora a oportunidade de preservação se limitasse ao que fora carbonizado acidentalmente
no fogo. Enquanto alguns restos, como os das opúncias e anserinas, vieram com maior probabilidade de frutas e sementes colhidas para comer, outros talvez tenham
tido um papel medicinal. Tinha, por exemplo, noventa sementes de uma planta da família das euforbiáceas. Essas plantas são muito usadas hoje na medicina popular
andina: a seiva branca de algumas é empregada como laxativo, os tubérculos de outras ajudam a aliviar dores estomacais, e fornecem uma pomada para erupções cutâneas.
Lubbock pega um pequeno pedaço de carne de vicunha seca e duas opúncias e deixa a bacia do Junin, embarcando numa desafiante jornada pelas montanhas até o lago
Titicaca. Dali, desce por um labirinto de vales até as terras litorâneas do Peru atual. Em 10.000 a.C., chega a uma paisagem de sopés áridos, cobertos de poeira,
entrecortados por estreitos vales ladeados de árvores que formam oásis parecendo faixas. É mais quente que nas montanhas, mas surpreendentemente frio para os trópicos,
sobretudo quando as colinas costeiras se encontram muitas vezes cobertas por um denso nevoeiro cinzento.
Cheiro de peixe acolhe Lubbock em sua chegada a um pequeno aglomerado de casas circulares na margem norte do que se tornará conhecido como Quebrada Jaguay, ou
Desfiladeiro Jaguay. Canoas também chegam, retornando de uma pescaria na foz do estuário, a cerca de 8 quilômetros de distância. Pesadas redes estão sendo arrastadas
para a terra à meia-luz do crepúsculo. Lubbock junta-se a eles, esvaziando os peixes em cestos e retirando os enredados entre os fios de fibras vegetais.
As choupanas semi-subterrâneas são feitas de galhos, rebocos de barro e grossas estacas de madeira. A fumaça prolonga-se pelos telhados e logo tenta Lubbock a
sentar-se junto ao fogo lá dentro. Entre as choupanas há detritos típicos da vida dos caçadores-coletores: detritos da feitura de instrumentos, pilhas de raízes
à espera de ser transformadas em fibras e restos de poços de lareiras e de assar.
Lubbock encontra esses habitantes litorâneos em meio à mudança. As pessoas vivem na mesma vizinhança há quase mil anos, pescando e catando moluscos durante todo
esse tempo. O assentamento foi outrora um acampamento usado por gente que viajava todo ano da costa para as montanhas. Em suas visitas ao planalto, caçavam o guanaco
e coletavam obsidianas - as lavas vulcânicas de aspecto vítreo valorizadas durante toda a Idade da Pedra - voltando com o máximo que podiam carregar.
Mas essas temporadas montanhesas deixaram de ocorrer, e Lubbock não vê obsidiana em lugar algum. As pessoas agora passam o ano inteiro nas terras costeiras, embora
ocupem três ou quatro assentamentos diferentes a cada ano. Chegam à Quebrada Jaguay com um fim específico em mente: capturar cardumes de piraúna que abundam na foz
do estuário e catar os moluscos, igualmente abundantes. Ao fazerem isso, também restauram as choupanas e pegam abóboras no solo do vale. Assim que os cardumes partem,
as pessoas vão embora para o sítio seguinte de sua trajetória anual, talvez para pegar cormorões em armadilhas ou pescar anchova.

O sítio de Quebrada Jaguay foi descoberto em 1970, mas as escavações só foram iniciadas em 1996 por Daniel Sandweiss, da Universidade do Maine. Como não tinha quaisquer
instrumentos de pedra de forma característica - como as pontas "rabo-de-peixe" que Lubbock viu na Tierra del Fuego, ou as triangulares da Amazônia - Sandweiss ficou
sem a menor idéia de qual era a idade das espinhas de peixe, conchas de molusco, pedras queimadas e buracos de estaca antes da datação de carbono. Quando se revelou
que pessoas tinham vivido na encosta de Quebrada Jaguay desde 11.000 a.C., o sítio foi logo aclamado como uma importante descoberta. Demonstrou que as pessoas mais
antigas no Peru eram destras no uso de recursos marinhos, envolvendo barcos e tecnologia de pesca. Também ofereceu mais indícios da diversidade dos primeiros estilos
de vida americanos.
Lubbock permanece com essa gente costeira durante algumas semanas - ajudando a tecer fibras, juntando as tripas de peixe e acompanhando-as quando visitam vizinhos
e olham com atenção o mar e o céu em constante mudança. Durante suas viagens, ele nota que grande parte da paisagem está coberta por um denso manto de sedimento
- às vezes um superficial aluvião, outras saibro grosseiro. Na boca de um vale, essa camada chega à altura da cintura em volta dos troncos de árvores; nas de outras,
as árvores foram evidentemente derrubadas e esmagadas. Numa ocasião ele encontra uma exposição vertical que parece a lateral de uma escavação arqueológica extraordinariamente
profunda. Água de rio solapou a íngreme encosta do vale e uma massa de sedimento desabou no rio, deixando uma parede vertical. Ali dentro, ele vê as paredes esmagadas,
madeiras e lareiras de uma choupana.
Mais de 10 mil anos depois, David Keefer, da Pesquisa Geológica dos EUA, fez uma descoberta semelhante quando inspecionou um corte em sedimentos feitos por novas
estradas na Quebrada Tacahuay, um vale cerca de 50 quilômetros ao sul da aldeia de pesca de Lubbock. Imprensados entre grossas camadas de saibros brutos, ele encontrou
traços de lareiras e monturos de detritos que foram datados de 10.800 a.C.: restos de um assentamento que fora inundado de repente por uma imensa enchente de detritos
causada por chuvas violentas.
Após adquirirem mais datas, Keefer e seus colegas perceberam que o litoral do sul do Peru sofrerá quatro importantes enchentes de detritos entre 10.800 e 8.000
a.C. Só poderia ter havido uma causa de tão grande devastação da paisagem. Keefer encontrara a mais antiga, embora mais desconhecida, obra do "Menino Jesus" - mais
famoso por seu nome espanhol - El Nino - que continua a fazer estragos no mundo moderno.
El Niño é causado por uma mudança no padrão de temperaturas da superfície do mar e na pressão atmosférica no oceano Pacífico tropical. Isso acontece quando se forma
uma grande massa de água quente ao largo das Américas Central e do Sul, em intervalos regulares de períodos entre 2 e 10 anos, perturbando as correntes marítimas
e impedindo que os nutrientes de níveis inferiores e mais frios cheguem à superfície. Em conseqüência, populações de peixes abandonam a região por águas mais frias
e ricas em nutrientes. Isso pode ter um efeito devastador na indústria pesqueira - que muito provavelmente sustentava não mais que algumas centenas de pessoas em
10.000 a.C., mas agora sustenta milhões de vidas.
Ainda mais dramáticos são os estragos feitos pela mudança da pressão do ar nos padrões de temperatura regionais em todo o mundo. As costas do Pacífico nas Américas
são inundadas por tempestades El Niño, levando a extensas enchentes, enquanto o sudeste asiático é flagelado pela seca. Programas de computador prevêem que a freqüência
e os eventos El Nino têm chance de intensificar-se com o aquecimento global. Isto parece ter sido provado pela descoberta de que esses eventos só ocorriam mais ou
menos a cada 700 ou 800 anos no término da era glacial, mas se intensificaram para um ciclo de meros 10 anos nos últimos 150. Esse fato deveu-se com muita probabilidade
apenas ao aquecimento global natural, que atingiu o pico em 7.000 a.C. E assim resta-nos perguntar-nos sobre o impacto - ambiental e econômico - das próximas centenas
de anos de aquecimento global sobre El Niño.
Embora só possamos imaginar os eventos e os sofrimentos na Quebrada Tacahuay em 10.800 a.C., uma vívida ilustração da força de El Niño foi dada pela catástrofe
que atingiu a costado Peru em 1997-1998. Uma concentração de água quente de 400 metros de profundidade e do tamanho do Canadá formara-se no Pacífico. As tempestades
resultantes começaram a martelar a costa pacífica em dezembro de 1997, e seu impacto logo alcançou proporções apocalípticas. Em seis meses, rios cheios pela chuva
e deslizamentos de terra tinham destruído trezentas pontes, varrido do mapa aldeias inteiras, e deixado meio milhão de pessoas desabrigadas. A indústria pesqueira
foi arrasada, portos destruídos, e criadas as condições ideais para a propagação de doenças. O mar inundou 15 quilômetros interior a dentro. O dilúvio que atingiu
a cidade do deserto de Trujillo provocou a erosão do mais antigo cemitério da cidade e levou caixões e cadáveres antigos a flutuarem pelas ruas. Diante desse espetáculo
apavorante, os líderes da cidade dedicaram um tempestuoso domingo de março de 1998 para que os sitiados cidadãos pedissem ajuda a Deus. Talvez fosse exatamente isso
o que as pessoas fizeram em 10.800 a.C., quando seu assentamento foi destruído. Que mais podem fazer as pessoas ao enfrentar a força de El Niño - o Menino Jesus?
Dois cormorões surgem momentaneamente ao luar, sobrevoando a água, as pontas das asas quase tocando o mar. Desaparecem na escuridão quando nuvens engolem a lua e
ondas sorvem a areia ao se retirarem nas praias. Lubbock senta-se tremendo de frio num pontal, no silêncio da noite, hipnotizado pelo oceano pacífico.
É hora de partir da América do Sul. Enquanto ele avança na escuridão, seus pensamentos voltam-se para a ingestão de chá quente em Monte Verde. E depois para a
carne de cavalo na Tierra del Fuego, a pesca na Amazônia, a perseguição à vicunha nos Andes, a coleta de moluscos na Quebrada Jaguay. Pergunta-se se as pessoas de
Monte Verde são realmente os primeiros americanos, sobre os significados das pinturas rupestres, e por que as pessoas se tornaram pastores em vez de caçadores. A
América do Sul após o gelo foi um continente de gente admirável e perguntas não respondidas. Mas agora ele precisa viajar para o México e depois à América do Norte,
para descobrir o que aconteceu após a época de mamutes e Clovis.


30
Um Duplo Olhar ao Vale de Oaxaca
A domesticação de milho, abóbora e feijões no México,
10.500 - 5.000 a.C.
Devo confessar uma sensação de excitação infantil, numa tarde de setembro de 2.000 d.C., quando me sentei de pernas cruzadas encostado na parede de uma caverna,
e depois saltei para acocorar-me ao lado de outra. O desejo de realizar essas travessuras dominara-me assim que penetrara na última mata cerrada de espinheiros,
contornara a última opúncia e chegara a Guilá Naquitz, uma pequena caverna na região central do México.
Mal chegava a ser uma caverna - pouco mais que um rebordo abaixo de uma saliência numa face de penhasco, localizado no vale de Oaxaca. Perto dali havia cavernas
de verdade, as de entradas escancaradas e túneis profundos na rocha. Mais adiante no vale, viam-se espetaculares sítios arqueológicos, o mais admirável deles a antiga
cidade de Monte Alban, onde a sociedade zapoteca construiu a sede de sua capital há 2.500 anos.
Embora a arquitetura de Monte Alban fosse impressionante, minha visita ao seu topo era de interesse secundário. Eu fora a Oaxaca visitar Guilá Naquitz - o sítio
onde se encontraram as mais antigas plantas domesticadas no Novo Mundo. E apesar de suas credenciais espeleológicas serem limitadas, acocorar-me abaixo da saliência
valeu todo o suor, espetadas de cacto e arranhões que eu sofrerá durante a longa caminhada ao sol do meio-dia.
Num momento, imaginei-me como um dos caçadores-coletores que tinham acampado em Guilá Naquitz em 8.000 a.C., e no seguinte era o arqueólogo sediado em Michigan
Kent Flannery, no instante de sua (re)descoberta da caverna a 26 de janeiro de 1966 - 34 anos e 243 dias antes de minha própria visita. Ele diria depois que encontrara
artefatos de pedra e restos vegetais na superfície, os últimos sobrevivendo devido à extrema aridez do solo. Para mim, a caverna estava vazia - a não ser pela pilha
de excremento de cabra deixada por ocupantes mais recentes. Flannery levara apenas um mês e meio para fazer sua escavação na primavera de 1966. Depois precisou de
mais quinze anos para analisar os achados e publicar os resultados.
Minha fascinação por Guilá Naquitz devia-se ao contraste que oferecia entre vidas comuns e acontecimentos extraordinários na história do mundo. Entre 8.500 e 6.000
a.C., a caverna fora ocupada em várias ocasiões por não mais que quatro ou cinco pessoas, provavelmente membros de uma única família. Tinham usado o abrigo como
um lugar para consertar instrumentos de pedra, cozinhar coelhos e pequenas tartarugas, descascar, moer, raspar e assar uma imensa variedade de plantas alimentícias
coletadas nas imediações da caverna. E dormido em Guilá Naquitz, usando folhas de carvalho e capim como roupa de cama. Imagino que passavam grande parte do tempo
mexericando, brincando, talvez até cantando e dançando. Cada visita fora feita no outono, e é possível que tivessem durado qualquer coisa entre alguns dias e alguns
meses. Para eles, Guilá Naquitz era apenas mais um dos vários sítios de acampamento no vale de Oaxaca; não tinha especial importância, e os que iam estavam simplesmente
tocando sua vida cotidiana durante o início do Holoceno na América Central.
Flannery descobriu que enquanto eles faziam isso, também faziam história. Quando chegaram pela primeira vez à caverna, todas as suas comidas eram de espécies selvagens.
Na época da última visita, porém, algumas eram de variedades domesticadas - plantas dependentes de seres humanos para a sobrevivência. Sem o conhecimento das pessoas
de Guilá Naquitz, as novas plantas que criaram acabariam sustentando as grandes civilizações centro-americanas - olmeca, zapoteca e asteca.
Eu pensava nisso quando saltei do carro alugado, de tração nas quatro rodas, até onde ousara aventurar-me pelo leito seco do rio Gheo-ala acima, pequeno tributário
do vale de Oaxaca, a caminho de Guilá Naquitz. Depois tomei uma trilha invadida pelo mato, e às vezes entrava na floresta coberta de vegetação rasteira, não inteiramente
seguro do itinerário e à procura da característica face escarpada que vira ilustrada no livro de Flannery. Vários dos arbustos e árvores, sem falar nos cactos, eram
inteiramente desconhecidos para mim. Alguns estavam carregados de epífitos - plantas que vivem sobre uma outra sem se alimentar dela, apenas apoiando-se, e estendem
tentáculos errantes pelo ar. Abundavam as borboletas e abelhas.
Minha incapacidade para identificar as plantas causava-me considerável frustração. Adorei as exóticas flores amarelas e brancas, os ocasionais aromas pungentes,
as pequenas bagas começando a formar-se e vagens de semente a inchar. Mas eu mal sabia o que olhava. Aborrecia-me o fato de não ter feito meu dever de casa, pois
se acredita que a vegetação nessa parte do vale de Oaxaca é íntima da que cercava Guilá Naquitz em 8.000 a.C. Assim, aqueles antigos catadores de comida teriam visto
as mesmas flores e vagens de sementes, cheirado os mesmos aromas e se espetado no mesmo tipo de espinhos. Mas eles, claro, sabiam exatamente o que eram as plantas
- quais as que lhes forneciam a melhor comida, as de melhores fibras, as que tinham propriedades medicinais e as estimulantes.
Quando cheguei à caverna, um ninho de vespas em forma de campânula pendia do teto. Cercavam-no as cascas de ninhos anteriores, que se sobrepunham e enterravam
uns aos outros, como tinham feito as camadas de detritos das sucessivas ocupações humanas no chão. Assim que acabaram minhas estrepolias, retornei por entre as árvores,
descendo pela encosta coalhada de pedregulhos do penhasco até encontrar a trilha coberta de vegetação rasteira. Só então me dei conta de que aquela era a mesma trilha
que Kent Flannery e sua equipe haviam tomado quando repetidas vezes dirigiram seus veículos até muito mais perto de Guilá Naquitz do que eu ousara.
Parei um instante para ver uma fila de formigas marchando e julguei ouvir um motor forçando o caminho por entre raízes e buracos. E então imaginei Flannery e companhia
sacolejando e saltando ao passarem por mim em sua picape, no fim de um dia de trabalho há mais de 30 anos. Continuei a vagar e imaginei um segundo veículo, menos
coerente com o cenário: um Mercedes-Benz percorrendo o leito do rio que agora se estendia à minha frente. Era Kent Flannery em sua primeira visita ao vale de Oaxaca,
após aceitar emprestado o carro de um parente - na certa inteiramente inocente sobre os costumes dos arqueólogos. Parece que o Mercedes-Benz fora bem mais eficaz
que muitos veículos de tração nas quatro rodas para conduzir Flannery pelo vale, ao longo de trilhas de jumento e desfiladeiros. Voltei caminhando pelos cactos e
espinheiros para pegar meu próprio veículo, cansado mas excitado por haver-me sentado na caverna de Guilá Naquitz.
É 8.000 a.C., e John Lubbock senta-se nessa caverna lendo Tempos pré-históricos. À sua volta, a desordem e os detritos de um acampamento de caçadores-coletores;
os ocupantes saíram para coletar plantas. O chão tem tapetes tecidos; pilhas de mato arrumadas como roupa de cama; uma lareira com cinzas quentes. Há bacias, cestos
e sacos sobre o tapete e pendurados de cavilhas enterradas na parede. Lubbock retornou ao capítulo sobre arqueologia norte-americana, para conferir o conhecimento
que tinha seu xará da agricultura americana, e se ele manifestava opiniões sobre como começara a atividade agrícola. O vitoriano John Lubbock sabia que ela se baseara
em milho, e comentava que "resultou do desenvolvimento gradual da semicivilização sul-americana, que por sua vez tornou possível". O John Lubbock moderno meditou
sobre estas palavras, que sugeriam que as lavouras domesticadas haviam surgido numa sociedade muito mais complexa que a que ele encontrou em Guilá Naquitz.
Hoje sabemos que a domesticação agrícola inicial se deu no centro do México porque os ancestrais selvagens das três variedades de plantas domesticadas fundamentais
- milho, feijão e abóbora - são encontrados nessa região. Os do milho e feijão foram identificados precisamente pela localização de quais populações selvagens têm
os marcadores genéticos específicos das variedades domésticas.
O milho evoluiu de uma planta herbácea da família das gramíneas selvagens chamada teosinto, que continua a dar em áreas remotas do México atual. Em vez de ter
um único talo, com os grãos encapsulados em algumas vagens facilmente colhidas, o teosinto tem numerosos talos ramificados, cada um com várias pequenas espigas de
grãos. A que dá nas encostas do vale do rio das Balsas, no centro do México, é particularmente semelhante - em termos bioquímicos - ao milho moderno. Portanto, talvez
tenha sido nesse vale que o cultivo intenso do teosinto foi iniciado por coletores agrícolas, com a repetida seleção das plantas de maiores ganhos como alimento
e sementes para novas plantas.
O pé de feijão selvagem, por outro lado, dá em toda a América Central. Um conjunto de detritos em volta da moderna cidade de Guadalajara foi identificado como
o ancestral do feijão comum domesticado (Phaseolus vulgaris), que dá em várias formas diferentes, entre elas o vermelho, feijão-fradinho e feijão-comum. Todos têm
uma diferença-chave do ancestral silvestre: como a cevada, trigo e lentilhas que examinamos no oeste da Ásia, o pé de feijão selvagem "espera pelo colhedor". E se
ele não vem, o feijão não pode espalhar suas sementes. Quanto às plantas asiáticas ocidentais, a transição para o feijão doméstico ocorreu porque as pessoas preferiram
repetidas vezes - intencionalmente ou por acaso - as vagens que tinham menos tendência a desfazer-se.
O ancestral selvagem da terceira domesticada chave, a abóbora, ainda não foi localizado. Há certamente muitas variedades selvagens de abóbora ainda em cultivo
por todo o México, todas elas com pequenos frutos verdes. Parece provável que uma dessas logo será identificada como a progenitora específica das variedades domésticas
que dão frutos laranja maiores e eram cultivadas pelos que usaram a gruta de Guilá Naquitz como abrigo.
O estudo de quando e por que surgiram essas plantas domesticadas começou na década de 1940, quando Richard MacNeish, na época recém-diplomado pela Universidade de
Chicago, foi trabalhar no México, atraído para a região pelas plantas nativas. Isso representou o início de uma longa e destacada carreira, terminada por um acidente
rodoviário em janeiro de 2001 - quando ele continuava em trabalho de campo, aos 82 anos.
MacNeish começou a trabalhar no nordeste, escavando cavernas com sedimentos de ossos secos nas montanhas Tamaulipas. No início da década de 1960, transferira seu
trabalho mais para o sul, avançando pelo vale de Tehuacán adentro, no centro do México. Ali escavou a Caverna Coxcatlán, que rendeu abundantes restos de milho, feijão
e abóbora, junto com uma legião de plantas selvagens.
Embora não tivessem mais de dois centímetros de comprimento, as espigas de milho eram sem a menor dúvida plantas domesticadas. A princípio julgou-se que datavam
de entre 6.000 e 4.500 a.C., com base em datas de radiocarbono extraídas de pedaços de carvão encontrados perto. Mas quando se dataram diretamente as espigas, estas
se revelaram muito mais novas, datando de não mais de 3.500 a.C. O mesmo ocorreu com os restos de feijão domesticado das escavações de MacNeish: foram inicialmente
consideradas 4 mil anos mais velhas do que se acabou sabendo.

Isso deixa as vagens encontradas em Guilá Naquitz, que datara de 4.200 a.C. como as mais antigas atualmente conhecidas. Se esta for a data em que ocorreu a domesticação,
indica um atraso muito longo entre o fim da era glacial e o surgimento do milho doméstico no México - uma situação totalmente diferente da dos cereais domésticos
do oeste da Ásia. Mas as datas de radiocarbono talvez estejam dando uma imagem inteiramente errada de quando surgiram as variedades domésticas. Esta é a mensagem
de um recente estudo da genética do milho moderno, que indica que a domesticação já ocorrera em 7.000 a.C.
Flannery também recuperou de Guilá Naquitz as mais antigas amostras conhecidas de abóbora domesticada. Embora não passassem de fragmentos de casca, talo e sementes,
bastaram para diferenciar as variedades selvagens das domésticas. A diferença essencial é apenas o tamanho: as abóboras domésticas são bem maiores. Quando se estudou
pela primeira vez a amostra de Guilá Naquitz, porém, julgou-se que apenas uma semente fora de um fruto suficientemente grande para ser rotulado de doméstico. Essa
semente foi datada de 8.000 a.C.
Quando Bruce Smith, do Instituto Smithsonian, reestudou a amostra em 1995, encontrou muito mais dados para confirmar a idéia de que as pessoas de Guilá Naquitz
já cultivavam abóbora nessa data. Embora esses fragmentos de abóbora dos primeiros níveis fossem inequivocamente de plantas selvagens (com exceção daquela única
semente), os de níveis datados de entre 7.500 e 6.000 a.C. eram sem dúvida alguma de plantas domesticadas. Os fragmentos de sementes e talo eram significativamente
maiores que os de plantas selvagens; as cascas eram grossas e de uma cor laranja vivo, em vez de finas e verdes como ocorre num fruto selvagem.
Smith concluiu que as pessoas de Guilá Naquitz cultivavam abóbora em 8.000 a.C. - capinando o mato em volta das plantas selvagens, selecionando sementes das abóboras
maiores para replantar e garantir a colheita do ano seguinte. E se assim foi, parece provável que as pessoas de Guilá Naquitz, as dos vales de Tehuacán e das Balsas,
e as que colhiam nos sopés em volta de Guadalajara cultivavam feijão e teosinto/milho. Surge então a pergunta de por que as pessoas começaram a fazer isso. Por que
deitavam sem saber as fundações das futuras civilizações centro-americanas?
Há no momento duas teorias importantes, mas radicalmente diferentes, sobre a origem de plantas domesticadas no centro do México. Uma foi concebida pelo próprio
Flannery, com base em suas escavações em Guilá Naquitz, a outra por Brian Hayden, da Universidade Simon Fraser, recorrendo a extenso conhecimento sobre caçadores-coletores
historicamente documentados. Essas teorias não dependem do conteúdo das cavernas, mas de saber se houve aldeias de caçadores-coletores permanentes no fundo do vale
de Oaxaca e outros vales fluviais.
Embora Flannery tenha a vantagem da experiência de campo direta, no vale de Oaxaca, temos de examinar as duas teorias antes de escolher a mais provável de ser
correta. Para permitir-nos isso, John Lubbock precisa dar um duplo olhar ao vale de Oaxaca em 8.000 a.C.: precisa passar 10 anos vivendo no mundo que Kent Flannery
imaginou para as pessoas de Guilá Naquitz, seguidos pelos mesmos 10 anos no imaginado por Brian Hayden.
Durante sua primeira década no vale de Oaxaca, Lubbock participa de todas as atividades de coleta de plantas, caça, cantos e relatos orais das pessoas de Guilá Naquitz.
Enquanto faz isso, vê crianças crescerem e aprenderem os ofícios de caça e coleta como sustento. Isso inclui as técnicas para fazer armas de caça, cestos para coletar
plantas e recipientes para transportar água. Sapatos e roupas têm de ser feitos de fibras vegetais, cascas, couros e penas. Também precisam aprender sobre plantas
medicinais, como cuidar dos muito pequenos, dos enfermos e dos velhos. Dificilmente alguma dessas atividades era feita por instrução. As crianças simplesmente participavam
delas com os adultos; observavam, ouviam; faziam experiências, cometiam erros, e aos poucos iam-se tornando tão tarimbadas e bem informadas quanto os pais e avós.
Próximo ao fim dessa década, uma das meninas deixou o grupo para juntar-se às famílias que moram no vale de Tehuacán. Logo depois, com o consenso de outros membros,
um dos meninos torna-se o chefe tácito do grupo. Agora lhe é permitido dar a primeira e última palavra quando se exigem decisões que afetam a todos, como, por exemplo,
quando levantar acampamento e para onde ir. Todos ouvem com cuidado as opiniões dele, mas também expressam as suas próprias. Dá-se especial atenção aos mais velhos,
homens e mulheres. As decisões vão aos poucos surgindo dessas conversas em grupo - o papel do chefe é essencialmente o de presidente, agindo para resumir opiniões
e expressar o ponto de vista manifestado.
Eles passam os meses de verão no fundo do vale, num acampamento conhecido pelos arqueólogos como sítio Gheo-Shih. Aboboreiras são cultivadas nos solos aluviais,
e olmos e algarobeiras ceifados. Caçam-se grandes iguanas pretos, depois assados na brasa. Em alguns anos, ao grupo de Gheo-Shih junta-se outro, sobretudo quando
a comida é abundante. Visitantes chegam freqüentemente e permanecem por alguns dias, enquanto se trocam notícias e mexericos; tomam-se providências para comemorações
comunais em que se fazem casamentos. O casal depois parte como membros de um novo grupo, logo a ter filhos.
Passa-se todo o outono em Guilá Naquitz. Lubbock logo compreende a atração do lugar. Abundam perto plantas comestíveis - pelo menos se as pessoas sabem diferenciar
tubérculos subterrâneos de moitas de capim; quais bagas comer e quais evitar; onde se podem encontrar melões selvagens, feijões-trepadores e cebolas; e que algumas
plantas só se tornam comestíveis após serem assadas durante várias horas num forno no chão. Há animais para caçar, sobretudo cariacus e coelhos, e pássaros para
capturar - codornas, pombas e rolas.
Água potável permanente é o recurso-chave; vem do rio que corre abaixo da face escarpada e de fontes espalhadas. Estas muitas vezes não passam de pequenas poças,
mas tornam a caverna e suas vizinhanças muito mais atraentes que outros lugares. É freqüente a presença de tartarugas nos lagos ou nas barrentas margens fluviais,
capturadas para serem assadas inteiras nos cascos. Lubbock logo vê que a região é coberta por uma rede de pequenas faixas que correm entre fontes, renques de nogueira,
tufos de cactos e canteiros de pés de abóbora. Trata-se, na verdade, de outra horta selvagem - muito semelhante àquela em volta de Ain Mallaha, mas abastecida por
uma variedade de plantas inteiramente diferente.
Com o fim do outono, chega a estação quente. No fim do ano, o rio muitas vezes não passa de um fio d'água, e as fontes só são reconhecíveis por manchas de terra
úmida. E assim Lubbock parte com as pessoas de Guilá Naquitz para passar o inverno nos planaltos mais úmidos. Muitos pertences são deixados na caverna - o clima
é tão seco que não há receio algum de que umedeçam ou apodreçam. Na verdade, se a coleta durante o outono foi particularmente frutífera, provisões de sementes, bolotas,
tubérculos e, sobretudo abóbora - que eles sabem estocar muito bem - são deixadas como suprimento de comida para quando o grupo retornar.
Todo outono as pessoas retornam a Guilá Naquitz, aliviadas por estarem de volta no centro de seu mundo. Têm uma vida movimentada, na qual são primordiais os valores
de partilha, cooperação e consenso. Embora a caça raras vezes seja bem-sucedida, os tubérculos às vezes pequenos e as vagens de semente quase vazias, elas raramente
passam fome.
Quanto mais Lubbock fica com as pessoas de Guilá Naquitz, mais compreende que alguns anos são relativamente úmidos, com abundante comida, e outros muito secos.
A ocorrência de um ano úmido ou seco é inteiramente imprevisível, e as pessoas de Guilá Naquitz acostumaram-se a reagir a quaisquer condições que cheguem.
Quando a primavera e a chuva de verão são fartas, Lubbock vê que elas se dispõem a viajar da caverna mais para o sul e fazer experiências com uma maior variedade
de plantas comestíveis e a caça de espécies mais exóticas. Conseguem fazer isso porque há um suprimento garantido das comidas tradicionais se tais empreendimentos
fracassarem. Essas incursões são essenciais para manter o conhecimento das paisagens que as cercam, mesmo quando retornam de mãos vazias. Nesse aspecto, as pessoas
de Guilá Naquitz são muito parecidas com as de Monte Verde, e na verdade com todos os outros caçadores-coletores que Lubbock visitou em suas viagens - têm uma sede
insaciável por história natural, que tentam satisfazer em toda oportunidade.
É durante um ano especialmente úmido que Lubbock testemunha pela primeira vez outra atividade. As pessoas conhecem bem vários canteiros de diferentes pés de abóbora
na vizinhança de Guilá Naquitz, sabendo que esse ano vão produzir frutos grandes e abundantes. Visitam-nos no início da estação, para inspecionar suas flores e os
frutos em desenvolvimento. Quando fazem isso, arrancam simplesmente outras plantas em volta dos pés de abóbora, e mesmo destes só deixam os de melhores flores e
frutos. Podem permitir-se esse desperdício porque haverá muitas das outras plantas comestíveis nesse outono, embora não mais que uma ou duas abóboras se desenvolvam
em cada pé. Todas as plantas com folhas doentes são simplesmente arrancadas e jogadas fora.
Numa ocasião, Lubbock chega a um canteiro de pés de abóbora particularmente denso e emaranhado. As mulheres às quais seguiu usam as varas de cavar para desenraizar
duas ou três das plantas de aparência mais forte e põem-nas num cesto. Em seguida desbastam as outras, e ajudam a polinização das flores restantes. No caminho de
volta para Guilá Naquitz, fazem uma pausa e, em não mais que um momento, já replantaram os pés de abóbora, aguando-os com uma grande cabaça que levam. Isso ocorre
no que parece a Lubbock uma parte indefinível da paisagem, que ele teria dificuldade de encontrar de novo. Qualquer pessoa que chegasse a esses pés de abóbora recém-plantados
não teria motivo algum para julgar que fossem outra coisa que não mato.
As pessoas de Guilá Naquitz jamais falam de sua atividade de cultivo. Fazem-na como parte rotineira da caça, coleta e viagem. Só num ano especialmente seco Lubbock
compreende o dividendo que isso fornece.
Nesse ano, falta à paisagem a vibração que ele passou a esperar. As flores amarelas e brancas são escassas, o verde dos cactos morto, e quando chegam os frutos
vermelhos são insípidos e encarquilhados. A caça está especialmente escassa. Mas na paisagem ressecada, as pessoas podem contar com os pés de abóbora. Quando as
plantas não têm doenças e quaisquer cepas fracas foram arrancadas, há sempre frutos cheios de substanciais sementes a serem colhidos. Embora a quantidade de comida
que fornecem seja limitada, é suficiente para sustentar uma visita breve à caverna.
Durante a década de Lubbock com as pessoas de Guilá Naquitz, ele não nota nenhuma mudança nos próprios frutos. Mas se houvesse permanecido durante cem, ou mesmo
mil anos, teria visto os frutos aumentarem de tamanho e mudarem de cor, do verde para o laranja. A polpa comestível se teria desenvolvido, brotando das finas camadas
nas quais as sementes foram antes introduzidas. Essas plantas passariam a ser dependentes do dedicado cuidado das pessoas de Guilá Naquitz. As cepas domesticadas
surgiram simplesmente das tentativas desses caçadores-coletores de se protegerem contra escassez de alimentos quando a chuva era escassa.
John Lubbock passou esses 10 anos vivendo como uma personagem da reconstrução por Kent Flannery das pessoas de Guilá Naquitz e vendo-as representar a explicação
para a domesticação das abóboras - do tipo que se poderia prontamente estender a milhos e feijões. Era um mundo de caçadores-coletores móveis, igualitários, que
cultivavam abóbora para compensar potenciais privações de comida nos anos em que a chuva escasseava. Nesse mundo, Guilá Naquilz era uma das localidades-chave; eles
retornavam todo outono e usavam a caverna como base para caça e coleta. Para Kent Flannery, as origens de plantas domesticadas estão nas tentativas desses caçadores-coletores
de combater a chuva irregular e o suprimento de comidas silvestres. Mas talvez estivesse errado. E assim Lubbock precisa reviver essa década num mundo bastante diferente
- o mundo imaginado por Brian Hayden, que tem idéias muito diferentes sobre a origem das plantas domesticadas.
No início desse segundo "olhar" à vida no vale de Oaxaca em 8.000 a.C., Lubbock está sentado no piso de Guilá Naquitz com três mulheres, uma das quais tem um bebê
amarrado às costas. É fim de tarde, e esse grupo horticultor descansa antes da caminhada de volta para seu assentamento no sopé do vale de Oaxaca. Estiveram coletando
uma variedade de sementes, nozes e folhas, e cada uma tem um saco bojudo para carregar, um dos quais contém vários frutos esféricos verdes - abóbora selvagem. À
luz que morre, o grupo põe-se em marcha, desce a encosta até o rio embaixo da caverna e depois entra na floresta coberta de mato baixo até o próprio vale. As mulheres
não têm dificuldade para encontrar o caminho, embora não disponham de hortas selvagens por onde avançar nem trilhas para seguir - as visitas são esporádicas demais
para o aparecimento disso.
Três horas depois, Lubbock surge com eles das trevas e entra na aldeia iluminada por fogueiras. Dez ou talvez doze choupanas formam um círculo irregular em volta
de uma fogueira central, que brilha com brasas incandescentes. As choupanas são circulares, com telhados de mato pendendo sobre armações de latada e paredes com
estrutura de madeira toscamente pintadas. Muitas pessoas estão sentadas em volta do fogo; várias se levantam para acolher as mulheres, ajudando-as a descarregar
os sacos e oferecendo água.
O alívio de Lubbock talvez seja maior que o das mulheres quando larga o saco no chão e vê levarem-no para armazenagem. Ele se senta com as mulheres, que contam
aos outros aldeões o que viram e trouxeram, respondendo perguntas sobre o estado da caverna, das fontes e trilhas de animais. Lubbock olha as casas de madeira e
os pátios em volta. Não havia essas aldeias no mundo de Guilá Naquitz estabelecido pelo extenso trabalho de campo de Kent Flannery - apenas pequenos locais de acampamento
como Gheo-Shih, pouco diferentes dos das cavernas. Mas Lubbock vive na imaginação de Hayden, e imagina se essa aldeia é a semicivilização concebida pelo seu xará
vitoriano, da qual ele achava que se originara a agricultura. Deita-se no chão e adormece.
Acorda muito depois do início dos preparativos para um banquete. As sementes e nozes que ajudou a carregar já foram descascadas e são agora moídas em almofarizes
de madeira, para fazer uma pasta. Vários fornos pequenos assam tubérculos, e preparou-se uma grande cavidade para assar um caititu. Lubbock vê vários outros cestos
de comida, entre eles um com uma alta pilha de grandes abóboras laranja, muito diferentes das colhidas na vizinhança de Guilá Naquitz. Põem-se toros, tapetes de
junco e almofadas de feixes de capim em volta do fogo.
Lubbock perambula pela aldeia e vê que na choupana maior se prepara um elaborado robe. A veste básica, tecida de fibras vegetais entrelaçadas, foi retirada de
uma caixa de casca e é agora enfeitada com uma variedade de plumas, flores e conchas de cores vivas. Logo atrás dessa choupana há uma horta bem cuidada, de plantas
da família das cucurbitáceas, sobretudo pés de abóbora. Os frutos maiores já foram colhidos, mas vários outros começam a amadurecer. Uma cerca de galhos quebrados
protege a horta, sugerindo que é uma propriedade privada.
O banquete começa no fim da tarde. É oferecido a um grupo visitante do vale de Tehuacán, que agora se senta num dos lados da fogueira. Seu chefe também veste um
robe colorido e eleva-se acima dos seguidores num assento de madeira. As pessoas de Oaxaca sentam-se no outro lado de seu chefe paramentado, cada um na posição de
seu status. Lubbock também se senta junto ao fogo, num lugar privilegiado para ver a competição de palavras, músicas e comida prestes a começar.
Durante as 5 horas seguintes, é exatamente isso que acontece: um lado conta uma história, que depois é respondida pelo outro. A princípio as histórias são curtas
e relacionadas a temas práticos; mas com o avançar da noite tornam-se mais longas e são contadas com mais paixão, envolvendo súbitas manifestações de música, dança
e reconstruções dos feitos ancestrais descritos. Periodicamente, as mulheres oaxacan trazem comida dos fornos e poços de assar e distribuem-na entre os convidados.
Alguns relatos envolvem a doação de presentes de um chefe ao outro - pedras preciosas, conchas e plumas exóticas.
Quando o chefe de Oaxaca atinge o clímax em sua narrativa, uma travessa de abóboras laranja é levada ao fogo e posta para assar nas cinzas. Lubbock vê os visitantes
se espantarem com o número, tamanho e cor das frutas. Depois de assadas, são divididas e as sementes distribuídas por todos os presentes, o chefe de Tehuacán recebendo
uma cabaça cheia para comer. Ele jamais viu frutos tão impressionantes e tanta quantidade de sementes; come-os e então admite a derrota, contando uma história final
que exalta o vale de Oaxaca e sua gente.
O banquete continua até a lua surgir. As pessoas de Tehuacán partem para o local de seu acampamento temporário; as de Oaxaca retiram-se para suas choupanas, algumas
acompanhadas por um ou mais visitantes, talvez para desfrutar de um sexo tão extravagante quanto a comida que consumiram. No dia seguinte, as pessoas de Tehuacán
partem para seu próprio vale, as obrigações cumpridas e o status de seu chefe mantido. Quando chegar à aldeia, ele vai exibir os presentes recebidos, objetos que
não se encontram em seu vale. E instruir os seguidores a tratarem das plantações de milho nas colinas circunvizinhas com cuidado ainda maior, para garantir que ele
tenha uma pilha das maiores espigas já vistas- talvez do tamanho do polegar que estica - quando receber as pessoas de Oaxaca no ano seguinte. Cultivar essas plantas
é uma atividade síria - não pelas calorias que fornecem, mas pelo status que conferem.
O banquete competitivo continua ano após ano, às vezes com apenas dois grupos, outras com três, quatro ou cinco. Lubbock vê uma variedade de comidas exóticas nessas
ocasiões. Além de abóboras e espigas de milho, há pimentão, abacate e feijão - todos muito menores que os que ele conhece no mundo moderno, mas a caminho de tornar-se
variedades plenamente domesticadas. São comidos como iguarias e usados pelos chefes para impressionar não apenas os visitantes, mas também sua própria gente. Se
não o fizerem, serão substituídos - todos os jovens têm suas próprias hortas atrás das choupanas, nas quais trabalham cultivando plantas. Sem o saber, estão deitando
os alicerces da civilização zapoteca, que um dia irá nivelar o topo de uma montanha e construir sua cidade em Monte Albán, com espetacular vista do vale de Oaxaca
defronte.
O mundo imaginado por Hayden para as pessoas de Guilá Naquitz e os motivos por ele propostos para a domesticação das plantas eram radicalmente diferentes dos de
Flannery. Guilá Naquitz era agora inteiramente periférica para as pessoas de Oaxaca. Só de vez em quando a usavam como abrigo em viagens de caça e coleta de plantas
distantes de uma aldeia permanente no fundo do vale. No mundo imaginado por Hayden, os "chefões" - indivíduos que exerciam autoridade e poder - escolhiam as mulheres
como esposas e exibiam seu poder por meio de banquetes comunais e aquisição de conchas, pedras e plumas exóticas. Nesse mundo, as origens das colheitas domesticadas
estão nas tentativas desses caçadores de impressionar os vizinhos com comidas cada vez mais exóticas.
Para decidir qual das duas teorias sobre a domesticação da abóbora e do milho tem mais chance de estar correta, precisamos avaliar a afirmação de Hayden, de que
existiram aldeias de caçadores-coletores nas bases do vale, onde ele achava que ocorreram os banquetes competitivos. Embora não se tivessem encontrado traços de
nenhum desses sítios, Hayden afirma que isso se deve ao fato de os restos arqueológicos terem sido enterrados por vários milênios de sedimentos fluviais.
Kent Flannery é um ardente crítico das opiniões de Hayden. Argumenta que, embora pudesse existir aluvião em alguns lugares, este é muito mais velho que 8.000 a.C.
Em conseqüência, se essas aldeias tivessem existido, seus traços arqueológicos teriam permanecido na superfície hoje. Fizeram-se extensos e detalhados levantamentos
dos fundos do vale e encontraram-se muitos sítios arqueológicos; mas nenhum deles nem de longe se parece com o tipo de aldeias que Hayden concebe sendo usadas para
banquetes competitivos em 8.000 a.C. Gheo-Shih, que muito provavelmente era um pequeno acampamento de verão, localizado a alguns quilômetros de Guilá Naquitz, foi
escavado em 1967 e forneceu um grande número de artefatos, mas sem sinal algum de qualquer construção. As atividades que ocorreram ali parecem ter sido pouco diferentes
das que tinham nas cavernas. Qualquer madeira de choupana substancial encontrada em processo de erosão nas valas de drenagem foi datada de no máximo 1.500 a.C.,
época em que parecem ter surgido as primeiras aldeias.
Quando voltei de carro à cidade de Oaxaca, após minha visita a Guilá Naquitz, prestei atenção nos campos de cada lado da estrada, ponderando as respectivas afirmações
de Hayden e Flannery. Embora o crepúsculo já tivesse baixado, vi que eram intensamente cultivados, com uma variedade do que me pareceram safras exóticas - pimentão,
abacate, feijão, milho -junto com as mais conhecidas cenoura e alface. Imagino que também se cultivasse abóbora. A probabilidade de que tivessem existido aldeias
em 8.000 a.C. parecia remota, e vi-me inteiramente convencido pelo cenário de Flannery para a origem de plantas domesticadas.
Os banquetes competitivos eram sem a menor dúvida, importantes entre muitas comunidades americanas nativas historicamente conhecidas - mas isso só ocorria quando
tinha um imenso suprimento de comida. Os índios da costa noroeste tinham fabulosas quantidades de salmão do Pacífico e usavam o banquete - ou festanças - para impressionar
e humilhar chefes rivais. Parece inteiramente inadequado impor esse estilo de vida aos que viviam no vale de Oaxaca em 8.000 a.C. Não apenas suas vidas sociais parecem
ter-se baseado muito mais na divisão que na competição, mas parece improvável que um rival tivesse ficado impressionado, quanto mais humilhado, só com um punhado
de sementes de abóbora, por maiores que fossem.
Antes de chegar à cidade de Oaxaca, parei num bar à beira da estrada e provei um gole de mescal - a aguardente local. Embora de gosto desagradável, pareceu esplêndida
numa garrafa recheada de ervas e frutas. Comprei uma para levar - uma bebida tão exótica certamente ia impressionar os convidados quando oferecêssemos um jantar
em casa.



31
Rumo a Koster
Estilos de vida caçadora-coletora na América do Norte,
7.000 - 5.000 a.C.
A viagem de John Lubbock a partir do México leva-o pelo vale do rio San Pedro no Arizona, passando pelas localidades da Fazenda Lehner e Murray Springs, onde ossos
de mamute e pontas Clovis jazem enterradas no chão. Ele encontra pessoas usando pontas Folsom para caçar bisão e gamo; pontas como as que Jesse Figgins escavará
na própria Folsom. Outros usam novos estilos de pontas de pedra, todas desprovidas da característica flauta dos tempos antigos. Todos dependem muito mais de comidas
vegetais que na época Clovis, como um dia ficará evidente para os arqueólogos pelo número de mós que escavam em locais de acampamento do Holoceno Inicial.
A mudança na alimentação reflete o aumento de floresta resultante das temperaturas mais quentes e chuva mais intensa. Ao longo dos vales fluviais, renques de salgueiro,
choupo e freixo vão-se tornando densos, quando Lubbock caminha pelas matas de carvalho e zimbro onde as pessoas Clovis caçavam nas planícies descampadas. A vegetação
rasteira é rica em arbustos e gramíneas; para os que têm conhecimento suficiente, há comida, medicamento e materiais à vontade.
Os arqueólogos referem-se aos americanos do Holoceno Inicial como caçadores-coletores arcaicos. Essa definição distingue-os dos paleoíndios, os do Pleistoceno
Tardio, como as pessoas Clovis, e é um termo mais ou menos equivalente ao do Mesolítico na Europa. E como as pessoas do Mesolítico, os caçadores-coletores arcaicos
eram diferentes em seus estilos de vida. Alguns adotaram uma vida sedentária muito rápido, e acabaram tornando-se agricultores, criando sociedades que incluíam chefes,
sacerdotes e escravos. Outros continuaram como caçadores-coletores durante todo o Holoceno - até o ano fatídico de 1.492 d.C., com a chegada dos primeiros europeus
e o início da dizimação da sociedade nativa americana.
Em 7.500 a.C., Lubbock atravessou o Arizona e entrou nos acidentados desfiladeiros na ponta sul do platô do Colorado. Ele descansa numa caverna no Chevelon Canyon
atual, que os arqueólogos hoje conhecem como Sandal Shelter [Caverna da Sandália]. Era outrora uma lenda numa juntura de arenito abaixo e calcário acima, mas sofreu
erosão e alargou-se numa caverna quando o rio corria vários metros acima de sua altura atual. Atrás dele, no chão da caverna, encontram-se os restos de uma fogueira,
um punhado disperso de ossos queimados, lascas de pedra e gravetos enterrados. Também há um par de sandálias ao lado da parede da caverna. Feitas de folhas de iúca
de fina trama, deixam os dedos de fora e têm tiras para amarrar em volta do tornozelo. Lubbock experimenta uma e fica-lhe muito bem; mas ele resiste à tentação de
um novo calçado, caso o dono retorne.
Um número curiosamente grande de sandálias do período arcaico foi encontrado por arqueólogos nas cavernas do platô do Colorado, preservadas pelas condições secas
e por serem feitas de materiais resistentes. Outros restos orgânicos incluem fragmentos de roupa, sacos e cestos. Também precisamos agradecer ao bando de ratos que
ainda prospera nas cavernas hoje. Os grandes ninhos de gravetos e folhas construídos por esses roedores peludos prestaram um inestimável serviço à arqueologia. Ao
construí-los, eles usaram detritos humanos que de outro modo se haveriam decomposto. Em Sandal Shelter, arrastaram para os ninhos não menos que 19 sandálias abandonadas,
esquecidas ou apenas misteriosamente desaparecidas.
Em 1997, Philip Geib, da Universidade do Arizona do Norte, começou a investigar esse museu local, após encontrar um par de sandálias esquecido apanhado outrora
num monturo de ratos compactado na caverna. Obteve datas de radiocarbono que cobrem um período de quase 1.500 anos, a mais antiga datando de 7.500 a.C. As sandálias
estavam tão bem preservadas que Geib pôde reconstituir exatamente como haviam sido feitas e compará-las com outras de cavernas mais ao norte. Documentou que os calçados
arcaicos variaram entre as regiões e mudaram com o tempo - uma alternativa muito bem-vinda aos estudos de artefatos de pedra que tanto dominaram a pesquisa arqueológica.
Em conseqüência, provavelmente sabemos mais sobre os calçados das pessoas do platô do Colorado que sobre qualquer outro aspecto de suas vidas.
Amanhece, e como ninguém voltou atrás das sandálias, Lubbock deixa a caverna e segue o Chevelon Canyon até sua confluência com o Little Canyon, o que o leva 200
quilômetros até o próprio Grand Canyon a noroeste. Ali encontra caçadores-coletores tão maravilhados com os imensos penhascos, as cores, sombras em movimentos e
quedas-d'água quanto qualquer visitante moderno. Lubbock continua em frente e começa sua travessia da Grande Bacia - um topônimo errôneo, pois é na verdade uma área
de várias pequenas bacias entre as Rochosas ao leste e Sierra Nevada a oeste. Hoje inclui a maior parte de Nevada e sofre de extrema aridez.
No LGM, havia muitos lagos azuis cristalinos, sobretudo o imenso Lago Bonneville. Eram uma conseqüência de padrões de chuva muito diferentes, surgidos do impacto
das camadas de gelo norte-americanas na circulação atmosférica. Mas mesmo em 7.500 a.C. já haviam desaparecido quase todos esses lagos, e Lubbock percorre uma paisagem
de pequenos poços, lagos rasos, pântanos, córregos e fontes. Algumas bacias e vales estão completamente secos, os solos aos poucos colonizados por plantas resistentes
ao sal. Em outros lugares, um matagal dominado por arbustos de salva já começa a assumir a aparência de deserto. Pinhões e zimbros crescem em encostas mais baixas
das colinas, e florestas de pinheiros e espruce florescem em elevações mais altas.
Os caçadores-coletores da Grande Bacia vivem em grupos pequenos e dispersos. Caçam vários animais: gamos, antílopes, coelhos, esquilos, geômis e um ou outro bisão.
Também pescam e coletam uma ampla variedade de plantas comestíveis. Como nunca permanecem num mesmo lugar por mais de poucas semanas, muitas vezes apenas alguns
dias, seus abrigos são frágeis, e quaisquer ossos de animal ou material vegetal jogados fora logo se decompõem nos solos ácidos. E por isso, são mínimos os traços
deixados para futuros arqueólogos: pequenas concentrações de pontas-de-lança quebradas e pedras lascadas jogadas fora.
Essa magra dieta arqueológica é complementada, porém, pelas descobertas de cavernas ainda mais secas. Quase tão boas quanto elas são seus nomes evocativos: Caverna
da Última Ceia e Gruta da Vergonha Indecente, onde se encontraram sessenta peças de cordame; Caverna da Espinha de Peixe e Caverna do Perigo, que forneceram um tapete
de casca de cedro e cestaria de salgueiro; Caverna da Alma, onde se encontrou o único túmulo arcaico da região - com uma veste de pele de coelho e uma esteira de
fibra vegetal como mortalha.
Uma das mais ricas cavernas em termos arqueológicos é conhecida como Hogup, localizada na extremidade noroeste do Grande Lago Salgado de Utah. Ali, o material
escavado incluía pedras lascadas e restos de vários cestos, sacos e bandejas de casca de salgueiro. Mas talvez os achados mais importantes tenham sido os coprólitos
- excrementos fósseis humanos depositados na caverna.
Escavaram-se 11 coprólitos, junto com outros seis da vizinha Caverna do Perigo. Quando separados, descobriu-se que continham um sortimento diverso de restos vegetais,
sobretudo de opúncias, juncos e quinas. Pedaços de osso esmagado, insetos e pêlo animal também se achavam presentes, o último possivelmente originando-se do uso
dos dentes para limpar peles, e minúsculos fragmentos de carvão e saibro derivam provavelmente de métodos de preparação de comida, o saibro sendo usado para ajudar
a moer as plantas.
Lubbock desce pelos sopés da Montanhas Rochosas até as Altas Planícies - uma imensa faixa de colinas ondulantes e pradarias que divide o continente desde o Canadá
até o México. É agora 7.000 a.C., e ele chegou à bacia Bighorn, no norte de Wyoming, no que se tornará o sítio Horner. Uma nuvem de poeira acabou de baixar, revelando
12 homens e mulheres acocorados em volta de um bisão recém-morto, na base de um barranco estreito. Nos últimos momentos, passaram de assassinos brutais a amantes
da natureza, e prestam solene homenagem aos animais que deram suas vidas por essas pessoas das planícies.
Os caçadores mais valentes tinham-se colocado atrás de pedras no cul-de-sac do barranco; outros ficaram nos lados da inclinação espreitando o fundo; todos seguravam
firme as lanças, o sangue martelando nas veias. A princípio, ouviram um estrondo e depois sentiram um gosto de poeira; era o estrépito de cascos galopando e o arfar
de poderosos pulmões. Quatro bisões desembestados carregaram em sua direção, fugindo de homens e mulheres que gritavam e batiam paus. Os caçadores esperaram o momento
perfeito - que punha a morte potencial dos animais apenas a alguns segundos de distância - antes de atirar as lanças. O primeiro, o segundo e o terceiro bisão desabaram
no chão quando atingidos; contorciam-se de dor e berravam de fúria, agitando os cascos letais. E então, com um potente bramido, morreu o quarto bisão, o coração
e os pulmões perfurados pelas lanças finais atiradas.
Inicia-se a carnificina. Quando facas e machados são retirados de sacos de couro, Lubbock lembra-se das renas chacinadas em Verberie, na bacia de Paris, há 5.500
anos e um continente atrás. Os caçadores de bisão enfrentam uma tarefa mais urgente, pois lhes falta o profundo congelamento em volta, e as moscas já se congregam
nas feridas. Esses animais selvagens são muito maiores que o bisão visto por Lubbock em parques de vida selvagem e filmes do Oeste Bravio, antes de iniciar suas
viagens; são alguns dos últimos membros da espécie Bison antiquus, que logo se extinguira. Uma vez desaparecidos, as planícies serão pasto de animais menores e de
nome menos criativo, Bison bison, o bisão-americano.
O trabalho é feito com grande rapidez. Todos estão ávidos por terminá-lo antes que as moscas ponham ovos e a carne comece a azedar. Grandes lâminas de pedra são
usadas para retirar o couro da barriga de cada animal, do rabo até o pescoço. Retiram as entranhas - imensas vísceras entornadas no chão - e deixam-nas para futuros
carniceiros, enquanto separam cuidadosamente os órgãos preferidos. Os açougueiros limpam o tempo todo a gordura e sangue da lâmina de seus instrumentos de pedra,
passando-os no grosso couro do bisão. Alguns trabalham com os próprios ossos: as patas inferiores, esfoladas e partidas, formando facas de esfolar e estripar tão
eficazes quanto qualquer instrumento de pedra.
A carne é retirada em longas e finas tiras, que logo pendem da árvore no fim do barranco. Em alguns minutos se formará uma dura película sobre sua superfície,
e embora cheguem em hordas, as moscas não conseguem penetrar nessa crosta para pôr seus ovos. Logo a árvore não suporta mais peso e por isso se constroem armações
de galhos e pedras. A carnificina continua durante várias horas, enquanto se removem traquéias e línguas, pelves esmagadas, couros parcialmente limpos e dobrados.
Lubbock auxilia sempre que pode - ajudando a virar os animais para o outro lado depois que se acaba o trabalho no primeiro, levando a carne para as armações de secagem,
atirando pedras nas pegas e corvos ladrões.
Ao entardecer, acendem-se fogueiras para deter os animais carniceiros e assar parte da carne. As pessoas vão passara noite no barranco antes de retornar à colônia
ao raiar do dia com a pesada carga. Quando desce a escuridão e findo o trabalho, sentam-se em volta da fogueira e revivem a caçada. Os fígados são comidos crus -
uma iguaria predileta - igualmente divididos entre todos os presentes, com Lubbock usurpando uma pequena tira. Um homem deixa a fogueira para remexer num monte de
entranhas jogadas fora e volta com uma vesícula biliar, que espreme sobre seu pedaço de fígado, antes de mastigá-lo com prazer.
De manhã, os caçadores rumam para o norte, de volta ao assentamento de verão, onde os velhos e os pequenos esperam ansiosos seu bife de bisão. Lubbock dirige-se
para o sul, seguindo as planícies até o Colorado. Ali, junta-se a outro grupo de caçadores, e fica com eles enquanto caçam cabritos monteses nas colinas e gamos
no meio da floresta. Ratos-calunga e geômios são às vezes capturados em armadilhas, ou desentocados, e plantas comestíveis coletadas - uma seleção meio triste, comparada
com a que ele ajudou a colher em Abu Hureyra, Monte Verde e na Amazônia. Mas tocaiando gamos ou moendo sementes, as mentes desses anfitriões desconhecidos nunca
se afastam muito do bisão e do planejamento de uma caçada.
As lanças são os bens valorizados. As pontas de pedra parecem as mais excelentes que Lubbock já viu, algumas com mais de 15 centímetros de comprimemto e destramente
trabalhadas em perfeita simetria com lâminas de gume letal. As hastes são apreciadas - não há macieira apropriada em abundância, e o sucesso de uma caçada depende
tanto do arremesso da lança quanto da própria ponta. O encaixe de tendão e resina também é essencial. Precisa ser suficientemente forte para prender a ponta, mas
também fina e aerodinâmica para não interferir com a penetração da lança. O segredo é atingir o animal entre as costelas, fazer com que as bordas varem o couro e
a haste penetre o suficiente para que os pulmões ou o coração sejam perfurados pela ponta. Numa fração de segundo, os caçadores têm de mirar e lançar com correção
e força.
Lubbock permanece nas planícies até o fim do outono de 6.500 a.C. Durante esses anos, a vida para os caçadores de bisão torna-se mais dura, e assim continuará por
mais dois milênios. Todo ano há menos chuva; vêm secas periódicas que depois se tornam regulares e persistentes.
Esse período climático é conhecido na América como Holoceno Médio altitermal, e suas secas foram rigorosas, atingindo todo o sudoeste. Os lençóis d'água reduziram-se
muito, ao mesmo tempo que tempestades de poeira passaram a ser freqüentes, causando erosão e o estabelecimento de dunas. Os pântanos da Grande Bacia acabaram secos,
enquanto a mudança gradual para deserto acelerava-se e alcançava seu final. Embora sobrevivessem campinas em grande parte das Altas Planícies, a diversidade vegetal
entrou em colapso, deixando apenas as espécies mais resistentes. Com pasto mais pobre, o bisão deu à luz bezerros menores e mais fracos, poucos dos quais sobreviveram
até a idade adulta.
Os caçadores de bisão de 6.500 a.C. tiveram de cavar poços para chegar ao muito reduzido lençol d'água. Após ajudar nisso, Lubbock assume seu turno nas mós, pois
os alimentos vegetais se tornaram essenciais para a sobrevivência. Os homens falam em sair à procura de bisão, embora não mais saibam onde encontrá-los, e muitas
vezes simplesmente decidem que o esforço não vale a pena. Com o secar de rios e fontes, os assentamentos ficam presos às poucas fontes de água restantes. A qualidade
das pontas de pedra deteriora-se e as pessoas são obrigadas a contar com pedra local de baixa qualidade.
As secas acabarão por passar, e a caça ao bisão por retornar; na verdade, continuar até bem avançados os tempos históricos. Mas os solos das planícies serão sempre
secos demais e as geadas freqüentes demais para os americanos nativos assentarem-se e cultivarem o milho, abóbora e feijões que vinham disseminando por todo o continente
em 2.000 a.C. Vão porém desenvolver novos métodos de caça: manadas de bisão serão tocadas para penhascos; quando não dispuserem mais de quedas naturais, cercas e
currais serão construídos como armadilhas animais; arcos e flechas substituirão as lanças. Eles vão queimar imensos tratos de campinas para promover novos rebentos
e atrair os bisões. Nada disso ameaçará a sobrevivência das manadas; esse apocalipse só virá depois da chegada dos cavalos ao continente com os europeus. Então,
americanos nativos e brancos usarão o cavalo para despejar uma saraivada de balas nas manadas de bisões e chaciná-los aos milhares.
O sol se levantou para dar início a um quente dia de outono em 6.000 a.C., e as planícies secas e poeirentas parecem um mundo à parte. De seu assento num penhasco
de calcário, Lubbock vê a oeste um rio largo, prateado, de rápida torrente, margeado por pântanos e penhascos íngremes. Além disso, uma densa floresta transitória,
suave e dourada, viceja agora que as chuvas voltaram. Embaixo dos penhascos, a íngreme encosta cai para uma depressão coberta de árvores e matagal. No fundo, uma
aldeia - cinco choupanas retangulares, com telhados de palha cujos vermelhos e pardos combinam com as folhas e o mato dessa manhã outonal. A fumaça sobe delicadamente
da primeira fogueira do dia; um cachorro late, uma criança chora.
O rio é o Illinois, e a aldeia Koster, nome tirado de Theodore Koster, o fazendeiro em cujas terras os restos foram encontrados em 1968. Fosse esse o ano da visita
de Lubbock, ele teria estado 80 quilômetros a nordeste de St. Louis e 400 quilômetros a sudoeste de Chicago, vendo abaixo um milharal indistinto dos milhares de
outros que pontilhavam as planícies.
A escavação começou em 1969, e tornou-se uma das maiores feitas em solo americano. Revelou que as pessoas tinham acampado pela primeira vez na depressão em 8.000
a.C. As sucessivas camadas de solo e detritos humanos identificaram como elas continuaram a morar dentro da depressão por muitos milhares de anos. Com a ajuda de
terra trazida pela água das encostas do vale, criaram 10 metros quadrados de depósitos, à medida que construíam vários assentamentos, um em cima do outro. Em 5.000
a.C., estabelecera-se uma aldeia permanente, a partir da qual as pessoas caçavam, coletavam plantas e pescavam sem medo de fome - um Jardim do Éden no meio oeste
americano.
O dia na antecessora dessa aldeia em 6.000 a.C. começa com as pessoas afastando cortinas de couro e saindo de suas casas. Sentam-se e conversam, fazem chá e comem
mingau de sementes moídas e aquecido com pedras em brasa. Algumas vestem túnicas e saias bem cortadas, outras evitam roupas, expondo os corpos esbeltos ao sol matinal.
Um velho artrítico senta-se num umbral de porta com a esposa e ali ficará grande parte do dia, fazendo pequenas tarefas que lhe trazem, contando histórias às crianças
e jogando paus para os cachorros.
As pessoas aos poucos se dispersam para suas tarefas diárias. Um grupo de mulheres e crianças vai para um bosque de figueiras, sabendo que terão uma rica colheita,
sendo as nozes de nogueira amarga o mais abundante de seus alimentos no outono. Rapazes partem com lanças para caçar gamos; outros se dirigem para o rio. O trabalho
começa na aldeia - há cestos de vime a consertar e remédios a preparar para uma criança doente.
Lubbock observa, agora sentado junto à fogueira e feliz por descansar após suas recentes viagens. Uma mulher vem sentar-se junto dele. Pega um nódulo de pedra
e coloca-o entre as brasas. Enquanto a pedra se aquece, ela mexe um pequeno vaso de resina e faz cortes num cabo de faca de madeira. Retira a pedra. Com o nódulo
quente, segura-o num invólucro de couro e bate, para extrair cinco ou seis finas lascas da pedra agora quebradiça, e as coloca nos cortes, lixando-as com a resina.
Afasta-se, a faca incompleta. Duas lascas jogadas fora continuam junto à fogueira, para ser meticulosamente escavadas, lavadas e rotuladas muitos milhares de anos
depois.
O sol começa a pôr-se por trás das colinas a oeste. As coletoras de nozes retornam com cestos pesados, os caçadores de mãos vazias e os do rio com feixes de junco.
Estendem-se tapetes de palha e couros macios ao redor da fogueira, e uma ceia comunal é seguida por histórias. Quando a lua desponta e a noite baixa, Lubbock continua
sentado e os outros retornam a suas moradas para dormir.
A noite trás mariposas às brasas vivas, e morcegos acima. Também trás as estrelas e o frio. Lubbock ouve ratos correndo de um lado para outro no mato.
Começa outro dia, quando a fogueira é acesa por um madrugador, e mais uma vez Lubbock observa a vida diária desenrolar-se em Koster, uma das muitas aldeias espalhadas
pelos vales do meio oeste. A maioria das pessoas permanece em casa; é dia de descascar e moer nozes, fazer tapetes de palha e cuidar de reparos nos telhados. E então
outra noite e outro dia - um dia de chuva torrencial.
Durante uma sucessão de crepúsculos e auroras Lubbock continua sentado à beira da fogueira, observando os gravetos estalarem, fruindo o calor de um fogo a rugir,
as cinzas frias voando na brisa noturna. Dia a dia ele observa a vida na aldeia e a arqueologia que ela está criando: ferramentas perdidas no mato, lixo jogado em
monturos, poços cavados para desviar a chuva. Então começa a geada noturna. À noite, ele se encolhe sob as peles e os couros das mulheres deixados junto à fogueira.
Após uma noite gelada, vê um velho ser carregado de seu leito e estendido no mato coberto de geada sob um céu azul. Todos os dias as pessoas vão prestar seus respeitos
ao lado do corpo, lembrando que ele lhes ensinou a caçar e o pescar; suas histórias dos "velhos tempos", quando o povo estava sempre na estrada. Nessa noite, enterram-no
atrás das cabanas. Dá-se um banquete; cantos, danças e preces de um xamã. Nas sombras, uma velha chora.
Chega o inverno, e Lubbock continua sentado junto à fogueira. Agora observa cada família embalar seus pertences e deixar a aldeia. Algumas partem juntas, outras
sozinhas - para onde, nem ele nem os futuros arqueólogos podem saber. Mas não se passam invernos em Koster em 6.000 a.C., com exceção de Lubbock, que espera a volta
do povo.
Eles retornam na primavera; consertam e limpam suas cabanas e iniciam outro ano. Alguns sentam-se junto a Lubbock, e passam muitas horas tecendo redes de pesca
com fibras. Em outro dia, ele vê as mesmas pessoas voltarem do rio, as redes cheias de peixes. No verão, Lubbock escuta seus planos para caçar o gamo de cauda branca;
por todo o outono, a aldeia reverbera com o pilar de nozes para fazer farinha, não apenas as amargas, mas também de nogueira comum, bolotas e avelãs. E depois, mais
uma vez, o povo parte, e Lubbock fica, para enfrentar outro inverno de geada e neve. Assim continuou após ano, até que, uma primavera, ninguém voltou e a aldeia
foi deixada à natureza. Desse modo terminou o que os arqueólogos chamam fase Koster 8.
Com o passar dos anos, Lubbock vê as moradas desabarem e suas madeiras apodrecerem. Brotos surgem nos monturos e tornam-se girassóis e sabugueiros, rebentos de nogueira
e nogueira amarga. A água da chuva cai em cascatas pelas encostas do vale, trazendo aluvião e sepultando o mato que há muito escondia as ferramentas perdidas, poços
de drenagem e os montículos que assinalavam os mortos. Vê a natureza retomar o que antes era dela: a pedra que foi transformada em facas e pontas; a madeira, junco
e casca de árvore usados nas casas; os ossos, couros e tripas dos animais destinados a fins humanos e não a apodrecer na terra.
Ano a ano a chuva aumenta e o rio explode a margem mais cedo e com força crescente. As enchentes anuais não mais se escoam, e assim criam-se lagos no que eram
pântanos e prados. Agora Lubbock vê revoadas de gansos, patos e cisnes descobrindo os novos lagos e adotando-os como lar de verão. As águas logo pululam com peixes
e mexilhões.
E então, numa manhã de primavera, um voz de tom esquisito o faz levar um susto. Após mil anos, as pessoas retornam a Koster. Lubbock decide levantar-se e observar
a chegada. Desatola os pés da terra, que lhe chega aos joelhos, acumulada à sua volta enquanto ele pacientemente aguardava esse momento. Mas tudo que vê são dois
homens que se aproximam vindos do rio. Eles passam, perguntando-se em voz alta se alguém viveu algum dia naquele oco protegido, tão bem servido por matas, rios e
lagos.
Na semana seguinte chegam várias famílias. Algumas erguem tendas, e outras começam a derrubar árvores, abrir clareiras e construir suas casas. Em poucos dias,
já surgiu o esqueleto de uma nova aldeia, aquela que, para os arqueólogos dos anos 1970, formará as fases Koster 6 e 7.
É uma fase diferente, mas pouco difere em natureza, uma vez que as pessoas continuam a viver da caça e da coleta. No verão que se segue, faz-se um terraço na encosta
e cava-se uma vala para os mourões, pois outras casas são construídas. Lubbock ajuda firmando as madeiras, que são cobertas de pedras, e com a tessitura de galhos
para as paredes. Passa dias com as mulheres à beira do rio, segurando cestos embaixo de cabeças secas de sabugueiro e girassol, sacudidos para soltarem as sementes.
Em outros dias, ao nascer do sol, vê-se metido até os joelhos nos novos lagos, pronto para ajudar a lançar redes com pesos sobre patos selvagens e marrecos. Vai
à mata e tocaia gamos, fica na aldeia e varre as casas. À noite, pinta o rosto e junta-se ao povo de Koster nos cantos e danças em torno da nova fogueira que arde
entre as cabanas.
O assentamento é agora maior que antes, pelo menos uma dúzia de cabanas e cem pessoas. Come-se uma gama muito mais ampla de alimentos, gambás e perus juntando-se
aos gamos, muitos tipos de peixe e molusco delicadamente cozidos em poços revestidos de barro. A aldeia torna-se muito mais movimentada com os muitos visitantes
que chegam de canoa - sendo o rio agora tanto uma auto-estrada quanto um lugar de pesca. Eles trazem artigos para comerciar: cobre dos grandes lagos, conchas marinhas
do Golfo do México, sílex de alta qualidade do que será Ohio. Grande parte desse material acaba como braceletes e pingentes, e parece ser usado por poucos, não muitos.
Assim, a mudança está em andamento, e rachaduras aparecem no velho igualitarismo. Lubbock lembra-se de suas viagens na Dinamarca mesolítica em data semelhante;
como os machados e o grão de cereais dos camponeses tinham ajudado a destruir o antigo estilo de vida dos caçadores-coletores. Em Koster, ele observa outro sinal
de mudança social: os mortos não mais são enterrados todos juntos; os que morrem com um belo físico são postos em cemitérios nos promontórios acima dos rios e lagos,
e onde o sol bate assim que nasce.
A aldeia prospera, e assim continuará até ser finalmente abandonada. Antes dessa data, por volta de 1.000 a.C., se tornará uma aldeia de camponeses que usam um
novíssimo conjunto de plantas domesticadas: os descendentes do sabugueiro do pântano, girassol e anserina que Lubbock ajudou a colher. Mais tarde ainda, os do vales
de Illinois finalmente adotarão as formas cultivadas originadas muito tempo atrás no centro do México: abóbora, milho e feijão - embora a abóbora possa ter sido
independentemente domesticada no próprio leste dos Estados Unidos. Os cestos de trama cerrada serão substituídos por vasos de barro, as pontas-de-lança desprezadas
pelas de flecha, e se construirão grandes montes funerários para chefes que reivindicam o poder por direito de nascença. Mas só depois da chegada dos europeus ao
continente as florestas serão abatidas e o meio oeste começará sua transformação no grande cinturão de milho dos Estados Unidos.
Tais fatos estão muito além do âmbito desta história. O último dia de Lubbock em Koster passa-se em 5.000 a.C. Pela manhã, ele caça gamo e colhe cogumelos; ao
meio-dia, sobe a um penhasco de calcário onde se sentou ao chegar pela primeira vez a Koster e dá a última olhada à aldeia. Mais tarde nesse dia, segue dois mercadores
até a canoa deles. Os homens carregam os couros e peles recém-adquiridos e partem, remando para o norte, rumo à sua terra na margem do que se tornará o lago Michigan.

32
A Pesca do Salmão e a Dádiva da História
Complexos caçadores-coletores da costa noroeste,
6.000 - 5.000 a.C.
A viagem de John Lubbock como clandestino na canoa pelo rio Illinois inicia o fim de suas andanças pela história americana. Após vários dias, ele alcança o assentamento
dos mercadores no extremo sul do que é hoje o lago Michigan. Parece ser um lugar de fabricação e troca, com pessoas vindo de todos os lados, e onde a população logo
estará se expandindo rápido demais para que se mantenha a ética de igualdade e partilha dos caçadores-coletores.
Sentado na beira do lago numa tarde de verão, Lubbock tem diante de si uma cena tranqüila: céus sem nuvens e água parada, crianças chapinhando e o cheiro de fumaça
de cabanas espalhadas pela margem. Não foi sempre assim, nem assim permanecerá.
No LGM, esse local foi coberto por denso gelo, a margem sul da camada de gelo laurentina. Nos milênios que se seguiram, foi inundado pelos vastos lagos de água
derretida, sujeito a rios torrenciais, transformado em tundra, açoitado por ventos violentos, colonizado por pinheiros e espruces, antes de ser descoberto pelos
primeiros americanos. Mas talvez tudo isso não tenha sido nada em comparação com o futuro que aguarda o local. Vai tornar-se Chicago; as canoas e as cabanas de arbustos
são os arautos de trens a vapor e arranha-céus.
Lubbock, porém, tem de voltar à costa oeste, ao oceano Pacífico, ao lado de cujos extremos mais ao sul sentou-se um dia quando estava no Peru. E assim embarca
em outra enorme viagem. Começa a pé até chegar ao Mississipi, e depois continua de canoa para o norte, entre muitas aldeias ribeirinhas, rumo aos vastos sertões
canadenses, que continuarão, pouco mudados, até os tempos modernos. Nessa terra de lagos, rios e densas florestas, Lubbock encontra pessoas vivendo em pequenos grupos
móveis, pouco diferentes do há muito desaparecido povo Clovis. Eles caçam caribus e alces, fazem armadilhas para castores e ratos almiscarados, e deixam poucos traços
para os arqueólogos encontrarem.
Lubbock dirige-se para o oeste, acabando por deixar as matas e atravessar a extensão mais ao norte das Grandes Planícies. Os bisões ainda são caçados e ele passa
perto do que se tornará um famoso penhasco de massacre conhecido, apropriadamente, como "Cabeça-Esmagada". Após as planícies, Lubbock cruza as Montanhas Rochosas
e depois as montanhas canadenses. Atravessa o rio Fraser, seguido por um planalto de altas cristas e prados onde ele vê a caça à cabra e ao carneiro monteses. Desce
um vale de íngremes gargantas e desfiladeiros, os topos cobertos de florestas de pinheiro. O rio alterna-se entre curvas vagarosas e corredeiras turbulentas. Nos
dias chuvosos de inverno, Lubbock segue um caminho bem batido entre densos fetos e sob altas coníferas, até onde o rio desemboca no mar. As águas são rasas e abrigadas
por uma cadeia de ilhas. É o Pacífico. Lubbock senta-se exausto após os 3.500 quilômetros de sua jornada desde Koster.
A terra além do rio Fraser é conhecida pelos arqueólogos como Cascadia. Inclui os modernos estados de Washington e da Columbia Britânica, e estende-se do sul do
Alasca até o norte da Califórnia. Seu litoral no Pacífico é cortado por profundos fiordes, sinuosas passagens marinhas e muitas ilhas ao largo. É varada por uma
série de grandes rios - Columbia, Klamath, Skeena, Stikine e o próprio Fraser - e uma multidão de riachos menores. Cascadia é um lugar final adequado para a jornada
americana de Lubbock, pois é onde se desenvolverão as mais complexas sociedades de caçadores-coletores dos Estados Unidos, e com toda probabilidade de toda a história
do mundo.
Quando os europeus encontraram os americanos nativos da costa noroeste em fins do século XV11I, descobriram pessoas bastante diferentes de quaisquer outras que
tinham encontrado antes. Isso não se devia às suas casas com estrutura de madeira e assentamentos com mais de mil habitantes. Tampouco a terem encontrado aristocracias,
homens livres e escravos, e grandes chefes que contratavam artistas para esculpir e pintar as fachadas de suas casas e seus totens, à maneira dos mecenas do Renascimento.
Também não era porque as pessoas tinham idéias de propriedade de terra e entregavam-se a festas teatrais, durante as quais imensas quantidades de comida e materiais
eram distribuídas como meio de demonstrar riqueza e status.
Tais casas, cidades, obras de arte e costumes não teriam sido surpresa se eles estivessem cultivando milho e criando gado. Mas as pessoas da costa noroeste eram
caçadores-coletores. Mais exatamente, pescadores: suas complexas culturas se baseavam na coleta de salmão. O nível do Pacífico Norte se estabilizara por volta de
6 mil anos atrás, após milênios de subidas e descidas, à medida que o impacto das águas derretidas das geleiras era contrabalançado pelo retorno da terra liberta
de seu fardo de gelo. Vastos cardumes de salmão começaram a nadar com infalível regularidade pelos grandes rios do noroeste acima para reproduzir-se e morrer. Todo
ano, os pescadores estavam prontos; com anzóis e linhas, ancinhos, redes, porretes, arpões e armadilhas, colhiam os peixes exatamente como um camponês colhe o milho.
Tais colheitas só tinham valor se o produto pudesse ser armazenado. Os peixes eram cortados em fatias e colocados em grades para secar ao sol e ao vento; outros
eram suspensos de tetos e preservados na fumaça das fogueiras da casa. Cascadia tinha uma abundância de recursos, portanto o salmão não era a única comida; também
se pegavam muitos outros tipos de peixe. As pessoas caçavam focas e leões-marinhos, gamos, alces e ursos; colhiam bagas, bolotas e avelãs. Na verdade, talvez fosse
a imensa diversidade de comidas à disposição, e não a superabundância do salmão, a chave do seu sucesso.
Com alimentos selvagens tão ilimitados, os americanos nativos de Cascadia viviam em aldeias permanentes, contando com seus suprimentos armazenados durante os períodos
magros do ano. Podiam dar-se ao luxo de manter artesãos especializados e dedicar-se ao comércio. As populações cresceram, não inibidas pelas restrições habituais
aos números dos caçadores-coletores: a necessidade de seguir em frente e a periódica escassez de alimentos. Dificilmente surpreende que, em meio a tal riqueza, surgissem
chefes que faziam guerra aos vizinhos.
Esses "caçadores complexos", como os chamam os arqueólogos, apareceram primeiro por volta de 500 a.C. Mas quando Lubbock chega à costa noroeste em 5.000 a.C., a
base para o surgimento deles já está sendo deitada. Depois de haver descansado, ele explora o promontório na boca do rio que o trouxe pelos desfiladeiros e florestas.
Nota conchas de ostra e alguns ossos de animais espalhados, em parte enterrados pela areia e o mato. Entre eles, há alguns seixos quebrados e lascas de pedra; descobre
que alguns foram lascados em pequenas pontas. Próximos, os restos do que foram um dia cabanas de arbustos: umas poucas estacas no chão, alguns galhos trançados,
pedaços de couro ainda amarrados a estruturas, mas pendurados em estado desordenado. Lubbock pega duas das estacas mais grossas, um pouco dos galhos trançados, colhe
novos arbustos e faz um abrigo para si.
O barulho de vozes interrompe seu trabalho. Voltando-se, descobre meia dúzia de pessoas, duas famílias, inspecionando as cabanas desabadas exatamente como ele
fez algumas horas antes. Elas puxam fragmentos de couro e frangalhos de parede, firmam as estacas instáveis com pedras e começam a reconstruir. Alguns vão até a
margem e voltam em menos de uma hora trazendo moluscos. Uma vez comidos, as conchas são jogadas em cima das já em parte enterradas embaixo do mato - bem junto do
pequeno abrigo que Lubbock se apressa a concluir, pois nuvens de tempestade se avolumam no céu do anoitecer.
Por todo o dia seguinte chegam famílias, todas cumprimentando-se umas às outras após um verão passado espalhadas pela costa e as matas. Logo uma aldeia de cabanas
de arbustos abriga pelo menos cem pessoas. O monte de lixo se acumula e Lubbock vê-se cercado não apenas de conchas de ostra e mexilhão, mas dos restos de gamo e
toninha esquartejados. O cozido de peixe indesejado é despejado no monturo; as pessoas usam-no como privada. Às vezes acende-se uma fogueira para matar os vermes
e deter os bichos necrófagos; a cabana de Lubbock é envolta em fumaça e no fedor de comida podre e detritos humanos.
As pessoas atarefam-se preparando-se para a subida do salmão. Em alguns dias, Lubbock deixa-as e explora a mata. Busca gamo e rato almiscarado entre os pinheiros,
abetos e espruces. Encontra pequenos cedros vermelhos, árvores colonizando as matas cujos enormes descendentes serão valiosos pela madeira quando as pessoas começarem
a construir casas, canoas e totens. Em outros dias, Lubbock senta-se entre os pescadores que fazem arpões e lanças, preparam facas de pedra e usam galhos para montar
grades de secagem. Toda noite contam-se histórias, muitas histórias sobre os espíritos da mata e do mar.
Chega o salmão, inicialmente dois e três, e depois em grandes cardumes forçados a nadar rio acima. Os pescadores estão prontos - homens e mulheres, jovens e velhos,
todos armados com lanças e arpões, de pé dentro do rio com água pelos tornozelos ou joelhos. Dentro de poucos dias, a corrida do salmão já acabou; centenas foram
mortos, mas milhares passaram incólumes. As grades estão cobertas de fatias a secar ao sol de outono.
Algumas famílias pegam seu quinhão e partem, mas a maioria fica. Logo o arenque se tornará abundante no estuário, e enquanto esperam eles têm bastante salmão para
comer. Chove na maioria dos dias; os velhos e jovens sofrem com as roupas do corpo e da cama sempre úmidas; uma velha morrerá e será sepultada numa cova rasa atrás
do monturo. Visitantes chegarão e trocarão obsidiana por peixe seco. Na primavera, as famílias seguirão caminhos separados, planejando voltar no outono seguinte,
quando os salmões mais uma vez nadarão por suas vidas. Enquanto isso, os abrigos desabarão e o lixo será levemente enterrado na areia soprada pelo vento.
Quando a chuva é torrencial, Lubbock abriga-se dentro de sua instável morada e lê Tempos pré-históricos. Lá pelo fim, seu xará escreve sobre os índios americanos
como mais um exemplo de selvagens modernos. O Lubbock vitoriano obteve sua informação em grande parte de uma publicação de 1853, de um certo Sr. Schoolcraft, intitulada
History, Conditions and Prospects of the Indian Tribes [História, condições e perspectivas das tribos índias]. O tom era bastante diferente dos trechos constantemente
abusivos sobre as tribos da Terra do Fogo; a maior parte era uma descrição relativamente desapaixonada das roupas, equipamentos, caça, pesca e práticas agrícolas
de vários grupos por todo o continente.
O monturo de lixo em volta da cabana de Lubbock tornou-se o sítio arqueológico de Namu, nome do rio em cuja boca se localiza, na costa da Colúmbia Britânica. Quando
Roy Carlson, da Universidade Simon Fraser, o escavou em 1977-1978, descobriu que começara a acumular-se em 9.500 a.C., e assim continuara por 8 mil anos. Inicialmente,
o lixo fora jogado durante breves visitas à boca do rio, restos de uma variedade de peixes, pássaros, moluscos e animais. Ferramentas quebradas e detritos de sua
fabricação também tinham sido deixados no monturo, incluindo microlitos.
Logo após 6.000 a.C. ocorre uma mudança na composição do monturo, quando os ossos de salmão de repente esmagam todos os outros. Isso indica o início das corridas
do salmão. Os instrumentos jogados fora também mudam: não há mais microlitos, mas números crescentes de pontas de pedra. Aparecem fragmentos de obsidiana, sugerindo
que começaram o comércio e a troca, mas além de alguns buracos de estaca, não há sinal de casas. Provavelmente, eram demasiado frágeis para deixar muitos traços,
indicando que embora a corrida do salmão em Namu fosse produtiva, não era de tamanho suficiente para permitir a ocupação o ano todo.
Namu é apenas um dos muitos monturos de conchas ao longo da costa noroeste que foram se acumulando no Holoceno Inicial. Revelam como as pessoas começaram a se
especializar em salmão enquanto continuavam a explorar a imensa diversidade de outras fontes. Durante as próximas centenas de anos se aplicaram até que uma nova
tecnologia foi inventada para pescá-los em maior número. A demanda por comida aumentava em função de uma crescente população. Alguns povos aproveitaram a oportunidade
e melhoraram a pesca; outros desagregaram e começaram a brigar.
Sentado no promontório, Lubbock vê do outro lado do que se tornará o Estreito de Fitzhugh um cordão de ilhas. As praias brancas brilham à luz do sol do entardecer;
a água parada e quebrada por uma canoa solitária que atravessa do continente para a margem de uma ilha. Poucos milhares de anos atrás, uma canoa era inteiramente
desnecessária. As pessoas poderiam ir a pé a essas ilhas como se fossem colinas dentro de uma larga planície costeira. O primeiro passo humano em solo americano
pode ter ocorrido nessa planície, um pé que poderia ter saltado de um barco que cruzara as águas geladas do Pacífico Norte vindo da margem asiática.
Esse foi o início da história americana. Era uma época em que nenhum ser humano jamais tenha subido as Rochosas, navegado de canoa pelo Amazonas nem se aventurado
na Tierra del Fuego. Mas agora, em 5.000 a.C., pessoas vivem desde o extremo norte até o extremo sul do continente, a maioria da caça e coleta, algumas da agricultura.
Deram-lhe uma história, mas tomaram sua natureza em troca. Seus ancestrais Clovis podem ter ajudado na extinção do mamute e da preguiça do chão; seus ancestrais
arcaicos criaram novas variedades de abóbora e mais. Mas as pessoas de Namu - nem grandes caçadores de caça graúda nem camponeses - fizeram muito mais; apropriaram-se
de toda a natureza para si. Para eles, o urso e o corvo já não são meros animais; os picos de montanhas e rios são muito mais que produtos da geologia; as estações
não mais vêm e vão porque a terra orbita em torno do sol; e a noite não segue o dia porque o planeta gira.
A poucos metros, uma fogueira arde e vozes cantam. As pessoas de Namu agradecem aos espíritos que criaram as montanhas e rios, e que visitam o mundo delas como
o urso. Lembram que o corvo chegou à sua terra e encontrou-a fria e vazia de gente, mas com uma abundante quantidade de caça. Cantam para que o sol se levante e
a primavera venha. Lubbock levanta-se, volta-se e dirige-se para a fogueira. Senta-se e ajuda a chamar a nova aurora com o canto.

 

 

 

 

 

 


A GRANDE AUSTRÁLIA E O LESTE ASIÁTICO

 

33
Revelação de um Novo Mundo
Caçadores-coletores tasmanianos,
20.000 - 6.000 a.C
A luz do dia entra por um poço, ilumina reluzentes rostos pardos e faz cristais de quartzo luzirem quando os seixos são divididos. Pele de canguru, envolvendo corpos
humanos, brilham quando mãos musculosas trabalham a pedra. Mais adiante, há luz mais forte - a entrada da caverna, que traz um vento gelado e por isso as pessoas
se sentam e trabalham num canto abrigado, semi-iluminado. John Lubbock adianta-se do escuro e profundo recesso da caverna. Treme de frio, mas está pronto para iniciar
sua jornada pela pré-história australiana.
No LGM, a Austrália era um continente de caçadores-coletores, e assim permaneceu até 1788, ano do primeiro assentamento europeu. Pelo menos 250 mil aborígines
viviam em sua massa de terra sul, distribuídas entre as florestas tropicais do norte e a beira das águas da Antártida no sul. Os estilos de vida eram variados. No
árido interior, os aborígines viviam em baixas densidades, com poucas posses, e cobriam vastas distâncias durante suas atividades de busca de comida; nos vales fluviais
do fértil sul, havia aldeias quase permanentes com cabanas de madeira, as paredes rebocadas de barro e construídas sobre fundações de pedra.
Como era de prever, as primeiras histórias dos australianos nativos são muitas vezes pouco mais que tratados racistas de descarte. Os antropólogos, porém, logo
começaram a valorizar a complexidade da sociedade aborígine. Registraram-se pelo menos duzentas línguas distintas; documentaram-se extensas redes de comércio nas
quais viajavam alimentos, machados, lajes de moagem e ocre; o mitológico mundo do Tempo do Sonho, no qual seres ancestrais criaram a paisagem e continuaram a intervir
nos assuntos humanos, foi em parte revelado. Descobriu-se que o que pareciam ser simples descrições de animais, pessoas e sinais tinham significados complexos, muitas
vezes relacionados com seres ancestrais.
Revisaram-se as suposições iniciais de uma existência da mão para a boca e vale tudo, quando se compreendeu a sofisticação da caça e coleta dos aborígines. Descobriu-se
que eles tinham um profundo conhecimento da distribuição das plantas e do comportamento animal; podiam adaptar-se a condições em constante mudança, muitas vezes
adotando estilos de vida radicalmente diferentes em estações úmidas e secas, segundo a gama de recursos existentes. Embora fossem todos caçadores coletores, muitos
administravam suas paisagens e reservas de alimentos com a queima controlada da vegetação.
Reconhecer a complexidade da sociedade aborígine foi a primeira de duas mudanças nas opiniões européias sobre os nativos australianos. A segunda foi compreender
que aquelas pessoas não eram viúvas atemporais de uma sociedade humana original, um povo sem história. Suas sociedades eram tão produto da história quanto as dos
colonizadores europeus. O início da história deles - a data em que a Austrália foi colonizada pela primeira vez - foi aos poucos recuado no tempo, de um cálculo
inicial de 10.000 a.C. a 35.000 a.C., nos anos 1980, para quase 60 mil anos atrás hoje.
John Lubbock viajou à Austrália para explorar parte dessa história: os fatos da sociedade aborígine entre 20.000 e 50.000 a.C., entre a época do LGM e o pico das
condições quentes e úmidas que chegaram com o Holoceno. Embora fosse o surto de aquecimento global em 9.600 a.C., que teve o maior impacto sobre as pessoas da Europa
e do oeste asiático, só lá para o fim desse período ocorreram as mudanças mais fundamentais nas sociedades aborígines. Além disso, enquanto as pessoas em todos os
demais continentes já haviam adotado a agricultura em 5.000 a.C., por invenções indígenas ou disseminação de idéias e povos, todos os aborígines australianos continuaram
como caçadores-coletores - embora com estilos de vida inteiramente diferentes daqueles de seus antepassados do Pleistoceno.
A data da chegada de Lubbock é 18.000 a.C.; o continente continua como "Grande Austrália" - uma massa de terra contínua que vai da Tasmânia no sul até a Nova Guiné
no norte. Enquanto ele atravessa o continente e o tempo, o nível do mar, mais de 100 metros mais baixo que hoje, subirá, as temperaturas e chuvas aumentarão, contrastes
sazonais no clima se tornarão acentuados.
Os encontros de Lubbock com aborígines pré-históricos dependerão da interpretação de um esparso registro arqueológico. Em comparação com outros continentes, há
relativamente poucos sítios arqueológicos do Pleistoceno, e muitos deles não consistem de nada mais que umas poucas lascas de pedra. Por conseguinte, é difícil resistir
ao impulso de aproveitar as versões históricas dos aborígines quando tentamos traduzir tais artefatos mudos em vidas humanas. Nisso está o risco de simplesmente
escrever o presente aborígine no passado distante e não reconhecer como a sociedade deles mudou com o tempo. E um risco que não pode ser inteiramente evitado quando
Lubbock se senta no chão da caverna e espia por cima dos ombros mãos da era do gelo trabalhando.
Ele entrou no que se conhece hoje como Caverna Kutikina; devido ao seu tamanho e localização, é um lugar favorecido pelos aborígines tasmanianos de 18.000 a.C.
Mesmo assim, eles só ficarão algumas semanas, preferindo manter-se em movimento a esgotar os animais e plantas em torno de cada um desses acampamentos transitórios.
Os que se acham dentro da caverna esperam o retorno do grupo de caça. Lubbock vê acender-se uma fogueira em outro dos cantos abrigados, onde qualquer fumaça se
dispersará por uma segunda entrada, muito menor. Com seu novo conjunto de facas e facões de pedra completo, o grupo muda-se e senta-se em torno desta última fogueira.
Lubbock junta-se a eles, tendo um vislumbre da vista do outro lado do vale adiante.
Duas notáveis realizações permitem-lhe sentar-se com esses caçadores da era do gelo, a não mais de mil quilômetros do mar de gelo do oceano Antártico. A primeira
foi a dos próprios australianos da era do gelo. Após terem chegado ao extremo norte da Austrália por volta de 60 mil anos atrás, numa viagem de ilha em ilha do sudeste
asiático que envolveu travessias marítimas de pelo menos 100 quilômetros, geração após geração continuaram espalhando-se para o sul e acabaram moldando um novo estilo
de vida em torno da caça ao pequeno canguru na Tasmânia, como os habitantes mais ao sul do mundo na era do gelo. A segunda realização foi a dos arqueólogos australianos
que descobriram e começaram a reconstituir esse mundo tasmaniano da era do gelo há não mais de duas décadas.
Hoje os vales do sudoeste da Tasmânia são desabitados. Cobertos por uma densa e quase impenetrável floresta tropical temperada, com rios traiçoeiros de rápida
correnteza, são um dos últimos grandes sertões do planeta Terra. E assim, quando Rhys Jones, da Universidade Nacional da Austrália, observou artefatos de pedra incrustados
nas margens do rio Denison, ali de janeiro de 1981, e descreveu-os como "uma descoberta muito importante", pôde ser acusado, justificadamente, de não fazer uma descrição
completa. Os artefatos específicos revelaram não ter mais de 100 mil anos; mas sua descoberta foi muitíssimo importante.
Poucas semanas depois, Rhys Jones e seu colega, Don Ranson, visitaram a Caverna Kutikina com Kevin Kiernan, geomorfologista da Universidade da Tasmânia. Depois
de viajarem por rios durante 10 horas, às vezes tendo de carregar o barco para transpor corredeiras e vadear com água gelada pela cintura, transpuseram com esforço
a densa vegetação e espremeram-se entre as árvores que hoje escondem a entrada da caverna.
Quando acenderam uma lâmpada, Rhys Jones viu-se dentro de uma imensa caverna de brilhantes paredes brancas a refletirem a luz do sibilante lampião:
O chão era de barro friável cor de laranjal, que se erguia em bordas de 70 cm de altura em três lados... Projetados da face ligeiramente erosada e espalhados em
torno da base, havia centenas de instrumentos de pedra e fragmentos queimados de ossos de animais. Densas camadas de carvão, alternando-se com barro vermelho queimado,
documentavam uma série de antigas fogueiras. Além de uma das bordas, uma vala fora cortada pela água, um trecho de dois metros através do qual surgiam claramente
fragmentos de crânio de cangurus pequenos, ossos de queixadas e membros empilhados alto uns em cima dos outros... Naquela noite, cozinhamos nossa comida no abrigo
da caverna e estendemos nossos sacos de dormir em duro calcário numa alcova seca no fundo da câmara principal. Mais tarde, íamos ficar sabendo que éramos as primeiras
pessoas a dormir ali em mais de 13 mil anos.
Jones e seus colegas escavaram menos de um metro cúbico de depósito e recuperaram uns estonteantes 250 mil ossos de animais e cerca de 40 mil instrumentos de pedra,
depois datados de cerca de 15.000 a.C., e carvão de uma camada de lixo abaixo, de 20.000 a.C. Assim, revelou-se que as hoje desabitadas florestas do sul da Tasmânia
foram um dia terra de caçadores-coletores.
A descoberta na Caverna Kutikina iniciou duas décadas de pesquisa nas florestas tropicais da Tasmânia. Chefiadas por Jim Allen e Richard Cosgrove, da Universidade
La Trobe, muitas temporadas foram passadas em árduas condições, enquanto sítios arqueológicos eram escavados e produziram um espantoso registro de vida da era do
gelo. A data dos primeiros tasmanianos foi recuada para 35 mil anos atrás, e seu repertório expandiu-se de artefatos de pedra para incluir ótimas pontas-de-lança
feitas com osso de wallaby e facas de vidro natural. Fragmentos de ocre na Caverna Kutikina tinham sugerido arte, e esta foi descoberta em janeiro de 1986: viu-se
à luz de lanterna um painel de 16 impressões de mãos, de pelo menos cinco indivíduos, nos fundos recessos da Caverna Ballawinne, no vale do rio Maxwell. Triturara-se
óxido de ferro, que fora misturado com água e espalhado em mãos postas espalmadas contra a parede.
No ano seguinte, descobriram-se outras impressões de mãos na Caverna Wargata, 85 quilômetros a sudeste. Adultos e crianças, usando sangue humano como um dos pigmentos,
tinham deixado as marcas. No início dos anos 1990, Rhys Jones pôde comparar a arqueologia do sul da Tasmânia na era do gelo com a do sudoeste da França - Ballawinne
e Wargata sendo as Lascaux e Altamira do hemisfério sul.
Trata-se de uma comparação generosa, para dizer o mínimo. Embora a Tasmânia tenha sítios arqueológicos da era do gelo onde se encontraram instrumentos de pedra,
ossos de animais e arte rupestre, quaisquer semelhanças com os caçadores de renas de latitudes do norte são bastante tênues. Seja como for, deve-se examinar a arqueologia
de cada região em seus próprios termos - os dias em que a Europa da era do gelo proporcionava o "padrão ouro" pelo qual se medr a arqueologia de outras regiões deviam
ter acabado muito tempo atrás.
De maior interesse é o detalhado trabalho feito por Allen, Cosgrove e seus colegas sobre os artefatos e ossos escavados das cavernas tasmanianas. O estudo que
eles fizeram da caça do wallaby [pequenos cangurus do grupo Macropus] é de particular interesse. Exigiu uma reconstituição da paisagem da era do gelo a partir de
indícios do pólen, um estudo da moderna ecologia do wallaby e a análise de muitos milhares de ossos escavados. Parece que os caçadores da era do gelo viveram nos
vales durante o inverno, primavera e início do verão. Utilizavam uma área escolhida de matagal até os wallabies se tornarem tão escassos que justificassem a caça
mais adiante; passavam então para outras áreas, talvez usando uma nova caverna como base. Embora se pegassem às vezes outros animais, os wallabies eram o alvo especial,
provavelmente sendo tocados em direção aos caçadores com lanças à espera, em emboscada.
Devido à raridade de ossos de patas dentro das cavernas, Cosgrove e Allen ficaram sabendo que os wallabies eram em parte esquartejados nos locais das matanças
- só as partes mais carnosas das carcaças levadas. Examinando a maneira como os ossos dos membros eram quebrados, souberam que se comia o tutano dos wallabies, além
da carne. Em algumas ocasiões, o cardápio incluía os miolos. No final do verão, os caçadores deixavam os vales pelos planaltos, onde alimentos vegetais aparecem
com mais destaque em sua dieta.
Em 18.000 a.C., John Lubbock observa caçadores que voltam à Caverna Kutikina com uma posta de carne de wallaby. Os ossos das pernas dos animais maiores são separados
para transformar-se em pontas-de-lança. A maioria dos outros ossos é aberta para tirar-se o tutano; até os ossos dos dedos dos pés são rachados pelo petisco lá dentro.
Joga-se o lixo num canto da caverna, junto com ferramentas cegas e engorduradas. As pessoas dispersam-se para diferentes partes da caverna - algumas vão dormir,
levando cinzas da fogueira para espalhar no chão e manter os filhos aquecidos, e outras vão transformar os ossos em pontas elegantes.
Lubbock senta-se junto à fogueira na entrada da caverna. Com luz suficiente para ler, abre Tempos pré-históricos para descobrir o que seu xará vitoriano sabia
e pensava dos aborígines tasmanianos em 1865. Num curto trecho, citam-se duas "autoridades". Segundo o Capitão Cook, que visitou a "Terra de van Dieman", como foi
conhecida originalmente a Tasmânia, em sua terceira viagem entre 1776 e 1779, os aborígines não tinham "casas, roupas, canoas, instrumento para pegar peixes grandes,
redes nem anzóis; viviam de mexilhões, amêijoas e litorinas, e sua única arma era uma vara reta afiada numa das pontas". Viria coisa pior ainda. O John Lubbock vitoriano
citava o Reverendo T. Dove, que escrevera no Tasmanian Journal of Natural Science que os tasmanianos se "distinguiam pela ausência de todas as opiniões e impressões
morais. Toda idéia sobre nossa origem e destino como seres racionais parece ter sido apagada de seus peitos".
Lubbock olha os tasmanianos da Caverna Kutikina dormindo sob suas grossas mantas de pele, após terem partilhado a carne de wallaby, cuidado dos filhos e acabado
de fazer novos instrumentos. Bastante moralidade, mas nem uma amêijoa ou litorina à vista. O grupo pensa permanecer na caverna Kutikina nos próximos dias seguintes;
eles viram vários grupos de wallabies pastando nos matagais dos fundos do vale e nos arbustos das cristas entre eles. No dia seguinte, Lubbok acompanha três homens
numa jornada de 23 quilômetros pelo vale do rio Franklin, e depois um dos seus tributários, até o que é hoje a Cratera de Darwin.
A rota segue caminhos bastante trilhados, no meio do mato à altura dos joelhos e capões de árvores enfezadas em cantos abrigados do vale. As encostas mais altas
estão cobertas de arbustos, e vêem-se pequenas geleiras nos platôs. Embora os companheiros de Lubbock não cacem, ainda assim examinam cada rastro de animal e muitas
das folhas, para ver onde os cangurus pequenos andaram se alimentando. Também podem dizer onde os animais dormiram e o tamanho do rebanho.
A Cratera de Darwin é de fato uma cratera - um buraco de um quilômetro de largura e 200 metros de profundidade, criado pelo choque de um meteorito 700 mil anos
atrás. Os companheiros de Lubbock sobem até a borda e passam uma hora colhendo nódulos de vidro - núcleos de rocha de silício derretida pelo impacto. O vidro é precioso,
e será usado para fazer pontas e facas afiadas. Será comerciado com pessoas que vivem mais ao sul, para que um dia os arqueólogos encontrem pontas de vidro a mais
de 100 quilômetros de sua fonte.
Lubbock deixa os companheiros e entra nas baixadas batidas pelo vento do norte da Tasmânia, paisagem interrompida por esporádicas colinas e cristas. Em 15.000
a.C., abriga-se numa caverna sobre um afloramento rochoso, perturbando duas corujas no ninho com sua chegada. Ossos roídos espalhados mostram que um carnívoro, talvez
um demônio tasmaniano, usou recentemente a caverna. Pode ter vindo catar comida nos detritos deixados por ocupantes, pois cinzas e pedras queimadas também se espalham
pelo chão.
Da entrada da caverna, Lubbock olha uma vasta planície coberta de mato. A norte, leste e oeste, o mar já começou a infiltrar-se na planície; acabará por cercar
o afloramento rochoso e transformá-lo na ilha Hunter de hoje. O abrigo em terra de Lubbock se tornará uma gruta marinha, açoitado pelas águas e ventos violentos
do estreito de Bass, que separará a Tasmânia do continente, e uma cultura aborígine de outra.
A Caverna da Baía da Caverna, como é conhecida hoje, fica agora seis quilômetros ao largo da costa norte da Tasmânia. Seu auge de ocupação humana foi nos dois milênios
anteriores ao LGM, quando caçadores de visita acendiam fogueira e deixavam atrás os seus detritos. Caçavam wallabies, marsupiais de toca e nesóquias nos matagais
em volta. Quando chegou o LGM, as paisagens em torno da caverna ficaram pobres demais em alimentos animais e vegetais para sustentar ocupantes humanos. Os constantes
congelamentos e descongelamentos da água nas fendas da caverna desestabilizaram seu teto, criando avalanches que sepultaram todos os detritos humanos pré-LGM.
Quando as extremas condições da era do gelo começaram a abrandar-se, a caverna foi usada apenas numa ocasião antes de ser cercada pelo mar. Foi em 15.000 a.C.,
quando se fez uma única fogueira, acesa por caçadores que exploravam o que se tornara uma terra desconhecida. Esses caçadores foram mais ao norte e sepultaram um
de seus mortos numa caverna entre colinas que acabaria por tornar-se a ilha King, hoje 100 quilômetros ao sul da costa australiana.
Os arqueólogos descobriram o túmulo e examinaram os restos de esqueleto depois que o Centro Aborígine da Tasmânia lhes concedeu permissão para fazê-lo. O morto
fora um homem entre 25 e 35 anos, cujos ossos foram enfeixados e cobertos com pedras irregulares, formando um montículo dentro da caverna. Encontraram-se pequenos
torrões de ocre entre os ossos. Podem ter sido artigos de decoração corporal semelhantes aos usados pelos tasmanianos quando os europeus os encontraram pela primeira
vez.
O físico desse homem era revelador: tinha ossos curtos e robustos, que lhe davam uma aparência atarracada semelhante à das pessoas modernas que vivem em paisagens
frias, como os inuit do extremo norte. Esse físico serve para conservar o calor do corpo, minimizando a área de superfície. As primeiras pessoas a viverem na Tasmânia
há 35 mil anos devem ter parecido inteiramente diferentes - altas e esguias, como convém aos que vivem em ambientes tropicais. A mudança em estatura foi sem dúvida
conseqüência da vida em condições glaciais dessa terra do sul.
Da Caverna da Baía da Caverna, Lubbock dirige-se para noroeste, atravessando a planície norte da Tasmânia até encontrar o mar vindo na direção oposta. Grande parte
da planície já foi inundada, mas levará outros 3 mil anos, pelo menos, para separar a Tasmânia do continente australiano. Lubbock segue a linha costeira para a leste
e depois para norte, cruzando o istmo de 2 quilômetros de largura que leva às colinas e logo se tornarão a costa sul da Austrália.
O nível crescente do mar transformou a vida de muitos habitantes do litoral na Austrália da era do gelo. Mas para os dos vales do sul da Tasmânia, foram as crescentes
chuva e temperatura que ameaçaram seu estilo de vida e acabaram por levar à sua morte. Cada geração de caçadores que usaram a Caverna Kutikina foi achando o vale
menos atraente que a última. A invasão das árvores e a subida dos rios tornaram mais difíceis o trânsito e a observação da caça. Ano a ano surgiam novos brotos de
bétula e pinheiro, e os já existentes tinham um crescimento extraordinário. Entre as árvores, brotava um cerrado mato baixo. Os rebanhos de cangurus wallabies dividiram-se
em grupos pequenos e espalhados, que se apegavam a tratos de matagal sobreviventes; o número deles desabou com o domínio da floresta tropical. Uma nova fauna de
habitantes das árvores começou a prosperar: alguns animais de nome conhecidos como o camundongo de cauda longa e o gambá de cauda enrolada, junto com criaturas mais
exóticas como o pandemelão e o quoll de cauda pintada.
Logo depois de 15.500 a.C., a Caverna Kutikina foi inteiramente abandonada; era a mais baixa e a primeira a sair da ronda sazonal dos caçadores de wallaby. Dentro
de mais algumas gerações, a floresta tropical já se espalhara para terreno mais elevado e todas as cavernas do sudoeste tinham sido abandonadas e logo foram esquecidas.
Umas poucas no sudoeste da Tasmânia escaparam ao estrangulamento da floresta tropical e continuaram a ser usadas por mais alguns milhares de anos.
Dificilmente há algum sítio arqueológico na Tasmânia entre 10.000 e 6.000 a.C. Para onde foram as pessoas? Talvez os números tivessem declinado por baixa taxa
de natalidade ou migração para o norte, cruzando os restos do istmo para a Austrália. Ou talvez não tenha tido declínio de população e os arqueólogos ainda precisem
fazer mais descobertas. Os sítios arqueológicos que datam de depois de 6.000 a.C. são relativamente abundantes e falam-nos de um estilo de vida completamente novo
dos tasmanianos: os descendentes dos habitantes da floresta e caçadores de wallaby tornaram-se moradores do litoral e coletores de mariscos.
Quando chegarem os colonos europeus, quando os antropólogos e arqueólogos começarem seu trabalho, se presumirá que essa ocupação da costa foi tudo que algum dia
aconteceu na ilha. Era o que o Capitão Cook acreditava, nas opiniões sobre a Tasmânia tão fielmente comunicadas em Tempos pré-históricos. Só quando Rhys Jones e
seus colegas penetraram na floresta tropical e encontraram os ossos de wallaby, instrumentos de pedra e locais de fogueiras no chão da Caverna Kutikina, seria dada
a partida na revelação de um mundo perdido da era do gelo. Somente então iríamos começar a compreender a profundidade da história humana em seu canto sul do mundo.

34
Escultura Corporal no Pântano Kow
Enterro e sociedade no sudoeste da Austrália,
14.000 - 6.000 a.C., e extinções da megafauna
A faixa de dentes de canguru em torno da cabeça do morto reflete o luar quando seu corpo é baixado à cova arenosa. Deitam-no sobre o lado esquerdo, os joelhos encolhidos
sob o queixo. O canto cessa para esse momento de liberação das preocupações humanas; ele junta-se agora aos ancestrais cujos ossos também jazem dentro das dunas,
mas cujos espíritos residem na noite. Silêncio. E então um grito reacende a música, corpos pintados saltam das trevas para a luz da fogueira e dançam até um frenesi,
enquanto a lua sobe alto no céu da noite. Espalha-se areia sobre o corpo, e o morto se foi para sempre.
É 14.000 a.C. A viagem de John Lubbock desde a Tasmânia o fez atravessar planícies cobertas de mato até o rio Murray, no sudeste da Austrália. Árvores, pássaros
e animais tornaram-se abundantes, e a jornada foi agradável. Ele chega a um punhado de cabanas de madeira com coberturas de junco e couro, numa localidade conhecida
como Pântano Kow. Fazem-se preparativos para um enterro.
Lubbock passa várias horas entrando e saindo de moradias; vê a mistura e aplicação de tintas nos corpos, e o cadáver sendo preparado para a cova. Grupos de velhos
sentam-se conversando em voz baixa; mulheres fazem comida e mantêm os filhos dentro de casa. Acendeu-se uma fogueira sobre um montinho de areia vizinho, perto do
lugar onde já se cavou o buraco. Quando a noite desce e surgem as primeiras estrelas, as pessoas se reúnem sobre a duna. Lubbock senta-se entre elas e logo entra
no ritmo de seu suave canto, que parece erguer a lua no céu noturno. Acende-se a fogueira, enterra-se o corpo e começa a dança.
Não longe dele, uma mulher aperta o polegar na testa do bebê que traz nos braços. Começa pouco acima das sobrancelhas e corre o dedo até o topo da cabeça, depois
solta-o. E repete a ação sempre e sempre, entrando em ritmo com a dança. Fará o mesmo na manhã seguinte, no ritmo da moagem de tuberosas. Há sempre um ritmo a seguir;
se tudo estiver em silêncio, ela cantará para criar o seu próprio ritmo, o polegar agindo com amor nos frágeis pele e osso.
Pelo menos cinqüenta pessoas se reúnem em volta da fogueira, as mentes consumidas pelas chamas, o canto, a dança que celebram a passagem do morto. Lubbock levanta-se
para olhá-las, seguindo a luz que tremula de rosto em rosto; algumas usam faixas na cabeça como a do morto, outras estão pintadas; rostos de velhos e jovens, homens
e mulheres. Alguns parecem chocados, outros assustados; uns cantam e batem palmas, e outros quedam-se em silêncio, mesmerizados pelo espetáculo.
Há uma familiaridade na ocasião, adquirida nas viagens de Lubbock pela história em outras partes do mundo. Os cantos e danças sempre diferem, como também os ritos
e costumes de enterro; mas a intensa emoção, a idéia de passado e presente fundidos num só é sempre a mesma. E no entanto há uma coisa nova, uma coisa inteiramente
diferente nesse determinado grupo de pessoas sob a lua e as estrelas da noite australiana.
As chamas lançam luz no rosto de um velho; ele tem a pele seca e esticada. O maxilar é imenso, inteiramente desproporcional ao corpo encarquilhado. Rosto grande
- largo e projetado; órbitas pronunciadas, angulosas na base e com o osso curvando-se muito para trás; bordas das sobrancelhas proeminentes. Acima delas, a testa
parece anormalmente longa, inclinando-se para longe das sobrancelhas.
As chamas tremulam, devolvendo-o à escuridão, e surge um jovem; também ele tem o rosto grande e áspero, a testa inclinada, e o maxilar parece firmemente cerrado.
Canta alto, os lábios curvados para trás revelando dentes que combinam com o maxilar em tamanho. E assim Lubbock vai de rosto em rosto, em todos encontrando as mesmas
feições, menos pronunciadas nas mulheres e crianças, mas ainda ali. Sem pensar, ele corre os dedos por sua maxila fina; a língua explora os dentes. Depois apalpa
as sobrancelhas, bem chatas, e a testa, bem vertical; as duas inteiramente diferentes das pessoas que cantam e dançam no Pântano Kow no sul da Austrália em 14.000
a.C.
Em agosto de 1967, Alan Thorne, hoje aposentado da Universidade Nacional da Austrália, encontrou fragmentos de um esqueleto não registrados e esquecidos numa caixa
no fundo de um armário no Museu de Victoria. Esses ossos teriam sido bastante comuns para o olho não treinado, mas ele ficou intrigado: lembravam lhe um crânio encontrado
em 1925 perto da cidade de Cohuna, anormalmente grande para um nativo australiano. O único rótulo referia-se à delegacia de polícia local; Thorne seguiu essa pista,
que acabou por levá-lo a descobrir o lugar, a não mais de 10 quilômetros da própria Cohuna.
Em 1972, Thorne já escavara mais de 40 indivíduos de uma duna em forma de luneta no Pântano Kow. A maioria fora enterrada em covas rasas entre 9.500 e 1.000 a.C.,
num dos maiores cemitérios de caçadores-coletores do mundo. Alguns tinham sido sepultados com artefatos - torrões de ocre, conchas, instrumentos de pedra e dentes
de animais. Um tinha uma faixa de dentes de canguru na cabeça. Alguns enterros tinham sido feitos numa data anterior, mais provavelmente remontando a 14.000 a.C.
Fez-se um estudo dos restos em conjunto com os de 126 indivíduos recolhidos em 1950 de outro cemitério, conhecido como Arroio Coobool. Murray Black, um arqueólogo
amador, escavara estes na margem oposta do rio, mas não mantivera quaisquer registros. Mesmo a localização específica do cemitério permanece vaga; mas acredita-se
que os túmulos do Arroio Coobool cobrem o mesmo período de tempo de Pântano Kow, e as duas amostras podem ser razoavelmente situadas juntas. Quando se reconstituíram
os crânios mais antigos, Thorne descobriu que tinham ossos faciais grandes, caixas cranianas rugosas, órbitas oculares retangulares numa posição baixa e testas de
forte inclinação. Os corpos combinavam com as cabeças em tamanho. Ele os descreveu como "robustos".
Diante desses crânios, fez uma afirmação radical: embora não contestasse que as pessoas do rio Murray eram Homo sapiens, propôs que eram descendentes das populações
de Homo erectus que viviam no sudeste asiático mais de um milhão de anos atrás. Os crânios fossilizados desses humanos pré-modernos, como o espécime conhecido como
Sangiran 17 de Java, eram também "robustos", e Thorne compilou uma longa lista de características partilhadas. Na verdade, estava contestando a opinião amplamente
aceita de que o Homo sapiens teve uma origem única na África por volta de 130 mil anos atrás. Supunha-se que o Homo erectus se extinguira completamente sem contribuir
para o fundo de genes moderno; mas Thorne declarou-os ancestrais dos aborígines australianos.
É muito provável que esteja certo. As semelhanças que ele afirma existirem entre os espécimes H. erectus de Java e os do Pântano Kow são espúrias - ou pelo menos
não têm maior significação que entre quaisquer outras amostras de H. sapiens e H. erectus. E assim, o único cenário factível para a origem dos australianos é com
uma ou mais populações colonizadoras de H. sapiens, os primeiros dos quais chegaram por volta de 60 mil anos atrás.
Por que, então, são os crânios do rio Murray tão robustos e inteiramente diferentes dos de outras partes do continente? A resposta parece estar na natureza particular
dos ambientes e comunidades do final do Pleistoceno na região do rio Murray, entre os quais chegou recentemente Lubbock.
Assim que os crânios do Pântano Kow foram dados a conhecer na publicação científica Nature, levantou-se a questão da deformação craniana: podia a forma particular
daqueles crânios ter sido mais produto da cultura que da biologia? Peter Brown, da Universidade Nacional da Austrália, comparou os crânios do Pântano Kow e Coobool
com os do povo arawe do sul da Nova Bretanha, uma ilha na Melanésia cujos habitantes, sabe-se, praticavam deformação do crânio.
Imediatamente após o parto, a cabeça do bebê arawe era firmemente amarrada como um tecido de casca de árvore durante três semanas. O impacto disso era imediato
- mesmo após um dia, o crânio já começara a tomar uma forma alongada. À medida que a cabeça do bebê crescia, a bandagem era substituída, até a mãe sentir que a cabeça
já fora suficientemente moldada. Brown encontrou fortes semelhanças entre os crânios dos arawe e do rio Murray, suficientes para afirmar que as pessoas do Pântano
Kow e Coobool também deformavam os crânios de seus bebês. Mas as deformações destes eram mais sutis que as dos arawe, não tendo estreitamento de largura nem alongamento
de comprimento. Em vez de usar um pano apertado, parece que os que viviam às margens do rio Murray simplesmente usavam os polegares e palmas para aplicar pressão
constante na testa de seus recém-nascidos.
Tais esculturas corporais explicam a testa inclinada, mas não as características robustas dos crânios do Pântano Kow, sobretudo as grandes mandíbulas e dentes.
Elas só podem ser explicadas por herança genética. Como populações contemporâneas em outras partes da Austrália não tinham tais características, as comunidades do
Pântano Kow parecem ter sido geneticamente isoladas, com considerável endogamia entre sua gente. Por que deveria ser assim?
Colin Pardoe, do Museu do sul da Austrália, explica a questão com o desenvolvimento de um estrito comportamento territorial para proteger o acesso aos abundantes
recursos da região do rio Murray, que superavam em muito os de outras partes. Em 14.000 a.C., o rio Murray começava a aproximar-se de sua Forma moderna - que Pardoe
descreve como "abastecida com inimaginável abundância em peixes, aves e invertebrados". As árvores colonizavam a terra bem aguada imediatamente vizinha ao rio e
abrigavam mamíferos, como os gambás e lagartos. Havia abundância de alimentos vegetais, como grãos e tubérculos. Longe do próprio rio, vivia uma grande gama de mamíferos
na terra de mato baixo em volta: canguru, wallaby e nesóquia.
No início do século XX, o antropólogo social britânico Alfred Radcliffe Brown descreveu o rio Murray como "a parte mais densamente povoada da Austrália antes dos
dias do Assentamento Branco". Encontrou tribos aborígines que reivindicavam propriedade exclusiva de trechos do rio e da terra em volta; pessoas dispostas a defender
suas fronteiras pela força. Como tais, muito se pareciam às que Lubbock observara em Skateholm quando viajava pela Europa em 5.000 a.C.
Além disso, as tribos do rio Murray que Radcliffe-Brown encontrou, como os yaralde, organizavam suas vidas sociais de forma inteiramente diferente das dos desertos
áridos da Austrália. Em vez de terem um sistema no qual todos se relacionavam com os demais, em grupos vizinhos e distantes, por um complexo sistema de ligações
sociais, as da região do rio Murray tinham muito menos ligações externas. Preocupavam-se com regras e costumes que excluíam pessoas de seu grupo social, em vez de
incluírem tantas quanto possível, como se descobriu entre aborígines que viviam no deserto.
Colin Pardoe acredita que a origem das sociedades do rio Murray descritas por Radcliffe-Brown se encontra vários milênios antes do início do Holoceno, com as pessoas
de Pântano Kow e do Arroio Coobool. Acredita que estas foram as primeiras a viver em grandes densidades num ambiente de recursos abundantes; as primeiras a estabelecer
fronteiras e desenvolver um sistema social com base mais no princípio da exclusão que da inclusão. Ele sugere que isso explica os esqueletos e crânios "robustos":
com maiores graus de endogamia, o fluxo de genes foi restringido e apareceram as diferenças regionais na psique. Também explica por que se fizeram cemitérios: para
investir a terra com os ossos e espíritos dos ancestrais da pessoa, e com isso reivindicar propriedade. E explica a escultura corporal: era um meio de acentuar diferenças
físicas existentes em relação a outros grupos. Ter o crânio alongado era um sinal de que se pertencia ao Pântano Kow ou ao Arroio Coobool, e com essa filiação vinham
direitos de caça e pesca.
As pessoas de Pântano Kow e do Arroio Coobool em 14.000 a.C. parecem ter sido os primeiros australianos a viver dessa forma. Durante os próximos milhares de anos
seguintes, seu estilo de vida espalhou-se por todo o vale do rio Murray. Adotaram-se novos métodos de demonstrar filiação ao grupo, como a avulsão dos dentes - quebrar
um determinado dente num rito de passagem da adolescência para a idade adulta. Homens e mulheres sofriam ferimentos na defesa de territórios. Em 6.000 a.C., estabeleceram-se
muitos cemitérios ao longo do rio. Não é irracional supor que continham os ancestrais diretos dos aborígines que Radcliffe-Brown e outros antropólogos anteriores
encontraram; na verdade, ancestrais dos australianos de hoje. Assim, é correto que os restos de esqueletos do Pântano Kow e do Arroio Coobool tenham sido devolvidos
dos museus e laboratórios de cientistas ocidentais às atuais comunidades aborígines.
Em 14.000 a.C., a persistente comichão de moscas andando pelo rosto de Lubbock obriga-o a acordar. Ele se levanta do lugar onde dorme numa duna e descobre que o
sol já nasceu. As mulheres e crianças do Pântano Kow já partiram para coletar plantas e mariscos, e os homens foram caçar. No rio, uma canoa está para partir, dirigindo-se
para a lagoa onde seus dois ocupantes planejam pescar, e assim Lubbock senta-se atrás deles e é levado à remo rio abaixo.
A canoa desliza rápido, às vezes proporcionando vistas de campo aberto, às vezes viajando entre margens cobertas de árvores e corredores de juncos. Os dois homens
que remam têm testas longas e inclinadas para trás, como os que Lubbock viu na noite anterior, e ele se lembra de um trecho de Tempos pré-históricos sobre deformação
craniana entre as tribos de índios norte-americanas. Vários métodos foram descritos: amarrar os bebês em pranchas-berço, pôr sacos de areia na testa, bandagens apertadas.
O John Lubbock moderno lembra - e concorda com elas - as últimas palavras de seu xará sobre o assunto: "É bastante extraordinário que esse processo artificial não
pareça ter tido nenhum efeito prejudicial na mente de quem o sofria."
Lubbock tem a atenção subitamente atraída para a mata na beira do rio, onde vislumbra o movimento do que poderia ser um grande animal - um animal muito grande.
Seus olhos registraram a curva de um ombro, e depois uma anca, mas o bicho estava em grande parte oculto atrás de árvores. A canoa já passou adiante e assim ele
vira o pescoço para dar uma segunda olhada; mas é tarde demais. Talvez fosse um canguru, ou talvez não houvesse animal algum.
Como na América, a Austrália tem uma abundância de grandes animais - megafauna - durante o Pleistoceno, todos os quais, com exceção de um, se extinguiram antes
do início do Holoceno. De quase 50 espécies diferentes, sobreviveu apenas o canguru vermelho, um animal que pesa até 90 quilos e tem dois metros de altura. Houve
outrora cangurus duas, três ou mesmo quatro vezes maiores, assim como vombates gigantes e uma gama de outras criaturas exóticas. O Megalania era o maior carnívoro
no continente; um lagarto de sete metros de comprimento com dentes e garras afiados; o Genyornis, uma ave semelhante ao emu que não voava, pesando 100 quilos e com
um bico de 30 centímetros de comprimento; o Diprotodon, um mamífero da forma do vombate e com o tamanho de um rinoceronte; o Thylacoleo, o marsupial leão.
Como acontece com a megafauna americana, tem-se discutido se esses animais foram extintos devido a mudanças climáticas associadas à era do gelo ou à pressão da
caça causada pela chegada dos humanos modernos ao continente. E, como no debate americano, faltam indícios fortes a qualquer dos lados. Há apenas um sítio onde se
encontraram artefatos humanos com os ossos de animais extintos: Cuddie Springs, na Nova Gales do Sul. As escavações desse olho d'água revelaram artefatos de pedra
associados aos ossos de Diprotodon e Genyornis datando de cerca de 30 mil anos atrás. Quando examinados ao microscópio, encontraram-se resíduos de sangue e pêlos
desses animais. Mas como não havia implementos de caça, os escavadores acreditam que os aborígines simplesmente passaram a comer os restos dos animais recentemente
mortos de sede ou atolados na lama do olho d'água.
A diferença-chave entre as extinções australianas e americanas é a cronologia. Enquanto os mamutes sobreviveram até o fim mesmo do Pleistoceno, parece que toda
a megafauna australiana, menos o canguru vermelho, já estava extinta em 20.000 a.C., e talvez muito antes. Isso torna mais convincente a explicação climática: em
20.000 a.C., as pessoas já se achavam no continente australiano há mais de 30 mil anos, e as extinções podem coincidir com o desenvolvimento das condições extremamente
áridas do LGM.
É provável que a megafauna extinta fosse particularmente susceptível à perda de nascentes e com toda probabilidade morreu de fome e sede. Mas o momento exato de
muitas extinções permanece vago. Os indícios recém-disponíveis da Tasmânia sugerem que a megafauna daquela região já morrera em 13.000 a.C. Isso foi antes da chegada
de pessoas, deixando a mudança climática como única explicação.
Muitos arqueólogos australianos acreditam que a extinção em toda a Austrália ocorreu numa data mais anterior ainda - entre 50.000 e 40.000 a.C. Como tal, indicam
a coincidência com a chegada de pessoas ao continente. Por outro lado, Colin Pardoe acredita que parte da megafauna sobreviveu muito depois de 20 mil anos atrás
nas vizinhanças do rio Murray. E assim Lubbock bem pode ter tido um vislumbre do Diprotodon ou de algum outro animal. Ou não - a canoa navegava rápido demais para
saber.
Na lagoa, os homens que remavam a canoa começam a abrir uma rede feita de fibras de plantas trançadas. Ma,s com mais 5 mil quilômetros e 9 mil anos de pré-história
australiana para cobrir, Lubbock não tem tempo para pescar. Atravessa a pé as densas árvores em torno da lagoa e passa à planície aberta, dirigindo-se para noroeste,
o árido centro da Austrália.

 

 

 

35
A Travessia do Árido Deserto
Adaptações dos caçadores-coletores ao Deserto Central Australiano,
30.000 a.C. - 1.966 d.C.
Crepúsculo no Deserto Central Australiano:
O céu do oeste está impregnado com um rico arrebol da tarde, contra o qual os galhos de acácia se destacam nítidos e finos. Todos os arbustos e tufos de mato exibem
uma profunda cor roxa vistos contra a luz dourada. Para os lados do leste, a cena muda completamente. Os arbustos, azul esbranquiçados, com trechos cinza-claro de
erva baixa e tufos ainda mais claros de grama, destacam-se em forte contraste com os marrons cálidos e exuberantes dos campos de gibber que se estendem até o horizonte,
onde o céu é de um frio azul-aço que se derrete acima num rosa-salmão, e este num profundo ultramarino salpicado de estrelas brilhantes. Aos poucos, a luz morre
e a silhueta do horizonte torna-se indistinta. A não ser pelo misterioso chamado queixoso de um maçarico de passagem, tudo é absoluto silêncio. Uma após outra, as
estrelas surgem no leste e sobem cada vez mais alto no céu, e então, com uma sensação de perfeita liberdade e um delicado senso de absoluto ar novo, quando o vento
da noite começa a soprar sobre nós, fazendo farfalhar suavemente as folhas de uma velha árvore de goma, adormecemos.
Asim escreveram Baldwin Spencer e Frank Gillen em seu livro de 1912, Across Australia [Cruzando a Austrália]. Spencer era professor de biologia na Universidade de
Melbourne, e Gillen tinha o bombástico título de "Magistrado Especial e Subprotetor dos Aborígines do sul da Austrália". Além de descreverem o deserto, eles escreveram
uma das primeiras histórias dos aborígines arrente da Austrália Central - aos quais se referiam como a tribo arunta - concentrando-se em seus costumes e crenças
religiosos.
Seja viajando hoje, em 1.912 d.C. ou 14.000 a.C., tudo na Austrália Central é em vasta escala - ilimitadas planícies cobertas de matagal, grandes vales de 4 ou 5
quilômetros de comprimento, impressionantes gargantas e largos canais fluviais absolutamente secos ou inundados de água. Para moradores urbanos como eu, as descrições
de Spencer e Gillen fazem o deserto parecer celestial. Até, quer dizer, lermos sobre as pragas de mosquitos e moscas. Um bocado deles muitas vezes acompanhava qualquer
comida que eles comessem; em algumas ocasiões, acordavam pela manhã com "olho de rolha" - tentativa de uma mosca fêmea de depositar seus ovos na membrana macia e
mucosa da pálpebra. Assim que o sol se levantava, lembravam, tinha início o baixo zumbido dos mosquitos, que crescia em intensidade, tornando-se cada vez pior, até
alcançar um clímax que continuava até o anoitecer.
Suportando tais condições, Spencer e Gillen forneceram uma das primeiras histórias dos aborígines da Austrália Central, publicando uma sucessão de clássicos que
incluem The Native Tribes of Central Austrália [As tribos nativas da Austrália Central] em 1899, The Northern Tribes of Central Australia [As tribos nortistas da
Austrália Central] em 1904 e The Arunta [Os aruntas] em 1927. Spencer escrevera os textos e Gillen fizera a maior parte do trabalho de campo, enviando extensas cartas
e anotações ao colega e recebendo pedidos de mais informações e esclarecimento em resposta. Seus livros fizeram extenso uso de lâminas em preto e branco e contribuíram
para o desenvolvimento do trabalho antropológico, influenciando Durkheim, Freud e Lévi-Strauss.
Across Austaália combinava histórias de várias expedições numa "narrativa simples de algumas das coisas mais interessantes que vimos". E fora muito, não apenas
das paisagens australianas, mas do povo indígena. Spencer e Gillen tornaram-se membros plenamente iniciados da tribo arunta e podiam assistir a muitas cerimônias
antes não testemunhadas por olhos ocidentais.
E, no entanto, uma vida inteira de estudo dos aborígines não conseguiu desfazer suas idéias vitorianas sobre povos tribais. A introdução a Across Australia fazia
uma advertência a algum leitor desavisado que pudesse se enganar com as descrições feitas pelos dois de complexos rituais e cerimônias:
Deve-se lembrar [escreveram os autores] que embora as cerimônias nativas revelem, em certa medida, o que se descreveu como "complexo ritual", são eminentemente brutas
e selvagens. São realizadas por selvagens nus a uivar, que não têm moradas permanentes, roupas, conhecimento de quaisquer implementos, salvo os feitos de madeira,
osso ou pedra, nem a mínima idéia de cultivo de safras ou do armazenamento de comida para enfrentar tempos difíceis, nem palavras para qualquer número além de três
ou quatro.
A ironia é que são exatamente essas qualidades de grande mobilidade, posses limitadas e intensa cerimônia que tanto impressionam os antropólogos hoje. Sobrevivendo
dentro do deserto central australiano, os aborígines documentados por Spencer e Gillen haviam realizado um dos maiores feitos da humanidade. E, no entanto, os que
lá viviam no século XIX e início do XX talvez tivessem uma vida relativamente fácil em comparação com seus antepassados, os que ocuparam o deserto no LGM, ou muito
pouco depois.
A Austrália Central fora quente e árida durante mais de um milhão de anos. Hoje, a zona árida do país cobre 5 milhões de quilômetros quadrados, 70% do continente.
Definida como a região onde a evaporação iguala ou excede a chuva, as temperaturas no verão passam dos 35°C, quando a precipitação média anual é de menos de 500
milímetros e não chega aos 125 nas partes mais secas, quase 80% da região consistem de "deserto aberto" - superfícies de pedra ou areia, rochas nuas e depressões
de barro sem padrões de drenagem definidos; a água de superfície pode ser abundante após a chuva, mas desaparece rápidamente. Espalhadas entre as vastas extensões
de deserto aberto há as montanhas: as Serras Musgrave, James e McDonnell do centro, o distrito de Pilbara no oeste e as serras Kimberley no noroeste. Dentro dessas
montanhas, o escoamento concentra-se em regatos que fornecem as fontes de água mais confiáveis da zona árida e sustentam uma relativa abundância de vida vegetal
e animal. Ao longo das margens da maioria das montanhas há planícies aluviais ribeirinhas. A água de superfície pode ser encontrada nelas a maior parte do ano, fornecendo
uma surpreendente fonte de alimentos para uma terra tão árida: peixes, moluscos, aves e plantas aquáticas.
Quando as pessoas entraram pela primeira vez na zona árida, perto de 10.000 a.C., as temperaturas eram pouco diferentes das de hoje, mas era muito mais úmido,
resultando em generalizados lagos e cursos d'água permanentes. À medida que as temperaturas globais caíam para o LGM, a chuva já escassa foi reduzida à metade; a
velocidade dos ventos aumentou, os lagos secaram e formaram-se extensas dunas. A zona árida expandiu-se e cobriu 80% do continente, deixando não mais que a ponta
norte e as margens leste com um clima temperado.
Quando o clima virou após 20.000 a.C., as condições começaram a melhorar, a chuva aumentou, levando mais uma vez a fontes d'água confiáveis; a cobertura vegetal
também aumentou, o que, junto com o declínio nos ventos, levou à estabilização das dunas. As condições para assentamento humano aumentaram continuamente até 7.000
a.C. Depois disso, o clima se tornou um pouco mais frio e mais seco, resultando no deserto de hoje, tão evocativamente descrito por Baldwin Spencer e Frank Gillen.
Para examinar a história de sua ocupação, John Lubbock chegou ao deserto central em 13.500 a.C. Em sua viagem a partir do Pântano Kow, ele cruzou uma vasta extensão
de caatinga morta pela estiagem, encontrou carcaças secas e passou por muitos lagos extintos. Estes eram brilhantes lençóis brancos de sal, inteiramente estéreis,
mas que falavam de um tempo quando havia vastidões de água doce cercadas por matas que abrigavam miríades de animais e pássaros. Lubbock atravessou baixadas de barro;
algumas tinham superfícies tênues, quebradas em pequenas lascas curvas reluzindo ao sol, cobertas pelas pegadas de emus e cangurus e cercadas por matagais secos
e conchas de caramujos e mexilhões mortos.
Quando vinha a chuva, os arrotos normalmente secos logo se transformavam em torrentes e as baixadas de barro em poças d'água transbordantes de caramujos, caranguejos
e pitus. Milhares de rãs surgiam do subsolo onde a areia ficara fria com um resto de umidade. As rãs desovavam, os ovos chocavam, girinos se desenvolviam e transformavam-se
em rãs verdes e laranja-brilhante a tempo de desaparecer no chão quando a seca voltava. Alimentavam-se de lagartas que apareciam como do nada nas plantas revitalizadas
e da enorme quantidade de brotos que irrompiam do chão. Chegavam as aves aquáticas - galeirões, colhereiros, pelicanos - e também gaviões, águias, todos alimentando-se
com febril ansiedade.
Agora Lubbock se senta numa grande gruta de rocha calcária no centro do continente. E uma escarpa voltada para o sul no lado sul da cadeia de montanhas James.
Ele vê a caatinga aparentemente interminável em que apreciou o crepúsculo e foi empestado pelas moscas; agora escalda sob o sol do meio-dia. Subindo a escarpa, olhou
para o norte e viu coloridas cadeias de montanhas, todas a reverberar na névoa de calor, ameaçando, mas convidando o viajante, nos tempos pré-históricos ou modernos.
A seu lado no chão da caverna há detritos de outros que procuraram abrigo recentemente ali: cinzas, fragmentos de ossos animais, umas poucas lascas de quartzo espalhadas.
Na época da visita de Lubbock, as paredes da caverna estão inteiramente nuas. No futuro, porém, serão cobertas com impressões de mãos e a gruta de rocha ganhará
o nome de Kulpi Mara, que quer dizer "caverna de mãos". Foi assim que Peter Thorley, da Universidade do Território do Norte, a encontrou quando escavou a caverna
em 1955-1956, descobrindo os restos de sucessivas fogueiras ensanduichados em sedimentos caídos do teto e das paredes, complementados por um pouco de areia soprada
pelo vento. Datas de radiocarbono indicaram que as pessoas haviam acendido fogueiras dentro de Kulpi Mara em alguma data antes de 30.000 a.C., por volta de 27.000
a.C. e entre 13.700 e 11.500 a.C.
Cerca de 200 quilômetros a nordeste de Kulpi Mara fica Puritjarra, outra e maior gruta de calcário, que oferece datas comparáveis de ocupação. Localizada nas Colinas
Cleland, o nome significa "área de sombra" - um título apropriado, pois proporciona proteção do sol do meio-dia e do vento predominante. Sua enorme entrada tem 45
metros de comprimento por 20 de altura; pinturas e impressões cobrem as paredes. A ausência de vento foi uma bênção para os aborígines que ocuparam Puritjarra até
a década de 1930, mas uma praga para Mike Smith, da Universidade da Nova Inglaterra, o arqueólogo que escavou ali entre 1986 e 1988. Sem poeira soprada, havia uma
taxa tão baixa de sedimentação que artefatos feitos com milhares de anos de diferença não puderam ser separados por mais que alguns milímetros de sedimento.
Smith acredita que a gruta foi ocupada pela primeira vez cerca de 30 mil anos atrás, embora sua mais antiga data de radiocarbono - de uma camada contendo fragmentos
de carvão e ocre vermelho, instrumentos de pedra e lascas jogadas fora - seja cerca de 25.000 a.C. Acima disso, havia muito poucos artefatos incrustados nos depósitos
da caverna antes de se chegar a uma data de 15.000 a.C. Os horizontes superiores cobriram os últimos 7 mil anos e continham fogueiras de cozinha, pedra lascada e
implementos de moagem.
Puritjarra e Kulpi Mara tinham sido usadas entre 25.000 e 15.000 a.C., por todo o tempo do LGM em que as condições climáticas foram mais severas? Mike Smith acha
que sim, propondo que as Colinas Cleland mantiveram permanentes olhos d'água, o que criava um refúgio para pessoas expulsas do deserto em volta pela seca. Mas se
as poucas datas de Puritjarra e Kulpi Mara derivaram dl visitas esporádicas, exploratórias, ou registram uma presença humana constante no centro árido da Austrália,
ainda não está claro. Qualquer que seja a resposta, os aborígines evidentemente usavam as grutas de rocha quando as condições eram muito menos áridas do que as que
Spencer e Gillen testemunharam um século atrás - ou mesmo do que hoje. Como conseguiram fazê-lo?
Sabemos como os aborígines recentes sobreviveram aos desertos australianos graças a antropólogos que estudaram meticulosamente suas adaptações, empreendendo tipos
de pesquisa bastante diferentes dos de Spencer e Gillen. Em fins da década de 1960, Richard Gould, que depois se tornou professor de antropologia na Universidade
do Havaí, viveu com aborígines numa região a oeste da Caverna Puritjarra - uma região que pode dizer que tem o abastecimento de água mais inconfiável e as comunidades
animais e vegetais mais pobres no mundo.
Os aborígines em geral viviam em grupos de cerca de 20. Os homens passavam várias horas todo dia caçando, mas raramente matavam qualquer coisa maior que lagartos
e camundongos, enquanto as mulheres coletavam sementes e tubérculos de mais de 30 plantas diferentes, das quais sete forneciam o grosso da comida. Elas também pegavam
caça pequena, junto com insetos e vermes - na verdade, coletavam-se quase 50 variedades diferentes de comida de carne e polpa.
A chave da sobrevivência era o oportunismo - estar preparado para mudar-se para onde se vira a chuva cair, e onde se sabia haver água empoçada. Para fazer isso,
precisavam de muito poucas posses, e "moradas permanentes" não teriam tido utilidade alguma. Podia-se ver a chuva de 80 quilômetros de distância, e cobriam-se regularmente
grandes distâncias; em apenas 3 meses durante 1966, o grupo de Gould mudou-se para nove diferentes acampamentos espalhados por 2 mil 600 quilômetros quadrados. Esse
estilo de vida exigia um detalhado e extenso conhecimento geográfico, embutido nas histórias do Tempo do Sonho. Quando os membros mais jovens do grupo aprendiam
a mitologia e eram iniciados em conhecimento sagrado, tinham de memorizar os nomes e lugares de muitos marcos territoriais, notadamente olhos d'água. Tais iniciações
se davam nas raras ocasiões em que a caça era boa; até 150 pessoas se reuniam e permaneciam juntas enquanto a caça local não se esgotava. E assim as histórias, cerimônias
e danças - executadas pelos "selvagens nus a uivar" de Spencer e Gillen - eram absolutamente essenciais para a sobrevivência humana.
Outro ingrediente chave da adaptação ao deserto era a ética da partilha. Toda a comida trazida ao acampamento era meticulosamente dividida entre todos os membros
do grupo, mesmo quando não passava de um pequeno lagarto. Além disso, os laços de parentesco entre grupos serviam para assegurar que um grupo seria bem-vindo ao
território de outro, se estivesse sofrendo da seca e escassez de comida. Esses laços eram estabelecidos por meio de um sistema de casamento "entre primos", em que
se esperava que um homem se casasse com uma mulher que era filha da filha do irmão da mãe da mãe. Como essas relações não eram, compreensivelmente, fáceis de encontrar,
os homens muitas vezes buscavam parceiras entre grupos que viviam a centenas de quilômetros de distância. E como um homem podia tomar várias esposas, muitas vezes
se aparentava com várias famílias que viviam em milhares de quilômetros quadrados do deserto. Em conseqüência, havia sempre a possibilidade de encontrar parentes,
e com isso acesso à água e oportunidades de busca de comida, em tempos de necessidade.
Gould descreve o fogo como o mais útil instrumento dos aborígines do deserto. Grande parte da paisagem deles era coberta por espinifex - um arbusto espinhoso que
não fornecia nenhum material comestível. Era queimado, resultando no crescimento e sucessão de várias plantas produtoras de comida até que o espinifex mais uma vez
se estabelecia. Gould viu os aborígines queimarem extensos tratos de terra, mas nunca manifestavam qualquer intenção de encorajar o crescimento de novas plantas.
Também se empregava o fogo para espantar caça pequena, e às vezes fazer sair com a fumaça lagartos e mamíferos de suas tocas.
As pedras de moer eram igualmente essenciais; sem elas, muitas das sementes colhidas não teriam sido comestíveis. Essas pedras eram adquiridas em pedreiras ou
pelo comércio e deixadas nos acampamentos na previsão de uma futura volta. Com uma exceção, todos os outros instrumentos eram extraordinariamente simples: lascas
de pedra, muitas vezes usadas como encontradas no chão e depois jogadas fora, paus de cavar para plantas, lanças de madeira. A exceção era um lança-lanças - uma
vara de até um metro de comprimento usada para muitas outras tarefas além de atirar lanças. Eram geralmente achatadas, para servir como bandeja de mistura de pigmentos
e tabaco; usadas para acender fogueiras, e muitas vezes tinham uma lasca de pedra numa das pontas, para trabalho em madeira. As superfícies eram freqüentemente talhadas
com figuras geométricas que funcionavam como mapas de marcos territoriais sagrados.
Os aborígines do século XX sobreviviam no ambiente incrivelmente difícil do deserto australiano com essa combinação de instrumentos, regras e profundo conhecimento
geográfico. Mas era assim que os que fizeram as lascas de pedra e fogueiras nas Cavernas de Kulpi Mara e Puritjarra também viviam? Devemos ser extremamente cautelosos
na imposição de padrões modernos de comportamento ao passado - sobretudo quando lidando com assuntos arqueologicamente invisíveis como casamentos entre primos.
Richard Gould escavou duas grutas de rocha no deserto: Puntutjarpa e Intirtekwerle, As duas tinham longas seqüências de depósitos que se estendiam para trás a 10.000
a.C. e artefatos pouco diferentes dos usados pelos aborígines com os quais Gould viveu durante os anos 1960. Em seu livro de 1980, Living Archaeology [Arqueologia
viva], que descrevia suas experiências e escavações, ele propôs que a cultura de moagem de sementes, redes de casamentos e mitologia do Tempo do Sonho remontava
não apenas até aquela data, mas à primeira ocupação da zona árida em 30.000 a.C. Era uma afirmação ousada, pois na década de 1960 as mais antigas pedras de moer
conhecidas datavam apenas de 3.500 a.C. Só em 1997 Gould foi justificado pela descoberta de fragmentos de pedra de moer cm Cuddie Springs - o sítio na Nova Gales
do Sul onde as pessoas outrora ou caçavam ou se alimentavam de carcaças de mamíferos hoje extintos. Escavações de Richard Fullagar e Judith Field, da Universidade
de Sydney, recuperaram 33 fragmentos de pedras de moer de uma vala de 150 centímetros com camadas que datam de antes de 30.000 a.C. até hoje. Muitos dos fragmentos
vieram das mesmas camadas, em que se encontraram ossos da megafauna esquartejados. Restos microscópicos de tecidos de plantas e um verniz típico nos fragmentos da
pedra de moer confirmaram que foram usados para processar sementes.
Os indícios de Cuddie Springs sugerem que os aborígines que viviam nos desertos da Austrália durante e imediatamente depois do LGM tinham uma economia de moagem
de sementes, semelhante à observada na década de 1960 por Richard Gould. Mas os fragmentos de ocre recuperados das Cavernas Kulpi Mara e Puritjarra dificilmente
bastam para possibilitar aos arqueólogos determinar se os aborígines do deserto tinham mitologias semelhantes à do Tempo do Sonho e regras de casamento - tão cruciais
para a sobrevivência recente quanto a moagem de sementes.
Durante três dias John Lubbock permaneceu na Caverna Kulpi Mara, esperando a Volta de quem quer que tivesse feito recentemente a fogueira. Desejava conhecer essas
pessoas, viajar com elas, descobrir como viviam. Não veio ninguém. Ele colheu sua própria comida: figos e raízes selvagens, um lagarto arrancado da toca. Enquanto
esperava, abriu Tempos pré-históricos para ler sobre o conhecimento e opiniões de seu xará quanto aos aborígines. Nas poucas páginas dedicadas aos australianos,
o autor usou informações de vários viajantes do século XIX - mas não as de Spencer e Gillen, cuja publicação inicial só saiu 30 anos depois da primeira edição de
Tempos pré-históricos (1865).
Para o John Lubbock vitoriano, os aborígines eram - o que não surpreende - "infelizes selvagens". Mas como o moderno John Lubbock descobrira quando lera sobre
as pessoas da Tierra del Fuego e os índios norte-americanos, essas declarações conflitavam com a evidente apreciação pelo Lubbock vitoriano de muitos instrumentos
que os aborígines faziam e usavam com grande habilidade. Tempos pré-históricos explicava que eles tinham "boa prática" no uso de lança-lanças, bumerangues e lanças
de tartaruga com farpas móveis, descrevendo com certo detalhe esses implementos. Também parecia difícil compreender como os tasmanianos podiam ser descritos como
na mais completa falta de opiniões morais (na citação do Reverendo Dove) e os australianos como capazes de reconhecer comportamentos egoístas e irracionais. Mais
uma vez, o Lubbock vitoriano parecia debater-se para conciliar as opiniões flagrantemente racistas daqueles em cujas publicações se apoiava e o evidente valor que
ele próprio dava à tecnologia e estilos de vida daqueles aos quais chamava "selvagens modernos".
Após uma vigília de manhã cedo na busca do sinal-chave de vida humana, uma espiral de fumaça, Lubbock desce dos penhascos e deixa a Caverna Kulpi Mara. Dirige-se
para o norte, atravessando o que se tornará as serras McDonnell e a futura Alice Springs. Tem mais 1 mil 200 quilômetros de deserto para cruzar antes de chegar à
Terra de Arnhem, que será transformada pelo aquecimento global.

36
Combatentes e o Nascimento de uma Serpente
Arte, sociedade e ideologia no norte da Austrália,
13.000 - 6.000 a.C.
Dois homens de frente um para o outro, prontos para o combate. Usam roupas enfeitadas com elaborados adereços de cabeça. As mãos seguram bumerangues. Armas letais.
Nenhum dos dois pensará duas vezes antes de matar o outro.
John Lubbock já viu muitas cenas semelhantes durante os últimos dias de viagem. Em sua maioria, foram disputas homem a homem com bumerangues e lanças, perto de
olhos d'água. Os combatentes eram todos homens, usando túnicas e calças de couro de animal enfeitadas com plumas e contas; os rostos pintados de vermelho e as estaturas
aumentadas por ameaçadoras construções de plumas, peles, ossos e cascas de árvores. Alguns transformavam-se em feras com o uso de máscaras de animais, mas continuavam
sobre as duas pernas quando avançavam para atacar os que ousavam interpor-se em seu caminho.
Na Garganta do Surdo Adder, Lubbock viu um homem correr para o outro, pronto para lançar seu bumerangue. O adversário, vestido de animal selvagem, manteve-se firme,
pronto com um punhado de lanças. Entre os penhascos acima das Cataratas Gêmeas, dois homens tinham ficado frente a frente, cada um decidido a levar o outro a uma
morte sangrenta. Um erguia uma lança, em posição de ataque, e o outro segurava um bumerangue, pronto para atacar e quebrar o braço do adversário. Em outro lugar,
Lubbock viu o resultado dessas batalhas: corpos desabando no chão ou jazendo mortos, varados por lanças.
Agora, porém, ele chegou aos penhascos e eucaliptos acima das Cataratas Jim Jim. É meio-dia; o sol escorcha e o ar está seco como um osso. Dois pássaros, talvez
abutres, circulam no límpido céu azul. Apesar do calor, está para começar mais uma luta - dois homens vestidos, armados e empenhados numa batalha mental, antes do
lançamento do primeiro bumerangue. Lubbock o vê em pleno vôo, deixando o pincel do pintor quando a pintura rupestre é concluída com um hábil rabisco de tinta vermelha.
Ali o bumerangue permanecerá, pregado na parede durante muitos milênios futuros. Lubbock volta-se para o pintor: é um velho aborígine de cara enrugada e tocos de
pêlos grisalhos; um homem pacífico, que jamais ergueu uma lança ou bumerangue enfurecido em toda a sua longa vida, mas que repisa cenas de violência e morte.
Lubbock está na Terra de Arnhem de hoje, na "ponta de cima" dos Territórios do norte na Austrália. É uma paisagem de escarpas de calcário, matas de savana e fundos
desfiladeiros. Uma paisagem árida, em que os rios lutam para sobreviver e periodicamente perdem. A data é incerta - difícil saber com exatidão quando ele poderia
estar visitando as pinturas rupestres de combatentes e sentando-se com o artista que mistura em silêncio seu pigmento de ocre.
Os aborígines de hoje da Terra de Arnhem atribuem essas pinturas, que os arqueólogos chamam de "Figuras Dinâmicas", ao povo mimi. Acreditam que eles foram seus
precursores na Terra de Arnhem, e os ensinaram a pintar. Os mimis decoravam os tetos das cavernas voando, e sobrevivem hoje como espíritos, às vezes aninhados dentro
das lendas de um paredão de rocha.
"Dinâmica" é uma descrição adequada. Cada figura não tem mais de alguns centímetros de altura; muitas esticam as pernas como se corressem em velocidade máxima,
o que é enfatizado pelos pequenos traços perto dos pés, sugerindo movimento. Sinais semelhantes parecem emanar das bocas, talvez descrevendo respiração forte ou
gritos de guerra. Mas nem todas as Figuras Dinâmicas estão envolvidas em luta; algumas são mostradas caçando emus; outras simplesmente de pé, sentadas ou revoluteando
no ar; algumas seguram galhos com folhas e outras fazem sexo. O simples fato de que essas pinturas foram criadas além do tempo da história oral aborígine, e, portanto
postas no mundo mítico do povo mimi, sugere grande antigüidade. Christopher Chippindale e Paul Taçon, arqueólogos da Universidade de Cambridge e do Museu Australiano
em Sydney, tentaram identificar a idade exata.
Para começar, as Figuras Dinâmicas não são o primeiro estilo de arte na Terra de Arnhem; abaixo das figuras pintadas encontram-se traços leves de uma arte mais
antiga: descrições de gigantescos cangurus, wallabies, cobras, crocodilos e peixes. Também sabemos que tais gravuras não podem ter mais de 60 mil anos, pois essa
é a data da chegada de pessoas ao continente australiano. Mas, além disso, as coisas se tornam difíceis.
O uso de bumerangues como armas é significativo, pois todos os aborígines conhecidos da Terra de Arnhem os usaram apenas como instrumentos musicais - tábuas de
batuque. Os animais descritos também são cronologicamente sugestivos, pois alguns estão hoje extintos, como o tilacino - ou tigre da Tasmânia - cujos flancos listrados
podem ser vistos em várias pinturas. Esse animal já havia desaparecido da Terra de Arnhem em 5.000 a.C. Umas poucas pinturas parecem descrever animais extintos de
uma época muito anterior, como o gigantesco vombate conhecido como Palorchestes, que se extinguiu antes do fim do Pleistoceno. Além disso, a ausência de certos animais
também é útil; há poucas descrições de peixes, e quando presentes são variedades relativamente pequenas de água doce. Nos estilos de arte posteriores da Terra de
Arnhem, os peixes ganham mais destaque, e julga-se que isso reflete o nível crescente do mar, surgimento de pântanos e mudança de dieta do povo aborígine depois
que a era do gelo chegou ao fim.
Chippindale e Taçon pegaram esses poucos fios de indício, teceram-nos e concluíram que as Figuras Dinâmicas descrevem pessoas nas áridas paisagens da Terra de
Arnhem antes do surto final de aquecimento global em 9.600 a.C.
Outra sugestão sobre a idade das pinturas vem de fragmentos de ocre-vermelho em depósitos em grutas que também contêm os artefatos de pedra deixados pelos australianos
do Pleistoceno. As Figuras Dinâmicas foram criadas com o mesmo tipo de pigmento, embora este se tenha tornado depois de uma exuberante cor de amora e pareça ter-se
entranhado na própria rocha. Por volta de 12.000 a.C., há um acentuado aumento na quantidade de ocre-vermelho nos depósitos das grutas, sugerindo o início de intensa
atividade artística; Paul Taçon acredita que foi então que se criaram pela primeira vez as Figuras Dinâmicas.
Parece mais provável, portanto, que Lubbock esteja na Terra de Arnhem numa data entre 20.000 e 9.600 a.C. - vou seguir Taçon e pô-lo perto do fim desse período,
digamos 10.000 a.C. Mas embora saibamos que andou visitando as rochas pintadas, e vendo os artistas trabalharem, terá também visto ele a luta na vida real? Descrevem
as pinturas a realidade da vida durante o estágio final da era do gelo na Terra de Arnhem? Elas podem ser um registro histórico autêntico de disputas públicas de
homens brigando por acesso a recursos preciosos, talvez pelos poucos olhos d'água ciumentamente apropriados e guardados nas áridas paisagens. As lutas podem ter
sido sangrentas e durado até a morte ou de natureza em grande parte ritualizada. Alternativamente, podem não ter passado de fantasia: descrições de seres míticos,
empenhados em batalhas imaginárias com trajes inteiramente diferentes de qualquer um visto no mundo real. Na verdade, os pintores aborígines da Terra de Arnhem podem
ter sido uma gente pacífica, que vestia roupas simples e assegurava a partilha equitativa de toda comida e água.
Chippindale e Taçon preferem a interpretação da "arte como registro histórico." E assim, em suas viagens pela Terra de Arnhem, Lubbock viu não apenas os combatentes
pintados em vermelho, mas os próprios combatentes.
Lubbock agora senta-se à sombra de um eucalipto na margem de um raso regato. Esse curso d'água foi sua rota desde uma funda garganta dentro da escarpa, passando
por grutas onde as pessoas lascavam quartzo e uma planície com árvores esparsas. O regato continua até onde ele pode ver, serpeando por pelo menos outros 500 quilômetros
até encontrar o mar. Lubbock pretende segui-lo até o estuário e depois a linha costeira, até chegar às montanhas cobertas de neve que ficam 1 mil quilômetros ao
norte, na Papua, Nova Guiné de hoje.
Mas por enquanto faz calor demais, Lubbock está cansado. Por isso, senta-se junto a uma árvore e confere um trecho de Tempos pré-históricos que ele lembra tratar
da arte aborígine. "Numa caverna na costa nordeste", escreveu seu xará em 1865 d.C., "o Sr. Cunningham observou algumas 'figuras toleráveis de tubarões, toninhas,
tartarugas, lagartos, tripangos, estrelas do mar, porretes, canoas, abóboras d'água e alguns quadrúpedes provavelmente pretendendo representar cangurus e cachorros'.
É, porém, duvidoso se são obras dos nativos atuais. O John Lubbock moderno pensa em como as pinturas que viu na escarpa careciam de quaisquer figuras assim.
Ele fecha o livro e começa a cochilar ao lado das águas rasas do que um dia se tornará o rio Jacaré leste da Terra de Arnhem. Chegam-lhe lembranças oníricas de
suas viagens em outras partes nessa data na história humana: o reenterro de pessoas há muito mortas em Ain Mallaha pelas pessoas do Natufiano Tardio obrigadas a
mudar-se pelas secas do Jovem Dryas; a chegada no sudoeste da França e a descoberta de que as cavernas pintadas estavam desertas e esquecidas; a pesca com as pessoas
da Quebrada Jaguay no Peru.
Lubbock mergulha num sono profundo, não apenas pelo resto do dia, mas pelo resto da era do gelo e além. Novos tipos de sonho: gotículas d'água de iciclos que de
repente se avolumam; lagos de água derretida que estouram as margens; rios em cheia carregando enormes rochas e árvores; penhascos de gelo desabando no mar. Estes
últimos o acordam com o estrondo.
Em vez do límpido céu azul e da sombra do eucalipto que o fizeram dormir, Lubbock acorda num mundo sombrio e cavernoso, sentado numa ilha de lama e cercado por um
pântano. Quatro mil anos se passaram desde que começou a cochilar, e já é 6.000 a.C. Troncos retorcidos e nodosos de cada lado lançam ameaçadores galhos enlameados.
Acima, um denso dossel de folhas. O ar está sufocante, impregnado com um quente vapor miasmático. Há um intenso silêncio, quebrado apenas pelo calmo arquejar de
moluscos afundados na lama ou grudados às raízes e troncos do mangue.
Enquanto Lubbock dormia, a maré chegou; não as marés diárias que lambiam as praias da Grande Austrália do Pleistoceno, mas a da subida pós-glacial do nível do
mar. Quando as geleiras desabaram, as camadas de gelo se derreteram e os lagos se esgotaram, os mares do sul incharam. Os níveis subiram sem parar, às vezes inundando
45 metros por ano da planície pela qual Lubbock planejara viajar. Em 6.500 a.C., a terra baixa entre o norte da Austrália e a Nova Guiné foi inteiramente submersa
sob o Mar de Arafura. Quando as águas inundaram a Terra de Arnhem, pequenos rios interiores transformaram-se em largos estuários; surgiram diques que levaram a terras
molhadas de água doce; os mangues tomaram tudo.
Lubbock atravessa a borda do pântano, trepando em enormes raízes e perturbando as tartarugas que descansam nos bancos de areia. Por algum tempo os pântanos parecem
intermináveis e ameaçadores, sobretudo os crocodilos que se escondem nos rasos. O socorro chega quando o dossel é penetrado por minúsculas manchas azuis, que crescem
em número e tamanho. O ar esfria, a escuridão recua. De repente, o mangue termina e ele entra na luz do sol e em solo seco e sólido.
Outros saíram poucos instantes antes. A alguns metros de distância, um grupo de aborígines sentou-se no chão e acendeu uma fogueira. Lubbock junta-se a eles e
descobre que andaram recolhendo mariscos do mangue. Uns poucos serão comidos enquanto descansam, antes de retornarem a seu acampamento na estreita franja de mata
entre o fim dos manguezais e o início da escarpa. Quando se levantam e partem, Lubbock os segue.
As semanas seguintes são gastas com essas pessoas - pescando, caçando tartarugas, colhendo inhames, mais mariscos. Têm uma rica variedade de alimentos para escolher;
os monturos acumulam-se nas beiras dos rios, e logo serão sepultados pela lama do mangue, com a expansão dos pântanos. Lubbock faz uma viagem de dois dias com eles
até a beira-mar para pegar mariscos e sal. No caminho, desaba uma tempestade; ventos uivantes e chuva fazem o grupo abrigar-se dentro de uma caverna e depois encontrar
inesperadas novidades na praia. São grandes volumes de algas marinhas dentro das quais se escondem águas-vivas e ouriços-do-mar, enquanto os pequenos corpos de cavalos-marinhos
e síngnatos espalham-se pela areia.
Embora essa caça à comida dentro dos mangues do pântano e na beira do mar seja uma nova forma de vida aborígine, os instrumentos de pedra continuam pouco mudados
em relação aos dos seus antepassados, sobretudo simples lascas de quartzo. Alguns novos tipos apareceram, como pontas de osso, e eles tem uma série de artefatos
feitos de material orgânico como cestos trançados e lanças de madeira. Mas só as lascas de pedra sobreviverão nos detritos deixados atrás para os arqueólogos encontrarem.
Lubbock retorna à escarpa, ao platô e aos penhascos onde um dia encontrou os combatentes dinâmicos. A violência continua, mas agora toma mais a forma de batalhas
campais que de disputas homem a homem. Numa dessas batalhas, dois grupos estão frente-a-frente - talvez 50 ou 60 ao todo - armados com lanças farpadas e machados
com cabos. A não ser por um homem com adereço de cabeça que comanda cada grupo, os outros vestem roupas simples, quando vestem alguma coisa. Uma saraivada de lanças
foi atirada e um dos comandantes recebe um golpe fatal no abdome.
Ele continua a cair, mas está destinado a jamais chegar ao chão, assim como as lanças vão permanecer em vôo; essa batalha é outra pintura encontrada nos paredões
de pedra da Terra de Arnhem. Chippindale e Taçon pensam que essa e outras cenas de batalha foram pintadas por volta de 6.000 a.C. As novas pinturas são muito mais
simples que os pares de homens dinâmicos; muitas não são mais que desenhos de traços com círculos por cabeças.
Os novos artistas fizeram mais que reunir grupos inteiros em batalha; também mudaram os animais e adotaram novos estilos artísticos. Peixes, cobras e tartarugas
- animais das terras úmidas - são agora comuns na arte; uns poucos estão pintados à maneira de raios X, que mostra seus órgãos internos. Outra nova característica
são as figuras Yam - pessoas e animais pintados com corpos parecendo tubérculos.
Essa gama de imagística substitui as Figuras Dinâmicas e reflete os alimentos vegetais e animais coletados nos ambientes mais úmidos e quentes do Holoceno. A mudança
de brigas individuais para cenas de batalha sugere que a sociedade também mudou. Quando os arqueólogos olham essas pinturas de guerreiros, lanças e morte de 6.000
a.C. descobrem uma notável ressonância com as práticas de guerra do século XX de grupos aborígines.
Essa guerra foi registrada por Lloyd Warner, um antropólogo que viveu entre os aborígines murngin do nordeste da Terra de Arnhem na década de 1920. Os murngin
viviam da caça e coleta numa paisagem não diferente da reconstituída para 6.000 a.C. Violência e guerra eram endêmicas em sua sociedade; Lloyd Warner estimou que
isso causava cerca de 200 mortes de rapazes todo ano. Descreveu vários tipos, que iam de nirimaoi yolno, lutas um a um entre homens e que raramente resultavam em
alguma baixa, até milwerangel, batalhas campais entre membros de vários clãs acertadas para ocorrer num lugar e tempo determinados, em geral terminando numa violenta
briga com várias baixas.
Grande parte dessas lutas originava-se de disputas por mulheres. Geralmente surgia nirimaoi yolno quando um homem de um acampamento acusava um de outro de ter
sido - ou pelo menos tentar tornar-se - amante de sua esposa. Os dois homens raramente chegavam além de lançar insultos um ao outro, felizes por serem "contidos"
pelos amigos para poderem fingir muita bravata sem correr o risco de machucar-se. Em outra forma de combate - narrup - um homem era fisicamente atacado quando dormia.
Todo o clã do atacante seria responsabilizado e o incidente podia escalar rapidamente para maringo, uma expedição para vingar o assassinato de um parente, ou mesmo
uma milwerangel.
Lloyd Warner afirmou que guerra e assassinato entre os murngin eram uma conseqüência do sistema de casamento deles. Era a poliginia, que permitia aos homens terem
várias esposas; a maioria dos homens de meia-idade dos murngin tinha pelo menos três. Como o número de homens e mulheres murngin era igual, e como as mulheres se
casavam pouco antes da puberdade, havia simplesmente poucas mulheres para os homens jovens se casarem. E assim, nas palavras de Lloyd Warner, ocorria uma "matança
sazonal de rapazes" que haviam passado para a adolescência e estavam prontos para encontrar a primeira esposa. Essa seleção dos jovens e elegíveis era supostamente
do interesse dos membros mais velhos da sociedade, que tinham prazer em encorajar os homens mais jovens a lutarem.
Não há indício direto de que as pinturas de cenas de batalha de 6.000 a.C. na Terra de Arnhem descrevam a vida real; mesmo que o fizessem, nada prova que as batalhas
correspondam às descritas para os murngin ou fossem feitas pelos mesmos motivos. Chippindale e Taçon confiam, porém, em que essa mudança de pinturas de combatentes
individuais para cenas de batalha é de fato um registro histórico e em última análise explicada pela mudança de ambientes da Terra de Arnhem trazidas pelo aquecimento
global.
Ainda não está claro exatamente como as mudanças ambientais, sociais e artísticas se relacionam. Um dos cenários é que o aparecimento de terras úmidas criou nova
diversidade e abundância de alimentos vegetais e animais. Com a melhor nutrição, a população aumentou. Mas as fontes de alimento não se distribuíam igualmente pela
paisagem. Em vez disso, os trechos de rio, bosques, olhos d'água e habitats de animais particularmente lucrativos eram muito localizados. E assim, os grupos se interessaram
em estabelecer e defender territórios que abrangessem esses locais. Fizeram isso em parte por meio de cerimônias e em parte pela guerra. Pode ter sido nessa época
que começaram a surgir os padrões territoriais e divisões lingüísticas historicamente conhecidos dos grupos aborígines da Terra de Arnhem: entre os grupos conhecidos
como jawoyn, gundjeibmi, kunwinjku e murngin. Além disso, a ideologia do Tempo do Sonho de hoje também pode ter origem nessa época de adaptação ao mundo do Holoceno,
como descobrirá Lubbock em seu próximo encontro no platô da Terra de Arnhem.
Lubbock já viu uma variedade de novas pinturas na escarpa, além das cenas de batalha. Incluíam descrições de lagartos, tartarugas e cabaças, que lembram os descritos
em Tempos pré-históricos. Mas agora está diante de uma coisa inteiramente nova: uma estranha criatura de corpo alongado, cabeça parecendo de canguru, ou talvez crocodilo,
e cauda em ponta parecendo uma cobra. Estranhos apêndices pendem do corpo: talvez outros animais, ou uma combinação destes, inhames e lírios. A criatura serpeia
pela superfície da rocha, pintada em vermelho forte e destinada a sobreviver durante muitos milênios. Acabará por ser descrita como a Serpente do Arco-Íris do Tempo
do Sonho aborígine.
A Serpente do Arco-Íris é um dos Seres Ancestrais-chave, conhecida pelos aborígines em todo o continente. Acredita-se que desempenhou um papel fundamental na criação
da paisagem australiana, e é descrita por Paul Taçon como entre as criaturas mitológicas mais poderosas do mundo. Como acontece com outros Seres Ancestrais, sua
forma não foi fixada; podia mudar entre a de uma cobra, um canguru e um crocodilo, e foi muitas vezes descrita como uma combinação de todos três. Durante os dias
de fundação, essa cobra serpeou por todo o país, criando todos os olhos d'água e arroios, abastecendo-os com criaturas e pondo pessoas na paisagem, cada clã numa
área designada. Julgava-se que os arco-íris no céu eram a alma da serpente; quando desapareciam, o Ser retornara aos olhos d'água permanentes onde gostava de ficar.
Taçon e seus colegas acreditam que a idéia da Serpente do Arco-Íris foi inspirada pelo síngnato, trazido para as praias recém-formadas pelos mares turbulentos
do Holoceno Inicial. Quando foram descobertos, os aborígines também viam serpentes fugindo de paisagens inundadas e arco-íris acima após os raios e trovões. Os olhos
d'água agora continuavam permanentemente cheios e leitos de arroios antes secos se tinham tornado rios de rápida correnteza. E assim a Serpente do Arco-Íris e suas
histórias foram adotadas para dar sentido a esse mundo em mudança, à nova paisagem e à espantosa natureza da experiência humana nos primeiros milênios do Holoceno.
Josephine Flood, famosa arqueóloga australiana, acredita que muitos outros mitos aborígines também se relacionam com fatos ambientais no fim da era do gelo. As histórias
mitológicas de uma grande enchente são muitas vezes tão detalhadas e específicas que ela não duvida de que lembrem de acontecimentos reais ocorridos milhares de
anos antes. Muitos mitos contam como as colinas foram separadas do continente e se transformaram em ilhas: a Ilha Mornington no Golfo de Carpentaria de hoje foi
criada por Garnguur, a mulher gaivota que puxou sua jangada de um lado para outro no que fora uma península, a fim de formar um canal para o mar. A Ilha Elcho, hoje
ao largo da costa norte da Terra de Arnhem, resultou do tropeço de um Ser Ancestral que acidentalmente enterrou seu cajado na areia, trazendo a invasão do mar.
No sul da Austrália, havia um disseminado mito sobre a criação da Ilha Canguru, conhecida como Nar-oong-owie pelos aborígines. Fala de Ngurunderi, um grande ser
ancestral que ficou furioso quando suas esposas fugiram. Tendo-as descoberto a atravessar a vau o raso canal que separava Nar-oong-owie do continente, ele "decidiu
castigar as esposas e em fúria ordenou que a água subisse e as afogasse. Com uma terrível precipitação, as águas rugiram e as mulheres foram trazidas de volta ao
continente. Embora tentassem freneticamente nadar contra a maré, estavam impotentes e afogaram-se. Seus corpos viraram pedras e elas são vistas como rochas ao largo
da costa do Cabo Jarvis, chamadas de "Pagens" ou "Duas Irmãs".
Outros fatos ocorridos no fim da era glacial também podem ser lembrados nos mitos do Tempo do Sonho. Uma dessas histórias começa assim:
Há muito tempo, muita gente acampava na confluência dos rios Lachlan e Murrumbidgee. O dia era muito quente e uma neblina subia da planície sem ventos, fazendo o
horizonte dançar, e miragens distorciam a paisagem. Todos jaziam imóveis, descansando no calor. De repente, avistou-se ao longe uma tribo de cangurus gigantes, e
o chefe saltou de pé com um grito galvanizante. O acampamento tornou-se uma cena de desvairada excitação e medo. Pegaram rapidamente as crianças e todos desapareceram
no mato. Naquele tempo, porém, os homens não tinham armas, e eram indefesos diante do inimigo. Os cangurus avançaram implacavelmente sobre eles no meio do mato e
sem piedade esmagaram as vítimas com os poderosos braços. Quando os animais acabaram, poucos da tribo haviam sobrevivido.
A história continua com o chefe criando armas e camuflagem, e usando o fogo para espantar os cangurus. Josephine Flood imagina se tais histórias sobre cangurus gigantes
abrigam lembranças de animais extintos outrora temidos e caçados. Uma outra história conta que férteis lagos secaram e tornaram-se estéreis salinas - outro disseminado
fato que ocorreu no fim da era do gelo.
Se Josephine Flood está correta, os aborígines passaram histórias de geração em geração sobre mudanças no nível do mar, na megafauna e na secagem de lagos interiores
durante 10, talvez mesmo 20 mil anos. Essas histórias podem ter começado como versões factuais e aos poucos foram embutidas na mitologia do Tempo do Sonho. Ou talvez
- como sugere o síngnato - as transformações ambientais ocorridas quando a era do gelo chegou ao fim tenham dado origem não apenas a Serpentes do Arco-Íris, mas
ao próprio Tempo do Sonho.
Em 6.000 a.C., a Grande Austrália não mais existe; um sétimo de sua terra, cerca de 2,5 milhões de quilômetros quadrados, foi inundado pelo mar. A Tasmânia, antes
uma península no sul, é agora a ilha cujos aborígines perderam todo contato com os do continente, separados dele pelas ferozes águas do Estreito Bass. Os povos da
Nova Guiné, porém, permanecerão em contato com os da Austrália do outro lado do mais benigno Estreito de Torres, pontilhado de ilhas.
Para chegar à Nova Guiné, John Lubbock viaja para leste e depois norte, ao longo da costa do Golfo de Carpentaria até a Península do Cabo York. Essa viagem o leva
pela linha costeira de manguezais, lagoas de água doce, estuários e águas rasas. Ele parte quando começa a estação seca em maio, uma época em que os rios e lagoas
estão secando e as pessoas que encontra vivem em grupos pequenos e nômades. Quando a seca se estabelece, eles se congregam em torno das poucas fontes de água permanentes.
Lubbock descobre que coletam alimentos vegetais, notadamente as sementes e tubérculos de lírios, e caçam wallabies espantando-os das bordas da mata que se espalha
para o interior. Com o passar do ano, o clima se torna cada vez mais quente e sufocante. As árvores perdem todas as folhas e o mato baixo é queimado pelos aborígines.
Finalmente, o clima explode em raios e tempestades, que ocorrem todos os dias da semana.
Já é outubro. O chão e os galhos nus rebentam em novos brotos; rios secos enchem-se de água e logo estouram as margens e inundam grande parte do terreno baixo.
Os aborígines que Lubbock encontra já estabeleceram substanciais acampamentos em terreno elevado. Esperaram as primeiras chuvas e recolheram grandes folhas de casca
de eucalipto, que se soltaram assim que a seiva começou a correr. Com essas folhas de casca de árvore, envoltas sobre galhos, constroem cabanas cônicas. Também usam
as cascas para fazer canoas, essenciais para viagem, agora que parte tão grande da paisagem está inundada. Como a dos aborígines, a dieta de Lubbock muda, à medida
que caranguejos, mariscos e ovos de pássaros se tornam disponíveis. A caça continua, mas os grupos que espantam wallabies são substituídos por indivíduos que tentam
tocaiar e matar cangurus. Eles sabem que se falharem - o que geralmente acontece - haverá bastante alimento vegetal e caça pequena no acampamento, enquanto o sucesso
trará muito louvor e status.
Em março seguinte, as comidas vegetais já se tornaram abundantes. No caminho, Lubbock ajuda a colher inhames, tubérculos e uma multidão de sementes em bandejas
de casca de árvore, e depois a construir caniçadas e armadilhas para peixes quando as águas da inundação começam a recuar. Ao chegar ao fim a estação úmida, os acampamentos
se desfazem e as pessoas se dispersam em canoas pelos cursos d'água, sabendo que dentro de semanas as chuvas terão acabado por mais um ano. A essa altura, Lubbock
chegou à ponta do Cabo York e está pronto para cruzar o Estreito de Torres.

 


37
Porcos e Pomares nas Montanhas
A criação da horticultura tropical nas montanhas da Nova Guiné,
20.000 - 5.000 a.C.
Três aborígines sentam-se diante de John Lubbock, remando com habilidade sua canoa para as correntes e evitando os recifes. Ele se recosta, relaxado; a mão risca
a água, e gaivotas deslizam no brilhante céu azul acima.
Lubbock cruza o recém-formado estreito que separa a extremidade mais ao norte da Austrália da costa sul de Papua Nova Guiné. No LGM, essa extensão de água de 500
quilômetros de largura era de matagais, com campos de caça para os aborígines da era do gelo. Em 6.000 a.C., data da viagem clandestina de Lubbock na canoa, níveis
crescentes do mar inundaram a planície de Arafura e romperam o último istmo restante da terra. Só as colinas escaparam, sobrevivendo como mais de 100 ilhas espalhadas
pelo Estreito de Torres. Algumas têm suas próprias colinas, outras linhas costeiras rochosas cercadas de manguezais, e outras ainda são meros atóis de areia.
As primeiras ilhas que Lubbock alcançou são conhecidas hoje como Muralug, Moa e Badu. Ele as encontrou habitadas por pessoas com estilo de vida semelhantes aos
que viu no Cabo York. Mas quando viajou mais para o norte, as ilhas foram-se tornando cada vez menores e não tinham sinais de vida humana. Algumas permaneceram desabitadas
até hoje; outras foram colonizadas por pessoas da Nova Guiné, embora seja difícil dizer quando, uma vez que a pesquisa arqueológica tem sido muito limitada. Certamente
estavam ocupadas em 1898 d.C., ano em que o antropólogo de Cambridge A.C. Haddon chegou ao Estreito de Torres para fazer uma pesquisa do seu povo. Sua monumental
obra em seis Volumes tornou-se um registro inestimável de estilos de vida aborígines tradicionais.
Os estudos de Haddon apoiaram-se nas primeiras observações científicas do Estreito de Torres, feitas em 1770 por Joseph Banks, que trabalhou como naturalista do
navio do Capitão Cook, o Enterprise. Antropólogos, geólogos e, mais recentemente, o arqueólogo David Harris, do University College em Londres, desenvolveram o trabalho
de Haddon. Desde 1974, Harris esteve reconstituindo os estilos de vida dos ilhéus do Estreito de Torres na época da viagem do Capitão Cook e da visita de Lubbock
- 6.000 a.C. - tão logo após a formação das ilhas.
Harris descobriu que, enquanto as pessoas encontradas por Banks e Haddon nas ilhas maiores do sul eram caçadores-coletores, as mais ao norte eram agricultores,
ou mais precisamente horticultores. Todo ano queimavam a mata e plantavam inhame, batata-doce e taro - safras de raízes tropicais ainda básicas na dieta de grande
parte do sudeste asiático hoje. Capões de banana, manga e coqueiros também eram cuidados em tais hortas. Colhiam-se comidas vegetais, especialmente dos manguezais
que contornavam as ilhas, enquanto se caçavam dugongos pela carne e a gordura.
A intensidade da horticultura encontrada por Harris era mínima, em comparação com a observada pelos primeiros europeus a visitarem a Nova Guiné. Nas terras baixas
e altas, vastas áreas de florestas tinham sido abertas e transformadas em hortas para safras de raízes. Em completo contraste com os acampamentos transitórios dos
caçadores-coletores do norte da Austrália, os primeiros exploradores europeus encontraram aldeias densamente povoadas, governadas por chefes poderosos, cuja riqueza
se media pelo número de porcos que possuíam, e que regularmente guerreavam. Daí o fino Estreito de Torres dividir dois mundos diferentes: caçadores-coletores no
sul e agricultores da Nova Guiné no norte.
Por que os aborígines australianos não adotaram a agricultura? O Capitão James Cook fez essa pergunta quando desembarcou na ilha Possession, ao largo do Cabo York,
em 1770, e refletiu que "os nativos nada sabem de cultivo, e "quando se pensa na proximidade entre esta região e a Nova Guiné... que produz cocos e muitos frutos
próprios para o sustento do homem, parece estranho que não tenham sido há muito tempo transplantados para aqui". Para ele, e muitos outros antropólogos posteriores,
os aborígines pareciam muito atrasados por terem permanecido caçadores-coletores quando podiam ter adotado estilos de vida "próprios para o sustento do homem".
Por estudos dos aborígines, tornou-se claro que não se podia explicar sua dedicação à caça e à coleta com a falta de conhecimento agrícola, pois sabiam bem como
cultivar plantas. Quando os do Cabo York colhiam inhame selvagem, por exemplo, muitas vezes tinham o cuidado de deixar partes dos tubérculos atrás, ou mesmo as replantavam
para garantir o abastecimento no ano seguinte. Além disso, substanciais contatos comerciais entre os aborígines e os ilhéus do Estreito de Torres haviam posto os
caçadores-coletores em contato direto com os agricultores. Logo, por que a agricultura não se disseminara da Nova Guiné para a Austrália, como fizera do oeste da
Ásia para a Europa?
Uma resposta foi fornecida por Peter White, da Universidade de Sydney, em 1971: os caçadores-coletores australianos "estavam simplesmente em situação demasiado
boa para se preocuparem com agricultura". Nessa data, as opiniões sobre a agricultura tinham mudado muito em relação às defendidas por James Cook, e na verdade por
acadêmicos até final da década de 1960. A opinião de que a agricultura era um passo inevitável no caminho da civilização, que podia ser dado em toda oportunidade,
fora derrubada. Acadêmicos ocidentais que viveram com caçadores-coletores na Austrália e na África concluíram que tinham estado entre o que o antropólogo Marshall
Sahlins declarou ser a "sociedade afluente original".
Descobriu-se que esses caçadores-coletores não trabalhavam mais que algumas horas por dia, eram livres dos males causados pelas exaustivas aradura e colheita e
não estorvados pelas tensões sociais e violência encontradas em comunidades agrícolas densamente povoadas. E assim, a pergunta que Peter White e seus colegas faziam
em 1970 não era porque alguns caçadores-coletores "deixaram" de adotar a agricultura, mas o que obrigara os outros a fazê-lo, quando tinha conseqüências tão desastrosas
para sua qualidade de vida.
Lubbock tem sua primeira visão da Nova Guiné de longe - baixadas verdes sob nuvens claras que se definem em montanhas de aparência fantasmagórica. Os companheiros
que não o vêem ficam numa das ilhas e ele segue remando sozinho para a linha costeira bordejada de manguezais. Uma larga boca de rio leva-o à própria Nova Guiné.
Por alguma distância o rio continua largo, serpeando em finas curvas embaixo de margens cobertas de mangues, até que, após uma hora de remo, se divide em dois. Um
braço é de água cor de chocolate, indicando ser um rio de floresta que surge em terras baixas, e o outro é branco como leite, revelando que suas águas correram antes
sobre calcário, e, portanto tem nascente montanhesa. Para encontrar assentamento humano, Lubbock deve seguir este último. Embora com toda probabilidade existissem
assentamentos substanciais nas baixadas da Nova Guiné em 6.000 a.C., os arqueólogos ainda não os encontraram. Assim começa a exploração das baixadas por Lubbock.
A primeira exploração européia na verdade só ocorreu na década de 1930. Expedições anteriores à Nova Guiné, como a do Sindicato de Ornitólogos Britânicos chefiada
por A.F.R. Wollaston em 1910, acreditaram que se podia encontrar outras "novidades" além de pássaros exóticos acima de 1 mil metros. Mas não tinham idéia de quais
novidades poderiam ser; tampouco sabiam que existiam férteis vales entre as montanhas, julgando que uma única cadeia de montanhas atravessava o meio da ilha.
O primeiro contato europeu com os montanheses da Nova Guiné que viviam dentro desses vales foi de missionários luteranos alemães em 1919. Eles mantiveram sua descoberta
em segredo por receio de atrair rivais no ramo de salvação de almas humanas: os batistas, anglicanos, wesleyanos e, a mais temida oposição, os católicos romanos
franceses. Foi a busca de ouro de garimpeiros australianos na década de 1930 que trouxe os montanheses da Nova Guiné ao conhecimento público. Em 1935, Jack Hides
penetrou num dos vales entre as montanhas como seu colega garimpeiro Jim O'Malley. Depois escreveu que "em cada encosta tinha quadrados cultivados, e pequenas colunas
de fumaça que subiam no ar parado revelaram-nos as casas das pessoas desta terra. Eu nunca linha visto nada mais bonito. Além de tudo ficavam as alturas de uma poderosa
cadeia de montanhas que faiscava em alguns pontos com as cores do sol poente".
A jornada de Lubbock também leva às montanhas, mas muito antes do início desse intenso cultivo. Com a continuação de sua viagem fluvial, pequenas árvores, das
quais ele colhe frutas frescas, substituem os manguezais. Quando o rio corre reto, ele tem vislumbres das montanhas ao longe; mas tais vistas infreqüentes logo se
perdem quando o rio se estreita mais e começa a serpear entre árvores enormes que tapam tudo, com exceção de uma fina faixa de céu.
A viagem torna-se monótona; a vegetação da beira do rio transforma-se em mirrado matagal e troncos podres projetam-se de íngremes margens lodosas. Nos dias bons
o ar é rançoso; na maioria dos outros fede a decomposição orgânica. Chove freqüentemente, e as sanguessugas são implacáveis na busca do sangue de Lubbock. A compensação
por essas provações chega nas ocasionais visões de pássaros exóticos, em especial as plumas grandiloqüentes de uma ave do paraíso. Quando o rio começa a subir, os
pássaros exóticos são substituídos por outras maravilhas naturais: iguanas tomando sol em troncos; abelharucos e andorinhas mergulhando em enxames de mosquitos amarelo-vivo;
pés de fetos e trepadeiras floridas.
Lubbock, porém, está mais interessado na primeira indicação de que outro tipo de morador da floresta se encontra próximo. Algumas das árvores caídas foram evidentemente
cortadas com machados de pedra; outras, queimadas. Ele passa por uma canoa de tronco escavado afundada na lama do rio. E há trilhas - pequenos sendeiros onde o mato
foi cortado ou simplesmente pisado. Algumas cruzam o rio, outras correm paralelas por curtos trechos antes de desviar-se para dentro da floresta. Algumas devem ser
de animais, mas pés humanos marcaram muitas outras.
Lubbock poja a canoa, deixa o rio e começa a seguir uma dessas trilhas rumo ao que hoje chamamos Vale Wahgi. O ar continua quente, úmido e rançoso; a luz é sombria
e assume um tom esverdeado. Só em raras ocasiões é o dossel incompleto, espadanando sol no chão da floresta. Novos odores sobem - alguns parecendo madressilva, outros
frutos podres. E novos sons, talvez os mesmos pássaros e animais que ele ouviu antes, mas agora limitados e abafados pela confusão de árvores. Talvez vozes humanas.
A trilha continua, pela floresta, ao longo de margens de rios, e segue para cumes dos quais ele vê a imensa vastidão da floresta subindo as colinas e desaparecendo
sob pesadas nuvens.
Abaixo dessas nuvens, a floresta sobe até 4 mil metros acima do nível do mar. Em 6.000 a.C., só recentemente atingiu esse nível; durante o LGM, baixas temperaturas
é reduzida chuva mantiveram as nuvens abaixo de 2 mil 500 metros. Em vez de floresta montanhesa, havia matagais abertos com dispersos arbustos e samambaias. As geleiras
formaram-se nos cumes e estenderam-se pelos vales montanheses mais altos.
Os matagais podem ter sido bons territórios de caça. Conhecem-se dois sítios perto da linha das árvores, mas nenhum revela muita coisa sobre o que as pessoas faziam
nas montanhas. Kosipe tinha artefatos espalhados, incluindo machados, a 2 mil metros acima do nível do mar, alguns lá deixados desde 27.000 a.C. Densos capões de
árvores frutíferas e de nozes ainda crescem próximo, sugerindo que Kosipe pode ter sido ocupado por pessoas em expedições sazonais para colher produtos vegetais.
Um pouco mais abaixo, 1 mil 720 metros, encontra-se a caverna Nombe, que foi esporadicamente ocupada entre 27.000 e 12.500 a.C. Junto com artefatos de pedras, encontraram-se
ossos de animais que viviam no chão e nas árvores. Os ocupantes humanos de Nombe parecem ter dividido o tempo com o tilacino, o cão selvagem também conhecido como
tigre da Tasmânia. Encontraram-se igualmente os ossos de vários animais da floresta, mas ainda não está claro se eles, e outros, foram presa de ocupantes humanos
ou animais.
Com a chegada do acentuado aquecimento global em 9.600 a.C., as árvores espalharam-se acima de 3 mil metros, seguindo na esteira de arbustos que já tinham invadido
as maiores altitudes. Ao contrário da tendência global, o clima parece ter-se tornado menos sazonal, em vez de mais. Dentro de mais dois milênios, as florestas eram
muito parecidas com as que Lubbock viu em sua viagem ao Vale Wahgi, e com os que se vêem hoje.
As partes superiores desse vale ficam cerca de 20 quilômetros a oeste do Monte Hagen, no centro de Papua Nova Guiné. Os missionários chegaram pela primeira vez
em 1933 e encontraram uma série de pequenos impérios governados por chefões ditatoriais. A riqueza e poder deles eram medidos pelo número de porcos, mulheres e bens
de contas que possuíam, adquiridos por um complexo sistema comercial entre tribos conhecido entre os antropólogos como escambo Moka. As mulheres e os homens de baixa
condição trabalhavam em hortas, cultivando safras de inhame, batata-doce e taro. A guerra entre aldeias era endêmica, um meio pelo qual os chefões ampliavam e consolidavam
seu poder.
Os missionários, seguidos de perto pelos garimpeiros em busca de ouro e autoridades de governos, foram tratados como pessoas do mundo dos espíritos. Forneciam
um suprimento aparentemente ilimitado de desejados machados de aço e conchas marinhas. Ao fazerem isso, solaparam o tradicional sistema cerimonial de escambo do
qual dependiam os chefões para assegurar sua riqueza. A guerra também foi eliminada e os administradores europeus começaram a usurpar a autoridade dos chefes tradicionais.
Em conseqüência, quando o antropólogo Andrew Strathern foi viver com a tribo kawelka no Alto Vale Wahgi, no início da década de 1960, para fazer um estudo clássico
da sociedade de chefões, o estilo de vida tradicional já fora substancialmente alterado pelo contato com o Ocidente.
Por volta dessa época, membros da tribo kawelka retornaram à parte do Vale Wahgi conhecida como Pântano Kuk. Tinham abandonado essa terra em 1900, após a derrota
numa luta tribal, e todos os sinais de cultivo anterior se achavam cobertos por um denso tapete de mato.
O Pântano Kuk fica 1 mil 500 metros acima do nível do mar, e parece hoje uma extensa área de matagal quase sem árvore alguma. Ao norte e a leste do pântano há
um cume alto e estreito conhecido como Ep, coberto de mato muito mais baixo e as únicas árvores da região. Não fazem, porém, parte da floresta original do Vale Wahgi,
são uma leva secundária que ocorreu depois que a área fora inteiramente desmatada para a agricultura. Encontram-se pântanos ao sul, e baixas colinas separadas por
terreno drenado a oeste.
A tribo kawelka iniciou sua recolonização do Pântano Kuk criando hortas nas terras secas em volta; dentro de três anos, a confirmação de seus direitos territoriais
por tribos vizinhas, e o aumento do número de seus membros, levaram-nos a recuperar o próprio pântano, abrindo grandes valas de drenagem. Mas o governo tomou grande
parte do Pântano Kuk em 1969 para suas obras, incluindo uma estação de pesquisa agrícola, e inibiu a expansão kawelka. Foram as escavações nessa estação de pesquisa
na década de 1970, feitas por Jack Golson, da Universidade Nacional da Austrália, que revelaram uma história muito mais antiga de agricultura nas montanhas da Nova
Guiné.
John Lubbock chega a uma clareira acima do Pântano Kuk em 5.500 a.C., a trilha levando-o às colinas a oeste da própria área pantanosa. A paisagem é bem diferente
do matagal aberto que será encontrado pelos missionários e antropólogos do século XX. A floresta que veio crescendo e evoluindo nessa altitude durante muitos milhares,
provavelmente milhões, de anos permanece em grande parte intata, após sobreviver por todo o LGM. Mas nas terras secas em torno do pântano há clareiras onde a floresta
já desapareceu; dentro de algumas destas, estabeleceram-se arbustos e mato, que criaram um emaranhado de vegetação rasteira. As árvores na clareira de Lubbock só
recentemente foram abatidas - tocos calcinados sugerem o uso de machado e fogo. Como resultado, a luz do sol inunda as poucas árvores e plantas que restam.
Exatamente quando Lubbock se agacha para examinar uma dessas plantas, tem a atenção atraída para uma coisa mais impressionante - um porco. Um porco gordo, pardo
e peludo, com presas brancas, dormindo num buraco que ele mesmo fez. Lubbock aproxima-se com cuidado. O bicho se mexe e ele pára. Grunhindo, o porco levanta-se e
Lubbock primeiro fica espantado com o seu tamanho, e depois com medo. O animal adianta-se, fareja e torna a grunhir; tenta dar outro passo, mas é detido por uma
corda - uma corda de fibras de casca de árvore trançadas que o amarra a uma estaca. O porco puxa, mas sem muita força, e depois se vira, despreocupado, para voltar
a espojar-se.
A borda da clareira dá para O outro lado do pântano, onde pessoas trabalham, as primeiras que Lubbock vê desde que atravessou de canoa o Estreito de Torres.
Uma área de cerca de meio quilômetro da floresta já foi aberta e está agora coberta por um mosaico de plantas diferentes. Os homens e mulheres, dez ou doze ao
todo, cavam com pás de madeira. Têm a pele escura e estão nus, a não ser por curtas saias feitas de folhas e mato. Um monte comprido e baixo de barro cinzento assinala
a trilha de seu trabalho, uma vala reta que atravessa a terra úmida dos pântanos na extremidade sul até um rio que corre na margem norte.
Lubbock desce a encosta e caminha entre as plantas, descobrindo que muitas crescem em ilhas circulares entre uma rede de canais, eles próprios cheios de plantas
folhudas. Bananeiras foram plantadas nas ilhas, junto com vários outros tipos de plantas de folhas verdes conhecidas por Lubbock de sua viagem por florestas. Entre
estas há outra planta tipo árvore que ele também viu na floresta, mas nunca tão grande e saudável. Tem grosso talo, ou tronco nos espécimes maiores, do qual folhas
brotaram e caíram em espiral, deixando uma aparência de saca-rolhas. Raízes brotam do próprio talo e parecem escorar as plantas; na verdade, em alguns dos espécimes
maiores, a própria base do talo já se decompôs inteiramente.
As plantas nas valas, crescendo em condições muito mais úmidas, são dominadas por um tipo que tem folhas grandes, em forma de coração, de cor verde-clara; muitas
ainda não deixaram a ponta de compridos talos. Lubbock quebra um broto novo e rola-o entre os dedos, espremendo a seiva; tem um cheiro acre, que arde nas narinas
e na pele.
Uma vala de irrigação está sendo cavada; muito maior que as que definem as leiras elevadas, corre reta por várias centenas de metros e destina-se evidentemente
a conduzir um fluxo contínuo de água. A escavação é trabalho árduo, pois a vala já fica à altura da cintura, o barro pesado para retirar e a umidade sufocante. O
termo "pá" é uma descrição bondosa para os instrumentos usados, pois são pouco mais que varas achadas. Lubbock logo está usando uma delas apenas para deslocar o
barro, que depois retira com as mãos nuas.
Enquanto a maioria das pessoas cava, outras transportam parte do barro a ilhas, para elevá-las mais alto que os canais em volta. Outras ainda capinam em tomo das
plantas, retirando folhas doentes, matando alguns dos insetos que encontram e deixando outros. Uma mulher atravessa entre as plantas nos canais e colhe folhas novas.
Faz isso com muito cuidado, para não prejudicar as plantas, e parece inteiramente indiferente à irritação que Lubbock sentiu quando tocou folhas semelhantes.
Após algumas horas, decide-se que o trabalho do dia foi concluído. Lubbock segue atrás dos outros trabalhadores que se encaminham para o rio, para lavar a lama
dos corpos e saciar a sede. E então todos seguem uma pequena trilha por entre as árvores até chegar a outra clareira. Esta tem pelo menos vinte cabanas, cada uma
feita com galhos curvados em domos e cobertos de palha de bananeira. Cercas protegem um trecho de plantas cultivadas e um chiqueiro onde se mantém um porco. Uma
fogueira, entre várias na aldeia, fumega, e crianças correm para receber o grupo que retorna. Os cestos de folhas colhidas no Pântano Kuk são passados a uma velha
que se senta junto à fogueira e o grupo dispersa-se para descansar.
Nessa noite, a fogueira está em chamas de novo e pelo menos trinta pessoas se reúnem para comer as folhas apanhadas no campo e preparadas pela velha. Foram trituradas,
cobertas de suco de frutas, enroladas em folhas de bananeira e cozidas sobre pedras quentes.
*
As escavações de Golson no Pântano Kuk descobriram traços de antigas valas de drenagem, ocos e buracos de estacas no fundo e nos lados das modernas valas de drenagem
da estação de pesquisa agrícola de Kuk. Trabalho posterior expôs outras dessas e mostrou que as mais velhas datavam de cerca de 8.200 a.C., com outro conjunto construído
cerca de 3 mil anos depois. Esse segundo conjunto de valas, aquele em que Lubbock trabalhou, consistira de longos canais de irrigação, de até dois metros de profundidade,
e uma rede de canais muito mais rasos, criando um labirinto de pequenas ilhas. Ainda mais tarde, por volta de 2.000 a.C., as valas se tornaram mais numerosas, distribuídas
de forma mais sistemática e cobrindo uma área maior.
Golson acredita que essas valas oferecem indícios da mais antiga atividade agrícola nas montanhas - os primeiros estágios no desenvolvimento das sociedades de
grandes homens que seriam encontradas no século XX. Não está claro, porém, exatamente que tipo de agricultura - se algum houve - foi tentado em 5.500 a.C., devido
à ausência de restos de plantas, artefatos e vestígios de assentamento. Mas os solos são muito reveladores.
Na base da mais funda das valas modernas há uma densa turfa, criada por muitos milênios de plantas decompostas na bacia. Alguns dos ocos e buracos de estaca foram
feitos nela e depois enchidos com o barro cinzento que cobria toda a área. Essa argila pareceu formar-se rápido, 10 centímetros depositados a cada milênio entre
8.200 e 5.500 a.C. Golson acredita que o barro seja o resto de solo da área de terra seca em volta do pântano erodida na bacia depois que as primeiras clareiras
desestabilizaram os solos. Ele sugere que os ocos embaixo e em cima do barro poderiam ser os chiqueiros de porcos, pois parecem exatamente os criados quando os animais
são amarrados a estacas.
Além de bananas nativas, traços microscópicos das quais restaram no solo, só se pode imaginar as plantas cultivadas no Pântano Kuk. A batata-doce, atualmente a
safra mais importante na Nova Guiné, certamente não estava presente, pois só chegou à ilha há três séculos. O taro é o candidato mais provável - a planta dentro
dos canais de drenagem que queimou as mãos de Lubbock. Não se encontraram restos de taro nas escavações de Golson, mas pode-se explicar isso com a má preservação.
Julgava-se antes que foi uma planta introduzida, após ser cultivada primeiro na Indonésia. Mas agora parece mais provável que tenha sido nativa da Nova Guiné e independentemente
domesticada na Ilha. É uma das mais disseminadas safras tropicais hoje, e era uma planta-chave cultivada pelos montanheses da Nova Guiné quando encontrados pela
primeira vez na década de 1930. Suas folhas e talo subterrâneo, ou cormo, podem ser usados como legumes. Embora tolere altas altitudes, o taro precisa de muita água
para vicejar, e assim talvez seja o melhor candidato para as plantas cultivadas no Pântano Kuk.
Três outros candidatos prováveis são inhame, sagu e pandano - as plantas com talos em forma de saca-rolhas. Todas três foram usadas em formas selvagens pelos caçadores-coletores
do norte da Austrália e como plantas cultivadas pelos montanheses da Nova Guiné. Capões de pandano, também conhecido como pinheiro parafuso, eram ciosamente guardados
e mantidos em tempos recentes, pois proporcionavam substanciais quantidades de frutos. Uma ampla gama de outras plantas de folhas verdes, incluindo cana-de-açúcar,
poderia facilmente ter sido cultivada no Pântano Kuk - plantas outrora colhidas das florestas e pântanos e agora irrigadas, arrancadas e talvez transplantadas de
outras partes.
Exatamente como para a mata em torno de Ain Mallaha em 12.000 a.C. e o matagal em torno de Guilá Naquitz em 8.000 a.C., o termo "horta selvagem" é a mais apropriada
descrição para o Pântano de Kuk em 5.500 a.C. O uso da palavra "agricultura" para as descobertas de Golson é provavelmente impróprio para o lugar e a época; as hortas
selvagens do Pântano Kuk constituíam uma forma de coleta de planta sem radical rompimento com o passado de caça-e-coleta. Na verdade, a intervenção na floresta pode
remontar ao tempo da primeira chegada humana à Nova Guiné.
Apesar disso, há ainda a questão do que motivou as pessoas a empreenderem o cultivo nas terras úmidas em vez da simples coleta. Pode ter ocorrido que uma população
crescente fosse incapaz de assegurar comida suficiente apenas da floresta em terra seca. É provável que as terras úmidas dessem produções muito maiores - mas só
depois de substancial investimento inicial em trabalho para secar a terra. E, no entanto, como descobrimos quando pensamos na origem do cultivo de abóbora no Vale
de Oaxaca, no México, não há indício de que sugira pressão populacional; na verdade, não temos indício algum sobre os níveis de população da Nova Guiné antes da
década de 1930.
Quando Kent Flannery enfrentou esse dilema, sugeriu que o povo de Guilá Naquitz, de Oaxaca, talvez estivesse tentando tornar a disponibilidade de alimentos vegetais
mais confiável. Isso oferece a explicação mais eficaz para o investimento feito na derrubada de árvores e escavação de valas no Pântano Kuk, e supostamente em outras
partes nas montanhas e baixadas da Nova Guiné nessa data. É provável que o resultado tenham sido localidades espalhadas por toda a ilha, onde grandes safras de alimentos
vegetais podiam ser asseguradas em tempos específicos do ano. Essas localidades permitiriam a grupos normalmente dispersos reunir-se e passar tempo juntos. Portanto,
a motivação para a drenagem dos pântanos pode ter sido tanto por causas sociais quanto nutricionais - exatamente como o cultivo de trigo selvagem nas vizinhanças
de Göbekli Tepe no sudeste asiático em 9.500 a.C.
A mudança de caçadores-coletores da Nova Guiné que também cultivavam plantas para horticultores e coletavam alimentos selvagens pode ser atribuída aos porcos que
Lubbock viu espojando-se no Pântano Kuk. Esse animal teve de ser introduzido na Nova Guiné da Indonésia, onde ou fora domesticado ou se espalhara já domesticado
de uma fonte original na China. Embora os porcos sejam bons nadadores, a travessia mais curta para a Nova Guiné, no nível mais baixo do mar, teria sido de quase
100 quilômetros, e, portanto, eles tiveram de ser transportados de barco.
Alguns arqueólogos têm certeza de que tais porcos se achavam presentes na Nova Guiné em 6.000 a.C., em vista de ossos deles encontrados cm depósitos de cavernas
que se acredita terem pelo menos essa idade. Na verdade, em um caso se propôs uma data de 10 mil anos. Mas pelas poucas datas de radiocarbono disponíveis, a mais
antiga presença do porco é de uns meros 500 anos atrás.
Uma vez presentes na ilha, em 6.000 a.C. ou em tempos muito mais recentes, os porcos se tornaram um estorvo, senão uma séria praga, para os que cultivavam plantas.
Selvagens ou domésticos, também gostavam de muitas das plantas nativas da floresta - e hortas selvagens. Todas, quer dizer, com exceção do taro, por causa de suas
toxinas; mas os porcos, quando fuçavam nas valas, poderiam ter devorado mesmo essas plantas. E assim os cultivadores teriam tido necessidade de impor uma barreira
entre os domínios da natureza e a cultura humana, cercando suas hortas. Essas barreiras físicas também podem ter criado uma barreira mental entre caçadores-coletores
e horticultores, com as pessoas cercando-se num ou noutro domínio.
Nos dias seguintes, Lubbock permanece no Pântano Kuk, ajudando a completar as valas de drenagem e capinando em torno do taro, bananeiras e pandano. Então decide
que é hora de partir: com a passagem de 5.500 a.C., sua jornada pela pré-história australiana chegou ao fim. Não muito depois, os próprios aldeões dispersam-se pelas
colinas e retomam sua caça e coleta de alimentos selvagens. Retornarão ao Pântano Kuk quando as bananas estiverem maduras e os cormos do taro prontos para desenterrar.
No momento, estão aliviados por partir - viver num só lugar não está em sua natureza, e não estará por mais outros poucos milhares de anos.
Num dia sem nuvens, Lubbock sobe as encostas do Monte Hagen, transpondo a linha de árvores para o prado montanhês. De um penhasco, olha para leste e vê o Oceano
Pacífico. Há grandes ilhas próximas, as que serão conhecidas como Arquipélago Bismarck, e espalhadas no horizonte, as futuras Ilhas Solomon.
Há pessoas nessas ilhas, e muito provavelmente em barcos viajando entre elas, A travessia marítima para as Solomon foi feita primeiro num tempo tão distante quanto
30.000 a.C., embora viagens mais longas no Pacífico não fossem tentadas por mais vários milênios. As viagens entre as ilhas devem ter sido mais fáceis quando os
níveis do mar baixaram no LGM. Durante esse tempo, um pequeno marsurpial que subia em árvores, conhecido como falánger, se tornara outro novo ocupante. Não está
claro se foi levado intencionalmente para abastecer as ilhas com caça selvagem ou se chegou como "clandestino". Mas os arqueólogos encontraram seus ossos nas cavernas
da Nova Irlanda, junto com artefatos de pedra dos caçadores da era do gelo.
Lubbock sobe mais alto até que outro penhasco oferece uma vista do sul: mais ilhas, o Estreito de Torres, e depois a Austrália. Ele levou 12 mil anos para viajar
os 6 mil quilômetros da Caverna Kutikina na Tasmânia até onde está agora. As lembranças da caça ao wallaby e um enterro ao luar, de desertos e manguezais, de combatentes,
Serpentes do Arco-Íris e viagens de canoa por rios infestados de sanguessugas estão tão claras em sua mente quanto o céu é brilhante e azul. Deseja poder ter tempo
de subir as montanhas do leste da Austrália, cruzar o deserto do oeste, demorar mais com os pintores da Terra de Arnhem e descobrir se o Diprodotonte andou de fato
pastando nas matas do rio Murray. Após mais uma hora de caminhada, aproxima-se do cume e tem vista para norte c leste. Nessas direções estão não apenas a Indonésia,
a China e o Japão, mas também o início de outra viagem pela história humana.

38
Solitário em Sundaland
Caçadores-coletores nas florestas tropicais do sudeste asiático,
20.000 - 5.000 a.C.
Em julho de 1971, Manuel Elizalde, membro do governo de Ferdinand Marcos responsável pelas minorias nacionais nas Filipinas, fez um anúncio incrível. Os "tasaday",
um grupo de caçadores-coletores moradores em cavernas, que usavam instrumentos de pedra, fora descoberto vivendo em completo isolamento do mundo moderno na floresta
de Cotabato, no sul do arquipélago. Logo seguiu-se um informe na revista National Geographic, intitulado "Primeiro Vislumbre de uma Tribo da Idade da Pedra", ilustrando
o estilo de vida desse povo com brilhantes fotos de mulheres de seios nus e saias de folhas de orquídeas.
Durante um ano e meio, os tasaday tornaram-se celebridades nos meios de comunicação. Comboios de jornalistas, fotógrafos, políticos e cientistas fizeram badaladas
visitas às suas cavernas, tudo sob estrita supervisão de Elizalde. Os jornais estamparam suas histórias, escreveram-se livros e fizeram-se filmes sobre eles. Como
os delicados e pacíficos tasaday, vivendo em completa harmonia com a natureza e uns com os outros, eram a antítese da vida em outras partes do sudeste asiático,
tal bajulação não surpreendia. À distância de uma simples pedrada do outro lado do Mar da China, os Estados Unidos bombardeavam os vietnamitas.
Uma voz questionou a autenticidade dos tasaday: a do antropólogo filipino Zeus Salazar. Sua contestação foi imediatamente eliminada e ele impedido de visitar o
povo tasaday. Em 1972, o acesso a eles foi completamente proibido, quando o Presidente Marcos criou uma reserva florestal especial para sua proteção. Prometiam-se
longas sentenças de prisão para qualquer um que se atrevesse a entrar.
Talvez se possa desculpar o fato de que muitos arqueólogos tenham ficado tão fascinados quanto os jornalistas pela descoberta de pessoas da Idade da Pedra nas florestas
do sudeste asiático. A arqueologia dessa região - a Península da Malásia e as ilhas da Indonésia - entre 20.000 a.C. e 5.000 a.C. consiste quase inteiramente de
artefatos de pedra lascada. Como estão entre os menos impressionantes instrumentos feitos por seres humanos modernos, os arqueólogos se referem polidamente a eles
como "formas não padronizadas". Em vista da natureza não informativa desses instrumentos, os tasaday pareciam oferecer uma oportunidade imperdível de ver não apenas
como tinham sido usados, mas toda a panóplia da própria Idade da Pedra.
Os arqueólogos encontraram instrumentos de pedra dentro de cavernas, muitas vezes profundamente enterrados sob múltiplas camadas de estéreo de morcego, teto desabado
e terra antiga. A grande maioria não passa de pedras das quais se retiraram lascas com a evidente intenção de dar uma forma. Algumas têm uma ou mais bordas alisadas;
outras podem ter sido lascadas para criar uma "cintura" em torno da qual fibras as atavam a um cabo. Na península malaia, a maioria era feita de pedras completas,
enquanto nas ilhas indonésias usou-se uma maior proporção de lascas. Todos esses instrumentos são muitas vezes agrupados e chamados de cultura hoabinhiana.
Uma das maiores coleções veio da Caverna Niah, hoje localizada em Sarawak. É dentro dessa caverna que começa a viagem de John Lubbock pela pré-história do leste
da Ásia, e que o levará dos trópicos equatoriais para as profundezas do Círculo Ártico.
Lubbock acorda numa caverna que parece uma catedral e senta-se à sua entrada olhando uma aurora na floresta tropical. A garganta abaixo e as árvores adiante estão
semi-obscurecidas por uma forte cerração matinal. Andorinhas entram e saem como dardos, sendo o teto da caverna coberto de seus ninhos. Os morcegos desaparecem por
corredores nos inclinados recessos da gruta. Foi uma noite agitada, com o incômodo de insetos rastejantes igualado pelo fedor do estéreo no chão. Mas no frescor
do alvorecer, antes de começarem os pavorosos calor e umidade, as camadas de nuvens que se levantam infundem em John Lubbock energia para o dia. Os saltos e guinchos
ressonantes de uma macaca gibão sugerem que também ela deve estar sentindo a mesma coisa.
A data é 18.000 a.C., e a boca da caverna é clara, fria e inteiramente seca. Lubbock pensa que daria um abrigo atraente para caçadores-coletores - certamente é
melhor que muitas dentro das quais se acocorou durante sua viagem ao redor do mundo.
Quando o sol conclui uma ascensão extraordinariamente rápida, Lubbock busca vestígios de atividade humana dentro da caverna. O próprio chão só é visível na área
de entrada, onde insetos e o vento levaram o esterco. Os únicos ossos que ele encontra são de pássaros que fizeram ninho ali dentro. Muitos fragmentos de pedra jazem
sobre o esterco, ou em parte enterrados nele, mas Lubbock não pode concluir se foram lascados por mãos humanas ou quebrados pela natureza. Igualmente incerto é se
foram "feitos" há poucos dias, anos, séculos ou mesmo milênios.
Tom Harrison, curador do Museu de Sarawak, fez as primeiras escavações na Caverna Niah, trabalhando na boca oeste entre 1954 e 1967. Sua experiência é mais bem descrita
pelo nome que ele deu à sua escavação - Inferno.
Trabalhada em condições de calor sufocante, umidade de quase 100% e sol da tarde direto, a vala "Inferno" produziu um crânio humano provavelmente de 40 mil anos,
um dos primeiros seres humanos a ter vivido no sudeste asiático. Harrison também recuperou grande número de artefatos de pedra e vários túmulos humanos nos depósitos
superiores da caverna. O material de Niah na certa cobria toda a duração do assentamento humano no sudeste asiático, incluindo o período de 15 mil anos que interessa
a esta história.
Mas não podemos ter certeza. Tom Harrison tinha muitas qualidades notáveis - incluindo, dizem os rumores, um palang - mas a de escavar sedimentos em cavernas não
estava entre elas. Embora o chão da caverna fosse fortemente ondulado, ele fatiou seus depósitos em camadas horizontais, com toda probabilidade misturando artefatos
de idades bastante diferentes. Os ossos que submeteu ao radiocarbono com toda probabilidade vinham de animais que simplesmente tinham vivido e morrido na caverna,
e não esquartejados por mãos humanas. Em sua defesa, pode-se dizer que trabalhava muito antes de os arqueólogos terem começado a entender a verdadeira complexidade
da formação de depósitos e coleções de ossos. Felizmente, uma nova equipe de arqueólogos começou há pouco a trabalhar na caverna, aplicando as últimas técnicas de
escavação. Chefiado por Graeme Barker, da Universidade de Leicester, iniciou-se um projeto quadrienal de escavação em 2.000 d.C., para desenredar a complexa história
de sedimentação e registro de atividade humana de Niah.
Quatro anos de trabalho de campo exigirão pelo menos a mesma quantidade de tempo gasto em estudo de laboratório para analisar as descobertas. Assim, serão muitos
anos até descobrirmos o que a Caverna Niah pode revelar sobre a história humana quando o Pleistoceno chegou ao fim. Embora Barker tenha trabalhado antes nas extenuantes
condições dos desertos da Líbia e da Jordânia, descreve as de Niah como de longe as mais difíceis que já enfrentou. Felizmente, descobriu que Sarawak oferece generosa
compensação por seus labores:
A caverna fica a uma hora de caminhada e sobe pelo meio de uma floresta tropical... Todo o equipamento especializado tem de ser levado para a caverna de nosso acampamento
à beira do rio todo dia, e depois trazido de volta com sacos de sedimentos. Acrescentem-se a isso as cobras na caverna, os crocodilos no rio e as venenosas samambaias
e milípedes, junto com a arrasadora beleza da floresta tropical e a hospitalidade de sua gente, e ter-se-á uma inesquecível e estimulante experiência.
Há duas características impressionantes nos artefatos hoabinhianos, a primeira das quais é a sua simplicidade. Isso com toda probabilidade reflete seu papel mínimo
no dia-a-dia dos catadores de comida no sudeste asiático quando a era do gelo chegou ao fim. Com uma ampla gama de robusto material vegetal à disposição, notadamente
bambu, pouca necessidade havia de pedra.
A segunda característica é sua consistência pelo tempo afora - um notável contraste com a tecnologia em outras partes no mundo pós-LGM. Isso se deve ao fato de
as florestas da região - e supostamente as pessoas que nelas viviam - também terem permanecido em grande parte imutadas, enquanto o resto do mundo seguia sua montanha-russa
rumo ao aquecimento global. Mais precisamente, as florestas das massas de terra sobreviventes sofreram uma mudança mínima - o mar crescente inundou as que cobriam
as extensas planícies baixas.
Na época da visita de Lubbock, Bornéu, Sarawak, Java, Sumatra e a Península Malaia formavam uma contínua extensão de floresta tropical e manguezal, grande parte
dos quais se acham agora sob o Mar do Sul da China. Conhecida pelos arqueólogos como Sundaland, essa antiga massa de terra também se espalha 30 quilômetros para
oeste, além da linha costeira da península do atual Mar de Andaman. O resultado foram mais dois milhões de quilômetros quadrados de floresta - duas vezes a área
que existe hoje e a maior extensão de floresta no mundo da era do gelo.
O outro lado disso foi uma linha costeira de não mais da metade do comprimento da de hoje. Como fica evidente por esta história, os caçadores-coletores são freqüentemente
atraídos para habitats costeiros, devido à abundância e diversidade de recursos que oferecem. Pode-se explicar em grande parte a pobreza do registro arqueológico
no sudeste asiático com este simples fato: os artefatos de pedra encontrados dentro das cavernas podem resultar de raras incursões ao interior de pessoas que viviam
em assentamentos costeiros. Se tivessem sobrevivido, os arqueólogos poderiam também ter moradas, monturos e túmulos para escavar. Do passado relativamente recente,
tais monturos de conchas sem dúvida existem, depois que se alcançaram os modernos níveis do mar por volta de 6.000 a.C. Ou pelo menos existiram até a exploração
de pedreiras para tirar suas conchas - usadas para fazer cimento - que não deixaram mais que buracos cheios d'água no chão.
A floresta em volta da Caverna Niah é sutilmente diferente da vista por Lubbock na Nova Guiné: ele está agora no lado oeste da "Linha Wallace" - a fronteira entre
a flora e a fauna que tem uma descida australiana para seu leste e uma asiática para seu oeste. Mas embora Lubbock tenha cruzado essa fronteira, grande parte de
sua experiência florestal é inteiramente conhecida. A umidade é extrema e as sanguessugas igualmente ávidas por sugarem o seu sangue. A floresta abunda em árvores
gigantescas com troncos escorados ou sulcados. Algumas árvores parecem brotar em pleno ar, com uma sombrinha de raízes aéreas, e outras têm sua própria floresta
de troncos. Palmeiras, trepadeiras, samambaias e epifitos enchem os espaços intermediários. As flores são escassas. Muitas das orquídeas têm flores inconspícuas
decepcionantes; mas estas tornam tanto mais surpreendentes as ocasionais exibições extravagantes.
A floresta está superlotada: sempre que Lubbock pára, borboletas vêm alimentar-se do seu suor; búceros alternadamente batem as asas e deslizam por rios com sua
cauda de plumas; orangotangos espiam-no de topos de árvores; formigas atacam-no a partir do chão. E, no entanto, ele se sente só em meio a essa abundância de vida
animal, pois não há gente entre as árvores nem sinal algum que indique sua presença.
Tendo viajado da Caverna Niah para o leste, Lubbock agora senta-se dentro de outra caverna, conhecida dos arqueólogos como Gua Sireh. É muito menor que Niah e
ainda mais distante do mar, agora a 500 quilômetros. O céu escurece e cai um silêncio. Imensos glóbulos de chuva começam a despencar; espadanam na entrada da caverna
e o trovão ruge sobre as árvores. O clarão de um relâmpago ilumina por um instante cada folha, gavinha e flor da floresta por quilômetros em volta. A escuridão retorna
quando a chuva cai com extraordinária força. Lubbock recua para dentro da caverna e mais uma vez busca detritos de vida humana. Mas não encontra nem artefatos nem
fogueiras, nem ossos esquartejados nem montes de lixo vegetal. O único sinal possível de presença humana recente é um punhado de conchas de moluscos parecidas com
as que ele viu nos rios da floresta. Poderiam ter chegado à caverna apenas pela natureza - talvez trazidas por um pássaro ou uma enorme inundação? Lubbock acha que
não. Mas como a pedra lascada na Caverna Niah, pouca coisa indica exatamente há quanto tempo as conchas jazem no chão.
A viagem de Lubbock continua, agora para noroeste, cruzando um pântano coberto de floresta do qual emergem algumas ilhas isoladas. Após viajar 200 quilômetros
de Gua Sireh, ele chega ao que se tornará a Península Malaia. O terreno é montanhoso, penhascos de granito levando-o a profundos vales interiores antes que íngremes
cristas de calcário subam no oeste. Brancos precipícios nus faíscam ao sol em agudo contraste com a cor verdejante que veste a terra em toda parte. Após subir por
entre frondes de samambaia e acima de ravinas com espumante água branca, Lubbock emerge da floresta fria e escura e é recebido por rododendros e vistas espetaculares.
Para todos os lados a interminável floresta, dividida por reluzentes fitas serpeantes de água fluvial, cobre as colinas e vales.
Em 17.000 a.C., Lubbock chega a outro sítio potencial de habitação humana: uma plataforma abaixo de uma imensa aba de calcário, conhecida hoje como Lang Rongrien.
Para alcançá-la, ele sobe uma íngreme encosta de talude e passa pela estreita borda. Tendo esperado encontrar um chão de terra plano com pessoas reunidas em torno
de uma fogueira e os habituais apetrechos domésticos, descobre um espaço completamente vazio, apenas rochas angulosas e pedregulhos soltos espalhados.
Olhando para cima, vê que o teto da plataforma é bastante liso e limpo - sem a descoloração de séculos de intempéries, líquens morcegos pendurados e ninhos de
pássaros. Parece ter desabado recentemente, sepultando todo traço de habitação humana que possa ter existido no chão de terra. Há apenas um desses sinais em meio
aos detritos: uma pequena mancha de carvão e cinco pedras que poderiam ter sido lascadas por mãos humanas. Lubbock imagina que visitantes recentes acenderam uma
fogueira, talvez para cozinhar, fumar ou apenas sentar-se em silêncio junto às chamas. E depois podem ter partido em busca de um abrigo mais confortável para a noite.
Lubbock faz o mesmo, voltando pela borda e desaparecendo mais uma vez na floresta escura e úmida.
Gua Sireh e Lang Rongrien foram escavadas na década de 1980. A primeira, localizada no sudoeste de Sarawak, já fora em parte escavada - mas pouco compreendida -
por Tom Harrison na década de 1950. Ipoi Datan, hoje subdiretor do Museu de Sarawak, reescavou a câmara principal em 1988, encontrando sucessivas camadas de cinza
e terra que continham muitos artefatos, cacos de cerâmica, conchas de moluscos e uns poucos ossos de animais mal conservados. A maior parte desses detritos acumulara-se
depois de 4.000 a.C., derivado de cultivadores de arroz que se espalharam do norte para o sudeste asiático. Mas uma das conchas foi datada de cerca de 20.000 a.C.,
de um molusco de água doce que ainda vive nas rápidas correntezas de águas claras dos rios próximos da caverna. Ipoi Datan julgou que só poderia haver entrado na
caverna por mão humana, e se a data é exata, isso ainda reflete a mais breve das visitas à caverna - um único acampamento de pernoite no máximo.
Douglas Anderson, da Universidade Brown, em Rhode Island, EUA, escavou Lang Rongrien em 1987 e encontrou traços de ocupação humana que datavam de 40.000 a.C. O
substancial desabamento de um teto ocorrera entre 25.000 e 7.500 a.C. - as datas estabelecidas imediatamente acima e abaixo dos detritos. O carvão dentro dos detritos
deu uma data de cerca de 40.000 a.C., levando Anderson a pensar que viera de depósitos dentro de uma fissura ou lenda no calcário que desaparecera inteiramente quando
o teto desabara. Foi esse carvão que Lubbock viu, e assim, estava completamente errado - não tivera outros visitantes em Lang Rongrien em 17.000 a.C.
A ausência de ocupação em Lang Rongrien no LGM, ou mesmo dentro de milênios antes ou depois, repete um padrão encontrado por toda a região. Só em Gua Sireh há
um vestígio de presença humana nessa data: o único molusco de água doce datado de cerca de 20.000 a.C. Não surpreende, portanto, que Lubbock esteja achando a floresta
solitária ao deixar Lang Rongrien - talvez simplesmente não haja ninguém por lá. Só se pode imaginar que as pessoas do sudeste asiático viviam todas no litoral.
Após 17.000 a.C., encontram-se artefatos de pedra em muitas cavernas, mostrando que as pessoas agora viajavam regularmente para o interior, mesmo que ainda preferissem
a praia. As sucessivas camadas no chão em Lang Rongrien revelam muito sobre a crescente facilidade e freqüência da viagem entre a costa e áreas do interior. Quando
a caverna ficava a aproximadamente 100 quilômetros do litoral, entre 30.000 e 25.000 a.C., não havia conchas marinhas entre os artefatos de pedra em seu chão. Estes
aparecem pela primeira vez nas sucessivas camadas de chão após 10.000 a.C., e então se tornam cada vez mais numerosos à medida que o nível do mar sobe e a costa
se aproxima da caverna, acabando a não mais de 18 quilômetros de distância.
É improvável que as pessoas ficassem mais de alguns dias em cada visita a Lang Rongrien. Mas a falta de restos de plantas continua, e os ossos de animais tornam
impossível identificar a estação e duração de tais visitas. Cerca de 75 quilômetros ao norte de Lang Rongrien, Lang Kamnan oferece alguns indícios melhores. Essa
caverna foi usada periodicamente entre cerca de 30.000 e 5.000 a.C. - embora, como em outras partes, a presença de pessoas no LGM pareça duvidosa. Rasmi Shoocongdej,
da Universidade de Silpakorn, Bancoc, escavou a caverna e interpretou os restos de animais e plantas lá encontrados, junto com instrumentos de pedra e conchas marinhas.
Os ossos animais vinham de muitas espécies diferentes, incluindo esquilos, porcos-espinhos, tartarugas e gamos; os restos de caramujos e plantas sugeriam que a ocupação
ocorrera na estação chuvosa. É quando os caçadores-coletores/horticultores de hoje nas florestas do sudeste asiático coletam uma ampla gama de alimentos vegetais
como raízes e brotos de bambu; caçam os mesmos tipos de animais que Shoocongdej encontrou dentro de Lang Kamnan.
Os restos em Lang Kamnan sugerem que pessoas podem ter vivido nas florestas tropicais do sudeste asiático desde 17.000 a.C., de uma forma semelhante às pessoas de
tempos recentes, embora sem o cultivo do arroz e outras plantas e animais domesticados. Alguns antropólogos, porém, questionaram a capacidade de pessoas viverem
ali apenas da caça e da coleta - exatamente como se duvidara da ocupação da Amazônia por caçadores-coletores até as descobertas em Pedra Pintada.
Robert Balley, antropólogo da Universidade da Califórnia, afirmou que os recursos comestíveis nas florestas são tão poucos, variáveis e dispersos que populações
viáveis de caçadores-coletores não podem sobreviver. Embora as florestas tropicais sejam os ecossistemas mais produtivos do planeta, suas várias reservas de energia
estão presas dentro de tecidos não comestíveis - os enormes troncos e brotos de árvores essenciais na competição para conseguir luz suficiente. Muito pouca energia
vai para a produção de flores, frutos e sementes comestíveis; os que existem muitas vezes ficam em lugares inacessíveis no dossel. Bailey afirma que a restrição
dietária chave é o carboidrato: para adquirir quantidades suficientes, os "caçadores-coletores" ou têm de dedicar-se eles próprios à horticultura ou comerciar com
comunidades agrícolas.
A cultura hoabinhiana mostra que essa opinião está inteiramente errada. A agricultura, na forma do cultivo de arroz, só se espalhou para o sudeste asiático em
2.500 a.C., após originar-se na China - como descobrirá Lubbock na próxima etapa de suas viagens. Além disso, a viabilidade da caça e coleta na floresta tropical
é bastante evidente pelas comunidades existentes - muitas das quais se julga sejam descendentes diretas daquelas que fizeram os instrumentos hoabinhianos.
Uma dessas comunidades é a batek da Península Malaia, com a qual os antropólogos Kirk e Karen Endicott, do Dartmouth College, New Hampshire, EUA, passaram nove
meses entre 1975 e 1976. Eles caçavam macacos e pássaros com zarabatanas; pegavam tartarugas, cágados, rãs, peixes, ostras e caranguejos; arrancavam tubérculos selvagens
do chão da floresta e colhiam uma imensa série de fetos, brotos, bagas, frutas e sementes. Embora os batek às vezes derrubassem a floresta para plantar arroz, milho
e mandioca, e comerciassem regularmente com agricultores para obter farinha, açúcar e sal, os Endicotts não tinham dúvida de que poderiam ter sobrevivido apenas
com alimentos selvagens, os tubérculos selvagens proporcionando uma fonte de carboidratos.
Os penan de Bornéu também são caçadores-coletores efetivamente auto-suficientes da floresta tropical. Peter Brosius, da Universidade da Geórgia, viveu com eles
no platô de Apu entre 1984 e 1987. Trata-se de paisagem montanhosa e de floresta, a vários dias de caminhada das longas casas dos plantadores de arroz localizadas
nos vales. Embora os penan se dedicassem ao comércio, não dependiam dos agricultores para sua comida. Como os batek, colhiam uma ampla série de plantas e caçavam
muitos animais, com preferência pelo porco barbudo. Sua principal fonte de carboidrato vinha da palmeira-de-sagu, uma árvore que armazena amido dentro do tronco.
Essas palmeiras crescem em grupos, muitos dos quais são de propriedade individual, e são plantadas com, suficiente cuidado para evitar qualquer esgotamento à longo
prazo. Como tantos outros dos caçadores-coletores encontrados nesta história, os penan administravam as plantas selvagens à sua volta.
Brosius descreve os penan como "camareiros" da floresta. Explica como a rede de rios da floresta lhes fornece um reservatório de conhecimento e lembranças ecológicos.
Muitos rios recebem o nome de um determinado tipo de árvore ou fruta que dá ou perto da boca do rio ou em abundância ao longo de seu percurso. Outros têm o nome
de uma característica natural, como um tipo de pedra, ou algum acontecimento, como o abatimento de um rinoceronte, a perda de um cachorro favorito ou uma estação
especialmente frutífera. Um grande número de rios tem nomes de indivíduos, talvez assinalando o nascimento ou morte de uma pessoa, ou seu gosto pela caça ao longo
de suas margens. Como os penan não pronunciam os nomes dos mortos, muitas vezes usam em vez disso o nome do seu rio.
Os batek e penan proporcionam intuições de como o povo hoabinhiano pode ter vivido entre 17.000 e 5.000 a.C. Mas isso nos deixa com um dilema ainda maior sobre
a ausência efetiva de pessoas nas florestas durante o LGM. Embora Robert Bailey e antropólogos de igual pensamento estivessem errados ao afirmar que os caçadores-coletores
não poderiam sobreviver sem produtos agrícolas dentro da floresta tropical, estavam inteiramente certos em acentuar a relativa dificuldade de fazerem isso. As florestas
abertas, transitórias, mais predominantes no LGM, teriam fornecido uma paisagem muito mais produtiva para caçadores e coletores que as florestas de hoje. Os mamíferos,
que então viviam em rebanhos e no chão, em vez de indivíduos espalhados entre as árvores, teriam sido mais abundantes e mais fáceis de caçar. Logo, por que os indícios
arqueológicos só aparecem depois que a distribuição, densidade e umidade da floresta tropical atingiram o auge?
Segundo Peter Bellwood, da Universidade Nacional da Austrália, e autor de obras enciclopédicas sobre a pré-história do sudeste asiático, isso pode ser simples
conseqüência das pressões combinadas de crescimento populacional e crescente nível do mar, que obrigaram as pessoas a entrar nas florestas, depois de estarem bastante
satisfeitas no litoral. Mas, sem a antiga linha costeira, parece improvável que algum dia saibamos.
É 16.000 a.C., e a passagem pela floresta ficou mais fácil. A princípio, Lubbock pensa que a trilha que segue é apenas mais uma trilha de porcos que corre entre
as árvores. Mas não precisa curvar-se para passar sob galhos baixos e contorcer-se entre trepadeiras e árvores novas - as pontas dessas barreiras potenciais foram
visivelmente cortadas, prova afinal de uma presença humana.
São necessários mais vários dias de caminhada em meio à chuva torrencial e por uma rede de trilhas na floresta que ligam um vale fluvial ao seguinte antes de
encontrar-se de fato qualquer pessoa. Elas se acham num acampamento na floresta - abrigos feitos de folhas de palmeiras apoiadas em estacas enterradas no chão. Algumas
árvores pequenas foram derrubadas para o acampamento, que se centra em torno de uma única fogueira acesa - não mais que um feixe de gravetos e um punhado de folhas
secas. Parado na borda do acampamento, Lubbock conta uma dúzia de pessoas - umas poucas agachadas em redor da fogueira, outras sentadas junto aos abrigos. São de
baixa estatura, cabelos encaracolados e pele parda escura. As crianças estão nuas. Os adultos não usam mais que pequenos aventais de folhas; alguns têm o rosto pintado
de vermelho e o nariz perfurado por espinhos de porco-espinho.
Lubbock leva menos de cinco minutos para examinar todo o acampamento - dificilmente há mais alguma coisa a ver. Perto do fogo, alguns blocos de madeira foram evidentemente
usados como tábuas de cortar. Pendurados dos abrigos, vêem-se sacos, e espalhadas pelo chão algumas pedras lascadas. Vários bastões polidos e machados de pedra estão
encostados numa árvore. Facas com lâminas de bambu enfiadas em cintos completam o equipamento desse grupo familiar.
Após passar a noite nesse acampamento, Lubbock levanta-se cedo, enquanto os anfitriões que não o vêem reúnem seus pertences. O grupo parte em fila única por outra
minúscula trilha, com Lubbock fechando a retaguarda. Uma olhada aos frágeis abrigos de folha de palmeira atrás, e aos efêmeros detritos espalhados no chão, diz-lhe
ser improvável que os arqueólogos algum dia descubram esse sítio.
O dia é gasto caçando e coletando na floresta. Após uma hora, mais ou menos, as mulheres e crianças seguem para um lado e os homens para outro. Lubbock vacila,
segue os homens e depois volta para alcançar as mulheres. Elas pararam no que parece ser um trecho bastante comum da floresta, para arrancar tubérculos. As varas
entram fácil no chão mole e sem pedra; de cada buraco uma das mulheres puxa uma raiz nodosa inchada, enfia-a num saco e sai à procura de outra. Olhando de perto,
Lubbock descobre que o sinal não passa de um fino talo, muito parecido a qualquer dos outros que brotam do chão da floresta.
Durante o resto do dia, o grupo viaja de trato de tubérculos para arbustos de bagas e touceiras de bambu. As mulheres e crianças comem enquanto trabalham, saboreando
em particular os frescos brotos de bambu, e encontram o suficiente também para encher seus sacos. Embora pareçam seguir uma rota conhecida, estão sempre procurando
alguma coisa nova: cogumelos, fetos, rãs e lagartos. O acampamento é feito na margem de um rio. Enquanto os abrigos de folha de palmeira são rapidamente erguidos,
os homens chegam com uma história mentirosa de um macaco que escapou. Primeiro cortaram árvores novas com lascas de pedra e pontas farpadas; depois se dirigem para
um fundo lago onde mergulham para arpoar os peixes, que são facilmente apanhados, e grande parte do dia é passado sentado sem fazer nada à beira do poço, fumando
e comendo os peixes macios e cheios de espinhas.
Após vários dias de caça e coleta, Lubbock começa a compreender que o grupo vive num mundo bastante diferente do seu próprio. O seu é simplesmente uma das úmidas
e escuras florestas que ele às vezes ama e às vezes detesta - sobretudo quando atacado por sanguessugas, micuins e formigas. Seus companheiros também vivem na floresta,
mas para eles é um mundo cheio de espíritos, almas e deuses.
Isso se tornou visível por minúsculos e sutis atos que a princípio passaram inteiramente despercebidos. Algumas comidas, por exemplo, jamais eram cozidas na mesma
fogueira; as trilhas de gamos e tapir eram ignoradas, como eram - o que pareceu a Lubbock - oportunidades muito fáceis de matar uma presa. Ele imaginou que havia
proibições religiosas ao abate desses animais ou a comer certas comidas juntas. Numa ocasião viu um jovem ser advertido por um velho por uma comida que cozinhara;
à noite, o transgressor cortou-se, misturou seu sangue com água e jogou a mistura para o céu - aparentemente como um meio de apaziguar uma divindade zangada. Lubbock
toma consciência de que os cantos e falas dos membros do grupo são muitas vezes dirigidos à floresta, e não uns aos outros. Às vezes o canto ocorre em particular
em plataformas de casca de árvore especialmente erguidas, sobre troncos perto de uma árvore frutífera da qual as pessoas esperam colher frutos mais tarde no ano.
Quando as datas passam para 15.000 a.C., Lubbock tem de partir. A rotina diária de caça e coleta na floresta continuará imperturbada por muito mais milênios futuros,
e é hora de ele dirigir-se para latitudes temperadas, aquelas que o aquecimento global já começaram a modificar. E assim, num entroncamento, ele segue para um lado
e os catadores de comida hoabinhianos para outro.
O povo tasaday, citado no início deste capítulo, era uma farsa. Quando o regime de Marcos foi derrubado em 1986, suas cavernas atraíram um novo afluxo de observadores,
desta vez sem a estrita supervisão de Manuel Elizalde. Todas as alegações de autenticidade como um grupo há muito isolado com uma tecnologia da Idade da Pedra logo
se desfizeram - a desconfiança original de Zeus Salazar estava certa. Descobriu-se que a língua tasaday era um dialeto usado em todo o sul das Filipinas; suas cavernas
não tinham os detritos que teriam resultado de gerações de ocupação; o conhecimento que eles tinham de coisas selvagens parecia inteiramente insuficiente para verdadeiros
caçadores-coletores; jamais os viram usar instrumentos de pedra e, quando solicitados a fazer alguns, usaram, com pouca habilidade, materiais inteiramente inadequados.
Os trajes de folha de orquídea tinham sido simplesmente usados para as câmeras. Como um deles admitiu: "Sempre que Elizalde e seus amigos iam aparecer, ele mandava
uma mensagem para que tirássemos nossas roupas e fôssemos para as cavernas. Tínhamos de esperar lá até que todas as fotos fossem feitas. Quando Elizalde partia,
tornávamos a vestir nossas roupas e voltávamos para nossas casas."
Os próprios tasaday eram inocentes horticultores locais induzidos e subornados por Elizalde para encenar sua fantasia da Idade da Pedra. O caso foi apenas mais
um exemplo de como as minorias filipinas eram vítimas do regime de Marcos. Proporciona a esta história mais uma ilustração de como a Idade da Pedra é politicamente
forte, pronta para ser explorada por políticos para seus próprios fins. Lembram-se das contorções mentais de Vladislav Iosifovich Ravdonikas para encaixar Oleneostrovski
Migilnik em seu esquema marxista da história humana, e as alegações dos americanos nativos de que os ossos do Homem de Kennewick lhes pertencia? E, claro, os textos
do John Lubbock vitoriano que esposavam a superioridade mental dos europeus, convenientemente justificando o imperialismo de sua época.
Não há tribos isoladas da Idade da Pedra no mundo hoje. Os penan e batek podem ser descendentes diretos do povo hoabinhiano, e podemos usar nossas observações
de seu estilo de vida e propor cenários para a caça, coleta, pesca e religião da Idade da Pedra - como fiz acima. Mas devemos, como sempre, ser cuidadosos com tais
histórias. Os arqueólogos não devem ser tentados pelo presente; devem continuar voltando às análises de artefatos e às escavações. Não há atalhos para o passado
pré-histórico.

 


39
Yangtsé Abaixo
A origem do cultivo do arroz,
11.500 - 6.500 a.C.
Lubbock faz outra viagem de canoa, desta vez pelo rio Yangtsé abaixo. Sua longa jornada desde as florestas tropicais do sudeste asiático levou-o por platôs, amplas
bacias e vales profundos das montanhas Wuling no sul da China, de onde ele seguiu os vales que cortam o planalto de Yunnan. Grande parte dessa viagem foi através
de densas matas transitórias, abrigo de gamos e javalis, tapires e ursos panda. Quando as árvores deram lugar a mato baixo, ele viu animais maiores: rinoceronte,
e numa ocasião estegodontes - criaturas parecidas com elefantes de presas retas, de aparência semelhante aos mastodontes da América do Norte.
Encontrou muitos grupos de caçadores-coletores. Tocaiavam animais nas matas, coletavam uma variedade de nozes, bagas e raízes, catavam moluscos em rios e lagos.
Em 14.000 a.C., Lubbock passou algum tempo com algumas famílias na Caverna Baiyanjiao, que hoje fica na província de Guizhou no sul da China. Sentado à beira de
sua fogueira, viu-os tirarem lascas de nódulos de pedra com pouca preocupação visível pela forma e tamanho dos pedaços separados.
Baiyanjiao foi apenas um dos vários sítios usados por esses caçadores-coletores em suas rondas sazonais, em que se moviam entre colinas e vales, matas e planícies.
Pelo menos supomos que foi. Sítios arqueológicos datados do fim do Pleistoceno são extremamente raros no sul da China - mal conhecemos qualquer coisa sobre estilos
de vida humana nessa região do mundo da era do gelo. Baiyanjiao foi escavada em 1979, e forneceu uma preciosa coleção de artefatos feitos de calcário, sílex, arenito
e quartzo. Os ossos de animais escavados eram igualmente valiosos, representando muitas espécies, entre elas estegodonte, tapir, gamo e javali. Também estavam presentes
ossos de urso, tigre e hiena. E assim, até que se faça um estudo das marcas de corte e dos padrões de dentadas, não podemos ter certeza de quantos dos ossos derivaram
de atividade humana e quantos eram detritos de antros de carnívoros.
Enquanto Lubbock viajava de Baiyanjiao para o norte, as matas tornaram-se abertas e as árvores passaram de espécies de folhas largas para pinheiro e espruce. As
temperaturas caíram, e frios ventos começaram a açoitar as colinas estéreis. Também os caçadores-coletores mudaram; tinham menos opções para encontrar comida e muitos
agora dependiam de matanças anuais de cavalos e gamos migrantes, em grande parte como viu Lubbock na Europa da era do gelo. Roupas costuradas de couros e peles de
animais tornaram-se essenciais, como o acesso a cavernas para abrigo nos meses frios de inverno.
Quando Lubbock chegou à bacia de Sichuan, encontrou a vasta extensão do rio Yangtsé. À sua margem havia um grupo de caçadores, embalando seus pertences numa canoa
a fim de rumar para leste, de volta às baixadas, após terem passado os meses de outono caçando cabras. Lubbock subiu a bordo, instalou-se entre fardos de couro de
cabra e encontrou um remo sobrando para usar.
A bacia de Sichuan assinala o limite de navegação para barcos no rio Yangtsé hoje. Chang Jiang - o "Rio Comprido", como é mais adequadamente conhecido - nasce
nas neves e geleiras do planalto tibetano, a 5 mil metros de altura, e faz uma viagem de 6 mil 300 quilômetros até o Mar do Sul da China. Muito poucos sítios arqueológicos
datando de entre 20.000 e 5.000 a.C. são conhecidos ao longo do seu curso, embora devamos imaginar que o rio foi tão importante para os caçadores-coletores pré-históricos
quanto é para o povo chinês hoje. Infelizmente, é provável que jamais tenhamos certeza, pois acha-se em construção atualmente a Represa das Três Gargantas. Em 2009,
abrigará o maior gerador hidrelétrico do mundo, exigindo a criação de um lago de 600 quilômetros de comprimento atrás da barragem. Um grande número de sítios arqueológicos
conhecidos será inundado, e a possibilidade de novas descobertas inteiramente perdida. Mas a perda de sítios potencialmente equivalentes aos de Abu Hureyra, Jerf
el Ahmar e Nevali Çori - inundados por represas no Eufrates - é o mínimo dos problemas que enfrenta o povo chinês. Mais de 150 aldeias c cidadezinhas serão inundadas
pelo lago, deslocando até dois milhões de pessoas de suas casas.
A data é 13.000 a.C. Lubbock tem os dedos dos pés e das mãos congelados; as juntas rígidas e os músculos cansados mal podem manejar o remo quando a canoa batalha
contra ventos gélidos no rio Yangtsé. Felizmente, seus companheiros são indivíduos curtidos e conhecedores dessa rota na aproximação do inverno. A canoa contorna
uma ponta de terra rochosa e entra num escuro e estreito canal entre penhascos perpendiculares de calcário. Fantásticas torres de rocha curiosamente rachada e erodida
espremeram o rio de muitos quilômetros para não mais de 50 metros de largura.
É a Garganta de Ichang, um dos grandes espetáculos do rio Yangtsé ao deixar a acidentada região das montanhas Wushu e aproximar-se das terras úmidas da bacia de
Hupei. O tempo anda rápido dentro dessa passagem tipo túnel. A cada remada, Lubbock vê passar uma década, e depois um século. Dentro de minutos, chegou a 12.000
a.C., e o mundo além das paredes de rocha nua se transforma. As temperaturas subiram, a chuva aumentou, e a densa mata espalhou-se pelo que eram colinas estéreis
e encostas de montanhas além da garganta.
Chegou o interestadial glacial tardio; no oeste da Ásia, floresce a cultura Natufiana, e as pessoas constroem moradas e tomam chá no Monte Verde, no sul do Chile.
Ali na China, carvalho, olmos e salgueiros substituem os pinheiros e espruces esparsos, e um denso matagal de fetos se desenvolve entre as árvores.
O rio sobe com a água derretida que despenca das geleiras nas montanhas. Regatos começam a cair pelos penhascos abaixo; fendas na rocha de repente se enchem de avencas
e flores selvagens desabrocham em profusão nas estreitas plataformas. Os companheiros de Lubbock também mudam, as grossas peles substituídas por túnicas leves de
couro. Enquanto antes tinham os rostos escondidos sob capuzes e barbas cobertos de gelo, agora brilham à luz do sol. Os fardos de couro de cabra foram substituídos
por cestos de bambu contendo bolotas e bagas.
O tempo segue adiante para 10.500 a.C. O sol desaparece por trás de uma nuvem e um vento gelado mais uma vez sopra na garganta, com a chegada de uma onda de frio.
Mais umas poucas remadas, e o nível da água desce, deixando a margem do rio encalhada alta acima de seu curso. Brancas nuvens de neve rodopiam em torno dos picos,
as cataratas congelam-se e as flores murcham diante dos olhos de Lubbock. Além dos penhascos, os pinheiros e espruces fazem um retorno, enquanto os carvalhos e fetos
definham diante da seca e do frio. Na canoa, voltam as roupas de pele e a gordura de cabra.
Logo depois de 10.000 a.C., ocorre o dramático surto de aquecimento global que inicia o Holoceno; os pinheiros e espruces ao longo do vale do Yangtsé são substituídos
por matas de folhas largas e coníferas, as ervas subjugadas pelos fetos. Lubbock deixa a garganta em 9.500 a.C., com os companheiros mais uma vez vestidos para a
vida num mundo mais quente. Voltaram os cestos, aos quais se junta uma coisa inteiramente nova - vasos de cerâmica. O rio leva Lubbock a uma paisagem de colinas
ondulantes de mata densa e exuberantes juncos de beira de rio. Começa a serpear, bifurcar-se e despejar-se pelas terras planas da bacia de Hupei. Ao longe ele vê
uma pluma de fumaça subindo do meio da planície coberta de árvores. É a aldeia de Pengtoushan, cujos habitantes plantam e colhem um capim selvagem - conhecido hoje
como Oryza rufipogen
São pessoas importantes para Lubbock conhecer: com seus esforços, junto aos de outros habitantes pré-históricos do vale do Yangtsé, esse capim será transformado.
Depois de alimentar alguns milhares de pessoas que viviam em espalhadas aldeias à beira de rios e lagos, hoje sustenta pelo menos 2 bilhões de pessoas em todo o
mundo como o alimento mais importante no planeta Terra. O Oryza rufipogen tornou-se Oryza sativa, o selvagem tornou-se doméstico. John Lubbock está para observar
o primeiro cultivo do arroz, uma virada na história do mundo.
O arroz é o cereal mais importante no mundo hoje, e a China o maior produtor e consumidor. Quando a República Popular foi criada em 1949, colhiam-se 170 milhões
de toneladas de arroz por ano. No meio do século seguinte, essa produção aumentou pelo menos quatro vezes, em parte devido ao sistema de propriedade coletiva e em
parte por reprodução seletiva de novas cepas, dupla safra, uso de maquinaria, fertilizantes e pesticidas. A China é uma potência mundial por causa do seu arroz,
a história da domesticação dele começa com as pessoas que primeiro cultivaram as plantas selvagens que davam nos pântanos do vale do Yangtsé.
O arroz selvagem dá em pelo menos vinte variantes diferentes, todas as quais se pode chamar convenientemente de Oryza rufipogen. Algumas florescem como perenes
em pântanos de umidade permanente; outras dão como anuais, em geral onde os pântanos ou valas secam durante parte do ano. As variedades domesticadas diferem dessas
mais ou menos como o trigo e a quinoa diferem de seus ancestrais selvagens. Não apenas as espigas de grãos esperam pelo colhedor, em vez de explodir espontaneamente,
mas as plantas também germinam dentro de poucos dias uma das outras, de modo que toda a safra amadurece junto. O arroz selvagem, como o trigo selvagem, germina separadamente,
muitas vezes em muitas semanas ou meses. Isso assegura que pelo menos alguns dos brotos encontrem condições benignas para crescer - coisa com que as variedades domesticadas
podem contar, devido ao trabalho do agricultor. Outro contraste é simplesmente o tamanho - os grãos de arroz das plantas domésticas são significativamente maiores
que os das selvagens.
Quando o arqueólogo chinês Anping Pei, do Instituto de Arqueologia de Hunan, escavou Pengtoushan cm 1988, descobriu o que eram então os mais antigos vestígios
de arroz domesticado, datando de pelo menos 7.500 a.C. Antes dessa descoberta, a maioria dos arqueólogos acreditava que o cultivo do arroz se originara na índia
ou, o mais provável, no sudeste asiático continental, onde se encontram hoje substanciais touceiras de arroz selvagem. E assim, com a mesma lógica que levou os arqueólogos
ao Crescente Fértil em busca da origem dos modernos trigo e cevada, buscaram a origem do cultivo do arroz em sítios muito ao sul do rio Yangtsé.
Inicialmente, pareceram ter sucesso. Grãos de arroz que se acreditava datarem de pelo menos 6.000 a.C. foram encontrados na Caverna do Vale Banyan, nos planaltos
da Tailândia, c no assentamento de Khok Phanom Di, na costa do Golfo de Sião. Mas quando datadas por radiocarbono, descobriu-se que essas amostras eram muito mais
novas - não mais que 1.000 a.C. em Khok Phanom Di e algumas centenas de anos na Caverna de Banyan.
Em 1984, descobriram-se pequenas touceiras de arroz selvagem no vale do rio Yangtsé. Logo se percebeu que sua raridade naquela região é explicada pelas práticas
de cultivo intensivo que destruíram seus habitats naturais. Após a escavação de Pengtoushan, os trechos médios do rio Yangtsé foram confirmados como o provável local
de origem do arroz cultivado. E assim teve início uma busca de sítios mais antigos que Pengtoushan, onde se pudesse encontrar a própria transição de trigo selvagem
para doméstico - uma busca do equivalente chinês de Netiv Hagdud ou Guilá Naquitz.
Richard MacNeish - cuja obra no México central já encontramos - e Yan Wenming, da Universidade de Beijing, trabalharam juntos na exploração de cavernas de calcário
logo ao sul do Yungtsé, na hoje província de Jiangxi. Ao contrário das experiências de MacNeish nas secas cavernas do México central, descobriram que as plantas
já quase se haviam decomposto nos sítios chineses. Felizmente, alguns cruciais indícios microscópicos haviam sobrevivido dentro de sedimentos de caverna: fitólitos.
Os fitólitos são minúsculos depósitos de silício que se formam dentro das células vegetais. O silício, originando-se da água do solo, pode às vezes encher completamente
uma célula e assim manter sua forma depois que a planta se decompôs. Por serem inorgânicos, os fitólitos muitas vezes sobrevivem no solo muito depois que todos os
demais vestígios das plantas desapareceram. Além disso, diferentes espécies de plantas - e na verdade diferentes partes de uma mesma planta - produzem diferentes
tipos de fitólitos. Daí poderem ser usados para identificar plantas que um dia brotaram no solo, ou talvez foram postas ali como comida armazenada ou detrito jogado
fora.
Exatamente como algumas plantas produzem mais grãos de pólen que outras, algumas produzem mais pitolitos. Os capins são grandes produtores e, enquanto os grãos
de pólen de diferentes espécies são quase idênticos, seus pitolitos são bastante diferentes. Deborah Pearsall, da Universidade do Missouri, foi pioneira no estudo
dos de arroz, descobrindo que os mais distintivos são produzidos nas células da "gluma", a casca do grão, pois elas têm grandes pêlos ou picos cênicos. A presença
desses pitolitos num solo fora isso vazio é um sinal definitivo de que pés de arroz um dia brotaram ali.
O ponto crucial do trabalho de Deborah, porém, é que os fitólitos de gluma podem ser usados para identificar se as plantas há muito desaparecidas eram selvagens
ou domesticadas - se brotaram num pântano ou foram cultivadas num campo de arroz. Os fitólitos das plantas domesticadas são simplesmente maiores que os das variedades
selvagens, combinando com o aumento no tamanho do grão. Com essa descoberta, os sedimentos de caverna escavados por Richard MacNeish e Yan Wenming podem conter a
chave para identificar quando e onde começou o cultivo do arroz.
A Caverna Diaotonghuan fica no lado de uma pequena colina de calcário, dentro de uma região de pântanos conhecida como bacia de Dayuan, logo ao sul do rio Yangtsé
- a não mais de 50 quilômetros das recém-descobertas touceiras de arroz selvagem. MacNeish e Wenming escavaram uma vala de cinco metros de profundidade no centro
da caverna e revelaram pelo menos 16 camadas de ocupação, bem ordenadas uma em cima da outra. As oito camadas de cima cobriam o período de 12.000 a 2.000 a.C.; a
idade das camadas de baixo não foi determinada. Cada camada escavada continha ossos de animais e instrumentos de pedra; fragmentos de cerâmica estavam presentes
nas que remontavam a 10.000 a.C.
Embora restos de plantas estivessem inteiramente ausentes, os fitólitos de cada camada de ocupação mostravam que vários tipos de arroz teriam um dia sido colhidos.
Os fitólitos de arroz são muito raros nas camadas inferiores da caverna; os poucos presentes podem ter chegado em folhas secas sopradas pelo vento, ou nos cascos
ou fezes de animais que usaram a caverna como abrigo. Por volta de 12.000 a.C., porém, há um impressionante aumento no número de fitólitos de arroz, o que deve refletir
o fato de que o grão era colhido e comido por ocupantes humanos da caverna. Os pitolitos são pequenos, indicando que vêm de plantas selvagens, muito provavelmente
colhidas na borda de pântanos próximos. A data assinala as condições particularmente quentes e úmidas do interestadial glacial tardio, uma época em que touceiras
de arroz selvagem podem ter começado a florescer na bacia do Yangtsé. Após 12.000 a.C., os fitólitos de arroz continuam abundantes na caverna, a não ser em camadas
datando de entre 10.800 e 9.600 a.C. - período que coincide com o Jovem Dryas. Durante esse período de frio e seca, o arroz selvagem, planta subtropical dependente
da água, tornara-se evidentemente, c não surpreendentemente, muito escasso.
Após a volta de condições quentes e úmidas, o arroz foi mais uma vez usado como fonte importante de alimento. Sucessivas camadas dentro da Caverna Diaotonghuan
mostram um gradual aumento na proporção de fitólitos grandes, refletindo o aparecimento das primeiras plantas domesticadas. Em 7.500 a.C., houve um igual uso de
pés de arroz selvagem e domesticado; mil anos depois, todos os vestígios de arroz selvagem já haviam desaparecido completamente.
Lubbock leva quase 3 mil anos para viajar os 250 quilômetros da boca da Garganta de Ichang a Pengtoushan, chegando em 6.800 a.C. Esse tempo foi gasto remando devagar
pelo Yangtsé, a serpear pelas baixadas da bacia de Hupei. Seus companheiros ficaram em 9.600 a.C.; tendo ido colher nozes de um capão de árvores, não amarraram a
canoa. Com Lubbock a bordo, ela foi levada pela corrente rio abaixo e mais adentro do mundo do Holoceno.
A cada ano o rio subiu um pouco mais e depois caiu um pouco mais, à medida que as estações chuvosas e secas se tornavam mais acentuadas. As chuvas começavam em
fins de março e atingiam o pico em agosto. As águas subiam 10 metros ou mais, transformando grande parte das baixadas numa vastidão aparentemente interminável de
água lamacenta pontilhada por pequenas ilhas que antes haviam sido baixas colinas. Quando as águas baixavam, deixavam na terra camadas úmidas de aluvião - fundações
para o fértil solo agrícola que sustenta milhões de pessoas hoje.
Em 6.800 a.C., essa paisagem aquática pulula de vida: cardumes de peixes, bandos de gaivotas, martins-pescadores e garças reais; gamos e tapires nas touceiras
à beira d'água, cavalos e rinocerontes no terreno mais seco. E gente. Pessoas que vivem tanto em seus barcos quanto em terra e são mimadas por ilimitadas oportunidades
de pescar e pegar aves, caçar e coletar. Seguindo numa canoa por um braço do Yangtsé, e depois por uma rede de pequenos ribeiros, Lubbock encontra O caminho para
Pengtoushan; faz isso quando chegam as monções, que transformam a rede de ribeiros num único lago lodoso.
Ao saltar em terra seca pela primeira vez em mais de seis mil anos, Lubbock ainda tem uma pequena caminhada a fazer para chegará aldeia. Segue um caminho bem trilhado
que passa por densas samambaias e encontra Pengtoushan aninhada na encosta de um morrete, cercada de abetos e pinheiros. Quando se aproxima, não se vêem mais de
duas moradas acima das samambaias: sólidas casas retangulares construídas com estacas de madeira, paredes de taipa e telhados de palha. Após mais alguns passos,
vê mais uns cinco ou seis telhados de junco de moradas menores, cujos pisos devem ter afundado no chão.
Lubbock entra na aldeia no momento em que o sol mergulha abaixo da linha das árvores e uma garça voa para seu poleiro. Vêem-se poucas pessoas: uma velha dormindo
na soleira de uma porta, quando devia estar cuidando das crianças; dois homens descascando galhos com lâminas e pedra; uma moça amassando barro. O ar recende a fumaça
de pinheiro, de fogueiras que ardem entre as cabanas.
A oleira senta-se de pernas cruzadas num tapete de bambu. Não usa mais que um avental de couro em torno da cintura esguia, um colar de contas no pescoço e uma
ponta de osso que pende entre seus seios. Tem os cabelos negros e cortados curtos; os pômulos altos, nariz chato e olhos estreitos do povo chinês hoje; a pele brilha
aos raios do sol poente. Ela espreme, rola e amassa o barro sobre uma prancha de madeira; canta baixinho, dando de vez em quando uns bufidos ao aplicar seu pequeno
peso sobre o barro em que trabalha.
Lubbock senta-se junto dela, com o cuidado de não cortar a última luz do sol que a moça visivelmente desfruta. A seu lado há um monte de barro seco esboroante,
tirado, é evidente, da beira do rio há algum tempo. Ela vai aos poucos acrescentando-o à massa úmida que está sendo modelada, junto com água despejada de uma gamela.
De vez em quando, curva-se para a frente, pega um cesto e tira um punhado do seu conteúdo para misturar com o barro. Lubbock consegue inclinar o cesto para olhar
dentro - pedaços picados de talos e cascas de plantas, e grãos de arroz.
Enquanto ela amassa o barro, pessoas voltam à aldeia de seu dia na mata e na água. Uma mãe que chega com uma fieira de peixes em torno do pescoço encontra os filhos
pequenos brigando entre os fetos. Caçadores chegam com uma braçada de patos, mas sem o gamo que foram matar. Fogueiras fumegantes são reavivadas; os que talham madeira
acabam o trabalho e sentam-se com outros ao redor das chamas.
A oleira agora prepara rolos de barro e começa a tornear, grudar e alisar as junções. O barro torna-se um alguidar de cerca de 20 centímetros de altura, boca larga
e base estreita. Usando a ponta de osso, ela grava um desenho ondulado na matéria mole; depois se ergue com as mãos nas cadeiras para admirar sua obra. Leva o novo
vaso para sua cabana e o põe junto de vários outros prontos para serem cozidos no dia seguinte - jarras de gargalo comprido, pratos rasos, bandejas e tigelas, todos
marcados com as mesmas linhas onduladas.
Lubbock muda-se para sentar-se mais perto das chamas que estalam e saltam de uma fogueira próxima; também outros são atraídos para a luz e calor, agora que escureceu.
Muita coisa em Pengtoushan lhe parece familiar - os barulhos e cheiros, a disposição das cabanas e fogueiras comunais, a maneira como couros e peles são enrolados
em torno de ombros à medida que baixa a frieza do anoitecer. Quando olha em volta, as moradas semi-subterrâneas lembram outra aldeia onde as pessoas também tinham
vivido à beira da agricultura: Abu Hureyra, nas margens do Eufrates, em 11.500 a.C. Mas falta alguma coisa ali. Por um instante, sua mente se debate, e então se
torna óbvio: não há pedras de moer, almofarizes, mãos de pilão e pilões. Havia tantos desses nas aldeias do Crescente Fértil, antes e depois do início do cultivo
do trigo. E, no entanto, não há nenhum em Pengtoushan.
A oleira tomou banho e volta usando um xale para sentar-se, sem o ver, ao lado de Lubbock e no meio de sua família, que agora se reuniu para comer. Quando as chamas
começam a morrer, os patos são assados num espeto; acabados, os peixes, enrolados em folhas e temperados com ervas, são postos dentro das brasas. Finalmente, enfia-se
um alguidar de barro sobre as pedras quentes e tições em brasa. Enquanto os patos e peixes são divididos e as histórias contadas, a água começa a ferver. Logo Lubbock,
a oleira e sua família estarão comendo arroz cozido em Pengtoushan, como farão todas as gerações posteriores no vale do Yangtsé.
O fato de Anping Pei ter podido identificar o cultivo de arroz em Pengtoushan deveu-se apenas à presença de casas, talos e grãos de arroz queimados dentro dos muitos
fragmentos de cerâmica que ele recuperou do sítio. A quantidade de detritos de plantas presos dentro do barro queimado sugere que não chegaram ali por acidente.
Foi usado como tempera - um acréscimo para impedir os vasos de se racharem quando cozidos. Embora seja bastante comum os oleiros acrescentarem areia ou conchas moídas
ao barro, o uso de material vegetal é muitíssimo incomum e na certa inteiramente ineficaz - oleiros posteriores no vale do Yangtsé logo adotaram a areia. E assim,
em Pengtoushan, Lubbock pode ter visto algumas das experiências e erros que tiveram de ser suportados quando as pessoas aprendiam a arte e ciência da tecnologia
da cerâmica. Outra experiência é visível na Caverna Diaotonghuan, onde os primeiros fragmentos de cerâmica foram temperados com pedra triturada grossa.
Várias formas de vaso foram feitas em Pengtoushan. A maioria era negra do lado de fora, porque a tempera de arroz se queimara durante o cozimento. Muitas eram
enfeitadas, furadas ou riscadas com pontas agudas, ou gravadas com barbantes torcidos. O torneamento não era a única técnica empregada; alguns vasos foram feitos
simplesmente grudando-se o barro ou colando-se placas umas às outras. Essa técnica da placa fora usada pela primeira vez em Diaotonghuan por volta de 10.000 a.C.
para produzir a mais antiga cerâmica conhecida na China.
Não é provável que a quase simultaneidade da invenção da cerâmica e do primeiro cultivo do arroz tenha sido coincidência - o mais provável é que os vasos fossem
usados para cozinhar o grão. O indício direto vem de uma aldeia ligeiramente posterior conhecida como Hemudu, localizada no delta do Yangtsé, onde se encontrou arroz
cozido dentro de uma panela. Portanto o desejo de coletar e depois cultivar arroz parece ter sido relacionado com a fabricação de cerâmica, enquanto os vasos assim
produzidos ofereciam novas oportunidades de armazenar e cozinhar arroz, encorajando com isso mais cultivo. É provável que a cerâmica fosse tão essencial para o desenvolvimento
da agricultura do arroz quanto o foram as pedras de moer do Crescente Fértil para a do trigo e cevada. E não poderia haver melhor símbolo dessa íntima relação que
os fragmentos de cerâmica temperada com arroz escavados por Pei em Pengtoushan.
É setembro de 6.800 a.C., e as águas da enchente começam a recuar. Lubbock passou o verão em Pengtoushan, aprendendo a fazer e cozer vasos de barro, numa fogueira
aberta ou dentro de um poço cavado no chão. Agora há uma nova tarefa a ser empreendida, avidamente esperada à medida que todo dia as pessoas vêem a lama da beira
do rio expandir-se com a baixa da água. Todos os aldeões ajudam nesse acontecimento: o plantio das sementes. Pegam cestos de arroz de seus depósitos e transmitem
a notícia do aluvião recém-exposto, sem preparação do solo nem valas de irrigação ou margens de lama para reter a água em retirada. Lubbock junta-se a eles - enterrado
até os tornozelos em lama e fazendo grandes arcos com o braço para espalhar as sementes, ajudando a iniciar uma revolução agrícola chinesa.
Dentro de poucas semanas, o chão pantanoso se tornou verde com os brotos - um verde variegado com trechos marrom, pois algumas sementes levam mais tempo para germinar
que outras, ou não germinam de modo algum. As plantas crescem devagar durante o inverno; muitas das que ficam em terreno mais alto - os primeiros a secar - murcham
e morrem. Mas as dos mais baixos e permanentemente alagados tornaram-se luxuriantes na primavera, exatamente quando as chuvas retornam.
Em maio, o mato alto é retirado da plantação; em junho, o arroz floresce, e em início de agosto Lubbock está metido até os joelhos dentro d'água colhendo as plantas,
com as águas rastejando para a aldeia. Quando cada planta é arrancada do chão, alguns grãos caem e se perdem no lamaçal. Ninguém se incomoda, pois restarão muitos
para a debulha. É trabalho exaustivo - não apenas curvar-se e puxar, mas o peso dos cestos que têm de ser carregados ladeira acima e esvaziados num monte sempre
crescente de pés de arroz dentro da aldeia.
Uma vez secas, as plantas são debulhadas malhando-se as espigas de grãos; guardam-se os talos para uso como telhados e tapetes, e para misturar com barro quando
se fizerem vasos. Depois de ajudar com o grão, Lubbock em seguida ajuda a descascar - retirar as duras cascas externas esfregando-as com placas de madeira. E então
vem a peneira para deixar só os grãos - alguns serão comidos imediatamente, alguns armazenados para comer no inverno, alguns guardados para uso como semente quando
as águas da enchente recuarem mais uma vez.
Se as pessoas de Pengtoushan semeavam e colhiam ou não seu arroz desse modo, é uma conjectura. Lançar sementes em terra naturalmente e delicadamente aguada por enchentes
anuais é o método mais simples de cultivo de arroz, que se sabe ter sido usado por muitos povos tradicionais do sudeste asiático. Não há indícios da escavação de
Pei que sugiram o uso de valas irrigação ou bancos de lama; ele não encontrou nem pás para cavar, enxadas para preparar o solo nem facas para cortar as espigas de
grãos. Mas todos esses instrumentos podem ter sido usados antes em Pengtoushan - podem ter-se decomposto sem deixar traço, sido levados pelas águas ou afundado muito
no solo para Pei descobrir.
O método de "agricultura" por água de enchente descrito acima poderia facilmente ter proporcionado as condições necessárias para que as cepas de arroz domésticas
evoluíssem. Como na transformação de trigo selvagem no oeste da Ásia, teve de haver alguma seleção pelo homem dos raros pés de arroz mutantes com espigas não quebradiças
- as que "esperam pelo colhedor". Esses mutantes genéticos não teriam sobrevivido muito tempo no agreste, sendo incapazes de se semear por si mesmos. Mas eram plantas
ideais para os primeiros agricultores que não queriam ver o grão maduro afundar na lama assim que começassem a colheita.
O simples fato de que grande parte dos grãos de arroz de espigas quebradiças se teriam perdido dessa forma significava que muitos cestos de plantas colhidas continham
uma proporção relativamente alta de raras variantes não quebradiças. A chave para assegurar o maior aumento dessa quantidade era não apenas usar parte do grão como
semente, mas plantar onde não houvesse plantas selvagens.
Só plantada numa área livre de arroz selvagem a nova colheita poderia refletir a proporção relativamente alta de sementes do arroz de espiga não quebradiça que
fora semeada; essa proporção teria sido mais estimulada quando colhida. No fim, após muitos ciclos de plantio e colheita, talvez até as duzentas colheitas que Gordon
Hillman estimara para a domesticação do trigo, a safra seria dominada por arroz de grande grão não quebradiço e que amadurecia ao mesmo tempo - o Oryza sativa. Entregue
a si mesmo, logo teria desaparecido, incapaz de semear-se por si e sobreviver; mas a essa altura, claro, já estava sendo cultivado por agricultores.

O povo de Pengtoushan em 6.800 a.C. podia já se ter tornado esses agricultores. Parte do arroz preservado dentro de sua cerâmica era sem dúvida grande o bastante
para ter vindo de plantas plenamente domesticadas. Infelizmente, não foi possível um estudo detalhado dos grãos, pois se achavam muito prejudicados quando retirados
de seu invólucro de cerâmica. Mas quaisquer dúvidas de que o arroz doméstico surgiu em 6.800 a.C. foram afastadas em 1997, quando Pei escavou outro assentamento
localizado não mais de 20 quilômetros ao norte.
É o sítio de Bashidang, que floresceu entre 7.000 e 5.000 a.C. Ali, Pei encontrou os vestígios de muitas moradas, incluindo algumas construídas sobre estacas.
Ele escavou cerca de cem túmulos e recuperou uma notável coleção de artefatos de solo alagado, entre eles parte de um arado de madeira, uma pá de madeira, tapetes
de junco, cestos de bambu e cordas de junco. Dentro do leito de um rio próximo, descobriu uma abundante quantidade de restos de plantas, incluindo 15 mil grãos de
arroz. Estudos desses grãos não deixaram dúvida de que as pessoas de Bashidang eram agricultores usando uma cepa de arroz inteiramente domesticada.
No rio Yangtzé o tempo volta a passar devagar. São necessários uns meros cem anos para Lubbock completar a viagem de 1 mil quilômetros até o delta, checando à planície
costeira em 6.700 a.C. Encontra uma vasta colcha de retalhos de pântanos e lagos, matas espalhadas e pântano salgado, todos cruzados por rios e riachos. O nível
do mar ainda vai subir alguns metros, antes de estabilizar-se na altura atual; a inundação final aumentará os estuários, criará novas baías e ainda mais ilhas para
franjar a costa.
A paisagem aquática de 6.700 a.C. é um paraíso para caçadores-coletores; alguns tocaiam gamos, outros pescam ou catam mariscos. Mas os maiores assentamentos que
Lubbock encontra não passam de grupos de moradas feitas de junco em ilhas de terra seca, nenhum dos quais se aproxima em tamanho de Pengtoushan ou Bashidang. Os
habitantes não fazem mais que colher arroz selvagem, não cultivado. A idéia de semear na planície aluvial e depois cuidar dos brotos ainda não chegou de rio acima.
Quando chegar, os resultados serão impressionantes, pois as terras úmidas da costa oferecem o cenário perfeito para que a cultura do arroz deite raízes e prospere.
Tivesse Lubbock vindo depois, e não antes, da chegada da agricultura, só alcançando o delta em 5.000 a.C., teria encontrado um tipo de aldeia bastante diferente.
Poderia ter visitado Hemudu, na margem sul da Baía de Hang-Chou, cujos restos foram escavados na década de 1970. Ali, poderia sentar-se dentro de casas com mais
de 20 metros de comprimento, construídas com pranchas de madeira em encaixe e espiga e elevadas sobre mourões pelo menos um metro acima das águas rasas abaixo. Poderia
ter ajudado a preparar campos de arroz para plantio usando pás feitas das omoplatas de búfalos fixadas a cabos de madeira, ou mesmo cuidado dos próprios búfalos
domesticados. Ou talvez jogado lavagem para os porcos. A quantidade de arroz escavada em Hemudu sugere que Lubbock poderia ter passado o início do verão transplantando
mudas de viveiros para os campos de arroz principais - um dos trabalhos mais laboriosos para os camponeses chineses do século XX. Ou então poderia ter-se juntado
aos grupos que vão pescar e pegar aves, caçar e coletar nos pântanos e matas do delta do Yangtsé, ou ainda desenvolver suas habilidades de oleiro para ajudar a produzir
os ornados vasos escavados em Hemudu.
Mas Hemudu não passa de um simples acampamento de caçadores-coletores quando ele se acha na boca do rio Yangtsé, observando garças reais ao pôr-do-sol, num dia
qualquer de 6.700 a.C. É a maré baixa, e reluzentes trechos de lama estendem-se longe para o leste. São cortados por serpeantes fitas prateadas de água corrente,
e é para urna dessas que ele impele a mesma canoa que o trouxe da bacia de Sichuan. Agora tem de transportá-lo por 2 mil quilômetros do Mar Amarelo, para que suas
viagens possam continuar nas terras que hoje chamamos Japão.





40
Com o Jomon
Complexos caçadores-coletores no Japão e a mais antiga cerâmica,
14.500 - 6.000 a.C.
Todos param, erguem o olhar e fitam em silêncio. Por um breve instante, o sentimento de "alteridade" de John Lubbock em relação a seus novos anfitriões, que não
o vêem, se perde. Os vulcões que roncam e fumegam têm esse efeito - surgem reações emocionais que superam as diferenças culturais. Mas, num instante, já passou.
As pessoas de Uenohara mais uma vez olham e ouvem o distante vulcão através de seu próprio filtro cultural - sua mitologia e crenças ideológicas, sobre as quais
Lubbock nada sabe. Quando as vozes e ruídos do trabalho recomeçam, ele retoma seu status mais de observador que de participante na vida da ilha de Kyushu, no Japão,
em 9.200 a.C. Chegou o Uenohara 2 mil 500 anos antes de deixar o Yangtsé em 6.700 a.C.
Uenohara é uma aldeia na costa sul de Kyushu, na ponta do que é hoje conhecido como Baía de Kagoshima. Seus ocupantes são caçadores-coletores - as idéias e as
sementes para o cultivo de arroz que se espalhará de Pengtoushan para o leste ao longo do Yangtsé só chegarão ao Japão, o mais cedo, em 5.000 a.C. Para alcançar
a aldeia, Lubbock atravessou as densas matas das colinas da ilha, após desembarcar em seu lado oeste. Um labirinto de minúsculas trilhas levou-o por entre carvalhos
e nogueiras; o ar recendia a outono, os galhos pesados com a carga sazonal. Logo descobriu companheiros invisíveis nas matas, reconhecendo rastros de gamo na lama,
pêlos de javali em arbustos e tocos de árvore com marcas de machado. As trilhas levaram-no a uma clareira com um conjunto de treze cabanas cônicas. Era no meio da
tarde; os adultos ocupavam-se cuidando de fogueiras e fabricando instrumentos, e as crianças da aldeia perseguiam-se umas às outras em torno das moradas.
Um grupo de pessoas de Uenohara também acabara de surgir da mata, trazendo feixes de junco e sacos estufados de produtos agrícolas da floresta. Lubbock imaginou
que os juncos eram para uma nova cabana cujo esqueleto de estacas de madeira já fora montado em forma de tenda em torno de uma depressão circular. Cinco homens derrubavam
árvores com machados de pedra para aumentar a clareira. O trabalho deles abria uma vista para o mar, revelando uma distante montanha com o cume envolto em nuvens
- ou assim pensou Lubbock até sair um novo penacho de fumaça carregada de cinza.
As pessoas de Uenohara pareciam em boa forma física, saudáveis e felizes. Usavam poucas roupas. As crianças e alguns adultos andavam nus. A maioria não tinha mais
que um avental de couro em torno da cintura; uns poucos usavam túnicas. Todos, com exceção dos mais velhos, tinham pele amarelo-parda vibrante, os cabelos negríssimos
amarrados em trancas ou jogados para trás sob faixas. Alguns usavam colares de dentes de gamo e presas de javali; uns poucos homens tinham espirais de tinta vermelha
no peito.
Como em Pengtoushan, Lubbock foi atraído a sentar-se junto a uma oleira - desta vez uma velha de pele enrugada e sem dentes. Ela concluía um vaso muito mais elegante
que qualquer outro que Lubbock vira em suas viagens ao redor do mundo - de forma quase esférica, com um estreito gargalo e borda curvada, era mais ou menos do tamanho
de uma bola de rúgbi. Os dedos nodosos rolavam uma fina vareta envolta em barbante pela superfície do pote, criando um intricado desenho geométrico. Depois movia
a cavilha e tornava a rolar, cobrindo aos poucos toda a superfície com seu traço.
Quando ia riscar os traços finais, o vulcão entrou em erupção e ela perdeu o ritmo, imobilizando-se um momento, com a cavilha envolta em barbante pairando alguns
centímetros acima do barro. A hesitação foi breve, porque ela já vira aquele vulcão antes - muitas vezes. Ele jamais ficara quieto durante toda a longa vida da oleira
à sua sombra.
Uenohara é apenas um entre um grande número de sítios arqueológicos conhecidos por todo o Japão situados na cultura Jomon, muitos dos quais parecem ter sido ocupados
durante o ano todo. O nome deriva da palavra japonesa para a técnica usada para decorar cerâmica - jomon significa "marcas de barbante".
Edward S. Morse, biólogo e antiquado americano, descobriu os primeiros sinais dessa cultura em 1877 - 12 anos mais tarde para o Tempos pré-históricos do John Lubbock
vitoriano. Ele escavou um monturo de conchas em Omori, perto da moderna cidade de Tóquio, e formou estudantes japoneses na técnica da arqueologia. Logo eles estavam
escavando outros sítios e começando a encontrar a cerâmica, moradas e artefatos que foram designados como cultura Jomon. Encontraram-se muitos desenhos de cerâmica
diferentes, levando a numerosas subdivisões culturais, continuamente revisadas por todo o século XX, à medida que se faziam novas descobertas e se adquiriam datas
de radiocarbono. Hoje reconhecem-se seis fases culturais, que vão do Jomon Incipiente, começando com a primeira cerâmica, ao Jomon Final, que termina em 500 a.C.
Após esta data, o cultivo do arroz aparece em escala substancial no Japão, provavelmente trazido por imigrantes da China e da Coréia.
Uenohara encaixa-se no Jomon Inicial, durante o qual aparecem as primeiras aldeias sedentárias. A passagem dos estilos de vida móveis tradicionais dos caçadores-coletores
ocorreu por volta de 9.500 a.C. e parece ter sido uma resposta a temperaturas mais quentes e aumento de chuvas do Holoceno - como aconteceu com a fundação de Jerico.
Mas as pessoas do Jomon diferiram das do vale do Jordão por permanecerem inteiramente dependentes de alimentos selvagens, tendo abundantes matas e recursos costeiros
para explorar. Também fizeram extenso uso de cerâmica.
A cerâmica Jomon é, na verdade, a primeira do mundo. Oferece apenas um exemplo da precocidade dos caçadores-coletores japoneses quando a última era do gelo chegou
ao fim. A Caverna de Fukui, no oeste de Kyushu, forneceu alguns dos mais antigos fragmentos conhecidos quando escavada em 1.960-1.962. Essa pequena gruta, encontrada
na base de um afloramento de calcário, e bem iluminada e oferece uma excelente vista sobre um rio próximo, resultando em mais de cinco metros de depósitos ricos
em artefatos que começaram a acumular-se antes do LGM. As primeiras lascas de cerâmica aparecem em níveis que datam de 13.000 a.C.
Essa descoberta causou generalizada descrença. Em 1.962, dois famosos Professores, Suago Yamanouchi e Hiroyuki Sato, publicaram um infame artigo intitulado "A
Era da Cerâmica Jomon", concluindo que ou as datas ou o método de escavação empregado em Fukui estavam errados, pois sua cerâmica não podia ser mais antiga que 3.000
a.C. Julgaram inconcebível que a cerâmica tivesse surgido no Japão pelo menos seis mil anos antes que no oeste da Ásia e na Europa. A atitude deles parece espantosa
hoje, quando os arqueólogos são muitas vezes demasiado apressados em afirmar que suas regiões foram a origem de alguma inovação cultural. À medida que mais datas
de radiocarbono e descobertas de cerâmicas se acumulavam, e aumentava a confiança em novo método de datação, Yamanouchi e Sato tiveram de retratar-se: o Japão tinha
de fato a mais antiga cerâmica do mundo.
A precocidade cultural não era visível apenas na cerâmica. Caçadores-coletores da era do gelo no Japão alisavam as bordas de seus machados de pedra para fazer
melhores instrumentos vários milhares de anos antes de essa técnica ser adotada no Ocidente. As pessoas do Jomon também inventaram o uso da laça, feita de seiva
do urushi, um tipo de sumagro, que é preciso colher, aquecer e filtrar para ser trabalhosamente aplicado à superfície de um objeto. Recentes escavações em Kakinoshima
e Hokkaido encontraram o objeto laqueado mais antigo de qualquer parte do mundo: um pente laqueado de vermelho colocado dentro de um túmulo em 7.000 a.C.
Por que seria o povo de Jomon tão inventivo? Por que estavam fazendo cerâmica tão antes de qualquer outra parte do mundo? Só a cerâmica da China chega remotamente
perto dela em data, e nisso é explicada pelas exigências do cultivo do arroz. Melvin Aitkins, da Universidade do Oregon, uma autoridade no período Jomon, acredita
que a cerâmica japonesa foi inventada para cozinhar e armazenar o produto da mata de folhas largas que já cobria Kyushu em 13.000 a.C. Afirma que a relação é evidente,
pela disseminação simultânea da mata de folhas largas e cerâmica nas ilhas do norte do Japão, que apareceram na ilha mais ao norte, Hokkaido, por volta de 7.000
a.C.
Há, porém, dois problemas nessa idéia. Primeiro, não há necessidade de caçadores-coletores terem cerâmica quando vivem em ambientes de mata - os habitantes de
Ain Mallaha, no oeste da Ásia em 12.500 a.C., e de Star Carr, no norte da Europa em 9.500 a.C., prosperaram dependendo inteiramente de vasos feitos de vime, casca
de árvore, couros, madeira e pedra. A cerâmica sem dúvida tornava a vida mais fácil para aqueles que cozinhavam nas matas de Kyushu, e sabemos por resíduos de comida
que vasos de cerâmica foram de fato usados para fazer cozidos de vegetais, carne e peixe. Mas as pessoas poderiam ter sobrevivido facilmente sem esses vasos.
Um segundo problema na teoria de Aitkins surgiu em 1999, quando se descobriu uma nova amostra de cerâmica no sítio de Odaiyamamoto, em Honshu, no norte. Datas
de radiocarbono dos resíduos grudados no interior da panela eram de 14.500 a.C., empurrando para trás a origem da cerâmica em pelo menos mais mil anos. Nessa data,
Honshu não teria mais que uma esparsa cobertura de pinheiros e bétulas. E assim, a teoria de que a cerâmica japonesa foi inventada para armazenar e cozinhar bolotas
e outros produtos vegetais das matas de folhas largas não pode estar correta.
Brian Hayden, da Universidade Simon Fraser, propôs uma explicação alternativa. Fornece outro exemplo de sua crença na competição social como a força propulsora
da mudança cultural que encontramos pela primeira vez quando examinamos sua teoria para a origem do cultivo de abóbora no México.
Hayden sugere que os vasos de cerâmica têm várias qualidades importantes, que os tornam objetos prestigiosos de posse e suportes ideais para servir comida aos
convidados. No início, a arte do oleiro teria sido difícil de dominar; o barro tinha de ser cuidadosamente escolhido, ligas preparadas, fabricação e técnicas de
cozimento exploradas, praticadas e refinadas. Os vizinhos e visitantes de mais longe teriam ficado impressionados com o volume de trabalho e habilidade necessários
para produzir um vaso de cerâmica. A exibição de novas formas com decorações vistosas teria impressionado ainda mais. O mais impressionante de tudo poderia ter sido
a sensacional quebra de vasos durante banquetes, como ostentosa demonstração de riqueza.
A quebra teatral de vasos pode ter ocorrido no período Jomon posterior, pois se encontraram imensos "monturos de cerâmica". E como são em formas surpreendentemente
elaboradas, não pode haver dúvida de que muitos vasos Jomon posteriores eram basicamente para exibição. Feitos segundo um desenho básico de vaso de flor, têm bordas
espetaculares, modeladas como labaredas ou serpentes enroscando-se em torno do vaso, com cabeças esculpidas a projetar-se para fora. Às vezes a decoração tem a parte
de cima tão pesada que os vasos dificilmente ficam em pé. Os objetos laqueados devem ter sido muito impressionantes, como na verdade são até hoje. Mas devemos ter
cuidado na aplicação de tais interpretações aos primeiros, e francamente um tanto pobres, espécimes de cerâmica da Caverna de Fukui e outras. Sabemos atualmente
muito pouco sobre os primeiros oleiros do Japão para decidir se estavam mais preocupados em impressionar os visitantes ou criar um meio de cozinhar vegetais. Sabemos,
porém, que em 9.500 a.C. muitos viviam vidas sedentárias em assentamentos permanentes como Uenohara. Embora a cerâmica já tivesse sido inventada, o estilo de vida
sedentário deve ter sido crucial para possibilitar o florescimento da tecnologia da cerâmica.
Enquanto Lubbock vagueia entre moradas, parando para olhar por cima de ombros e provar guloseimas, a sensação de permanência logo lembra-o de suas visitas a outros
assentamentos de caçadores-coletores, sobretudo Ain Mallaha no oeste da Ásia e Koster na América do Norte. Um número substancial de árvores foi derrubado e as moradas
parecem construídas para durar. As pedras de moer e os vasos de cerâmica certamente não são destinados a transporte entre um acampamento e outro. O conteúdo das
panelas e montes de lixo mostra que as pessoas de Uenohara têm uma imensa gama de abastecimento de comida à disposição; evidentemente, a tiram das matas, dos rios
de água doce, da costa e do próprio mar. Exatamente como as pessoas de Ain Mallaha e Koster, usaram as abundantes colheitas naturais para evitar o estilo de vida
móvel dos caçadores-coletores tradicionais, e gostam da assentada vida de aldeia.
Mas como todas as outras aldeias, Uenohara tem uma atmosfera única e uma legião de particularidades culturais. Lubbock olha outros oleiros trabalhando, alguns
usando conchas marinhas em vez de barbantes com nós para enfeitar seus vasos. Juntas de porco são defumadas acima de engenhosos poços de cozinhar, com duas aberturas
ligadas por um curto túnel. As juntas são penduradas de galhos em cima de uma das bocas, um fogo arde na outra, e a fumaça passa pelo túnel e sobre a carne. As pontas
de flecha que estão sendo feitas têm lados com profundas serrilhas e são inteiramente diferentes de qualquer uma que Lubbock viu em outras partes. Os ornamentos
corporais também são diferentes: os desenhos pintados são impressionantes, e muita gente usa grossos badulaques de barro cozido como brincos, com incisões de círculos
e espirais.
Apesar de elaborados, tais enfeites corporais não parecem denotar status. Uenohara parece não ter nem líderes nomeados nem diferenças em riqueza. Todas as moradas
são semelhantes em tamanho e construção; cada uma das fogueiras cozinha o mesmo tipo de comida; não parece ter restrição quanto a quem se senta onde e fala com quem.
Enquanto o dia vai chegando ao fim, Lubbock examina os sacos carregados pelos que vinham da mata quando ele chegou. Os sacos foram jogados junto a uma série de
poços revestidos de barro, o conteúdo derramando-se no chão. Bolotas. Duas mulheres trabalham, pondo camadas de pedra triturada e depois juncos picados no fundo
de cada poço. As bolotas são despejadas dentro e socadas numa camada firme. Acrescentam-se mais camadas de junco e pedra triturada até chegar quase ao nível do chão.
Finalmente, as mulheres cobrem cada poço com barro, para lacrá-lo hermeticamente. Assim, as nozes estarão armazenadas em segurança contra roedores e a umidade para
os tempos magros que chegam todo inverno; quando comidas, terão perdido o gosto amargo.
Quando acaba o trabalho e o sol se põe, Lubbock é atraído para uma fogueira e senta-se com um grupo que se formou perto da cabana em parte construída. Uma pilha
de juncos espera para ser amarrada às estacas de madeira - não parece ter pressa para concluir o trabalho. Óleo vaza e chia de pacotes de folhas contendo peixe sobre
pedras quentes. Alguns adultos e crianças já se deitam em tapetes de fibra para dormir; outros conversam em voz baixa ou cantam suavemente para os pequenos. Quando
Lubbock se junta a eles, o céu da noite faz uma surpreendente exibição de vermelhos e laranjas sempre mutantes, e depois é inundado de profundos roxos e malvas.
Há um fraco sabor sulfuroso no ar, com ciscos de cinza vulcânica que caem com um brilho fosforescente na escuridão que se desdobra delicadamente como uma leve rajada
de neve pirotécnica.
Quando Koichi Shinto, do Centro Arqueológico de Kagoshima, escavou Uenohara entre 1986 e 1997, encontrou seus restos arqueológicos ensanduichados entre camadas de
cinza vulcânica. O Sakura-jima, o vulcão em atividade quando Lubbock chegou, entrou em erupção em 9.100 a.C. e enterrou o assentamento sob pedra pome e cinzas. Não
se sabe se as pessoas de Uenohara já haviam partido, fugido aterrorizadas, ou foram sepultadas vivas, porque a cinza ácida destruiu todo material orgânico do sítio,
incluindo ossos humanos e animais. Mesmo assim, descobriu-se um grande número de pisos de antigas cabanas, poços de cozinhar e fogueiras. Junto com isso, Koichi
Shinto encontrou uma série de artefatos que incluíam brincos de cerâmica, panelas, estatuetas de barro e pontas de flecha serrilhadas. Muitas tinham estado enterradas
várias décadas, talvez séculos, após a erupção de 9.100 a.C. Sem moradas para acompanhá-las, parece que Uenohara se tornara um local de depósito ritualístico.
Não foi o Sakura-jima, porém, o vulcão que selou os últimos restos materiais de Uenohara e o destino último de seu povo. Isso se deu um dia por volta de 5.000
a.C., com a erupção do vulcão Kikai, localizado 100 quilômetros ao largo da costa sul de Kyushu. Foi uma das maiores erupções do mundo do Holoceno. Rios piroclásticos
viajaram pelo mar até Kyushu, devastando suas florestas do sul e do centro, e tudo o que elas continham; as cinzas do Kikai chegaram até a ilha de Hokkaido, no norte.
Uenohara - que podia já estar deserta - foi enterrada sob um metro de cinza. Grande parte do sul de Kyushu permaneceu desabitada por vários séculos, e as pessoas
jamais voltaram para reconstruir a aldeia.
Hoje, Uenohara foi posta em exposição pública e é visitada todo ano por milhares de pessoas, que vêem onde os caçadores-coletores do Jomon um dia construíram suas
casas e defumaram sua carne de porco. Nesta fase mais recente de sua vida, Uenohara tornou-se inteiramente diferente dos outros assentamentos de caçadores-coletores
da pré-história com os quais foi outrora tão facilmente comparada. Os restos escavados de Star Carr, Ain Mallaha e muitos outros jazem ignorados, desconhecidos por
completo e inacessíveis ao público, ao qual se nega o conhecimento de seu passado caçador-coletor.
É 9.100 a.C. Após cochilar até o amanhecer, Lubbock deixa Uenohara e inicia uma viagem para o norte pelas ilhas do Japão. Viaja primeiro a pé, por trilhas de gamo
e rotas batidas de colheita de plantas, até a costa de Kyushu. Ali, chega aos rochedos que dominam o Canal Bungo, 50 quilômetros de mar pontilhado de ilhas além
das quais fica Shikoku, a próxima do arquipélago do Japão. Sua costa distante se perde numa névoa salgada lançada pelas ondas que se quebram abaixo.
Ele não tem escolha senão seguir o topo do rochedo, descendo em baías e tornando a subir nas pontas de terra até chegar mais ao norte de Kyushu. Os acampamentos
do Jomon se aninham em enseadas protegidas, algumas com canoas arrastadas para a praia. Tomando uma emprestada, Lubbock atravessa o curto estreito até a ponta sudoeste
da ilha de Honshu. Dali, segue a retorcida costa sul, sempre à sombra de altas montanhas interiores, com picos cinza-pedra e roxos. Os invernos chegam e cobrem de
neve os cumes e encostas cobertos de florestas; os verões são quentes e úmidos, sua chegada anunciada por ventos e chuvas torrenciais soprados do Pacífico. Logo
9.100 a.C. se torna 8.000 e 7.000 a.C.
Quando a costa vira para o sul, Lubbock penetra no interior; vales íngremes, cobertos de árvores, levam a passagens entre picos de montanhas. Dali, ele olha para
o leste, além do Pacífico esmeralda, na direção da América do Norte. Quando chega 6.500 a.C., Lubbock sabe que os caçadores nas Grandes Planícies estão lutando com
o impacto da seca, na busca aos decrescentes rebanhos de bisões.
Em outra incursão na ilha, partindo da costa, Lubbock chega às margens pantanosas de um enorme lago interior - conhecido como Lago Biwa. As matas são particularmente
ricas, e o lago oferece moluscos e muitas plantas aquáticas comestíveis. Não surpreendentemente, há vários acampamentos do Jomon: os habitantes jogam fora os detritos
da sua coleta de plantas no terreno pantanoso - conchas, peles impalatáveis, sementes e talos. Ali, serão preservados em sedimento molhado, até serem escavados como
o sítio de Awazu e oferecerem um dos poucos restos de plantas do Jomon.
Após haver coberto cerca de 850 quilômetros em linha reta desde a ponta sudoeste de Honshu, e pelo menos quatro ou cinco vezes essa distância em torno das complexidades
das costas e vales, Lubbock vê-se descansando nas suaves Colinas Tama, acima da Baía de Tóquio de hoje. Ele passou há pouco pelo Monte Fuji, cujo pico perfeitamente
simétrico e coberto de neve dominava uma paisagem de lagos e cachoeiras, cerejeiras em flor e azaléias bravas. Mas a vista à sua frente agora é mais prosaica: uma
vara de javalis passa fungando e fuçando pelo mato baixo no lado oposto de um vale raso.
Um único macho, de presas curvas e aparência letal, domina o grupo; com ele vão três fêmeas e uma legião de bacorinhos listrados. Uma das porcas de repente desaparece
em meio a uma aguda gritaria; as outras fogem, os pequenos tentam desesperados acompanhar os adultos que se enfiam entre as árvores, deixando atrás galhos quebrados
e arbustos pisoteados. A gritaria continua precisamente no lugar onde tinham estado os javalis, um guincho de pânico e dor misturado com grunhidos de desespero que
ecoam pelo vale. E, no entanto, não se vê javali algum.
A crise leva vários minutos para cessar, substituída por respiração forte e ruídos de briga. Lentamente, cautelosamente, Lubbock se aproxima e fica sabendo que
a porca caiu pela cobertura de mato de um poço, tentada por uma isca de nozes. Está entalada: as pernas pendem desvalidas numa vala, os flancos presos e firmados
pelos seus próprios esforços frenéticos para escapar.
Durante as próximas horas Lubbock espera junto à esparrela, e a porca de vez em quando guincha e revira a cabeça, desesperada. Quando um grupo de caçadores do
Jomon sai da mata e confere a armadilha, ela está exausta e calada. Quando eles usam uma faca de sílex para cortar a inchada artéria, não há mais que uma murmurante
aceitação da morte.
Os caçadores bebem um pouco do seu sangue numa pequena tigela de barro e esperam o resto escoar-se. Começa então o trabalho para retirar a carcaça. Eles sobem
nas costas dela e fazem o esquartejamento com machados e facas de pedra, pondo a carcaça partida em estacas de madeira. Depois retornam à mata levando pernis atravessados
nos ombros e a cabeça do animal numa estaca. Ficam atrás instrumentos de pedra cegos e gordurosos e um único vaso de cerâmica sujo de sangue.
Quando Keiji Imamura, hoje na Universidade de Tóquio, fez escavações anteriores à construção de um conjunto habitacional na área de Kirigaoka da cidade de Yokoama
em 1970, não descobriu poços do Jomon em nenhuma das sete localidades examinadas. Mas encontrou muitos poços ovais, a maioria com cerca de 1,5 metro de extensão
e mais de um metro de profundidade. Pequenos demais para casas e com muito poucos artefatos, Imamura julgou ter encontrado esparrelas para javalis.
Para investigar essa idéia, deixou de lado os instrumentos arqueológicos habituais, colheres de pedreiro e espátulas, em favor de tratores. Retirou a terra da
superfície de uma vasta área de Kirigaoka, de encostas de colinas, cristas, terraços e fundos de pequenos vales. Toda a área revelou estar salpicada dos poços ovais,
muitos perto do que Imamura julgou poderem ter sido um dia trilhas de animais. Os poços eram numa gama de desenhos diferentes. Um tipo tivera antes estacas erguidas
na base. Podiam ser estacas para matar o animal ou talvez apenas esteios para manter os pés dos porcos pendurados acima do solo. Outro tipo parecia o que Lubbock
viu - um oval alongado com paredes que se estreitavam para prender firme o javali depois que caíra.
Uns poucos continham fragmentos de cerâmica, supõe-se que levados pela chuva, de vasos quebrados deixados em torno da esparrela, junto com terra e outros detritos.
O estilo e decoração dos vasos sugeriam que alguns poços datavam do Jomon Inicial, contemporâneos do assentamento em Ueno-hara, enquanto outros eram do Começo do
Jomon. Outros ainda eram muito recentes, usados para caça de javali em tempos históricos, segundo registrado no folclore japonês.
Durante o boom econômico do Japão nas décadas de 1970 e 1980, fizeram-se milhares de escavações todos os anos, antes de construções, e descobriram-se muitos poços
semelhantes por todo o país. A maioria das esparrelas datava do período do Começo do Jomon, e às vezes encontradas em números substanciais. Uma das descobertas mais
espetaculares foi feita na região das Colinas Tama, nos subúrbios sul de Tóquio, onde 30 quilômetros quadrados de terra foram examinados antes da construção de um
conjunto habitacional. Descobriram-se espantosos 10 mil poços. Os do Jomon Tardio eram dispostos em fila, sugerindo que os javalis ou gamos tinham sido afugentados
para eles, talvez com o uso de cercas para canalizar os animais rumo à morte. Mas as pessoas do Começo do Jomon parecem ter sido mais descuidadas com a caça - simplesmente
deixavam a isca e a sorte desempenharem seu papel quando os javalis fuçavam e os gamos mordiscavam na mata de aparência inocente.
Das Colinas Tama, Lubbock encaminha-se para a Baía de Tóquio, agora sempre atento a punhados de nozes suspeitos. Na chegada, a linha da costa parece deserta, embora
haja muitos sinais de presença humana em torno da baía: velhas fogueiras, cabanas de galhos desabadas, canoas arrastadas para a areia. Enquanto Lubbock fica sentado
imaginando aonde ir, uma fina espiral de fumaça eleva-se acima das árvores numa pequena ilha dentro da baía. A água parece quente e rasa, e assim ele começa a vadear
rumo à praia da ilha. Na verdade é fria e funda, exigindo que ele dê uma desagradável e cansativa nadada.
Encontra algumas famílias vivendo na ilha; suas moradas simples de galhos erguem-se junto a um difuso monte de conchas, incluindo ostras, mexilhões e almeijoas.
Ossos de animais, alguns ainda com fiapos de couro e tendões, instrumentos e vasos quebrados também foram jogados no monte fedorento. Uma fogueira arde junto à borda
do monturo; mulheres moem nozes para fazer pasta, e crianças brincam no lixo. Lançam ossos velhos umas para as outras e despedaçam vasos jogados fora em minúsculos
fragmentos. Cachorros deitam-se perto das mulheres e roem ossos. Os homens sentam-se olhando o mar, imaginando se a maré próxima chegará à altura, ou talvez mesmo
ultrapassará, a da noite anterior.
Lubbock chegou ao que se tornará o sítio arqueológico de Natsushima. Precisando de um pouco de calor após a nadada, senta-se junto à fogueira, o fedor do monturo
lembrando-lhe os dias que passou em Ertebole e Namu. Mas embora familiarizado com sítios de monturo, dedicou antes pouco tempo a aprender as artes da coleta costeira.
Assim, decide ficar em Natsushima pelo menos algumas semanas - observando e praticando mais esse aspecto da vida no Jomon.
As aulas começam na maré baixa na manhã seguinte, quando ele acompanha as mulheres na coleta de mariscos. Muitas das crianças pequenas também vão, carregadas nos
ombros ou correndo a brincar na água próxima. Os moluscos nas pedras são fáceis de encontrar, mas difíceis de desgrudar; Lubbock tem de aprender a bater forte neles
com uma pedra pontuda, mas demasiadas vezes rala os dedos na rocha.
As mulheres também procuram mexilhões debaixo da areia, atentas a pequenas depressões onde as conchas se enterraram, e testam o seu potencial passando os dedos
ou uma vara de cavar na areia. Se sentem conchas suficientes, algumas mulheres se sentam e começam a encher os cestos; se não, a busca continua - cabeças e ombros
curvados para ter uma visão melhor do chão. Quando encontram um trecho particularmente denso de conchas, todas as mulheres se reúnem num círculo e puxam enormes
mexilhões da areia.
A aula de culinária de mariscos prossegue no acampamento. Encontra-se um trecho de areia limpa junto à fogueira e empilham-se as conchas cuidadosamente umas contra
as outras, a boca na areia. Colocam-se gravetos e capim seco sobre elas; uma vez acesos, o vento rapidamente espalha as chamas sobre o leito de conchas. Em poucos
minutos, começam o chiar e espocar, quando as conchas se abrem e os sumos começam a escapar. Cozidas, o fogo é desfeito e as conchas abertas postas em folhas verdes
para esfriar.
Embora o peixe marinho e alimentos costeiros dominem a dieta de Natsushima, Lubbock também se junta aos grupos de caça que partem regularmente para as colinas
e florestas no interior. Eles conferem esparrelas e montam armadilhas para capturar lebres - uma habilidade que Lubbock já aprendeu muito tempo atrás em Creswell
Crags. Rastros frescos de gamos são seguidos, mas com pouco êxito; os cachorros espantam aves de caça; lançam-se redes sobre patos incautos.
Dentro de poucas semanas, Lubbock já aprendeu muito sobre como seus anfitriões, que não o vêem, adquirem comida, mas pouco descobriu sobre a vida e crenças religiosas
deles. A única morte que ocorreu foi a de um cachorro, o cadáver sepultado sem cerimônia no monturo. Assim, continua incerto o que acontece com os mortos humanos.
Houve as conhecidas histórias e cantos em torno das fogueiras à noite, mas nenhum ritual, costume ou dança memoráveis.
Sosuke Sugihara e seus colegas escavaram o monturo de conchas de Natsushima em 1.955 O sítio desempenhou um papel-chave no estabelecimento da antigüidade e caráter
da cultura Jomon, fornecendo as primeiríssimas datas de radiocarbono relacionadas com a pré-história japonesa. As camadas inferiores continham minúsculos fragmentos
de cerâmica e carvão que foram datados de 9.000 a.C.; como na Caverna de Fukui, escavada poucos anos depois, essa combinação de cerâmica e carvão datado por radiocarbono
causou certa descrença inicial.
A escavação encontrou traços de muitas atividades costeiras: anzóis, agulhas, pesos, machados, mós e os ossos de uma imensa variedade de mariscos, animais, aves
e peixes. Como no monturo de Ertebole na Dinamarca, não se encontraram vestígios de moradas, talvez porque foram construídas logo depois da área escavada, ou porque
eram demasiado efêmeras para deixar traços. Deve-se imaginar a presença de canoas marítimas pelos ossos de atum, pesca do mar e golfinho encontrados dentro do monturo.
Mas canoas do Jomon foram encontradas em outras partes, notadamente em Kamo, outro monturo de conchas na costa do Pacífico.
O fato de Lubbock não recolher informação sobre os costumes funerários e atividades rituais dos que viviam em Natsushima em 6.500 a.C. foi conseqüência da curta
duração de sua visita - apenas um verão. Ele não ficou sabendo se as famílias permaneceriam junto ao monturo o ano todo ou se se mudariam para outro assentamento,
talvez juntando-se a outras famílias numa aldeia de inverno na mata. Essa pode ter sido a época das cerimônias e rituais, do vestir-se bem e dançar, uma época em
que se forjavam os casamentos e se faziam os ritos de passagem. Mas Lubbock teve de deixar Natsushima com essas perguntas sem resposta - exatamente como continuam
sem resposta para os arqueólogos hoje.
A cultura Jomon continuou a florescer muito depois de as viagens de Lubbock chegarem ao fim. O apogeu foi logo depois de 3.000 a.C., quando a cerâmica Jomon se tornou
efetivamente escultura ornada, e se produziram bastões de pedra e estatuetas femininas de elaborada arte. À luz do impressionante aumento no número de sítios arqueológicos,
a população humana evidentemente subira às alturas em número. As matas foram intensamente exploradas, as pessoas do Jomon tornando-se hortelãos selvagens, cultivadores
e administradores de sua floresta. Os monturos de conchas cresceram de pequenos montes de lixo espalhado, como em Natsushima, para grandes montes em forma de ferradura,
contendo muitos milhões de conchas e ossos. O salmão migratório proporcionou suprimento previsível de comida, possivelmente dando a mesma contribuição cultural que
do outro lado do Pacífico, na costa noroeste da América do Norte.
Quando o cultivo em grande escala do arroz chegou ao Japão, por volta de 500 a.C., o estilo de vida de caça-coleta-cultivo foi substituído por uma economia de
agricultura rural que fez uso de instrumentos de ferro e continuou até os tempos modernos. Pessoas que chegavam da China e da Coréia levaram essa nova economia para
o Japão. É dessa gente que descendem quase todos os japoneses modernos. Como não se podia cultivar arroz nos ambientes mais frios de Honshu e Hokkaido, a cultura
Jomon sobreviveu um pouco mais no norte. Hoje, o povo Ainu, que mantém um estilo de vida de caça e coleta, habita essas regiões. Muitos acreditam que os Ainu são
não apenas os herdeiros culturais da forma de vida Jomon, mas os descendentes biológicos daquele povo.

41
Verão no Ártico
A estepe dos mamutes e a colonização do Alto Ártico,
19.000 - 6.500 a.C.
Após dividir uma caverna da Tasmânia com as pessoas mais ao sul do mundo na era do gelo, Lubbock dirige-se agora para o extremo oposto do planeta Terra. Seu destino
é Jokhov, uma península no oceano Ártico que marcará o fim de sua jornada pelo leste da Ásia - simplesmente não haverá mais parte alguma para ir.
Hoje Jokhov é uma minúscula ilha, separada do continente siberiano por um aumento no nível do mar e com não mais de 11 quilômetros de norte a sul e 9 quilômetros
de leste a oeste. Sua espinha de baixas colinas é bordejada por baixadas inteiramente planas pontilhada de buracos cheios d'água. Uma pobre tundra de pântanos, brejos,
liquens e capim cobre o leito de rocha, a não ser onde o basalto foi varrido pelas tempestades árticas. Constantemente atacada por um violento vento norte, sofre
o intenso frio e escuridão do longo inverno ártico. Poucos contestariam que a ilha de Jokhov c um dos lugares mais inóspitos da Terra; era pouco diferente em 6.400
a.C. Mas foi o lar de uma comunidade da Idade da Pedra - o primeiro povo que se sabe ter vivido no Alto Ártico.
Para chegar a Jokhov, Lubbock tem de enfrentar uma jornada de cerca de 3 mil 500 quilômetros, partindo de Natsushima; começa com uma viagem de canoa desde a extremidade
norte do Japão. Ao chegar ao Extremo Oriente russo, atravessa a pé uma paisagem de densas florestas de carvalho, álamo e vidoeiro que oferecem um perfeito habitat
para ursos, raposas e javalis. À medida que avança para o norte, essas matas de largas folhas muda para uma escura floresta de coníferas, espruce, lariço e bétula,
em que ele se sente só, embora sinais sugiram que não. Passa por fogueiras recentes em margens de rios onde se fizeram instrumentos de pedra, depenaram-se pássaros
e trataram-se salmões. Penachos de fumaça espiralam acima de árvores distantes; estranhos barulhos não naturais parecem anunciar presença humana. Mas tais ecos são
raros acréscimos aos barulhos da floresta siberiana - de árvores rangendo ao vento e do farfalhar do mato produzido por vários animais, alce ou talvez lince. E acima
de tudo há os guinchos, grasnados e bater de asas dos gansos; também eles se dirigem para o norte, em busca do verão ártico.
A meio caminho de sua jornada para o norte, uma caverna oferece abrigo e um lugar para esperar a chegada de outros. Fica dentro de um pequeno rochedo de calcário
e perto da confluência de dois rios, o maior dos quais um dia se chamará Aldan e cortará a República Sakha da Federação Russa. Lubbock atravessa um capão em sua
margem íngreme para chegar à entrada; a caverna é bem pequena dentro - não mais de 12 metros até o fundo e com a altura apenas suficiente para ele manter-se de pé.
A vista é intimidante: ondas de colinas cobertas de florestas que sobem e descem em ritmo antes de se esfumarem suavemente no céu.
A caverna é quente e seca; se há pessoas nas vizinhanças, certamente virão usá-la. E assim Lubbock espera, como fez em outras partes do mundo - em Kulpi Mara no
Deserto Central australiano, em 13.000 a.C., e na Sandal Cavern, Arizona, em 7.500 a.C. Mais uma vez, espera em vão.
O solitário lugar de espera de Lubbock é a Caverna Dyuktai, mas sua chegada foi mal calculada para encontrar ocupantes. Após ser usada em 17.000 a.C., passou por
um longo período de abandono, até ser reocupada em tempos históricos. Assim, em 6..400 a.C. - data da chegada de Lubbock - os detritos de instrumentos de pedra e
comida dos ocupantes de Dyuktai na era do gelo estavam lacrados dentro dos depósitos no chão: uma mistura de aluvião soprado pelo vento, fragmentos de calcário e
areia deixados pelo rio quando inundado. Os instrumentos continuaram enterrados dentro desses sedimentos até fins da década de 1.960, quando foram escavados pelo
arqueólogo russo Yuri Mochanov.
Ele fez suas escavações como parte da Expedição Arqueológica Prilensk, estabelecida em 1.964 pela Academia de Ciências da URSS. O vale do rio Aldan foi escolhido
na esperança de encontrar assentamentos de pessoas que haviam migrado para o nordeste da Sibéria, e cujos descendentes colonizaram as Américas. Isso, claro, foi
muito antes da descoberta de Monte Verde, e quando o povo Clovis ainda era reverenciado como os primeiros americanos.
A caverna continha vários metros de depósitos no chão, dos quais se recuperou um grande número de artefatos de pedras e ossos de animais. Estes vinham de muitas
espécies diferentes - tanto animais grandes, incluindo rena, cavalo e bisão, quanto menores, como lêmingue, lebre e raposa. Sugeriam uma paisagem bastante diferente
das colinas cobertas de florestas pelas quais viajara Lubbock, uma paisagem de tundra e estepe na qual, conclui Mochanov, as pessoas caçavam não apenas bisão e rena,
mas o peludo mamute cujos ossos foram também encontrados dentro da caverna.
Os instrumentos de pedra revelaram ser bastante diferentes de qualquer coisa antes encontrada no nordeste da Ásia. Alguns eram facas de pedra e pontas de projéteis
feitas pela repetida retirada de aparas das faces alternadas de uma grande lasca de pedra. Era o mesmo método "bifacial" que o povo Clovis da América do Norte usava
para fazer suas pontas de projéteis pelo menos um milhão de anos após a ocupação pré-histórica final da Caverna Dyuktai. Outros instrumentos eram feitos de pequenas
e finas lâminas de sílex retiradas de núcleos em "forma de cunha", e galhadas e ossos tinham sido usados para fazer uma variedade de outros implementos, incluindo
sovelas e martelos.
À medida que a Expedição Arqueológica Prilensk descobria mais sítios, escavaram-se coleções semelhantes, muitas vezes associadas à mesma gama de mamíferos, E assim
definiu-se uma nova cultura, que recebeu o nome da caverna onde esses instrumentos foram encontrados pela primeira vez: a cultura Dyuk-tai, logo reconhecida como
tendo existido em toda a Sibéria - ou oeste da Beringia, como devemos chamá-la - durante os milênios finais do Pleistoceno.
Sabe-se agora que as origens da cultura Dyuktai remontam a apenas mais ou menos um milênio após as mais severas condições do LGM. Entre 1986 e 1990, Mikbail Konstantinov,
do Instituto Pedagógico Chita, escavou um notável assentamento aberto nas antigas margens do rio Chikoi, perto do Lago Baikal, no leste da Rússia, aproximadamente
2 mil quilômetros a sudoeste da Caverna Dyuktai. Conhecido como Studenhoe, esse sítio revelou que caçadores-coletores acampavam regularmente na planície aluvial
do rio, sendo os detritos inundados e depois sepultados em finos sedimentos imediatamente após cada ocupação. A conseqüência foi uma tremenda seqüência de depósitos
nos quais fogueiras e cabanas individuais eram separadas por finas camadas de aluvião. Uma das moradas era assinalada por um círculo de setenta pedras com os restos
de cinco fogueiras em fila. As fogueiras eram cercadas por pedras, contendo carvão, e os pisos das cabanas forneceram milhares de artefatos de pedra típicos da cultura
Dyuktai.
Em 1996, uma equipe americana colaborou com os russos para conseguir amostras de carvão das fogueiras e datá-las por radiocarbono. Os resultados mostraram que
os primeiros sítios à beira do rio haviam ocorrido em 19.000 a.C., data em que já se haviam adotado os instrumentos tipo Dyuktai. Tornou-se evidente que Studenhoe
e a tecnologia tipo Dyuktai proporcionaram a base da colonização do extremo nordeste. Embora o povo Studenhoe e seus descendentes elevam ter suportado temperaturas
congelantes, ventos violentos e uma constante busca de lenha e abrigo, parece que foram levados a colonizar o gelado norte. Em 15.000 a.C., estavam vivendo em Berelekh,
um assentamento mil quilômetros ao norte da Caverna Dyuktai e 500 quilômetros dentro do Círculo Ártico. E, como sabemos por sítios como as Cavernas do Peixe Azul
no Alasca, pessoas com tecnologia Dyuktai cruzaram a ponte de terra de Bering em 11.000 a.C., tornando-se alguns dos primeiros americanos. Em 6.400 a.C., haviam
colonizado o Alto Ártico, estabelecendo o assentamento de Jokhov.
Antes de deixar Dyuktai e retomar sua jornada para o norte, Lubbock lê um trecho de Tempos pré-históricos sobre os "esquimós". Escrevendo em 1865, seu xará sabia
que pessoas viviam nas margens do oceano Ártico, da Sibéria à Groenlândia. O John Lubbock vitoriano usara os diários de muitas expedições árticas, sobretudo os da
viagem do Capitão Parry de 1.821-1.823, e era mais lisonjeiro com os esquimós do que com qualquer de seus outros selvagens modernos. As descrições que faz das moradas,
instrumentos, roupas, barcos, caça, pesca e práticas fúnebres estão cheias de observações sobre engenhosidade e habilidade.
Quando o John Lubbock vitoriano descobria suas fontes sendo críticas ou desdenhosas, apressava-se a defender os esquimós. Assim, quando se citavam várias "histórias
repugnantes" de comidas, junto com o hábito dos esquimós de comer carne crua, ele comentava que várias das expedições árticas européias também comiam carne crua,
o que levava a uma boa saúde em altas latitudes. Da mesma forma, quando descrevia que os esquimós eram "demasiado sujos", acentuava que eles sofriam de escassez
de água doce e que o extremo frio, "impedindo a putrefação, retira uma das principais induções à limpeza". Após ter citado que "os esquimós são "grandes ladrões",
o Lubbock vitoriano enfatizava que se deviam dar margens às tentações oferecidas pelas despensas dos navios a pessoas sujeitas a uma extrema escassez de comida.
E continuava descrevendo os esquimós como "estritamente honestos entre si, bondosos, generosos e dignos de confiança". Algumas das mulheres eram "bonitas e inteligentes".
Deixando a Caverna Dyuktai em 6.400 a.C., Lubbock continua a viajar para o norte, cruzando colinas e vadeando rios. Muitas vezes é escuro sob as árvores; o chão
da floresta elástico com o grosso tapete de agulhas de pinheiro. A cada passo, a raridade de animais torna-se mais visível. Vêem-se alces de vez em quando nos pequenos
prados entre as árvores ou pastando em capões de salgueiro. Lubbock avista um urso, empanturrando-se de bagas. Mas fora isso a mata de espruce parece inteiramente
vazia, nada mais que uns poucos pássaros entre as árvores e aves silvestres em torno dos pântanos. Só os insetos parecem abundantes - picando, furando e varando
a pele de Lubbock a cada oportunidade.
Quando segue o curso de um vale, ele nota uma coisa branca, lisa e curva projetando-se de uma vala. Após raspar um pouco de terra, revela ser uma presa de mamute,
exposta após o desabamento de um sedimento no chão do vale. Com uma grossa vara e uma pedra chata como pá, ele começa a cavar. A presa vai-se mostrando mais, e com
ela parte de um crânio. Logo surge um volume de couro de mamute. Após horas cavando, Lubbock desiste da tarefa a que ele mesmo se impôs - seria necessário mais que
paus e pedras para expor a poderosa fera.
Os animais congelados da Sibéria são as lembranças mais evocativas do mundo do gelo no norte. A mais antiga descoberta registrada é um mamute de Berezovka, localizada
no extremo nordeste da Sibéria. Em 1.900, um negociante de marfim comprou presas de um tribal que vivia às margens do rio Kolyma e soube que tinham sido cortadas
de um animal com o couro intacto. Após meses de comunicados e telegramas, uma expedição partiu da Academia Imperial de Ciências em Petrogrado para investigar a descoberta.
Chefiada por Otto F. Herz, a missão partiu em maio de 1.901 e levou todo o verão para encontrar o mamute.
Quando chegou, as geadas e neves de outono haviam cimentado mais uma vez o mamute na terra congelada. E assim, teve-se de erguer uma construção de toros e lona sobre
a carcaça, acender fogões e degelar o chão para que a escavação pudesse começar.
Embora estivesse faltando grande parte da cabeça e outras partes se tinham decomposto, a preservação do mamute de Berezovka era admirável. Grandes áreas do couro
haviam sobrevivido com alguns órgãos internos, a língua, cauda e pênis. A última refeição do mamute continuava em seus dentes - ranúnculos e outras flores. Muitos
dos ossos estavam quebrados, e havia grandes coágulos de sangue. A morte parecia ter sido quase instantânea, talvez pela queda numa vala.
Nos cinqüenta anos seguintes fizeram-se várias descobertas surpreendentes, não apenas de mamutes congelados, mas de cavalos, bisões e rinocerontes peludos, todos
de antes da era do gelo chegar ao fim. Vários tinham capim, junco c flores não digeridos no estômago - indício crítico para os cientistas na busca para reconstituir
como parecia a paisagem antiga antes da chegada das florestas.
Dale Guthrie, zoólogo da Universidade do Alasca e um dos mais famosos desses cientistas, cunhou o termo "estepe de mamute" para as paisagens da era do gelo do
norte da Ásia. As árvores estavam inteiramente ausentes de uma paisagem de capins, ervas e arbustos que sustentavam rebanhos de caça grande. Como a estepe que Gordon
Hillman, arqueobotânico do University College de Londres, procurou reconstituir para o oeste da Ásia, essa estepe nortista mal existe hoje, mas foi um componente
vital do mundo da era do gelo.
Adquiriu-se uma intuição dos habitantes animais da estepe de mamute com escavações num vasto acúmulo natural de ossos em Berelekh, que ficou conhecido como "cemitério
de mamutes". Após ser comunicado pela primeira vez na literatura científica em 1.957, a Academia de Ciências da URSS lançou uma expedição em 1.970. N. K. Vereshchagin
usou um canhão d'água para remover os sedimentos que o envolviam, revelando os restos de talvez duzentos mamutes, junto com outros de bisões, cavalos e renas. Ao
fazer isso, encontrou quatro artefatos de sílex entre ossos espalhados a curta distância do depósito principal. Yuri Mochanov identificou-os como pertencentes à
cultura Dyuktai. E assim a Expedição Arqueológica Prilensk escavou o assentamento humano em Berelekh entre 1.971-1.973, e de novo em 1.981.
O trabalho deles descobriu muitos instrumentos feitos de pedra, osso e marfim jogados fora por volta de 15.000 a.C. Associados a estes havia ossos de mamute, bisão
e rena; mas os de lebre ártica e perdiz eram muito mais numerosos. Assim, como Lubbock descobriu em Creswell Crags, os caçadores de Berelekh parecem ter preferido
pegar caça pequena com armadilhas a enfrentar feras poderosas. O mais provável é que as presas de mamute usadas para fazer facas e lanças tenham sido catadas no
"cemitério" - como as pessoas de Pushkari haviam recolhido de um acúmulo semelhante para construir suas moradas no LGM. Mochanov pensa que uma casa de osso de mamute
pode ter sido construída um dia em Berelekh, mas após milênios de ação da geada e perturbação, para não falar no impacto da bomba d'água de Vereshchagin, não se
discerne nenhum padrão entre os ossos.
*
Logo depois de 13.000 a.C., as árvores começaram a espalhar-se pela estepe de mamute. Guthrie acredita que foram estimuladas a fazê-lo não tanto por temperaturas
mais elevadas, mas pela maior precipitação pluvial - a chave da estepe de mamute fora a sua aridez. A maior parte das novas chuvas caiu como persistentes garoa e
neblina, como acontece hoje. Jamais teria sido substancial; o Alasca moderno recebe a mesma precipitação anual que o Deserto de Kalahari. Mas como a evaporação era,
c é, muito baixa, os solos da estepe de mamute logo se tornaram bastante úmidos, à medida que uma rede aquática de pântanos, rios e lagos nascia gota a gota.
As coníferas que formaram as novas florestas tinham bastante água, mas lutavam para conseguir nutrientes do solo congelado. O mesmo se aplica hoje, e o crescimento
é visivelmente lento: Guthrie diz que os pés de espruce podem ter cem anos de idade, mas não mais de 20 centímetros de um lado a outro. Essas árvores arriscam perder
qualquer novo broto para herbívoros famintos, e por isso carregam as folhas e agulhas com compostos tóxicos para torná-las inteiramente não comestíveis. Quando derrubadas,
têm uma decomposição extremamente longa, resultando num grosso tapete húmico no chão da floresta. Isso isola o solo, criando o permifrost e reduzindo mais ainda
a existência de nutrientes para as árvores. Assim, o crescimento é ainda mais inibido e impõe-se uma pressão ainda maior às árvores para fazerem-se desagradáveis
como comida.
Essas árvores também precisam de extensos sistemas de raízes para sobreviver, e isso mantém quase toda a sua biomassa sob o solo, a segura distância dos herbívoros.
Os capins, ervas e arbustos da estepe de mamute eram bastante diferentes - cresciam rápido, adaptavam-se a curtos surtos sazonais de chuvas e renasciam. Como tais,
podiam deixar-se comer; algumas até se beneficiavam com isso, por terem os tecidos mortos devorados, para que a luz do sol as alcançasse e aquecesse o próprio solo.
As florestas, pântanos e lagos espalhados tocaram os rebanhos animais para o extremo norte, onde a estepe de mamute sobrevivia. Mas mesmo ali eles foram postos
sob pressão pela crescente capa de neve que enterrava os capins e arbustos e pela inundação das terras costeiras pelo mar crescente. Essa combinação de fatores foi
suficiente para levar o mamute siberiano à extinção - não se pode culpar o povo Dyuktai, pois não se encontraram sítios de abate que se comparem com os do Clovis
na América do Norte. Sabe-se de apenas uma população de mamutes que sobreviveu à explosão de aquecimento global em 9.600 a.C. - a que ficou presa na ilha Wrangel
depois que a planície siberiana foi inundada pelo mar. Foram os últimos mamutes peludos a andar no planeta Terra.
Quando Lubbock prossegue em sua viagem em 6.400 a.C., as árvores se tornam esparsas e a idéia de que ocorreu um aquecimento global parece um mito. Quando o ar está
parado, nuvens de mosquitos assentam-se nos olhos, lábios e narinas, e ele deseja que sopre o vento gelado. Chega o meado do verão e os céus ganham um tom pastel,
muitas vezes parecendo a madrepérola de dentro de uma concha. Estranhos halos e auréolas aparecem freqüentemente em torno do céu e da lua. A aurora boreal oferece
uma tapeçaria celeste distante, de verdes e vermelhos murmurantes.
Lubbock acaba por ver-se numa extensa planície costeira. As poucas árvores crescem sobre uma variegada colcha de retalhos de musgo, urze, liquens e cogumelos;
são enfezados e surrados pelo vento. Lubbock tropeça em sólidos montículos de capim e escorrega em poças de lama; mas o musgo de aparência úmida é surpreendentemente
seco sob os pés. O céu é cinzento e muitas vezes desencadeia um vento carregado de granizo que cruza a tundra. Ao longe, vê-se a tênue silhueta das colinas cobertas
de neve entre as quais se aninha a aldeia de Jokhov.
Um barulho indefinido paralisou os passos de Lubbock; era um que lembrava a chegada de outros - aqueles de Ain Mallha, Skateholm e Koster. O latido de um cão.
Girando, ele vê um trenó puxado por quatro cães se aproximando, conduzido por um homem vestido em um manto grosso e peles. Ele sacudiu lentamente ao longo da tundra,
com uma cesta de pequenas frutas, um fardo de gravetos e carregando nas costas uma presa de mamute. Aproveitando a chance, Lubbock saltou a bordo assim que o trenó
passou, ganhando uma carona para os últimos quilômetros para Joklov.
Em 1.989, uma expedição conjunta do Instituto de Arqueologia de Leningrado e do Instituto de Pesquisa no Ártico e Antártico descobriu um assentamento humano na minúscula
ilha de Jokhov. Inicialmente, parecia não ser mais que uma série de rasos poços redondos, um punhado de ossos de animais e madeira trazida pela maré, dentro de um
pequeno vale no sudoeste da ilha, perto do pé de uma colina isolada. Escavações foram feitas por Vladimir Pitul'ko, que descobriu que os poços tinham sido outrora
moradas, e que a preservação da madeira e ossos era excelente devido a condições do permifrost. O assentamento revelou ser o mais antigo indício de presença humana
no Alto Ártico.
Durante as escavações, Pitul'ko encontrou indícios de trenós e cachorros e calculou que os dois poderiam estar juntos, empurrando a história da tração canina no
Ártico para trás em vários milhares de anos. Os do trenó eram um fragmento de madeira, provavelmente lariço, que fora modelado e usado como patim. Tinha pouco mais
de um metro de comprimento, com estrias e verniz na parte de baixo. Com o uso, ficara chanfrado, indicando ligação do lado esquerdo do trenó. Um soquete furado no
patim segurara outrora parte da estrutura - o trenó fora, evidentemente, uma construção substancial.
Embora se recuperassem outros fragmentos do trenó, nenhum forneceu indício direto de que fora puxado por cachorros. Mas escavaram-se ossos desses animais, identificados
como tais por serem maiores que os da raposa ártica e menores que os de um lobo. Outros indícios de domesticação canina vieram de grande quantidade de "pequenos
depósitos redondos" - fezes de cachorro - escavados do permifrost. Quando separados, descobriu-se que continham pêlo, fragmentos de osso e casco de rena. Tendo sido
encontradas em discretas concentrações, as fezes indicavam onde os cachorros tinham sido amarrados em estacas separadas.
Os cachorros também podem ter sido usados para a caça. Os ossos de animais recuperados por Pitul'ko indicavam que, embora o povo de Jokhov caçasse rena, gansos
e cisnes, e uma ou outra foca, sua fonte de alimento básica era o urso polar. Essa foi uma descoberta única - nenhum outro assentamento em que os ursos polares fossem
mais que um pequeno complemento à dieta fora jamais encontrado por arqueólogos ou visitados por antropólogos. Isso não surpreende, porque os ursos polares são animais
extremamente fortes e perigosos. Os ossos de animais de Jokhov também contradiziam a opinião generalizada entre os arqueólogos de que a colonização do Alto Ártico
fora feita por comunidades especializadas na caça de mamíferos marinhos.
Todas as culturas árticas historicamente conhecidas tiveram o urso polar na mais alta estima, muitas vezes atribuindo-lhe um papel-chave em seu mundo mitológico.
Uma crença generalizada entre os inuit do Ártico canadense é que houve uma época em que ursos e homens podiam transformar-se facilmente uns nos outros. Isso pode
ter surgido das semelhanças entre os ursos polares e os seres humanos: ambos são capazes de ficar em pé e viajar em terra e mar; ambos são habilidosos na caça e
na construção de moradas de inverno, no caso do urso para dar à luz. Mas o respeito nunca impediu que os matassem; afinal, os ursos polares têm muita coisa a oferecer:
boa carne, peles quentes, gordura para uso em lampiões; ossos, garras e dentes para fazer instrumentos.
Quando o povo inuit matava um urso macho, a bexiga, o pênis, baço e língua eram pendurados num iglu com o arpão e outras armas usadas na caça. Se o animal era
fêmea, a bexiga e o baço eram pendurados com os instrumentos das mulheres - agulhas e facas - para que a alma da ursa se sentisse em casa. Ensinava-se as mulheres
a temer o urso desde tenra idade, com histórias sobre ursos famintos que apareciam no acampamento quando os homens estavam fora caçando. A primeira caça ao urso
de um menino inuit dava-lhe status de adulto, e depois ele recebia um chicote de cachorro com o cabo feito do osso do pênis do urso.
Aleksey Kasparov, do Instituto de Arqueologia de Leningrado, fez um estudo meticuloso dos ossos de urso polar que Vladimir Pitul'ko escavou em Jokhov. Identificou
como o esquartejamento inicial ocorria no lugar da morte, onde a parte inferior das pernas e as patas eram jogadas fora. Também conseguiu reconstituir como as carcaças
eram esquartejadas em juntas de carne e a cabeça cortada para permitir a retirada das presas e do cérebro. O tamanho dos ossos sugeria que o povo de Jokhov caçava,
sobretudo, fêmeas, mais provavelmente enquanto os machos buscavam lugares para fazer seus covis.
Encontrou-se uma variedade de equipamento de caça, embora permaneça incerto quais exatamente eram usados para ursos polares e quais para renas e gansos. Havia
pontas de projéteis de osso em forma de agulha, algumas das quais podem ter sido pregadas a cabos de seta, cujos fragmentos também foram encontrados. As pontas de
ossos grandes tinham fendas nas quais se tinham inserido lâminas de sílex. Outros pedaços de osso haviam sido talhados em pontas farpadas, muito provavelmente para
a pesca. Usavam-se marfim e galhadas para fazer picaretas, e uma variedade de tipos de pedra fora trabalhada - sílex, arenito, calcedônia e obsidiana. Algumas foram
colhidas na praia local; outras, como a obsidiana, trazidas de grande distância e usadas com parcimônia.
O povo Jokhov não mais usava a técnica bifacial para fazer seus instrumentos de pedra, como preferiam os de Studenhoe, da Caverna Dyuktai e de Berelekh. Tampouco
produziram eles os núcleos "em forma de cunha" típicos, preferindo transformar os nódulos de pedra em formas cônicas ou prismáticas antes de tirar as lascas e lâminas.
Muitas eram retiradas e usadas como lâminas de faca, sovelas e instrumentos de gravação; os pedaços de pedra maiores eram alisados para fazer machados.
Na época da ocupação de Jokhov, as pessoas em toda a Sibéria vinham usando essa nova tecnologia há vários anos, abandonando a da cultura Dyuktai à medida que a
paisagem se cobria de árvores. Embora Lubbock não encontrasse pessoa alguma em sua viagem para o norte, caçadores-coletores sem dúvida viviam nas florestas siberianas
em 6.400 a.C., pois se encontraram numerosos sítios. Sabemos muito pouco sobre o estilo de vida deles, uma vez que a maioria dos sítios não apresenta mais que um
punhado de artefatos de pedra. Por isso a descoberta e escavação de Pitul'ko são tão notáveis - os restos de moradas, cachorros e trenós, pertencendo a uma comunidade
de caçadores de urso polar da Idade da Pedra que viviam não menos de mil quilômetros Círculo Ártico adentro.
O trenó chega à aldeia quando Lubbock tira dos dentes sementes de bagas. Gostou da viagem, embora se sinta decepcionado pelo fato de os patins terem sido leitos
de madeira, em vez de queixada de baleia ou peixes congelados, como se descreve em Tempos pré-históricos.
O entardecer também chega a Jokhov, o início de um demorado crepúsculo que se desbotará de uma forma sutil, em vez de escurecer, repintando a paisagem em azuis
claros e roxos nebulosos. Há pelo menos uma dúzia de moradas circulares, a sotavento de uma colina e perto de um pequeno riacho dentro de um capão de salgueiros.
Cada uma tem madeiras rachadas como paredes e um telhado em forma de cone coberto de turfa e musgo. Várias crianças esperavam o trenó; ajudam o condutor a amarrar
os cachorros, trazendo-lhes água em tigelas de madeira e ossos para roer. A carga de madeira é empilhada ao lado de uma morada, a presa posta de pé contra uma parede.
O homem toma água e depois divide as bagas com alguns da sua família e amigos, todos homens - sentados em volta de uma fogueira acesa.
Lubbock entra numa morada, afastando pesadas cortinas e descendo para um aposento de forma cônica. Está escuro e quente lá dentro; o ar pungente, com uma mistura
de odores de peixe, couro e óleo de baleia. O chão, como as paredes, é feito de madeira velha rachada e coberto com tapetes de raízes de urzes trançadas. No meio
há uma lareira - um punhado de cinzas cercado por blocos de pedras. De cócoras, ele examina um conjunto de artefatos: uma pedra oca contendo gordura animal, uma
sovela de osso e lâminas de obsidiana. Em volta disso há fiapos de couro cortado, pedaços de linha, couros e plumas. Tigelas de madeira em prateleiras; uma variedade
de implementos pendurados - facas com lâminas de pedra, colheres de pau, arpões, peças de roupas, cestos trançados. Um monte de couros e peles sugere um lugar de
dormir.
Numa segunda morada, Lubbock encontra algumas das mulheres e crianças de Jokhov - uma dúzia de pessoas socadas num espaço minúsculo. Sentam-se aliviados das grossas
roupas necessárias para uso quando estão do lado de fora. Duas amamentam, as outras têm bebês adormecidos nos braços. O ar é ainda mais denso que antes, tendo agora
o buquê de corpos seminus e carne humana em grande parte não lavada. Sentam-se caladas, satisfeitas em ouvir uma das mães trautear para o filho. Lubbock senta-se
num monte de peles atrás delas; além do suave canto, ouve o vento, o barulho das vozes dos homens e o que o seguiu por todo o mundo pré-histórico: o bater de uma
pedra contra outra. Com essa melodia da vida na aldeia ártica, adormece.
Sabendo que suas viagens finais serão em baixas latitudes - sul da Ásia e depois África - Lubbock tem consciência de que essa visita a Jokhov é a última oportunidade
para ficar sabendo sobre a vida numa paisagem congelada. Após aprender a pegar lebres com armadilhas em Creswell Crags, tocaiar renas no Vale de Ahrensburg e esquartejar
a caça em Verberie, sabe que continua havendo uma lacuna em sua educação: como fazer roupa adequada para a sobrevivência num mundo da era do gelo. Sabe um pouco
pelo trecho sobre os esquimós em Tempos pré-históricos, mas precisa aprender por experiência própria.
As pessoas de Jokhov usam roupas feitas com pele de rena e gastam muito tempo na sua feitura e cuidado. E assim, durante todos os dias seguintes na aldeia, Lubbock
aproveita cada oportunidade para observar a fabricação de roupas, e sempre que possível dá uma mãozinha invisível. A maior parte desse hábil e laborioso trabalho
é feita pelas mulheres, e ele se lembra que os caçadores da era do gelo de Gönnersdorf celebravam corretamente as suas mulheres descrevendo-as em pedra.
A primeira tarefa que elas fazem é limpar os couros de rena - retirando toda a gordura e tendões que ficam após o esquartejamento. Para fazer isso, os couros são
raspados com lascas de pedra encaixadas em cabos de osso. É trabalho duro, e exige mão hábil para não cortar o próprio couro.
Os couros são lavados com água e postos a encharcar-se em urina, para retirar os últimos vestígios de sangue e gordura. Enquanto isso, as mulheres preparam linha
com os tendões da rena; estes são encharcados em água do mar, pendurados para secar e depois divididos em fios finos e fortes. Elas os passam repelidas vezes entre
os dentes, até ficarem macios e flexíveis; Lubbock tenta fazer o mesmo, mas sem os rigores de uma infância ártica seus dentes são demasiado afiados para servir.
Após uns dois dias, os couros são retirados da urina e enxaguados. Em seguida são presos com cavilhas e esticados; depois dobrados, esfregados e esticados mais um
pouco, até também ficarem completamente macios.
Usam-se lâminas de obsidiana, afiadas como navalhas, para cortar os couros em pedaços. Os casacos externos à altura das coxas exigem oito peças diferentes - frente,
costas, dois pedaços para o capuz, mais dois para os ombros e um para cada braço. Cortam-se os couros em ângulos, para que os pêlos da rena acabem por cobrir as
costuras, e cada peça é cuidadosamente moldada para permitir calor e movimento dentro da roupa final. Fazem-se buracos nas bordas usando-se uma sovela de osso e
as peças são costuradas firmemente com o fio de tendão e agulhas de osso; grossos pedaços de couro servem como dedais. Exatamente como disse o John Lubbock vitoriano
dos esquimós do século XIX, com esses simples instrumentos "costuram muito forte e bem". Acrescentam-se rufos de pele - tanto pela moda quanto pelo calor. A pele
de lobo também é particularmente boa para desfazer os cristais de gelo formados pela respiração no ar gelado. As calças, que chegam às panturrilhas, são feitas de
forma semelhante, e também usadas com pele de caribu do lado de fora; as perneiras, em contraste, são feitas com pêlos dentro e fora.
Mais dois artigos de vestuário são essenciais: o colete interno e as botas. A primeira é a de mais interesse para Lubbock, pois em todas as suas viagens ele jamais
soube o que se usava sob as roupas externas dos caçadores da era do gelo. No caso do povo de Jokhov, são peles de pássaros costuradas - como o Lubbock vitoriano
descreveu em relação aos povos mais recentes do Ártico. Esses coletes internos são feitos segundo o mesmo padrão das externas e com evidente conhecimento dos efeitos
isolantes específicos dos diferentes tipos de penas. Ele reconhece o uso do papo de ganso em algumas partes, e peles inteiras de patos em outros.
Peles de pássaros costuradas e viradas pelo avesso também são usadas para chinelos usados dentro das botas. As próprias botas são feitas de couro de rena ou de
urso polar; as solas, dobradas para cima em torno dos lados dos pés e costuradas a peças nos tornozelos, ligadas com correias numa única costura central. Lubbock
nota que as botas com solas de urso polar são usadas principalmente para tocaiar ursos, quando é essencial ser o mais silencioso possível na neve.
Ele tem a felicidade de ver tais roupas sendo feitas. Nós não temos nenhum indício de como se vestiam as pessoas de Jokhov, mas sabemos o suficiente sobre a vida
ali para ter alguma certeza de que roupa desse tipo era essencial. Para caçar ursos polares e renas no Ártico, precisa-se de isolamento contra o frio, sobretudo
quando de pé ou sentado inteiramente imóvel à espera da caça; a roupa também deve permitir movimentos súbitos, enérgicos e precisos quando a presa chega ao alcance.
Nem todo o tempo de Lubbock é passado dentro da aldeia. Ele muitas vezes se junta aos grupos que partem todo dia para cruzar a tundra em diferentes tarefas. É preciso
pegar água doce em bexigas numa fonte a cerca de dois quilômetros de distância. Coleta-se madeira trazida pelo mar na praia para usar em consertos das casas, e para
implementos e combustível. Durante essas andanças, o povo de Jokhov está sempre alerta para ossos de animais, presas, galhadas e quaisquer outros potencialmente
úteis. Todos são recolhidos, muitas vezes sem objetivo específico em mente. A aldeia está juncada de pilhas desse material, as moradas atravancadas com o bricabraque
que a natureza oferece.
Além de acompanhar tais viagens, Lubbock vai à caça com os homens e meninos. O verão chega ao fim, e com ele o assentamento em Jokhov. Os aldeões vieram na primavera,
seguindo os rebanhos de renas e os imensos bandos de pássaros que vêm fazer ninhos na margem do Ártico. Enquanto o verão começou com uma súbita explosão de vida
ártica, o inverno agora se aproxima com uma morte lenta e silenciosa. As noites encompridam-se e as pessoas sabem que logo virá uma escuridão permanente. Os gansos
já se foram e as poucas renas que restam logo estarão se retirando para o sul, fugindo do inverno Ártico. O povo de Jokhov irá atrás, tão intimamente ligado aos
ritmos da natureza quanto os próprios animais. Mas não exatamente ainda. Montes de neve se acumularam com as novas nevadas e as fêmeas de urso buscam lugares para
fazer seus covis de inverno. É tempo de caçar o urso polar.
As ursas são bem conhecidas; o povo de Jokhov parece capaz de identificar cada uma, sabendo a idade, onde ela fez covil antes, quantos filhotes produziu, e até
mesmo sua personalidade. Após uma escassez de comida por um período de sete anos, toma-se a decisão de caçar uma determinada ursa que retornou recentemente. É conhecida
de todos, e a caça começa com lembranças de sua vida - tempos em que ela andou tocaiando focas em pequenos icebergs e colhendo punhados de bagas. Os caçadores lembram
que a viram na primavera passada, quando ela se sentava com os filhotes tomando sol, após meses em seu covil de inverno. Eles partem da aldeia a pé e cruzam as colinas
até as rachadas camadas de gelo da costa norte. Avistam-na na água - uma cabeça branca como marfim cortando o vítreo negror. Lubbock deita-se de barriga inteiramente
imóvel com os caçadores quando a ursa ergue sem esforço seu grande volume para o iceberg. Dá dois passos e sacode-se; água do mar rodopia em camadas planas em meio
a uma fonte de espuma. Ela ergue a cabeça e olha diretamente para os caçadores, com olhinhos pequenos e negros interrogadores. Mas qualquer fato ou movimento que
tenha percebido foi soprado pelo vento. A grande ursa branca começa a andar em voltas, despreocupada, pelo gelo.
Lubbock jamais viu um animal tão bonito. Queda-se perdido em admiração quando os caçadores iniciam a tocaia, partindo em silêncio com arcos e flechas. Ele os deixa
ir, feliz em perder essa determinada aula de vida na era do gelo.
A carcaça parcialmente esquartejada é trazida para a aldeia, onde Lubbock observa o seu desmembramento até que jogam a cabeça para os cachorros à espera. Com isso,
ele deixa o povo de Jokhov entregue a qualquer trabalho e banquete que se sigam. Eles logo deixarão a aldeia, apenas para retornarem na primavera seguinte, como
têm feito desde que alguém se lembra. Tais visitas só terminarão quando a península por fendida pelo mar e as colinas de Jokhov se tornarem uma das muitas ilhas
do oceano Ártico. A aldeia será esquecida até o ano de 1989, quando Vladimir Pitul'ko chegar para cavar nesse improbabilíssimo lugar de habitação humana.

SUL DA ÁSIA

42
Passagem pela Índia
Arte rupestre indiana e aldeias na planície do Ganges,
200.000 - 85.000 a.C.
John Lubbock inicia sua viagem pela pré-história do sul da Ásia de pé no fundo da Muchchatla Chintamanu Gavi, uma das Cavernas de Kurnool, na Índia central. A brilhante
mancha de luz solar que assinala a entrada o ofusca. A data é 17.000 a.C.
Ao se aproximar da luz, ele ouve vozes e por um breve instante vê várias silhuetas ondulantes. Mas antes de chegar a elas, os caçadores já juntaram seus poucos
pertences e partiram, desaparecendo na mata que cerca a caverna. Lubbock olha o que eles deixaram atrás: algumas pedras em torno de cinzas ainda quentes, um punhado
de lascas de sílex espalhadas e as partes rejeitadas de um pequeno gamo esquartejado, a cabeça e os cascos. Um monte de entranhas jaz do lado de fora da caverna,
junto a um pedaço de chão ensangüentado.
Enquanto Lubbock se pergunta por que os caçadores teriam partido, baixa um denso nevoeiro; ele desiste da esperança de segui-los e senta-se no chão da Muchchatla
Gavi. Pegando Tempos pré-históricos no saco, procura em vão algum trecho sobre arqueologia indiana, encontrando apenas uma descrição dos "modernos selvagens" do
Ceilão (Sri Lanka) - os Vedas. Há uma breve descrição de suas cabanas feitas de casca de árvore e suas habilidades na tocaia à caça; cita-se um certo Sr. Bailey,
que "pensa que seria impossível conceber uma raça mais bárbara". Como para distanciar-se de tais opiniões, logo na frase seguinte o Lubbock vitoriano descreve os
Vedas como um povo afetuoso. O moderno Lubbock ergue os olhos do livro; o nevoeiro adensou-se e ele decide permanecer dentro da caverna até começar a clarear.
Vislumbres passageiros de pessoas envoltas em nevoeiro transmitem o senso de nosso limitado conhecimento sobre assentamentos da era do gelo no subcontinente indiano,
sobretudo o que vem após o último máximo glacial de 20.000 a.C. Punhados de artefatos de pedras, que se presume datados de entre o LGM e o surto de aquecimento global
de 9.600 a.C., são generalizados, oferecendo um vislumbre arqueológico da vida das pessoas. Mas há poucas datas de radiocarbono, nenhum vestígio de moradas e túmulos.
De todo o subcontinente, há uma única fogueira do Pleistoceno, e muito poucas coleções de ossos esquartejados.


*
Com exceção de uma extensa planície costeira a oeste, a topografia da Índia em 20.000 a.C. era em grande parte a mesma de hoje. No extremo norte, erguia-se a cadeia
de montanhas do Himalaia, coberta de pesadas geleiras. Seus grandes sistemas fluviais desembocavam no Indu e no Ganges, que atravessavam vastas planícies aluviais.
Estas se fundiam ao noroeste para formar o deserto de Thar, onde fortes ventos e extrema aridez criavam imensas camadas de areia e dunas. As avestruzes floresciam
nessas condições, mas muitos outros animais tiveram de partir quando as condições da era do gelo se tornaram severas. As paisagens continuaram secas muito além da
zona do próprio deserto. Os níveis dos rios eram baixos e cortavam profundos canais; com poucas árvores e plantas para segurar o solo no lugar, a erosão era séria.
As colinas que atravessam em grande arco a Índia central eram cobertas de maio baixo, com bolsões de pântanos e florestas nos vales. As encostas sul que levavam
ao platô de Deccan e as colinas dos dois lados do sul da Índia - as Gargantas Orientais e Ocidentais - eram cobertas de matas, provavelmente muito pouco diferentes
das de hoje. Sabemos sobre alguns dos animais que viviam dentro desses variados habitats porque seus fósseis foram recuperados de depósitos fluviais: gado selvagem
e gamo, rinoceronte e javali, uma variedade de macacos, cobras e pequenos mamíferos. As colinas do extremo sul tinham densas florestas, como as de Sri Lanka, que
poderiam ser ligadas ao continente no LGM.
A distribuição de sítios mostra que pessoas viviam em muitos cenários ambientais em todo o continente durante os turbulentos dez milênios de mudança de clima que
levaram ao fim a era do gelo. Elas acampavam nas dunas no noroeste, às vezes transformando conchas de ovos de avestruz em contas enfeitadas; eram atraídas para as
margens de quaisquer rios que continuassem a correr e lagos que retivessem sua água. Cavernas no centro e no sul da índia ofereciam abrigo, e os acampamentos eram
feitos dentro das matas baixas, bosques e florestas. Os instrumentos deixados para trás são típicos de caçadores da era do gelo: nódulos de jaspe negro, jaspe e
quartzito transformados em lascas e lâminas, raspadores e pontas de flecha. No Sri Lanka, porém, os caçadores da era do gelo já haviam adotado os microlitos como
o uso mais eficaz da pedra, mesmo antes da época do LGM.
Grande parte de seus estilos de vida está oculta para nós, de modo que temos, na ausência dos próprios indícios, de supor que esses caçadores asiáticos da era
do gelo também tinham instrumentos, roupas e moradas feitos de osso, casca de árvore, fibra, couros, plumas e outros materiais que não deixaram vestígios. Como em
outras partes do mundo onde a arqueologia é esparsa, somos tentados a olhar para caçadores-coletores mais recentes a fim de acrescentar maior substância ao quadro
fora isso vago da vida pré-histórica - como fez o John Lubbock vitoriano quando escreveu Tempos pré-históricos. A tentação é especialmente forte na Índia, onde tantas
pessoas viveram da caça e coleta até os tempos recentes. Daí arqueólogos indianos como V. N. Misra, do Deccan College, em Poona, tentarem suspender o nevoeiro da
era do gelo usando histórias de povos como os kanjars, caçadores-coletores do vale de Ganga em Uttar Pradesh, para interpretar os restos arqueológicos. Em vez de
apenas descrever o tamanho e forma das lâminas de pedra, Misra especula sobre o uso de redes de caça e cestos de vime, couros de animais transformados em tambores
e de lagartos em sapatos. O risco, claro, é que não se levante o nevoeiro para revelar o passado, mas simplesmente o presente imposto a uma época à qual ele não
pertence.
O estudo arqueológico nas Cavernas de Kurnool, encontradas nos rochedos de calcário das Gargantas Orientais no estado de Andhra Pradesh, começaram em 1884, quando
Robert Bruce Foote escavou o chamado Matadouro. Empregado da Pesquisa Geológica da Índia, ele fez trabalho arqueológico pioneiro, sobretudo no sul do país, onde
encontrou os primeiros implementos de pedra do Pleistoceno. Introduziu os termos "paleolítico" e "neolítico" na arqueologia indiana; deve-se supor, assim, que lera
Tempos pré-históricos, de John Lubbock, onde foram cunhados. O trabalho de Foote foi seguido pelo de seu filho, que escavou mais duas cavernas, intrigantemente conhecidas
como "Purgatório" e "Catedral". Os sedimentos em todas três tinham mais de dez metros de profundidade; embora só se encontrasse um artefato de pedra, abundavam os
ossos de animais.
Foote acreditava que mãos humanas haviam trabalhado um grande número dos ossos. Descreve a descoberta de arpões farpados, pontas de flecha, sovelas e facas de desenho
elegante semelhantes aos descobertos por Lartet e Christy nas cavernas da era do gelo na França. Tinha pouca idéia da idade que poderiam ter esses instrumentos;
sugeriu que os ocupantes das Cavernas de Kurnool se achavam num "baixo estágio de civilização".
M. L. Krishna Murty, do Deccan College, iniciou novas escavações nas cavernas na década de 1970. Atacou a Muchchalla Chintamanu Gavi e encontrou depósitos de ossos
semelhantes, junto com grandes quantidades de artefatos de pedra. Com a melhor compreensão da fauna animal que surgira desde a época de Foote, era agora evidente
que muitos dos ossos vinham de animais presentes em Andhra Pradesh apenas antes de chegar ao fim a era do gelo.
Murty acreditou que os ossos, vindo de uma variedade de carnívoros, herbívoros e caça pequena, haviam chegado todos à caverna por mãos humanas, supostamente envoltos
em carne e gordura. Como Foote, também pensou que muitos tinham sido moldados em instrumentos. As conclusões dos dois estão abertas a dúvidas. Nenhum dos "artefatos"
de pedra ilustrados no comunicado de Murty tem forma claramente imposta - certamente nada que se compare com os ótimos arpões e talhas da França da era do gelo.
E como as coleções de Foote se perderam, suas afirmações não podem ser avaliadas. Fraturas causadas por dentes de carnívoros, pisoteamento e simples decomposição
podem facilmente ter feito os ossos parecerem trabalhados por mãos humanas. Isso deixa as lâminas de pedra, uma fogueira feita com blocos de calcário datada de entre
17.000 e 14.000 a.C., e alguns ossos queimados, como o único indício definitivo de atividade humana perto do LGM. Assim, mesmo na Muchchatla Chintamanu, obtemos
pouco mais que uma sugestão do que era a vida na Índia da era do gelo."
Só em 9.600 a.C. a neblina levantou-se o suficiente para Lubbock julgar que vale a pena deixar a caverna. Isso coincide com o rápido aquecimento global que levou
ao fim a era do gelo e acelerou o ritmo da mudança ambiental que começara logo após o LGM. Infelizmente, os arqueólogos ainda têm poucos detalhes do padrão exato
da mudança ocorrida na Índia, sendo incapazes de ir além de generalidades sobre um aumento geral nas chuvas e o estabelecimento de uma vegetação pouco diferente
da de hoje - ou melhor, da que existia antes do extenso desmatamento da Índia.
Lubbock viaja para o norte por trilhas de animais e margens de rios. Passa por muitos tipos de árvores inteiramente novas para ele - algumas pejadas de frutos
cscarlates, outras com troncos enormes e raízes pendentes dos galhos, criando colunas e pilares semelhantes a mosteiros. Há emplumadas mimosas e acácias. Dentro
da floresta, ele vê muitos gamos, alguns de pêlo malhado e outros com chifres pontudos, javalis, macacos e rinocerontes. Todos parecem prosperar no mundo quente
c úmido do Holoceno, como também os grilos e cigarras, cujo constante canto enche o ar abafado - ar que se torna mais quente à medida que o ano passa da primavera
para o verão.
O moderno padrão rítmico da monção indiana estabeleceu-se assim que começou o Holoceno: um início de ano relativamente frio e seco, temperaturas crescentes que
atingem o pico em junho, e depois a chegada das chuvas no fim do verão. Lubbock cruza o planalto de Deccan quando sente sua primeira monção indiana. Durante dias,
o céu esteve lúgubre, com densas nuvens pejadas de chuva. Quando começam a despejar torrentes de chuva, ele se abriga numa caverna e vê o leito seco embaixo transformar-se
num grande mar corrente de água turva. Árvores são arrancadas pelas raízes, toneladas de terra deslocadas, infelizes animais levados pela enchente. As trovoadas
rolam no céu rasgadas por raios.
Os arqueólogos devem supor que muitas outras pessoas também buscaram abrigo das monções do princípio do Holoceno, pois os sítios arqueológicos após 9.600 a.C.
são relativamente abundantes em comparação com os da era do gelo. Embora isso reflita em parte melhor apresentação e facilidade de descoberta, é provável que a população
humana tenha aumentado substancialmente uma vez acabadas as secas da era do gelo. As pessoas continuaram a habitar os mesmos ambientes variados que seus ancestrais
da era do gelo, mas também puderam assentar-se em novas margens de rios e lagos disponíveis, e dentro de matagal que antes era deserto. Sua presença, porém, é ainda
indicada por pouco mais que punhados de pedra trabalhada. Como em tantas outras regiões do mundo, os microlitos tornaram-se predominantes, com toda probabilidade
refletindo uma dieta mais variada e um suprimento de pedra local. Só em muito raras ocasiões são os punhados de artefatos acompanhados por coleções de ossos de animais,
vestígios de moradas ou túmulos humanos. Como na Europa, os arqueólogos referem-se aos que criaram esses sítios como caçadores-coletores mesolíticos.
Num quente e poeirento dia de verão de 9.000 a.C., Lubbock sobe as colinas hoje conhecidas como Vindhyas Ocidentais. De um baixo cume, vê outra encimada por uma
fila de rochas parecidas com torreões que se erguem acima das árvores. Essa impressionante colina é conhecida como Bhimbetka; Lubbock descobre suas encostas cobertas
por uma mata densa e espinhosa, na qual há muitas trilhas. Algumas foram feitas por javalis e gamos, e só se pode rastejar por elas; outras foram abertas acima da
altura da cabeça humana, os galhos cortados certinho com lâminas de pedra.
As trilhas seguem entre pequenas grutas que pontilham a encosta da colina, vazadas em seu macio calcário por milênios de vento e areia. Outras se encontram abaixo
de pedras caídas que se equilibram precariamente sobre afloramentos de rocha. Outras trilhas seguem para capões de árvores frutíferas ou poças lamacentas cercadas
por rastros de animais e pegadas humanas.
Após seguir uma trilha, Lubbock descobre-se numa caverna onde trabalha um artista - o primeiro que ele vê desde que deixou o norte da Austrália. A parede oferece
uma superfície áspera, de poucos metros de largura e inteiramente aberta à luz do dia - bem diferente das paredes da funda caverna subterrânea pintadas na França
no LGM. Uma cena de caça se desenrola, mas se é mito, lembrança ou desejo, não está nada claro. Oito figuras tipo varas e aparentemente nuas já se acham a postos;
duas têm braçadeiras com borlas; uma ou usa um adereço de cabeça ou tem longas trancas soltas. A maioria parece masculina e umas poucas o são evidentemente; outras
têm cadeiras mais largas e nádegas maiores.
Todas as figuras estão ocupadas; três delas em fila, a, primeira tocaiando a presa com arco e flecha, a segunda carregando caça pequena numa vara sobre o ombro,
e a terceira, uma mulher, com cestos. Próximo aos três, outro grupo se curva, agacha e se contorce, talvez dançando num círculo. Outras figuras espalham-se em volta,
segurando varas e sacos; uma jaz no chão.
O artista pega o pincel e começa a pintar um gamo imediatamente próximo ao caçador com o arco. Umas poucas pinceladas hábeis, e o gamo já está correndo pela superfície
da rocha com o corpo inchado, e então a minúscula figura de seu feto é pintada dentro. Lubbock chega mais perto e olha o vaso de tinta: cabaças secas e ocas, uma
contendo tinta vermelha escura, outra negra e uma terceira branca. Perto há nódulos de pedras coloridas que foram raspadas na cabeça, o pigmento misturado com seiva
de árvore oleosa para lazer uma tinta viscosa. Há no chão algumas varetas e lascas de pedra, junto com vários pincéis. Sob os olhos de Lubbock, o pintor pega um,
mergulha suas finas felpas num pote de vermelho e inicia uma nova linha na parede. Mas a linha sai fina e fraca demais para seu gosto, o pincel demasiado macio.
E assim o artista pega uma vareta, mói uma das pontas com um martelo de pedra e raspa a casca, para deixar um leque de fibras duras. Com isso e uma tinta mais grossa,
completa a linha - a figura em traço forte de um búfalo duas vezes maior que a fêmea de gamo prenha.
Bhimbetka tem a maior concentração de arte rupestre de toda a Índia, nada menos que 133 abrigos pintados e pelo menos mais cem das quais as pinturas podem ter-se
erodido. Essa colina, com suas colunas de pedra características, é uma das sete das Vindhyas Ocidentais nas quais se encontraram mais de quatrocentas superfícies
de rocha pintadas. A data em que as pinturas foram feitas está aberta a debate - como acontece com tanta freqüência com a arte rupestre em indo o mundo. O povo local
as atribui a maus espíritos - mais ou menos como os aborígines de Arnhem acreditam que suas "Figuras Dinâmicas" foram pintadas pelo mítico povo mimi - e, portanto,
as superfícies de rocha de Bhimbelka sem dúvida foram pintadas antes da memória viva. Infelizmente, não se fez qualquer tentativa de datar as pinturas de lá tirando
carbono do próprio pigmento, como se fez como sucesso na Europa da era do gelo. Mas indícios circunstanciais sugerem que muitas foram feitas no início do Holoceno,
pelo menos em 8.000 a.C.
Os indícios mais convincentes vêm das escavações. Na década de 1970, várias cavernas foram escavadas e revelaram uma predominância de detritos mesolíticos - artefatos
de pedra, lixo doméstico e alguns corpos enterrados. Escavações de V. N. Misra, do Deccan College, numa caverna conhecida como IIIF-23 revelaram que ela foi ocupada
pela primeira vez no Pleistoceno Tardio por pessoas que deixaram atrás uma coleção de instrumentos de quartzito. Os ocupantes mesolíticos usavam uma gama de instrumentos,
incluindo microlitos e almofarizes, refletindo estes últimos a recém-descoberta importância de alimentos vegetais na mata do Holoceno. Eles pavimentaram o chão,
ergueram uma parede dentro da caverna e, como se encontraram nódulos de ocre vermelho e amarelo dentro do lixo, a maioria pintou as paredes. Esses pigmentos foram
achados em vários depósitos mesolíticos em Bhimbetka e deixam pouca dúvida de que o povo mesolítico criou muitas das pinturas de caverna. Povos neolíticos e posteriores
mal parecem sequer havê-la usado.
Uma segunda linha de indícios vem das próprias pinturas. Yashodhar Mathpal, do Deccan College, descreveu-as com minuciosos detalhes e identificou dois temas. O
primeiro e mais destacado é a caça e coleta - pinturas de caças ao gamo e ao javali, de pessoas coletando mel, dançando, tocando tambores, e uma larga variedade
de animais pulando, correndo e saltando. Os animais são típicos da floresta em torno - javali, búfalo, macacos e uma variedade de caça menor; vários estão pintados
com os fetos dentro. O segundo tema difere em assuntos e estilo: homens cavalgando ou controlando cavalos e elefantes, muitas vezes armados com espadas e escudos
de metal. Alguns fazem guerra, outros formam desfiles reais. Essas pinturas não têm a vivacidade das dos caçadores-coletores e animais selvagens. Nenhuma das cenas
se relaciona com a agricultura ou pastoreio - imagens logo vistas em outras partes na Índia, com a descrição do característico zebu, o gado de corcova.
Mathpal conclui, razoavelmente, que o primeiro tema foi obra de caçadores do início do Holoceno que viviam nas colinas durante todo o ano ou parte dele. O segundo
tema pode também ter sido de caçadores-coletores, mas que viveram em tempos relativamente recentes e viram soldados e a realeza dentro de pequenas e grandes cidades
nas planícies.
Mathpal tentou descobrir a motivação por trás do trabalho dos artistas. Em contraste com as da Europa da era do gelo, as pinturas de Bhimbetka foram feitas em
lugares logo vistos por todos - uma arte pública, não privada. Os animais e pessoas parecem ser mais do mundo material que do sobrenatural. Para Mathpal, as pinturas
oferecem "um registro da variada vida animal que partilhava o ambiente da floresta com o povo pré-histórico, e das várias facetas - econômicas e sociais - da vida
dessas pessoas". Ele sugere que não há motivos para explicações esotéricas para a arte de Bhimbetka.
Ao nascer do dia, Lubbock está no cume de Bhimbetka. Sobe nas colunas de rocha tão artisticamente esculpidas pela mão da natureza e vê um largo e plano vale para
os lados do norte. É coberto por uma densa e vibrante mata, com brilhantes trechos de vermelho e laranja de árvores floridas que parecem ter capturado o crepúsculo
da noite anterior. Ele desce para o vale e mais uma vez viaja por uma floresta exótica, encontrando sombra embaixo de imensas figueiras que parecem e soam como aviários.
Os assobios curtos e agudos de dourados papafigos e os guinchos de igualmente vibrantes canários indianos varam as misturadas melodias de insetos e pássaros.
Lubbock continua sua viagem para o norte, agora nas planícies aluviais do rio Ganges. Algumas árvores são imensas, tanto as de madeira dura, como ébano e teca,
quanto as carregadas de frutas; atravessa imensos capões de bambu e cristas de rocha que se erguem de repente da planície. Os sinais de vida humana são abundantes:
restos de fogueiras que sugerem acampamentos de pernoite de caça e grupos de pedras em beiras de rio que parecem arrumados demais para resultar apenas da natureza.
Lubbock encontra a carcaça ainda quente de um gamo, a perna presa numa armadilha, a morte parecendo ter encerrado uma luta longa e exaustiva. Outros sinais também
estão presentes: rastros frescos de um tigre, estéreo de elefante e rinoceronte.
Pessoas começam a aparecer - grupos de mulheres arrastando tubérculos, homens examinando rastros de gamo e conferindo armadilhas. Lubbock viaja com eles, pegando
caronas em suas canoas para atravessar o Ganges e outros rios, até aproximar-se de seu destino seguinte. Uma trilha bem batida leva-o a uma aldeia de caçadores-coletores
em 8.500 a.C.
Ele encontra uma dúzia de cabanas em forma de tenda erguidas em terreno elevado na confluência de dois pequenos rios. As coberturas são feitas de galhos grossos
e mato; cada uma tem um poço circular revestido de barro, contendo cinzas ou ossos queimados. Sentando-se junto à cabana mais próxima, Lubbock examina a aldeia e
a descobre semelhante a muitas outras que viu em suas viagens globais. Os pisos das cabanas são bem varridos, mas em outras partes o chão está juncado com o material
da vida do caçador-coletor: pilhas de lenha, mós, couros esticados. Uma coisa, porém, está faltando: as grandes pilhas de lascas de pedra jogadas fora tantas vezes
vistas em acampamentos de caçadores-coletores de outras partes. O assentamento parece deserto, a não ser por um cachorro escanifrado que fareja o terreno e um bando
de corvos que beliscam um monte de ossos. Mas dentro de uma morada Lubbock encontra um rapaz, de talvez dezoito ou vinte anos, deitado no chão e parecendo sentir
dores. Tem um dos braços deformado e sua muito, embora a tarde esteja fria e seca. Usa apenas uma tanga e um pingente branco no pescoço.
Crianças que entram correndo no acampamento espantam os corvos e anunciam a chegada de pessoas da floresta. Os adultos que vêm atrás são fisicamente grandes, e
parecem fortes e saudáveis. Alguns trazem feixes de lenha, outros têm cestos com vegetais cavados do chão da floresta. Um dos homens traz um gamo atravessado nos
ombros, outro carrega um osso enorme e gasto. Ao voltar à sua cabana, uma das mulheres - supõe-se que a mãe - cuida do rapaz no chão, enxugando seu suor com folhas
macias e ajudando-o a ir para perto da fogueira que uma mocinha - irmã dele - acende com lenha seca.
Sentindo-se como um intruso no sofrimento da mãe, Lubbock torna a sair, e encontra as outras mulheres a moer sementes, e o gamo já sendo esfolado. Uma aljava de
flechas está agora encostada na parede de uma das cabanas. Têm pontas de microlito quase idênticas às que ele viu em Azraq, Star Carr, Jokhov e tantos outros lugares
do mundo pré-histórico. Mas essas são particularmente pequenas; ele entende por que ao examinar os minúsculos seixos usados como núcleos. A pedra é evidentemente
preciosa nessa aldeia - o que explica a ausência de detritos de lascas. As pontas grandes têm de ser feitas de osso, como o retirado de uma carcaça de elefante que
Lubbock viu sendo trazido para a aldeia.
Ele segue duas das crianças maiores que se dirigem para o rio. Elas verificam linhas e redes e precisam da ajuda dele para puxar uma tartaruga capturada para a
margem. Juntos, eles a arrastam viva até o acampamento e mostram-lhes como cortar-lhe a garganta. Quando chega o crepúsculo, Lubbock junta-se à família do rapaz
doente que partilha a comida. Quando dividida entre todos, a parte deles do gamo assado dá um simples bocado para cada um; tudo o que Lubbock consegue tirar é um
pouco de tutano de um osso partido. Ele espera a chegada de alguma carne de tartaruga, mas nenhuma aparece. Comem, sobretudo, plantas grosseiras - moídas, assadas
e misturadas a uma papa em tigelas de madeira. O acréscimo de mel torna-a palatável, mas mastigar é trabalho duro e todos acabam palitando os dentes com lascas de
osso.
*
Damdama, como é conhecido hoje esse sítio mesolítico no Ganges, foi descoberto em 1978 junto à aldeia de Warikalan, e escavado até 1982 por J. N. Pal e seus colegas
da Universidade de Allahabad. Junto com Mahadaha e Sarai-Nahar Rai, escavados no início da década de 1970, é um dos três assentamentos mesolíticos relativamente
bem preservados na planície, hoje inteiramente desmatada de sua antiga floresta. Quando ossos humanos e de animais se erodiram no solo, esses sítios se tornaram
parte da mitologia local - acreditava-se que Damdama e Mahadaha eram onde antigos guerreiros tinham sido enterrados. A palavra Damdama, porém, tem uma origem mais
prosaica: significa o barulho que vinha do chão quando golpeado.
Isso pode ter-se devido a riqueza dos restos arqueológicos abaixo da superfície. Descobriu-se que Damdama tem 1,5 metro de depósitos de ocupação, contendo grandes
quantidades de microlitos e outros instrumentos de pedra, mós e martelos de pedra, restos calcinados de plantas e ossos de animais. Pequenos poços e buracos assinalavam
onde antes se tinham enterrado estacas para sustentar paredes e telhados; encontraram-se pisos compactados, junto com fogueiras e muitos poços revestidos de barro.
As moradas podem ter sido semelhantes a tendas e cobertas de palha - como as usadas pelos recentes kanjars do vale do Ganges - ou talvez simples construções de folhas
e capim como as do povo pandaram do sul da Índia.
Os depósitos nos sítios próximos de Mahadaha e Sarai-Nahar Rai, localizados nas margens de lagos em forma de ferradura, eram quase igualmente ricos, contrastando
de forma impressionante com sítios do Holoceno Inicial em outras partes. Com matas cheias de caça e plantas comestíveis, e lagos transbordando de peixes e tartarugas,
era evidentemente uma localidade favorecida. Pois embora se acreditasse originalmente que os caçadores-coletores do Holoceno passavam a maior parte do ano nas rochosas
Vindhyas, visitando a planície do Ganges apenas para pegar comida e água nos meses de verão, hoje parece que optaram por um estilo de vida assentado e sedentário.
Estudos dos ossos de animais escavados mostraram uma gama diferente de espécies, e que javalis, gamos e talvez outras caças foram mortas durante o ano todo. Além
disso, encontraram-se ossos do ratão da Índia em Mahadaha e Damdama. Trata-se de um animal comensal - não pode viver sem um constante suprimento de lixo humano para
alimentar-se - e, portanto, sua presença foi usada para defender a presença humana permanente, da mesma forma que a de camundongos e pardais nos sítios natufianos
do oeste da Ásia.
O sedentarismo é indicado ainda pelos oitenta túmulos encontrados nos três sítios - muitos outros permanecem não escavados. A maioria continha um único indivíduo,
quase sempre estendido de costas com a cabeça virada para um lado. As covas tinham sido cavadas, sobretudo, perto dos poços de fogueira ao lado das cabanas, sugerindo
que as famílias mantinham seus mortos dentro de casa.
Os restos de esqueletos oferecem uma útil intuição sobre a vida social, saúde e dieta. Mais ou menos o mesmo número de homens e mulheres fora enterrado, com uma
possível tendência para os homens. A maioria era bastante jovem, sugerindo que poucas pessoas sobreviviam além dos trinta e cinco anos. Crianças eram raras. J. N.
Pal - o escavador de Damdama - sugeriu que os muitos jovens eram enterrados fora da aldeia. O mesmo pode ter acontecido com os adultos que morriam de doença infecciosa,
traços das quais eram raros nos enterrados entre as fogueiras e casas. Os dentes eram muito gastos, indicando uma dieta dominada por material vegetal grosseiro,
e muitas vezes tinham minúsculos sulcos verticais, refletindo palitamento habitual. Muitos dentes tinham hipoplasias: linhas verticais no esmalte, mostrando períodos
de tensão nutricional quando jovem. Mas como quase todas as pessoas enterradas tinham alcançado substancial estatura, isso não parece ter inibido o crescimento.
Bens nos túmulos são escassos. Embora uns poucos contivessem pontas de flecha, pingentes e contas, ninguém em Damdama, Sarai-Nahar Rai ou Mahadaha parece ter sido
particularmente rico ou recebido um enterro mais impressionante que os outros. A impressão geral é de uma população saudável, com poucas, se as havia, distinções
sociais. Mas exatamente como Lubbock viu em outras partes, tensões sociais tendem a surgir entre caçadores-coletores sedentários. Isso poderia explicar os três esqueletos
de Sarai Nahar Rai com pontas de flecha incrustadas nas costelas, quadril e ossos do braço.
Lubbock fica em Damdama durante os meses de outono e inverno. Quando chega a monção, os rios transbordam e o lugar torna-se uma ilha dentro de um extenso lago raso.
Assim que as águas baixam, ele junta-se a um grupo que viaja a pé cem quilômetros até as Vindhyas ao sul, em busca de nódulos de pedra. Na volta, o rapaz de braço
deformado morreu, o corpo está na caverna já drenado de sangue. Cava-se uma cova ao lado da fogueira onde ele definhara lentamente. Lubbock observa o ritual fúnebre
pouco entendendo: acendem uma fogueira dentro da própria cova e deixam-na extinguir-se por si mesma, antes de depositar o corpo desidratado sobre a cinza quente,
junto com duas pontas de flecha e o pingente de marfim dele. É coberto e deixado, para ser exposto apenas quando J. N. Pal escavar o que chamará de Cova VIII em
1974 d.C., registrando que "o úmero esquerdo apresentava uma deformidade patológica".
Após partir na primavera, Lubbock inicia uma viagem para oeste, dirigindo-se para o vale do Indus, onde, pela primeira vez desde suas viagens à Europa, entrará
no mundo da agricultura.
Em 8.500 a.C., plantas e animais domesticados eram inteiramente desconhecidos do povo de Damdama; eles tinham abundantes suprimentos de alimentos selvagens e continuaram
a viver como caçadores-coletores já bem adentrado o Holoceno. Lubbock achou-os semelhantes a vários outros grupos que visitara em suas viagens - os de Uenohara no
Japão, de Koster na América do Norte e Skateholm na Suécia. Todos se tornavam sedentários pelo menos parte do ano, quando cercados por recursos abundantes e diversos,
e todos usaram seus mortos para dignificar a posse da terra. Mas o que Lubbock não podia ter previsto é que os ocupantes da planície do Ganges sobreviveriam como
caçadores-coletores muito depois de os do Japão e América do Norte terem adotado um estilo de vida agrícola.

43
Uma Caminhada Pelo Hindu Kush
Agricultura inicial no sul e centro da Ásia; a domesticação do algodão,
7.500 - 5.000 a.C.
Cinco adultos, quatro crianças, três cachorros e um rebanho de cabras saem das colinas cobertas de mata que assinalam o que hoje é o fim da Passagem Bolan, no oeste
do Paquistão. É 7.500 a.C., e enquanto Lubbock observa do lugar onde descansa junto a um rio, o grupo de viajantes busca uma área plana na qual largar os muitos
sacos e camas de enrolar que traz. Uma mulher põe no chão, com toda delicadeza, o bebê que viajou fortemente amarrado ao seu corpo. O crepúsculo já chega, e essa
família parece exausta após a viagem desde o oeste. De onde vem, exatamente, Lubbock jamais descobrirá; mas as cabras e o saco que se rompe e despeja sementes de
cevada anunciam-nos como os primeiros agricultores nas planícies do Indus. Enquanto pessoas e animais igualmente matam a sede, a região entra em novo curso histórico.
Dentro de 5 mil anos, as cidades de Harapa e Mohenjo-Daro estarão florescendo como centros da civilização do Indus.
Lubbock continua sentado e observa a gradual transformação do sítio de acampamento deles numa aldeia agrícola. Uma segunda família de migrantes econômicos chega
do Passo Bolan, e depois outra. A mata é derrubada e a cevada semeada em solos férteis anualmente reabastecidos de aluvião da inundação de inverno do rio Bolan.
A margem do rio proporciona barro para os adobes de casas retangulares e salas de armazenamento; bebês nascem e os velhos morrem; as colheitas são boas e mais terras
postas em cultivo.
Lubbock deixa o lugar onde se sentava em 7.000 a.C., rompendo o denso tapete de capim c arbustos que o pregou no chão. Vadeia as geladas e rápidas águas para dar
uma olhada mais de perto no grupo de construções que agora se erguem no lugar onde vinte gerações atrás os primeiros a chegar largaram seus sacos. É Mehrgarh, uma
aldeia agrícola com mais de cem habitantes e o primeiro assentamento de seu tipo conhecido no sul da Ásia.
Hoje, os restos arqueológicos de Mehrgarh espalham-se por vários sítios perto do rio Bolan e da planície de Kachi no Baluquistão - uma paisagem crestada na província
mais a oeste do Paquistão, com as mais altas temperaturas no verão em todo o sul da Ásia. Os sítios acumularam-se num período de mais de 4 mil anos, à medida que
novos assentamentos eram estabelecidos após o abandono completo ou parcial de anteriores. Durante todo esse tempo, o rio Bolan continuou mudando de curso; moradas
desertas foram enterradas sob sedimentos e depois expostas outra vez quando uma nova mudança de curso cortava seus depósitos de aluvião e areia.
Foi uma dessas mudanças do rio que revelou os mais antigos assentamentos de Mehrgarh; 10 metros de paredes de adobe superpostas. Os arqueólogos descobriram o sítio
no inicio da década de 1970, desde quando a Missão Arqueológica francesa no Paquistão e o Departamento de Arqueologia do Paquistão fizeram escavação, Jean-François
Jarrige é a figura principal, já havendo escavado em Mehrgarh e sítios vizinhos por quase trinta anos. A data do assentamento original continua incerta, mas em 7.000
a.C. várias casas de adobe retangulares e com vários aposentos foram identificadas na beira do rio. Eram separadas umas das outras por pátios onde se fazia a maior
parte do trabalho doméstico, e sob os quais se enterravam os mortos. Descobertas iniciais de mós e lâminas de sílex com o brilho característico que resulta do prolongado
corte de cereais sugeriram um assentamento agrícola; logo se obteve a confirmação disso de uma fonte semelhante à que primeiro identificara o cultivo do arroz no
vale do Yangtzé.
As primeiras pessoas de Mehrgarh misturavam barro com palha - os restos jogados fora da debulha - quando laziam adobe. Embora as paredes que ergueram depois desmoronassem,
ficassem enterradas sob novas paredes e depois aluvião, fossem crodidas pela água do rio e finalmente escavadas pelos arqueólogos, os adobes ainda continham marcas
de plantas - tendo a própria palha quase inteiramente se decomposto. Foram examinadas por Lorenzo Constantini, do Museu Nacional de Arte Oriental em Roma, um especialista
em antigos restos de plantas que trabalha com Larrige. Ele identificou diversas variedades de trigo domesticado e - em quantidades muito maiores - cevada. Alimentos
de plantas selvagens também foram recolhidos de Mehrgarh; junto com os cereais, Constantini identificou as sementes da fruta jujuba, semelhante à ameixa, e de tâmara.
Essas frutas sugerem que a planície de Kachi foi consideravelmente mais úmida do que é hoje.
Os únicos restos arqueológicos conhecidos nessa região antes de Mehrgarh são punhados de microlitos. Foram deixados por caçadores-coletores que não parecem nem
ter cultivado plantas selvagens nem vivido em assentamentos permanentes. E assim a história arqueológica do Baluquistão contrasta agudamente com a do oeste da Ásia,
onde os primeiros agricultores foram precedidos por caçadores-coletores que viviam em aldeias e cultivavam cereais selvagens. Devemos concluir que a agricultura
chegou à planície do Indus como um pacote pronto de trigo, cevada, cabra e arquitetura de adobe, trazida por migrantes vindos do oeste. O Passo Bolan parece o ponto
de chegada mais provável, pois foi uma rota de comerciantes e viajantes durante todos os tempos históricos.
As migrações do oeste da Ásia para as planícies do Indus a leste são mais difíceis de explicar que as para a Europa a oeste, pois envolviam cruzar o imenso planalto
iraniano em busca de solos férteis. Mas não deve surpreender o fato de que as pessoas estavam dispostas a fazer essas jornadas - a história já contou as extraordinárias
viagens de caçadores da era do gelo pelas Américas, Austrália e o Ártico para chegar aos mais remotos cantos da Terra. Os agricultores migrantes do Neolítico simplesmente
seguiam uma longa tradição do Homo sapiens: eram incorrigivelmente curiosos sobre novas terras, e economicamente ousados.
Quando Lubbock se aproxima das construções de Mehrgarh em 7.000 a.C., nota outros animais em currais além das cabras - sobretudo bezerros novos de zebu, o gado selvagem
local de corcova, diferente do oeste da Ásia.
Está havendo um enterro, e um dos pátios acha-se cheio de gente que cerca um fosso cavado no chão. Lubbock consegue espremer-se até a frente e vê o corpo de um
rapaz com os joelhos dobrados contra o peito numa cova rasa. O morto usa um sudário vermelho e um fio de conchas marinhas no pescoço. Após ter visto tantos enterros
em todo o mundo pré-histórico, Lubbock está mais interessado em olhar as pessoas à sua volta. Muitas também usam conchas e ele reconhece algumas como dentálio -
as conchas tubulares que viu igualmente em Gönnersdorf, na Europa da era do gelo. Também os dentes chamam a atenção, por serem manchados de um desagradável marrom-amarelado.
Uma figura que parece um sacerdote balança a cabeça para um auxiliar, que se adianta puxando cinco relutantes cabras novas numa correia. Uma a uma elas são suspensas;
cortam-lhes as cabeças e drenam-lhes o sangue em cestos impermeabilizados com betume. As carcaças são postas aos pés do morto. Põem um dos cestos transbordantes
de sangue dentro da cova. E então o homem e as cabras são enterrados, e o lugar coberto com barro.
Enterros em casas e pátios não são mais novidade para Lubbock. Muitas outras características de Mchrgahr também parecem conhecidas. Ao explorar a cidadezinha,
ele encontra a mesma gama de atividades e ritmos diários, os mesmos barulhos e cheiro, como nas cidadezinhas do oeste da Ásia também dependentes de cereais e cabras.
Como em Jericó e Ain Ghazal, uma variedade de gamelas, vasos de pedra e cestos toma o lugar da cerâmica. Mas os artefatos de pedra - pontas de flecha, lâminas de
faca, instrumentos para raspar couro - estão mais próximos dos usados pelos caçadores-coletores que ainda vivem nas planícies do Indus em 7.000 a.C. Como os dois
povos dependem de nódulos de quartzo do leito do rio como matéria-prima, e saem em busca de caça local, isso dificilmente surpreende. A população de caçadores-coletores,
porém, já sentiu o impacto dos agricultores que chegam, pois muitas de suas adolescentes foram tomadas como esposas. As moças mostraram-se inteiramente dispostas
a abandonar a vida de caça-coleta pelo que vêem como a segurança econômica da agricultura.
Lubbock tem a atenção atraída de repente para vozes acaloradas que vêm de dentro de uma casa próxima. Entra e acocora-se atrás de dois homens que se sentam de
pernas cruzadas no chão do único aposento. Um veste um manto e um lenço pretos de lã inteiramente diferentes das roupas brancas e marrons usadas em Mchrgarh. Tem
um monte de contas azuis-brilhantes e é evidentemente um mercador em visita. O outro corre os dedos pelas conchas marinhas que traz escondidas dentro de uma bolsa
de couro. O aposento é imundo e o ar fétido. Um fumarento fogão de barro arde num canto, parte de um gamo esquartejado pendurada acima. Cestos, tigelas de pedra
e uma variedade de enxadas, paus de cavar e outras coisas empilham-se contra a parede. Uma mulher senta-se num monte de couros e tapetes de palha, amamentando o
filho e observando a negociação.
O negócio leva várias horas para ser concluído. É freqüentemente interrompido por chás de ervas servidos, feitos jogando-se pedras quentes do fogão em tigelas
d'água e folhas secas. Chega-se finalmente a um acordo muito depois do cair da noite. Servem-se pão e carne de veado, seguidos de leite bebido em canecos de madeira.
O homem, a esposa e o filho, o mercador e Lubbock dormem dentro do único aposento, tomando inteiramente o chão. Quando o mercador se levanta ao amanhecer, e parte
para subir o Passo Bolan, Lubbock se sente impelido a segui-lo, feliz em escapar à criança que chorou a noite toda.
A visita de Lubbock a Mchrgarh foi demasiado breve para ele poder avaliar suas artes e ofícios; tampouco teve tempo para testemunhar seu crescimento econômico. Não
viu, por exemplo, as estatuetas estilizadas de pessoas sentadas e animais encontradas dentro de algumas casas; embora visse os zebus no curral, não pôde apreciar
seu significado para a futura economia da cidade.
Quando Jean-François Larrige e seus colegas examinaram os ossos de animais em sucessivas camadas do depósito arqueológico que encontraram, os de boi e carneiro
foram-se tornando progressivamente menores, enquanto os de gamo e gazela permaneciam em grande parte inalterados. Isso indicava que o carneiro selvagem local c o
gado de corcova tenham sido lentamente domesticados, enquanto a gazela continuou selvagem durante toda a história da cidade - embora o número delas caísse, pois
seus ossos se tornavam cada vez mais escassos. A mudança gradual da dependência da caça selvagem para animais domesticados, sobretudo o gado, também se reflete no
número muito menor de microlitos - e, portanto, de armas de caça - encontrados nos depósitos posteriores da cidade.
Há muitos túmulos em Mehrgarh. A maioria foi encontrada sob os pátios e continha uma variedade de bens fúnebres - inteiramente diferentes dos caçadores-coletores
de Damdama. Machados de pedra polida, elegantes lâminas de sílex, vasos de pedra, nódulos de ocre e contas de pedra polida eram colocados junto com os mortos. Várias
contas eram feitas de turquesa e algumas de lápis lazúli, com toda probabilidade vindas do norte distante do Afeganistão de hoje. Ao contrário, as conchas marinhas
de Mehrgarh tinham vindo das margens árabes, 500 quilômetros ao sul. Alguns dos ossos escavados eram pintados de vermelho, sugerindo que os corpos haviam sido cobertos
com sudários tingidos.
À medida que a cidade se expandia, criou-se um cemitério formal, contendo pelo menos 150 túmulos. Muitas covas eram agora construídas como túmulos subterrâneos,
os corpos colocados em câmaras embaixo da terra divididas por baixas paredes de adobe. Essas paredes eram periodicamente derrubadas, exigindo que se afastassem os
ossos existentes. Depois, reconstruíam-nas mais uma vez. A aparência desses túmulos deve refletir a crescente importância dos laços de família, mas com quais conseqüências
para a vida diária, é difícil saber.
Até hoje, extraiu-se dos ossos pouca informação sobre saúde e dieta. Um estudo dental descobriu que os dentes do povo de Mehrgarh eram semelhantes aos dos povos
mesolíticos indígenas do sul da Ásia, visivelmente grandes. Isso parece desafiar a idéia de que seus ancestrais eram agricultores imigrantes do oeste, e não um povo
local que simplesmente adotara a idéia e os costumes da agricultura. Na maioria, os camponeses neolíticos tinham má saúde dental, devido em parte a uma dieta de
alimentos de plantas grosseiras invariavelmente misturadas com areia do processo de moagem, e em parte à grande quantidade de carboidratos que consumiam e causavam
decomposição. Mas as cáries estavam praticamente ausentes entre o povo de Mehrgarh, de dentes saudáveis como os dos caçadores-coletores. Isso parece ter sido devido
ao flúor naturalmente presente na água do rio; reduzia a decomposição, embora manchasse os dentes de marrom.
Uma das câmaras funerárias, datadas de cerca de 5.500 a.C., continha um homem adulto deitado de lado, com as pernas dobradas para trás, e uma criança, de aproximadamente
um ou dois anos, a seus pés. Junto ao pulso esquerdo da criança havia oito contas de cobre que antes formavam um bracelete. Como só se encontraram tais contas de
metal num único outro sítio neolítico, o homem devia ser uma pessoa extraordinariamente rica e importante. A análise microscópica mostrou que cada conta fora feita
malhando-se e esquentando-se o núcleo de cobre até torná-lo uma fina lâmina, enrolada então em torno de um fino bastão. A substancial corrosão impediu um estudo
tecnológico detalhado das contas; mas isso revelou-se uma bênção, pois a corrosão levara à preservação de uma coisa muito extraordinária dentro de uma das contas
- um pedaço de algodão.
Foram Christophe Moulherat e seus colegas do Centre de Recherche et de Restauration des Musées de France que fizeram essa espantosa descoberta. Quando se cortou
uma das contas pela metade, descobriram-se fibras vegetais - os restos do cordão que antes unia as contas. Tinham sobrevivido porque os compostos orgânicos foram
substituídos por sais metálicos oriundos da corrosão do cobre. Um pedaço de fibra de 5 milímetros quadrados foi isolado e coberto com uma fina camada de ouro, para
permitir uma varredura eletrônica e revelar sua estrutura. Para fazer outras observações microscópicas, as fibras tiveram de ser envoltas em resina e polidas com
uma pasta de diamante.
Após outros estudos microscópicos, as fibras foram inquestionavelmente identificadas como algodão; na verdade, um feixe de fibras verdes e maduras enroladas juntas
para fazer o cordão, diferenciadas as duas pela grossura das paredes das células. Como tal, essa conta de cobre continha o mais antigo uso conhecido do algodão no
mundo por pelo menos mil anos. O segundo mais antigo foi encontrado em Mehrgarh: uma coleção de sementes de algodão descobertas entre grãos de trigo e cevada calcinados
diante de um de seus aposentos de adobe.
Moulherat não conseguiu determinar se as fibras de algodão cm Mehrgarh vinham de plantas selvagens ou domesticadas, mas tem fortes suspeitas da última hipótese.
Constantini pensa o mesmo, em vista das sementes de algodão encontradas com cereais domesticados no que provavelmente era uma área de armazenagem. Parece que os
camponeses de Mehrgarh vinham cultivando o algodão não apenas pelas suas fibras, mas também pelas sementes ricas em óleo.
O algodão é hoje a mais importante safra de fibra do mundo, cultivado em mais de quarenta países. Conhecem-se mais de cinqüenta espécies, todas classificadas como
membros do gênero Gossypium. Só quatro destas são cultivadas, cada uma das quais parece ter evoluído de forma inteiramente independente, numa diferente parte do
mundo. O Gossypium hirsutum é a espécie mais largamente cultivada, e julga-se que se originou de progenitores selvagens na Meso-América; um segundo algodão do Novo
Mundo, o G. barbadense, surgiu na América do Sul. O mais disseminado algodão africano é o G. herbaceum, na certa, originado na África do Sul, pois se descobriu que
um provável ancestral dá como elemento nativo em suas matas e florestas abertas. Julga-se que a quarta espécie, o G. arboreum, se originou em alguma parte entre
a Índia e o leste da África.
Até as descobertas de Mehrgarh, supunha-se que a domesticação do G. arboreum ocorrera durante a época da civilização do Indus, não antes de 2.500 a.C. Mas não
devemos nos surpreender se os camponeses dessa região já estivessem cultivando algodão em 5.500 a.C.; sabemos que os do vale do Jordão, que tinham economia e tecnologia
semelhantes aos de Mehrgarh, vinham fabricando tecidos pelo menos desde 8.000 a.C. O indício disso veio de uma fonte improvável - a minúscula caverna Nahal Hemar,
localizada longe de qualquer assentamento conhecido. Mas mesmo essa hoje parece uma descoberta banal, comparada com o uso de folha de ouro e pasta de diamante para
revelar traços de algodão dentro de uma conta de cobre corroída.
Em 5.500 a.C. as construções ocupadas de Mehrgarh situavam-se a 200 metros de seu sítio original. O gado tornara-se o animal dominante, talvez usado para aradura,
transporte e pelo leite, além da carne. Outros fatos incluíram a produção de cerâmica. Esta aparece pela primeira vez em forma de vasos mais ou menos finos - jarros
em forma de pêra, pintados de vermelho e com bordas viradas para fora. Vasos de pedra e cestos impermeabilizados com betume ainda serviam para as necessidades diárias:
a nova cerâmica parece mais adequada para exibir e impressionar os visitantes. Talvez fosse usada para tomar leite.
Mchrgahr continuou a expandir-se durante vários milhares de anos, mudando repetidas vezes de posição na planície de Kachi e deitando a base da civilização do Indus.
As escavações de Jarrige revelaram uma notável seqüência de desenvolvimento. Em 4.000 a.C., introduziu-se uma cerâmica grosseira para as necessidades diárias, que
passou a ser fabricada em torno para produção em massa; as brocas de arco agora tinham ponta de jaspe verde, para transformar uma variedade de pedras em contas.
Em 3.500 a.C., as estilizadas estatuetas de barro já tinham sido substituídas pelas de aspecto mais naturalista, que, junto com a cerâmica, logo seriam produzidas
em massa. Usavam-se barro e osso para fazer timbres, que atestam não apenas a crescente importância do comércio, mas também uma nova cultura de propriedade privada,
segredo e riqueza. O comércio pode ter sido o estímulo para criar o trabalho em cobre, evidente pela descoberta de cadinhos usados para fundição. Nessa data, descobrem-se
cidades agrícolas semelhantes por todo o leste do Irã e oeste do Paquistão. Delas acabariam por surgir as cidades de Harappa e Mohenjo-Daro - culminação de um processo
posto em andamento pela origem da agricultura no Oeste da Ásia, e depois pelos migrantes econômicos que encontrariam solo fértil nas planícies do Indus em 7.500
a.C.
Enquanto essas cidadezinhas agrícolas floresciam, a agricultura espalhava-se para o leste da Índia. Mas os "pacotes" oeste-asiáticos de cevada, trigo e cabra tinham
chegado a seus limites ambientais. Além da extensão para leste das planícies do Indus, o clima mudou de verões secos e invernos úmidos para o exato oposto, devido
à monção indiana. E assim, em vez de continuar a espalhar-se, elementos escolhidos do pacote neolítico foram adotados aos pedaços - exatamente como aconteceu no
sul da Europa. Os caçadores-coletores indígenas do sul da Ásia logo começaram a cultivar suas próprias plantas locais como feijão, mungo e painço.
O sítio de Bagor no Rajastão ilustra o tipo de economia híbrida que surgiu. Localizado numa duna dentro de um ambiente tipo savana, o sítio dá para o rio Kotari,
que só retém água hoje durante a monção. Parece ter sido um sítio de acampamento a curto prazo, com toda probabilidade usado numa base anual por volta de 6.000 a.C.
O chão foi pavimentado com lajes de xisto, e alinhamentos circulares de pedra sugerem quebra-ventos ou frágeis cabanas. Havia um túmulo - uma jovem de 18 anos deitada
de costas, com o braço esquerdo repousando atravessado no corpo. Os artefatos eram todos mesolíticos: grande quantidade de microlitos feitos de quartzo e jaspe negro,
junto com fragmentos de mós e pilões de pedra. Os ossos de animais escavados vinham, sobretudo, de gado selvagem, gamos, lagartos, tartarugas e peixes. Mas também
incluem os de carneiros e cabras domesticados. Estes últimos podem ter sido de animais bravos que escaparam de rebanhos mais a oeste, ou abatidos por incursões de
caçadores-coletores em assentamentos agrícolas. Alternativamente, os próprios caçadores-coletores podem ter começado a administrar seus próprios rebanhos pequenos.
A Índia Central tornou-se um cadinho agrícola, sobretudo a partir de 5.000 a.C. em diante, quando o arroz domesticado começou a chegar do sul da China. Esse, pelo
menos, é o cenário mais provável para explicar como o arroz veio a ser recuperado do sítio de Chopani Mando, na planície aluvial do rio Belan, abaixo da parte norte
das colinas Vindhya. A domesticação indígena de arroz selvagem é outra possibilidade.
A disseminação da agricultura para o sul da índia só ocorreu em 3.000 a.C., e tomou principalmente a forma de pastoreio de gado. Conhecem-se muitos assentamentos
do Neolítico pelos topos de afloramentos de granito em todo o planalto de Deccan, mas solos ácidos destruíram os restos de plantas c tornaram os ossos de animais
muito escassos. Complementando esses sítios, há numerosos "montes de cinzas", às vezes localizados perto de um assentamento, mas freqüentemente isolados dentro do
que teriam sido densas florestas. Foram formados pela queima periódica de estrume de gado dentro de cercados de palmeira, antes usados para proteger o gado de animais
selvagens e atacantes.
A prova direta dos currais de gado vem de rastros de patas preservados nos depósitos de estrume queimado no sítio de Utnur. Esse cercado em particular foi queimado
e reconstruído várias vezes. Na Índia moderna, a queima de cercados semelhantes está ligada a festividades no início ou no fim das migrações sazonais do gado para
pastos na floresta. Esses incêndios também têm um papel prático: o gado é tangido a atravessar o calor para matar os parasitas, impedindo a disseminação de doenças.
Em 6.500 a.C., a viagem de verão de Lubbock segue o mercador de Mehrgarh, atravessando as montanhas do Aleganislão. Ele tem de trepar em rochas de granito e passar
por estreitas gargantas, onde rios trovejantes sugam e puxam os rochedos e o barulho reverbera entre as paredes dos desfiladeiros como dentro de um túmulo. Essas
gargantas dão em vales de mata ladeados por margens de seixos que oferecem vislumbres ocasionais de picos acidentados cobertos de neve. Os vales altos são limitados
por penhascos que assinalam até onde chegaram as geleiras antes que o aquecimento global tornasse essa terra habitável para a humanidade. O mercador visita vários
assentamentos, cada um com um trato de verde brilhante com cereais e cabras pastando numa encosta de colina vizinha. Alguns ficam em torno de grandes cavernas, muitas
vezes com palhoças feitas dentro; outros têm pequenas moradas ovais de adobe cobertas com folhas do gigantesco ruibarbo selvagem que dá em abundância no fundo dos
vales. Eles passam vários dias em cada assentamento, enquanto o mercador troca algumas de suas conchas marinhas por pedra colorida e renova as amizades. Trocam-se
comida e água por notícias e mexericos de Mehrgarh e outras aldeias pelas quais ele passou.
Quando se dirigem para o centro do Afeganistão, Lubbock separa-se do mercador a fim de visitar um assentamento no norte, onde as altas montanhas e estreitos passos
dão lugar a colinas e penhascos de calcário impressionantes, mas ainda acidentados. Chega à entrada de uma grande caverna. Duas famílias vivem dentro dela, junto
com suas cabras c cachorros; é escura e bolorenta, o chão juncado de lixo da preparação de comida, feitura de instrumentos e roupas. A data é 6.250 a.C., mas não
há sinais de vasos de cerâmica, pois ainda se usam gamelas e cestos de vime. Em bolsões de solo próximos, cultivam-se cereais.
Os moradores da caverna sentam-se ociosos ao sol, tomando chá de ervas e refletindo sobre a beleza de sua paisagem. Lubbock junta-se a eles; admira o tapete de
prímulas que se espalha em torno da caverna, sente o cheiro de rosas selvagens e os barulhos do rio que corre entre amoreiras e nogueiras. Ali no coração da Ásia
Central - alguns diriam no coração do mundo - só os besouros estão em ação, carregando estrume de cabra para seu depósito particular.
Essa caverna, conhecida localmente como Ghar-i-Asp (Caverna do Cavalo) e situada em Aq Kupruk (Ponte Branca), no terraço do rio Balkh, faz parte de um pequeno número
das que foram examinadas arqueologicamente no Afeganistão. Foi escavada com a próxima Ghar-i-Mar (Caverna da Serpente) por Louis Dupree em 1962 e 1965, para o Museu
Americano de História Natural do Afeganistão. As duas têm profundos depósitos, que mostram uma ocupação quase contínua do solo desde logo depois do LGM em 20.000
a.C. até início dos tempos históricos, contendo os níveis de cima vidro islâmico do século XII d.C. Os ocupantes da era do gelo usaram a caverna para caçar íbis,
cabras selvagens e gamos: foram seguidos por pessoas com cabras domesticadas e depois artefatos de ferro: muitas peças variadas, junto com lâminas de faca, pontas-de-lança,
braceletes de bronze e fragmentos de uma moeda chinesa.
Dupree situou o tempo em que os caçadores de Aq Kupruk começaram a tornar-se pastores na data impressionantemente antiga de cerca de 10.000 a.C. Baseou-se, porém,
em algumas identificações bastante questionáveis de ossos de cabra como pertencentes a animais domesticados, e não selvagens, junto com algumas datas de radiocarbono
do mesmo caráter duvidoso. Se ele estiver certo, seria a mais antiga domesticação de cabras atualmente conhecida, mas devemos ser cautelosos. É necessário um novo
estudo das Cavernas de Aq Kupruk para que se possa extrair quaisquer conclusões. O que está claro, no entanto, é que em 6.250 a.C. comunidades espalhadas viviam
por todos os altos vales do centro do Afeganistão, pastoreando cabras e cuidando de pequenos tratos de trigo e cevada.
Após visitar Aq Kupruk, Lubbock continua a rumar para o noroeste, até chegar à borda do planalto montanhoso que hoje chamamos de Kopet Dag (Montanha Seca), no Irã
moderno. Uma aguda descida leva a enormes leques de sedimentos, primeiro muito íngreme e depois diminuindo até uma mata coberta de pistacho. Lubbock posta-se na
beira do precipício e olha para o nordeste, entrecerrando os olhos contra o vento gelado. Além da mata, uma savana cinzenta pontilhada de colinas e manchas vermelhas,
prateadas e verdes estende-se até longe, fundindo-se no amarelo de um deserto aparentemente infinito.
Lubbock segue a borda da escarpa por mais 200 quilômetros, até chegar a um ponto no qual tem de descer para visitar o próximo assentamento em suas viagens: a aldeia
agrícola de Jeitun. Escolhe um vale profundo e desce para a mata, onde árvores frutíferas estão carregadas de romãs, maçãs e pêras maduras o suficiente para serem
comidas.
Um rio que serpeia entre os pés de colinas e dunas cobertos de papoulas à beira do deserto leva Lubbock ajeitun. Cerca de vinte casas de adobe se agrupam numa
pequena colina, envoltas em fumaça densa e acre do estéreo queimado como combustível. Muita coisa aí lembra-lhe Mehrgarh e as cidadezinhas agrícolas do oeste da
Ásia, embora Jeitun seja muito menor. As casas têm um aposento retangular e estão dispostas em torno de pátios com latrinas externas e prateleiras de armazenagem
para o grão. Lubbock percorre a aldeia, vê duas cabras sendo esquartejadas num pátio e a feitura de cestos em outro. Mós jazem abandonada, mas cercadas por uma densa
colcha de retalhos de cascas e palha coloridas.
Afastando uma cortina para entrar numa casa, Lubbock acha o interior quente, fumacento e malcheiroso. Uma grande fogueira retangular queima estrume num canto,
com pão meio assado no quente chão de barro em volta. No canto oposto, há um monte de couros, peles e tapetes empilhados sobre uma plataforma, supostamente usada
para dormir. Num terceiro, um poço revestido de barro é usado para armazenar grãos. Foices de lâminas reluzentes e cabos de osso pendem da parede; um cesto contém
uma variedade de outros instrumentos com lâmina de pedra. Várias tigelas empilham-se no chão; Lubbock pega uma - um vaso de cerâmica pintado com linhas vermelhas
onduladas.
Entra uma mulher, vestindo grossas camadas de couros e lãs; usa um colar de conchas marinhas, muito parecidas com as vistas em Mehrgarh, e tem a cabeça envolta
num lenço. Quando ela vira o pão, Lubbock nota duas estatuetas de barro perto do fogo, uma cabra e um ser humano. Mas antes que possa dar uma olhada mais de perto,
três crianças passam rindo aos trambolhões pela entrada cortinada; esperam pacientes até que a mulher põe um pedaço de pão meio assado em suas mãozinhas imundas.
E então saem correndo.
Lubbock visita várias outras casas, descobrindo-as de desenho quase idêntico, embora a maioria tenha pisos de reboco. Como as pessoas de Jeitun se acham trabalhando
nos pátios e nos campos em volta, a maioria dos ocupantes ou é muito velha ou muito nova. Lubbock vê um grupo de homens e mulheres à beira do rio, que termina logo
depois da aldeia num pântano, e vai investigar. Eles fazem adobes, avidamente ajudados por crianças, que, claro, estão cobertas de lama. Alguns cavam na margem do
rio, outros misturam o barro com palha e molda-os em tijolos, cada um do tamanho do antebraço de Lubbock, mas um pouco mais grosso. A palha é cortada num campo próximo,
já havendo as espigas de milho sido colhidas varias semanas antes.
Nessa noite Lubbock senta-se dentro de um pátio, quando a lua cheia sobe acima das casas de adobe de Jeitun. É 6.000 a.C., e ele imagina o que se passa em outras
partes do mundo nessa data na história humana. Lembra os que vivem em Damdama e caçam ursos polares em Jokhov, no Ártico; pensa que canoas devem estar cruzando o
Estreito de Torres e chegando a Skateholm no sul da Suécia; que patos são apanhados em armadilhas em Koster; e finalmente, nos que vivem cara a cara com touros em
Çatalhöyük. América, Europa, Austrália, norte, sul, leste, oeste da Ásia - ele os visitou todos. Só resta um vazio a preencher, um continente habitável no mundo
que ainda precisa visitar: a África.
Jeitun é um de vários sítios arqueológicos na zona de sopé da base do Kopet Dag, no moderno Turcomenistão, que atestam o cultivo de cereais e pastoreio de cabras
em 6.000 a.C. As semelhanças que Lubbock sentiu entre Jeitun, Mehrgarh e as cidadezinhas agrícolas do Oeste da Ásia são reais e não surpreendem - todas têm a mesma
economia, em cenários ambientais semelhantes na borda do planalto iraniano. E exatamente como o assentamento em Mehrgarh, Jeitun suscita o problema de saber se os
primeiros camponeses do Turcomenistão eram imigrantes do oeste, caçadores-coletores indígenas que conseguiram semente e animais pelo comércio, ou tiveram origem
nas colinas abaixo do Kopet Dag, onde trigo e cevada já eram cultivados algum tempo antes de 6.000 a.C.
Jeitun e os sítios vizinhos existem como montes chamados pelos locais de Kurgans. A primeira escavação foi feita na virada do século XIX para o XX e demonstrou
que eram os restos acumulados, desabados e erodidos de casas de adobe. Na década de 1950, houve as primeiras escavações em Jeitun, feitas notadamente pelo arqueólogo
soviético V. M. Masson. Esse pequeno monte situava-se além do sopé e entre as dunas do vasto deserto de Kara Kum. Masson revelou um assentamento de pelo menos trinta
moradas pequenas, retangulares e de um aposento na parte de cima do monte, junto com lareiras, áreas de armazenamento e pátios. Embora nenhum resto de planta fosse
recuperado, encontraram-se os mesmos sinais de agricultura que em Mehrgarh: foices de sílex com o brilho característico da colheita e marcas de cevada e trigo dentro
de adobes.
Novas escavações em Jeitun foram feitas em 1987 pelo arqueólogo turcomeno Kakamurad Kurbansakhatov. Em 1989, V. M. Masson convidou David Harris, do Instituto de
Arqueologia de Londres, para aplicar as últimas técnicas de extração de restos de plantas nos depósitos arqueológicos e recriar a paisagem em que vivera o povo de
Jeitun. Trabalhando com seu colega Gordon Hillman, Harris recuperou grãos de trigo e cevada, junto com os de muitas plantas selvagens, confirmando que Jeitun se
tornara uma aldeia agrícola estabelecida em 6.000 a.C. O envolvimento britânico continuou entre 1990 e 1994, quando uma equipe de escavadores se juntou aos da Rússia
e do Turcomenistão.
Esse novo trabalho resultou numa mudança das descrições da arquitetura e artefatos de pedra para outras da economia pré-histórica de Jeitun e ecologia local. Mas
Harris e seus colegas enfrentavam uma tarefa intimidante. Poucas pistas existiam sobre a vegetação pré-histórica, pois as plantas escavadas eram raras, não havia
pólen e a vegetação indígena fora quase inteiramente destruída por milênios de cabras pastando. Do mesmo modo, sistemas modernos de irrigação alteraram radicalmente
o curso do Kara Su - o rio que Lubbock seguiu - de modo que o tempo, a quantidade e localização da água para o povo de Jeitun permanecem incertos. Mesmo assim, fizeram-se
alguns progressos.
Supôs-se que as árvores e arbustos que ainda cresciam dentro dos úmidos vales do Kopet Dag, como as maçãs e ameixas que Lubbock apreciou, eram antes mais disseminados.
Julga-se que a mata dominada pelo pistacho cobria as colinas inferiores, devido à sobrevivência de plantas trepadeiras em geral exclusivamente associadas a esse
tipo de árvore. Como é provável que o regime de chuvas em 6.000 a.C. fosse semelhante ao de hoje, com uma efetiva seca de verão, o trigo só poderia ter dado em solos
que tinham água suficiente no chão para mantê-los nos meses de verão. As destrutivas inundações de primavera causadas por excesso de chuva e gelo derretido do Kopet
Dag eram outro problema que enfrentavam os agricultores de Jeitun. David Harris concluiu que os únicos campos viáveis deviam ter sido nos solos relativamente altos,
planos e salgados entre as dunas, perto dos canais ativos, mas protegidos, do Kara Su. Isso foi confirmado quando Gordon Hillman encontrou sementes de junco marinho
entre os restos de cereal - uma erva daninha que infesta o trigo quando cultivado nesses solos e que não tolera situações de beira de rio.
O estudo das mandíbulas de cabra escavadas por Tony Legge - cujo trabalho com os ossos de animais de Abu Hureyra e Star Carr já encontramos - mostrou que estavam
presentes todos os estágios de crescimento e desgaste. Isso sugere que os animais foram mortos durante o ano todo, implicando que algumas pessoas, pelo menos, eram
moradoras permanentes de Jeitun. Além de cuidar de seus rebanhos, o povo de Jeitun caçava cabras selvagens nos sopés das colinas de Kopet Dag, junto com javalis,
lebres e raposas. Mas a gazela era a presa favorita. Antes da construção da ferrovia que cruza hoje o Turcomenistão, grandes rebanhos desses animais migravam sazonalmente
das montanhas e altos sopés para passar o inverno dentro do Kara Kum, antes de retornarem na primavera. Se faziam a mesma coisa em 6.000 a.C., Jeitun teria estado
em posição quase perfeita para interceptar os rebanhos migrantes.
As recentes escavações emjeitun não encontraram traço algum de assentamentos pré-agricultura em que os próprios caçadores-coletores poderiam ter começado a cultivar
cereais selvagens. Na verdade, é improvável que os ancestrais selvagens do trigo cultivado em Jeitun estivessem presentes nessa parte da Ásia Central. E assim, parece
que, como no Baluquistão, agricultores plenos tinham chegado aos sopés e estepe que bordejavam o Kara Kum. Para fazer isso, devem ter descido do Kopet Dag, ao qual
eles, ou seus ancestrais, haviam subido do oeste da Ásia.
Mais uma vez, de pé na borda do Kopet Dag, Lubbock olha a estepe e o deserto a leste. Espirais de fumaça sobem de Jeitun e assentamentos vizinhos aninhados nos sopés
de colinas e dunas muito abaixo. Ele agora sabe que as pequenas manchas verdes são campos de trigo, e suas bordas brilhantes os pântanos de sal reluzindo ao sol.
Durante o ano que passou em Jeitun, ajudou a construir novas casas usando adobes, participou da colheita e debulha de trigo, juntou-se à caça à gazela e à colheita
de amêndoas, nozes e pistacho. Passaram grande parte do verão em acampamentos nas colinas, aonde levaram as cabras à procura de pastos, deixando pouca gente na própria
aldeia. Mas agora é hora de ele dar as costas a Jeitun e o leste; está ávido por chegar à África e concluir suas viagens globais.
Mas primeiro precisa voltar ao oeste da Ásia, não ao vale do Jordão onde começaram suas viagens, mas aos sopés das montanhas Zagros e às planícies da Mesopotâmia.
A data é 6.000 a.C. e as aldeias agrícolas que um dia margeavam o Tigre e o Eufrates há muito foram substituídas por cidades substanciais - as maiores agregações
de pessoas que já existiram até então no planeta Terra.

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Abutres das Zagros
As raízes da civilização mesopotâmia,
11.000 - 9.000 a.C.
A primeira civilização da história humana surgiu na Mesopotâmia. Este era o nome de uma província romana que ficava entre os rios Eufrates e Tigre, e que hoje se
chama Iraque. Com "civilização", quero dizer uma escala de sociedade humana inteiramente nova em relação a qualquer outra que veio antes: arquitetura monumental,
centros urbanos, extenso comércio, produção industrial, autoridade centralizada e tendências expansionistas. As cidades mesopotâmias apareceram por volta de 3.500
a.C., junto com a invenção da escrita. Embora tais fatos fiquem fora do quadro de tempo desta história, suas raízes foram deitadas muito antes. A partir de 11.000
a.C., surge na Mesopotâmia uma sucessão de extraordinários assentamentos de caçadores-coletores, aldeias agrícolas e cidades, associados a redes de comércio em expansão,
tecnologia inovadora e novas idéias religiosas. Em 6.000 a.C., a Mesopotâmia abrigou florescentes comunidades agrícolas determinadas a criar um novo tipo de experiência
humana: a vida urbana.
Embora as primeiras cidades surgissem nas planícies centrais da Mesopotâmia, na vizinhança da atual Bagdá, o trabalho de base cultural se fez no norte - uma variada
paisagem de planícies, serras de calcário, fundos wadis e colinas imponentes, mais notadamente as hoje conhecidas como Jebel Sinjar. Ao sul imediato delas fica uma
extensa área de solos férteis, e foi nessa chamada planície de Sinjar que surgiram as primeiras aldeias e cidades mesopotâmias. Estas, por sua vez, se desenvolveram
a partir de assentamentos de caçadores-coletores encontrados 300 quilômetros mais a leste, nos sopés das montanhas Zagros em 11.000 a.C.
Esta é a data em que John Lubbock deve iniciar suas viagens mesopotâmicas. E assim, quando deixa Jeitun em 6.000 a.C., para cruzar o planalto iraniano a oeste,
o tempo começa a passar para trás. Em 7.500 a.C., chega a uma recém-construída aldeia numa pequena planície aluvial conhecida por nós hoje como Sang-i-Chakmak. Quando
desce nos flancos oeste das Zagros e se aproxima de um assentamento de caçadores-coletores hoje conhecido como Zawi Chemi Shanidar, localizado no Vale do Grande
Rio Zab, já chegou 11.000 a.C.
Quinhentos quilômetros a oeste, a aldeia de caçadores-coletores de Abu Hureyra floresce à margem do Eufrates; a mais outros 400 quilômetros, o povo de Ain Mallaha
corta trigo selvagem e caça gazelas nas matas mediterrâneas. Nem Mehrgarh nem Jeitun existem, tampouco Jericó e Göbekli Tepe: toda a Ásia, todo o mundo, é mais uma
vez domínio absoluto dos caçadores-coletores.
Zawi Chemi Shanidar consiste de um punhado de choupanas de palha, detritos domésticos, lugares para sentar, comer e conversar, e uma única estrutura circular
de pedra. Esse acampamento fica na margem de um rio e perto de uma fonte; aninha-se entre íngremes paredões de vale e sob um pano de fundo de impressionantes picos
de montanha. Até Lubbock, que tanto já viu do mundo, acha o lugar um cenário espetacular. Mas ele e seus anfitriões que não o vêem olham com temor as águias e abutres
que circulam acima.
Apesar da especial beleza que o cerca, Lubbock acha que a vida em Zawi Chemi Shanidar pouco difere da de muitos outros assentamentos de caçadores-coletores no
mundo pré-histórico. Além do próprio vale, a paisagem em volta parece a que ele viu mais a oeste - mata de estepe com carvalho e pistacho. Lubbock passa vários dias
colhendo sementes e cavando raízes, moendo-as e pilando-as para fazer farinha e pasta com almofarizes de pedra semelhantes aos de Ain Mallaha. Ajuda a caçar cabras
e javalis; acompanha algumas das pessoas de Zawi Chemi Shanidar em longas jornadas a pé. Uma delas é para 150 quilômetros ao sul, deixando os sopés das Zagros e
cruzando o deserto para encontrar uma fonte de betume borbulhando no chão. Seus companheiros trazem pesados sacos para o acampamento, para revestir cestos e prender
lâminas de laças em cabos. Outra viagem de igual distância é feita para o norte, montanhas adentro, ao encontro de um grupo que vem do oeste com obsidiana para trocar.
Na volta a Zawi Chemi Shanidar, Lubbock descobre preparativos em andamento para uma dança. Quando chega o crepúsculo, vê homens e mulheres vestindo fantasias;
alguns pregam grandes asas nos braços, evidentemente cortadas de abutres e águias recém-abatidos; outros se cobrem com couros de cabra. Acende-se uma fogueira, e
quando cai a escuridão toda a comunidade se reúne para vê-los apresentar-se.
Inicialmente, há apenas as chamas, um lento rufar de tambores e uma cabra é posta na grama. Uma águia mergulha da escuridão com as garras abertas; enquanto voa
e revoa, a cabra foge noite adentro com ela a persegui-la. Chega então um rebanho de cabras e pasta em silêncio à luz da fogueira. Depois de comerem, brincam em
torno das chamas - dão marradas, copulam, mães correm com os filhotes. O tambor torna a rufar, desta vez mais rápido e mais alto. A águia retorna seguida por enormes
abutres que cercam as cabras. O rufar acelera-se, as aves voam mais rápido e as cabras começam a entrar em pânico; tentam saltar por cima do que já se tornou uma
parede rodopiante de penas, com garras e bicos curvos para dilacerá-las. O rufar do tambor é agora frenético, e com uma batida final tumultuosa a águia ataca. Em
meio a guinchos agudos, mata uma cabra e os abutres caem sobre as outras. E então vem o silêncio - a não ser pelo estalar das chamas e os arquejos de corpos humanos
fantasiados caídos exaustos no chão.
Zawi Chemi Shanidar quer dizer "campo perto de Shanidar" - sendo Shanidar o nome tanto de uma pequena aldeia curda quanto de uma grande caverna a 4 quilômetros de
distância. A idéia de que seu povo se fantasiava para imitar abutres, águias e cabras, baseia-se numa intrigante descoberta nesse sítio. Quando Ralph Solecki, da
Universidade de Columbia, Nova York, fez suas escavações na década de 1950, descobriu uma densa massa de ossos de animais dentro de um depósito de terra avermelhada,
junto à estrutura de pedra. Supôs-se inicialmente que era um monturo de lixo doméstico, mas revelou conter apenas crânios de cabra e ossos de pássaros. Os últimos
vinham da grande abertada, junto com várias espécies de águias e abutres, e se restringiam quase inteiramente a ossos de asas. Finas marcas de cortes indicavam que
as asas tinham sido delicadamente separadas das aves; algumas haviam acabado sendo jogadas fora ainda intactas. Vários ossos vinham de pássaros imensos, como os
abutres barbudos, cuja envergadura das asas chega a 3 metros, e águias marinhas de cauda branca. Exatamente como tais aves foram capturadas, e o que faziam suas
asas dentro de um depósito com pelo menos 15 crânios de cabra, não foram perguntas fáceis para Ralph Solecki e Rose, sua colega e esposa, responderem. Embora os
abutres possam de vez em quando ser domesticados em torno de assentamentos, e, portanto, capturados usando-se iscas, as águias são um desafio maior - exigindo talvez
o roubo de filhotes dos ninhos e a criação na mão.
Parece provável uma interpretação ritualística, não apenas por causa do conteúdo particular, mas em vista de descobertas em outras partes. Quando escrevia em 1977,
Solecki pôde citar as pinturas e esculturas encontradas por James Mellaart em Çatalhöyük, no sul da Turquia, que associavam crânios de animais com aves de rapina.
Desde então, descobriram-se os sítios de Nevali Çori e Göbekli Tepe, com mais descrições de águias e abutres, e garras são comumente encontradas em sítios do Começo
do Paleolítico (PPNA na sigla inglesa) no oeste da Ásia. Os ossos de pássaros de minhas próprias escavações em Wadi Faynan, por exemplo, são dominados pelos de bútios,
abutres e águias. E assim, pouca dúvida pode haver de que as aves de rapina eram tidas em grande estima por todo o Crescente Fértil, muito provavelmente com profundo
significado simbólico e religioso. Rose Solecki suspeitou disso em 1977, quando sugeriu que as asas desses pássaros tinham sido usadas como fantasias numa dança
ritualística em Zawi Chemi Shanidar.
Lubbock acorda ao lado de cinzas fumegantes. As fantasias foram deixadas num poço raso próximo - crânios e couros de cabra, asas e garras de aves esculpidas em madeira.
Estão avermelhadas com ocre que se soltou dos corpos suados, e que agora colore o chão em torno dos ossos. Não se vê ninguém. O barulho de pilão nas choupanas próximas
sugere que os dançarinos e espectadores voltaram ao trabalho - moendo bolotas e caçando nas colinas. Não que tenham deixado para trás seu mundo sagrado; depois de
viajar pela pré-história, Lubbock sabe que não há distinção entre o sagrado e o profano - além da inventada apenas para o mundo moderno.
Durante suas viagens de caça e coleta de plantas em torno da aldeia, Lubbock notou uma caverna nos penhascos 4 quilômetros ao norte. Sabe que o povo de Zawi Chemi
Shanidar ainda a usa como abrigo, mas ele próprio nunca esteve dentro dela.
Nas poucas horas que leva para a difícil subida até a entrada, passam-se dois séculos de tempo pré-histórico, e abutres deslizam entre os agudos picos da montanha.
A Caverna Shanidar, como é conhecida hoje, tem uma grande câmara e mós, cestos, couros e uma variedade de instrumentos no chão. Há trechos de pavimentação e uns
poucos montes de pedras, que parecem demarcar áreas especiais ou indicar alguma coisa enterrada embaixo. O interior é malcheiroso - uma mistura de morcego, couros
de animais úmidos e os restos rançosos de fumaça de fogueira.
De pé na entrada para admirar a vista e desfrutar o ar fresco, Lubbock vê uma procissão subindo para a caverna, e calcula que vem de Zawi Chemi Shanidar. A fila
de pessoas se aproxima devagar, encabeçada por um homem com uma criança pequena nos braços. Usam contas particularmente elaboradas feitas de ossos, dentes e pedras,
e têm os corpos pintados de vermelho. Um casal cambaleia, um deles com a ajuda de um cajado. Lubbock senta-se numa pedra dentro da caverna para vê-los chegar. O
homem põe o corpo do menino no chão, envolto em fios de contas de ossos que quase escondem inteiramente sua forma inchada e roxa. Lubbock olha de rosto em rosto
e detecta sinais de mal-estar e doença. Um tem um chumaço de folhas coberto de material glutinoso amarrado sobre uma orelha; outro, a mandíbula inchada, e parece
sofrer de uma forte dor de dente.
Faz-se uma fogueira no chão da caverna. Lubbock ouve as preces e vê estranhos movimentos poéticos em torno do corpo, talvez imitação de animais e nevascas. O homem
que o trouxe, supostamente o pai, cava um poço que revela lenha queimada de fogueiras anteriores na caverna. O corpo, ainda vestido de contas, é depositado sobre
um punhado de cinzas e enterrado. Um momento de silêncio. E então as pessoas se vão, sendo o pai do menino o último a deixar a caverna.
Quando Ralph Solecki escavou a Caverna Shanidar na década de 1950, descobriu não apenas um cemitério de seres humanos modernos, mas também os ossos de neandertais
de 50 mil anos, pelos quais a caverna é mais conhecida. Embora os restos de neandertais estivessem enterrados fundo sob sedimentos soprados pelo vento e desabamentos
do teto, encontrou-se o cemitério logo abaixo da superfície, um conjunto de 26 covas, junto com artefatos domésticos e detritos semelhantes aos escavados em Zawi
Chemi Shanidar. Essas semelhanças e uma data de 10.800 a.C. sugerem que a caverna e o acampamento à beira do rio foram usados pelas mesmas pessoas. Muitas das covas
continham adultos relativamente jovens e crianças. Vários foram sepultados com contas - uma criança tinha 1 mil 500 consigo, sugerindo que pertencia a uma família
de grande status. Descobriu-se outra cova, isolada do resto e contendo uma mulher num poço em forma de caixa, com ocre-vermelho e uma mó.
Agelonakis Anagnostis analisou os ossos humanos como parte de uma tese de doutorado na Universidade de Columbia. Descobriu que muitos dos adultos tinham hipoplasia
nos dentes - sinais de desnutrição quando jovens. Os vestígios de infecções nos ouvidos e inflamações dentais eram freqüentes, assim como ossos rachados ou partidos,
e sinais de doenças degenerativas como a artrite. Os ossos como um todo tinham vindo de uma população visivelmente doente - era evidente que os que sobreviveram
à infância lutaram para chegar ao que hoje chamamos de meia-idade.
Isso é bem diferente das populações do Natufiano Inicial do vale do Jordão, que parecem ter gozado bom estado de saúde. Outro contraste é a natureza do assentamento.
Embora a presença do cemitério indique que Shanidar e o Grande Rio Zab eram visitados regularmente, a ausência de moradas de pedra substanciais perto de cavernas
ou na beira do rio sugere uma ocupação apenas temporária, muito provavelmente sazonal. Nesse aspecto as pessoas de Zawi Chemi Shanidar, junto com as que ocuparam
os sítios próximos e contemporâneos de Karim Shahir e M'lefaat, era bem diferente dos natufianos que viviam em aldeias permanentes. Para encontrar alguma coisa comparável
na Mesopotâmia, Lubbock tem de deixar a Caverna Shanidar e viajar para os sopés de Jebel Sinjar e a enigmática aldeia de Qermez Dere, 200 quilômetros a leste.
Essa jornada exige que Lubbock cruze o rio Tigre e siga a pé para as colinas Sinjar. Ele atravessa um agreste seco coberto de magros arbustos, tufos de capim e árvores
espalhadas. No matagal escondem-se vários tipos de caça: rebanhos de gazelas surgem do mato baixo e atravessam a planície a correr, lebres as seguem, e bútios de
plumagem surpreendentemente pintalgada e rufos de longas penas erguem-se com guinchos do meio do capim. Manadas de asnos selvagens - onagro - pastam ao longe. A
viagem de Lubbock leva quase um milênio para concluir-se, e nesse tempo as temperaturas caem e as chuvas se tornam menos freqüentes, pois chega o Jovem Dryas. Mas
seu impacto é muito menos severo que nas terras do vale do Jordão e do Mediterrâneo, onde secas recorrentes obrigam ao abandono de aldeias, com o povo do Natufiano
retornando a uma vida em movimento.
Qermez Dere surge quando Lubbock chega ao cume de uma baixa colina e tem uma extensa visão da planície. Parado ali, ele vê um grupo de choupanas junto à boca de
um vale raso. De longe, os telhados de palha parecem muito baixos, e ao chegar ele constata que cobrem quatro moradas subterrâneas a que se chega de cima por escadas.
É o fim da tarde; o trabalho do dia evidentemente acabou, e as pessoas sentam-se ociosas em grupos espalhados, algumas bebendo em canecos de madeira, outras parecendo
dormir. Em volta delas, o lixo conhecido da vida de caçador-coletor: mós, montes aparas de pedras, fragmentos de ossos esquartejados e chão manchado onde o sangue
se infiltrou.
Lubbock senta-se entre eles, sentindo empatia com o prazer que evidentemente desfrutam com a paisagem - da planície para o sul e ao longo dos flancos das ondulantes
colinas de Sinjar a oeste. Os únicos barulhos são um suave balbucio de vozes e água correndo num regato próximo. A data é 10.000 a.C., e embora o Jovem Dryas esteja
no auge no oeste da Ásia e na Europa, o povo de Qermez Dere é saudável e bem alimentado. Eles encontraram um lugar ideal para viver, entre as colinas e a planície,
cada uma proporcionando seu conjunto de animais para caçar e plantas para coletar. Pela quantidade de cascas, talos e folhas amontoados em torno das mós, Lubbock
desconfia que há "hortas selvagens" por perto; capões de cereais e lentilhas selvagens que são aguados, capinados e mantidos sem doenças.
Sabendo que a luz logo começará a desaparecer e as moradas subterrâneas ficarão escuras como breu por dentro, Lubbock deixa o assento e desce uma escada até um
único aposento de paredes e piso rebocados. É uma forma curiosa, nem circular nem quadrada, e dominada por quatro pilares em fila cortando o centro. Lubbock lembra-se
imediatamente dos pilares que viu em Nevali Çori quando viajava para Çatalhöyük - uma aldeia que, junto com muitas outras do Crescente Fértil, ainda não foi construída.
Os de Qermez Dere chegam quase à altura do peito; Lubbock examina-os de perto, e descobre que são feitos de barro e cobertos de reboco. Cada um se ergue suavemente
do chão, e parecem representar ombros humanos com braços aplicados sem muito jeito. As superfícies não têm decoração, mas parecem fosforescentes na penumbra crescente.
Lubbock anda entre eles, alisando o reboco liso e imaginando o propósito de suas formas meio sensuais.
Tapetes feitos de fibras torcidas e luxuriantes peles de animais cobrem o chão. Um lado tem uma lareira - várias lajes de pedra em torno de um poço cortado no
reboco e contendo cinzas. As paredes são nuas, mas evidentemente cuidadas, pois o reboco foi densamente aplicado, polido e remendado. Lubbock pergunta-se o que acontece
dentro desse e de outros aposentos subterrâneos de Qermez Dere. Dificilmente poderiam ser mais diferentes dos aposentos amontoados, sujos e malcheirosos que com
tanta freqüência encontrou em assentamentos de caçadores-coletores e incipiente agricultura em todo o mundo. Decide esperar para ver. E assim pega duas peles e instala-se
em conforto contra uma parede, postando-se diretamente de frente para a escada de entrada.
Nos dias seguintes - ou talvez sejam meses, ou mesmo séculos - muitas pessoas entram no aposento, às vezes sozinhas ou em pequenos grupos: crianças, adultos e
velhos. Lubbock logo começa a notar visitantes freqüentes e semelhanças físicas. Nota atitudes e padrões de ficar em pé, tocar e conversar que sugerem parentescos
- pai e filho, marido e mulher, irmãos, amantes. Calcula que todos que entram são membros de uma grande família à qual pertence a morada. Quando faz frio, vários
entram e dormem no chão, muitas vezes fazendo um fogo no poço; quando calor, buscam a sombra sob seu teto. É um lugar onde as pessoas vêm sentar-se em silêncio e
sós ou com outras, cantar e talvez rezar. Às vezes é usado para sexo; bebês são trazidos pela escada para serem alimentados; os doentes entram para descansar. De
vez em quando, o aposento fica lotado para uma festa familiar, ou quando se recebem visitas.
Esses usos variados continuam até uma manhã de primavera, quando duas mulheres descem a escada e começam a enrolar os tapetes e peles. Passam-nos para outros do
lado de fora, e começam a varrer o chão, limpar as paredes e polir o piso, usando escovas e trapos de couro. Só quando o aposento está meticulosamente limpo, passam
à tarefa seguinte: sua deliberada destruição.
Atacam primeiro o teto, e as madeiras e palhas levantam uma grande nuvem de poeira e terra ao desabarem no chão. Uma vez feito isso, a família começa a encher
de terra o aposento, usando pás de macieira e cestos - a terra cavada a certa distância, para evitar o lixo doméstico. Após uns dez minutos de trabalho, depois de
cobertas as madeiras e palhas derrubadas, um dos homens mais velhos - que Lubbock supõe ser o chefe da família - pára o trabalho. Desembrulha um pacote e ergue cada
um dos artigos para todos verem, antes de jogá-los na casa meio enterrada. Primeiro uma grande junta de carne - o mais provável é que seja de vaca selvagem, animal
raramente visto nas vizinhas de Qermez Dere. Em seguida, um punhado de trigo selvagem, e depois um manto de couro de fina confecção. Segue-se um colar de contas
de pedra, e por fim um conjunto de alfinetes e agulhas de osso.
Quando recomeça o trabalho, as crianças ajudam jogando pedras e punhados de terra no buraco. E isso continua até o aposento ser completamente enterrado, o aterro
ainda um pouco amontoado acima do chão em volta. E assim, como um ato final, todos se põem a pular em cima para compactar o solo - no começo com muitas risadas e
depois com decrescente energia e crescente fadiga.
Nos dias seguintes, Lubbock vê as outras moradas subterrâneas serem destruídas de forma semelhante, até que tudo que resta de Qermez Dere são os grupos de almofarizes,
cestos e instrumentos, lixo doméstico, restos de fogueiras e várias coleções de peles e tapetes espalhados. Alguns trechos do terreno foram limpos de pedras e mantidos
livres de lixo e artefatos para as pessoas se sentarem, e erguem-se às pressas uns poucos abrigos de palha e quebra-ventos, como proteção contra o vento e o frio.
E então a vida em Qermez Dere continua quase como antes - a não ser que se perdeu qualquer chance de intimidade. Assim, Lubbock acompanha viagens de coleta de plantas
e caça; ajuda a limpar couros e mói sementes, junta-se aos cantos e danças; dorme com os outros sob as estrelas.
Com o passar das semanas, Lubbock nota que uma pilha de lenha se acumula aos poucos junto a uma grande quantidade de nódulos de pedra; são de gesso e acabarão
por ser triturados e misturados com água para fazer reboco. Quando chega o outono, derrubam-se árvores novas e tiram-se os galhos, que são guardados como madeira.
Cortam o capim, mais pelos talos que pelas tementes; amarram-nos em feixes e empilham-nos junto com a madeira e a pedra. Dentro de poucas semanas as pilhas de lenha,
gesso e novo material de telhado são julgadas suficientes. E assim começa o trabalho num novo conjunto de moradas.
Para surpresa de Lubbock, cada uma é erguida praticamente no mesmo lugar de antes, embora haja bastante terreno intocado nas vizinhanças. Marca-se um círculo aproximado
e começa a escavação, removendo muito da terra tão laboriosamente jogada apenas alguns meses atrás. As linhas marcadas são seguidas meticulosamente; quando encontram
velhas paredes de reboco, simplesmente as derrubam. Quaisquer madeira e palha antigas são jogadas fora - assim como os objetos que outrora pareciam tão valiosos.
Enquanto se cava o novo poço, os fornos ardem, usando rapidamente a madeira armazenada e reduzindo a pó os nódulos de gesso. Colunas são moldadas de barro, erguidas
dentro do novo aposento subterrâneo e rebocadas, junto Com o piso e as paredes, já preparados com uma mão de barro vermelho-pardo. O telhado é feito com novas madeiras
e palha. Em poucos dias a morada está completa - e parece quase idêntica à sua antecessora. A família reúne-se dentro, satisfeita com o seu trabalho; Lubbock fica
a imaginar por que se deram todo esse trabalho. Mais uma vez, entende a barreira cultural que tantas vezes intervém entre ele e aqueles aos quais visita em suas
viagens, inibindo sua compreensão do passado.
Por que essas pessoas de Qermez Dere viviam aterrando suas antigas moradas e reconstruindo-as segundo o mesmo plano, exatamente no mesmo lugar? Trevor Watkins, da
Universidade de Edimburgo, que escavou o aposento onde ficou Lubbock imaginando sua função, fez essa pergunta. Descobriu que foi reconstruído pelo menos em duas
ocasiões. Da última vez que foi aterrado, supõe-se que pouco antes de a aldeia ser abandonada, puseram-se seis crânios humanos em seu piso.
As escavações de Watkins foram feitas em 1986-1987, antes da completa destruição do sítio para construção de estrada e extração de pedra. Para ele, Qermez Dere
pareceu no início um baixo monturo próximo a um profundo wadi. O punhado de equipamentos de moer, instrumentos de pedra e ossos esquartejados não ofereceu surpresa;
mas as casas subterrâneas, com seu fino reboco, colunas e enterro deliberado, eram diferentes de qualquer coisa encontrada antes.
Mais de duas décadas depois que Watkins concluiu seu trabalho, Klaus Schmidt escavou Göbekli Tepe, localizado 300 quilômetros a noroeste e alguns séculos mais
recente no tempo. As semelhanças com Qermez Dere eram impressionantes: os dois sítios tinham moradas subterrâneas com colunas, mas sem sinais de atividade doméstica;
dos dois lados, as estruturas tinham sido deliberadamente aterradas. Embora as de Göbekli Tepe fossem em escala muito maior que as de Qermez Dere, com uma grandeza
que igualava suas enormes colunas e cenário dramático, há uma inquestionável ligação cultural entre os dois sítios, uma ligação que leva a Nevali Çori. Alguma coisa
profundamente misteriosa está por trás desses sítios e das sociedades que os fizeram, uma coisa que deve conter a chave do mundo neolítico.
O terceiro e último dos assentamentos mesopolâmios de caçadores-coletores que Lubbock visita também fica nos sopés das montanhas Zagros e é conhecido hoje como Nemrik.
Stefan Kozlowski, da Universidade de Varsóvia, escavou-o em conjunto com a Organização de Antigüidades e Herança do Iraque, como projeto de resgate antes da construção
da "Represa Saddam". O trabalho foi feito durante os mesmos anos em que Trevor Watkins escavava em Qermez Dere, a meros 60 quilômetros do outro lado do rio Tigre.
A ocupação pré-histórica de Nemrik e Qermez Dere se sobrepusera no tempo, embora as datas mais antigas para Nemrik a situem pouco depois de 9.600 a.C. Pessoas ainda
viviam lá quase dois mil anos depois; a essa altura, tinham deixado atrás seu passado de caçadores-coletores para tornar-se agricultores.
Lubbock deixou Qermez Dere em 9.400 a.C., após a chegada da chuva e calor do Holoceno. Esse sítio ia permanecer ocupado por outros mil anos, até seus moradores
se juntarem a um dos novos assentamentos agrícolas que se tinham desenvolvido na planície de Sinjar em 8.000 a.C., ou talvez criarem um. Mas esses fatos ainda estão
por acontecer quando Lubbock atravessa a pé, rumo ao nordeste, uma estepe agora pontilhada de capões de freixo e nogueira, tamariz e pistacho. Ao longe, as encostas
das montanhas Zagros foram enverdecidas por florestas de carvalho e tornaram-se lar de gamos, javalis e gado selvagem.
Nemrik espalha-se pelo fim de um cume que dá numa planície; rios correm entre barrancos de cada lado, fazendo todo o percurso até o próprio rio Tigre. Lubbock
chega ao amanhecer. Algumas pessoas já partiram para a caça nas colinas, outras continuam a dormir dentro de suas moradas circulares - não subterrâneas, como em
Qermez Dere, mas com paredes em pé. Há oito delas, localizadas em dois grupos e cercadas por pátios pavimentados. Estes são evidentemente as áreas de trabalho, pois
Lubbock vê a conhecida gama de mós, pilões e restos de sílex espalhados por suas lajes. Fogueiras e cuias de pedra enegrecidas sugerem que os pátios também são usados
para cozinhar. Parecem ser partilhados entre as casas, como é um poço de lixo grande e fedorento.
Lubbock olha de perto os adobes secados ao sol com os quais são feitas as moradas - pouco diferentes dos que viu em Jerico e Jeitun. A entrada é tapada com grossos
couros; afastando-os, ele entra num recinto escuro. É dividido por quatro colunas, dispostas num quadrado e sustentando caibros de madeira - as paredes de adobe
jamais poderiam ter suportado tal peso. O próprio telhado é feito de galhos em treliça, entremeados com palha e rebocado com barro. Plataformas erguidas feitas de
madeira e barro foram construídas contra a parede. São leitos, e cada um suporta um corpo adormecido coberto com couro. Defronte há um conjunto de artigos domésticos
e lixo em volta de uma mó embutida. Entre os que dormem e as áreas de trabalho da casa há plataformas mais altas e mais estreitas que parecem bancadas. A maior parte
do chão está coberta de tapetes e couros; o resto é terra pisada, sobretudo em torno de uma laje de pedra que cobre em parte um poço. Lubbock olha dentro do buraco
e vê um crânio olhando-o de volta.
A detalhada informação sobre a estrutura e desenho dessa morada resulta de sua excelente preservação e da qualidade de sua escavação. Koslowski, que a chamou de
"Casa 1A", encontrou torrões calcinados de barro do teto desabado com marcas de trabalho em treliça e palha. Havia buracos dentro dos restos de paredes onde ficavam
colunas. Ele também encontrou o poço de sepultamento, uma área onde se concentravam artefatos, e as plataformas que julgou serem leitos e bancadas.
Casas desse tipo foram construídas em Nemrik por volta de 9.000 a.C., quando seus habitantes viviam da caça e da coleta. As escavações de Koslowski recuperaram
os ossos de animais selvagens e pássaros, junto com as patas de pitu apanhado nos rios vizinhos. Embora os restos de plantas fossem escassos, encontraram-se traços
de cereais, ervilha, lentilha e ervilhaca- todas, supõe-se, de plantas selvagens. Só por volta do fim da extensa ocupação de Nemrik - numa data por volta de 8.000
a.C. - cultivaram-se variedades domesticadas em torno da aldeia. Nessa época as casas tinham tomado uma forma mais retangular, mas praticamente todos os outros aspectos
da vida permaneciam os mesmos.
Koslowski também fez algumas descobertas mais complexas - uma das quais faz Lubbock lembrar o início de suas viagens na Mcsopotâmia. Ele continua dentro da casa,
intrigado por uma série de pequenas esculturas de barro e pedras colocadas em pequenos nichos nas paredes. Algumas são difíceis de identificar - uma parece a cabeça
de um javali, outra poderia ser uma cabra, e uma terceira uma cabeça humana. Lubbock gasta pouco tempo com elas, preferindo uma talha em pedra muito mais impressionante.
Segura-a na palma da mão; gosta do seu peso e sensação ao passar os dedos pelo pescoço liso, em torno das orbitas e num agudo fio que forma um bico. É a cabeça de
um abutre - apenas uma de várias esculturas exibidas com destaque em Nemrik dois mil anos depois que seu povo usou asas de águia e abutre e mergulhou para matar
em Zawi Chemi Shanidar, no vale do Grande Zab.

45
Surge a Civilização na Mesopotâmia
O desenvolvimento das cidades e do comércio,
8.500 - 6.000 a.C.
Ao deixar Nemrik, Lubbock passou mil anos em viagens no norte da Mesopotâmia, observando o desenvolvimento de aldeias agrícolas. Logo depois de 8.000 a.C., também
viu grupos de família subindo os sopés das Zagros em busca de novas terras de pasto e aráveis no planalto iraniano, primeiros passos na disseminação da agricultura
no sul e centro da Ásia, que levariam a Mehrgarh e Jeitun. Mas a maioria das pessoas continuou na planície de Sinjar, cultivando a terra e construindo mais moradas,
e deitando, sem o saber, as fundações de um novo tipo de mundo urbano.
Lubbock começou por fazer a volta, cruzando o Tigre e depois seguindo um pequeno rio tributário que serpeava por baixas colinas cobertas de carvalho nos flancos
das colinas Sinjar. O vale do rio era exótico, com lados de vez em quando íngremes, em forma de desfiladeiro. Foi logo depois de uma dessas gargantas que Lubbock
encontrou a aldeia hoje conhecida por nós como Maghzaliyah - 10 casas retangulares e com muitos aposentos, em parte cercadas pelo que parecia um muro defensivo.
Não estava a mais de doze quilômetros do agora abandonado sítio de Qermez Dere, cujos detritos há muito tinham sido levados pela chuva e enterrados no chão.
Lubbock chegou a Maghzaliyah na primavera de 8.000 a.C., exatamente quando o trigo era colhido em pequenos bolsões de solo adequado em torno da aldeia - cada um
espremido entre afloramentos de rocha. Era cortado com foices feitas com lâminas de obsidiana e o grão armazenado em vasos de barro em forma de barril. Ele descobriu
que a obsidiana era o principal tipo de pedra em uso, não mais adquirida em longas viagens longe de casa, como em Zawi Chemi Shanidar, mas de mercadores que chegavam
do norte a Maghzaliya. O barro era extensamente usado na construção, modelação de estatuetas e fornos, embora não ocorresse nenhum cozimento para fazer vasos de
cerâmica. Lubbock duvidava que isso fosse por ignorância da técnica; parecia mais provável que os pratos, tigelas e jarros feitos de pedra, madeira e vime fossem
mais que suficientes para as necessidades das pessoas.
Maghzaliya foi descoberta pelo arqueólogo russo Nikolai Ottovich Bader na primavera de 1977: um monturo cônico agudo, em parte cortado na borda norte por uma estrada
e destruído na direita pelo rio Abra. Tirando isso, o sítio não fora perturbado. As escavações de Bader revelaram que as moradas tinham paredes de barro sobre fundações
de pedra, com telhado de palha e piso pavimentados, revestidos os dois com reboco cujos fragmentos continham as marcas de tapetes de junco. Durante a história de
quinhentos anos da aldeia, tinham existido entre oito e dez casas em qualquer época, sugerindo uma população de cerca de cem pessoas. Mas como cada casa não permanecera
de pé por mais de cinqüenta anos, e fora reconstruída no mesmo lugar, o sítio era densamente carregado de características arqueológicas. Os ossos de animais e restos
de plantas que Bader escavou indicavam que os habitantes de Maghzaliyah tinham sido igualmente dependentes de alimentos selvagens e domésticos; caçavam onagros na
estepe, cuidavam de rebanhos de carneiros e cultivavam campos de trigo.
Maghzaliyah foi cercada por uma muralha de enormes lajes de pedra durante a maior parte de sua existência, possivelmente como defesa contra animais selvagens,
grupos atacantes ou assaltos organizados por pessoas de outras aldeias - embora não se encontrassem traços de violência nos ossos dos mortos. Adultos e crianças
eram enterrados juntos, em túmulos revestidos de pedra reunidos numa discreta área do assentamento; sugerem mais grupos de família que covas de guerreiros. Talvez
o muro não fosse para defesa em absoluto, mas um meio de delimitar o mundo da cultura humana do da natureza, ou mesmo distinguir os ocupantes como camponeses dos
caçadores-coletores que viviam do lado de fora.
A origem de Maghzaliyah corre paralela em grande parte à das primeiras aldeias agrícolas e cidadezinhas no vale do Jordão e ao lado do Eufrates, como Beidha, Ain
Ghazal e Bouqras. Os descendentes de caçadores-coletores que viviam em Zawi Chemi Shanidar, Qermez Dere e Nemrik parecem ter adotado o cultivo de cereais assim que
as sementes se tornaram disponíveis. Ainda não está claro, por não ter importância, se os cereais domesticados tiveram origem no norte - talvez em Çayönü ou arredores
- ou no oeste - talvez em Jericó. Uma vez presente, a semente se espalhara por todo o norte da Mesopotâmia com a mesma rapidez que no vale do Jordão, antes de ser
levada para a Europa no oeste e para o centro e sul da Ásia a leste.
Maghzaliyah foi apenas uma entre várias aldeias agrícolas que se desenvolveram nas terras em torno do Tigre e nos sopés das Zagros assim que as sementes se tornaram
disponíveis. Uma das primeiras a serem descobertas é conhecida como Jarmo, escavada pelo arqueólogo americano Robert Braidwood na década de 1950. Localizada 300
quilômetros a sudeste de Maghzaliyah, tinha cerca de trinta casas em seu auge, a maioria construída com fundações de pedra e grossas paredes de barro. Algumas delas
tinham uma impressionante semelhança com as casas construídas em Çayönü, 600 quilômetros a noroeste. Outras aldeias agrícolas desenvolveram-se por todos os sopés
das Zagros. Duas são conhecidas ao sul de Jarmo: Ganj Dareh, no vale de Kermanshah, e Ali Kosh, nas planícies de Deh Luran, no moderno Irã. Disse-se que as duas
tiveram cabras domesticadas particularmente cedo.
Essa proliferação e rápido crescimento de assentamentos agrícolas no norte da Mesopotâmia equiparam-se de perto aos do vale do Jordão até cerca de 6.500 a.C. Mas
depois dessa data as duas regiões têm histórias inteiramente diferentes. Como descobriu Lubbock em Ain Ghazal, uma combinação de degradação ambiental causada pela
agricultura e novas secas expulsaram alguns dos seus habitantes para um estilo de vida nômade e outros de volta a minúsculas aldeias espalhadas pela estepe. A cidade
foi abandonada e deixada para decair. Enquanto a mesma história de colapso cultural ocorria por todo o vale do Jordão, o exato oposto se dava nas terras entre o
Eufrates e o Tigre. Os solos, topografia e clima da Mesopotâmia eram muito mais favoráveis ao cultivo intensivo. Em vez do florescimento e fracasso econômicos do
vale do Jordão, seus assentamentos agrícolas proliferaram em tamanho e número. Houve crescimento econômico sustentado, levando à nova escala de sociedade humana
que chamamos "civilização".
Umm Dabaghiyah, um assentamento ao sul imediato da planície de Sinjar, foi um dos resultados desse crescimento econômico. É ali que Lubbock chega em 7.500 a.C. Para
isso, atravessou a fértil planície e encontrou as casas de adobe de Umm Dabaghiyah cercadas por uma estepe seca, sem sinais de cultivo de safras. Enquanto todos
os outros assentamentos do Neolítico foram coisas casuais atabalhoadas, toda Umm Dabaghiyah parece ter sido planejada e construída de uma vez. Cheira tão mal, senão
pior, que qualquer outro assentamento visitado por Lubbock - um fedor forte de sebo, gordura, carne e entranhas de animal que fica em torno de seu povo e impregnou
as paredes de barro e pisos de reboco.
Explorando o assentamento, Lubbock encontra áreas distintas para viver, trabalhar e armazenar. A entrada em qualquer dos aposentos retangulares é por uma escada
externa até o telhado, c depois por outra interna, semelhantes às que ele encontrou em Çatalhöyük. Há pinturas nas paredes - mas felizmente nenhuma reprodução de
touros, decapitações ou esculturas de seios femininos cortados ao meio. Em vez disso, as pinturas ilustram cenas de onagros sendo tangidos para redes.
Embora só uma das casas tenha essas pinturas, todas têm a mesma planta: um único e pequeno aposento com paredes e piso de reboco. Mesmo seguindo um mesmo plano,
muitas parecem construídas às pressas por mãos inexperientes, pois estão em andamento muitos consertos nas paredes de barro que desmoronam e tetos que desabam. Cada
aposento tem uma lareira contra a parede, cercada por um meio fio; partilham chaminés com grandes fogões grudados às paredes externas. Os pisos são cobertos por
tapetes de junco; há tigelas de pedra, cestos de vime e grosseiros vasos de cerâmica desarrumados em torno dos fogos. No geral, as casas não têm um ar "doméstico";
são básicas e funcionais, e parecem mais alojamentos de operários que moradas familiares.
Dois blocos de depósitos formam a peça central do assentamento. São divididos em muitas câmaras pequenas, construídas com materiais e técnicas muito melhores que
as moradas, tendo grossas paredes de barro com pegões internos e rodapés de reboco. A maioria é inteiramente fechada, sem portas e com telhados feitos de couro e
varas. Quando caminha entre os telhados - as grossas paredes oferecem um caminho - Lubbock alarga pequenas fendas no material para ver dentro desses depósitos, protegidos
contra roedores e o tempo. Numa, vê um monte de couros dobrados, em outro uma pilha de carne salgada, numa terceira, fardos de pêlos da cauda de onagros, e numa
quarta, cascos e chifres de gazela amontoados nos cantos. Outra tem cestos de grão, raízes e tubérculos. As câmaras que contêm produtos animais estão sendo evidentemente
abastecidas durante a temporada de caça, enquanto os de vegetais se esgotam pouco a pouco.
No pátio, um grupo de caçadores-coletores chegou com várias carcaças de onagro. Foram apanhados exatamente da maneira ilustrada nas paredes - fazendo estourar
um pequeno rebanho rumo a redes subitamente erguidas do chão para bloquear sua fuga. Lubbock vê os onagros serem esfolados; os couros têm a gordura e os tendões
raspados e depois são postos dentro de bacias revestidas de barro cheias de água salgada. Os de uma caçada anterior já foram encharcados e estão enrolados sobre
uma série de muros de barro baixos, que formam os estendedores. As novas carcaças são esquartejadas com lâminas de sílex e machados de basalto. A maioria das juntas
será esfregada com sal, e deixadas a secar, antes de tornarem a ser salgadas e armazenadas; o resto será assado à noite e comido com um pouco do decrescente suprimento
de vegetais.
Umm Dabaghiyah foi descoberta e escavada no início da década de 1970 por Diana Kirkbride, quando era diretora da Escola de Arqueologia Britânica no Iraque. Nessa
época, ela já escavara Beidha, no sul do Jordão; isso a levou a esperar que Umm Dabaghiyah fosse um tipo de aldeia semelhante. Como o sítio era um pequeno tell,
Diana decidiu tentar uma "escavação total". Embora não se conseguisse isso, muitas construções foram expostas, várias das quais tinham sido reconstruídas em quatro
ocasiões separadas, durante quinhentos anos de ocupação.
Após três temporadas de escavação, Diana Kirkbride começou a questionar a idéia de aldeia agrícola. Suas dúvidas foram motivadas pelas próprias descobertas - os
armazéns, bacias revestidas de reboco e muros baixos sem valor estrutural - junto com o que ela não descobriu: vestígios substanciais de atividade agrícola.
O meio ambiente quase deserto em que Umm Dabaghiyah se situava também lhe parecia agora "singularmente não convidativo do ponto de vista de assentamento da Idade
da Pedra". A região era quase desprovida de água; a que havia num pântano próximo estaria saturada de sal, devido a jazidas subterrâneas de gesso. Essas jazidas
inibiam o crescimento de árvores, tornando muitíssimo escassa, senão inteiramente ausente, a madeira para combustível e instrumentos. O sílex local tinha um grão
grosso e muitos defeitos. Parecia que aos habitantes de Umm Dabaghiyah eram negados quase todos os recursos chave-da-vida na Idade da Pedra. Todos, menos um: animais
para caçar.
Quando Diana escavou o sítio, a fauna do norte da Mesopotâmia era relativamente pobre, consistindo de raposas, lebres, ratos do deserto e gerbos. Em 7.500 a.C.,
porém, onagros e gazelas tinham pastado nas planícies, e javalis e cabras catavam sua comida nas distantes colinas Sinjar. Os ossos de onagro dominavam os escavados
em Umm Dabaghiyah, e fragmentos de pinturas de parede representavam a caça - animais cercados pelo que Diana julgara fossem forquilhas para segurar redes.
Diante dos indícios arqueológicos e a sobriedade da paisagem contemporânea do sítio, Diana mudou de opinião sobre Umm Dabaghiyah. Em vez de uma pequena aldeia
agrícola, tornou-se um "posto avançado de comércio", especializado em onagro e gazela - um pequeno satélite, ela julgava, de alguma "magnífica cidade tipo Çatalhöyük"
próxima e ainda não descoberta. Diana sugeriu que Umm Dabaghiyah era um assentamento de "intermediários". Imaginou caçadores-coletores do deserto trazendo carcaças
de animais e recebendo obsidiana, grão de cereal e outras mercadorias em troca; estas, em sua suposição, já tinham sido adquiridas pelos intermediários de Umm Dabaghiyah,
trocando carne, couro, pêlo e chifre na cidade ainda não descoberta.
A interpretação de Diana Kirkbride não foi sustentada por trabalhos de campo posteriores. Pesquisas arqueológicas - mais notadamente a de uma expedição de 1969-1980
- não descobriram a tal cidade, encontrando em seu lugar um punhado de pequenos assentamentos agrícolas, um deles Maghza-liyah. Algumas dessas aldeias se desenvolveram
de fato no tipo de cidade substancial que Diana imaginava, mas só depois que Umm Dabaghiyah já entrara em decomposição.
Conseqüentememte, meu cenário para a visita de Lubbock era um pouco diferente do de Diana Kirkbride: Umm Dabahiyah como residência sazonal de caçadores especialistas
de um ou mais assentamentos agrícolas, que chegavam com suprimentos de pedra, vegetais e cereais, e que matavam e tratavam eles próprios os animais. Imagino-os retomando
no fim da temporada de caça com sua produção, talvez em parte carregada por asnos selvagens domesticados. Os pêlos, couros, cascos, carne e gordura seriam trocados
por grão e pedra, em parte com outros habitantes locais, em parte com mercadores visitantes.
Qualquer que seja o cenário correto, a natureza especializada de Umm Dabaghiyah indica uma escala de organização maior que a encontrada em qualquer sociedade neolítica
anterior. Ilustra o papel-chave que o comércio e a troca desempenhavam em 7.500 a.C. na gradual transição de aldeias agrícolas para as cidades que precipitaram os
centros urbanos da primeira civilização.
A Expedição Arqueológica Soviética fora convidada a empreender um programa de pesquisa e escavação pelo governo iraquiano, e deu uma admirável contribuição à nossa
compreensão da pré-história mesopotâmia. Antes de seu começo, em 1969, nosso conhecimento era restrito ao assentamento de Jarmo, nos sopés das Zagros, datando de
8.000 a.C., e à cidade de Hassuna, na planície Sinjar, que datava de 6.000 a.C. Escavada em 1945 pelo arqueólogo britânico Seton Lloyd, Hassuna produzira casas complexas,
de muitos aposentos, cerâmica pintada sofisticada e uma escala de agricultura, atividade artesanal e comércio completamente diferente da de Jarmo.
Os dois assentamentos pareciam separados por mundos em cultura e economia. Muitos arqueólogos suspeitaram de que não tinham qualquer relação, e o povo de Hassuna
se espalhara na região, vindo de fora, com sua cultura já formada. A descoberta e a escavação de Diana Kirkbride em Umm Dabaghiyah entre 1970 e 1973 situaram cronologicamente
o assentamento entre Jarmo e Hassuna, mas inteiramente anômalo em relação aos dois, com sua arquitetura de armazéns e suas pinturas de caças ao onagro. O extenso
programa de pesquisa c escavação da Expedição soviética na planície de Sinjar descobriu outros assentamentos, alguns contemporâneos de Umm Dabaghiyah, outros anteriores
e outros posteriores. Quando as descobertas soviéticas foram combinadas por Trevor Watkins com as escavações de Qermez Dere e de Nemrik por Stefan Kozlowski em fins
da década de 1980, estabeleceu-se uma seqüência completa de desenvolvimento econômico. As cidades de Hassuna nem tinham chegado formadas à planície nem derivavam
das aldeias tipo Jarmo dos sopés das Zagros. Desenvolveram-se a partir de aldeias agrícolas e de caçadores-coletores na própria planície de Sinjar.
A Expedição soviética não teve dificuldade para encontrar sítios e escavar - na verdade havia abundância de monturos no norte da Mesopotâmia. Eram conhecidos desde
que Austen Henry Layard, diplomata e arqueólogo britânico, viajara pela Mesopotâmia na década de 1840 e levara sua arqueologia à atenção do público com seu livro
Nineveh and its Remains [Nínive e seus restos] - estranhamente não mencionado no Tempos pré-históricos do John Lubbock vitoriano de 1865. Ele contava que pernoitara
em 1843 na borda da planície de Sinjar, olhando o cair da noite e contando "mais de cem monturos, que lançavam suas sombras negras e crescentes sobre a planície".
Três anos depois, revisou a estimativa e dobrou esse número. Quando Seton Lloyd, trabalhando para a Universidade de Liverpool, fez quase um século depois a primeira
pesquisa arqueológica sistemática da planície de Sinjar, os duzentos monturos foram reconhecidos como "apenas uma pequena parte de um grande número espalhado sobre
essa outrora fértil planície".
Um dos monturos escavados pela Expedição soviética ficava 50 quilômetros ao norte de Umm Dabaghiyah e erguia-se a não mais que 2,5 metros da planície em volta.
Foi designado de Tell Sotto e escavado por Nikolai Bader entre 1971 e 1974. Ele encontrou uma sucessão de casas de um e de vários aposentos, mostrando o crescimento
e depois abandono de uma aldeia agrícola, que jamais teve mais de três ou quatro casas em qualquer tempo. Como se encontrou uma série de poços de tamanho suficiente
para ser restos de moradas subterrâneas sob as fundações de casas posteriores, o assentamento original em Tell Sotto pode ter sido uma aldeia muito parecida à de
Qermez Dere.
As casas dos primeiros agricultores de Sotto eram retangulares; a maioria linha um só aposento, mas pelo menos uma tinha vários, aos quais se chegava por um corredor.
Enquanto as paredes das casas de Maghzaliyah eram feitas com torrões amorfos de barro, as de Sotto eram de adobe. Alguns aposentos tinham sido evidentemente usados
para tarefas domésticas, pois continham mós, lareiras, ossos de animais, cerâmica, fogões e prateleiras para secar grãos. Em outros aposentos, Bader encontrou grandes
vasos de cerâmica, muitas vezes no chão e usados para guardar grãos. Vasos semelhantes eram usados para outro tipo de armazenamento - de crianças mortas, cujos pequenos
corpos tinham sido espremidos lá dentro, deixando os ossos para Bader encontrar.
Apesar de pequeno, Sotto parece ter sido um próspero assentamento, a julgar pelos artefatos feitos por seus habitantes ou adquiridos por troca: braceletes de pedra,
contas, machados polidos e estatuetas de barro. Muitos dos mortos eram enterrados sob os pisos e em geral sem artigos nas covas. Um túmulo, porém, pertencera claramente
a uma pessoa muito rica; continha um pequeno alguidar com os restos de uma refeição, um colar de exóticas contas de pedra, incluindo mármore e lápis-lazúli, e uma
pequena lâmina de cobre dobrada num tubo. O tubo é um dos primeiros sinais de trabalho em cobre no mundo, só igualado por uma pequena sovela de Maghzaliyah - sendo
os dois um milênio mais antigos que as contas de pedra de Mehrgarh.
Embora a população de Sotto jamais passasse de trinta ou quarenta pessoas, é provável que o assentamento tenha crescido rapidamente e dado origem a várias das
novas aldeias que começaram a pontilhar a planície mediterrânea após 8.000 a.C. Alguns de seus habitantes podem ter passado o inverno em Umm Dabaghiyah, aquecidos
pelas grandes lareiras e fogões. Outros podem ter deixado Sotto para juntar-se a uma aldeia que surgiu apenas a dois quilômetros e conhecida hoje por nós como Yarim
Tepe, que continuou a florescer muito depois do abandono de Sotto, com uma arquitetura e uma cerâmica muitíssimo elaboradas, por 12 níveis de construção. O resultado
foi um monturo de 6 metros de depósitos arqueológicos descoberto por Seton Lloyd na década de 1930, e depois escavado por Nikolai Yakovlevich Merpert e Rauf Magornedovich
Munchaev, dois dos colegas de Bader na Expedição soviética.
A viagem de Lubbock de Umm Dabaghiyah para o norte não era de mais de 40 quilômetros, mas foi preciso quase um milênio para completá-la - período em que Maghzaliyah
foi inteiramente abandonada e a população de Sotto declinou.
Durante sua curta jornada, ele viu as distantes colinas de Sinjar, sulcadas por incontáveis ravinas, cada uma, marcada por sombras roxas escuras que se derretiam
na névoa da noite. Enquanto andava para o norte, a árida estepe foi substituída por capim tenro com punhados de tulipas escarlate - a primeira das flores de primavera
que logo iriam enfeitar a planície. Pássaros levantavam vôo freqüentemente, e Lubbock encontrou vários grupos de ovos sarapintados, postos simplesmente no chão,
sem nenhum ninho em redor. Pegou alguns para comer e sentou-se para descansar entre as tulipas, lembrando as outras vezes em que se sentara entre flores na estepe,
uma delas perto de Ohalo e outra diante de Abu Hureyra, durante suas viagens no oeste da Ásia.
Lubbock agora senta-se num lugar inteiramente diferente e sente-se desconsolado; está dentro de um pequeno pátio em meio ao labirinto de muros e becos de adobe
que constituem Yarim Tepe. A data é 6.400 a.C., aproximadamente na metade da história da cidade, e embora ele só tenha chegado alguns dias atrás, já está ávido por
ir embora. A cidade pulula com adultos cuidando de tarefas domésticas; crianças correm de um lado para outro em bandos, cachorros futucam o lixo e cabras extraviadas
entram e saem das casas. Oleiros, artesãos de pedra e tecelões trabalham; bem perto dele, um morador de Yarim Tepe discute com um mercador itinerante o valor relativo
da lã de cabra e lâminas de obsidiana.
O barulho, a fumaça e o fedor de detritos humanos que tudo impregna fazem Lubbock desejar estar em outra parte nessa data na história humana. Lembra-se de Jokhov,
no Ártico siberiano, onde poderia estar cercado por uma vastidão da natureza em vez da claustrofobia cultural de Yarim Tepe. Quem, pensa, preferiria ser agricultor
morando em cidade em vez de caçador-coletor? Após ter viajado por todos os continentes do mundo, com exceção de um, sabe a resposta: quase todos no mundo pré-histórico.
E, no entanto, reflete, há uma certa excitação na cidade. É o que alguns arqueólogos descrevem como a civilização mediterrânea nascendo.
Quando Lubbock anda por Yarim Tepe, os vasos de cerâmica sendo feitos e usados são impressionantes. Têm grande variedade de formas e tamanhos - grandes potes de
armazenamento, jarras, tigelas, pratos, canecos e bandejas. Alguns foram decorados com figuras ou formas moldadas, mais ou menos como em Tell Solto; outros, pintados
com simples motivos geométricos, bem diferentes dos complexos desenhos curvos vistos nos vasos de Umm Dabaghiyah e Sotto. Mas embora a cerâmica seja impressionante,
é o trabalho em cobre que o impressiona mais. Vê apenas um anel no dedo de alguém e um pingente de cobre pendurado num pescoço; não descobre se o minério foi de
fato fundido na cidade ou simplesmente martelado para ganhar forma.
Yarim Tepe tem fácil o dobro do tamanho de Sotto, e continua a expandir-se. Campos de trigo e cevada cercam suas casas; grandes rebanhos de carneiros e cabras
são levados todos os dias a pastar nas colinas próximas. Uma tal atividade agrícola proporciona excedentes para comerciar e sustentar os muitos artesãos da cidade.
Durante sua excursão, Lubbock descobre que se cavaram estreitas valas para as fundações de uma nova casa de paredes de adobe. Ajuda a recolher vasos de cerâmica
quebrados em volta da cidade e espalha seus fragmentos entre as recém-erguidas paredes como base para o piso de reboco.
Na maioria, as casas de Yarim Tepe são estruturas retangulares com vários aposentos, às vezes agrupadas para formar distintos complexos dentro da cidade. Algumas,
porém, mostram-se bastante diferentes. Estas são redondas e com poucos metros de largura, paredes de barro e telhados em domo feitos de treliça de galhos e palha.
Várias pontilham toda a cidade, seja dentro de outra construção ou no canto de um pátio. Lubbock fica sabendo a função de pelo menos uma dessas estruturas quando
a vê cercada por pessoas ávidas para observar partes desmembradas do corpo de uma moça serem passadas por uma fenda em seu telhado e postas no chão. Em seguida vem
uma variedade de objetos que presumivelmente pertenceram à jovem: uma cesta de vime, fios de contas, ótimos vasos de pedra e cerâmica, buquês de flores, o corpo
de um filhote de cabra. Olhando isso, Lubbock lembra-se do homem em Qermez Derc que jogara uma coleção de objetos semelhantes numa morada semi-aterrada durante sua
destruição, e do homem enterrado com cabras em Mehrgarh. Uma vez que as partes do corpo e as posses são postas dentro desse túmulo, lacra-se o telhado e a moça é
deixada sozinha com os pais e avós, talvez à espera dos filhos dela. Mas para juntar-se à mãe eles terão de chegar à idade adulta, pois só então serão dignos desse
desmembramento.
Merpert e Munchaev descobriram os esqueletos de crianças novas enfiados em todo tipo de lugar - sob pisos, entre paredes, em recessos e fendas das casas. Alguns
tinham sido enterrados com vasos de cerâmica e chifres de animais, mas a maioria foi simplesmente deixada, com pouca cerimônia. Raramente se escavaram esqueletos
de adultos; os encontrados eram quase sempre partes desmembradas dentro de estruturas circulares, ou "tholoi", como os escavadores as descreveram. Eram em número
demasiado pequeno para representar toda a população adulta, e assim parece provável um cemitério fora da cidade. Os que morriam crianças não tinham direito nem ao
(hipotético) cemitério nem ao tholoi e eram mantidos eternamente dentro de casa - ou pelo menos até que os arqueólogos chegassem e os pusessem em caixas e museus.
O tipo de arquitetura, economia, artefatos e sociedade de Yarim Tepe - sua cultura - era o mesmo que o encontrado em Tell Hassuna quando escavado por Seton Lloyd
na década de 1940. O período Hassuna, aproximadamente 6.800-5.600 a.C., assinala o ponto decisivo da pré-história da Mesopotâmia. Deixa para trás o mundo de pequenas
aldeias de caçadores-coletores e antecipa a expansão de cidades e comércio.
A partir de 6.000 a.C., surgem assentamentos no centro e no sul da Mesopotâmia, com toda probabilidade criados por pessoas que se espalhavam de super-povoadas
cidades do norte para uma paisagem esparsamente povoadas por caçadores-coletores. Embora semelhantes às de Hassuna, as cidades do sul adotaram seus estilos de cerâmica
e arquitetura e são chamadas de comunidades de Samarra. Algumas são bastante espetaculares, como Tell es-Sawwan - um assentamento no topo de um penhasco que dá para
o rio Tigre, 110 quilômetros ao norte da Bagdá de hoje.
Em 5.000 a.C., encontram-se cidades substanciais por todo o Crescente Fértil, a não ser no extremo sudoeste, onde as do vale do Jordão há muito tinham sido abandonadas.
Nas terras que cercam o Tigre e o Eufrates, surgira uma nova cultura, combinando as culturas Hassuna e Samarra. Conhecido como período Halaf, dura todo um milênio,
sustentado pelas mesmas safras que tinham sustentado agricultores pré-históricos desde os dias dejericó e Maghzaliyah: trigo e cevada, ervilha e lentilha. Mas ocorreu
um fato-chave: o uso da irrigação artificial. Fora isso que possibilitara às pessoas explorar plenamente as ricas planícies aluviais do sul da Mesopotâmia.
Embora os carneiros e cabras predominassem em Sawwan, o gado era importante, seu significado refletido em estatuetas de barro e cerâmica pintada com motivo de
cabeça de touro. Como o acréscimo de ricas gorduras do leite a dietas humanas aumenta a taxa de nascimentos, o pastoreio de gado foi um dos fatores por trás do que
parece ter sido uma explosão de população. Muitos novos assentamentos foram fundados durante o período Halaf, enquanto as cidades existentes se expandiam, muitas
alcançando cinco vezes o tamanho de Yarim Tepe no seu auge.
As cidades do Halaf partilhavam uma arquitetura e um estilo de cerâmica pintada característicos, alguns assentamentos abastecendo áreas vizinhas com seus produtos.
Estatuetas femininas de barro pintadas, pingentes e timbres de pedra eram também partilhados. Os últimos, muitas vezes furados e com desenhos lineares, eram usados
para fechar cestos e potes, sugerindo o movimento e armazenamento de artigos valiosos. Esses e materiais mais banais como comidas, cerâmica e pedra eram extensamente
comerciados entre as cidades - o comércio era a raiz da prosperidade, inovação tecnológica e unidade cultural.
A cultura Halaf assinala o fim da pré-história da Mesopotâmia. No período Uruk que se seguiu, encontram-se os primeiros traços da escrita. Dentro de mais mil anos,
começam a aparecer as cidades da civilização mesopotâmica. Mas estas e as próprias cidades do Halaf não serão vistas por Lubbock - seu tempo na Mesopotâmia chega
ao fim em Yarim Tepe em 6.400 a.C.
Sentado em meio ao burburinho da cidade, John Lubbock pensa onde mais ele esteve nessa data na história humana: não apenas em Jokhov, mas também no monturo de Natsushima,
no cemitério de Oleneostrovski Mogilnik, na aldeia de Koster e dentro dos manguezais da Terra de Arnhem. Lembra agora sua espantosa jornada pelo sul da Ásia - de
Muchchatla Chintamanu Gavi no LGM a Jeitun em 6.000 a.C., antes de viajar pela pré-história mesopotâmica. Foi de contínua descida física. Começou nas montanhas em
11.000 a.C. com os caçadores-coletores de Zawi Chemi Shanidar e continuou em sopés ondulantes com visitas às aldeias sedentárias de Qermez Dere e Nemrik; destas,
descera mais ainda para as baixadas, para visitar o pequeno assentamento agrícola de Maghza-liyah e o sítio de caça especializado de Umm Dabaghiyah, que abastecia
de carne as novas cidades. Finalmente chegou a Yarim Tepe, com seus especialistas em artesanato e constante fluxo de mercadores visitantes. Não mais de 5 mil anos
se passaram entre as pessoas que caçavam gazelas e coletavam bolotas nas montanhas Zagros e aquelas à sua volta agora, com suas casas de vários aposentos e túmulos
tholoi, sua cerâmica c trabalho em metal, campos de trigo e rebanhos de carneiros.
Lubbock pergunta-se por que a Mesopotâmia foi cenário de tão rápido crescimento econômico e transformação cultural. Os fatores climáticos e ambientais são evidentemente
chave - a presença de cereais selvagens, cabras e carneiros, um Jovem Dryas relativamente brando (se houve afinal), aquecimento global em 9.600 a.C., férteis solos
aluviais em torno do Tigre e do Eufrates. E, no entanto, esses fatores só se tornaram importantes no "surgimento da civilização" devido a atos e escolhas particulares
feitos por pessoas que tratavam de suas vidas diárias. Os habitantes de Zawi Chemi Shanidar, Qermez Dere e Nemrik tinham sido tão responsáveis por deitar suas fundações
quanto foram as que viveram em Maghzaliyah, Tell Sotto e Yarim Tepe. E nenhuma delas tinha qualquer conhecimento prévio do que estava para vir.
A história, pensa Lubbock, é um extraordinário emaranhado de causas e conseqüências, de engenhosidade humana e completo acaso, de mudança ambiental e resposta
humana. A compreensão exige o conhecimento de fatos locais e do mundo mais vasto cm que ocorrem esses fatos. Ninguém em 9.600 a.C. poderia ter sabido para onde ia
a história quando chegou o surto final de aquecimento global e começou o mundo do Neolítico.














África


46
Peixe Assado à Margem do Nilo
Caçadores-coletores do norte da África e do vale do Nilo,
20.000 - 11.000 a.C.
Uma menina pequena nua engatinha no chão de areia. Cai, rasteja e torna a levantar-se insegura sob os aplausos dos adultos sentados à sua volta. John Lubbock está
entre eles, também gostando das risadas e passos incertos dela. É novembro num ano perto do LGM, e ele visita um grupo de famílias em seu acampamento em Wadi Kubbaniya,
um vale tributário do Nilo. As choupanas de palha, mós, tapetes de palha e lareiras ficam numa duna abaixo de um penhasco de calcário. Adiante estende-se o deserto
do Saara para oeste - muito mais extenso e árido que hoje. O acampamento dá para um punhado de árvores em meio a um mosaico de arbustos, juncos, poças e os canais
trançados do rio Nilo. O ar cheira a fumaça de lenha, camomila e peixe assando.
A menina vem parar diante de Lubbock e parece fitá-lo nos olhos. Tem os cabelos pretíssimos e a pele marrom-chocolate; salpicos de areia cobrem seus lábios e nariz
de onde ela caiu. Ele sorri e o rosto dela torna-se um sorriso de covinhas - estranho, porque a menina não pode, claro, vê-lo. Quando ela se rira e corre para a
mãe, um pedaço de fezes marrom-claro cai de suas nádegas, aterrissando bem entre os pés dele. Um homem curva-se e dá um piparote no tolete com o dedo, mandando-o
a girar pelo ar para dentro do fogo. O detrito chia e logo fica negro - um crucial indício arqueológico em formação.
A última viagem continental de Lubbock começou algumas centenas de anos antes, dentro de uma caverna na costa norte-africana. Em 20.000 a.C., ele despertara e rira
uma larga planície costeira, coberta de densa mata que se tornara mato baixo e depois pântano, antes de encontrar o mar Mediterrâneo. Um punhado de armas de caça,
alguns couros e os restos de uma lareira ainda quente cercavam-no no chão, todos atrás de uma pedra que atuava como um vital quebra-vento. Ele subiu os rochedos
acima da caverna; olhando para o sul, em direção ao Saara, viu um trecho de montanhas baixas e acidentadas; ao norte, um grupo de caçadores-coletores que acabavam
de sair de entre as árvores embaixo da caverna. Carregavam a carcaça de um carneiro selvagem, de chifres em curvas extravagantes e pêlo marrom-escuro.
Lubbock ficou os meses seguintes com as três famílias que passavam o inverno nessa caverna. Na maior parte dos dias, saía com os homens para caçar carneiro selvagem,
um tipo hoje conhecido como carneiro berbere, ou mouflon à manchettes. De vez em quando cavavam gazelas no mato baixo; tocaiavam gado selvagem sempre que encontravam
seus rastros entre as árvores. Quando não caçava, Lubbock acompanhava as mulheres até o rio próximo, e em raras ocasiões à praia distante para catar mariscos e algas
marinhas.
Restos de todas essas atividades foram deixados dentro da caverna, junto com instrumentos abandonados e detritos de fabricação e conserto. Os ossos, cestos, conchas,
tapetes, cinzas e lascas de pedra foram cobertos pelo lixo deixado por ocupantes posteriores, areia trazida pelo vento e corpos decompostos, material de ninho e
restos de comida de pássaros e animais que também se abrigaram entre suas paredes. O desmoronamento do teto acrescentou-se ao depósito acumulado. Uma vez enterrado,
o material deixado pelos anfitriões inconscientes de Lubbock em 20.000 a.C. apodreceram, decompuseram-se e foram misturados com detritos anteriores e posteriores
por animais cavadores. O que sobreviveu acabou vindo à luz em 1973 d.C., quando se fizeram escavações no que se tornara conhecido como Caverna de Tamar Hat na Argélia
de hoje.
Vinte anos antes, uma caverna norte-africana muito maior fora escavada pelo arqueólogo de Cambridge Charles McBurney nas encostas de Gebel el-Akhdar - "Montanha
Verde" - no nordeste da Líbia. Em sua primeira visita em 1948, McBurney descrevera a enorme abertura como "visivelmente intimidante", o imenso teto abobadado da
caverna minimizando o acampamento dentro dela. Lubbock teve uma reação semelhante em 20.000 a.C. quando, após viajar de Tamar Hat para o leste, olhou as encostas
de Gebel el-Akhdar da planície costeira e viu a conspícua entrada escura na rocha. O mato baixo verde na encosta não tinha a luxuriância que McBurney encontraria
e o deserto ao sul era ainda mais inóspito que o da Líbia hoje. Mas a caverna era igualmente grande e, como o nível do mar no LGM estava no ponto baixo do LGM, dava
para uma extensa planície costeira. Não surpreende que a caverna em Haua Fleah fosse tão atraente para os caçadores-coletores na pré-história quanto foi para McBurney
como sítio de escavação.
Como em Tamar Hat, Lubbock ficou com os ocupantes de Haua Fteah tempo suficiente para descobrir como eles viviam. Isso não exigiu mais que uma breve estada, pois
o estilo de vida deles pouco diferia daquele de toda a costa norte-africana, na dependência do carneiro berbere para carne, gordura e couro. Após deixar Haua Fteah,
Lubbock continuou sua viagem para leste até alcançar o delta do Nilo - um vasto espaço de lagoas, pântanos e mato baixo, dividido por uma teia de riachos. Espirais
de fumaça no ar vespertino disseram-lhe que caçadores-coletores se espalhavam pelas muitas ilhas minúsculas do delta. Tomando emprestada uma canoa que estava à deriva
nos baixios, começou a remar rio acima.
Em 20.000 a.C., o rio Nilo era muito diferente do que hoje conhecemos. Em vez de um único canal largo e sinuoso, Lubbock descobriu que se ramificava em vários
pequenos riachos que serpeavam lentamente por uma planície aluvial.
Muitas vezes mal parecia sequer água a correr. Os pequenos canais juntavam-se quando o rio passava por gargantas de penhascos a pique ou enormes dunas, e depois
tornavam a dividir-se. Alguns sumiam completamente; outros terminavam em poços bloqueados por montes de aluvião e areia.
Gado selvagem e alcéfalos pastavam entre os juncos, arbustos e árvores espinhosas que davam à beira do rio. Uma vez Lubbock passou por crocodilos que descansavam
num banco de areia; lavandeiras e narcejas examinavam os baixios, e bandos de codornizes e garças passavam voando. Mas a natureza, em geral, era bastante pobre em
comparação com a que Lubbock vira nas viagens fluviais em outras partes do mundo pré-histórico. Além disso, acabava abruptamente onde começava o desolado deserto,
de cada lado do estreito corredor da planície aluvial.
Lubbock passou por muitos acampamentos pequenos de caçadores-coletores e parou para vê-los pescando em canoas e caçando aves no meio dos juncos à beira do rio.
Viajara 500 quilômetros desde o delta quando fez uma visita prolongada a um acampamento; ficava na junção do Nilo com seu tributário oeste de Wadi Kubbaniya. Já
era julho e o rio começara sua enchente anual, as águas inchadas pela chuva nas montanhas muito ao sul. Várias famílias achavam-se em meio ao trabalho de restabelecer
seu acampamento sazonal numa duna aninhada entre os rochedos de calcário do wadi. Algumas trabalhavam dando os últimos toques no pequeno abrigo de palha construído
no cume da duna; outras varriam o lixo do ano anterior deixado no acampamento. As mós ovais deixadas atrás estavam quase inteiramente sepultadas pela areia soprada
pelo vento. Lubbock ajudou um jovem a desenterrá-las.
Os que faziam o acampamento tinham todos a pele escura e boa constituição física, com roupas direitas feitas de couro. Dois dos homens tinham deficiências físicas,
um capengando de uma perna quebrada e o outro com o braço duro cheio de sérias cicatrizes. Nenhum indivíduo parecia assumir o papel de chefe, e nenhuma família parecia
ter uma choupana maior ou mais posses que qualquer outra. Uns poucos usavam colares feitos de contas talhadas de casca de ovo de avestruz; outros tinham espalhado
tinta vermelha na testa e bochechas. Esses enfeites, porém, eram por vaidade, não para denotar status.
Lubbock logo descobriu por que o acampamento se situava na própria duna. Poucos dias depois de sua chegada, a enchente anual do Nilo já quase chegara ao cume; com
um imenso volume de água, o rio rompera as margens, formando uma rede de poços interligados entre as dunas. Foi o sinal para grande atividade no acampamento: era
preciso colher plantas antes que ficassem inteiramente submersas; acumularam-se pilhas de lenha; fizeram-se grades com grossos juncos; cestos de palha trançada.
Enquanto isso, as crianças continuavam em suas correrias, indo e vindo dos poços, evidentemente atentas a algum acontecimento muito esperado. Lubbock sentou-se sob
um tamariz, observando a meninada excitada e os adultos a trabalhar.
Mais uma vez, faziam-se microlitos no mundo pré-histórico. As lâminas de pedra eram lascadas numa ou nas duas bordas e depois encaixadas em cabos para fazer facas;
algumas eram usadas como pontas de flecha feitas de junco, e como farpas em lanças de madeira - mais uma ocorrência da tecnologia de encaixe, embora uma das primeiras
que Lubbock vira. Também se usava o sílex, mas evidentemente era muito valioso, porque não encontrado nas vizinhanças imediatas do wadi. Os únicos nódulos disponíveis
eram trazidos para a duna em bolsas de couro e trabalhados com imenso cuidado, para não desperdiçar nenhuma lasca.
Quando se cansou de observar as rajadas de areia pelo wadi, Lubbock leu seu exemplar de Tempos pré-históricos. Embora o sítio de Wadi Kubbaniya não fosse conhecido
em 1865, seu xará vitoriano escrevera sobre a inundação anual do Nilo e o significado para os arqueólogos da profundidade do aluvião depositado cada ano. Muito antes
da invenção da datação por radiocarbono, a taxa de sedimentação parecia um meio ideal de avaliar a idade de artefatos enterrados no chão. O autor citava uma pesquisa
de um certo Sr. Homer, que usara a profundidade da sedimentação acumulada em comparação com antigos monumentos egípcios, como o obelisco em Heliópolis, que então
se acreditava datar de 2.300 a.C., para avaliar que 3,5 polegadas [8,89 cm] se acumulavam a cada século. O Sr. Homer cavara poços então e descobrira fragmentos de
cerâmica 39 pés [11,89 m] abaixo da superfície, o que, calculou, indicava uma idade de 13.000 a.C. O moderno John Lubbock não se surpreendeu com o fato de seu xará
vitoriano apresentar em seguida "vários motivos que tornam os cálculos muito duvidosos". Estavam de fato inteiramente errados em relação à cerâmica, que hoje se
sabe só apareceu no Nilo após 5.000 a.C.
Um espadanar na água acordou Lubbock de um cochilo vespertino à beira d'água. Ele olhou para baixo e viu um cardume de cascudos debatendo-se nos baixios. Fechavam-se
em nós e usavam as caudas para estapear a cara uns dos outros - sua maneira de parecer sexy e atrair companheira. Eram os primeiros do grande número de cascudos
que chegavam aos poços de Wadi Kubbaniya lodo ano para reproduzir-se. Com os adultos e crianças observando, continuou o acasalamento até cada centímetro de alga
e grande parte da areia ficarem cobertos de ova reluzente. A essa altura, os peixes estavam exaustos, pendendo bambos na água. Era hora de começar a pesca.
Lubbock já pescara bastante em suas viagens - usando veneno no Amazonas em 10.500 a.C., lanceando salmão em Namu em 6.500 a.C. e ao luar perto de Tybrind Vig em
4.400 a.C. Essa nova experiência ictiológica era tão produtiva quanto qualquer das outras, mas muito menos exigente em esforço e habilidade. O povo de Wadi Kubbaniya
simplesmente vadeava com água pelos tornozelos, pegava os peixes com cestos e jogava-os na margem - os cestos protegendo as mãos das espinhas. As crianças esperavam
com avidez pelos peixes, que muitas vezes tinham mais de 1 metro de comprimento: cada um era morto a pauladas.
Ao anoitecer, quando todos os peixes não apanhados já haviam voltado para águas mais profundas e seguras, Lubbock sentou-se na margem e ajudou no estripamento
da presa. As grades de junco logo estavam carregadas de peixe; eram colocadas sobre fogueiras para defumar, e; portanto, preservar, a maior parte. Nessa noite ele
juntou-se à primeira "festa do peixe" da temporada, comido com bolos parecendo pão, cozidos sobre pedras quentes em torno da fogueira do acampamento. Quando a lua
surgiu e tiveram inícios os cantos e danças, deitou-se para dormir e pensou nos prazeres da vida no vale do Nilo no LGM.
Lubbock voltou aos poços com os anfitriões no dia seguinte e no outro, quando chegaram uma segunda e uma terceira onda de peixes para reproduzir-se. A essa altura,
porém, a novidade de pegar, dar cacetadas e estripar já passara para as crianças, que foram brincar em outra parte. A ajuda delas não fazia falta - o número de peixes
diminuíra substancialmente, pois a curta explosão de reprodução já quase terminara. Com o passar das semanas, os cascudos foram substituídos por enguias que vinham
banquetear-se com a ova e os peixinhos assim que chocavam. O povo de Wadi Kubbaniya tentava pegá-las, talvez interessados em preservar seu futuro abastecimento de
peixe. Enquanto as enguias escorregavam pelos dedos de Lubbock, homens e mulheres do acampamento enrolavam em palha peixe defumado e secado ao sol, para guardá-lo
em cestos e comê-los nos dias magros futuros.
Embora o acampamento estivesse a salvo mesmo dos mais altos níveis da enchente, estava exposto ao quase constante vento que soprava do deserto ocidental; todos
e tudo viviam freqüentemente cobertos por uma fina camada de areia. Quando o vento era forte, Lubbock sentava-se atrás de um frágil abrigo na duna e via a areia
acumular-se em torno dos tamarizes e acácias que se espalhavam pelos lados do wadi; outros faziam o mesmo, quebrando pequenos seixos de jaspe negro.
No fim do verão, os fortes ventos tinham amainado e as águas da enchente começado a baixar. Lubbock decidiu favorecer seu interesse pela cozinha em Wadi Kubbaniya,
trabalhando com as mulheres para descobrir que plantas eram coletadas e como eram transformadas em comida. Como preparação, pegou algumas lascas de pedra rejeitadas
no chão de um acampamento para transformar um galho seco num pau de cavar, levemente semelhante aos usados pelas mulheres aonde quer que fossem.
Na maioria dos dias, elas partiam com cestos vazios e bebês amarrados às costas para o recém-aparecido terreno pantanoso que agora bordejava os leitos de juncos
e a restante água dos poços. Lubbock teve muitas aulas em coleta de plantas e preparação de comida: em algumas ocasiões, meteu-se nos poços para colher botões de
flor de lírio d'água; em outras, ajudou a arrancar raízes de taboa e papiro e depois colher sementes de camomila. Vários tipos de arbusto à altura dos joelhos forneciam
folhas, ou sementes, ou raízes comestíveis.
Uma planta, contudo, dominava a época da colheita. Tinha apenas alguns centímetros de altura, e flores tão roxas que formavam um tapete no chão. Conhecida hoje
como capim-nogueira roxo selvagem, fora descrita como "a pior erva daninha do mundo", devido à sua capacidade de invadir e proliferar em campos irrigados. Mas para
o povo de Wadi Kubbaniya no LGM, era a planta comestível mais valiosa de todas.
Em seu primeiro encontro com essa planta, Lubbock ajoelhou-se com as mulheres e copiou as ações delas quando enfiavam os paus de cavar no chão para revolver o
solo lamacento. Logo abaixo da superfície, havia um denso tapete de raízes inchadas interligadas, cada tubérculo não tinha mais de alguns centímetros de comprimento.
Alguns eram negros e duros; estes eram desenterrados e jogados fora; o resto era marrom-claro, arrancado do chão e jogado dentro das cestas. As mulheres cavavam
continuamente durante várias horas, passando aos poucos de um trato de capim-nogueira para o seguinte. Os tubérculos eram tão densos que muitos ficavam no chão,
o futuro deles melhorado pela retirada de tubérculos velhos que tinham obstruído o solo.
Uma vez cheios os cestos, as mulheres sentavam-se à beira do poço e lavavam a lama dos corpos e dos tubérculos antes de voltarem ao acampamento. Lubbock testemunhou
então o laborioso processo de transformar nodoso capim-nogueira em bolos de chapa - testando a mão em cada uma das etapas. Primeiro, os tubérculos eram postos sobre
pedras quentes entre as brasas da fogueira. Após alguns minutos de cozimento, a pele começava a soltar-se e podia ser arrancada com a mão. Em seguida, os tubérculos
já quebradiços eram moídos e reduzidos a farinha, embora muitos pedaços da pele e fios de fibra dura permanecessem. Estes eram retirados com peneiras feitas de junco
em fina trama, e a farinha pura recolhida em sacos de couro embaixo.
Ainda não estava pronta para cozinhar; o povo de Wadi Kubbaniya sabia que teria gosto acre e perturbaria o estômago. E assim Lubbock teve de seguir as mulheres
à uma certa distância até a água corrente, onde a farinha foi repetidas vezes lavada, enchendo-se os sacos, mexendo o conteúdo, deixando descansar e depois despejando
com cuidado a água fora. Isso retirava as toxinas contidas na farinha. Finalmente, as mulheres voltavam para o acampamento e espremiam punhados da papa restante
em pequenos bolos redondos, que eram postos para cozinhar sobre as pedras quentes. A papa não era toda cozida desse jeito. Guardava-se um pouco para as crianças
pequenas, sobretudo uma bebezinha que só há pouco deixara de ser amamentada no seio da mãe
As mós estavam agora em uso constante para preparar sementes. Uma quebrou-se. Para obter uma substituição, dois homens foram ao penhasco de calcário atrás da duna
e passaram um dia lascando grandes lajes em formas ovais, observadas de perto por Lubbock. Também cataram seixos para usá-las como pedras de esfregar e triturar.
Cada laje era furada e alisada para torná-la mais fácil de segurar, embora a maioria ficasse com a forma bastante irregular. Com exceção de uma, todas as mós semipreparadas
foram deixadas no penhasco para uso futuro; a levada para o acampamento foi ainda mais aparada na forma especificada pelas mulheres que a tinham pedido.
Lubbock também foi caçar com os homens. A principal presa deles eram os gansos e patos que chegavam nos meses de inverno. Eram tocaiados dos juncos e abatidos
com arco e flecha. Às vezes os caçadores deixavam o acampamento ao crepúsculo e esperavam emboscados num poço distante o gado selvagem e os alcéfalos, e os acertavam
com lanças de ponta de pedra. Não se podia caçar as gazelas desse jeito; elas tiram toda a umidade que precisam apenas da vegetação, e assim tinham de ser perseguidas
em meio ao mato baixo da planície aluvial e até a borda do próprio deserto. Os abates, porém, eram raros, e essas duas ou três viagens de caça pareceram ser mais
para ganhar alguma liberdade em relação às mulheres do que para contribuir com o estoque de comida.
A essa altura - novembro - as águas do Nilo já quase tinham retornado ao seu nível mais baixo. Os poços não mais se ligavam e eram meras poças rasas. Isso oferecia
outra oportunidade de presa fácil, pois muitos peixes ficavam encalhados e podiam mais uma vez ser apanhados com as mãos enquanto nadavam desvalidos em círculos.
Uns poucos ainda conseguiam escapar para o rio Nilo. Em algumas ocasiões, Lubbock deixava o acampamento e via os cascudos que se debatiam no seco indo de poço em
poço até chegar ao rio - são um dos poucos peixes que tiram oxigênio do ar.
Em poucos dias, os poços desapareceram inteiramente; os ocos entre as dunas então secavam, rachavam-se e eram cobertos de areia, até o Nilo voltar a inundar suas
margens. Sentado no acampamento de Wadi Kubbaniya, vendo assarem peixes recheados de camomila sobre as pedras quentes da fogueira, e a menininha a engatinhar de
pessoa em pessoa, às vezes deixando atrás suas fezes para serem jogadas nas brasas, Lubbock sabia que chegara a hora de continuar sua jornada pré-histórica.
Gordon Hillman, do Instituto de Arqueologia de Londres e deão de acqueobotânica, identificou as fezes de bebê quando estudou os restos de plantas escavados em Wadi
Kubbaniya. Para ele, pareciam minúsculos fragmentos, negros por fora e marrom por dentro. Alguns tinham textura muito fina, semelhante ao barro, que, para seu olho
de experto, tinham evidentemente sido um dia uma "papa de planta finamente triturada. Ele teve de decidir se aqueles torrões queimados vinham de uma planta acidentalmente
jogada numa fogueira durante a preparação, de vômito ou fezes de um cachorro domesticado ou de um ser humano. Escolheu o último porque um pedaço tinha as marcas
da superfície interna de um cólon. A fina textura da antiga comida também sugeria que o doador não fora canino. Hillman sabia que muitas histórias de caçadores-coletores
recentes contam que as crianças defecam no lugar onde estão sempre que surge a necessidade, as fezes freqüentemente lançadas nas fogueiras do acampamento. Também
encontrou areia dentro das fezes, como seria de esperar de bebês que passam o tempo arrastando-se no chão.
A jornada daquele pequeno torrão marrom de uma fogueira em Wadi Kub-baniya em 20.000 a.C. a uma lâmina sob o microscópio de Hillman deveu-se ao admirável trabalho
da Expedição Pré-histórica Combinada no vale do Nilo. Chefiada por Fred Wendorf e Angela Close, da Universidade Metodista do Sul, Texas, e Romuald Schild, da Academia
de Ciências da Polônia, fez uma notável campanha de pesquisa e escavação, que transformou nosso conhecimento da pré-história norte-africana.
Começou em 1960, quando o governo egípcio decidiu construir uma nova represa em Assuã que inundasse uma extensa área ao sul. A Expedição Pré-histórica Combinada,
trabalhando com a Pesquisa Geológica do Egito, foi um dos vários esforços internacionais para explorar a arqueologia da região ameaçada. Em 1967, voltou suas atenções
para o vale do Nilo ao norte de Assuã, e quase imediatamente descobriu densos conjuntos de pedra lascada e mós em antigas dunas na junção de Wadi Kubbaniya com o
Nilo. Mas com a eclosão da Guerra Árabe-Israelense e a continuação do turbilhão político, só em 1978 Wendorf e seus colegas tiveram a oportunidade de escavar esses
sítios. Fizeram-no até 1984, descobrindo que alguns tinham provavelmente mais de meio milhão de anos, e outros datavam do LGM.
Os sítios do LGM eram os mais numerosos, e de longe os mais bem preservados. Localizavam-se principalmente nas próprias dunas, com uns poucos encontrados em solos
de aluvião da planície aluvial. A maioria continha dezenas de milhares de artefatos de pedra lascada, evidentemente acumulados de muitas visitas aos valiosos sítios
de acampamento num período estimado de 2 mil anos. Com meticulosa escavação e peneiramento de vastas quantidades de areia, muitos restos de plantas, espinhas de
peixes, ossos de animais, cascas de ovos de avestruz e mós foram recuperados. Vários anos de estudo de muitos especialistas levaram à identificação de espécies particulares
de plantas e peixes, e à reconstituição das práticas específicas de caça, pesca e coleta que Lubbock desfrutara. Os arqueólogos não apenas fizeram suas meticulosas
análises dos próprios restos, mas procuraram modernos estudos do, digamos, comportamento de reprodução dos cascudos, do uso de tubérculos por caçadores-coletores
vivos e do regime de enchentes do Nilo. Foi tal a extensão do trabalho que a publicação só se deu em 1989 - mais de vinte anos após a descoberta inicial desses sítios,
que proporcionam um quadro tão detalhado da vida no LGM.
Embora as dunas de Wadi Kubbaniya fossem abandonadas como acampamentos anuais após 19.000 a.C., quase certamente porque a areia soprada pelo vento bloqueara a
entrada do wadi, um estilo de vida semelhante continuou por todo o vale do Nilo até o fim do período pleistocênico. A Expedição Pré-histórica Combinada descobriu
muitos grupos de instrumentos de pedra nas dunas e na planície aluvial do Nilo. Quase todos os instrumentos tinham sido feitos em pequenas lâminas, como os de Wadi
Kubbaniya. Mas as técnicas específicas de leitura e os microlitos variavam segundo os lugares e datas. Isso sugeria que existiram no vale várias tradições culturais
localizadas - famílias, e grupos de famílias, tinham criado suas próprias formas de fazer instrumentos e passaram-nas de geração em geração. Muitos dos sítios tinham
mós, vários tinham ossos de animais e restos de plantas, uns poucos tinham túmulos. Sempre que se podia estabelecer os padrões dietários, pareciam semelhantes aos
de Wadi Kubbaniya, com ênfase na pesca em águas de enchente, na caça a alcéfalos e na coleta de uma ampla gama de plantas. Em conseqüência, essa economia, tão adequada
ao regime do rio, parece ter permanecido imutada muito depois do LGM - continuando, na verdade, até 12.500 a.C., quando se sentiram pela primeira vez os dramáticos
efeitos do interestadial glacial tardio.
Desde 20.000 a.C., o rio manteve sua aparência entrançada, porque transportava muito menos água que hoje - talvez não mais que 10 ou 20% do fluxo atual. O Nilo
moderno é alimentado por dois rios principais: o Nilo Branco e o Nilo Azul. O primeiro nasce no moderno Burundi e entra no lago Vitória, principal reservatório do
próprio Nilo. Entre 20.000 e 12.500 a.C., foi bloqueado por dunas no sul do Sudão e não contribuiu com água alguma para o rio principal. A estação entre 20.000 e
12.500 a.C. era muito mais curta que na de hoje, e assim havia muito menos água para o rio Nilo transportar. Temperaturas mais frias, junto com a presença mais de
matagais que de árvores e arbustos nas montanhas, levaram a muito mais sedimentos do que ocorre hoje. Esses sedimentos se depositavam no leito do rio, de modo que
a inundação do Nilo foi aos poucos subindo em altura, chegando até 30 metros acima do que é no presente. Sem o fluxo constante do Nilo Branco, é provável que a subida
e descida anuais do rio tenham sido ainda maiores que hoje, pois o seu nível dependia inteiramente da chuva muitíssimo sazonal nas montanhas do leste africano.
Entre 12.700 e 10.800 a.C., porém, tudo mudou, pois o interestadial glacial tardio trouxe um súbito aumento de temperatura e chuva. As montanhas do leste africano
cobriram-se de mata e, portanto, a erosão existente e a carga de sedimentos levada pelo rio foram acentuadamente reduzidas. Ao mesmo tempo, a quantidade das águas
aumentou muito, em parte devido às novas chuvas e em parte porque o Nilo Branco rompeu sua barreira de dunas. Em vez de continuar a aumentar sua planície aluvial,
o Nilo começou a fazer o contrário: cortar pelo meio de seus próprios sedimentos, os que vinha depositando desde o LGM. Isso teve conseqüências desastrosas para
os habitantes do vale.
O excesso de enchentes de 12.000 a.C. depositou aluvião em elevações muito mais altas que antes, e teve início um período de turbilhão, durante o qual o rio foi
descrito como o "Nilo Louco". Uma vasta quantidade de pântanos, com suas plantas comestíveis e matas de planície aluvial em que o alcéfalo e o gado tinham pastado,
se perdeu completamente. E assim continuou, à medida que o rio se tornava um único canal de águas rápidas, com uma planície aluvial muito mais estreita que antes.
Parte dos habitantes do vale, senão todos, aparentemente preferiu lutar pelos locais de acampamento restantes e os terrenos de pesca, coleta e caça que sobreviveram.
No início dos anos 1960, Wendorf e seus colegas escavaram um cemitério conhecido como Jebel Sahaba, localizado 300 quilômetros ao sul de Wadi Kubbaniya. Data do
período do Nilo Louco, entre 13.000 e 11.000 a.C. De 59 pessoas enterradas ali, 24 tinham visivelmente sofrido morte violenta, devido à presença de pontas de flecha
e severas marcas de corte encontrados nos crânios e ossos. Homens, mulheres e crianças tinham sido mortos. Como atos violentos muitas vezes não deixam vestígios
no esqueleto, é provável que muitos outros tenham tido um fim brutal.
Continua incerto se esse cemitério resultou do catastrófico massacre de um grupo por outro ou foi uma acumulação gradual de corpos durante um período de violência
endêmica. Mas os habitantes do vale do Nilo parecem jamais ter estado inteiramente em paz. Quando escavava Wadi Kubbaniya, Wendorf descobriu um túmulo datado de
cerca de 21.000 a.C. - um rapaz, de vinte a vinte e cinco anos, que tinha uma constituição física esguia e musculosa. Morrera evidentemente de flechas enterradas
no abdome, porque se encontraram duas lâminas pontudas dentro da pélvis. Tivera o braço direito fraturado mais ou menos aos 15 anos, muito provavelmente defendendo-se
de um ataque, e o esquerdo tinha um ferimento parcialmente curado. A vida em Wadi Kubbaniya não podia, portanto, ter sido exatamente tão idílica quanto pensara Lubbock:
seu povo tinha de usar a força para obter acesso às dunas e poços que pululavam de peixes em reprodução.
Entre 12.000 e 7.000 a.C., os sítios arqueológicos se tornam extremamente raros em todo o vale do Nilo. Ocorreu um quase completo despovoamento - quase certamente
porque a mortalidade ultrapassava as taxas de natalidade, devido ao fato de os Desertos Oriental e Ocidental continuarem completamente secos e inóspitos. Os poucos
sítios conhecidos sugerem que grupos viúvos se tornaram dependentes apenas da caça de alcéfalos e gado selvagem, pois não há restos de mós e poucos traços de aves
de inverno ou peixes. Angela Close, que estudou centenas de sítios do vale do Nilo e muitos milhares de instrumentos de pedra, usou apenas três palavras para resumir
o impacto do aquecimento global sobre os habitantes do vale do Nilo: "Uma rematada tragédia."
Lubbock deixou o Wadi Kubbaniya logo após o LGM. Continuou a viajar de canoa rio acima, inteiramente inocente da catástrofe por vir. Quando ocorreram as enchentes
de 12.500 a.C. e a chacina de Jebel Sahaba, estava longe nos extremos sul do continente. Ao retornar ao vale do Nilo em 5.000 a.C., vai achá-lo densamente povoado,
com as pessoas mais uma vez dependendo do cultivo de plantas em suas planícies aluviais. Serão os agricultores que deitarão as bases da civilização egípcia.

47
Na Colina Lukenya
O desenvolvimento das paisagens e faunas do leste africano
após 20.000 a.C.
Visto nos trópicos, o gelo assume uma beleza absoluta quando aparece flutuando acima da savana, em desafio às leis da natureza. É o Kilimanjaro no LGM, exatamente
como o Kilimanjaro hoje. Lubbock não esperara ficar tão fascinado quando subia ao topo da Colina Lukenya, que hoje fica no sul do Quênia. Mas o céu do início da
manhã tem uma rara claridade, e um vago pico distante - inteiramente indiferente à sua latitude - emerge das nuvens que se dissolvem em torno da sua base.
O Monte Kilimanjaro tem dois picos, conhecidos como Kibo e Mawenzi. Em 20.000 a.C., os dois estavam cobertos de gelo, que chegava mil metros abaixo do que chega
hoje - seu passado assinalado por monturos de pedra e sedimentos deixados atrás quando as geleiras recuaram para o diminuto tamanho atual. Agora, apenas o pico de
Kibo é coberto de gelo; se nosso aquecimento global continuar, esse gelo também terá desaparecido nos próximos vinte anos.
Devido a essa perda próxima, o que se chamou de "segredo do Kilimanjaro" foi extraído de seu gelo bem a tempo - um registro de mudança climática tropical entre
10.000 a.C. e os dias de hoje. Isso foi deduzido exatamente pelos mesmos métodos que os cientistas usam para a análise de núcleos da Groenlândia e do Ártico: calculando
as taxas de mudança de isótopos de oxigênio, que são um "substituto" da mudança de temperatura c precipitação pluvial. Uma equipe chefiada por Lonnie Thompson, da
Universidade do Estado de Ohio, perfurou seis núcleos do cume do Kilimanjaro em fevereiro de 2.000 e publicou seus resultados em outubro de 2002.
A descoberta de importância-chave para esta história é que, entre 10.000 e 5.000 a.C., o clima africano era muito mais úmido e quente do que hoje. Isso confirmou
os indícios de outras fontes e é explicado pela redução na intensidade da monção africana; esta, por sua vez, resultou de uma leve mudança na órbita da Terra em
torno do Sol. Lonnie e seus colegas também confirmaram indícios de uma acentuada seca ocorrida em 6.300 a.C., que durou algumas décadas, junto com duas outras em
tempos mais recentes, porém ainda pré-históricos. Uma delas ocorreu por volta de 2.000 a.C. e foi relacionada a grandes perturbações nas civilizações mesopotâmia
e do vale do Indus. Embora se desconfiasse antes de tais estiagens, o núcleo de gelo do Kilimanjaro ofereceu um novo nível de detalhes da mudança de climas nos trópicos
- foi o primeiro, e muito provavelmenle o último, registro de clima em núcleo de gelo da África. Infelizmente, não remonta a 20.000 a.C., data em que começa este
capítulo com Lubbock de pé na Colina Lukenya.
A Colina Lukenya fica 200 quilômetros a noroeste do Kilimanjaro. Dois rapazes estão de pé ao lado de Lubbock, momentaneamente paralisados pela visão de gelo flutuante,
e esquecem sua tarefa de procurar caça. Altos e magros, usam tangas que combinam em cor com o mato pardo. Um traz uma lança com ponta de obsidiana. Voltando-se para
a planície em volta, dá uma cotovelada no companheiro e aponta um rebanho de pequenos antílopes que se aproxima. Com Lubbock atrás, os dois se viram e começam a
atravessar as rochas e o espinhoso mato baixo, voltando ao seu acampamento - uma gruta embaixo de um enorme rochedo empoleirado em cima de outro na base da colina.
Um galho retorcido arde no meio do piso da gruta, em torno da qual dez caçadores-coletores se acocoram, sentam e deitam, alguns usando pequenos tapetes de capim.
As crianças usam apenas fios de contas no pescoço e na cintura; os adultos, pouco mais. Embora fortes e saudáveis, os de meia-idade parecem velhos, os corpos devastados
pelos rigores da vida no leste africano no LGM. Cabaças e aljavas de flechas pendem de tarugos enfiados em fendas na parede da gruta. Após ter visitado muitas cavernas
de caçadores-coletores antes, Lubbock esperava que o ar fosse rançoso e fumacento - mas cheira a gostoso jasmim, pois algumas folhas acabaram de ser trituradas numa
pequena gamela.
A notícia dada pelos homens é recebida com excitação. Verificam-se as lanças, um homem apara duas minúsculas lascas de uma ponta de pedra, e outro aplaina um ilusório
calombo da haste de madeira da sua lança, que poderia sem isso desviar o seu vôo. Facas feitas com cabos de madeira e microlitos são enfiadas na cinta; novas linhas
vermelhas pintadas nas faces por dedos passados numa paleta de tinta ocre. Feito isso, os caçadores dispersam-se para espalhar-se pela borda da colina Lukenya e
as encostas do seu oeste imediato. Os animais que se aproximam terão de passar por essa armadilha natural e os caçadores têm certeza de sucesso. Lubbock fica com
um deles, que se coloca entre um capão de árvores. À sua volta, o chão está juncado de lascas de pedra e alguns fragmentos de osso esbranquiçados - a encosta foi
evidentemente usada para emboscada e esquartejamento muitas vezes antes.
Os inocentes animais entram no passo. Farejam os seres humanos, param e espalham-se em pânico quando um homem se ergue para atirar sua lança. Três animais correm
diretamente na trilha dos caçadores à espera; dois tombam mortos, um é ferido e escapa. As carcaças são arrastadas para o lugar de onde Lubbock observou a ação.
São estripadas e depois jogadas nos ombros dos caçadores, pequenas o suficiente para serem carregadas inteiras. Lubbock examina-as de perto, mas não identifica a
espécie. Na verdade, mesmo que pudesse diferenciar entre gnus e alcéfalos, entre gazela Thompson, dik-dik, oribi, steinbok e duiker, ainda não conseguiria fazê-lo,
pois os animais agora transportados não têm nome moderno algum.
A Colina Kukenya, um monte de pedras de aproximadamente oito por dois quilômetros, terra e mato baixo sobre uma massa de granito, ergue-se 200 metros acima das planícies
de Athi-Kapiti, no Quênia. Escavações têm sido feitas esporadicamente desde o início da década de 1970; os muitos sítios arqueológicos descobertos em suas grutas,
abaixo das plataformas e em espaços abertos na base, proporcionaram o melhor quadro que temos da vida no leste da África no LGM e seu resultado posterior.
O trabalho mais recente foi feito por Sibel Barut Kusimba, do Departamento de Antropologia da Universidade Lawrence, Wisconsin, EUA. Ela escavou dentro de uma
gruta conhecida como Gvjm62 - sendo as quatro primeiras letras o código para localizar o sítio na grade nacional do Quênia. A datação por radiocarbono situou a ocupação
deste e quatro outros sírios, Gvjm46, 16, 19 e 22, logo após o LGM - embora a própria Sibed sugerisse que alguns na verdade podem ser muito mais antigos.
Muitos dos ossos muitíssimo fragmentados recuperados da Colina Lukenya foram estudados por Curtis Marean, da Universidade de Stone Brook, Nova York. O Gvjm46 era
o que tinha o maior número, mas muito poucos ultrapassavam os dois centímetros de comprimento, e conseqüentemente tinham pouco valor para identificação de espécies.
Em vez disso, Marean contou inteiramente apenas com o tamanho e forma dos dentes, pelos quais identificou numerosas espécies que continuam a pastar hoje nas planícies
africanas, junto com animais como leões, porcos da terra, babuínos e lebres. A maioria, porém, vinha de um animal sem correspondente no mundo moderno. Esses dentes
pertenciam a um tipo de antílope pequeno que evoluíra para pastar talos curtos e duros de capim. O sério desgaste nos dentes restantes sugeria que ele consumia esse
capim com copiosas quantidades de areia do chão poeirento.
Como essa espécie estava ausente das coleções de ossos com data do Holoceno, parece provável que foi extinta quando o aquecimento global alterou a paisagem, oferecendo
o tipo de capim úmido que favorece elã, impala e gazela. Quando escrevia em 1997, seis anos após anunciar sua descoberta de uma nova espécie na revista Nature, Marean
julgou "prematuro" dar a esse pequeno animal extinto um nome de espécie; talvez fosse, mas 20 mil anos não parecem um tempo extraordinário para esperar.
Sua presença nas coleções de ossos anteriores, mas não nas posteriores, da Colina Lukenya é apenas um sinal de que as paisagens do leste africano entre 20.000
e 12.500 a.C. eram muito mais secas que as de hoje. Três outros animais representados nos ossos da Colina Lukenya são também muito reveladores. Tanto o órix quanto
a zebra de Grevy ainda existem, mas apenas em paisagens muito mais áridas que a que hoje cerca a Colina Lukenya - o órix é na verdade um antílope adaptado ao deserto.
Junto com estes, o búfalo gigante também pastou no capim seco e alto perto da Colina Lukenya no LGM, como fizera em grande parte da África. Como o antílope anônimo,
essa espécie não pôde sobreviver à mudança no clima, extinguindo-se no sul e no leste em 12.500 a.C., embora sobrevivendo no norte por mais alguns milhares de anos.
Cada um desses animais - o antílope anônimo, a zebra de Grevy, o órix e o bisão gigante - foi excluído das vizinhanças da Colina Lukenya pela mudança para matagais
mais úmidos.
Lubbock descobrira a natureza mais fria e seca do clima da África Oriental no LGM muito antes de chegar à Colina Lukenya. Após concluir sua viagem de canoa Nilo
acima, cruzara as poeirentas montanhas etíopes, que não tinham nas encostas inferiores as florestas que vemos hoje. Seguira então a margem oeste do lago Turkana,
de nível seriamente reduzido pela falta de chuva. Mesmo assim, as águas azul-marinho e o matagal em volta eram um abrigo de flamingos, pelicanos e muitas outras
aves aquáticas. À noite, uma legião de alcéfalos, zebras e antílopes vinha beber, e outros animais caçar. Lubbock deixou o lago e dirigiu-se para oeste por 800 quilômetros,
rumo ao centro do continente, onde os áridos matagais mudavam para as ralas savanas e se tornavam a floresta tropical na Bacia do Congo.
Essa viagem à África Central levou-o ao maciço calcário do Monte Hoyo, onde passou o inverno partilhando uma de suas quarenta cavernas com um grupo de caçadores-coletores.
A que ele escolheu chama-se hoje Caverna Matupi; era espaçosa, com um baixo muro de pedra separando a área de cozinha na frente de um corredor que levava ao escuro
interior. Fogueiras, mós, paus de cavar, lanças e arcos juncavam o espaço, o lixo era simplesmente jogado no chão e de vez em quando afastado para o lado. As pessoas
usavam contas feitas de ovos de avestruz e enfeitavam-se com tinta de ocre. Durante sua visita, Lubbock saiu com os caçadores para tocaiar antílopes na savana e
acompanhou um grupo à floresta que começava 20 quilômetros a oeste. O grupo retornou triunfante, trazendo um porco-espinho e um gigantesco porco da floresta, para
imenso prazer das crianças que tinham ficado atrás. Às vezes cavava tubérculos com as mulheres, cujos paus de cavar tinham o peso aumentado com pedras perfuradas
e enfeitadas.
Quando os moradores da Caverna Matupi partiram para estabelecer um acampamento de pesca num lago próximo, no sítio que seria conhecido como Ishango, Lubbock completou
sua viagem à Colina Lukenya. Isso o levou a terras mais secas do leste da África e às margens de outro lago muito reduzido, que conhecemos hoje como lago Vitória.
Ali, viu garças reais futucarem a mesma lama que um dia daria núcleos a cientistas que estudam a história do lago.
Os caçadores coletores da Caverna Matupi acabaram por perder, ou deixar, os paus de cavar dentro da caverna; esses instrumentos juntaram-se ao acúmulo de lascas
de pedra, microlitos, mós e restos de comidas. Em 3.000 a.C., essa coleção foi inteiramente sepultada sob o lixo de novos ocupantes, pessoas que usavam ferro para
seus instrumentos.
Francis van Noten, da Universidade de Leiden, fez escavações em 1974. As camadas inferiores tinham os ossos de animais da savana - antílopes, porcos da terra e
avestruzes - junto com uns poucos de porco-espinho e porco da floresta. Entre esses ossos e os muitos pedaços de pedra lascada, van Noten encontrou fragmentos de
pedra enfeitada que supôs ter sido um dia usada como peso nos paus de cavar. Os ossos das camadas superiores da Idade do Ferro vinham de tipos inteiramente diferentes
de animais - os que ocupam a floresta densa, como porcos-espinhos, mangustos e morcegos gigantes.
A coleção de ossos da Caverna Matupi é um dos vários indícios diretos de como as florestas tropicais da África Central mudaram em extensão durante o último máximo
glacial e suas conseqüências imediatas. Embora as florestas tropicais da América do Sul e sudeste asiático permanecessem em grande parte intactas durante o LGM,
as da África foram acentuadamente reduzidas em tamanho, grandes áreas sendo substituídas por savanas e semideserto. Essa mudança na vegetação é também visível pelos
grãos de pólen lacrados dentro de sedimentos de cavernas e lagos, que mostram que regiões atualmente florestais foram um dia cobertas apenas por capim; se se cava
abaixo do solo da floresta, muitas vezes se encontra areia da antiga savana, senão do próprio deserto.
Contudo, a floresta na bacia central do Congo sobreviveu intacta por todo o período de mais severa aridez. Essa floresta resistente proporcionou um refúgio para
as espécies adaptadas à floresta, que ainda se refletem em sua imensa riqueza de flora e fauna hoje. Quando as chuvas voltaram no início do Holoceno, algumas de
suas plantas e animais espalharam-se para leste e oeste, para recuperar o que se tornara savana e semideserto no LGM. Localidades como a Caverna Matupi foram cercadas
pela floresta, levando à mudança na fauna dentro de seus depósitos. Essa floresta do Holoceno Inicial a princípio cobriu uma região muito maior do que cobre hoje,
de novo reduzida quando as chuvas declinaram após 5.000 a.C. e os seres humanos começaram a moldar eles próprios o mundo africano.
Várias semanas passaram-se desde que Lubbock viu a emboscada ao antílope anônimo na Colina Lukenya. Nesse novo dia em suas viagens africanas, ele parte da caverna
uma hora antes do sol nascer, acompanhando três caçadores em busca de caça. Andam devagar e em silêncio no matagal da savana. Sempre em alerta para sinais de animais
- folhas e talos que parecem ter sido mordiscados, rastros e fezes, lugares onde eles dormiram e ruídos no mato - mesmo assim os homens são freqüentemente distraídos
da tarefa de caçar. Um pé de baobá com abelhas voejando num buraco causa uma prolongada parada. Procuram e quebram grandes pedras de quartzo, que dão afiadas lascas
e criam faíscas, com as quais se acende uma fogueira para afastar as abelhas enquanto se alarga o buraco. Descobrem-se avidamente mel, colméia e larvas; Lubbock
come o suficiente e os caçadores se empanturram. Saciados com o mel, os homens cochilam e ele observa lavandeiras migratórias sobre a planície, pássaros que logo
retornarão para as tundras do norte que ele próprio visitou.
Mais tarde, nesse dia, faz-se outra parada num raso olho d'água para beber e banhar-se. Segue-se mais uma hora de caminhada, antes que o grupo pare para comer
bagas que encontraram por acaso. Desta vez Lubbock vai observar os cupins, lembrando que se diz que o passado africano está na barriga deles. E depois, no meio da
tarde, acompanha os caçadores em seu lento serpear de volta ao acampamento.
É o tipo de dia vivido pelos modernos hadza do leste da África, pertencentes a um dos poucos grupos de caçadores-coletores sobreviventes no mundo. Desconfio que
pouco difere dos dias passados pelos caçadores que ocuparam as cavernas da Colina Lukenya em 20.000 a.C. Os hadza têm sido estudados desde a década de 1960, e apesar
dos óbvios problemas envolvidos na imposição de um estilo de vida moderno ao passado, oferecem uma visão absorvente de como pode ter sido a vida no LGM.
É provável que a paisagem pré-histórica em volta de Lubbock tenha sido semelhante à savana seca, infestada de moscas tsé-tsé e dominada por mato espinhoso e pés
de acácia que os hadza habitam hoje - embora, como a estepe de mamute no norte, não exista nenhum análogo moderno das paisagens africanas no LGM. Isso se deve ao
fato de o extenso mato baixo da África moderna ser tão produto de atividade humana quanto de mudança climática; foi regular e deliberadamente queimado, uma prática
que pode ter sido exercitada por pastores durante milhares de anos.
O incêndio regular limpa o capim maduro, fibroso e impalatável para as cabras e gado, produzindo os tipos mais curtos que sustentam mais animais; a forte pastagem
inibe ainda mais o crescimento de capim alto, árvores e arbustos. A queima também ajuda a reduzir a mosca tsé-tsé, que espalha a doença do sono nos seres humanos
e no gado. Sempre que se param esses incêndios e pastagens, os arbustos e árvores retornam imediatamente, junto com o mato alto e duro que cresce à sua sombra. Os
incêndios naturais, como sem dúvida ocorreram por volta do LGM, são demasiado infreqüentes para ter o mesmo impacto sobre a vegetação. E assim, é provável que a
paisagem em torno da Colina Lukenya tenha tido capões de mato duro, muito mais arbustos e talvez mais árvores que hoje.
Por toda essa paisagem sutilmente diferente, uma gama e distribuição de alimentos vegetais e animais semelhante à de hoje estaria disponível o ano todo. Isso não
quer dizer que o povo da Colina Lukenya vivesse necessariamente de maneira semelhante à dos hadza de hoje, mas é provável que o povo que vivia em 20.000 a.C. e depois
fizesse escolhas semelhantes sobre que animais caçar e que plantas coletar. É provável que a emboscada de rebanhos, segundo Marean, se tenha restringido a estações
específicas, talvez quando a chuva era particularmente esparsa e os mamíferos migravam em busca de água. Em outras ocasiões, a caça teria sido feita basicamente
pela procura de rastros e trilhas e depois a tocaia a animais individuais, ou talvez - como entre os hadza de hoje - aproveitando os restos de presas de carnívoros
sob a capa da escuridão.
Lubbock tentou os dois métodos, preferindo passar seu tempo na caça, em vez de coletar raízes, tubérculos, bulbos, bagas e folhas com as mulheres, embora o grupo
da Colina Lukenya dependesse desses alimentos vegetais para a sua dieta, todos ansiavam por carne. Quando nos arbustos e capinzais, Lubbock viu seus companheiros
sempre alertas para abutres circulando e o barulho de hienas frenéticas, que provocavam uma busca de nova carcaça. Numa ocasião, Lubbock e os companheiros encontraram
leões que comiam uma zebra recém-morta. Os leões permaneceram impávidos diante dos gritos e pedras atiradas, mas fugiram depois que se dispararam flechas, deixando
a presa para trás.
Para a caça noturna, Lubbock deixou a caverna na Colina Lukenya com um grupo de caçadores no fim da tarde. No caminho, teias de aranha no meio do mato eram iluminadas
pelo sol poente, que aparecia por um momento numa faixa estreita entre nuvens e montanhas distantes. Após duas horas, chegaram a uma espécie de círculo de rochas
que cercava uma área de cerca de 3 metros de largura e formava um esconderijo ao lado de uma trilha de gamos para um olho d'água próximo. O lugar era evidentemente
muito usado, em vista das muitas pegadas na areia.
Acendeu-se uma fogueira, que ficou a arder dentro do esconderijo; mais tarde, suas brasas de vez quando soltavam chamas sopradas pela brisa noturna. Os caçadores
comeram algumas bagas no caminho e depois se instalaram para descansar, as setas encostadas no muro de pedra. Quando a lua nasceu, Lubbock acocorou-se do lado de
fora e ficou à espreita da caça, mas não ouviu o fraco barulho de cascos que alertou os caçadores dentro do esconderijo, apesar do barulho constante das cigarras.
Dentro de poucos minutos, três impalas já tinham sido alvejados com flechas; um foi atingido no flanco, os outros dois fugiram incólumes. Os caçadores voltaram a
cochilar, esperando o amanhecer para procurar a presa ferida. Fizeram isso por várias horas, seguindo a trilha de sangue, galhos quebrados e rastros de casos, até
que tudo cessou num trecho de mato achatado e ensangüentado. O impala semimorto fora pego por um leopardo e não se o via em parte alguma. Quando voltavam para a
Colina Lukenya, os caçadores coletaram alguns nódulos de quartzo, não querendo voltar mais uma vez de mãos vazias.

O quartzo, encontrado durante as viagens de caça ou coleta de plantas, era o tipo de pedra com mais freqüência usado na Colina Lukenya. Também se usavam jaspe negro
e obsidiana, mas Sibel Barut Kusimba os encontrou em quantidades muito pequenas quando estudou as coleções escavadas de artefatos de pedra. Embora o jaspe negro
e a obsidiana tenham melhores qualidades como lasca que o quartzo, eram mais difíceis de encontrar. A fonte mais próxima de jaspe negro da Colina Lukenya era um
leito de rio a 5 quilômetros de distância; também proporcionava pequenos pedaços de obsidiana, mas qualquer nódulo maior tinha de ser adquirido no Vale Rift Central,
150 quilômetros a noroeste, ou numa escarpa 65 quilômetros a oeste. Como cada afloramento tinha a assinatura química específica que traz cada nódulo, Sibel pôde
determinar que a maior parte das lascas de obsidiana viera dessas fontes distantes, e não do leito do rio local. Os nódulos de quartzo, jaspe negro e obsidiana eram
usados para fazer uma variedade de instrumentos, sendo os microlitos, mais uma vez, o tipo mais freqüente. Grandes lascas eram aparadas em torno de uma aresta para
tornar-se o que os arqueólogos chamam "raspadores", muito provavelmente encaixados em instrumentos de cabos curto para limpar couros. Também se faziam instrumentos
de gume em forma de cinzel, conhecidos como buris. Com eles, o povo da Colina Lukenya fabricava a mesma gama de instrumentos que tantos outros no mundo entre 20.000
e 10.000 a.C., embora tivesse suas próprias formas idiossincráticas, como um raspador "em forma de leque".
Lubbock já viajou 250 quilômetros para sudoeste da Colina Lukenya e está sentado no que resta de um riacho sazonal. O tempo avançou mil anos, passando para 19.000
a.C., mas as paisagens africanas continuam bastante áridas. Esse rio corre sempre que chegam as chuvas de verão; na verdade, muitas vezes transborda e deixa camadas
de aluvião no chão do vale, que ficam ensanduichadas entre poeira de areia e cinza soprada pelo vento. A chuva caiu pela última vez um mês atrás, e o riacho se tornou
uma linha irregular de poços estagnados, contendo mais urina de rinoceronte que água de beber. Logo serão manchas de lama e depois desaparecerão por completo.
Lubbock está dentro da Garganta Olduvai, explorada e tornada famosa pela família Leakey em sua busca das origens da humanidade. O aluvião e areia deixados pelo
riacho, junto com a fina cinza vulcânica soprada pelo vento, vão-se misturar para criar a última das camadas geológicas que os Leakeys exploraram, a conhecida como
Leitos de Naisiusiu, que formam toda a garganta e a planície de Serengeti além, de uma capa para os 2 milhões de anos de estratos geológicos embaixo.
Sentado numa pedra, Lubbock vê dois homens esquartejarem um antílope que emboscaram de madrugada, quando o animal veio beber água, lançando-lhe flechas com pontas
de microlito. Várias outras pessoas sentam-se perto, algumas descansando sem fazer nada ao sol matinal, outras lascando nódulos de quartzo para fabricar novas lâminas
e instrumentos de esquartejar. Um dos homens pragueja, pois sua gordurosa lasca de pedra escorrega e fura-lhe a coxa; o sangue esguicha, e continua a esguichar quando
ele põe a mão numa fútil tentativa de estancar o fluxo. É obrigado a deitar-se, e uma jovem corre a buscar uma planta curativa local. Ela volta em alguns minutos
trazendo um punhado de suculentas folhas que são torcidas acima da ferida. Um líquido claro pinga no corte e tem efeito imediato, pois cessa o sangramento. O homem
é levado para descansar numa sombra, as pernas ensangüentadas lavadas com água do poço.
Terminado o esquartejamento, o grupo parte, o ferido sendo ajudado a caminhar, outros carregando as postas de carne. Lubbock olha o chão à sua frente - lascas
de pedra, microlitos jogados fora, tripas, pés e cabeça de antílope, e manchas de sangue de homem e animal.
Os microlitos, lascas de pedra e ossos quebrados foram descobertos e em parte escavados por Louis Leakey em 1931, e mais completamente por sua esposa Mary em 1969.
Muitos outros artefatos estavam presentes, porque aquele lugar sombreado fora muitas vezes usado para esquartejamento. Os Leakeys encontraram várias centenas de
instrumentos e ossos de numerosas espécies, todos quebrados em minúsculos fragmentos, como os da Colina Lukenya. Imagina-se que, após cada animal abatido, hienas
viessem roer os ossos jogados fora. Águas de inundações teriam levado alguns artefatos e enterrado outros sob seus depósitos de aluvião. Quaisquer artefatos de madeira,
cestos trançados e sacos de couro deixados ou esquecidos apodreceram. Os escassos restos que os Leakeys recuperaram pouco mais nos dizem além de que esse mesmo povo
esteve na Garganta Olduvai por volta de 19.000 a.C. e esquartejou sua presa. Também podemos supor ser improvável que tenham ficado ali muito tempo, porque a obsidiana
que usavam vinha de uma fonte a 200 quilômetros de distância, e, portanto, eles deviam ter viajado muito.
Contudo, não temos idéia sobre se usavam plantas medicinais. Meu palpite é que usavam, sobretudo, a conhecida como sanseviéria, uma erva suculenta que dá em muitas
partes do Vale Rift. Seu nome local, Olduvai, foi dado à própria garganta. Richard Leakey ficou entusiasmado com as propriedades curativas da planta, descrevendo
seu uso pelos povos nômades do vale e a própria família Leakey, sempre que ocorriam acidentes durante o trabalho de campo. O sumo atua como antisséptico e como bandagem
natural, fechando o ferimento. Richard Leakey acredita que a sanseviéria é muito melhor que qualquer coisa oferecida pela farmacêutica moderna, e questionou se os
mais antigos ancestrais do homem que viveram em Olduvai 2 milhões de anos atrás sabiam de suas propriedades. Isso jamais vamos saber, mas não devemos duvidar de
que eram conhecidas pelos seres humanos modernos que caçavam dentro da Garganta Olduvai logo depois do LGM.

48
Patas de Rã e Ovos de Avestruz
Caçadores-coletores no deserto de Kalahari,
12.500 a.C.
Uma teia de aranha. Não pendurada no ar entre talos de capim ou juncos, mas densamente tecida dentro de um túnel na areia poeirenta. Duas mulheres acocoram-se ao
lado de sua descoberta: John Lubbock está com elas, imaginando por que parecem tão contentes. Presumia que procuravam finos talos de tubérculos embaixo ou outros
mais grossos e ocos com vermes comestíveis ali dentro. Mas as duas coisas tinham sido ignoradas quando as mulheres afastaram os arbustos em busca de terreno remexido
em torno das raízes. Um pau de cavar é enfiado no buraco e girado para enrolar a teia na ponta. Limpado o pau, elas começam a cavar, enquanto a aranha foge. Assim
que a areia se torna um pouco úmida, enfia-se uma mão no buraco e a próxima refeição das mulheres é puxada por uma das patas, depois rapidamente golpeada com o pau
de cavar antes de ter oportunidade de morder. Uma rã enorme.
A data é 12.500 a.C., e Lubbock está no Vale de Gewihaba, no deserto de Kalahari, Botsuana. Chegou cedo essa manhã, seguindo as mulheres que desciam a trilha batida
de seu acampamento. Haviam acompanhado o leito seco do rio até um capão de arbustos e iniciado a busca, sabendo que cada buraco coberto por teia de aranha podia
levar a uma rã hibernando embaixo do chão. As aranhas do Kalahari gostam de aproveitar-se do trabalho das rãs tecendo suas teias em buracos já prontos.
Lubbock olha as mulheres iniciarem a busca de outra teia, olhando em torno de um capão próximo. Têm cabelos curtos e negros, muito cacheados, e pômulos altos;
a pele e as coxas cor de chocolate foram deliberadamente arranhadas para ficar com lanhos vermelho-vivo. Além dos fios de contas brancas que enfeitam os pescoços
e pulsos, não usam nada além de capas de couro e pequenos aventais de borlas.
Ao meio-dia já têm sete rãs grandes no cesto e retornam ao acampamento diante do que chamamos hoje Caverna de Drotsky. O resto do grupo senta-se e trabalha ao
ar livre; dois homens limpam couros com lascas de quartzo encaixadas em cabos de osso, velhas conversam torcendo fibras de plantas em barbantes, crianças brincam
com paus. Dentro da própria caverna um velho atiça a fogueira. Todos param quando as mulheres chegam, reunindo-se em volta para ver o que encontraram. Em poucos
minutos, as rãs são estendidas sobre pedras quentes no fogo para cozinhar; as menores são torradas, para serem moídas num pilão de madeira e comidas como papa; as
maiores, simplesmente esquartejadas e divididas entre os presentes. A maioria dos adultos ganha pata de rã, os ossos moles mastigados junto com a carne. Só as cabeças
são jogadas fora - nas cinzas, depois de comerem-se a pele e os olhos.
Lubbock consegue furtar uma pata de rã, e acha-a gostosa e satisfatória. Mastigando os ossos, pensa no que mais comeu e bebeu no mundo todo nessa data de 12.500
a.C.: pão de trigo selvagem em Ain Mallaha, lebre ártica em Creswell Crags, chá de folha de boldo em Monte Verde, lagarto com figos na Caverna Kulpi Mara. Também
se lembra de sua viagem à Garganta Olduvai, que deixou em 19.000 a.C. Pouco há, porém, a lembrar da história humana quando a terra continuou árida e em grande parte
desabitada durante a viagem pelo que hoje são a Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. Se existiam pessoas nessa região, pensou, o mais provável era que estivessem na costa
ou vivendo em matagais produtivos em torno de lagos sobreviventes. Mesmo quando passou pelo que lhe pareceu ser um lugar atraente para viver, o máximo que encontrou
loram homens fazendo acampamentos transitórios a caminho de locais de caça mais favorecidos.
Houve, por exemplo, um impressionante conjunto de colinas que continham numerosas grutas e cavernas que hoje chamamos Matebeleland, no oeste de Zimbábue. Lubbock
explorou muitas das cavernas e encontrou artefatos de pedra espalhados no chão de algumas. Mas estavam meio enterrados, e pareciam muito diferentes dos que ele vira
no Wadi Kubbaniya e na Colina Lukenya. As colinas, porém, não estavam inteiramente desertas; ele encontrou dois caçadores pernoitando dentro da caverna mais impressionante.
Tinha um teto em forma de abóbada e dava para um pequeno vale cujo leito de rio estava seco. Lubbock sentou-se à beira da fogueira deles, sentindo tanta fome quanto
os próprios caçadores, pois sua busca de caça fora infrutífera. Quando acordou na manhã seguinte, os caçadores tinham partido, deixando atrás apenas um punhado de
cinzas e algumas lascas de pedra.
Esse conjunto de colinas e cavernas eram o cenário de muitos acampamentos de caçadores-coletores muito antes do LGM, e voltaria a sê-lo assim que começou o Holoceno.
Conhecido como Matopos, anos de escavação recuperaram traços de ocupação que remontam há 100 mil anos, a um tempo quando os instrumentos grandes eram feitos de lascas
grandes, em vez das pequenas lâminas que Lubbock veio a conhecer tão bem. O mais recente estudo do Matopos foi feito por Nicholas Walker, da Universidade de Uppsala,
Suécia, que se concentrou em seu uso do LGM até hoje. Descobriu que, embora várias cavernas tivessem abundantes restos dos caçadores-coletores do Holoceno, apenas
uma - a Caverna Pomongwe, com seu impressionante teto abobadado - tinha sinais de ocupação entre 20.000 e 10.000 a.C. As poucas lascas de pedra que Walker encontrou
só puderam ser provisoriamente datadas antes de 13.000 a.C.
É provável que a história de ocupação de Matopos reflita a da África subsaariana como um todo. Que vastas áreas eram completamente desprovidas de presença humana
e depois, é sem dúvida a impressão de que extraímos do esparso número de sítios arqueológicos conhecidos. Se tinha pessoas, deviam estar vivendo em grupos pequenos
e muitíssimo móveis, e não como os boxímanos adaptados ao Deserto do Saara de tempos recentes. Por estarem sempre em movimento, elas raramente deixaram detritos
suficientes para sobreviver à devastação o tempo. Meu palpite é que grande parte do continente era de fato um deserto humano - as condições frias e áridas devem
ter tido um impacto debilitante nos números populacionais, aumentando a chance de mortalidade prematura e reduzindo a fertilidade feminina.
Dez esferas brancas cremosas juntas numa rasa depressão na areia. Uma maravilhosa e inesperada descoberta para os três companheiros de Lubbock numa viagem de caça
nas baixas colinas com afloramentos rochosos que cercam o vale de Gewihaba. Até agora, tiveram pouco êxito. Rastros de lebre haviam-nos levado a uma toca onde calcularam
que o animal noturno estaria dormindo. Vasculharam o mato baixo em busca de um galho reto de pelo menos 2 metros. Um dos caçadores enfiou-o na toca até sentir a
lebre; então, empurrou-o para a frente com toda a força, para manter o animal imóvel, enquanto seu companheiro começava a cavar. Aos poucos foi surgindo o áspero
pêlo pardo, a lebre imobilizada e inteiramente incapaz de mexer-se. Mas quando se ergueu uma pedra para desferir o golpe fatal, o galho partiu-se e a lebre escapou,
a fuga observada com consternação e alegria em igual medida - a perda da comida mas um animal digno de admiração correndo pela areia.
A descoberta casual de um ninho de avestruz pouco depois no mesmo dia proporcionou ampla compensação. Cada ovo é batido delicada, mas firmemente no chão. Isso
agita o conteúdo, matando o embrião dentro. Os caçadores podem levar três ovos cada e concordam em mandar alguém buscar o último.
Os ovos são pesados. Vários restos são levados na caminhada de volta à Caverna Drotsky, durante a qual se pega estrume novo onde quer que esteja. Ao chegarem,
todos estão ávidos para ver e tocar os ovos, e há pouca demora para cozinhar a comida. Dois ovos são cuidadosamente quebrados ao meio para fazer quatro panelas,
e o conteúdo posto numa gamela. A base das panelas recém-feitas é revestida com uma densa camada de estéreo, e elas são colocadas sobre pedras quentes. Furam-se
cuidadosamente buracos nas extremidades dos ovos restantes, e despeja-se seu conteúdo para cozinhar. O omelete de ovos de avestruz, forte e com mais murrinha que
o de coxa de galinha, é partilhado por todos - embora Lubbock tenha de contentar-se com as rapas das tigelas.
Nos dias seguintes ele observa como se usam as cascas dos ovos de avestruz. As panelas ficaram queimadas e deixaram-nas fragmentar-se dentro da fogueira. Era uma
prática comum com restos de comida e outros detritos na Caverna de Drotsky; de poucos em poucos dias, limpavam-se as lareiras e jogavam-se as cinzas, ossos queimados,
conchas e torrões de carvão bem no fundo da caverna.
Dos ovos de avestruz que ficaram inteiros, todos menos três foram lavados com água e temperados com ervas aromáticas para tirar o odor de ovo podre. O acréscimo
de tarugos de capim transformou as cascas em vasos d'água. As três cascas restantes foram usadas para fazer contas. Uma velha - mãe do homem que primeiro avistou
o ninho - quebrou-os em fragmentos irregulares e depois fez um buraco em cada uma, girando uma vareta com ponta de microlito entre as palmas. Uma vez furadas, as
contas foram enfiadas firme num barbante e depois esfregadas numa pedra para torná-las lisas e iguais. A mulher usou ela própria muitas das contas, dando outras
às filhas e às filhas delas no acampamento.
Música, canto e dança eram essenciais para o povo da Caverna de Drotsky, como Lubbock com tanta freqüência descobriu em todo o mundo pré-histórico. E também os
jogos, ali mais praticados pelas mulheres e crianças entre oito e doze anos. Ele gostava de ver esses jogos, mas como muitas vezes ficava absolutamente confuso sobre
o que se passava, resistiu à tentação de juntar-se.
Não sabemos, claro, se se disputavam jogos diante da Caverna de Drotsky, no Deserto de Kalahari, em 12.500 a.C. Mas disputava-se, definitivamente, a poucos quilômetros
dali, em Nyae Nyae, em 1952 d.C.: os boxímanos !Kung o faziam, como foram observados pela antropóloga Lorna Marshall. Embora não tendo educação formal como antropóloga,
ela fez um estudo seminal sobre os !Kung de Nyae Nyae no início da década de 1950. Por toda a duração de um dos jogos, as crianças !Kung coaxavam numa imitação quase
perfeita das grandes rãs que se reuniam para reproduzir-se no vale quando chegavam as chuvas.
Quando Lorna viu o jogo em 1952, começava com os jogadores sentados num círculo de frente para o centro; uma menina era escolhida para ser mãe e começava a tocar
cada um dos outros com uma varinha no tornozelo. Uma vez tocado, eles coaxavam e deitavam-se estendidos de costas, como se dormissem. Quando todos estavam deitados,
ela arrancava alguns fios de cabelo da cabeça e punha-os numa fogueira imaginária no centro do círculo - representavam as rãs que ia cozinhar para a refeição. Quando
já haviam cozinhado tempo suficiente, os filhos eram tocados de novo e formavam um círculo em torno da mãe. Cada um era solicitado a ir buscar o pilão para que ela
moesse as rãs torradas, mas todos se recusavam a ir; e assim, mostrando-se adequadamente aborrecida, ela mesma ia. Assim que a mãe deixava o círculo, os filhos roubavam
os cabelos - as rãs - e corriam a esconder-se. A mãe voltava, carrancuda, emitindo ruídos de ameaça e procurando os filhos. Quando descobertos, eles coaxavam, guinchavam
e lutavam antes de ser tocados na cabeça com o indicador dela e fingirem chorar. Nesse ponto, perdia-se qualquer aparência de ordem; todas as crianças corriam caoticamente
de um lado para outro, gritando e rindo em desenfreada excitação.
À luz das visíveis semelhanças em estilos de vida entre os habitantes da Caverna de Drotsky e os !Kung observados por Lorna Marshall, somos tentados a acreditar
que também se faziam tais jogos em 12.500 a.C. A caverna ganhou o nome de Martinus Drotsky, um dos primeiros europeus a viajar largamente pelo Kalahari. As primeiras
escavações foram feitas em 1969 pelo antropólogo americano John Yellen, que abriu uma vala perto de onde Drotsky pintara seu nome na parede. Dos sedimentos de areia
da caverna, Yellen extraiu artefatos de pedra, fragmentos de cascas de ovos de avestruz, ossos de animais e carvão datado de 12.500 a.C. - o primeiro traço descoberto
de assentamento pré-Holoceno no Deserto de Kalahari.
Novas escavações foram feitas em 1991 por Lawrence Robbins, da Universidade do Estado de Michigan, e seus colegas. Eles escavaram mais fundo que Yellen e descobriram
uma camada de 30 centímetros de espessura de carvão e cinza, começando 50 centímetros abaixo da superfície. Continha muitos outros artefatos e ossos que os sedimentos
de areia acima e abaixo, e teve a formação datada entre 12.800 e 11.200 a.C.
Essa camada de carvão e cinzas resultava de muitas fogueiras dentro da caverna, sugerindo um intenso uso para habitação. Continha muitos ossos queimados de rã
grande; basicamente pedaços de crânio, que têm crista, são robustos e portando resistentes à decomposição. Os ossos de pata eram acentuadamente escassos, o que levou
Robbins a supor que eram comidos junto com a carne. Quando Lorna Marshall vivia com os !Kung na década de 1950, soube que se comiam rãs gigantes, embora jamais visse
isso; mas em 1859 o missionário David Livingstone contou que os boxímanos encontravam tais rãs procurando teias de aranha, exatamente como Lubbock os viu fazer.
Os !Kung de Nyae Nyae valorizavam os ovos de avestruz como vasos d'água e como material para fazer contas, que as moças gostavam particularmente de usar. Como
Robbins escavou muitos fragmentos de casca de ovo de avestruz da camada de carvão na Caverna de Drotsky, os dois usos parecem prováveis em 12.500 a.C. Alguns eram
perfurados para usar como contas, embora a camada não contivesse nenhum detrito do processo de fabricação. Outros fragmentos estavam muito queimados. Os coletores
de 12.500 a.C. não tinham vasos para pôr sobre o fogo. E assim os ovos poderiam ter sido colocados diretamente nas brasas, talvez sendo antes revestidos em estéreo.
Esse é o método que o próprio Robbins vira ser usado para cozinhar ovos de galinha pelos !Kung modernos em Tsodilo, 50 quilômetros ao sul da Caverna de Drotsky.
Ossos das lebres de Kalahari e vários pequenos antílopes também foram escavados da camada de carvão e cinza. Esses animais eram regularmente caçados pelos recentes
!Kung. Richard Lee, antropólogo que estudou outro grupo de !Kung no início da década de 1960, testemunhou o uso de longos ganchos para pegar lebres em suas tocas
diurnas, da mesma maneira que Lubbock viu o uso de um galho.
As histórias de Lorna e Lee podem ajudar-nos a imaginar mais prontamente a vida diária daqueles que jogaram fora os ossos de rãs gigantes e cascas de ovo na Caverna
de Drotsky. Mas temos de depender apenas de indícios arqueológicos para obter informação sobre a história ambiental do Kalahari e o impacto da mudança nas condições
climáticas sobre o povo da região. Um dos indícios mais reveladores é menor que os artefatos de pedra e ossos de animais, menor mesmo que fragmentos de crânios de
rãs e casca de ovo. É a própria areia, mais especificamente as partículas de areia acumuladas dentro da caverna. Elas podem agir como um medidor da mudança de quantidades
de precipitação pluvial no deserto de Kalahari.
Quando Robbins e seus colegas escavaram a Caverna de Drotsky, pegaram amostras de areia em intervalos regulares, da superfície para o fundo, da vala de 130 centímetros
de profundidade, com mais probabilidade datando de 30.000 a.C. A maior parte dessa areia fora soprada para dentro - numa média de 4,45 centímetros cada mil anos.
Algumas amostras de areia eram em grande parte compostas de partículas muito finas, de menos de 0,08 milímetros de tamanho, mais facilmente carregadas no vento;
outras amostras tinham composição mais grossa, com muitas partículas de mais de 0,2 milímetros - o tipo de areia depositado por água corrente. Robbins e seus colegas
raciocinaram que quando as condições do lado de fora eram muito secas, toda a areia que entrava na caverna seria soprada de dunas próximas, e, portanto, de composição
extremamente fina. Nos períodos mais úmidos, a vegetação teria brotado nas dunas e estabilizado sua superfície, proporcionando muito poucas partículas para o vento
levar. Mas nessas condições, o escorrimento após uma chuva forte teria lavado os grãos mais grossos para dentro da caverna.
Os indícios evidenciavam muito claramente que o período entre 20.000 e 11.500 a.C. foi dos mais úmidos dos últimos 30 mil anos, pois continham os mais ásperos
grãos de areia. E assim, em completo contraste com tão grande parte da África subsaariana, o LGM e seu depois imediato foram mais úmidos que o Holoceno no Kalahari.
Esse resultado foi confirmado pelos indícios de fora da caverna. No leito agora seco do vale de Gewihaba, descobriu-se que a areia e cascalho datando de antes de
12.000 a.C. continham diátomos, que exigem substancial quantidade de água para sobreviver - diátomos são algas microscópicas com paredes ricas em silício, tendo
cada espécie uma forma e necessidades de habitat características. Assim, antes de 12.000 a.C. houve pelo menos um rio sazonal, senão permanente, dentro do vale.
Os restos de uma tartaruga junto com as muitas rãs gigantes oferecem outros indícios de que um rio corria dentro do vale quando as fogueiras foram acesas dentro
da caverna.
Como havia abundantes fontes de água em redor, Robbins e seus colegas concluíram que entre 20.000 e 12.500 a.C. a caverna não oferecia vantagem especial alguma
em relação a muitos lugares na região. Por conseguinte, não era usada por grupos de caça para mais que breves paradas de pernoite, ou talvez simplesmente como abrigo
durante o dia. Quando o clima começou a mudar e as chuvas começaram a faltar, a Caverna de Drotsky tornou-se um foco de habitação - talvez o vale de Gewihaba oferecesse
agora um dos pouquíssimos recursos de água confiáveis. Durante cerca de mil anos, as pessoas acenderam regularmente fogueiras e fizeram acampamento dentro da caverna,
enquanto caçavam antílopes e lebres, desentocavam rãs gigantes e pegavam-nas nos poços na estação úmida. Mas como a aridez se instalou e o vale ficou inteiramente
seco, a Caverna de Drotsky perdeu a atração; mais uma vez, era apenas um dos muitos lugares usados por pessoas em constante deslocamento, em busca de água no Deserto
de Kalahari. A camada de cinza, ossos e carvão foi coberta por areia soprada pelo vento. Quando, em 1969, John Yellen perguntou aos modernos !Kung sobre a caverna,
eles acreditavam que ela só fora usada como lugar de recolher mel; eles próprios jamais haviam acampado dentro da caverna.
Após deixar a Caverna de Drotsky, Lubbock faz uma jornada de quase 2 mil quilômetros ao Cabo Ocidental do sul da África, chegando à margem sul do mundo desabitado
pela terceira e última vez em suas viagens - já havendo visitado a Tasmânia e a Tierra del Fuego. Diante de si vê um rio raso, conhecido hoje como Verlorenvlei,
que corre para oeste e chega ao Oceano Atlântico, a pouco menos de 20 quilômetros de distância. Um homem está dentro do rio com água pelos joelhos, uma lança de
pesca acima da cabeça. Sob as vistas de Lubbock, ele golpeia a água, pragueja e tenta de novo, antes de desistir e seguir a trilha batida de volta a uma caverna
no lado de um rochedo pouco abaixo no rio. Hoje a chamamos de Caverna da Baía dos Cefos - a primeira de quatro que Lubbock deve visitar ao explorar o que aconteceu
no sul da África quando o aquecimento global mudou o mundo.

49
Uma Excursão pelo Sul da África
Mudanças ambientais, dieta e vida social,
12.500 - 7.000 a.C.
O pescador senta-se agora com dois companheiros junto às brasas de uma fogueira, observado por Lubbock, parado na entrada da caverna, voltado para dentro. Cada homem
tem lanças encostadas na parede, uma mochila de couro contendo nódulos de quartzo, um martelo de pedra, faca e pedaços de tendão. Chumaços de capim foram colocados
no chão, mas pouco fazem para cobrir os detritos deste e de muitos outros acampamentos posteriores na caverna. Após viajar pela maior parte do globo e visitar muitos
sítios semelhantes, Lubbock apurou muito o sentido do olfato; isso, junto com o insucesso do pescador, sugere que a pesca é uma nova atividade para os habitantes
da caverna.
A Caverna da Baía dos Cefos é a Franchthi do Sul. Seus depósitos arqueológicos mostram como as pessoas mudaram as vidas quando o aquecimento global mudou seu mundo,
trazendo o mar e seus produtos para a soleira da porta de uma caverna que antes ficava no interior. Escavada por John Parkington e seus colegas da Universidade da
Cidade do Cabo na década de 1970, produziu ricas coleções de ossos de animais, peixes e pássaros, moluscos, cascas de ovos de avestruz e tartaruga, instrumentos
feitos de vários materiais, junto com depósitos de carvão e cinza. Datam de cerca de 30.000 a.C. até os tempos modernos, e forneceram, após três décadas de estudo,
uma notável intuição sobre a história humana no Cabo Ocidental do sul da África, na qual Lubbock entrou em 12.500 a.C.
O uso da Caverna da Baía dos Cefos como acampamento de caça já se achava em andamento no LGM, quando o mar ficava a cerca de 35 quilômetros de distância - 15 a mais
que na época da visita de Lubbock. A planície costeira era portanto maior, mas os animais talvez fossem escassos, devido às condições mais frias e mais áridas. Mesmo
assim, o hoje extinto cavalo do Cabo e o búfalo gigante, o cefo, steenbok e grysbok [todos antílopes pequenos] estão presentes nos depósitos da caverna entre o LGM
e 9.000 a.C., após o que a planície foi inteiramente inundada pelo mar crescente e esses animais deixaram de ser caçados.
Os que usavam a Caverna da Baía dos Cefos pegavam tartaruga para comer e usar os cascos como vasos. Uma camada escavada de cerca de 12.500 a.C. tinha tantas carapaças
que Parkington a chamou de "monturo da tartaruga". Isso sugere que a visita anual à caverna pode ter sido no verão, quando as tartarugas e outros répteis eram mais
fáceis de encontrar. Além de carvão de madeira de fogueiras, não se recuperou nenhum outro resto de planta. Se isso reflete uma dieta inteiramente baseada na caça
ou a completa decomposição de matéria vegetal, ainda não está claro.
Um estilo de vida baseado em caça grande nos matagais abertos parece generalizado em todo o sul da África no LGM e o depois imediato. Grãos de pólen de sedimentos
da caverna sugerem uma paisagem de charnecas e matagais. O carvão das fogueiras confirma isso: o da Caverna Boomplaas, no Cabo Sul, indica que seus ocupantes tinham
de encontrar combustível numa paisagem inteiramente desprovida de árvores. Os que usavam a Caverna da Cabana Rosa, hoje situada no Estado Livre de Orange - mais
para o interior e numa maior elevação - se davam melhor, pois pegavam lenha de arbustos ao longo da borda de um vale próximo.
Rebanhos de antílopes, cefos, búfalos e cavalos pastavam nas montanhas e baixadas, e teriam estado disponíveis para a caça. Os grandes mamíferos da Caverna da Baía
dos Cefos, porém, estão representados, sobretudo, por queixadas e ossos de membros inferiores - partes de carcaça que sugerem aproveitamento de restos de caça de
carnívoros. Esse pode ter sido um meio suficiente de adquirir carne, pois é provável que as pessoas fossem poucas, depois que seu número sofreu com as secas do LGM.
Os sítios arqueológicos desse período são raros e, quando encontrados, sugerem pequenos grupos móveis que não permaneciam em seus locais de acampamento mais que
algumas semanas de cada vez. Mesmo assim, caças comunais com lanças podem ter sido feitas nas paisagens abertas, talvez com o envio de batedores que tangiam os animais
para emboscadas, como Lubbock tantas vezes viu em outras partes.
Na época da chegada de Lubbock à Caverna da Baía dos Cefos - 12.500 a.C. - as paisagens e estilos de vida já tinham começado a mudar. Desde 16.000 a.C., as temperaturas
e volumes de chuva vinham aumentando, em parte devido à chegada de chuvas de inverno para complementar as de verão. Os novos ocupantes da Caverna Boomplaas pegavam
lenha de arbustos e árvores. Quando faziam isso, teriam observado a substituição gradual de rebanhos a pastar por animais menores e mais solitários como o steenbok
c o oreotrago, que pastavam dentro do matagal. Novos animais teriam exigido novos métodos de caça; isso por sua vez teria tido conseqüências para a vida social.
Os animais de pasto tinham de ser tocaiados; arcos e flechas provavelmente substituíram as lanças usadas nas caçadas comunais. Tais caçadas eram coisas públicas,
na certa envolvendo a participação de mulheres e crianças, e muitas vezes produzindo carne mais que suficiente para todos. Arcos e flechas, por outro lado, serviram
para "privatizar" a caça, e com isso a propriedade de qualquer carne adquirida. As regras tornaram-se essenciais para sua distribuição, sobretudo porque os animais
menores e solitários agora caçados ofereciam menores quantidades. Lynn Wadley, da Universidade de Witwatersrand, sugeriu que o padrão típico visto entre recentes
caçadores-coletores africanos, como os !Kung, de mulheres como coletoras de plantas excluídas da caça, pode datar da adoção do arco e flecha para a caça, talvez
por volta de 16.000 a.C. nessa região do mundo.
Embora as mudanças nos grandes mamíferos representados em Boomplaas e outras cavernas lembrem mais mudanças em estilos de vida humanos, os roedores são igualmente
reveladores sobre a mudança ambiental. Durante o LGM e depois, as corujas com ninho na Caverna Boomplaas comiam mussaranhos, que se sabe habitarem matagais abertos;
após 12.500 a.C., sua dieta tinha mudado para os camundongos e arganazes, de habitat florestal. O rato das dunas é um roedor particularmente útil, pois oferece um
medidor de chuva, como as partículas de areia na Caverna de Drotsky. Sabe-se que o seu tamanho varia com a precipitação pluvial: quando chove, crescem mais, supostamente
porque as raízes que consomem são mais abundantes e nutritivas; na seca, são relativamente pequenos; e quando as condições se tornam áridas, desaparecem inteiramente
dos depósitos nas cavernas. Pelas medições de seus ossos sobreviventes, sabemos que os ratos de duna pegados pelos caçadores da Caverna da Baía dos Cefos entre 12.500
e 7.000 a.C. eram substancialmente maiores que os que vêm de depósitos anteriores e posteriores na caverna.
Grupos de caça continuam indo e vindo a cada primavera, enquanto Lubbock, sentado dentro da Caverna da Baía dos Cefos, lê seu exemplar de Tempos pré-históricos -
sabendo que lhe resta pouco tempo para acabar o livro. Ele ergue o olhar toda vez que chega um novo grupo; eles às vezes vêm de mãos vazias, outras trazem ratos
de duna amarrados na cintura ou uma carcaça meio esquartejada na mão. Na maioria dos anos, chegam apenas homens, mas de vez em quando mulheres e crianças acompanham
os caçadores, e sua estada se estende de poucos dias para semanas. Lubbock não tem idéia de onde passam o resto do ano, mas nota que muitas vezes trazem lascas de
pedra feitas de um material negro grosseiro inexistente nas vizinhanças da caverna. Essa pedra é greda negra, e sua fonte mais próxima fica a 200 quilômetros da
Caverna da Baía dos Cefos.
Assim que Lubbock viu os recém-chegados instalar-se, limpar os lugares de fogueira e afastar quaisquer insetos e répteis indesejados que se alojaram dentro da caverna,
retorna às páginas de seu livro. A mesma rotina anual de caça e pesca, contar histórias e cantar, fumar, pilheriar e fazer instrumentos recomeça.
Só quando as pessoas chegam no ano 12.000 a.C. ele compreende que andou a negligenciar a mudança do mundo lá fora. Dois pingüins aparecem dentro da caverna - não
entrando por si mesmos, mas pendurados no pescoço de um caçador. Esse caçador é um dos vários recém-chegados, logo seguidos por mulheres e crianças com cestas de
lapas e algas marinhas, em vez de raízes e tartarugas como nos anos anteriores. Parecem açoitadas pelo vento e salgadas, após catarem comida na margem do Atlântico.
Enquanto Lubbock esteve sentado a ler, a maré foi chegando - não a maré diária, mas aquela que flui e reflui com a mudança do clima. O aquecimento global veio derretendo
as geleiras do norte; bilhões de litros d'água despejaram-se nos oceanos; o nível do mar subiu e trouxe a margem do Atlântico para a distância de um dia de caminhada
da caverna. Em 12.500 a.C., não está a mais de cinco quilômetros, e assim um novo tipo de detrito logo será jogado em seu chão.
No dia seguinte, Lubbock acompanha as mulheres e crianças até a praia e vê uma cena conhecida, que sabe ser repetida em todo o mundo quando começa o Holoceno. Pegam-se
mariscos - neste caso, sobretudo lapas. Revistam-se poças nas rochas e reviram-se pedras em busca de caranguejos. Enquanto as mulheres trabalham e as crianças brincam,
focas vigilantes ondulam no mar. Ao anoitecer, depois que estiverem vindo para a praia, a situação virará, quando os caçadores se aproximarem sorrateiramente delas,
prontos para matar.
Quando Lubbock é mais uma vez deixado sozinho na caverna, detritos da cata de comida do litoral juncam o chão: conchas de moluscos, penas de gaivota jogadas fora,
ossos de focas, pingüins e peixes. O mesmo acontece no ano seguinte, e no seguinte. Como as mesmas pessoas continuam voltando, Lubbock observa: elas envelhecem e
mudam. Os meninos não vão mais com as mulheres para a praia, mas acompanham os homens nas caçadas; meninas adolescentes chegam recém-grávidas ou com o primeiro filho;
alguns não voltam - não apenas os velhos, que morreram em outra parte, mas os que se casaram e juntaram-se a outro grupo.
A natureza da caverna também começa a mudar. Quando Lubbock chegou, era um acampamento de caça sem sinais de trabalho doméstico. Mas agora há mós no chão. Limpam-se
couros dentro da caverna, fazem-se roupas e contas de casca de ovo de avestruz. Lubbock vê o enterro de um bebê sob o chão da caverna; quando Parkington escavar
o sítio, encontrará mais cinco.
As visitas tornam-se mais longas e mais freqüentes, duas ou três vezes ao ano, evidentemente destinadas a pegar recursos no melhor ponto: mexilhões no fim da primavera,
lapas no verão e focas no começo do inverno. Os caçadores-coletores estão sempre observando as nuvens e marés, aumentando continuamente seu conhecimento da paisagem
marinha - onde os pássaros fazem ninhos, quando os peixes se reproduzem. Fazem-se adaptações às quantidades e gama de comida que reúnem; assim que os mexilhões se
tornam mais prolíficos na praia - conseqüência de mudanças nas correntes ao largo e temperaturas do mar - passam tempo recolhendo-os, em vez das duras lapas, de
gosto desagradável. Com o correr dos anos, com o mar avançando sempre mais para perto da caverna, o estuário do Verlorenvlei - o rio que passa pela Caverna da Baía
dos Cefos - se torna o local favorito de catar comida deles; abatem-se pelicanos e flamingos com flechas, pega-se uma variedade de peixes em redes, recolhem-se lagostas,
cormorões, mergulhões e gaivotas caem em armadilhas.
À medida que essas espécies entram na dieta, outras vão sendo esquecidas ou não mais são encontradas. Quando Lubbock chegou, as mulheres e crianças passavam muitas
horas procurando tartarugas no matagal em torno da caverna; agora passam o tempo todo na praia. As tartarugas tornaram-se escassas, porque o solo e a vegetação estão
inundados de sal. Uns poucos antílopes pequenos são caçados, mas o cavalo do Cabo desapareceu inteiramente dos restos da planície, que se tornou mais árida, as poucas
fontes de água doce desapareceram e plantas suculentas que chegam à altura dos joelhos agora crescem no antigo matagal.
Em 10.000 a.C., o chão da caverna é um fedorento monturo de conchas; depois de haver-se sentado e dormido em tais monturos em outras partes do mundo pré-histórico,
Lubbock não deseja fazê-lo de novo. Na verdade, é hora de sair numa excursão, visitando outras cavernas bem no interior, antes de retornar ao Cabo Ocidental em 7.000
a.C. para ver o quanto mudou a vida na Caverna da Baía dos Cefos nos milênios intermediários.
Após subir a escarpa para as altas planícies hoje conhecidas como Grande Karoo, Lubbock cruza o matagal seco pontilhado de arbustos enfezados, no rumo nordeste.
A paisagem, na maior parte, é poeirenta e aborrecida, uma mistura de amarelos calcinados e pardos sedentos. O ar é límpido, e todas as direções são limitadas por
colinas e topos de montanha. Quando chega a chuva de verão, cai em tais torrentes que a água escorre do chão cozido para dentro de toda fissura e vala, antes de
entrar nos rios e correrem para o mar. Dificilmente parece umedecer o solo; e, no entanto, fica um legado de curto prazo no súbito aparecimento de flores de delicado
matiz - roxo, branco, carmim c amarelo-canário - todas fulgindo vívidas sobre um tapete de verde.
Depois de viajar quase 800 quilômetros desde a Caverna da Baía dos Cefos, e atravessar altas planícies, colinas, salinas e lagos secos, Lubbock chega à Caverna Wonderwerk,
nos flancos leste das colinas Kuruman. A noite caiu. Ele se aproxima sob um céu estrelado, ao som de cantos e palmas lá dentro; ao entrar na caverna, vê vinte ou
trinta mulheres sentadas em torno de uma fogueira, oscilando ao ritmo de sua música; um número semelhante de homens dança em torno do círculo. Outro conjunto de
figuras, de tamanho gigante, apresenta-se caoticamente nas paredes: sombras humanas projetadas pelas chamas tremulantes. A música ecoa nas câmaras escuras da caverna.
Lubbock aguarda o momento e então se junta às mulheres sentadas, espremendo-se dentro do círculo e pegando o ritmo com as mãos. Várias lajes de pedra foram postas
em torno da fogueira, cada uma com a forma de um animal gravada. Os dançarinos freqüentemente passam por entre as mulheres, ou mesmo saltam por cima delas, baixam
para examinar as pedras, pegando-as firme e dizendo fórmulas mágicas ao cefo, cavalo e búfalo que mostram. Agora também Lubbock sua e oscila, bate palmas no ritmo
e canta, envolvido pela música e a dança, as chamas e o ar quente, pungente, drenado de oxigênio. A dança torna-se frenética; vários homens começam a tremer, arrepiar-se
e balançar, e então, num estado semelhante ao transe, deixam o mundo terreno dentro da caverna. Dois cambaleiam em torno do círculo, pondo as mãos trêmulas em cada
pessoa sentada, os dedos espremendo couros cabeludos num pedido para que a doença se vá. Outros desabam, tremendo incontrolavelmente no chão, um sangrando em profusão
pelo nariz.
Acaba. As palmas, canto e dança têm uma parada súbita. Os xamãs se contorcem no chão e depois se imobilizam; os outros jazem estendidos de costas, arquejando forte,
aliviados por terem sido curados de seus males.
A Caverna Wonderwerk teve uma longa história de estudo. As escavações iniciais foram feitas na década de 1940, seguidas por novo trabalho em fins da de 1970, em
parte por Anne e J. Francis Thackeray, da Universidade de Yale. A caverna tem depósitos com artefatos de pedra que remontam a muito antes do LGM; as camadas de 10.000
a.C. e depois contêm ossos de animais de espécies pastadoras como zebra, alcéfalo e gnu. O hoje extinto cavalo do Cabo encontra-se na mais baixa das camadas do Holoceno.
Além de artefatos de pedra e ossos de animal, os Thackerays encontraram várias placas de pedra com gravuras; todas, com exceção de uma, continham imagens geométricas
e datavam de tempos relativamente recentes do Holoceno. Uma placa, no entanto, datava de 10.000 a.C. e foi a base do meu elaborado cenário da dança medicinal xamanística.
Não tem mais de 8 centímetros de largura e mostra uma imagem inacabada de um mamífero não identificável, que parece um cavalo ou um antílope sem cabeça.
Muitas outras obras de arte podem ter estado presentes dentro da Caverna Wonderwerk em 10.000 a.C., pois suas paredes estão cobertas com pinturas de data desconhecida.
Sabemos que os artistas já trabalhavam no sul da África em 20.000 a.C., por causa de uma coleção de placas pintadas da Caverna Apolo, na Namíbia, que mostram uma
criatura parecida com uma girafa, um rinoceronte e um gato selvagem que alguns acreditam ter pernas humanas. Os arqueólogos continuam sem saber se datam de 20.000
ou 40.000 a.C.; qualquer que seja a data, estabelecem que pessoas já haviam começado a pintar animais em superfícies de rocha antes de 10.000 a.C.
Também sabemos que pedaços de casca de ovo de avestruz eram gravadas em 12.000 a.C. - possivelmente muito antes - e que se faziam gravuras em superfícies de rocha
durante todo o Holoceno. A pintura foi largamente praticada por povos indígenas do sul da África - os boxímanos San - durante todo o tempo histórico.
As pinturas mais recentes foram extensamente estudadas pelos arqueólogos e sabe-se que mostram práticas xamanísticas: comunicação com um mundo do espírito, e viagens
para lá, de alguns indivíduos que têm o dom de fazê-lo. Em vista das semelhanças entre sua imagística e a arte de 10.000 a.C. e antes, como a presença de formas
meio humanas, meio animais, é bastante possível que as práticas xamanísticas também motivassem a criação de arte rupestre do sul da África em tempos pré-históricos.
Nessa base repousa meu cenário de uma dança curativa na Caverna Wonderwerk em 10.000 a.C.
A primeira pessoa a perceber que danças em transe, visões e xamãs proporcionam a chave para compreender a arte rupestre dos séculos XIX e XX no sul da África foi
David Lewis-Williams, professor de Arqueologia Cognitiva da Universidade de Witwatersrand. Fazendo um estudo detalhado dos registros históricos de boxímanos San,
e falando com os que ainda sobreviviam, ele encontrou impressionantes semelhanças entre as práticas xamanísticas San e a imagística na arte deles. Descobriu que
muitas pinturas representam danças em transe, mostrando grupos de corpos oscilantes; outras registram a própria experiência do transe. Os próprios xamãs podem ser
reconhecidos nas pinturas pelo sangue a jorrar do nariz de uma figura, ou por suas formas em parte humanas e em parte animais - sendo a transformação em outra espécie
uma parte-chave da experiência do transe. As pinturas de cefos são particularmente significativas porque esse animal continha a potência que os xamãs precisam dominar
para entrar em transe. Quando eles dançavam, muitas vezes se voltavam para as pinturas de cefo nas paredes da gruta - como imaginei os da Caverna Wonderwerk fazendo
com as placas gravadas no chão. As histórias escritas registram que quando o transe era completo, os xamãs falavam ao grupo de suas visitas ao mundo dos espíritos;
a arte rupestre indica que usavam as pinturas nas paredes das cavernas para fazer o mesmo.
Sentindo-se particularmente animado após a dança, Lubbock deixa a Caverna Wonderwerk para continuar sua excursão pelo sul da África. A localidade seguinte que deve
visitar é a Caverna da Cabana Rosa, 450 quilômetros a sudoeste, aonde chegará em 8.500 a.C. A região é relativamente exuberante; seus matagais e arbustos sustentam
mais animais do que ele viu antes nessa região do mundo. Isso reflete em parte outro aumento na precipitação pluvial e na temperatura, e em parte o fato de que viajou
mais a leste, para uma área que sempre foi uma paisagem mais produtiva que a Grande Karoo. Ele agora passa por mais locais de acampamento que jamais antes; vê caçadores
tocaiando caça e mulheres arrancando tubérculos do chão.
Há de fato um grande aumento no número de sítios arqueológicos conhecidos no sul da África após 12.000 a.C., o que deve refletir um substancial aumento na população
humana. Em 10.000 a.C., as pessoas evidentemente começaram a ocupar todos os variados habitats da região. A maioria dos sítios, porém, não passa de pequenos grupos
de instrumentos de pedra jogados fora e o lixo de sua fabricação.
Desde o LGM, os caçadores-coletores do sul da África moldaram nódulos de pedra em núcleos muitas vezes de forma cônica e dos quais se destacavam lâminas pequenas
e finas. Os arqueólogos usam o termo sítios "Robberg" para designar tais coleções de instrumentos. Muito poucas das lâminas receberam outros desbastamentos para
torná-los formas específicas. Algumas podem ter sido encaixadas em lanças, mas seriam pouco mais eficazes que as pontas feitas de madeira endurecida. Não eram, porém,
o único tipo de instrumentos de pedra em uso no sul da África. Também se faziam grandes lascas, muitas das quais eram mais desbastadas em formas chamadas de raspadores,
enxós e rastilhas. Os sítios que contêm tais lascas e instrumentos - conhecidos pelos arqueólogos como sítios "Oakhurst" - encontram-se em grande número por todas
as paisagens abertas do interior do sul da África. Muito poucos podem ser datados, mas acredita-se que a maioria fique entre 12.000 e 7.000 a.C., coincidindo com
uma proliferação de pontas de osso que indicam um acentuado aumento na caça com arco e flecha.
John Parkington sugeriu que as mesmas pessoas fizessem os tipos de instrumento Robberg e Oakhurst - que eram na verdade complementares. Embora as pequenas lâminas
pareçam adequadas para uso na caça e pesca, as grandes lascas e raspadores parecem mais úteis para limpar alimentos vegetais, preparar couros e trabalhar madeira.
E assim, diferentes instrumentos podem ter sido feitos e abandonados dependendo de quais atividades se tratava. Podia também ser uma questão de simples geografia,
com as matérias-primas disponíveis ditando que tipo se fazia. No interior, as rochas de grão grosseiro, como greda negra, eram encontradas em grandes blocos, possibilitando
que se destacassem facilmente grandes lascas. Os nódulos de quartzito encontrados nas baixadas do Cabo levam mais à fabricação de lâminas pequenas e delicadas.
Os sítios em cavernas com longas seqüências de depósitos em camadas, porém, como a Caverna da Cabana Rosa, aonde Lubbock está para chegar, sugerem ser improvável
que a explicação por Parkington das duas tecnologias esteja inteiramente correta. Mostram consistentemente que as grandes lascas e raspadores foram feitos numa data
posterior aos núcleos cônicos e lâminas pequenas. Parece que uma tradição foi completamente substituída por outra em toda a região - uma acentuada mudança na fabricação
de instrumentos que coincidiu com a expansão da habitação humana para o interior do sul da África. Após outros 5 mil anos, os estilos de fabricação de instrumentos
retornou mais uma vez à produção de lâminas, que os arqueólogos chamam de tradição Wilton.
Uma trilha batida em meio a uma vegetação de arbustos leva Lubbock a uma caverna incomum, formada por uma grande rocha caída da face de um rochedo e encerrando o
grande abrigo atrás. De dentro vem o barulho de conversas e risadas, de pelo menos vinte pessoas que se sentam em torno de lareiras num espaçoso interior, a rocha
abrigando-as do frio vento do lado de fora. Mais luz entra por uma clarabóia natural no teto. Com isso, Lubbock vê feixes de capim e folhas que serão usados como
cama encostados nas paredes da caverna, e um nicho entupido de lenha. Enfiaram-se pedaços de pau em fendas para servir de cabides para sacos, roupas, vasos d'água,
arcos e uma carcaça esquartejada. Todos, com exceção dos muito pequenos, parecem trabalhar.
Perto da entrada alguns homens lascam pedras. Usam o tipo negro, de grão grosso, e deixam toda nova lasca cair, aparentemente indesejada, no chão, embora uma ou
outra seja apanhada dos detritos e posta de lado para ser mais trabalhada. Outro grupo senta-se mais para os fundos, na limpeza e preparação de couros - raspando
a gordura, esticando, torcendo e batendo para torná-los mais maleáveis. Na viagem desde a Baía do Cefo, Lubbock ficou sabendo que esse trabalho em couro é sempre
feito pelos homens - eles caçam os animais e, portanto trabalham suas peles, fazendo roupas, cintos e sacos. Três outras lareiras são cercadas por mulheres, meninas
e os bebês. Em duas destas, raízes bulbosas são moídas e reduzidas a uma papa; na terceira, duas mulheres sentam-se juntas transformando fragmentos de casca de ovo
de avestruz em contas.
Ouve-se um rumor constante de conversas em cada lareira; de vez em quando, uma pessoa ocupa o palco central e conta uma história a todos.
Lyn Wadley, da Universidade de Witwatersrand, escavou os restos dessa cena, junto com os de várias outras cujos detritos se misturaram. Encontrou concentrações de
carvão e osso queimado, indicando onde ficavam as lareiras, densos conjuntos de pedra lascada perto da entrada e fragmentos de casca de ovo de avestruz indicando
o local da fabricação de contas. Havia também uma lareira cercada por instrumentos que sugere trabalho em madeira, e mós onde pigmentos tinham sido preparados, enquanto
a química dos sedimentos da caverna indicava que muito material vegetal fora trazido para dentro, acabando por apodrecer no chão.
O trabalho de Lyn baseou-se numa longa história de escavação no que é uma caverna, sobretudo impressionante - que atraiu continuamente os arqueólogos, como fez com
os caçadores-coletores na pré-história. As camadas que datam de 10.000 a.C. formaram-se acima das que remontam a mais de 50.000 a.C. e abaixo de uma seqüência de
camadas que acabaram apenas há uns 500 anos. Pelas camadas mais recentes, Lyn descobriu que a caverna era um local de encontro e centro ritual dos ancestrais imediatos
dos historicamente conhecidos boxímanos San. Uma de suas muitas pinturas rupestres mostra uma dança medicinal; outra, uma leoa andando entre um rebanho de cefos.
Lyn interpreta a última como mostrando a sempre presente ameaça do mal ao bem - o dócil e gregário cefo representando o ideal de comportamento humano entre os San.
Em 8.500 a.C., Lubbock entra na caverna, passando nas pontas dos pés por entre as lareiras até a parede do fundo, onde encontra um pouco de capim para sentar-se.
Logo depois que ele se instala, chegam mais visitantes; gritam alto do lado de fora, causando um súbito silêncio antes que todos se levantem para recebê-los. Entra
o que parece ser uma família - duas crianças, três adultos, uma dos quais carrega um bebê, uma velha. Após muitos cumprimentos formais e informais, todos se sentam
de novo, tendo-se os recém-chegados espalhado entre as lareiras, cada pessoa com amigos ou parentes particulares.
A família visitante só fica na Caverna da Cabana Rosa dois dias. Quando eles partem, Lubbock nota que as moças usam novas contas, e os homens têm pontas de flecha
de osso, presentes dados em troca das roupas de couro que trouxeram. O próprio Lubbock fica mais alguns dias, passando um deles numa caça e outro à procura de plantas
comestíveis, antes de partir uma manhã muito cedo, enquanto o grupo continua a dormir na caverna.
Reuniões c visitas anuais entre grupos, famílias e indivíduos que passam a maior parte do ano separados eram cruciais para o estilo de vida dos modernos boximanos.
Era com elas que se renovavam as amizades, passava-se informação e faziam-se outros ritos de passagem c trocavam-se presentes. Estes últimos eram essenciais, criando
e afirmando laços de amizade a que se podia recorrer em tempos de necessidade. Quase tudo podia ser um presente, mas os artigos mais valiosos eram pontas de flecha
de pedra e contas de casca de ovo de avestruz.
Cada indivíduo, dos mais novos aos mais velhos, tinha seu próprio conjunto de doadores de presentes, encontrados dentro do seu próprio grupo e de outros. Alguns
parceiros podiam ver-se uns aos outros apenas uma vez por ano, se muito. Nenhuma dupla tinha exatamente o mesmo conjunto de parceiros, o que produzia uma "rede de
doação de presentes" que se estendia por centenas, senão milhares, de quilômetros pela paisagem.
Quando a antropóloga Polly Wiessner estudou a doação de presentes entre os boxímanos do Kalahari no início da década de 1970, descobriu que mais de dois terços dos
bens de cada pessoa tinham sido recebidos como presentes de seus parceiros doadores. O resto fora feito ou comprado, e destinava-se a ser dado.
Essa rede de doação de presentes revelou-se crucial para a sobrevivência no Deserto de Kalahari. Com seu imprevisível regime de chuvas, cada grupo enfrentava um
constante risco de escassez de comida e água. Se isso ocorria, os membros podiam recorrer à ajuda dos parceiros doadores que viviam em outras partes, pois eles eram
obrigados a partilhar sua comida. Polly descreve como funcionava isso a partir de suas próprias experiências em 1974. Um grupo de !Kung enfrentou séria falta de
comida: ventos fortes durante toda a primavera haviam destruído a safra de nozes que eles esperavam colher, e chuvas excepcionalmente fortes tinham levado a um capim
demasiado alto, tornando difícil a captura de lebres e espalhando a caça maior. Em agosto, os !Kung passavam a maior parte do tempo fazendo artesanato para servir
como presentes e sabendo por visitantes passageiros das condições em outras partes. Em setembro, o grupo já começara a dispersar-se, as pessoas comunicando o desejo
de visitar parentes "porque sentiam saudades deles e queriam dar presentes". Dentro de duas semanas, metade da população partira, espalhando-se muito entre outros
grupos e aliviando a pressão sobre os que ficaram.
Lyn acredita que os que ocupavam a Caverna da Cabana Rosa em 10.000 a.C. também se preocupavam com a doação de presentes. A partir de 12.000 a.C., a Caverna da Cabana
Rosa e outros sítios arqueológicos começam a conter artigos que teriam sido ideais como presentes, notadamente pontas de flecha de osso e contas de casca de ovo
de avestruz. Lyn não acha coincidência que isso apareça em maior número apenas quando as pessoas começaram a colonizar as paisagens do interior do sul da África
- coisa que se refletiu no aparecimento de tantos instrumentos Oakhurst. Tendo a segurança de parceiros doadores de presentes, as pessoas podiam arriscar-se a explorar
novas paisagens e assentar-se naquelas onde podia surgir uma súbita escassez de comida.
Lubbock já viajou cerca de 400 quilômetros até a quarta caverna de sua excursão pelo sul da África, a última antes de voltar ao Cabo Ocidental. É a Caverna Boomplaas,
hoje localizada num penhasco de calcário acima do leito do vale do Congo. Encarapitado numa rocha do lado de fora, ele admira a vista do vale, e depois abre mais
uma vez Tempos pré-históricos.
Hilary Deacon, hoje na Universidade de Stellenbosch, África do Sul, procurou uma caverna como a Boomplaas no início da década de 1970. Ele queria escavar uma que
tivesse depósitos cobrindo pelo menos de 100 mil anos atrás até tempos recentes; também queria uma caverna que contivesse lareiras bem conservadas, ossos de animais
e outros restos orgânicos. Boomplaas quase se encaixava no papel - os primeiros depósitos tinham "apenas" 80 mil anos, e assim Deacon teve de cavar em outra parte
para retornar no tempo além daquela data.
Boomplaas oferece valiosa informação sobre as mudanças no ambiente e estilos de vida humanos quando o Pleistoceno chegou ao fim e começou o Holoceno. Mas são as
camadas mais recentes escavadas por Deacon que tanto importam para sua história. Ele descobriu que estrume de carneiro formava as camadas de cima, conseqüência de
pastores que usaram a caverna como aprisco nos últimos cem anos. Essas pessoas foram um dia descritas como "hotentotes" e é sobre elas que Lubbock lê agora em Tempos
pré-históricos
Para sua história dos hotentotes, o John Lubbock vitoriano recorreu a um livro escrito por um homem chamado Kolben que aspirava a ser uma história do Cabo. Continha
os insultos hoje conhecidos, aplicados a tantos dos "selvagens modernos" descritos em Tempos pré-históricos. Os hotentotes eram "em muitos aspectos o povo mais sujo
do mundo"; um de seus costumes, confinar velhos numa choupana solitária, onde, "sem ninguém para confortá-los ou ajudá-los", "morrem ou de velhice ou de fome, ou
são devorados por algum animal selvagem"; as crianças indesejadas - segundo Kolben - eram "enterradas vivas". Outros costumes eram descritos como impróprios para
publicação.
O Lubbock vitoriano preocupava-se com a exatidão dessas afirmações, e observou sua incompatibilidade com descrições anteriores dos hotentotes como "as pessoas mais
amistosas, mais liberais e mais benévolas umas com as outras que já apareceram na terra". Tendo visitado tantos "selvagens" do mundo pré-histórico, o John Lubbock
moderno sabia que seu xará estava inteiramente certo em questionar aquela última barragem de ofensas racistas vitorianas. Interessava-se mais pelas cuidadosas descrições
do autor de roupas e trabalho em ferro dos hotentotes, das bexigas de animais e cestos de palha impermeabilizados que eles usavam para guardar leite.
Embora a data seja 8.000 a.C., recipientes semelhantes já eram usados dentro da Caverna Boomplaas, não para leite, mas para água e plantas coletadas. Os animais
domesticados e pastores só chegarão dentro de mais 7 mil anos, pelo menos. Lubbock fecha o livro e abriga-se na caverna quando a chuva começa a cair. No chão, espalham-se
tapetes feitos de juncos trançados, entre os quais se acha o conhecido grupo de um acampamento de caçadores-coletores - várias lareiras, couro meio trabalhado, lascas
de pedra, cestos, gamelas e lenha. Por baixo há muitas camadas de terra socada compostas de aluvião e areia trazidos pela água, rocha erodida da parede da caverna
e restos decompostos de tapetes, cestos e sacos. Isso por sua vez cobre os detritos dos que usaram a caverna antes do início do Holoceno, caçando cefo, cavalo do
Cabo e búfalo gigante quando os matagais cobriam o vale do Cango.
Isso fora antes de arbustos espinhosos e árvores substituírem os matagais em 12.000 a.C. E assim quando, em 8.000 a.C., um grupo de caçadores chega à Caverna Boomplaas,
traz a carcaça meio esquartejada de um pequeno antílope que vivia mais de comer arbustos do que de pastar no chão. É o steenbok, um animal que se encontra no vale
do Cango hoje. Como esses e outros animais semelhantes se espalharam com o novo mato baixo, os de pasto tiveram de ir procurar comida em outro lugar.
Alguns, como o rinoceronte branco e o gnu preto, conseguiram fazer isso e sobrevivem hoje. Mas seis espécies se extinguiram: o cavalo do Cabo, o búlalo gigante,
o gnu gigante, o springbok de Bond, o springbok do sul e um grande porco parecido com o javali africano. Richard Klein, da Universidade de Chicago - que estudou
os ossos de cavernas do sul da África durante mais de trinta anos - questionou se se pode atribuir o fim dessas espécies apenas à mudança de clima e seu impacto
sobre a vegetação.
Uma das principais preocupações de Klein é que as espécies condenadas já tinham sobrevivido a vários períodos anteriores de mudanças de clima equivalentes. Além
disso, como vários sobreviveram até 10.000 a.C., parece ter uma lacuna de pelo menos dois mil anos entre a disseminação da floresta e sua extinção. O springbok de
Bond sobreviveu ainda mais, e era caçado em 6.500 a.C., em vista de ossos encontrados dentro de outra caverna. E assim Klein pensa que os caçadores coletores da
Caverna Boomplaas e outras partes tiveram um papel no último desaparecimento desses animais.
Não precisavam ter feito muita coisa - apenas o abate de uns poucos de cada espécie todo ano poderia ter tido um efeito devastador em populações já em estado frágil.
A mudança da caça com lança para o uso de arco e flecha pode ter sido um fator importante. E também a expansão da população humana para o interior, por meio da rede
de doação de presentes. Durante períodos climáticos anteriores, quando os matagais foram reduzidos pela disseminação de árvores, espécies como o cavalo do Cabo e
o búfalo gigante poderiam ter sobrevivido no interior, livres da ameaça de predação humana. Mas em 12.000 a.C. tais refúgios tinham sido perdidos, diante da nova
expansão de assentamento humano. Já não havia lugar seguro para esperar a volta de condições mais amenas.
Assim, a situação do sul da África parece semelhante à da América do Norte, onde as extinções se deram em âmbito muito mais extenso. Nas duas regiões, as mudanças
ambientais apenas parecem insuficientes para ter causado a extinção. Também o era a extensão da caça humana. Mas o impacto combinado das duas coisas parecia ter
sido tão fatal para o cavalo do Cabo e o búfalo gigante do sul da África quanto para o mamute e a preguiça do chão americanos.
Da Caverna Boomplaas, Lubbock dirige-se para o oeste, retornando à caverna na Baía dos Ccfos onde começou sua excursão pelo sul da Alrica. Enquanto faz isso, o clima
começa a mudar de novo. Após pelo menos mil anos de crescente chuva, essa tendência inverteu-se, possivelmente com o retorno apenas à chuva de verão - coisa que
inibiu o crescimento da vegetação e causou a retirada de alguns animais comedores de arbusto das margens de sua área.
Quando Lubbock chega à Caverna da Baía dos Cefos em 7.000 a.C., não apenas a planície costeira já desapareceu inteiramente, mas também grande parte da praia rochosa
onde ele vira a coleta de moluscos, algas e caranguejos. Resta pouco mais que uma faixa de areia improdutiva. Enquanto ele andou viajando pelo interior, o nível
do mar continuou a subir, chegando a três metros acima do que é hoje. A caverna acha-se agora isolada sobre uma ponta de terra, exposta aos ventos atlânticos e freqüentemente
mergulhada em neblina, e a mais próxima fonte de água doce fica a cerca de vinte quilômetros de distância.
A Caverna da Baía dos Cefos está deserta por dentro. Uma camada de areia soprada pelo vento cobre as conchas, ossos de animais e outros detritos que um dia se acumularam
em seu chão. Um monte de cocô diz a Lubbock que o lugar é agora usado por animais; os sedimentos no fundo foram perturbados pelo covil de um chacal. Lubbock senta-se
no chão frio e úmido, não surpreendido por terem as pessoas partido para viver em outra parte. Tampouco ficou John Parkington quando encontrou uma lacuna cronológica
no uso fora isso contínuo da Caverna da Baía dos Cefos. Ele concluiu que as pessoas tinham ido viver no interior, onde se podia encontrar água doce com facilidade.
Sem ninguém para observar nem luz para ler, Lubbock lembra o que mais está acontecendo no mundo perto dessa data na história humana. Em Jericó, um rapaz cobre de
gesso a caveira do pai, e em Nikomedeia, na Grécia, os primeiros agricultores limpam a terra. Na outra ponta da Europa, caçadores-coletores assam avelãs numa minúscula
ilha escocesa. Um estouro de bisões ocorre em Horner, nas Grandes Planícies da América do Norte, e abóboras são colhidas no vale de Oaxaca e vicunhas pastoreadas
nos Andes. No outro lado do mundo, as paredes de rocha da Terra de Arnhem na Austrália são pintadas com serpentes do arco-íris e inhames. No leste da Ásia, arroz
selvagem começa a ser semeado em Pengtoushan e esparrelas para javalis são cavadas nas Colinas Tama do Japão. Em Damdama, no Ganges, uma tartaruga é içada de um
rio próximo.
Lubbock pensa nos agricultores recém-assentados que constróem casas de adobe em Mehrgarh e Jeitun, e nos de longa data que fazem vasos e discutem com mercadores
visitantes na cidade de Yarim Tepe. Mas seus pensamentos são levados quando as fortes chuvas começam a cair e as ondas do Atlântico quebram na praia, jogando espuma
carregada de sal dentro da caverna. Já escureceu completamente. Como não há possibilidade de luar nessa desenfreada tempestade, Lubbock se encolhe para dormir no
frio chão da caverna.
A Caverna da Baía dos Cefos iria ficar sem uso por mais 4 mil anos - período em que todo o Cabo Ocidental também seria efetivamente abandonado. Só após 2.500 a.C.,
depois que o nível do oceano baixou, essa caverna se tornou mais uma vez um abrigo favorecido pelos catadores de moluscos na praia.

50
Raios nos Trópicos
Caçadores-coletores na África Central e Ocidental; mudança ambiental na África Oriental,
7.000 - 5.000 a.C.
John Lubbock abriga-se da chuva que não pára sob uma enorme rocha de granito. A pedra fica em cima de um amontoado de rochas e cobre a entrada de pequena caverna
onde se sentam outros três homens, encolhidos em torno de uma pequena fogueira. A data é 7.000 a.C., e Lubbock está no oeste da Nigéria. A caverna se tornará conhecida
como Iwo Eleru - um nome local iorubá que significa "pedra de cinzas". Encostado na parede, Lubbock observa os homens comendo brotos tirados da floresta em volta;
puxam-nos entre os dentes para desprender a polpa, deixando um emaranhado de fios no chão. Os homens permanecem dentro da caverna, comendo e conversando, até que
a chuva começa a passar. E então, após uma breve troca de palavras, desaparecem entre as árvores do lado de fora.
No início de suas viagens pelo sul da Ásia, o vislumbre que Lubbock teve dos habitantes da Idade da Pedra dessa região tem de permanecer frustrantemente breve, porque
poucos restos arqueológicos são conhecidos entre 20.000 e 5.000 a.C. É difícil encontrar sítios de qualquer tipo; e as efêmeras lareiras e instrumentos de pedra
típicos deixados espalhados pelos caçadores-coletores são quase impossíveis de localizar. A pesquisa aérea não consegue penetrar no dossel da floresta tropical para
identificar monumentos ou ruínas, e quaisquer outros artigos no chão estão escondidos sob a densa vegetação. A grande maioria de locais de acampamento, outrora localizadas
em margens de rios, terá sido levada por inundações ou enterrada pelo aluvião. E assim os arqueólogos dependem em grande parte de descobertas casuais de camponeses
e dos que abrem estradas ou cavam poços.
As cavernas dentro das partes rochosas da doresta oferecem a melhor possibilidade de encontrar ocupação pré-histórica. Mas como a poeira transportada pelo ar é escassa
e essas cavernas são formadas de granito resistente, não têm os depósitos no chão necessários para lacrar e preservar detritos humanos deixados dentro. Iwo Eleru
é a única exceção.
Em fins da década de 1960, Lhurston Shaw, então professor de Arqueologia na Universidade de Ibadan, quis examinar a arqueologia do fim da Idade da Pedra na Nigéria:
a que vinha depois de 15.000 a.C. Estava interessado, sobretudo na antigüidade de numerosos machados de pedra que vinham à luz com descobertas aleatórias em todas
as florestas do oeste africano. Eram conhecidos localmente como "raios", e muitas vezes colocados por sacerdotes do local em posições veneradas, como nos altares
a Sango, o deus do trovão. Desconfiando de que eram na verdade produtos da Idade da Pedra, Shaw começou a procurar uma caverna adequada para escavar, e acabou por
encontrar Iwo Eleru, localizada a meio caminho entre a costa sul e a borda nordeste da floresta tropical.
A caverna fora usada antes como abrigo temporário. É provável que cada ocupação tenha durado pouco mais que alguns dias e fosse separada por longos intervalos, talvez
de um século ou mais, da seguinte. A mais recente fora por camponeses de uma aldeia local a 10 quilômetros de distância - as cinzas de suas fogueiras deram nome
à caverna. Sob esses detritos modernos, havia pedaços de cerâmica e fragmentos de machados - os primeiros feitos por volta de 3.000 a.C., os últimos cerca de mil
anos antes. A cerâmica e os fragmentos de machado foram encontrados em camadas que continham microlitos c raspadores, juntos com um grande número de núcleos e aparas
de lascas. Continuavam até abase do depósito na caverna, datada de 10.000 a.C. E assim a tecnologia da pedra lascada permaneceu sem mudança por todo o Holoceno.
Além do aparecimento de machados e cerâmica, o único indício que Shaw descobriu de mudanças em estilos de vida vinha de um aumento gradual no uso de jaspe negro
para fabricação de instrumentos. Essa pedra é muito melhor para lascar que o quartzo existente no local, mas a fonte mais próxima ficaria pelo menos a 50 quilômetros
da caverna. Só uma minúscula proporção dos instrumentos nos níveis mais baixos era feita de jaspe negro; nas camadas de cima, ele era usado em mais de 30% dos instrumentos.
Isso podia indicar muitas coisas: que as pessoas viajavam distâncias mais longas durante suas caçadas e coleta de plantas, que se faziam viagens especiais para recolher
nódulos de jaspe negro. Sem mais indícios, é difícil saber qual - se alguma - destas explicações é correta.
A única outra descoberta em Iwo Eleru foi um mal preservado túmulo de homem nas camadas de baixo, datando de alguns séculos antes da chegada de Lubbock. Shaw não
conseguiu localizar um poço funerário nem qualquer outro artigo deliberadamente colocado dentro da cova; ele pensa que o corpo foi deixado muito contraído e coberto
apenas com uma fina camada de terra. Os dentes do homem são descritos como "gastos até as gengivas em grandes declives e curvas que deixam apenas pequenas meias-luas
de esmalte em torno da borda". Esta é na verdade uma característica dos restos dentais de caçadores-coletores em ambientes equatoriais, resultado de puxar plantas
fibrosas e cobertas de areia entre os dentes para tirar as partes carnosas comestíveis.
No LGM, Iwo Eleru era cercada pela savana, e a floresta tropical do sul da África se restringia a pequenos refúgios ao longo da costa e nas margens de grandes rios.
De 12.000 a.C. em diante, crescentes chuvas e temperaturas fizeram a floresta espalhar-se muito além de suas fronteiras atuais. Hoje há uma lacuna no sentido oeste-leste,
do longo da floresta do oeste africano, conhecida como a Fenda de Daomé, que fica nas Repúblicas de Togo e Benin. A floresta de cada lado tem uma gama idêntica de
animais e plantas, indicando que um dia foi uma só. Em outra parte, a extensão da floresta no Holoceno Inicial é evidente pelos tocos de espécies da floresta tropical
encontrados dentro de solos enterrados de savana que ficam além dos limites da floresta de hoje.
Em vista da ausência de ossos de animais e grãos de pólen nos depósitos dentro de Iwo Eleru, é quase impossível dizer exatamente quando a caverna foi cercada pela
floresta como é hoje. Os microlitos e raspadores de Iwo Eleru são essencialmente os mesmos que os encontrados em sítios do leste e do sul da África, como a Colina
Lukenya e a Caverna da Cabana Rosa, que se sabe haverem sido em mata aberta ou savana. Shaw sugere que o aparecimento de machados de pedra polida algum tempo após
4.000 a.C. pode assinalar a data em que Iwo Eleru foi cercada pela floresta tropical, exigindo que seus ocupantes modelassem novos instrumentos. Mas apesar disso,
parece improvável que o abrigo tenha ficado em savana aberta até então. Diagramas de pólen do lago Bosumtwi, em Gana, sugerem que um substancial reflorestamento
já começara em 10.000 a.C.
Quando fazia sua viagem da Caverna da Baía dos Cefos a Iwo Eleru, Lubbock revisitou inicialmente localidades pelas quais havia passado na jornada para o sul. Voltou
à Caverna Pomongwe, nas Colinas Matopos do Zimbábue de hoje, onde, em 15.000 a.C., encontrara os dois caçadores fazendo um acampamento de pernoite. Na segunda visita
à caverna, um grupo de mulheres e crianças espalhava-se pelo matagal próximo e parecia coletar bagas. Lubbock parará para ajudar e descobrira que elas catavam lagartas
- bastante mais nutritivas. Os arbustos estavam sobrecarregados, permitindo às mulheres e crianças comerem enquanto trabalhavam e ainda encherem os cestos que traziam.
Os cestos eram levados para a caverna e esvaziados em poços de armazenamento nos fundos, tampados com folhas presas por pedras.
A caverna transformara-se desde a visita anterior de Lubbock 8 mil anos atrás, virando um assentamento-chave para as muitas famílias que caçavam e coletavam regularmente
nas agora bem aguadas Colinas Matopos. Lenha e substanciais montes de capim empilhavam-se contra as paredes para uso como cama, e feixes de flores e ervas secas
pendiam de tarugos. Perto da entrada, uma grande quantidade de brasas refulgentes transformava-se em cinzas, protegidas do vento de fora por um quebra-vento de arbustos.
Parecia uma lareira de uso comunal; em torno das paredes havia outras menores, de aparência privada. O chão estava coberto de tapetes nos quais se exerciam várias
atividades artesanais - pedaços de couro cortado, cascas de ovos de avestruz, agulhas de osso e mós espalhavam-se em volta. As mulheres e crianças sentavam-se agora
nos tapetes, esperando a volta de um grupo de caça. Lubbock olhou dentro dos poços de armazenamento no fundo da caverna. Um era revestido de raízes e continha as
bagas, outro estava vazio, mas fora equipado com um casco de tartaruga, supostamente para manter seco o seu conteúdo.
Da Caverna Pomongwe, Lubbock refez seus passos anteriores dentro do Deserto de Kalahari; a Caverna de Drotsky estava vazia, embora tivesse detritos recentes no chão.
Cinqüenta quilômetros mais ao norte, porém, ele encontrou uma reunião de várias famílias dentro das três impressionantes Colinas Tsodilo - conhecidas hoje como homem,
mulher e criança. As pessoas tinham como base uma caverna de aparência impressionante, com um grande teto acima, dentro da qual secavam várias prateleiras de cascudos,
lembrando a Lubbock o Wadi Kubbaniya em 20.000 a.C. Ele logo descobriu que aquelas pessoas do Kalahari também pegavam peixes que se reproduziam num lago próximo
imediatamente após a inundação anual. Lubbock passou alguns dias pescando, mais uma vez usando as mãos para pegar por baixo dóceis peixes nos rasos, embora seus
novos companheiros preferissem usar lanças com pontas de osso farpadas.
Quase todas as demais atividades cm andamento na caverna eram conhecidas de Lubbock. As mulheres sentavam-se em grupos pequenos ao ar livre, fazendo contas de casca
de ovo de avestruz e moendo várias raízes. Faziam-se microlitos e raspadores, usados para consertar armas de caça e limpar couros, esculpiam-se novas pontas do osso
da perna de um antílope. A única coisa nova para Lubbock - pelo menos na África - era ver a preparação de pigmentos. Torrões de tufo calcário branco e ocre-vermelho
eram reduzidos a um fino pó, depois misturado com água em bacias de carapaça de tartaruga. Figuras humanas e sinais enigmáticos eram pintados nas paredes do que
seria adequadamente conhecido como Gruta das Pinturas Brancas.
Após deixar as Colinas Tsolido, a etapa final da viagem de Lubbock a Iwo Eleru levou-o à recém-expandida floresta tropical da bacia do Congo. Passou grande parte
do tempo num rio ou noutro, após "descolar" uma carona de canoa ou "tomar emprestada" uma embarcação. Gostou de estar de volta nos trópicos, sentindo-se tão esmagado
pela extravagância da natureza como quando viajara no sudeste asiático e no Amazonas. Grandes corredeiras espumavam embaixo de altos picos, com uma beleza igualada
primeiro pelos vividos búceros e martins-pescadores, e depois pelas flores de cor laranja, carmim e puro branco encontradas no chão da floresta.
A vida silvestre, dos hipopótamos e gorilas às moscas e mosquitos dos man-guezais, cercava-o em profusão. As únicas pessoas que viu foram em minúsculos grupos ao
longo das margens dos rios; elas sempre desapareciam na floresta antes que ele pudesse alcançá-las, ou remavam depressa em suas canoas. Além de uma faca com lâmina
de pedra perdida ou jogada fora e um punhado de lascas de nódulos de quartzo numa localidade que hoje conhecemos como Besongo, nas margens do rio Busira, não deixaram
outros traços.
Como em outras partes da África, os arqueólogos se frustraram na bacia do Congo - sobretudo quando se trata de estabelecer por quanto tempo as pessoas podem ter
vivido no coração das florestas tropicais. Embora se descobrissem duas lascas de pedra em 1945, o primeiro comunicado formal de instrumentos de pedra da bacia do
Congo só foi feito quarenta anos depois. O arqueólogo Johannes Preuss efetuou uma pesquisa sistemática da área em 1982-1983, trabalhando com o Museu Nacional do
Zaire, como era chamada então a região. Trabalhou em torno da margem do lago Tomba, imediatamente junto ao próprio rio Congo, e depois nas margens de vários rios
tributários, em busca de restos arqueológicos. As margens dos rios eram particularmente desafiadoras para pesquisar, por serem ou planas e inteiramente cobertas
de vegetação, ou abertas, mas muito inclinadas. Mesmo assim, após pesquisar mais de mil quilômetros de margens, encontrou 19 grupos de artefatos para acrescentar
aos das margens do lago. Besongo, no rio Busira, foi um dos sítios mais produtivos - forneceu 94 lascas. Muitos outros não produziram mais que duas ou três peças.
A única pista sobre a idade das lascas de quartzo, e as poucas peças lascadas e transformadas em instrumentos de trabalho, é que devem ser mais novas que os sedimentos
nos quais foram encontradas. Preuss datou estes de 25.000 a.C. Mas ainda não se sabe se as lascas de quartzo indicam que havia pessoas na bacia do Congo em 20.000,
15.000 ou 5.000 a.C., ou mesmo apenas há alguns séculos. A idade delas faz uma substancial diferença quanto ao tipo de estilo de vida que devemos associar-lhes;
se de 15.000 a.C. ou antes, por exemplo, as pessoas teriam vivido dentro de uma savana, cm vez do habitat de floresta tropical em que as lascas foram encontradas.
Qualquer que seja a sua idade, as pessoas que as jogaram fora viajavam evidentemente longas distâncias, pois a fonte mais próxima da pedra que usavam fica a pelo
menos 200 quilômetros.
Outro conjunto de problemas enfrentou Lawrence Robbins, da Universidade do Estado de Michigan, e seus colegas, quando analisaram as descobertas de suas escavações
na Gruta das Pinturas Brancas, nas Colinas Tsodilo, em Botsuana. O trabalho deles revelara uma admirável profundeza de depósitos, demonstrando que seres humanos
vinham usando a caverna por pelo menos 100 mil anos. O nome vem do grande número de pinturas brancas que cobrem suas paredes, incluindo representações de um elefante,
cobras e figuras a cavalo. As últimas não podem ter muito mais de um século, pois só se viram cavalos no Kalahari em meados da década de 1800 d.C. Tradições locais
atribuíam as pinturas a boxímanos recentes - situação inteiramente diferente das pinturas da Terra de Arnhem, Austrália, e Bhimbetka, Índia, que foram feitas antes
da memória viva e atribuídas a seres sobrenaturais. Mesmo assim, algumas pinturas na Gruta das Pinturas Brancas poderiam ser muito mais antigas que outras; as perto
do chão estão desbotadas e provavelmente foram feitas quando o chão da caverna era bem mais baixo que hoje.
Sob os mais recentes depósitos da caverna, Robbins e seus colegas encontraram uma camada de areia entupida de cascudos, microlitos, fragmentos de casca de ovo de
avestruz, mós e pontas de osso farpadas. Infelizmente, ele não conseguiu datar essa camada com mais precisão do que situá-la entre 21.000 e 3.000 a.C. O problema
é que as grandes quantidades de ossos de peixe sugerem lagos e poços próximos, os últimos dos quais são documentados entre 19.000 e 14.000 a.C. Supõe-se que as Colinas
Tsolido eram inteiramente secas no Holoceno, como são hoje, com as mais próximas possibilidades de pesca a 45 quilômetros de distância, no rio Okavango. Mas datas
de radiocarbono indicam que ocorreu a pesca entre 9.000 e 3.000 a.C., o que combina com o estilo dos artefatos de pedra e de osso.
O dilema de Robbins é exacerbado pela forte probabilidade de os artefatos se terem movido dentro da areia mole do chão da caverna: espinhas de peixe e pedaços de
carvão podem ter sido arrastados para cima ou para baixo por roedores em suas tocas. Isso foi de fato demonstrado por um fragmento de arpão de osso que se descobriu
combinar com outro descoberto 20 centímetros abaixo. É provável que essa profundidade de areia tenha levado 4 mil 500 anos para acumular-se; poderia facilmente ter
sido penetrada por muitos outros fragmentos de ossos e carvão.
A data em que uma série de poços de armazenamento foi feita no fundo da Caverna Pomongwe, nas Colinas Matopos, é também um tanto vaga. Os poços foram escavados no
início da década de 1960 por Cran Cooke, que fez trabalho arqueológico pioneiro no que era então a Rodésia. Ele descobriu grossas camadas de cinzas dentro da área
de entrada, e sapatas de pedra que sugerem um quebra-vento. Os poços continham uma legião de descobertas interessantes: um tinha lagartas queimadas; vários tinham
sido revestidos com capim, outro com um casco de tartaruga; um outro poço continha as raízes de uma planta venenosa (Boophone disticha), supostamente usada para
impedir que insetos atacassem seu conteúdo original. Outro poço fora usado como lareira e ainda continha um pedaço de barbante muito queimado, de fibra de casca
de árvore torcida, preservado porque fora protegido embaixo de uma laje de pedra.
Quando Nicholas Walker, da Universidade de Uppsala, fez um novo estudo da Pomongwe no início da década de 1980, teve acesso às anotações inéditas de Cooke. Havia
várias datas de radiocarbono, que iam de 13.000 a 2.000 a.C. Descobriu-se que nem sempre estavam na ordem certa: uma camada era datada como mais nova que outra acima
dela, ou datas inteiramente diferentes vinham da mesma camada, ou a idade parecia inadequada aos tipos de instrumentos que pretendiam datar. Walker concluiu que
o mais provável era que os poços datassem de cerca de 4.000 a.C., mas os indícios continuam discutíveis. Se ele estiver certo, isso não exclui a possibilidade de
que as lagartas tenham sido colhidas 3 mil anos antes, quando Lubbock fez sua segunda visita à Caverna Pomongwe.
Viajando nas florestas tropicais do centro e oeste da África, Lubbock não pôde avaliar a impressionante mudança sofrida pelos lagos do leste. Quando passara pelas
margens dos lagos Turkana e Victoria no LGM, a água estava em níveis muito abaixo dos de hoje. Muitos lagos menores haviam desaparecido inteiramente. Em 7.000 a.C.,
ocorria exatamente o oposto: durante vários milhares de anos os lagos em muito excediam seus níveis atuais. Assim como as maiores chuvas após 12.000 a.C. possibilitaram
à floresta tropical expandir-se mais do que hoje, também elevaram as bacias de lago do leste da África a níveis sem precedentes.
As novas margens ainda são bastante visíveis como faixas de conchas e sedimentos do lago encalhadas no alto e seco muitos metros acima do atual nível da água. O
lago Turkana ficava 85 metros acima do que fica hoje, dobrando o tamanho de sua corrente e fazendo-a transbordar a bacia e lançar água no sistema do rio Nilo. Numerosas
pequenas bacias foram inteiramente inundadas; muitos dos pequenos lagos hoje encontrados no Vale Rift do sul da Etiópia se juntaram e formaram um imenso lago que
transbordava no rio Awash.
As margens dos lagos evidentemente se revelaram lugares de pesca atraentes, pois se encontram vários sítios contendo microlitos e pontas de osso farpadas em torno
das linhas da margem do lago Turkana. Um desses sítios é Lowa-sera, no Quênia, onde as pontas farpadas têm finos sulcos em torno da base, indicando que linhas foram
um dia amarradas ali. Encontraram-se espinhas de peixe, assim como ossos de crocodilo c hipopótamo.
Após 12.000 a.C., a África tropical teve o mais úmido período de sua história recente, recebendo talvez 50% mais chuva do que hoje. A última causa foi uma mudança
para o norte do sistema de monção, que levou chuva aos trópicos, privando áreas mais ao sul como o Kalahari. Essa situação não ia durar, porém; os níveis dos lagos
caíram e as florestas recuaram para suas posições atuais. O norte da África teve uma história de chuva semelhante, o que deu temporariamente ao Saara uma paisagem
bastante diferente da que conhecemos hoje. É o que Lubbock vai descobrir na penúltima etapa de sua jornada em volta do mundo.

51
Carneiro e Gado no Saara
O desenvolvimento do pastoralismo no norte da África,
9.600 - 5.000 a.C.
A data é 6.800 a.C. - não se passaram mais de duzentos anos desde que Lubbock deixou Iwo Eleru e dirigiu-se para o que é hoje o Deserto do Saara, no norte. Enquanto
andava, a floresta tropical ia ficando rala, e ele encontrou muitos grupos de caçadores-coletores descansando em acampamentos e cavernas. Lubbock levou pouco tempo
para chegar à parte leste do maciço central do Saara, conhecido hoje como Tadrart Acacus. É uma massa de calcário e xisto antigos que se ergue de um mar de areia
em volta para leste e oeste.
Os wadis do Acacus estão secos quando ele chega, mas a região se acha evidentemente bem aguada por chuvas de verão. Em vez de areia vazia, os rochedos e penhascos
são cercados por uma savana de mato baixo, com tamarizes e pés de acácia em torno de lagos e poços rasos. Os lados dos wadis, em forma de penhascos, abrigam numerosas
cavernas e grutas, diante das quais as pessoas fizeram seus acampamentos. Como muitos que Lubbock viu em todo o mundo, há quebra-ventos e pequenos abrigos de palha,
lareiras, mós, montes de lascas de pedra, detritos da fabricação de cestos e limpeza de couros; as mulheres, que carregam cestos de semente derrubadas de espigas
de capim selvagem, foram mais produtivas. A princípio, a vida pouco parece ter mudado desde que Lubbock iniciou sua viagem global em Ohalo. Mas ele logo muda de
idéia quando visita duas cavernas com uma coisa muito diferente a oferecer.
A primeira parece pouco mais que um recesso abaixo de uma extensa plataforma do rochedo. O chão do lado de fora está inteiramente limpo de detritos humanos, e Lubbock
nota que as pessoas parecem passar muito ao largo da entrada da caverna quando transitam pelo wadi. Dentro, o chão é nu: rocha sólida com alguns trechos de areia
soprada pelo vento. Na parede do lado direito há uma pintura - um desfile de figuras esquemáticas ao longo de uma linha ondulada. Pintadas apenas em esboço, têm
cabeças exageradas e nelas usam adereços enfeitados com faixas paralelas e plumas. Todas se voltam para o leste, algumas aparentemente em posição de adoração - curvadas
ou com os braços erguidos e bem abertos. Duas figuras são anômalas; uma é pintada em vermelho forte e a outra está de cabeça para baixo, as pernas muito abertas.
Ao deixar essa caverna, que se tornará conhecida como Lan Muhuggiag, Lubbock não andou mais que alguns quilômetros antes de passar por uma segunda que se sente compelido
a visitar. Tem uma entrada enormemente alta e larga em forma de arco, e é cercada por um acampamento de caçadores-coletores. Há poucos ocupantes, sentados num grupo
e conversando animados sobre algum assunto que Lubbock não entende. Quando passa, ele nota um vaso cheio d'água no chão; a primeira cerâmica que vê desde que deixou
Yarim Teppe, na Mesopotâmia. Pegando-o, corre os dedos sobre as linhas onduladas gravadas em sua superfície.
Ao entrar na segunda caverna, o cheiro de estéreo e urina anuncia a presença de carneiros. Quatro deles estão num aprisco no fundo; não animais domésticos, de lã
branca, mas selvagens; os mesmos, na verdade, que Lubbock viu caçados nas cavernas de Tamar Hat e Haua Fteah no início de suas viagens africanas. Estão sobre camadas
de estéreo pisoteado e endurecido e comem a forragem enfiada entre os fortes galhos que os retêm. São criaturas fortes, impressionantes, mas têm as patas feridas
e ensangüentadas das tentativas de fugir do aprisco. Animais sob controle humano são outra coisa que Lubbock ainda não viu em sua jornada africana.
Quando se volta para deixar a fedorenta caverna, ele nota pinturas de figuras com cabeças redondas semelhantes às que acabou de olhar. Estas estão desbotadas e meio
cobertas de terra. Uan Afuda, como é conhecida a caverna hoje, evidentemente perdeu qualquer significado religioso que algum dia teve. Em lugar dos deuses e espíritos
estão carneiros - seres menos espirituais, porém de vantagens mais práticas em tempos de necessidade.
Uan Afuda foi escavada em 1993-1994 por Mauro Cremaschi e Savino di Lernia, das Universidades de Milão e Roma, que descobriram que tanto a própria caverna quanto
a área imediatamente fora foram usadas como local de acampamento a partir de 9.500 a.C. Vários outros sítios já haviam sido escavados na região, e Uan Afuda a princípio
pareceu encaixar-se num padrão existente de acampamentos-base de caçadores-coletores nos locais de acampamentos no Acacus e de pernoite nas baixadas em volta. Mas
Uan Afuda continha uma descoberta muito intrigante: uma camada de 40 centímetros de espessura de estéreo endurecido no fundo da caverna, datando de 7.000 a.C.
A princípio, julgou-se que isso resultava de carneiros selvagens que se abrigavam na caverna quando não ocupada por seres humanos. Mas após estudar chãos de caverna
onde animais se abrigam no Acacus hoje, di Lernia percebeu que esses animais produzem apenas fezes soltas e esparsas. Comparada com estas, a densa e compacta camada
de estéreo de Uan Afuda não parecia natural. Quando escavada, descobriu-se que continha detritos humanos: pedra lascada, torrões de carvão, ossos esquartejados.
Também continha pólen e fragmentos de uma estreita gama de plantas que inclui cereais selvagens, figos e Echium - uma espécie conhecida por ser tóxica. Essa gama
de plantas não poderia ter-se acumulado por si mesma, e nenhum animal teria escolhido tal dieta.
O animal que deixou o estéreo foi identificado como o carneiro berbere, em parte pelo tamanho e forma de suas bolas de fezes, e em parte porque não se encontraram
outros candidatos. Escavaram-se alguns ossos de outras espécies - chacal, alcélafo, porco-espinho - mas os de carneiro berbere eram de longe os mais numerosos. E
assim di Lernia concluiu que por volta de 7.000 a.C. animais foram encurralados e alimentados dentro da caverna. Plantas tóxicas como Echium podem ter sido incluídas
para atuar como soporífero e manter sob controle animais excitáveis - mais ou menos como os camponeses dão a seus carneiros folhas de salgueiro quando querem acalmá-los.
A administração de carneiros selvagens na Caverna Uan Afuda surgiu como conseqüência de flutuações entre condições relativamente úmidas e secas no Saara central.
Em 12.000 a.C., substanciais chuvas produziram lagos de água doce e abundantes poços e pântanos dentro e em torno do Acacus. Isso atraiu animais e pessoas de volta
ao Saara central após a extrema aridez do LGM; surgiu um estilo de vida baseado na caça ao carneiro berbere, complementado pela colheita de plantas e tubérculos.
As primeiras pinturas dentro de Uan Afuda, Uan Muhug-giag e outras cavernas foram feitas nesse tempo relativamente rico- representações de animais selvagens que
antecederam as figuras de cabeça redonda vistas por Lubbock nas paredes.
Di Lernia acha que a mudança da caça para o encurralamento do carneiro berbere se deveu a um acentuado declínio em sua disponibilidade no agreste. A partir de
8.000 a.C. - talvez um pouco antes - as chuvas começaram a reduzir-se mais uma vez, poços secaram e a quantidade de vegetação caiu. Vários milênios de caça podiam
já ter reduzido seriamente o número de animais selvagens no Acacus e em volta, mas mesmo que não, essa volta da aridez exigiu uma substancial mudança nos estilos
de vida humanos. Em vez de abandonarem a região como um todo - como tinham feito habitantes anteriores - as pessoas começaram a explorar uma gama de recursos mais
ampla e a usar as existentes de novas formas. Encontram-se as primeiras mós, indicando um maior uso de capins selvagens trabalhosos de coletar e preparar. Aparecem
também os primeiros vasos de cerâmica, as superfícies decoradas com linhas em ziguezague e onduladas. Talvez seu objetivo primeiro fosse fazer uso mais eficaz de
suprimentos de água cada vez mais escassos.
A inovação mais importante, porém, foram a captura e o encurralamento do carneiro berbere. Com toda probabilidade o abate só ocorria quando surgia a necessidade,
proporcionando um seguro contra estações de seca e recursos potencialmente escassos. Di Lernia acha que os animais eram de propriedade comum, e, portanto o encurralamento
não teria interferido na ética de partilha dos caçadores-coletores. Mas já surgira, pelo menos, o potencial da propriedade privada de um recurso valioso.
Processo semelhante pode ter levado à domesticação de cabras e carneiros no oeste da Ásia. Mas, como confirmaram estudos genéticos, o carneiro berbere jamais
produziu um primo domesticado. Isso talvez se deva a que a lenta transição de selvagem para doméstico tenha sido detida quando as pessoas de Uan Aluda tiveram de
mudar mais uma vez seu estilo de vida após 7.000 a.C. Essa data assinala a chegada de um novo povo às suas terras, um povo que vinha do leste, trazendo uma cepa
inteiramente domesticada - não carneiro, mas gado.
Antes da chegada dos pastores de gado, os caçadores-coletores do Acacus tinham desenvolvido um estilo de arte típico, envolvendo as figuras de cabeça redonda que
Lubbock viu pintadas nas paredes de suas cavernas. Essa arte tem sido estudada desde a década de 1950 por Fabrizio Mori, da Universidade de Roma, cujo trabalho culminou
com um magnífico corpus publicado em 1998. Registrando trabalhosamente pinturas e gravuras feitas em vários estilos, Mori estabeleceu três períodos sucessivos de
arte antes de 5.000 a.C.: grandes animais, "cabeças redondas" e "pastoril", em que predomina o gado. Traços de pigmentos em mós, representações de carneiro berbere
e a ausência de gado das pinturas "cabeças redondas" levaram-no a acreditar que elas foram feitas entre 9.500 e 7.000 a.C.
Mori acredita que as figuras de cabeça redonda em Uan Muhuggiag estão fazendo culto na hora do amanhecer, e que as linhas onduladas abaixo representam água que corre
no wadi. Há outras pinturas de "cabeças redondas" dentro da caverna, uma das quais inclui duas formas alongadas que parecem cadáveres envoltos prontos para o enterro.
Encontrou-se de fato um túmulo perto da entrada da caverna - um homem deitado de costas com as mãos no rosto como para defender-se." Mori pensa que Uan Muhuggiag,
mantida inteiramente limpa de detritos humanos, foi um lugar de profundo significado religioso para os que caçaram e depois encurralaram carneiro berbere no Acacus.
A data é 6.700 a.C., e Lubbock está no meio de uma multidão que se formou rapidamente nas vizinhanças de Uan Afuda. Todos olham um menino que surgiu no cume de uma
duna próxima. Ele, porém, é de menos interesse que o gado a seu lado. Os animais parecem os que Lubbock viu em Yarim Tepe na Mesopotâmia, com as costas largas e
não as ancas típicas do zebu do sul da Ásia domesticado em Mehrgarh, Embora as pessoas que usam Uan Afuda e outras cavernas há vários anos saibam da disseminação
para oeste dos pastores de gado, é a primeira vez que se vê o novo estilo de vida pastoril no próprio Acacus.
Juntam-se ao menino - cerca de 10 anos de idade - dois garotos mais velhos. Durante vários minutos, os caçadores-coletores e pastores de gado se encaram, antes que
os meninos dêem meia-volta e desapareçam atrás da duna. A multidão se dispersa para fogueiras e cavernas, onde sem dúvida discutirá como deve reagir a esse novo
povo em seu meio. Lubbock já sabe o que tem de fazer: visitar esse novo mundo pastoril africano, que continuará no continente muito depois de sua excursão global
chegar ao fim.
Ele viaja para leste por uma paisagem de baixo matagal e semideserto, pontilhada por rasos lagos sazonais. Logo encontra um local de acampamento abandonado - pequenos
círculos de pedras que foram usadas como lareiras e vários detritos humanos, incluindo ossos de gazela e lebre esquartejadas. Entre esse amontoado há várias pedras
em pé com cordas ainda presas, onde o gado foi amarrado, e com toda probabilidade será de novo.
Sua próxima parada é Nabta, no leste do Saara, um acampamento de pastores de gado localizado a cerca de 2 mil quilômetros de Uan Afuda e não mais de cem do Wadi
Kubbaniya, no vale do Nilo, onde ele antes colheu tubérculos no LGM.
Lubbock chega ao anoitecer de um dia de verão em 6.700 a.C., abrindo caminho por entre arbustos que lhe alcançam os joelhos, e encontra uma dúzia de palhoças circulares
e oblongas reunidas à margem de um lago raso. Uma pequena boiada acha-se no chão dentro de um cercado feito de galhos espinhosos. Um grupo de homens e garotos adolescentes
senta-se diante das choupanas apreciando o pôr-do-sol, as mulheres conversam em pequenos grupos em torno das palhoças e as crianças brincam por perto. Quando Lubbock
se aproxima, acendem-se fogueiras c o crepúsculo de repente vira noite. Ele está tão exausto que entra na palhoça mais próxima e adormece num tapete de palha no
chão.
O mugido do gado ao ser levado da aldeia para pastar acorda-o antes do amanhecer. A choupana onde dormiu revela ser a da cozinha: perto dele uma mulher prepara comida.
É alta e esguia, o corpo envolto num couro bem cortado e os cabelos negros amarrados dentro de um lenço. Ela cuida de um vaso de cerâmica meio enterrado no chão
de areia, entre brasas que aquecem a mistura parecendo mingau. Tudo o que a choupana contém, além dessa lareira e vários tapetes, é uma pequena pilha de lenha e
um feixe de ervas pendurado do teto. A própria choupana é uma construção simples, mas robusta - um círculo de galhos de tamariz enfiados no chão, amarrados no ápice
e cobertos de peles de animais formando uma cúpula. Lubbock vê a mulher servir o mingau em várias cuias de cabaça. Leva-as para fora, onde o marido, mãe e filhos
esperam para comer.
Lubbock passa o dia observando a vida nesse acampamento de pastores. Torna a encontrar a mulher elegante dentro de uma choupana oblonga próxima, que tem nichos para
dormir nos lados e camas feitas de pilhas de finos galhos e couros. Ela está acocorada junto à fogueira, cantando para si mesma enquanto espera que alguns torrões
de carvão comecem a arder dentro de uma lareira. Assim que eles desprendem um forte cheiro aromático, ela joga o carvão em dois baldes feitos de couro esticado em
armações de madeira. Gira-o e despeja-os de volta na lareira, preparando assim os baldes para receber o leite dessa manhã.
Logo após o amanhecer o gado retorna, conduzido por vários rapazes e meninos. São vinte animais ao todo, mas o rebanho dispersa-se em quatro grupos menores, cada
um de uma das famílias do acampamento. É trabalho das jovens levar seus bezerros de um cercado menor e deixar que eles mamem por um breve tempo, antes de as mulheres
irem ordenhar as vacas nos baldes fumigados.
Uma vez feito isso, a família reúne-se num círculo junto à choupana oblonga, cada um com uma cuia feita de meia cabaça. Lubbock senta-se com eles e observa que ninguém
bebe enquanto o marido da mulher não fala, dizendo talvez uma prece ou bênção. Cada pessoa por sua vez pega então um pouco de leite com a cuia e põe-se a beber.
Depois que todos se alimentaram e descansaram, os meninos levam o gado para buscar mais pastos; como é a estação úmida, há bastante suprimento de capim e nutritivas
vagens de acácia por perto. Os bezerros são alimentados com forragem e levados pelas moças para beber à beira d'água, mas fora isso permanecem no acampamento. Lubbock
faz diferente, seguindo atrás da mulher, que leva o leite que sobrou para a sua choupana cozinha e realiza tarefas domésticas. Os pisos de areia das choupanas são
salpicados com água para impedir a poeira; pegam-se lenha e água; colhem-se galhos aromáticos para limpar os baldes de leite, junto com fibras de casca de árvore
e raízes para consertar os tapetes. A velha mãe da mulher ajuda no trabalho e fica de olho nos dois netos pequenos, continuamente na iminência de engatinhar para
a lareira aberta.
Pouco depois, Lubbock se vê à beira do lago observando as crianças a brincar: caçando lagartos, jogando pedras, fazendo os papéis de um dono de rebanho com a esposa.
Todas parecem ter menos de 10 anos, que parece ser quando começam seus papéis de adultos,
Como os meninos maiores e homens não necessários para pastorear o gado partiram para caçar gazela e conferir suas armadilhas, o acampamento torna-se muito silencioso
no calor do meio-dia. As crianças descansam, e os adultos cumprem suas tarefas à sombra. Os velhos fazem cordas e trabalhos em couro, as mulheres traçam os tapetes.
No fim da tarde, Lubbock ajuda com a limpeza e fumigação dos vasos de leite, como preparação para a volta do gado.
Quando o dia chega ao fim, qualquer rapaz disponível vai ao encontro dos pastores e ajuda a trazer o gado para casa. Ordenham-se as vacas de novo, antes que fique
escuro demais para trabalho manual, e depois juntam-se aos homens visitantes de acampamentos próximos, que trazem algumas folhas para mascar. As mulheres e crianças
a princípio ficam juntas ouvindo a conversa dos homens, e depois fazem suas próprias reuniões para mexericar e contar histórias. As pessoas partem uma a uma em busca
de suas camas. Lubbock volta à choupana cozinha, onde torna a dormir no chão.
Se Lubbock teria de fato visto gado domesticado em Nabta e passado um dia assim - semelhante ao de recentes pastores de gado no leste da África - são questões discutíveis.
O sítio foi escavado pela mesma equipe que trabalhou no Wadi Kubbaniya: a Expedição Pré-histórica Combinada chefiada por Fred Wendorf, Angela Close e Romuald Schild.
Descobriram-se vários sítios em torno dos antigos depósitos de lagos de Nabta entre 1974 e 1977. Um desses - chamado H-75-6 - proporcionou coleções particularmente
abundantes de restos de plantas e ossos de animais. Foi mais examinado entre 1990 e 1992, quando se descobriram as choupanas e lareiras em que se baseia a visita
de Lubbock. Também se encontraram poços, sugererindo que as pessoas preferissem ficar em Nabta durante os meses de inverno, quando o lago estaria inteiramente seco.
A descoberta mais importante foram ossos de gado, alguns datados de 9.000 a.C., quando não mais que acampamentos de curta duração eram feitos à beira do lago na
estação chuvosa. Wendorf e seus colegas também encontraram ossos de gado de uma data semelhante em outros sítios no deserto, notadamente Bir Kiseiba, cinqüenta quilômetros
a nordeste de Nabta. Nem a forma nem o tamanho desses ossos excluíam a possibilidade de virem de gado selvagem. Mas Wendorf e colegas julgaram que a paisagem em
redor desses sítios seria demasiado seca para o gado sobreviver. Todos os outros animais representados em suas coleções de ossos - gazela, lebre, cágado e chacal
- eram de tamanho pequeno e tinham-se adaptado às condições do deserto. Ao contrário dessas espécies, o gado precisa tomar água todo dia, e, portanto teria exigido
ajuda humana para sobreviver no leste do Saara.
O significado dessa afirmação é que põe a data da domesticação do gado no norte da África mais cedo que a do oeste da Ásia, que em geral se concorda seja por volta
de 7.500 a.C. Antes da escavação de Nabta e Bir Kiseiba, havia um consenso de que o pastoreio de gado se espalhou do oeste da Ásia para o norte da África por volta
de 7.000 a.C. - da mesma forma como se espalhou para a Europa - seguido um milênio depois por carneiros e cabras domesticados. Não se derrubam facilmente as opiniões
consensuais, e as afirmações de Wendorf logo foram contestadas por vários críticos, todos eles reconhecidos especialistas em domesticação de gado. Eles questionaram
a data e identificação do pequeno número de fragmentos de ossos de "gado" que Wendorf encontrou; perguntaram por que os antílopes do deserto estavam ausentes das
coleções de ossos se as condições eram tão severas, e sugeriram que os poços eram construções recentes acidentalmente escavadas em sítios arqueológicos.
Wendorf e seus colegas responderam a essas críticas, e assim o debate foi paralisado. Só em 1996 apareceram de repente novos indícios, apoiando fortemente a posição
de Wendorf - indícios que vinham do gado moderno. Uma equipe de geneticistas do Trinity College em Dublim, chefiada por Daniel Bradley e Ronan Loftus, comparou o
DNA de gado africano e europeu para identificar quando haviam partilhado pela última vez um ancestral comum. Mediram a extensão da diferença entre as duas amostras
de DNA, medindo com isso o número de mutações ocorridas desde que as duas linhagens divergiram. Usando uma estimativa para a taxa em que surgem novas mutações, pôde-se
propor uma data real para a divergência.
Bradley e Loftus concluíram que as cepas européia e africana vinham evoluindo separadamente por pelo menos 20 mil anos. E assim, o gado doméstico na África deve
ter tido uma origem inteiramente independente do da Europa, que se sabe originário do Oeste da Ásia. Assim, a domesticação africana pode de fato ter ocorrido em
9.000 a.C. Em outras palavras, a interpretação por Wendorf dos ossos de Nabta e Bir Kiseiba foi inteiramente validada pela genética de gado moderno.
É difícil dizer com precisão, porém, onde e exatamente quando apareceu o primeiro gado doméstico africano. Uma possibilidade é que isso tenha ocorrido no vale do
Nilo em alguma data antes de 9.000 a.C. Talvez fosse apenas com o apoio do gado doméstico que as pessoas puderam espalhar-se pelas paisagens mais precárias do leste
do Saara. Embora substancialmente mais úmido que hoje, quaisquer lagos ficavam secos durante o inverno, e a estiagem era freqüente. Infelizmente, há uma escassez
de sítios arqueológicos no vale do Nilo entre 12.000 e 9.000 a.C. Mas como nenhum sítio de antes de 600 a.C. produziu ossos de animais domésticos, parece provável
que a domesticação tenha surgido em outra parte.
Pode ter sido dentro do próprio leste do Saara. Nesse cenário, as pessoas dispersaram-se do vale do Nilo para viver um estilo de vida inteiramente diferente de caçadores-coletores
nas bordas dos lagos do deserto em 10.000 a.C. Pode ter havido gado selvagem para a caça durante períodos de chuva relativamente elevada- embora nenhum desses animais
seja conhecido. Podia-se ter capturado, amarrado e abrigado bezerros como um seguro contra escassezes de alimentos em futuros anos de seca - exatamente da mesma
forma como pessoas no Acacus encurralaram alguns cordeiros selvagens dentro de suas cavernas.
Com o tempo, à medida que o clima se tornava mais seco, as secas de inverno mais freqüentes e a água dos lagos menos confiável, as pessoas se tornariam tão dependentes
de seu gado quanto o gado dos seres humanos para acesso a água e pastagem. As pessoas teriam podido usar o leite e sangue do seu gado, matando-o apenas por carne
quando as condições se tornavam severas. E quando os tempos eram de desespero, o estoque doméstico e um novo estilo de vida de pastoreio poderiam ter evoluído facilmente
dentro do leste do Saara em 9.000 a.C., espalhando-se para dentro - e não para fora - do vale do Nilo por volta de 5.000 a.C. Ali, seu leite, carne e tração acabariam
por se tornar um dos fatores que estearam a civilização egípcia.
Quer o gado domesticado se tenha desenvolvido no vale do Nilo ou no leste do Saara, pastores de gado já ocupavam as cavernas do Acacus em 6.500 a.C. - cerca de duzentos
anos depois da visita de Lubbock. Os caçadores-coletores originais podem ter-se mudado para outra parte ou se misturado com migrantes do leste. Qualquer que seja
o caso, Uan Muhuggiag e outros sítios foram usados como abrigos de gado, seus chãos cobrindo-se de estéreo, as paredes marcadas com uma nova e florescente arte que
substituiu as figuras de cabeça redonda. As representações de gado servem para lembrar-nos que os animais dos pastoralistas eram muito mais que bens econômicos que
forneciam leite, sangue, carne e couro: a vida social e os rituais deles, e alguns diriam sua própria forma de pensar, estavam intimamente interligados com seus
animais.
Em 6.700 a.C., Lubbock ficou em Nabta durante todo o verão e entrando nos meses mais desafiantes do inverno, quando o lago secou e se cavou um poço. Ele ficou sabendo
mais da vida desses primeiros pastores de gado africanos - como cultivavam o painço e o sorgo selvagens, e como as veias do gado eram cortadas com lâminas de pedra
para fornecer nutritivo sangue. Lubbock participou de uma seqüência de cerimônias durante todo o ano, à medida que crianças entravam na puberdade, faziam-se casamentos
e os velhos morriam.
Sempre que ocorriam anos de seca sucessivos, o local de acampamento de Nabta era abandonado pelo vale do Nilo ou lagos sobreviventes em outras partes. Visitantes
chegavam constantemente, assim como as pessoas de Nabta visitavam seus amigos e parentes em outras partes. A população de Nabta aumentou e famílias partiram para
estabelecer novos acampamentos, abrindo aos poucos seu caminho para o Acacus no leste. Por volta de 5.800 a.C., visitantes do norte trouxeram um pequeno rebanho
de carneiros e cabras, alguns dos quais logo estavam sendo pastoreados junto com o gado. Após um prolongado período de seca, a bacia de Nabta foi inteiramente abandonada,
o que ocorreu por volta de 4.000 a.C. Lubbock, porém, já partira mais de cem anos antes - dirigindo-se para o vale do Nilo no norte, onde não apenas as viagens africanas,
mas toda a sua viagem ao redor do mundo chegaria ao fim.

52
Agricultores no vale do Nilo e Além
A chegada da agricultura de cereais ao norte da África,
5.5000 - 4.000 a.C.
O vento esgarçou as nuvens a fios esfarrapados, e uma solitária garça real cruza ociosa o céu vermelhão e laranja, violeta, malva e o mais claro verde. De pé na
borda de um promontório que se ergue acima das baixadas, John Lubbock vê o sol se pôr por trás dos campos de junco do delta do Nilo, num dia de verão de 4.500 a.C.
Faz silêncio, além do fraco coaxar das rãs que vem de um pântano distante. A natureza montou um maravilhoso espetáculo para as últimas horas de Lubbock no mundo
pré-histórico. Ele vira-se e olha um conjunto de moradas às suas costas, imaginando se a cultura vai fazer o mesmo.
Uma única pluma de fumaça sobe em espiral da aldeia, conhecida dos arqueólogos hoje como Merimde. Lubbock aproxima-se e entra numa mistura de cheiros de cozinha:
carne assada, hortelã e pão assando sobre pedras quentes. Segue por um beco que serpeia entre moradas de adobe, de pisos tão rebaixados que seus ombros roçam os
telhados de palha. Ouve murmúrios de vozes e o estalar de chamas; dobrando uma esquina, entra num pátio onde os aldeões se reúnem, pelo menos cem. Usam mantos elegantes,
lenços na cabeça, contas e badulaques. Sentam-se ou ficam de pé em torno de lareiras onde a comida é cozinhada.
Lubbock fica de pé no meio da multidão, que olha em volta em expectativa. E então outro viajante entra no pátio, este visível a todos e acompanhado de um velho local,
talvez seu pai. Assim que aparecem, eleva-se um grito. Todos se levantam e erguem as mãos; fazem-se cumprimentos formulaicos, seguidos de palavras mais informais
de boas-vindas ao há muito esperado hóspede. As crianças precipitam-se para ele e o arrastam para um espaço vazio preparado com almofadas junto a uma fogueira onde
uma cabra inteira foi assada num espeto. Quando ele se senta, os outros fazem o mesmo. Serve-se chá de hortelã. Agora que esse viajante chegou, o banquete e as celebrações
podem começar. Lubbock jamais descobre quem ele é, por onde andou e por que é tão reverenciado. Pega às escondidas um pouco de pão e senta-se num canto, sem ser
visto.
Após deixar os pastores de gado de Nabta, Lubbock seguiu o vale do Nilo rumo ao norte, refazendo a pé a viagem para o sul que fez de canoa em 20.000 a.C. A vida
para muita gente dificilmente mudou desde então; ainda se caçavam gado selvagem e alcéfalo; ainda se pescavam cascudos em grande número sempre que eles se reproduziam;
ainda se colhiam plantas selvagens. Algumas famílias também se dedicavam ao cultivo e administravam pequenos rebanhos de carneiros e cabras. Mas Lubbock permaneceu
à distância de qualquer acampamento ou aldeia até chegar a um grande lago alimentado pelo Nilo, a menos de cinqüenta quilômetros de onde começava o delta. Isso era
no que se chama hoje a Depressão de Fayum, onde se descobriram as mais antigas aldeias agrícolas conhecidas do vale do Nilo. Eram bem diferentes das que Lubbock
vira na Europa e Ásia, pois as safras cultivadas e os animais domesticados continuam sendo meros complementos de uma dieta de caçadores-coletores.
Lubbock passou dois séculos explorando os assentamentos localizados em torno do lago após sua chegada a Fayum em 5.000 a.C. Nenhum deles tinha qualquer morada mais
substancial que choupanas de palha ou fora usado por mais que alguns meses em qualquer época. Seus ocupantes tinham pequenos rebanhos de carneiros, cabras e às vezes
gado, freqüentemente levados para pastar no platô em volta. Semeavam-se cevada e trigo em pequenos tratos na planície aluvial do lago, depois deixados em descaso
enquanto as pessoas caçavam e pescavam em outras partes, em Fayum e além. Imediatamente após as chuvas de verão, conseguiam-se cascudos em grandes quantidades em
pântanos e poços que apareciam em torno do lago. Quando chegava o inverno, as pessoas voltavam as atenções para as aves silvestres, caçando-as e pondo armadilhas
para elas dentro do pântano.
Cultivavam-se cereais, e colhiam-se muitas plantas selvagens - muitas vezes em tais quantidades que se podiam fazer estoques para o caso de dificuldades mais adiante
no ano. Em certa ocasião, Lubbock ajudou a encher vinte grandes cestos revestidos com grãos de cereais e outras sementes. Esses cestos ficavam em colinas pequenas,
mas destacadas, a certa distância do assentamento à beira do lago onde as pessoas tinham base num conjunto de choupanas simples. Lubbock continuou sem saber se o
cume era usado para proteger os depósitos da umidade e o risco de inundação do lago, ou para escondê-los dos muitos visitantes que vinham a Fayum em viagens Nilo
acima e abaixo.
Em 4.800 a.C., Lubbock sentara-se na margem do lago e pensara na viagem em torno do mundo, desde Ohalo, passando por muitos locais de acampamento, cavernas, aldeias
e cidades, enquanto viajava por 15.000 anos de história humana dentro de cada continente do mundo. Agora restava para visitar o único assentamento de Merimde no
delta do Nilo. Não ficava mais de 100 quilômetros ao norte e seria lá que terminariam as suas viagens.
A Depressão de Fayum foi mais intensamente explorada em busca de assentamentos do Neolítico que qualquer outra região do norte da África. Hoje, contém um pequeno
lago sujo e salino, que cobre cerca de 200 quilômetros quadrados. Quando o historiador grego Heródoto o visitou em 450 a.C., maravilhou-se com o lago, que devia
ter uma extensão 10 vezes maior; em 5.000 a.C., cobria mais de 20 mil quilômetros quadrados. Essas margens antigas foram mapeadas pela primeira vez no século XIX,
e depois pesquisadas em busca de sítios arqueológicos na década de 1920 pelas arqueólogas de Cambridge Gertrud Caton-Thompson e Elizabeth Gardner. Uma das primeiras
descobertas delas foi um monturo baixo e alongado que chamaram Kom W. Revelou ser um acúmulo de detritos de um estilo de vida misto de caçador-coletor e agricultor
- carvão, ossos de animais, espinhas de peixe, cacos de vasos, artefatos de pedra e assim por diante. Em volta da borda, buracos foram cavados no leito de pedra
para uso como lugares de cozinhar; alguns ainda tinham panelas contendo peixe e outros ossos. Os sinais de arquitetura estavam surpreendentemente ausentes - apenas
simples abrigos devem ter sido usados enquanto o monturo se acumulava em muitas visitas breves à beira do lago.
Kom W, um sítio ligeiramente menor, foi descoberto a pouca distância. Foi apenas a menos de um quilômetro dali que Gertrud e Elizabeth fizeram sua espetacular
descoberta: 56 silos de grãos, escavados num pequeno cume, nove deles ainda contendo grãos e outras sementes. Outros 109 silos foram descobertos numa aldeia vizinha,
um dos quais, continha grão queimado datando de pouco antes de 5.000 a. C.
Esses silos sugerem a forma como pastoralistas recentes do leste da África, como o povo Kel Tamasheq de Mali, armazenam as sementes de capim selvagem. Fazem
isso como um seguro contra escassez futura. O grão é secado e armazenado em sacos de couro ou buracos na areia. Se a safra seguinte proporciona grão suficiente,
os depósitos são substituídos ou reabastecidos. De outro modo, é mantido e dizem que continua comestível por pelo menos dois ou três anos.
Após o trabalho de Gertrud e Elizabeth, vários projetos arqueológicos foram feitos dentro da Depressão de Fayum por equipes britânicas, americanas e egípcias - incluindo
uma pesquisa da Expedição Pré-histórica Combinada. Em conseqüência, descobriram-se muitos novos sítios, incluindo densos conjuntos de lareiras à beira do lago onde
antes se secavam os peixes. Mas não se encontraram mais silos, nem qualquer indício de arquitetura mais substancial que choupanas de palha. A agricultura continuara
evidentemente uma atividade marginal - os recursos selvagens em Fayum parecem ter sido tão abundantes e diversos que se podia ignorar em grande parte o trabalho
duro de cuidar de plantas e animais domésticos.
A mais antiga aldeia desse tipo que conhecemos do oeste da Ásia, com casas de adobe e pátios, encontra-se em Merimde. Esse sítio localiza-se 45 quilômetros a noroeste
do Cairo, na borda oeste do delta do Nilo, e ergue-se como um pequeno tell sobre um esporão do deserto que se projeta na planície aluvial. Descoberto e explorado
na década de 1930, Merimde foi mais estudado entre 1978 e 1988, revelando quase mil anos de ocupação entre 5.000 e 4.100 a.C. Começara a vida como acampamento de
caçadores-coletores, e suas primeiras fases sugerem um estilo de vida muito parecido com o que ocorria em torno do lago Fayum, com substancial volume de pesca, caça
e coleta de plantas selvagens. Usava-se o cultivo de cereais e os animais domésticos como simples complemento da dieta. Mas ao evoluir para uma aldeia agrícola,
seu conjunto de simples cabanas cobertas de couro acabou sendo substituído por moradas em forma de domo, construídas com blocos de barro misturado com palha. Construíram-se
celeiros, e a vida em Merimde foi estruturada pelo cultivo do grão e a administração de rebanhos.
Ao contrário do gado, a fonte última de carneiro c cabra, trigo e cevada em Merimde, Fayum e Nabta era o oeste da Ásia. Não há sinais de que fossem domesticados
independentemente no vale do Nilo, onde aparecem pela primeira vez muito depois de a agricultura ter-se estabelecido no vale do Jordão e além. Ainda não está claro
exatamente como carneiros, cabras e cereais se espalharam pela África. Estações áridas podem ter expulsado os pastoralistas dos desertos de Negev e do Sinai para
o vale do Nilo. Escavações em Merimde c Fayum recuperaram muitos tipos de instrumentos que são encontrados no oeste da Ásia, como pontas de flecha tipicamente serrilhadas
e cabeças de maça em forma de pêra. As artes de fiar e tecer também parecem ter-se espalhado a partir do leste.
É provável que a migração de pessoas e o comércio tenham tido um papel na chegada de aldeias neolílicas de estilo asiático ao vale do Nilo, como fez na disseminação
da agricultura na Europa. Mas ainda não está claro por que as cabras, carneiros e cereais demoraram tanto a chegar. Em 5.000 a.C., substanciais cidadezinhas agrícolas
já prosperavam na Europa e no sul da Ásia, para onde o carneiro, a cabra c os cereais se tinham espalhado pelo menos dois mil anos antes. Isso exigira que migrantes
ou comerciantes viajassem distâncias muito maiores que as necessárias para alcançar o delta do Nilo partindo do vale do Jordão. O deserto do Sinai pode ter sido
uma barreira, mas esta dificilmente seria mais severa que o planalto iraniano que era preciso atravessar para a agricultura chegar ao sul da Ásia.
Uma vez presentes no norte da África, assentamentos agrícolas semelhantes ao de Merimde logo se espalharam pelo vale do Nilo. Formavam pequenas comunidades dispersas
de choupanas, poços de armazenamento e cercados de animais. Foram necessários outros mil anos para que surgissem assentamentos mais substanciais, com casas de adobe.
Logo após 3.500 a.C., encontram-se os primeiros traços de canais - o início de um sistema de irrigação que seria a chave do cultivo de safras, no qual se basearia
a civilização egípcia ao surgir nos dois mil anos seguintes.
O impacto do cultivo de cereais e do pastoralismo na história africana está além do alcance cronológico deste livro. Basta dizer que a partir de 3.500 a.C. o norte
da África se tornou severamente árido, como permanece até hoje. Os pastoralistas foram expulsos do Saara e seu estilo de vida aos poucos espalhou-se para o sul,
à medida que as pessoas migravam para as paisagens de savana do oeste, leste e sul da África. Os caçadores-coletores indígenas provavelmente desempenharam um papel
adquirindo eles mesmos gado, carneiro e cabra - talvez pelo roubo de animais ou ganho pelo comércio ou riqueza de noivos quando se acertavam casamentos.
Em 3.000 a.C., o pastoralismo do gado estava presente nas bacias de rios do oeste africano e nas savanas em torno da Colina Lukenya; foram necessários pelo menos
mais três mil anos para chegar ao Cabo. Essa dispersão para o sul foi uma coisa muito mais desafiadora que a disseminação para oeste das economias agrícolas pela
Europa vários milhares de anos antes. Os pastores africanos tinham de enfrentar paisagens quentes e devastadas por secas, uma multidão de predadores e - o pior de
tudo - uma legião de parasitas e doenças endêmicas.
Um aspecto final da agricultura africana que merece comentário é o cultivo de plantas indígenas, algumas das quais evoluíram para formas domesticadas. Muitas destas
são conhecidas de tempos históricos, incluindo melancia, painço, sorgo de regiões de savana, junto com a noz de cola, óleo de palmeira e vigna das margens da floresta.
Mas quase não temos idéia de quando começou o cultivo dessas plantas. Como explicou Jack Harlan, reconhecida autoridade em safras nativas africanas: "A agricultura
africana pode ser tão antiga quanto qualquer outra, ou mais jovem que a maioria."
Um véu de cheirosa fumaça paira sobre o pátio em Merimde onde o banquete chegou ao fim. Algumas pessoas já dormem em torno das fogueiras, outras falam baixo tomando
chá. Lubbock senta-se em seu canto e observa o outro visitante de Merimde levantar-se para despedir-se. Conhece o procedimento correto: curva a cabeça, abraça e
beija os anfitriões, diz as palavras apropriadas. E então deixa o pátio, acompanhado pelo velho com quem chegou.
Também é hora de Lubbock partir. Sem ser visto por ninguém, também ele curva a cabeça agradecendo, não apenas ao povo de Merimda, mas a todos aqueles que viu no
mundo pré-histórico. E também deixa o pátio, andando sozinho para dentro da escuridão.

Epílogo: "A Bênção da Civilização"
Impactos passados, presentes e futuros do aquecimento global na história humana
Em cada continente que visitou, John Lubbock entrou na história do mundo em 20.000 a.C. e saiu 15 mil anos depois. Suas viagens possibilitaram-me escrever mais uma
narrativa sobre vidas humanas que um catálogo de descobertas arqueológicas. Quando começaram, era uma época de igualdade econômica global, quando todos viviam como
caçadores-coletores num mundo de extensas camadas de gelo, tundra e deserto. No fim, muitos já viviam como camponeses. Algumas pessoas cultivavam trigo e cevadas,
outras arroz, taioba ou abóbora. Alguns viviam de pastorear animais, algumas do comercio e outras de artesanato. Um mundo de acampamentos temporários fora substituído
por outro de aldeias e cidadezinhas, um mundo com mamutes transformara-se noutro de carneiros e gado domesticado. Estabelecera-se o caminho para as imensas disparidades
globais de riqueza com que convivemos hoje.
Muitos caçadores-coletores sobreviveram, mas seu destino estava selado quando começou a agricultora. Os novos agricultores, ávidos por terra c comércio, continuaram
a perturbar a vida dos caçadores-coletores. Foram seguidos por caudilhos e depois estados-nação que construíram impérios em todos os cantos do mundo. Alguns caçadores-coletores
sobreviveram até tempos recentes vivendo nas partes aonde os agricultores não podiam ir: os inuit, os boxímanos do Kalahari c os aborígines do deserto. Mas nem essas
comunidades existem mais, aniquiladas efetivamente pelo século XX.
Não é coincidência o fato de a história humana ter atingido um ponto decisivo num período de aquecimento global. Todas as comunidades enfrentaram o impacto da mudança
ambiental - súbitas enchentes catastróficas, gradual perda de terras costeiras, ausência de rebanhos migratórios, disseminação de densa e muitas vezes improdutiva
floresta. E junto com os problemas, todas as comunidades se viram diante de novas oportunidades de desenvolver, descobrir, explorar e colonizar.
As conseqüências foram diferentes em cada continente. O oeste da Ásia, por exemplo, por acaso tinha uma série de plantas selvagens adequadas ao cultivo. A América
do Norte tinha animais selvagens susceptíveis de extinção assim que a caça humana se combinou com a mudança de clima. A África era tão bem dotada de plantas selvagens
comestíveis que esse cultivo não tinha nem mesmo começado em 5.000 a.C. A Austrália igualmente. A Europa não tinha potencial próprio de cultiváveis, mas tinha os
solos e climas em que prosperariam os cereais e animais domesticados em outras partes. A América do Sul tinha a vicunha e o norte da África o gado selvagem, o México
a abóbora e o toesinlo, o Yangtzé o arroz selvagem.
Continentes, e regiões dentro de continentes, também tiveram suas histórias ambientais particulares, definidas por seu tamanho, forma e lugar no mundo. As pessoas
que viviam na Europa e no oeste da Ásia tiveram o percurso mais acidentado de mudança ambiental. Os que viviam no deserto central australiano e na floresta amazônica,
o menos. O tipo de florestas que se espalhou no norte da Europa favoreceu o assentamento humano, e o da Tasmânia causou o abandono de seus vales. O derretimento
das camadas de gelo no norte, causaram a perda de planícies costeiras em todo o mundo, com exceção do extremo norte, onde ocorreu exatamente o oposto quando a terra,
livre do fardo de gelo, ergueu-se mais depressa que o mar.
Embora a história de qualquer região fosse condicionada pelo tipo de recursos selvagens que possuía e o caráter específico de sua mudança ambiental, nenhum desses
fatores determinou os fatos históricos que ocorreram. As pessoas sempre tinham opções e tomavam decisões de um dia para o outro, embora com pouca idéia ou conhecimento
das conseqüências que se seguiriam. Ninguém que plantava sementes selvagens nas vizinhanças de Jericó ou Pengtoushan, cuidava de abóboras perto de Guilá Naquitz
ou cavava leiras no Pântano de Kuk previu o tipo de mundo que a agricultura ia criar.
A história humana surgiu tanto de acasos quanto de desígnios, e os caminhos da mudança histórica foram muitos e variados. No oeste da Ásia, os caçadores-coletores
assentaram-se para viver em aldeias permanentes antes de começarem a cultivar, como fizeram no Japão e na planície do Ganges. Por outro lado, o cultivo no México
e Nova Guiné levou a plantas domesticadas e agricultura muito antes de aparecer o assentamento permanente. No norte da África, o gado veio antes das safras, como
a vicunha veio antes da quinoa nos Andes. No Japão e no Saara, a invenção da cerâmica antecedeu o começo da agricultura, ao passo que ocorreu simultaneamente com
a origem do cultivo de arroz na China; sua invenção no oeste da Ásia se deu muito depois que tinham começado a florescer cidades agrícolas.
Quem poderia ter previsto o curso que tomaria a história? Em 20.000 a.C., o sudoeste da Europa estabeleceu o ritmo cultural com sua arte da era do gelo, em 8.000
a.C. era uma região inteiramente indistinta. Em 7.500 a.C., o oeste da Ásia tinha cidades que abrigavam mais de mil pessoas, mas dentro de um milênio pastoralistas
itinerantes faziam acampamentos dentro de suas ruínas. Quem teria imaginado que as Américas, último continente a ser colonizado, o último a iniciar uma história
própria, se tornaria a mais poderosa nação no planeta Terra hoje, com sua cultura impregnando cada canto do mundo? Ou que a primeira civilização teria surgido na
Mesopotâmia? Ou que a Austrália continuaria sendo uma terra de caçadores-coletores quando a agricultura florescia na Nova Guiné?
Embora a história de cada continente fosse única, e exigisse sua própria mistura especifica de narrativa e argumentação causal para explicá-la, algumas forças
de mudança histórica foram comuns a todos. O aquecimento global foi uma; o crescimento da população humana, outra; isso ocorreu em todo o mundo quando as pessoas
se libertaram da alta mortalidade imposta pelas secas e o frio da era do gelo e exigiram novas formas de sociedade independente de mudança ambiental.
Um terceiro fator comum foi a identidade de espécie. Todas as pessoas, em todos os continentes, em 20.000 a.C., eram membros do Homo sapiens, uma espécie única e
recém-evoluída de humanidade. Como tal, partilhavam os mesmos impulsos biológicos e os meios de realizá-los - um misto de cooperação e competição, partilha e egoísmo,
virtude e violência. Todos tinham um tipo de mente peculiar, de insaciável curiosidade e recém-descoberta criatividade. Essa cabeça - inteiramente diferente da de
qualquer outro ancestral humano - possibilitou às pessoas colonizarem, inventarem, resolverem problemas e criarem novas crenças religiosas e estilos de arte. Sem
ela, não haveria história humana, mas apenas um contínuo ciclo de adaptação e readaptação à mudança ambiental que começara milhões de anos atrás, quando evoluiu
o nosso genus. Em vez disso, todos esses fatores comuns se combinaram, engajando-se com as condições únicas de cada continente e uma sucessão de contingências e
latos históricos, para criar um mundo que incluía agricultores, cidades, artesãos e comerciantes. Na verdade, em 5.000 a.C. restava muito pouco para a história posterior
fazer; todo o trabalho de base do mundo moderno já fora concluído. A história tinha simplesmente de desenvolver-se até chegar aos dias atuais.
John Lubbock senta-se no topo de uma colina no sul da Inglaterra, perto de onde eu vivo e trabalho. E um dia de verão cm 2003. Ele lê o capítulo final de Tempos
pré-históricos e encontra seu xará vitoriano exaltando as "bênçãos da civilização" sobre a vida selvagem, "escrava de suas próprias necessidades, suas próprias paixões...",
uma vida onde a pessoa não "pode depender de ninguém, e ninguém pode depender dela". Como mostrou o meu livro, o desenvolvimento da moderna arqueologia provou que
tais opiniões estão inteiramente erradas. Os caçadores-coletores descritos em Tempos pré-históricos não eram mais selvagens esfomeados e moralmente decrépitos descritos
no livro que os Nobres Selvagens propostos por Jean-Jacques Rousseau.
Há dois motivos principais para o sucesso da arqueologia na denúncia de tais opiniões e revelação da verdadeira natureza dos tempos pré-históricos. Primeiro e antes
de mais nada está o compromisso de seus praticantes, dos distintos acadêmicos que citei dentro de meu texto aos milhares de voluntários que cavaram buracos e lavaram
objetos descobertos desde o início da disciplina. Segundo, e não muito atrás, vem o uso da ciência: aquele que nos permite identificar algodão dentro de uma conta
de cobre corroído, reconstituir o padrão de migrações pré-históricas a partir dos genes das pessoas vivas hoje, especificar temperaturas da era do gelo com asas
de besouros e - mais especialmente - estabelecer a ordem dos fatos com o emprego de datação por radiocarbono.
O John Lubbock vitoriano valorizou a ciência, não apenas por seu papel na nascente disciplina da arqueologia que ele próprio ajudou a criar, mas como uma das grandes
"bênçãos da civilização" que a agricultura e a indústria tinham entregue à humanidade. Prodigalizou louvores ao telescópio e ao microscópio como tendo melhorado
o olho humano e oferecido "novas fontes de interesse" para as mentes inquiridoras. Elogiou a imprensa, que "põe todos os que assim o escolhem em comunhão com...
as idéias de um Shakespeare ou Tennyson, as descobertas de um Newton ou um Darwin... propriedade comum da humanidade". Citou o clorofórmio para ilustrar como o progresso
da ciência diminuiu o grau de sofrimento humano.
Não temos motivo para contestar sua afirmação - a idéia de viver permanentemente num mundo de caçadores-coletores, sem livros nem remédios, é bastante apavorante.
Mas quando se está num topo de colina no sul da Inglaterra e se vê a devastada paisagem que a agricultura moderna produziu, deve-se ser menos confiante que o John
Lubbock vitoriano. Em 12.500 a.C., o sul da Inglaterra era uma tundra da era do gelo freqüentada pela rena, a coruja da neve e a lebre ártica; em 8.000 a.C., estava
coberta de exuberantes florestas dentro da qual pastava o veado-vermelho e o javali fuçava o chão da mata. Mesmo em 1950, era uma paisagem de rica textura de bosques
e campos, de poços, trilhas e pastos. Mas em 2003, há vastos pedaços da Inglaterra onde raramente existe uma árvore ou arbusto, dos quais os animais e pássaros foram
quase inteiramente expulsos pela indústria da agricultura moderna. Há muito poucas colinas de onde não se pode ouvir o tráfego embaixo e os aviões acima.
Seu ar poluído nos faz pensar na circularidade da história. Agricultura e indústria foram produtos de uma história ocasionada pelo aquecimento global. Agora são
elas próprias a causa de um novo aquecimento global que já teve considerável impacto sobre o mundo e vai condicionar a história futura da humanidade. O desflorestamento
em massa e a queima de combustíveis fósseis aumentaram o nível dos gases de estufa e o planeta Terra se torna mais quente do que pretende a natureza. Nas últimas
décadas, geleiras em todos os continentes recuaram, a capa de neve no Hemisfério Norte reduziu-se de forma impressionante, e a plataforma de gelo da Antártica está
à beira do colapso.
Como nos tempos pré-históricos, o mundo natural passa por uma mudança. As datas de florescimento de muitas plantas já se adiantaram, os pássaros se reproduzem mais
cedo e mudam de habitat. Mais uma vez, os insetos estiveram entre os primeiros a reagir: nuvens de afídios chegam mais cedo ao Reino Unido, e encontram-se borboletas
na América do Norte e Grã-Bretanha em mais altas altitudes e mais ao norte.
Prevê-se que o próximo século de aquecimento global causado pelo homem será bem menos extremo que o que ocorreu em 9.600 a.C. No fim do Jovem Dryas, a temperatura
média global subira 7°C em cinqüenta anos, enquanto o aumento previsto para os próximos cem anos é de menos de 3°C; o fim da última era do gelo levou a um aumento
de 120 metros no nível do mar, enquanto o previsto para os próximos cinqüenta anos são uns reles 32 centímetros no máximo, subindo para 88 centímetros em 2.100 d.C.
Contudo, embora o futuro aquecimento global possa ser menos extremo que o de 9.600 a.C., o mundo moderno se acha num estado muito mais frágil, devido à poluição
ambiental e às necessidades de recursos de seis bilhões de pessoas. Em conseqüência, as ameaças à comunidade humana e aos ecossistemas naturais são muito mais severas
que as dos tempos pré-históricos. Quando as vastas regiões baixas do mundo da era do gelo foram inundadas, muitas eram desabitadas; os assentamentos que existiam
- como a cidade de Atlit-Yam de 7.000 a.C. na costa israelense - abrigavam algumas centenas de pessoas no máximo. Hoje, 120 milhões de pessoas vivem nas regiões
do delta de Bangladesh, 6 milhões delas em terra a menos de um metro acima do atual nível do mar, e 50 bilhões 3 metros abaixo. A elevação do nível do mar será acompanhada
por devastadoras tempestades e penetração de sal em seus suprimentos de água doce.
Quando o aquecimento global tornou inabitáveis os vales da Tasmânia após 14.000 a.C. e o Deserto do Saara após 5.000 a.C., o povo desses lugares procurou outros
lugares para viver - o mundo ainda se achava bastante vazio de assentamento humano. Mas aonde irão as novas populações deslocadas? As das regiões de deltas inundadas;
as de baixas ilhas inundadas nos oceanos Pacífico e Índico; as da África subsaariana, onde a freqüência e intensidade da seca se tornarão demasiado severas para
ser aliviadas por qualquer volume de ajuda internacional?
O aquecimento global que levou ao fim a era do gelo criou localidades de recursos abundantes que as pessoas reclamaram para si e estavam dispostas a lutar por elas,
como no vale do Nilo em 14.000 a.C. Esses conflitos eram coisas triviais comparados com os que conhecemos hoje; mas nosso mundo moderno parece destinado a tornar-se
ainda mais violento, à medida que se sentirem os impactos de um novo aquecimento global.
A escassez de água doce se tornará um importante fator de conflito. As reservas já se acham sob pressão, devido às demandas da agricultura moderna e das necessidades
humanas diárias. Tais pressões se tornarão sérias com as previstas reduções de chuvas e maior evaporação nos pontos de coleta-chave do mundo. A água eclipsará a
Terra, a política e até a religião como motivo de disputa entre os estados do Oriente Médio - um fato que já começou. Além disso, é provável que o aquecimento global
exacerbe os extremos existentes de riqueza e pobreza no mundo: prevê-se que aumentará a produtividade agrícola nos países desenvolvidos, e o contrário ocorrerá no
mundo em desenvolvimento. O terrorismo internacional deve prosperar.
É irônico que o continente que se tornou habitável em conseqüência do aquecimento global após o LGM seja agora o que mais faz para tornar vastas áreas do mundo inabitáveis
para outros com sua excessiva contribuição à causa de um novo aquecimento global: a América do Norte é a principal poluidora de nossos céus.
John Lubbock olha ao longe o tráfego no campo do sul da Inglaterra. É sombrio. Grande parte dos bosques de carvalho do Holoceno Inicial já foi varrida nos tempos
pré-históricos. Mas essa região só tomou a aparência agora desolada nos últimos cinqüenta anos: deixou-se que poços virassem lama e depois secassem, capões de mato
foram removidos, sebes reduzidas, pequenas fazendas substituídas por empresas tipo fábrica que se especializaram em semear trigo e colher subsídios. A paisagem de
pradaria de hoje sofre de erosão do solo e foi poluída pelo excesso de fertilizantes e pesticidas. Como acontece com tão grande parte de outras terras agrícolas
do mundo ocidental, produz muito mais alimentos do que precisamos. E, no entanto, vivemos num mundo chagado pela fome. Oitocentos milhões de pessoas vivem à beira
da inanição - número que se prevê venha a aumentar com o novo aquecimento global. Nos próximos cem anos, é provável que mais 80 milhões de pessoas estejam famintas
e desnutridas devido à mudança ambiental. Alguns acreditam que a única maneira de acabar com a fome mundial é modificando geneticamente as safras existentes para
aumentar sua produção, melhorar sua resistência a pragas c torná-las tolerantes a solos salgados.
A modificação genética de plantas induzida pelo homem surgiu primeiro das tentativas de caçadores-coletores no oeste da Ásia de enfrentar as secas do Jovem Dryas
e alimentar os agrupamentos em Göbekli Tepe e outras partes. O cultivo por eles de cereais selvagens criou inconscientemente mudança genética e produziu o trigo
e a cevada domesticados que cultivamos hoje. A genética de outras espécies também foi mudada pela ação humana, criando abóbora, milho e feijões, arroz, quinua, taioba
c batata domesticados. Essas plantas sustentaram o aumento da população humana no Holoceno Inicial, e agora, pela reprodução e administração de safras, sustentam
nossa vasta população global. Porém mais dois bilhões vão precisar alimentar-se no próximo quarto de século.
Alguns cientistas acreditam que a engenharia genética de plantas em nível molecular - inserção deliberada de DNA de uma espécie em outra - é simplesmente o próximo
passo nessa história de manipulação de plantas por necessidade humana. Como novas variantes genéticas solucionaram uma crise de alimentos causada por mudança climática
anterior, afirmam, outras variantes genéticas podem fazer o mesmo por nós hoje.
Pode ser, mas a arqueologia nos deu outra lição, talvez muito mais importante, do passado. Assim que a agricultura começou, os excedentes resultantes das novas
variantes genéticas de alta produtividade passaram para um controle centralizado, como é evidente nas construções de Jerf el Ahmar em 9.300 a.C., Beidha em 8.200
a.C. e Kom K em 5.000 a.C. Desde o início mesmo da agricultura, a comida se tornou uma mercadoria, uma fonte de riqueza e poder para os que controlavam sua distribuição.
E assim deve-se desconfiar que é provável que as desigualdades já existentes de suprimento de comida global aumentem com a criação de ainda mais variantes genéticas,
com produções ainda mais altas. Os que guardavam os silos de grãos nos tempos pré-históricos estão se reencarnando como empresas de biotecnologia que patenteiam
plantas e distribuem suas sementes.
A paisagem conspurcada do sul da Inglaterra, e a de muitas outras regiões do mundo moderno, colocam outra questão sobre biotecnologia. Como tem sido evidente por
esta história, quando os arqueólogos estudam um ambiente passado invariavelmente encontram uma diversidade muito maior de plantas e animais que as conhecidas hoje
no mesmo lugar. A Hora da estepe de floresta nas vizinhanças de Ohalo em 20.000 a.C. e a fauna da América do Norte em 15.000 a.C. são apenas os exemplos mais óbvios
de um mundo natural muito mais rico e mais variado nos tempos pré-históricos. A biodiversidade foi reduzida pela mudança de clima - o crescente zoneamento de tipos
de vegetação nas latitudes norte favoreceu os poucos especialistas sobre os generalistas. Mas as conseqüências da agricultura para a biodiversidade foram muito mais
severas, como se pode avaliar imaginando a devastada paisagem em torno de Ain Ghazal em 6.500 a.C. ou olhando a de qualquer região intensamente cultivada do mundo
hoje.
Irá o cultivo de novas variantes genéticas, plantas artilicialmente resistentes a pragas e doenças, levar a perda da biodiversidade a novos extremos? Irão essas
plantas invadir e atropelar as comunidades de espécies selvagens que ainda sobrevivem? Irão os refugiados restantes do mundo natural, sobretudo as preciosas terras
úmidas e pântanos salgados, também ser transformados em terra agrícola, como aconteceu com as florestas do sul da Inglaterra quando as pessoas tiveram as primeiras
variantes genéticas para semear?
Não há respostas. A biotecnologia pode ser a maior bênção que temos e levar ao fim a fome mundial; safras resistentes à doença, geneticamente modificadas, podem
proteger a biodiversidade pela redução da necessidade de borritos químicos. A necessidade comum de água poderia reduzir as facções em guerra no Oriente Médio. A
extensão e impactos previstos do aquecimento global podem estar inteiramente errados. Nossos políticos podem criar a vontade e os meios de conter a poluição, distribuir
os recursos com justiça por todo o mundo, proporcionar novas casas para pessoas deslocadas e preservar o mundo natural. Podem fazer tudo isso. Mas provavelmente
não farão.
Assim, que dizer da "bênção da civilização"? São os prazeres do microscópio, as idéias de Darwin, a poesia de Shakespeare e os avanços da ciência médica recompensa
suficiente para a degradação ambiental, o conflito social e o sofrimento humano que em última análise derivam da origem da agricultura 100 mil anos atrás? Teria
sido melhor se continuássemos como caçadores-coletores da Idade da Pedra, renunciando ao desenvolvimento da literatura e da ciência? A resposta está em nossas mãos;
depende do que prefiramos fazer nos próximos cem anos de aquecimento global - nosso futuro, o do planeta Terra, continua em nossas mãos. Tudo o que sabemos com certeza
é que no fim do século XXI o mundo será bastante diferente do que é hoje - talvez tão diferente quanto o mundo de 5.000 a.C. foi do LGM.
John Lubbock vira a página e lê o parágrafo final de Tempos pré-históricos. Encontra palavras que continuam inteiramente adequadas para hoje:
Mesmo em nosso próprio tempo, podemos esperar ver alguma melhora, mas a mente abnegada encontrará sua maior satisfação na crença em que, qualquer que seja o nosso
caso, nossos descendentes compreenderão muitas coisas ocultas de nós, apreciarão melhor o belo mundo em que vivemos, evitarão muito do sofrimento a que estamos sujeitos,
desfrutarão de muitas bênçãos das quais ainda não somos dignos, e escaparão de muitas das tentações que deploramos, mas às quais não podemos resistir inteiramente.
John Lubbock, Prehistoric Times, 1865, p. 492

 

 

                                                   Steven Mithen         

 

 

 

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