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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Desassossego / Corin Tellado
Desassossego / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Desassossego

 

Isabel é uma jovem órfã que trabalha como professora particular para jovens de famílias abastadas. Em suas novas funções  como professora da ingênua Cris, vem a conhecer o  tio desta, Raimundo,  um homem sedutor acostumado a manter ligações ilícitas e secretas ao mesmo tempo em que finge ser um bom moço para a família e a sociedade. Ele a assedia incansavelmente querendo torná-la sua nova amante e Isabel a despeito da repulsa que sente pelo comportamento dele, acaba se apaixonando.

 

— Está mesmo decidida?

— Sim.

— Em seu lugar, pensaria mais. Madri oferece grandes possibilidades.

— Não me oferece nenhuma. Procurei, até di­zer chega, uma ocupação, sem conseguir. Por outro lado, mesmo que a encontrasse, já não me interessa. Três meses de verão passam logo e quero sair deste braseiro.

— Eu lhe ofereço uma oportunidade.

Isabel Viñoles contemplou agradecida o atraente rosto do Artur Sanroman, seu eterno enamorado.

— Agradeço, mas não é essa oportunidade que espero na vida.

— Isabel, meu amor.

— Mas é que eu... não o quero desse modo. Você é meu melhor amigo, Artur, mas... nunca o vi com olhos de apaixonada. Compreenda e desculpe-me.

Artur Sanroman agitou-se no assento. O trem ia partir e levaria Isabel para uma terra desco­nhecida por três meses... E ele a amava. Queria Isabel para casar-se com ela. Convidara-a para ficar na Serra, com sua irmã, enquanto seus alunos de inverno desfrutavam do verão e retorna­vam à vida madrilenha e às aulas com a pro­fessora particular. Mas Isabel, orgulhosa e sem­pre dona de si, recusava aquele convite, embora com delicadeza.

Seu conhecimento havia sido simples e ca­sual. Uma dessas amizades feitas nas grandes cidades e que não são levadas a sério no prin­cípio e depois criam profundas e grandes raízes.

O primeiro encontro ocorreu no metrô. Artur dirigia-se para o escritório. Era chefe de ven­das de importante companhia de seguros. De­viam ser nove horas da manhã e fazia um frio insuportável. O metrô estava cheio e na estação de Atocha, uma linda jovem, Isabel Viñoles, ten­tava tomar o trem. Alguns operários também pareciam ter pressa e Artur pôde ver que a jo­vem fazia um enorme esforço para entrar. Mui­to cortês, inclinou-se para ela esticando a mão. enquanto dizia:

— Por favor.

Isabel olhou-o, vacilante e Artur sorriu animando-a a entrar, conseguindo-lhe espaço.

— Obrigada - disse ela.

— Não há de que, senhorita.

— Isabel Viñoles...

— Prazer em conhecê-la. Meu nome é Artur Sanroman.

Naquela ocasião pouco conversaram. No dia seguinte, voltaram a encontrar-se no mesmo lu­gar. E assim, pouco a pouco, Artur foi-se intei­rando de quem era Isabel e aonde ia todos os dias à mesma hora, com a pasta de couro debaixo do braço.

Soube que não tinha pais, vivia em Recoletos, num colégio de senhoritas empregadas e ocupa­va todas as horas do dia em dar aulas parti­culares. Soube, ainda, que era órfã de um ma­rinheiro de guerra, que não conhecera sua mãe e tinha um tio numa cidade do norte, a quem não conhecia.

Ao cabo de dois meses saíam juntos e eram bons amigos. Quando Artur declarou pela primeira vez que a amava, Isabel, sobressaltada, replicou que o estimava muito mas como um bom amigo.

Ao findar aquele inverno, Isabel explicou-lhe que seus alunos passavam o verão fora e ela tinha de procurar outros. Então, Artur apre­sentou-a a sua irmã, Engrácia, casada com um empresário de teatro. Engrácia convidou-a a passar o verão com eles num povoado da Serra. Isabel recusou, porém. Não amava Artur e não queria compromissos. Desejava trabalhar, viver, continuar livre como até então.

E graças à mãe de uma aluna, havia conse­guido uma carta de recomendação e uma colo­cação bem remunerada num povoado costeiro do norte da Espanha. Era para lá que viajaria. Ar­tur, porém, ainda insistiu para que ficasse. — Apesar disso, Isabel - repetia ele -, ofereço- lhe uma tranqüila situação a meu lado. Você não vai ficar toda a vida dando aulas a meninas travessas.

Isabel contemplou o amigo uma vez mais. Era alto, delgado e estava sempre bem vestido. Ti­nha cabelos louros, olhos azuis e um sorriso ci­nematográfico, mas ela não era mulher que se  prendesse a um homem só por sua aparência física. Fora de dúvida, Artur era um homem com múltiplas qualidades para ser querido, mas nem por isso havia obtido o amor de uma mulher como Isabel, exigente por natureza em questões de amor.

Por outro lado achava-se bastante capaz pa­ra o trabalho e ganhava dinheiro com certa facilidade, já que sua inteligência e seus conhe­cimentos davam-lhe os meios de viver, sem ter que apelar para o casamento.

Só se casaria se estivesse realmente apaixo­nada e até àquela data seu coração não batera mais nem menos por um homem determinado, apesar de possuir em Madri muitos outros ami­gos, além de Artur.

— Mas ir para esse povoado distante, até princí­pios de outubro, para conviver com uma família desconhecida...

— Não são tão desconhecidos assim - disse ela, sorridente.

Seu sorriso tornava-a ainda mais bonita. Ti­nha o aspecto diferente das clássicas professo­ras que eram quase sempre louras, frágeis e car­regavam nos erres ao falar. Isabel era morena, esbelta, a cútis bronzeada e os olhos negros, ras­gados. Possuía uma boca carnuda, úmida e sempre aberta num sorriso cativante. Vestia-se na última moda e mais que uma professora, parecia uma jovem da alta sociedade, como qualquer de suas alunas, ao lado das quais jamais destoava. Com freqüência era convidada por elas para os mais variados programas. Sabia montar a ca­valo, fumava com elegância, conversava fluente­mente e não se sentia inibida em parte alguma.

Ainda sorrindo, daquela maneira cativante, observou:

— O trem já vai partir, Artur.

Ele olhou para fora. Sim, o trem ia começar a mover-se. Antes de sair do vagão de luxo, fi­tou-a seriamente e disse:

— Você sabe que a amo de verdade. Ficarei aqui à sua espera, disposto a casar-me com você quando desejar.

Isabel tinha vinte e dois anos e um tempe­ramento emotivo como qualquer de suas jovens alunas. Ofereceu a mão que Artur apertou com força.

— Se algo acontecer - disse ele, não menos emo­cionado -, já sabe onde estou. Escreva-me sem demora e irei buscá-la.

— Obrigado, Artur. Não esquecerei seu ofere­cimento.

— Você sabe, Isabel, que é de coração. Tenho vinte e sete anos e nunca me apaixonei antes. Jamais pensei a sério em matrimônio... mas com você eu casaria imediatamente.

O trem ia partir. Artur ainda acrescentou, com súbita paixão:

— Um telegrama, Isabel, um telefonema e irei para seu lado.

— Obrigada.

— Gostaria que você não trabalhasse mais. Não tenho muito para oferecer-lhe, mas... tudo quanto tenho é seu.

— Quem dera - disse ela suavemente - pudesse corresponder a seus sentimentos.

— Talvez... algum dia...

— Sim, talvez, Artur.

— Adeus, querida.

— Até à vista.

As pequenas e finas mãos de Isabel ficaram sob os lábios de Artur. O trem entrou em movi­mento. Artur soltou as mãos femininas com nos­talgia e afastou-se. Ficou ali, parado e silen­cioso, com um último aceno, até que o com­boio perdeu-se numa curva.

Isabel suspirou, sentando-se junto à janelinha. Abriu uma revista e dispôs-se a ler e a fumar. Quando o criado entrou para fazer-lhe acama, ela ainda continuava na mesma posição.                            

 

Raimundo Encinares levantou-se do leito à uma em ponto, como de hábito. Seu criado Matias abriu as persianas, dispôs a roupa e prepa­rou o banho do patrão. Raimundo, ao pé da ja­nela, fez os exercícios habituais, encolhendo e esticando as pernas, batendo depois com as mãos no ventre.

— Como está o dia hoje, Matias? - perguntou.

— Esplêndido, senhor.

— Magnífica perspectiva. Há alguma novidade?

— A Senhorita Cristina chegou e procurou pelo senhor.

— Que queria minha sobrinha?

— Ia a caminho da estação para buscar a pro­fessora. Desejava que o senhor a acompanhasse.

— Hum... Meu banho está pronto?

— Sim, senhor.

— Bem. Alguma outra novidade?

— A Senhorita Berta telefonou.

— E o que desejava, desta vez?

— Convidá-lo para uma caçada.

— Oh, oh!...

Fechou-se no banheiro, rindo às gargalhadas. Meia hora depois, vestia-se ante o grande espe­lho que tomava toda uma parede do luxuoso quarto.

Era um homem alto e forte e teria uns trin­ta e quatro anos. Seu cabelo era negro, salpi­cado de fios de prata, os quais, no dizer das jo­vens casadouras, davam-lhe um aspecto de ator de cinema. Possuía uma fronte ampla, olhos de expressão indefinível, de um tom castanho-claro.

Vivia só com cinco criados naquele antigo casarão da Plaza del Agua. Não dava que fazer a seus serventes porque praticamente só para­va em casa para dormir. Embora todos os ha­bitantes do povoado o considerassem um homem rico, elegante e pacífico, na realidade ele era elegante e rico, mas de pacífico não tinha nada.

E enquanto seus amigos julgavam-no dormin­do em seu leito como um santo, Raimundo saía à tarde em seu Opel para regressar alta ma­drugada, depois de viver a excitante aventura na capital próxima. Mas isto só os criados sabiam e estes eram antigos como a casa e tão discretos como o cão Tarzã que guardava o palácio e quando chegava seu amo limitava-se a abrir um olho e balançar o rabo. Raimundo Encinares fazia supor no povoado, aonde só aparecia para veranear, que era um homem pacífico, tranqüilo, sem aventuras amorosas, rico, com idade ideal para formar um lar. Era alvo das atenções de pais e avós de jovens em idade de casar. Mas, embora não o dissesse, detestava o casamento e deixava-se cercar como um santi­nho, um homem tímido, que depois de chegar a certa idade sente alguma dificuldade em mu­dar de estado civil.

—  Alguma outra novidade, Matias? - perguntou.

—  Sua irmã, a condessa Maria Josefa telefonou e disse que o esperava para almoçar.

—  Que aborrecimento! - exclamou, bocejando.

—        Não suporto a comida de minha irmã. Há al­gum meio de escapar?

—  Não creio, senhor.

—  Tem certeza?

—  Infelizmente.

—  Bem. Então às duas telefone para o clube, lembrando-me. Algo mais?

—  A Senhorita Sotomayor telefonou às onze. Disse que o esperava na praia.

— Você deu alguma desculpa, Matias?

— Sim, senhor - admitiu o criado, muito sério.

— E quem lhe deu permissão para isso? - bra­dou Raimundo, contendo a vontade de rir.

— Considerando que a Senhorita Sotomayor é muito feia em traje de banho...

— Você é um gênio, Matias. Não sei que seria de mim sem a sua ajuda. Que desculpa inven­tou?

— Disse que o senhor tinha ido ao dentista. Co­mo ela detesta os dentistas e as dores de dentes...

— Você é um psicólogo de primeira qualidade, Matias, velho amigo. Que mais?

— Algo muito interessante, senhor. Ao voltar da estação, a Senhorita Cristina passou por aqui. Desejava que o despertasse para apresentar-lhe sua professora. É muito bonita.

— Velha raposa. Sabe do que me lembro neste momento? Quando você era meu ordenança de guerra.

— Eram tempos alegres, senhor.

— Sim, tem razão. Aquela cantineira que estava sempre a nosso lado era bem bonita. Lembra-se, Matias?

— Não me fale, senhor.

— E essa professora...

— Tem olhos negros, como cigana. Fala vários idiomas.

— Está bem, Matias. Vejo que ela o impressio­nou.

Saiu para o clube, onde passou toda a tarde. Quando voltou para casa encontrou Matias abor­recido.

— A senhora condessa telefonou. Creio que o senhor se esqueceu do convite.

— Perdoe, Matias.

— O senhor não tem desculpa.

— Lamento, Matias. Prepare-me o traje a rigor. Vou jantar com minha irmã.

— Pode subir, senhor - disse Matias, sorrindo.

—        Eu vou ajudá-lo a vestir-se.

 

Isabel não gostou daquele olhar penetrante do tio de sua aluna. Ela estava em casa da condessa de Salcedo, na qualidade de professora e Maria Josefa Encinares recebera-a como pessoa distinta. Sabia por seus amigos de Madri que Isabel Viñoles cobrava caro e só se dedicava a dar aulas a moças de família importante. Por isso, após o recebimento protocolar, convidara-a a sentar-se à sua mesa e Isabel aceitara sem ruborizar-se, como era costume nela, com natu­ralidade e distinção.

Cristina, uma jovem loura, simpática e cor­dial, que contaria no máximo dezessete anos, conversava com Isabel na saleta, quando foi anunciada a chegada de Raimundo. Demonstrou grande entusiasmo pelo tio e contou à jovem professora tratar-se de um homem solteiro de trinta e quatro anos, muito rico, elegante e sim­pático, muito difícil de ser conquistado. — Minha mãe deseja que se case - explicou Cris­tina naquela tarde. - Comigo morre nosso nome, visto que sou Salcedo e meu tio é quem terá de dar herdeiros aos Encinares. Mas o tio Raimun­do é tão sério e tão tímido ao mesmo tempo...

Tímido? Hum... Isabel, boa conhecedora de psicologia masculina percebeu imediatamente que aqueles olhos castanhos de Raimundo nada tinham de sérios. Cravavam-se nela com muito interesse e o pior é que pareciam desnudá-la. Não, decididamente, Cristina estava enganada ao julgar o tio. Mas Isabel não revelou sua opi­nião, visto que não lhe importava. Afinal ia fi­car naquele palacete três meses e, talvez, não voltasse mais ali.

A própria condessa fez as apresentações e os três sentaram-se à mesa. Isabel vestia elegan­temente, não destoando entre aqueles senhores e, embora atenta à conversa, manteve-se discre­tamente à margem.

— Você pouco vem por aqui, Ray - censurou a irmã, ao café. - Se não o chamo, esquece que tem família.

— Meus compromissos, querida.

— Você passa três meses em Encinares, depois vai embora e não se lembra de escrever duas li­nhas sobre esses lugares estranhos por onde anda.

Houve uma pausa na conversa e Isabel pe­diu permissão para retirar-se. Raimundo bei­jou-lhe as mãos e a jovem sentiu um certo mal- estar.

— Tive muito prazer em conhecê-la, Senhorita Viñoles.

— O prazer foi meu, Senhor Encinares - disse Isabel, retirando-se a seguir.

— De onde a tirou? - perguntou ele, depois, pen­sando que Matias tinha realmente um excelente gosto.

— Foi recomendada pela Sra. Espinosa. Ela é professora de sua filha no inverno.

— Estranha jovem. Geralmente as professoras de meninas da sociedade são francesas ou in­glesas. Vocês, as mães, assim o exigem.

— Não sou tão fanática. Begônia recomendou-a e eu aceitei-a.

— Com a condição de participar da mesa? As nossas professoras não tinham essa regalia.

— Begônia disse que era conveniente. Contou que em Madri convive com suas alunas. É órfã de um marinheiro de guerra muito importante.

— Viñoles! Não recordo esse nome e eu fui também da marinha, durante a guerra.

— Isso não nos interessa. O essencial é que se ocupe de Cris durante estes meses. Não quero que minha filha esqueça o pouco que sabe de francês e inglês.

— É muito elegante, essa professora. Suas rou­pas não são nada vulgares e tem um porte al­tivo.

— Basta ver se é boa professora.

— Deve ser. Mas acho estranho que com esse corpo e aquele rosto, se limite a dar aulas.

— Mal intencionado...

— Mal intencionada é você, minha querida ir­mã. Bem, já estou caindo de sono. Você sabe que sou um dorminhoco.

— Sim, já sei. A propósito, Raimundo, você tem trinta e quatro anos e é o único dos Encinares.

— Sim, sei disso.

— Não pensa mesmo casar-se?

— Por caridade, Maria Josefa. Não muda nunca esse disco?

— É que me dá pena, Ray. Você é um homem normal, sério, competente... Daria um excelente marido e as moças de nossa sociedade ficariam honradas de acompanhá-lo ao altar.

— Por favor...

— Você não gosta de romances. Só tem uma paixão; as viagens e isso também acaba. Sabe o que penso, Ray?

— Creio que sim.

— Pois não sabe. Berta Almendra é uma mu­lher excelente para você. Acho que...

— Sim, sim - cortou, pensando nas sardas de Berta e seu nariz de papagaio. - Você tem razão, mas deixemos isso para outro dia, sim? Agora estou morto de sono.

E beijando a irmã, apressou-se em sair dali.                               

 

Isabel, em Madri, era bem acolhida em toda parte. Quando terminava a aula, gostava de dar um passeio e escapar até à praia. Assim fez naquela manhã e nadou em direção a uma ro­cha solitária, onde podia deitar-se ao sol, mantendo-se afastada dos intrometidos do pequeno clube.

— Bom-dia, senhorita professora - disse uma voz atrás dela.

— Oh! - exclamou assustada. - Julguei que es­tava só.

Ray sorriu de uma forma que Isabel julgou desagradável e num tom indiferente, observou:

— Chegamos quase ao mesmo tempo, por luga­res diferentes. Desagrada-lhe minha compa­nhia?

— Bah!

— Uma forma ambígua de responder. Ouça, Isa­bel. Não nos vimos em outra ocasião?

— Não creio.

— Não, acho que não. Se a tivesse visto antes, não a esqueceria tão facilmente. Você é dessas mulheres que deixam uma marca funda em nos­sa lembrança...

— Como devo interpretar suas palavras?

—- Deseja um cigarro? - perguntou, furtando-se a responder de imediato.

— Obrigada. Não desejo fumar agora.

— Bem, deve interpretar minhas palavras co­mo quiser. Tem compromisso para esta tarde?

— Pensa convidar-me?

— Por que não?

— Porque não costumo sair com os tios de mi­nhas alunas.

— Oh, lamentável! Com quem costuma sair en­tão?

— Acho que isso não lhe interessa.

— É verdade,

— Com licença, vou voltar à praia.

— Que pena. Estávamos tão bem aqui, não acha?

— Não, não acho. Adeus.

— Isabel...

Ela voltou-se ligeiramente e deu de novo com aquele olhar penetrante e malicioso. Estremeceu e sem hesitar, correu para a água e nadou vigo­rosamente para a praia.

À tarde, conversava com Cristina e esta fa­zia rasgados elogios ao tio Raimundo, que tanto admirava.

— Quando você o conhecer melhor, gostará dele. É um tanto retraído, sabe? É sério e formal...

— Sério e formal... - repetiu Isabel baixinho.

— Conhece Berta Almendra? Está louca por ele. E há muitas outras. Ele é tão simpático, não acha?

— A que se dedica?

— A nada, claro. Os Encinares nunca trabalha­ram.

— Ah! - disse Isabel, contendo um sorriso de ironia.

— Tio Raimundo vive de seus rendimentos. Du­rante o inverno viaja por todo o mundo e seus quatro criados ocupam-se do casarão. Matias é seu criado de confiança e viaja com ele. Du­rante o verão passa aqui três meses e nunca se ausenta do povoado. Seus amigos passam as tar­des na cidade, mas ele diz que está farto de cidades. Leva uma vida muito sedentária. Tem a admiração de todo o povoado, pois, outro em seu lugar, sendo livre e tendo tanto dinheiro, se divertiria mais. Não acha?

—  Não sei, querida. E se estudássemos um pou­co?

—  É tão aborrecido.

—  No entanto, estou aqui para isso.

—  Não a aborreço falando tanto de meu tio?

—  Não é que me aborreça, mas sua mãe con­tratou-me para dar aulas de francês e inglês, não para que me conte as qualidades de seu tio.

—  Tem razão. Desculpe-me.

Começou a aula, mas logo depois Cris voltou a seu tema preferido.

— Não acha estranho que um homem como meu tio não tenha ao menos uma namorada?

—  Não. Há muitos homens nas mesmas condi­ções.

— Não conheço muitos homens. E você?

—  Bastante. Continuamos a lição?

Eram quase três da tarde quando termina­ram a aula. Isabel foi para o quarto e da janela podia ver o jardim e quantos estavam ali. A condessa e Raimundo conversavam, sentados em espreguiçadeiras. Não longe deles, Cris parecia falar sozinha.

Contemplou-o detidamente. Em seu rosto aparecia uma sombra de cansaço. Quantos anos teria aquele homem? A julgar pelos cabelos brancos, devia ter quarenta e tantos; mas seu rosto dava a impressão de ter muito menos. Ago­ra, quanto a ser um santo... Cris e o povoado estavam muito enganados ou ele, Raimundo Encinares, era um hipócrita consumado. Não uma criatura passiva e de hábitos moderados. Ela raramente se enganava ao analisar as pessoas.

 

Anoitecia quando Isabel voltou do passeio ao povoado, que ficava a meio quilômetro do palacete.

Vinha andando lentamente, distraindo-se com a paisagem, pensando em Artur por vezes, mas divagando sempre. De súbito, sobressaltou-se, quando um carro surgiu lançando os potentes faróis sobre ela. O auto avançou e deteve-se a seu lado.

— Em que pensamos, professora? - disse a voz de Raimundo.

— Olá - saudou ligeiramente.

— Quer carona? Levo-a de boa vontade.

— Obrigada, prefiro ir caminhando.

— Aviso-a que por Este lado há surpresas.

— Prefiro assim.

— Que tal fumarmos um cigarro? - disse Rai­mundo, descendo do carro.

— Obrigada. Aceito.

— Nunca vi olhos como os seus, Isabel. Onde os conseguiu?

— Foi a natureza...

— Sim, tem razão. É preciso reconhecer que foi muito generosa... Que tal nos aproximarmos?

— Com que fim?

— Como homem e mulher que somos.

— Prefiro manter bem marcada a distância.

— Oh! Acabarei pensando que é uma jovem an­tiquada.

— Incomoda-o?

— Diabos! Que olhar mais desafiador!

— É o que tenho.

— E me agrada.

— Quantas lhe agradaram antes de mim? - per­guntou, quase sorrindo, ao pensar na falsa ti­midez daquele homem.

— Sente-se aqui, no estribo do carro. Gosto de conversar com você.

— Pois não digo o mesmo.

— Criança. Esquece-se que está falando com o tio de sua aluna.

— Não o autorizei a tratar-me assim, Senhor Encinares.

— Não suporto mocinhas formais. Não podíamos ver-nos em outra parte?

— Claro que não.

— Acho que tem medo de mim.

— É muito convencido, Senhor Encinares.

— Qual! É a primeira vez que uma mulher se atreve a dizer-me tal coisa!

— Talvez não tenham sido tão sinceras quanto eu.

— A cada momento que passa você me agrada mais.

— Lamento não poder continuar a conversa.

— Espere. Disse que a levava no carro. Não te­nha medo, ainda não penso raptá-la.

— Já disse que prefiro ir a pé.

— Então, acompanho-a.

— Não! Só admito a companhia de homens que me agradam.

— E eu não lhe agrado? - riu, convencido.

— De modo nenhum.

— Lamentável.

— Pois eu não lamento. Sabe qual é a opinião de sua irmã e sua sobrinha a seu respeito?

— Sei, e o padre considera-me também um exemplo. Não lhe parece consolador?

— Acho-o detestável.

— Sua sinceridade é terrível.

— Não lamento ser assim.

— Estou vendo. Vamos deixar de tolices e acei­tar meu convite? Sei de um lugar onde pode­mos dançar. Lá não vão os rapazes da colônia de veraneio. Portanto não há perigo de que eu perca o prestígio, e você, o bom conceito de que desfruta.

— Está me aborrecendo, Senhor Encinares.

— Bobagens. Você pode enganar o povoado, à cândida da minha irmã e minha incauta so­brinha, tal como eu os engano, mas a mim, não. Sou muito mais experiente e conheço pequenas como você.

— Ouça...

— Vem comigo?

Como única resposta, Isabel afastou-se rapi­damente dali. Raimundo deu de ombros, subiu no carro e ao passar junto a ela, pôs a cabeça para fora e disse, sem piedade:

— Você seria uma amante magnífica. Algum dia o será. Por que não posso ser o favorecido?

Isabel empalideceu e quando quis responder a ofensa, o carro já se afastava estrada abaixo.

Sentiu que odiaria sempre aquele homem que não soubera julgá-la.

À noite, enquanto se vestia para ir à cidade, Raimundo confidenciava a Matias:

— É de fato muito linda. Que olhos, que corpo!

— E é "difícil"? - perguntou tranqüilamente o criado, como se estivesse habituado àquela clas­se de confidências com seu patrão.

— Claro que não. Não me empreguei a fundo, mas insinuei algo. Entre ser uma professora de idiomas e a amante de um homem rico como eu, a escolha é óbvia.

— Tem razão, senhor.

 

Raimundo jamais tinha sido chamado de ve­lho nem fora desprezado por nenhuma mulher e muito menos lhe haviam dito que era um de­mônio ridículo agarrado a uma juventude que se ia, embora ele não o quisesse.

Por isso, quando ouviu tais Insultos, ficou triste primeiro, enfureceu-se depois e terminou por achar muita graça. Quem lhe disse todas aquelas "lindezas" foi a própria Isabel, que ainda sentia seu amor-próprio ferido e tão logo teve  ocasião desafogou-se como pôde e como só podia falar, falou.

Isso ocorreu no jardim do palacete dos Salcedo, três dias depois do encontro da estrada. Isabel havia terminado a aula da manhã e Cris fora à praia com as amigas. A condessa saíra para a cidade, às compras.

— Bom-dia, professora - disse Raimundo, aproximando-se.

— Olá - replicou ela, serenamente.

— Outro dia você perdeu uma tarde estupenda em minha companhia - disse ele, inclinando-se.

— Está me tratando com cortesia?

— É apenas o começo. Aceita o convite hoje?

— Tenho vergonha de exibir-me com um homem como você. Um tipo ridículo que se presume um jovem bonito.

— Ouça, eu...

— Sinto dizer-lhe esta grande verdade, Senhor Encinares. Para as jovens do povoado poderá ter muitos encantos, mas para mim não passa de um tipo grotesco.

— Quê?!

— É o que ouviu. E sinto ter de ser tão sincera. Sempre tive piedade pelos homens que lutavam com o passar dos anos, procurando a forma de se sentirem eternamente jovens, mas a gente se cansa de sentir piedade por certos sêres de­sumanos.

Do assombro, Raimundo passou à indignação, mas não lhe serviu de nada, já que ela pros­seguiu:

Gostaria de vê-lo sem um centavo. Não ha­veria jovem no povoado nem fora dele que lhe sorrisse. Por que vocês, os homens, são tão ri­dículos, agarrando-se a uma juventude que se vai e não perdoa?

— Se não calar a boca, Isabel, sou capaz de agarrá-la e levá-la em meu carro para...

— Aviso-o que não conseguiria mais que meu desprezo.

— Parece que sabe muito de homens e da vida. Quem foi seu último amigo?

— Que está dizendo?

— Que você não é uma jovem inocente, profes­sora. Conheço as mulheres como você, que se revestem de uma capa de inocência para cobrir as aparências.

Isabel sentiu pela primeira vez uma vontade atroz de chorar e para que ele não notasse tal fraqueza, saiu correndo e o deixou com a pa­lavra na boca.

Naquela tarde, Raimundo não saiu de casa e andou de espelho em espelho, observado por Matias. Seu humor estava abaixo de zero e depois de muita agitação, resolveu seguir o conselho do criado, passando alguns dias sem dar importân­cia a Isabel.

Mas o método não surtiu efeito. Isabel Viñoles parecia ignorá-lo e dar-lhe pouca importân­cia. Isto desconcertou o conquistador que se con­siderava infalível, mas que pela primeira vez tropeçava com uma inimiga que, em vez de dar- lhe importância, ria-se dele.

Decidiu abordá-la de novo e como sabia onde encontrá-la a uma certa hora da tarde, procurou- a e achou-a sentada à margem do rio, pintando uma paisagem.

 

Raimundo ia a pé. Aproximou-se dela pelas costas e contemplou silencioso, seu trabalho. Quando se cansou de apreciá-lo, sentou-se a seu lado, dizendo:

—  Você não pinta de todo mal.

Isabel apenas virou a cabeça e seus olhos rasgados fitaram-no com indiferença.

—  Seus olhos sempre me desconcertam - excla­mou Raimundo. - São os mais estranhos e belos que já vi.

—  Então viu muito poucos.

—  Ao contrário, contemplei muitos e bem de perto.

— Nesse caso, tem péssimo gosto.

— Considero-me um homem de bom gosto, prin­cipalmente no que se refere ao belo sexo.

— Devo agradecer-lhe o galanteio?

— Ouça, Isabel, gostaria de fazer um acordo com você.

— Não faço acordo nenhum com você. Já co­nhece minha opinião a seu respeito e não mu­dei em nada.

— Você é mesmo teimosa. Mas imagine que sou seu amigo.

— Nem em sonho. Repito que tenho um péssimo conceito de sua pessoa.

— Às vezes formam-se opiniões que não corres­pondem à realidade.

— O que penso de você, não mudará nunca.

— Não há dúvida, você é teimosa. Não queria fazer-lhe uma proposta humilhante, mas me obriga a isso.

— Poupe seu esforço.

— Sinto não poder atendê-la. E não se levante. Você tem de ouvir-me. Não vou propor que se case comigo. Não sou dos que se casam, mas você vive em Madri escravizada, dando aulas a meninas tolas e...

— Quer ficar calado? Detesto "velhos" assa­nhados.

— Não sou um velho nem você me considera como tal. Mas se pretende fingir essa frieza, acho mui­to natural. Todas as mulheres procedem assim, mas depois...

— Acho, Senhor Encinares, que até a data de hoje não encontrou mais que mulheres fáceis.

— Quer deixar-me terminar?

— Não! Vou embora!

E começou a andar, mas ele seguiu-a com a maior tranqüilidade.

— Ouça, Isabel.

— Não quero saber nada.

— Eu a cobrirei de jóias. Estimo que seja digna de usar as melhores e mais caras do mundo.

— Nem coberta de ouro viveria com você. Pri­meiro.. iria viver com qualquer mendigo.

— Bobagens. Quer deixar-me continuar

— Não lhe permito. Você é um cínico, Raimundo Encinares e o mais grotesco é que todo mundo o considera um bom moço, sem malícia e sem desejo. Que diriam esses que o admiram se eu lhes contasse a perseguição que você me faz?

— Não acreditariam, pequena. Raimundo Enci­nares, no dizer dessa gente, é um cavalheiro inatacável.

— E você está orgulhoso de aparentar aquilo que não é.

— Pouco me incomodo com isso.

— Se eu contasse à sua irmã...

— Ela a chamaria de mentirosa ou algo pare­cido e a mandaria de volta a Madri. E a pro­pósito de Madri, eu moro lá. E tenho um apar­tamento de solteiro na rua Serrano. Que tal se você fosse ver-me assim que sair daqui? Eu estarei esperando.

Isabel já não quis ouvir mais e apertou o passo. Desta vez ele não a seguiu. Ficou no meio do caminho, agitando uma vareta no barro.

Naquela noite foi à cidade no Opel e voltou já amanhecendo o dia, com um sabor amargo na boca e uma vontade tremenda de parar com aquela vida que a cada dia parecia-lhe mais monótona.

Matias, como sempre levou as sobras de seu mau humor.

 

Passou uma semana sem ir à casa de sua irmã, até que esta o chamou por telefone. Rai­mundo prometeu ir naquela mesma tarde.

A condessa estava preocupada, ao telefonar- lhe. Discutia com Cristina sobre a prolongada ausência do irmão, quando Isabel entrou na saleta.

— Falava de meu irmão - disse a condessa.

— Ah! - exclamou Isabel.

— Dizia que ele deveria casar-se.

— Se ele o deseja... - respondeu a professora.

— Pois deveria querer, não acha? É o último dos Encinares varão. Seu dever é dar herdeiros ao nome e por outra parte, está muito só. - Fez breve pausa para aduzir, depois: - Berta Almendra é a mulher apropriada para ele. Conhece-a?

Isabel não a conhecia nem lhe interessava, mas como antes de tudo era a professora e de­via ser cortês, limitou-se a dizer que não tinha a honra de conhecê-la.

Cristina passou a menosprezar Berta a ponto da condessa chamar-lhe a atenção.

Isabel não fez nenhum comentário, pois não estava em situação de fazê-lo, mas pensou, pois o pensamento era livre. Raimundo Encinares era um homem frívolo. Mas alguém acreditaria, caso ela o dissesse? Lógico que não! A condessa se­ria a primeira a refutar redondamente tal acusação.

— Além de ter trinta anos - disse Cris, refe­rindo-se a Berta -, tem um nariz de papagaio, umas sardas horríveis, uma boca que parece não sei o quê e um corpo mal feito.

— Cris!

— Não -é verdade, mamãe?

— Você não entende nada disso, pequena. Nem está em idade para julgar. Ademais, que impor­ta um físico mais ou menos bonito, quando há uma alma digna de todo elogio?

— Tio Ray é um homem de bom gosto.

— Obrigado, querida sobrinha - disse uma voz atrás delas.

— Falávamos de você, tio - disse Cris, sorrindo. O milionário, dor de cabeça de todas as jo­vens casadoiras, deixou-se cair numa poltrona, diante de suas parentes. Vestia um terno de ve­rão, cor de canela, sapatos brancos e não usava gravata. Tinha Isabel diante dele e por mais que fizesse, não conseguiu encontrar os olhos vivos da jovem, que deliberadamente o ignorava.

— De que se trata? - perguntou.

— De seu casamento - disse a sobrinha.

— Meu... casamento? - sobressaltou-se ele.

— Eu dizia que você e Berta fariam um belo ca­sal - disse a irmã.

— E eu dizia que Berta, além de ser mais velha...

— Se voltar a dizer isso, Cris, não sairá de casa o dia todo - censurou a mãe.

— O tio Raimundo é um homem de gosto, já disse e ela...

— Você tem razão, querida sobrinha - riu ele.

Olhava de soslaio para Isabel, mas esta não dizia palavra, como se estivesse ausente dali. Ele desejou ouvir sua voz e não se conteve mais, per­guntando:

— E o que diz, Senhorita Viñoles?

— Sobre o quê?

— De meu casamento com Berta Almendra.

— Não a conheço.

— Cris descreveu-a com todos os detalhes.

— Não entendo de beleza feminina.

— Uma desculpa pouco aceitável. — Lamento, Senhor Encinares.

— Vamos deixar isso de lado? - disse Cris. - Tenho que ir à cidade fazer umas compras, tio. Quer levar-me em seu carro?

Raimundo tinha outros planos, mas sempre havia atendido aos caprichos de Cris, de modo que respondeu, sorridente.

— Claro que sim, queridinha.

— A Senhorita Viñoles os acompanhará - in­terveio a condessa, causando um grande regozijo em seu irmão e uma terrível contrariedade na professora.

— Estupendo! - exclamou Cris. - Assim ela po­derá ajudar-me a escolher os modelos. — Poderão sair depois ao almoço, não acha, Senhorita Viñoles?

Isabel não teve outro remédio senão concor­dar com as ordens da condessa. Mas por mais que Raimundo tentasse encontrar seus olhos, não conseguiu.

 

Cris ia sentada ao lado de Raimundo que dirigia, enquanto na parte de trás Isabel lia in­diferente uma revista. Pelo retrovisor, Raimun­do observava-a a cada instante, mas nem uma só vez conseguiu ver os olhos da professora.

 Quando, afinal, o carro parou diante de uma casa de modas, Ray pretendeu oferecer a mão à Isabel, mas esta, mais rápida, desceu sozinha, mortificando-o.

— Suponho, tio, que depois de fazermos as com­pras nos convidará para um lanche num lugar animado. Não importa que haja dança - acres­centou com malícia. - Mamãe não saberá.

 —       Mas sua professora está aqui e tem um ar de fuxiqueira.

Cris começou a rir. Isabel não achou graça nenhuma na piada, mas absteve-se de falar. Raimundo provocava, mas ela estava disposta a não aceitar suas provocações. — Eu as espero na lanchonete - disse Raimun­do. - Até logo, queridas. - E como Cris já se afastava, inclinou-se para Isabel e disse, bai­xinho: - Você é uma deliciosa pequena altiva, mas eu vencerei. Já decidi e nunca, até hoje, fracassei em meus intentos.

— Desta vez fracassará.

— Já veremos isso.

Picou à espera delas, imaginando coisas a res­peito de Isabel. Sentia-se intrigado porque ja­mais se preocupara tanto com uma mulher e a recusa da jovem espicaçava-o a cada instante.

Por volta das seis da tarde, as duas moças saíram da casa de modas. Seguia-as um empre­gado carregado de embrulhos que foram coloca­dos no carro. Depois ambos entraram na lan­chonete.

— Lanchamos aqui, tio? Ou vai nos levar a um lugar mais alegre?

— Acho que a senhora condessa não ficará sa­tisfeita - disse Isabel.

— Oh, senhorita Viñoles. Não me prive desse prazer.

— Você ainda não foi apresentada em socieda­de - observou Isabel seriamente, pois não dese­java ir a parte alguma onde se aproximaria mais de Ray.

— Por isso mesmo, senhorita. Permita-me sair da rotina ao menos uma vez.

— Se a senhora condessa souber, eu serei a res­ponsável.

— O responsável sou eu - cortou Raimundo. - E encontrarei uma explicação plausível para minha irmã.

— Nesse caso - disse Isabel friamente -, eu os espero aqui.

— Isso é que não.

— Senhorita Cris...

— Que eu vá a um salão ou boate com meu tio e minha professora vá comigo, não inquie­tará mamãe. Mas que a senhorita fique longe de mim é que a deixará furiosa. Tenha a bon­dade de acompanhar-me, suplico-lhe.

— É a primeira vez que vou contra meus cos­tumes, Senhorita Cris.

— Terá de ir muitas vezes - interveio ele com um tom intencional que Isabel captou de pronto.

— Engana-se - disse Isabel. - Não é nada fácil levar-me a agir contra meus princípios.

— Teremos de considerá-la uma dama ultravirtuosa.

— Não pretendo tanto. Basta que me considerem tal como sou e isso é o que vem ocorrendo até hoje.

— Oh, não fiquem zangados. Se não podemos ir, não vamos, pronto! - disse Cris.

— Por que não? - protestou Raimundo, que já se imaginava com Isabel nos braços, dançando.

— Claro que vamos. Pediremos um lanche aqui e depois iremos a uma boate que eu conheço. Não penso levá-las a um lugar qualquer, mi­nhas queridas. Seria algo indigno da inocência de Cris e da classe da elegante professora.

Cris não reparou no acento irônico do tio. Isabel, sim, sentiu tal raiva que teve de aper­tar os punhos sob a mesa, para não esbofetear o impertinente.

 

A boate era um local elegante, seleto e a professora, habituada a dançar em lugares se­melhantes, percebeu que aquela sala não era fre­qüentada por pessoas de condição humilde, mas ao contrário.

Eram oito horas da noite de um mês de agos­to e havia ali uma tênue penumbra, apesar de que a jovem não estava de bom humor para apreciar tais detalhes.

Ocuparam uma mesa junto à pista. Havia um casal dançando e Cris observava-os com aten­ção. Era a primeira vez que freqüentava um lu­gar semelhante e a professora pensou que de futuro ela se tornaria elegante e frívola como o tio.

— Oh, tio! - exclamou a jovem, de repente. - Gostaria tanto de dançar aqui...

— Senhorita Cris...

— Por favor, professora. Permita-me ter uma tarde completa.

— Claro que dançaremos, pequena - disse Rai­mundo, levantando-se. - A professora não dirá nada. Vamos.

— Acho que a senhora condessa...

— Minha irmã não ficará zangada porque dan­cei com sua filha - disse ele. - Depois dançare­mos nós dois.

Isabel estremeceu. Dançar com ele? Não, nun­ca. Bastante penitência era ouvir suas humilhantes propostas e sentir em seu rosto aquele olhar provocador.

Mas decidiu não responder. Ficou quieta em seu lugar até que os dois voltaram, terminada a dança.

— Agora é sua vez, professora - disse Ray.

— Eu não danço, Senhor Encinares.

— Mas, Senhorita Viñoles... - protestou Cris. - Precisa dançar.

— Lamento. Não sei dançar.

— Sou bom dançarino. Eu a ensinarei.

— Prefiro não fazê-lo.

Raimundo compreendeu com raiva que Isabel mentia, mas não dançaria com ele. Sentou-se diante dela e Cris levantou-se, dizendo que ia cumprimentar uma amiga, afastando-se para uma mesa colocada no outro lado da pista.

— Você sabe dançar - disse Raimundo, quando ficaram a sós.

— Devia saber que não dançaria.

— Mas algum dia você o fará.

— Receio que se engane.

— Receia?

— Por você. Sei que o deseja ardentemente.

—        E acha que para mim seria um grande prazer?

—        Sim.

— E não quer dá-lo...

— Não.

— Nenhuma alegria?

— Nenhuma.

— Pois agora digo como você: receio que se en­gane. O único prazer que você sentirá nesta vida serei eu quem o dará.

— Acho-o muito convencido e detesto pessoas assim.

Ele ia responder, mas Cris aproximou-se e a professora levantou-se, dizendo:

— É hora de regressar, Senhorita Cris.

— Oh! Já? Que acha, tio?

— Estamos sob o poder de sua professora.

— E logo na primeira vez na vida que posso ver algo diferente do habitual - lamentou-se ingenuamente. - Mas vamos, vamos. Não quero desgostá-la.

Durante o regresso, Isabel mergulhou na lei­tura de um livro. Raimundo continuava observando-a pelo retrovisor, enquanto ouvia as con­versas infantis da sobrinha. Quando chegaram diante do palacete da condessa, Cris suspirou, dizendo:

— Foi uma tarde maravilhosa, Quando voltarei a ter outra igual?

Ninguém respondeu. Isabel desceu antes que Raimundo pudesse oferecer-lhe ajuda e, dando boa noite, subiu para o quarto. Ali encontrou uma carta de Artur. Sentou-se junto à varanda e co­meçou a ler.

 

"Minha querida e sempre presente Isa: Sem notícias suas, pois não respondeu mi­nha última carta, escrevo esta ansioso em saber como vai. Passo os dias sonhando com você e tenho no coração um mau pressen­timento. Aconteceu algo, Isabel? Desde que você foi, sinto que vou perdê-la. Ainda res­tava a esperança de ver correspondido meu amor. Isabel, estou na Serra com minha irmã e sua filha, passando as férias. Se até o fim desta semana não receber notícias suas, irei vê-la. Não se zangue com minha presença nem me receba mal. Não posso mais suportar sua ausência. E perdoe que re­pita uma vez mais quanto sinto a sua falta e que a desejo a meu lado.

                                    Seu fiel admirador, Artur".

 

Dobrou a carta e olhou para fora com nos­talgia. Artur era merecedor de carinho. Por que não casar com ele? Terminariam as lutas, as si­tuações falsas, as provocações e insinuações de Raimundo...

Mas não. Ela não podia ser tão covarde até o extremo de ligar-se a Artur sem amor, para escapar da atração de outro homem.

Acendeu um fósforo e queimou a carta. Não responderia. Desejava ver Artur. Seria consolador tê-lo ali alguns dias. Sentir sua voz, poder falar. Sim, por que não?

 

Raimundo Encinares estava aquela manhã de um humor insuportável. O pobre Matias, que sempre havia feito tudo a gosto do patrão e que jamais fora repreendido, ouvia paciente­mente as queixas que lhe faziam.

Mas chegou um momento em que se sentiu humilhado. Contudo, manteve a dignidade e foi entregando a roupa que o patrão exigia. Depois ficou firme, perguntando:

— Deseja algo mais, senhor?

— Sim. Que você suma daqui.

— O senhor levantou-se de mau humor.

— Deixe-me em paz, Matias!

O criado saiu e Raimundo terminou de ves­tir-se, murmurando continuamente.

51

— Sim, sim, estou de mau humor - disse, dian­te do espelho. - Que há comigo? É a primeira vez que acontece isto. Irei à praia e tomarei um banho. Isto passará logo e se não passar, arran­jarei alguém para distrair-me.

Chegou à praia por volta de uma e meia da tarde no momento em que Isabel nadava para a rocha solitária. Tirou a roupa precipitadamen­te e jogou-a de qualquer modo no interior do auto. Atravessou a praia a passos largos e lan­çou-se à água, sem vacilar. Nadou até à rocha e chegou quando Isabel já se deitava ao sol.

— Olá - saudou.

Já não estava de mau humor. Apenas sentia dentro de si o estranho desejo de implicar com a jovem. Esta levantou os olhos e fitou-o de relance.

— Olá - replicou friamente.

— Que há de novo, pequena?

— Nada. Peço apenas que se cale ou vá embora. Vim aqui para tomar sol.

— Ao menos deixe-me olhá-la - disse com ci­nismo.

— O olhar é livre, não tem ataduras nem pode ser proibido. Mas seu olhar, Senhor Encinares, é uma ofensa para uma mulher decente.

— A culpa não é minha. É dos meus malditos olhos tão desobedientes. Quer um cigarro?

— Não.

52

— Nem diz obrigado.

— Por que não quero.

— Sabe o que pensei a nosso respeito?

— Não me interessa.

— Assim mesmo contarei.

— Rogo-lhe que não o faça.

— O quê? Você suplicando, minha soberba pe­quena? Desde quando?

— Senhor Encinares, não apenas peço que se cale como também que me deixe em paz. Que mal lhe fiz para que me persiga deste modo? Por mais que tente, não conseguirá mais de mim do que o meu desprezo, fique sabendo para sem­pre. Há milhares de mulheres dispostas a agra­dá-lo. Eu não tenho queda para frivolidades, em­bora minha indumentária e meu físico possam aparentar. Sou uma mulher séria e decente. Como é que sendo tão mundano, "tão conhecedor da alma feminina", ainda não percebeu?

— Já terminou? - perguntou tranqüilamente.

— Não. Ainda lhe direi algo mais, para termi­nar. Mesmo que o amasse, mesmo que sofresse por sua causa, ainda que morresse de angústia... — Tudo isso? - riu, ocultando uma inquietude que começava a sentir naquele instante.

— Não seria sua.

— Agora terminou - disse ele.

— Sim.

— Pois então começo eu. Para tê-la para mim só o tempo que eu quisesse, eu lhe daria o que pedisse. Gosta de peles? Eu a cobriria delas. Jóias? Teria quantas desejasse. Agora já sabe, Isabel. É desse modo que a desejo. Gastarei até o último centavo para tê-la comigo e não falo de uma posse eterna. Confio em que breve me cansarei de você como antes me cansei das outras.

Isabel, sem responder, pôs-se de pé. Ele sen­tiu que o sangue fugia-lhe do rosto ao ver aquele olhar frio que era pior que uma bofetada. — Isabel...

A moça deu um passo para a água. Raimundo de um salto levantou-se e a segurou pelo braço. Ela agitou-se sentindo que ia chorar. Despren­deu-se e vibrou a mão no rosto de Raimundo. Depois, sem olhar para trás, lançou-se à água. As lágrimas de humilhação afluíram-lhe aos olhos, misturando-se com a água salgada e nin­guém soube jamais que Isabel Viñoles havia cho­rado por um homem. Era a primeira vez que o fazia, mas também era a primeira vez que

um homem a humilhava daquela maneira.

 

                                       * * *

 

Amanheceu um dia chuvoso. Raimundo subiu no carro e dirigiu-se à casa de sua irmã. Leva­va mais no íntimo que no rosto, a bofetada que Isabel lhe dera. As mulheres sempre o dispu­tavam e jamais alguma delas se atreveu a cha­má-lo de ridículo, velho e ainda por cima esbofeteá-lo. Era, pois, uma novidade e uma humi­lhação incalculável para o homem que se con­siderava o tal em questões de amor.

Estacionou o Opel numa esquina do parque e avançou devagar. Desejava ver Isabel, mesmo em companhia de sua família. Precisava obser­var sua reação e na primeira oportunidade de­volveria a bofetada com um beijo que desejava dar-lhe ardentemente.

"Este assunto está me pondo muito inquieto    —  pensou. - É a primeira vez que me acontece tal coisa. Mas eu deixaria de ser quem sou se desistisse. "

A condessa encontrava-se na biblioteca e ao ver o irmão, deixou o livro no regaço e sorriu.

— Bom dia - saudou Raimundo, beijando-a no rosto. - De bom não tem nada, mas é a sau­dação usual.

— Sente-se.

—        Está sozinha?

— Cris foi à casa de uma amiga. E a profes­sora pediu-me licença para sair com seu na­morado.

Raimundo podia esperar naquele instante que o céu se abrisse numa chuva torrencial, que sua irmã voltasse a tocar na história de seu casamento com Berta, inclusive que um terremoto assolasse o povoado; mas o que acabava de ou­vir era algo que não podia esperar de modo algum e não pôde evitar um salto na cadeira, lançando uma rude exclamação:

— Namorado!

— Sim. Mas que há com você?

— Comigo? Nada.

— Parece assombrado que a professora tenha al­gum admirador. Não vejo razão para espanto. Ela é muito bonita.

— Sim, de fato.

— Ele chegou no trem da manhã, sabe? - con­tinuou informando a condessa, para quem tudo o que se referisse a casamento e noivado era apaixonante. - Ela não o esperava. Notava-se sua alegria. Depois pediu-me licença para ir com ele à cidade e eu permiti.

Fez-se breve silêncio.

— Mas... o que há com você? - indagou então a condessa notando o ar aborrecido de Rai­mundo.

— Comigo? Nada, claro.

— Pois parece de mau humor.

— Dói-me a cabeça ou os rins. É essa maldita praia.

— Não é a praia, meu querido. É que está fi­cando velho. Acho que se você se casasse...

— Que casar... que nada!

— Nunca o vi tão aborrecido!

— Sim, estou mesmo. Até logo.

— Como? Não almoça conosco?

— Não, não. Estou de saída.

Caminhou para a porta e saiu. Instantes de­pois, chegava Cris. Ao vê-la, a mãe observou, ainda admirada:

— Você viu seu tio?

— Sim, saiu feito um foguete. Nem pude cha­má-lo.

— Está de muito mau humor.

— Que estranho!

— De fato. Nunca vi meu irmão assim de mau humor.

— Deve estar apaixonado e as coisas não estão saindo muito bem.

— Não comece com suas novelas, querida. Va­mos para a sala de jantar.

— A professora não vem?

— Foi à cidade com o namorado. Disse que não voltaria antes da tarde.

Mas, na verdade, Isabel não havia dito que aquele visitante fosse seu namorado.

 

O carro deteve-se ante um luxuoso restau­rante, depois de ter percorrido parte da cidade. Raimundo saltou, atravessou a rua a passo li­geiro e penetrou na casa. Viu-a no mesmo ins­tante e sem pensar mais, dirigiu-se para a mesa ocupada por Isabel e seu... noivo ou namorado. Não se importava com isso. Desejava, apenas, aborrecer Isabel e complicar seu suposto idílio. Também não pensou que Isabel pudesse contar ao namorado a perseguição que lhe movia e pro­vocar um desentendimento. — Que surpresa, Senhorita Viñoles - exclamou detendo-se.

Isabel levantou os olhos e ficou desconcerta­da, olhando o intruso como se estivesse tendo visões.

— Olá - replicou.

Diante do olhar curioso de Artur, considerou necessário fazer as apresentações.

— Raimundo Encinares, tio de minha aluna. Ar­tur Sanroman.

Raimundo saudou efusivo e Artur, que era a cortesia personificada, correspondeu na mesma medida.

— Vim à capital tratar de uns negócios - ex­plicou Raimundo com a maior tranqüilidade. Re­solvi almoçar aqui. A solidão aborrece-me. Não poderia partilhar de sua mesa?

— Naturalmente, Senhor Encinares.

— Obrigado, Senhor Sanroman. Senhorita Viñoles...

Isabel mordeu os lábios ao mesmo tempo em que dava de ombros, como se indicasse que não lhe dava nenhuma importância. Raimundo sen­tou-se e logo foi atendido por um garção a quem tratou familiarmente.

— É um esplêndido restaurante, não acha, Se­nhor Sanroman? - E sem que o outro respon­desse, acrescentou: - Madrilhenho? Oh, Madri! Em nenhuma parte me senti tão bem como em Madri. A senhorita Viñoles está desejando que termine o verão para escapar deste lugar. Não é, senhorita?

— Claro.

— Nosso povoado também tem seus encantos - disse ele olhando cordialmente para Artur mas sua noiva não quer reconhecê-lo.

Esperou que Artur ou Isabel replicassem, mas ambos permaneceram calados.

— Eu tenho um apartamento em Madri. Irei para lá em meados de setembro - citou a rua e o número, e com um sorriso gentil oferece a: - Está à sua disposição para o que desejar.

Artur, ignorando o que ocorria entre Isabel e aquele homem que considerava simpático, agra­deceu o oferecimento com gentileza, retribuindo.

Isabel sabia que Raimundo estava se diver­tindo com Artur e com ela ao mesmo tempo e isso a humilhava mais que as propostas que lhe fizera na praia. Pensou em desfeiteá-lo diante de Artur e provar que ele, apesar de sua pose de grande senhor, era imoral e canalha. Um far­sante que vivia duas existências, uma para o po­voado e sua irmã e outra para si mesmo e para ela. Mas não o fez. Isabel temia muito o ridí­culo e sabia que, se falasse, Raimundo levaria tudo em tom de brincadeira e com sua esper­teza a deixaria mal. E não apenas isso, mas fi­caria mal ante os olhos do própria Artur, a quem, pelo visto, Raimundo estava parecendo muito simpático.

Durante o almoço Isabel não voltou a falar. Depois Raimundo convidou-os a aceitar condu­ção em seu carro e Artur aceitou. Ela julgou que ao chegar ao povoado, Raimundo os dei­xaria em paz, mas enganou-se de novo. Ele ofe­receu-se para mostrar a Artur alguns lugares tí­picos e Este aceitou, agradecido. Isabel sentia sobre ela os vivos olhos de Ray que pareciam dizer: "É Este o seu noivo? Um homem que admi­te que eu, um estranho para ele, partilhe de seu idílio?"

Ela fugia de seu olhar e quando, já de noite, Ray despediu-se, Artur lhe disse:

— É um homem muito educado, não?

— Bah!

— Parece que não o acha muito simpático.

— Não muito.

— Pois achei-o boa pessoa.

— Estou vendo.

— Incomoda-a que me agrade?

— Não. Que disparate! É indiferente.

Mas pensou que se algum dia teve intenção de aceitar Artur, naquele instante desprezava- o definitivamente. Achou-o sem personalidade, sem capacidade de observação. Um homem que se deixava impressionar apenas pelas aparências, carecia de personalidade. E o que Isabel mais admirava num homem era, precisamente, a per­sonalidade. E assim Artur perdeu, naquele dia, vários pontos para ela.

Não obstante, teve bastante cuidado para ocultá-lo e naquela noite, a sós, imaginou, cheia de revolta e humilhação, quanto Raimundo teria rido dela e do homem que julgava seu noivo.

Não tinha grande interesse em passear com Artur, mas visto que tinha ido ao povoado para vê-la, preferiu sair com ele do que com Rai­mundo. Mas sua surpresa foi enorme quando, na manhã seguinte, uma vez terminada a aula, saiu para o jardim, encontrando-se com Raimundo e Artur, que, sentados em confortáveis cadeiras, fumavam e conversavam tranqüilamente, como dois velhos amigos.

Ficou embaraçada, os olhos fixos em Raimun­do. Adivinhava as intenções daquele homem e odiou Artur por ser tão cândido. Contra a sua vontade imaginou aqueles homens com os papéis trocados, sendo Raimundo seu pretendente for­mal. O frívolo milionário teimava em partilhar com outro a companhia da mulher amada. Em troca, Artur, que dizia amá-la e havia ido ali para vê-la, mostrava-se encantado e quase pa­recia agradecido ao elegante senhor que lhe dava sua amizade.

Que diria Artur se ela lhe contasse... ? Tal­vez não acreditasse. Quando queria, Raimundo sabia mostrar-se amável e ninguém podia adivinhar que sob seu sorriso cordial, ocultava-se um tipo cínico e amoral. Não, ela nada diria. Três dias passariam depressa. Outros quinze e ela terminaria seu contrato, regressaria a Ma­dri, ali organizaria de novo sua vida e se es­queceria daquele caso.

Ao vê-la, os dois homens puseram-se em pé. Artur caminhou para ela e beijou-lhe a mão. Rai­mundo fitou-a e, ao encontrar seus olhos, Isabel sentiu-se perturbada e ofendida. O olhar de Rai­mundo era diferente do de todos os homens que conhecera. Era ardente, cínico e acariciante ao mesmo tempo e, para cúmulo, sua voz não se harmonizava com aquela expressão penetrante, ousada.

— Raimundo - explicou Artur com uma vaidade que pareceu ridícula a Isabel - foi buscar-me no hotel. Tomamos café juntos e agora convida-nos a sair em seu carro. É tão amável que se ofereceu como cicerone.

Sorriu irônica e encontrou de novo o olhar de Raimundo.

—  Esta manhã não posso sair - retrucou com suavidade, certa de que não desejava dizer aqui­lo. - Tenho trabalho atrasado e preciso pô-lo em dia. Mas, visto que o Senhor Encinares é tão amável, que faça às vezes de cicerone para você. Eu.. conheço muito bem tudo isto.

— Senhorita Isabel - disse Raimundo amàvelmente -, ofereço-me com muito prazer para tudo que seu noivo deseje.

— Artur ficará agradecido - respondeu ela.

— Mas, Isa...

— Lamento, Artur. Não posso deixar de lado mi­nhas ocupações.

Naquela noite, Raimundo comentava o caso com Matias, observando:

— Ela tem uma forte personalidade. E ele é um perfeito idiota.

— Então não me diga que são noivos.

— Claro que não são. É fácil compreender a mentalidade dos madrilhenhos. E sabe o que descobri?

— Não, senhor...

— Pois eu direi. Esse cândido Artur, que, diga- se de passagem, é um infeliz e por sorte parte amanhã, está louco pela professora, mas esta... não corresponde a seus sentimentos.

— Conseguiu descobrir tudo isso?

— É fácil averiguar certas coisas, com tipos in­gênuos. Agora, já não é a mesma coisa, tratan­do-se de pequenas espertas como Isabel. Claro que aqui não posso estender muito as minhas asas, porque sou muito considerado no povoado e não quero perder essa reputação que me convém.

— Claro, senhor.

— Mas quando chegarmos a Madri...

— Não iremos viajar Este inverno?

— Claro que sim, mas depois. Antes tenho de cansar-me dessa jovem.

— E se o senhor não puder conquistá-la?

— Que está dizendo? Como se atreve a pensar semelhante coisa? É ou será uma jovem difícil, mas ainda que me custe a metade de minha fortuna, será minha como as demais.

Matias conhecia seu patrão e jamais o vira tão interessado por uma determinada mulher. Por isso, murmurou:

— Parece que o senhor está muito interessado nessa jovem.

— Natural. Mas quando a conseguir...

— E se não a conseguir, senhor?

— Quer calar a boca? Está estragando a única noite de minha vida em que pretendo descansar como um anjo.

— Está certo, senhor. Mas tenha cuidado.

— Vá dormir, Matias e deixe-me em paz.

Na manhã seguinte foi ao hotel buscar Ar­tur, mas teve a surpresa de receber um envelope dirigido a ele, contendo o seguinte bilhete:

 

"Amigo Raimundo: Sinto não poder des­pedir-me de você. Ontem tive uma conversa definitiva com Isabel e ela recusou meu pe­dido novamente. Sinto-me desolado e humi­lhado em meu amor-próprio. Corro para Madri em busca de consolo. Espero que nos tornemos a ver e quando for a Madri agra­decerei que me avise. Apreciei muito suas atenções e o saúdo com o maior respeito e consideração. Seu amigo, Artur. "

 

Raimundo dobrou a carta com um sorriso irônico.

 

O encontro teve lugar naquele mesmo dia, ao entardecer. Raimundo tinha ido à casa de sua irmã e, não vendo Isabel, usou de suas manhas para saber onde estava. A condessa não teve dúvidas em contar-lhe tudo. Disse-lhe que as re­lações entre Isabel e seu noivo não deviam ser muito cordiais, uma vez que Artur havia parti­do quase inesperadamente. Raimundo não lhe disse que tinha uma carta de despedida no bol­so. Para quê? Não desejava que sua irmã per­cebesse que estava ao corrente dos fatos. Pre­feria que o julgasse à margem.

Depois a condessa contou-lhe que Isabel tinha ido ao campo para desenhar. Raimundo apres­sou-se em sair. A irmã acompanhou-o ao portão.

— Estou preocupada. Cris progrediu muito no es­tudo de línguas com essa professora. É verdade que ela parece um tanto enigmática e demasia­do elegante para sua profissão, mas isso não tem muita importância.

— E daí?

— Eu pedi para que ela ficasse.

Raimundo torceu o nariz. Não lhe convinha semelhante coisa para seus fins. Desejava ver Isabel livre de compromissos, longe de sua fa­mília e então seria mais fácil que aceitasse de uma vez suas propostas.

— E que disse a professora?

— Que não podia. Que tinha suas aulas de in­verno em Madri... Ofereci-lhe quase uma for­tuna - acrescentou, tristonha. - Ela não aceitou. Disse que regressaria a Madri no fim deste mês.

— Dentro de quinze dias - observou Raimundo intimamente satisfeito.

— Sim.

— Lamentável, não?

— Muito. Sabe o que estou pensando, Ray? Não estava interessado nos pensamentos da

irmã. Estava perdendo o tempo ouvindo suas la­mentações e desejava correr ao campo até en­contrar Isabel.

— Não posso saber, irmã.

— Que seria bom para Cris passar o inverno em Madri. Desde que morreu meu pobre esposo - gemeu a condessa - não saí deste povoado.

— O ar daqui é saudável - argumentou Raimun­do, que não tinha nenhuma vontade de ver sua irmã em Madri.

— Mas Cris está crescendo.

— Naturalmente. Não vai querer que fique uma anã.

— Claro que não. Mas é preciso dar-lhe um am­biente apropriado à sua posição. Acho que vou abrir minha casa em Madri. Será como ativar recordações - suspirou fundo -, mas não terei outro remédio.

— Acho que devia pensar primeiro. Esperar mais um ano.

— Outro?

— Sim. Cris ainda é muito jovem e em Madri você não a teria tanto a seu lado. Lá terá de partilhá-la com os amigos.

— Acredita mesmo?

A condessa era muito ingênua, e Raimundo um ladino com cara de anjo. Ele tinha feito seus cálculos. Pensava convencer Isabel e entre convencê-la, tê-la à sua mercê e cansar-se dela passaria um ano e sua irmã em Madri estra­garia tais planos.

— Acredito.

— Pois fica para o ano que vem.

— Acho que agiu bem.

— Deus queira que até lá você já esteja casado, Raimundo.

Ele tossiu ligeiramente. Casado, ele? Nem que estivesse louco. Ele não tinha queda para ma­rido, embora a condessa julgasse o contrário. Antes a morte que ficar ligado para sempre a uma mulher.

Despediu-se apressadamente e vagou pela campina, até que a encontrou.

Isabel estava sentada à sombra de uma ár­vore. A seu lado os apetrechos do desenho. Ela não pintava naquele momento. Fumava e con­templava a paisagem com ar nostálgico. Rai­mundo jamais a tinha visto tão bela como na­quele momento.

Por um breve instante vacilou e chegou a perguntar-se se estaria agindo mal. Estranhou aquele pequeno protesto de sua consciência e, decidido, aproximou-se da professora.

— Boa tarde, Senhorita.

Ela olhou-o brevemente, como se estivesse muito longe dali. Não respondeu e levou o cigar­ro à boca.

— Ficou "viúva" muito depressa - disse ele. - Por que o deixou ir tão cedo?

— Não era meu noivo, Senhor Encinares - re­plicou friamente. - Se o fosse, o senhor não teria ocasião de aproximar-se de nós.

— Hum... Sabe o que penso?

— Não me interessa.

— Pois a mim interessa dizê-lo.

— Acho que perde seu tempo. E saiba que mesmo que o amasse...

— Você já me disse isso outro dia. Não me jul­gue um vaidoso, Isabel - aduziu, sorridente -, mas a verdade é que as mulheres se enamoram de mim com muita facilidade.

A jovem fitou-o com um ar irônico e ele, con­tra a vontade, sentiu-se pequeno diante daquele olhar.

— Diabos de pequena! - resmungou. - Dê seu prêço, Isabel e deixemos de rodeios. Saiba, por mais alto que seja, eu pagarei com prazer.

As faces da professora tornaram-se róseas. Pareceu que ia protestar com violência, mas não foi assim. Sua voz soou calma, seu semblante se­renou e Raimundo sentiu-se inquieto, pois pre­feria mil vezes vê-la enfurecida que sob aquela capa de serena frieza. E foi naquele instante quando pensou na desagradável possibilidade de um fracasso. E esta repentina suposição pôs um gosto amargo em sua boca. — Senhor Encinares - disse Isabel com grande dignidade - poderia cuspir-lhe no rosto e de­monstrar-lhe assim meu grande desprezo. Po­deria levantar minha mão e esbofeteá-lo como fiz em outra ocasião, ou poderia, ainda, falar a sua irmã e fazê-lo perder seu prestígio de senhor respeitável. Mas... - sorriu com desprezo - não farei nada disso. Seria descer até seu lugar, coisa que não desejo, absolutamente. Não sei o valor que terá minha pessoa. Para mim, claro está, vale muito, mas meu físico, que o senhor quer comprar, não tem valor algum, comparado com minha moral. Esta tem um valor incalculá­vel, até o ponto de que toda a sua fortuna e uma penitência eterna por sua parte, não seriam suficientes para pagá-la. - Levantou-se e Ray ficou onde estava, olhando-a confuso. - Senhor Encinares, desta vez fracassou. E tem. mais: fosse o senhor o último homem do mundo e eu não o aceitaria, mesmo para salvá-lo do inferno. E agora que já conhece a minha opinião, espero não volte a molestar-me.

E sem esperar resposta, deixando-o perplexo, Isabel perdeu-se na escura campina que a noite

ia tingindo de sombras.

 

Três dias depois, Isabel voltava a passear pelo campo. Desta vez sem material de desenho. A praia pela manhã e o campo pela tarde, eram suas únicas diversões. Faltavam dez dias para voltar a Madri. Como passavam devagar aqueles dias!

A tarde era escura. Começara a chover. Isa­bel apressou o passo, mas grossas gôtas e re­lâmpagos cortaram-lhe o caminho. Seu cabelo começou a empapar-se. Procurou com os olhos um refúgio e viu uma cabana que parecia per­tencer a antigos pastores. Dirigiu-se para lá e entrou. Cheirava a umidade. Havia palha sêca num canto e do outro lado e junto à boca que formava a rocha fazendo de porta, um grande penhasco. Sentou-se nele e acendeu um cigarro Não temia os trovões, mas ouvira dizer que por aquele lugar os raios mataram certa ocasião dois pastores e um rebanho de ovelhas.

O espetáculo era maravilhoso. Os raios risca­vam o céu em chamas vermelhas e os trovões sucediam-se em intervalo. A água corria pelo ca­minho vizinho e, devido aos trovões, Isabel não ouviu o ronco do motor lá fora. Quando perce­beu, o Opel de Raimundo parava diante da casa e ele saltava ao solo em duas passadas e che­gava a seu lado.

A presença daquele homem assustou-a mais que a tormenta. Mas, firme em seu papel de jo­vem valente, monteve-se imóvel e indiferente. — Estava num café quando a vi atravessar a praça nesta direção - disse Raimundo. - Já me havia esquecido de você quando começou o tem­poral. E saí à sua procura. As chuvas, aqui, po­dem prolongar-se por um dia e uma noite e...

—        sorriu - quis devolver a sua caridade. Você tem pena de mim e eu de você.

— Não pense que vou agradecer.

— Calculo. Posso sentar-me nessa pedra ou nes­ta palha?

— Prefiro que vá embora.

— Oh, não! - riu ele. - Nem de carro me atre­veria a sair neste instante. Além disso, gosto desta intimidade a seu lado. Eu pensei muito em você, Isabel.

— Não me interessa que pense, Senhor Encinares. Já sabe a opinião que me merece.

— Claro. Pensei... que talvez pretenda que me case com você.

— O senhor detesta o casamento. Para mim, em­bora não acredite, isso é indiferente. Não quero casar-me com o senhor, visto que não o aceita­ria nem coberto de ouro.

— Pois estou coberto de ouro - riu ele -, mas você não é mulher que se case com ouro. Já conheço seu desinteresse.

— Pois então, deixe-me em paz. Não acha que usa muita conversa para não obter nada? Nunca reparou em si mesmo?

— Como?

— Quero dizer se nunca se analisou. O senhor é um homem que sempre conseguiu tudo que desejava da vida.

— É verdade.

— E sente-se feliz?

— Quê?

— Pergunto-lhe se está feliz com seus triunfos.

— Ora, sim. Mas não sei aonde quer chegar.

— A parte alguma. Simplesmente digo-lhe que não acredito em sua felicidade. Se por acaso é feliz, não passa de algo efêmero. Pode ser que esteja contente fazendo ver ao povoado, de pes­soas cheias de preconceitos absurdos, que é bom, embora, na realidade seja um homem imoral e odioso.

— Escute, eu...

— Sinto ter que ser tão dura - acrescentou Isa­bel -, mas sempre tive a coragem de dizer aquilo que penso e sinto, e neste instante acho necessá­rio fazê-lo saber o que penso de sua felicidade e de suas paixões.

— Gosto de ouvi-la. Continue. Esquecerei fàcilmente a tarde deste dia. Nem sua silhuêta sen­tada na pedra, nem os raios que rasgam o céu. E quero que saiba uma coisa. É a primeira vez que alguém me fala dessa maneira. Continue, vamos...

— Acho que já sabe tudo que posso dizer-lhe.

— Afirmo que não. Devo confessar que sou um pouco inconsciente. Agrada-me esta conversa. Fa­lamos sinceramente. Eu não vou negar que desejo. Jamais desejei tanto uma mulher. Mas não acredito no amor. As mulheres demonstra­ram-me que tal sentimento não existe.

— A que espécie de mulheres se refere?

— Mulheres - recalcou. - Por acaso não são todas iguais?

— Esse é seu grande êrro. — Quer que o lamente?

— Não me interessa. Mas saiba que o amor existe.

— Você sabe... por experiência.

— Sei.

— Não fique tão solene.

— Estou apaixonada por você, Raimundo - disse ela com súbita decisão.

Ele esperava tudo naquele instante, que um raio o fulminasse, que surgisse um terremoto e até algumas bofetadas de Isabel, menos aquelas palavras que levavam em si um mundo de since­ridade e ao mesmo tempo de renúncia. Não fi­cou imóvel. Levantou-se como que impelido por uma mola e ficou olhando a jovem professora, como se a conhecesse apenas naquele instante.

— Isabel - exclamou com uma voz que ele pró­prio achou estranha. - Sabe o que está dizendo? — Você já o sabe. Meu amor surgiu de modo inesperado. Não sei como, nem em que circuns­tâncias.

— Que importa isso, querida?

Isabel levantou-se e colocou a mão entre os dois, como que pedindo distância. — Não me chame querida, Raimundo, nem pense que venceu. Confessei-lhe meu amor com toda lealdade, esperando encontrar em você uma leal­dade igual à minha.

 

     Olharam-se fixamente. Começava a escurecer e a brisa tornava-se intensa por momentos.

— Isabel - disse Raimundo. - Eu não sou leal. Não pode, portanto, apelar para o que não te­nho. Mas se de fato você me ama, deixe-se que­rer naturalmente.

— Não é isso. Se lhe confessei meu amor, não quer dizer que declarei meu desejo - recalcou. - Quis demonstrar quanto desprezo o que há de errado em seus sentimentos e que saberei do­minar meu amor e esquecê-lo.

— Você é um anjo ou o quê?

— Sou uma mulher honrada.

— Bobagens, Isabel. A honradez e o amor não  precisam andar brigados. Acha que é pecado en­tregar-se a mim?

Isabel respirou fundo e seus olhos brilharam intensamente, antes de responder.

— Lembra-se do que lhe disse outro dia?

— Sim, sim - impacientou-se -, mas você me ama e isso é o que me importa..

— Você disse que as mulheres o amam com facilidade. Sim, é verdade. Você tem algo as­sim como um feitiço que atrai, mas para uma mulher como eu, não é bastante.

— Mas você me ama - resmungou, teimoso, como se não visse mais além daquele amor surgido de repente e como uma ventura.

— Sei bem que não é o suficiente para vencer- me. Quanto mais o ame, mais longe estarei de você.

— Como pode ser?

Ela esboçou um amargo sorriso e dando de ombros, afirmou:

—Pareço louca, não? Preferia ter ficado.

Ele contemplou-a perplexo por longos segun­dos, até que murmurou:

— Que me enforquem se a entendo.

— É lógico.

— O que lhe parece lógico?

— Sua incompreensão. Você precisaria, ser sen­sível e não o é. Para você o amor é um negócio e só quando chegar à velhice notará sua solidão e perceberá o grande êrro cometido na vida. Mas... não será demasiado tarde? — Ora, Isabel! Parece que está apelando para minha sensibilidade e eu nunca fui um sen­timental nem um tímido.

— Você sufocou tudo de bom que havia em seu íntimo para desfrutar de certas paixões. Nunca pensou que tudo tem um fim?

— Aviso-a - disse, furioso - que não procure em mim um sonhador...

— Não pretendo. - E sem transição, olhando para a campina envolta em nuvens, concluiu: - La­mento, mas já é tarde e tenho de voltar para casa.

— Eu a levarei no carro.

— Prefiro ir a pé.

— Escute, pequena...

— Já disse que vou a pé.

Ele agitou-se. Por um instante julgara que a tinha em seu poder e eis que a sentia mais distante que nunca. Que espécie de amor sentia aquela jovem por ele?

— Você disse que me amava, Isabel.

— E não nego. Este amor é como um castigo do céu.

— Castigo? Eu diria que é uma ventura.

— Para você teria sido - disse Isabel, baixinho.

— Mas eu jamais... jamais lhe darei essa ven­tura.

—  Como? E que vai fazer com seu amor?

—  Dominá-lo.

— Isso é uma estupidez.

— Para quê vamos continuar falando disso, se você não me compreenderá jamais?

—  E é bem verdade que não a entendo - retru­cou, impaciente. - Quando uma mulher ama, o normal é que se deixe querer pelo objeto de seu amor.

—  Talvez seja diferente das outras mulheres.

—  Não, Isabel. Não queira aparentar uma virtu­de que não possui. Você é como todas.

Ia tocá-la, mas Isabel levantou a mão e a colocou entre eles.

—  Cometeria um grande êrro se permitisse que você me beijasse.

—  Quê? Não é o que está querendo?

— Exatamente por isso.

—  Então você o quer?

—  Sim. Mas você não me beijará. Raimundo bateu com o pé no solo, irritado.

Depois olhou-a duramente e vociferou:

—  O que você quer é casar-se comigo. Mas não sabe que sou inimigo do casamento? Não casarei jamais enquanto o amor puder ser conseguido de outro modo.

—  Você poderá comprar o dessa sociedade a que está acostumado. O meu sentimento não se vende. Compreenda de uma vez.

— Como? Quer dizer que não se casaria comigo, se eu lhe pedisse?

— Não!

Ele deu um passo atrás e contemplou-a, per­plexo. Nos negros olhos de Isabel podia-se ler sua firme decisão, sua sinceridade. E Raimundo estava demasiado prêso às paixões vulgares para compreender, e menos aquilatar, o valor moral daquela jovem.

— Com mil diabos! Não a entendo! - bradou, o rosto congestionado.

— Sei que não me compreende e lamento muito. Agora, por favor, deixe-me passar.

— Não sairá daqui antes de esclarecer o que significa sua negativa.

Ela fitou-o, decidida, por instantes. Depois indagou num tom firme:

— Você seria mesmo capaz de pedir-me em ca­samento?

— Eh? Hum...

— Pediria?

— E eu sei lá? Se continuo pensando como an­tes, claro que não.

— Pois ainda que me pedisse, não casaria. Você não me ama. Deseja-me apenas. E seu desejo é humilhante para uma mulher decente. E eu, Rai­mundo, sou decente acima de tudo.

— Tolices, pequena! Venha aqui e deixe-me bei­já-la.

— Eu o estaria desejando - disse ela com vigor seria minha única razão de viver, mas assim mesmo recusaria.

— Afinal, que deseja de mim então? - bradou alterado e fitando-a intensamente.

— Seu amor. Um amor como o que eu sinto. Raimundo sorriu como que tranqüilamente e avançou para ela.

— Pois já o estou sentindo. Venha aos meus braços.

Isabel horrorizou-se e deu um passo atrás. Estava à porta. Só precisava retroceder um pas­so mais e se acharia em plena campina.

— Isabel...

— Em meio de meu amor - disse ela baixinho - neste instante, o desprezo é maior que nunca, Raimundo. Você é mesquinho, traiçoeiro e egoísta.

E começou a correr sob a chuva. Raimundo apertou os punhos e bradou: — Não compreendo estas mulheres. Bolas, se as entendo.

 

Aquela noite foi à cidade e julgou que podia divertir-se mais que nunca. Mas a lembrança de Isabel perseguia-o como um fantasma.

Regressou ao amanhecer, cansado, enfastiado e irritadiço. Encontrou Matias em seu quarto dormitando, encolhido numa poltrona.

— Acorde, malandro! - gritou sem piedade.

O pobre Matias abriu um olho, depois outro e pôs-se finalmente em pé.

— Ainda não o esperava, senhor. Raimundo, como sempre, ia tirando a roupa

e jogando-a no tapête. Matias as recolhia com sua habitual calma e docilidade, sem resmungar.

— São cinco da manhã, Matias. Quer acordar de vez!

— Já estou acordado, senhor.

— Sente-se.

Matias obedeceu e Raimundo, em mangas de camisa, descalçou-se com uma expressão cansa­da que dava pena, deixando-se cair na borda da cama e começou a divagar:

— Você algum dia entendeu as mulheres, Matias?

— Algumas, senhor.

— Só sabe dizer isso? Acabo confundindo-o com Dom Ângelo.

— Sim, senhor.

— Deixe de dizer, "sim senhor", Matias, ou dou- lhe um murro.

— O senhor chegou de mau humor.

— Que mau humor qual nada! Aqui estamos fa­lando de mulheres, não?

— É verdade.

— Está com sono, Matias?

— Bem... um pouco, senhor.

— Desperte!

— Já estou pronto para ouvi-lo.

E o pobre criado começou a piscar para provar que estava bem desperto.

—  Matias, a professora me ama - disse com aque­la puerilidade que às vezes o acometia.

—  É um sucesso que eu já previa há muito tempo, senhor. Lembra-se?

— Sim, eh? - resmungou. - Pois fique sabendo que não levei vantagem nenhuma.

— Não?!

— Não. E não me olhe com essa cara de idiota, Matias. Não tenho muita paciência e os idiotas me aborrecem.

— Sim, senhor.

— Outra vez?

Matias tinha sono e nenhuma vontade de ou­vir seu patrão naquela madrugada.

— Perdoe, senhor.

— Estou falando da professora.

— Sim, sim - murmurou, dando uma cabeçada. - Já sei que a conquistou, senhor.

— Conquistou? Diga antes que a perdi.

O sono de Matias passou como que por en­canto. Olhou o amo sem entender.

— Perdeu-a? Mas não acabou de dizer que ela o ama? - perguntou, atônito.

— É o que não compreendo. Diz que me ama e me despreza.

— É muito estranho.

— E que sabe você? - gritou. E como se estivesse cansado daquela conversa, ordenou; - Vá para a cama, Matias. E não me acorde.

O criado apressou-se a obedecer e Raimundo tirou as calças e deitou-se no leito com um sus­piro. Logo começou a pensar em voz alta: — Que está querendo Isabel? Que fez ela de mi­nha vida? Que deseja mais ainda? Sou um pobre diabo perseguido por sua figura. - E quase com irritação prosseguiu: - Seus olhos me encantam e sua boca é para mim uma obsessão. E ainda por cima, diz que me ama. Que classe de amor é esse que não acalma minha ansiedade?

À uma e meia daquele mesmo dia, Raimundo saiu de seu casarão, vestido elegantemente, ar­rogante, cabeça erguida como um príncipe roma­no. Não subiu a seu carro; fez o caminho a pé, em direção ao palacete de sua irmã.

Desejava ver Isabel. Desejava-o como jamais desejara algo em sua vida e era aquela ânsia que o fazia estremecer; mas ignorava isso, como igno­rava muitas outras coisas.

Para ele a vida havia sido muito fácil. Perdera os pais quando já tinha vinte anos. Deixaram-no dono de uma considerável fortuna, que jamais se preocupara em contar. Começou a viver muito cedo e foram as mulheres sem escrúpulos que lhe deram as aulas e nesse ambiente formou seu ca­ráter. Jamais tratou intimamente com uma mulher decente. Para ele, não existia "a mulher", senão as mulheres e estas o ensinaram a julgar o sexo fraco sem piedade alguma.

Por isso, Raimundo Encinares, apesar de seus trinta e quatro anos, ignorava muitas coisas, en­tre elas, que existe na vida um grande número de mulheres honradas a quem as peles, as jóias e os carros, não as preocupam e em troca não mostram tal desprezo pelo verdadeiro amor. Rai­mundo não acreditava nesse amor e, como jamais o havia sentido, considerava-o como secundário na vida do homem. O amor, para ele, havia sido até àquela data, um negócio, como um auto ou um cálice de conhaque ou simplesmente uma flor que após cumprir sua missão numa noite, atira- se fora, no dia seguinte. Isso era o amor, para ele.

Entrou no parque do palacete de sua irmã e caminhou até o jardim. Ali estava Maria Josefa tomando sol. Beijou-a e sentou-se junto a ela.

— Que há, querida? Onde está Cris?

— Na praia.

Ia perguntar pela professora, mas mordeu os lábios, contendo-se. A condessa fitou-o dizendo, naquele instante:

— A professora foi embora.

— Quê? - exclamou quase num grito.

A irmã contemplou-o, estranhando. Ray tra­tou de esboçar um sorriso.

— Que estranho! Por quê terá ido? Vocês briga­ram ou algo parecido?

— Claro que não. Ela foi para Madri no trem desta manhã.

— Mas... ela, não pensava permanecer aqui até fins de setembro?

— Ontem, quando chegou de seu passeio habi­tual, disse-me que desejava ir embora. Por certo que vinha molhada até os ossos. Não compreendo essa mania de passear sob a chuva.

Ray tornara-se impaciente, mas dissimulava quanto podia seu estado de ânimo. Sua irmã sem­pre detalhava as coisas em excesso. Ray nunca dera importância a isso, mas naquele momento, parecia um suplício. Uma estranha ansiedade o agitava.

Enquanto sua irmã falava, ele pensava na forma de chegar a Madri o quanto antes. Estaria o carro em condições? Ou iria de trem?

— Ela disse que havia recebido uma carta e que tinha de voltar a Madri o quanto antes.

— Você... viu a carta? — Não.

— Hum... Mas não brigou com ela, não?

— De modo algum. Achei-a um pouco inquieta, aborrecida e tive pena dela. Mas ainda que não fosse assim, nada lhe teria dito. Portou-se gen­tilmente conosco e achei-a sempre agradável e educada, Na hora de partir eu estava de pé e

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pedi-lhe que voltasse. Ofereci-lhe um ordenado melhor do que poderia ganhar em Madri. Agradeceu-me, mas... foi embora. Tinha os olhos úmi­dos ao despedir-se e pareceu-me muito pálida. Não acha estranho?

— Não - replicou cauteloso. - Todos temos nossos problemas.      

— Já vai? Não almoça conosco?

— Não posso. Eu também vim despedir-me. Parti­rei esta tarde.

— Oh! Quando decidiu?

— Um amigo espera-me em Barcelona. Termi­narei na Costa Brava, o verão. Logo lhe es­creverei.

 

Não foi tão fácil como parecia organizar sua vida em Madri. As companheiras, não todas, estavam de regresso ao colégio de Recoletos e a receberam alvoroçadas.

—  Como tem passado? - perguntou-lhe Carmem, sua amiga mais íntima e companheira de quarto.

—  Mais ou menos.

—  Parece decepcionada. Você, por natureza tão otimista... Algum... homem?

—  Um verdadeiro abacaxi.

—  Oh, mau negócio! Não quer falar dele?

—  Outro dia.

—  Acho que você estragou sua tranqüilidade in­do para esse povoado.

— Também acho.

Não falaram mais daquele assunto em vários dias. Carmem trabalhava numa agência de in­formações e voltou ao serviço. Isabel recomeçou a dar aulas, que a ocupavam desde as nove da manhã até às nove da noite, exceto às quintas e domingos que tirava para descanso. Era um costume que estabelecera desde o início e não estava arrependida, pois graças a isso podia ter em ordem suas coisas e descansar dois dias por semana, melhor dizendo, um dia, visto que o do­mingo era dedicado à diversão, ora com uma alu­na, ora com suas companheiras de pensionato. De todas, Carmem era a mais sincera e hon­rada. Desde o início sentiu-se atraída pela be­leza serena de seus olhos e sua sinceridade. Ade­mais ocupavam, um quarto e aquela intimidade aproximou-as mais.

Transcorridos alguns dias, Carmem, ao reti­rar-se para dormir, sentou-se na beira da cama de Isabel e a contemplou fixamente. Isabel tinha as mãos sob a nuca e olhava o teto. Ao sentir a amiga perto, fitou-a e esboçou um sorriso.

— Parece que você ainda não viu Artur, depois que voltou.

— Não.

— Não o avisou de sua chegada?

— Não fiz nem penso fazê-lo. Artur foi ao povoa­do visitar-me e eu lhe falei claro. Nunca pode­rei casar-me com ele.

— E... o outro?

— Bolas!

— Isabel, você nunca se apaixonou. Mas acho que desta vez a coisa é séria..

— E é.

—  Então... por que esse amor não lhe traz felicidade?

Explicou-lhe com acento cansado. Não omi­tiu detalhe algum. Quando terminou, houve um silêncio que Carmem interrompeu, sentencionando:

— Isabel, esse homem a ama.

Isabel sorriu, incrédula. Deu de ombros e com acento de resignação, respondeu: — Essa classe de homens, Carminha, não amam a ninguém, exceto a si mesmos.

— E você o ama.

— Muito - confessou seriamente. - Pela primei­ra e última vez em minha vida. É... como um castigo.

—   Eu diria que é como uma bênção, pois você, tão tímida quanto ao amor, entregou o melhor que possui em seu coração.

— Mas você não percebe, que Raimundo deseja-me para amante, não para sua esposa.

—  Há alguns dias - disse a amiga, pensativa - completei vinte e sete anos. Até então, sofri muitos desgostos. Ouvi muitas propostas vergo­nhosas que me fizeram chorar e sentir-me pe­quena e amargurada. Consegui sair ilesa de todas elas, graças à minha formação moral, e, se não caí, isso serviu-me para fazer um juízo da vida muito acertado. Você é muito nova ainda - acrescentou, sorridente. - É a primeira vez que se vê às voltas com a humilhante proposta de um homem. E eu, com a minha experiência, Isabel, posso dizer-lhe que se esse homem não puder con­segui-la como amante, há de consegui-la para esposa, se é que a ama de verdade. E se não a ama, deixe-o ir, pois não a merece e aprenda a esquecer, querida. Eu já esqueci muitas vezes. Oh, quantas vezes, querida Isabel!

— Você nunca me falou assim.

—  Já sei. Você me viu sorrir e no entanto, talvez acabasse de chorar. Chorei a sós tantas vezes que já perdi a conta. Agora, não. Habituei-me à vida incerta, à minha solidão, às propostas dos homens que, só por me verem desamparada e só, julgam-me disposta a ceder à primeira ten­tação.

— Raimundo não me quer; deseja-me unica­mente.

— E que é o amor, senão desejo? Não vai querer inspirar compaixão ao homem, não? Quando um homem conhece uma mulher, se lhe agrada, deseja-a e depois a ama, mais tarde a quer e Este carinho vai unido ao desejo, porque sem desejo, Isabel, não há amor.

— Detesto o modo de Raimundo me desejar - disse ela, teimosa.

— Isa, vou fazer-lhe uma pergunta. Você acha que Artur a ama simplesmente Não concebe que a deseja?

— O amor de Artur é puro.

— Você é uma ingênua, Isa e perdoe que o diga. Artur deseja-a tanto ou mais que esse tal mi­lionário, a quem já tenho simpatia, embora não conheça. O que acontece é que Artur cala seu sentimento enquanto que o outro, habituado a certo tipo de conquistas confessa logo, conside­rando incrível que você se recuse a atendê-lo.

— E o farei mil vezes, se for preciso.

— E no entanto - raciocinou Carmem ironica­mente você o ama muito.

— Sim - admitiu Isabel, baixinho. E com amar­gura, acrescentou: - Mas que importa tudo isso, se talvez não volte a encontrá-lo?

— Você descreveu-me esse homem de tal ma­neira que penso conhecê-lo bem. Raimundo Enci­nares não deve ser desses homens que desistem

facilmente. De uma forma ou de outra, ele a conquistará.

— Conquistar?

— Bem - retificou a outra. - Ele já a conquistou. O que fará será consegui-la como companheira.

— Nunca!

— Você o teme muito, Isa, confesse. E quando uma mulher teme a um homem é que está a ponto de ceder. E vou dar-lhe um conselho, le­vada pela minha experiência. Tenha cuidado. Se ele se convencer de que você é uma presa fácil, fará de você o que fez com outras mulheres. E uma vez obtido o que deseja, se cansará de você. Não se esquive, se ele a procurar, mas pro­cure manter-se forte e ria dele se for possível, embora por dentro tenha vontade de chorar. É o que mais dói num homem.

Isabel sentou-se no leito e apertou a cabeça com as mãos.

— Você fala assim porque não o conhece, real­mente. Creio que não o retratei exatamente por­que, de outro modo, saberia que Raimundo En­cinares é bastante forte para anular a uma jovem como eu e rir-se de suas ironias.

— É o que você imagina porque o ama demais. Eu analiso as coisas friamente e sei que esse con­quistador volúvel é como os demais homens. E os homens, Isa, são quase todos talhados pelo mesmo molde.

— Mas eu sou fraca e lutei tanto comigo mesmo que fiquei sem forças. O único consolo que te­nho é que confio não o encontrar em Madri.

Carmem lembrou-se que tinha sono e tratou de despir-se. Quando esteve acomodada na cama, paralela à da amiga, disse com suave ironia:

— Para essa classe de homens não há barreiras, Isa. Lembre-se disso. Se não a encontrar é por­que não a deseja realmente.

 

Isabel recebeu um cartão naquela tarde. Le­vantou uma sobrancelha e leu o conteúdo com certa perplexidade. No distinto cartão, com um nome para ela desconhecido, havia uma oferta tentadora para uma aula particular. Uma hora de aula para uma menina paralítica, num ele­gante apartamento da rua Serrano. Convidavam- na a ir às sete horas daquele mesmo dia infor­mando que o carro dos pais da menina chegaria às seis e quarenta ao pensionato para buscá-la.

Como tinha uma hora livre e podia dedicar- se àquela pequena, Isa dispôs-se a aceitar. Era um dinheiro que vinha bem a calhar para o in­verno que já estava chegando. Preferia consul­tar-se com Carmem, mas esta não havia regres­sado do trabalho e eram já seis e um quarto. Se desejava ir, tinha de apressar-se. Afinal, não era a primeira vez que a convidavam daquela ma­neira e ela conseguia uma aula tão bem remu­nerada.

Trocou de roupa num instante. Pôs um traje de tarde que lhe ficava como uma luva e pintou- se diante do espelho.

— Estou mais delgada - murmurou, contemplan­do sua própria imagem. - Mas acho que tudo irá bem. Há quinze dias que saí de Encinares e acho que Raimundo não tentará localizar-me. Me­lhor assim.

Mas um sabor amargo acudiu-lhe à boca. Chegou à varanda. Um belo carro achava-se es­tacionado alguns metros adiante do colégio. Um chofer, de boné na mão, parecia esperar alguém, junto à portinhola.

— É esse. Vou descer.

Apanhou a bolsa e as luvas e saiu, gentil e bonita, na direção do carro. O chofer avançou para ela, inclinou-se respeitoso e perguntou:

— Senhorita Viñoles?

— Sim.

— Suba, por favor.

Isabel entrou no carro sem vacilação. Recostada no macio assento, semicerrou os olhos e pensou:

"Se me casasse com Raimundo, teria um carro assim. E peles, jóias e tudo o que quisesse, dei­xando esta vida de lutas e trabalho".

Suspirou, chamando-se idiota. Afinal, por que pensava naquilo? Raimundo nunca se casaria. Era dos homens que só vivem felizes livres, sem ataduras, porque obtêm tudo que desejam das mulheres. Mas dela, nada obteria.

—  Chegamos, senhorita.

Sobressaltou-se. Desceu pressurosa, enquanto o chofer informava:

—  Terceiro andar. Os patrões a esperam.

—  Obrigada.

Subiu sem vacilações. Apertou a campainha e a porta foi aberta por um criado já idoso, ves­tido a caráter.

—  Sou Isabel Viñoles.

—  Ah! Entre, por favor. Por aqui, senhorita, Isabel avançou por um longo e atapetado cor­redor, seguindo o criado. Estava habituada ao luxo das moradias que diariamente visitava e aquela não desmerecia de quantas havia conhecido no transcurso de sua vida de professoras.

—  Por aqui, senhorita - disse o criado, amàvelmente.

Franqueou a entrada e a professora caminhou sem hesitar.

—  Sente-se, por favor. O patrão a receberá agora mesmo.

Fez uma inclinação respeitosa e afastou-se, fechando a porta atrás dele.

Isabel olhou de um lado a outro com curio­sidade. Estranhou o luxo austero daquele salão. Não havia um só detalhe que denotasse a mão de uma mulher. Até os arranjos tinham algo de masculinizado, como se ali não entrasse nun­ca o bom gosto feminino.

Subitamente girou para a porta que se abria naquele instante e uma exclamação logo abafa­da surgiu de seus lábios. Diante dela, sorridente, elegante, irônico, encontrava-se Raimundo En­cinares. Ficaram frente a frente; ela, muda de espanto. Ele, sorridente com seu pequeno triunfo. Avançou para ela com as mãos nos bolsos detendo-se a poucos passos. Contemplou-a fixa­mente, com aqueles olhos castanhos de expressão penetrante.

—  Vim aqui - disse ela com um fio de voz - para tratar de uma aula...

—  Eu sei perfeitamente, pequena. Fui eu quem escreveu aquele cartão, convidando-a para esta hora. - E rindo, acrescentou: - Este é meu lar e desejo que você veja como é confortável...

— Não me interessa. Se na verdade fui vítima de um logro, deixe-me ir embora.

E deu um passo à frente, mas Raimundo co­locou-se diante dela e murmurou, persuasivo e autoritário:

— Acabemos de uma vez, pequena. Não a chamei aqui para vê-la, apenas. Há muitos dias que es­tou em Madri procurando-a como um louco e eu não costumo procurar as pequenas. São elas que, até hoje, andaram atrás de mim.

— Eu lhe disse certa ocasião, e repito-o agora, que você só tratou com certo tipo de mulheres. — Bobagens! Faça o favor de deixar essas to­lices de lado. Não a mandei buscar para perder tempo. Que deseja afinal? Carro peles e jóias? Bem, você os terá. Não costumo comprar o amor a tão alto preço mas você é uma exceção.

Isabel já não sentia indignação. Desde que conhecera Raimundo Encinares habituara-se a ouvir a mesma coisa. Mas sentiu um tremendo desejo de chorar. Contudo, apertou os lábios im­pedindo que um grito lhe escapasse da garganta. Logo, com redobrado esforço para manter a cal­ma, sentenciou:

— Eu lhe disse também uma vez e o repito hoje; nem coberto de ouro eu atenderia a seus desejos.

— Mas você me ama - protestou, mais impacien­te que indignado.

Isabel voltou a morder os lábios, respirou fun­do e disse:

— Sim, mas acima de meu amor está minha dig­nidade.

— Isso são escrúpulos de menina boba. Com quem estará melhor do que comigo? - Aproxi­mou-se mais, porém ela manteve-se firme e si­lenciosa. Mais impaciente ainda, ele acrescentou: - Se não deseja viver comigo em Madri, iremos para outra parte. Quando eu me cansar de você, e costumo cansar-me depressa - riu cinicamente -, eu lhe darei o bastante para viver e ninguém, exceto você e eu, saberemos o que aconteceu. Eu ficarei com uma boa recordação e você terá dinheiro, muito dinheiro e nenhuma ne­cessidade de voltar a andar de casa em casa dan­do aulas.

Isabel não pôde responder. Tinha um nó na garganta e tal desejo de chorar, que voltou a cabeça para um lado e dirigiu-se para a porta, como se a perseguisse o próprio demônio.

Raimundo não esperava aquela reação. Nem por um instante pensou que ela fosse negar-se. Claro que o fizera no povoado, mas em Madri... Era um insulto para ele.

— Ouça! - gritou, detendo-a e sacudindo com fúria o braço feminino. - Que significa seu si­lêncio? Tenho pouca paciência, e estou interessado por você. Juro que ninguém saberá jamais o que ocorrer entre nós.

—  Está esquecendo que temos um supremo Juiz e nada passa impune ante seus olhos. Mas ain­da que não fosse assim, eu o saberia e tenho tal respeito próprio, que antes prefiro a morte a ser sua amante.

—  O que está dizendo?

—  Prefiro mil vezes a morte - sussurrou Isabel, com estranha firmeza.

E Raimundo percebeu, naquele instante, que jamais conseguiria dominar aquela bela profes­sora. E aquele seu primeiro fracasso enfureceu-o. Apertou com raiva o braço da moça e gritou:

—  Está querendo que me case com você? É isso o que deseja?

—  Está me machucando - gemeu Isabel, pro­curando defender-se.

—  Eu a mataria. Está entendendo?

—  Talvez - disse ela, baixinho. - Mas nada con­seguiria de mim.

Com um gesto brusco, Raimundo tentou apertá-la em seus braços enquanto Isabel agitava-se frenèticamente. Mas ele era mais forte e con­seguiu mantê-la imóvel. Depois, com ansiedade febril, procurou-lhe os lábios. Foi tal o temor da jovem que temia ficar presa daquele sortilégio que dele emanava que levantou a mão e suas unhas cravaram-se com raiva no rosto de Rai­mundo. Este lançou um grito e soltou-a. Ficou parado diante dela, com a mão tapando as duas feridas que as unhas deixaram em sua face.

— Sua idiota! - gritou ele, enfurecido.

E seus dedos tocaram o rosto ferido com vio­lência. Foi quando, ao levantar o olhar e fixá- lo no rosto pálido da jovem, sentiu um estreme­cimento que o deixou surpreso. Isabel chorava em silêncio.

Pela primeira vez, Raimundo via uma mulher chorar. Uma mulher firme, enérgica e honrada como aquela, que acabava de dar-lhe a única li­ção de sua vida.

— Isabel - exclamou com estranho acento. - Isa­bel...

A jovem correu para a porta com as mãos cobrindo o rosto, banhado em lágrimas,

— Isabel! - gritou.

Sua voz tinha um acento de angústia. Mas Isabel corria como que enlouquecida e ela mesma abriu a porta da rua, lançando-se a esta como se a perseguissem.

Raimundo deixou-se cair numa poltrona e tapou o rosto com as mãos. Naquele instante o sangue que emanava de seu rosto, produzido peIas unhas da jovem, não lhe importava nada. Algo bulia em seu íntimo. Algo desconhecido, que jamais sentira no transcurso de sua vida e que o surpreendeu.

Pôs-se em pé e, vacilante, saiu do salão e di­rigiu-se para o quarto. Matias, ao vê-lo, avan­çou alarmado.

— Que aconteceu, senhor?

Raimundo tirou um lenço do bôlso e limpou o rosto, sem responder.

— Senhor...

— Acalme-se, Matias - disse Raimundo com um acento estranho para o criado. - Acabo de saber que há um amor neste mundo que não tem pre­ço - sorriu com um esgar indefinível. - Parece inverossímel, mas é a realidade...

— Senhor...

— Dê-me um esparadrapo para o rosto.

— Mas...

— Acabo de ver uma mulher chorar, Matias - disse Raimundo, pensativo. - E não eram lágri­mas fingidas. Eram, pelo contrário, lágrimas au­tênticas. E é isso que me espanta, Matias.

— Quer... quer tomar algo, senhor?

— Cale a boca. Não estou perturbado, fique sa­bendo. Estou... maravilhado.

E o criado, que pela primeira vez não com­preendia seu amo, ficou observando-o aturdido. Mas Raimundo não o via. Pensava, pela primei­ra vez em sua vida, em algo puro e sério.

 

Não disse a ninguém o que sucedera, nem mesmo a Carmem. E não o fez, porque desejava esquecer, não apenas o incidente, mas também Raimundo, de quem já nada esperava, exceto uma atitude vergonhosa. Mas ela preferia morrer a aceitar uma situação humilhante.

Isabel tinha sido educada num lar cristão e até então ninguém lhe fizera proposta tão vergonhosa como aquela. Sentia-se mais magoa­da justamente por não estar habituada a rece­ber golpes tão duros como aquele.

Passaram-se três dias. Artur chamou-a pelo telefone, propondo sair com ele. Escusou-se. Pa­ra que alimentar as esperanças de um homem

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que estimava, mas com o qual não se casaria jamais?

"Darei aulas toda a minha vida - pensou. - Hoje sou jovem, amanhã serei solteirona, mais tarde uma velha e depois... Bem, a partir de agora não comprarei modelos caros e pouparei o dinheiro. Preciso dele para assegurar minha velhice... "

Podia casar-se com outro homem e formar o lar tão sonhado e ter filhos...

Mas ela não podia amar homem algum depois de ter conhecido Raimundo. Talvez fosse um castigo, não o sabia... Por que fora tão descui­dada? Devia ter-se precavido. Apaixonar-se por um homem como Raimundo havia sido um des­cuido imperdoável.

Numa daquelas tardes, duas alunas, as irmãs Espinhosa, convidaram-na para uma festa. Isa­bel procurou escusar-se, mas tanto Maria Begônia, que tinha sua idade, como Piluca, a me­nor, continuaram insistindo e a professora não teve outro remédio senão aceitar. — Será numa boate do centro - explicou Begônia. - Uma amiga comemora seu aniversário e nos pediu para convidar você. Lá estarão mui­tas de suas alunas e alguns homens muito inte­ressantes.

— Francamente, não me interessam os homens

— disse Isabel, com amargura na voz.

— Você voltou muito estranha do povoado. Já disse à mamãe que fez muito mal recomendá-la e você em aceitar, deixando nosso convite para ir conosco a Algarta.

— Eu precisava trabalhar.

— Mas aposto que aconteceu alguma coisa séria nesse tal povoado para onde você foi.

— Não aconteceu nada.

— Tem mesmo certeza de que não deseja con­tar-nos? - indagou uma das irmãs.

— Francamente... nada tenho que dizer!

— Bem, seja como você quiser. A propósito, ou­vi dizer que Cristina Salcedo tem um tio estu­pendo. É verdade?

Isabel não desejava falar de Raimundo. Há quatro dias que tentava por todos os modos es­quecer aquele homem e o que sucedera em seu apartamento de solteiro.

— Não sei dizer...

— Você não o conheceu?

— Sim.

— E é mesmo tão interessante como dizem?

— Sei lá.

— Não tente enganar-nos. Minhas amigas estão loucas por ele. Dizem que tem fama de homem sério.

Isabel tossiu ao ouvir aquilo. Rápida, pro­curou dissimular a inesperada reação.

— Você tem fama de boa observadora, Isa. Que achou dele? Vamos, não seja teimosa.

— É muito elegante.

— Só isso?

— É bonito.

— Além disso, tem trinta e quatro anos e muito dinheiro. Um ótimo partido, não?

— Segundo o que você considere um ótimo par­tido - respondeu Isabel, sem muita vontade de continuar discutindo aquele assunto.

As duas colegas, muito curiosas, pareciam en­tusiasmadas e continuaram perguntando.

— No dizer de minhas amigas, Raimundo Encinares é de fato um homem muito interessante. Está aqui em Madri, sabe? E tem sido visto em muitos lugares. Eu gostaria de conhecê-lo. Será realmente tão sério como dizem?

— Não me interessei muito por ele - disse Isabel, evasiva. E procurou mudar o rumo daquela con­versa.

Pela tarde, Begônia e Piluca passaram em seu carro para apanhá-la. Ao vê-la, ficaram im­pressionadas. Ela era muito bonita, muito distinta e todas as suas alunas o sabiam. Mas na­quela tarde a beleza de Isabel Viñoles causava admiração. Vestia com apurado gosto, um traje de coquetel, sapatos e bolsa combinando com o jôgo. Seus olhos de cigana tinham no fundo uma expressão sonhadora que a favorecia de manei­ra extraordinária.

— Você está linda, querida - disse Begônia. Isabel deu de ombros e nada respondeu.

      O que poderia dizer? Havia-se arrumado apenas para não destoar de suas alunas,  mas Deus sa­bia que não se detivera mais em seu arranjo da tarde. Fizera-o, como vinha fazendo tudo ulti­mamente, de maneira automática, sem encanto e sem ilusão.

No salão de festas reinava grande alegria. Eram todos seus conhecidos e a rodearam com demonstrações de carinho. E, de repente, ela o viu.

Estava ali, a curta distância, olhando-a fixa­mente. Sentiu-se perturbada, fora de lugar. Des­viou o olhar, mas não lhe serviu de nada. Rai­mundo aproximou-se, sentou-se a seu lado e disse:

— Estive a ponto de recusar o convite. Um sexto sentido preveniu-me, porém. Teria sido você que me deu o aviso para vir?

Ela não respondeu. Seus olhos caíram nas duas marcas vermelhas ainda visíveis no rosto de Raimundo. Ele levou a mão ao rosto e comen­tou com tom irônico:

— Foi uma grande lição, Isabel.

— Terá de receber ainda muitas outras, em tro­ca de sua ousadia. Senhor Encinares.

— Hum...

Ninguém reparava neles. Cada um tinha seu próprio par e dançavam na pista com grande sa­tisfação. Eles, como que isolados do mundo, fi­tavam-se de vez em quando. — Quero dançar com você, Isabel. — Não.

— Não seja tolinha...

— Jamais dançarei com você.

— Acho que daqui por diante, você só poderá dançar comigo, Isabel.

— Outra vez?

— Outra vez... o quê?

— Já sabe o que pode esperar de mim, não? Creio que já o demonstrei com toda clareza.

— Esqueçamos isso. Faça de conta que me co­nheceu neste instante.

— É impossível.

— Eu lhe suplico.

— Não!

— Definitivamente?

— Sim.

— Isabel - disse ele, tamborilando com os dedos sobre a mesa -, você está me saindo uma teimosa de primeira linha. Conheci muitas mulheres e jamais topei com uma assim, como você. Não há dúvida de que é uma novidade para mim.

— Não desejo ser uma novidade.

— Além disso, você é uma autêntica mulher - disse ele, de uma forma estranha, pondo-se de pé. - Vamos dançar, Isabel.

— Não!

— Eu lhe suplico. E veja que é a primeira vez que suplico algo. Até agora exigi, sem compreen­der que você não é mulher de aceitar exigências Hoje eu lhe suplico humildemente.

A tentação era grande, mas sua força de von­tade maior, de modo que ela recusou com fir­meza.

— Está bem - exclamou ele, resignadamente. - Ficarei a seu lado, mas aviso-a que não dançará com nenhum outro homem, a menos que deseje um escândalo.

Isabel não respondeu. Limitou-se a levantar os ombros e contemplar com um olhar vago o que se passava à sua volta. A Raimundo - não interessava o que sucedia na pista. Olhava para Isabel com atenção, enquanto um indefinido sor­riso aparecia em seus lábios. De repente, disse: — Isabel...

Ela não respondeu. Raimundo sentiu uma estranha angústia e voltou a chamar:

— Isabel...

— Que deseja, afinal? - perguntou, os lábios trê­mulos de nervosismo.

— Já lhe digo. Francamente, não consigo com­preender como uma criatura como você conse­guiu prender-me deste modo. Eu, inimigo decla­rado do casamento, vou ter de tomá-la pela mão e levá-la ao altar. Podem as criaturas humanas imaginar semelhante coisa?

Isabel manteve-se calada. Sentia dentro dela uma angústia e ao mesmo tempo um tremor de prazer ou de medo que não conseguia explicar ou definir.

— Desejo casar-me com você, Isabel.

Ela apenas estremeceu. Depois olhou para ele como que não acreditando.

— Ouviu bem, Isabel? - tornou ele. - Quero ca­sar-me com você. Chame-me infeliz, idiota, o que quiser. Admito tudo, porque acredito que mereço, mas... acima de sua opinião e da minha, desejo agora que seja minha esposa. - Co­meçou a rir e acrescentou de um modo indefinível. - Será que lhe serei fiel? Não sei. Não tenho muita tendência para isso... - Fitou-a ternamente, sem desejo. Isabel estremeceu dos pés à cabeça. - Mas é a única maneira de tor­ná-la minha e eu não posso viver sem você. Aqui está o triunfador convertido num vencido... apaixonado.

Nesse momento, foram rodeados por um ban­do de jovens e uma pequena obrigou Raimundo a acompanhá-la para dançar, apesar dos pro­testos deste.

Um cavalheiro tentou fazer o mesmo com Isabel, mas a jovem não tinha a menor intenção de dançar e muito menos disposta a conversas frívolas. Precisava afastar-se dali e pensar, pen­sar muito.

Quando Raimundo voltou finalmente para a mesa, Isabel já não se encontrava ali. — Onde terá ido Isabel? - perguntou, aborrecido

— Acho que foi embora - disseram-lhe.

— Foi embora?

— Sim - confirmou um dos rapazes, - Parece que não se sentia muito bem,

Raimundo saiu às pressas do salão.

 

Outro homem teria certos escrúpulos. Mas Raimundo Encinares não era disso. Deteve o carro diante do pensionato e saltou, correndo es­cadas acima. Uma jovem atendeu-o.

—  Desejo ver a Senhorita Isabel Viñoles. — Não sei se estará aqui.

—  Tem que estar. Sou - disse com ênfase - o futuro marido de Isabel.

A jovem ficou boquiaberta, sem saber o que dizer ou fazer.

—  Avise Isabel - disse Raimundo, impaciente. - Ou prefere que eu mesmo suba e vá buscá-la?

—  Um momento, senhor. Desculpe - disse a moça, ainda aturdida. - Siga-me, por favor. En­tre no salão de visitas.

Ficou ali vários minutos que lhe pareceram séculos, dando voltas de um lado para outro. Quando afinal a porta abriu-se ao fundo, avan­çou para Isabel.

Fitou-a intensamente e disse, com uma voz emocionada, muito diferente da que a jovem co­nhecia:

— Deixe-me contemplá-la e tê-la sempre a meu lado, Isabel.

— Tenho... medo.

— Medo... a meu lado?

— Sim, de sua inconstância.

— Hei-de adorá-la toda a minha vida. Nasce­mos um para o outro, querida. - Tomou-a em seus braços, feliz como uma criança. - Isabel... minha querida Isabel...

Seus lábios procuraram os da jovem. Quanto tempo havia desejado aquele instante! Agora aquele beijo nada tinha de falso. Sem que ele mesmo o soubesse, eram os cálidos e suaves lá­bios de um homem que amava sinceramente a uma mulher e a beijava pela primeira vez.

— Raimundo...

— Não fale, Isabel. Deixe-me abraçá-la. Per­mita que, finalmente, eu possa tocá-la e beijá-la. Quantos meses estive desejando Este momento. Isabel, minha Isabel...

Aquele era o instante mais sublime da vida de Isabel, pois pela primeira vez era beijada e querida e acreditava naquele homem tão dife­rente do que a fizera sofrer. Este que a tomava em seus braços não o fazia com a ânsia pura­mente sensual que era de se esperar de uma pes­soa frívola como Raimundo. Era o homem apaixonado e vencido, que se entrega a um sincero e puro amor.

— Eu lhe serei fiel - dizia sem deixar de beijá-la, como se aqueles beijos e carícias fossem a razão de seu viver. Terei de ser-lhe fiel toda a minha vida. Você não é mulher que se possa es­quecer. Você é a mulher que o destino me reser­vava para demonstrar-me que eu vivia errado até agora. Hoje, finalmente, em seus lábios, em seu olhar, em seu íntimo, encontro a verdade. Essa mesma verdade da qual eu fugia, até que encontrei você e descobri que a amava.

Afastou-a um pouco para vê-la melhor. Isa­bel chorava silenciosamente.

— Suas lágrimas - sussurrou ele com devoção

— foram para mim como que uma revelação. Ti­nha visto mulheres chorando por uma jóia, pe­les ou outras coisas fúteis, para logo exigirem um carro ou outra coisa qualquer, mas nunca vi uma mulher chorar para recusar o que um homem rico lhe oferecia.

— Por favor, não fale disso.

— Sim, tem razão. Tenho muito que dizer, mas também tenho uma vida inteira para dizê-lo. E você terá que deixar-me adorá-la, Isabel e con­tinuar amando-me.

— Sim, sim - sussurrou ela.

Raimundo contemplou-a ternamente e pro­curou as finas mãos femininas, beijando-as se­guidamente enquanto pronunciava frases ar­dentes que sensibilizavam o coração de Isabel como eternas promessas.

 

A condessa de Salcedo e sua filha leram o te­legrama ao mesmo tempo, entreolhando-se com surpresa.

— Que estupenda notícia, mamãe!

— Sim - murmurou a condessa, que era uma sentimental incorrigível. - Uma grande notícia. Mas, por que não me avisou antes? Devia ter assistido ao casamento.

— O tio Raimundo é assim mesmo.

— Acho, minha filha, que só agora começamos a conhecer seu tio - sorriu. - Bem, é preciso pre­parar a comida. A que horas ele disse que che­garão?

 

Cris leu o telegrama em voz alta:

 

"Casamo-nos há seis dias. Somos imen­samente felizes. Iremos vê-las amanhã.   

                                                                       Beijos.

                                                                            Isabel Viñoles e Raimundo".

 

Sem dúvida alguma - observou a condessa -, o idílio começou aqui e nem você nem eu o per­cebemos. Agora compreendo por que Raimundo partiu tão depressa.

— Que maravilha, mamãe! A professora é uma criatura encantadora.

— Claro que é.

O casal encontrava-se naquele instante na cidade próxima. O carro, estacionado frente a uma confeitaria e eles sentados diante do bal­cão, tomando Martinis.

— Não me olhe assim, Isabel.

— Eu só olho para você, querido.

— Pois terá de fazê-lo toda a vida.

— Eternamente, meu amor.

— Uma coisa, Isabel querida. Você algum dia esteve apaixonada por Artur?

Isabel riu. Sua mão voou pelo ar e caiu, sua­ve e terna sobre os dedos de seu marido. Seu marido! Muitas mulheres casam-se em todas as partes do mundo, mas nem todas vão para o casamento com as esperanças com que o fora Isabel Viñoles. Ela amava com intensidade e sabia-se querida de igual modo. E aquele ho­mem que dissera desejá-la, amava-a agora com ternura. Isabel já sabia que o amor e o desejo são duas coisas na vida de um homem e uma mulher e ela não era uma visionária. Era uma deliciosa moça que Raimundo de Encinares es­tava tornando mulher com seu amor.

— Só você, Raimundo.

— Só?

— Sim, só você e por isso peço-lhe, suplico-lhe... que eu também seja o mesmo para você.

 

Meses depois, quando Isabel teve o primeiro filho, Matias dizia na cozinha:

— Parece mentira que o amor de uma mocinha tenha mudado assim um homem como o patrão.

— É que essa mocinha é deliciosa, Matias - res­pondeu a cozinheira. - E seu patrão cansou-se dos falsos amores. Achou finalmente o verda­deiro, compreende?

— Sim. E penso que hoje, de bom grado come­çaria minha vida de novo. Também teria esposa e filhos. É formidável ter esposa e filhos.

— Isso é um lamento que costuma inquietar um homem quando já não pode recomeçar... Por isso é sempre melhor começar bem.

Raimundo tinha Isabel em seus braços na­quele instante e dizia-lhe com fervor:

— Nunca havia sentido a verdadeira felicidade, até que a conheci, Isabel.

Ela pousou os lábios nos do marido. Aquele homem era-lhe fiel. E o seria até a morte, ela bem o sabia.

                                                                                            CorinTellado

 

 

                      

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