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DESCOBERTAS NA TERRA DOS MAIAS / Pierre Ivanoff
DESCOBERTAS NA TERRA DOS MAIAS / Pierre Ivanoff

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DESCOBERTAS NA TERRA DOS MAIAS

 

Porque escolheram os Maias instalar-se na selva mais hostil da América Central?

Porque abandonaram, bruscamente, esta região no século x? E como explicar este paradoxo: apesar de haverem inventado o zero e um calendário tão preciso como o nosso assim como uma escrita hiero-glífica ainda indecifrada, por que motivo nunca os Maias utilizaram senão utensílios de pedra análogos ao do Neolítico e não conseguiram ir além do processo arcaico de cultura por queimadas?

Para resolver estes enigmas, Pierre Ivanoff viveu vários anos entre os índios dos planaltos da Guatemala e da península do Iucatão e, em seguida, no país dos Lacandons, últimos descendentes dos grandes Maias da época clássica. Perdida na quase impenetrável vegetação da floresta do Peten, Ivanoff descobriu uma cidade oculta. As ruínas dos templos e as esculturas admiráveis não vêm apenas acrescentar alguns dados às obras-primas, já conhecidas, da arte maia; antes revelaram a Pierre Ivanoff certos segredos nunca investigados da mais espantosa civilização do Novo Mundo, a ponto de o obrigar a rever completamente todos os problemas do calendário, da iconografia e da numeração maia. Assim, pela primeira vez, com base numa aventura vivida e em pesquisas intelectuais executadas com o maior rigor científico, se derrama uma luz nova sobre os mistérios da civilização maia.

 

                   INTRODUÇÃO AO MUNDO MAIA

Dois assustados e barulhentos papagaios levantam voo, arrastando consigo o esplendor da sua plumagem azul e dourada. Um grupo de macacos-aranhas negros, de finos braços, atira raivosamente para cima de mim ramos secos e frutos verdes, antes de fugir aos gritos. Sigo-os com a vista e os meus olhos perdem-se no emaranhado de grandes árvores da floresta selvagem.

Quarenta metros acima de mim a espessa folhagem dos trópicos forma uma abóbada tão cerrada que tudo o que está por baixo fica imerso na penumbra.

Esqueci momentaneamente as minhas concepções ocidentais sobre o ritmo da natureza, em que os rebentos, as flores, os frutos e as folhas mortas são outras tantas etapas que marcam a mudança das estações. Aqui, no Peten(NT), e mesmo durante os meses de seca, a vegetação conserva sempre uma feição idêntica. A folhagem é permanente, a floração irregular e os frutos amadurecem durante todo o ano. Algumas destas plantas só florescem uma vez durante toda a sua vida.

 

  1. Região da Guatemala, que foi o primeiro centro do Império Maia. É uma zona desabitada, onde reina o paludismo.

 

A vegetação que me cerca é uma autêntica amálgama. Como distinguir uma fragrância especial, uma forma nítida, uma mancha de cor, em toda esta confusão de folhas e de ramos acamados, tão cerrados que perdem a sua própria identidade, formando apenas um imenso tecto de verdura?

Só a textura e a cor das cascas me permitem reconhecer rapidamente as árvores enormes que se levantam a cada passo diante de mim, como se ali estivessem para me barrar o caminho. Uma espécie conduz a outra; de um modo dissimulado, milhares de plantas parasitárias incrustam-se nos troncos robustos, sem os quais não podem viver. Abraçam-nos e apertam-nos de tal modo que os cobrem completamente.

Neste movimento silencioso e sufocante são as lianas as detentoras do primeiro lugar, seguidas pelas múltiplas orquídeas, a quem uma orgulhosa segregação impõe que se implantem em andares de verdura distintos, segundo as espécies. A clúsia é a que mais me fascina entre todas as árvores parasitárias. O seu nome espanhol, matapalo (mata-árvore), ilustra bem a sua função. Tão grande como o gigante que cobre, toma-lhe a forma e, quando não o consegue, enlaça-o com lentas ramificações tentaculares que se incrustam irremediavelmente.

Aqui um hectare de floresta tem mais de uma centena de espécies diferentes, nenhuma das quais se encontra no hectare vizinho. Para as distinguir, já que se espreguiçam loucamente no seu desejo de ver o Sol, tenho de desenvolver o meu sentido de visão vertical. Então, estas enormes árvores, estes obstáculos que se levantam a cada passo e que é preciso contornar continuamente, tornam-se para mim gigantes majestosos de tronco direito, em que as primeiras ramadas somente aparecem lá muito em cima, a dezenas de metros do solo e no sítio onde, verdadeiramente, se desenrola o espectáculo. Poderei algum dia admirar ou tocar com os dedos as sumptuosas flores flamejantes, violentamente alaranjadas, da Bernouilla flamea, que o meu companheiro Rey, grande conhecedor de botânica, me designa com um lacónico uacut, batendo-lhes no tronco com a sua catana?

Na nossa difícil progressão através desta floresta, ocupo a segunda posição, deixando a um ou a outro dos três índios que me acompanham o cuidado de abrir o caminho. Uma estada prolongada nesta semiescuridão onde tudo se adivinha mas nada se vê, implica toda uma reeducação do ouvido e do olfacto. Em cada dia, a cada passo, aprendo mais um pouco sobre a floresta. Já sei distinguir os animais que fogem à nossa aproximação, graças à identificação rápida de todos os barulhos que nos envolvem. O mínimo incidente quotidiano é, para mim, uma porta aberta para um universo que começo vagamente a compreender.

Há já muitos anos que esta selva agreste, reino das doenças endémicas próprias de todas as terras tropicais de baixa altitude, me atraía. Trata-se do Peten, território tão grande como a Suíça, que pertence à Guatemala.

Em língua maia, a palavra peten significa local isolado. No extremo norte da região, no Iucatão, designa um pequeno prato feito de vime suspenso do telhado de colmo das cabanas, onde os índios colocam a comida ao abrigo dos animais roedores. Este termo corresponde bem à realidade deste território, coberto por uma floresta densa, isolada e, a maior parte das vezes, inacessível.

A norte do Peten estende-se a península do Iucatão, terra seca e árida que pertence ao México. A sul, os altos planaltos da Guatemala separam-no do Pacífico. A oeste, está rodeado pelas montanhas do Chiapas e a este pelas Honduras Britânicas e pela República das Honduras.

A minha atracção por este país não era um reflexo proveniente do desejo romântico de exotismo, mas sim um imperioso desejo e necessidade de aventuras, e conhecimento; o mesmo que há mais de quinze anos me leva para as zonas tropicais de mais difícil acesso do globo. Já era tempo que as minhas actividades se desenvolvessem nesta região da América Latina, tanto mais que a minha vocação para viajar nasceu, há já muitos anos, ao descobrir na biblioteca de família um grosso álbum envelhecido pelo tempo, ilustrado com belas gravuras evocadoras. O seu título? Viagens de Exploração no México e na América Central. Esta obra apaixonante, escrita por Désiré Charnay, grande viajante francês de meados do século passado, havia despertado em mim uma insaciável curiosidade pelas terras longínquas e orientado todas as minhas leituras de adolescente. Devorei tudo, Cook, Marco Polo, Bougainville, Pigafetta, etc. Saltava da descoberta do Alto Nilo à do Alasca... Sonhava ser Scott ou Livingstone...

Não senti receio algum antes de me lançar nesta aventura do Peten, pois as explorações fazem parte da minha vida há já muito tempo. Florestas do Novo Mundo, quantas experiências, quantos sofrimentos, quantas satisfações já me destes! Os vossos índios nus já me roubaram e já me fizeram dançar; os vossos guerreiros waicas, com os rostos pintados e grandes arcos, aprisionaram-me no Raudal dos Guaharibos, mas ofereceram-me um grande título de nobreza ao permitirem-me descobrir as nascentes do Orenoco. Florestas equatoriais da Ásia, reservastes-me as culturas intactas dos caçadores de cabeças do centro do Bornéu, as tribos de pigmeus de Samatra e os povos do ópio do Norte da Tailândia; mas obrigastes-me a pagar duramente todos estes anos apaixonantes, fazendo-me estar meses seguidos a sofrer nos hospitais.

E vós, florestas do Peten, teatro de uma grandiosa realização do homem, que surpresas me reservais?

Durante o primeiro milénio da nossa era, os Maias ergueram neste território a civilização mais florescente da América índia.

Matemáticos de génio, grandes astrónomos e inventores de uma escrita, ignoravam os metais e utilizaram instrumentos de pedra polida, o que muito se assemelha ao nosso Período Neolítico, mas edificaram sumptuosas cidades sagradas em pleno coração desta floresta virgem. Nos seus templos imponentes, colocados no cimo de pirâmides que atingem, por vezes, a altura de cinquenta metros, desenrolavam-se cerimónias rituais e de iniciação, das quais algumas pedras magnificamente esculpidas nos transmitiram o testemunho. Infelizmente ainda hoje nos escapa o seu significado, tal como de todos os hieróglifos encontrados, de que apenas metade pôde ser decifrada.

Por que razões misteriosas é que o povo maia escolheria a região mais hostil e de mais difícil acesso da América Central, para aí desenvolver uma alta civilização, a mais notável do novo continente?

Outra pergunta embaraçosa: os Maias descobriram o milho e a agricultura, fundamento essencial da sua vida, mas nunca passara do estado primitivo de semearem em terra queimada, contentando-se em ter como único instrumento uma vara aguçada, que utilizavam como semeador. Porquê?

A própria origem dos Maias é misteriosa. Sabe-se que o povoamento da América se fez com a chegada de pequenos grupos étnicos que, caminhando desde a Ásia, atravessaram o estreito de Bering, no decurso de uma lenta migração, começada há cerca de vinte mil anos. Teriam os Maias seguido o mesmo caminho? Pertenceriam eles às vagas migratórias que, muito mais tarde, atravessaram o Pacífico, durante o primeiro milénio precedente à nossa era? Donde vinham estes pequenos homens atarracados, de nariz aquilino, tão diferentes fisicamente dos outros índios da América? Um dos grandes especialistas em assuntos relativos aos Maias, J. E. Thompson, diz que eles poderiam muito bem ser primos afastados dos Sumérios, os astrónomos que edificaram numerosas pirâmides três mil anos antes...

A antropologia física diz-nos que, contrariamente aos seus vizinhos, os Maias classificavam-se — e ainda se classificam — entre os indivíduos mais braquicéfalos do mundo. A frequência das suas pulsações cardíacas (cinquenta e duas por minuto em vez de setenta e duas) coloca-os ao lado dos grandes iniciados e dos mestres de ioga, que chegam a conseguir diminuir o ritmo do coração.

Tudo o que caracteriza os Maias pertence, aliás, ao domínio do insólito. Quando uma mulher perdia o seu filho, cortava um dedo, que punha no caixão. A barba era uma regalia da aristocracia, e tornava-se, pois, necessário queimar a cara das crianças com panos muito quentes para que, mais tarde, fossem imberbes. O estrabismo era a qualidade estética mais procurada; nesse sentido, deixava-se cair, entre as sobrancelhas dos bebés maias, uma bola de resina agarrada a uma madeixa de cabelos, para os obrigar a entortar os olhos. Deformavam-se igualmente os crânios dos recém-nascidos, prática também utilizada no Próximo Oriente e entre os Incas, de modo a obter-se uma testa alta e direita, tão característica das caras maias encontradas em baixos-relevos.

Mas o enigma mais perturbante da civilização maia é o seu inexplicável desaparecimento. No século X da nossa era, quer dizer, várias centenas de anos antes da chegada dos Espanhóis à América, e sem qualquer razão aparente, os Maias abandonaram bruscamente todas as suas grandes cidades de pedra à voracidade da floresta invasora.

Durante muito tempo julgou-se que tivessem emigrado para norte, para o Iucatão, e para sul, para a Guatemala, onde a cultura maia teria então conhecido um renascimento. Os indígenas que hoje vivem nestes dois territórios, bastante distanciados um do outro, ainda falam idiomas maias; todavia, os mais recentes estudos arqueológicos demonstram que a tese é insustentável; estas duas regiões foram, com efeito, centros de cultura florescente durante todo o período clássico, quer dizer, paralelamente ao período áureo da civilização maia no Peten. Existiram, de facto, algumas relações entre estes três territórios, é tudo o que se pode afirmar acerca do assunto.

O problema continua sem solução. Por que é que estas centenas de milhares de indivíduos, com um alto nível cultural, abandonaram subitamente o Peten sem deixar rastos? Enigma tanto mais apai-xonante quanto é certo que o Peten, hoje deserto, foi o território mais povoado da América Central durante a sua ocupação pelos Maias.

Mergulhei no estudo da vasta literatura acerca dos Maias para tentar resolver tudo isto. No México, tivera a sorte de comprar, por um preço bastante razoável, os livros dos primeiros cronistas espanhóis, reeditados pelas editoras locais. Em Nova Iorque consegui adquirir, numa edição popular, a obra de Stephens, o gémeo americano de Désiré Chamay e o pai da arqueologia maia. Escritor de talento, o seu famoso livro Incidents of Travel in Central America, Chiapas and Yucatan tornou-se um clássico ainda mais notável porquanto está ilustrado com maravilhosos desenhos de Catherwood, seu companheiro de viagem. Em Mérida, capital do Iucatão, a minha biblioteca enriqueceu-se com uma reedição indispensável da obra de Landa: Relaciones de Las Cosas de Yucatan, bíblia de todos os amadores da arte maia. A partir destas fontes capitais pude arrostar com proveito a leitura dos grandes especialistas: Maudslay, Spinden, Roys, Tozzer, Morley, Teeple, Thompson, etc. A lista é longa.

Admirara as observações objectivas dos arqueólogos, o rigor das suas deduções e o seu espírito de análise, mas, infelizmente, os argumentos aduzidos por uns eram refutados por outros. Mesmo assim, anotei as numerosas hipóteses formuladas a propósito do eventual desastre que teria levado os Maias a fugir do Peten e os seus desmentidos. Ei-las em resumo:

Epidemia de febre-amarela? A história prova que nunca uma epidemia contagiosa, mesmo a terrível peste, provocou a queda de uma civilização; e por que teria a epidemia feito estragos somente nesta região, sem afectar os países vizinhos? De qualquer modo, sabemos agora que a febre-amarela foi trazida pelos Espanhóis.

Tremor de terra? Sabe-se que em todos os recantos do globo, mesmo nos locais abalados com frequência por sismos, se edificam numerosas cidades. Aliás, não existe no Peten qualquer vestígio geológico, nem mesmo nas ruínas das cidades, que prove semelhante desastre.

Mudança de clima? Não houve a mínima alteração, responde a dendrologia, segundo os estudos feitos nos círculos de crescimento no cume de árvores dessa época. Por outro lado, especialistas qualificados demonstraram que um aumento excessivo de pluviosidade teria beneficiado a agricultura, em vez de a prejudicar, enquanto uma diminuição em nada a teria desfavorecido. Temos disso um exemplo vivo na vizinha região do Iucatão, árida, sem rios, onde meio milhão de índios subsiste ainda hoje servindo-se das mesmas técnicas arcaicas de cultura sobre a terra queimada utilizadas noutros tempos pelos Maias do Peten.

Falta de possibilidades agrícolas? É impossível sustentar-se a eventualidade de um esgotamento do solo no Peten. Tomemos como exemplo o vale do Motágua, enclave dos Maias clássicos nas Honduras; as suas terras são sempre as mais férteis, cobertas por um húmus generoso, que durante séculos ainda poderia servir para alimentar dezenas de milhares de indivíduos sem se esgotar. E, no entanto, esta foi a primeira região a ser abandonada pelos Maias.

Resta a hipótese mais lógica, a de uma invasão de bárbaros estrangeiros, como aconteceu nos altos planaltos do México Central. Há um ponto de importância capital que não ajuda muito esta hipótese: uma invasão pressupõe uma ocupação mais ou menos importante por parte do invasor e provoca, em geral, uma verdadeira renascença nas civilizações subjugadas. Não aparece nada deste género no Peten, onde não se encontra, de resto, o mínimo vestígio arqueológico de um abandono brutal das cidades, destruições voluntárias ou ocupação estrangeira.

Alguns autores cheios de imaginação, mas pouco identificados com as realidades científicas, supuseram que um perpétuo nomadismo levava os Maias para caminhos sempre novos e que cada etapa ficava assinalada com a construção de uma grande cidade. Teoria astuciosa, mas infelizmente demolida pelo estudo dos estilos das diferentes cidades maias e pelos dados arqueológicos; todas as cidades do Peten nasceram pouco mais ou menos na mesma época e todas foram abandonadas por volta do século x.

Estava num beco sem saída, pelo menos se me cingisse às minhas pesquisas bibliográficas. Porém, mais que numa nova interpretação dos relatórios de pesquisas, tinha a convicção crescente de que o acaso de uma descoberta fortuita poderia provavelmente fornecer a chave de todos estes enigmas culturais. Era nisso de facto que eu tomava à letra as palavras de J. E. Thompson, que dizia a este respeito: «Não devemos cingir a nossa pesquisa em busca da verdade no campo onde estamos certos de a encontrar. Se os sábios e os estudantes adoptassem uma tal atitude, existiriam poucas probabilidades de conquistar o desconhecido, porque o sucesso só sorri àqueles a quem a curiosidade arrasta para fora dos caminhos já percorridos.»

Era isto que correspondia perfeitamente ao meu estado de espírito. Estava pronto a solicitar o impossível. Talvez a solução de todos estes problemas se encontrasse entre os dois milhões de índios de língua maia que ainda vivem em estado tribal nos altos planaltos da Guatemala! Foi assim que, durante um ano, vivi entre eles para aí poder ver mais claramente; experiência cheia de frutos, mas que nada me ofereceu como solução. Tinha chegado a altura de empreender a minha expedição às florestas do Peten. Estava, pois, longe de imaginar que iria fazer a mais fabulosa das descobertas, aquela que mudaria o curso da minha existência.

 

                   NA SENDA DO CAVALO DE CORTÊS

Os meus preparativos para a partida foram dignos de um romance surrealista. Incluído no meu equipamento próprio para a floresta ia o material necessário a um mergulhador! Um pequeno facto histórico bastante divertido tirado da obra de um cronista do século xvii, existente na biblioteca do Museu de Antropologia e História da Guatemala, estava na base desta decisão. Vale a pena ser contado.

A conquista do México termina no ano de 1524. Cortês decide então embrenhar-se no Peten para atingir as Honduras e, nesse intuito, decide-se pela via terrestre, absolutamente desconhecida, em vez de tomar a via marítima, que lhe seria mais fácil. Objectivo oficial da expedição: surpreender um capitão dissidente chamado Cristobal de Ollid e puni-lo. Tratava-se, sem dúvida, de um pretexto. Cortês, o eterno aventureiro, sempre tivera a paixão das terras desconhecidas. Fatigado com as dificuldades políticas e os problemas de gestão levantados pela sua recente conquista, prefere afastar-se do México.

Eis então o conquistador face a face com um inimigo muito mais de recear que os Astecas, que acabara de submeter. Cortês terá de vencer um território impenetrável, pantanoso, mergulhado numa selva espessa, aberto aqui e ali por lagoas insalubres e recortado por rios largos de corrente poderosa.

A viagem dura quase dois anos e esta marcha extenuante de dois mil e quinhentos quilómetros, dos quais oitocentos através da floresta virgem, ficou sendo um dos grandes feitos da história dos exploradores. Esta expedição armada era constituída por cento e quarenta soldados espanhóis, dos quais noventa e três cavaleiros, três mil índios mexicanos, cento e cinquenta cavalos, novecentos e sessenta porcos, artilharia, munições e mantimentos. A presença de imensas varas de porcos era absolutamente normal na época; poucos homens bastavam para os vigiar e estes animais alimentavam-se com qualquer coisa: representavam, assim, toneladas de carne fresca e uma garantia de não se morrer de fome. Apesar de todas as precauções, esta travessia do Peten foi uma verdadeira marcha de esfomeados. Os cronistas da época citam casos de canibalismo quase certos entre os índios, mas não dizem se isso aconteceu também no sector dos espanhóis. Cortês leva consigo Cuauhtémoc nesta louca epopeia. Este príncipe asteca subira ao trono por morte do tio, o imperador Mocte-zuma, lapidado pelo seu próprio povo por se ter mostrado demasiado servil após a sua submissão aos Espanhóis. Para os Astecas reaverem a sua perdida liberdade, o jovem príncipe tentara uma última vez retomar a luta armada contra o invasor. Revolta tardia, inútil e sem esperança. Mas deu tantas provas de coragem que Cortês se torna seu amigo, e as relações entre os dois homens são excelentes. Contudo, desde o princípio da expedição ao Peten que uma série de pequenas revoltas entre o exército irritou ao máximo Cortês. Um dia, e sem qualquer prova de culpabilidade, acusa Cuauhtémoc de alta traição e condena-o à forca. Este caso ainda hoje se apresenta muito obscuro; a história nunca revelou as razões que levaram Cortês a partir para a expedição com o príncipe asteca nem os factores que o decidiram a suprimir este amigo índio.

No dia 13 de Março de 1525, tendo seguido em direcção a sudoeste, o extenuado exército chega às margens do lago Peten-Itza, em pleno coração do Peten. Alguns índios que estavam à pesca, surpreendidos, fogem numa piroga em direcção à sua ilha de Tayasal, no meio do lago, mas um enorme cão espanhol consegue apanhar um dos fugitivos (todas as narrativas da conquista negligenciaram o importante papel destes animais). Magnânimo, Cortês oferece a liberdade ao índio e envia-o à sua tribo acompanhado por um emissário espanhol, portador de um convite para o rei Canek.

No dia seguinte realiza-se um encontro amigável entre os dois chefes. Cortês fica muito surpreendido ao verificar que Canek, a despeito do isolamento do seu reino, conhece a sua existência, as suas vitórias e todo o desenrolar da sua conquista. A tribo itza recebe-o com grande pompa e ele fica de tal modo satisfeito que decide confiar o seu estafado cavalo a Canek. Levá-lo-á na volta. Recomenda com bastante frequência a todos que tomem bem conta e tenham cuidado com a sua alimária.

Um cavalo em Tayasal! Os índios ficam maravilhados com esta prova de confiança; nunca tinham visto um cavalo, como acontecia a todos os habitantes do Novo Mundo. Este animal galopara no continente americano nos tempos pré-históricos, mas havia desaparecido com a chegada dos primeiros homens, e foram os conquistadores espanhóis que o introduziram novamente na América. O cavalo facilitou grandemente a conquista do México, pois, montado por um cavaleiro, aparecia aos índios como uma espécie de dragão maléfico cuspindo fogo e semeando a morte.

Os Itzas manifestam uma verdadeira veneração pelo cavalo de Cortês. Mas, desgraçadamente, ignoram tudo acerca da sua alimentação; tratam-no como se fosse um dignitário e oferecem-lhe tantas bebidas fermentadas, pratos condimentados, perus e outras carnes que o animal morre ao fim de poucas semanas! Os índios, temendo tanto o espírito do cavalo morto como as eventuais represálias de Cortês, resolvem fazer qualquer coisa... Os mestres escultores da tribo põem-se, pois, rapidamente ao trabalho, e no templo principal da cidade em breve se encontra um trono encimado por um esplêndido cavalo de pedra! Os Itzas chamam-lhe Tziminchac ou «deus do Trovão». Continuam a fazer-lhe inúmeras oferendas de flores, de pimenta e de álcool de milho, desta vez sem correrem o risco de lhe provocar uma indigestão fatal.

... Cortês nunca mais voltou ao Peten e ignorou para sempre o destino do seu desgraçado cavalo. Chegou às Honduras e aí soube que o seu oficial dissidente acabara de ser executado. A expedição nada lhe trouxe a não ser uma tremenda crise de paludismo, seguida por um esgotamento total. Os seus rivais espanhóis aproveitaram-se disso para o destituir, e obrigaram-no a voltar para Espanha. Morreu em consequência da sua última e louca aventura nas novas terras da América.

Os Itzas recusaram submeter-se aos Espanhóis durante cento e setenta anos, apesar de vários exércitos que, por três vezes, contra eles foram enviados. É certo que estes últimos se extenuavam ao longo dos meses de marcha necessários para se atingir o lago Peten-Itza. Em 1618 dois missionários franciscanos espanhóis, os padres Orbita e Fuensalida, atingiram, após uma longa viagem, as margens do lago. Este tipo de religiosos de choque era frequente na Nova Espanha. Geralmente, penetravam sozinhos, sem escolta e sem armas, nas regiões mais secretas e mais hostis, onde os soldados haviam sofrido as mais duras derrotas. Condenados desde o princípio a morrer nas pedras de sacrifício, conseguiam por vezes apaziguar as tribos rebeldes; o seu papel não é de desprezar ao longo da conquista. Antes de se aventurarem nestas missões suicidas, alguns sacerdotes formulavam o voto de morrer como mártires; outros, mais reflectidos, entregavam muito simplesmente o seu destino nas mãos de Deus, contando com esta ajuda para levarem a bom termo a sua evangelização e saírem vivos da aventura.

Partiam com o terço, a fé e um conhecimento mais ou menos profundo acerca da tribo que tinham por missão pacificar e evangelizar, e, às vezes, conseguiam até aprender a língua indígena, por intermédio de prisioneiros ou reféns.

Os padres Orbita e Fuensalida marcham, pois, durante meses na. floresta e acabam por chegar, estafados, às margens do lago. Levaram a sua humildade ao extremo de irem descalços! Ambos falam correntemente o itza (língua maia-iucatega), pois tinham passado vários anos no Iucatão a pregar a santa palavra na língua dos autóctones. Os Itzas, maravilhados com a coragem dos dois estrangeiros e seduzidos pelos seus discursos, que eles compreendem, acolhem-nos com todas as honras e reconfortam-nos com repastos reservados somente aos grandes dignitários da tribo. Deixam-nos com inteira liberdade de movimentos. Após alguns dias de repouso, Orbita e Fuensalida começam o seu trabalho; visitam primeiro, e sistematicamente, todos os templos do aglomerado — existem vinte e um — para determinarem a que ídolos são particularmente consagrados; isto com o fim de estabelecerem uma progressão lógica na sua destruição. Não existem surpresas para os missionários quando começam estas visitas; haviam encontrado muitos ídolos do género no Iucatão. Mas que choque não devem eles ter sentido, ao penetrarem no templo principal, com a visão de Tziminchac, orgulhosamente no melhor lugar! Os Itzas adoravam um cavalo! Que perversão! O cronista espanhol Villaguttiere conta-nos que o padre Orbita, num movimento de cólera brutal, se precipitou para o ídolo, tentando derrubá-lo. Os índios ficaram confundidos com tanta audácia.

Imediatamente caem em si e levam os dois missionários para a pedra dos sacrifícios. O padre Fuensalida julga chegada a sua hora e lança-se num discurso tão inspirado que os índios se esquecem de os matar! Após numerosos conciliábulos decidem, no fim de contas, deixá-los vivos, na condição de abandonarem nessa mesma altura Tayasal, sem víveres e sem guia.

Os dois espanhóis em breve se distanciam da cidade, embrenhando-se na selva, e, por sorte, uma outra tribo recolhe-os, loucos e meio mortos de inanição.

Bela lição para os Itzas; os brancos também odeiam Tziminchac; o valor do seu ídolo aumenta ainda mais. Mas parece-lhes urgente procurar uma forma de o proteger. Assim que os missionários se vão embora, os sacerdotes índios embarcam a estátua do cavalo numa piroga, com o intuito de a esconder numa região deserta da margem do lago, ao abrigo dos olhares inquisidores de eventuais visitantes espanhóis. Mas, infelizmente, a estátua é muito pesada; uma manobra desastrada faz virar a embarcação durante a travessia e o cavalo de pedra desaparece para sempre nas águas sombrias do lago...

Para sempre? Eu não estava muito convencido... Ao consultar mais de perto os antigos autores espanhóis, consegui obter várias versões acerca do assunto. Na Historia Municipal del Reino de Yucatan, o ídolo era de madeira, enquanto Villaguttiere pretendia que se tratava de uma estátua de pedra e cal (talvez de gesso?). Segundo uma outra versão, o cavalo de gesso havia sido destruído pelo padre Orbita. Os Itzas teriam então encomendado aos seus escultores um novo Tziminchac de pedra, que fora esculpido nas próprias margens do lago, no local chamado Nic-Tun, palavra maia que significa ponta de pedra. Assim que a estátua ficou pronta, teria sido levada dentro de uma piroga para Tayasal, onde nunca teria chegado em virtude de uma violenta tempestade ter feito voltar a piroga.

Estes pormenores confirmavam, de qualquer modo, a existência de uma estátua do cavalo de Cortês, e aproximavam-se um pouco da lenda da sua desaparição nas águas do lago. Era uma tentação verificá-lo. Foi esta a razão pela qual eu me muni com material de mergulhador para ir ao Peten.

Ainda hoje os descendentes dos Itzas vivem na ilha do lago, que agora tem o nome de Flores. Falam um pouco de espanhol e trocaram os trajes de guerra por calças e camisas.

A tradição oral da tribo assegura que a sua fixação neste território se efectuou como consequência de uma infeliz história de amor. Todos os Itzas haviam fugido do seu Iucatão natal um século antes da chegada de Cortês. Nesse tempo, o ambicioso chefe Canek-Ta estava apaixonado por Sak-Nite, filha do rei Chichen-Itza. Era natural que quisesse reforçar a sua posição de chefe com este casamento, já que provinha de uma linhagem humilde. Uma tal pretensão desagradou ao rei, que decidiu casar a filha com o príncipe Ulmil Itzahal, enviando o embaraçoso pretendente para um longínquo aglomerado chamado Tocul. Furioso, Canek-Ta raptou a princesa durante a cerimónia do casamento. Tinha consciência dos riscos de uma guerra de represálias, e a superioridade do rei duplicada com a do noivo ofendido não oferecia a mínima dúvida. Decidiu-se, por isso, a procurar refúgio no mais profundo da floresta do Peten. Foi assim que se instalou na ilha de Tayasal, no lago. A lenda conta ainda que a infeliz princesa preferiu atirar-se às águas do lago a ceder ao seu raptor.

Anos mais tarde, as suas ossadas foram encontradas na margem, junto a uma maravilhosa flor branca que ficou desde essa altura com o nome da princesa, Sak-Nite, emblema da pureza e da fidelidade. Desde esses tempos longínquos que ela é o símbolo da província do Peten.

Para respeitar a verdade histórica seria preciso juntar-se-lhe uma flor vermelha, símbolo do sangue vertido no decorrer dos cento e setenta anos que se seguiram à passagem de Cortês por este território, período durante o qual as tentativas de conquista espanhola acabaram sempre em catástrofe.

Estão neste caso as duas campanhas de 1623 e de 1624, que custaram a vida a duzentos e cinquenta homens da Coroa e que permitiram aos índios itzas oferecer aos seus ídolos corações ainda palpitantes de soldados brancos e de sacerdotes católicos.

Em 1697, um exército comandado pelo general Martin de Ursua atingiu, por sua vez, as margens do lago Flores. Os homens marchavam havia um mês e tinham já passado pelos piores sofrimentos. Chegaram por fim à vista de Tayasal. O lúgubre barulho das trompas e dos tambores de guerra, o som estridente das flautas e as nuvens de flechas itzas não desencorajaram os carpinteiros espanhóis, que em doze dias conseguiram construir uma escuna e uma piroga. Apercebendo-se das futuras dificuldades, os índios enviaram uma embaixada para estabelecer um compromisso com os invasores, mas Ursua recusou energicamente; queria uma rendição absoluta.

Já quase sem argumentos, o chefe índio enviou em quatro pirogas as mais belas mulheres da ilha, com a missão de se divertirem no campo dos espanhóis. Esplêndida arma de guerra! A história não especifica se ela era destinada a esgotar o adversário ou simplesmente a semear a discórdia entre os homens. Em qualquer dos casos, o método revelou-se de pouca eficácia no plano guerreiro.

Na manhã do dia 13 de Março, os espanhóis afastaram as belas índias e tomaram lugar nas embarcações recentemente construídas. Frente a eles, em cima das suas ligeiras pirogas, os Itzas lançavam enormes quantidades de flechas. Antes mesmo de abordar a ilha, os espanhóis saltaram à água e aí mesmo começou o verdadeiro combate, terrível e sem quartel. O general Ursua merece uma menção especial por ter proibido formalmente a utilização da artilharia e dos arcabuzes, mas apesar disso foi uma verdadeira chacina. A tal ponto que a tresloucada população da ilha, mulheres, crianças, velhos, guerreiros e chefes, se precipitou no lago para tentar fugir a nado. A maior parte afogou-se. A roda da ilha as águas estavam vermelhas de sangue. Chegou mesmo a ver-se alguns índios prisioneiros, acorrentados, saltarem da escuna espanhola para morrer no lago.

Após cento e setenta anos de esforços e de derrotas, tinham bastado três horas de luta para que o último bastião dos índios rebeldes à conquista espanhola fosse desbaratado. Das oitenta mil almas que compunham a nação itza, somente alguns grupos de fugitivos se recusaram para sempre a submeter-se.

No dia seguinte à vitória, das nove da manhã às cinco da tarde, os vencedores dedicaram-se a partir todos os ídolos das cabanas e dos templos de Tayasal. Para marcar esta grande jornada com o selo tradicional dos conquistadores, o general Ursua, acompanhado por dois padres, escolheu o templo principal para ser a nova igreja e a cruz foi solenemente erguida à entrada. Pormenor irónico: tratava-se do mesmo templo onde, um século antes, os Itzas haviam erigido a estátua de Tziminchac, o cavalo de Cortês! No seu interior, os três espanhóis viram alguns ossos a balançar nas pontas de cordas coloridas. Seriam os venerados restos do cavalo do conquistador?

Tayasal, novo feudo da Coroa, foi um verdadeiro inferno para os espanhóis. Completamente isolados, dizimados pela doença e com falta de víveres, perseguiam os índios que viviam nos arredores para obter deles algo que comer. Como represália, estes últimos extenuavam-nos metodicamente. Ser enviado para o Peten em breve se tornou numa espécie de condenação à morte lenta ou qualquer coisa parecida com as galés para os intelectuais e revoltados. Isto explica a ignorância, muitas vezes propositada, que muitos guatemaltecos manifestam ainda hoje acerca da sua província do Peten.

 

                   PRIMEIROS INDÍCIOS

Hoje em dia, para se poder chegar a Flores basta somente a ajuda de condições atmosféricas favoráveis. Uma pista improvisada na margem do lago permite a aterragem de pequenos aviões.

Não tive, portanto, qualquer dificuldade em transportar para aí o meu material de mergulhador: compressor, garrafas, detentor, carburante, barco pneumático, etc. Passei, sem transição, para um mundo completamente novo.

Os habitantes de Flores ficaram muito surpreendidos com todos os meus aparelhos. As minhas futuras actividades submarinas inquietavam-nos bastante. Nunca tomavam banho no lago com medo dos caimãos, embora pouco numerosos, e das pequenas tartarugas-de-água, com cabeça de serpente, cujas dentadas são venenosas. Era-lhes muito difícil atingir o objectivo dos meus mergulhos, porque a imaginação popular transformara a estátua do cavalo de Cortês num objecto magicamente perigoso, cuja imagem aparecia por vezes à superfície do lago para logo desaparecer misteriosamente. Também se diz que Tziminchac está protegido no fundo da água por um dragão.

O meu primeiro dia de pesquisas subaquáticas revelou-se infrutífero. O fundo que escolhera estava completamente coberto de lodo.

Este fracasso sossegou os índios, que me tinham falado, na verdade, acerca das protecções mágicas que encobriam a estátua. Para mim, aquilo resumia-se a uma angustiosa verificação: Tziminchac devia estar enterrado sob alguns metros de lodo. Era, pois, inútil prosseguir as buscas neste sentido.

Mesmo assim, deçidi-me a prolongar as pesquisas submarinas noutros locais do lago. Qual não foi a surpresa dos meus espectadores quando, no dia seguinte e após duas horas de prospecção, trouxe para a superfície, apanhadas a uma profundidade de trinta metros, uma dezena de cerâmicas velhas de vários séculos. Eram cor de chumbo, marca característica da civilização pré-columbiana dos Itzas, e tinham provavelmente sido deitadas ao lago como oferendas aos deuses da água.

Daí em diante, os índios ficaram persuadidos de que tudo era possível com os meus aparelhos e que eu era um verdadeiro caçador de tesouros. Encontrei frequentemente enraizada a convicção de que a pesquisa arqueológica nada mais é que uma camuflada caça de tesouros. Os autóctones espantam-se com o interesse que se pode atribuir, por exemplo, a objectos de terracota dos séculos passados, aos quais eles não dão qualquer valor. Muitas vezes partem-nos, na esperança de encontrar dentro deles ouro ou pedras preciosas, movidos pelo interesse comum que os estrangeiros têm por esses objectos...

Deitei, portanto, as cerâmicas para o lago, a fim de evitar que fossem inutilmente destruídas, mas o meu gesto foi curiosamente interpretado pelos itzas; ora se eu não me interessava por estes antigos recipientes é porque pretendia somente encontrar o tesouro de Moctezuma!

Uma lenda que corre entre as aldeias índias do Nordeste da Guatemala pretende, com efeito, que uma parte do tesouro do último imperador asteca se encontra escondido no Peten; isso explicaria a louca expedição de Cortês através da região e a conspiração falhada de Cuauhtémoc. Este último teria tentado impedir Cortês de encontrar estas riquezas... Pode-se supor que o conquistador levasse o seu real prisioneiro nesta viagem porque este lhe tivesse falado do famoso tesouro...

Um obscuro caso acontecido no século passado poderia confirmar este facto. Um grupo de índios oriundos do Peten tinha-se instalado, em 1846, numa aldeia das Honduras Britânicas, entre o Peten e o Iucatão. Diziam ter fugido de uma guerra imposta por uma tribo vizinha. Três meses após a sua chegada, incendiaram e pilharam a aldeia, antes de fugir para a sua terra natal. Uma patrulha lançada em sua perseguição apanhou-os, quatro dias mais tarde, junto à lagoa de Yaloch. Os índios propuseram então aos vinte e cinco soldados mestiços e ao oficial de origem italiana, que os comandava, um estranho negócio: deixariam as famílias como reféns durante oito dias, o tempo necessário para irem buscar ouro com que comprar a sua liberdade... Negócio fechado. Uma semana depois, os índios voltaram carregados com vinte e seis barras de ouro, de forma cilíndrica, incrustadas com desenhos de cabeças de águia e hieróglifos. O selo do imperador Moctezuma!

Eu já estava farto destas suposições e fábulas estéreis. E, no entanto, agucei o ouvido quando os índios me afirmaram que o tesouro dos seus antepassados jazia no fundo das grutas inundadas que rodeavam o longínquo lago sagrado de Petexbatun. Eu já explorara numerosas cavernas no decorrer do ano que passara nos altos planaltos da Guatemala e tinha sempre descoberto vestígios arqueológicos e, por vezes, até indícios bastante recentes de sessões de feitiçaria. Aliás, é quase certo que os grandes maias da época clássica tenham tido um verdadeiro culto pela gruta. Sentia-me, portanto, satisfeitíssimo com o itinerário que me fora espontaneamente proposto. Ia mesmo ao encontro dos meus desejos e levava-me mais profundamente para o interior desta selva maia que eu tanto queria conhecer.

Tive de reduzir rapidamente a minha bagagem e organizar uma pequena expedição, que me levou, ao cabo de poucos dias de marcha, a um afluente do rio La Passion. Daí segui numa piroga, sob a direcção de um guia índio chamado Eusébio, até ao lago Petexbatun, que atingi ao fim de três dias.

Uma vez mais me apercebi, de que a imaginação popular suplantava a realidade. Neste pedaço de natureza selvagem e magnífica, não havia dúvida de que o lago tinha certos aspectos que inspiravam a magia, mas não existia gruta alguma. As águas sombrias e a presença de alguns caimãos abreviaram bem depressa as minhas pesquisas submarinas. Prolonguei com prazer a minha viagem, explorando metodicamente as margens do lago, os riachos que aí iam desaguar e os extensos campos pantanosos dos arredores.

Foi nessa altura que me cruzei com a piroga de um batedor da floresta que se consagrava momentaneamente à pesca; a época era ideal para este género de ocupação. Na estação seca o rio regurgita de vida. Os animais sedentos vêm beber às suas margens e as águas baixam de nível, sendo então mais claras. Inúmeros cardumes de peixe vão e vêm à procura de comida. É um período difícil para eles, contrariamente à estação das chuvas, em que as violentas bátegas de água e a ondulação arrancam pedaços inteiros às margens arborizadas, trazendo consigo frutos, insectos e vermes. A corrente do rio é imperceptível e nas poças pouco profundas as águas dormem; estão tão quentes que os peixes sobem à superfície a todo o instante para absorver um pouco de ar.

O peixe-crocodilo, muito abundante nas águas do Petexbatun, onde flutua imóvel, à tona de água, permite uma tal aproximação que consegui matar três à catanada. A sua carne, dura e branca, é deliciosa e faz lembrar curiosamente a do crocodilo, do qual tem a forma. O solitário batedor da floresta havia instalado o seu acampamento num canto alegre e cheio de sol das margens do lago. Era aí que secava os peixes apanhados no decorrer das suas pescarias. Quando a noite chegava, bastava-lhe andar alguns metros para colocar as linhas de fundo na passagem dos cardumes e era com evidente satisfação que as levantava pela madrugada. Conhecia o mais pequeno dos rochedos do seu lago, os ribeiros e os pântanos e fazia diariamente algumas dezenas de quilómetros de piroga pelo seu reino. Em breve lhe pus o nome de «homem do Petexbatun», alcunha pela qual eu próprio fiquei depois conhecido na Guatemala! Após algumas reticências, aceitou iniciar-me nas suas técnicas de pesca e levou-me consigo, enquanto Eusébio, o meu plácido guia índio, se instalava como um rei no acampamento do batedor, vigiando a secagem do peixe. De tempos a tempos, o índio ia à caça; tinha predilecção pelos iguanas, aqueles lagartos gigantes, de aspecto antediluviano, que vivem aglutinados em cacho nos ramos das árvores que pendem para o lago, deixando-se cair de vários metros de altura, ao mínimo barulho, para as águas escuras. Eusébio espiava-os durante horas esquecidas, à espera que um saltasse para a margem. Abatia-o então e preparava-o, assado ou cozido, segundo a inspiração do momento.

O engenho de pesca mais frequentemente utilizado pelo «homem do Petexbatun» era um longo arpão de quatro metros talhado num bambu. Nas nossas expedições, o meu papel consistia, em geral, na condução silenciosa da piroga a fim de o levar o mais junto possível dos cardumes. Vê-lo operar era então um espectáculo maravilhoso. A princípio tive alguma dificuldade em manobrar correctamente, por causa do longo remo de pá estreita que substitui no Peten a clássica pagaia, pois é preciso ficar de pé na piroga, o que dá muito pouca estabilidade. A experiência provou-me, aliás, que o emprego deste género de remo é bastante lógico nesta região. Pode servir de vara nos numerosos locais onde o lago é pouco profundo e permite avançar por entre os extensos pântanos, o que, com uma pagaia, é quase impossível. Mas o remo do Peten tem uma função suplementar: serve de arpão para caçar tartarugas. Quando Lisandro, o «homem do Petexbatun», me explicou isso, mostrei-me tão incrédulo que ele quis provar ali mesmo o que dizia.

Navegávamos então no rio também chamado Petexbatun, que vai desde o lago até ao rio La Passion, que é um grande afluente do Usumacinta. As tartarugas adoram este local, mas nesse dia estavam particularmente desconfiadas e recusavam mostrar-se. Lisandro pôs-se então a bater violentamente na água com o remo, como se fosse sua intenção castigar o rio, e pediu-me que o imitasse.

— As tartarugas vão ficar com medo — disse-me ele — e irão então procurar refúgio ao longo das margens, à tona de água... Olha...

Com efeito, reparei bem depressa em duas formas escuras, achatadas no fundo lodoso da margem direita. Lisandro fez-me sinal, sem pronunciar palavra, para eu dirigir a piroga até junto da maior. Rapidamente, enroscou na extremidade do remo uma comprida ponta de ferro, à qual estava presa uma corda fina, que, por sua vez, se ligava ao remo, passando por um orifício que até então me intrigara. Lançou a arma como quem lança um dardo. A tartaruga visada tentou fugir ao sentir o choque, mas a ponta de ferro fixada na carapaça destacou-se do remo. A pobre tartaruga já não nos podia escapar. Arrastar atrás de si a pesada piroga era tarefa que ia para além das suas forças. Lisandro debruçou-se rapidamente e agarrou tranquilamente a tartaruga, que se debatia inutilmente.

Estas tartarugas de água doce são verdadeiras reservas de carne fresca para os batedores da floresta. A sua resistência é incrível: são capazes de ficar imóveis, sem se alimentarem, durante semanas inteiras, o que não as incomoda nada.

As minhas relações com Lisandro eram muito especiais. Falava pouco e não parecia disposto a fazer amizades. O meu material para mergulhar, que estava guardado no acampamento dele, intrigava-o, mas percebia-se que não acreditava muito nas minhas explorações submarinas. Para ele, como para todos os outros batedores, era uma loucura. Na água, o maior inimigo é o caimão. O seu grito faz lembrar o coaxar da rã e Lisandro imitava-o na perfeição, o que lhe permitia localizá-los nos seus refúgios e aprisioná-los colocando à entrada uma sólida barricada de madeira bastante dura. A sua convicção do perigo era de tal modo real que eu próprio já nem encarava a hipótese de nadar no lago, coisa que fizera até então.

Uma certa manhã surpreendemos duas magníficas tartarugas à tona de água num recanto do Petexbatun. À nossa aproximação, mergulharam imediatamente. Lisandro nem sequer tinha fixado a ponta do seu arpão e já elas estavam fora do seu alcance. A água estava clara e não tinha mais que quatro metros de profundidade nesse sítio. Um reflexo inesperado fez com que eu mergulhasse de repente em perseguição delas, apanhando sem muita dificuldade uma, que se debatia furiosamente. Era um belo animal, com cerca de dez quilos. Lisandro estava maravilhado, não só por eu me ter lançado à água, mas também por a minha técnica de pesca ser tão boa como a dele! Confesso que eu próprio fiquei surpreendido com o resultado espectacular da operação. Depois desta tentativa melhorei o meu modo de actuar, até ficar enjoado com os inúmeros pratos de tartaruga que nos valia esta pesca desportiva.

Lisandro modificou-se em relação a mim desde esse dia. Tornou-se mais confiante, mais sociável, e confiou-me que, se as grutas que rodeavam o lago eram imaginárias, ele conhecia uma verdadeira caverna, em plena floresta, com um pequeno ribeiro subterrâneo.

— Para ti não há perigo e talvez descubras um tesouro... — disse-me com um ar sério.

Mas, depressa voltando a si, acrescentou:

— Metade é para mim... Está bem?

Como é que ele poderia compreender que alguns simples pedaços de cerâmica representavam para mim o mais belo dos tesouros? No coração desta floresta selvagem do Petexbatun, em grande parte inexplorada, desprovida de interesse sob o aspecto arqueológico, como se dizia, que poderia eu esperar?

E, no entanto... Logo no dia seguinte encontrava-me, de saco às costas, marchando com Lisandro na imensa floresta, enquanto o plácido Eusébio se decidira a ficar no acampamento.

Dois dias de marcha levaram-nos, sem dificuldade, às proximidades de uma grande caverna, onde o meu novo companheiro me deixou entrar sozinho. Tinha receio dos espíritos...

Dispunha apenas de uma lanterna vulgar, o que me obrigou a nadar no ribeiro subterrâneo com uma das mãos de fora. Era bastante desagradável, pois, embora pouco profunda, a água estava muito fria. Penso que não cheguei a nadar mais de dez minutos. Esforço inútil: nada existia no fundo da caverna, apenas rocha e milhares de morcegos, que chocavam, estonteados, na lanterna e no meu rosto.

Desiludido e a tremer de frio, foi com alegria que voltei a encontrar o calor sufocante da floresta e a cara enfadada do meu companheiro Lisandro.

Nessa altura, fiz uma descoberta espantosa, que revificou a minha desiludida imaginação e iria transformar o curso da minha vida durante numerosos anos. Ao arrumar a lanterna na algibeira direita do saco baixei-me ligeiramente e ali, a meus pés, vi dois pedaços de cerâmica de terracota vermelha, eram estriados e, apesar de não muito grandes, comoveram-me bastante. Mal me cabiam na concha da mão. Mostrei-os a Lisandro, com o coração apertado... O meu companheiro fez uma careta: — Cacos como esses existem aqui por todo o lado!... Nessa altura olhei em volta e apercebi-me de que estava diante de um montículo de forma irregular, não muito alto e coberto por vegetação.

Quê? Era impossível que aquele montículo fosse um capricho da natureza... e, de repente, fiquei intimamente convencido de que era de origem arqueológica. Que construção antiga se esconderia tão longe do rio, em plena floresta virgem? É certo que foram descobertas grandes cidades maias no Peten, no princípio do século XX, mas encontram-se situadas a centenas de quilómetros dali e sempre se disse que esta região do Petexbatun nunca fora habitada. Então?... Comecei febrilmente a escavar o solo, à procura de vestígios arqueológicos mais significativos, como restos de construções, ou quaisquer outros. Em vão... Apenas encontrei, junto à caverna, mais pedaços de cerâmica, que me confirmaram que a minha primeira descoberta não era acidental.

Como poderia não acreditar na promessa destes restos de cerâmica e nestes montículos estranhos? Por que não teriam eles despertado o interesse de quaisquer guatemaltecos amadores de arqueologia? Apenas desejava uma coisa: assinalar aqueles indícios prometedores. De volta à capital, Guatemala, só encontrei indiferença, ironia e desconfiança. Respondiam que não conheciam Petexbatun, ou então perguntavam-me se eu tinha a certeza de ter ido até Peten. Ou então: «Quanto é que pagou por esses pedaços de cerâmica?». Ou: «O Petexbatun? Mas isso é uma região onde nunca existiu nada...»

Desolado e chocado com a pouca atenção que prestavam aos meus cacos, tomei a resolução de partir à procura de provas mais convincentes; e é por isso que agora partilho com três chicleros a vida precária de homem da floresta.

 

                   TÉCNICAS DE EXPLORAÇÃO

— Vampiros... vampiros! — grita Rey.

Desprende da cinta a catana com a qual corta dois ramos delgados e dá-me um deles, ao mesmo tempo que sobre o acampamento desce uma nuvem de vampiros em voo rasante.

Júlio e Lisandro também cortam cada um a sua vara. Rey obriga-me a sentar, de costas viradas para ele, junto aos outros dois homens. Formamos os quatro um grupo compacto. O barulho surdo dos vampiros e as suas asas que nos tocam de passagem é uma coisa deveras assustadora. Com a cabeça metida entre os ombros, imito os meus companheiros agitando a vara flexível, que mantenho apertada entre os joelhos. A extremidade desta arma defensiva de um novo género volteia num ligeiro rodopio, única protecção contra os vampiros, que tentam subverter-nos.

É natural que tenham sido atraídos mais pela pequena clareira que acabámos de abrir para nos servir de acampamento nocturno que pela nossa presença e a esperança de uma boa refeição à nossa custa. Todavia, estou um pouco assustado, pois não há nada mais impressionante que estes animais abatendo-se em bando sobre as nossas cabeças e lançando gritos agudos.

Esta técnica da vara, decididamente, é eficaz: em poucos minutos começam a cair às dezenas, enquanto o grosso do bando se afasta.

Alguns dias atrás teríamos rido deste pequeno incidente, mas, hoje, tudo parece estar coligado a fim de nos provocar uma angústia dissimulada. Os meus chicleros, apesar do seu carácter prazenteiro e folgazão, começam a enervar-se, tornam-se irritáveis, e eu também.

A natureza parece-nos hostil desde ontem. Como todos estamos de mau humor, qualquer acontecimento insignificante toma a proporção de catástrofe. O que eu penso, muito simplesmente, é que nos sentimos cansados. Já dez semanas nos separam do dia em que pusemos a piroga na margem seca e a cobrimos com ramagens para nos embrenharmos nesta floresta. Dez semanas de esperanças e decepções, dez semanas de dificuldades de toda a ordem, que nos fazem pensar que o fim da aventura está próximo.

O facto é que o aparecimento das primeiras chuvas é o grande responsável pela nossa lassidão. Não só se revelam desastrosas para o moral, como também nos tornam vulneráveis aos ataques de palu-dismo e disenteria. Dir-se-ia que o número de insectos que nos ataca quadruplicou em três dias. Andamos a patinhar na lama e tudo o que trazemos no corpo destila humidade.

Nem o puma, nem o jaguar, nem os vampiros constituem perigos reais, apenas os parasitas e os mosquitos são os verdadeiros inimigos. As espécies que nos flagelam incansavelmente durante o dia desaparecem miraculosamente uma dezena de minutos antes do cair da noite, para serem substituídas por uma nova vaga de insectos de um outro tipo e de picada diferente. Os mosquiteiros revelam-se inúteis contra os minúsculos mosquitos, que conseguem entrar por entre as malhas da rede. As suas picadas dão a impressão de queimaduras.

Há já três dias que até as próprias carraças nos parecem insuportáveis. E, no entanto, já devíamos estar habituados a viver na companhia destes parasitas, que pululam nas plantas rasteiras e se agarram ao desgraçado viajante que passe na sua vizinhança. São de tal modo vorazes que podem aumentar dez vezes de volume, se lhes derem tempo!

Quando uma carraça é tirada à força, a sua cabeça continua enterrada na carne e provoca uma infecção.

O parasita mais virulento parece-me ser o colmoyota. Infiltra-se na epiderme, onde se incrusta profundamente, começando a aumentar de volume. Para se conseguir extraí-lo é preciso que tenha atingido um certo tamanho, o que acontece ao fim de três ou quatro dias; a operação é difícil para as pessoas sensíveis, pois tem de se encostar um cigarro aceso ao sítio onde ele está refugiado. O problema é de resistir mais tempo à queimadura que o intruso; já quase a sufocar, põe a cabeça de fora, que imediatamente se queima com o morrão do cigarro. Resta somente fazer a extracção do colmoyota, última prova ligeiramente dolorosa, porque facilmente atinge o tamanho de uma ervilha.

Foi com despeito que verifiquei que o colmoyota parece muito mais guloso pela minha carne de europeu do que pela dos meus companheiros! Tratar-se-ia de uma imunização própria à sua raça? Ou devo eu, antes, procurar a explicação deste desconcertante fenómeno no facto de me aproveitar de todas as ocasiões para tomar banho, enquanto os chicleros só tocam na água para a beber? Nada, aliás, no mundo seria capaz de os obrigar a tirarem a camisa para se lavarem! Mas é com delícia que bebem a água mais poluída, sem a mínima consequência desastrosa, enquanto a mim basta-me engolir um gole para ficar incomodado durante todo o dia. Por esta razão, prefiro, dentro da medida do possível, matar a sede com a água das lianas. Na semana passada enormes moscas negras provocaram uma grande confusão no nosso acampamento. Assim que começaram a aparecer, Rey, Lisandro e Júlio, sem se atrapalharem, cavaram precipitadamente buracos no chão para aí meterem a carne, que envolveram em folhas de palmeira. Uma simples mosca desta espécie põe centenas de ovos, mesmo na carne que esteja a assar em cima de fogo. Em alguns instantes proliferam, tornando-se numa multidão de vermes em movimento.

Contudo, o pior dos perigos apresenta-se sob a forma de uma mosca mais pequena que a precedente, a mosca chiclera, da qual surpreendemos nessa manhã um espécime. É portadora do protozoário da leishmaniose, que provoca horríveis úlceras na carne, especialmente nas partes cartilagíneas da cara, nariz e orelhas. Os laboratórios alemães conseguiram fabricar um medicamento muito caro contra a leishmaniose. Tomado a tempo, evita, às vezes, a formação de úlceras. Os chicleros utilizam por sua vez um remédio brutal; cobrem a parte atingida pela doença com uma espessa camada de cauchu selvagem extraído directamente de uma hévea. Ao fim de alguns dias este látex endurece em contacto com o ar e contrai-se por cima da chaga. Arranca-se então brutalmente este emplastro improvisado, assim como a parte da carne atingida pela doença. Processo radical muito doloroso, que provoca, algumas vezes, sérias mutilações. Mas, apesar disso, são preferíveis a essas terríveis chagas, que comem perpetuamente o indivíduo, levando-o à loucura. Um atingido de leishmaniose na garganta, caso felizmente muito raro, acaba sempre por morrer.

Os três rudes homens que me acompanham pertencem a esta nova raça de aventureiros da floresta: os pesquisadores de chicle, os chicleros. O chicle, matéria indispensável à fabricação do chewinggum, é a seiva de uma grande árvore selvagem do Peten, a sapota. A vida dos chicleros e os seus métodos de sangrar os troncos parecem-se em tudo com os dos seringueiros de cauchu na Amazónia.

A arqueologia maia muito deve aos chicleros, pois estes estão na base da descoberta da maior parte das cidades clássicas conhecidas.

Sei que estes três homens que me acompanham estão aqui no intuito de esquecer algo do seu passado, e que seria pelo menos inconveniente interrogá-los acerca deste assunto. A nossa vida em comum permitiu-me, apesar de tudo, obter alguns esclarecimentos.

Todos têm nomes espanhóis. No entanto, Rey é um índio quetchi puro; fugiu de uma fazenda de café dos planaltos guatemaltecos, onde era tratado como escravo.

Lisandro é um mulato descendente de negros trazidos de África, que formam actualmente a maioria da população das Honduras Britânicas.

Quanto a Júlio, é o produto da união de um índio lacandon com uma itza.

Todos se tornaram definitivamente habitantes do Peten. Destino curioso o desta região de mistérios, reduzida, desde o desaparecimento dos Maias do império clássico, ao estado de zona desabitada, percorrida, nos nossos dias, por estas poucas centenas de indivíduos vindos do exterior.

Devido ao seu carácter e à sua mentalidade, os chicleros fazem lembrar os pesquisadores de ouro e de diamantes da América do Sul, com os quais vivi durante bastante tempo; foi talvez até por isso que me senti logo tão à vontade no meio deles. Corajosos mas supersticiosos, exigentes e generosos, chega a ser difícil obter a sua ajuda mesmo a troco de enormes quantias. Contudo, quando aceitam juntar-se-nos, a tenacidade que põem na empresa é igual à nossa.

Acordaram acompanhar-me nesta aventura depois de uma série de provas mútuas prestadas no decurso de pequenas expedições.

No decorrer das nossas longas caminhadas quotidianas, monologando interminavelmente comigo próprio, chego a esquecer um pouco o peso que carrego e as picadas dos mosquitos, que me atacam permanentemente a cara e as mãos. Um sorriso aflora-me aos lábios quando penso na imagem clássica do explorador de outros tempos, equipado de capacete e botas. Ando sempre de sapatos de lona, frágeis mas ligeiros, incapazes de me provocar a mínima bolha e que têm a grande vantagem de expulsar a água tão facilmente como a deixam entrar. Os punhos da camisa já não fecham; caíram-lhes os botões e, por isso, atei uma liana fina à volta dos pulsos. Tudo é preferível a oferecer-se o mínimo que seja à voracidade dos mosquitos. O tempo do capacete já acabou. Aliás, como é que se podia suportar semelhante coisa neste forno em que o corpo está permanentemente a transpirar? O suor da testa cai-me para os olhos em vagas sucessivas, cegando-me momentaneamente. A vista começa a causar-me perturbações. Tentei tudo contra os mosquitos: produtos especiais, limão, sabão e lama, mas sem resultado; ao fim de alguns minutos, o suor lava tudo.

Uma fita feita de casca de árvore cai-me para o peito como se fosse um longo colar; as duas extremidades estão atadas ao cimo do saco que levo às costas. É uma cinta improvisada que coloco de vez em quando na testa e puxo fazendo pressão com ambas as mãos à altura das orelhas. Velho truque, aprendido com os caçadores da América do Sul, serve para compensar a pressão exercida pela carga que se traz às costas e provoca uma verdadeira sensação de alívio.

Prendi a catana dentro da bainha de couro, de um dos lados do saco, porque nunca me consegui habituar a senti-la balançar ao longo da minha perna direita; mas está posta de modo a poder servir-me dela quando quiser.

Tento lutar contra o estado de sonho que me isola do mundo exterior. Gostava de poder possuir os sentidos despertos dos meus companheiros índios, tão perfeitamente adaptados a este meio difícil que parecem ignorar a fadiga. Mesmo no decorrer dos esforços mais penosos, não se consegue ver a mínima gota de suor nas suas faces impassíveis. Estes homens são capazes, após várias horas de marcha, de correr atrás de qualquer peça de caça, sem mesmo se preocuparem em alijar a carga que trazem.

Evidentemente que todos temos a mesma alimentação. No entanto, o regime alimentar dos meus companheiros adapta-se melhor à vida precária que levamos. Hoje à noite, por exemplo, vão comer três vezes mais pecari que eu sem ficarem doentes. E amanhã caminharão facilmente até à noite sem comer o que quer que seja, enquanto esta dieta forçada se tornará para mim num tormento estomacal bastante pronunciado. Quando partimos para a expedição, a maior dificuldade para os meus companheiros foi terem de abandonar o milho, base da sua alimentação habitual. Este cereal apresenta vários inconvenientes: exige uma longa preparação para ser consumido e não aumenta de volume com a cozedura; preferi, portanto, levar arroz descascado, porque o seu valor nutritivo é maior que o do milho, coze mais depressa e quintuplica de volume.

Todos transportamos cargas semelhantes. As nossas provisões, à partida, eram: arroz, café, sal, açúcar, gordura e um pouco de chá. Havíamos reduzido o material complementar de dormir, fotográfico, cozinha, munições, mudas de roupa, pilhas, etc; apesar de tudo, o peso dos sacos ultrapassava os quarenta quilos.

Sim, não há dúvida de que isto de ser pesquisador de ruínas é um trabalho muito especial! É necessário andar com fardos pesados às costas, marchar durante dias e semanas, comer o menos possível, para poupar provisões, e nunca esquecer de deixar marcas de passagem com as catanas, de modo que, em caso de desorientação, seja fácil encontrar o bom caminho. O processo é extenuante, mas tem a vantagem de permitir explorar em dois meses um território que uma expedição normalmente equipada e com grande número de carregadores levaria seis meses a percorrer. Acrescentemos que, no Peten, é preciso andar depressa, porque uma progressão a sério só é realizável na estação seca, o que equivale a um período de quatro meses no máximo; assim que as chuvas começam, toda a região fica transformada num gigantesco pântano.

Já sabíamos, à partida, que as nossas provisões só durariam cerca de três semanas. É uma regra geral, admitida desde sempre pelos caçadores encartados e que eu verifiquei muitas vezes: um homem, por mais robusto que seja, não deve transportar às costas mais de vinte quilos de víveres. Se a carga é maior, comerá mais e verificará, no fim de contas, que a sua autonomia se reduziu às três semanas tradicionais.

Se nós nos aguentávamos tão bem há já dois meses era única e exclusivamente devido à caça. Aliás, eu havia triplicado a quantidade de sal a levar, pois é absolutamente necessário comer alimentos salgados nesta região em que a desidratação é permanente.

Quanto ao problema de beber, resolve-se com as lianas, esses obstáculos que nos atrasam o passo a cada instante, mas que são sempre bem-vindos quando se faz uma paragem. Verdadeiros reservatórios de água potável, elas foram as nossas aliadas durante a estação seca, quando as nascentes de água que encontrávamos nada nos podiam oferecer.

Os meus companheiros ensinaram-me a distinguir as lianas dentro de cuja casca a água é mais digestiva. Há uma que dá um suco muito amargo, cor de alcaçuz, que bebíamos há já alguns dias, pela manhã, em vez de café. Para se extrair o líquido é necessário seccionar a liana rapidamente com um corte de cerca de um metro. Se o processo de corte é lento, a seiva sobe a grande velocidade, de modo a afastar-se do entalhe.

Rey prefere as raízes das queijeiras (bombax), onde se esconde uma reserva de água que ele diz ser inigualável.

Agora já sei reconhecer sem dificuldade a abundante fauna desta floresta: os trocistas quincajus, os tatus, com aspecto de animais pré-históricos, os tapires, de nariz desmesurado, as cotias(NT), de carne gordurosa, todos estes animais são-me familiares.

Estes conhecimentos estão, a maior parte das vezes, ligados a uma experiência gastronómica à qual os pássaros dão o maior contributo. Os papagaios, os tucanos, os curucus de garganta vermelha, os colibris, que diminuem o seu ritmo cardíaco durante a noite a tal ponto que é fácil apanharem-se sem que acordem, os deliciosos hoccos, as perdizes da floresta, todos eles figuraram nas nossas ementas.

A floresta estremece como se estivesse debaixo de um aguaceiro torrencial. Lisandro, que caminha à nossa frente, volta-se para se interrogar acerca deste barulho que se aproxima e amplifica. Um cheiro muito activo chega até nós, ao mesmo tempo que ouvimos grunhidos furiosos. Pecaris! Mal temos tempo para nos atirar para um dos lados quando surge a horda, de cabeças baixas. Assim que os vimos, percebemos logo que são perigosos, pelo menos hoje.

Lisandro saca com rapidez da sua velha carabina calibre 22 long rifle, arma muito prática por causa da sua leveza e do pequeno peso das munições. É certo que exige bastante pontaria ao caçador, mas a abundância de caça pouco desconfiada simplifica o problema. Nem vale a pena pensar em atirar sobre o grosso do bando de pecaris. Não se sobrevive à carga de uma centena destes animais furiosos e devemos lembrar-nos de que eles são capazes de escavar o solo durante vários dias para desenraizar as árvores onde os caçadores imprudentes encontraram refúgio. Para se conseguir um reabastecimento de carne é mais prudente apontar para um pecari retardatário. Refugiados à pressa por trás de um grosso tronco protector, esperamos, sem nos mexermos, pelos retardatários, que passam em pequenos grupos isolados.

 

*Nt. Mamífero roedor da América do Sul e Central, semelhante ao coelho.

 

Lisandro é um excelente caçador e, como os seus companheiros, tem um respeito formal pela caça, qualidade que eu aprecio. Matar por matar é perfeitamente inútil aqui. A nossa maneira de caçar, comum a todos os caçadores, chocaria os frequentadores das batidas da Sologne, da Alsácia ou de Yvelines. Regra geral, aproximamo-nos o mais perto possível da caça, esperando que esta pare. Lisandro aponta para um pecari isolado e carrega no gatilho, mas a bala não chega a partir porque a arma se encravou. É, infelizmente, um incidente frequente devido ao uso excessivo que se dá às armas, aos maus tratamentos que suportam diariamente e à má qualidade das munições vendidas pelos traficantes, que, por sua vez, já as compraram a baixo preço.

Parece-nos bem que a carne para o jantar vai fugir... É então que Júlio se lança para a frente, gritando que o sigamos com as catanas. Dou, mesmo por trás dele, um salto para cima de um gordo macho, que se esquiva facilmente. Dois outros pecaris lançam-se às cegas e chocam comigo à passagem. Perco o equilíbrio e agarro-me a uma palmeira coberta de picos. Já irritado, lanço-me em sua perseguição, tropeço e enrodilho-me estupidamente num emaranhado de lianas. Os meus companheiros índios parecem também irritados. As lâminas das catanas resvalam por entre os animais sem lhes tocar... E é assim que toda a horda passa, mesmo os retardatários, e nós ficamos para ali, furiosos e estúpidos. É a derrota. Não! Rey acaba de ver um retardatário de bom tamanho, e põe-se repentinamente a ladrar como um cão furioso. Júlio imita-o. O pecari, perturbado, hesita, atrapalha-se, anda às voltas... Pelo meu lado também me junto a este incrível concerto. Agimos como perfeitos homens da Pré-História. Cercamos o animal com precaução até que ele acaba por se baixar mostrando as presas. Então Júlio, de um salto, cai sobre o animal e fere-o de morte com a catana.

O nosso pecari está ali, suspenso de uma árvore como se fosse um quarto de boi pendurado num talho de Paris. As patas dianteiras estão ligadas com duas lianas e Lisandro tira delicadamente do fundo do dorso do animal a glândula de almíscar, que deita um cheiro de tal modo penetrante que a floresta ainda está completamente impregnada mesmo vinte e quatro horas após a passagem dos animais.

Acendemos uma enorme fogueira para queimar todos os pêlos do animal, no intuito de não dar nenhuma possibilidade de sobrevivência às inúmeras carraças que, sem hesitação, poderiam vir fazer companhia às já numerosas que se encontram nas nossas epidermes.

Lisandro corta com destreza os quartos de carne e embrulha-os dentro de folhas. Amarramo-los solidamente com lianas finas aos sacos e retomamos o caminho.

Ao fim da tarde, antes de cair a noite, paramos sempre duas horas para prepararmos o acampamento sumário, que abandonaremos ao nascer da aurora.

São diversos os factores que determinam a escolha do local de pernoita: antes de tudo a proximidade de água, depois a vizinhança dos palmares necessários à construção de cabanas temporárias. As nuvens já começaram a despejar o seu manancial de água sobre a floresta e é preciso termos um tecto por cima dos nossos sacos de dormir. Esta necessidade de abrigo corresponde também ao desejo que cada um de nós possui de se sentir protegido e isolado de tudo o que vive e nos observa do alto da vasta cúpula de vegetação.

No final de contas, que somos nós nesta floresta senão uns intrusos? Os sapajus, esses enormes e barulhentos macacos, estão ali para nos lembrar isso. Dir-se-ia que a nossa presença os escandaliza. Durante o dia contentam-se em observar-nos do alto do seu reino, instalado nas grandes árvores, e esperam pela noite, quando estamos a dormir, para nos oferecerem um concerto de guinchos sinistros, que nos fazem acordar com o coração opresso. Pobres sapajus! Conseguem assustar as pessoas, mas são perfeitamente inofensivos. O seu sedentarismo leva-os à própria destruição, porque, como vivem em bandos e sempre nos mesmos locais, são literalmente dizimados pela febre-amarela.

A nossa instalação obriga cada um de nós a executar determinada tarefa. Rey e eu limpamos o local escolhido com a ajuda das catanas, objecto indispensável, sem o qual nenhum caçador consegue sobreviver, e Lisandro e Júlio cortam as enormes folhas de palmeira. A forma da cabana depende da espécie dos palmares vizinhos.

Por exemplo, o guano obriga a uma barra de telha, em que as arestas das folhas que pendem de cada um dos lados, em dois planos inclinados, possam repousar. Esta noite foi a palmeira corozo que nos deu abrigo. Construímos para cada um uma espécie de telheiro, coberto por largas folhas espalmadas em forma de leque. Nos lados, espetámos varas ligadas por meio de lianas flexíveis e resistentes para aí pendurarmos os nossos sacos de dormir, que nos isolarão bastante satisfatoriamente do solo e de todo o seu ruído animal.

Júlio dedica-se diariamente a uma ocupação em que é especialista: a construção da grelha para assar a carne. Tem uma altura de cerca de setenta e cinco centímetros e constitui um verdadeiro abrigo para as peças de caça, que as chamas de um fogo lento irão assar durante toda a noite. Na manhã seguinte, somente a superfície da carne estará calcinada. Tratada deste modo, e se não houver esquecimento de efectuar diariamente este tratamento, a carne conservar-se-á durante uma dezena de dias. É a técnica do fumeiro, e ainda hoje muitos índios da América fazem isto à caça, em grelhas muito semelhantes à de Júlio. Este método de cozedura é tão engenhoso quanto é realizável com animais não despojados do pêlo ou do couro e a única coisa que sucede à carne é refinar o seu sabor. Existe um inconveniente: é necessário alguém levantar-se durante a noite para alimentar o fogo, mas Júlio não parece importar-se com isso.

Ainda por mais esta noite o engenho dos meus companheiros e a generosidade de uma natureza exuberante garantir-me-ão um bom acampamento. Mas esta satisfação imediata não é suficiente para me contentar. Nas actuais condições de vida, e com a proximidade da estação das chuvas, parece-me impossível aguentarmo-nos por muito mais tempo...

De joelhos, a alguns metros da fogueira, embrenhado na espessa fumarada que me isola momentaneamente dos mosquitos, observo os três homens que há já dois meses fazem milagres para resolver o vital problema da alimentação.

Estarei em vésperas de, um falhanço total? Isso parece provável, tanto quanto eu me cingir aos diferentes montículos que temos vindo a descobrir no decurso destas três semanas de exploração e onde nunca encontrei qualquer vestígio de esculturas... E não há dúvida de que a região foi habitada no passado, como o provam estes montes e os pedaços de cerâmica que encontrámos...

Contudo, só a descoberta de restos arquitectónicos visíveis ou de pedras esculpidas poderá confirmar as minhas teorias acerca da importância arqueológica desta região. Numerosos locais semeados por montículos artificiais que encontrei no decorrer destas semanas serão insuficientes para convencer quem quer que seja. Mesmo aquela curiosa colina, regular e pontiaguda, que justificaria o envio de uma expedição, não despertará interesse algum. Ela é tão grande e, à sua volta, a floresta é tão densa que desisti de a fotogratar.

Onde se escondem os templos e as cidades dos antigos Maias? Dois meses de pesquisas... Para nada? E, no entanto, o local que acabámos de escolher para instalar o acampamento parece prometedor. Aliás, sem qualquer razão definida... Intuição? Talvez, mas será que numa aventura como esta o bom senso terá ainda qualquer utilidade?

 

                   DESCOBERTA DE UMA CIDADE

Há três dias que as nossas pesquisas prosseguem afincadamente. Abrimos caminhos que nos servem de pontos de referência e humanizam este canto da floresta virgem. Limpámos vastas superfícies à volta de quatro colinas cobertas por uma espessa camada de vegetação e coroadas de árvores gigantes. Uma vez mais, com uma persistente convicção, repito para comigo mesmo que elas são artificiais, que escondem alguma coisa e que viveram homens nestes sítios.

O número de montículos é aqui muito maior que em qualquer outro local. A sua altura, desde quatro até trinta e cinco metros, a sua curiosa forma irregular, a sua proximidade relativa, tudo indica que estamos perante uma importante estação arqueológica. E, no entanto, não se vê o mínimo vestígio nem a mais pequena pedra esculpida. Por debaixo das raízes apenas existem pedras e uma espécie de terra impregnada de gordura, e as últimas sondagens nada deixaram transparecer.

Todavia, vislumbram-se aqui indícios que não deixam margem para dúvidas. A vegetação é mais densa que em qualquer outro lado e a fauna mais abundante, fenómenos que são facilmente explicáveis. Os Maias rodeavam as suas cidades sagradas com árvores raras, de frutos viborosos. Após o abandono destes mesmos locais, estas espécies seleccionadas proliferaram a descoberto nos terrenos circunvizinhos das cidades desertas, crescendo rapidamente e dando origem, tempos depois, a verdadeiros matagais.

A sapota (Achras zapotea) estava à cabeça das espécies seleccionadas por estes requintados maias, não só pela sua seiva, o chicle, que já se mascava, mas também e sobretudo devido à sua madeira, dura e resistente, muito utilizada nas construções, assim como nas grandes obras de pedra. Ainda hoje se podem encontrar, nos velhos templos do Iucatão e do Peten, travejamentos de sapota com mais de mil anos que ainda sustentam as paredes em abóbada falsa das salas interiores. É certo que a construção destas abóbadas, de galeria apoiada em cachorros, é concebida de tal modo que a madeira pouca pressão sofre. A única inscrição importante pertencente aos Maias clássicos que chegou até nós é a de um lintel de Tikal, que pode ser hoje admirada no Museu Etnográfico de Bale: é feita sobre madeira de sapota.

Esta árvore também é igualmente muito apreciada por causa dos seus frutos. Se os macacos não fossem tão gulosos, nós poderíamos comê-los em maior quantidade. Eles mal os deixam amadurecer; a maior parte das vezes mordem por gulodice as sapotas ainda verdes e deitam-nas imediatamente fora por causa da sua acidez. Várias vezes encontramos estes frutos no chão, onde, tarde ou cedo, irão fazer as delícias dos pecaris.

Há, portanto, uma dedução a fazer: onde vivem grandes concentrações de macacos existem sapotas e onde estas árvores crescem com abundância há algumas probabilidades de se encontrarem ruínas. Esta é uma dedução que se prova ser exacta na maior parte das vezes. Não disse palavra aos meus companheiros; impressionam-se facilmente quando lhes indico, a despeito de toda a lógica, uma certa direcção a tomar — determinada graças aos guinchos dos macacos, mais fortes que o usual — e encontramos montículos prometedores.

Que me importa se mais tarde os meus interlocutores maiaístas se interrogarem com uma ponta de ironia acerca desta conclusão! Não é estranho que ainda ninguém tenha estabelecido a relação entre a área de repartição dos Maias clássicos e a das sapotas?

Que grande satisfação é também chegar às ilhotas de vegetação com estas características, que rodeiam as cidades mortas, e identificar o famoso coati (Nasua nasica), pequeno mamífero vivo e malicioso, com a corpulência de um cão pequeno, ostentando um focinho pontiagudo parecido com o do porco! Vive em bandos e trepa às árvores como um macaco. A etnografia contemporânea assinala a intervenção do coati nas cerimónias importantes do Iucatão moderno, como, por exemplo, nas festas municipais das cidades. Este pequeno animal deve ter tido, sem dúvida alguma, um papel importante na antiga religião maia.

Júlio chama ao coati pisote, que é uma palavra nauatle introduzida pelos Toltecas na América Central, onde este animal se chamava primitivamente chi. Mais tarde os Espanhóis, que nunca tinham visto um coati, baptizaram-no, em consequência de uma analogia um pouco feita à pressa, com o nome de tejon, que significa pincel de barba.

A má adaptação do espanhol à terminologia índia é frequente a propósito de animais. Perante um novo mundo desconhecido, os conquistadores informavam-se junto dos índios, interpretando subjectivamente as explicações destes e transformando-as muitas vezes, segundo um etnocentrismo generalizado no século XVI e ainda hoje frequente. Os Espanhóis baptizaram assim uma quantidade de coisas novas da América com o nome que, em Espanha, designava as que mais se aproximavam a estas.

Inconscientemente, parece-me, no fundo, que é este género de pequenos factos concretos que eu aqui vim procurar. Mas eu tinha mais necessidade de uma experiência vivida que de uma compilação bibliográfica.

Porém, não estarei eu a proceder como aquelas pessoas que podem falar de tudo só porque viveram experiências deste género? Pressentindo uma derrota, não procuraria apenas falsas satisfações para justificar isso mesmo? Será que ainda sou capaz de ser objectivo?

A minha segurança vai gradualmente sendo deitada por terra em presença da floresta esmagadora. Os nossos esforços, empreendidos há três dias neste local agora descoberto no sentido de desbravar o terreno, parecem-me mais uma luta contra o impreciso e o imponderável que um inventário destes montículos prometedores.

Desde a nossa chegada aqui, e sem que algum de nós o confesse, sentimo-nos os quatro sob o domínio de uma angústia inexplicável. Reina neste local um estranho ambiente, que pesa sobre nós próprios.

Houve uma altura em que tivemos a louca impressão de sermos vítimas de qualquer estranho encantamento. Já por duas vezes nos despistámos por completo ao tentar referenciar uma série de montículos em relação a uma das clareiras por nós aberta. Já é a segunda vez que voltamos ao ponto de partida. No entanto, nestes dois meses e meio que aqui passámos nunca nos perdemos. Evoluímos no segredo desta floresta, deixando entalhes nas árvores a fim de nos orientarmos e termos a certeza permanente de conseguir sair deste dédalo em caso de necessidade. E, pela primeira vez, sinto aquele medo que os meus companheiros experimentam em certas ocasiões perante acontecimentos que o destino parece ter personalizado a ponto de se poder dizer que parecem dotados de vontade própria.

Os gritos de Lisandro orientam-nos milagrosamente. Deixou-nos há já algumas horas para ir caçar; com efeito, a caça é particularmente desconfiada na periferia das nossas barulhentas actividades. Lisandro grita-nos que foi mal sucedido, mas que acaba de descobrir dois poços de água doce! É a isto que se chama uma sorte providencial! O nosso acampamento está situado na margem de um ribeiro, que, após se ter mantido obstinadamente seco, se transformou, desde as primeiras chuvas, numa torrente de lama, e somos obrigados a fazer buracos no seu leito para arranjarmos a quantidade de água de que precisamos.

Corremos imediatamente em direcção a Lisandro, talhando um caminho por entre a floresta. Os dois poços estão somente a trezentos metros. O primeiro é, com efeito, a nascente de um ribeiro, mas o segundo é mais interessante: mais largo, mais profundo, sem dúvida artificial! Percebo que a mão do homem passou por ali. Consigo mesmo descobrir duas pedras enterradas na lama que parecem ter servido de degraus. A confirmação de que estes lugares foram habitados é uma descoberta capital, que irá doravante orientar as nossas pesquisas num sentido completamente diferente.

Era provável que a antiga cidade, de que eu adivinho a proximidade, estivesse orientada em relação a estes poços de água. Ora nós há já três dias que a procurávamos, tomando como ponto de referência o local do nosso acampamento, escolhido completamente ao acaso.

Abrimos um caminho largo entre os dois poços e o acampamento. Eis-nos, portanto, em presença de três pontos de referência: ruínas, acampamento e poços, tendo cada um deles idêntica posição relativa.

Passo todo o resto do dia a reconstruir febrilmente a orientação dos caminhos por nós abertos e a esboçar um plano. Trabalho difícil, que tem como base a imprecisão, porque não possuo qualquer aparelho que me permita fazer um levantamento do terreno. Todavia, mesmo assim, ao cair da noite já disponho de informações incríveis: efectuamos todos os dias um grande desvio para, a partir do nosso acampamento, chegarmos ao local onde se encontram os montículos. Um caminho em direcção a estes permitir-nos-ia atingi-los directamente.

— Ridículo... absolutamente ridículo — grita Júlio.

Os meus outros dois companheiros estão de acordo com ele e, finalmente, a minha afirmação apenas consegue arrancar-lhes gargalhadas. É contrária à sua compreensão do terreno, a mesma que nos levou justamente a abrir este caminho, com oitocentos metros, que percorremos várias vezes ao dia. E, de repente, estamos os quatro empenhados numa discussão acesa, na qual os meus companheiros saltam do simples bom senso à inverosimilhança mais completa, com os argumentos mais inesperados, tentando demolir a verdade teórica, estabelecida pelo esboço do meu plano. Eu mantenho a minha posição: é necessário abrir-se um caminho na direcção do oriente.

Duas expressões de pensamento diferentes afrontam-se e chocam-se pela primeira vez. É certo que até agora me inclinei integralmente perante a maneira de viver destes homens do Peten, para melhor compreender e conhecer a floresta. Com isso adquiri certos conhecimentos, ao mesmo tempo que me prendi sentimentalmente a eles. Foi, decerto, graças à sua experiência que conseguimos infiltrar-nos até aqui, contornando os obstáculos topográficos, seguindo os cursos de água já secos e rodeando os pântanos que cercam as florestas.

Porém, a menos que haja uma montanha de ferro nas redondezas, uma bússola nunca mente! Infelizmente, a floresta que se situa a este do nosso acampamento é muito mais densa que o caminho já traçado, e isso vem reforçar a ideia dos meus companheiros de que esta busca, de que falo com tanta segurança, não tem a mínima razão de ser.

Uma forte tensão estabelece-se nessa noite, pela primeira vez, entre nós.

Um calor insuportável aparece como prenúncio de uma chuvada próxima.

Nessa manhã, e apesar dos veementes protestos dos meus companheiros, começamos a atacar, em direcção a este, e com o apoio da bússola, a superfície frontal da barreira hostil de vegetação. A passagem começa a abrir-se lentamente, como para dar razão aos meus três chicleros. Uma violação previamente combinada da floresta representa para eles uma espécie de ruptura com o seu bom senso quotidiano, o que me coloca numa crítica posição e me causa um certo mal-estar.

Prometi que, se durante o dia de hoje nada encontrarmos, retomaremos o caminho, de encontro ao rio e à sua verdadeira luz...

Espero o milagre a cada golpe das catanas, a descoberta impossível... Um túnel vegetal com uma centena de metros alonga-se já na nossa retaguarda. Lisandro, à frente da coluna, pára bruscamente o movimento de vaivém da catana e fica com o braço em suspenso o tempo exacto para fazer sinal de que nos imobilizemos. Depois, coloca a catana na bainha e mete lentamente a sua inseparável carabina à cara. Ouve-se o tiro... Um esplêndido peru selvagem levanta voo para cair pesadamente, alguns metros depois, no meio dos arbustos. Consegui seguir a sua trajectória com os olhos e precipito-me para o local onde o animal cai. É preciso agir depressa, porque este animal, mesmo ferido, corre bastante, e em cinco segundos podemos nunca mais lhe achar o rasto. Mas, no momento em que eu me ia apoderar do peru, salta um ocelote(Nt) sobre ele e desaparece impetuosamente

 

*NT. Ocelote: do asteca ocelotl, tigre. Gato selvagem do México e da América Central com pele malhada.

 

com a sua presa nos dentes, nada mais deixando no local que uma confusão de penas esvoaçantes e ainda quentes. Volto descoroçoado, quando ouço Júlio gritar que acaba de descobrir uma árvore de mel.

Rey e Lisandro vão ter com ele e eu sinto-me invadir por uma imensa lassidão. Nada de novo. As preocupações alimentares passaram uma vez mais para primeiro plano. Afinal, que me interessa este mel caído do céu? Tenho pressa é de saber se o atalho que abrimos na floresta nos conduz ou não aos montículos. Gostaria tanto que, pelo menos agora, todos os esforços nos levassem nesse sentido... Mas os meus companheiros devem ter razão em não esquecer as realidades alimentares. Eu próprio não acabei de fazer o mesmo ainda há pouco, quando me precipitei sobre o peru selvagem? Sozinho, obstinado e cansado, continuo a minha progressão para este. Em poucos minutos, a passagem por mim aberta conduz-me mesmo defronte de um montículo que ainda ontem limpámos da vegetação. Maravilhosa bússola! Que grande surpresa irão ter os meus amadores de mel! Mas a minha alegria é de pouca dura. Sobre esta colina já nós afincámos as nossas forças durante muito tempo, multiplicando sondagens sem qualquer resultado positivo.

Sento-me então sobre este montículo decepcionante. Preciso de incluir esta abertura que praticámos no plano dos nossos trabalhos. Onde ponho a bússola? Ali, em cima daquela pedra que está quase toda enterrada? O meu olhar demora-se inconscientemente a fixá-la. E de repente esqueço as notas, o plano... Começo a esgravatar rapidamente a terra à volta dela; a impaciência endurece-me e encrispa-me os dedos... Sim! Aqui está! É uma pedra esculpida... É maravilhoso!

Lanço para o ar um grito de selvagem contentamento e sinto uma alegria triunfante subir dentro de mim.

A minha pedra, a minha grande descoberta, parece ser um degrau muito comprido, com cerca de vinte e cinco centímetros de altura. Um homem estendido, quase nu, encontra-se aí esculpido, de perfil, com as duas mãos ligadas a um hieróglifo colocado à altura da cara. Está prisioneiro. Será que este degrau pertence a um conjunto comemorativo de uma grande vitória? Começo a chamar os meus companheiros em altos berros.

Metemos todos apaixonadamente mãos à obra, e eis-me perante uma segunda revelação: estes simples homens da floresta limpam com delicadeza a minha descoberta, como se estivessem tocados por uma espécie de graça. Começavam já a sentir respeito por esta arte maia que mal lhes acabava de ser revelada.

As nossas descobertas não se limitam a isto; uma hora depois, ao subir o monte mais elevado do local, uma pedra, entre milhares de outras, chama a minha atenção. Encontra-se colocada a cerca de dois terços de altura da pequena colina artificial, a vinte metros do solo e mal se vê a parte que sai do terreno esponjoso. Subimos dez vezes este monte sem sucesso algum. Por que terá sido esta pedra a chamar-me a atenção e não outra? Será que, no decurso destas poucas horas, adquiri um novo sentido ou o dom de dupla visão? Mas o certo é que, agora, vejo perfeitamente estruturas mais nítidas e consigo descortinar uma certa ordem em toda esta barafunda vegetal.

Durante alguns instantes a floresta assemelha-se-me a uma pedra de sonho chinesa ou uma placa de ónix em que aparecem quadros diferentes, segundo a natureza e a psicologia do espectador. Ou, melhor ainda, quando me ponho a observá-la atentamente, ela apresenta-se-me como uma pintura cinética em que tudo muda, segundo o ângulo de visão. Olhando-a bem, nascem durante breves segundos formas arquitectónicas tão nítidas que poderia descrevê-las.

Começamos a limpar o terreno à volta desta pedra inofensiva, mas, de facto, trata-se de um enorme monólito com um metro e cinquenta de largura. À primeira vista parece uma porta de pedra encaixada dentro de um revestimento de estuque, que, originalmente, deveria cobri-la por inteiro. Provavelmente, estamos a trabalhar sobre os restos da pirâmide principal da cidade e, lá em cima, quando ela ainda se encontrava activa, elevava-se o grande templo.

Começamos a atacar com afinco a porta; pouco a pouco apresenta-se-nos sob a forma de um pesado painel e, em breve, resplandece aos nossos olhos um magnífico testemunho de arte pré-colombiana: uma sumptuosa escultura a toda a superfície do bloco de pedra, representando, de perfil, um sacerdote maia, intacto em toda a sua glória.

É a manifestação do estilo mais puro do período clássico. No braço direito encontra-se o ceptro, símbolo da sua autoridade e da sua alta posição dentro da hierarquia religiosa, e a mão esquerda eleva-se delicadamente, num gesto de oração. Restos de cor subsistem ainda em alguns sítios do baixo-relevo.

Durante um longo momento mantenho-me em silêncio diante da majestade desta personagem desconhecida, saída do talento de um artista anónimo. Reinou sobre esta cidade há mais de mil anos...

Repentinamente, tenho a impressão de que a floresta, cansada de lutar, decidiu mostrar-nos todos os seus tesouros.

 

                   ICONOGRAFIA

O majestoso monólito esculpido que assinalou de forma espectacular a minha segunda descoberta pesa várias toneladas e mede dois metros e meio de altura. É de tal modo impressionante que me surpreendo a imaginar qual será a peça essencial que irá enfim permitir reconstituir o puzzle maia.

Acabámos de o retirar do revestimento de alvenaria que o cobria. Trabalho delicado, ao qual consagrámos três dias inteiros. Trata-se, de facto, de uma estela e agora parece que as toneladas de materiais que a sobrecarregavam a fazem oscilar num equilíbrio instável, que, apesar de tudo, em nada a afecta. Ligeiramente inclinada para a frente, aparece-nos agora ameaçadora em toda a sua liberdade. Ao contemplá-la tenho o pressentimento de que há nela qualquer coisa que me diz não ser bem aquilo que eu esperava; há dentro de mim uma sensação de espanto por todo aquele conjunto, que possui algo que nem eu próprio sei explicar.

Esqueçamos a emoção da descoberta e o entusiasmo nascido do contraste destas esculturas, que se realizaram num prolongamento do ambiente selvagem que as rodeia, e olvidemos também o prazer estético, porque, de um instante para outro, esta estela pode cair-nos em cima, e é urgente que a consolidemos.

Aliás, Júlio não cessa de me perguntar como é que uma pedra com tanto peso pôde ser posta ali tão alto; asseguro-lhe que os Maias não conheciam a alavanca nem o sarilho, e que nem sequer possuíam conhecimentos de mecânica, e ei-lo pronto a fazer conjecturas sobre intervenções mágicas e ajudas divinas.

A estela que acabámos de descobrir, assim como a maior parte das estelas maias, é feita de pedra calcária, vulgarmente chamada «pedra de sabão» por causa da sua fraca consistência e por ser extremamente gordurosa. Possui a particularidade de ser mais mole quando está enterrada e de endurecer pouco a pouco em contacto com o ar, reacção que é bem conhecida dos geólogos. Os Maias cortavam nas pedreiras, com a ajuda de enormes tesouras de basalto, verdadeiras trincheiras, que delimitavam o contorno da futura estela. Separavam-na seguidamente por meio de um corte horizontal praticado por debaixo da pedra. À medida que os trabalhos avançavam, iam colocando debaixo do bloco vários toros de madeira e, uma vez aquele destacado, um numeroso grupo de índios designado para esta tarefa puxava-o com a ajuda de cordas feitas de agave ou de lianas, enquantos outros iam metendo por debaixo da pedra mais toros de madeira de modo a provocar a progressão.

As estelas eram sempre esculpidas depois de colocadas nos seus pedestais. Os escultores trabalhavam com tesouras de basalto ou diorite, cujo comprimento variava entre cinco e quinze centímetros, e maços feitos de madeira ou pequenos martelos cilíndricos de pedra.

Sento-me em cima de uma árvore caída e tento contemplar a estela com objectividade. Confesso que não é coisa fácil depois desta prodigiosa descoberta. No entanto, penso ter conservado o suficiente bom senso e não estar a ser vítima de uma identificação que poderia alterar o meu julgamento.

A arte maia é a única entre as artes pré-colombianas que pode ser apreciada sem dificuldade por qualquer pessoa; respeita, com efeito, as proporções anatómicas do homem, aproximando-se assim da arte clássica, que nos é familiar. Parece-me que, mais que uma fonte de emoção estética, a arte desta estela é uma espécie de mensagem profunda, cujo sentido e destino, que me escapam ainda, seriam o símbolo de uma civilização.

Mesmo se não conseguir interpretá-la, esta estela é mais uma peça a entrar no dossier maia organizado pelos arqueólogos. Este dossier já é bastante importante: todas as descobertas arqueológicas feitas no campo maia encontram-se aí anotadas e classificadas, quer se trate de peças isoladas ou de elementos de conjunto.

O estudo aprofundado das diferentes descobertas permitiu dividir teoricamente o país maia em cinco regiões:

 

1) Os altos planaltos da Guatemala;

2) O vale de Motágua, região fronteiriça, ao sul, entre a Guatemala e as Honduras, com as antigas cidades de Copan e Quirigua;

3) O Peten, com Tikal e Uaxactun;

4) O vale de Usumacinta, com Palenque, Yaxchilan, Piedras Negras, etc;

5) Toda a península do Iucatão, com Chichen-Itza, Uxmal, Tulum, etc.

Tanto climática como topograficamente, estas cinco regiões não se assemelham e, embora uma série de constantes arqueológicas pareça dar-lhes uma unidade, cada uma delas tem a marca de um estilo pessoal. A região da nossa descoberta está situada no extremo sul do Peten.

 

Ao debruçar-me, com atenção, sobre as pesquisas sistemáticas dos especialistas, e estudando durante anos os elementos iconográficos conhecidos, verifiquei não só que os artistas maias nunca representam cenas da vida quotidiana, facto unanimemente aceite, mas também que todas as obras estão ligadas à religião e, eventualmente, à guerra. Este último ponto contradiz a ideia geralmente admitida acerca dos Maias: pacíficos, inimigos da guerra e da violência.

Os símbolos religiosos estão sempre associados a uma personagem central, que nunca é um deus, mas sim um sumo sacerdote efectuando rituais, cuja maioria nos é incompreensível, ou a um chefe guerreiro. Posso portanto dizer, sem hesitar, que a escultura da nossa estela representa um sumo sacerdote; aperta contra si o seu bastão de cerimónias, símbolo da sua alta dignidade religiosa. A cara de perfil, os braços quase de frente, os pés e as pernas quase que uns por cima dos outros, mostram que esta personagem está esculpida numa das quatro posições-tipo que se encontram por todo o lado (as outras três são: cara de perfil, braços de frente, pernas e pés de perfil mas nunca se cruzando acima do joelho; ou, então, corpo de frente, pés afastados para fora e cara de perfil - esta é a posição mais frequente; ou, por fim, uma outra, semelhante à precedente, mas em que a cara aparece de frente).

Estas diferentes posições não foram usadas com sequência lógica na história maia em abono de uma certa evolução de escultura. Uma ou outra podem aparecer extemporaneamente em qualquer das épocas Somente certos pormenores dos trajes nos podem dar uma indicação cronológica. O sumo sacerdote da minha estela traz sandálias acrescidas de uma protecção rudimentar para os calcanhares, provavelmente feita de pele de jaguar; encontra-se esta particularidade de traje em certos grupos étnicos do Chiapas. Este pormenor indica-me que a pedra não foi, em todo o caso, erigida no princípio do período clássico, por volta do ano 300 a.C, mas mais tarde.

Somente alguns pequenos pormenores deste género ou quaisquer ligeiras transformações na composição iconográfica permitiram pôr em evidência a evolução de um estilo; os colares das grandes personagens, por exemplo, evoluíram no decorrer dos tempos. No princípio da era clássica eram estreitos e compunham-se somente de quatro ou cinco fiadas de pérolas; pouco a pouco alargaram-se até cobrir os ombros por completo, formando uma espécie de peitoral. Algumas partes da estela ainda têm vestígios de pintura vermelha. Os Maias misturavam esta cor, tirada do óxido de ferro, com copal resina que servia de incenso. Obtinham assim um excelente verniz colorido, com o qual endureciam os seus monumentos, coisa que nos custa imaginar. No entanto, esta prática de pintar os monumentos não deveria espantar-nos, porque os povos da Antiguidade mediterrânica utilizaram-na.

Como medida de segurança decidimos construir um suporte para evitar que a estela caísse para a frente.

É com uma certa lentidão que participo na busca de árvores e ramos necessários a estes trabalhos, porque, desde ontem, já não me separo da minha máquina fotográfica. Para conseguir tirar algumas fotografias coloridas foi-nos necessário cortar numerosas árvores à volta e, pela primeira vez em mil anos, o Sol ilumina o sumo sacerdote. Mas em vinte passadas alcanço a sombra da floresta. Gostaria de tirar fotografias desta vegetação louca, mas a agulha do meu fotómetro nem sequer se move; não existe luz. Mais uma vez tenho de admitir que as condições de luminosidade dentro da floresta virgem chegam, por si só, para desencorajar os profissionais mais empreendedores.

Ainda mal eu acabara de cortar algumas lianas e já os meus companheiros descarregavam enormes braçadas de grossos troncos junto à estela. Decido-me a ir ao encontro deles, quando, de repente, aparece à minha direita, a menos de um metro, uma coisa grossa, verde e negra... Uma cobra! Infelizmente, com a luz que aqui tenho não há possibilidades de tirar uma fotografia e a única solução seria levá-la até junto da estela, em cima da qual há uma mancha de sol. Chamo Rey, pedindo-lhe que identifique a cobra, mas ele, sem mesmo se mexer do sítio onde estava, responde-me:

— Não tenha medo, vi-a há bocadinho, não é perigosa!

Um pouco mais tranquilo atiro-me para cima da cobra e agarro-a com a mão direita mesmo por detrás da cabeça, enquanto com a outra lhe seguro a cauda. Evidentemente que ela, furiosamente, começa a tentar desprender-se, mas consigo dominá-la e levo-a até ao sítio onde os outros estão a trabalhar. O efeito é pior que pólvora! Júlio e Lisandro fogem a sete pés, enquanto Rey, transtornado, grita:

— Por Dios, mas não, não foi essa cobra que eu vi... Cuidado, que ela é muito perigosa!

A inquietação apodera-se de mim por um instante. E, além disso, sinto-me absolutamente estúpido; riria de boa vontade se não estivesse ocupado a segurar a maldita cobra e a acalmar o pânico que provoquei nos meus companheiros. Mas que fazer? Lanço o réptil com toda a força para o mais longe possível e saco a catana. Mas já era muito tarde. A cobra desapareceu sem um instante de hesitação. Tanto eu como ela escapámos de boa.

Não faço troça do medo dos meus companheiros, porque compreendo bastante bem este receio provocado pela vizinhança brutal de uma serpente, mesmo não venenosa, já que eu próprio o senti tantas vezes. Até ao dia em que encontrei na savana venezuelana do Garico um excelente entomologista francês que me familiarizou com as cobras. Apanhava-as à mão com grande facilidade, quer se tratasse de uma espécie inofensiva, quer fossem as serpentes mais venenosas. «O essencial», dizia ele, «é não ter medo! Nunca se esqueça de que o mais ligeiro momento de hesitação pode significar uma mordedura grave e até talvez a morte.»

Alguns meses mais tarde, nas margens do Orenoco, tive ocasião de verificar a veracidade desta recomendação. Uma anaconda aplicou-me uma profunda mordedura na mão direita, por ter hesitado antes de a apanhar.

Além dos perigos por vezes terríveis que pode representar o encontro com uma serpente, o homem parece ter por ela uma aversão inata. Todas as mitologias do mundo lhe deram um lugar importante, mesmo na Escandinávia, onde até nem abundam os répteis. O homem fez dela um espírito demoníaco por causa do seu aspecto e da sua mordedura, às vezes mortal. Por outro lado, como as serpentes mudam de pele todos os anos, trocando a velha por uma outra, mais bela e mais resistente, tornam-se, em certas culturas, um símbolo de imortalidade. Foi assim que os antigos Gregos as veneravam no culto dos antepassados.

Os Maias também as veneravam, e toda a sua civilização tem como eixo o culto destes animais, que se tornou num elemento cultural obsessivo. Os meus chicleros ficam muito espantados quando lhes mostro o ceptro de cerimónia que o sumo sacerdote da estela segura numa das mãos: uma serpente de duas cabeças. Sobretudo Rey, mais exaltado, exclama que os antiguos tinham na verdade costumes curiosos.

Muitas vezes me debrucei sobre as múltiplas formas que a serpente toma na arte maia, desde a sua composição até à passagem — ligeira ou brusca, que vai da voluta à linha direita — de uma escultura para outra. Não há dúvida alguma de que o que está representado na estela é uma serpente com duas cabeças.

Em todas as bocas das serpentes bicéfalas encontra-se sempre uma cabeça humana grotesca, com um significado bastante misterioso. Consigo distingui-las perfeitamente, embora seja um pouco difícil, por causa da excessiva decoração.

Quando se trata de ceptros cerimoniais a serpente alonga-se e endireita-se nas esculturas, por qualquer razão que nos escapa. Tudo aqui é mistério. Qual será, pois, o significado deste símbolo? Será uma espécie de emblema? E por que razão uma serpente bicéfala?

O estudo pormenorizado dos baixos-relevos maias mostra que a serpente é o motivo mais frequentemente representado nas máscaras, nos cinturões, nos cintos e nos toucados. Isso explicar-se-á, diz Tatiana Proskouriakoff, uma especialista do assunto, devido mais à sua função simbólica que à forma ondulante, que, no entanto, não deixa de ser um elemento decorativo de primeira categoria. Os deuses-ser-pentes intervinham em todas as civilizações da América Central. Nos Nahuas encarnavam, indiferentemente, tanto a água como o relâmpago e, por vezes, os dois ao mesmo tempo. Os Astecas tinham uma hierarquia de deuses deste género: serpente de obsidiana, de jade, turquesa, etc, que eram muitas vezes as imagens de astros divinizados. Frequentemente cercaram os templos-pirâmides com gigantescos répteis de pedra, como acontece em Tenayuca, baptizada pelos espanhóis da conquista com o nome de «Cidade das Serpentes». Não esqueçamos a célebre serpente com penas, encarnação do deus Quetzalcoatl. A profusão de representações deste animal no planalto central do México e os seus múltiplos significados em nada facilitam a interpretação da serpente bicéfala dos Maias. Seria preciso primeiro esclarecer o seu contexto nos baixos-relevos. Ora os acessórios, ceptro, cinturão, sandálias e colares, elementos simbólicos, conservam o seu segredo. Até a sua própria ordem, que funciona como uma espécie de sintaxe, continua por decifrar.

Os meus companheiros voltaram para junto de mim. Ainda riem do pânico de há pouco. Um raio de sol banha a bela porta de pedra. Todos nos sentimos orgulhosos...

— Quando penso — diz Rey, sempre curioso acerca de tudo — que eles talharam este enorme bloco com tesouras de pedra e maços de madeira... quase me custa a acreditar!

Pela minha parte penso noutra dificuldade de maior envergadura que se deparou ao artista maia: associar a ordem, o significado simbólico e estético para criar uma verdadeira obra de arte. Muitas vezes era obrigado a esculpir um objecto de frente, para que fosse facilmente identificado e para que o seu alcance simbólico pudesse ser apreendido, enquanto a lógica do desenho e da perspectiva lhe dava a possibilidade de o representar de perfil. Os artistas maias conheciam o equilíbrio das proporções, mas eram frequentemente obrigados a exagerar os volumes de certos pormenores, de modo a tornarem-nos mais claros.

A nossa estela ilustra bem estas dificuldades. O toucado do grande sacerdote ocupa, por si só, dois terços da escultura. E, mais ainda, compõe-se de dois toucados sobrepostos, ornados, da parte de trás, com penas de quetzal, o pássaro sagrado.

Este pássaro vive exclusivamente nas montanhas arborizadas do Chiapas, na parte ocidental das Honduras e na Guatemala. Tem o tamanho de um papagaio e a sua longa cauda, formada por duas ou quatro penas, chega a atingir um metro de comprimento. Por causa da sua raridade, da sua beleza e do esplendor da sua cor verde, que, do mesmo modo que o jade, evoca a água e a vegetação em crescimento, as penas do quetzal foram a imagem da riqueza e da abundância; e daí transformarem-se em símbolos de autoridade. Todas as personagens importantes das civilizações meso-americanas se cobriam com elas. Eram transportadas às costas dos indígenas durante milhares de quilómetros e acabavam, mais tarde, por atingir preços exorbitantes. O grande número de penas de quetzal nas estelas maias está talvez na origem da aparição da serpente com penas, cujo corpo é completamente enfeitado com a plumagem deste pássaro raro. Os primeiros vestígios deste célebre deus foram reencontrados em Teotihuacan, no coração do planalto central do México, próximo da actual capital. Foi adoptado pelos invasores nahuas, toltecas e, depois, astecas com tanto interesse que todos eles o escolheram para sua principal divindade. Ora estes povos viviam a dois mil quilómetros das terras maias, mas, a partir do século V, os Teotihuacans fundaram uma colónia muito importante nos planaltos da Guatemala, em Kaminal-Juyu, no intuito de facilitar o comércio com esta região.

Era, pois, sem muita dificuldade que recebiam estas penas, assim como o cauchu e o cacau das terras baixas. Estes colonos deviam ter verificado, nas estelas maias, a permanente união entre a serpente e as penas de quetzal. Então juntaram estes dois símbolos, importando-os para a pátria.

«O pássaro das penas preciosas» é hoje o brasão da Guatemala. Deu igualmente o seu nome à unidade monetária deste país, mas perdeu o seu nome maia de origem, kukul, para conservar a palavra quetzal, de origem tipicamente nahua.

Na testa, e como que formando uma espécie de viseiras, as coifas do nosso sumo sacerdote têm a forma de cabeças de serpente sem maxilares inferiores. O olho do animal superior está ornamentado com o sinal %, muitas vezes associado ao deus da morte, Ah Puch.

Como todas as personagens de alta posição, exibe largos brincos, braceletes e um pesado colar de jade. Os Maias desconheciam o ouro e tinham o culto do jade, que era, a seus olhos, a matéria mais preciosa. No colar distinguem-se duas pequenas cabeças humanas: jóias de jade? Cabeças reduzidas, no estilo das dos Jívaros de hoje?

O cinturão tem muito mais importância; largo e guarnecido por uma sucessão de pedras de jade tubulares, parece isolar-se da figura. Nas costas, a despeito de todas as leis da gravidade, encontra-se uma grotesca cabeça humana muito ornamentada e com um aspecto ligeiramente sáurio, que poderia ser a do pássaro mitológico Moan. A arqueologia deveria vir em nossa ajuda neste capítulo, dando-nos pormenores acerca deste estranho cinturão. Infelizmente, nunca se exumaram objectos deste género nos túmulos, ao passo que são muito frequentes nas esculturas.

Não existe aqui a peça que tradicionalmente esconde o sexo. O sumo sacerdote está vestido com uma longa túnica que parece ter uma certa rigidez, provavelmente devido ao facto de ser almofadada como uma cota de malha.

Tanto pelo pormenor como pelo conjunto, a escultura revela ser obra de um grande artista. A mão esquerda, que se eleva num gesto de oferenda, está maravilhosamente concebida e é por isso que a execução mais que rudimentar da mão direita, com o indicador desajeitadamente pegado ao polegar, me parece ter um significado especial. O artista foi obrigado a representar este gesto por qualquer razão definida. É como uma espécie de ruptura na harmonia da imagem. Ele sabia-o, mas não hesitou. Estou persuadido de que existe na arte maia uma linguagem gestual, cujo estudo foi negligenciado até agora. Já me tinha apercebido disso ao contemplar os maravilhosos vasos policromados da época clássica provenientes do alto Chixoy (Nebaj, Chama, etc). Mas qual será, neste caso, o significado do desequilíbrio nas proporções?

Os Maias tinham por costume mutilar a língua, as orelhas, as partes genitais e os dedos para extraírem sangue, que ofereciam aos deuses. Em Bonampak e em Yaxchilan, tanto em frescos como em esculturas, as figuras masculinas que observam estes rituais de auto-sacrifício de sangue trazem sempre uma túnica e esboçam um gesto semelhante ao do sumo sacerdote da nossa estela. Sim! A nossa figura acaba de oferecer o seu sangue a uma divindade. No seu indicador direito, desajeitadamente representado, é visível um corte. Esta mutilação, bastante particular, deixa-me supor que cada ferimento voluntário estava ligado a um deus especial ou a uma cerimónia característica, ou, ainda, à própria função do executante.

Após este exame minucioso ocorre-me repentinamente, com uma evidência clara, a solução de um problema em que congeminara durante muito tempo: em vez de estar virado para a direita, como todas as figuras das estelas maias, o sumo sacerdote olha para a esquerda. Assim se explica esta impressão de estranheza que sentia quando observava a escultura no seu conjunto. Esta estranha orientação significará que o ponto crucial da cidade, o seu centro mágico, está situado nesta direcção?

 

                     PIRÂMIDES E CIDADES

Há milénios que esta cidade maia, engolida pela floresta e esmagada sob o húmus, esperava que a tirassem do esquecimento.

Imagino-a na época do seu esplendor, com os templos em redor das vastas praças, o observatório astronómico, as esplanadas destinadas às oferendas e sacrifícios... O simples facto da sua existência transforma-nos em inventores, termo apropriado para designar os que fazem descobertas, quer em arqueologia, quer em paleontologia.

Inventores de uma cidade maia!

Conscientes da sua nova qualidade, os meus companheiros tomam-se de um enorme interesse por tudo quanto respeita à história dos seus antepassados. Eles desejariam conhecê-la bem, e julgam que eu estou, a partir de agora, à altura de definir as características mais importantes desta cidade. É desconhecer a parcela de intuição, ou melhor, de convicção essencialmente subjectiva que me determinou nestes últimos tempos. É ignorar igualmente a complexidade da civilização maia.

Onde buscar esclarecimentos senão na arqueologia? A estra-tigrafia permitiu estabelecer uma cronologia aproximativa das técnicas utilizadas fora do Peten por grupos maias. No fim do século XIX, descobriram-se várias cidades, cujo estudo chegaria para esclarecer os problemas relativos aos primórdios desta civilização, as razões da sua fixação nesta região e o seu desconcertante desaparecimento. Porém, estas cidades mortas nada esclareceram acerca destes pontos fundamentais, e as interrogações continuam. É por isso que cada nova descoberta arqueológica dá ao seu autor a impressão inebriante de que ele passa a dispor, casualmente, da chave de todos os enigmas.

Tudo se complica porque cada cidade constitui um caso especial, talvez a capital de um pequeno estado entre muitos outros. Esta dispersão, devida talvez a uma estrutura social muito especial, faz pensar na das cidades gregas do século V antes da nossa era.

De resto, uma cidade maia, em virtude do seu individualismo, não adoptava forçosamente os princípios arquitectónicos da sua vizinha. Daí a impossibilidade de associar a nossa descoberta a qualquer das cidades conhecidas, ou de fazer deduções quanto à respectiva organização interna, a partir de certos elementos, sem se conhecer o conjunto.

Todavia, a minha imaginação divaga na contemplação da nossa maravilhosa porta de pedra. Pelo vigor das obras de alvenaria e pela arte do escultor, consigo adivinhar sob o húmus um conjunto arquitectónico de alto nível, em que templos e monumentos de todas as espécies se distribuiriam, segundo o gosto dos construtores, num arranjo funcional e harmonioso... Cuidado! Nada de entusiasmos! Uma cidade maia não é uma obra de urbanização. De resto, o termo «urbanização», não se encontra nem em Littré, nem mesmo no Grande Larousse do princípio deste século. O que prova bem que ele ilustra uma preocupação essencial do nosso mundo moderno, atormentado pelo seu crescimento demográfico e tentando resolver da melhor forma o problema da habitação dos homens. Todas as cidades da Antiguidade, queridas à nossa educação clássica, terão seguido planos rígidos na sua construção? Nem mesmo o inesgotável Vitrúvio o saberia afirmar. Em contrapartida, há a certeza de que nelas se seguiam linhas gerais e se respeitavam normas que as pesquisas arqueológicas nos permitem apreciar. Por seu turno, os Espanhóis, ao fixarem-se em terras da América, construíram as suas cidades segundo um projecto, colocando racionalmente os edifícios comunais, a igreja, os quartéis; assim como as praças, nas quais desembocavam ruas direitas orladas de habitações, que atravessavam perpendicularmente longas avenidas. Deste modo, existia já um princípio de linguagem urbana que nós podemos decifrar.

Nada disto sucede com as cidades maias, que parecem não seguir planos ou regras fixas, onde coisa alguma revela a intenção de distribuir da melhor maneira os habitantes e lhes proporcionar uma vida mais fácil. É por isso que o coração da cidade, composto de templos e esplanadas, parece ter sido sempre desabitado. Junto destes centros, provavelmente religiosos, os sacerdotes e os nobres edificaram talvez os seus palácios de colmo e terra batida, consoante uma ordem hierárquica estabelecida: quanto mais importante era a função, mais perto do centro se habitava. Pelo menos é o que eu suponho, pois não existem provas de semelhante disposição. Refiro-me, acerca deste ponto, às relações históricas relativas aos Aste-cas, que respeitavam esta hierarquia. As regras da urbanização maia estão por descobrir, se é que alguma vez existiram...

A propósito de urbanização, uma outra pergunta fica sem resposta: porque não possuem as cidades religiosas perdidas na floresta edifícios civis?

As pirâmides, os templos, a abóbada, a estrada, características da civilização maia, implicam uma vasta organização técnica e conhecimentos exactos por parte dos realizadores.

É lógico pensar que os arquitectos utilizavam uma unidade de medida e uma certa regra para construírem os seus edifícios com proporções felizes, tal como aconteceu com os edifícios do período arcaico, bastante tempo antes do desaparecimento das maravilhosas cidades do Indo e da Mesopotâmia. Para moldar os tijolos de greda, e palha cortada, utilizados nas construções, usavam-se, no Egipto, formas de madeira idênticas. Todos os tijolos, secos ao sol, tinham, portanto, o mesmo formato. Tomaram-se, muito rapidamente, pontos de referência dimensionais, uma medida comum, um módulo.

Bem depressa também, apareceu o famoso triângulo egípcio, cuja relação três-quatro-cinco permitiu aos arquitectos estabelecer as proporções dos seus edifícios.

Nada disso acontece com os Maias. Uma vez mais os nossos conhecimentos, baseados em alguns factos precisos, escolhidos no nosso âmbito cultural clássico, não nos prestam auxílio nesta floresta maia.

Observações científicas permitiam, no entanto, precisar que em Uaxactun, a mais antiga cidade maia conhecida, dois templos serviam de pontos de mira para o pôr do Sol nos solstícios de Verão e de Inverno.

Em Copan, nas Honduras, existem edifícios em relação combinada com os movimentos do Sol. Significará isto que as construções maias não passam de pontos de referência solares?

Eu faço a mim mesmo estas perguntas desde há muitíssimo tempo. Hoje tenho de as simplificar para responder de uma maneira clara aos meus companheiros. Eis-me amarrado à tarefa encorajadora de vulgarizar conhecimentos maias. Cada pormenor que eu julgue interessante, exactamente devido à minha educação europeia, é muitas vezes, para eles, uma mera situação de facto, sem maior importância que qualquer outra. Que os Maias tenham utilizado a abóbada nas suas construções — facto ímpar nas civilizações da América Central — deixa-os completamente indiferentes, conquanto isso me pareça de um interesse considerável. A abóbada é, verdadeiramente, a maravilhosa ilustração do engenho do homem perante os problemas da gravidade. Este conjunto, cuja leve biselagem permitia sustentar-se, transmitindo o seu peso lateralmente, proporcionou a criação de espaços interiores mais vastos.

Antes da era cristã, os Romanos, inspirando-se nos Etruscos e depois nos Gregos, utilizaram amplamente a abóbada, mas foi somente após terem estudado as construções de tijolo do Médio Oriente que imaginaram consolidá-la com cimento, revolução arquitectural que dava aos seus edifícios uma nova dimensão.

Ora os Maias também souberam construir abóbadas de cimento! Como fizeram esta descoberta? Antes deles não existia na América nenhum tipo de abóbada; portanto, não se inspiraram no exemplo de qualquer outro povo vizinho. Então? Terão chegado ao continente providos de uma bagagem cultural na qual esta técnica já existia? Estaríamos ali perante uma dessas raras formas de conhecimento importado que tivesse sobrevivido ao esquecimento?

O meu entusiasmo não é contagiante. Rey acaba de me responder laconicamente:

— Mas, com cimento, tudo se pode segurar...

Banalidade? Também não; a sua lógica, cheia de ensinamentos, permite que se reconsidere o problema da abóbada maia.

Seria necessário, de resto, determinar, de maneira precisa, no que é que, de facto, consiste. Ela não é o que nós habitualmente designamos por abóbada sobre mísulas. O fecho da abóbada, a pedra central que mantém o conjunto e do qual é solidária, não existe nos Maias. Sem cimento, a abóbada maia teria sido incapaz de se suster por ela própria. Na face interior das pedras das respectivas paredes encontram-se espigões, para uma melhor adesão à argamassa de apoio. Pode afirmar-se que, enterrada no cimento, esta abóbada americana, em lugar de suster um conjunto, a ele se agarra fortemente e se lhe crava. Só uma estrutura pesada e maciça e um trabalho laborioso permitiam a sua edificação, limitando, sensivelmente, o seu afastamento. Aberração? Talvez. Nos Romanos, a aplicação do cimento havia produzido resultados completamente opostos: o desaparecimento dos cimbres pesados e o aligeiramento e alargamento da abóbada.

Portanto, nos Maias, ela não esclarece uma solução técnica conforme se observa noutros locais. É um molde integrado num edifício, graças ao cimento.

O conhecimento que os Ameríndios têm da argamassa é fundamental. Deve-se-lhes esta inexplicável abóbada maia. Os povos do Mundo Antigo, ao contrário dos Maias, utilizaram-na bastante. Teria sido criada na América apenas pelo valor simbólico da sua forma? Seria um arquétipo, este modelo comum à humanidade tão querido de Jung, cuja existência continua, no entanto, cientificamente fora de controlo? Mais parece estarmos em presença de uma similitude ocasional de formas entre a América e o Novo Mundo, mas nada, no estado actual dos nossos conhecimentos, o pode provar.

Relativamente às pirâmides maias, quantas interrogações não foram levantadas? No Egipto, a pirâmide era uma sepultura real, monumental, cujas proporções, produto de uma aritmologia, correspondiam a referências geométricas e a números sagrados. A função, entre os Maias, será a mesma?

A fabulosa descoberta feita em Palenque, em 1952, pelo arqueólogo mexicano Ruz Lhuillier poderia deixá-lo supor. Tendo descoberto uma passagem secreta que dava para uma escada abobadada que ele levou três anos a desaterrar, chegou a uma sumptuosa sala funerária cujas paredes estavam decoradas com baixos-relevos de estuque. Ao centro da cripta repousava um sarcófago de pedra cuja tampa estava completamente esculpida. Esta pirâmide, chamada «das Inscrições», tem vinte e quatro metros de altura, e o túmulo, por seu turno, encontra-se dois metros abaixo do nível do solo. A disposição da sala funerária e o tamanho do sarcófago, que não cabia num corredor e numa escada tão estreitos, provam que a pirâmide foi construída em função deste túmulo real.

Meio século de intensas pesquisas arqueológicas em numerosos locais provam, portanto, que Palenque constitui um caso absolutamente inédito e que as pirâmides maias serviam, antes de tudo, de suportes de templos. Em Uaxactun é possível esclarecer a sua origem: uma plataforma de terreno sobre a qual os índios construíram primitivamente um simples templo de madeira coberto de colmo; esta ligeira elevação bastava, na ocasião, para colocar os lugares sagrados ao abrigo das inundações. Também é admissível pensar-se que os Maias desejavam que o templo dominasse as outras habitações, o que se pode verificar, em geral, no mundo inteiro. Esta noção de ascensão, de verticalidade, associada aos templos, deu origem a uma progressiva elevação das plataformas primitivas para fazer delas, finalmente, gigantescas pirâmides, tais como a de Tikal, que tem cinquenta metros de altura.

Estas elevações não deixam de lembrar, de maneira impressionante, os zigurats do Oriente do quarto milénio antes da nossa era. Se não houvesse estes quatro mil anos de distância, seríamos tentados a admitir a teoria dos difusionistas e mesmo a dos mórmones, que afirmam que os Maias são os descendentes de uma das doze tribos de Israel! Pura divagação!

Sem pedras nem argamassa, os Sumérios tiveram mais trabalho que os homens do Peten. Eles foram obrigados a cozer milhões de tijolos e a juntá-los ao betume a fim de construírem os pedestais gigantes dos seus templos. Para os Ameríndios não houve problemas desse género. Eles descobriram a argamassa muito antes da era cristã, quer dizer, mesmo no início das suas realizações arquitecturais. O mundo maia repousa literalmente sobre um leito de calcário e os índios descobriram a cal provavelmente antes de pensarem na arquitectura. Primeiramente misturaram a cal à água resultante da cozedura do seu milho, costume que sobrevive em toda a América Central e que enriquece a alimentação com uma preciosa quantidade de cálcio. Como ainda se observa nos nossos dias no Iucatão, os Maias, para obterem a cal, britavam as pedras calcárias e amontoavam-nas sobre um volumoso montão de lenha. A combustão fazia-se lentamente. Libertadas, pela cozedura, do respectivo gás carbónico, as pedras desfaziam-se sob a acção da humidade matinal, transformando-se nesta bela cal branca que, amassada com o saibro, dava a argamassa.

O coração da pirâmide, o núcleo, era uma amálgama de pedras e de greda fortemente comprimida. Consolidadas pelo cimento, os seus revestimentos permitiam audácias de construção. Quanto mais a pirâmide subia para o espaço, mais cerrado era o núcleo e mais espessos os revestimentos.

A arte da escada desenvolveu-se paralelamente a esta expansão para a altura e os degraus tornaram-se rapidamente indissociáveis das construções.

Um facto capital para o estudo da evolução das técnicas e das formas arquitecturais é o de os Maias não demolirem as suas antigas pirâmides. Tornavam a cobri-las, construindo por cima, o que explica igualmente a progressão vertical dos seus monumentos.

Primitivamente, o templo no alto da pirâmide era uma simples cabana. A evolução e os anos transformaram-no, rapidamente, em edifício de pedra. O aparecimento da abóbada resulta, talvez, do desejo de reproduzir em pedra o espaço interno do primeiro templo, imagem da cabana familiar de tecto cónico em colmo. No topo do templo elevava-se uma imponente crista decorativa, parede rendilhada e ornamentada, cuja altura ultrapassava, muitas vezes, a do edifício.

As salas interiores eram sempre acanhadas, escuras, pouco arejadas. Incapacidade dos arquitectos em utilizar completamente os materiais de que dispunham? Respeito desmedido pelas formas pré-exis-tentes, demasiado impregnadas de significação mágica? Quem sabe?

Os Maias tinham a mesma palavra, actun, para designar tanto o interior de um templo como a caverna. Esta homonímia terá sido inspirada pela similitude de luminosidade e de atmosfera dos dois locais? Ou, melhor, o interior do templo representava verdadeiramente a caverna e toda a significação simbólica que isso implica?

Uma análise precisa de todos os elementos conhecidos desta civilização permitir-nos-á um dia responder a estas perguntas ambíguas? Ou, antes, uma descoberta fortuita? Eu vivo de há uns meses para cá sob os efeitos impressionantes desta convicção. Estou certo de que outros tesouros nos esperam se eu orientar as minhas pesquisas na direcção indicada pelo gesto do sumo sacerdote.

 

                   UMA ESCRITA INDECIFRÁVEL

Sob o emaranhado de plantas, bastante próximo da pirâmide, jazem seis blocos de pedra, exactamente na direcção que nos apontava o grande sacerdote da estela. Conseguimos descobri-los sob a terra, escavando metro a metro, e suponho agora que nos encontramos na grande praça da cidade.

Debruço-me sobre um destes blocos, que escolhi pela regularidade da sua forma muito alongada. Mede mais de seis metros de comprido e apresenta-se plano. Infelizmente está partido em dois sítios. Tratar-se-á de uma estela que se tivesse quebrado ao enterrar-se?

Júlio e Rey propõem-se ajudar-me e, em poucos minutos, a pedra aparece. Trabalhamos então só com as mãos. Algumas formas vagas deixam pressentir uma escultura, mas os motivos que ornamentam esta face voltada para o céu foram roídos sem piedade por séculos de chuvas brutais. Com a ajuda de ramos sólidos, que serviam de alavancas, voltamos este pesado monólito na esperança de que a outra face, ao abrigo das intempéries, tenha conservado traços visíveis de baixos-relevos. Uma espécie de excitação surda agita-me... O esforço físico também... Enfim, uma vez mais vocifero de alegria. Pudera! Uma magnífica figura de traje de cerimónia aparece em todo o seu esplendor.

Ela venceu os séculos e os ataques da floresta. De novo, os homens contemplam a sua incomparável majestade, e é um pouco como se revivesse. Segura uma lança e um escudo, mostrando-nos, assim, que foi um grande chefe de guerra. O seu colar tem nove voltas de contas de jade, o que demonstra a sua importância, a sua categoria. Debaixo desta jóia, um esplêndido mocho, esculpido de frente, com as asas abertas, fecha o cinturão; está bem em evidência, como um emblema principal. O mocho de Xibalba! Eu admiro-me... E, no entanto...

Xibalba é o mundo submerso, o inferno descrito no Popol-Vuh, única lenda mitológica chegada até nós. Este livro é uma espécie de bíblia indígena, originária dos planaltos da Guatemala, e escrita em maia-quiché, por meio do nosso alfabeto latino, por um índio nobre do século XVI, quer dizer, meio século após a conquista espanhola. Inspirado num códice maia, conta a história de dois heróis gémeos convocados pelos príncipes maus da morte, que reinam nas terras baixas de Xibalba, para disputarem uma partida de péla. Este jogo sagrado assemelhava-se ao nosso basquetebol. Tratava-se de fazer passar uma bola de borracha em bruto por um anel de pedra fixado verticalmente numa parede, a uma altura variável, que muitas vezes ultrapassava três metros, sendo proibido aos jogadores servirem-se dos pés e das mãos! De uma capital importância ritual, este jogo difundiu-se por toda a América Central; todas as cidades maias possuíam um campo de jogo da péla, domínio das mais poderosas forças mágicas.

Infelizmente, os dois gémeos perdem esta importante partida, e a população de Xibalba decide sacrificá-los, pois é esta a regra em caso de insucesso. O primeiro gémeo é decapitado e penduram-lhe a cabeça numa árvore estéril. Mas eis que, imediatamente, os seus ramos se encheram de cabaças (grandes frutos verdes e duros, que, esvaziados, ainda hoje são utilizados como recipientes). O macabro trofeu restituiu à árvore a sua fecundidade, transformando-se ele próprio também em fruto. A história nada diz sobre o que aconteceu ao segundo gémeo.

Algumas semanas mais tarde, levada pela curiosidade e apesar da interdição que pesa sobre esta árvore tabo, a filha de um chefe de Xibalba resolve tagarelar com a cabaceira. E eis que um fruto lhe responde e lhe pede que estenda a mão. A jovem age de boa vontade.

 

Então a cabaça falante, que outra coisa não era que a cabeça do sacrificado, cospe-lhe nos dedos, último subterfúgio usado pelo nosso herói a fim de assegurar a descendência.

Porém, logo que o pai da jovem sabe que ela está grávida fica furioso e encarrega os Quatro Mochos, Conselheiros de Valentes, coveiros e carrascos, de matar a inocente. Mas esta consegue pactuar com os carrascos, e escapa ao machado que ia abrir-lhe o peito para lhe arrancar o coração.

Sem esquecer os seus aliados, os Mochos, a quem proporcionará a fuga para os altos planaltos, a jovem refugia-se no país de origem do herói que a fecundou. Esta passagem do Popol-Vuh termina com a descrição da vingança dos seus dois filhos, nascidos nas terras altas, que se chamavam Jovem Mestre Mágico e Pequeno Feiticeiro. Por sua vez, eles descem a Xibalba para aí disputarem uma partida de péla, que, por artes mágicas, terão a sorte de ganhar. «Assim foi vencido», diz o Popol-Vuh, «o governo de Xibalba, e isto graças aos prodígios dos Engendrados. Outrora, a glória do povo deste país não era muito grande, mas eles gostavam de travar guerra com os homens; as suas terríveis caras eram feias, e dizia-se deles que eram de índole manhosa, invejosos, tanto brancos como pretos, e dominadores. Esta gente de Xibalba, a dos Mochos, esfregava a cara com tinta... Mas o seu domínio não prevaleceu, graças ao Jovem Mestre Mágico e ao Pequeno Feiticeiro.»

Estaríamos aqui nos lugares de Xibalba, na cidade do clã dos Mochos? Esta eventualidade está longe de encantar os meus companheiros, completamente indiferentes ao facto de a lenda enveredar, por vezes, pelo caminho da verdade.

A pedra que separámos está quebrada justamente à altura da testa da figura. Para admirar o chefe guerreiro dos Mochos, voltamos a parte superior da estela e encontramos, com surpresa, por cima do toucado muito ornamentado e muito complicado, uma série de hieróglifos esculpidos no interior dos ângulos arredondados. Coroavam assim a estela quando era erigida na praça sagrada. Com relativa facilidade, devido à sua clareza e ao notável trabalho do escultor, consigo destrinçar os algarismos que assinalam a data da construção deste monumento.

Lanço-me então, febrilmente, numa série de cálculos, tanto no meu caderno de apontamentos, como de cabeça! Volto a fazê-los; verifico as marcas da pedra; refaço tudo, julgando ter-me enganado. Por fim, anuncio triunfalmente aos meus companheiros que esta grande estela foi esculpida no século VIII, há mil e duzentos anos, quando reinava nesta cidade aquele grande senhor, orgulhoso do seu brasão do clã dos Mochos.

Rey olha-me, reflecte por um instante e diz-me sem a mais pequena admiração:

— Creio bem que estás com visões ou então muito cansado. O único número desta pedra é o trezentos e trinta e três; não percebo por que falas do século VIII.

Olhei-o, por meu turno, abismado: - Mas onde vês esse número?

Sem uma palavra, e com a ponta da catana, suspirando como se se dirigisse a uma criança pouco esperta, mostra-me três volutas semelhantes e paralelas, exactamente diante da boca da figura. Elas assemelhavam-se a três colchetes e ainda mais estranhamente ao algarismo três. Quase que não dava por elas, de tal forma o problema da data hieroglífica me atraía a atenção.

Estes assuntos não interessam nada aos meus outros dois chicleros. Mas Rey, que é muito franco e notavelmente inteligente, compreende logo as minhas explicações e admite facilmente que os Maias tenham utilizado símbolos diferentes dos nossos para representar os números, da mesma forma que um outro sistema de contagem. Para contar, eles apenas dispunham de dois sinais: o ponto, que representava uma unidade, e o traço, que representava cinco.

— Muito engenhoso — diz Rey sentenciosamente —, era muito mais simples de fixar!

E como eu acrescento que, por outro lado, os Maias inventaram o zero, desata a rir e exclama:

— Ora vejam que grande coisa!

Sim, Rey! O zero é qualquer coisa de fundamental, é uma das grandes descobertas do homem. Sem zero, não há possibilidade de existir o sistema de posição. Nem os Gregos nem os Romanos o conheciam. Apenas algumas placas sumérias nos oferecem esboços muito hesitantes de um cálculo baseado no sistema de posição, mas tão impreciso que é muito difícil de destrinçar. De resto, desapareceu rapidamente. O Ocidente admite comummente que o zero nasceu na índia no século V da nossa era. Teria sido inventado por um genial matemático? Ou, mais simplesmente, por um erudito inspirado numa placa suméria, miraculosamente reencontrada? Ignoramo-lo.

A história ensina-nos, por seu lado, que foi somente no século VIII que os árabes de Bagdade, ao fazerem a tradução de um tratado hindu de astronomia, redescobriram o zero e o sistema de posição em que ele se integrava. No entanto, apenas no século XII da era cristã foi introduzido em Espanha pelos muçulmanos, fazendo a sua entrada oficial no Ocidente através de um tratado de aritmética árabe traduzido para latim.

O zero não teve fácil aceitação. Será necessário esperar pelo século XV para ver o seu uso generalizar-se, por fim, em quase toda a Europa. Isto mostra-nos que, no plano da matemática, os Maias encontravam-se adiantados em relação a toda a humanidade, já que temos a prova de que eles utilizavam o zero no século III da nossa era!

Os Maias empregavam o sistema vigesimal para contar. Não há aí nenhuma originalidade; no mundo inteiro encontram-se vestígios do hábito de o homem contar por vintenas. Um certo número de tribos índias da bacia do Orenoco, na América do Sul, contam ainda vinte a vinte, e reminiscências deste sistema subsistem ainda nas línguas escandinavas e mesmo no francês, que as herdou do celta. Nós dizemos «quatro-vintes» e «quatro-vinte-dez»(NT), e não oitenta e noventa, como o fazem, logicamente, os nossos vizinhos francófonos(NT). Em Paris, existe o célebre Hospice des Quinze-Vingts, fundado por São Luís em 1260, com capacidade para trezentos enfermos, e a literatura confirma-nos que era frequente dizer, no decurso dos séculos passados, «seis-vintes» por «cento e vinte».

Disse-se que o sistema decimal era o mais natural para o homem em razão da sua tendência para contar pelos dedos. Quanto ao sistema duodecimal,

 

*NT. Alusão à contagem em língua francesa: oitenta = quatre-vingt-dix.

  1. Como os Belgas, por exemplo: oitenta = octente; noventa = novente.

 

não deve haver dúvida de que proveio das doze lunações do ano solar. Mas qual é a origem do sistema vigesimal? Os Maias podem no-la dar, já que na sua língua vinte se diz uinal, e homem uinic. De resto, não é bastante mais natural considerar o homem como um todo, pela palavra vinte, dado que tem quatro membros, terminados cada um por cinco dedos?

Os Maias inventaram uma segunda maneira de escrever os algarismos, que consiste em representar os números de um a vinte por rostos humanos, todos diferentes. Os dois métodos maias correspondem um pouco à escolha que fazemos quando queremos escrever um número; podemos preferir os algarismos árabes, ou as letras do alfabeto; por exemplo: 1 e um.

Normalmente escolhemos, por comodidade, os algarismos árabes; os Maias elegiam os pontos e os traços. O seu algarismo um era representado por um ponto, algarismo quatro por quatro pontos, cinco por uma barra, etc. Assim até dezanove: três barras e quatro pontos. Para além daquele número intervinha o sistema de posição, tornado possível graças ao zero.

No nosso sistema decimal, a progressão aritmética faz-se da esquerda para a direita; acrescentando um zero à direita do algarismo, o seu valor fica multiplicado por dez. No sistema vigesimal maia, a progressão fazia-se de baixo para cima. Assim, na posição mais baixa, os pontos e os traços tinham o seu valor próprio; na primeira ordem, cada algarismo devia ser automaticamente multiplicado por vinte, na segunda ordem por vinte vezes vinte, quer dizer, por quatrocentos; na terceira ordem por vinte vezes vinte vezes vinte, quer dizer por oito mil, e assim sucessivamente.

Este sistema era muito mais cómodo que os utilizados na mesma época em toda a bacia mediterrânica. E até chegamos a ter pena dos Romanos, que, por ignorância, recorriam, na contagem, ao ábaco e às pedras. Tanto mais que a anotação de algarismos com a ajuda de letras tornava duplamente pesado o seu sistema. Basta-nos recordar o exemplo tipo do matemático Teeple, grande especialista dos problemas astronómicos maias, para estabelecer uma comparação. Para escrever o número oitocentos e oitenta e oito, os Romanos eram obrigados a utilizar seis símbolos diferentes e doze caracteres, ou seja: dccclxxxviii, enquanto os Maias apenas necessitavam de dois símbolos e dez caracteres:

Aos nossos pés a grande estela jacente olha-nos.

E, na pedra, eis os sinais mais misteriosos desta civilização maia, os hieróglifos, que, para evitar qualquer confusão, os especialistas designaram por glifos.

Ainda há pouco consegui transcrever com bastante rapidez aqueles que se referiam à data da construção da estela, o que corresponde unicamente aos glifos calendários. Todos os outros, ao longo das suas colunas, arrumam-se como um discurso morto Que sábio será capaz de decifrar esta escrita hermética? Teremos ainda de esperar muito tempo pela chave destes sinais? Quem revelará enfim o sentido profundo desta mensagem muda, tão importante que os homens a imortalizaram ao gravá-la na pedra há mais de mil anos? Oitenta anos de pesquisas! Seria então necessário perder a fé na paleografia?

Tudo parecia possível quando, em 1880, o abade Brasseur de Bourbourg redescobriu, na Biblioteca Nacional de Madrid, as Relações das Coisas do Iucatão.

Este livro fora escrito no século XVI pelo padre Landa, bispo espanhol de Mérida (Iucatão), para mostrar até que ponto «os índios estavam mergulhados no erro e na barbárie». O autor tentava aí justificar os métodos brutais que empregara na sua diocese para desenraizar os costumes e as crenças maias. Num doloroso auto-de-fé, Landa reduziu a cinzas todos os livros indígenas, os preciosos códices de glifos, toda a tradição de um povo... Apenas três exemplares escaparam e chegaram até nós, mas por que milagre!

O padre Landa consagra, na sua obra, trinta e cinco páginas à descrição dos calendários maias e a uma breve tentativa de explicação da escrita então empregue no Iucatão, as quais se averiguou serem de uma importância capital para o conhecimento dos Maias clássicos.

As descrições e os desenhos concordavam exactamente com o sistema de marcação e com a escrita hieroglífica das estelas do Peten da época clássica. Julgou-se então estar na posse da «Pedra de Roseta» da escrita maia, convicção reforçada pelo fenómeno linguístico. A língua maia resistiu, com efeito, a todas as provas e a todas as invasões. Enquanto o nahua submergiu toda a toponímia mexicana, nada de semelhante se produziu nas terras maias, apesar de terem sofrido invasões dos Toltecas, guerreiros de língua nahua, desde o século XI. Os Maias não só absorveram integralmente os invasores, mas, também, mais tarde, na hora da conquista, «maiaisaram» o castelhano dos espanhóis estabelecidos na península! Caso único em toda a América Latina. Nos nossos dias, mais de trezentas mil almas, no Iucatão, ainda falam a língua maia.

A descoberta do livro de Landa autorizou, portanto, os especialistas da época a afirmar muito precocemente que os hieróglifos da escrita, dos calendários e do cálculo utilizados no século XVI no Iucatão eram iguais aos que se tinham encontrado nos monumentos do Peten, edificados entre os séculos IV e X. Não só se aproximavam as duas culturas, como as duas línguas.

A transcrição dos calendários e das datas maias, a partir deste princípio, revelou-se extremamente convincente. Em 1887, o sábio alemão Ernst Forstermann esclarecia todo o sistema da contagem do tempo e das datações maias clássicas.

Infelizmente nada de semelhante acontecia quanto à escrita, e isto por culpa de Landa. Talvez ele tenha sido um bom bispo para a sua época, mas nunca um sábio. Em vez de procurar compreender as leis próprias que regiam a escrita dos índios, pensou que se tratava de uma língua alfabética, pouco evoluída, e obrigou os seus informadores maias a dar-lhe um significado fonético de cada glifo. Obcecado pela sua própria cultura, nunca admitiu a existência de um sistema de escrita diferente do seu. Bela imagem do encontro de duas culturas...

Landa forçava os índios a fornecer-lhe a chave do seu alfabeto, coisa que nem eles próprios possuíam!

Trezentos anos mais tarde, e durante quase meio século, este etnocentrismo estéril ainda desorientou os sábios. Confiantes nas declarações de Landa, já que elas tinham dado as suas provas quanto à contagem do tempo, não pensavam sequer em orientar as pesquisas noutra direcção, apenas seguiam a pista indicada pelo bispo espanhol.

Há alguns decénios, os especialistas deram-se conta do seu erro, e foram então obrigados a reconsiderar todo o problema, mas sem utilizarem os dados obtidos por Landa. Estudaram a composição gráfica dos glifos e, a partir destes, cada um dos elementos isoladamente. Tentaram determinar a respectiva ordem, descobrindo assim a existência de grupos de glifos que constituem, talvez, frases. Mas estes trabalhos profundos, que não descuravam o mínimo pormenor, não deram qualquer resultado positivo. Aliás, mesmo se um dia se vier a codificar perfeitamente a estrutura desta escrita e a encontrar a sua sintaxe, será também necessário saber a que sistema ela se ajusta. Os glifos são pictogramas ou ideogramas? Não esconderão rudimentos de escrita silábica? Em caso afirmativo, esta seria utilizada para criar homófonos, que são palavras da mesma consonância mas de sentido diferente, tais como «porco» e «porto», das quais uma, representada graficamente, pode tomar o sentido da outra por causa da sua evocação fonética?

Estes problemas foram a fonte de numerosas polémicas e dispersaram os pesquisadores em escolas de tendências diversas. É então que os Soviéticos, considerando todas estas eventualidades como promessas, recorreram à cibernética. A programação exigiu dos sábios russos dois anos de trabalho. Em 1960 estavam enfim aptos a submeter ao cérebro electrónico um dos três códigos maias. Isto, mais ainda que uma decepção, foi um fracasso! E, no entanto, a electrónica ao serviço da história era um grandioso empreendimento. Foi uma pena! O resultado, no entanto, deixou-me apenas parcialmente surpreendido.

Como todos os especialistas, os Soviéticos partiram do princípio de que os glifos maias constituíam um sistema de escrita traduzindo uma língua idêntica à falada no Iucatão aquando da chegada dos Espanhóis; hipótese reforçada pela evidente perenidade da língua maia e pela escolha do códice de origem iucateca. Não deve haver dúvida de que este livro sagrado tenha sido provavelmente escrito após o desaparecimento dos Maias do Peten e os glifos são os mesmos que os dos monumentos da época clássica. Isto provaria que o idioma dos grandes maias era idêntico ao dos índios do Iucatão, uma vez que a escrita era a mesma. Mas não quererá esta ilustrar antes uma língua sagrada, reservada à elite e aos iniciados, e só deles conhecida? Língua muito distanciada, na sua forma gramatical e nos seus fonemas, do idioma quotidiano usado no Iucatão no século XVI e que ainda hoje é falado.

Os reis e os sacerdotes serviram-se desta escrita para esconder os seus conhecimentos e preservar assim os seus privilégios. Temos provas formais disso. Em todos os documentos de língua indígena, escritos imediatamente após a conquista espanhola com o alfabeto europeu adaptado ao maia, a importância mágica do significado da palavra, que deve ser escondido, oculto, é acentuada a cada instante. O Popol-Vuh dos Maias-Quichés da Guatemala é rico em exemplos acerca deste assunto, assim como os livros do Chilambalam, característicos do Iucatão, e cujo título é claro: Livro dos Adivinhos das Coisas Ocultas. Estes últimos trabalhos, em número de dezassete, ensinam-nos que à frente de todos os territórios índios do Iucatão estava colocado um Alach-Uinic ou Homem-Verdadeiro. A função primordial desta personagem consistia em submeter os homens de linhagem importante que iam tomar a chefia de um aglomerado ao «interrogatório dos chefes», no fim de cada katum, quer dizer, de vinte em vinte anos. Os candidatos deviam provar os seus conhecimentos esotéricos, transmitidos, secretamente, dentro da aristocracia, de pais para filhos, e cujo conjunto tinha o nome de «linguagem de Zulua». Num capítulo consagrado à linguagem figurada e ao famoso «interrogatório dos chefes», Chilambalam diz: «Então eles (os antepassados) tornaram secreta a sua linguagem», e isto passou-se por altura das primeiras migrações do povo.

No decurso de uma longa estada com os Maias do Iucatão, eu próprio recolhi canções de sacerdotes-feiticeiros, os x'men, compostas por palavras de uma língua desconhecida, da qual nenhum dos participantes compreendia o sentido. Os próprios x'men afirmaram-me que empregavam esta linguagem recebida dos pais por causa das suas poderosas forças mágicas, ignorando o seu significado. Este hábito de renovar as estruturas da sociedade de vinte em vinte anos não explicaria, pelo menos em parte, a obrigação de os antigos Maias do Peten erigirem novas estelas nas suas cidades igualmente de vinte em vinte anos? Tratar-se-ia da comemoração de um acontecimento importante para os homens?

Por outro lado, todos os glifos misteriosos, todos esses sinais calendários que exigiam, por parte daqueles que os estabeleciam, prodigiosos conhecimentos, não seriam «interrogatórios de chefes?» Será demasiada ousadia olhar para as estelas enigmáticas como se fossem esfinges maias, fazendo as suas difíceis perguntas aos que iam, durante vinte anos, dirigir o destino dos homens?

Se nos referirmos aos livros do Chilam-balam, certos passos dos «interrogatórios», apresentavam-se como colecções de instruções, de recomendações tão ambíguas e confusas que são completamente incompreensíveis. Tomemos para exemplo o «interrogatório dos chefes» citado no Chilam-balam de Chumayel. Eis a sexta ordem, a mais clara: «Que vão buscar o ramo da árvore coberta de espinhos pochote, três coisas torcidas e uma liana viva, que tornarão saborosa a minha refeição de amanhã. Apetece-me comê-la. Quem sabe se é mau comer o tronco do pochote?», perguntar-lhe-ão. Resposta: «Eis o tronco da árvore pochote, o lagarto. As três coisas torcidas são a cauda da iguana; a liana viva, os intestinos do porco; o cepo da árvore pochote, o tronco e a cauda do lagarto...»

Estas frases herméticas foram pronunciadas e talvez escritas numa língua esotérica sagrada como a zulua... Como encarar nestas condições a transcrição dos glifos?

Não estamos, felizmente, votados a permanecer na ignorância absoluta. Já metade dos glifos revelaram os seus segredos, mas são apenas os sinais respeitantes ao calendários. É, aliás, significativo que as inscrições das estelas exibam sempre séries de datas. É uma indicação que merece um momento de reflexão.

Nesta floresta solitária surgem-me ideias que até então nunca tive. A solução do misterioso problema do abandono das cidades do Peten não se esconderá na marcha dos calendários e na contagem do tempo, elementos preponderantes desta cultura enigmática? Estarei eu sem o saber, a meio caminho da compreensão definitiva deste povo? Decididamente, é-me necessário rever, com mais atenção, este problema fascinante do tempo, que me parece ser motor desta civilização.

 

                   MARCOS DO TEMPO E CALENDÁRIOS

Três estelas jazem na praça central e é com facilidade que as trazemos para a luz do dia. Esta descoberta é lógica, já que os Maias erigiam uma estela de vinte em vinte anos.

Observando-as bem e raspando a terra que as cobre, verifico com surpresa que estão todas deitadas na mesma direcção. Não parece terem caído com o decorrer dos séculos e ao capricho da sorte. Não. Dir-se-ia antes que foram abatidas intencionalmente, empurradas por trás. Virados para baixo, perderiam estes importantes marcos do tempo todo o significado?

O tempo. Foi ele a maior preocupação dos Maias; até ao limite da obsessão. Julgo que nenhum povo no mundo foi tão escravo do tempo como estes índios da floresta do Peten. É a pedra angular da sua cultura. Eles inventaram as matemáticas e a escrita para contar e para marcar o tempo. A perfeição das suas observações astronómicas nasceu desta paixão. Faltava-lhes conhecer o tempo do Sol e o tempo da Lua, o tempo de Vénus e o tempo mágico, tão importante.

Inscrevendo na pedra a marcha desta coisa inexplicável, etérea como a essência da própria vida, os Maias tiveram a certeza de a tornar coerente e compreensível. Melhor ainda: ordenando-a em calendários, compreendiam o tempo presente, ultrapassavam-no e escapavam assim à angústia. Acreditavam que as calamidades eram enviadas pelo tempo ou pelos deuses que dele dependiam, e conhecer o tempo futuro era também prevê-las e, eventualmente, atenuá-las ou evitá-las através de cerimónias religiosas.

A angústia e as tentativas para lutar contra elas são tão velhas como o homem sobre a Terra. No limiar da civilização, os Caldeus também desenvolveram a sua ciência da astronomia a fim de aperfeiçoarem esta espantosa máquina de predizer o futuro que é a astrologia. Numerosos adeptos da astrologia e da vidência utilizam ainda nos nossos dias os sinais do Zodíaco inventados pelos Caldeus há vários milénios e retomados pelos Gregos. Todavia, seria perigoso procurar relações entre a ciência astronómica dos Maias e a ciência astrológica dos habitantes da Mesopotâmia. Estes dois povos observaram a marcha do tempo e das estrelas com uma grande precisão, mas os seus sistemas e os seus calendários eram muito diferentes.

Os Maias tinham inventado um ano solar «civil» de trezentos e sessenta e cinco dias, mas nós sabemos que eles efectuavam correcções calendárias e que tinham uma noção do tempo solar mais precisa que a expressa pelo nosso calendário. Assim, o verdadeiro ano sideral (quer dizer, o tempo exacto que a Terra leva a fazer a volta completa em torno do Sol, determinado pelos instrumentos mais precisos da astronomia moderna) é de 365,2422 dias. O ano do nosso calendário gregoriano, com as suas correcções bissextas, é de 365,2425 dias e o dos antigos Maias é de 365,2420 dias. É simplesmente prodigioso se se pensar que o calendário juliano, utilizado na Europa até 1582, contava 365,2500 dias.

O sucesso dos Maias é tanto mais excepcional quanto eles não conheciam o vidro e não dispunham então de qualquer instrumento óptico de precisão. Os longos tubos de jade, descobertos nas escavações, ter-lhes-iam servido de óculos de observação? Para mais, eles não tinham nem relógio, nem ampulheta, nem clepsidra para calcular as horas e os minutos, nada que pudesse ajudá-los a determinar dados astronómicos precisos. Então?...

A decifração de todos os elementos do cálculo do tempo anotados nos três únicos códices ensina-nos que as observações astronómicas dos Maias se processaram sem interrupção durante séculos. Elas eram anotadas com cuidado e exactidão nestas longas tiras de casca de figueira comprimidas, embebidas de cal e dobradas em harmónio, que se designam por códices.

Estas observações persistentes permitiram-lhes mesmo preverem os eclipses solares!

O seu ano civil solar de trezentos e sessenta e cinco dias era composto de dezoito meses de vinte dias e um mês complementar de cinco dias; cada mês tinha um nome e cada dia era numerado de zero a dezanove, sendo os do último mês, Uayeb, de zero a quatro. Neste calendário os Maias contavam então os dias, tal como nós fazemos com as horas, a partir de zero e não de um.

Este ano solar civil era indissociável de um calendário mágico de duzentos e sessenta dias que não se baseava em qualquer observação astronómica, desenvolvendo-se ambos paralelamente, simultaneamente e de forma contínua.

Este cálculo do tempo pareceu-me extremamente rebarbativo quando o abordei pela primeira vez. Eu tinha lido os livros que tratavam deste assunto com pouca convicção. Perguntava a mim próprio se seria verdadeiramente necessário, para melhor compreender os Maias, conhecer a fundo todos os mecanismos que faziam marchar estes calendários. Hoje, diante destes numerosos glifos calendários, das estelas que acabo de descobrir, a resposta parece-me evidente: o conhecimento da marcha dos calendários é a única via real que permite atingir sem rodeios o coração do universo dos Maias clássicos. De resto, poucos tinham reparado no hábito de estes índios elaborarem os calendários, de os casarem, no sentido químico do termo, de determinarem os respectivos pontos de contacto e de situarem os seus encontros no tempo, conforme veremos mais adiante.

O casamento calendário mágicocalendário solar efectuava-se assim: Ambos se iniciavam ao mesmo tempo e decorriam dezoito mil novecentos e oitenta dias ante que os dois primeiros dias destes dois calendários se encontrassem de novo, ou seja um lapso de tempo de setenta e três anos mágicos ou de cinquenta e dois anos solares.

Tudo isto está de tal modo distante da nossa concepção do tempo que se não pode abranger rapidamente esta mecânica maia.

Podemos tentar materializá-la concebendo as bicicletas antigas de rodas de diferentes diâmetros, em cima da quais os nossos avós passeavam tão vaidosamente no princípio do século. A grande roda dianteira seria a imagem do calendário solar dividido pelos seus raios em trezentos e sessenta e cinco partes iguais, que figurariam os dias; a roda traseira, mais pequena, representaria o calendário mágico, com os seus duzentos e sessenta raios. Sobre cada uma das duas rodas um raio pintado de vermelho, situado na vertical, simbolizaria o dia do início. O nosso ciclista, rodando muito lentamente, verificaria então que os dois raios vermelhos voltariam à posição inicial, após percorrerem a mesma distância — isto, claro, em teoria quando a grande roda efectuasse cinquenta e duas voltas e a pequena setenta e três.

Eis aqui, reduzido a imagens muito sumárias, o princípio de base das concordâncias dos diferentes calendários dos Maias. É certo que na sua essência se apresentavam com uma significação profunda. Debruçando-nos atentamente sobre esta mecânica, somos tomados de vertigem perante as combinações sem fim a que ela nos arrasta. Do ponto de vista prático, cada dia deste ciclo de cinquenta e dois anos (ou setenta e três anos mágicos, ou dezoito mil novecentos e oitenta dias), duração ideal da vida do homem para estes índios, possuía um valor mágico perfeitamente referenciado e preciso, graças a este sistema. Ignora-se o nome deste tão importante ciclo de anos. Para obtermos dados complementares, somos tentados a repor-tarmo-nos às fontes históricas que tratam deste assunto no campo dos Astecas. Isto justifica-se no caso preciso dos calendários, dado que os Astecas tinham os seus, os quais eram originários de outras populações do México Central, que, por sua vez, os haviam recebido dos Maias, seus inventores. Um símbolo ou um ritual pode modificar-se ao transmitir-se de etnia para etnia, mas isso não sucede a um sistema de tal forma mecânico e preciso como uma engrenagem

calendária.

Infelizmente os Astecas pouco nos esclarecem acerca deste ponto. Com efeito, eles tinham limitado a sua visão cósmica a este único ciclo de cinquenta e dois anos.

Para eles, o termo deste período capital anunciava um eventual fim do mundo; uma angústia generalizada apoderava-se do povo inteiro. As pessoas prostravam-se nas suas cabanas, enquanto os sacerdotes se dirigiam em procissão às colinas para interrogarem ansiosamente o céu. Faziam oferendas e sacrifícios a fim de que todos os astros continuassem o seu caminho celeste e que os deuses permitissem aos homens viverem um novo ciclo de cinquenta e dois anos na Terra. O mundo, felizmente, continuava a sua marcha. Mas, neste tempo novo que começava, os Astecas sentiam-se obrigados a quebrar todas as louças e a queimar as roupas usadas. Nem um único utensílio de cozinha ficava inteiro. Um novo fogo era ritualmente reaceso pela fricção rotativa de um pequeno pau num bocado de cacaueiro. Então, o povo reunia-se para erigir novos templos sobre pirâmides construídas também por cima das antigas. A tradição impunha que nunca se demolisse um antigo lugar de culto, prestando assim um grande serviço aos arqueólogos relativamente ao conhecimento da cronologia asteca. Em Tenayuca, por exemplo, encontraram-se cinco construções sobrepostas, debaixo da grande pirâmide!

Os Maias haviam ultrapassado esta visão limitada do tempo, fixando um ponto de referência cronológica, três mil cento e treze anos antes de Cristo, o que nos causa grande espanto. Portanto, eles inventaram um ponto de partida determinado, para um tempo histórico orientado, bastante antes do Ocidente. Foi somente no século V que, graças à intervenção de um monge cita, a Cristandade se decidiu a fixar a data do nascimento de Jesus Cristo como referência cronológica. Os Gregos, por sua vez, contavam por olimpíadas, quer dizer, por ciclos de quatro anos, e os Egípcios recomeçavam a sua história no começo de cada dinastia.

Este ponto cronológico dos Maias, tão distante no tempo, não foi certamente escolhido em função de um acontecimento histórico, pois há um corte, um vazio absoluto de mais de três mil anos entre este início e a primeira data inscrita na pedra. Os primeiros vestígios arqueológicos datam apenas de meio milénio antes da nossa era, é bastante provável que, nesta época remota, pelo menos a avaliar pelos relatórios das escavações, os índios do Peten não conhecessem nem utilizassem a contagem do tempo. Segundo as suposições dos especialistas, este início cronológico corresponderia antes a um facto mítico. A minha opinião pessoal é diferente e voltarei a falar neste assunto. O importante, de momento, é saber que, se os Maias se tivessem regido apenas ao ciclo de cinquenta e dois anos, a inscrição de uma só das duas datas, a partir deste distante início, lhes teria exigido mais de setenta glifos! Que complicação!

Aqui intervém o seu genial sistema vigesimal de posição. Antes de tudo, os Maias atribuíram a cada andar da sua progressão vertical um nome característico, ilustrado por um glifo, libertando-se, assim, da ordem ascensional obrigatória. Mas, para aproximar os seus cálculos das realidades calendárias do ano solar de trezentos e sessenta e cinco dias — pelo menos é o que se supõe —, transformaram-nos ligeiramente. No segundo andar, o múltiplo chamado tun, em lugar de manter o seu valor de vinte vezes vinte igual a quatrocentos, equivale a vinte vezes dezoito igual a trezentos e sessenta. O que dá:

 

  • = 1 x 20 x 18 x 20 x 20 = 144 000 dias ou um baktun (quarto andar).
  • = 1 x 20 x 18 x 20 = 7200 dias ou um katun (terceiro andar).
  • = 1 x 20 x 18 = 360 dias ou um tun (segundo andar).
  • = 1 x 20 = 20 dias ou um uinal (primeiro andar).
  • = 1 dia ou um kin (rés-do-chão).

 

Os sacerdotes-astrónomos inspiravam-se nestas regras quando gravavam, no fim de cada ketun, isto é, no fim de cada vinte anos aproximadamente, nas estelas erigidas para esse efeito, o tempo que decorrera deste o início da sua cronologia até à data da elevação. Os Maias inscreviam este tempo — que eles conheciam seguindo as indicações do seu calendário civil e solar de trezentos e sessenta e cinco dias, caminhando a par com o calendário mágico — utilizando o sistema vigesimal, com a ajuda de sete glifos; o sexto indicava o dia mágico e o sétimo o dia do mês no decurso do qual tinham erigido a estela.

Procedendo assim, nós escreveríamos a data: 14 de Julho de 1969, pela forma seguinte: «um milhar mais nove centenas mais seis dezenas mais nove unidades de anos desde o nosso início cronológico até aquele dia 14 do mês de Julho que nós comemoramos».

Deu-se a este sistema o nome de «conta longa» e a estes sete glifos necessários à inscrição de uma data o nome de «série inicial».

Partindo destes dados, os especialistas do século XX calcularam as datas gravadas das estelas. Observaram a existência de certas regras na disposição geral dos glifos calendários, o que facilita imensamente a respectiva leitura. É assim que os cinco glifos multiplicadores necessários para se formular o número de dias de uma data, a partir do início da cronologia, estão, em princípio, situados no cimo das duas colunas da esquerda dos sinais. Os sábios bem depressa se deram conta de que a leitura era mais fácil da esquerda para a direita, começando pelo alto. Assim não havia possibilidade de erros, dado que os multiplicadores não eram expressos pela sua posição ascensional, mas sim por glifos. O sexto glifo, o do calendário mágico, encontrava-se, em geral, na sexta posição, e o sétimo, que é o dia do calendário solar, na extremidade da coluna da direita.

Olhando para a primeira estela descoberta na praça central da cidade, reparei, de repente, que os glifos calendários estavam arrumados segundo o esquema ideal. Uma sorte! Calcular a data da sua construção não foi, pois, demasiado difícil.

Na extremidade superior esquerda da pedra estava esculpido um glifo sem algarismo, chamado, em função da sua forma e da sua posição, «glifo introdutor». Ele precede todas as datas maias. A sua configuração nunca varia, por assim dizer. Apenas, no centro, muda a imagem do deus que vela pelo mês no decurso do qual foi erigida a estela. Este glifo assinala a abertura de uma série inicial. À sua direita, coroando a segunda coluna de signos, quatro pontos e uma barra, ou seja o algarismo nove, agarrado ao glifo multiplicador baktun.

Na coluna da esquerda, sob o glifo introdutor: três barras, quer dizer quinze, agarradas ao glifo katun.

Ao lado, na coluna da direita: quatro pontos, ou seja quatro, agarrados ao glifo tun.

Em baixo, na coluna da esquerda: um ponto, ou seja um, no meio de dois zeros (pontos furados) e uma barra: cinco, ou seja um, agarrado ao múltiplo uinal.

Na coluna da direita: quatro pontos, ou seja quatro, agarrados a kin.

Eis a transcrição desta data:

 

               9 baktun 9 x 144 000 = 1 296 000 dias

         15    katun         15     X       7 200         = 108         000   dias

         4       tun    4       X       360   1       440   dias

         6       uinal 6       X       20              120   dias

         4       king  4       X       1       =       4       dias

                                           Total:   1405 564   dias

 

Restava-me dividir este número de dias assim obtido por trezentos e sessenta e cinco, a fim de calcular o número de anos solares civis decorridos desde o ponto de partida da cronologia maia até à data da construção da estela. Efectuada a operação, chegou-se ao resultado seguinte: três mil oitocentos e cinquenta anos e trezentos e catorze dias. Que significava esta data em relação à nossa própria cronologia? O ponto de partida maia situa-se em 3113 a.C.; assim, ao tirar três mil cento e treze anos de três mil oitocentos e cinquenta anos e catorze dias obterei: setecentos e trinta e sete anos e trezentos e catorze dias. Por outras palavras, esta estela tinha sido erigida no ano 738 da nossa era.

No cálculo rápido e sumário, não me preocupei com o problema das correcções bissextas, deixando uma margem de erro de alguns anos. Eu conhecia os famosos trabalhos do sábio Teeple, que demonstram a existência, em várias datas hieroglíficas, de «séries secundárias»; estes dias complementares seriam uma prova de que os Maias sabiam tornar a alcançar o tempo solar verdadeiro. Contudo, a busca de eventuais séries secundárias no amontoado de glifos é um trabalho de laboratório reservado a grandes pesquisadores.

Um deles, J.E.S. Thompson, bem quis traduzir-me exactamente a data esculpida na nossa bela estela, ou seja: 736 d.C, segundo a correlação Goodman-Thompson.

Existem, com efeito, dois tipos de correlações nascidas de duas teorias diferentes sobre a data exacta do ponto de partida cronológico dos Maias. A de Thompson e Goodman (3113 a.C), geralmente admitida nos nossos dias, e a do americano Spinden, que recua este ponto de referência duzentos e sessenta anos, situando-o, pois, em 3374 a.C. Estes duzentos e sessenta anos constituem uma «roda de katun», o ciclo calendário de que voltaremos a falar e que era utilizado pelos Maias do Iucatão aquando da chegada dos Espanhóis. Insistimos no facto de que esta deslocação no tempo intervém apenas em relação à nossa própria história e não afecta em nada o conjunto de contagem do tempo feita pelos Maias. Que se escolha uma ou outra destas duas correlações, o número de anos entre a data dos glifos inscritos e o ponto de partida cronológico fica o mesmo. Ele cairá simplesmente duzentos e sessenta anos mais cedo ou mais tarde em relação à nossa história.

Está fora de questão falar de todos estes problemas aos meus companheiros chicleros; eu sei até que ponto estas exactidões são enfadonhas para um não-iniciado. Mas, ante este testemunho escrito na pedra, ante esta prova do génio dos Maias, como deixar de os evocar?

Todavia, lentamente, a minha alegria tinge-se de desgosto... As minhas descobertas não me oferecem, de momento, nenhuma resposta a todas as perguntas que faço a mim mesmo acerca dos homens do Peten. Aquando da tradução dos glifos respeitantes à data da estela, eu tinha-me quase esquecido dos dois últimos signos. Somente agora dou por eles; encontram-se ali, bem em evidência, segundo o esquema tradicional. Na sexta posição, o dia do calendário mágico: oito kan,- e ali, abaixo da coluna da direita, o do calendário solar: dezassete moan.

Se se contar ao contrário os dias mágicos inscritos em todas as datas do período clássico, quer dizer, se se remontar ao tempo mágico inscrito em sexta posição nas estelas, chega-se sempre a quatro ahau; procedendo do mesmo modo com o sétimo glifo da série, o dia do mês, volta-se a encontrar sempre oito cumku. Porquê quatro ahau e oito cumku? Esta particularidade continua por desvendar.

Quanto ao ponto de partida cronológico, os Maias situavam-no sempre no fim do baktun treze. Porquê no baktun treze? Ninguém o conseguiu explicar. Aí está exactamente uma característica dos Maias: contar sempre o tempo a partir do fim de um período. Ainda existiam, portanto, incógnitas interessantes para resolver.

 

                   UMA ESCADARIA ESCULPIDA INACABADA

Uma semana de afincadas pesquisas oferece-nos um balanço extremamente positivo, e as nossas descobertas vão-se acelerando. Já tenho uma ideia muito mais precisa desta cidade que arrancámos à floresta pedaço a pedaço.

À terceira tentativa, pusemos à luz do dia uma escadaria de pedra com quatro frisos esculpidos, que me parecem bem ser uma particularidade arquitectural destes locais.

A nossa dedicação ao trabalho torna-nos a vida quotidiana mais difícil. Júlio, o fervoroso caçador, esquece a sua paixão, tão necessária à nossa alimentação; quase nem tem tempo para dispor de uma só hora durante todo o dia para abater dois ou três macacos. Estes animais constituem a base da nossa alimentação actual. Mas, tacitamente, evitamos falar disso, porque nos sentimos um pouco envergonhados. Para um caçador, o macaco é uma caça desprezível e até mesmo um tabo. A carne do macaco-aranha, o mais vulgar nesta região, é adocicada e enjoativa, mas nós já há muito ultrapassamos este género de enjoo.

Sei que Júlio, seguindo instruções minhas, já não dispara sobre as fêmeas, que, na presente estação, andam com as crias às costas.

Há uns anos atrás sucederam verdadeiras hecatombes, porque os caçadores só disparavam contra as fêmeas, com o único fim de poderem apanhar as crias ainda vivas de modo a expedirem-nas para os laboratórios, que pagam por elas bom preço. Mas, infelizmente, morria uma cria em cada duas devido à brutalidade da queda.

Ora, anteontem, Júlio voltou ao acampamento com um pequenino macaco-aranha adorável, que tremia de medo quando ele, sorrindo, mo deu. O seu gesto tocou-me e surpreendeu-me ao mesmo tempo. Júlio tinha pois, matado uma fêmea...

— Toma — disse-me ele —, a nossa viagem vai terminar dentro em breve; leva-o contigo como recordação do Petexbatun...

Desconfiei de que o seu gesto envolvia segundas intenções e repliquei:

— Não será isto para tu te divertires com o espectáculo de um francês a debater-se, no caminho de retorno, com um macaco às costas?

Com efeito, torna-se difícil e complicado marchar na floresta com um animal deste género. Agarra-se-nos aos cabelos e pendura-se nas árvores que se vergam sobre o caminho provocando uma súbita pressão na nossa mochila, o que faz com que se perca o equilíbrio. Ainda tinha bem presente a recordação de complicações semelhantes, e por nada deste mundo queria voltar a passar pelo mesmo.

Mas Júlio prometeu-me que se encarregaria do macaquito até ao rio e, sendo assim, aceitei-o de boa vontade. Como se tivesse percebido que me era destinado, o pobre animal agarrara-se a mim, anichando-se no meu corpo com pequenos guinchos. Já não me largava e começava a berrar assim que qualquer dos meus companheiros se aproximava. Nem se pode calcular a cena que ele fez quando me dirigi para a minha cama de rede, depois de o ter metido dentro de uma das algibeiras da mochila, onde parecia estar bastante à vontade! É claro que recusava comer coisa alguma e começou a berrar de tal modo que eu, finalmente, acedi e, para alegria geral, levei-o comigo para a cama! Não posso esquecer a noite que passei! Às duas da manhã a situação tornara-se infernal, e então acordei os meus três companheiros para juntos tomarmos uma decisão. Pô-lo em liberdade significava condená-lo à morte, por causa da vizinhança dos felinos.

Seria capaz de se desenvencilhar sozinho, sem a própria mãe? Era bastante duvidoso.

Decidimos, pois, de comum acordo, prendê-lo, junto ao fogo a fim de o preservarmos contra o eventual ataque de um ocelote desgarrado ou de qualquer jaguar. Para evitar que morresse estrangulado ao debater-se, tive o cuidado de lhe fazer nós bastante lassos. Nesse momento Rey fez um gesto que me espantou bastante. Tirou do seu saco um enorme lenço vermelho, do qual cortou o pedaço que atou à volta do pescoço do pequeno macaco.

— É o costume — disse ele. — Para se proteger um animal selvagem que se quer domesticar é preciso pôr-lhe qualquer coisa vermelha à volta do pescoço, que serve para afastar o perigo e os espíritos maus.

Ao nascer o dia, o macaquito desaparecera. Absorvidos nas nossas pesquisas arqueológicas, instantes depois já nem sequer falávamos nele...

As descobertas continuam, menos espectaculares que as precedentes mas sempre interessantes. Junto à grande pirâmide, de frente para a parte central, acabámos de descobrir uma estela pequena.

Quando estava a limpar a base da estela, a ponta da minha catana bateu de repente num pedaço de jade bastante deteriorado, com cerca de quatro dedos de espessura. Apresenta-se sob uma forma irregular, mas está gravado! Esta modesta descoberta encanta-me. Uma das superfícies está ilustrada com uma figura de perfil e sentada. A gravura é ligeira e mal morde a pedra. Mas que ligeireza no traço, que se curva e estende ao mesmo tempo! A toda a altura da outra superfície encontra-se uma larga ranhura lapidada. O artista renunciou, pois, a esculpir o jade definitivamente e decidiu cortá-lo em dois bocados para o utilizar noutros fins. Demoro-me a verificar a fenda onde se adivinham os esforços incríveis do escultor para trabalhar esta pedra, tão dura que chega a partir as mais sólidas tesouras de diorite. Aliás, fendeu-a até metade, segundo a velha técnica de aquecimento, com uma corda fina bem apertada, endurecida com cera e areia fina. Devia ter usado esta técnica para a outra face, de modo a conseguir o que queria: cortá-la em duas. Quantos dias de trabalho seriam precisos para seccionar um pequeno bloco como aquele? Ter-se-á o artista aborrecido com o trabalho? Não penso isso. Mais parece que um certo receio o fez parar na altura em que ia começar a aprofundar os traços daquela figura, apenas esboçada, de um deus. O próprio jade em que ele trabalhava quotidianamente era de manipulação delicada e até perigosa. Os maiores chefes votavam a esta pedra um verdadeiro culto.

O jade da América é um silicato de alumínio e de sódio e não cálcio, como o jade chinês, e por isso se lhe costuma chamar jadeí-te. É muito raro neste continente, onde só pode ser encontrado, sob a forma de seixos, no leito e nas margens dos rios. É muito difícil de descobrir, e a sociedade maia devia provavelmente contar com algumas tribos especializadas na pesquisa e no trabalho do jade, dotando-as com um estatuto mágico-religioso muito especial.

Uma só escultura de jade era sinónimo de anos de trabalho. As pérolas redondas ou tubulares dos colares de jade dos chefes dão a ideia do paciente labor dos artistas. Pensa-se que eles utilizariam um perfurador de madeira, endurecido com areia ou pó de obsidiana, para poderem praticar os furos. No decurso dos trabalhos enchiam o buraco em formação, para o alargar lentamente. Primeiro furava-se uma metade da pérola, depois a outra, e estas perfurações, quando se encontravam, apresentavam no centro a forma de uma ampulheta, forma essa de tal modo característica que hoje permite distinguir os verdadeiros peitorais antigos das imitações vendidas, a preços equivalentes, pelos ladrões de túmulos.

Lisandro aparece ao pé de mim. Acaba de descobrir uma sucessão de pedras no chão, bem alinhadas e ligeiramente enterradas na terra.

— É como se fosse uma estrada — afirma — e tenho a impressão de que vai na direcção daquele monte lá em baixo, mesmo por trás da grande pirâmide.

Não fico especialmente surpreendido com esta descoberta de Lisandro. Com efeito, parece ser uma álea lajeada e não uma estrada, caso que, na realidade, podia suceder. Efectivamente, os Maias, que não possuíam animais de carga, construíram estradas (saxcab), planas e cimentadas que, por vezes, se elevavam do solo a uma altura de dois metros e meio. Não lhes faltava majestade, pois a sua largura chegava a atingir quatro metros e meio. Algumas destas calçadas tinham cem quilómetros de comprimento, como é o caso de Coba, ligando uma cidade a outra, mas, segundo os especialistas, não apresentavam qualquer utilidade prática, e só se animavam por altura das mais importantes procissões religiosas.

Estas estradas eram pavimentadas com blocos de pedra, sobre os quais se espalhava cascalho, que se esmigalhava com a ajuda de volumosos rolos de pedra extremamente pesados. Nos arredores da estrada maia que sai da antiga cidade sagrada de Coba, nas fronteiras do Quintana- Roo, os arqueólogos descobriram um rolo deste género. Possui quatro metros de comprimento por sessenta e cinco centímetros de diâmetro e pesa cinco toneladas. Seriam precisos pelo menos quinze homens para puxar aquele instrumento. Será que os habitantes da «nossa» cidade utilizaram este tipo de rolo compressor para esta via-sacra que vai de um templo a outro? Somente depois de aturadas pesquisas arqueológicas o poderíamos confirmar.

Assim, contrariamente à ideia estabelecida, os Maias conheciam o princípio da roda. Outros povos da América conheciam-no igualmente. No Museu de Jalapa (Vera Cruz), admirei à vontade e até fotografei um extraordinário pífaro pré-colombiano, de terracota, sob a forma de um cão montado em cima de quatro rodas. É bem a prova de que os Ameríndios conheciam o princípio da roda antes da chegada dos Espanhóis. Os trabalhos do arqueólogo americano G. E. Ekholm também o demonstram.

Em Jalapa, trata-se de um pequeno objecto de culto. Quanto ao rolo compressor maia, não é uma verdadeira roda, mas sim um cilindro rolante que se aproxima um pouco dos troncos que os índios maias faziam deslizar por debaixo das estelas para as transportar. A questão põe-se naturalmente: por que não utilizavam geralmente estes povos o princípio da roda para fins mais práticos? Falta de imaginação técnica? Ausência de animais de tracção? Podiam substituí-los por homens, como em Coba. Ou não teriam antes sido impedidos ; pelo significado simbólico da roda, imagem do Sol?

 

A álea lajeada da «nossa» cidade começa junto a um montículo onde Lisandro tenta desagregar da terra uma estela que vira de manhã e que se encontra mesmo diante do edifício piramidal ainda coroado de vegetação de arbustos e de lianas.

Nesta estela de Lisandro não se encontra, curiosamente, nenhuma inscrição em qualquer das faces. Nem um só traço de escrita. Será que fora alguma vez coberta de estuque, essa pasta finíssima e misturada com resina que os escultores maias gostavam de trabalhar? Em Palenque encontraram-se magníficos exemplares de baixos-relevos de estuque realizados nas fachadas dos templos; mas aqui devem ter desaparecido com o decorrer dos tempos.

Lisandro e eu caminhámos sem pressa ao longo do pavimento empedrado, que se desenha, plano e com bastante nitidez, à flor da terra, durante cinquenta metros, terminando no sopé de uma elevação com cerca de dois metros e meio de altura. Em contrapartida, logo verificámos que apresenta uma largura de cerca de quarenta metros. A tarde já vai adiantada. Será que estamos cansados? O aspecto da elevação parece não ter nada de revelador... Mas se as procissões dos sacerdotes engalanados com penas de várias cores avançaram por esta estrada ao ritmo dos sons surdos das enormes trompas de madeira, secundados pelo rufar dos tambores de pele de cervo, é porque este soco de terra muda que está diante de nós teve, certamente, importância.

Vamos a isto, recomecemos as pesquisas! Chamamos Júlio e Rey e, juntos, a nossa coragem redobra. Júlio, o primeiro a chegar, chama a nossa atenção para uma enorme pedra que jaz a seus pés. Irregular e em forma de rectângulo, não contém escultura alguma. Teria sido trazida até aqui com o fim de ser incluída numa construção? Limpamos delicadamente a terra em volta da pedra com as catanas. E eis outra pedra do mesmo tamanho, e outra... Duas horas de trabalho pesado permitem-nos pôr a descoberto uma escadaria. Tem quatro degraus largos, precisos, colocados com correcção, três dos quais esculpidos com baixos-relevos. Observo-a em pormenor e apercebo-me então de que está inacabada! Sim, falta uma pedra, o quarto degrau; está ali, junto a ela; foi o bloco que Júlio descobriu em primeiro lugar. Está pronto, nu, esperando desde há muitos séculos.

As esculturas do terceiro friso estão incompletas. À esquerda, os glifos, apenas esboçados, deixam-se adivinhar, enquanto, na extrema-direita, somente foram traçados os esquemas dos desenhos. Não há dúvida alguma de que esta escadaria foi abandonada no decurso da sua construção. Tem-se a impressão de que os artistas e os trabalhadores foram tomados de um súbito pânico e abandonaram os seus utensílios para poderem fugir mais depressa.

Nas pedras centrais dos frisos da frente alongam-se cenas da corte em baixos-relevos. Noto com surpresa que todas as cabeças das figuras foram marteladas e mutiladas. Foi preciso uma raiva feroz para se porem a destruir estas caras destinadas à posteridade. Os meus companheiros estão extremamente desiludidos pelo estado desta última descoberta, enquanto eu me encontro possuído de grande excitação. Eis uma importante descoberta! Pela primeira vez na história da arqueologia maia, acabamos de pôr à luz do dia as provas claras do abandono brutal de uma cidade clássica. Este é o último presente oferecido pela floresta do Petexbatun!

Os nossos sacos estão fechados. Na fogueira do acampamento que vamos abandonar arde um último ramo, consumindo-se lentamente. A nossa grande aventura terminou e, apesar disso, não sentimos qualquer nostalgia. Os ataques dos mosquitos e das moscas são cada vez mais virulentos nos últimos tempos. Quotidianas e incansáveis, as chuvas tornaram o terreno esponjoso a tal ponto que é impossível sentarmo-nos no chão para comer. As nossas roupas e os sacos de dormir principiam a ficar bolorentos e tudo nos dá a impressão de que começamos a desagregar-nos. A água infiltra-se por todo o lado.

Durante estes três últimos dias, Júlio foi obrigado a acender o fogo empregando o velho truque dos chicleros. Tirou da algibeira um pedaço de cauchu que extraíra há muito a uma hévea selvagem, coisa que, aliás, muito me intrigara, e cortou-lhe um pedacito, que acendeu por baixo de um monte de cascas e ramos húmidos. Graças a esta borracha, que arde muito lentamente, mesmo nas piores condições, pudemos novamente ter uma fogueira.

Lisandro encabeçou a fila com a catana na mão. Eu voltei para o meu lugar, que é o segundo, e parece que me desloco dentro de um banho de vapor. Ouço os passos de Júlio atrás de mim; gotas de suor escorrem-me da testa, cegando-me momentaneamente, mas, mesmo assim, não tiro os olhos dos calcanhares de Lisandro, que força o andamento.

E dentro de mim recomeça o longo monólogo interior que me acompanha sempre no decurso destas penosas e intermináveis caminhadas. Revejo todas as maravilhosas descobertas que acabámos de fazer. Somos os vencedores do Petexbatun. Sorrio de contentamento, mentalmente, por um breve instante. De repente, penso nos documentos fotográficos que levo comigo. Estarão nítidos e legíveis? Estariam os rolos ainda bons? Qual será o acidente de maior importância que se nos deparará antes de atingirmos o rio, ou mesmo durante a marcha? O caminho do regresso é tão difícil e tão cerrado como o da ida...

Evoco de novo a cidade maia, que, no fim de tudo baptizei com o nome de Dos Pozos, por causa da importância dos seus dois poços. Será que a maravilhosa porta tumular não é, antes, um panneau monumental, já que as pirâmides maias não são túmulos? E as estelas da parte central? Quantas emoções não irão elas arrancar aos amantes da arte maia! A respeito da nossa última descoberta, a escadaria inacabada não é propriamente importante no plano artístico, serve somente como prova do fim de uma cidade clássica, provocado por um choque brutal. Penso que achei finalmente a explicação para esta porta — ou este panneau — de pedra, quase inteiramente coberta por esculturas. Não deve restar dúvida alguma de que ela pertencia a uma construção anterior; os arquitectos haviam começado a cobrir todo o edifício, como o costume impunha em certas datas, para fazer dele uma pirâmide mais importante e erguer no seu cume um novo templo, mais sumptuoso que o precedente, quando qualquer drama veio interromper os trabalhos. Foi por isso sem dúvida, que eu pude descobrir a extremidade superior do monólito. Mas qual teria sido o acontecimento grave que provocou o súbito abandono desta cidade? O anúncio do começo de uma dinastia particularmente impopular? Os golpes que tão raivosamente destruíram as caras das figuras esculpidas nos degraus da escadaria parecem indicar que se tratava mais de uma revolta que de uma invasão. Mas como é que perturbações deste género puderam nascer numa sociedade tão disciplinada, tão organizada e dona de tão alto grau de civilização? E assim trago ao mundo não só uma cidade nova, mas também factos inéditos e bastante sólidos para permitir, espero, que quem de direito se debruce de novo sobre o problema do desaparecimento dos grandes maias. Para mim próprio, serei eu capaz de encontrar uma resposta satisfatória?

Os guinchos furiosos de alguns macacos arrancam-me brutalmente aos meus sonhos. Estamos a incomodar um casal de macacos-aranhas negros. Travo o braço a Lisandro, que já havia metido a arma à cara. Não, tudo aquilo já terminou. Temos carne grelhada em quantidade suficiente para atingirmos o rio, e aí arranjaremos peixe em quantidade. Uma pequena figura negra aproxima-se do casal escandalizado, que guincha lá em cima das árvores. Creio estar a sonhar! É um pequeno macaco-aranha com uma fita vermelha enrolada ao pescoço! A minha recordação viva do Petexbatun está de perfeita saúde! Encontrou pais adoptivos. Após cada salto, de ramo em ramo, os dois macacos adultos voltam-se para verificar se o órfão os segue, e, sempre que necessário, param, de modo a que ele os alcance. A emoção apodera-se do nosso grupo e a verdade ressalta: não tenho necessidade de um macaco-recordação. O Petexbatun ofereceu-me um presente para a vida inteira. E como poderei esquecê-los a vocês, meus companheiros chicleros, a quem devo esta aventura. Lisandro volta a pôr a carabina no seu lugar, sem pronunciar uma palavra, e torna a empunhar a catana. Júlio sorri. Rey pronuncia um grito de adeus aos três macacos vagabundos e retomamos a nossa marcha difícil, que em breve nos conduzirá à nossa piroga, lá em baixo, junto ao rio.

 

                   O MUNDO LACANDON

 

Uma bruma espessa banha a floresta montanhosa do Chiapas. Transido pela humidade natural, enrosco-me no fundo da rede. Não é o cúmulo tiritar nos trópicos? Eu estou, todavia, apenas a trezentos quilómetros, quatrocentos no máximo, a oeste do Petexbatun; na realidade, a cinco dias de piroga e quatro de marcha.

Por duas vezes voltei ao local da minha descoberta. Abri um caminho entre Dos Pozos e o lago Petexbatun, para facilitar o acesso à «minha» ruína a eventuais expedições arqueológicas. Neste entretanto, um geólogo americano, ao serviço de um grande trust, chegou ao Peten e os ecos locais da minha aventura atraíram-no ao Petexbatun. Rey e Júlio recusaram-se a ir com ele; por fim, a preço não de chicle, mas de ouro, fez-se conduzir a Dos Pozos por Lisandro.

Os tesouros de arte exumados do seu túmulo vegetal pelos meus cuidados enfeitiçaram-no, e já que, segundo os seus próprios termos, eu trabalhava para uma entidade desconhecida, quer dizer, para ninguém, não se sentia obrigado a ter-me em consideração. Ora, para falar ao mundo deste lugar extraordinário, tornava-se-lhe necessário descobrir qualquer coisa, não importava o quê... Então tornou a baptizar a minha descoberta com o nome de Dos Pilas, termo impróprio, visto significar duas pias de pedra, e o que ali se encontra são dois poços. Eu esperava, todavia, que a minha ruína conservasse, pelo menos, o nome que eu escolhera... Mas não se luta com uma companhia americana de petróleo, e o sítio chama-se, portanto, Dos Pilas. O Petexbatun fez-me presente de uma maravilhosa descoberta e o homens despojaram-me dela! Que importa, de resto, estes pormenores secundários? Eu conservarei para sempre a recordação desta experiência intensamente vivida.

E vocês, companheiros, que vos aconteceu? Júlio, o pacífico Júlio, morreu assassinado por um asunto de mujer, um negócio de mulher. O caçador que me comunicou a terrível notícia não me pôde dar mais pormenores. Quanto a Rey e a Lisandro, procuram chicle nas fronteiras das Honduras Britânicas.

É a terceira vez que faço uma estada no Chiapas. Anteriormente, vivi dez meses com os Maias-Quichés dos altos planaltos da Guatemala e sete meses entre os índios maias do Iucatão. Ali segui a minha primeira intuição, ao supor que a explicação da existência e desaparecimento dos grandes Maias do Peten devia encontrar-se no actual mundo índio. A descoberta de Dos Pozos provou-me, definitivamente, que as mais incríveis surpresas esperam quem tenta o impossível. O mundo maia revelou-se-me, desde então, sob um aspecto diferente, cheio de profundo significado, parecendo até muito próximo das suas realidades interiores. Convicção que iria levar-me a determinar o sentido verdadeiro de todos os factos etnográficos que era chamado a observar e a conduzir-me pelo caminho inebriante das verdades fundamentais, aquele que me permitiria, enfim, descobrir e desvendar pela primeira vez a chave dos mistérios maias. E foi no decorrer desta última experiência no território frio e húmido das florestas enevoadas do Chiapas que tudo se esclareceu.

O meu alojamento é um simples tecto de folhas de palmeira colocadas sobre uma série de largas traves; é, ao mesmo tempo, celeiro, capoeira e cocheira. Para ter direito a instalar-me aí, ofereci a Bor, seu proprietário, a minha chávena de alumínio, que bastante falta me faz, claro; todavia, não me lamento. Bebo, desde então, por uma cabaça, recipiente menos estável mas mais agradável no toque que o metal. Aprecio a hospitalidade deste índio lacandon e experimento mesmo uma impressão de felicidade no contacto com o seu universo, que, no entanto, me é completamente estranho. O isolamento torna o homem mais sensível ao factor humano. Que há de mais emocionante que a presença de mulheres e crianças no mundo hostil da floresta circundante! Vivemos a três semanas de marcha do mais próximo local civilizado, e o reino de Bor reduz-se a quatro cabanas ocupadas pela sua numerosa família.

O grupo lacandon, que não conta mais de uma centena de almas, já não vive em tribos, mas em células familiares distribuídas por esta selva espessa e húmida, onde chove durante onze meses no ano. Cem indivíduos povoam um território de dez mil quilómetros quadrados! Dois a três dias de marcha separam um canibal do outro, quer dizer, o conjunto das cabanas que abriga cada família do conjunto vizinho. É a solidão quase absoluta, e isto explica, em parte, o facto de os Lacandons serem os únicos índios de toda a América Central que não sofreram influências cristãs ou espanholas.

Eu sinto tendência para me identificar com este grupo de semi-nómadas. Desprende-se deles qualquer coisa de indefinível e de enfeitiçante. Os meus sonhos de adolescente sobre o «bom selvagem», querido a J.-J. Rousseau, tornar-se-iam realidade? Vivi entre os Lacandons o suficiente para saber que a verdade interior desta sociedade humana está longe de ser tão idílica quanto se julgaria.

Eu devo à minha paixão pelo mundo maia o viver hoje uma experiência atraente. Os Lacandons são, efectivamente, considerados como os últimos descendentes dos Maias clássicos, afirmação que parece, pelo menos, audaciosa, mas que é aceite pelo conjunto dos especialistas.

No princípio do século faziam-se depender estes índios do grupo linguístico chol, falado ainda hoje pelos Chortis, na fronteira das Hon-duras. Este parentesco baseava-se numa gramática chol-espanhola escrita por um franciscano, em Dolores, em 1696.

Dolores é o nome dado pelos Espanhóis à última aldeia lacandon que conquistaram.

Após esta derrota, a grande tribo índia decidira dispersar-se até ao mais profundo da floresta do Chiapas, em pequenos grupos, a fim de melhor escapar ao jugo do invasor estrangeiro. Dolores foi, na realidade, um insucesso completo para os Espanhóis. Isolada em plena floresta, longe de toda e qualquer via de comunicação, abandonada pelos seus habitantes, o local revelou-se um inferno para os vencedores, exactamente como Tayasal, no Peten. A expedição contra os Lacandons partira dos altos planaltos da Guatemala na mesma altura em que outra deixava o Iucatão para conquistar os Itzas. Tratava-se, provavelmente, de uma acção conjugada. A guarnição dos conquistadores chegou a manter-se em Dolores durante um escasso ano, mas depois a aldeia foi retomada pela floresta. Nenhum índio lacandon lá tornou a ir, e, a partir daí, é completamente impossível localizá-los.

Como o frade franciscano havia redigido a sua gramática no próprio local, deduziu-se que o seu informador era um lacandon. Ora, em 1907, os trabalhos etnográficos de Tozzer ensinaram-nos que estes índios falavam uma língua idêntica à dos Maias do Iucatão.

Para além da analogia linguística e do facto de eles habitarem a região das cidades clássicas, dois pontos importantes confirmam o parentesco dos Lacandons com os antigos Maias; em primeiro lugar, uma perturbadora observação feita pelos primeiros exploradores e depois pelos etnógrafos: os Lacandons ainda adoram divindades nos antigos templos abandonados da floresta; em seguida, a espantosa semelhança entre os seus rostos e os das figuras de outrora esculpidas nos baixos-relevos, semelhança que me impressiona de dia para dia. O genro de Bor tem o ar de sair directamente de uma estela gravada há mil anos!

O fumo do espesso cigarro de Bor confunde-se com o opaco nevoeiro da manhã. Precedido pelas suas duas mulheres mais jovens, passa junto a mim e ignora-me. Na sua ampla túnica branca de algodão selvagem, caindo sobre os tornozelos, o seu porte ostenta uma real majestade, que os seus companheiros não têm. Em conjunto, as duas jovens esposas não atingem metade da idade do patriarca seu marido! Elas estão vestidas e penteadas da mesma maneira que ele. Todos os Lacandons, homens e mulheres, usam os cabelos compridos, até aos ombros, e atribuem-lhes múltiplas virtudes mágicas.

A mulher mais nova de Bor não tem mais de onze anos. O seu velho esposo quinquagenário não lhe permite a mínima liberdade, parecendo estar permanentemente atrás dela. No princípio da minha estada, eu tinha a tendência para me apiedar da sorte da rapariguinha, mas depressa me dei conta de que não passava de uma reacção de ocidental, e que esta mulher-criança se riria na minha cara se eu lhe tivesse testemunhado a menor compaixão. Com efeito, adora o seu velho marido e nunca lhe deixa um instante de repouso; sabe ser exigente e até tirânica, e é ela quem o incita a pedir-me constantemente os pobres utensílios que constituem a minha bagagem; até me parece que, se para tanto ela tivesse poder, eu estaria agora completamente nu, sem rede para dormir, sem cobertor, sem mochila e sem cadernos de apontamentos!

Bor acompanha-a em todas as suas deslocações para a vigiar, evidentemente, mas também para a defender do ataque sempre possível de um felino, do encontro com uma serpente ou de um eventual rapto. A posse de mulheres é a maior preocupação de um lacandon, e todos os meios são bons para as conseguir. A mulher é um capital-trabalho e uma procriadora de filhos; é o bem mais ardentemente desejado e o mais difícil de obter.

Dispersos após a queda de Dolores, os Lacandons não souberam recriar qualquer estrutura comunitária. Com o retorno à célula familiar e a ausência de laços colectivos, a tendência masculina para a poligamia pôde desenvolver-se livremente. Os encontros entre dois grupos dão sempre ocasião a actos singulares: trocas de mulheres ou de raparigas, ou então promessas de contratos, por vezes antes do nascimento de filhos do sexo feminino! Todos os contactos são dominados por este vital problema das mulheres. São precedidos de passos delicados e, por vezes, até perigosos, provindo daí a sua raridade. Com um pouco de sorte pode assistir-se a um deles.

Aquando da minha primeira estada nesta região, havia-me instalado nas margens do rio Lacantum, no caribal de Chankin. Bor, cujo nome eu ignorava nessa época, surgiu uma tarde por detrás de uma cabana. Adivinhava-se a custo a sua silhueta e era aos gritos que manifestava a sua presença. Tudo aquilo era de tal modo impressionante que todo o acampamento tremeu de pânico. Chankin, largando o arco e as flechas com que habitualmente caçava, deitou a mão a uma velha carabina milagrosamente saída do seu esconderijo. Travou-se então um incrível diálogo gritado entre os dois homens e, finalmente, Bor decidiu-se a emergir da floresta. Aproximou-se tranquilamente e depressa se deu conta de que a minha presença constituía um feliz acaso, pondo-se a inspeccionar as minhas coisas. Depois acocorou-se junto ao meu fogo. A seguir, já de noite, entrou sem uma palavra na cabana de Chankin, onde se entabulou uma discussão interminável. Soube mais tarde que ele tinha, pedido em casamento a filha mais velha do meu anfitrião, que apenas contava oito anos de idade! A entrevista prolongou-se até ao meio da noite. Bor saiu só, veio acocorar-se à cabeceira da minha rede e cantou durante horas umas confusas melopeias. Ao amanhecer, levantou-se como uma mola, bateu com a palma da mão na longa túnica para sacudir a poeira e deixou-nos, sem comentários nem saudações. A entrevista fora construtiva, pois vim a saber mais tarde que a mulher-criança de Bor era filha de Chankin.

Neste primeiro caribal em que eu vivi existia um rapaz que também fazia «fogo à parte»; não era, portanto, um filho de Chankin. Uma rapariguita de cinco anos servia-lhe atentamente a comida, e aquilo não se tratava de um jogo! Estes dois seres formavam um casal! O adolescente recebera do meu anfitrião esta criança à laia de esposa! É certo que o casamento só seria consumado por altura da puberdade da jovem, por volta dos seus dez anos. Entretanto, ela preparava-se muito honradamente para desempenhar as funções caseiras de esposa. O jovem, por seu turno, era obrigado a viver em casa do sogro durante longos anos ajudando nos trabalhos agrícolas. Não se queixava e dava-se por muito feliz: ganhara uma mulher!

Este aspecto da sociedade dos Lacandons em nada se aproxima dos antigos costumes maias. As velhas regras de exogamia, que obrigavam os homens a procurar mulher num outro clã (designado pelo nome de um animal), já não existem. A autoridade, o prestígio social e o medo que inspira são as grandes qualidades daquele que solicita uma mulher. Uma transacção desta ordem é sempre extremamente séria; uma recusa pode levar às piores represálias e conduzir mesmo ao crime.

É assim que quanto mais um homem é temido mais facilidade tem na obtenção de mulheres, e quanto mais mulheres possuir mais aumenta o seu prestígio. Esta incrível realidade social faz de alguns velhos lacandons grandes proprietários de mulheres jovens, enquanto os rapazes novos ficam muitas vezes reduzidos ao casamento com mulheres já abandonadas ou estéreis.

O genro de Chankin tinha boas razões em se considerar um privilegiado. Por que incrível negociata é que teria conseguido os seus fins? Seria como resultado de um acordo entre Chankin e um outro velho proprietário de mulheres, que lhe oferecera uma das suas próprias raparigas em troca daquela criança para o seu próprio filho? Este género de transacção é bastante frequente.

É fácil de imaginar os dramas que se engendram com este açambarcamento de mulheres em proveito de poucos e temidos patriarcas. Na sua meninice, os filhos têm direitos de rei, sendo constantemente adulados e mimados pelos pais, mas os rapazes, assim que chegam à adolescência, são para o pai verdadeiros rivais em potência. As mulheres jovens tornam-se objecto de cupidez, sendo guardadas com o máximo cuidado. É pois, preferível afastar os jovens lobos por todos os meios possíveis. Estes deixam em geral muito novos o caribal paterno e vão estabelecer-se longe, na floresta, levando muitas vezes consigo a velha mãe abandonada pelo chefe do caribal.

Tudo o que acabo de dizer não significa que a vida nos Lacandons seja um inferno. Estas aventuras conjugais escalonam-se largamente no tempo, não afectando a vida quotidiana. Por vezes, o aparecimento de um novo intruso reanima a chama da ciumeira masculina; claro está que falo da chegada de um lacandon. Com um estrangeiro o caso é diferente e até mesmo interessante; sobretudo se se tratar, como é o meu caso, de um branco barbudo, somente de passagem, feliz proprietário de uma mochila onde se escondem pratos de alumínio, facas, uma catana, uma carabina e sabe Deus que outros tesouros...

Dentro de meia hora, se não chover, o Sol romperá a bruma quotidiana destas montanhas. No espaço de quinze dias, só apareceu duas vezes e sempre à mesma hora, às oito da manhã.

Uma bruma hesitante estiola-se ainda na orla da floresta. O tempo hoje parece bom. O céu está claro, mas Bor mal se apercebe disso. Surge, ele e as suas duas companheiras, com as mãos cheias de grandes campainhas roxas. Já ontem tinham apanhado ramos do mesmo género. Antigamente, os Maias ofereciam flores aos seus deuses; observarão os seus descendentes o mesmo ritual? Tanto mais que são umas sementes narcotizantes, os oliuhqui, já mencionadas pelos cronistas espanhóis como sendo instrumento de divinação, que dão origem a estas belas flores arroxeadas.

Lanço-me na peugada do meu anfitrião e, numa das voltas da sua cabana, a surpresa prega-me ao chão. O velho Bor e as duas mulheres encontram-se ali, de cócoras sob o sol da manhã, comendo com enorme prazer as grandes flores acabadas de colher e onde ainda brilha o orvalho da noite! A minha imaginação levou-me uma vez mais demasiado longe. Sonhara com qualquer ritual esquecido e apenas se trata de um costume alimentar, aliás bastante poético. Perante o meu espanto, Bor sorri e oferece-me as suas últimas duas flores. Para falar francamente não lhes acho qualquer gosto, excepto o serem levemente adocicadas...

Enquanto as duas mulheres desaparecem dentro da cabana., Bor, satisfeito, enrola lestamente na coxa uma enorme folha de tabaco para fazer um charuto. Acende-o com uma brasa e, deliciado, aspira o fumo. Hoje já é o segundo charuto que fuma, e o dia ainda mal começou! Mas aquilo parece não o incomodar, embora o cheiro a nicotina que dele emana seja insuportável. Este tabaco aqui colhido, proveniente de plantas que crescem desordenadamente por entre o milho, não sofre qualquer tratamento especial. Secam-se as folhas pendurando-as nos tectos das cabanas, depois de, previamente, lhes haverem tirado a nervura central. Tenho uma série deguirlandas deste género suspensas por cima da minha rede. O consumo de tabaco é importante no caribal e, aliás, o fumo é um costume ancestral. Com as primeiras folhas de tabaco do ano os Lacandons fazem charutos, que acendem simbolicamente antes de os oferecerem aos braseiros sagrados, acompanhados de orações. Não existe limite de idade para esta actividade essencialmente masculina; assim que as crianças conseguem dar dois passos sozinhas começam logo a receber grossos cigarros para fumar!

Bor é um grande caçador. Desprende o arco para que eu o admire e, como acontece todos os dias, verifica a sua reserva de flechas. Uma delas encontra-se em mau estado e, por isso, escolhe uma vara entre um molho de canas de bambu pendurado ao lado das folhas de tabaco, no tecto da cabana. Verifica minuciosamente a vara e vê-se pelo seu ar de descontentamento que não está famosa. Da fogueira, prestes a apagar-se, tira uma brasa e começa a esfregar o bambu no sítio conveniente, de modo a que perca a rigidez; depois, na altura que lhe parece propícia, dobra delicadamente a vara. As guias da flecha são feitas com duas penas de papagaio cuidadosamente iguais, fixadas na madeira com um fio de algodão bem impregnado de cera de abelha selvagem. A maior dificuldade reside em conjugar duas penas com o mesmo peso, de modo a não desequilibrar o conjunto. Por último, coloca-se a ponta da flecha.

A minha sede de perguntas é imensa e começo a interrogar Bor com os olhos e por meio de gestos, porque sei perfeitamente que algumas flechas possuem pontas de sílex e gostaria de conhecer o processo usado para as talharem de modo tão preciso. Ele hesita durante uns instantes, e eu insisto. Decide-se então a voltar à cabana, onde se demora pouco mais de um minuto, voltando com um magnífico pedaço de sílex arredondado e com um fragmento de corno, que me parece ser de cabra. Na mão esquerda segura uma enorme pedra do tamanho de um punho. Depois o meu anfitrião acocora-se e começa a bater nas bordas do sílex com a pedra.

Assim que termina esta primeira operação, segura no corno de cabra, apoia-o contra o sílex e bate-lhe com a pedra, num pequeno golpe seco; o corno de cabra faz o efeito de um percutor. Um estilhaço de sílex solta-se e cai nas dobras da túnica de Bor. Que maravilha! Possui a forma exacta da ponta de uma flecha! Fico pasmado perante estes gestos de outra época. Ao contemplar esta técnica arcaica, sinto-me na Pré-História. Sim, este velho lacandon acaba de me oferecer, sem o saber, a recordação viva dos primeiros balbucios do homem partindo à conquista do universo...

Nesta terra americana isto não se trata de uma técnica de sobrevivência paleolítica no sentido europeu do termo. O homem chegou a este continente apenas vinte mil anos antes da nossa era, e todos os dados arqueológicos estabelecidos pelos nossos pré-historiadores, graças aos utensílios de pedra encontrados nas camadas geológicas profundas, nada significam. Bor, que conserva esta técnica dos seus antepassados maias, acaba de me dar um espantoso exemplo. Aqueles certamente procederam do mesmo modo para talharem as suas pontas de lança. Com efeito, não conheciam nem o arco nem mesmo o propulsor (catatl), arma típica dos primeiros invasores toltecas, que apareceram no Iucatão no século XI. O arco, a arma dos caçadores nómadas das planícies do Norte, apareceu no século XII nos planaltos do Anahuac. Foi introduzido em terra maia, no fim do século XIII, pelos mercenários mexicanos chamados ao Iucatão pelo rei de Maiapão, que procurava regular certas diferenças territoriais e estender a sua hegemonia a toda a região.

Bor prometera ontem levar-me à caça se o tempo o permitisse, o que explica todos estes preparativos. Ele não compreende lá muito bem por que é que eu insisto para que municie o seu arco com flechas, já que eu tenho a minha carabina. Consigo convencê-lo explicando-lhe que gostaria que ele me ensinasse a caçar com o arco. Levamos também o meu long rifle calibre vinte e dois, que ele tanto queria experimentar. Assegura-me que sabe atirar muito bem e eu, de facto, estou convencido disso. Estes homens primitivos são excelentes atiradores e todo o lacandon que se preza possuiu, possui ou possuirá uma carabina. É um bem quase tão precioso como uma mulher, e qualquer deles não hesitará em emprestar uma das esposas ao caçador de caimão ou ao chiclero de passagem, na única esperança de obter uma arma de fogo!

Mas, infelizmente, para ele o problema das munições é insolúvel. Se se der uma arma e cinquenta cartuchos a um lacandon, pode-se estar certo de que a utilizará uma vez por dia e que, durante cinquenta dias, voltará ao caribal com caça. Depois a arma de nada lhe servirá. O índio terá de esperar meses ou talvez anos até que encontre enfim um aventureiro portador de uma espingarda do mesmo calibre e disposto a ceder-lhe alguns cartuchos. Ora, neste intervalo de tempo, a arma, metida entre duas folhas de palmeira, já sofreu bastante e encontra-se em tal estado que é impossível e até perigoso pô-la em funcionamento. Se se oferece ao lacandon maior quantidade de cartuchos o resultado será idêntico. Primeiro disparará duas, três, cinco vezes e mais só pelo prazer de disparar. Sentir-se-á subitamente rico e dará munições de presente àqueles de quem espera vir a obter uma mulher; lançar-se-á em trocas incríveis, e depressa a provisão de cartuchos estará no fim... Tive, por várias vezes, ocasião de verificar, oferecendo-lhes armas, este comportamento peculiar dos Lacandons.

A única possibilidade de se ser aceite sem dificuldade num caribal ou de aí poder fazer-se uma longa estada é dependente da promessa de oferta de uma arma e de munições. Qual não foi a minha surpresa quando soube que Chankin possuía seis espingardas de diferentes calibres, todas elas quase inutilizadas. Eu tinha conseguido a sua confiança e ele autorizara-me a fazer um inventário de todos os objectos que se encontravam no interior da sua cabana e sob o alpendre de palmeira, local onde são depositados os maiores tesouros. Não há nada mais interessante que estes inventários, indispensáveis num inquérito etnográfico e para quem procura compreender os homens com quem vive. Cada uma destas espingardas inutilizadas fora a protagonista de uma aventura ignorada. Que espécie de homens, batedores ou exploradores, teriam sido os seus proprietários? Em que condições as teria Chankin obtido? Nunca me disse uma palavra sequer acerca disto.

Sigo Bor passo a passo. Admiro o seu à-vontade ao meter-se por entre o emaranhado das árvores e ao contornar os obstáculos. A floresta é o seu reino; conhece-lhe todas as espécies, sabe quais são os terrenos propícios à caça, todas as raízes e todos os frutos preferidos pelos animais. É muito raro ele voltar ao caribal de mãos vazias.

Bor transporta às costas um enorme fardo de tabaco. Com uma pequena liana atou-o à volta do pescoço, antes de partir. Assim, durante a caçada, poderá fazer e fumar todos os charutos que quiser. Na mão direita leva o arco e as flechas. Os Lacandons ignoram o uso do carcás. Uma das flechas, destinada aos macacos, possui uma barbela na ponta; a segunda, montada por Bor ainda há pouco com uma ponta de sílex, está reservada aos mamíferos; e uma terceira, para os pássaros, termina com uma pequena moca de madeira, tendo uma ponta minúscula na extremidade. Astúcia do caçador, porque, quando o tiro falha, a flecha não fica presa nos numerosos ramos ou nas plantas parasitárias que envolvem as árvores; tomba no solo, onde é fácil recuperá-la. Bor não trouxe hoje flechas destinadas aos peixes, já que isto é somente um pequeno ensaio...

Um casal de papagaios paira no alto de uma árvore, à nossa direita. Semicurvado, Bor aproxima-se mais da árvore onde eles estão. Prepara a flecha com a bola na ponta e estica o arco sem esperar, segurando-o na horizontal. A flecha parte e atinge o pássaro da esquerda em plena cabeça. Golpe de mestre! A arma e o pássaro vêm cair quase aos pés do caçador, que se sente feliz por me mostrar a sua destreza. Do mesmo modo que o macaco, que se come cozido, o papagaio é um prato muito apreciado pelos Lacandons. Isso espantou-me muito, porque muitas vezes recorri a esta caça de ocasião e sei por experiência que a carne é quase sempre coriácea. Mas estes caçadores sabem ver a idade dos animais e só escolhem os mais novos.

A flecha com a ponta de madeira tem a enorme vantagem de não ferir o animal, evitando que as suas penas se sujem de sangue. As penas de papagaio são muito procuradas, porque servem para fazer as guias das flechas e os mantos multicores utilizados nas festas.

Bor pendurou o papagaio ao ombro, atando-lhe a cabeça e as pernas com uma liana. Continuámos a nossa marcha e, ao fim de dez minutos, o meu companheiro pára e faz-me sinal para que me aproxime. Põe o arco e as flechas por terra e mostra-me, com o dedo, qualquer coisa numa árvore. Eu nada vejo... Depois pede-me a carabina e, mal eu lha havia passado para as mãos, já ele apontava e disparava. Ouve-se cair algo pesado: é um soberbo hocco. O meu companheiro, muito orgulhoso, desata a rir, volta a dar-me a arma, segura no arco e nas flechas e distancia-se, tomando o caminho por onde tínhamos vindo. Chamo-o. Então, não vamos apanhar a caça? Ele põe-se a rir e responde-me laconicamente: «Não é bom!» Será possível? O hocco, que tem o peso de uma boa galinha, é um dos pássaros mais finos deste território. Bor parece aborrecido com a minha insistência e o seu riso apaga-se. Explica-me confusamente que eles se alimentam, nesta época, com sementes tóxicas e que se corre o risco de envenenamento. Fico um bocado céptico, porque várias vezes o comi em todas as épocas do ano, no Peten. Decido-me, então, a levar o belo hocco.

De volta ao caribal, só uma coisa me anima: verificar se o que Bor disse é verdade. Trato imediatamente de cozer o pássaro na minha caçarola e regalo-me com ele, não sem, todavia, sentir uma leve apreensão...

Chega a noite... Não senti qualquer perturbação digestiva. Bor mentiu-me. Será que o hocco faz parte de qualquer tabo alimentar? Isto parece-me tão difícil de verificar que prefiro deixar a pergunta em suspenso...

 

                     O INCENSO RESPONDE AO ENIGMA

Perturbei a calma do caribal ao instalar-me aqui. A minha cabana, rectangular, sem paredes, com um telhado feito de folhas de palmeira em duas camadas, servia de cozinha às mulheres, que passaram a exercer a sua grande actividade caseira na casa principal, do mesmo tipo que a minha, mas um pouco maior e fechada com paredes de bambu, particularidade que nunca havia observado nem em Chankin, nem em Kayun, nem em qualquer outro acampamento. Aqui, como aliás em todo o lado, encontrei um celeiro de milho, feito de três paredes, e o templo, simples construção de reduzidas dimensões cujo telhado desce até ao chão, fazendo as vezes de parede, e onde estão depositados os turíbulos.

O Sol está alto e as duas jovens mulheres de Bor foram ao encontro da outra esposa — a primeira e a mais velha —, que se encontrava debaixo de um telheiro rudimentar. Instalam-se em redor de uma fogueira feita dentro de três pedras e começam a preparar pães de milho. O grão, que cozeu durante muito tempo em água de cal — extraída de moluscos de água doce, esteve em repouso durante toda a noite nessa mesma água. Todos os dias, por volta das quatro da manhã, oiço as mulheres de Bor a lavarem cuidadosamente os grãos do milho e a triturá-los pelo menos durante duas horas.

Os Lacandons alimentam-se, sobretudo, de posole e de pinole, bebida feita de pasta de milho misturada com grandes quantidades de água, e da qual consomem vários litros por dia. De manhã cedo preferem as tortillas, especialidade que repetem à noite, se o dia de trabalho for violento.

Foi o caso de hoje; Bor voltou do seu campo de milho onde esteve desde a madrugada a limpar o terreno das ervas daninhas. Com pancadas regulares as mulheres espalmam entre as mãos as bolas de milho cozido, que estendem em forma circular, pondo-as, de seguida, em cima de uma placa de terracota por cima do fogo. Ficam prontas num instante e, quando comidas quentes, o seu sabor é bastante agradável. Eu conheço bem este pão índio, porque já há muitos anos que me alimento dele em todas as terras maias. O seu consumo é geral no México e somente os Lacandons fazem tortillas, que são cinco ou seis vezes maiores que em qualquer outro lado; mais suculentas, também, porque as mulheres misturam mandioca doce à pasta de milho. O facto é algo inesperado e, grande foi a minha surpresa ao oferecerem-me pela primeira vez, num caribal, mandioca doce cozida dentro de cinza. Os descendentes dos Maias, que descobriram o milho, também se alimentam, portanto, de tubérculos!

Os Lacandons cultivam três espécies de tubérculos: a mandioca doce, a batata e a couve cariba. A cultura da mandioca não é praticada nem pelos índios do Iucatão nem pelos da Guatemala e nunca é mencionada quando se fala dos antigos Maias. Mas, no entanto, os livros do Chilam-Balam fazem-lhe alusões.

A mandioca doce é um recurso alimentar interessante. Todos os povos que habitam as florestas da América do Sul vivem dela. A cultura deste tubérculo não oferece dificuldades. Pratica-se por meio de estaca e, numa mesma superfície, a sua cultura é muito mais rentável que a do milho. Infelizmente, precisa de onze meses para atingir a maturidade, enquanto para o milho o tempo necessário é somente quatro meses. Mas, em contrapartida, a mandioca pode ficar durante mais de um ano na terra, constituindo assim uma provisão alimentar viva que aumenta de volume sem qualquer cuidado especial, o que está longe de ser o caso do milho.

O lugar da mandioca na agricultura é mais que secundário entre os Lacandons. Aqui, o milho, logo seguido pelo feijão e pelas cucur-bitáceas (abóboras), trindade indissolúvel entre os Maias, constitui a base das sua alimentação. É importante insistir, como o fazem todos os autores, no papel fundamental da cultura do milho na civilização maia. Pode mesmo escrever-se, sem uma audácia por aí além, que é a este cereal que devemos a existência das grandes cidades sagradas.

A descoberta do milho ocorreu provavelmente nos altos planaltos da Guatemala, nas regiões onde cresce um milho selvagem, o teocinto, antepassado da planta cultivada. Ela transformou as tribos primitivas dos Maias, caçadores nómadas, em agricultores apegados à terra, acontecimento capital para a expansão da sua civilização. Sabe-se — e a história das sociedades confirmou-o — que a agricultura, ao mesmo tempo que sedentariza os grupos humanos, permite as grandes realizações colectivas. Racionaliza os esforços, assegura uma melhor subsistência e facilita os reagrupamentos, de onde nascem os aglomerados. Sabe-se também que o fenómeno urbano traz consigo o dinamismo necessário à criação e à evolução.

No caso dos Maias estamos longe do conceito de agricultura clássica dos historiadores, com a intervenção da charrua, dos animais de carga, etc. Paradoxalmente, estes grandes construtores estagnaram nas técnicas mais arcaicas, as da cultura em terra queimada e do pau de semeadora; e isso sempre ao longo da sua história. De dois em dois anos, o camponês maia abatia, com o seu machado de pedra polida, uma enorme extensão da floresta. Queimava as árvores e, neste novo terreno, plantava os grãos de milho com o seu pau de semeadora. Por falta de tratamento, o terreno tornava-se improdutivo ao fim de duas colheitas.

No seu campo de milho na orla da floresta, Bor procedia exactamente do mesmo modo que os seus antepassados, com a única diferença de que substituíra o machado de pedra por uma catana obtida em troca de qualquer coisa.

No Iucatão sobrevivem quinhentos mil índios que empregam estes métodos arcaicos.

Esta forma de agricultura pré-histórica caracteriza os grupos étnicos mais isolados e os menos bem organizados no plano económico e político, o que não era o caso dos Maias. Mas como é que uma técnica tão rudimentar, que reclamava tantos esforços e tanto tempo e que, pelo isolamento que impunha ao camponês, impedia toda a concentração de população, permitiu o aparecimento das majestosas cidades de pedra?

Desde a minha descoberta no Petexbatun que me debruço cada vez com mais interesse sobre este aspecto do problema maia. Vivi durante muito tempo a vida quotidiana dos homens do milho, no Iucatão e na Guatemala, nas cidades e nas milpas (campos de milho em terra queimada). Li relatórios de agrónomos e estudos dos especialistas da civilização maia acerca deste assunto. Hoje, ao admirar as mãos hábeis das mulheres de Bor, que dão forma à pasta tirada deste grão de vida, sinto-me capaz de reconsiderar o facto maia sob este aspecto agrícola essencial.

Durante vários milénios e com uma notável persistência, os Maias viveram em pequenas colinas, em grupos de quatro ou cinco cabanas, isoladas umas das outras por extensões de terreno mais ou menos vastas (quatro a nove hectares). Por cada cinquenta habitantes — cem em certos locais — existia um local de encontro para as cerimónias. Os centros religiosos mais importantes cobriam regiões de cerca de cem quilómetros quadrados. A população, desigualmente repartida, nunca atingiu uma grande densidade. Nos tempos pré-hispânicos parece ter sido equivalente à do Iucatão actual, dez habitantes por quilómetro quadrado, e mesmo a grande cidade religiosa de Tikal, que se estende por mais de cem hectares, não favoreceu grandes concentrações de indivíduos.

Nos pequenos centros de cerimónias, ponto de concentração dos diversos ramais de uma mesma região, vivia uma classe privilegiada de sacerdotes e de nobres, cujas habitações, em redor do templo, eram circundadas por maravilhosos campos de onde eles recolhiam o cacau, moeda preciosa que servia para as trocas, as cabaças, que serviam de recipientes, as sapotas, as árvores de fruta, as papaieiras e outras, que asseguravam durante todo o ano uma grande variedade de frutos. Quanto mais nos distanciamos destes aglomerados aristocráticos, mais a população tem tendência à disseminação.

Os grandes centros religiosos simbolizavam a união de todos os agricultores dos diferentes grupos dispersos numa grande região. Periodicamente, nos dias de festa ou de mercado, os camponeses acorriam aí vindos de todos os cantos do território, invadindo as grandes esplanadas que, sem dúvida, deviam prever tais reuniões da população.

É preciso ter-se vivido no meio dos índios das terras altas da Guatemala para se compreender a importância fundamental de um centro de cerimónias, hoje encarnado pela vila, com a sua praça do mercado e a sua igreja, em geral construída no local do antigo templo pré-colombiano. Só na vila de Chichicastenango, que conta algumas centenas de almas, trinta ou quarenta mil maias-quichés reúnem-se por altura de certas datas festivas, a fim de assistirem às grandes cerimónias religiosas. Para os dois milhões de índios desta região, o centro cerimonial é verdadeiramente a corte da sua sociedade, o órgão que distribui a todos o oxigénio vital, o local onde se fortalece o sentimento de se pertencer a um importante grupo étnico. Em mais nenhum outro lado o índio tem tanta consciência e cumpre com tanta regularidade os seus deveres religiosos; somente aí ele pode ter orgulho das festas sumptuosas, nas quais, em certa medida, participa.

No Iucatão a situação é sensivelmente a mesma. Por causa do espaço e das deslocações necessárias à cultura em terra queimada, os grandes centros habitacionais criados e impostos após a conquista pelos missionários espanhóis e em seguida desenvolvidos pelo Governo mexicano são hoje locais de atracção e de reunião. Todos os habitantes dos vilarejos dispersos de uma mesma comunidade encontram-se aí por altura dos mercados, das festas religiosas e dos ajuntamentos políticos. Substituíram os pontos estáveis e imutáveis que eram, para os seus antepassados, as grandes cidades sagradas pré-hispânicas.

Ora, os camponeses da Guatemala e do Iucatão são os primos direitos dos grandes Maias de outros tempos, e podemos bem imaginar, através do seu vivo exemplo, a existência destes grandes locais de encontro da época clássica. É, pois, perfeitamente lógico pensar-se que as cidades maias eram somente centros religiosos e não cidades onde residisse uma população de tipo urbano.

Mas o enigma persiste: os Maias são o único povo da história a ter desenvolvido uma grande civilização a partir de uma população de agricultores seminómadas. O facto é único e inexplicável...

Seriam eles na realidade somente agricultores seminómadas? Nos nossos exemplos da Guatemala e do Iucatão teria sido bom sublinhar a importância do acréscimo económico oferecido a estas sociedades indígenas pelo comércio e pelo artesanato, tanto no passado como na actualidade. As penas de quetzal e o cacau das terras baixas do Pacífico fizeram a riqueza da Guatemala no tempo pré-colombiano. Nestas mesmas épocas, o Iucatão era especialista na cultura do algodão e na tecelagem de panos, que exportava às dezenas de milhares.

Mesmo assim, quatro grandes perguntas ficam ainda sem resposta:

Por que escolheram os Maias instalar-se no território mais inóspito da América Central, onde os terrenos não são especialmente indicados para a cultura do milho?

Por que nunca tentaram estes inventores de génio melhorar as suas técnicas neolíticas de agricultura?

Como procederam para obter a mão-de-obra necessária à edificação das suas cidades sagradas?

E, bem entendido, quais teriam sido as causas que os levaram a abandonar este território, onde se haviam instalado solidamente?

A floresta ilumina-se de repente: eis o caribal de Kayun, relativamente próximo do de Bor.

Por um processo bastante estranho, foram as consequências do modernismo e o desenvolvimento do turismo que aproximaram estes dois proprietários de mulheres. Como no Peten, por causa do chicle, algumas pistas de aterragem rudimentares foram abertas nos cantos mais selvagens da floresta do Chiapas. Não por causa do chicle, que aqui se explora esporadicamente, mas de modo a permitir às porosas companhias trazerem mão-de-obra especializada no estudo e na pesquisa de madeiras preciosas, em especial o cedro. Estas tentativas de exploração racional foram, em breve, abandonadas e, no decorrer das estações, a floresta voltou a tomar posse dos seus bens. Contudo, há já alguns anos que pilotos destemidos aceitam aterrar aí durante algumas horas com os seus pequenos monomotores de quatro lugares, remendados por todos os cantos, mediante uma generosa remuneração. Turistas endinheirados, amadores do imprevisto e do autêntico, aceitam por vezes os riscos deste género de voo com o fim único de saborearem a vizinhança da grande floresta e a secreta esperança de poderem ver lacandons. O campo chamado El Cedro é, agora, quando o tempo o permite, o único praticável para avionetas.

Quantas hipóteses de possíveis ofertas há para um lacandon quando desce do céu este reflexo de riqueza! Conta-se nos acampamentos que alguns estrangeiros oferecem facas, catanas e, por vezes, balas de carabina; e eis que inopinadamente estes homens, que viviam separados uns dos outros há já quatro séculos, se sentem impelidos de maneira irresistível para este pólo de atracção que é um campo de aviação, local sagrado de um novo género. Um após outro, cinco ou seis caribales surgiram nos arredores O fenómeno não se generalizou e também não é definitivo, porque os Lacandons nunca ficam mais de três ou quatro anos no mesmo acampamento. Mesmo assim, isto não deixa de ser um fenómeno interessante para os sociólogos.

Admiro-me que Kayun não tenha podido resistir a este género de fascinação. Sou amigo deste diabo de cabelos desgrenhados e sinto-me feliz por estar em sua casa, no meio da sua numerosa prole. É mais velho que Bor e, como ele, possui três mulheres muito jovens; orgulha-se disso, e não dá mostras do menor sinal de ciúmes. Penso que ele já deve ter atingido a idade da sabedoria, e encontra-se um pouco mais acima da condição de proprietário de mulheres.

Num plano pessoal, aprecio bastante o seu desinteresse. Conheço o sentimento de um visitante quando chega a um novo agrupamento humano, por já o ter sentido eu próprio: imagina que é o centro do mundo e espera reacções espontâneas e gratuitas. Um grande número dos nossos livros está cheio de descrições de amizades livremente oferecidas e menciona ofertas incalculáveis. Mas quando temos oportunidade de nos integrarmos numa sociedade primitiva, breve nos damos conta de que não existe qualquer oferecimento que, implicitamente, não exija outro em troca e, às vezes, até mais importante. Um presente de valor, quer seja oferecido por um homem da tribo ou por um vizinho de um outro grupo, é um tormento para o indígena; aceitando-o compromete-se a retribuir com qualquer outra coisa ao «generoso dador».

O estrangeiro, o branco, é de tal modo considerado como um indivíduo à parte das regras usuais e regulamentares que a reciprocidade não é encarada como obrigação. Ele é simplesmente um objecto de curiosidade e cupidez. Tudo será feito de modo a poder subtrair-se-lhe o máximo: intimidação, mentira, adulação e falsa afeição. Se isso não der resultado, fica o roubo como última e mais simples solução. Já passei várias vezes por todas estas provas, até com os Lacandons. Aconteceu-me mesmo ter de lutar com um deles, porque queria tirar-me à força a minha pilha, que eu tinha recusado dar-lhe. Depois, rimo-nos os dois; ele pretendia ter agido muito normalmente porque dizia que «era preciso tentar...»

No plano da psicologia individual estes homens possuem uma intuição quase genial. Quando tem o primeiro contacto com um povo desconhecido, o estrangeiro sente sempre uma certa emoção e algumas vezes até inquietação. Os indígenas apercebem-se tão bem disso que tentam imediatamente tirar o melhor partido da situação. É exactamente o que acontece aos pobres viajantes que saltam subitamente do seu pequeno avião para o meio da selva. Assim que ouvem o motor as mulheres são as primeiras a precipitarem-se para o campo. É o maná que desce do céu! Mas estes turistas são, na sua maioria, pessoas pouco preparadas para este género de aventuras e de contactos humanos; raros são os que trazem presentes para os índios que esperam encontrar. Assiste-se então a este espectáculo divertido: as mulheres lacandons, em geral reservadas, transformam-se numas fúrias. Disputam entre si as pequenas bugigangas que as desamparadas visitantes procuram febrilmente nos seus sacos e tentam tirar-lhes as bagagens e até os anéis que trazem nos dedos. Com os homens são ainda mais eficazes. Generaliza-se o pânico, e estas visitas, previstas para algumas horas, duram, por vezes, alguns minutos, para grande alívio do piloto, que se põe sabiamente à distância. A ele só lhe interessa escapar o mais depressa possível aos mosquitos e receber o seu dinheiro, a fim de o ir gastar segundo o humor do momento. Felizmente para todos, as escalas deste género são bastante raras.

 

Quando a lisonja, a intimidação e o roubo já não dão resultado, o Lacandon recorre à técnica do presente. Demora mais tempo, mas é rentável, a julgar pelas minhas próprias reacções e pelas confidências de Chankin.

Durante uma das minhas numerosas visitas ao acampamento mandou um dos filhos oferecer-me «espontaneamente» o seu arco e as suas flechas. Decidi então jogar com as mesmas cartas até ao fim e, quase à partida, dei a minha carabina, como presente, ao rapaz. Era o que o pai queria. Mas, no entanto, fiz ver a Chankin que tinha percebido a manobra. Riu-se a bandeiras despregadas, pensando que este estratagema era infalível e até mesmo mágico, porque eu, que já o conhecia bem, apesar de tudo lhe tinha dado a minha carabina...

— É verdade — disse-lhe — mas ela é para o teu filho, e eu faço questão em que ele a conserve só para ele...

Foi a minha vez de rir perante o ar de espanto de Chankin.

Com Kayun tudo se passou de maneira diferente. Conheci-o por altura da minha primeira viagem ao Chiapas, há dez anos, ainda ele habitava outro acampamento. Quando lá cheguei parecia um vagabundo, sujo, esfomeado e desprovido de tudo. Acolheu-me, alimentou-me e forneceu-me víveres para eu chegar às margens do Usumacinta, onde deixara a piroga. Tentei oferecer-lhe, à laia de agradecimento, a minha belíssima faca de mato de lâmina de aço, que ele tanto admirara. Foi então que teve uma inesperada reacção; nunca um lacandon agiria assim num caso destes; recusou, suspirando:

— Vais ter mais necessidade dela que eu...

Nesta solicitude afectiva, própria a todos os viajantes da floresta em dificuldade, como era o meu caso, esta resposta de Kayun tocara-me profundamente, tanto mais que os Lacandons, que não conhecem a metalurgia, sabem julgar com uma vista de olhos a qualidade de uma faca. Uma boa lâmina é para eles um capital precioso e confere-lhes prestígio. A partir desse dia considerei Kayun como um benfeitor.

Eis-me, portanto, na companhia de Bor no caribal de Kayun. O dono e senhor destes terrenos, bem instalado no fundo da sua rede, acolhe-me com um largo sorriso. Mandou-nos buscar ontem por um dos filhos, que insistiu para que eu viesse. Ignoro a razão... Voltei a ver Kayun depois do nosso primeiro encontro e agradeci-lhe como deve ser, oferecendo-lhe uma faca, uma carabina e munições. Mas que me quererá ele agora? Estará a atravessar alguma dificuldade e espera que lhe valha? Mas, com aquele sorriso, duvido. Então? Quererá que eu me instale novamente no seu caribal? Tenho receio e desejo-o ao mesmo tempo... Não, é preferível que não volte lá; por causa de Nakin...

Nakin é uma das três jovens mulheres de Kayun, talvez com quinze ou dezasseis anos. Quando a vi pela primeira vez, há cerca de três semanas, fiquei logo preso à sua graça e beleza incomparáveis. Vagueava docemente nas suas ocupações, com um eterno sorriso. Nem sequer me passara pela cabeça ultrapassar o estado de contemplação perante esta bela mulher, mas Nakin começou logo a manifestar um grande interesse pela minha pessoa. Procurava todos os instantes para estar comigo e, confesso, não ter sido de todo insensível a esta vizinhança. Uma noite veio ter comigo à rede onde eu dormia, pegou-me na mão e fez-me compreender que estava pronta a seguir-me, se eu o desejasse! Fiquei estupefacto e feliz ao mesmo tempo. Durante um instante comecei a sonhar... Já me via com a minha bela companheira fugindo através da floresta para alcançar as margens do Usumacinta, a cinco dias de marcha daqui. Que aventura mais louca... Mas consegui refazer-me. Nem podia sequer pensar em enganar Kayun, que me recebera como um amigo...

E Nakin era um problema repleto de dificuldades: de facto, tudo nos separava, e ela mal sabia quatro palavras de espanhol. A sua vida era no caribal de Kayun e a minha era noutro sítio, fora da floresta. Mesmo uma breve aventura que fosse, seria demasiado. E, para evitar, doravante, ficar preso a laços imprevisíveis, decidi deixar o acampamento na manhã seguinte, resolução que me levou até Bor.

O olhar perspicaz de Kayun havia descoberto este esboço de romance secreto entre Nakin e eu, e divertira-se imenso. Nunca mostrou o mínimo sinal de ciúme. Terá compreendido as razões que me levaram a deixar precipitadamente os seus domínios? Chega-me até a parecer que ele estava na disposição de dar o seu acordo a este idílio que acabara de nascer... Enfim, nunca mais me instalarei aqui.

Bor e eu sentámo-nos numa rede junto à de Kayun. Este deu algumas ordens breves e Nakin, desorientada, precipitou-se e depositou à minha frente uma cabaça cheia de um líquido espesso e azulado. Sinto-me um pouco atrapalhado e toda a gente se ri simpaticamente, envolvendo-nos, a mim e a Nakin, na alegria geral que reina no caribal. Todos recebem a mesma bebida indefinida. Molho os lábios nela; é cacau misturado com pasta de milho diluída em água. Esta preparação cheira muito a baunilha e acho-a agradável. Kayun confessa-me a verdadeira razão do seu convite: beber, em conjunto, cacau, segundo o costume dos seus antepassados; não consigo saber mais nada, mas esta bebida faz-me insensivelmente voltar às minhas preocupações maias.

Etimologicamente, cacau provém da palavra nahuatl, como cocoatl, água-de-cacau, que deu a palavra «chocolate». Foi Cortês quem trouxe o cacau para a Europa; tinha-o bebido na corte do imperador Moc-tezuma, que lhe afirmara tratar-se da «bebida dos deuses».

O cacau é de origem maia. Não cresce nos planaltos do Anahuac e os Astecas empreendiam verdadeiras expedições às terras quentes da América Central para daí trazerem grandes quantidades deste alimento tão precioso, que só se bebia por ocasião das grandes festas. Foi nessa altura que eles ouviram o vocábulo maia que significava cacau, chacauhaa, e transformaram-no na palavra cacohuatl.

De onde é que Kayun extrai o cacau? Provavelmente das terras baixas do vale do Usumacinta, onde existe, como no Peten, um cacau silvestre (Jheo-broma bicolor).

Mais uma vez as aventuras vividas nestas regiões e as numerosas obras que li se completam. No Quintana-Roo, numa altura em que atravessava uma povoação hostil onde ninguém me quisera ajudar, vendendo-me víveres ou indicando-me o caminho a seguir, ofereceram-me, numa casa, cacau. Digamos antes que me obrigaram a beber uma cabaça cheia deste preparado. Aprendi, mais tarde, que este gesto correspondia a um ritual obrigatório quando morre alguém numa família. Nas tribos da Guatemala, as festas, as cerimónias mágico-religiosas e todos os factos sociais são precedidos por uma oferta ritual de cacau; todos os participantes são obrigados a beber, após terem escutado religiosamente a prédica, mitológica mas cristianizada, da origem desta planta divina.

Os cronistas espanhóis do século XVI, Las Casas, Landa, etc, referem- se, todos, ao intenso tráfico de cacau nos territórios maias. As sementes desta planta serviam mesmo como moeda para as trocas. Não se guardavam porque, mais cedo ou mais tarde, iriam servir para preparar as bebidas sagradas. Sempre a propósito do cacau, os livros do Chilam-Balam contam que um só membro da dinastia dos Xiu (fundadores de Uxmal) escapou à chacina dos seus às mãos da família rival dos Cocom; deixara precisamente a região para ir comprar cacau às Honduras. As primeiras pirogas maias que Cristóvão Colombo viu ao largo da ilha de Guanajo pertenciam a mercadores de cacau. Sabemos também que o preço de um escravo se fixava em cem grãos desta planta. O grande Thompson chega mesmo a dizer que os Maias imaginaram talvez o seu sistema aritmético aprendendo a contar os frutos do cacau. A sociedade maia contava até com falsifi-cadores nas suas fileiras e Landa descreve-nos o processo utilizado para a descoberta dos grãos vazios e cheios de areia. Este autor narra-nos igualmente as festas que os proprietários das plantações de cacau eram obrigados a realizar durante o mês moan, que lhe era reservado.

No decorrer destas cerimónias religiosas ninguém se embriagava, facto que merece especial relevo. É, aliás, único nos anais maias.

Ao contrário dos Astecas, que puniam com a morte todo o indivíduo surpreendido em estado de embriaguez, os Maias podiam beber até cair para o lado na altura das festas sagradas. Este costume subsiste ainda na Guatemala.

Thomas Gage, o primeiro escritor de língua inglesa da Nova Espanha, sacerdote nas terras maias do Chiapas e da Guatemala desde 1625 até 1637, conta-nos com espírito as dificuldades que lhe causavam os seus fiéis, que se obstinavam em beber cacau durante a missa. Era um hábito pagão tão inconveniente para a Igreja Católica que o bispo do Chiapas acabou por proibir o seu consumo na diocese!

Uma tradição milenária regia as relações dos Maias não só com o cacau mas também com as árvores em geral. Todos os testemunhos o confirmam, quer pertençam às descrições mitológicas, quer à história da conquista ou à etnografia. Lembro-me do x'men (sacer-dote-feiticeiro do Iucatão) que pedia respeitosamente a uma árvore balché (Lonchocarpus longistylus Pittier) licença para tirar dela pedaços da sua casca. Isso servia-lhe para fabricar, juntamente com mel fermentado, uma bebida alcoólica que se destinava a uma cerimónia para pedir chuvas. Quando um maia do Iucatão abate árvores para preparar o seu campo de milho, tem o hábito de, previamente efectuar uma série de oferendas, como perdão para o seu gesto brutal.

Também no Iucatão existe uma outra lei, ainda em vigor nos nossos dias, que diz que as terras não cultivadas e as casas desabitadas se tornam automaticamente propriedade da comunidade; por outro lado, todas as árvores, de fruto ou não, continuam a pertencer a quem as plantou, mesmo se tiver abandonado a região há vinte anos!

Entre as essências mais procuradas da floresta, o primeiro lugar pertence à árvore do copal, que segrega uma seiva odorífera utilizada como incenso. O copal foi desde sempre a oferenda básica de todos os rituais religiosos das civilizações meso-americanas. Outras seivas podiam ocupar o lugar do incenso — as melhores provinham todas das florestas maias — e estabeleceu-se uma hierarquia nas oferendas, de que ainda hoje subsistem vestígios entre as tribos dos planaltos da Guatemala. A seiva de luxo era o cauchu, destinado aos rituais mais importantes. Este produto típico do Peten tinha um tal valor mágico que até se serviam dele para fazerem as bolas utilizadas no famoso jogo da péla, altamente sagrado, cuja existência é atestada em todas as civilizações da América Central desde os primórdios da época maia. Para se fabricar uma bola eram precisos quatro quilos de cauchu virgem de uma hévea especialmente sangrada para esse efeito.

Os Maias tiveram o monopólio deste produto essencial. Era de tal modo precioso que eles, provavelmente, reforçaram a sua qualidade, dando-lhe um imprimatur mágico-religioso, uma espécie de marca de autenticidade sagrada...

Isto leva-nos de novo ao grande problema da fixação dos Maias no Peten. Por que teriam escolhido este território inóspito, coberto por florestas espessas e propícias à cultura do milho, que era, portanto, a base da sua alimentação?

Se reflectirmos bem nisto, verificamos que eles não se iam embrenhar no coração de uma floresta virgem hostil, mas sim integrar-se num reino vegetal único por causa das suas essências tão procuradas. Claro! Os Maias não se instalaram no Peten para aí cultivarem milho, mas para explorarem esta floresta e extraírem dela, racionalmente, o incenso, produto ritual de um alto valor económico. A sua presença neste território está assim justificada, tanto mais que eles procuravam estes produtos rituais de que as monstruosas máquinas teocráticas da época tinham urgente necessidade. Cada cidade sagrada especializada numa cultura particular — o cacau, a recolha de seivas valiosas — exportava estes produtos de consumo religioso; de um lado, para o Iucatão, provavelmente para Dzibilchaltun, a maior cidade pré-colombiana da península, situada a alguns quilómetros do mar (é o único local que apresenta vestígios de uma ocupação permanente durante mais de três mil anos e onde foram encontradas as provas dos contactos contínuos com os Maias clássicos do Peten); por outro lado, em direcção aos altos planaltos da Guatemala. As cenas pintadas no vaso de Chama, cidade-limite no alto Chixoy, entre as terras baixas e as terras altas, seriam a representação de uma expedição comercial. Numerosas caravanas atingiam também Kaminal-Juyu na Guatemala, cidade fundada no século IV, por motivos comerciais, pelos emigrantes do Teotihuacan.

A importância do incenso, e do copal em especial, na vida religiosa, tanto antiga como actual, é um facto estabelecido. A exploração racional da seiva também o é igualmente. Já Landa nos dizia no século XVI: «Eles (os Maias) cultivam muitas árvores de incenso para os ídolos e obtêm-no golpeando o tronco, a fim de que a seiva escorra. A árvore é fresca, grande e muito frondosa...»

Oviedo, por seu lado, ao descrever a vila de Sisimato, a nordeste do Iucatão, escreve: «Num espaço de duas léguas encontram-se locais nivelados e cobertos por árvores de incenso, muito bem cuidadas, porque este incenso é de bom comércio; é expedido para todo o lado para perfumar os templos e os oratórios e para ser utilizado nos sacrifícios e rituais mortuários [...] Não existe mais incenso em todo o território a não ser aqui. A fim de o extrair, fazem um buraco na árvore, com a grossura de um punho, e, nesta cavidade, o líquido escorre pouco a pouco e coagula, transformando-se em incenso.»

Nos Maias-Quichés da Guatemala, em Chichicastenango, onde vivi durante seis meses, são vendidas no mercado, todos os domingos, algumas toneladas de incenso. Este copal é transportado às costas de homens desde as longínquas terras baixas do Peten. Estes índios reservam oitenta por cento do seu orçamento para a compra do incenso!

... O cacau oferecido por Kayun fez com que eu divagasse bastante... Mas, para mim, é importante a explicação da presença dos Maias clássicos no Peten; penso também que se eles conseguiram construir cidades tão imponentes foi graças aos recursos económicos que este território lhes oferecia. Portanto, prossigo o meu incessante inquérito, embora tenha fortes dúvidas de encontrar um dia a chave da organização social dos Maias provavelmente única na história das civilizações, assim como as causas do abandono das grandes cidades e da desaparição deste povo.

Nakin estende-me outra dose de cacau... Bela e próxima Nakin, que estás tão longe das minhas preocupações...

 

                   O NÚMERO 13 E O TEMPO MÁGICO

Não há dúvida de que tenho uma amiga, a primeira mulher de Bor, de nome Nabor. A sua idade é indefinida. Trinta anos? Cinquenta? De qualquer modo, tem a aparência de uma mulher velha, e é considerada como tal.

Contrariamente ao que pensava quando me instalei aqui, ela possui autoridade não só sobre Bor mas também sobre as outras duas esposas. Nunca se esquece de mim na hora das tortillas ou da caça e intervém sempre que Bor, instigado pela mulher mais nova, me tenta extorquir qualquer coisa; conseguiu até voltar a dar-me uma pequena panela que ele me surripiara após um namoro de vários dias. Manda-me lenha e água para cozinhar, porque eu faço «fogo à parte», como é da praxe, e confesso que este costume me convém

bastante.

Nabor é mãe ou tia de Nakin? Aceitaria esta hipótese de boa vontade e isso explicaria a sua atitude em relação a mim. Porque é preciso coragem para agir como ela o faz, quer dizer, não indo ao encontro dos interesses do caribal.

A dificuldade de determinar o grau de parentesco entre as duas mulheres explica-se facilmente. Os nossos termos, que definem com precisão a posição de cada membro da família, pai, filho, primo, tio, etc, não têm aqui equivalentes. A estrutura familiar dos Lacan-dons é diferente da nossa. Um pai é sempre um pai, pensamos, e o irmão da mãe é sempre tio... Para se situarem os membros de uma família pertencentes a outra etnia diferente da nossa, uma tradução literal deveria ser o bastante: quando, por exemplo, se viaja pela Inglaterra, sabemos que pai se diz father, e tio, uncle; não existem problemas.

Mas isto torna-se muito mais complexo em relação a povos sem escrita. Após uma observação directa na família que pertencia a um povo onde estive durante algum tempo, uma criança indica-me o nome que emprega para designar o pai; se numa outra família deste grupo, e nas mesmas condições, encontro este termo, apanho o primeiro fio à meada. Posso escrever nas minhas notas, perante a palavra pai, o nome indígena. Contudo, depressa verifico que essa mesma palavra é aplicada a outros membros da família, como, por exemplo, ao irmão da mãe. As minhas pesquisas levar-me-ão a concluir que, neste grupo determinado, a criança considera o seu tio materno como se fosse o próprio pai. Um etnólogo necessita de muita paciência e de um profundo conhecimento dos homens que estuda para fazer uma pesquisa acerca dos graus de parentesco e estabelecer as leis que os regem.

No campo específico dos Lacandons eu beneficiava dos trabalhos de Soustelle e de Tozzer. O estudo deste último, publicado em 1907, tinha-me ensinado que estes homens davam o título de yum ao pai, ao tio paterno e ao filho mais velho do tio mais idoso. O irmão, a irmã e os primos são igualmente designados com o mesmo termo.

Ainda não consegui, apesar destes dados, determinar os laços que existem entre Nabor e Nakin. Devia ter-me debruçado primeiramente, com muito cuidado, sobre os problemas respeitantes às regras que regem os graus de parentesco. Eis-me, pois, mergulhado na mais perfeita ignorância quanto ao parentesco destes dois seres. A minha amiga chama-se Nabor, cujo nome significa «casa daquela que distribui a comida». Há ainda uma particularidade da cultura dos Lacandons que complica tudo: os nomes próprios.

Estes são dados segundo a ordem dos nascimentos. Assim, ao primeiro filho dá-se o nome de Kin, «Sol»; à primeira filha Nakin, ou «Casa do Sol». O segundo filho toma o nome de Kayun, «Deus Cantante», e a segunda filha o de Nakayun; o terceiro filho Chankin, «Pequeno Sol», e a terceira filha Nachankin, etc.

Eu sempre me preocupara com os nomes familiares, na esperança de conseguir compreender melhor a antiga organização social. Esperava com isto aproximar-me mais das ligações existentes entre os antigos Maias, mas tudo foi em vão. Nada do que eu fazia tinha o ar de inovação. Os trabalhos de Tozzer assinalam que «cada ramo de família possui o nome de um animal, o qual é transmitido pela linha masculina; o nome do animal pode estar associado ao de um local. O animal totem chama-se yonen, termo geral para designar os parentes». Tudo isto era interessante, mas bastante vago, e foi no seguimento das minhas pesquisas que me apercebi disso a propósito do yonen.

Trinta anos após Tozzer, Soustelle abordou o problema com mais rigor e técnica e conseguiu destrinçar quatro clãs nesta sociedade índia, possuindo cada um cinco ramos designados pelo nome de um animal diferente. Contudo, os seus dados não eram categóricos nem definitivos.

As partidas que estes animais tótemes me pregaram são incríveis! Apareciam onde eu menos os esperava e eram inexistentes quando estava certo de os encontrar. E o que os Lacandons contam acerca deste assunto estabelece tal confusão que não se conseguem encontrar respostas positivas.

Quando estava com Chankin, vi um dia um pecari a passear com um dos filhos daquele através do caribal. Pensei que haveria um festim nesse dia. A sua familiaridade com a criança indicava-me tratar-se de um animal totem. Chankin contou-me que aquele pecari era simplesmente o yonen do seu filho.

— E o teu também — retorqui-lhe.

— Não — assegurou-me Chankin —, pertence só ao meu filho, é o animal que o protege...

Este costume de possuir um animal protector, um anjo da guarda, é, numa certa medida, muito frequente entre os Maias Tzeltales e Tzotziles do Chiapas. Chamam a estes animais os nahuales, e afirmam que cada indivíduo possui um desde nascença, mas que não o conhece. Este duplo animal manifesta-se acidentalmente no decurso de um encontro fortuito ou de um sonho. O yonen pecari do filho de Chankin era, portanto, mais um nahual que um animal totémico.

Perante o interesse que eu manifestava pelo animal, Chankin, que ignorava, evidentemente, aquilo que eu procurava acerca dos parentescos totémicos, conduziu-me à sua cabana. Ao fundo desta, num canto escuro e húmido, mostrou-me diferentes animais empalhados: um quincaju, um coati e um macaco com a cabeça branca. Afirmou-me tratarem-se de brinquedos, mas ainda hoje tenho as minhas dúvidas.

Como todas as noites, Bor, as suas três mulheres, as crianças e os genros estão reunidos à minha volta. Procedemos ao ritual da gravação. A humidade não me poupou as pilhas e os registos não são de muito boa qualidade, mas não me importo. Com isto disponho de um meio único de informação. Em todos os grupos étnicos, os cantos são de uma riqueza documental muito grande. Lembro-me de um grande número de informações complementares e bastante interessantes que consegui recolher de cantos gravados entre os Dayaks do Bornéu, quando, tranquilamente, os traduzi.

Tive grandes dificuldades em fazer as primeiras gravações com Bor. A simpática Nabor foi a primeira, depois de uma série de caricatas entrevistas e gargalhadas gerais. Depois, aproximou-se resolutamente do microfone e entoou o «seu» canto com uma voz que a tradição queria tremida. Era uma litania interminável, feita de uma só frase que aparecia continuamente numa cadência perfeitamente monótona. Depois de Nabor, todos os membros do caribal se decidiram, e as noites nunca mais foram longas. Cada um queria ser gravado e ouvir-se uma, duas e três vezes... Os Lacandons escutavam sempre maravilhados, contrapondo à audição comentários apaixonados e gritos de alegria.

Eu participava, contentíssimo, na euforia colectiva e era com cuidado que escondia a minha decepção. Estes cantos nada revelavam de essencial acerca da vida colectiva ou amorosa, nem sobre os trabalhos dos campos ou os rituais religiosos...

O maior sucesso era a canção do macaco, cantada pelo segundo genro de Bor. O assunto era pobre:

«O macaco na árvore ri, esfregando a barriga. Na árvore o macaco ri, esfregando a barriga. Esfregando a barriga, o macaco ri na árvore, etc.»

Todo o Lacandon possui a «sua» canção e parece não conhecer outra. Mas, no entanto, Bor, que já teria gravado uma dois dias antes, anuncia-me nessa noite com grande ênfase que se decidira «dar-me» outra. Murmúrios impacientes e admirativos à minha volta. O título? «O Fim do Mundo». E eis que ele começa uma melopeia absolutamente diferente das precedentes. Descreve o cataclismo dilu-viano que se abate sobre a floresta, pondo ponto final a toda a vida. A assistência está muda, em completo silêncio... Volto a passar a fita no mais profundo recolhimento. Depois, as brincadeiras e a alegria começam, de novo, a animar o ambiente.

A jovem mulher de Bor, instigada por seu marido, decide-se, pela primeira vez, a interpretar o «seu» canto intitulado: «O Vento». E começa outra vez o tom monótono, repetido por uma voz anasalada. Finalmente acaba. A noite já vai avançada e todos se retiram para dormir. Guardo preciosamente as minhas fitas nas caixas e coloco o gravador no seu saco. Já resistiu, até agora, aos mais duros tratos e foram muitos os cuidados que ele me inspirou nas marchas difíceis em que se tropeça de três em três passos e se escorrega continuamente! E a quantos esforços suplementares não me obrigou! Para fazer a travessia, a nado, do Lacantun vi-me forçado a amarrá-lo à cabeça.

Volto para a minha cama de rede e deixo-me escorregar para dentro do mosquiteiro, sonhando com essa noite. Que grande surpresa foi aquele «Fim do Mundo» de Bor! E que título! Insensivelmente transporta-me até à minha maior preocupação: a desaparição dos grandes Maias... Esconderão estes cânticos alguma coisa de essencial? Aparentemente, não; e, a não ser o de Bor, que descreve a floresta submersa por um dilúvio, dificilmente se podem apelidar de cânticos estas frases monótonas, repetidas indefinidamente. Cada indivíduo possui o seu, e parece dar muita importância a isso. Tozzer já assinalara, há muitos anos, que todos os lacandons possuem um canto particular, directamente ligado ao animal do qual a sua linhagem tem o nome. Seja; registei o cântico do macaco, da cabra e do tigre; mas que significa o do roseiral ou o do vento? Uma ideia nova atravessa-me, subitamente, o espírito. Sim, são os títulos destes cantos que têm importância. Murmuro para comigo mesmo que «não é possível...» Levanto-me precipitadamente da rede, enrodilhando-me no mosquiteiro. Consigo chegar ao saco e tiro dele as caixas com as bobinas e, à fraca luz da minha lanterna, verifico febrilmente os títulos, escritos por colunas nas tampas das caixas. E, num repente, tomam uma singular intensidade: serpente, crocodilo, roseira, macaco, cabra, flor, casa, vento, todos os nomes do calendário mágico dos antigos Maias! Eis-me de novo embrenhado no inferno dos calendários; um turbilhão...

Quando, se aborda o problema pela primeira vez, o sistema dos calendários maias parece muito complicado. Mas estes instrumentos de contar o tempo desempenharam um lugar tão importante nesta civilização que é impossível não se entrar, por completo, no seu campo.

O calendário mágico teve um papel essencial. Nós temos a sorte excepcional de ainda hoje o poder estudar, não somente graças aos cronistas espanhóis do século XVI, mas também no próprio país de origem, pois ainda é utilizado entre as tribos índias da Guatemala. Trabalhei bastante neste campo e faço mal em falar de inferno, porque, verdadeiramente, até foi apaixonante.

O seu princípio é simples: os duzentos e sessenta dias que o compõem são o resultado da reunião de uma série de vinte dias, todos com nomes diferentes, e de uma série de treze números que se sucedem de um a treze. Os dias e os números começam ao mesmo tempo e seguem-se paralelamente ao longo de treze meses até ao momento em que o número um encontra novamente o primeiro dia do primeiro mês Imix, quer dizer, durante duzentos e sessenta dias.

Eis os primeiros meses deste calendário:

 

   Primeiro mês  Segundo mês       Terceiro mês

 

       1 Imix           8 Imix                     2 Imix

       2 Ik                     9 Ik                    3 Ik

       3 Akbal                 10 Akbal             4 Akbal

       4 Kan           11 Kan                    5 Kan

       5 Chichan       12 Chican                6 Chican

       6 Chimi                 13 Chimi             7 Chimi

       7 Manik                 1 Manik              8 Manik

       8 Lamat                2 Lamat             9 Lamat

       9 Muluc                 3 Muluc            10 Muluc

     10 Oc           4 Oc              11 Oc

     11 Chuen              5 Chuen          12 Chuen

     12 Eb            6 Eb              13 Eb

     13 Ben 7 Ben         1 Ben

 

       1 Ix      8 Ix              2 Ix

       2 Men            9 Men                 etc.

       3 Cib            10 Cib      

       4 Caban               11 Caban

       5 Eznab                12 Eznab 

       6 Canac                13 Canac

       7 Ahau                    1 Ahau

        

Qual é o significado profundo deste calendário mágico? A sua análise tentou numerosos pesquisadores, pois ele é bem o pilar de todo o edifício maia.

O sábio alemão Schultze Jena julgou compreendê-lo a partir do facto de serem precisas nove luas a uma mulher para dar à luz uma criança. É por esta razão que ele vê no número duzentos e sessenta um número antropolunar, «que seria o número calendário mais antigo, inspirado directamente pela observação da gestação na mulher». Ora ele sabe que nove luas completas dão mais que duzentos e sessenta dias e que a gravidez dura duzentos e oitenta. Mas não se preocupa com isso e arredonda simplesmente para duzentos e sessenta dias, de modo a que a sua demonstração seja válida. Se seguirmos o seu raciocínio, é de esperar que vejamos bem colocado o número nove como constituinte essencial deste calendário. Ora isto não é a verdade; trata-se do número treze e do número vinte.

A presença do vinte explica-se facilmente, na medida em que nós vivemos numa sociedade que empregava para os seus cálculos o sistema vigesimal e que fez do número vinte a representação do homem.

Mas o treze, esse famoso treze? Segundo as próprias palavras do nosso autor, continuamos com «o grande desconhecido do calendário indígena». Como o explica ele? Dividindo duzentos e sessenta por vinte, o número dos dias deste calendário mágico. É simples, muito simples até; tanto mais que os Maias, que utilizavam os «casamentos» sob a forma de multiplicações e que empregavam igualmente a adição e a subtracção, nunca faziam uso da divisão. Feliz com a sua dedução, o sábio acrescenta: «Fecundo e engenhoso foi o espírito que dividiu pela primeira vez estes dois números e utilizou o resultado, treze, como norma de uma sequência numérica, reservando vinte para a série dos dias». Eu sou um grande admirador dos trabalhos de Schultze Jena, mas, acerca deste ponto preciso, julgo que está enganado. Escamoteou literalmente o famoso treze misterioso dos Maias. Perante o insucesso dos seus predecessores, pegou no problema ao contrário, partindo do resultado, para dar às suas explicações um ar de aritmética moderna, mas na realidade bastante simplista. É evidente que este número capital não é o produto de uma divisão feita inadvertidamente.

Apesar desta demonstração, que pretende ser engenhosa, o número treze continuava a ser o desconhecido por excelência. É a base do edifício maia, já o dissemos, e todas as análises, todos os cálculos que dizem respeito a esta civilização recaem sobre ele. O ponto de partida da cronologia inclui este número: fim do baktun treze! Decididamente, tornava-se para mim uma verdadeira obsessão.

Comecei, incansavelmente, a esgotar todas as fontes de pesquisa. Como se tratava de um número essencial de todo um sistema calendário, talvez a Lua tivesse também qualquer coisa para dizer; não podia, portanto, negligenciar esta eventualidade. Schultze Jena não escolhera o seu número nove ao acaso...

Voltei, antes de mais nada, às fontes das nossas próprias superstições; aquelas que fizeram do número treze um objecto de maldição. Começou na história santa. No dia da Ceia encontravam-se reunidas treze pessoas — Cristo e os doze apóstolos. Entre estes estava escondido Judas, o traidor que vendeu Cristo nesse dia. Era ele o décimo terceiro, o pássaro de mau agouro, o que transformou a face do mundo. Este acontecimento passou-se na manhã da crucificação, uma sexta-feira, o que explica que tenha chegado até aos nossos dias este lado mágico, benéfico ou maléfico segundo os casos. O facto de Cristo estar rodeado por doze apóstolos não é certamente fortuito.

Dediquei um pouco mais de atenção ao velho costume dos nossos mercados de província, onde os ovos se vendem em dúzias de treze. De dedução em dedução, fui-me aproximando das fontes de superstição, até chegar aos Caldeus. Foi aí que encontrei uma explicação inicial e calendária do número treze. Os Caldeus sabiam que um ano solar contava doze luas e, por isso, dividiram o seu ano solar em doze meses, provindo daí a origem do seu sistema duodecimal. Como um ano solar conta na realidade mais de doze luas, o atraso acentuava-se todos os anos. Os Caldeus decidiram então juntar de seis em seis anos um mês suplementar ao seu ano solar, do que resultou haver regularmente um ano de treze meses. Esta intervenção de um elemento a mais no decurso do tempo não se fazia sem extremas precauções de ordem mágica e religiosa, porque representava um grave perigo.

Seguro da evidência deste novo dado que me parecia fundamental, voltei ao problema do calendário maia, com o seu inexplicável treze, tomando isto como uma hipótese de trabalho. Foi um falhanço total.

O cálculo das luas nos Maias nunca originou a criação de um calendário lunar tal como fora concebido pelos Caldeus. Eu tentara resolver um problema ameríndio com a óptica de um ocidental. Embora de modo diferente, cometera o mesmo erro do meu ilustre predecessor. Decidi-me então a analisar um por um todos os factos maias conhecidos em todos os campos e a decompor as engrenagens dos calendários, para compreender os mecanismos mentais daqueles que os manipulavam. Era preciso tentar pensar como um maia!

Com o mais severo espírito crítico interroguei igualmente as outras civilizações americanas em que o tempo mágico do calendário também intervinha: as dos Toltecas, dos Zapotecas, dos Olmecas, dos Mis-tecas e dos Astecas; foram todas passadas a pente fino.

Verifiquei que o calendário mágico sobrevivera a todos os cataclismos que se abateram sobre as sociedades índias. Ele subsiste não só na Guatemala e no Chiapas, mas também em Vera Cruz. Somente a particularidade dos vinte dias é que varia segundo os povos que o empregam. O seu mecanismo e o seu uso são idênticos em todo o lado; este instrumento-chave regula a vida e o tempo dos indivíduos em todas estas regiões.

A observação directa confirmou-me então até que ponto o calendário mágico inventado pelos Maias ainda é popular; há já milénios que todos os dias os feiticeiros, os adivinhos e os homens-medicinas (cbuchkahau na Guatemala, x'men no Iucatão) o utilizam com fins religiosos. É o instrumento que lhes permite indicar aos doentes o meio de obterem uma cura rápida para os seus males. Os índios dos altos planaltos guatemaltecos deram-lhe o nome de tzolkin e toda a sociedade depende dele.

As crianças recebem o nome do dia do calendário mágico que corresponde à data do nascimento. Os vinte dias do tzolkin contêm nomes de animais ou de elementos diversos, idênticos aos dos cânticos lacandons, e todos têm um carácter determinado e conhecido por toda a gente. Assim, nos Maias-Quichés, o dia «cão» simboliza o pecado e especialmente a impureza sexual. Uma criança nascida neste dia terá o nome «cão» e verá, automaticamente, serem-lhe atribuídos todos os caracteres deste dia mágico. Se, ao crescer, se revelar casta e pudica, os que a rodeiam terão sempre tendência, ao chamá-la, em a considerar, mesmo inconscientemente, através das características do seu nome. Ela será assim orientada, insensivelmente, para um caminho que não corresponde à sua natureza, mas sim àquela que a sociedade espera de si por causa do seu nome mágico.

O dia «pássaro» é símbolo de sorte nos negócios. A criança nascida sob este signo será, no decorrer da sua vida, encorajada pela família e pela sociedade a tornar-se um comerciante. Profissão em que, aliás, terá bastante êxito, porque, ao conhecerem o seu nome, os seus interlocutores sabem que nasceu para aquilo, que tem disposições especiais para aquela actividade, e será de boa vontade que negociarão com ela.

Conhecer todas as características dos dias do calendário mágico é possuir um reportório perfeito da sociedade na qual ele funciona. De qualquer modo, ele interveio na vida quotidiana dos grandes Maias. Qual terá sido o papel exacto que desempenhou? Como é que o número treze, sempre inexplicável, se tornou no seu eixo principal?

Hoje à noite, nas terras do Chiapas, os cantos lacandons vêm recordar-me intensamente tudo isto. Ao descobrir a «minha» ruína e ao permitir que eu compreendesse o porquê da instalação dos Maias no Peten, a estrela maia satisfez-me duplamente. Será que ainda me sorrirá mais uma vez?

 

                     «BALCHÉ», A BEBIDA SAGRADA

Os sons lúgubres de uma trompa elevam-se na alvorada. Ainda cheio de sono, levanto-me rapidamente, movido pela curiosidade. Por detrás do meu telheiro, no limite do campo de milho, Bor, vestido com sua longa túnica branca, sopra um corno em direcção aos quatro cantos do céu. Ponho-me discretamente de parte. Apanha do chão uma cabaça cheia de um líquido que se parece com sopa de milho: a papa dos deuses. Com uma comprida colher de madeira, que eu nunca tinha visto entre os utensílios de cozinha dos Lacan-dons, espalha esta bebida-oferenda pelas «quatro regiões do mundo». É o seu primeiro presente às potências divinas que compareceram ao chamamento da trompa. Toda a cena é imbuída de uma certa solenidade.

Bor volta para a cabana que faz de templo; sai dela trazendo na mão um turíbulo de terracota branca, bojudo e encimado por uma cabeça de homem, grotesca, com olhos mortiços e desproporcionados. Nos Lacandons isto é, ao mesmo tempo, um objecto de culto e um ídolo. Quando é necessária a intervenção de um deus, é preciso utilizar-se o turíbulo com a sua representação. No fundo deste, Bor deposita pequenos pedaços de copal e deita-lhe fogo, por meio de folhas de milho apertadas, de combustão lenta, previamente acesas na lareira da sua casa. O incenso arde, desprendendo em breve um fumo espesso e odorífero: é o tabaco dos deuses. Com um pequeno leque feito de folhas de palmeira e ritmando bem o seu movimento, Bor desloca então as nuvens de copal, que sobem para o ar em turbilhões. Todas as divindades devem receber a sua parte. Não chego a compreender a longa melopeia que ele dirige ao turíbulo. Tratar-se-á de um pedido?

Bor não é nem feiticeiro nem sacerdote. Estes cargos não existem entre os Lacandons; quando têm necessidade de se dirigir às potências superiores, o chefe do caribal reveste-se durante alguns instantes destas funções. É por isso que cada acampamento dispõe do seu pequeno templo com telhado de palmeira para abrigar os objectos do culto.

Pretenderá Bor desculpar-se, perante as divindades, das perturbações que há já dois dias abalam a ordem do seu reino? Anteontem, Kin, o filho mais velho de Kayun, veio fazer-me uma visita. É um jovem e robusto lacandon de quem eu gosto bastante; é esperto, simpático e dotado de um agudo sentido de observação, tendo-se-me revelado com frequência um excelente informador. Levou-me várias vezes à caça, contando-me costumes acerca dos animais e ensinando-me a conhecer as inúmeras essências da floresta. Com ele tenho a impressão de que o mundo dos Lacandons se abre em profundidade, um mundo que já nada tem do exotismo de que eu o revesti ao abordá-lo pela primeira vez.

Kin fazia-me, portanto, uma visita de simples rotina. Não sei por que é que Bor ficou subitamente enraivecido: surgindo da sua tenda com ar ameaçador, começou a invectivar o rapaz, acusando-o de se aproveitar da presença de um estrangeiro para se aproximar das mulheres! Bor estava a ser injusto e isso desencadeou a fúria do rapaz. Precipitou-se para um pedaço de madeira que jazia no chão, dividiu-o em dois e lançou uma das metades a Bor, que a apanhou no ar. Ele próprio apanhou a outra parte e os dois homens lançaram-se um contra o outro. Um duelo lacandon! Atirei-me então para o meio deles, no intuito de evitar um desastre. Conhecia bem o irremediável desencadear de ódio e de vingança a que este género de luta levava; muitas vezes o crime serve de ponto final. Kin ignorava-me, tentando atingir Bor na cara, e o velho chefe já conseguira esquivar-se a dois golpes terríveis. Empurrei os adversários, saltei sobre Kin e lutei durante alguns instantes com ele antes de conseguir tirar-lhe a arma de madeira. Bor aproveitou-se imediatamente disto e levantou o pau sobre ele. Ofereci o meu corpo à fúria de Bor, o que teve o efeito instantâneo de o acalmar. Agradeci a rir aos dois homens por me terem proporcionado fazer um pouco de exercício e pareceu-me mais seguro recomendar a Kin que voltasse para o seu acampamento.

— Vem ver-me amanhã de manhã, mas chama-me da orla da floresta e pede licença a Bor para entrar no seu caribal.

Foi-se embora sem dizer uma palavra, enquanto Bor resmungava ao encaminhar-se para casa.

Pensava que a calma voltara a reinar, mas um sopro de violência voltou ontem a abalar o acampamento.

Ainda mal eram nove da manhã quando ouvi ruídos de luta. Uma das filhas de Bor saiu, gritando, da casa paterna com sangue na cara... Corri para a ajudar, mas ela fugiu para a floresta. Visivelmente perturbado, Bor apareceu no limiar da casa e fez-me sinal para que eu me aproximasse, de modo a servir de testemunha: o genro tinha espancado a filha dele na sua própria cabana! O rapaz, metido num dos cantos da casa, afiava a catana numa pedra como se estivesse doido... Nos seus olhos brilhava o ódio, e as suas intenções eram evidentes. Recusei tomar partido, mas, pondo-me em frente dele, disse-lhe:

— Bateste na tua mulher até lhe escorrer o sangue e não devias ter feito isso; mas as tuas histórias não me dizem respeito. Se a culpa é de Bor, e já não seria a primeira vez que isso acontecia, arrumas o assunto com ele, mas sem catana! De contrário, eu também serei violento para contigo e, se fugires, perseguir-te-ei com Kayun, como se se tratasse de uma caçada aos pecaris...!

Depois saí, na esperança de que a minha ameaça tivesse servido para o acalmar. Sentia-me transtornado com essa história e com o ambiente tenso que reinava no acampamento.

Contra todos os meus princípios, fora obrigado a intervir duas vezes em problemas pessoais dos Lacandons. Mas haveria alguma outra solução? Teria eu o direito de ignorar estas violências, que podiam degenerar em drama, somente para salvaguardar a minha tranquilidade?

Não me sentia com qualquer mérito especial. Tenho só a sorte de ser fisicamente bem constituído, e a minha qualidade de estrangeiro impunha certo respeito; mas nada tinha com o mundo passional dos Lacandons e até podia, com uma intervenção brutal, desencadear uma tragédia nesta atmosfera carregada de ódio. Já passara por várias experiências deste tipo com os chicleros. Contudo, rompera, ao mesmo tempo, com o meu estatuto de observador distante e inofensivo. Que importa, tudo já estava previsto...

Acusei o balché de todas estas violências.

O balché é uma bebida ritual e excitante. Está reservada para os períodos de festa e, a julgar pelas quantidades absorvidas há já três dias no caribal, anuncia um acontecimento religioso de importância. As cascas tóxicas tinham sido retiradas do tecto do templo e postas a macerar, há já algum tempo, numa mistura de água e mel selvagem. Eu praguejo contra o balché, mas estou muito interessado nele. É a bebida sagrada típica das terras maias, e não se consome em mais lado algum. Ainda hoje intervém em todos os rituais mágico-religiosos do Iucatão onde a árvore balché é plantada nas terras dos aldeãos. Aqui, na floresta do Chiapas, cresce no estado selvagem e as cascas são recolhidas com grande pompa, assim como o mel silvestre, que lhe acelera a fermentação. Eu não gosto do balché, porque tem um gosto a regoliz açucarado que acho bastante enjoativo, mas sou obrigado a beber as goladas que me oferecem e a participar na bebedeira dos homens (as mulheres não têm direito a esta bebida cerimonial). E isto não passa ainda do preâmbulo... A hora da grande embriaguez colectiva, em que todos os lacandons se rebolam no chão chão após múltiplas libações soará em breve. Será a altura de se queimarem as árvores abatidas de modo a arranjar espaço para um futuro campo de milho? É nesta época, com efeito, que se consomem boas quantidades de balché para cantar à vontade e assim honrar os deuses. Mas então por que será que os Lacandons não desenharam, nas túnicas, grossas bolas vermelhas com os frutos do achote (rucu), como manda a tradição por altura destes trabalhos agrícolas? Já não se usará este ritual? De qualquer modo, o balché corre em goladas regulares pelas gargantas dos homens do caribal, tornando-os nervosos e vingativos.

Bor acabou os seus encantamentos. Vai depor o turíbulo no pequeno templo e sai com duas cabaças cheias de balché... Ainda nem são seis da manhã! É impossível furtar-me, e aceito com uma pressa simulada aquela que ele me estende, pedindo-lhe até que me enrole um dos seus enormes charutos! Que pequeno-almoço!

A atitude do meu anfitrião mudou em relação a mim. Tenho a impressão de que já não represento para ele uma reserva inesgotável de recipientes de metal; e nisto tem ele razão, porque já quase não tenho nada, embora ele não o saiba...

Contrariamente ao que eu pensava, as minhas intervenções nas questões pessoais dos Lacandons foram muito apreciadas; restabeleceram as boas relações que existiam anteriormente entre os interessados e originaram que ficasse envolvido numa vaga de simpatia, vinda dos dois lados. Bor afirma-me que acabou de falar de mim aos seus deuses e o genro veio, juntamente com a mulher, agradecer-me. Tive de pintar com mercurocromo a cara da rapariga. Por seu lado, Kin ofereceu-me uma soberba perua selvagem.

— Matei-a para ti — disse-me ele laconicamente ao chegar ao caribal.

Depois fez-me uma proposta inesperada: guiar-me até Yaxchilan!

— Mas, Kin, são dez dias de marcha pelo menos e eu não tenho nada para te oferecer em troca desse serviço!

— Eu não quero que me dês nada, vou simplesmente acompanhar-te; o caminho é longo e difícil, e não é bom que vás sozinho. Kayun também está de acordo; tu tens de aceitar, porque apaziguaste a minha cólera com a tua força; és como meu irmão...

Fiquei calado e aceitei com alegria esta proposta inesperada. Pensei nisso ao engolir a minha dose de balché e sorri. Meu Deus! Como a vida pode, às vezes, ser paradoxal! Sempre manifestei o maior cepticismo em relação aos pequenos melodramas que nascem das amizades espontâneas com os homens da floresta, e eis que me acontece uma história deste género! Volto para a minha cama de rede, aspirando com força o charuto de Bor, que já acendi por três vezes.

Já tenho nas mãos a quarta cabaça cheia de balché! Faz um calor sufocante. As mulheres preparam o cacau. Tenho enormes dificuldades em tomar notas e, perto de mim, Bor ainda não se calou. Desejo aproveitar ao máximo os seus conhecimentos, embora prefira sempre a informação resultante da observação directa. Mas não posso escolher. A minha partida está para breve e, no dia 15 de Março, tenho um encontro marcado com Candelário, em Yaxchilan. Já por duas vezes este excepcional batedor me demonstrou que podia depositar nele uma confiança cega. Estará lá na data marcada, com a sua piroga, não tenho dúvida alguma.

Ainda mal acabara de beber o meu balché e já Nabor me trazia uma cabaça com cacau. Bor já recebeu a sua ração, que saboreia com suspiros de satisfação. Sempre me espanto a enorme quantidade de líquido que os Lacandons podem absorver. Nos períodos normais da vida quotidiana, não se trata do balché, claro, nem de qualquer outra bebida fermentada. Bebem litros e litros de posole. Bor volta-se para mim uma vez mais: — Não, não é posole, é kayem.

É esse o nome maia desta papa de farinha de milho e água. Posole provém da palavra nauatle pozolli. O espanhol do México assimilou, assim, cinco mil palavras em nauatle. E estas estão próximas de outras trezentas de origem maia, o que faz do mexicano um idioma com um sabor, uma riqueza e um exotismo sem igual. Mesmo a nossa língua chamou a si termos como cacau, chocolate, amendoim e tomate. Por sua vez, o vocábulo tortilla (kah em maia), que serve para designar em todo o México a bolacha de milho, é uma palavra espanhola que significa omeleta. O seu nome em nauatle (tlaxcallO já não é empregue.

Este hábito característico dos Lacandons e dos índios do Iuca-tão de se alimentarem com litros desta papa saborosa foi, provavelmente, herdado dos grandes Maias. O cornai, placa de argila que permite a cozedura do milho em bolachas largas, apenas há pouco tempo foi encontrada no Peten.

Um pequeno pormenor de ordem tecnológica sempre me intrigou bastante nos Lacandons: as mulheres não trabalham o barro, enquanto em todas as regiões outrora habitadas pelos Maias, e no México índio em geral, este artesanato é essencialmente feminino. Os ídolos, os cornai os recipientes e os grandes tambores de terracota são modelados pelos homens. O torno não existe, o que se explica, visto os Maias o ignorarem. Bor afirmou-me que o seu tambor se tinha quebrado e que não tinha vontade de fazer outro. Aliás, nunca anuiu em mostrar-me como é que trabalhava o barro e suponho que a cerâmica é uma actividade reservada a certas épocas e rodeada de precauções mágicas.

Bor, que se encontrava de cócoras na poeira do chão levanta-se dignamente e volta para a sua cabana com um passo descontraído. Espero que não tenha ido buscar mais balché. Após este cacau, sinto-me incapaz de beber um golo do que quer que seja... Volta sem cabaça, mas traz nos braços a rede de dormir. Suspende-a ao lado da minha e temos agora o ar de dois sábios falando placida-mente acerca do andamento do mundo.

Bor orgulha-se muito da sua rede, que representa para ele, um símbolo de riqueza. Mas esta cama nem é prática nem confortável, e nunca a utiliza para dormir. A noite, como todos os seus irmãos de raça, estende-se sobre um conjunto de ramos postos em cima de quatro pés com cerca de trinta centímetros de altura, sob o qual acende pequenas fogueiras para afugentar os mosquitos e a humidade. Este mobiliário desaparecerá daqui a alguns anos, como foi o caso do Iucatão, onde foi substituído pela cama de rede, introduzida no século XVII. Possuir uma cama de rede para casal e um largo mosquiteiro é o sonho de todos os Lacandons.

No campo da tecelagem não existe qualquer anomalia. Esta forma de artesanato é reservada às mulheres, que recolhem o algodão, cujas plantas crescem livremente dentro do caribal. Os arqueólogos encontraram em escavações restos deste algodão americano, que tanta tinta fez correr. Segundo a sua composição cromossómica, esta planta do Novo Mundo seria o produto do cruzamento com um algodão da Ásia. A fiação e a tecelagem não evoluíram desde há séculos nestas paragens. No códice Tro-Cortesiano pode ser vista a deusa Ixchel tecer com um material muito parecido com o usado nas florestas do Chiapas. Todos os dias, à sombra da sua cabana, Nabor fia e tece com os mesmos gestos de há mil anos. Ao lado dela, um cesto cheio de algodão encontra-se pronto a ser fiado. A extremidade da roca repousa no fundo de uma cabaça; é um bastão com cerca de trinta centímetros de comprimento, direito e talhado numa madeira dura. A seis centímetros da extremidade, contém um pequeno disco feito de terracota, que serve de contrapeso e de volante: a fusaiola. Este objecto já foi encontrado nas camadas arqueológicas mais antigas. Graças a ele, e com uma pequena deslocação feita com o polegar, o andamento do fuso acelera-se num longo movimento, antes de parar e ser de novo lançado para os dedos hábeis de Nabor.

Sonho com os furadores de jade... As perguntas nascem por si mesmas. Não estaria aí uma imagem do princípio da roda? Não haverá aí uma contradição entre o lado feminino da tecelagem e o facto de a pequena fusaiola ser de terracota, portanto saída das mãos do homem?

Bor balança-se com satisfação na rede. Gostaria de me poder aproveitar deste clima de confiança que reina entre nós. O momento parece-me propício para lhe falar de peregrinações religiosas. Mas este assunto é difícil de abordar, porque estas deslocações são absolutamente secretas. Realizam-se todos os anos, no fim de Fevereiro, após a grande festa do balché, quando os homens incendeiam os futuros campos de milho. As peregrinações conduzem a locais que só os Lacandons conhecem. Cada caribal possui assim um recanto só para ele, ignorado das mulheres, um local misterioso, domínio reservado a Kanankar, o deus da floresta. É proibido entrar-se aí com objectos cortantes e na companhia de um estrangeiro.

No mais íntimo de mim mesmo tenho a esperança secreta de poder um dia penetrar nestes recantos sagrados da floresta, tanto mais tentadores para mim quanto é certo encontrarem-se aí velhas construções que datam dos antigos Maias... Nem Kayun, nem Chan-kin nem Bor conhecem o meu projecto. Tive bastante cuidado em esconder a minha curiosidade para não lhes despertar suspeitas; conto com qualquer coisa de excepcional, com qualquer acontecimento fortuito... Mas parece-me que Bor adivinhou o meu desejo. Esta lentidão na execução do ritual balché não será uma prova disso? Talvez esteja pacientemente à espera de que eu deixe o caribal para poder finalmente cair por terra à vontade, embriagado com a bebida sagrada e, em seguida, dirigir-se aos lugares santos, sem a incómoda presença de um estrangeiro.

Porém, porque o tempo urge, é melhor que eu aborde o assunto sem rodeios. O efeito é fulminante; as feições de Bor gelam-se; assenta ambos os pés em terra, pára o movimento de vaivém da rede, levanta-se e, sem uma palavra, dirige-se para a cabana que serve de templo. Sai com uma cabaça pintada com bolas vermelhas e estende-ma; está cheia de balché!

— Bebe em honra dos deuses — diz-me num tom firme. Grave e calado, espera diante de mim que eu acabe de beber a

oferenda aos deuses. Depois torna a pegar na cabaça e dirige-se novamente para o templo; regressa com duas cabaças cheias! Estende-me uma, leva a outra aos lábios, e diz-me de novo:

— Bebe em honra dos deuses...

À noite, Bor canta. Está embriagado e encontrou os seus deuses. Eu também o estou, mas quedo-me em silêncio. Penso em Kayun, em Kin e em Nakin. Quantas decepções, quantas dificuldades, quantas alegrias eu não acabei de compartilhar com estes homens da floresta! Envolta numa nuvem, vejo as faces enrugadas e amigas de Nabor, que se aproxima de mim... Deposita nas minhas mãos uma nova cabaça de balché!

— Bebe — diz-me ela — e não penses mais nisto, porque te vais embora.

 

                   BONAMPAK FALA

Os passos silenciosos e ligeiros de Kin conjugam-se perfeitamente com esta floresta que acaba de nos engolir de novo. A bagagem de Kin compõe-se de um alforge de palha entrançada, que lhe pende negligentemente do ombro. O meu saco pesa bastante, por causa do material fotográfico e de gravação que acompanha o estritamente necessário para se poder viver na floresta, e nem me passa pela cabeça pedir auxílio ao meu companheiro; ele já propusera ajudar-me, numa voz sussurrante, mas eu recusara, não por orgulho, apenas por saber que os Lacandons detestam transportar objectos pesados, e pior ainda quando se trata da bagagem de um estrangeiro.

Uma clareira e duas cabanas: o caribal de Chankin. Um largo ribeiro rodeia-o como se fosse uma vala. A mão do homem desviou-lhe o curso, o que me faz crer que se trata de mais uma inovação ao estilo de Chankin. A exuberante invasão de uma espinheira, o acahual, obriga os Lacandons a abandonarem os seus acampamentos ao fim de três ou quatro anos. Quando ela começa a sua marcha não há nada que a faça parar e os homens não encontraram melhor remédio que a fuga para escapar a esta espécie vegetal à qual têm horror. Mas Chankin soube estabelecer a relação entre a causa e o efeito. O acahual aparece nos campos de milho assim que o solo começa a ficar cansado e, simultaneamente, instala-se nos acampamentos, porque, sem darem por isso, os homens trazem as sementes desta planta coladas aos pés. Seria, pois, necessário que os lavassem, de modo a evitar a proliferação destas plantas espinhosas. Como desconhecem estas precauções elementares e é difícil, senão impossível, pedir a um visitante que limpe os pés antes de penetrar no caribal, quer dizer, a uma centena de metros das cabanas, Chankin inventou este sistema engenhoso do regato de água corrente. Quem quer que seja que penetre nas suas terras é obrigado a mergulhar aí os pés.

Chankin é um lacandon muito especial. Durante muito tempo viveu afastado dos seus, e foi, durante uma dezena de anos, o guardião solitário da cidade de Bonampak, em cujas ruínas habitava como um fantasma. Aliás está intimamente ligado à louca aventura que deu a conhecer ao mundo estes templos maias absolutamente únicos.

Chankin saiu e as suas mulheres andam desenfreadas. Falam todas ao mesmo tempo para nos dizer que ele deve estar possuído dos demónios que enlouqueceu e que nunca mais se ocupou dos campos de milho... Talvez tenhamos, dizem elas, a sorte de o encontrar!...

Retomamos o nosso caminho. Uma surpresa espera-os à entrada da floresta: em vez de um pequeno trilho sinuoso, é uma verdadeira avenida que se nos depara, talhada na vegetação; alonga-se por uma centena de metros e Chankin passeia nela, montado numa mula! É uma visão que eu ainda não consegui esquecer. Fuma um enorme charuto e sorri. Onde é que arranjou este animal? Estamos a três semanas de caminho das primeiras vilas mexicanas! Deve ter sido uma expedição que por aqui passou e lha confiou à sua guarda. Ou talvez até lha tenham oferecido...

— Mas que vais fazer deste animal? — perguntei-lhe espantado.

— Tenho tudo isto — respondeu-me com um largo gesto apontando para a magnífica estrada. — Olha, vê...

E ei-lo caracoleando com a longa túnica enrodilhada até às coxas, feliz em cima da mula, que, no entanto, manifesta uma evidente má vontade por estas corridas sem destino.

Passa por três vezes à nossa frente, sem um olhar, com a cara um pouco crispada, completamente absorvido por este jogo novo e pelas dificuldades que a mula, rebelde, lhe cria. Pára, por fim, diante de nós, sem sequer se dignar descer do animal.

— Aqui está — diz-nos —, vocês bem viram...

— Está bem, Chankin, mas este caminho que tu abriste vai-te dar bastante trabalho porque terás de o limpar todos os dias... E a mula, como é que a vais alimentar?

— Mas então — respondeu-me ele — já viram a quantidade de ramon que existe por aqui?

Estas árvores, com efeito, possuem uma folhagem que serve perfeitamente para alimento dos cavalos e das mulas, mas só o trabalho de se ir buscar as folhas! Chankin encontrou um novo demónio: a sua montada, que lhe devora todo o tempo. Qual será o orgulho que o impele? Pretenderá encontrar um meio de se vingar da história, que ele ignora, ou das regras habituais de vida das povoações para lá da floresta? Tudo isso pertence a um universo do qual ele nada sabe. Durante a época colonial, os Espanhóis tinham proibido os índios de montar animais de sela, por uma questão de prestígio. Nos nossos dias são as autoridades índias das povoações que interditam este meio de transporte aos indivíduos das suas colectividades, por uma questão de orgulho.

Cavalgando assim em cima da sua mula por entre este corredor vegetal, o homem das florestas procurará igualar-se àqueles que lhe fizeram esta estranha oferta? Ou sentar-se-á em cima deste animal — que caminha, conduzido por ele, numa direcção que não leva a lado algum — senhor do mundo?

A noite acolhe-nos em Bonampak.

Chego para me encontrar com a recordação de três apaixonados pela aventura, perpetuamente no encalço de um fim indeterminado, até ao dia em que mudaram o curso às suas vidas perante o contacto com as terras maias.

Em primeiro lugar, Franz Blom, americano de origem dinamarquesa, folgazão, grande bebedor; após ter dirigido uma expedição ao golfo do México por conta de uma universidade americana, tem a revelação do Chiapas. Aí se instala e percorre a floresta selvagem durante anos; acaba por se tornar no amigo e quase que no pai de um grupo de lacandons. Morreu há já alguns anos em San Cristobal de Las Casas.

Depois lembro-me de dois homens, ambos indissociáveis de Bonampak: Carlos Frey e Gilles Healey. O primeiro já faz parte da lenda e é bem difícil reconstituir historicamente a sua louca aventura. No entanto, os lacandons directamente ligados a ele evitam falar nisso.

Carlos Frey é um jovem aventureiro americano. Há quem pretenda que ele tivesse fugido ao serviço militar por motivos de consciência. No fim da Segunda Guerra Mundial recusa-se a ser incorporado no exército, foge da sociedade civilizada e embrenha-se sozinho nas floresta do Peten.

O seu fim? Reencontrar a vida simples e livre. Este retorno às fontes de uma eventual existência idílica no reino dos «bons selvagens», certamente adquirida na leitura de qualquer romance de ficção, é uma visão bem inocente das realidades tropicais. No entanto, e apesar das doenças endémicas e da subalimentação, a experiência é positiva. O homem louro do Norte, com a cara devorada por uma barba ruiva, integra-se de modo tão íntimo num grupo de lacandons que até arranja uma mulher. Durante dois anos o espantoso romantismo exótico do americano resiste às vicissitudes da vida seminómada da floresta virgem. Participa nas bebedeiras colectivas, oferece copal aos deuses e segue os tabos prescritos quando a sua jovem mulher índia se encontra grávida. Em breve se acostuma perfeitamente aos hábitos dos Lacandons.

Acontece que, por duas vezes, verifica com surpresa que se encontra só, no meio das mulheres e das crianças do seu caribal. Os homens desapareceram misteriosamente. Para Frey aquilo tem mais o ar de um fracasso que de um insulto, e este facto transtorna a sua vida voluntariamente vegetativa. Durante meses espicaça os seus companheiros com perguntas insidiosas. Quer saber à força qual a razão destas ausências prolongadas, que se tornaram para ele num enigma obcecante. Chankin, seu cunhado, um dia em que se encontra completamente embriagado com balché pergunta-lhe à queima-roupa:

— Mas, diz-me cá, porque te interessas tanto pelas nossas viagens a Bonampak?

Aquilo já era dizer de mais, ou de menos! Mas a palavra tinha sido lançada: Bonampak!

No mês seguinte, Frey vem a saber que aquela palavra era o nome de um lugar sagrado onde se encontravam alguns templos em ruínas, que se deixavam absorver pela floresta. Após a chegada dos brancos a Yaxchilan e a Palenque, os deuses e os antepassados dos Lacandons tinham-se refugiado em Bonampak.

— Temos a certeza disso, pois os seus vultos só nos aparecem à luz dos archotes, nas paredes internas dos templos, depois das oferendas de copal. Nada se consegue ver quando se entra nessas casas de pedra — dissera-lhe ainda Chankin.

A vida de Frey modifica-se após estas revelações. Torna-se nervoso, bruto e nunca mais larga o seu cunhado Chankin, procurando todas as ocasiões para beber balché com ele, até ao dia em que, cansado, este aceite guiá-lo a Bonampak.

Viagem extremamente penosa. Assim que lá chegam, Chankin foge, subitamente inquieto com as consequências da sua revelação. Frey penetra, pois, nos templos em ruínas e nada vê. Mas esta cidade submersa no mais profundo da floresta transforma-o por completo. Haverá a hipótese de que isso lhe traga a glória e, quem sabe, talvez até a fortuna? Bastam-lhe alguns dias para que se esqueça da sua inigualável experiência com os Lacandons, da jovem mulher índia e das náuseas que sentia em relação à sociedade altamente organizada...

Volta à civilização e previne as autoridades susceptíveis de se interessarem pela sua descoberta. Contudo, os seus passos a nada o conduzem. O mundo que ele desprezara ignora-o agora...

Dois meses depois aparece na cidade em ruínas um outro entusiasta por aventuras, Gilla Healey. É um espírito mais organizado e menos romântico que o seu predecessor. Há já algum tempo que vive no meio dos Lacandons para realizar um documentário encomendado por uma firma americana. Estamos em 1946.

Apesar deste lado oficial e confortável, o empreendimento é, mesmo assim, perigoso. É preciso ter-se vivido esta experiência para se avaliar bem da obstinação necessária para levar a cabo um tal projecto. Mas Healey ama a aventura e a civilização maia interessa-o. De mais a mais tem um jeito especial para a fotografia e tudo o que se relacione com arte é objecto da sua curiosidade.

Entra, pois, no famoso templo de Bonampak, perscruta a obscuridade do seu interior e dirige a lanterna para as paredes. A admiração é enorme... Encontram-se decoradas com frescos magníficos... completamente cobertos por excrescências calcárias. Ali estava, portanto, a explicação para as misteriosas aparições descritas por Chankin: os olhos devem habituar-se à escuridão do interior antes de se poderem ver as fabulosas figuras.

Healey vê, como num sonho, longas procissões de guerreiros mascarados, cenas da corte, prisioneiros acocorados perante os sumos sacerdotes, prontos para o sacrifício, músicos tocando pesadas trompas, tudo tão real que o peso dos frescos lhe tira a respiração. À sua volta, ao longo das paredes, são os faustos de um cortejo de senhores, ceptros e tiaras engalanadas com plumas coloridas, tudo tão natural que parece ter sido pintado no dia anterior. Estes frescos únicos não seriam outras tantas mensagens para os arqueólogos e os historiadores de arte?

A preço de mil e uma dificuldades, Healey tira um bom número de fotografias destas obras-primas que acaba de descobrir e parte imediatamente para a civilização. Os seus documentos terão o efeito de uma bomba. Para ele, aquilo representa o sucesso.

Quanto a Frey, vegeta pelo México. Passam-se três anos. Por fim, à cabeça de uma expedição, toma o caminho de Bonampak. Infelizmente nunca lá chegará; afoga-se com um dos companheiros no rio Lacantun, a alguns quilómetros do caribal em que vivem os seus amigos Lacandons, que ainda o consideram como um dos seus e o estimam muito.

Sonhando com a aventura destes dois homens, revejo mentalmente a minha dupla experiência do Petexbatun e a minha descoberta de Dos Pozos. Sinto de novo a amarga decepção do meu primeiro retorno à civilização e imagino a solidão moral de Carlos Frey numa sociedade indiferente, onde a sua aventura, a sua experiência única, não conta. Compreendo melhor a alegria de Gilles Healey por eu próprio ter tido este mesmo sentimento espantoso de arrancar ao esquecimento tesouros perdidos desde há séculos; conheço esta alegria do retorno à vida quando as caras se iluminam perante os documentos que se lhes deparam.

Esta é a minha sexta viagem a Bonampak.

Chankin estava comigo quando aí fiz a minha primeira visita. Vínhamos ambos do seu caribal, nessa altura situado na margem esquerda do Lacantun, e tínhamos feito um desvio para pararmos diante de um montículo ao pé do qual Chankin dissera simplesmente: «É Frey...»

O templo que visitámos em primeiro lugar parecia insignificante, apesar dos seus dezasseis metros de comprimento. A fachada, rasgada por três entradas, suportava um tecto encimado por ervas gigantes, que cobriam todo o edifício com a sua exuberância. Chankin acendera um archote de madeira resinosa — a minha lanterna já há muito que se estragara — e eu penetrara atrás dele na primeira sala. Meio sufocado pelo fumo proveniente do nosso rudimentar sistema de iluminação, lembro-me de ter conseguido descortinar uma procissão de figuras imponentes. À luz trémula da chama pareciam mover-se como se fossem fantasmas coloridos. Visão inesquecível! A presença de Chankin, com os longos cabelos caídos até aos ombros, com o braço estendido brandindo a tocha, que iluminava intermitentemente o seu magnífico perfil maia, dava a todas estas pinturas murais uma realidade palpável.

Estes frescos de Bonampak — palavra maia que significa «paredes pintadas» — são, com indiscutível justiça, considerados um tesouro da arte mundial. No contexto maia são um elemento novo para os pesquisadores. Aqui não existem hieratismos ou significados altamente simbólicos, como acontece na escultura e nos baixos-relevos, mas sim cenas da vida social descritas numa linguagem pictórica perfeita e ligeira.

Sobre uma camada de estuque branco de três a cinco centímetros de espessura, segundo o local, o artista desenhou primeiro os contornos das figuras a tinta vermelha, de origem vegetal ou mineral.

Soube tirar delas numerosas combinações ampliando a paleta à sua vontade. Não existe perspectiva ou claros-escuros na sua obra, destinada a ilustrar fases importantes da vida sócio-religiosa da sua comunidade.

Estes preparativos de chefes vestindo os mais belos adornos, estes dançarinos com estranhas máscaras, estes músicos, tudo é um verdadeiro prazer para o amador de arte. No entanto, mais tarde, procurei aí encontrar algumas significações primárias e talvez escondidas, cujo conhecimento me poderia ajudar a compreender melhor o mundo maia.

Para estudar estes frescos não é necessário deslocarmo-nos a Bonampak. Com efeito, a sua leitura é difícil sob a camada de carbonato de cálcio que, em parte, os dissimula. Esta camada, opaca, que se tornou numa película protectora, formou-se no decorrer dos séculos em resultado da infiltração de água e da consequente humidade que invadiu o ambiente.

Felizmente, após a sua descoberta, várias expedições científicas aqui vieram. Os especialistas copiaram a pinturas e os serviços arqueológicos do México tiveram a excelente ideia de reconstituir integralmente o templo e os frescos no próprio Museu Nacional. A Escola Mexicana da Arqueologia e História empreendeu mais tarde um trabalho de reconstrução do templo e instalou um pequeno campo de aviação perto das ruínas.

Os pesquisadores da Carnegie Institution publicaram um excelente estudo acerca dos frescos, ilustrado com sumptuosas e pormenorizadas reproduções. Tive, portanto, a possibilidade de os estudar tranquilamente e, paradoxalmente, no decorrer das minhas outras viagens a Bonampak perdi muito mais tempo com as esculturas dos lintéis e das estelas. A maior parte representa chefes guerreiros: fazem prisioneiros, brandem pesadas armas, arrasam os inimigos, numa revelação clara da atmosfera bélica do seu tempo.

Instalámos o nosso acampamento a duzentos metros dos templos. Kin cuida do fogo e eu voltei para a minha cama de rede. Nas minhas costas dormem frescos sumptuosos que nos oferecem retalhos da vida maia jamais desvendados pelas esculturas.

Com estas pinturas penetramos muito mais na vida íntima e cerimonial dos grandes reis-sacerdotes e daqueles que os rodeavam. Verificamos que as mulheres desempenharam um papel importante nesta sociedade. Na segunda sala, as cenas representam guerreiros maias atacando pessoas desarmadas vestidas com simples panos à volta dos rins; têm a pele muito escura, mas os traços são tipicamente maias; talvez se trate de camponeses. Os agressores seguram-nos pelos cabelos, indicando com este gesto que, a partir desse momento, eles serão seus prisioneiros. Isto é o testemunho de uma acção organizada, cujo significado se esclarece na parede norte da mesma sala.

Aí vemos prisioneiros a quem foram cortados os dedos num primeiro sacrifício de sangue; encontram-se ali acocorados, amedrontados, debaixo do olhar de chefes sumptuosamente vestidos, que os dominam do alto dos seus estrados. Ao pé de uma figura importante jaz o corpo de uma vítima e, junto a ela, uma cabeça cortada momentos antes repousa num leito de folhas. Trata-se de uma cerimónia de sacrifícios humanos. Estamos longe da imagem dos maias pacíficos... Os antigos habitantes de Bonampak seriam mais vingativos, mais sanguinários que os seus irmãos de raça do outro lado do Usumacinta? Teriam sofrido influências externas?

Este templo dos frescos foi construído por volta do ano 800 da nossa era. As cenas representadas pelas pinturas são, pois, um reflexo da vida desse tempo ou da de uma época imediatamente posterior.

Ora é justamente na altura em que no Norte se desmoronava a grande civilização teocrática e pacífica de Teotihuacan. Grande consumidora de oferendas, não praticava sacrifícios humanos, contrariamente aos invasores bárbaros que incendiaram a cidade. Estes últimos constituíam o escalão precursor das grandes vagas de toltecas que iriam cair pouco tempo depois sobre o México. Os destruidores de Teatihuacan anunciavam a nova ordem, a dos guerreiros, cuja vida religiosa se encontrava centrada no sacrifício humano.

Os frescos de Bonampak testemunham que, no século IX, a influência desta nova ordem se teria já feito sentir na zona do Chiapas. A sua rápida implantação no território mexicano iria automaticamente provocar a diminuição do consumo das oferendas não sangrentas, tais como o cauchu ou o copal, substituídas por corações de homens, ainda quentes e palpitantes de vida. É provável que os países produtores de oferendas, como o Peten, tenham sentido uma grave crise económica, geradora de perturbações internas, das quais encontrei vestígios tão reveladores em Dos Pozos.

Estas deduções podem parecer extravagantes para um ocidental desprevenido, mas são bastante plausíveis por tratar-se da Ameríndia pré-colombiana. Não esqueçamos que os sacrifícios humanos foram a única razão de vida destes povos nahuas que invadiram o México. A civilização asteca baseava-se na necessidade de oferecer aos deuses cada vez maior número de corações humanos. Diante dos templos do antigo México, as pedras de sacrifício encontravam-se permanentemente banhadas de sangue humano. O primeiro tributo anual que estes terríveis guerreiros exigiam dos povos vencidos era os jovens destinados aos sacrifícios, e o número destes era fixado de uma vez para sempre. Durante a inauguração do grande templo da sua capital, Tenochtitlan, os Astecas degolaram vinte mil pessoas em quatro dias. A época das oferendas de copal tinha acabado; teriam sido precisas toneladas...

Estes exageros astecas são, na verdade, muito posteriores à desaparição dos Maias do Peten, mas ilustram bem esta nova ordem que se instaurou após a queda de Teotihuacan.

Toda a vida religiosa dos Toltecas, os predecessores dos Astecas, encontrava-se impregnada deste ritual sanguinário. A famosa cidade de Chichen-Itza, construída por estes invasores, oferece-nos uma imagem realista, com o seu tzompantli, ou «esplanada de cadáveres», onde se empilhavam os crânios dos sacrificados, que acabavam de rolar pela escadaria da grande pirâmide.

No século x, este costume macabro já possuía uma tal importância na vida religiosa que, quando o rei Ce-Acatl-Quetzalcoatl recusou a prática de sacrifícios humanos, perdeu o seu trono de Tuia.

A queda de Teotihuacan e o reinado dos sacrifícios humanos transtornou por completo, segundo eu penso, toda a economia dos grandes Maias clássicos, provocando uma instabilidade nefasta em todo o território. No entanto, para levar à derrocada uma civilização tão altamente desenvolvida e organizada certamente que outras causas deram o seu contributo.

É pensando nestes problemas que o sono me surpreende nas ruínas silenciosas de Bonampak.

 

                 REPARTIÇÃO QUADRIPARTIDA DO UNIVERSO

As verdes águas do Usumacinta cintilam sob a luz do dia. Kin contempla, num completo mutismo, o espectáculo deste rio cor de jade, que se esvai numa surda demonstração de força. Nem uma árvore, nem uma sombra por cima desta imensidade onde o Sol é, enfim, o rei.

Hoje, como sempre que encontro um rio após uma longa estada na floresta, pressinto esta doce sensação que lembra um pouco a alegria do começo de férias. Nuvens de mosquitos, atraídas pelas águas, atiram-me de novo para as duras realidades dos trópicos. Usumacinta! Tu, que te sentes suficientemente forte para proibir à poderosa vegetação que te rodeia um só passo em frente nas tuas margens, tu, que arrancas impiedosamente a árvore que vem perturbar o teu eterno diálogo com o céu, estás bem longe do esplendor do teu passado; acabou o tempo em que eras o Nilo ou o Eufrates dos Maias...

Kin segura-me no braço e aponta-me qualquer coisa no rio: uma piroga amarrada na solidão. Ao dirigirmo-nos para lá, o meu companheiro atrasa insensivelmente o passo, deixando-me passar à frente. Não são as altas ervas que o inquietam, mas sim esta apreensão peculiar a todos os da sua raça perante a proximidade de um estranho.

Encontra-se ali um homem, acocorado diante de uma fogueira onde estão a ser assados dois soberbos peixes. Candelário! Kin posta-se a meu lado, sem uma palavra. Os dois homens olham-se com um tudo-nada de desconfiança. Mas a fome em breve ameniza este primeiro contacto difícil, e pouco tempo depois todos estamos a devorar a deliciosa carne dos peixes.

Kin interessa-se pela maneira de pescar de Candelário e este, muito orgulhoso, mostra-lhe o seu arpão feito de bambu. O meu companheiro ensina-lhe, por sua vez, a maneira de fabricar flechas de pesca e o modo de apanhar peixe com o arco. Ei-los já na piroga trocando as armas. Cada um quer aprender a técnica do outro.

Pela minha parte, só penso no «Local das Pedras Verdes», em Yaxchilan, ali muito perto do rio... Kin decidiu não pôr os pés nesta cidade sagrada dos seus antepassados. Medo supersticioso? Chegamos, no entanto, a um acordo: iremos de piroga até lá e, aí chegados, os dois homens irão juntos arpoar alguns peixes.

Encontro-me sozinho nas ruínas silenciosas. Uma vegetação abundante esconde todos os monumentos, absolutamente invisíveis desde as margens do Usumacinta.

Yaxchilan é, para mim, um segundo encontro com a recordação de homens excepcionais, que, pela sua vida e pelos seus testemunhos escritos, me ensinaram os caminhos das cidades mortas dos Maias.

Primeiro foi Désiré Charnay, um pitoresco explorador dos meados do século XIX, dotado de uma intuição genial para o campo dos enigmas postos pelas civilizações índias do México. Foi o primeiro a afirmar que a mística Tollan, a cidade das origens, descrita nas narrações indígenas, existia a norte do México, em Tuia, e que quem a havia construído também erigira Chichen-Itza, a dois mil quilómetros dali. Esta tese fez sorrir todos os especialistas da época, salvo o alemão Seller, e acabou por ser enfim confirmada de modo definitivo, oitenta anos mais tarde, com a ajuda de recentes trabalhos arqueológicos. É a Désiré Charnay que ficámos a dever as primeiras descrições dos Lacandons, devido a um contacto muito mais inesperado: um europeu! O inglês Alfred Maudslay. O espanto apoderou-se dos dois homens... Nessa época eram necessários meses de atribulada viagem para se atingir esta região. Maudslay estabeleceu os primeiros fundamentos de um estudo científico dos Maias, ajuda preciosa para os pesquisadores que se lhe seguiram.

Uma outra personagem curiosa visitou esta cidade: Teoberto Maler; foi ele quem lhe deu o nome, Yaxchilan, pois Maudslay tinha-a baptizado de menche, que significa árvore verde.

Maler era um oficial austríaco que viera para o México com a comitiva do infeliz imperador Maximiliano. Visitou as terras maias como um amador curioso e, como tantos outros, prendeu-se a elas. Verificando com angústia o triste estado dos monumentos, decidiu-se a salvá-los do esquecimento com a ajuda da fotografia. Neste intuito suportou as chuvas, a solidão, o paludismo, a subalimentação, as marchas forçadas, as revoltas e as fugas dos guias, enfim, todos os múltiplos perigos imprevistos da floresta. Para não perder tempo, e graças a uma constituição formidável, era capaz de empreender expedições em plena estação das chuvas, quando as dificuldades são seis vezes maiores que na estação seca.

As fotografias de T. Maler são tão perfeitas que ainda ilustram obras contemporâneas de carácter arqueológico. Para além disto tudo, eu ainda me surpreendo com os incríveis problemas técnicos que teve de enfrentar. Uma só fotografia significava para ele vários dias de trabalho; era preciso abaterem-se árvores, de modo a obter-se o campo de visão necessário, levantar estelas, construir plataformas, de modo a alcançar um bom nível, etc.

Na fachada do templo principal de Yaxchilan existe, para equilibrar as suas proporções, uma crista de telha que se parece com um diadema de pedra aposto à flor do monumento. Este andar ilusório é uma característica da arquitectura maia clássica. Acrescentava uma nova dimensão aos monumentos, sem obrigar a um tipo de construção demasiado complicado. Estas cresterias permitiam aos arquitectos respeitar as normas imutáveis às quais estavam ligados em virtude das relações existentes com o interior dos templos, dando, simultaneamente, aos edifícios a leveza e o aspecto que lhes faltariam se não existisse tal pormenor.

Pouco me demoro na contemplação deste santuário, porque existe, diante da fachada, uma estátua que me interessa imensamente. Representa, em tamanho natural, uma personagem decapitada e sentada. A ideia geral que dela se desprende faz-me lembrar o Rei Leproso do templo Khmer de Anghor, no Camboja. Conheço bem esta personagem maia. É o ponto de encontro, o elo entre o passado e o presente. Os Lacandons dão-lhe o nome de Atsbilan, aquele que coloca o Sol, e consideram-no como chefe de uma linhagem de antepassados divinos que aqui residiriam.

Ainda há poucos anos Yaxchilan era um desses recantos sagrados da floresta onde os Lacandons tinham o costume de ir uma vez por ano fazer as suas oferendas a Atsbilan e à sua corte. Os índios encontrados nas ruínas por Désiré Charnay terminavam nesse momento os seus rituais. Parece que desde então o local perdeu a sua áurea mágico-religiosa, mas, no entanto, o facto de Kin se ter recusado categoricamente a acompanhar-me na minha visita prova que subsistem ainda alguns traços.

Eis o pequeno templo que possui, segundo eu penso, a mais bela obra de arte maia: um lintel de pedra. Está fixado na entrada, que mede, somente, um metro e cinquenta de altura. Nem se imagina a dificuldade em o admirar à vontade! É necessário que nos coloquemos de costas no chão e que o observemos durante algum tempo antes que possamos distinguir o pequeno e maravilhoso baixo-relevo. Representa duas figuras face a face, estendendo mutuamente uma idêntica cruz florida. Aliás, podem admirar-se cenas deste género em Palenque ou por exemplo, nas Piedras Negras, embora o seu estilo seja menos impressionante; os protagonistas apresentam sempre os mesmos símbolos nas mãos. Estes baixos-relevos ilustram, pois, um rito comum a todos os maias. Tratar-se-ia de uma transmissão de mandato ou de certos poderes ocultos?

Pensei durante uns tempos ter encontrado a chave do enigma ao lembrar-me de que, entre os Maias-Quichés da Guatemala, os chefes civis e religiosos transmitiam todos os anos, simbolicamente, o seu cargo a novos eleitos dando-lhes uma vara, um pedaço de madeira decorado a prata cinzelada, que é o distintivo dos seus poderes. Contudo, os sucessores nada oferecem aos seus predecessores. Não, esta observação etnográfica não esclarece a cena do lintel de Yaxchilan.

Observo-o com atenção; trata-se, obviamente, de uma troca de distintivos ou, eventualmente, de uma apresentação de distintivos. Os dois homens, que se olham, são semelhantes e a sua insígnia é idêntica. Teriam ambos a mesma função e o mesmo título? Aqui, como aliás nos outros baixos-relevos deste género, a figura da esquerda é mais pequena que a da direita. Isto é um pormenor interessante, já que o encontramos em esculturas do mesmo género. Não se trata, portanto, de um acidente da composição, mas sim de uma intenção deliberada do artista.

Qual será o significado desta cruz florida que aparece nos braços estendidos? Terão as flores qualquer relação com o culto da vegetação renascente? Elas também poderiam ser a representação de sóis... Quanto à cruz, não existe qualquer problema; representa a imagem-tipo da repartição quadripartida do mundo maia. Cada uma das suas extremidades é um ponto cardeal. Esta orientação de todas as coisas no espaço não tem relação alguma com o norte magnético; depende somente da colocação do nascer e por do Sol por altura dos solstícios.

O mundo maia contava treze andares de céu — cada um com a sua divindade própria —, suportados por quatro deuses-irmãos, de pé perante os quatro pontos cardeais. Por cima destes estendiam-se os nove reinos subterrâneos, regidos por nove deuses da noite. Cada ponto cardeal tinha a sua própria cor: encarnado para este, branco para o norte, negro para o oeste e amarelo para o sul. Todos os elementos da vida tinham um lugar assinalado neste espaço orientado, e a sua cor dependia do local em que se encontrassem.

Os Maias aplicaram a todos os domínios, compreendendo o dos calendários, este princípio capital. O ciclo de cinquenta e dois anos (casamento do calendário mágico o calendário solar), que haveria tendência para se imaginar como um círculo, inscrevia-se nesta repartição quadripartida do universo, distribuindo os seus anos pelos quatro cantos do mundo.

Cada novo ano solar civil, representado por um deus ou por um número encontrava-se num destes pólos, diferindo do local ocupado no ano precedente. Tomava, então, automaticamente a cor e o aspecto, benéfico ou maléfico, desta colocação. Um ciclo de cinquenta e dois anos era, pois, dividido simbolicamente em grupos de treze anos pelos quatro cantos do mundo. Tínhamos assim um esquema deste género:

 

       treze anos treze anos

       treze anos treze anos

       ou seja: cinquenta e dois anos.

 

A repartição quadripartida do mundo vai-nos revelar bastantes surpresas. Assim, remos razões para acreditar que a organização social deste povo se regia segundo este imperativo, embora nunca tivesse sido estudada sob este aspecto.

Os quatro clãs que Soustelle determinou nos Lacandons não estariam primitivamente assentes nestes quatro cantos simbólicos? E o número treze, esse famoso número misterioso do calendário mágico que encontramos em todos os lados, teria servido aos Maias para determinar o número de linhagens de cada clã? Os principais heróis do Popol-Vuh apresentam-se com um número à frente do nome; não seria isto a prova da linhagem à qual eles pertenciam? Nos anais dos Cakchiqueles, vários nomes de linhagem, assim como os números correspondentes, foram identificados por S. Edmundson.

Quando eu tentava compreender as razões da escolha do número treze para o calendário mágico, havia tomado um caminho errado ao procurar explicações fora da civilização maia. Mas confesso que, para resolver o enigma da organização social deste povo, fui perturbado por diferentes exemplos que aparecem através do mundo.

O grande antropólogo Hoccart diz-nos que os Massais deram cores aos quatro pontos cardeais, e que a sua organização social se baseava nisso, pois a comunidade estava dividida em dois grupos, encarnado e negro, seguindo-se-lhe dois subgrupos, a fim de que cada um deles tome o sinal e a cor de um dos pontos cardeais. Este tipo de repartição social leva-nos directamente aos Maias.

Eu próprio verifiquei em Bali a importância capital da Nawa-Sanga, imagem da repartição quadripartida do mundo em que cada ponto cardeal tem a sua cor própria, o seu número e a sua palavra mágica especial. Vislumbram-se aí influências indianas. Aliás, nas civilizações hindus, as cartas repartem-se simbolicamente pelos quatro pontos cardeais em que pontificavam os reis. Mais um passo e eis que encontro uma origem hindu no nosso baralho de cartas... Não tem o baralho cinquenta e duas cartas repartidas por quatro séries de treze cartas? O vermelho divide-se em ouros e copas e o negro em espadas e paus. Divagação? Talvez. E, no entanto, também encontro a explicação do joker, aquela carta complementar que se utiliza, durante as partidas, em qualquer lugar; aliás, é sempre a mais forte. Na índia, a tradição diz-nos, com efeito, que existe, para além dos reis das castas, um suserano supremo...

Evidentemente que não pretendemos apresentar hipóteses arrojadas a respeito da civilização, nem admitir que a índia esteja na origem da cultura maia! O meu raciocínio queria-se, e quer-se, objectivo.

E então por que não imaginarmos, à luz deste facto, a sociedade maia como um jogo de cartas, reflexo de uma organização quadripartida? Cada uma das quatro séries de treze, desde o ás ao rei, representaria as linhagens, e cada cor determinaria o seu lugar num mundo orientado. A tentação é grande... Tanto mais que tudo isto se adapta perfeitamente à repartição dos cinquenta e dois anos do ciclo maia pelos quatro pontos cardeais...

Os Maias consideravam que o ciclo de cinquenta e dois anos era a imagem do homem. Portanto, à escala da sociedade, o mundo e a sua organização deveriam, logicamente, escalonar-se num nível superior. No sistema dos calendários situava-se num andar acima, quer dizer, era multiplicado por vinte. Nas escolas de sacerdotes ensinava-se, sem dúvida, aos jovens iniciados que, já que o homem era representado por um lapso de tempo de cinquenta e dois anos, a sociedade, ou o mundo, era-o por mil e quarenta anos, ou seja cinquenta e dois vezes vinte. Será possível encontrarem-se vestígios desta organização superior?

Landa verificou que os Maias do Iucatão conheciam o calendário mágico de duzentos e sessenta dias, mas que tinham perdido o princípio que lhes permitiria contar o tempo partindo de um ponto cronológico determinado, ponto que os seus primos direitos do Peten tinham inventado. Os índios da península contentavam-se somente em utilizar uma parte da «conta comprida». O mecanismo deste fragmento do sistema era a «roda dos katun», da qual Landa nos descreveu perfeitamente o funcionamento.

Na escala vigesimal verificámos que cada andar tem um nome e que a passagem para um andar superior multiplica por vinte o número dado. Ora, no segundo andar, o múltiplo já não é vinte, mas sim dezoito. Porque se tratava de contagem do tempo, esta astúcia permitia aproximar o total, o tun, do ano civil solar de trezentos e sessenta e cinco dias (ou seja dezoito vezes vinte igual a trezentos e sessenta dias). Para evitar confusões, chamaremos ano aritmético a este tun.

No andar superior, o múltiplo era outra vez vinte. Este andar, ou katun, tinha portanto um valor de trezentos e sessenta vezes vinte igual a sete mil e duzentos dias.

Para não nos desorientarmos com os números dos dias lembremos que o katun era composto por vinte tun.

Escolhendo o katun como unidade de base para o seu calendário, os índios do Iucatão tinham verificado que o último dia de cada katun, o dia mágico ahau, era precedido, treze vezes seguidas, de um número diferente. Durante os treze katun seguintes, a mesma série de números aparecia diante do último dia. Era assim que se processava:

Treze ahau, onze ahau, nove ahau, sete ahau, cinco ahau, { três ahau, um ahau, doze ahau, dez ahau, oito ahau, seis ahau, quatro ahau, dois ahau e depois a série voltava outra vez: treze ahau, onze ahau, nove ahau, etc.

Estes treze katun, a que Landa chamou a «roda dos katun», ; abrangiam um espaço de tempo de treze vezes vinte igual a duzentos e sessenta tun (os anos aritméticos).

, Bastaria então indicar o último dia de um katun, precedido do seu número, para situar este katun neste espaço de tempo; o próprio número bastava, já que se tratava sempre de um dia ahau. Nos livros do Chilam-Balam, por exemplo, para se situar um facto histórico, o autor diz: «No começo do katun oito... no fim do katun seis... a meio do katun sete... aconteceu tal ou tal facto.» Situa-se, pois, com mais ou menos precisão, num espaço de tempo de duzentos e sessenta anos aritméticos. Para os historiadores modernos, o problema é conseguir dispor convenientemente estas rodas de katun na marcha do tempo; um engano na sua colocação pode provocar um erro de duzentos e sessenta anos.

Esta maneira de os Iucatecas contarem o tempo seria, segundo as ideias geralmente admitidas, o produto de uma extrema simplificação do sistema de «conta comprida» dos grandes Maias. Pela nossa parte, vemos aí outra coisa. Para nós, a «roda dos katun» é essencialmente o reflexo da repartição quadripartida do tempo a um escalão superior. Os mil e quarenta anos que a compunham deviam repartir-se pelos quatro pontos cardeais, como o ciclo de cinquenta e dois anos. Haveria, pois, em cada canto do mundo, mil e quarenta a dividir por quatro igual a duzentos e sessenta anos, ou seja uma «roda de katun».

Se este sistema que nós acabámos de mostrar existiu, é provável que se encontrem outros traços dele. Landa, com a sua obra Relações das Coisas do Iucatão, vai uma vez mais oferecer-nos elementos suplementares. Com efeito, notou que o katun era uma entidade muito importante, pois este lapso de tempo era representado por um deus.

Quando o fim de um katun soava, coisa que sucedia de vinte em vinte anos, entrava outro katun em cena, que iria, por seu turno, reinar durante vinte anos. Ora Landa diz-nos que este novo elemento reinava somente durante dez anos, quer dizer, durante a primeira metade. Em seguida, deixava de estar sozinho, porque juntavam a ele o ídolo do katun que lhe sucederia, instalando-o a seu lado no templo. Ambos eram vizinhos durante os dez últimos anos do ciclo. Este segundo ídolo também recebia oferendas, embora menos importantes que as do katun que se encontrava no «trono».

Assim que se passavam os vinte anos era retirado o ídolo do katun que acabara de reinar, e o novo, já colocado no seu lugar há dez anos, ficava só. Por sua vez, a meio do mandato, deveria contar com a companhia do katun seguinte. Esta geminação periódica possuía grandes repercussões mágicas nos fins destes períodos, conforme as qualidades maléficas ou benéficas que se atribuíam ao katun visitante, que eram determinadas pelo pólo em que ele era colocado na organização quadripartida tradicional.

Este mesmo princípio não seria o aplicado na organização social em que o chefe, de determinada linhagem, no exercício das suas funções, cedia o seu lugar, aquando da aproximação do fim do mandato, a um sucessor que tinha o mesmo título que ele, mas que pertencia a uma outra linhagem, colocada num outro pólo?

Aqui, em Yaxchilan, estendido na entrada do pequeno templo, interrogo-me se a cena do lintel, sob a porta, não representaria esta fase importante da vida sócio-religiosa dos Maias. As duas figuras, frente a frente, têm os mesmos trajes e trazem os mesmos distintivos; os seus títulos são idênticos, embora pertençam a linhagens diferentes; o mais alto representa o chefe que está em função e o mais pequeno o seu sucessor.

Do sistema do ciclo de cinquenta e dois anos foi copiado este, de rotação, o mais conveniente à sociedade maia. Permitia impor e repartir de maneira categórica, mas equitativa, todos os aborrecimentos provenientes das tarefas originadas pela construção, manutenção e funcionamento das cidades sagradas.

As fontes escritas que dizem respeito aos Maias do Iucatão confirmam igualmente estes dados. Os questionários postos no final de cada katun, quer dizer, todos os vinte anos aritméticos, aos que irão ocupar altos postos na sociedade é uma prova da existência destas renovações obrigatórias ao nível de elites, em datas precisas; isto é, decalcadas da organização quadripartida do tempo. No fim de cada katun os Maias erigiam estelas sobre as quais esculpiam chefes e nunca deuses. Tais chefes haviam sido justamente os novos eleitos, homens dignos de ocuparem, por sua vez, essas funções durante um katun, visto que tinham respondido com acerto aos famosos questionários. Eram, aliás, perfeitamente capazes de passar por estes exames esotéricos, já que viviam havia dez anos ao lado dos chefes que possuíam todos os conhecimentos requeridos pela sua função.

Todos estes factos são o reflexo de uma rotação obrigatória das elites, copiada da mesma rotação ao nível superior dos calendários (com o número vinte como unidade de medida e não o um). E a roda dos katun é bem um dos quatro elementos idênticos, que, repartidos pelos quatro pontos cardeais, representam um mundo para os Maias.

Eis, pois, esclarecida uma das grandes incógnitas desta civilização.

Ainda nos resta outra incógnita: o ponto de partida cronológico chamado baktun treze. Os especialistas confessam não compreender por que é que os Maias escolheram tal data como ponto de referência da sua história.

Durante meses e anos procurei compreender as razões que presidiram a esta escolha. Os sábios também se dedicaram a isto. Um encadeamento de perguntas, de ideias e de factos obcecam-me nesta solidão de Yaxchilan. Tento ordenar este turbilhão... Renuncio... Volto de novo... Tomo notas, faço cálculos... E, de repente, parece-me que tenho a chave do enigma.

Na escala vigesimal um baktun representa quatrocentos tun ou anos aritméticos.

Portanto, treze baktun igual a treze vezes quatrocentos, ou seja cinco mil e duzentos tun.

Esta data do baktun treze não seria a combinação lógica resultante da união do número treze com o sistema vigesimal adoptado para a contagem do tempo? Não marcaria a fronteira do tempo «organizado» dos Maias? Temos assim:

 

13 kin (dia); mantém o seu valor de 13

13 uinal= 13 X 20 = 260 dias = 1 calendário mágico.

13 tun = 13 x 18 x 20 (360) = 13 tun = 4680 dias = 18 calendários mágicos.

13 katun = 13 x 20 tun (ou 7200 dias) = 260 tun = 93 600 dias = 360 calendários mágicos.

13 baktun = 13 x 400 tun (144 000 dias) = 5200 tun = 1 872 000 dias = 7200 calendários mágicos.

 

Os Maias situavam-se portanto num universo temporal em que eles tinham precisado o conteúdo e os limites: cinco mil e duzentos anos.

Consegui, pois, franquear uma nova etapa. Mas estou convencido de que não darei nem mais um passo nesta aventura calendária se não descobrir o significado e a origem do misterioso número treze.

 

                   VÉNUS, CHAVE DE TODOS OS MISTÉRIOS

Um deus-serpente, esculpido num altar de pedra, olha-me frio e dominador; parece desafiar-me do fundo do baixo-relevo, conservando-se mudo perante as perguntas que lhe faço. Em que é que a explicação dos rituais das mudanças, que eu acabei de encontrar, e o conhecimento da repartição quadripartida do universo maia me poderiam agora ajudar? Deus-serpente! A tua repetida presença na iconografia desta civilização merecia, por si só, ser interpretada...

No Códice de Dresde, o fim do mundo está expresso por uma serpente que despeja uma tromba de água sobre a Terra. Nos Aste-cas, a «Pedra do Sol», também chamada «Calendário Asteca», encontra-se cercada por duas serpentes; no seu interior estão esculpidos todos os números, todos os dias e todos os meses do ciclo de cinquenta e dois anos. Estes dois exemplos — existem milhares de outros — denotam relações íntimas entre o tempo e este réptil. Quais são elas? Nenhuma pesquisa chegou a qualquer conclusão que as determine, e duvido que o consigam... Ainda existem tantas incógnitas no mundo maia e tantos pontos obscuros nos números e nos calendários!

Em primeiro lugar, o famoso número treze; o cinco também é um elemento perturbante, mal definido mas capital. No plano mágico é temível e reencontramos o temor que ele inspira até mesmo no calendário civil solar de trezentos e sessenta e cinco dias, o qual, como vimos era constituído por dezoito meses de vinte dias mais um mês complementar, o Uayeb (a cama do ano), com cinco dias, os «dias sem nome», aqueles que nunca deviam ser nomeados. Eram de tal modo nefastos que as pessoas não saíam de casa, não se lavavam nem se penteavam durante este período. J. E. Thompson pensa, aliás, que uayeb provém de uma palavra que significa envenenado.

Este número cinco intervinha na mitologia como um símbolo de desgraça. Os Maias pensavam que viviam no quarto mundo, ou no quarto sol, o dos homens verdadeiros. Os três mundos precedentes haviam desaparecido num cataclismo, dilúvio, chuva de fogo, etc. Mas, infelizmente, esse mesmo mundo em que viviam seria também para eles o último; deveria terminar devido a uma catástrofe, a fim de deixar o seu lugar ao quinto mundo, símbolo do fim definitivo dos verdadeiros homens. A despeito de todas as precauções para o evitar, o número cinco aparecia obrigatoriamente em certos rituais. O seu lugar oficial na repartição tradicional do universo era ao centro. Este número ainda hoje sobrevive, nestes mesmos locais, em certos rituais dos índios de língua maia. A etnografia e as minhas próprias observações confirmaram-no... No Iucatão, quando os chac deuses da chuva, são invocados para lançar sobre a Terra os seus favores benfazejos, o x'men coloca nos quatro cantos da sua mesa-altar, que representa o mundo, quatro cabaças de balché reservadas aos quatro chac dos pontos cardeais. Coloca igualmente uma ao centro; pretende, num embaraço evidente, que ela se destina ao quinto chac, de quem não se diz o nome, mas que está presente. «É o mais pequeno, mas o mais poderoso», acrescenta o feiticeiro, «e é também o mais perigoso.»

Ainda no Iucatão, o etnólogo americano R. Redfield relata que os índios da cidade de Chamkon acreditam em quatro espíritos protectores, os balam, que residem nos quatro pontos cardeais, onde defendem os campos de milho do ataque dos animais selvagens e dos ventos maléficos. Existe um quinto, designado pelo nome de thup, o «pequeno», mais importante que os outros, sendo o seu lugar no centro do grupo; da mesma maneira que o cenote, poço natural sem o qual a vida não existiria nesta terra ressequida e privada de cursos de água, se encontra no centro do universo citadino orientado, entre os quatro pontos cardeais. Aqui apercebemo-nos bem da ambiguidade do pensamento índio: o cenote é uma fonte de vida, mas é também um local extremamente perigoso no campo da magia; é o responsável por todas as catástrofes que se abatem sobre os homens, porque está colocado no centro, como quinto ponto mágico do mundo. Os habitantes de Chamkon comparam o quinto balam com o polegar, também chamado thup; pode ser facilmente escondido entre os outros dedos; é pequeno, mas essencial.

Este aparecimento esporádico de um quinto pólo no universo quadripartido evoca o famoso suserano que, na índia, domina os quatro reis dos pontos cardeais; não aparece sempre, mas é assinalado; é o caso do joker no nosso jogo de cinquenta e duas cartas: raramente se manifesta, mas existe.

Tentemos agora interpretar as noções relativas ao número cinco; não se fala dele, mas ele está presente; encontra-se colocado no centro e manifesta-se sob a forma de símbolos mais pequenos que os outros, mas mais poderosos; tudo o que o rodeia é mistério. Como se comporta nos calendários?

Tomemos como exemplo o importante ciclo de cinquenta e dois anos de trezentos e sessenta e cinco dias e a sua divisão pelos quatro cantos do mundo. No final deste lapso de tempo, o ano civil atrasou-se treze dias em relação ao ano verdadeiro. Os Maias não ignoraram isto. Era necessário arranjar uma posição para este quinto elemento, estes treze dias na combinação quadripartida. Resolveram então colocá-lo no centro, por altura da intervenção dos anos bissextos, ou seja:

 

         13 anos

         13 anos

         13 dias

         13 anos

         13 anos

 

o que equivale a cinquenta e dois anos solares verdadeiros.

Passando para o escalão superior, o do mundo, os Maias obtiveram, multiplicando cinquenta e dois por vinte, mil e quarenta anos solares.

Estes, repartidos pelos quatro cantos do mundo, davam o seguinte esquema:

 

         260 anos

         260 anos

         260 anos

         260 dias

         260 anos

 

ou seja um total de mil e quarenta anos solares verdadeiros. Faltavam duzentos e sessenta dias para se colocarem a par da marcha do Sol, o que equivale justamente ao tempo de um ano do calendário mágico! Vejamos ainda um quinto elemento, colocado no centro, mais pequeno que os outros, mas igualmente significativo, já que corresponde exactamente ao calendário mágico, tão importante na vida dos Maias.

Na escala do tempo, a vida de um homem era representada pelo ciclo dos cinquenta e dois anos, enquanto os mil e quarenta, como já verificámos anteriormente, figuravam a duração do mundo. Sabemos que os Maias viviam no quarto mundo e que esperavam com angústia a chegada do quinto, com o seu cataclismo final. O seu universo cósmico contava, pois, cinco mundos, ou seja:

 

       1040 anos

       Segundo mundo destruído

       1040 anos

       Quinto mundo futuro, perigoso.

       1040 anos

       Primeiro mundo destruído.

       1040 anos

       Terceiro mundo destruído.

       1040 anos Quarto mundo, o dos homens.

 

O total dava cinco mil e duzentos anos, o que equivale ao universo dos Maias.

Estes cinco mil e duzentos anos civis que acabámos de pôr em evidência, graças ao princípio que nos permitiu fazer as nossas primeiras descobertas calendárias, corresponde ao limite do universo «organizado», o do famoso ponto de partida cronológico do tempo: baktun treze.

A partir de agora temos a certeza de que os Maias dispunham de, pelo menos, dois sistemas paralelos, idênticos na sua forma, para a contagem do tempo em função da repartição quadripartida. Vamos fazer novamente um resumo:

 

             SÉRIE DO TEMPO ARITMÉTICO:

Treze king: número primordial, conserva o seu valor de treze.

Treze uinal: equivalente a um ano mágico de duzentos e sessenta dias.

Treze tun: repartido pelos quatro pontos cardeais. Cinquenta e dois tun ou anos aritméticos.

Treze katun: repartido pelos quatro pontos cardeais. Mil e quarenta tun ou anos aritméticos.

Treze baktun: cinco mil e duzentos tun, valor de cinco mundos (um mundo igual a mil e quarenta anos aritméticos).

Organização do tempo, segundo o ano solar civil:

O princípio era o treze, símbolo do tempo.

Nascimento do homem: casamento do número treze com o número vinte, ou seja duzentos e sessenta, o calendário mágico.

Vida do homem: casamento do tempo mágico e do tempo solar, ou seja cinquenta e dois anos.

Vida de um mundo: cinquenta e dois vezes vinte, ou seja mil e quarenta anos.

Vida do universo: cinco mundos, mil e quarenta vezes cinco, ou seja cinco mil e duzentos anos.

 

Os Maias não se limitaram somente a estes dois sistemas paralelos. Arranjaram um terceiro, aureolado de uma grande importância mágica, e a que eu chamarei Sistema de Vénus, já que está baseado no seu calendário.

Este calendário de Vénus traz-nos uma série de fascinantes revelações a propósito do número cinco e da verdadeira noção do tempo entre os Maias.

Segundo as modernas observações, sabemos que Vénus efectua uma revolução sinódica, ou seja um retorno à posição inicial no céu, dentro de um período de 583,92 dias. Cada uma das revoluções deste planeta divide-se em quatro períodos distintos: durante oito meses é a estrela da manhã, desaparecendo depois por um período de três meses; em seguida, encontramo-lo como estrela da noite durante oito meses, até que desaparece durante catorze dias antes de reaparecer sob a forma de estrela da manhã.

No Códice de Dresde verificámos, com o maior espanto, que os Maias haviam codificado perfeitamente estes períodos, relacionando-os com os intervalos existentes entre duas luas novas.

Todas as medidas dos astrónomos índios são objectivas e ideais. E, no entanto, à observação directa, as revoluções do planeta são irregulares, irregularidades que se escalonam dentro de cinco revoluções sucessivas, tendo, respectivamente, quinhentos e oitenta, quinhentos e oitenta e sete, quinhentos e oitenta e três, quinhentos e oitenta e três, e quinhentos e oitenta e sete dias. Foi estabelecendo a média desta série que os Maias chegaram à extraordinária medida de quinhentos e oitenta e quatro dias para um ano venusiano.

O Códice de Dresde ainda nos revela algo mais: atraídos por estes cinco anos irregulares venusianos, os Maias aperceberam-se de que eles coincidiam perfeitamente com oito anos civis de trezentos e sessenta e cinco dias do seu calendário solar. Os sacerdotes-astrónomos sonharam então em fazer principiar o calendário do ano solar ao mesmo tempo que o calendário de Vénus; decorriam portanto dois mil novecentos e vinte dias, ou sejam oito anos solares e cinco anos venusianos, antes que os primeiros dias dos dois calendários se encontrassem de novo. Coincidência de tal maneira cheia de significado que decidiram «casar» os dois calendários de modo a poderem obter um terceiro, tendo como unidade de base o ano venu-siano-solar de dois mil novecentos e vinte dias.

Ora, enquanto decorria este grande ano, os oito anos solares de trezentos e sessenta e cinco dias que o compunham ficavam com dois dias de atraso perante a verdadeira marcha do Sol (atraso que nós suprimos por meio do emprego dos anos bissextos). Isto significava que, após cento e trinta anos solares-venusianos, os mil e quarenta anos solares civis totalizavam duzentos e sessenta dias de atraso em relação à marcha solar, valor de um calendário mágico, como já vimos antes. Os Maias não ignoravam isto, mas verificaram com estupefacção que estes mil e quarenta anos solares de trezentos e sessenta e cinco dias não apresentavam atraso algum em relação ao calendário venusiano e que, ao contrário, se identificavam perfeitamente com a marcha de Vénus. Encontravam-se, pois, perante um tempo magicamente enfeitiçado, que se atrasava em relação ao Sol mas que se apresentava perfeitamente exacto em relação ao planeta Vénus. Estou convencido de que é exactamente aqui que se encontra a chave para todos os enigmas deste povo.

Consideremos calmamente os factos.

O tempo verdadeiro era determinado pela marcha de Vénus; neste rígido quadro do tempo, o ano solar civil não precisava de correcções bissextas. O ano solar-venusiano tornava-se, em virtude deste facto, um módulo, uma espécie de medida basilar e universal, um ponto de referência exacto para controlar a marcha do tempo e, a partir daí, organizá-la de modo preciso.

O esquema do tempo cósmico devia, forçosamente, enquadrar-se na estrutura deste surpreendente módulo.

As divisões do tempo eram, para os Maias, uma espécie de fardos trazidos pelos deuses em estações repartidas no universo quadripartido. Uma quinta estação, ao centro, aparecia de vez em quando e, segundo este princípio, o ano solar-venusiano dividia-se em cinco anos venusianos, ou estações (quatro nos diferentes pontos cardeais e uma ao centro), e em oito anos solares, ou oito estações no quadro dos precedentes.

Graficamente, esta escala de tempo medido apresentava-se do

seguinte modo:

 

           Vénus                                  Vénus       

         Sol. Sol.                            Sol. Sol.                 

                                Vénus                      

         Sol. Sol.                            Sol. Sol.                 

           Vénus                                  Vénus

        

Imediatamente verificamos que apresenta treze estações de tempo. Eis, portanto, descoberto o significado do famoso número treze, base de todo o problema calendário dos Maias. Sim, estas treze estações determinavam o tempo verdadeiro.

Possuidores de um esquema destes, tudo se tornava claro para os astrónomos maias. Os anos bissextos eram absorvidos pelo centro, eterno ponto mágico e perigoso. De qualquer modo, perdiam a sua importância, já que o ano solar civil de trezentos e sessenta e cinco dias permitia uma precisão maior na medição do tempo verdadeiro determinado pelo planeta Vénus.

O signo de Vénus era, portanto, o número cinco. As etapas deste planeta eram em número de cinco e não de quatro, como o exigia a repartição quadripartida do universo, estando a quinta etapa colocada no centro.

Os sacerdotes-astrónomos entregaram-se afincadamente à procura dos pontos comuns entre o calendário de Vénus e os diferentes calendários, mágico, solar, venusiano-solar. O Códice de Dresde fala-nos do primeiro «casamento» destes quatro calendários. Assim, treze anos venusianos-solares são iguais a sessenta e cinco anos de Vénus, que, por sua vez, equivalem a cento e quatro anos solares e a cento e quarenta e seis anos mágicos.

Encontro fabuloso, que utiliza de modo brilhante o módulo que encontrámos treze vezes sob o signo treze. Mas vejamos: sessenta e cinco anos de Vénus, repartidos pelas cinco estações obrigatórias deste planeta, dão treze anos venusianos por estação; cento e quatro anos solares, repartidos por oito estações, dão treze anos para cada uma delas. Seja:

 

             13 Vénus

           ( 13 Sol. ) ( 13 Sol.)

            13 Sol.

           ( 13 Sol. )

             13 Vénus

             13 Vénus

             13 Vénus

           ( 13 Sol. ) ( 13 Sol. )

           ( 13 Sol. ) ( 13 Sol. )

             13 Vénus.

 

Vejamos se estes encontros se podem adaptar ao sistema aritmético e ao do ano civil e solar precedentemente determinados.

Cento e quatro anos solares civis — sessenta e cinco anos Vénus — cento e quarenta e seis anos mágicos — treze anos Vénus-solares.

Mil e quarenta anos solares civis — seiscentos e cinquenta anos Vénus — mil quatrocentos e sessenta anos mágicos — cento e trinta anos Vénus-solares.

Cinco mil e duzentos anos solares civis — três mil duzentos e cinquenta anos Vénus — sete mil e trezentos anos mágicos — seiscentos e cinquenta anos Vénus-solares.

Um mundo maia (mil e quarenta anos solares civis ou seiscentos e cinquenta anos Vénus) resultava no seguinte esquema:

 

             130 Vénus

           (130 Sol.) (130 Sol.)

           (130 Sol.) (130 Sol.)

             130 Vénus

             130 Vénus

             130 Vénus

           (130 Sol.) ( 130 Sol.)

           (130 Sol.) ( 130 Sol.)

             130 Vénus

 

O total de três mil duzentos e cinquenta anos de Vénus, repartidos pelos cinco locais-chave do universo, dão cinco mundos de seiscentos e cinquenta anos Vénus ou mil e quarenta anos solares.

Temos, portanto, a confirmação do nosso sistema.

A visão cósmica do universo maia apresenta-se sob esta forma:

 

           130 V.

           130 V.

           130 V.

         130 V.

           130 V.

           130 V.

           130 V.

 

           2.o Mundo

           3.o Mundo

           5.o Mundo

           1.o Mundo

           4.o Mundo.

 

Acabei finalmente de dissecar a monstruosa máquina cósmica dos Maias. Ao elaborá-la, os sacerdotes-astrónomos julgaram, sem dúvida, estar na posse da chave do universo. Sentiram a pesada impressão de se julgarem senhores do mundo. Ao impor as leis do tempo à organização social, tornavam-se igualmente os mestres incontestados dos homens. A aritmética, as belas-artes, a astronomia, a escrita, os rituais e os cultos foram inventados e aperfeiçoados no único intuito de melhor servir este tempo, reforçando o poder das elites.

Ora acontece que estes mestres feiticeiros, dominadores dos anos e dos homens, foram as primeiras vítimas desta máquina infernal que trazia consigo o poder da desintegração.

Debrucemo-nos ainda uma vez mais sobre este problema. Já que cada mundo contava mil e quarenta anos, o fim do quarto mundo, o dos maias inventores, o dos verdadeiros homens, deveria sobrevir ao fim de quatro mil cento e sessenta anos, ou seja mil e quarenta vezes quatro. Ora, entre o nascimento do tempo contado e orientado ibaktun treze) e a última data clássica inscrita na pedra decorreram três mil novecentos e oitenta e dois anos. Já somente faltavam cento e sessenta e oito anos para ser franqueada a barreira que representaria o fim do quarto mundo.

Podemos colocar estes factos na nossa própria cronologia: Ponto de partida do tempo maia: 3113 a.C. Fim do quarto mundo: 1047 d.C. (quatro mil cento e sessenta menos três mil cento e treze).

Data da primeira estela clássica: 889 d.C.

Espaço de tempo a viver antes do fim do mundo: cento e cinquenta e oito anos, ou seja mil e quarenta e sete menos oitocentos e oitenta e nove.

Esta proximidade iminente da inevitável catástrofe certamente criou entre a elite maia do século IX um tremendo clima de angústia. Não tinham sido eles os inventores desta devorante máquina de medir o tempo, mas acreditavam ainda mais profundamente nela que os próprios antepassados. Cada dia que se passava aproximava-os do fim do mundo, e tinham consciência disso.

A última estela erigida no âmbito do quarto mundo indica que somente trinta e oito anos separavam os Maias da última etapa de cento e trinta anos civis, tempo maléfico sobre o qual já se debruçava a sombra obcecante do aniquilamento geral. O medo instalou-se então no coração dos homens, uma actividade anormal agitava as cidades sagradas e o povo inquietava-se, tanto mais que o tempo da opulência já passara; lá em baixo, para além das fronteiras da floresta, as tribos do Norte já não reclamavam copal e cauchu para oferecerem aos deuses.

A dois mil quilómetros do Peten, em Xochicalco, no coração dos planaltos do México Central, realizou-se, no século IX, um congresso de astrónomos! E os Maias estavam presentes, segundo no-lo dizem os arqueólogos. Apelara-se para a sua ciência para resolver o problema posto por um eclipse solar. Nos baixos-relevos do templo principal, o visitante ainda pode admirar uma divindade de pedra devorando um sol.

À luz das explicações precedentes, é bem evidente que aquilo representa o desaparecimento do quarto mundo e não um eclipse do Sol. Este congresso de Xochicalco reuniu-se provavelmente na esperança de encontrar, a todo o preço, o meio de fazer face ao aniquilamento anunciado pelos calendários.

Para os Maias, o único modo de escapar era renunciarem ao sistema.

Fugindo desta terra sagrada onde haviam vivido durante séculos e séculos, abandonando à selva invasora os templos, os palácios e os campos de milho, realizavam um fim do mundo voluntário e artificial. Esquecendo o seu esquema cósmico, escapavam miraculosamente ao terrível destino que os esperava. Os Maias tiveram de renunciar a tudo: ao conhecimento, ao poder, à organização social e às belas cidades. As elites foram realmente sacrificadas para salvação dos homens ou então tomaram com eles o mesmo caminho do exílio, para acabarem por se instalar numa outra região e aí levarem uma vida onde somente pudesse intervir o tempo do homem, o único com sabor a eternidade.

A história dos Astecas confirma-nos aquilo que eu acabo de descobrir. Estes índios pretendiam viver no quinto mundo e temiam o número quatro, símbolo do desaparecimento do precedente. Na mitologia deles, quatro mundos já haviam desaparecido antes da sua chegada aos planaltos do Centro do México.

Compreendemos assim melhor o terror que se apoderava do povo asteca no final de cada ciclo de cinquenta e dois anos. Já que eles se encontravam no quinto mundo, o aniquilamento parecia-lhes inevitável e o ciclo restrito de tempo no qual viviam era apenas um sobressalto que se repetia todos os cinquenta e dois anos.

O mesmo acontecia com os índios do Iucatão, que, no entanto, dispunham de um maior intervalo, já que para eles se tratava de uma «roda de ketun» (duzentos e sessenta anos).

A persistência destes sistemas-calendários na América Central até à chegada dos Espanhóis deixa-nos supor que os seus inventores, os grandes Maias, não desapareceram como que por encanto assim que fugiram do Peten. Decididos a nunca mais utilizar, nem sequer a evocar, a sua monstruosa máquina de contar o tempo, na qual há já tantos séculos se baseava a sua civilização, não tentaram voltar a criá-la noutros lugares. Misturando-se com os povos do México e particularmente com os seus primos direitos do Iucatão, as elites foram obrigadas a representar daí para o futuro um papel apagado. Apenas transmitiram uma ínfima parte dos seus conhecimentos àqueles que lhes davam asilo, e foi devido a esse facto que conseguimos reconstituir a fabulosa história dos grandes Maias.

O deus-serpente do baixo-relevo de Yaxchilan continua a fitar-me com o seu ar glacial e dominador. Terei respondido bem ao Questionário? Já há dez anos, meio katun, que eu vivo em contacto íntimo com o mundo maia e chegara a altura de formular as minhas respostas...

Candelário chama-me repentinamente... Meu Deus, tinha-o esquecido por completo. Vamos embora! Yaxchilan não é um laboratório de pesquisas e eu não sou um iniciado maia, mas nunca poderei esquecer as horas que aqui acabei de passar, na solidão destas ruínas. Era-me absolutamente necessário compreender...

Volto à vida e sinto-me feliz. Os meus companheiros esperam-me na margem. Salto para dentro da piroga e verifico a bela pescaria que fizeram.

Kin quer voltar para o seu caribal. Candelário alegra-se perante a perspectiva de descer comigo os rápidos do Chixoy.

Espera-nos aí uma perigosa experiência desportiva, mas a confiança é mútua e ambos gostamos deste género de dificuldades. Quem sabe se o alto Chixoy, deserto e selvagem, não nos reservará belas surpresas? O demónio da aventura de novo me está a fazer sinais...

Avançamos a grandes remadas das pagaias. Passamos pela pequena praia onde há pouco comemos os peixes assados por Candelário.

Kin salta para terra sem dizer uma palavra; para ele acabou-se a aventura. Sigo-o com o olhar preso à sua longa túnica, que flutua ao mesmo tempo que os cabelos, dispersos, lhe caem pelos ombros. Instantes depois, já ele encontra a difícil floresta que tão bem conhece: a sua terra... O seu caminho conduzi-lo-á a qualquer templo arruinado, só dele conhecido, para a sua peregrinação anual? Existem inúmeros Dos Pozos nestas paragens ignoradas...

E aqui vamos nós. Com a ajuda do varal afasto a piroga de terra. O Usumacinta brilha, e hoje parece-me um rio real. Um longo grito de alegria saído da floresta vem até nós. É o adeus de Kin, a sua maneira de nos desejar boa sorte.

Um mesmo ritmo apodera-se das pagaias.

Esta noite estaremos muito longe de Yaxchilan.

 

                                                                                Pierre Ivanoff  

 

                      

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