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CAPÍTULO 38
Depois que Isaac se certificou que Grier estava segura, ele tateou ao redor do quarto dela e ouviu com atenção. Quando a falta de passos, confusão, ou tiros não lhe deu informações, ele continuou a ir em direção à entrada. Outra pausa. Será que ele deveria usar a escada dos fundos? A da frente?
Frente. Era mais provável que uma infiltração ocorresse a partir do jardim dos fundos. Havia mais cobertura nessa direção.
Droga, ele esperava que fosse apenas Jim Heron, mas não achava que o cara ia aparecer assim. E o pai de Grier poderia desativar o sistema – ele já tinha provado que conseguia fazer isso. Então, era evidente que ele não tinha permitido a entrada de quem estava ali.
Maldição, se era alguém mandado por Matthias, por que a chegada não foi anunciada pelo transmissor de alerta? Por outro lado, Isaac não permitiria que entrassem ali dentro e sem dúvida eles sabiam disso: Matthias pode ter exigido que Grier e seu pai estivessem por perto, mas Isaac não estava disposto a deixar que o matassem na frente deles.
Ela nunca superaria isso.
Por favor, Deus, ele pensou. Permita que ela fique onde está.
Andando com as costas deslizando contra a parede, ele desceu as escadas, sempre com sua arma à frente. Sons... onde estavam os sons? Não havia nada, literalmente, se movendo na casa e, considerando que o pai de Grier andava como um leão enjaulado, aquele silêncio todo não era animador.
Assim que a parede terminou e o percurso sem corrimão começou, ele se balançou, se soltou e, deliberadamente, aterrissou com força como uma pedra na sala da frente.
Às vezes, o ruído era um bom direcionador, dando ao seu oponente um alvo para perseguir.
E, como pode imaginar, o “boom” dos pés de Isaac atingindo o chão atraiu o visitante: da cozinha, um homem vestido de preto entrou em sua visão.
O segundo na linha de comando de Matthias.
E ele fez do pai de Grier um escudo humano.
– Quer trocar? – o cara disse severamente.
A arma apontada para a cabeça de Childe era uma automática equipada com um silenciador. Bem, não era surpresa. Era idêntica a que havia nas mãos de Isaac.
Movendo-se lentamente, Isaac curvou-se para baixo e colocou sua arma no chão. Então, chutou para longe.
– Deixe-o ir. Venha, leve a mim.
Childe arregalou os olhos, mas se segurou. Ainda bem.
Isaac virou para a parede, colocou as mãos em cima do gesso e abriu os tornozelos em posição de uma apreensão clássica. Olhando por cima do ombro, ele disse: – Estou pronto para ir.
O segundo no comando esboçou um sorriso.
– Olhe para você, todo condescendente. Traz até uma lágrima no olhar.
Com um movimento rápido, o soldado deu um golpe no pai de Grier com a coronha da arma, o velho Childe caiu ao chão como um saco de areia. Em seguida, foi a vez do segundo no comando caminhar até Isaac, com a arma apontada para ele e com uma atitude inabalável.
Tão estranho quanto isso era o seu olhar negro e fosco.
– Vamos fazer isso logo – Isaac disse.
– Onde está sua outra arma? Eu sei que você tem outra.
– Venha pegar.
– Você quer mesmo brincar comigo?
Isaac se aproximou e pegou sua outra arma.
– Onde você a quer?
– Pergunta errada. No chão e dê um pontapé.
Quando Isaac se inclinou, o outro homem também o fez. E não mudaram de posição até que os dois se endireitassem e Isaac percebesse que sua primeira arma, a do silenciador, tinha sido apanhada por uma mão negra, enluvada.
– Então – o segundo no comando falou devagar – Matthias tem se divertido com as conversinhas que vocês dois têm levado e ele quer que eu o mantenha aqui até ele chegar. – O maldito olhar do bastardo se aproximou. – Mas eis a questão, Isaac: há coisas maiores em jogo e esta é uma situação pela qual seu chefe não é responsável.
O que era aquela coisa de “seu chefe”, Isaac pensou.
E, então, ele franziu a testa ao perceber que o braço do cara, aquele que tinha sido quebrado há menos de dois dias, parecia estar completamente curado.
E aquele sorriso estava errado... havia algo de errado com aquele sorriso também.
– As coisas vão tomar um rumo diferente – o segundo no comando disse. – Surpresa!
Com isso, ele colocou a arma de Isaac no próprio queixo e puxou o gatilho, explodindo sua cabeça por completo.
CAPÍTULO 39
Jim saiu do coma com sua nuca em chamas. Ele não fazia ideia de quanto tempo ficou apagado, mas estava claro que Ad o colocou de novo na cama: a maciez sobre sua cabeça era, definitivamente, um travesseiro e não a barra fria e dura da banheira.
Quando ele se sentou na cama, ficou chocado: sentia-se forte de uma maneira curiosa e milagrosamente estável. Era como se o tempo de descanso que teve... bem, que deve ter durado horas, supondo que estava lendo o relógio direito... tinha o reiniciado por dentro e por fora.
O que era uma boa notícia.
Contudo, a tensão no topo de sua coluna não era nada além de uma coisa: Isaac.
Isaac estava com problemas.
Balançando as pernas para fora da cama na posição vertical e as firmando no chão, não sentiu náuseas, tonturas, dores ou incômodos. Apenas o formigamento na base do crânio – ele não estava apenas pronto para ir, estava rugindo para fazer isso.
– Adrian! – ele gritou enquanto se aproximava de sua mochila e puxava um par de calças jeans.
Onde, diabos, estava o Cachorro?
Através da porta que ligava os quartos, ele pôde ver que as luzes estavam acesas do outro lado, então, o anjo tinha que estar lá.
– Adrian! – ele pronunciou o comando e puxou as calças; em seguida, pegou uma camisa.
– Nós temos que ir!
Ele pegou sua adaga de cristal e a colocou no casaco.
– Ei, Ad...
Adrian estava esparramado no quarto com o Cachorro debaixo do braço.
– Eddie está em apuros.
Bem, aquilo não fez com que a sensação de sua nuca tivesse muita melhora.
– O quê?
Adrian se desfez do Cachorro e deixou que pulasse para dizer “oi” a Jim.
– Ele não está atendendo ao telefone. Eu liguei. E liguei de novo. E liguei uma terceira vez. Nunca aconteceu.
– Droga.
Quando Ad se aprontou, Jim deu uma olhada no Cachorro e colocou um pouco de comida e, em seguida, ele e seu braço direito decolaram, literalmente. Cara, ele nunca foi tão grato por aqueles instrumentos em suas costas com os quais em um piscar de olhos estavam em qualquer lugar: apenas alguns minutos depois, eles estavam em Beacon Hill.
Ele e Adrian desembarcaram no jardim murado em uma chama brilhante e se mantiveram ocultos de olhares indiscretos, pois eram apenas quatro da tarde. A casa parecia bem por fora e o feitiço vermelho reluzente ainda estava no local, mas seu pescoço estava o matando. E onde, diabos, estava Eddie...
– Droga – ele disse cuspindo quando viu as solas das botas de combate do anjo saindo de um arbusto.
Jim bateu os pés no dele e se agachou. O cara estava deitado de costas para baixo, parecendo que tinha lutado contra um trator e perdido.
– Eddie?
O grande anjo abriu os olhos.
– Que inferno... o que... Eu não sei o que aconteceu. Em um minuto eu estava em pé. No seguinte...
– Você parece um tapete de boas vindas.
Adrian estendeu uma de suas mãos para ajudar seu melhor amigo a levantar.
– Que droga foi essa?
– Não faço ideia. – Eddie ficou em pé devagar. Então, ele olhou para Jim e se encolheu. – Jesus Cristo...
Jim franziu a testa e olhou ao redor.
– O que?
– Seu rosto...
Certo, talvez ele apenas estivesse se sentindo melhor. Com sorte, a parte da aparência ficaria boa depois.
– Está dizendo que meus dias de modelo de calendário chegaram ao fim?
– Não sabia que estava nessa. – Eddie balançou a cabeça. – Ouça, Isaac quer falar com você. O mais rápido possível.
Jim olhou para Adrian.
– Você fica com o tapete de boas vindas.
– Como se eu pudesse ir a outro lugar.
Jim correu para casa. A porta dos fundos estava aberta, o que era uma má notícia – e a porcaria só aumentou ao atravessar a cozinha.
Deus, você nunca se acostuma com o cheiro de um ferimento mortal feito à bala: havia diferentes aromas, vísceras, sangue, cérebro, mas as nuances eram todas metálicas em meio aos componentes da bala.
O primeiro corpo que ele encontrou foi de um homem do qual ele conhecia: capitão Alistair Childe. O pobre coitado estava deitado no arco que dava para o corredor da frente, contorcido no chão todo amontoado.
No entanto, não era ele a origem do sangue. Não havia nada na roupa ou no piso e Childe estava respirando regularmente apesar do cochilo forçado por um nocaute.
O corpo número dois estava na metade do caminho da porta da frente e era evidente ser a origem do cheiro... Sim, uau, se Jim se lembrava dos que já tinha visto, o bastardo era um candidato para um caixão lacrado: seu rosto estava distorcido de dentro para fora, a bala deve ter viajado por entre a carne e os ossos de seu queixo e nariz antes de fazer uma saída triunfal no topo do crânio.
Considerando a tatuagem de uma serpente no pescoço do cara, tinha que ser o segundo na linha de comando de Matthias.
E Isaac estava parado próximo ao cara com uma expressão assustada de “Mas que droga!”
Rothe levantou os olhos e as mãos desarmadas.
– Ele fez isso... a si mesmo. Droga... Como está o pai?
Jim se ajoelhou ao lado do capitão para verificar mais uma vez. Sim, Childe tinha sido atingido na cabeça, provavelmente com a coronha de uma arma, mas ele já estava começando a gemer como se estivesse recobrando a consciência.
– Ele vai ficar bem. – Jim se levantou e se dirigiu a Isaac e ao outro cara. Ao chegar mais perto, o cheiro ficou pior...
Ele começou a andar devagar e, em seguida, parou completamente. E esfregou os olhos.
Uma sombra cinza cintilante cobria o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias da cabeça aos pés, movendo-se ao redor dos braços, pernas e da cabeça estourada da mesma maneira que o feitiço de Jim se movimentava e cobria a casa em que estavam. E havia algo de errado com o sangue – cinza e não vermelho brilhante.
Devina, pensou Jim. Ou ela estava no homem ou tinha assumido o controle.
– Ele simplesmente colocou a coisa debaixo do queixo e puxou o gatilho. – Isaac ajoelhou-se sobre os quadris e acenou para a arma que estava na mão direita do cadáver.
– Ele usou minha arma para fazer isso.
– Fique longe do corpo, Isaac.
– Vá se ferrar, eu tenho que limpar isso antes que...
Jim não estava interessado em discutir e agarrou o rapaz, puxando-o para cima e fazendo com que recuasse alguns passos.
– Você não sabe o que é isso.
– Para o inferno que não sei. Ele veio para me pegar.
Jim encarou Isaac.
– A última vez que o vi você estava fugindo.
– Mudança de prioridades.
Que droga, ele é sequestrado por doze horas e o mundo vira de cabeça para baixo: Isaac se entrega, um demônio estava morto na porta de entrada de um civil, nada mais fazia sentido.
– Eu não vou deixar que volte ao trabalho, Isaac. Ou se sacrifique para manter outra pessoa viva. – Pois quanto você quer apostar que era o que estava acontecendo ali?
– A escolha não é sua. E, sem ofensa, mas eu ainda não sei por que você dá a mínima. – O soldado pegou um dos dispositivos das operações extraoficiais que estava disfarçado de transmissor de alerta. – Além disso, não adianta. Eu já me entreguei.
Aquela luz piscando fez Jim querer gritar. E foi o que ele fez.
– Mas que droga é essa que você está fazendo? Matthias vai matá-lo...
– E?
Uma voz aristocrática interrompeu.
– Eu pensei que você se apresentaria com informações sobre Matthias.
Jim olhou sobre o ombro. Alistair Childe tinha ficado em pé e estava se aproximando deles, sua mão na parede como se precisasse de ajuda para se equilibrar.
– Eu pensei que esse era o plano, Isaac. E, Jim, eu pensei que tinha morrido em Caldwell. Três ou quatro dias atrás.
Jim e Isaac passaram por cima de tudo e ignoraram qualquer regra de retórica. O que era fácil de fazer, considerando o quanto precisavam explicar.
O fato de que o segundo na linha de comando tinha entrado e se matado com a arma de Isaac era apenas a superfície da coisa. A verdade principal era que Devina estava por trás de toda a situação. Mas com que finalidade? Se Isaac era o alvo, por que diabos ela simplesmente não o tomou enquanto Jim não estava por perto?
– Ela... ele tinha um bom ângulo para atirar em você? – Jim perguntou. – Em qualquer momento?
– Você quer dizer, para matar? Claro que sim... eu estava contra a parede, com as mãos espalmadas e minhas armas no chão. Esse é um ângulo bom o suficiente para você?
– Isso não faz sentido. – Ele olhou para baixo, em direção ao corpo. – Não faz sentido.
– Temos que nos livrar do corpo – Isaac disse. – Antes que eu vá, temos que...
– Não vou permitir que se entregue.
– Não é da sua conta.
– Que droga...
– Meu pensamento era exatamente esse.
Isaac franziu a testa, os olhos dele se estreitaram ao observar a face de Jim.
– E o que diabos aconteceu com você ontem à noite?
Em uma fração de segundo, Jim realmente considerou bater sua cabeça contra a parede, só que seria redundante, dado o formato em que ele já se encontrava. Como, diabos, ele ia tirar Isaac dessa confusão?
Ele não poderia deixar tudo às claras e explicar o que realmente estava acontecendo: Bem, entenda, eu morri mesmo e Matthias não é o problema. Estou tentando mantê-lo longe de um demônio que quer sua alma. E eu não faço ideia do que ela está fazendo aqui.
Sim, isso seria um desastre total.
Isaac não esperou por uma resposta sobre o rosto de Jim. Era evidente que o cara tinha se metido em alguma briga com oitocentos seguranças ou algo assim e isso não era da sua conta. O que lhe dizia mesmo respeito era o soldado que, de alguma maneira, consertou seu braço como se fosse mágica antes de se matar.
A menos que... gêmeos?
Droga... sim. Tinha que ser. E Matthias usaria isso como um belo instrumento para ajudar a ferrar com a mente das pessoas. Não surpreende que ele tenha escolhido o filho da mãe para ser o segundo na linha de comando.
Quando Jim soltou mais um palavrão e começou a percorrer o caminho do corredor de entrada, Isaac se inclinou e desabotoou rapidamente a manga da roupa do segundo na linha de comando. Nenhum sinal de qualquer coisa no antebraço com relação a uma reparação cirúrgica, não havia evidência de pele ou osso quebrado.
Gêmeos. Tinha que ser.
Com um golpe rápido, ele rasgou a camisa preta, os botões estalaram e saltaram sobre o chão. O colete a prova de balas exposto foi uma surpresa. Sim, era uma edição padrão, mas por que se preocupar com um se a intenção é explodir o crânio feito um balão de festa?
Sem ter certeza exata do que estava procurando, ele puxou as tiras do velcro do colete.
– Mas que... porcaria... – Ele se inclinou para se certificar de que estava enxergando direito.
Por toda a pele do estômago do cara havia profundas cicatrizes que formavam um padrão e quando Jim deu uma olhada nisso e começou outra rodada de palavrões, Isaac continuou a revistar rapidamente. Celular, o qual ele colocou de lado. Carteira com cem dólares em dinheiro, não havia carteira de identidade. Munição. Nada nas botas, a não ser as meias e o solado.
Passando por cima do corpo, ele foi em direção à cozinha para pegar uma lata de lixo. Quando estava puxando a coisa para fora do armário e se perguntava quantos braços e pernas caberiam ali, ele ouviu passos atrás dele. Obviamente, sua plateia de fãs o seguiu, mas vamos lá, pessoal. Chega de conversa; eles precisam de ação. Grier estava trancada no maldito armário lá em cima e ele tinha que limpar toda aquela porcaria antes de deixá-la sair...
– Você mentiu.
Isaac congelou e girou a cabeça. Grier estava parada do outro lado da ilha de mármore, acabando de fechar a porta da adega atrás dela. Mas como diabos ela... Droga, devia ter uma escada secreta que era ligada ao porão. Ele deveria ter adivinhado que havia várias rotas de fuga.
Quando ela olhou para ele estava branca como um lenço de papel e tremia.
– Sua intenção nunca foi se apresentar. Foi?
Ele balançou a cabeça, sem saber o que dizer e bem ciente do que havia no corredor de entrada da casa dela. Aquela situação estava totalmente fora de controle.
– Grier...
– Seu bastardo. Você mentiu seu b... – De repente, ela olhou por cima dos ombros dele. – Você... – Ela apontou para Jim, que estava em pé sob o arco. – Você é quem estava no meu quarto na outra noite. Não é?
Um expressão estranha passou pelos traços de Jim, uma espécie de “agora eu me ferrei”, mas, então, ele apenas deu de ombros e olhou para Isaac.
– Não vou permitir que você se entregue.
– Essa sua música nova está me dando nos nervos – Isaac exclamou ao decidir pegar o lixo e acabar com aquela história.
Conversa fiada, quanta conversa fiada da parte de todos... e todas direcionadas a ele. Mas que seja. Surdez seletiva era algo no qual se destacava quando era criança e, como pode imaginar, a habilidade voltou a ser exercida sem um pingo de ferrugem.
Isaac se curvou embaixo da pia e rezou para que o lugar mais lógico para se colocar sacos de lixo fosse mesmo ali... bingo. Ele pegou dois deles, uma vassoura e uma pá que não iriam sobreviver a esse trabalho em particular.
Deus, ele desejava ter uma serra. Mas talvez com alguma corda, eles poderiam dobrar o bastardo e carregá-lo como uma mala malfeita.
– Fique com ela – ele disse ao pai. – E a mantenha aqui...
– Eu vi o que aconteceu. – Quando Isaac congelou, ela o encarou. – Eu o vi fazer aquilo.
Houve uma pausa longa e silenciosa, como se ela tivesse acorrentado todos os homens do local.
Ela balançou a cabeça.
– Por que você fingiu que iria adiante com isso, Isaac?
Quando ela o encarou, a confiança tinha desaparecido de seus olhos. E, no lugar, havia um olhar frio – o qual ele imaginava que as pessoas que trabalhavam em laboratórios exibiam ao observar resultados de culturas em uma placa de Petri.
Não havia o que dizer a ela, não podia negar a mudança. E talvez fosse melhor assim. De qualquer maneira, eles não tinham que estar juntos – e isso era para ser assim até mesmo antes dele mergulhar na busca de excelência profissional na área de matar pessoas.
Isaac pegou seu kit de empregada feliz e se dirigiu para a entrada.
– Eu preciso tirar o corpo de lá.
– Não fuja de mim – ela gritou.
Ele ouviu Grier vindo atrás dele como se tivesse a intenção de gritar um pouco mais, então, ele parou e girou sobre os calcanhares ao chegar ao arco. Quando ela estacou para não passar por cima dele, Isaac olhou bem dentro de seus olhos.
– Fique aqui. Você não quer ver...
– Vá se ferrar! – Ela o empurrou, marchando até... – Oh... Deus... – Ela sufocou a palavra, sua mão subiu até a boca.
Bingo, ele pensou sombriamente.
Felizmente, o pai dela estava ali, aproximou-se e a direcionou gentilmente para longe daquela visão.
Amaldiçoando a si mesmo e tudo relacionado à sua vida, Isaac continuou até a entrada, mais determinado do que nunca a cuidar do problema... só que seu senso de urgência deu um tempo quando chegou ao corpo.
Um celular estava na mão do cadáver e a coisa estava enviando uma mensagem; a pequena tela no telefone estava brilhando com a imagem de um envelope entrando em uma caixa de correio várias vezes.
Certo. Hora de retomar alguns conceitos aqui: gente que não tinha o lobo frontal geralmente não pegava o celular e discava alguma coisa nele.
Um pequeno aviso brilhante apareceu indicando sucesso.
– Isaac, você vai precisar de mais do que uma pá para lidar com isso.
Ao som da voz de Jim, ele olhou sobre o ombro. E teve que piscar algumas vezes. O homem estava parado na parte escura do corredor, bem longe da luz, que passava pelos arcos, vinda da sala de estudos e da biblioteca... mas ele estava iluminado, havia um brilho em torno dele da cabeça aos pés.
O coração de Isaac deu altos pulos na caixa torácica. Então, pareceu tomar um pouco de fôlego.
Muitas vezes, ele esteve no campo, em meio a uma missão e as coisas não deram certo: você acha que sabe os hábitos e recursos de seu alvo, os pontos fracos e fortes, mas quando está prestes a atacá-lo, a paisagem muda como se alguém tivesse jogado uma bomba no meio da praça do seu plano perfeito. Era o mau funcionamento de uma arma. Uma testemunha em potencial que fazia com que perdesse a hora certa. O alvo pisando fora da faixa indicada.
O que você tinha que fazer era recalcular rapidamente a situação e Isaac sempre foi excelente nisso.
Que inferno, aquele jogo de videogame o treinou de maneira involuntária a abrir totalmente sua mentalidade para agir rápido.
Mas aquela porcaria estava fora de sua especialidade. Bem fora.
E isso foi antes de Jim empunhar uma longa adaga... que era feita de cristal.
– Você vai deixar com que eu cuide disso agora. Afaste-se do corpo, Isaac.
CAPÍTULO 40
Matthias passou muito tempo dentro daquela igreja de pedra. E, quando finalmente ele se esforçou para sair, concluiu que tinha permanecido lá uma hora ou mais, mas no instante em que olhou para a posição do sol no céu, percebeu que tinha perdido toda a manhã e a maior parte da tarde.
Ainda assim, ele teria ficado mais se pudesse.
Ele não era um homem religioso, mas havia encontrado uma paz chocante e rara debaixo daquelas galerias de vitrais e diante do altar glorioso. Mesmo agora, quando sua mente lhe dizia que aquilo era tudo besteira, que o lugar era apenas um edifício e que ele estava tão cansado que poderia dormir até numa montanha russa da Disney – apesar de tudo isso, seu coração se sentia melhor.
A dor havia cessado. Logo depois que ele se sentou, a dor em seu braço e peito esquerdo tinha desaparecido.
– Tanto faz – ele disse em voz alta ao chegar ao carro. – Tanto faz, tanto faz...
Voltar ao jogo era algo pelo qual ele se sentia compelido a agir e havia uma picada agradável com relação a isso, como se estivesse arrancando a casca de uma ferida. De alguma maneira, ele estava cativado pelo que tinha encontrado na igreja, mas seu trabalho, seus atos, seu modo de vida formavam um turbilhão que o sugava e o mantinha assim e ele, simplesmente, não tinha energia suficiente para lutar contra isso.
E depois... talvez houvesse um meio termo, ele pensou, quando fosse tratar de Isaac Rothe. Talvez ele pudesse fazer com que o rapaz continuasse a trabalhar em uma área diferente. Era evidente que o soldado tinha respondido bem às ameaças contra Grier Childe – o que poderia ser o suficiente para mantê-lo na linha.
Ou... ele poderia deixar o cara ir.
No instante em que o pensamento cruzou sua mente, algo dentro dele o atingiu como se aquilo fosse uma grande blasfêmia.
Irritado consigo mesmo e com a situação, ele ligou o motor e verificou o telefone. Nada vindo de seu segundo na linha de comando. Onde diabos estava o bastardo?
Ele enviou uma mensagem de texto exigindo uma atualização e dando seu tempo estimado de chegada, o que, naquele momento, seria depois do anoitecer. Para o inferno com a história de fora do estado. Era melhor que o filho da mãe estivesse com Isaac Rothe amarrado a uma cadeira antes de Matthias arregaçar as mangas – e Deus o ajudasse se tivesse matado Rothe.
Quando a impaciência contorceu suas mãos sobre o volante, Matthias saiu da calçada e pegou a estrada graças à tela do GPS no painel. Ele tinha seguido menos de um quilômetro antes da dor sob seu peito voltar, mas era como vestir uma roupa com a qual ele já estava acostumado depois de experimentar os trajes de outra pessoa: fácil e confortável de uma maneira maldita.
Seu telefone disparou. Mensagem de foto. Do seu segundo na linha de comando.
Quando ele aceitou, ficou aliviado. Uma confirmação visual de que Isaac estava vivo e sob custódia era uma coisa boa...
Não era uma imagem de Isaac. Eram os restos do rosto de seu subordinado. E aquela tatuagem de cobra que percorria a garganta do homem era a única maneira de ter certeza que era ele.
Abaixo da imagem dizia: Venha me pegar – I.
O primeiro e único pensamento de Matthias foi... mas que droga. Que filho da mãe maldito. Que diabos Rothe estava pensando? Que droga, se as ameaças contra sua querida, doce e encantadora Grier Childe não funcionaram, Isaac era totalmente incontrolável e, portanto, ele tinha que ser sacrificado.
Uma fúria cruel fez com que abandonasse os últimos resquícios remanescentes de seu tempo na igreja, uma fonte de vingança emanava e rugia. Quando essa sensação o atingiu, no fundo de sua mente, ele teve uma ideia concluindo que aquele não era ele, que a precisão fria e cortante de pensamento e ação que sempre foram sua marca registrada o teriam impedido de provocar aquele pico de destruição. Contudo, ele era incapaz de se afastar da necessidade de agir – e agir de maneira pessoal.
Chega de mandar outros fazerem o trabalho sujo... havia inúmeros agentes que poderia ter convocado, mas ele ia cuidar disso sozinho.
Da mesma maneira que teve que ver o corpo de Jim Heron com seus próprios olhos, ele iria até lá e acabaria com Rothe sozinho.
O homem tinha que morrer.
CAPÍTULO 41
Quando Grier se sentou no sofá no canto da cozinha, ela se lembrou de sua escolha pelo direito ao invés da medicina e soube que tinha tomado a decisão certa: ela nunca teria estômago para ser médica.
Suas notas e aproveitamento a permitiriam entrar em qualquer uma das graduações, mas o fator decisivo foi Anatomia Humana, que já ministravam no primeiro ano de faculdade: um olhar naqueles corpos durante sua excursão de pré-admissão e ela teve que colocar a cabeça entre os joelhos e tentar respirar como se estivesse em uma aula de ioga.
E, como pode imaginar, o fato de que havia alguém em uma condição ainda mais desagradável à frente era muito pior.
Surpresa, surpresa.
Outro choque para o momento – não que ela precisasse de um – foi a mão de seu pai fazendo círculos calmos e lentos em suas costas. As vezes em que ele tinha feito alguma coisa assim foram poucas e há muito tempo, isso porque ele não era o tipo de homem que lidava bem em mostrar suas emoções. E, ainda assim, quando ela realmente precisava disso, ele sempre estava lá: na morte de sua mãe. Na de Daniel. No terrível término de relacionamento com o cara com quem ela quase se casou logo depois que saiu da faculdade de direito.
Aquele era o pai que ela conhecia e a quem amou durante toda sua vida. Apesar das sombras que o cercavam.
– Obrigada – ela disse sem olhar para ele.
Ele clareou a garganta.
– Eu não acredito que mereço esse agradecimento. Tudo o que está acontecendo é por minha causa.
Ela não podia discutir isso, mas não tinha forças para condená-lo, especialmente considerando a terrível dor expressa em sua voz.
Agora que sua raiva tinha passado, ela percebeu que sua consciência iria assombrá-lo até o dia de sua morte e essa era a punição que ele merecia e que iria carregar. Além disso, ele já teve que enterrar uma criança, um filho imperfeito a quem ele tinha amado do seu jeito e que tinha perdido de uma maneira horrível. E, embora Grier pudesse passar o resto de seus dias se afastando dele e o odiando pela morte de Daniel... ela estava mesmo disposta a carregar esse fardo?
Ela pensou no corpo no corredor da frente e como a vida poderia ser arrebatada no intervalo de uma respiração e outra.
Não, ela decidiu. Ela não ia permitir que a mágoa e a raiva que sentia a afastasse do que restava de sua família. Levaria tempo, mas ela e seu pai iriam reconstruir seu relacionamento.
Pelo menos essa era uma coisa verdadeira e certa que Isaac havia dito.
– Não podemos chamar a polícia, podemos? – ela disse. Pois com certeza alguém que aparecesse ali em um uniforme seria caçado também.
– Isaac e Jim vão cuidar do corpo. É isso o que eles fazem.
Grier estremeceu com a ideia.
– Será que ninguém vai sentir falta dele? Qualquer pessoa?
– Ele não existe. Não de verdade. Qualquer família que ele tenha pensa que está morto... Esse é o requisito para os homens que entram nessa área das operações extraoficiais.
Deus, moralmente, ela tinha uns doze problemas com relação à morte. Mas ela não ia colocar sua vida em risco pelo cara que tinha sido enviado para matar Isaac e talvez matar a ela também.
Só que... bem, aparentemente, ele tinha cometido suicídio com testemunhas.
– O que vamos fazer? – ela disse, falando alto e sem esperar uma resposta.
E aquele nós na frase se referia a ela e seu pai. O nós não incluía Isaac.
Ele mentiu. Na cara dela. De fato, ele teve contato com aquelas pessoas terríveis – e, por algum tempo, ela pensou que tinham um plano. É claro que ele não ia trair seu pai, mas era apenas uma medida de prevenção, pois era evidente que tinha decidido se entregar – ou pelo menos era o que parecia. Um homem como ele, que lutava como ele e ficava à vontade com armas? Era muito mais provável que decidisse matar quem estivesse o levando em custódia e fugir do país livre, leve e solto.
Tudo bem. Ela permitiria que ele partisse.
Ele não era nada além de atração sexual embalada em uma caixa com uma bomba-relógio – e aquele som era o cronômetro da bomba que havia em todas as pessoas atraentes. E aquela coisa de “eu te amo”? A questão com os mentirosos é que você acredita em qualquer coisa que eles dizem por sua conta e risco – e não só nas coisas que você sabe serem falsas. Ela não tinha certeza de qual era a pegadinha a respeito daquela “confissão”, mas ela sabia agora que aquilo tudo não passava de fumaça.
Grier havia se decidido, estava cansada demais para qualquer coisa além da dormência. Bem, dormência e a sensação de ser uma idiota. Mas, vamos lá, como se aquela “rara combinação” de brutalidade e gentileza realmente existisse.
– Espere aqui – seu pai disse.
Quando ele se levantou, ela percebeu dois homens grandes entrando na cozinha. Os dois seguiam os mesmos moldes de Isaac e definitivamente não estavam mortos assim como Jim Heron – e a visão deles era ainda outro lembrete do que estava acontecendo no corredor da frente.
Contudo, ela precisava de ajuda para se lembrar disso?
– Somos amigos de Jim – o homem com uma trança disse.
– Aqui – Heron gritou pela passagem do corredor.
Quando os dois saíram com seu pai em direção ao corpo, ela ficou irritada consigo mesma e tentou tomar uma atitude mental madura. Quando se levantou, sua cabeça girou, mas aquela sensação rodopiante retrocedeu enquanto ela ia até a cafeteira e começava os movimentos para fazer um pouco de café fresco.
Filtro. Ok.
Água. Ok.
Pó de café. Ok.
Botão ligar. Ok.
A normalidade daquele ato a fazia se recompor um pouco mais, e quando o café ficou pronto, Grier estava preparada para lidar com a situação.
Algo bom também. Era hora de pensar no futuro... no que estava além daquela noite feia e daqueles angustiantes últimos três dias.
Infelizmente, sua mente era como um espectador de um acidente de carro, demorando-se em torno dos destroços retorcidos e dos corpos no chão, presa nas memórias dela e de Isaac juntos. Contudo, em dado momento, ela interrompeu aquele foco doentio, seu lado racional atuava como um tira e forçava seus pensamentos a se moverem, a seguir em frente agora.
A questão era que Isaac tinha entrado em sua vida por uma boa razão: graças a ele, ela finalmente tinha aprendido a lição que a morte de Daniel tinha para lhe ensinar. Moral da história? Por mais que você quisesse que alguém mudasse e acreditasse que essa pessoa poderia mudar, cada um tem o controle sobre sua própria vida. Não você. E você poderia atirar-se contra a parede de suas escolhas até que estivesse cheio de hematomas e tonto demais, mas a menos que decidisse tomar um rumo diferente, o resultado não será aquele que você deseja.
Aquela percepção não ia impedi-la de ajudar pessoas na cadeia ou assumir casos voluntariamente. Mas era hora de colocar alguns limites no quanto ela tinha que se doar... e o quão longe ela estava disposta a ir. Em todas as suas atitudes exageradas de boa samaritana, ela tentava ressuscitar Daniel – mesmo sabendo que conversar com seu fantasma deveria ser a primeira dica de que ele não iria voltar. No entanto, ao descobrir a verdade sobre o que tinha acontecido com ele e na tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio para si, talvez ela pudesse finalmente deixá-lo descansar e seguir em frente.
Tomando outro gole em sua caneca, ela sentiu um pouco de paz apesar das circunstâncias bizarras...
Neste momento, outro disparo se ouviu vindo da parte da frente da casa.
No corredor, Jim tinha acabado de se aproximar do corpo com a adaga de cristal quando sentiu a presença de Eddie e Adrian na cozinha. Deus, o momento para a entrada deles era perfeito. Ele estava preparado para agir por conta própria, mas ter cobertura nunca foi uma má ideia.
– Estou aqui – ele gritou.
Os dois vieram direto e nenhum parecia surpreso com o que estava no chão.
– Oh, cara, Devina tomou conta desse aí – Ad murmurou ao caminhar até os restos.
– O que diabos você está fazendo com essa adaga? – Isaac perguntou.
Bem, na verdade, ele ia fazer um rápido exorcismo. Essa era a única maneira de ter certeza que Devina estava fora...
A primeira pista de que o cadáver estava reanimando foi uma contração nas mãos. Em seguida, rapidamente, aquele pedaço de carne se ergueu do chão e conseguiu focar um globo ocular que parecia estar funcionando.
E não é que isso o fez se lembrar de Matthias?
Isaac soltou um grito e disparou sua arma, mas foi como atirar um elástico com força em um touro enraivecido.
Jim empurrou o soldado para fora do caminho e atacou dando um bote, seu corpo arremessou o zumbi contra a parede. No momento em que o impacto foi feito, a imagem do rosto de Devina sobrepôs os traços dizimados do homem cujo corpo ela tinha assumido o controle, a reconfiguração metamórfica das características sorria de satisfação para ele.
Como se ela já tivesse vencido.
Jim atacou com a faca em um golpe rápido e poderoso, a adaga de cristal penetrou entre os olhos corpóreos e também os metafísicos.
Um som estridente explodiu do zumbi e uma haste de fumaça negra subiu em um fedor vil, a névoa escura se fundiu e, em seguida, fez um caminho rápido para a porta da frente. No último segundo, a coisa brilhou sob os painéis da frente, como se tivesse sido sugada do outro lado – e na sua ausência, o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias caiu no chão como o saco de ossos que era, a fonte de sua animação não sustentava mais os limites de sua carne.
– Agora está morto mesmo – disse Jim ao respirar com dificuldade.
No silêncio chocante que se seguiu, ele olhou para Isaac por cima do ombro. Os olhos do cara dariam uma grana no quesito diâmetro se fossem pneus de caminhão e havia água escorrendo deles. Adrian e Eddie esvaziaram os canos da arma de cristal sobre sua cabeça para protegê-lo.
Bom lance. Só que... o demônio nem sequer tentou se aproximar do soldado. Ele decolou na direção oposta.
Os circuitos mentais de Jim lembravam a loucura de Las Vegas, seus instintos gritavam que aquilo estava errado. Muito errado. Segunda chance de pegar Isaac... e Devina deixou passar. De novo.
Por que ela...
Como uma cortina sendo arrancada de uma janela, a paisagem do jogo de repente ficou clara e abalou seu âmago. Mas que droga...
Perdendo de maneira abrupta o equilíbrio, ele estendeu sua mão e segurou-se na parede.
– Não é você – ele disse a Rothe sombriamente. – Oh, Deus nos ajude, não é você.
Quando Grier Childe surgiu no arco, vinda da cozinha, Isaac falou.
– Estamos bem. Todo mundo está bem.
O que era verdade até certo ponto. Claro, Devina aparentemente desapareceu seguindo e estilo “Elvis não morreu” e deixou o prédio. E, sim, ninguém no grupo brilhava com uma sombra profana e o pescoço de Jim não gritava mais “Oh, meu Deus!”. Mas eles estavam longe de se sentirem ótimos.
A questão urgente agora era... quem aquele demônio estava procurando? Por qual alma eles estavam lutando?
O celular, Jim pensou.
Quando todas as pessoas começaram a falar e o ar se encheu com suas vozes, ele colocou o ruído de lado e se agachou sobre os quadris. Do lado do corpo, agora duas vezes morto, ele pegou o telefone do chão e acessou a caixa de mensagens enviadas.
Ele reconheceu imediatamente o último número que tinha sido discado.
Matthias teve acesso à imagem.
A clareza fria que sobreveio a Jim trouxe a ele uma espécie de terror: ele estava tentando salvar o alvo... quando, o tempo todo, ele deveria ter focado o atirador.
CAPÍTULO 42
Reflexo, não reflexão.
Era nesse ponto em que Isaac se encontrava ao ficar em pé no corredor de Grier com algum tipo de solução escorrendo pelo seu nariz e queixo.
Seu cérebro poderia passar uma ou duas décadas tentando descobrir o que ele tinha acabado de ver, mas isso requeria um tempo que ele não tinha. Por mais que ele não entendesse – e aquele buraco negro era do tamanho de um estádio de futebol – ele ia ter que confiar no que seus olhos mostraram e deixar por isso mesmo: ele tinha visto um homem morto se levantar; ele atirou no bastardo e a única coisa que conseguiu derrubar de novo o cadáver foi algum tipo de faca de cristal ou vidro. Em seguida, alguma coisa deixou o corpo e escapou por baixo da porta da frente.
Era o tipo de coisa que acontecia no sKillerz, quando se passava para o mundo paranormal do jogo. Com um toque no controle, as regras normais iam para o ralo e você entrava em um universo alternativo onde as pessoas poderiam desaparecer na sua frente, vampiros viviam nas sombras e homens pálidos vinham atrás de você ao invés de seres humanos.
Claro, aquilo era uma brincadeira a qual você poderia desligar – e não havia um botão de pausa nessa situação. Razão pela qual ele ia gastar muita energia para entender tudo isso. Sim, claro, talvez depois que isso estivesse terminado ele pudesse perguntar a Jim o que diabos tinha acontecido... mas isso apenas se houvesse um “depois”.
Da maneira como as coisas estavam indo, algumas pessoas paradas naquela entrada poderiam muito bem ser direcionadas para uma “outra vida”.
– Para onde foi aquilo? – ele perguntou a Jim. – Não aquela coisa preta, a imagem.
Quando Jim olhou o celular, a voz do segundo na linha de comando lhe veio à mente: Matthias não está no comando. Então, isso significava que algum outro cabeça estava planejando um determinado resultado ao acionar as alavancas e roldanas dos vários fantoches em cena.
– Quem? – ele repetiu.
– Matthias recebeu – disse Heron, levantando-se.
– Matthias é... um daqueles? – Quando Isaac apontou o cadáver detonado, ele pensou que era ótimo estar em uma situação onde não havia termos para descrever nada.
– Não era quando o vi ontem à noite.
Bem, talvez isso explicasse por que o rosto do cara tinha sido usado como um saco de pancadas. E, sim, se os dois sobreviveram a isso, Jim tinha algumas explicações a dar.
– Você é um deles? – Isaac perguntou.
O tema do jogo de perguntas e respostas estava sugerido quando Jim olhou para seus dois colegas, depois para Grier e seu pai.
– De certa maneira, sim. Mas estamos do outro lado.
Isaac balançou a cabeça e deixou tudo isso para mais tarde. O mais importante agora era o caminho que estavam tomando por uma série de acontecimentos.
– Matthias tem essa imagem e ele vai pensar que eu matei... o cara... isso... tanto faz.
Etapa dois da extrapolação? Matthias viria mesmo atrás dele para matá-lo agora.
– Para quem você está ligando? – ele perguntou quando Jim colocou aquele telefone no ouvido como se estivesse fazendo uma ligação.
O cara pronunciou, Matthias... e, então, a próxima coisa que saiu de sua boca foi uma maldição.
– Maldito correio de voz.
E os outros continuaram falando. Isaac puxou Heron de lado.
– “Não sou eu.” Diga-me o que isso quer dizer.
– Não temos tempo...
– Temos um minuto e meio. Eu garanto.
– E isso não vai esclarecer nada, afinal. – Os olhos entediados de Jim encontraram os de Isaac. – Você se lembra do que eu disse quando o vi pela primeira vez? Que não ia deixar que nada acontecesse com você? Era verdade. Mas eu tenho que ir.
Isaac apertou o braço do cara, o mantendo no lugar.
– Onde?
Jim olhou seus dois colegas.
– Eu tenho que ir até Matthias. Acho que ela está atrás dele.
Quem era ela, Isaac se perguntou. E então ele se deu conta.
– Então, você não tem que ir a lugar algum. Quer vê-lo? – Ele puxou o transmissor de alerta e o deixou oscilar em sua corrente enquanto apontava para o próprio peito. – Tem sua isca bem aqui.
No final, a mala que Grier tinha feito acabou sendo necessária.
Ela iria com seu pai ficar em Lincoln por alguns dias – Isaac e Jim iam ficar para trás na casa dela para enfrentar aquele homem, Matthias. Apesar de ser estranho dispor a casa de sua família para estranhos, a realidade era que o local oferecia saídas que facilitariam as coisas para os dois homens.
E independentemente do que pensava sobre eles, ela não tomaria partido de suas mortes se pudesse fazer alguma coisa sobre isso.
Tragicamente, não havia mais o que falar sobre o que estava por vir e seu pai havia suspendido seus contatos. Isaac não ia dizer uma palavra sobre nada e seu pai não sabia o suficiente para promover um dano concreto – assim, os riscos, contrapostos aos possíveis benefícios, simplesmente não justificavam.
O que tinha acabado com os planos. Mas esse era o mundo real.
Olhando para sua mala, ela decidiu que deixar o local tinha muitos benefícios. Ela não queria estar por perto durante a remoção daquele corpo – não havia necessidade de ver isso em um dia bom, muito menos com as coisas se encaminhando daquela maneira. Além disso, ela simplesmente precisava de um tempo. Quando as coisas com Isaac começaram, aquilo já era tão familiar, toda aquela exaustão, os eventos e crises contraditórias. Mas ela estava cansada... e determinada a manter sua nova convicção: tempo para sair, se afastar, deixar para trás.
Então, ela estava indo para Lincoln com um coração pesado, mas os olhos estavam bem abertos.
Pegando a segunda temporada do Three’s Company da estante, ela destrancou a mala para colocá-la dentro...
Grier enrijeceu e se preparou.
Dessa vez, pela primeira vez, ela sabia que Isaac estava em pé na soleira da porta de seu quarto, embora não tivesse batido.
Olhando por cima do ombro, ela viu que seu cabelo estava revolvido por causa daquela solução que tinham derramado sobre sua cabeça e seu olhar estava tão intenso como nunca.
– Vim para dizer adeus – ele murmurou baixinho, aquele delicioso sotaque sulista percorria as palavras de uma maneira profunda. – E para dizer que sinto muito por ter mentido para você.
Quando ele deu um passo dentro do quarto, ela se voltou para a mala, deslizando o DVD para dentro e fechando a tampa.
– Sente muito?
– Sim.
Ela produziu um clique nas duas trancas ao encaixá-las.
– Sabe, a parte que eu não entendo é por que você se importa. Se você nunca teve a intenção de ir adiante com isso, por que conversou com meu pai? Ou por que fez isso chegar até ele? Para descobrir o quanto ele sabe e, então, avisar seus amigos? – Quando ele não respondeu, ela se virou. – Seria isso?
Seus olhos percorreram seu rosto como se estivesse memorizando.
– Eu tinha outra razão.
– Espero que seja boa o suficiente para arruinar a confiança que eu tinha em você.
Isaac assentiu devagar.
– Sim. Ela é.
Bem, aquilo não a fez se sentir menos usada.
Grier pegou sua mala de mão e ergueu a coisa da cama.
– E você acabou fazendo isso de novo.
– Fazendo o que?
– Ativou o maldito transmissor de alerta. Chamou aquele pesadelo do Matthias. – Ela franziu a testa. – Eu acho que você tem vontade de morrer. Ou algum outro plano que eu não consigo adivinhar. Mas, de qualquer maneira, não é da minha conta.
Olhando para o rosto belo e rígido ela pensou, Deus, isso dói.
– Enfim, boa sorte – disse ela, perguntando-se se no final da noite ele estaria nas condições daquele outro agente.
– É verdade aquilo que eu disse, Grier. Na cozinha.
– Difícil dizer o que é real e o que é mentira, não é mesmo?
Seu coração estava partido, apesar de não fazer qualquer sentido e, em face da dor, tudo o que ela queria era fugir do homem que estava parado tão quieto e poderoso do outro lado do quarto.
Na verdade, do outro lado de sua vida.
– Adeus, Isaac Rothe – murmurou ela, caminhando para a porta.
– Espere.
Por um breve momento, um tipo de esperança estranha e desastrosa alçou voo em seu peito. No entanto, a chama não durou. Era feita de fantasias e emoções fantásticas.
Contudo, ela deixou que ele se aproximasse enquanto estendia alguma coisa para ela.
– Jim pediu que lhe desse isso.
Grier pegou o que havia em sua mão. Era um anel – não, um piercing, um pequeno círculo de prata escuro com uma bola na qual a extremidade estava rosqueada. Ela franziu a testa enquanto olhava para a inscrição minúscula que percorria o interior. Era um idioma do qual ela não estava familiarizada, mas reconheceu o carimbo onde se lia PT950. O aro era feito de platina.
– Na verdade, é de Adrian – Isaac murmurou. – Eles estão dando isso a você e querem que o use.
– Por quê?
– Para mantê-la em segurança. Foi o que disseram.
Era difícil de imaginar o que a coisa poderia fazer por ela, mas servia em seu dedo indicador e quando Isaac respirou fundo, aliviado, isso a deixou um pouco surpresa.
– É apenas um anel – ela disse suavemente.
– Não tenho certeza se alguma coisa pode ser considerada como “apenas” neste momento.
Ela não podia discordar.
– Como você vai tirar aquele corpo de lá?
– Removendo.
– Bem, isso é com você. – Ela deu uma última olhada para ele. A ideia de que ele poderia ser morto em questão de horas era inevitável. E assim era a realidade de que, provavelmente, ela não saberia o que ia acontecer com ele. Ou para onde iria se sobrevivesse. Ou se ele dormiria em uma cama segura de novo.
Sentindo-se escorregar, ela caminhou até a mala, acenou para ele e saiu, deixando-o para trás.
Não havia outra escolha.
Ela tinha que cuidar de si mesma.
CAPÍTULO 43
A escolha tinha que ser resultado do livre-arbítrio.
Esse era o problema com essa coisa da disputa: a alma em questão tinha de escolher o seu caminho segundo sua própria vontade quando chegasse à encruzilhada.
Quando Devina saiu de sua suíte no hotel, ela pensou sobre o quanto odiava aquela besteira de livre-arbítrio. Era muito mais eficiente para ela tomar posse e dirigir o ônibus, por assim dizer. No entanto, de acordo com as regras, o Criador limitou o impacto que ela era autorizada a produzir.
Jim Heron era o único que poderia lidar com as almas... o único que poderia, de alguma maneira, tentar influenciar as escolhas.
Dane-se Jim Heron.
Dane-se aquele bastardo.
E também se dane o Criador nessa questão.
Ela puxou uma toalha da haste de bronze e secou o corpo da bela morena, pensando o tempo todo que aquela era uma morada muito melhor do que aquele soldado com tatuagem de cobra. Mas ela não tinha tempo para fazer o retorno adequado àquela carne. A rodada final com a alma atual em jogo não estava apenas se aproximando – estava acontecendo.
Hora de acertar as contas do jogo e vencê-lo.
Depois de desocupar a pele familiar do segundo na linha de comando de Matthias, ela se esvaiu no ar e livrou-se daquela casa de tijolos. O seu lado rancoroso queria estacionar dentro daquela advogada ou no pai dela – apenas por diversão, pelas risadas e pelo drama que isso causaria. Mas da forma como as coisas estavam, ela não achou que fosse uma boa ideia: tudo estava tão perfeitamente organizado, as predileções dos jogadores e as inclinações de como agiriam já garantidas.
Era o equivalente a uma roupa de corte perfeito.
E ela precisava ganhar essa por razões que iam além do jogo: Devina queria dar o troco pelo desempenho de Jim Heron em seus aposentos privados. E não aquele com seus subordinados, mas de quando estavam os dois sozinhos.
Ela estava totalmente despreparada para seu ataque. Ou foi o fato de que ele estava muito mais determinado do que apenas um anjo. Adrian e Eddie não poderiam ter feito nada parecido. Ela não conhecia ninguém que pudesse.
Aquilo não fazia sentido – Jim Heron foi escolhido para um papel definido e deveria ser um lacaio nem bom, nem mau. De fato, as duas partes concordaram com ele, pois cada equipe pensava que ele iria influenciar as coisas de acordo com seus valores e receber dicas de acordo com uma quantidade determinada de “treinamento”.
Que grande besteira aquilo tinha se tornado.
Aquela primeira alma que eles disputaram? Jim tinha feito todo o possível para empurrar o homem para o bem – provando que a confiança que Devina depositou nele tinha sido equivocada. Aquele filho da mãe era um salvador na pele de pecador, não era um dos dela. E foi por isso que ela se envolveu ainda mais a partir de então; não havia ninguém em campo representando seus interesses e manipular a situação era crucial se ela quisesse prevalecer em algum desses ciclos.
Se ela não refinasse as coisas, ia perder de quatro a zero.
E foi por isso que ela levou Jim até às profundezas de seu reino quando foi possível. Ela precisava afastá-lo de Matthias – qualquer contato entre os dois era uma má ideia.
Mas pelo menos a sua escolha pela alma parecia ter sido correta. Ela vinha cuidando do líder das operações extraoficiais nos últimos dois anos até agora, ele simplesmente a pertencia – então, quando Nigel e ela trataram sobre o próximo indivíduo que seria colocado no jogo seguinte, ela escolheu Martin O’Shay Thomas, também conhecido como Matthias.
Na próxima rodada, a escolha volta a ser de Nigel e, sem dúvida, ele vai escolher alguém bem mais difícil para ela.
Matthias... oh, querido e corrupto Matthias. Um último ato imoral e ele seria dela por toda a eternidade – assim como sua primeira vitória.
Tudo o que ele tinha que fazer era tirar a vida de Isaac Rothe e ding-ding-ding! Ela poderia fazer a volta da vitória bem diante do nariz de Jim Heron.
Contudo, considerando o que Heron tinha feito a ela, temia que ele não fosse apenas um zagueiro nesse jogo, mas um outro tipo de entidade. E esse era outro motivo pelo qual ela não tinha se detido em Beacon Hill. A negociação entre os dois lá embaixo drenou suas energias e ela não estava forte o suficiente para enfrentar um confronto direto com Jim tão cedo.
Especialmente tendo em conta que subestimar os poderes de seu inimigo foi claramente um erro.
Envolvendo-se na toalha, ela olhou o balcão de mármore em volta da pia. Parte da tarefa que sua terapeuta lhe deu duas semanas antes era se livrar de toda sua coleção de maquiagem e ela concordou, jogando fora inúmeros pós compactos, batons e sombras.
Agora, ao observar os espaços vazios, ela entrou em pânico com a falta de possessões. Uma bolsa com essas coisas era tudo o que sobrou. Era isso.
Com mãos desastradas, ela pegou a pequena sacola e a inclinou para baixo, tubos, quadrados e potes pretos se espalharam por todo o lugar. Respirando pela boca, ela começou a organizar dúzias ou mais de recipientes, organizando-os por tamanho e forma, não adiantou.
Não era o suficiente. Ela precisava de mais...
No fundo de sua mente, Devina sabia que estava em um espiral, mas ela não poderia se ajudar com isso. A constatação de que Jim era muito mais formidável do que ela pensava... e que estava correndo um perigo muito maior do que imaginava... fazia dela uma escrava de suas fraquezas internas.
Sua terapeuta afirmou que a compra de mais porcarias ou a aquisição de mais bugigangas ou ordenar e reordenar a colocação dos objetos não ia resolver nada. Mas com certeza aquilo a fazia se sentir melhor por um curto período de tempo...
No final, ela teve que se arrastar para fora do banheiro. O tempo estava passando e ela tinha que se certificar se todos os pequenos dominós que ela organizou estavam na posição certa e adequada.
Para acalmar sua obsessão, ela repetiu o que a terapeuta havia lhe dito há três dias: Não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo. É o espaço que você declarou como sendo seu emocional e espiritualmente.
Seja como for. Ela tinha trabalho a fazer.
E outro traje de pele para revesti-la.
CAPÍTULO 44
Depois que os Childes saíram em seus carros, com Eddie e Adrian indo sorrateiramente em seus calcanhares, Jim e Isaac ficaram nos fundos da casa das mil passagens secretas – as quais Jim conhecia todas, graças ao capitão Childe.
Após as partidas, a casa ficou escura, por dentro e por fora, e ele e Isaac permaneceram em pé, preparados.
Eram os velhos tempos de volta, Jim pensou.
Especialmente ao colocar seu telefone no ouvido e esperar que Matthias atendesse a ligação. Contudo... Se estivesse de volta no tempo, o bastardo atenderia o maldito telefone.
Neste momento, ele estava desesperado para encontrar o cara antes que ele chegasse com tudo...
A voz de seu ex-chefe ressoou em seu ouvido.
– Isaac.
– Não. – Jim falou com cuidado, porque só Deus sabia que havia pontas soltas por todo o lugar. – Não é Isaac.
Houve um momento de pausa, que foi preenchido por um zumbido sutil ao fundo. Carro? Avião? Difícil ter certeza, mas provavelmente um carro.
– Jim? É você? – A voz era robótica, totalmente sem vida. Claro, até mesmo um “oi, tudo bem” vindo dos mortos não era suficiente para abalar o cara, mas parecia não ser o caso do cérebro do líder estar sereno. Parecia mais que o homem estava anestesiado.
Jim escolheu cuidadosamente as palavras.
– Estou mais interessado em como você está. Isso e também gostaria de conversar sobre a imagem que recebeu.
– Você quer? Bem, eu tinha outras coisas em mente... como, por exemplo, você estar me ligando. Você está morto.
– Não exatamente.
– Engraçado, eu sonhei com você. Atirei em você, mas não morreu.
Droga, abranger os dois mundos era complicado.
– Sim, eu sei.
– Sabe?
– Estou ligando para falar do seu subordinado. Isaac não o matou.
– Oh. Mesmo?
– Eu matei. – Mentiroso, mentiroso, o nariz vai crescer. O bom é que ele nunca teve problemas com esse tipo de coisa.
– E, mais uma vez digo, pensei que estivesse morto.
– Não estou exatamente morto.
– Claro. – Longa pausa. – Então, se você está vivo e bem, por que fez isso com meu segundo homem na linha de comando, Jim?
– Eu o avisei que não permitiria que ninguém se aproximasse do meu garoto Isaac. Naquele sonho. Sei que me ouviu.
– Está dizendo que devo começar a te chamar de Lázaro ao invés de Zacarias?
– Pode me chamar do jeito que quiser.
– Bem, seja lá qual for o seu maldito nome, você simplesmente colocou uma bala na cabeça do “seu garoto”. Parabéns, pois Isaac é o único com quem eu vou acertar as contas, e você me conhece. Farei do meu jeito todo especial.
Droga. Grier Childe. Quanto você quer apostar, Jim pensou.
– Isso não tem lógica.
– É muito lógico. Ou Isaac fez isso e você está acobertando e espera por clemência. Ou você o fez e, nesse caso, eu realmente tenho contas para acertar com você... e a maneira como vou lidar com esse “você me pertence” vai deixar uma assassinato em sua consciência. Uma vez que você odeia efeitos colaterais, isso vai ser mesmo uma tapa na nuca.
– Rothe ajudou a salvá-lo. Naquele vale de areia onde você quase se matou.
Agora o cara simplesmente rosnou.
– Não me dê outra razão para ir atrás dele.
Bingo, Jim pensou, apertando o telefone. Aquele era seu jeito de lidar com as coisas e era mais importante que um confronto para saber “quem atirou no demônio”.
– Quanta amargura, Matthias. Você parece muito amargo. Sabe, você mudou.
– Não, eu não mudei...
– Sim, mudou, e sabe do que mais? Você não tem mais o ímpeto para fazer isso. Não tenho certeza se já se deu conta disso. Mas o velho Matthias não veria isso de maneira pessoal. Seriam apenas negócios.
– Quem disse que estou a caminho?
– Eu disse. Tem que estar. Você não sabe disso ainda, mas está sendo obrigado a vir aqui e matar um homem inocente. – O silêncio disse a ele que estava no maldito caminho certo. – Você não entende por que tem que fazer isso por si mesmo. Você não entende a maneira como pensa nesse exato momento. E sabe que está perdendo o controle. Está fazendo escolhas e besteiras que não fazem qualquer sentido. Mas eu posso lhe dizer os motivos disso: é porque você está sendo impulsionado por algo que não acreditaria se eu dissesse que existe. Contudo, isso ainda não o tomou por completo, então, ainda há tempo.
Jim fez uma pausa e deixou que aquela informação se acomodasse no cérebro de seu ex-chefe. O que Matthias precisava era de um exorcismo, mas aquilo requeria seu consentimento. O objetivo era levá-lo até a casa e começar a trabalhar nele...
E nesse tom ele continuou: – Foi com essa coisa que você lidou ao ligar para seu segundo na linha de comando. Ele não era o que pensava, Matthias. – Cavando ainda mais fundo, ele empurrou mais uma. – Quando ele falou com você, sentiu como se fizesse total sentido, certo? Ele o influenciou de maneira sutil, o direcionou, sempre esteve lá quando você precisou dele. Mal se nota em um primeiro momento e, então, você começou a confiar nele, delegar tarefas a ele, começou a prepará-lo para ser seu sucessor...
– Você não sabe do que está falando!
– Imagina. Eu sei exatamente o que está acontecendo. Você ia mesmo permitir que Isaac voltasse para as operações extraoficiais, não ia? Você ia encontrar um jeito de não matá-lo. Não é mesmo? Matthias...? Matthias, responda a maldita pergunta.
Uma longa pausa. Em seguida, uma resposta suave.
– Sim. Eu ia.
– E você não disse isso ao seu segundo homem, pois sabia que ele mudaria sua opinião.
– Contudo, ele estaria certo.
– Não, ele seria o demônio. É isso o que ele era. Pense nisso. Embora você tenha tentado sair das operações extraoficiais, ele o puxou de volta.
– Para sua informação, está falando com um sociopata. Logo, estou seguindo minha natureza.
– Uh-hun. Certo. Sociopatas que pretendem seguir uma “vida louca” não colocam bombas na areia e pisam em cima. Admita, você queria sair lá no deserto... você quer sair agora. Admita.
Por um tempo, não houve nada além de um zumbido ao fundo. E, então, Matthias jogou outra bomba, por assim dizer.
– Foi o filho de Childe.
Jim franziu a testa e recuou um pouco.
– Como?
– O filho de Childe... foi o que mudou tudo. Eu assisti a gravação... de Childe chorando enquanto seu filho morria na frente dele. Meu pai nunca teria feito isso se fosse eu quem estivesse naquele sofá. O mais provável é que ele teria preparado minha veia para a agulha. Eu não conseguiria ter aquilo... fora de questão. O jeito que o pobre coitado olhava e o que ele dizia... ele amava aquele garoto como um pai deve amar um filho.
Sim, nossa... de alguma maneira, era difícil imaginar que Matthias teve um pai. Desovado era mais adequado a ele.
Jim balançou a cabeça, sentindo-se mal pelo cara pela primeira vez desde que eles se conheceram há tantos anos.
– Estou dizendo, deixe Isaac ir. Esqueça a vingança. Esqueça as operações extraoficiais. Esqueça o passado. Vou ajudá-lo a desaparecer e ficar em segurança. Deixe tudo para trás... e confie em mim.
Longa pausa. Longa pausa onde não havia nada além daquele ruído límpido de um carro em movimento.
– Você está em uma encruzilhada, Matthias. O que fizer com relação a Isaac hoje à noite pode salvar você... e salvar a ele, também. Você tem mais poder do que imagina. Trabalhe conosco. Venha até aqui, sente-se e converse com a gente.
Provavelmente, era melhor não falar sobre a grande incisão nele com uma faca de cristal para retirar toda a pestilência de Devina pela garganta.
Matthias exalou o ar com força.
– Nunca pensei que você fosse do tipo Mahatma Gandhi.
– As pessoas mudam, Matthias – disse Jim bruscamente. – As pessoas podem mudar. Você pode mudar.
Em pé do outro lado da cozinha, Isaac não tinha certeza se estava ouvindo direito: Matthias plantou a bomba que tinha explodido sobre ele?
Deus, ele se lembrava de dirigir o Land Rover pelas dunas, de volta ao acampamento. Assim que Matthias foi tirado do veículo, os garotos com as bolsas de sangue, as agulhas e as luvas de látex o cercaram por completo e isso era praticamente tudo o que Isaac sabia.
Moral da história: Heron não tinha dito uma palavra sobre as maneiras, os lugares ou os motivos da explosão e Isaac não perguntou. “Saber só o necessário” era a regra de ouro das operações extraoficiais: o chefe e um soldado em atividade aparecem com um deles transformado em carne moída após uma explosão e o outro vem arrastando seus tristes corpos pela areia no meio da noite?
Tudo bem. Não é grande coisa. Tanto faz.
Além disso, algumas vezes, a informação a que tinha acesso era mais perigosa que uma arma carregada apontada na testa.
Quando Jim interrompeu de repente a ligação com o chefe, Isaac tinha algumas coisas para esclarecer com o filho da mãe.
– Primeiro, eu não preciso que banque o mártir por mim, então, não precisava daquela besteira de “eu atirei nele”. E, depois, que inferno. Matthias tentou se matar?
– Primeiro – Jim repetiu –, eu não sofro com as consequências, então, você pode aproveitar qualquer coisa que eu faça para salvar sua pele. Segundo... sim. Ele tentou. O dispositivo era um dos nossos e ele sabia exatamente onde pisar. Ele me encarou ao colocar o pé no local... e disse alguma coisa. – O cara balançou a cabeça. – Não faço ideia do que ele disse. Em seguida, boom! A maior parte do detonador foi vaporizada. Mas não detonou tudo.
Fascinante.
– Quanto tempo até ele chegar aqui?
– Não sei. Mas ele está vindo. Tem que vir.
Sim, e quanto àquelas coisas sobre o segundo na linha de comando? Sinceramente, não havia nada que ele quisesse saber sobre isso. Ele tinha informação suficiente para inchar seu crânio. A única coisa que importava era conseguir superar aquela noite.
– Estou cansado de esperar – ele murmurou.
– Junte-se ao clube.
Naquele momento, Isaac olhou ao redor. O sistema de segurança estava desativado, mas todas as portas estavam trancadas, então, havia grandes chances de saber se alguém tentasse entrar.
– Ouça, vou subir – ele disse. – Fique de olho lá em cima.
– Certo. – Jim apertou os olhos e voltou a focar o jardim dos fundos como se esperasse uma infiltração a qualquer momento. – Vou dar cobertura.
Quando Isaac chegou à base da escada dos fundos, ele parou e se inclinou em direção à cozinha. Heron estava parado em frente ao vidro, mãos nos quadris, sobrancelhas unidas.
Não, o cara não estava morto. E, honestamente, ele não parecia incomodado com a realidade de que uma bala podia entrar arrebentando tudo o que visse pela frente a qualquer segundo.
– Jim.
– Sim. – O homem olhou para trás.
– O que você é? De verdade.
No silêncio que se estendeu, a palavra “anjo” sobrevoou o espaço que havia entre eles. Só que aquilo não era possível, certo?
O homem deu de ombros.
– Sou o que sou.
Entendido, Isaac pensou.
– Bem... obrigado.
Jim balançou a cabeça.
– Você não saiu dessa ainda.
– Mesmo assim. Obrigado. – Isaac pigarreou. – Não posso dizer que ninguém tenha, alguma vez, arriscado seu pescoço por mim assim.
Bem, não era verdade, era? Grier o fez, à sua maneira. E, Deus, um mero pensamento sobre ela quase fez seus olhos arderem.
Heron fez um pequeno aceno e pareceu sinceramente comovido.
– Não é nada, cara. Agora, deixe de ser patético e vigie o terceiro andar.
Isaac teve que sorrir.
– Posso precisar de um emprego depois disso, sabe?
Um sorriso apareceu, mas se desvaneceu rapidamente.
– Não tenho certeza se quer passar pelo processo seletivo de onde trabalho. É difícil.
– Eu já estive num lugar parecido, fazendo coisas parecidas.
– Eu também pensei que fosse fácil assim.
Com isso, Isaac subiu as escadas.
Sim, com certeza, aparentemente ele ia vigiar do último andar, mas havia outra verdade nisso, outra motivação.
Quando ele entrou no quarto de Grier, foi direto ao seu armário e parou sobre a bagunça de roupas que ficou no carpete creme. Ela deixou o projeto de reorganizar tudo pela metade – pois, algum imbecil atirou em si mesmo na entrada de sua casa.
Mas ele poderia cuidar do problema.
Enquanto esperava para ver como seria uma espécie de reunião bizarra com Matthias ou um tiroteio que deixaria os dois mortos, ele pegava as blusas, saias e vestidos e, um a um, os ordenava dentre o caos.
Pelo menos poderia limpar alguma coisa para ela; Deus era testemunha de que aquele corpo ainda estava lá embaixo, ainda envolto em plástico como algo prestes a ser enviado pelo correio.
Contudo, haveria tempo para removê-lo mais tarde.
E não haveria outra oportunidade para cuidar das coisas dela.
Além disso, o “patético” nele queria algum contato final com ela – e o mais próximo que ele chegaria disso era pendurando com cuidado o que uma vez já esteve contra sua preciosa pele.
CAPÍTULO 45
Grier seguiu o Mercedes de seu pai em direção a Lincoln e quando os conhecidos pilares que havia de cada lado do caminho da fazenda apareceram, ela respirou fundo pela primeira vez depois que saiu de Beacon Hill. Virando à direita, em direção à pista de cascalho quebrado, ela parou em frente às placas de madeira cinza e brancas e estacionou seu Audi. Embora o centro da cidade de Boston estivesse apenas a pouco mais de trinta quilômetros dali, parecia muito ser trezentos. Tudo era silêncio quando ela desligou o motor e saiu do carro, o ar fresco e limpo formigou seu nariz.
Deus, como ela amava esse lugar, ela pensou.
A luz gentil que se desvanecia no crepúsculo suavizava a linha de árvores que percorria os seis hectares de campos e jardins e banhava a madeira com uma iluminação amanteigada. Antes da morte de sua mãe, o lugar tinha sido um refúgio para os quatro, uma maneira de sair da cidade quando não queriam ir até o Cabo – e Grier tinha passado muitos finais de semana ali, correndo ao longo da grama e brincando ao redor da lagoa.
Depois que seu pai ficou viúvo, precisava de um novo começo e, então, ela se mudou para a casa da cidade e ele fixou morada ali.
Quando o pai se aproximou da garagem onde tinha encaixado seu grande sedã, seus mocassins trituraram os pequenos fragmentos de cascalho. Quando era criança, ela pensava que caminhos como aquele eram cobertos de um tipo especial de cereais. Ao invés de derramar leite em uma tigela, tudo o que precisava fazer era pisar sobre eles para obter aquele som de estalos.
Ele foi cauteloso ao se aproximar dela.
– Quer que eu ajude com suas coisas?
– Sim, obrigada.
– E que tal se jantássemos?
Mesmo sem fome, ela assentiu.
– Isso seria ótimo.
Deus, eles pareciam estar em uma festa. Bem, uma festa que envolvia cadáveres, armas e fugir de assassinos... Neste caso, estar elegantemente atrasado significava sua morte, não seria apenas uma catástrofe com o penteado ou o trânsito ruim da Rua Vinte oito.
O que a lembrava de...
Grier olhou em volta e sentiu um arrepio na nuca. Eles estavam sendo vigiados. Ela podia sentir isso. Mas ela não estava ansiosa; estava calma com o que estava sentindo.
Ela podia apostar que eram os homens de Jim. Ela não os viu no caminho, mas eles estavam ali.
Depois que seu pai tirou suas malas e fechou o porta-malas, ela trancou o carro – e tentou não pensar no fato de que aquele homem com o tapa-olho já esteve ali dentro. Francamente, aquilo fez com que ela tivesse vontade de vender o Audi, mesmo com apenas uns 48 mil quilômetros rodados e funcionando muito bem.
– Vamos? – seu pai perguntou, indicando o caminho da frente com uma mão elegante.
Assentindo com a cabeça, ela se adiantou e iniciou o caminho de tijolos que havia até a porta. Antes de entrarem, seu pai desativou o sistema de segurança, que era igual ao da casa dela e, em seguida, destrancou os cadeados um por um. No momento em que atravessaram os batentes da porta, reativou o sistema e trancou tudo de novo.
Ninguém iria atrás deles ali: aquele lugar fazia com que a casa da cidade parecesse um brinquedo de papel machê no quesito segurança.
Após a morte de Daniel, aquela casa foi preparada para suportar um estado de sítio – algo que ela não tinha entendido até agora. Todas as placas foram arrancadas e painéis de microfilmes com substâncias retardadoras de fogo foram colocados no lugar delas por dentro e por fora; todos os vidros foram substituídos por vidros à prova de balas que tinham uma polegada de espessura; as portas antigas foram trocadas por outras reforçadas por molduras de chumbo; foram instalados sistemas de monitoramento de oxigênio e ventilação e não havia dúvidas de que foram feitas outras melhorias das quais ela não estava ciente.
Tinha custado mais do que a casa e, naquela época, Grier questionou a saúde mental de seu pai.
Agora, ela era grata.
Quando olhou para as familiares antiguidades americanas, para o chão de grandes pranchas e para a atmosfera de graciosidade casual, a noite que se aproximava se estendeu até o infinito. O que acontecia quando tudo o que se tinha diante de si eram momentos de espera: Jim e Isaac entrariam em contato com seu pai em algum momento, mas não havia como dizer quando. Ou quais notícias seriam dadas.
Horripilante. Como tudo aquilo era horripilante.
Deus, geralmente ela pensava na morte em termos de acidentes ou doenças. Hoje, não. Essa noite tudo era violência e premeditação, e ela não gostava desse mundo. Já era difícil o suficiente quando apenas a Mãe Natureza e a lei de Murphy estavam atrás de você.
Ela tinha um sentimento muito ruim sobre tudo isso.
– Gostaria de comer alguma coisa agora? – seu pai perguntou. – Ou prefere se refrescar primeiro?
Tão estranho. Geralmente, quando ela chegava àquela casa, ele a tratava como se fosse dela, abria a geladeira ou usava a cafeteira ou o fogão sem pestanejar. Era estranho e a incomodava ser tratada como hóspede.
Olhando por cima do ombro, ela observou seu pai, percorrendo as linhas de seu belo rosto. No silêncio constrangedor da casa blindada, ela se deu conta do quanto estavam sozinhos. Pelo bem deles, precisavam voltar a ser uma família ao invés de serem estranhos um ao outro.
– Que tal se eu fizer o jantar para nós dois?
Os olhos de seu pai lacrimejaram um pouco e ele limpou a garganta.
– Isso seria ótimo. Só vou levar isto até seu quarto.
– Obrigada.
Quando ele passou por ela, estendeu a mão e tocou seu braço, apertando um pouco – o que era a sua versão de um abraço. E ela aceitou o gesto colocando a palma de sua mão sobre a dele. Como sempre faziam.
Depois que ele subiu as escadas da frente, ela se dirigiu à cozinha sentindo-se trêmula e sem o controle de seu jogo... mas ela estava em pé e seguia em frente.
O que, no fim do dia, é tudo o que se tem, não é?
Havia apenas uma coisa faltando... ela parou e olhou por cima do ombro de novo. Então, ela andou pela cozinha e verificou a mesa da alcova... e o longo balcão onde estava o fogão... e o pé da escada dos fundos...
– Daniel? – ela sussurrou. – Onde está você?
Talvez ele não quisesse estar na casa do pai. Mas ele pôde aparecer no hotel naquela festa beneficente e, depois, em um ringue de luta clandestina, ele poderia muito bem dar o ar da graça ali.
– Eu preciso de você – ela disse. – Preciso vê-lo...
Ela esperou. Chamou seu nome baixinho mais algumas vezes. Mas parecia que apenas o forno duplo e a geladeira a ouviam.
Ah, pelo amor de Deus, ela sabia que seu irmão sempre evitou um conflito – e que seu pai o irritava. Mas ninguém o viu antes a não ser ela, então, era evidente que ele poderia escolher a quem se mostrava.
– Daniel.
Em um momento de pânico, ela se perguntou se ele nunca mais voltaria. Houve algum adeus de sua parte que ela não se deu conta?
Mais uma vez, sem respostas dos eletrodomésticos.
Pensando que teria mais sorte se os colocasse em funcionamento, ela foi até a geladeira e abriu a porta, perguntando-se que diabos poderia preparar para ela e seu pai.
Uma coisa era certa: o jantar não incluiria omeletes.
Levaria um tempo até ela preparar uma omelete de novo.
Quando a escuridão se instalou, os faróis do carro sem marcas oficiais de Matthias varriam a estrada à frente. Havia outros carros viajando na mesma estrada de asfalto que ele, outras pessoas por trás dos volantes, outros planos em outras mentes.
Tudo isso era irrelevante para ele, sem maior importância do que um filme passando em uma tela.
Sem mais profundidade que isso também.
Ele tinha problemas. Problemas terríveis. Do tipo que faziam nós em seu cérebro e que faziam a dor em seu lado esquerdo pegar fogo até o ponto de ter que se esforçar para se manter consciente.
Droga... Jim Heron sabia demais sobre coisas que deveriam estar apenas em pensamentos e conhecimentos particulares. Era como se o homem tivesse sintonizado a estação de rádio interna de Matthias e ouvido todas as suas músicas, comerciais e relatórios do trânsito.
E o filho da mãe estava certo. O segundo na linha de comando apenas se destacou de fato após o pequeno acidente de Matthias no deserto: nos últimos dois anos o soldado se fez indispensável e, olhando para as tarefas e situações com que Matthias tinha lidado, o cara tinha gradualmente influenciado suas decisões até que começou a tomá-las por si mesmo.
Tinha sido tão sutil. Como alguém girando lentamente o acendedor de uma chama sob uma panela de água. Seu subordinado foi quem o fez mudar de opinião sobre deixar Jim Heron ir. E o homem que direcionou Matthias a matar Isaac. E havia mais uma centena de exemplos... muitos dos quais ele acabou realizando conforme sua influência.
Ele nem sequer notou que isso estava acontecendo.
Deus, tinha começado com a morte do filho de Alistair Childe. Foi a primeira ideia brilhante.
Naturalmente, a lógica era indiscutível e Matthias não hesitou em puxar o gatilho. Mas quando viu as filmagens da morte, o choro do capitão o comoveu. Abriu uma porta que ele nem sequer sabia que existia dentro dele.
Matthias desligou o vídeo e foi para a cama. Na manhã seguinte, ele acordou e decidiu que já era o suficiente. Hora de deixar a festa que tinha iniciado há todos aqueles anos – ia deixar os convidados tomarem conta da casa e incendiá-la, tudo bem. Mas para ele bastava.
Já chega. Foi a gota d’água.
Focando suas mãos no volante, ele percebeu que outra pessoa o guiava, dirigia para ele, determinava as saídas e acionava as setas. Como aquilo tinha acontecido?
E por que, diabos, Jim Heron sabia?
Quando sua mente mais parecia uma máquina de lavar e começou um novo ciclo de rotação no passado, ele decidiu que todo aquele processo de lavagem e enxágue não era real. Não essa noite. Não naquela estrada. O que importava não era como ele tinha chegado atrás daquele volante e se encontrava a caminho de Boston. O que importava era o que ele faria quando chegasse lá.
Encruzilhada... certo. Ele sentia isso nos ossos – da mesma forma que sentiu quando preparou aquela bomba anos atrás.
A questão era: e agora? Acreditar no que Jim Heron havia dito. Ou seguir o impulso da raiva que o direcionava para o leste.
Qual destino ele seguiria?
Enquanto ele ruminava, tinha total certeza de que estava escolhendo entre o Céu e o Inferno.
CAPÍTULO 46
Enquanto Adrian vigiava a casa cinzenta daquele cavalheiro parado próximo a um carvalho, ele estava começando a se sentir como a porcaria de uma árvore. A não ser por aquele confronto na cidade na noite anterior, ele passou muito tempo esperando nos bastidores nos últimos dois dias.
Ele nunca gostou de ficar parado, para começar, mas naquela noite, quando toda a ação estava na cidade e ele e Eddie estavam presos feito troncos servindo de babá para dois adultos, Adrian estava realmente inquieto. Especialmente levando em conta que ele e seu colega eram responsáveis pelo que estava trancado em uma casa que fazia da base do exército dos Estados Unidos parecer um sanitário portátil em termos de solidez.
Dane-se tudo isso. Ele não conseguia acreditar que estavam indo atrás da alma errada.
Todas as conclusões pareciam boas, mas na verdade, a porcaria era como uma equação de álgebra que tinha algum elemento errado: parecia ótima no papel, mas a resposta estava errada.
E que grande escorregão aquele tinha sido. Ele sentia calafrios em pensar que estava tão perto e tão longe do final de uma partida.
Mas a quase derrota não era a única coisa que fazia suas bolas ficarem tensas, no mal sentido. A outra metade disso se dava à situação em que Jim se encontrava agora: a despeito do que Devina tinha feito com ele, o cara estava fazendo tudo como se estivesse muito bem... e sim, tudo bem, talvez fosse o caso no momento. Inferno, o fato de que tudo com Isaac e Matthias ia vir à tona naquela noite parecia ser uma coisa boa, pois dava a Jim algo para se concentrar. O único problema era que, Adrian sabia bem, essa crise ia passar e, então, o cara enfrentaria muitas horas longas e silenciosas sozinho com nada além de más memórias sibilando em seu crânio como balas perdidas.
A pior coisa, pelo menos na opinião de Adrian, era saber que ia acontecer de novo. Quando a situação requeresse, Adrian voltaria a descer até o mausoléu onde havia a brinquedoteca de Devina... e Jim também. Isso por serem o tipo de homem que eram. E esse era o tipo de vadia que ela era.
Ao lado dele, Eddie sufocou outro espirro.
– Saúde.
– Malditas lavandas. Sou o único imortal com alergia. Juro.
Quando o cara olhou para a floração que havia próxima a ele, Adrian respirou fundo pensando que pelo menos seu melhor amigo não teve que passar pelo inferno daquela mesa. Por outro lado, ele foi marcado por aquele demônio, o que dificilmente se aproximava de uma temporada na Disney.
Dez minutos, três espirros e um monte de nada para fazer depois, Adrian pegou seu celular e ligou para Jim. O cara atendeu no segundo toque.
– Diga – ele vociferou.
– Nada. Estamos em meio a lavandas – acho que é assim que são chamadas – olhando Grier comer com o pai dela. Parecem duas costeletas de porco. – O exalar do outro lado da linha era de pura frustração. – Nada de novo por aí também, eu acho.
Cara, algumas vezes, uma má ação era melhor do que aquela porcaria arrastada, onde brincar com os dedos era a única coisa a se fazer.
Jim soltou um palavrão.
– Eu falei com Matthias há mais ou menos uma hora, mas não tenho ideia de onde ele estava. Contudo, com certeza estava no trânsito.
– Acho que deveríamos voltar. – Adrian franziu a testa e se inclinou para frente em suas botas. Dentro da cozinha rústica, Grier se levantou, pegou algumas louças de um armário e ergueu a tampa de vidro de um prato de bolo. Parecia que havia um bolo de chocolate. Coberto de creme.
Que droga. Talvez eles devessem ficar um pouco mais. Convidarem-se para a sobremesa.
– Aguente firme – Jim disse. – Mas talvez eu precise ir até aí. Prefiro manter o confronto bem longe dos Childes, só que não sei se Grier é o alvo. Nesse momento, não sei o que Matthias está pensando... eu só consegui chegar até certo ponto com ele ao telefone antes dele desligar.
– Olha, tudo o que sei é que queremos estar onde a festa estiver. – Quando Eddie espirrou de novo, Ad balançou a cabeça para indicar onde estavam os anti-histamínicos. – E ouça, eu andei em torno dessa casa. É segura como não sei o que. Matthias é a alma em jogo, então, para onde quer que ele vá será por onde a ação vai seguir – e ele está indo encontrar Isaac.
Houve um breve silêncio. E, então, Jim disse: – Contudo, Grier é uma alma inocente e uma excelente maneira de Matthias conseguir sua vingança – talvez ela seja a única que ele pretenda capturar. Nós simplesmente não sabemos. É por isso que quero dar mais um tempo... e, então, talvez, possamos trocar de lugar.
– Tudo bem. Seja lá onde for que precise de nós, iremos. – Ad se ouviu dizer antes de desligar.
Dê só uma olhada, fazendo toda aquela coisa de um bom soldadinho. E aquilo era um pé no saco.
– Vamos ficar por aqui – ele reclamou. – Por enquanto.
– Difícil saber onde se posicionar.
– Precisamos de mais lutadores.
– Se Isaac sobreviver... podemos transformá-lo. Ele tem jeito.
Adrian o encarou.
– Nigel nunca permitiria isso. – Pausa. – Permitiria?
– Eu acho que ele não vai gostar de mais perdas, é o que posso dizer.
Adrian voltou a assistir Grier a cortar duas fatias e colocá-las no prato. Ele teve a impressão, pela maneira como seus lábios se moviam, que ela e seu pai estavam conversando com mais calma e ele estava feliz. Ele não sabia como era ter um pai, mas ele estava na Terra tempo suficiente para saber que um bom pai era uma coisa ótima.
Ele soltou um palavrão quando Grier se dirigiu ao congelador.
– Ah, cara. Sorvete também?
– A maneira que você consegue ter apetite em um momento como esse me surpreende.
Adrian pegou uma pequena tigela.
– Eu sou incrível.
– “Esquisito” também é um bom adjetivo.
Nesse momento, Ad começou a puxar de suas cordas vocais Super Freak fazendo uma imitação fantástica de Rick James. Nos arbustos de lavanda. Em... onde diabos eles estavam? Roosevelt, Massachusetts? Ou estavam em Adams?
Washington?
– Por tudo quanto é mais sagrado – Eddie murmurou ao cobrir os ouvidos. – Pare...
– ... in the name of loooooove. – Erguendo a mão, Ad começou a se mexer e a rebolar como Diana Ross. – Be... fore... you... breaaaaaaak... my...
A risada suave de Eddie dizia que ele estava no limite e assim que entrou no coro, Ad se calou.
Quando as coisas ficaram em silêncio novamente, ele pensou no bom e velho Isaac Rothe. Aquele filho da mãe, grandalhão, cabeça-dura poderia ser um excelente complemento para a equipe.
Claro, ele teria que morrer primeiro.
Ou ser morto.
As duas maneiras, levando em conta a forma como as coisas estavam acontecendo, poderiam ser arranjadas naquela noite.
Na cozinha, Grier sentou-se diante de seu pai em uma mesa feita de tábuas retiradas de um velho celeiro. Entre eles, havia dois pequenos pratos brancos marcados com manchas de chocolate e os garfos de sobremesa descansavam em ângulos acentuados.
Eles não falaram sobre nada importante durante a refeição, apenas coisas do cotidiano sobre o trabalho e o jardim dele e sobre os possíveis casos que ela assumiria no sistema penal. A conversa foi tão normal... talvez fosse ilusão, mas ela se apegou ao que eles tinham seguindo a regra do “faz de conta”.
– Outro pedaço? – ela perguntou, indicando com a cabeça o bolo no balcão.
– Não, obrigado. – Seu pai bateu suavemente os cantos da boca com o guardanapo. – Não deveria ter comido nem o primeiro.
– Parece que perdeu peso. Acho que deveria...
– Eu menti sobre Daniel para mantê-la em segurança – ele deixou escapar, como se a pressão de esconder aquilo tivesse chegado a um nível insustentável.
Ela piscou algumas vezes. Em seguida, estendeu a mão e começou a brincar com o garfo, desenhando um pequeno “op” e depois um “extra” em cima da cobertura que deixou de lado, seu estômago revirava todo o jantar que tinha acabado de comer.
– Eu acredito em você – ela disse em dado momento. – Contudo, isso dói muito. É como se ele tivesse morrido novamente.
– Sinto muito. Sei que não é o suficiente.
Seus olhos se ergueram e encontraram os dele.
– Entretanto, vai ficar tudo bem. Eu só preciso de um tempo. Você e eu... somos tudo o que restou um ao outro, entende?
– Eu sei. E isso é minha culpa...
Do nada, uma luz brilhou através das janelas, iluminando o cômodo e os dois que ali estavam em uma explosão de brilho.
Cadeiras arranharam o chão quando ela e seu pai ficaram em pé rapidamente e procuraram por abrigo atrás da sólida parede da cozinha.
Lá fora, no gramado da frente, as luzes de segurança acionadas pelo movimento foram ativadas e um homem estava andando sobre o gramado em direção à casa. Atrás dele, nas sombras, um carro que ela não conhecia estava estacionado no caminho de cascalho.
Seja lá quem fosse, deve ter vindo com os faróis desligados. E se fosse Jim, Isaac ou aqueles dois homens, alguém teria chamado.
– Pegue isto – seu pai disse entre dentes, pressionando algo pesado e metálico em sua mão.
Uma arma.
Ela aceitou sem hesitar e seguiu até a porta da frente – que era aonde parecia estar indo seu “convidado” inesperado. Contudo, qual era a lógica nisso? Você se esgueirava até a casa com as luzes do carro desligadas, mas andava decidido em direção a...
– Oh, graças a Deus – seu pai murmurou.
Grier relaxou assim que reconheceu quem era. Sob as luzes de segurança, o grande corpo de Jim Heron e seu rosto rígido estavam claros como o dia e o fato dele se esquivar pelo caminho fazia sentido.
Seu primeiro pensamento foi em Isaac e ela o procurou dentre as luzes quando seu pai desativou o sistema de segurança e abriu a porta. Contudo, ele não estava com Jim.
Oh, bom Deus...
– Estão todos bem – Jim gritou no gramado, como se tivesse lido sua mente. – Está tudo acabado.
O alívio foi tão grande que ela se afastou brevemente, esquivou-se até a cozinha, apoiou a arma e colocou seus braços sobre a mesa. Do outro cômodo, ela ouvia as vozes profundas de seu pai e de Heron, mas ela duvidava que conseguiria acompanhar a conversa mesmo se estivesse em pé ao lado deles. Isaac estavam bem. Ele estava bem. Estava bem...
Estava acabado. Terminou. E agora, com Isaac indo embora em relativa liberdade, ela poderia tentar seguir em frente também.
Cara, ela precisava de umas férias.
Em algum lugar frívolo e quente, ela decidiu ao se movimentar e pegar os pratos de sobremesa. Em algum lugar com palmeiras. Drinques e sombrinhas. Praia. Piscina...
Tick... tick... whir...
Grier franziu a testa e lentamente olhou por cima do ombro.
Perto da geladeira, a fechadura da porta dos fundos se deslocava da direita para a esquerda, ao mesmo tempo em que a velha trava se erguia.
As vozes na sala silenciaram de repente.
Silenciaram demais.
Aquilo estava errado. Muito errado...
Grier largou os pratos e se lançou para a arma que havia deixado no balcão...
Mas ela não chegou a fazer isso. Alguma coisa atingiu seu ombro e, em seguida, uma carga elétrica passou por seu corpo, curvando-a para trás, desequilibrando seus pés e a jogando com força no chão.
CAPÍTULO 47
Em Beacon Hill, Isaac subiu as escadas da frente da casa, parou no patamar do segundo andar e depois continuou até o quarto de Grier. Em seu espaço particular, ele passeou ao redor da cama e sentiu que estava perdendo sua preciosa sanidade.
Ele olhou o relógio despertador. Caminhou até as portas francesas. Observou o terraço.
Nada se movia lá fora e não havia ninguém na casa além dele e Jim.
O tempo passava, mas ninguém aparecia e não importava quantas vezes ele descesse até Jim e depois voltasse a subir ele não era capaz de prever a próxima sequência de eventos.
Era como um diretor sem megafone e um elenco que não dava a mínima para o que ele tinha a dizer.
O medo inevitável que o afligia era de que estivesse no lugar errado. Que ele e Jim estavam tranquilos aqui enquanto a ação acontecia em outro lugar. Como na fazenda do pai de Grier.
Como se fosse um caminho viciante, ele voltou para a escada e correu para baixo, esperando nada ao longo do caminho ou nos fundos além de uma breve parada na cozinha e outra viagem para cima.
Só que...
Quando ele chegou ao térreo, a porta da frente rangeu como se estivesse sendo aberta. Pegando suas armas, ele estava pronto para atacar... até que ouviu a voz irritada de Jim aumentando.
– O que vocês estão fazendo aqui? – Heron perguntou.
– Você nos mandou uma mensagem de texto.
Isaac franziu a testa ao som da voz do homem de piercing.
– Não, eu não mandei.
– Sim, mandou.
Naquele momento, o transmissor de alerta disparou com um movimento sutil no bolso de Isaac.
Todos os seus instintos queimavam, ele se abaixou silenciosamente no quarto de hóspedes onde tinha ficado. Segurando o transmissor nas mãos, ele ativou o dispositivo e, desta vez, não houve demora na resposta.
Matthias respondeu logo em seguida.
– Estou com sua garota na casa do velho pai dela. Venha para cá. Você tem meia hora.
– Se você a machucar...
– O tempo está passando. E não preciso dizer para vir sozinho. Não me faça esperar, ou vou ficar entediado e terei que preencher meu tempo. Você não vai gostar disso, prometo. Esteja aqui em trinta minutos.
A luz se apagou, a transmissão terminou de repente.
Quando Isaac se virou para sair, ele pulou para trás. Jim, de alguma maneira, subiu as escadas e atravessou a porta fechada para ficar em pé bem atrás dele.
– Ele está com ela – disse Jim categoricamente. – Não está?
– Vou sozinho ou ele vai matá-la.
Empurrando o homem para fora do caminho, Isaac correu escada abaixo. O corpo no corredor de entrada havia sido revistado a procura de armas como se fosse um presente embrulhado, mas chaves de carro era outra coisa.
Bingo. Bolso da frente. Ford.
Agora encontrar o carro do bastardo.
Quando Isaac se levantou, percebeu que tudo estava completamente silencioso e não havia ninguém no corredor da frente. Olhando ao redor, ele teve a sensação de que estava sozinho na casa, embora não fizesse ideia de como eles tinham saído tão rápido.
Seja como for – dane-se. Danem-se todos eles.
Isaac foi direto para a porta, mas no último minuto, ele girou sobre os calcanhares debaixo do arco e se voltou para o corpo para tirar algo mais dele. Então, correu na escuridão.
O carro sem marcas oficiais que ele observou na casa da Rua Pinckney no dia anterior estava estacionado um quarteirão acima e a chave do cara morto encaixou nele. O motor pegou bem e o GPS funcionava, então, ele rapidamente colocou o endereço que o pai de Grier havia dado a eles.
“Morcego vindo do inferno.” Era a descrição da viagem.
Rapidamente, ele pegou a estrada que ligava os locais, alcançando o limite de velocidade e depois ultrapassando-o. Mesmo assim, parecia que ele estava movendo-se em câmera lenta – e só piorou quando saiu da estrada e tentou atravessar um trecho da cidade que estava cheio de sinais vermelhos e estradas sinuosas.
Felizmente, o GPS o levou exatamente aonde ele precisava ir, seu destino tinha uma frente com dois pilares de pedra que ficavam de cada lado de um caminho pálido e brilhante.
Ele baixou os faróis e virou à direita, saindo da velocidade total para ficar cada vez mais lento. Descendo o vidro da janela para que pudesse ouvir melhor, ele avançou, odiando o som dos pneus esmagando um milhão de cascalhos. A única coisa boa era que o brilho permanente da cidade não existia ali em meio à natureza e a lua estava coberta por nuvens. Mas quanto você quer apostar que eles tinham sensores de movimento na parte externa da casa e/ou nas árvores?
Isaac se dirigiu até outro carro sem marcas oficiais que devia ser o carro de Matthias. Uma manobra depois e ele estava fora do carro. Pegando as chaves, ele correu ao longo da margem do gramado, seus sentidos avivados, sua raiva era como o inferno em seu sangue.
Matthias morreria se colocasse um dedo sequer em Grier. Um fio de cabelo daquela mulher fora do lugar e aquele canalha estaria massacrado.
Ao se aproximar da casa, ele procurou as portas. A da frente estava aberta e não conseguia ver a dos fundos.
Mas o que importava – esperavam por ele. E, assim, ele deveria jogar para o alto aquela rotina idiota de ninja e anunciar sua chegada.
Chegando à entrada da casa, ele manteve suas armas escondidas e seus olhos atentos ao fechar os punhos e bater na ombreira da porta de madeira.
– Matthias – ele gritou.
Ao entrar na casa, o silêncio retumbante era mais terrível que qualquer grito ou poça de sangue. Pois só Deus sabia no que ele estava entrando.
Jim elaborou um plano quando ele e os anjos saíram em direção à casa do pai de Grier. Ele não queria deixar Isaac sozinho na cidade, mas tudo o que eles teriam feito seria discutir e Deus sabia que o sagaz imbecil poderia cuidar de si mesmo.
Moral da história: Devina estava executando jogos mortais e isso era uma coisa com a qual apenas Jim poderia lidar. E ter um atraso antes da chegada de Isaac poderia não ser uma coisa ruim: se Matthias tivesse feito qualquer coisa à Grier, seria impossível controlar o soldado.
Sim, quando Jim aterrissou e foi direto para a porta aberta da casa da fazenda com seus homens de confiança na escolta, ele estava preparado para cuidar das coisas.
Nigel, porém, o desviou dos trilhos.
O arcanjo apareceu bem no seu caminho e, dessa vez, ele não estava com seu smoking ou com seu traje de críquete branco ou com qualquer outra roupa de tecido leve todo engomado: ele não era nada além de uma forma brilhante, uma silhueta ondulada com curvas de luz.
E ele disse apenas uma palavra.
– Não.
Quando Jim parou por um momento, ele poderia ter socado o desgraçado se ele tivesse qualquer forma sólida para atingir.
– Qual seu maldito problema?
Primeiro o engano quanto a Isaac, agora isso?
– A sorte está lançada. – Nigel levantou sua mão vacilante. – E se você intervier agora, vai perder de fato.
Jim apontou a porta aberta.
– A alma de um homem está em risco.
A voz de Nigel ficou obscura.
– Como se eu não soubesse disso.
– Se eu chegar a Matthias...
– Você teve sua chance...
– Eu não sabia que era ele! Quanta besteira!
– Não há nada que eu possa mudar. Mas posso dizer, deixe o final acontecer...
– Oh, você não pode mudar nada, mas pode entrar no caminho agora? Que maravilha de noção de tempo!
Jim tinha plena consciência de que sua voz era estrondosa, mas ele não tinha dificuldades para anunciar sua presença a Devina ou a qualquer outra pessoa.
– Dane-se, eu vou entrar...
Com a rápida emanação de um brilho, a forma de Nigel o cobriu da cabeça aos pés, a iluminação atuava como uma espécie de cola que o prendia no lugar. E, em seguida, aquela voz britânica não estava apenas em seu ouvido, mas percorria todo seu cérebro.
– Qual é o caminho mais confiável? O da emoção ou o da razão? Pense, Jim. Pense. Se alguém quebrar as regras, haverá uma punição. Pense nisso. Pense, idiota!
A fúria nublava sua mente e agitava seu corpo até ele pensar que iria se desfazer... mas, de repente, um raio atingiu sua cabeça dura e ele percebeu o que o anjo estava tentando lhe dizer.
Se alguém quebrar as regras... haverá uma punição.
– É isso, Jim. Tome isso como uma conclusão óbvia, leve-a para além dessa noite. E saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva. Eu imploro, confie em mim a respeito disso.
Relaxando sua musculatura, Jim sentiu uma calma curiosa percorrer suas entranhas e ele mudou de ideia devido aos simples argumentos que Nigel tinha exposto.
Olhando para Adrian e Eddie que se preparavam para batalha, viu que estavam tão chateados quanto ele. O que agregava um valor adicional ao que Nigel havia explicado.
– Confie em mim, Jim – disse Nigel. – Eu quero ganhar tanto quanto você. Eu também tenho minha carga de perda de entes queridos. Eu também faria o que fosse preciso para colocá-los em uma eternidade de paz. Não pense que eu o conduziria para o mau caminho.
Jim balançou a cabeça para seu amigos.
– Deixa pra lá – disse Jim a eles. – Vamos ficar à margem. Ficaremos aqui fora.
Quando seus colegas olharam para ele como se estivesse fora de si, ele não poderia concordar. Não entrar ia matá-lo, mas ele percebeu o contexto... e estava satisfeito com a intervenção do arcanjo. Graças a Devina ignorar as regras, o melhor para Matthias seria Jim permanecer fora disso.
Mesmo indo contra todos os seus instintos.
Depois de um momento, Nigel se desprendeu lentamente e sua iluminação mágica gradualmente se dispersou. Na sua ausência, Jim caiu de joelhos na grama, os olhos fixos na porta aberta da casa de madeira enquanto Adrian e Eddie começavam a questioná-lo, exigindo explicações para a ordem de parada.
À margem de sua mente e emoções, o desejo de voar no caminho do que Devina havia projetado ainda o atordoava.
Especialmente quando pensava na mulher de Isaac nas mãos de Matthias...
Oh, Deus... Rothe seria sacrificado, não seria?
As mãos de Jim procuraram a terra e ele cavou o gramado com os dedos, mantendo o corpo no lugar.
Inclinando a cabeça, ele rezou para que sua fé estivesse bem posicionada e que o bem, em algum momento, prevalecesse. Mas o fato era: fazer a coisa certa causaria a morte de um homem que não merecia morrer naquela noite.
CAPÍTULO 48
Matthias amarrou os Childes bem antes do momento que ele esperava que Isaac atravessasse a porta da frente.
Depois que a eletrocutou, descobriu que pegar Grier do chão e colocá-la em uma cadeira requeria mais força do que ele tinha – então, ele a deixou deitada onde estava, amarrando suas pernas e pulsos com a fita adesiva que encontrou na despensa de Alistair.
E quanto ao pai dela?
Não fazia ideia do que tinha feito o homem abrir caminho e ficar parado ali em transe, mas a distração e a falta de reação vieram bem a tempo. Matthias foi capaz de se posicionar atrás do cara e colocar uma arma em sua cabeça.
Então, sim, sentá-lo em uma cadeira na cozinha foi fácil demais; ele simplesmente uniu as próprias mãos e pés.
O que foi bem útil, uma vez que aquela dor no peito de Matthias estava tão ruim que ele mal podia respirar.
E agora, era apenas o caso de esperar por Isaac, os três na casa juntos com a porta aberta.
Houve um gemido e, em seguida, um movimento no chão quando Grier Childe começou a acordar. Ela teve um momento de confusão, como se estivesse tentando entender por que estava deitada sobre a madeira e por que não conseguia abrir a boca. E então ela se movimentou rapidamente com um impulso de corpo inteiro, os olhos bem abertos olhavam para ele.
– Acorde, pirralha – ele disse bruscamente, acenando com a cabeça quando seu pai começou a lutar contra suas amarras e a fazer ruídos abafados sob a fita adesiva na boca.
Matthias colocou a mira da arma em direção à cabeça do cara.
– Cale a boca.
Não havia ninguém por perto para ouvir, mas o sofrimento e a luta alfinetavam os nervos de Matthias. Na verdade, quando ficou em pé entre os dois, ele estava longe da calma e do “mestre da sobrevivência” que ele sempre foi no passado: ele estava com muita dor. Estava exausto. E ele sentia que o que estava prestes a acontecer estava predestinado, mas não era algo que ele teria escolhido.
Ele estava completamente fora de controle e totalmente preso ao mesmo tempo.
Com os olhos dos dois Childes nele e com todos em silêncio de novo, ele se apoiou contra o balcão, seu corpo decrépito protestando a mudança de posição.
– Sabe o que me irrita em você? – ele disse para Alistair. – Eu salvei a boa. – Ele balançou a cabeça em direção à Grier. – Eu poderia ter deixado aquele seu filho com você. Mas não, eu peguei o estragado... tirei seu querido Danny do sofrimento dele e do seu.
Ele se lembrava de ter se surpreendido com seu processo de pensamento na hora. Havia outras coisas dentro dele que machucariam muito mais, mas ele tomou um caminho diferente nessa encruzilhada.
Talvez ele tivesse começado a mudar antes de ordenar a morte. Quem sabe?
Quem se importa?
Ele estava mergulhado demais nas profundezas para ser salvo e sua conversa com Jim ao telefone mostrou a realidade da sua condenação ao invés das possibilidades de redenção. Era hora de acabar com isso... e sair dessa com um estrondo.
Só que dessa vez, ele faria a coisa direito.
Naquele momento, Isaac Rothe apareceu no arco da cozinha. Seus olhos foram até Grier primeiro e nem mesmo seu autocontrole estoico podia esconder seu medo.
Ele amava aquela mulher.
Bem, bom para ele, pobre coitado.
– Bem-vindo à festa – Matthias disse entorpecido ao erguer a arma e apontar para ele.
– Não faça isso – Isaac exclamou. – Leve a mim, não ela.
Matthias olhou os grandes e aterrorizados olhos da mulher e a maneira como ela parecia estar pronunciando algo como “Oh, Deus, não...”
– Eu sinto muito sobre tudo isso – Matthias disse a ela. E era verdade. Ele não sabia o que era mais cruel: matá-la em frente a Isaac... ou deixar que ela sobrevivesse à morte dele – supondo que o amor era recíproco.
Pena que um deles morreria agora – pois, em seguida, Jim Heron seria forçado a entrar e atirar em Matthias – portanto, estariam quites. O soldado o salvou há dois anos contra sua vontade e agora... naquela noite... ele faria o que deveria ter feito no deserto.
– Matthias – disse Isaac nitidamente. – Vou colocar minha arma no chão.
– Não se preocupe – ele murmurou, ainda focado em Grier. – Sabe, senhorita Childe, ele se entregou a mim para salvá-la. Duas vezes. Fez tudo isso por você.
– Matthias, olhe para mim.
Mas ele não olhou. Ao invés disso, encarou o rosto de Alistair e aquilo foi o que o fez ele se decidir.
Ele mudou a arma de direção.
Isaac estava pronto – e ele não esperava por menos.
Os dois puxaram o gatilho ao mesmo tempo.
CAPÍTULO 49
Grier gritou contra a fita que cobria sua boca com os tiros que explodiram na cozinha, o eco fez seus ouvidos ressoarem e seus olhos arderem.
Alguém estava gemendo.
Com seu coração trovejando, ela levantou a cabeça e esticou o pescoço. Matthias não estava mais à vista – então, ele deve ter sido atingido... Ela rezava para que ele tivesse sido atingido.
Isaac...? Seu pai...?
Rastejando ao longo do assoalho, ela avançou ao redor do balcão no meio da cozinha. A primeira coisa que viu foi seu pai na cadeira. E ele era o único que gemia ao lutar furiosamente contra a fita que havia ao redor de suas mãos e pés.
Onde Isaac estava?
Um pavor frio substituiu cada gota de sangue em suas veias e ela sabia a resposta para sua pergunta antes mesmo de vê-lo deitado de costas no cômodo.
Ele não se movia, sua arma estava sobre sua mão frouxa e aberta, seus olhos encaravam o vazio em direção ao teto.
Grier gritou mais uma vez, seu corpo se contraiu, seu rosto se arrastou no chão envernizado, toda sua alma e tudo que havia em sua mente negava o inevitável. Debatendo-se, ela avançou até ele, esperando ajudar, esforçando-se para atravessar a distância...
De repente, suas mãos estavam livres.
Com toda aquela luta ela rasgou o que a prendia. Explodindo em uma coordenação de movimentos inesperada, ela arrancou a fita da boca e se arrastou com os braços até Isaac.
A bala tinha atingido em cheio seu coração.
Era um buraco tão pequeno através da camisa, nada além de uma alfinetada em relação à mancha de fuligem que havia ao redor. Só que foi mais do que suficiente para matá-lo.
– Isaac – ela disse, tocando sua face fria. – Oh, Deus... não se vá...
Sua boca estava ligeiramente aberta, suas pupilas fixas e dilatadas, a respiração superficial prestes a parar. Ele tinha feito tudo para salvá-la, a mudança de planos, a entrega de si mesmo. Afinal, aquele homem louco e terrível não tinha motivos para mentir.
– Isaac... Eu te amo... Sinto muito...
Sua cabeça virou lentamente em direção à ela, seus olhos se esforçando para entrar em foco. Quando ele pareceu se fixar em seu rosto, lágrimas escorreram daquele olhar gélido, uma escapou do canto e rolou sobre suas têmporas, caindo no chão.
– Eu...
– Eu vou chamar a emergência – ela disse rápido.
Só que quando ela foi dar um salto para alcançar o telefone, ele agarrou seu braço com uma força surpreendente.
– Não...
– Você está morrendo...
– Não. – Com a mão livre, ele pegou o zíper do blusão. Mesmo com os dedos tremendo, ele conseguiu segurar a alavanca e puxar para baixo...
Para revelar o colete à prova de balas que estava usando.
– Apenas... perdi... a respiração. – Com isso, ele fez uma inspiração profunda, o que expandiu seu peito totalmente e exalou de maneira uniforme e limpa. – Tirei... do soldado morto...
Grier piscou. Em seguida, ergueu as mãos e sondou o buraco... onde a bala tinha sido capturada e mantida entre as fibras do colete.
Seu corpo reagiu por conta própria, uma estranha força a impulsionou quando ela o ergueu do chão e o segurou perto de seu coração.
– Você é... – ela começou a chorar copiosamente quando o horror e o terror deram lugar ao alívio que se espalhou nela. – Você é um homem brilhante. Um homem brilhante... e estúpido...
E então os braços dele estavam ao redor dela e ele estava, contra todas as possibilidades, cuidando dela.
Contudo, logo ele se separou dela e pegou sua arma.
– Fique aqui.
Com um grunhido, ele se levantou e saiu para checar Matthias e, quando ele se afastou, ela desatou seus pés e correu para seu pai.
– Você está bem? – ela perguntou quando começou a liberar os braços dele.
Ele balançou a cabeça furiosamente, seus olhos não estavam nela, mas em Isaac como se também não pudesse acreditar que o cara tinha sobrevivido. E no instante que suas mãos estavam livres, ele começou a soltar seus tornozelos.
Grier olhou em volta e por precaução, em caso de alguma outra pessoa aparecer ou estar na casa, procurou a nove milímetros que Jim Heron deu a ela quando tinha aparecido por ali.
Supondo que realmente tinha sido o homem.
Algo lhe dizia que talvez o que ela e seu pai viram não estava lá de fato.
Matthias sabia que tinha sido um golpe mortal e estava contente. Sim, ele queria que a arma de Jim fizesse isso, mas a de Isaac funcionou bem – e Rothe tinha feito parte de todo problema da sobrevivência, não tinha?
Pelo menos, ele tinha conseguido com um deles.
Quando o ferimento arterial começou a vazar em sua cavidade torácica, a respiração começou a se tornar difícil e sua pressão caiu, seu corpo foi se entorpecendo e esfriando. Não havia mais dor.
Bem, não exatamente. Aquela pontada de agonia em seu lado esquerdo acabava com ele... e foi enquanto estava morrendo que descobriu o que era aquilo: ele estava errado. Não era seu coração se preparando para um ataque coronário. Era – surpresa das surpresas – a sua consciência. E a maneira como soube foi que quando pensou no fato de ter matado um homem relativamente inocente na frente da mulher que o amava, a dor se tornou exponencialmente pior.
Não era irônico? De alguma maneira, nas profundezas de seu pecado, o sociopata havia encontrado sua alma.
Tarde demais.
Ah, inferno, contudo, estava tudo bem. Ele estaria morto em breve e, depois disso, nada importaria. A luz branca que já tinha se aproximado dele antes, ao entrar em paradas cardiorrespiratórias a na mesa de operações algumas vezes, estava mais perto dessa vez. Ele não achava que fosse o Céu. A porcaria provavelmente era algum produto da imaginação ou alguma disfunção ocular, apenas outra parte dos mecanismos da morte...
Isaac apareceu na frente dele, alto e forte, seu blusão aberto para mostrar um colete à prova de balas.
Quando teve certeza de que estava enxergando direito, Matthias começou a rir... e a dor em seu lado esquerdo aliviou de repente.
– Seu filho da... – Ele não chegou ao mãe, pois uma crise de tosse o atingiu.
Depois que a crise passou, ele pôde sentir sangue escorrendo em sua boca e no rosto quando seu coração começou a bater em sua caixa torácica como um animal se debatendo em uma jaula.
Quando Isaac se agachou, Matthias pensou na tatuagem nas costas dele. O Ceifeiro da Morte, de fato. Ele se perguntou se o soldado tatuaria outro ponto na parte inferior.
Quanto você quer apostar que também seria a última?
Isaac balançou a cabeça e sussurrou.
– Eu tenho que deixá-lo morrer. Sabe disso, não é?
Matthias assentiu.
– Obriga... do...
Ele ergueu a mão gelada e, um momento depois, sentiu que ela estava envolvida em algo quente e sólido. Era a mão de Isaac.
Como foi estranha a maneira como as coisas se resolveram. Naquele deserto, Jim tinha a intenção de salvá-lo, mas aqui e agora, naquela cozinha, Isaac estava dando o que ele queria há tanto tempo.
Antes que Matthias fechasse seus olhos pela última vez, ele olhou para Alistair Childe. Sua filha o havia libertado e ele a abraçava, a envolvia em segurança, a cabeça dele estava bem ao lado da dela. Como se o homem sentisse seu olhar, ele olhou também.
O alívio no rosto dele era épico, como se soubesse que Matthias estava morrendo e nunca mais voltaria – e que, apesar de saber que isso não ressuscitaria o filho perdido, o futuro dele e de sua filha estaria protegido para sempre.
Matthias acenou com a cabeça para ele e, então, fechou as pálpebras, preparando-se para o grande nada que estava por vir. Deus, ele ansiava por isso. Sua vida não tinha sido um presente para o mundo ou para ele mesmo e ele estava buscando a não existência.
Enquanto esperava no trecho entre os mundos, quando não se está nem vivo, nem exatamente morto, ele pensou em Alistair na noite em que seu filho havia morrido.
– ...Dan... ny... meu garoto Danny...
Matthias franziu a testa e, então, percebeu que não tinha apenas pensado nas palavras, mas as pronunciou em voz alta.
Foram as mesmas palavras que ele havia balbuciado antes de colocar o pé naquela bomba.
Naquele momento, a luz branca se apossou dele, um produto da dormência... ou talvez tivesse ultrapassado a sensação como se o sentimento fosse uma porta. Após a chegada dessa luz, uma grande e pacífica calma tomou conta de sua mente, corpo e alma como se estivesse limpo de todos os pecados que tinha imaginado ou cometido durante seu tempo na Terra.
A iluminação era muito mais do que qualquer coisa que seus olhos poderiam abranger. Era tudo o que via, tudo o que conhecia, tudo o que era.
O Paraíso realmente existia.
A oh, a adorável inexistência... ah, a felicidade...
Nas extremidades de sua visão, uma névoa cinza surgiu fervilhando, em sua primeira aparição não havia nada distinto, mas, em seguida, as sombras se expandiram em uma escuridão que começou a comer a luz.
Matthias lutou contra a invasão, seus instintos diziam que aquilo não era o que desejava – mas não era uma batalha que ele pudesse vencer.
A neblina tornou-se piche, o envolvia e o reclamava para si, o puxava para baixo em um espiral apertado, apertado... apertado... até que ele foi jogado em um mar com outros.
Quando ele se contorceu contra a maré oculta e asfixiante, ele esbarrou em corpos que se debatiam.
Preso em uma infinidade de óleo negro, ele gritou... junto a todos que estavam ali.
Mas ninguém apareceu. Ninguém se importou. Nada aconteceu.
Sua eternidade, finalmente, tomou posse dele e ela nunca mais o deixaria ir.
CAPÍTULO 50
– Ele está morto.
Quando Isaac pronunciou as palavras, ele se levantou e respirou fundo. Do outro lado, Grier e seu pai estavam envolvidos um ao outro e ele se permitiu um momento para apreciar a visão deles vivos e, enfim, juntos.
Obrigado, Deus, ele pensou – mesmo não sendo um homem religioso.
Obrigado, Deus todo-poderoso.
– Fiquem aqui – disse ele antes de percorrer o local, fechar e trancar a porta dos fundos.
Levou dez minutos para pesquisar e deixar toda a casa em segurança e a última coisa que ele fez foi ir até a porta da frente e verificar mais uma vez se os cadeados estavam devidamente trancados...
Isaac franziu a testa e olhou para o gramado através da janela. Havia um pequeno cachorro lá fora... parado com as pernas atarracadas, com a cabeça inclinada ao olhar para Isaac lá dentro. Que graça... precisava cortar o pelo, mas isso acontece nas melhores famílias.
Isaac abriu a porta e gritou.
– Você mora aqui?
Enquanto aquela cabeça continuava inclinada do outro lado, Isaac procurou pelo jardim da frente e rezou para que Jim Heron surgisse dentre as árvores a qualquer minuto.
Contudo, não havia nada além do cachorro.
– Quer entrar? – ele disse ao animal.
A coisa pareceu sorrir como se tivesse apreciado o convite. Mas, então, ele se virou e afastou-se, um leve mancar o fazia pender para a direita.
Em um piscar de olhos, o animal desapareceu.
Que trilha sonora a dessa maldita noite, Isaac pensou ao fechar a porta de novo.
Assim que entrou na cozinha, Grier se afastou de seu pai num rompante e veio correndo até ele, atingindo seu corpo com força, os braços o envolviam com uma força vital. E com um suspiro de gratidão, ele a segurou, pressionando sua cabeça sobre o peito, sentindo seu coração bater.
– Eu te amo – ela disse contra o colete à prova de balas. – Eu sinto muito. Eu te amo.
Droga, então ele ouviu direito quando estava no chão.
– Eu também te amo. – Erguendo seu rosto, ele a beijou. – Mesmo que eu não a mereça.
– Cale a boca.
Agora era ela quem o beijava e ele mais que a desejava – mas não durou muito. Logo ele interrompeu o contato.
– Ouça, eu quero que você e seu pai façam uma coisa por mim.
– Qualquer coisa.
Ele olhou o relógio. 9h59.
– Volte para a cidade – algum lugar público. Algum dos seus clubes ou algo assim. Eu quero que vocês dois sejam vistos juntos essa noite. Diga às pessoas que vocês foram jantar ou assistiram a um filme no cinema. Uma coisa de pai e filha.
Quando os olhos dela se lançaram sobre o corpo de Matthias, seu pai disse: – Eu posso ajudar.
– Nós podemos ajudar – Grier corrigiu.
Isaac recuou e balançou a cabeça.
– Eu vou cuidar dos corpos. Melhor que nenhum de vocês dois saiba onde eles vão parar. Eu cuido disso – mas têm que ir agora.
Os Childes pareciam dispostos a argumentar, mas ele não tinha nada a dizer.
– Pense nisso. Está tudo acabado. Matthias está morto. Assim como seu segundo no comando. Com eles mortos, as operações extraoficiais vão voltar a ser o que deveriam – e serão administradas pelas pessoas certas. Você está fora. – Ele balançou a cabeça para Childe. – Eu estou fora. A barra está limpa, permitindo com que eu lide com isso de agora em diante. Vamos fazer isso do jeito certo, pela última vez.
Seu pai soltou um palavrão – o que era algo que, sem dúvida, ele não fazia com frequência. E, em seguida, ele disse: – Ele está certo. Deixe-me trocar de roupa.
Quando seu pai desapareceu, Grier olhou para Isaac, seus braços envolveram a si mesma lentamente, seu olhar ficou grave.
– Isso é um adeus entre nós? Hoje à noite? Aqui e agora?
Isaac foi até ela e capturou seu rosto com as mãos, sentindo de maneira muito intensa a realidade da qual não podia escapar e a qual ela não seria capaz de sobreviver.
Com uma dor em seu peito que não tinha qualquer relação com a bala, ele disse uma única e devastadora palavra.
– Sim.
Quando ela cedeu, fechando os olhos com força, ele teve que dizer a verdade: – É melhor assim. Eu não sou seu tipo de homem, mesmo se não tivesse que me preocupar mais com as operações extraoficiais, eu não sou o que você precisa.
Suas pálpebras se abriram e ela o encarou.
– Quantos anos eu tenho? – ela perguntou. – Vamos lá, quantos? Diga!
– Ah... trinta e dois.
– E você sabe o que isso quer dizer, legalmente? Posso beber, posso fumar, posso votar, posso servir o exército e posso tomar minhas próprias decisões. Então, que tal deixar que eu escolha o que é e o que não é bom para mim?
Certo. Não era hora de discussões. E ele realmente achava que ela não tinha pensado nas implicações de estar com um homem com seus antecedentes.
Ele recuou.
– Vá com seu pai. Deixe-me limpar tudo aqui e na cidade.
Seus olhos se fixaram aos dele.
– Não parta meu coração, Isaac Rothe. Não parta meu coração quando você sabe perfeitamente bem que não precisa fazer isso.
Com isso, ela o beijou e saiu da cozinha... e enquanto ele a observava sair, se sentiu sendo direcionado a dois resultados: um onde ele ficava com ela e tentava fazer as coisas darem certo, outro onde ele a deixava para costurar sua vida e seguir em frente.
Ouviu os passos dela e de seu pai no andar de cima enquanto se aprontavam para sair e fingir que não tinham visto dois homens sendo mortos em suas casas e que não estavam rezando para que um soldado a quem eles nunca deveriam ter conhecido desaparecesse com os corpos.
Cristo, e ele sequer considerou estar na vida dela?
Isaac estava sozinho não mais que vinte minutos depois, os dois fizeram uma saída rápida para a cidade com o Mercedes de Childe.
Antes de partirem, Isaac apertou a mão do pai de Grier, mas não ofereceu sua palma a ela – pois ele não confiava que não iria beijá-la uma última vez: olhando para ela em seu vestido preto, com seu cabelo amarrado e maquiada, ela estava como da primeira vez que a viu, uma mulher bonita, bem educada, com os olhos mais inteligentes que ele nunca teve o privilégio de olhar fixamente antes.
– Fique bem – ele disse a ela com voz rouca. – Ligo quando estiver tudo certo para que possam voltar.
Sem lágrimas, sem protestos da parte dela no final. Ela apenas balançou a cabeça uma vez, girou sobre os calcanhares e se dirigiu para o carro do pai.
Quando os dois saíram, ele caminhou até a porta da frente e observou as luzes traseiras do sedã.
Ele teve que secar os olhos. Duas vezes.
E depois que os dois faróis vermelhos desapareceram, ele se sentiu abandonado. Mas aquilo era uma grande besteira, não era? Você não poderia ser abandonado quando se é o único a partir.
Certo?
Procurando algum tipo de contato, algum tipo de esperança, ele olhou ao redor da fileira de árvores do outro lado do gramado mais uma vez. Nenhum sinal de Jim e seus amigos... ou daquele cachorro.
E ele ainda podia jurar que estava sendo observado.
– Jim? Você está aí fora?
Ninguém respondeu. Ninguém saiu da folhagem.
– Jim?
Quando ele voltou para dentro, teve a estranha sensação de que nunca veria Heron novamente. O que era esquisito, pois Jim estava muito entusiasmado para ser um salvador.
Mais uma vez, ele observou o corpo de Matthias estirado no chão, o que significava que Isaac estava em segurança agora – a vida daquele homem acabou servindo para alguma coisa afinal, não é?
Contudo... só para garantir, ele ficou vestido com o colete à prova de balas até o amanhecer.
Não havia razão para não garantir a vida.
CAPÍTULO 51
– Jim? Você está aí fora, Jim?
Quando os olhos de Isaac procuraram pelas árvores, Jim estava a não mais que três passos de distância do cara e desejava poder abraçar o filho da mãe. Deus... quando aqueles tiros explodiram e ele viu pela janela da cozinha quando Matthias e Rothe caíram, anos foram arrancados de sua vida eterna.
Mas Isaac estava bem. Ele se salvou com um pensamento bastante óbvio e defensivo. Assim como foi treinado para fazer.
– Jim?
E agora, ao olhar para seu amigo soldado, uma alegria pura e inalterada o inundava. Ele tinha vencido. Mais uma vez.
Vá se ferrar, Devina, ele pensou. Vá se ferrar!
Isaac estava vivo, assim como Grier e seu pai. E apesar de ir atrás da alma errada no começo, as coisas funcionaram muito bem – embora a coisa de Nigel sobre punição acabou por ser irrelevante, não?
Jim olhou sobre o ombro para Adrian e Eddie e ficou surpreso por eles não estarem todos sorridentes.
– O que há de errado com...?
Ele não teve a chance de terminar a frase. Um turbilhão louco rodopiou sob seus pés, girando em torno dele, levantando-se para reivindicar suas pernas, quadris e peito. Ele tentou lutar, mas não conseguiu fugir...
Suas moléculas se misturaram e se dispersaram até que havia um enxame dentro dele que o fazia sair de suas dimensões de tempo e espaço, ele viajava para algum destino desconhecido. Quando ele se recompôs, sabia exatamente onde estava... e a visão da mesa de trabalho de Devina revirou o seu estômago.
Ele não tinha ganhado. Tinha?
– Não, você não ganhou – ela disse atrás dele.
Girando sobre os calcanhares, ele olhou para ela quando entrou atravessando o arco. Ela estava em sua forma morena, toda linda e exuberante e falsa como uma versão Barbie de si mesma.
Ela sorriu, seus lábios vermelhos ondulavam sobre seus belos dentes brancos.
– Matthias atirou em Isaac com a intenção de matar. Se houve ou não uma morte não importa. Isso significa dolo – uma mente culpada.
Acima de sua cabeça, uma bandeira preta estava pendurada na parede escura, seu primeiro troféu.
– Você perdeu, Jim. – Aquele sorriso ficou ainda maior quando ela levantou os braços e indicou sua grande e viscosa prisão que se erguia acima dos dois. – Ele está aqui agora, meu para sempre.
As mãos de Jim se fecharam para um soco.
– Você trapaceou.
– Trapaceei?
– Você fingiu ser eu, não foi? Foi assim que Matthias entrou na fazenda. Ou você fez com que ele se parecesse comigo ou apareceu como se fosse eu.
Sua satisfação presunçosa era toda a confirmação que ele precisava.
– O que é isso agora, Jim? Eu nunca trapaceei. Então, eu não sei do que está falando. – Devina caminhou até ele, aproximando-se em um sensual deslize. – Diga, você se incomoda de ficar mais um pouco? Eu tenho algumas ideias de como podemos passar o tempo.
Quando ela estava bem na frente dele, suas unhas vermelhas flutuaram sobre seu peito e ela se inclinou.
– Eu amo estar com você, Jim.
Com um forte estrondo, ele capturou o pulso dela e o apertou com força suficiente para quebrá-lo.
– Sei que você adora fazer os outros sofrerem. Mas caso não se lembre, eu resisti às suas torturas.
A vadia teve a coragem de fazer beicinho.
– Você está me machucando.
Ele não acreditou naquilo nem por um segundo.
– E você não vai dizer ou fazer nada.
Agora ela sorria de novo.
– Está certo, Jim, meu amor. Está certo.
Ele soltou dela como se ela o queimasse, o estômago apertou ao reconhecer a luz em seus olhos.
– Isso mesmo, Jim – ela murmurou. – Eu tenho sentimentos por você. E isso o assusta, não é? Com medo de ser recíproco?
– Nem. Um. Pouco.
– Ah, bem, teremos que trabalhar em cima disso.
Antes que ele pudesse detê-la, ela se ergueu e capturou a boca dele, beijando-o rápido e, em seguida, mordendo o lábio inferior com força suficiente para tirar sangue.
Ela recuou rápido, como se soubesse que estava forçando.
– Adeus, por enquanto, Jim. Mas nos veremos em breve. Prometo.
Com nojo, ele limpou a boca com as costas da mão e cuspiu no chão. Estava prestes a levá-la ao chão quando franziu a testa, pensando no que Nigel havia dito no gramado.
Saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva.
Agora, era Jim quem sorria – embora severamente. Havia coisas piores do que seu inimigo apaixonado por você: forte como ela era, tão imprevisível e perigosa quanto seus poderes, aquele olhar em seus olhos, aquele olhar em chamas, fora de controle, era uma arma.
Deixando para trás suas emoções, ele se viu descendo a mão e empurrando seu pênis.
A reação de Devina foi instantânea e elétrica. Seu olhar quente se voltou para os quadris dele, a boca dela se abriu como se não conseguisse respirar direito, os seios se erguiam sobre o corpete do vestido.
– Você quer isso? – ele perguntou rispidamente.
Como uma marionete, ela assentiu com a cabeça.
– Não é o suficiente – ele disse a ela, odiando-a, odiando a si mesmo. – Diga isso, vadia. Diga.
Com uma voz rouca e ansiosa, ela sussurrou: – Eu te desejo...
Jim soltou seu membro, sentindo imundo por dentro e por fora. Mas a guerra era feia, não era? Mesmo se você está do lado bom e moral.
Um mal necessário, ele pensou. Seu corpo e a necessidade dela eram um mal necessário e ele os usaria se precisasse.
– Bom – ele rosnou. – Isso é bom.
Com isso, ele desejou que seu corpo se levantasse do chão, dessa vez a energia era convocada por ele e por mais ninguém.
Ao levitar cada vez mais alto, Devina se aproximou dele, seu rosto se contorcia em um tipo de desejo doloroso que dava mais energia a ele.
E, então, ele não estava mais olhando para ela; ele estava examinando as paredes de sua masmorra, em busca da garota que ele odiaria deixar para trás de novo... assim como seu patrão a quem ele tinha tentado salvar e falhado.
Ele voltaria pela moça. Mas seu patrão... temia que Matthias tinha sido colocado para descansar ali por uma eternidade, o seu sofrimento interminável era merecido.
Contudo, Jim lamentava a perda do homem.
Ele queria redimir o cara.
Jim voltou a consciência no gramado do capitão Alistair Childe. E quando ele voltou a pensar em sua primeira missão, parecia que tinha ficado especialista no vai e vem na grama.
Adrian e Eddie estavam um de cada lado dele, os dois anjos graves e sérios.
– Perdemos – disse Jim. Como se eles já não soubessem.
Adrian estendeu a mão e quando Jim se ergueu, o cara o ajudou a colocá-lo em pé.
– Perdemos – Jim murmurou novamente.
Olhando por cima do ombro, ele pensou brevemente em ir até a fazenda e ajudar Isaac a cuidar dos restos de Matthias, mas decidiu ficar onde estava. O soldado já teria um momento difícil suficiente para fazer com que todas as coisas que não poderiam ser explicadas fizessem sentido – mais contato com Jim só daria a ele outra porcaria para pensar.
– Caldwell – disse Jim aos seus amigos. – Vamos voltar a Caldwell.
– Está certo – Eddie murmurou, como se não estivesse nem um pouco surpreso.
E Jim não ia se preocupar com quem seria o próximo no jogo. Como ele aprendeu com essa tarefa em particular, as almas iriam encontrá-lo. Assim, ele poderia muito bem seguir o que seu coração lhe dizia: que já era hora da família Burten encontrar o corpo de sua filha para enterrá-lo de maneira adequada.
Jim era o único anjo que poderia fazer isso acontecer.
Desfraldando suas grandes asas luminescentes, lançou um último olhar através das janelas da cozinha. Isaac Rothe estava trabalhando com uma determinação sombria, lidando com as coisas com a mesma competência, como sempre fez.
Ele ia ficar bem – desde que fosse inteligente o suficiente para ficar com aquela advogada. Deus, quem tem sorte de encontrar um amor assim? Só um idiota desperdiçaria isso.
Jim se dirigiu para o céu noturno como se tivesse nascido para ele, suas asas o carregavam através do ar frio, o vento batia em sua face e dedilhava seus cabelos, sua equipe de dois membros estava bem atrás dele.
Na próxima batalha ele seria mais rápido no gatilho. E usaria sua nova arma contra Devina para sua total vantagem.
Mesmo se isso o matasse.
CAPÍTULO 52
UMA SEMANA DEPOIS...
Ao se despir no closet, Grier pendurou seu terno preto com os outros e achou ser impossível não se lembrar da maneira como estava organizado antes. Os ternos ficavam à esquerda da porta. Agora, eles estavam bem à frente.
Apenas vestida com sua blusa de seda e meias, ela passou as mãos ao redor, tocando as roupas, perguntando-se quais foram penduradas por ela naquela tarde... e quais Isaac havia organizado depois que ela saiu.
Fechando os olhos, ela quis chorar, mas não teve forças.
Não soube de nada mais sobre ele desde aquela noite da limpeza há uma semana – sobre o que, aliás, ele tinha avisado via mensagem de texto ao invés de pessoalmente ou falando ao telefone.
Depois disso? Nada de ligações, e-mails, visitas.
Era como se ele nunca tivesse existido.
E ele não deixou nada para trás. Quando ela voltou àquela casa, o cartão de visitas que Matthias havia dado a ela assim como as faixas de tecido retiradas da regata e a pasta cheia de dossiês haviam desaparecido. Juntamente com os dois corpos e os dois carros em Lincoln.
De maneira insana, ela procurou por um bilhete, assim como havia feito na primeira vez que ele “partiu”, mas não havia nada. E, às vezes, no meio da noite, quando não conseguia dormir, ela levantava para procurar novamente, verificando nos criados mudos ao lado da cama, na cozinha e até mesmo no closet.
Nada.
A única coisa que ela concluía que ele havia deixado para trás era aquele closet organizado. Mas era algo que ela dificilmente colocaria em seu diário e daria uma olhada de tempos em tempos quando se sentisse melancólica.
Durante aqueles sete dias que se passaram, o trabalho a manteve firme, forçando-a a levantar pela manhã quando tudo o que ela queria era puxar os cobertores sobre a cabeça e ficar deitada na cama o dia inteiro: em todas as manhãs, ela se levantou, se vestiu, tomou café e ficou presa no trânsito durante o curto caminho até o Distrito Financeiro, onde os escritórios se encontravam.
Seu pai tinha sido ótimo.
Eles jantaram juntos todas as noites, como se já tivessem esse hábito antes...
A única coisa mais próxima de uma luz no fim do túnel era – apesar daquilo ser apenas um fósforo aceso e não uma fogueira ou coisa assim – que havia persistido na ideia de tirar umas férias. Na próxima semana ela entraria em um avião e iria até...
Grier congelou, uma sensação de cócegas em seu pescoço interrompendo a rotina de angústia.
– Daniel?
Quando não houve resposta, ela soltou um palavrão. Além de procurar por um bilhete inexistente de Isaac, ela esperava ver o fantasma de seu irmão, mas era como se os dois a tivessem abandonado na pior sem dizer adeus.
Virando-se, ela...
– Daniel! – Ela agarrou o peito. – Cristo! Onde diabos você esteve?
Pela primeira vez, seu irmão não estava vestido com suas roupas da Ralph Lauren. Ele estava com uma longa bata branca, parecendo que estava prestes a se formar na faculdade ou algo assim.
Seu sorriso era terno, mas triste.
– Oi, irmãzinha.
– Pensei que havia me abandonado. – Ela quase saiu correndo para abraçá-lo quando percebeu que não ia dar certo: como sempre, a maior parte dele era de ar. – Por que você não...
– Eu vim para dizer adeus.
– Oh. – Seus olhos se fecharam por conta própria e ela respirou fundo. – Era como se eu já esperasse por isso, acho.
Quando ela abriu os olhos novamente, ele estava bem na frente dela e tudo o que pôde pensar foi em como ele parecia bem. Tão relaxado. Tão... curiosamente sábio.
– Você está pronta para isso agora – ele disse a ela. – Você está pronta para seguir em frente.
– Estou? – Ela não tinha certeza. A ideia de não vê-lo de novo a deixou em pânico.
– Sim, você está. Além disso, não é o tipo de coisa permanente. Vai me ver de novo... Mamãe também. Vai levar muito tempo, mas você tem algo pelo que viver agora.
– Certo, tenho a mim mesma. Sem ofensa, mas eu já venho fazendo isso há trinta anos e é meio vazio.
Agora, ele sorria e sua mão brilhante pairou sobre sua barriga.
– Não exatamente.
Quando olhou para si mesma, ela se perguntou sobre o que diabos ele estava falando.
– Eu amo você – seu irmão disse. – E você vai ficar bem. Eu também quero lhe dizer que acho que estava errado.
– Sobre o que?
– Eu pensei que estava preso entre os dois mundos por que você não me deixaria ir. Mas não era isso. Eu era o único que não me permitia partir. Contudo, você vai ficar em ótimas mãos e tudo ficará bem.
– Daniel, do que você está falando...?
– Vou dizer a mamãe que você a ama. E não se preocupe. Sei que me ama também. Diga “oi” para o papai por mim se puder. Diga a ele que estou bem e já o perdoei há muito tempo. – Seu irmão ergueu sua mão fantasmagórica. – Adeus, Grier. E Daniel seria ótimo. Sabe? Se for menino.
Grier recuou quando seu irmão desapareceu no ar.
Na sua ausência, ela ficou ali, parada de maneira idiota, imaginando no que em nome de Deus ele poderia...
Seus pés começaram a se mover sem que ela os ordenasse e, uma fração de segundo depois, ela se encontrava no banheiro. Escancarando a gaveta onde guardava a maquiagem e suas...
Pílulas anticoncepcionais.
Com a mão trêmula, ela pegou o bloco de bolhas quadrado e começou a contar.
Mas não era como se ela não se lembrasse qual havia esquecido... de tomar.
A última pílula que engoliu foi na noite anterior a de Isaac entrar em sua vida. E eles tinham feito amor duas vezes... talvez duas e meia sem proteção.
Grier saiu tropeçando do banheiro e imediatamente percebeu que não tinha para onde ir. Caindo sobre os pés da cama, ela ficou lá sentada na penumbra e olhava para a embalagem enquanto a chuva começava a cair lá fora.
Grávida? Seria possível que ela estivesse... grávida? Ela estava...?
A batida foi tão silenciosa que no começo ela achou ser apenas um efeito de seu coração que batia forte, mas quando aconteceu de novo, ela olhou para a porta francesa no terraço.
Do outro lado do vidro, uma forma enorme se sobressaía e por um segundo ela quase recorreu ao sistema de segurança. Mas, então, ela viu que não era uma arma na mão do homem.
Uma rosa.
Com certeza parecia uma única rosa.
– Isaac – ela gritou.
Explodindo, ela correu para a porta e a abriu com força.
Seu soldado desaparecido estava ali agora na garoa, seu cabelo úmido, a regata preta deixava seus ombros nus sob as gotas.
– Oi – ele disse com uma voz doce. Como se estivesse inseguro com a recepção que teria.
Grier colocou as pílulas atrás de si.
– Olá...
Sua mente girou em um frenesi ao se perguntar se ele tinha vindo para conversar sobre algum problema com a limpeza dos corpos... ou ele estava ali para avisá-la de que alguém estava atrás deles? Mas, então, por que ele traria uma...?
– Não há nada de errado – ele disse, como se talvez ela tivesse pensado em voz alta. – Só estou aqui para lhe dar isso. – Ele ergueu a rosa branca meio desajeitado. – É... ah, algo que os homens fazem. Quando eles... ah...
Quando a voz pareceu abandoná-lo, Grier olhou para as pétalas perfeitas da flor e, ao respirar fundo, ela sentiu o aroma – e, então, percebeu que estava fazendo com que ele ficasse na chuva.
– Deus, onde está minha educação... entre – ela disse. – Você está se molhando.
Quando ela recuou, ele hesitou. E, então, ele colocou a rosa entre os dentes e se abaixou para desfazer o laço das botas de combate.
Grier começou a rir.
Ela não conseguia evitar e não fazia qualquer sentindo, mas não havia como segurar. Ela riu até que precisou voltar e sentar-se no colchão de novo. Ela ria de alegria, confusão e esperança. Ela ria de tudo, desde a rosa perfeita até o momento perfeito... até o timing perfeito.
Até de ele ser um perfeito cavalheiro – ao ponto de não querer sujar o tapete de seu quarto.
Seu irmão estava certo.
Ela ia ficar bem.
Seu soldado estava em casa afinal... e ela ia ficar perfeitamente bem.
Isaac entrou no quarto de Grier de meias e foi cuidadoso ao fechar a porta atrás de si. Tirando a rosa dentre os dentes, ele passou a mão no cabelo e sentiu mais uma vez a sensação de querer ter aparecido em um smoking ou coisa assim.
Mas ele simplesmente não era o tipo de cara que usava smoking.
Ele se aproximou de sua mulher e ficou de joelhos na frente dela, observando-a dar risada e sorrindo um pouco de si mesmo. Ou ela tinha perdido a cabeça ou estava feliz em vê-lo – e ele esperava com todas as forças que fosse a última opção e não se importava que fosse a primeira se ela o deixasse ficar.
Deus, ela estava linda. Com nada além de uma blusa de seda preta e um par de meias finas, era a coisa mais linda que ele já tinha visto...
Quando ela enxugou os olhos, ele percebeu que havia alguma coisa em sua mão e não era uma flor boba. Era uma embalagem cheia de... pílulas?
Foi evidente quando Grier percebeu o que ele estava olhando, pois ela parou de rir e tentou fixar a coisa nas costas.
– Espere – ele disse. – O que é isso?
Ela respirou fundo, como se estivesse se preparando.
– Por que você voltou?
– O que faz com essas pílulas?
– Você primeiro. – Seu olhar estava mortalmente sério. – Você... responde primeiro.
Bem, agora, ele se sentia como um tolo, mas, novamente, apesar de tudo se justificar no amor e na guerra, não havia lugar para o orgulho de um homem naquela confusão, havia?
– Eu vim para ficar, se você permitir. Passei a última semana... cuidando das coisas. – Não havia motivos para detalhar isso e ele ficou aliviado por ela não perguntar. – E eu tive que pensar um pouco. Eu quero entrar na legalidade. Como você disse, não se pode mudar o passado, mas posso fazer alguma coisa quanto ao futuro. Meu tempo nas operações extraoficiais... vou ter que carregar esse fardo comigo pelo resto da minha vida – mas, e sei que isso vai soar mal, sou um assassino com a consciência tranquila. Não sei se isso faz sentido...
Porém, a questão de haver uma anotação em seu dossiê “Precisa de uma motivação moral” não era apenas fachada – e aquela era a única razão pela qual ele conseguiria viver sem se entregar à prisão ou à cadeira elétrica.
Ele limpou a garganta.
– Quero ir a julgamento pelas lutas clandestinas... talvez se eu concordar em cooperar, posso conseguir uma sentença reduzida, fiança ou algo assim. E, depois, quero conseguir um emprego. Talvez na área de segurança ou...
Ele gostaria de entrar para a equipe de Jim Heron, mas com Matthias morto talvez aqueles três tivessem se separado – contudo, ele nunca saberia. Se Jim não tinha vindo procurá-lo até agora, ele nunca mais iria.
– Acho que estou grávida.
Isaac congelou. Depois, piscou os olhos.
Hum, ele pensou. Considerando o zumbido em seus ouvidos, parecia que alguém tinha atingido sua nuca com um golpe.
O que não só explicava o barulho como também a súbita tontura.
– Desculpe... O que você falou?
Ela ergueu as pílulas.
– Eu me esqueci de tomá-las. Com todo aquele drama, eu simplesmente... não fiz isso.
Isaac esperou para ver se a sensação de “certo, eu fui atingido” voltava e, como pode imaginar, sim, ela voltou com tudo.
Porém, não durou muito. Uma alegria devastadora derrotou suas hesitações e, antes que se desse conta, ele saltou sobre Grier a derrubando no colchão em um abraço de esmagar os ossos. E isso, imediatamente, o deixou apavorado.
– Oh, Deus, eu machuquei você?
– Não – ela disse, sorrindo e o beijando. – Não, estou bem.
– Tem certeza?
Ela lançou um olhar estranho e distante em direção ao dele.
– Sim, estou bem mesmo. Podemos chamá-lo de Daniel se for menino?
– Podemos chamá-lo de tudo. Daniel. Fred. Susie seria complicado, mas eu aceito.
Não havia mais nada a dizer depois disso. Ele estava muito ocupado a despindo e, então, eles ficaram nus e...
– Caramba... – Ele gemeu ao entrar nela, sentindo seu forte abraço e encantado com aquela pressão quente e escorregadia. – Desculpe... eu não quis... reclamar...
Oh, o movimento, o glorioso movimento.
Oh, o glorioso futuro.
Ele estava livre enfim. E, graças à ela, Isaac saiu da tempestade, literalmente.
– Eu amo você, Isaac – ela arfou contra sua garganta. – Mas quero mais intenso... preciso de você mais forte...
– Sim, senhora – ele rosnou. – Qualquer coisa que a moça quiser.
E, em seguida, ele começou a dar-lhe tudo o que tinha... tudo o que era e tudo o que seria.
CAPÍTULO 38
Depois que Isaac se certificou que Grier estava segura, ele tateou ao redor do quarto dela e ouviu com atenção. Quando a falta de passos, confusão, ou tiros não lhe deu informações, ele continuou a ir em direção à entrada. Outra pausa. Será que ele deveria usar a escada dos fundos? A da frente?
Frente. Era mais provável que uma infiltração ocorresse a partir do jardim dos fundos. Havia mais cobertura nessa direção.
Droga, ele esperava que fosse apenas Jim Heron, mas não achava que o cara ia aparecer assim. E o pai de Grier poderia desativar o sistema – ele já tinha provado que conseguia fazer isso. Então, era evidente que ele não tinha permitido a entrada de quem estava ali.
Maldição, se era alguém mandado por Matthias, por que a chegada não foi anunciada pelo transmissor de alerta? Por outro lado, Isaac não permitiria que entrassem ali dentro e sem dúvida eles sabiam disso: Matthias pode ter exigido que Grier e seu pai estivessem por perto, mas Isaac não estava disposto a deixar que o matassem na frente deles.
Ela nunca superaria isso.
Por favor, Deus, ele pensou. Permita que ela fique onde está.
Andando com as costas deslizando contra a parede, ele desceu as escadas, sempre com sua arma à frente. Sons... onde estavam os sons? Não havia nada, literalmente, se movendo na casa e, considerando que o pai de Grier andava como um leão enjaulado, aquele silêncio todo não era animador.
Assim que a parede terminou e o percurso sem corrimão começou, ele se balançou, se soltou e, deliberadamente, aterrissou com força como uma pedra na sala da frente.
Às vezes, o ruído era um bom direcionador, dando ao seu oponente um alvo para perseguir.
E, como pode imaginar, o “boom” dos pés de Isaac atingindo o chão atraiu o visitante: da cozinha, um homem vestido de preto entrou em sua visão.
O segundo na linha de comando de Matthias.
E ele fez do pai de Grier um escudo humano.
– Quer trocar? – o cara disse severamente.
A arma apontada para a cabeça de Childe era uma automática equipada com um silenciador. Bem, não era surpresa. Era idêntica a que havia nas mãos de Isaac.
Movendo-se lentamente, Isaac curvou-se para baixo e colocou sua arma no chão. Então, chutou para longe.
– Deixe-o ir. Venha, leve a mim.
Childe arregalou os olhos, mas se segurou. Ainda bem.
Isaac virou para a parede, colocou as mãos em cima do gesso e abriu os tornozelos em posição de uma apreensão clássica. Olhando por cima do ombro, ele disse: – Estou pronto para ir.
O segundo no comando esboçou um sorriso.
– Olhe para você, todo condescendente. Traz até uma lágrima no olhar.
Com um movimento rápido, o soldado deu um golpe no pai de Grier com a coronha da arma, o velho Childe caiu ao chão como um saco de areia. Em seguida, foi a vez do segundo no comando caminhar até Isaac, com a arma apontada para ele e com uma atitude inabalável.
Tão estranho quanto isso era o seu olhar negro e fosco.
– Vamos fazer isso logo – Isaac disse.
– Onde está sua outra arma? Eu sei que você tem outra.
– Venha pegar.
– Você quer mesmo brincar comigo?
Isaac se aproximou e pegou sua outra arma.
– Onde você a quer?
– Pergunta errada. No chão e dê um pontapé.
Quando Isaac se inclinou, o outro homem também o fez. E não mudaram de posição até que os dois se endireitassem e Isaac percebesse que sua primeira arma, a do silenciador, tinha sido apanhada por uma mão negra, enluvada.
– Então – o segundo no comando falou devagar – Matthias tem se divertido com as conversinhas que vocês dois têm levado e ele quer que eu o mantenha aqui até ele chegar. – O maldito olhar do bastardo se aproximou. – Mas eis a questão, Isaac: há coisas maiores em jogo e esta é uma situação pela qual seu chefe não é responsável.
O que era aquela coisa de “seu chefe”, Isaac pensou.
E, então, ele franziu a testa ao perceber que o braço do cara, aquele que tinha sido quebrado há menos de dois dias, parecia estar completamente curado.
E aquele sorriso estava errado... havia algo de errado com aquele sorriso também.
– As coisas vão tomar um rumo diferente – o segundo no comando disse. – Surpresa!
Com isso, ele colocou a arma de Isaac no próprio queixo e puxou o gatilho, explodindo sua cabeça por completo.
CAPÍTULO 39
Jim saiu do coma com sua nuca em chamas. Ele não fazia ideia de quanto tempo ficou apagado, mas estava claro que Ad o colocou de novo na cama: a maciez sobre sua cabeça era, definitivamente, um travesseiro e não a barra fria e dura da banheira.
Quando ele se sentou na cama, ficou chocado: sentia-se forte de uma maneira curiosa e milagrosamente estável. Era como se o tempo de descanso que teve... bem, que deve ter durado horas, supondo que estava lendo o relógio direito... tinha o reiniciado por dentro e por fora.
O que era uma boa notícia.
Contudo, a tensão no topo de sua coluna não era nada além de uma coisa: Isaac.
Isaac estava com problemas.
Balançando as pernas para fora da cama na posição vertical e as firmando no chão, não sentiu náuseas, tonturas, dores ou incômodos. Apenas o formigamento na base do crânio – ele não estava apenas pronto para ir, estava rugindo para fazer isso.
– Adrian! – ele gritou enquanto se aproximava de sua mochila e puxava um par de calças jeans.
Onde, diabos, estava o Cachorro?
Através da porta que ligava os quartos, ele pôde ver que as luzes estavam acesas do outro lado, então, o anjo tinha que estar lá.
– Adrian! – ele pronunciou o comando e puxou as calças; em seguida, pegou uma camisa.
– Nós temos que ir!
Ele pegou sua adaga de cristal e a colocou no casaco.
– Ei, Ad...
Adrian estava esparramado no quarto com o Cachorro debaixo do braço.
– Eddie está em apuros.
Bem, aquilo não fez com que a sensação de sua nuca tivesse muita melhora.
– O quê?
Adrian se desfez do Cachorro e deixou que pulasse para dizer “oi” a Jim.
– Ele não está atendendo ao telefone. Eu liguei. E liguei de novo. E liguei uma terceira vez. Nunca aconteceu.
– Droga.
Quando Ad se aprontou, Jim deu uma olhada no Cachorro e colocou um pouco de comida e, em seguida, ele e seu braço direito decolaram, literalmente. Cara, ele nunca foi tão grato por aqueles instrumentos em suas costas com os quais em um piscar de olhos estavam em qualquer lugar: apenas alguns minutos depois, eles estavam em Beacon Hill.
Ele e Adrian desembarcaram no jardim murado em uma chama brilhante e se mantiveram ocultos de olhares indiscretos, pois eram apenas quatro da tarde. A casa parecia bem por fora e o feitiço vermelho reluzente ainda estava no local, mas seu pescoço estava o matando. E onde, diabos, estava Eddie...
– Droga – ele disse cuspindo quando viu as solas das botas de combate do anjo saindo de um arbusto.
Jim bateu os pés no dele e se agachou. O cara estava deitado de costas para baixo, parecendo que tinha lutado contra um trator e perdido.
– Eddie?
O grande anjo abriu os olhos.
– Que inferno... o que... Eu não sei o que aconteceu. Em um minuto eu estava em pé. No seguinte...
– Você parece um tapete de boas vindas.
Adrian estendeu uma de suas mãos para ajudar seu melhor amigo a levantar.
– Que droga foi essa?
– Não faço ideia. – Eddie ficou em pé devagar. Então, ele olhou para Jim e se encolheu. – Jesus Cristo...
Jim franziu a testa e olhou ao redor.
– O que?
– Seu rosto...
Certo, talvez ele apenas estivesse se sentindo melhor. Com sorte, a parte da aparência ficaria boa depois.
– Está dizendo que meus dias de modelo de calendário chegaram ao fim?
– Não sabia que estava nessa. – Eddie balançou a cabeça. – Ouça, Isaac quer falar com você. O mais rápido possível.
Jim olhou para Adrian.
– Você fica com o tapete de boas vindas.
– Como se eu pudesse ir a outro lugar.
Jim correu para casa. A porta dos fundos estava aberta, o que era uma má notícia – e a porcaria só aumentou ao atravessar a cozinha.
Deus, você nunca se acostuma com o cheiro de um ferimento mortal feito à bala: havia diferentes aromas, vísceras, sangue, cérebro, mas as nuances eram todas metálicas em meio aos componentes da bala.
O primeiro corpo que ele encontrou foi de um homem do qual ele conhecia: capitão Alistair Childe. O pobre coitado estava deitado no arco que dava para o corredor da frente, contorcido no chão todo amontoado.
No entanto, não era ele a origem do sangue. Não havia nada na roupa ou no piso e Childe estava respirando regularmente apesar do cochilo forçado por um nocaute.
O corpo número dois estava na metade do caminho da porta da frente e era evidente ser a origem do cheiro... Sim, uau, se Jim se lembrava dos que já tinha visto, o bastardo era um candidato para um caixão lacrado: seu rosto estava distorcido de dentro para fora, a bala deve ter viajado por entre a carne e os ossos de seu queixo e nariz antes de fazer uma saída triunfal no topo do crânio.
Considerando a tatuagem de uma serpente no pescoço do cara, tinha que ser o segundo na linha de comando de Matthias.
E Isaac estava parado próximo ao cara com uma expressão assustada de “Mas que droga!”
Rothe levantou os olhos e as mãos desarmadas.
– Ele fez isso... a si mesmo. Droga... Como está o pai?
Jim se ajoelhou ao lado do capitão para verificar mais uma vez. Sim, Childe tinha sido atingido na cabeça, provavelmente com a coronha de uma arma, mas ele já estava começando a gemer como se estivesse recobrando a consciência.
– Ele vai ficar bem. – Jim se levantou e se dirigiu a Isaac e ao outro cara. Ao chegar mais perto, o cheiro ficou pior...
Ele começou a andar devagar e, em seguida, parou completamente. E esfregou os olhos.
Uma sombra cinza cintilante cobria o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias da cabeça aos pés, movendo-se ao redor dos braços, pernas e da cabeça estourada da mesma maneira que o feitiço de Jim se movimentava e cobria a casa em que estavam. E havia algo de errado com o sangue – cinza e não vermelho brilhante.
Devina, pensou Jim. Ou ela estava no homem ou tinha assumido o controle.
– Ele simplesmente colocou a coisa debaixo do queixo e puxou o gatilho. – Isaac ajoelhou-se sobre os quadris e acenou para a arma que estava na mão direita do cadáver.
– Ele usou minha arma para fazer isso.
– Fique longe do corpo, Isaac.
– Vá se ferrar, eu tenho que limpar isso antes que...
Jim não estava interessado em discutir e agarrou o rapaz, puxando-o para cima e fazendo com que recuasse alguns passos.
– Você não sabe o que é isso.
– Para o inferno que não sei. Ele veio para me pegar.
Jim encarou Isaac.
– A última vez que o vi você estava fugindo.
– Mudança de prioridades.
Que droga, ele é sequestrado por doze horas e o mundo vira de cabeça para baixo: Isaac se entrega, um demônio estava morto na porta de entrada de um civil, nada mais fazia sentido.
– Eu não vou deixar que volte ao trabalho, Isaac. Ou se sacrifique para manter outra pessoa viva. – Pois quanto você quer apostar que era o que estava acontecendo ali?
– A escolha não é sua. E, sem ofensa, mas eu ainda não sei por que você dá a mínima. – O soldado pegou um dos dispositivos das operações extraoficiais que estava disfarçado de transmissor de alerta. – Além disso, não adianta. Eu já me entreguei.
Aquela luz piscando fez Jim querer gritar. E foi o que ele fez.
– Mas que droga é essa que você está fazendo? Matthias vai matá-lo...
– E?
Uma voz aristocrática interrompeu.
– Eu pensei que você se apresentaria com informações sobre Matthias.
Jim olhou sobre o ombro. Alistair Childe tinha ficado em pé e estava se aproximando deles, sua mão na parede como se precisasse de ajuda para se equilibrar.
– Eu pensei que esse era o plano, Isaac. E, Jim, eu pensei que tinha morrido em Caldwell. Três ou quatro dias atrás.
Jim e Isaac passaram por cima de tudo e ignoraram qualquer regra de retórica. O que era fácil de fazer, considerando o quanto precisavam explicar.
O fato de que o segundo na linha de comando tinha entrado e se matado com a arma de Isaac era apenas a superfície da coisa. A verdade principal era que Devina estava por trás de toda a situação. Mas com que finalidade? Se Isaac era o alvo, por que diabos ela simplesmente não o tomou enquanto Jim não estava por perto?
– Ela... ele tinha um bom ângulo para atirar em você? – Jim perguntou. – Em qualquer momento?
– Você quer dizer, para matar? Claro que sim... eu estava contra a parede, com as mãos espalmadas e minhas armas no chão. Esse é um ângulo bom o suficiente para você?
– Isso não faz sentido. – Ele olhou para baixo, em direção ao corpo. – Não faz sentido.
– Temos que nos livrar do corpo – Isaac disse. – Antes que eu vá, temos que...
– Não vou permitir que se entregue.
– Não é da sua conta.
– Que droga...
– Meu pensamento era exatamente esse.
Isaac franziu a testa, os olhos dele se estreitaram ao observar a face de Jim.
– E o que diabos aconteceu com você ontem à noite?
Em uma fração de segundo, Jim realmente considerou bater sua cabeça contra a parede, só que seria redundante, dado o formato em que ele já se encontrava. Como, diabos, ele ia tirar Isaac dessa confusão?
Ele não poderia deixar tudo às claras e explicar o que realmente estava acontecendo: Bem, entenda, eu morri mesmo e Matthias não é o problema. Estou tentando mantê-lo longe de um demônio que quer sua alma. E eu não faço ideia do que ela está fazendo aqui.
Sim, isso seria um desastre total.
Isaac não esperou por uma resposta sobre o rosto de Jim. Era evidente que o cara tinha se metido em alguma briga com oitocentos seguranças ou algo assim e isso não era da sua conta. O que lhe dizia mesmo respeito era o soldado que, de alguma maneira, consertou seu braço como se fosse mágica antes de se matar.
A menos que... gêmeos?
Droga... sim. Tinha que ser. E Matthias usaria isso como um belo instrumento para ajudar a ferrar com a mente das pessoas. Não surpreende que ele tenha escolhido o filho da mãe para ser o segundo na linha de comando.
Quando Jim soltou mais um palavrão e começou a percorrer o caminho do corredor de entrada, Isaac se inclinou e desabotoou rapidamente a manga da roupa do segundo na linha de comando. Nenhum sinal de qualquer coisa no antebraço com relação a uma reparação cirúrgica, não havia evidência de pele ou osso quebrado.
Gêmeos. Tinha que ser.
Com um golpe rápido, ele rasgou a camisa preta, os botões estalaram e saltaram sobre o chão. O colete a prova de balas exposto foi uma surpresa. Sim, era uma edição padrão, mas por que se preocupar com um se a intenção é explodir o crânio feito um balão de festa?
Sem ter certeza exata do que estava procurando, ele puxou as tiras do velcro do colete.
– Mas que... porcaria... – Ele se inclinou para se certificar de que estava enxergando direito.
Por toda a pele do estômago do cara havia profundas cicatrizes que formavam um padrão e quando Jim deu uma olhada nisso e começou outra rodada de palavrões, Isaac continuou a revistar rapidamente. Celular, o qual ele colocou de lado. Carteira com cem dólares em dinheiro, não havia carteira de identidade. Munição. Nada nas botas, a não ser as meias e o solado.
Passando por cima do corpo, ele foi em direção à cozinha para pegar uma lata de lixo. Quando estava puxando a coisa para fora do armário e se perguntava quantos braços e pernas caberiam ali, ele ouviu passos atrás dele. Obviamente, sua plateia de fãs o seguiu, mas vamos lá, pessoal. Chega de conversa; eles precisam de ação. Grier estava trancada no maldito armário lá em cima e ele tinha que limpar toda aquela porcaria antes de deixá-la sair...
– Você mentiu.
Isaac congelou e girou a cabeça. Grier estava parada do outro lado da ilha de mármore, acabando de fechar a porta da adega atrás dela. Mas como diabos ela... Droga, devia ter uma escada secreta que era ligada ao porão. Ele deveria ter adivinhado que havia várias rotas de fuga.
Quando ela olhou para ele estava branca como um lenço de papel e tremia.
– Sua intenção nunca foi se apresentar. Foi?
Ele balançou a cabeça, sem saber o que dizer e bem ciente do que havia no corredor de entrada da casa dela. Aquela situação estava totalmente fora de controle.
– Grier...
– Seu bastardo. Você mentiu seu b... – De repente, ela olhou por cima dos ombros dele. – Você... – Ela apontou para Jim, que estava em pé sob o arco. – Você é quem estava no meu quarto na outra noite. Não é?
Um expressão estranha passou pelos traços de Jim, uma espécie de “agora eu me ferrei”, mas, então, ele apenas deu de ombros e olhou para Isaac.
– Não vou permitir que você se entregue.
– Essa sua música nova está me dando nos nervos – Isaac exclamou ao decidir pegar o lixo e acabar com aquela história.
Conversa fiada, quanta conversa fiada da parte de todos... e todas direcionadas a ele. Mas que seja. Surdez seletiva era algo no qual se destacava quando era criança e, como pode imaginar, a habilidade voltou a ser exercida sem um pingo de ferrugem.
Isaac se curvou embaixo da pia e rezou para que o lugar mais lógico para se colocar sacos de lixo fosse mesmo ali... bingo. Ele pegou dois deles, uma vassoura e uma pá que não iriam sobreviver a esse trabalho em particular.
Deus, ele desejava ter uma serra. Mas talvez com alguma corda, eles poderiam dobrar o bastardo e carregá-lo como uma mala malfeita.
– Fique com ela – ele disse ao pai. – E a mantenha aqui...
– Eu vi o que aconteceu. – Quando Isaac congelou, ela o encarou. – Eu o vi fazer aquilo.
Houve uma pausa longa e silenciosa, como se ela tivesse acorrentado todos os homens do local.
Ela balançou a cabeça.
– Por que você fingiu que iria adiante com isso, Isaac?
Quando ela o encarou, a confiança tinha desaparecido de seus olhos. E, no lugar, havia um olhar frio – o qual ele imaginava que as pessoas que trabalhavam em laboratórios exibiam ao observar resultados de culturas em uma placa de Petri.
Não havia o que dizer a ela, não podia negar a mudança. E talvez fosse melhor assim. De qualquer maneira, eles não tinham que estar juntos – e isso era para ser assim até mesmo antes dele mergulhar na busca de excelência profissional na área de matar pessoas.
Isaac pegou seu kit de empregada feliz e se dirigiu para a entrada.
– Eu preciso tirar o corpo de lá.
– Não fuja de mim – ela gritou.
Ele ouviu Grier vindo atrás dele como se tivesse a intenção de gritar um pouco mais, então, ele parou e girou sobre os calcanhares ao chegar ao arco. Quando ela estacou para não passar por cima dele, Isaac olhou bem dentro de seus olhos.
– Fique aqui. Você não quer ver...
– Vá se ferrar! – Ela o empurrou, marchando até... – Oh... Deus... – Ela sufocou a palavra, sua mão subiu até a boca.
Bingo, ele pensou sombriamente.
Felizmente, o pai dela estava ali, aproximou-se e a direcionou gentilmente para longe daquela visão.
Amaldiçoando a si mesmo e tudo relacionado à sua vida, Isaac continuou até a entrada, mais determinado do que nunca a cuidar do problema... só que seu senso de urgência deu um tempo quando chegou ao corpo.
Um celular estava na mão do cadáver e a coisa estava enviando uma mensagem; a pequena tela no telefone estava brilhando com a imagem de um envelope entrando em uma caixa de correio várias vezes.
Certo. Hora de retomar alguns conceitos aqui: gente que não tinha o lobo frontal geralmente não pegava o celular e discava alguma coisa nele.
Um pequeno aviso brilhante apareceu indicando sucesso.
– Isaac, você vai precisar de mais do que uma pá para lidar com isso.
Ao som da voz de Jim, ele olhou sobre o ombro. E teve que piscar algumas vezes. O homem estava parado na parte escura do corredor, bem longe da luz, que passava pelos arcos, vinda da sala de estudos e da biblioteca... mas ele estava iluminado, havia um brilho em torno dele da cabeça aos pés.
O coração de Isaac deu altos pulos na caixa torácica. Então, pareceu tomar um pouco de fôlego.
Muitas vezes, ele esteve no campo, em meio a uma missão e as coisas não deram certo: você acha que sabe os hábitos e recursos de seu alvo, os pontos fracos e fortes, mas quando está prestes a atacá-lo, a paisagem muda como se alguém tivesse jogado uma bomba no meio da praça do seu plano perfeito. Era o mau funcionamento de uma arma. Uma testemunha em potencial que fazia com que perdesse a hora certa. O alvo pisando fora da faixa indicada.
O que você tinha que fazer era recalcular rapidamente a situação e Isaac sempre foi excelente nisso.
Que inferno, aquele jogo de videogame o treinou de maneira involuntária a abrir totalmente sua mentalidade para agir rápido.
Mas aquela porcaria estava fora de sua especialidade. Bem fora.
E isso foi antes de Jim empunhar uma longa adaga... que era feita de cristal.
– Você vai deixar com que eu cuide disso agora. Afaste-se do corpo, Isaac.
CAPÍTULO 40
Matthias passou muito tempo dentro daquela igreja de pedra. E, quando finalmente ele se esforçou para sair, concluiu que tinha permanecido lá uma hora ou mais, mas no instante em que olhou para a posição do sol no céu, percebeu que tinha perdido toda a manhã e a maior parte da tarde.
Ainda assim, ele teria ficado mais se pudesse.
Ele não era um homem religioso, mas havia encontrado uma paz chocante e rara debaixo daquelas galerias de vitrais e diante do altar glorioso. Mesmo agora, quando sua mente lhe dizia que aquilo era tudo besteira, que o lugar era apenas um edifício e que ele estava tão cansado que poderia dormir até numa montanha russa da Disney – apesar de tudo isso, seu coração se sentia melhor.
A dor havia cessado. Logo depois que ele se sentou, a dor em seu braço e peito esquerdo tinha desaparecido.
– Tanto faz – ele disse em voz alta ao chegar ao carro. – Tanto faz, tanto faz...
Voltar ao jogo era algo pelo qual ele se sentia compelido a agir e havia uma picada agradável com relação a isso, como se estivesse arrancando a casca de uma ferida. De alguma maneira, ele estava cativado pelo que tinha encontrado na igreja, mas seu trabalho, seus atos, seu modo de vida formavam um turbilhão que o sugava e o mantinha assim e ele, simplesmente, não tinha energia suficiente para lutar contra isso.
E depois... talvez houvesse um meio termo, ele pensou, quando fosse tratar de Isaac Rothe. Talvez ele pudesse fazer com que o rapaz continuasse a trabalhar em uma área diferente. Era evidente que o soldado tinha respondido bem às ameaças contra Grier Childe – o que poderia ser o suficiente para mantê-lo na linha.
Ou... ele poderia deixar o cara ir.
No instante em que o pensamento cruzou sua mente, algo dentro dele o atingiu como se aquilo fosse uma grande blasfêmia.
Irritado consigo mesmo e com a situação, ele ligou o motor e verificou o telefone. Nada vindo de seu segundo na linha de comando. Onde diabos estava o bastardo?
Ele enviou uma mensagem de texto exigindo uma atualização e dando seu tempo estimado de chegada, o que, naquele momento, seria depois do anoitecer. Para o inferno com a história de fora do estado. Era melhor que o filho da mãe estivesse com Isaac Rothe amarrado a uma cadeira antes de Matthias arregaçar as mangas – e Deus o ajudasse se tivesse matado Rothe.
Quando a impaciência contorceu suas mãos sobre o volante, Matthias saiu da calçada e pegou a estrada graças à tela do GPS no painel. Ele tinha seguido menos de um quilômetro antes da dor sob seu peito voltar, mas era como vestir uma roupa com a qual ele já estava acostumado depois de experimentar os trajes de outra pessoa: fácil e confortável de uma maneira maldita.
Seu telefone disparou. Mensagem de foto. Do seu segundo na linha de comando.
Quando ele aceitou, ficou aliviado. Uma confirmação visual de que Isaac estava vivo e sob custódia era uma coisa boa...
Não era uma imagem de Isaac. Eram os restos do rosto de seu subordinado. E aquela tatuagem de cobra que percorria a garganta do homem era a única maneira de ter certeza que era ele.
Abaixo da imagem dizia: Venha me pegar – I.
O primeiro e único pensamento de Matthias foi... mas que droga. Que filho da mãe maldito. Que diabos Rothe estava pensando? Que droga, se as ameaças contra sua querida, doce e encantadora Grier Childe não funcionaram, Isaac era totalmente incontrolável e, portanto, ele tinha que ser sacrificado.
Uma fúria cruel fez com que abandonasse os últimos resquícios remanescentes de seu tempo na igreja, uma fonte de vingança emanava e rugia. Quando essa sensação o atingiu, no fundo de sua mente, ele teve uma ideia concluindo que aquele não era ele, que a precisão fria e cortante de pensamento e ação que sempre foram sua marca registrada o teriam impedido de provocar aquele pico de destruição. Contudo, ele era incapaz de se afastar da necessidade de agir – e agir de maneira pessoal.
Chega de mandar outros fazerem o trabalho sujo... havia inúmeros agentes que poderia ter convocado, mas ele ia cuidar disso sozinho.
Da mesma maneira que teve que ver o corpo de Jim Heron com seus próprios olhos, ele iria até lá e acabaria com Rothe sozinho.
O homem tinha que morrer.
CAPÍTULO 41
Quando Grier se sentou no sofá no canto da cozinha, ela se lembrou de sua escolha pelo direito ao invés da medicina e soube que tinha tomado a decisão certa: ela nunca teria estômago para ser médica.
Suas notas e aproveitamento a permitiriam entrar em qualquer uma das graduações, mas o fator decisivo foi Anatomia Humana, que já ministravam no primeiro ano de faculdade: um olhar naqueles corpos durante sua excursão de pré-admissão e ela teve que colocar a cabeça entre os joelhos e tentar respirar como se estivesse em uma aula de ioga.
E, como pode imaginar, o fato de que havia alguém em uma condição ainda mais desagradável à frente era muito pior.
Surpresa, surpresa.
Outro choque para o momento – não que ela precisasse de um – foi a mão de seu pai fazendo círculos calmos e lentos em suas costas. As vezes em que ele tinha feito alguma coisa assim foram poucas e há muito tempo, isso porque ele não era o tipo de homem que lidava bem em mostrar suas emoções. E, ainda assim, quando ela realmente precisava disso, ele sempre estava lá: na morte de sua mãe. Na de Daniel. No terrível término de relacionamento com o cara com quem ela quase se casou logo depois que saiu da faculdade de direito.
Aquele era o pai que ela conhecia e a quem amou durante toda sua vida. Apesar das sombras que o cercavam.
– Obrigada – ela disse sem olhar para ele.
Ele clareou a garganta.
– Eu não acredito que mereço esse agradecimento. Tudo o que está acontecendo é por minha causa.
Ela não podia discutir isso, mas não tinha forças para condená-lo, especialmente considerando a terrível dor expressa em sua voz.
Agora que sua raiva tinha passado, ela percebeu que sua consciência iria assombrá-lo até o dia de sua morte e essa era a punição que ele merecia e que iria carregar. Além disso, ele já teve que enterrar uma criança, um filho imperfeito a quem ele tinha amado do seu jeito e que tinha perdido de uma maneira horrível. E, embora Grier pudesse passar o resto de seus dias se afastando dele e o odiando pela morte de Daniel... ela estava mesmo disposta a carregar esse fardo?
Ela pensou no corpo no corredor da frente e como a vida poderia ser arrebatada no intervalo de uma respiração e outra.
Não, ela decidiu. Ela não ia permitir que a mágoa e a raiva que sentia a afastasse do que restava de sua família. Levaria tempo, mas ela e seu pai iriam reconstruir seu relacionamento.
Pelo menos essa era uma coisa verdadeira e certa que Isaac havia dito.
– Não podemos chamar a polícia, podemos? – ela disse. Pois com certeza alguém que aparecesse ali em um uniforme seria caçado também.
– Isaac e Jim vão cuidar do corpo. É isso o que eles fazem.
Grier estremeceu com a ideia.
– Será que ninguém vai sentir falta dele? Qualquer pessoa?
– Ele não existe. Não de verdade. Qualquer família que ele tenha pensa que está morto... Esse é o requisito para os homens que entram nessa área das operações extraoficiais.
Deus, moralmente, ela tinha uns doze problemas com relação à morte. Mas ela não ia colocar sua vida em risco pelo cara que tinha sido enviado para matar Isaac e talvez matar a ela também.
Só que... bem, aparentemente, ele tinha cometido suicídio com testemunhas.
– O que vamos fazer? – ela disse, falando alto e sem esperar uma resposta.
E aquele nós na frase se referia a ela e seu pai. O nós não incluía Isaac.
Ele mentiu. Na cara dela. De fato, ele teve contato com aquelas pessoas terríveis – e, por algum tempo, ela pensou que tinham um plano. É claro que ele não ia trair seu pai, mas era apenas uma medida de prevenção, pois era evidente que tinha decidido se entregar – ou pelo menos era o que parecia. Um homem como ele, que lutava como ele e ficava à vontade com armas? Era muito mais provável que decidisse matar quem estivesse o levando em custódia e fugir do país livre, leve e solto.
Tudo bem. Ela permitiria que ele partisse.
Ele não era nada além de atração sexual embalada em uma caixa com uma bomba-relógio – e aquele som era o cronômetro da bomba que havia em todas as pessoas atraentes. E aquela coisa de “eu te amo”? A questão com os mentirosos é que você acredita em qualquer coisa que eles dizem por sua conta e risco – e não só nas coisas que você sabe serem falsas. Ela não tinha certeza de qual era a pegadinha a respeito daquela “confissão”, mas ela sabia agora que aquilo tudo não passava de fumaça.
Grier havia se decidido, estava cansada demais para qualquer coisa além da dormência. Bem, dormência e a sensação de ser uma idiota. Mas, vamos lá, como se aquela “rara combinação” de brutalidade e gentileza realmente existisse.
– Espere aqui – seu pai disse.
Quando ele se levantou, ela percebeu dois homens grandes entrando na cozinha. Os dois seguiam os mesmos moldes de Isaac e definitivamente não estavam mortos assim como Jim Heron – e a visão deles era ainda outro lembrete do que estava acontecendo no corredor da frente.
Contudo, ela precisava de ajuda para se lembrar disso?
– Somos amigos de Jim – o homem com uma trança disse.
– Aqui – Heron gritou pela passagem do corredor.
Quando os dois saíram com seu pai em direção ao corpo, ela ficou irritada consigo mesma e tentou tomar uma atitude mental madura. Quando se levantou, sua cabeça girou, mas aquela sensação rodopiante retrocedeu enquanto ela ia até a cafeteira e começava os movimentos para fazer um pouco de café fresco.
Filtro. Ok.
Água. Ok.
Pó de café. Ok.
Botão ligar. Ok.
A normalidade daquele ato a fazia se recompor um pouco mais, e quando o café ficou pronto, Grier estava preparada para lidar com a situação.
Algo bom também. Era hora de pensar no futuro... no que estava além daquela noite feia e daqueles angustiantes últimos três dias.
Infelizmente, sua mente era como um espectador de um acidente de carro, demorando-se em torno dos destroços retorcidos e dos corpos no chão, presa nas memórias dela e de Isaac juntos. Contudo, em dado momento, ela interrompeu aquele foco doentio, seu lado racional atuava como um tira e forçava seus pensamentos a se moverem, a seguir em frente agora.
A questão era que Isaac tinha entrado em sua vida por uma boa razão: graças a ele, ela finalmente tinha aprendido a lição que a morte de Daniel tinha para lhe ensinar. Moral da história? Por mais que você quisesse que alguém mudasse e acreditasse que essa pessoa poderia mudar, cada um tem o controle sobre sua própria vida. Não você. E você poderia atirar-se contra a parede de suas escolhas até que estivesse cheio de hematomas e tonto demais, mas a menos que decidisse tomar um rumo diferente, o resultado não será aquele que você deseja.
Aquela percepção não ia impedi-la de ajudar pessoas na cadeia ou assumir casos voluntariamente. Mas era hora de colocar alguns limites no quanto ela tinha que se doar... e o quão longe ela estava disposta a ir. Em todas as suas atitudes exageradas de boa samaritana, ela tentava ressuscitar Daniel – mesmo sabendo que conversar com seu fantasma deveria ser a primeira dica de que ele não iria voltar. No entanto, ao descobrir a verdade sobre o que tinha acontecido com ele e na tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio para si, talvez ela pudesse finalmente deixá-lo descansar e seguir em frente.
Tomando outro gole em sua caneca, ela sentiu um pouco de paz apesar das circunstâncias bizarras...
Neste momento, outro disparo se ouviu vindo da parte da frente da casa.
No corredor, Jim tinha acabado de se aproximar do corpo com a adaga de cristal quando sentiu a presença de Eddie e Adrian na cozinha. Deus, o momento para a entrada deles era perfeito. Ele estava preparado para agir por conta própria, mas ter cobertura nunca foi uma má ideia.
– Estou aqui – ele gritou.
Os dois vieram direto e nenhum parecia surpreso com o que estava no chão.
– Oh, cara, Devina tomou conta desse aí – Ad murmurou ao caminhar até os restos.
– O que diabos você está fazendo com essa adaga? – Isaac perguntou.
Bem, na verdade, ele ia fazer um rápido exorcismo. Essa era a única maneira de ter certeza que Devina estava fora...
A primeira pista de que o cadáver estava reanimando foi uma contração nas mãos. Em seguida, rapidamente, aquele pedaço de carne se ergueu do chão e conseguiu focar um globo ocular que parecia estar funcionando.
E não é que isso o fez se lembrar de Matthias?
Isaac soltou um grito e disparou sua arma, mas foi como atirar um elástico com força em um touro enraivecido.
Jim empurrou o soldado para fora do caminho e atacou dando um bote, seu corpo arremessou o zumbi contra a parede. No momento em que o impacto foi feito, a imagem do rosto de Devina sobrepôs os traços dizimados do homem cujo corpo ela tinha assumido o controle, a reconfiguração metamórfica das características sorria de satisfação para ele.
Como se ela já tivesse vencido.
Jim atacou com a faca em um golpe rápido e poderoso, a adaga de cristal penetrou entre os olhos corpóreos e também os metafísicos.
Um som estridente explodiu do zumbi e uma haste de fumaça negra subiu em um fedor vil, a névoa escura se fundiu e, em seguida, fez um caminho rápido para a porta da frente. No último segundo, a coisa brilhou sob os painéis da frente, como se tivesse sido sugada do outro lado – e na sua ausência, o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias caiu no chão como o saco de ossos que era, a fonte de sua animação não sustentava mais os limites de sua carne.
– Agora está morto mesmo – disse Jim ao respirar com dificuldade.
No silêncio chocante que se seguiu, ele olhou para Isaac por cima do ombro. Os olhos do cara dariam uma grana no quesito diâmetro se fossem pneus de caminhão e havia água escorrendo deles. Adrian e Eddie esvaziaram os canos da arma de cristal sobre sua cabeça para protegê-lo.
Bom lance. Só que... o demônio nem sequer tentou se aproximar do soldado. Ele decolou na direção oposta.
Os circuitos mentais de Jim lembravam a loucura de Las Vegas, seus instintos gritavam que aquilo estava errado. Muito errado. Segunda chance de pegar Isaac... e Devina deixou passar. De novo.
Por que ela...
Como uma cortina sendo arrancada de uma janela, a paisagem do jogo de repente ficou clara e abalou seu âmago. Mas que droga...
Perdendo de maneira abrupta o equilíbrio, ele estendeu sua mão e segurou-se na parede.
– Não é você – ele disse a Rothe sombriamente. – Oh, Deus nos ajude, não é você.
Quando Grier Childe surgiu no arco, vinda da cozinha, Isaac falou.
– Estamos bem. Todo mundo está bem.
O que era verdade até certo ponto. Claro, Devina aparentemente desapareceu seguindo e estilo “Elvis não morreu” e deixou o prédio. E, sim, ninguém no grupo brilhava com uma sombra profana e o pescoço de Jim não gritava mais “Oh, meu Deus!”. Mas eles estavam longe de se sentirem ótimos.
A questão urgente agora era... quem aquele demônio estava procurando? Por qual alma eles estavam lutando?
O celular, Jim pensou.
Quando todas as pessoas começaram a falar e o ar se encheu com suas vozes, ele colocou o ruído de lado e se agachou sobre os quadris. Do lado do corpo, agora duas vezes morto, ele pegou o telefone do chão e acessou a caixa de mensagens enviadas.
Ele reconheceu imediatamente o último número que tinha sido discado.
Matthias teve acesso à imagem.
A clareza fria que sobreveio a Jim trouxe a ele uma espécie de terror: ele estava tentando salvar o alvo... quando, o tempo todo, ele deveria ter focado o atirador.
CAPÍTULO 42
Reflexo, não reflexão.
Era nesse ponto em que Isaac se encontrava ao ficar em pé no corredor de Grier com algum tipo de solução escorrendo pelo seu nariz e queixo.
Seu cérebro poderia passar uma ou duas décadas tentando descobrir o que ele tinha acabado de ver, mas isso requeria um tempo que ele não tinha. Por mais que ele não entendesse – e aquele buraco negro era do tamanho de um estádio de futebol – ele ia ter que confiar no que seus olhos mostraram e deixar por isso mesmo: ele tinha visto um homem morto se levantar; ele atirou no bastardo e a única coisa que conseguiu derrubar de novo o cadáver foi algum tipo de faca de cristal ou vidro. Em seguida, alguma coisa deixou o corpo e escapou por baixo da porta da frente.
Era o tipo de coisa que acontecia no sKillerz, quando se passava para o mundo paranormal do jogo. Com um toque no controle, as regras normais iam para o ralo e você entrava em um universo alternativo onde as pessoas poderiam desaparecer na sua frente, vampiros viviam nas sombras e homens pálidos vinham atrás de você ao invés de seres humanos.
Claro, aquilo era uma brincadeira a qual você poderia desligar – e não havia um botão de pausa nessa situação. Razão pela qual ele ia gastar muita energia para entender tudo isso. Sim, claro, talvez depois que isso estivesse terminado ele pudesse perguntar a Jim o que diabos tinha acontecido... mas isso apenas se houvesse um “depois”.
Da maneira como as coisas estavam indo, algumas pessoas paradas naquela entrada poderiam muito bem ser direcionadas para uma “outra vida”.
– Para onde foi aquilo? – ele perguntou a Jim. – Não aquela coisa preta, a imagem.
Quando Jim olhou o celular, a voz do segundo na linha de comando lhe veio à mente: Matthias não está no comando. Então, isso significava que algum outro cabeça estava planejando um determinado resultado ao acionar as alavancas e roldanas dos vários fantoches em cena.
– Quem? – ele repetiu.
– Matthias recebeu – disse Heron, levantando-se.
– Matthias é... um daqueles? – Quando Isaac apontou o cadáver detonado, ele pensou que era ótimo estar em uma situação onde não havia termos para descrever nada.
– Não era quando o vi ontem à noite.
Bem, talvez isso explicasse por que o rosto do cara tinha sido usado como um saco de pancadas. E, sim, se os dois sobreviveram a isso, Jim tinha algumas explicações a dar.
– Você é um deles? – Isaac perguntou.
O tema do jogo de perguntas e respostas estava sugerido quando Jim olhou para seus dois colegas, depois para Grier e seu pai.
– De certa maneira, sim. Mas estamos do outro lado.
Isaac balançou a cabeça e deixou tudo isso para mais tarde. O mais importante agora era o caminho que estavam tomando por uma série de acontecimentos.
– Matthias tem essa imagem e ele vai pensar que eu matei... o cara... isso... tanto faz.
Etapa dois da extrapolação? Matthias viria mesmo atrás dele para matá-lo agora.
– Para quem você está ligando? – ele perguntou quando Jim colocou aquele telefone no ouvido como se estivesse fazendo uma ligação.
O cara pronunciou, Matthias... e, então, a próxima coisa que saiu de sua boca foi uma maldição.
– Maldito correio de voz.
E os outros continuaram falando. Isaac puxou Heron de lado.
– “Não sou eu.” Diga-me o que isso quer dizer.
– Não temos tempo...
– Temos um minuto e meio. Eu garanto.
– E isso não vai esclarecer nada, afinal. – Os olhos entediados de Jim encontraram os de Isaac. – Você se lembra do que eu disse quando o vi pela primeira vez? Que não ia deixar que nada acontecesse com você? Era verdade. Mas eu tenho que ir.
Isaac apertou o braço do cara, o mantendo no lugar.
– Onde?
Jim olhou seus dois colegas.
– Eu tenho que ir até Matthias. Acho que ela está atrás dele.
Quem era ela, Isaac se perguntou. E então ele se deu conta.
– Então, você não tem que ir a lugar algum. Quer vê-lo? – Ele puxou o transmissor de alerta e o deixou oscilar em sua corrente enquanto apontava para o próprio peito. – Tem sua isca bem aqui.
No final, a mala que Grier tinha feito acabou sendo necessária.
Ela iria com seu pai ficar em Lincoln por alguns dias – Isaac e Jim iam ficar para trás na casa dela para enfrentar aquele homem, Matthias. Apesar de ser estranho dispor a casa de sua família para estranhos, a realidade era que o local oferecia saídas que facilitariam as coisas para os dois homens.
E independentemente do que pensava sobre eles, ela não tomaria partido de suas mortes se pudesse fazer alguma coisa sobre isso.
Tragicamente, não havia mais o que falar sobre o que estava por vir e seu pai havia suspendido seus contatos. Isaac não ia dizer uma palavra sobre nada e seu pai não sabia o suficiente para promover um dano concreto – assim, os riscos, contrapostos aos possíveis benefícios, simplesmente não justificavam.
O que tinha acabado com os planos. Mas esse era o mundo real.
Olhando para sua mala, ela decidiu que deixar o local tinha muitos benefícios. Ela não queria estar por perto durante a remoção daquele corpo – não havia necessidade de ver isso em um dia bom, muito menos com as coisas se encaminhando daquela maneira. Além disso, ela simplesmente precisava de um tempo. Quando as coisas com Isaac começaram, aquilo já era tão familiar, toda aquela exaustão, os eventos e crises contraditórias. Mas ela estava cansada... e determinada a manter sua nova convicção: tempo para sair, se afastar, deixar para trás.
Então, ela estava indo para Lincoln com um coração pesado, mas os olhos estavam bem abertos.
Pegando a segunda temporada do Three’s Company da estante, ela destrancou a mala para colocá-la dentro...
Grier enrijeceu e se preparou.
Dessa vez, pela primeira vez, ela sabia que Isaac estava em pé na soleira da porta de seu quarto, embora não tivesse batido.
Olhando por cima do ombro, ela viu que seu cabelo estava revolvido por causa daquela solução que tinham derramado sobre sua cabeça e seu olhar estava tão intenso como nunca.
– Vim para dizer adeus – ele murmurou baixinho, aquele delicioso sotaque sulista percorria as palavras de uma maneira profunda. – E para dizer que sinto muito por ter mentido para você.
Quando ele deu um passo dentro do quarto, ela se voltou para a mala, deslizando o DVD para dentro e fechando a tampa.
– Sente muito?
– Sim.
Ela produziu um clique nas duas trancas ao encaixá-las.
– Sabe, a parte que eu não entendo é por que você se importa. Se você nunca teve a intenção de ir adiante com isso, por que conversou com meu pai? Ou por que fez isso chegar até ele? Para descobrir o quanto ele sabe e, então, avisar seus amigos? – Quando ele não respondeu, ela se virou. – Seria isso?
Seus olhos percorreram seu rosto como se estivesse memorizando.
– Eu tinha outra razão.
– Espero que seja boa o suficiente para arruinar a confiança que eu tinha em você.
Isaac assentiu devagar.
– Sim. Ela é.
Bem, aquilo não a fez se sentir menos usada.
Grier pegou sua mala de mão e ergueu a coisa da cama.
– E você acabou fazendo isso de novo.
– Fazendo o que?
– Ativou o maldito transmissor de alerta. Chamou aquele pesadelo do Matthias. – Ela franziu a testa. – Eu acho que você tem vontade de morrer. Ou algum outro plano que eu não consigo adivinhar. Mas, de qualquer maneira, não é da minha conta.
Olhando para o rosto belo e rígido ela pensou, Deus, isso dói.
– Enfim, boa sorte – disse ela, perguntando-se se no final da noite ele estaria nas condições daquele outro agente.
– É verdade aquilo que eu disse, Grier. Na cozinha.
– Difícil dizer o que é real e o que é mentira, não é mesmo?
Seu coração estava partido, apesar de não fazer qualquer sentido e, em face da dor, tudo o que ela queria era fugir do homem que estava parado tão quieto e poderoso do outro lado do quarto.
Na verdade, do outro lado de sua vida.
– Adeus, Isaac Rothe – murmurou ela, caminhando para a porta.
– Espere.
Por um breve momento, um tipo de esperança estranha e desastrosa alçou voo em seu peito. No entanto, a chama não durou. Era feita de fantasias e emoções fantásticas.
Contudo, ela deixou que ele se aproximasse enquanto estendia alguma coisa para ela.
– Jim pediu que lhe desse isso.
Grier pegou o que havia em sua mão. Era um anel – não, um piercing, um pequeno círculo de prata escuro com uma bola na qual a extremidade estava rosqueada. Ela franziu a testa enquanto olhava para a inscrição minúscula que percorria o interior. Era um idioma do qual ela não estava familiarizada, mas reconheceu o carimbo onde se lia PT950. O aro era feito de platina.
– Na verdade, é de Adrian – Isaac murmurou. – Eles estão dando isso a você e querem que o use.
– Por quê?
– Para mantê-la em segurança. Foi o que disseram.
Era difícil de imaginar o que a coisa poderia fazer por ela, mas servia em seu dedo indicador e quando Isaac respirou fundo, aliviado, isso a deixou um pouco surpresa.
– É apenas um anel – ela disse suavemente.
– Não tenho certeza se alguma coisa pode ser considerada como “apenas” neste momento.
Ela não podia discordar.
– Como você vai tirar aquele corpo de lá?
– Removendo.
– Bem, isso é com você. – Ela deu uma última olhada para ele. A ideia de que ele poderia ser morto em questão de horas era inevitável. E assim era a realidade de que, provavelmente, ela não saberia o que ia acontecer com ele. Ou para onde iria se sobrevivesse. Ou se ele dormiria em uma cama segura de novo.
Sentindo-se escorregar, ela caminhou até a mala, acenou para ele e saiu, deixando-o para trás.
Não havia outra escolha.
Ela tinha que cuidar de si mesma.
CAPÍTULO 43
A escolha tinha que ser resultado do livre-arbítrio.
Esse era o problema com essa coisa da disputa: a alma em questão tinha de escolher o seu caminho segundo sua própria vontade quando chegasse à encruzilhada.
Quando Devina saiu de sua suíte no hotel, ela pensou sobre o quanto odiava aquela besteira de livre-arbítrio. Era muito mais eficiente para ela tomar posse e dirigir o ônibus, por assim dizer. No entanto, de acordo com as regras, o Criador limitou o impacto que ela era autorizada a produzir.
Jim Heron era o único que poderia lidar com as almas... o único que poderia, de alguma maneira, tentar influenciar as escolhas.
Dane-se Jim Heron.
Dane-se aquele bastardo.
E também se dane o Criador nessa questão.
Ela puxou uma toalha da haste de bronze e secou o corpo da bela morena, pensando o tempo todo que aquela era uma morada muito melhor do que aquele soldado com tatuagem de cobra. Mas ela não tinha tempo para fazer o retorno adequado àquela carne. A rodada final com a alma atual em jogo não estava apenas se aproximando – estava acontecendo.
Hora de acertar as contas do jogo e vencê-lo.
Depois de desocupar a pele familiar do segundo na linha de comando de Matthias, ela se esvaiu no ar e livrou-se daquela casa de tijolos. O seu lado rancoroso queria estacionar dentro daquela advogada ou no pai dela – apenas por diversão, pelas risadas e pelo drama que isso causaria. Mas da forma como as coisas estavam, ela não achou que fosse uma boa ideia: tudo estava tão perfeitamente organizado, as predileções dos jogadores e as inclinações de como agiriam já garantidas.
Era o equivalente a uma roupa de corte perfeito.
E ela precisava ganhar essa por razões que iam além do jogo: Devina queria dar o troco pelo desempenho de Jim Heron em seus aposentos privados. E não aquele com seus subordinados, mas de quando estavam os dois sozinhos.
Ela estava totalmente despreparada para seu ataque. Ou foi o fato de que ele estava muito mais determinado do que apenas um anjo. Adrian e Eddie não poderiam ter feito nada parecido. Ela não conhecia ninguém que pudesse.
Aquilo não fazia sentido – Jim Heron foi escolhido para um papel definido e deveria ser um lacaio nem bom, nem mau. De fato, as duas partes concordaram com ele, pois cada equipe pensava que ele iria influenciar as coisas de acordo com seus valores e receber dicas de acordo com uma quantidade determinada de “treinamento”.
Que grande besteira aquilo tinha se tornado.
Aquela primeira alma que eles disputaram? Jim tinha feito todo o possível para empurrar o homem para o bem – provando que a confiança que Devina depositou nele tinha sido equivocada. Aquele filho da mãe era um salvador na pele de pecador, não era um dos dela. E foi por isso que ela se envolveu ainda mais a partir de então; não havia ninguém em campo representando seus interesses e manipular a situação era crucial se ela quisesse prevalecer em algum desses ciclos.
Se ela não refinasse as coisas, ia perder de quatro a zero.
E foi por isso que ela levou Jim até às profundezas de seu reino quando foi possível. Ela precisava afastá-lo de Matthias – qualquer contato entre os dois era uma má ideia.
Mas pelo menos a sua escolha pela alma parecia ter sido correta. Ela vinha cuidando do líder das operações extraoficiais nos últimos dois anos até agora, ele simplesmente a pertencia – então, quando Nigel e ela trataram sobre o próximo indivíduo que seria colocado no jogo seguinte, ela escolheu Martin O’Shay Thomas, também conhecido como Matthias.
Na próxima rodada, a escolha volta a ser de Nigel e, sem dúvida, ele vai escolher alguém bem mais difícil para ela.
Matthias... oh, querido e corrupto Matthias. Um último ato imoral e ele seria dela por toda a eternidade – assim como sua primeira vitória.
Tudo o que ele tinha que fazer era tirar a vida de Isaac Rothe e ding-ding-ding! Ela poderia fazer a volta da vitória bem diante do nariz de Jim Heron.
Contudo, considerando o que Heron tinha feito a ela, temia que ele não fosse apenas um zagueiro nesse jogo, mas um outro tipo de entidade. E esse era outro motivo pelo qual ela não tinha se detido em Beacon Hill. A negociação entre os dois lá embaixo drenou suas energias e ela não estava forte o suficiente para enfrentar um confronto direto com Jim tão cedo.
Especialmente tendo em conta que subestimar os poderes de seu inimigo foi claramente um erro.
Envolvendo-se na toalha, ela olhou o balcão de mármore em volta da pia. Parte da tarefa que sua terapeuta lhe deu duas semanas antes era se livrar de toda sua coleção de maquiagem e ela concordou, jogando fora inúmeros pós compactos, batons e sombras.
Agora, ao observar os espaços vazios, ela entrou em pânico com a falta de possessões. Uma bolsa com essas coisas era tudo o que sobrou. Era isso.
Com mãos desastradas, ela pegou a pequena sacola e a inclinou para baixo, tubos, quadrados e potes pretos se espalharam por todo o lugar. Respirando pela boca, ela começou a organizar dúzias ou mais de recipientes, organizando-os por tamanho e forma, não adiantou.
Não era o suficiente. Ela precisava de mais...
No fundo de sua mente, Devina sabia que estava em um espiral, mas ela não poderia se ajudar com isso. A constatação de que Jim era muito mais formidável do que ela pensava... e que estava correndo um perigo muito maior do que imaginava... fazia dela uma escrava de suas fraquezas internas.
Sua terapeuta afirmou que a compra de mais porcarias ou a aquisição de mais bugigangas ou ordenar e reordenar a colocação dos objetos não ia resolver nada. Mas com certeza aquilo a fazia se sentir melhor por um curto período de tempo...
No final, ela teve que se arrastar para fora do banheiro. O tempo estava passando e ela tinha que se certificar se todos os pequenos dominós que ela organizou estavam na posição certa e adequada.
Para acalmar sua obsessão, ela repetiu o que a terapeuta havia lhe dito há três dias: Não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo. É o espaço que você declarou como sendo seu emocional e espiritualmente.
Seja como for. Ela tinha trabalho a fazer.
E outro traje de pele para revesti-la.
CAPÍTULO 44
Depois que os Childes saíram em seus carros, com Eddie e Adrian indo sorrateiramente em seus calcanhares, Jim e Isaac ficaram nos fundos da casa das mil passagens secretas – as quais Jim conhecia todas, graças ao capitão Childe.
Após as partidas, a casa ficou escura, por dentro e por fora, e ele e Isaac permaneceram em pé, preparados.
Eram os velhos tempos de volta, Jim pensou.
Especialmente ao colocar seu telefone no ouvido e esperar que Matthias atendesse a ligação. Contudo... Se estivesse de volta no tempo, o bastardo atenderia o maldito telefone.
Neste momento, ele estava desesperado para encontrar o cara antes que ele chegasse com tudo...
A voz de seu ex-chefe ressoou em seu ouvido.
– Isaac.
– Não. – Jim falou com cuidado, porque só Deus sabia que havia pontas soltas por todo o lugar. – Não é Isaac.
Houve um momento de pausa, que foi preenchido por um zumbido sutil ao fundo. Carro? Avião? Difícil ter certeza, mas provavelmente um carro.
– Jim? É você? – A voz era robótica, totalmente sem vida. Claro, até mesmo um “oi, tudo bem” vindo dos mortos não era suficiente para abalar o cara, mas parecia não ser o caso do cérebro do líder estar sereno. Parecia mais que o homem estava anestesiado.
Jim escolheu cuidadosamente as palavras.
– Estou mais interessado em como você está. Isso e também gostaria de conversar sobre a imagem que recebeu.
– Você quer? Bem, eu tinha outras coisas em mente... como, por exemplo, você estar me ligando. Você está morto.
– Não exatamente.
– Engraçado, eu sonhei com você. Atirei em você, mas não morreu.
Droga, abranger os dois mundos era complicado.
– Sim, eu sei.
– Sabe?
– Estou ligando para falar do seu subordinado. Isaac não o matou.
– Oh. Mesmo?
– Eu matei. – Mentiroso, mentiroso, o nariz vai crescer. O bom é que ele nunca teve problemas com esse tipo de coisa.
– E, mais uma vez digo, pensei que estivesse morto.
– Não estou exatamente morto.
– Claro. – Longa pausa. – Então, se você está vivo e bem, por que fez isso com meu segundo homem na linha de comando, Jim?
– Eu o avisei que não permitiria que ninguém se aproximasse do meu garoto Isaac. Naquele sonho. Sei que me ouviu.
– Está dizendo que devo começar a te chamar de Lázaro ao invés de Zacarias?
– Pode me chamar do jeito que quiser.
– Bem, seja lá qual for o seu maldito nome, você simplesmente colocou uma bala na cabeça do “seu garoto”. Parabéns, pois Isaac é o único com quem eu vou acertar as contas, e você me conhece. Farei do meu jeito todo especial.
Droga. Grier Childe. Quanto você quer apostar, Jim pensou.
– Isso não tem lógica.
– É muito lógico. Ou Isaac fez isso e você está acobertando e espera por clemência. Ou você o fez e, nesse caso, eu realmente tenho contas para acertar com você... e a maneira como vou lidar com esse “você me pertence” vai deixar uma assassinato em sua consciência. Uma vez que você odeia efeitos colaterais, isso vai ser mesmo uma tapa na nuca.
– Rothe ajudou a salvá-lo. Naquele vale de areia onde você quase se matou.
Agora o cara simplesmente rosnou.
– Não me dê outra razão para ir atrás dele.
Bingo, Jim pensou, apertando o telefone. Aquele era seu jeito de lidar com as coisas e era mais importante que um confronto para saber “quem atirou no demônio”.
– Quanta amargura, Matthias. Você parece muito amargo. Sabe, você mudou.
– Não, eu não mudei...
– Sim, mudou, e sabe do que mais? Você não tem mais o ímpeto para fazer isso. Não tenho certeza se já se deu conta disso. Mas o velho Matthias não veria isso de maneira pessoal. Seriam apenas negócios.
– Quem disse que estou a caminho?
– Eu disse. Tem que estar. Você não sabe disso ainda, mas está sendo obrigado a vir aqui e matar um homem inocente. – O silêncio disse a ele que estava no maldito caminho certo. – Você não entende por que tem que fazer isso por si mesmo. Você não entende a maneira como pensa nesse exato momento. E sabe que está perdendo o controle. Está fazendo escolhas e besteiras que não fazem qualquer sentido. Mas eu posso lhe dizer os motivos disso: é porque você está sendo impulsionado por algo que não acreditaria se eu dissesse que existe. Contudo, isso ainda não o tomou por completo, então, ainda há tempo.
Jim fez uma pausa e deixou que aquela informação se acomodasse no cérebro de seu ex-chefe. O que Matthias precisava era de um exorcismo, mas aquilo requeria seu consentimento. O objetivo era levá-lo até a casa e começar a trabalhar nele...
E nesse tom ele continuou: – Foi com essa coisa que você lidou ao ligar para seu segundo na linha de comando. Ele não era o que pensava, Matthias. – Cavando ainda mais fundo, ele empurrou mais uma. – Quando ele falou com você, sentiu como se fizesse total sentido, certo? Ele o influenciou de maneira sutil, o direcionou, sempre esteve lá quando você precisou dele. Mal se nota em um primeiro momento e, então, você começou a confiar nele, delegar tarefas a ele, começou a prepará-lo para ser seu sucessor...
– Você não sabe do que está falando!
– Imagina. Eu sei exatamente o que está acontecendo. Você ia mesmo permitir que Isaac voltasse para as operações extraoficiais, não ia? Você ia encontrar um jeito de não matá-lo. Não é mesmo? Matthias...? Matthias, responda a maldita pergunta.
Uma longa pausa. Em seguida, uma resposta suave.
– Sim. Eu ia.
– E você não disse isso ao seu segundo homem, pois sabia que ele mudaria sua opinião.
– Contudo, ele estaria certo.
– Não, ele seria o demônio. É isso o que ele era. Pense nisso. Embora você tenha tentado sair das operações extraoficiais, ele o puxou de volta.
– Para sua informação, está falando com um sociopata. Logo, estou seguindo minha natureza.
– Uh-hun. Certo. Sociopatas que pretendem seguir uma “vida louca” não colocam bombas na areia e pisam em cima. Admita, você queria sair lá no deserto... você quer sair agora. Admita.
Por um tempo, não houve nada além de um zumbido ao fundo. E, então, Matthias jogou outra bomba, por assim dizer.
– Foi o filho de Childe.
Jim franziu a testa e recuou um pouco.
– Como?
– O filho de Childe... foi o que mudou tudo. Eu assisti a gravação... de Childe chorando enquanto seu filho morria na frente dele. Meu pai nunca teria feito isso se fosse eu quem estivesse naquele sofá. O mais provável é que ele teria preparado minha veia para a agulha. Eu não conseguiria ter aquilo... fora de questão. O jeito que o pobre coitado olhava e o que ele dizia... ele amava aquele garoto como um pai deve amar um filho.
Sim, nossa... de alguma maneira, era difícil imaginar que Matthias teve um pai. Desovado era mais adequado a ele.
Jim balançou a cabeça, sentindo-se mal pelo cara pela primeira vez desde que eles se conheceram há tantos anos.
– Estou dizendo, deixe Isaac ir. Esqueça a vingança. Esqueça as operações extraoficiais. Esqueça o passado. Vou ajudá-lo a desaparecer e ficar em segurança. Deixe tudo para trás... e confie em mim.
Longa pausa. Longa pausa onde não havia nada além daquele ruído límpido de um carro em movimento.
– Você está em uma encruzilhada, Matthias. O que fizer com relação a Isaac hoje à noite pode salvar você... e salvar a ele, também. Você tem mais poder do que imagina. Trabalhe conosco. Venha até aqui, sente-se e converse com a gente.
Provavelmente, era melhor não falar sobre a grande incisão nele com uma faca de cristal para retirar toda a pestilência de Devina pela garganta.
Matthias exalou o ar com força.
– Nunca pensei que você fosse do tipo Mahatma Gandhi.
– As pessoas mudam, Matthias – disse Jim bruscamente. – As pessoas podem mudar. Você pode mudar.
Em pé do outro lado da cozinha, Isaac não tinha certeza se estava ouvindo direito: Matthias plantou a bomba que tinha explodido sobre ele?
Deus, ele se lembrava de dirigir o Land Rover pelas dunas, de volta ao acampamento. Assim que Matthias foi tirado do veículo, os garotos com as bolsas de sangue, as agulhas e as luvas de látex o cercaram por completo e isso era praticamente tudo o que Isaac sabia.
Moral da história: Heron não tinha dito uma palavra sobre as maneiras, os lugares ou os motivos da explosão e Isaac não perguntou. “Saber só o necessário” era a regra de ouro das operações extraoficiais: o chefe e um soldado em atividade aparecem com um deles transformado em carne moída após uma explosão e o outro vem arrastando seus tristes corpos pela areia no meio da noite?
Tudo bem. Não é grande coisa. Tanto faz.
Além disso, algumas vezes, a informação a que tinha acesso era mais perigosa que uma arma carregada apontada na testa.
Quando Jim interrompeu de repente a ligação com o chefe, Isaac tinha algumas coisas para esclarecer com o filho da mãe.
– Primeiro, eu não preciso que banque o mártir por mim, então, não precisava daquela besteira de “eu atirei nele”. E, depois, que inferno. Matthias tentou se matar?
– Primeiro – Jim repetiu –, eu não sofro com as consequências, então, você pode aproveitar qualquer coisa que eu faça para salvar sua pele. Segundo... sim. Ele tentou. O dispositivo era um dos nossos e ele sabia exatamente onde pisar. Ele me encarou ao colocar o pé no local... e disse alguma coisa. – O cara balançou a cabeça. – Não faço ideia do que ele disse. Em seguida, boom! A maior parte do detonador foi vaporizada. Mas não detonou tudo.
Fascinante.
– Quanto tempo até ele chegar aqui?
– Não sei. Mas ele está vindo. Tem que vir.
Sim, e quanto àquelas coisas sobre o segundo na linha de comando? Sinceramente, não havia nada que ele quisesse saber sobre isso. Ele tinha informação suficiente para inchar seu crânio. A única coisa que importava era conseguir superar aquela noite.
– Estou cansado de esperar – ele murmurou.
– Junte-se ao clube.
Naquele momento, Isaac olhou ao redor. O sistema de segurança estava desativado, mas todas as portas estavam trancadas, então, havia grandes chances de saber se alguém tentasse entrar.
– Ouça, vou subir – ele disse. – Fique de olho lá em cima.
– Certo. – Jim apertou os olhos e voltou a focar o jardim dos fundos como se esperasse uma infiltração a qualquer momento. – Vou dar cobertura.
Quando Isaac chegou à base da escada dos fundos, ele parou e se inclinou em direção à cozinha. Heron estava parado em frente ao vidro, mãos nos quadris, sobrancelhas unidas.
Não, o cara não estava morto. E, honestamente, ele não parecia incomodado com a realidade de que uma bala podia entrar arrebentando tudo o que visse pela frente a qualquer segundo.
– Jim.
– Sim. – O homem olhou para trás.
– O que você é? De verdade.
No silêncio que se estendeu, a palavra “anjo” sobrevoou o espaço que havia entre eles. Só que aquilo não era possível, certo?
O homem deu de ombros.
– Sou o que sou.
Entendido, Isaac pensou.
– Bem... obrigado.
Jim balançou a cabeça.
– Você não saiu dessa ainda.
– Mesmo assim. Obrigado. – Isaac pigarreou. – Não posso dizer que ninguém tenha, alguma vez, arriscado seu pescoço por mim assim.
Bem, não era verdade, era? Grier o fez, à sua maneira. E, Deus, um mero pensamento sobre ela quase fez seus olhos arderem.
Heron fez um pequeno aceno e pareceu sinceramente comovido.
– Não é nada, cara. Agora, deixe de ser patético e vigie o terceiro andar.
Isaac teve que sorrir.
– Posso precisar de um emprego depois disso, sabe?
Um sorriso apareceu, mas se desvaneceu rapidamente.
– Não tenho certeza se quer passar pelo processo seletivo de onde trabalho. É difícil.
– Eu já estive num lugar parecido, fazendo coisas parecidas.
– Eu também pensei que fosse fácil assim.
Com isso, Isaac subiu as escadas.
Sim, com certeza, aparentemente ele ia vigiar do último andar, mas havia outra verdade nisso, outra motivação.
Quando ele entrou no quarto de Grier, foi direto ao seu armário e parou sobre a bagunça de roupas que ficou no carpete creme. Ela deixou o projeto de reorganizar tudo pela metade – pois, algum imbecil atirou em si mesmo na entrada de sua casa.
Mas ele poderia cuidar do problema.
Enquanto esperava para ver como seria uma espécie de reunião bizarra com Matthias ou um tiroteio que deixaria os dois mortos, ele pegava as blusas, saias e vestidos e, um a um, os ordenava dentre o caos.
Pelo menos poderia limpar alguma coisa para ela; Deus era testemunha de que aquele corpo ainda estava lá embaixo, ainda envolto em plástico como algo prestes a ser enviado pelo correio.
Contudo, haveria tempo para removê-lo mais tarde.
E não haveria outra oportunidade para cuidar das coisas dela.
Além disso, o “patético” nele queria algum contato final com ela – e o mais próximo que ele chegaria disso era pendurando com cuidado o que uma vez já esteve contra sua preciosa pele.
CAPÍTULO 45
Grier seguiu o Mercedes de seu pai em direção a Lincoln e quando os conhecidos pilares que havia de cada lado do caminho da fazenda apareceram, ela respirou fundo pela primeira vez depois que saiu de Beacon Hill. Virando à direita, em direção à pista de cascalho quebrado, ela parou em frente às placas de madeira cinza e brancas e estacionou seu Audi. Embora o centro da cidade de Boston estivesse apenas a pouco mais de trinta quilômetros dali, parecia muito ser trezentos. Tudo era silêncio quando ela desligou o motor e saiu do carro, o ar fresco e limpo formigou seu nariz.
Deus, como ela amava esse lugar, ela pensou.
A luz gentil que se desvanecia no crepúsculo suavizava a linha de árvores que percorria os seis hectares de campos e jardins e banhava a madeira com uma iluminação amanteigada. Antes da morte de sua mãe, o lugar tinha sido um refúgio para os quatro, uma maneira de sair da cidade quando não queriam ir até o Cabo – e Grier tinha passado muitos finais de semana ali, correndo ao longo da grama e brincando ao redor da lagoa.
Depois que seu pai ficou viúvo, precisava de um novo começo e, então, ela se mudou para a casa da cidade e ele fixou morada ali.
Quando o pai se aproximou da garagem onde tinha encaixado seu grande sedã, seus mocassins trituraram os pequenos fragmentos de cascalho. Quando era criança, ela pensava que caminhos como aquele eram cobertos de um tipo especial de cereais. Ao invés de derramar leite em uma tigela, tudo o que precisava fazer era pisar sobre eles para obter aquele som de estalos.
Ele foi cauteloso ao se aproximar dela.
– Quer que eu ajude com suas coisas?
– Sim, obrigada.
– E que tal se jantássemos?
Mesmo sem fome, ela assentiu.
– Isso seria ótimo.
Deus, eles pareciam estar em uma festa. Bem, uma festa que envolvia cadáveres, armas e fugir de assassinos... Neste caso, estar elegantemente atrasado significava sua morte, não seria apenas uma catástrofe com o penteado ou o trânsito ruim da Rua Vinte oito.
O que a lembrava de...
Grier olhou em volta e sentiu um arrepio na nuca. Eles estavam sendo vigiados. Ela podia sentir isso. Mas ela não estava ansiosa; estava calma com o que estava sentindo.
Ela podia apostar que eram os homens de Jim. Ela não os viu no caminho, mas eles estavam ali.
Depois que seu pai tirou suas malas e fechou o porta-malas, ela trancou o carro – e tentou não pensar no fato de que aquele homem com o tapa-olho já esteve ali dentro. Francamente, aquilo fez com que ela tivesse vontade de vender o Audi, mesmo com apenas uns 48 mil quilômetros rodados e funcionando muito bem.
– Vamos? – seu pai perguntou, indicando o caminho da frente com uma mão elegante.
Assentindo com a cabeça, ela se adiantou e iniciou o caminho de tijolos que havia até a porta. Antes de entrarem, seu pai desativou o sistema de segurança, que era igual ao da casa dela e, em seguida, destrancou os cadeados um por um. No momento em que atravessaram os batentes da porta, reativou o sistema e trancou tudo de novo.
Ninguém iria atrás deles ali: aquele lugar fazia com que a casa da cidade parecesse um brinquedo de papel machê no quesito segurança.
Após a morte de Daniel, aquela casa foi preparada para suportar um estado de sítio – algo que ela não tinha entendido até agora. Todas as placas foram arrancadas e painéis de microfilmes com substâncias retardadoras de fogo foram colocados no lugar delas por dentro e por fora; todos os vidros foram substituídos por vidros à prova de balas que tinham uma polegada de espessura; as portas antigas foram trocadas por outras reforçadas por molduras de chumbo; foram instalados sistemas de monitoramento de oxigênio e ventilação e não havia dúvidas de que foram feitas outras melhorias das quais ela não estava ciente.
Tinha custado mais do que a casa e, naquela época, Grier questionou a saúde mental de seu pai.
Agora, ela era grata.
Quando olhou para as familiares antiguidades americanas, para o chão de grandes pranchas e para a atmosfera de graciosidade casual, a noite que se aproximava se estendeu até o infinito. O que acontecia quando tudo o que se tinha diante de si eram momentos de espera: Jim e Isaac entrariam em contato com seu pai em algum momento, mas não havia como dizer quando. Ou quais notícias seriam dadas.
Horripilante. Como tudo aquilo era horripilante.
Deus, geralmente ela pensava na morte em termos de acidentes ou doenças. Hoje, não. Essa noite tudo era violência e premeditação, e ela não gostava desse mundo. Já era difícil o suficiente quando apenas a Mãe Natureza e a lei de Murphy estavam atrás de você.
Ela tinha um sentimento muito ruim sobre tudo isso.
– Gostaria de comer alguma coisa agora? – seu pai perguntou. – Ou prefere se refrescar primeiro?
Tão estranho. Geralmente, quando ela chegava àquela casa, ele a tratava como se fosse dela, abria a geladeira ou usava a cafeteira ou o fogão sem pestanejar. Era estranho e a incomodava ser tratada como hóspede.
Olhando por cima do ombro, ela observou seu pai, percorrendo as linhas de seu belo rosto. No silêncio constrangedor da casa blindada, ela se deu conta do quanto estavam sozinhos. Pelo bem deles, precisavam voltar a ser uma família ao invés de serem estranhos um ao outro.
– Que tal se eu fizer o jantar para nós dois?
Os olhos de seu pai lacrimejaram um pouco e ele limpou a garganta.
– Isso seria ótimo. Só vou levar isto até seu quarto.
– Obrigada.
Quando ele passou por ela, estendeu a mão e tocou seu braço, apertando um pouco – o que era a sua versão de um abraço. E ela aceitou o gesto colocando a palma de sua mão sobre a dele. Como sempre faziam.
Depois que ele subiu as escadas da frente, ela se dirigiu à cozinha sentindo-se trêmula e sem o controle de seu jogo... mas ela estava em pé e seguia em frente.
O que, no fim do dia, é tudo o que se tem, não é?
Havia apenas uma coisa faltando... ela parou e olhou por cima do ombro de novo. Então, ela andou pela cozinha e verificou a mesa da alcova... e o longo balcão onde estava o fogão... e o pé da escada dos fundos...
– Daniel? – ela sussurrou. – Onde está você?
Talvez ele não quisesse estar na casa do pai. Mas ele pôde aparecer no hotel naquela festa beneficente e, depois, em um ringue de luta clandestina, ele poderia muito bem dar o ar da graça ali.
– Eu preciso de você – ela disse. – Preciso vê-lo...
Ela esperou. Chamou seu nome baixinho mais algumas vezes. Mas parecia que apenas o forno duplo e a geladeira a ouviam.
Ah, pelo amor de Deus, ela sabia que seu irmão sempre evitou um conflito – e que seu pai o irritava. Mas ninguém o viu antes a não ser ela, então, era evidente que ele poderia escolher a quem se mostrava.
– Daniel.
Em um momento de pânico, ela se perguntou se ele nunca mais voltaria. Houve algum adeus de sua parte que ela não se deu conta?
Mais uma vez, sem respostas dos eletrodomésticos.
Pensando que teria mais sorte se os colocasse em funcionamento, ela foi até a geladeira e abriu a porta, perguntando-se que diabos poderia preparar para ela e seu pai.
Uma coisa era certa: o jantar não incluiria omeletes.
Levaria um tempo até ela preparar uma omelete de novo.
Quando a escuridão se instalou, os faróis do carro sem marcas oficiais de Matthias varriam a estrada à frente. Havia outros carros viajando na mesma estrada de asfalto que ele, outras pessoas por trás dos volantes, outros planos em outras mentes.
Tudo isso era irrelevante para ele, sem maior importância do que um filme passando em uma tela.
Sem mais profundidade que isso também.
Ele tinha problemas. Problemas terríveis. Do tipo que faziam nós em seu cérebro e que faziam a dor em seu lado esquerdo pegar fogo até o ponto de ter que se esforçar para se manter consciente.
Droga... Jim Heron sabia demais sobre coisas que deveriam estar apenas em pensamentos e conhecimentos particulares. Era como se o homem tivesse sintonizado a estação de rádio interna de Matthias e ouvido todas as suas músicas, comerciais e relatórios do trânsito.
E o filho da mãe estava certo. O segundo na linha de comando apenas se destacou de fato após o pequeno acidente de Matthias no deserto: nos últimos dois anos o soldado se fez indispensável e, olhando para as tarefas e situações com que Matthias tinha lidado, o cara tinha gradualmente influenciado suas decisões até que começou a tomá-las por si mesmo.
Tinha sido tão sutil. Como alguém girando lentamente o acendedor de uma chama sob uma panela de água. Seu subordinado foi quem o fez mudar de opinião sobre deixar Jim Heron ir. E o homem que direcionou Matthias a matar Isaac. E havia mais uma centena de exemplos... muitos dos quais ele acabou realizando conforme sua influência.
Ele nem sequer notou que isso estava acontecendo.
Deus, tinha começado com a morte do filho de Alistair Childe. Foi a primeira ideia brilhante.
Naturalmente, a lógica era indiscutível e Matthias não hesitou em puxar o gatilho. Mas quando viu as filmagens da morte, o choro do capitão o comoveu. Abriu uma porta que ele nem sequer sabia que existia dentro dele.
Matthias desligou o vídeo e foi para a cama. Na manhã seguinte, ele acordou e decidiu que já era o suficiente. Hora de deixar a festa que tinha iniciado há todos aqueles anos – ia deixar os convidados tomarem conta da casa e incendiá-la, tudo bem. Mas para ele bastava.
Já chega. Foi a gota d’água.
Focando suas mãos no volante, ele percebeu que outra pessoa o guiava, dirigia para ele, determinava as saídas e acionava as setas. Como aquilo tinha acontecido?
E por que, diabos, Jim Heron sabia?
Quando sua mente mais parecia uma máquina de lavar e começou um novo ciclo de rotação no passado, ele decidiu que todo aquele processo de lavagem e enxágue não era real. Não essa noite. Não naquela estrada. O que importava não era como ele tinha chegado atrás daquele volante e se encontrava a caminho de Boston. O que importava era o que ele faria quando chegasse lá.
Encruzilhada... certo. Ele sentia isso nos ossos – da mesma forma que sentiu quando preparou aquela bomba anos atrás.
A questão era: e agora? Acreditar no que Jim Heron havia dito. Ou seguir o impulso da raiva que o direcionava para o leste.
Qual destino ele seguiria?
Enquanto ele ruminava, tinha total certeza de que estava escolhendo entre o Céu e o Inferno.
CAPÍTULO 46
Enquanto Adrian vigiava a casa cinzenta daquele cavalheiro parado próximo a um carvalho, ele estava começando a se sentir como a porcaria de uma árvore. A não ser por aquele confronto na cidade na noite anterior, ele passou muito tempo esperando nos bastidores nos últimos dois dias.
Ele nunca gostou de ficar parado, para começar, mas naquela noite, quando toda a ação estava na cidade e ele e Eddie estavam presos feito troncos servindo de babá para dois adultos, Adrian estava realmente inquieto. Especialmente levando em conta que ele e seu colega eram responsáveis pelo que estava trancado em uma casa que fazia da base do exército dos Estados Unidos parecer um sanitário portátil em termos de solidez.
Dane-se tudo isso. Ele não conseguia acreditar que estavam indo atrás da alma errada.
Todas as conclusões pareciam boas, mas na verdade, a porcaria era como uma equação de álgebra que tinha algum elemento errado: parecia ótima no papel, mas a resposta estava errada.
E que grande escorregão aquele tinha sido. Ele sentia calafrios em pensar que estava tão perto e tão longe do final de uma partida.
Mas a quase derrota não era a única coisa que fazia suas bolas ficarem tensas, no mal sentido. A outra metade disso se dava à situação em que Jim se encontrava agora: a despeito do que Devina tinha feito com ele, o cara estava fazendo tudo como se estivesse muito bem... e sim, tudo bem, talvez fosse o caso no momento. Inferno, o fato de que tudo com Isaac e Matthias ia vir à tona naquela noite parecia ser uma coisa boa, pois dava a Jim algo para se concentrar. O único problema era que, Adrian sabia bem, essa crise ia passar e, então, o cara enfrentaria muitas horas longas e silenciosas sozinho com nada além de más memórias sibilando em seu crânio como balas perdidas.
A pior coisa, pelo menos na opinião de Adrian, era saber que ia acontecer de novo. Quando a situação requeresse, Adrian voltaria a descer até o mausoléu onde havia a brinquedoteca de Devina... e Jim também. Isso por serem o tipo de homem que eram. E esse era o tipo de vadia que ela era.
Ao lado dele, Eddie sufocou outro espirro.
– Saúde.
– Malditas lavandas. Sou o único imortal com alergia. Juro.
Quando o cara olhou para a floração que havia próxima a ele, Adrian respirou fundo pensando que pelo menos seu melhor amigo não teve que passar pelo inferno daquela mesa. Por outro lado, ele foi marcado por aquele demônio, o que dificilmente se aproximava de uma temporada na Disney.
Dez minutos, três espirros e um monte de nada para fazer depois, Adrian pegou seu celular e ligou para Jim. O cara atendeu no segundo toque.
– Diga – ele vociferou.
– Nada. Estamos em meio a lavandas – acho que é assim que são chamadas – olhando Grier comer com o pai dela. Parecem duas costeletas de porco. – O exalar do outro lado da linha era de pura frustração. – Nada de novo por aí também, eu acho.
Cara, algumas vezes, uma má ação era melhor do que aquela porcaria arrastada, onde brincar com os dedos era a única coisa a se fazer.
Jim soltou um palavrão.
– Eu falei com Matthias há mais ou menos uma hora, mas não tenho ideia de onde ele estava. Contudo, com certeza estava no trânsito.
– Acho que deveríamos voltar. – Adrian franziu a testa e se inclinou para frente em suas botas. Dentro da cozinha rústica, Grier se levantou, pegou algumas louças de um armário e ergueu a tampa de vidro de um prato de bolo. Parecia que havia um bolo de chocolate. Coberto de creme.
Que droga. Talvez eles devessem ficar um pouco mais. Convidarem-se para a sobremesa.
– Aguente firme – Jim disse. – Mas talvez eu precise ir até aí. Prefiro manter o confronto bem longe dos Childes, só que não sei se Grier é o alvo. Nesse momento, não sei o que Matthias está pensando... eu só consegui chegar até certo ponto com ele ao telefone antes dele desligar.
– Olha, tudo o que sei é que queremos estar onde a festa estiver. – Quando Eddie espirrou de novo, Ad balançou a cabeça para indicar onde estavam os anti-histamínicos. – E ouça, eu andei em torno dessa casa. É segura como não sei o que. Matthias é a alma em jogo, então, para onde quer que ele vá será por onde a ação vai seguir – e ele está indo encontrar Isaac.
Houve um breve silêncio. E, então, Jim disse: – Contudo, Grier é uma alma inocente e uma excelente maneira de Matthias conseguir sua vingança – talvez ela seja a única que ele pretenda capturar. Nós simplesmente não sabemos. É por isso que quero dar mais um tempo... e, então, talvez, possamos trocar de lugar.
– Tudo bem. Seja lá onde for que precise de nós, iremos. – Ad se ouviu dizer antes de desligar.
Dê só uma olhada, fazendo toda aquela coisa de um bom soldadinho. E aquilo era um pé no saco.
– Vamos ficar por aqui – ele reclamou. – Por enquanto.
– Difícil saber onde se posicionar.
– Precisamos de mais lutadores.
– Se Isaac sobreviver... podemos transformá-lo. Ele tem jeito.
Adrian o encarou.
– Nigel nunca permitiria isso. – Pausa. – Permitiria?
– Eu acho que ele não vai gostar de mais perdas, é o que posso dizer.
Adrian voltou a assistir Grier a cortar duas fatias e colocá-las no prato. Ele teve a impressão, pela maneira como seus lábios se moviam, que ela e seu pai estavam conversando com mais calma e ele estava feliz. Ele não sabia como era ter um pai, mas ele estava na Terra tempo suficiente para saber que um bom pai era uma coisa ótima.
Ele soltou um palavrão quando Grier se dirigiu ao congelador.
– Ah, cara. Sorvete também?
– A maneira que você consegue ter apetite em um momento como esse me surpreende.
Adrian pegou uma pequena tigela.
– Eu sou incrível.
– “Esquisito” também é um bom adjetivo.
Nesse momento, Ad começou a puxar de suas cordas vocais Super Freak fazendo uma imitação fantástica de Rick James. Nos arbustos de lavanda. Em... onde diabos eles estavam? Roosevelt, Massachusetts? Ou estavam em Adams?
Washington?
– Por tudo quanto é mais sagrado – Eddie murmurou ao cobrir os ouvidos. – Pare...
– ... in the name of loooooove. – Erguendo a mão, Ad começou a se mexer e a rebolar como Diana Ross. – Be... fore... you... breaaaaaaak... my...
A risada suave de Eddie dizia que ele estava no limite e assim que entrou no coro, Ad se calou.
Quando as coisas ficaram em silêncio novamente, ele pensou no bom e velho Isaac Rothe. Aquele filho da mãe, grandalhão, cabeça-dura poderia ser um excelente complemento para a equipe.
Claro, ele teria que morrer primeiro.
Ou ser morto.
As duas maneiras, levando em conta a forma como as coisas estavam acontecendo, poderiam ser arranjadas naquela noite.
Na cozinha, Grier sentou-se diante de seu pai em uma mesa feita de tábuas retiradas de um velho celeiro. Entre eles, havia dois pequenos pratos brancos marcados com manchas de chocolate e os garfos de sobremesa descansavam em ângulos acentuados.
Eles não falaram sobre nada importante durante a refeição, apenas coisas do cotidiano sobre o trabalho e o jardim dele e sobre os possíveis casos que ela assumiria no sistema penal. A conversa foi tão normal... talvez fosse ilusão, mas ela se apegou ao que eles tinham seguindo a regra do “faz de conta”.
– Outro pedaço? – ela perguntou, indicando com a cabeça o bolo no balcão.
– Não, obrigado. – Seu pai bateu suavemente os cantos da boca com o guardanapo. – Não deveria ter comido nem o primeiro.
– Parece que perdeu peso. Acho que deveria...
– Eu menti sobre Daniel para mantê-la em segurança – ele deixou escapar, como se a pressão de esconder aquilo tivesse chegado a um nível insustentável.
Ela piscou algumas vezes. Em seguida, estendeu a mão e começou a brincar com o garfo, desenhando um pequeno “op” e depois um “extra” em cima da cobertura que deixou de lado, seu estômago revirava todo o jantar que tinha acabado de comer.
– Eu acredito em você – ela disse em dado momento. – Contudo, isso dói muito. É como se ele tivesse morrido novamente.
– Sinto muito. Sei que não é o suficiente.
Seus olhos se ergueram e encontraram os dele.
– Entretanto, vai ficar tudo bem. Eu só preciso de um tempo. Você e eu... somos tudo o que restou um ao outro, entende?
– Eu sei. E isso é minha culpa...
Do nada, uma luz brilhou através das janelas, iluminando o cômodo e os dois que ali estavam em uma explosão de brilho.
Cadeiras arranharam o chão quando ela e seu pai ficaram em pé rapidamente e procuraram por abrigo atrás da sólida parede da cozinha.
Lá fora, no gramado da frente, as luzes de segurança acionadas pelo movimento foram ativadas e um homem estava andando sobre o gramado em direção à casa. Atrás dele, nas sombras, um carro que ela não conhecia estava estacionado no caminho de cascalho.
Seja lá quem fosse, deve ter vindo com os faróis desligados. E se fosse Jim, Isaac ou aqueles dois homens, alguém teria chamado.
– Pegue isto – seu pai disse entre dentes, pressionando algo pesado e metálico em sua mão.
Uma arma.
Ela aceitou sem hesitar e seguiu até a porta da frente – que era aonde parecia estar indo seu “convidado” inesperado. Contudo, qual era a lógica nisso? Você se esgueirava até a casa com as luzes do carro desligadas, mas andava decidido em direção a...
– Oh, graças a Deus – seu pai murmurou.
Grier relaxou assim que reconheceu quem era. Sob as luzes de segurança, o grande corpo de Jim Heron e seu rosto rígido estavam claros como o dia e o fato dele se esquivar pelo caminho fazia sentido.
Seu primeiro pensamento foi em Isaac e ela o procurou dentre as luzes quando seu pai desativou o sistema de segurança e abriu a porta. Contudo, ele não estava com Jim.
Oh, bom Deus...
– Estão todos bem – Jim gritou no gramado, como se tivesse lido sua mente. – Está tudo acabado.
O alívio foi tão grande que ela se afastou brevemente, esquivou-se até a cozinha, apoiou a arma e colocou seus braços sobre a mesa. Do outro cômodo, ela ouvia as vozes profundas de seu pai e de Heron, mas ela duvidava que conseguiria acompanhar a conversa mesmo se estivesse em pé ao lado deles. Isaac estavam bem. Ele estava bem. Estava bem...
Estava acabado. Terminou. E agora, com Isaac indo embora em relativa liberdade, ela poderia tentar seguir em frente também.
Cara, ela precisava de umas férias.
Em algum lugar frívolo e quente, ela decidiu ao se movimentar e pegar os pratos de sobremesa. Em algum lugar com palmeiras. Drinques e sombrinhas. Praia. Piscina...
Tick... tick... whir...
Grier franziu a testa e lentamente olhou por cima do ombro.
Perto da geladeira, a fechadura da porta dos fundos se deslocava da direita para a esquerda, ao mesmo tempo em que a velha trava se erguia.
As vozes na sala silenciaram de repente.
Silenciaram demais.
Aquilo estava errado. Muito errado...
Grier largou os pratos e se lançou para a arma que havia deixado no balcão...
Mas ela não chegou a fazer isso. Alguma coisa atingiu seu ombro e, em seguida, uma carga elétrica passou por seu corpo, curvando-a para trás, desequilibrando seus pés e a jogando com força no chão.
CAPÍTULO 47
Em Beacon Hill, Isaac subiu as escadas da frente da casa, parou no patamar do segundo andar e depois continuou até o quarto de Grier. Em seu espaço particular, ele passeou ao redor da cama e sentiu que estava perdendo sua preciosa sanidade.
Ele olhou o relógio despertador. Caminhou até as portas francesas. Observou o terraço.
Nada se movia lá fora e não havia ninguém na casa além dele e Jim.
O tempo passava, mas ninguém aparecia e não importava quantas vezes ele descesse até Jim e depois voltasse a subir ele não era capaz de prever a próxima sequência de eventos.
Era como um diretor sem megafone e um elenco que não dava a mínima para o que ele tinha a dizer.
O medo inevitável que o afligia era de que estivesse no lugar errado. Que ele e Jim estavam tranquilos aqui enquanto a ação acontecia em outro lugar. Como na fazenda do pai de Grier.
Como se fosse um caminho viciante, ele voltou para a escada e correu para baixo, esperando nada ao longo do caminho ou nos fundos além de uma breve parada na cozinha e outra viagem para cima.
Só que...
Quando ele chegou ao térreo, a porta da frente rangeu como se estivesse sendo aberta. Pegando suas armas, ele estava pronto para atacar... até que ouviu a voz irritada de Jim aumentando.
– O que vocês estão fazendo aqui? – Heron perguntou.
– Você nos mandou uma mensagem de texto.
Isaac franziu a testa ao som da voz do homem de piercing.
– Não, eu não mandei.
– Sim, mandou.
Naquele momento, o transmissor de alerta disparou com um movimento sutil no bolso de Isaac.
Todos os seus instintos queimavam, ele se abaixou silenciosamente no quarto de hóspedes onde tinha ficado. Segurando o transmissor nas mãos, ele ativou o dispositivo e, desta vez, não houve demora na resposta.
Matthias respondeu logo em seguida.
– Estou com sua garota na casa do velho pai dela. Venha para cá. Você tem meia hora.
– Se você a machucar...
– O tempo está passando. E não preciso dizer para vir sozinho. Não me faça esperar, ou vou ficar entediado e terei que preencher meu tempo. Você não vai gostar disso, prometo. Esteja aqui em trinta minutos.
A luz se apagou, a transmissão terminou de repente.
Quando Isaac se virou para sair, ele pulou para trás. Jim, de alguma maneira, subiu as escadas e atravessou a porta fechada para ficar em pé bem atrás dele.
– Ele está com ela – disse Jim categoricamente. – Não está?
– Vou sozinho ou ele vai matá-la.
Empurrando o homem para fora do caminho, Isaac correu escada abaixo. O corpo no corredor de entrada havia sido revistado a procura de armas como se fosse um presente embrulhado, mas chaves de carro era outra coisa.
Bingo. Bolso da frente. Ford.
Agora encontrar o carro do bastardo.
Quando Isaac se levantou, percebeu que tudo estava completamente silencioso e não havia ninguém no corredor da frente. Olhando ao redor, ele teve a sensação de que estava sozinho na casa, embora não fizesse ideia de como eles tinham saído tão rápido.
Seja como for – dane-se. Danem-se todos eles.
Isaac foi direto para a porta, mas no último minuto, ele girou sobre os calcanhares debaixo do arco e se voltou para o corpo para tirar algo mais dele. Então, correu na escuridão.
O carro sem marcas oficiais que ele observou na casa da Rua Pinckney no dia anterior estava estacionado um quarteirão acima e a chave do cara morto encaixou nele. O motor pegou bem e o GPS funcionava, então, ele rapidamente colocou o endereço que o pai de Grier havia dado a eles.
“Morcego vindo do inferno.” Era a descrição da viagem.
Rapidamente, ele pegou a estrada que ligava os locais, alcançando o limite de velocidade e depois ultrapassando-o. Mesmo assim, parecia que ele estava movendo-se em câmera lenta – e só piorou quando saiu da estrada e tentou atravessar um trecho da cidade que estava cheio de sinais vermelhos e estradas sinuosas.
Felizmente, o GPS o levou exatamente aonde ele precisava ir, seu destino tinha uma frente com dois pilares de pedra que ficavam de cada lado de um caminho pálido e brilhante.
Ele baixou os faróis e virou à direita, saindo da velocidade total para ficar cada vez mais lento. Descendo o vidro da janela para que pudesse ouvir melhor, ele avançou, odiando o som dos pneus esmagando um milhão de cascalhos. A única coisa boa era que o brilho permanente da cidade não existia ali em meio à natureza e a lua estava coberta por nuvens. Mas quanto você quer apostar que eles tinham sensores de movimento na parte externa da casa e/ou nas árvores?
Isaac se dirigiu até outro carro sem marcas oficiais que devia ser o carro de Matthias. Uma manobra depois e ele estava fora do carro. Pegando as chaves, ele correu ao longo da margem do gramado, seus sentidos avivados, sua raiva era como o inferno em seu sangue.
Matthias morreria se colocasse um dedo sequer em Grier. Um fio de cabelo daquela mulher fora do lugar e aquele canalha estaria massacrado.
Ao se aproximar da casa, ele procurou as portas. A da frente estava aberta e não conseguia ver a dos fundos.
Mas o que importava – esperavam por ele. E, assim, ele deveria jogar para o alto aquela rotina idiota de ninja e anunciar sua chegada.
Chegando à entrada da casa, ele manteve suas armas escondidas e seus olhos atentos ao fechar os punhos e bater na ombreira da porta de madeira.
– Matthias – ele gritou.
Ao entrar na casa, o silêncio retumbante era mais terrível que qualquer grito ou poça de sangue. Pois só Deus sabia no que ele estava entrando.
Jim elaborou um plano quando ele e os anjos saíram em direção à casa do pai de Grier. Ele não queria deixar Isaac sozinho na cidade, mas tudo o que eles teriam feito seria discutir e Deus sabia que o sagaz imbecil poderia cuidar de si mesmo.
Moral da história: Devina estava executando jogos mortais e isso era uma coisa com a qual apenas Jim poderia lidar. E ter um atraso antes da chegada de Isaac poderia não ser uma coisa ruim: se Matthias tivesse feito qualquer coisa à Grier, seria impossível controlar o soldado.
Sim, quando Jim aterrissou e foi direto para a porta aberta da casa da fazenda com seus homens de confiança na escolta, ele estava preparado para cuidar das coisas.
Nigel, porém, o desviou dos trilhos.
O arcanjo apareceu bem no seu caminho e, dessa vez, ele não estava com seu smoking ou com seu traje de críquete branco ou com qualquer outra roupa de tecido leve todo engomado: ele não era nada além de uma forma brilhante, uma silhueta ondulada com curvas de luz.
E ele disse apenas uma palavra.
– Não.
Quando Jim parou por um momento, ele poderia ter socado o desgraçado se ele tivesse qualquer forma sólida para atingir.
– Qual seu maldito problema?
Primeiro o engano quanto a Isaac, agora isso?
– A sorte está lançada. – Nigel levantou sua mão vacilante. – E se você intervier agora, vai perder de fato.
Jim apontou a porta aberta.
– A alma de um homem está em risco.
A voz de Nigel ficou obscura.
– Como se eu não soubesse disso.
– Se eu chegar a Matthias...
– Você teve sua chance...
– Eu não sabia que era ele! Quanta besteira!
– Não há nada que eu possa mudar. Mas posso dizer, deixe o final acontecer...
– Oh, você não pode mudar nada, mas pode entrar no caminho agora? Que maravilha de noção de tempo!
Jim tinha plena consciência de que sua voz era estrondosa, mas ele não tinha dificuldades para anunciar sua presença a Devina ou a qualquer outra pessoa.
– Dane-se, eu vou entrar...
Com a rápida emanação de um brilho, a forma de Nigel o cobriu da cabeça aos pés, a iluminação atuava como uma espécie de cola que o prendia no lugar. E, em seguida, aquela voz britânica não estava apenas em seu ouvido, mas percorria todo seu cérebro.
– Qual é o caminho mais confiável? O da emoção ou o da razão? Pense, Jim. Pense. Se alguém quebrar as regras, haverá uma punição. Pense nisso. Pense, idiota!
A fúria nublava sua mente e agitava seu corpo até ele pensar que iria se desfazer... mas, de repente, um raio atingiu sua cabeça dura e ele percebeu o que o anjo estava tentando lhe dizer.
Se alguém quebrar as regras... haverá uma punição.
– É isso, Jim. Tome isso como uma conclusão óbvia, leve-a para além dessa noite. E saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva. Eu imploro, confie em mim a respeito disso.
Relaxando sua musculatura, Jim sentiu uma calma curiosa percorrer suas entranhas e ele mudou de ideia devido aos simples argumentos que Nigel tinha exposto.
Olhando para Adrian e Eddie que se preparavam para batalha, viu que estavam tão chateados quanto ele. O que agregava um valor adicional ao que Nigel havia explicado.
– Confie em mim, Jim – disse Nigel. – Eu quero ganhar tanto quanto você. Eu também tenho minha carga de perda de entes queridos. Eu também faria o que fosse preciso para colocá-los em uma eternidade de paz. Não pense que eu o conduziria para o mau caminho.
Jim balançou a cabeça para seu amigos.
– Deixa pra lá – disse Jim a eles. – Vamos ficar à margem. Ficaremos aqui fora.
Quando seus colegas olharam para ele como se estivesse fora de si, ele não poderia concordar. Não entrar ia matá-lo, mas ele percebeu o contexto... e estava satisfeito com a intervenção do arcanjo. Graças a Devina ignorar as regras, o melhor para Matthias seria Jim permanecer fora disso.
Mesmo indo contra todos os seus instintos.
Depois de um momento, Nigel se desprendeu lentamente e sua iluminação mágica gradualmente se dispersou. Na sua ausência, Jim caiu de joelhos na grama, os olhos fixos na porta aberta da casa de madeira enquanto Adrian e Eddie começavam a questioná-lo, exigindo explicações para a ordem de parada.
À margem de sua mente e emoções, o desejo de voar no caminho do que Devina havia projetado ainda o atordoava.
Especialmente quando pensava na mulher de Isaac nas mãos de Matthias...
Oh, Deus... Rothe seria sacrificado, não seria?
As mãos de Jim procuraram a terra e ele cavou o gramado com os dedos, mantendo o corpo no lugar.
Inclinando a cabeça, ele rezou para que sua fé estivesse bem posicionada e que o bem, em algum momento, prevalecesse. Mas o fato era: fazer a coisa certa causaria a morte de um homem que não merecia morrer naquela noite.
CAPÍTULO 48
Matthias amarrou os Childes bem antes do momento que ele esperava que Isaac atravessasse a porta da frente.
Depois que a eletrocutou, descobriu que pegar Grier do chão e colocá-la em uma cadeira requeria mais força do que ele tinha – então, ele a deixou deitada onde estava, amarrando suas pernas e pulsos com a fita adesiva que encontrou na despensa de Alistair.
E quanto ao pai dela?
Não fazia ideia do que tinha feito o homem abrir caminho e ficar parado ali em transe, mas a distração e a falta de reação vieram bem a tempo. Matthias foi capaz de se posicionar atrás do cara e colocar uma arma em sua cabeça.
Então, sim, sentá-lo em uma cadeira na cozinha foi fácil demais; ele simplesmente uniu as próprias mãos e pés.
O que foi bem útil, uma vez que aquela dor no peito de Matthias estava tão ruim que ele mal podia respirar.
E agora, era apenas o caso de esperar por Isaac, os três na casa juntos com a porta aberta.
Houve um gemido e, em seguida, um movimento no chão quando Grier Childe começou a acordar. Ela teve um momento de confusão, como se estivesse tentando entender por que estava deitada sobre a madeira e por que não conseguia abrir a boca. E então ela se movimentou rapidamente com um impulso de corpo inteiro, os olhos bem abertos olhavam para ele.
– Acorde, pirralha – ele disse bruscamente, acenando com a cabeça quando seu pai começou a lutar contra suas amarras e a fazer ruídos abafados sob a fita adesiva na boca.
Matthias colocou a mira da arma em direção à cabeça do cara.
– Cale a boca.
Não havia ninguém por perto para ouvir, mas o sofrimento e a luta alfinetavam os nervos de Matthias. Na verdade, quando ficou em pé entre os dois, ele estava longe da calma e do “mestre da sobrevivência” que ele sempre foi no passado: ele estava com muita dor. Estava exausto. E ele sentia que o que estava prestes a acontecer estava predestinado, mas não era algo que ele teria escolhido.
Ele estava completamente fora de controle e totalmente preso ao mesmo tempo.
Com os olhos dos dois Childes nele e com todos em silêncio de novo, ele se apoiou contra o balcão, seu corpo decrépito protestando a mudança de posição.
– Sabe o que me irrita em você? – ele disse para Alistair. – Eu salvei a boa. – Ele balançou a cabeça em direção à Grier. – Eu poderia ter deixado aquele seu filho com você. Mas não, eu peguei o estragado... tirei seu querido Danny do sofrimento dele e do seu.
Ele se lembrava de ter se surpreendido com seu processo de pensamento na hora. Havia outras coisas dentro dele que machucariam muito mais, mas ele tomou um caminho diferente nessa encruzilhada.
Talvez ele tivesse começado a mudar antes de ordenar a morte. Quem sabe?
Quem se importa?
Ele estava mergulhado demais nas profundezas para ser salvo e sua conversa com Jim ao telefone mostrou a realidade da sua condenação ao invés das possibilidades de redenção. Era hora de acabar com isso... e sair dessa com um estrondo.
Só que dessa vez, ele faria a coisa direito.
Naquele momento, Isaac Rothe apareceu no arco da cozinha. Seus olhos foram até Grier primeiro e nem mesmo seu autocontrole estoico podia esconder seu medo.
Ele amava aquela mulher.
Bem, bom para ele, pobre coitado.
– Bem-vindo à festa – Matthias disse entorpecido ao erguer a arma e apontar para ele.
– Não faça isso – Isaac exclamou. – Leve a mim, não ela.
Matthias olhou os grandes e aterrorizados olhos da mulher e a maneira como ela parecia estar pronunciando algo como “Oh, Deus, não...”
– Eu sinto muito sobre tudo isso – Matthias disse a ela. E era verdade. Ele não sabia o que era mais cruel: matá-la em frente a Isaac... ou deixar que ela sobrevivesse à morte dele – supondo que o amor era recíproco.
Pena que um deles morreria agora – pois, em seguida, Jim Heron seria forçado a entrar e atirar em Matthias – portanto, estariam quites. O soldado o salvou há dois anos contra sua vontade e agora... naquela noite... ele faria o que deveria ter feito no deserto.
– Matthias – disse Isaac nitidamente. – Vou colocar minha arma no chão.
– Não se preocupe – ele murmurou, ainda focado em Grier. – Sabe, senhorita Childe, ele se entregou a mim para salvá-la. Duas vezes. Fez tudo isso por você.
– Matthias, olhe para mim.
Mas ele não olhou. Ao invés disso, encarou o rosto de Alistair e aquilo foi o que o fez ele se decidir.
Ele mudou a arma de direção.
Isaac estava pronto – e ele não esperava por menos.
Os dois puxaram o gatilho ao mesmo tempo.
CAPÍTULO 49
Grier gritou contra a fita que cobria sua boca com os tiros que explodiram na cozinha, o eco fez seus ouvidos ressoarem e seus olhos arderem.
Alguém estava gemendo.
Com seu coração trovejando, ela levantou a cabeça e esticou o pescoço. Matthias não estava mais à vista – então, ele deve ter sido atingido... Ela rezava para que ele tivesse sido atingido.
Isaac...? Seu pai...?
Rastejando ao longo do assoalho, ela avançou ao redor do balcão no meio da cozinha. A primeira coisa que viu foi seu pai na cadeira. E ele era o único que gemia ao lutar furiosamente contra a fita que havia ao redor de suas mãos e pés.
Onde Isaac estava?
Um pavor frio substituiu cada gota de sangue em suas veias e ela sabia a resposta para sua pergunta antes mesmo de vê-lo deitado de costas no cômodo.
Ele não se movia, sua arma estava sobre sua mão frouxa e aberta, seus olhos encaravam o vazio em direção ao teto.
Grier gritou mais uma vez, seu corpo se contraiu, seu rosto se arrastou no chão envernizado, toda sua alma e tudo que havia em sua mente negava o inevitável. Debatendo-se, ela avançou até ele, esperando ajudar, esforçando-se para atravessar a distância...
De repente, suas mãos estavam livres.
Com toda aquela luta ela rasgou o que a prendia. Explodindo em uma coordenação de movimentos inesperada, ela arrancou a fita da boca e se arrastou com os braços até Isaac.
A bala tinha atingido em cheio seu coração.
Era um buraco tão pequeno através da camisa, nada além de uma alfinetada em relação à mancha de fuligem que havia ao redor. Só que foi mais do que suficiente para matá-lo.
– Isaac – ela disse, tocando sua face fria. – Oh, Deus... não se vá...
Sua boca estava ligeiramente aberta, suas pupilas fixas e dilatadas, a respiração superficial prestes a parar. Ele tinha feito tudo para salvá-la, a mudança de planos, a entrega de si mesmo. Afinal, aquele homem louco e terrível não tinha motivos para mentir.
– Isaac... Eu te amo... Sinto muito...
Sua cabeça virou lentamente em direção à ela, seus olhos se esforçando para entrar em foco. Quando ele pareceu se fixar em seu rosto, lágrimas escorreram daquele olhar gélido, uma escapou do canto e rolou sobre suas têmporas, caindo no chão.
– Eu...
– Eu vou chamar a emergência – ela disse rápido.
Só que quando ela foi dar um salto para alcançar o telefone, ele agarrou seu braço com uma força surpreendente.
– Não...
– Você está morrendo...
– Não. – Com a mão livre, ele pegou o zíper do blusão. Mesmo com os dedos tremendo, ele conseguiu segurar a alavanca e puxar para baixo...
Para revelar o colete à prova de balas que estava usando.
– Apenas... perdi... a respiração. – Com isso, ele fez uma inspiração profunda, o que expandiu seu peito totalmente e exalou de maneira uniforme e limpa. – Tirei... do soldado morto...
Grier piscou. Em seguida, ergueu as mãos e sondou o buraco... onde a bala tinha sido capturada e mantida entre as fibras do colete.
Seu corpo reagiu por conta própria, uma estranha força a impulsionou quando ela o ergueu do chão e o segurou perto de seu coração.
– Você é... – ela começou a chorar copiosamente quando o horror e o terror deram lugar ao alívio que se espalhou nela. – Você é um homem brilhante. Um homem brilhante... e estúpido...
E então os braços dele estavam ao redor dela e ele estava, contra todas as possibilidades, cuidando dela.
Contudo, logo ele se separou dela e pegou sua arma.
– Fique aqui.
Com um grunhido, ele se levantou e saiu para checar Matthias e, quando ele se afastou, ela desatou seus pés e correu para seu pai.
– Você está bem? – ela perguntou quando começou a liberar os braços dele.
Ele balançou a cabeça furiosamente, seus olhos não estavam nela, mas em Isaac como se também não pudesse acreditar que o cara tinha sobrevivido. E no instante que suas mãos estavam livres, ele começou a soltar seus tornozelos.
Grier olhou em volta e por precaução, em caso de alguma outra pessoa aparecer ou estar na casa, procurou a nove milímetros que Jim Heron deu a ela quando tinha aparecido por ali.
Supondo que realmente tinha sido o homem.
Algo lhe dizia que talvez o que ela e seu pai viram não estava lá de fato.
Matthias sabia que tinha sido um golpe mortal e estava contente. Sim, ele queria que a arma de Jim fizesse isso, mas a de Isaac funcionou bem – e Rothe tinha feito parte de todo problema da sobrevivência, não tinha?
Pelo menos, ele tinha conseguido com um deles.
Quando o ferimento arterial começou a vazar em sua cavidade torácica, a respiração começou a se tornar difícil e sua pressão caiu, seu corpo foi se entorpecendo e esfriando. Não havia mais dor.
Bem, não exatamente. Aquela pontada de agonia em seu lado esquerdo acabava com ele... e foi enquanto estava morrendo que descobriu o que era aquilo: ele estava errado. Não era seu coração se preparando para um ataque coronário. Era – surpresa das surpresas – a sua consciência. E a maneira como soube foi que quando pensou no fato de ter matado um homem relativamente inocente na frente da mulher que o amava, a dor se tornou exponencialmente pior.
Não era irônico? De alguma maneira, nas profundezas de seu pecado, o sociopata havia encontrado sua alma.
Tarde demais.
Ah, inferno, contudo, estava tudo bem. Ele estaria morto em breve e, depois disso, nada importaria. A luz branca que já tinha se aproximado dele antes, ao entrar em paradas cardiorrespiratórias a na mesa de operações algumas vezes, estava mais perto dessa vez. Ele não achava que fosse o Céu. A porcaria provavelmente era algum produto da imaginação ou alguma disfunção ocular, apenas outra parte dos mecanismos da morte...
Isaac apareceu na frente dele, alto e forte, seu blusão aberto para mostrar um colete à prova de balas.
Quando teve certeza de que estava enxergando direito, Matthias começou a rir... e a dor em seu lado esquerdo aliviou de repente.
– Seu filho da... – Ele não chegou ao mãe, pois uma crise de tosse o atingiu.
Depois que a crise passou, ele pôde sentir sangue escorrendo em sua boca e no rosto quando seu coração começou a bater em sua caixa torácica como um animal se debatendo em uma jaula.
Quando Isaac se agachou, Matthias pensou na tatuagem nas costas dele. O Ceifeiro da Morte, de fato. Ele se perguntou se o soldado tatuaria outro ponto na parte inferior.
Quanto você quer apostar que também seria a última?
Isaac balançou a cabeça e sussurrou.
– Eu tenho que deixá-lo morrer. Sabe disso, não é?
Matthias assentiu.
– Obriga... do...
Ele ergueu a mão gelada e, um momento depois, sentiu que ela estava envolvida em algo quente e sólido. Era a mão de Isaac.
Como foi estranha a maneira como as coisas se resolveram. Naquele deserto, Jim tinha a intenção de salvá-lo, mas aqui e agora, naquela cozinha, Isaac estava dando o que ele queria há tanto tempo.
Antes que Matthias fechasse seus olhos pela última vez, ele olhou para Alistair Childe. Sua filha o havia libertado e ele a abraçava, a envolvia em segurança, a cabeça dele estava bem ao lado da dela. Como se o homem sentisse seu olhar, ele olhou também.
O alívio no rosto dele era épico, como se soubesse que Matthias estava morrendo e nunca mais voltaria – e que, apesar de saber que isso não ressuscitaria o filho perdido, o futuro dele e de sua filha estaria protegido para sempre.
Matthias acenou com a cabeça para ele e, então, fechou as pálpebras, preparando-se para o grande nada que estava por vir. Deus, ele ansiava por isso. Sua vida não tinha sido um presente para o mundo ou para ele mesmo e ele estava buscando a não existência.
Enquanto esperava no trecho entre os mundos, quando não se está nem vivo, nem exatamente morto, ele pensou em Alistair na noite em que seu filho havia morrido.
– ...Dan... ny... meu garoto Danny...
Matthias franziu a testa e, então, percebeu que não tinha apenas pensado nas palavras, mas as pronunciou em voz alta.
Foram as mesmas palavras que ele havia balbuciado antes de colocar o pé naquela bomba.
Naquele momento, a luz branca se apossou dele, um produto da dormência... ou talvez tivesse ultrapassado a sensação como se o sentimento fosse uma porta. Após a chegada dessa luz, uma grande e pacífica calma tomou conta de sua mente, corpo e alma como se estivesse limpo de todos os pecados que tinha imaginado ou cometido durante seu tempo na Terra.
A iluminação era muito mais do que qualquer coisa que seus olhos poderiam abranger. Era tudo o que via, tudo o que conhecia, tudo o que era.
O Paraíso realmente existia.
A oh, a adorável inexistência... ah, a felicidade...
Nas extremidades de sua visão, uma névoa cinza surgiu fervilhando, em sua primeira aparição não havia nada distinto, mas, em seguida, as sombras se expandiram em uma escuridão que começou a comer a luz.
Matthias lutou contra a invasão, seus instintos diziam que aquilo não era o que desejava – mas não era uma batalha que ele pudesse vencer.
A neblina tornou-se piche, o envolvia e o reclamava para si, o puxava para baixo em um espiral apertado, apertado... apertado... até que ele foi jogado em um mar com outros.
Quando ele se contorceu contra a maré oculta e asfixiante, ele esbarrou em corpos que se debatiam.
Preso em uma infinidade de óleo negro, ele gritou... junto a todos que estavam ali.
Mas ninguém apareceu. Ninguém se importou. Nada aconteceu.
Sua eternidade, finalmente, tomou posse dele e ela nunca mais o deixaria ir.
CAPÍTULO 50
– Ele está morto.
Quando Isaac pronunciou as palavras, ele se levantou e respirou fundo. Do outro lado, Grier e seu pai estavam envolvidos um ao outro e ele se permitiu um momento para apreciar a visão deles vivos e, enfim, juntos.
Obrigado, Deus, ele pensou – mesmo não sendo um homem religioso.
Obrigado, Deus todo-poderoso.
– Fiquem aqui – disse ele antes de percorrer o local, fechar e trancar a porta dos fundos.
Levou dez minutos para pesquisar e deixar toda a casa em segurança e a última coisa que ele fez foi ir até a porta da frente e verificar mais uma vez se os cadeados estavam devidamente trancados...
Isaac franziu a testa e olhou para o gramado através da janela. Havia um pequeno cachorro lá fora... parado com as pernas atarracadas, com a cabeça inclinada ao olhar para Isaac lá dentro. Que graça... precisava cortar o pelo, mas isso acontece nas melhores famílias.
Isaac abriu a porta e gritou.
– Você mora aqui?
Enquanto aquela cabeça continuava inclinada do outro lado, Isaac procurou pelo jardim da frente e rezou para que Jim Heron surgisse dentre as árvores a qualquer minuto.
Contudo, não havia nada além do cachorro.
– Quer entrar? – ele disse ao animal.
A coisa pareceu sorrir como se tivesse apreciado o convite. Mas, então, ele se virou e afastou-se, um leve mancar o fazia pender para a direita.
Em um piscar de olhos, o animal desapareceu.
Que trilha sonora a dessa maldita noite, Isaac pensou ao fechar a porta de novo.
Assim que entrou na cozinha, Grier se afastou de seu pai num rompante e veio correndo até ele, atingindo seu corpo com força, os braços o envolviam com uma força vital. E com um suspiro de gratidão, ele a segurou, pressionando sua cabeça sobre o peito, sentindo seu coração bater.
– Eu te amo – ela disse contra o colete à prova de balas. – Eu sinto muito. Eu te amo.
Droga, então ele ouviu direito quando estava no chão.
– Eu também te amo. – Erguendo seu rosto, ele a beijou. – Mesmo que eu não a mereça.
– Cale a boca.
Agora era ela quem o beijava e ele mais que a desejava – mas não durou muito. Logo ele interrompeu o contato.
– Ouça, eu quero que você e seu pai façam uma coisa por mim.
– Qualquer coisa.
Ele olhou o relógio. 9h59.
– Volte para a cidade – algum lugar público. Algum dos seus clubes ou algo assim. Eu quero que vocês dois sejam vistos juntos essa noite. Diga às pessoas que vocês foram jantar ou assistiram a um filme no cinema. Uma coisa de pai e filha.
Quando os olhos dela se lançaram sobre o corpo de Matthias, seu pai disse: – Eu posso ajudar.
– Nós podemos ajudar – Grier corrigiu.
Isaac recuou e balançou a cabeça.
– Eu vou cuidar dos corpos. Melhor que nenhum de vocês dois saiba onde eles vão parar. Eu cuido disso – mas têm que ir agora.
Os Childes pareciam dispostos a argumentar, mas ele não tinha nada a dizer.
– Pense nisso. Está tudo acabado. Matthias está morto. Assim como seu segundo no comando. Com eles mortos, as operações extraoficiais vão voltar a ser o que deveriam – e serão administradas pelas pessoas certas. Você está fora. – Ele balançou a cabeça para Childe. – Eu estou fora. A barra está limpa, permitindo com que eu lide com isso de agora em diante. Vamos fazer isso do jeito certo, pela última vez.
Seu pai soltou um palavrão – o que era algo que, sem dúvida, ele não fazia com frequência. E, em seguida, ele disse: – Ele está certo. Deixe-me trocar de roupa.
Quando seu pai desapareceu, Grier olhou para Isaac, seus braços envolveram a si mesma lentamente, seu olhar ficou grave.
– Isso é um adeus entre nós? Hoje à noite? Aqui e agora?
Isaac foi até ela e capturou seu rosto com as mãos, sentindo de maneira muito intensa a realidade da qual não podia escapar e a qual ela não seria capaz de sobreviver.
Com uma dor em seu peito que não tinha qualquer relação com a bala, ele disse uma única e devastadora palavra.
– Sim.
Quando ela cedeu, fechando os olhos com força, ele teve que dizer a verdade: – É melhor assim. Eu não sou seu tipo de homem, mesmo se não tivesse que me preocupar mais com as operações extraoficiais, eu não sou o que você precisa.
Suas pálpebras se abriram e ela o encarou.
– Quantos anos eu tenho? – ela perguntou. – Vamos lá, quantos? Diga!
– Ah... trinta e dois.
– E você sabe o que isso quer dizer, legalmente? Posso beber, posso fumar, posso votar, posso servir o exército e posso tomar minhas próprias decisões. Então, que tal deixar que eu escolha o que é e o que não é bom para mim?
Certo. Não era hora de discussões. E ele realmente achava que ela não tinha pensado nas implicações de estar com um homem com seus antecedentes.
Ele recuou.
– Vá com seu pai. Deixe-me limpar tudo aqui e na cidade.
Seus olhos se fixaram aos dele.
– Não parta meu coração, Isaac Rothe. Não parta meu coração quando você sabe perfeitamente bem que não precisa fazer isso.
Com isso, ela o beijou e saiu da cozinha... e enquanto ele a observava sair, se sentiu sendo direcionado a dois resultados: um onde ele ficava com ela e tentava fazer as coisas darem certo, outro onde ele a deixava para costurar sua vida e seguir em frente.
Ouviu os passos dela e de seu pai no andar de cima enquanto se aprontavam para sair e fingir que não tinham visto dois homens sendo mortos em suas casas e que não estavam rezando para que um soldado a quem eles nunca deveriam ter conhecido desaparecesse com os corpos.
Cristo, e ele sequer considerou estar na vida dela?
Isaac estava sozinho não mais que vinte minutos depois, os dois fizeram uma saída rápida para a cidade com o Mercedes de Childe.
Antes de partirem, Isaac apertou a mão do pai de Grier, mas não ofereceu sua palma a ela – pois ele não confiava que não iria beijá-la uma última vez: olhando para ela em seu vestido preto, com seu cabelo amarrado e maquiada, ela estava como da primeira vez que a viu, uma mulher bonita, bem educada, com os olhos mais inteligentes que ele nunca teve o privilégio de olhar fixamente antes.
– Fique bem – ele disse a ela com voz rouca. – Ligo quando estiver tudo certo para que possam voltar.
Sem lágrimas, sem protestos da parte dela no final. Ela apenas balançou a cabeça uma vez, girou sobre os calcanhares e se dirigiu para o carro do pai.
Quando os dois saíram, ele caminhou até a porta da frente e observou as luzes traseiras do sedã.
Ele teve que secar os olhos. Duas vezes.
E depois que os dois faróis vermelhos desapareceram, ele se sentiu abandonado. Mas aquilo era uma grande besteira, não era? Você não poderia ser abandonado quando se é o único a partir.
Certo?
Procurando algum tipo de contato, algum tipo de esperança, ele olhou ao redor da fileira de árvores do outro lado do gramado mais uma vez. Nenhum sinal de Jim e seus amigos... ou daquele cachorro.
E ele ainda podia jurar que estava sendo observado.
– Jim? Você está aí fora?
Ninguém respondeu. Ninguém saiu da folhagem.
– Jim?
Quando ele voltou para dentro, teve a estranha sensação de que nunca veria Heron novamente. O que era esquisito, pois Jim estava muito entusiasmado para ser um salvador.
Mais uma vez, ele observou o corpo de Matthias estirado no chão, o que significava que Isaac estava em segurança agora – a vida daquele homem acabou servindo para alguma coisa afinal, não é?
Contudo... só para garantir, ele ficou vestido com o colete à prova de balas até o amanhecer.
Não havia razão para não garantir a vida.
CAPÍTULO 51
– Jim? Você está aí fora, Jim?
Quando os olhos de Isaac procuraram pelas árvores, Jim estava a não mais que três passos de distância do cara e desejava poder abraçar o filho da mãe. Deus... quando aqueles tiros explodiram e ele viu pela janela da cozinha quando Matthias e Rothe caíram, anos foram arrancados de sua vida eterna.
Mas Isaac estava bem. Ele se salvou com um pensamento bastante óbvio e defensivo. Assim como foi treinado para fazer.
– Jim?
E agora, ao olhar para seu amigo soldado, uma alegria pura e inalterada o inundava. Ele tinha vencido. Mais uma vez.
Vá se ferrar, Devina, ele pensou. Vá se ferrar!
Isaac estava vivo, assim como Grier e seu pai. E apesar de ir atrás da alma errada no começo, as coisas funcionaram muito bem – embora a coisa de Nigel sobre punição acabou por ser irrelevante, não?
Jim olhou sobre o ombro para Adrian e Eddie e ficou surpreso por eles não estarem todos sorridentes.
– O que há de errado com...?
Ele não teve a chance de terminar a frase. Um turbilhão louco rodopiou sob seus pés, girando em torno dele, levantando-se para reivindicar suas pernas, quadris e peito. Ele tentou lutar, mas não conseguiu fugir...
Suas moléculas se misturaram e se dispersaram até que havia um enxame dentro dele que o fazia sair de suas dimensões de tempo e espaço, ele viajava para algum destino desconhecido. Quando ele se recompôs, sabia exatamente onde estava... e a visão da mesa de trabalho de Devina revirou o seu estômago.
Ele não tinha ganhado. Tinha?
– Não, você não ganhou – ela disse atrás dele.
Girando sobre os calcanhares, ele olhou para ela quando entrou atravessando o arco. Ela estava em sua forma morena, toda linda e exuberante e falsa como uma versão Barbie de si mesma.
Ela sorriu, seus lábios vermelhos ondulavam sobre seus belos dentes brancos.
– Matthias atirou em Isaac com a intenção de matar. Se houve ou não uma morte não importa. Isso significa dolo – uma mente culpada.
Acima de sua cabeça, uma bandeira preta estava pendurada na parede escura, seu primeiro troféu.
– Você perdeu, Jim. – Aquele sorriso ficou ainda maior quando ela levantou os braços e indicou sua grande e viscosa prisão que se erguia acima dos dois. – Ele está aqui agora, meu para sempre.
As mãos de Jim se fecharam para um soco.
– Você trapaceou.
– Trapaceei?
– Você fingiu ser eu, não foi? Foi assim que Matthias entrou na fazenda. Ou você fez com que ele se parecesse comigo ou apareceu como se fosse eu.
Sua satisfação presunçosa era toda a confirmação que ele precisava.
– O que é isso agora, Jim? Eu nunca trapaceei. Então, eu não sei do que está falando. – Devina caminhou até ele, aproximando-se em um sensual deslize. – Diga, você se incomoda de ficar mais um pouco? Eu tenho algumas ideias de como podemos passar o tempo.
Quando ela estava bem na frente dele, suas unhas vermelhas flutuaram sobre seu peito e ela se inclinou.
– Eu amo estar com você, Jim.
Com um forte estrondo, ele capturou o pulso dela e o apertou com força suficiente para quebrá-lo.
– Sei que você adora fazer os outros sofrerem. Mas caso não se lembre, eu resisti às suas torturas.
A vadia teve a coragem de fazer beicinho.
– Você está me machucando.
Ele não acreditou naquilo nem por um segundo.
– E você não vai dizer ou fazer nada.
Agora ela sorria de novo.
– Está certo, Jim, meu amor. Está certo.
Ele soltou dela como se ela o queimasse, o estômago apertou ao reconhecer a luz em seus olhos.
– Isso mesmo, Jim – ela murmurou. – Eu tenho sentimentos por você. E isso o assusta, não é? Com medo de ser recíproco?
– Nem. Um. Pouco.
– Ah, bem, teremos que trabalhar em cima disso.
Antes que ele pudesse detê-la, ela se ergueu e capturou a boca dele, beijando-o rápido e, em seguida, mordendo o lábio inferior com força suficiente para tirar sangue.
Ela recuou rápido, como se soubesse que estava forçando.
– Adeus, por enquanto, Jim. Mas nos veremos em breve. Prometo.
Com nojo, ele limpou a boca com as costas da mão e cuspiu no chão. Estava prestes a levá-la ao chão quando franziu a testa, pensando no que Nigel havia dito no gramado.
Saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva.
Agora, era Jim quem sorria – embora severamente. Havia coisas piores do que seu inimigo apaixonado por você: forte como ela era, tão imprevisível e perigosa quanto seus poderes, aquele olhar em seus olhos, aquele olhar em chamas, fora de controle, era uma arma.
Deixando para trás suas emoções, ele se viu descendo a mão e empurrando seu pênis.
A reação de Devina foi instantânea e elétrica. Seu olhar quente se voltou para os quadris dele, a boca dela se abriu como se não conseguisse respirar direito, os seios se erguiam sobre o corpete do vestido.
– Você quer isso? – ele perguntou rispidamente.
Como uma marionete, ela assentiu com a cabeça.
– Não é o suficiente – ele disse a ela, odiando-a, odiando a si mesmo. – Diga isso, vadia. Diga.
Com uma voz rouca e ansiosa, ela sussurrou: – Eu te desejo...
Jim soltou seu membro, sentindo imundo por dentro e por fora. Mas a guerra era feia, não era? Mesmo se você está do lado bom e moral.
Um mal necessário, ele pensou. Seu corpo e a necessidade dela eram um mal necessário e ele os usaria se precisasse.
– Bom – ele rosnou. – Isso é bom.
Com isso, ele desejou que seu corpo se levantasse do chão, dessa vez a energia era convocada por ele e por mais ninguém.
Ao levitar cada vez mais alto, Devina se aproximou dele, seu rosto se contorcia em um tipo de desejo doloroso que dava mais energia a ele.
E, então, ele não estava mais olhando para ela; ele estava examinando as paredes de sua masmorra, em busca da garota que ele odiaria deixar para trás de novo... assim como seu patrão a quem ele tinha tentado salvar e falhado.
Ele voltaria pela moça. Mas seu patrão... temia que Matthias tinha sido colocado para descansar ali por uma eternidade, o seu sofrimento interminável era merecido.
Contudo, Jim lamentava a perda do homem.
Ele queria redimir o cara.
Jim voltou a consciência no gramado do capitão Alistair Childe. E quando ele voltou a pensar em sua primeira missão, parecia que tinha ficado especialista no vai e vem na grama.
Adrian e Eddie estavam um de cada lado dele, os dois anjos graves e sérios.
– Perdemos – disse Jim. Como se eles já não soubessem.
Adrian estendeu a mão e quando Jim se ergueu, o cara o ajudou a colocá-lo em pé.
– Perdemos – Jim murmurou novamente.
Olhando por cima do ombro, ele pensou brevemente em ir até a fazenda e ajudar Isaac a cuidar dos restos de Matthias, mas decidiu ficar onde estava. O soldado já teria um momento difícil suficiente para fazer com que todas as coisas que não poderiam ser explicadas fizessem sentido – mais contato com Jim só daria a ele outra porcaria para pensar.
– Caldwell – disse Jim aos seus amigos. – Vamos voltar a Caldwell.
– Está certo – Eddie murmurou, como se não estivesse nem um pouco surpreso.
E Jim não ia se preocupar com quem seria o próximo no jogo. Como ele aprendeu com essa tarefa em particular, as almas iriam encontrá-lo. Assim, ele poderia muito bem seguir o que seu coração lhe dizia: que já era hora da família Burten encontrar o corpo de sua filha para enterrá-lo de maneira adequada.
Jim era o único anjo que poderia fazer isso acontecer.
Desfraldando suas grandes asas luminescentes, lançou um último olhar através das janelas da cozinha. Isaac Rothe estava trabalhando com uma determinação sombria, lidando com as coisas com a mesma competência, como sempre fez.
Ele ia ficar bem – desde que fosse inteligente o suficiente para ficar com aquela advogada. Deus, quem tem sorte de encontrar um amor assim? Só um idiota desperdiçaria isso.
Jim se dirigiu para o céu noturno como se tivesse nascido para ele, suas asas o carregavam através do ar frio, o vento batia em sua face e dedilhava seus cabelos, sua equipe de dois membros estava bem atrás dele.
Na próxima batalha ele seria mais rápido no gatilho. E usaria sua nova arma contra Devina para sua total vantagem.
Mesmo se isso o matasse.
CAPÍTULO 52
UMA SEMANA DEPOIS...
Ao se despir no closet, Grier pendurou seu terno preto com os outros e achou ser impossível não se lembrar da maneira como estava organizado antes. Os ternos ficavam à esquerda da porta. Agora, eles estavam bem à frente.
Apenas vestida com sua blusa de seda e meias, ela passou as mãos ao redor, tocando as roupas, perguntando-se quais foram penduradas por ela naquela tarde... e quais Isaac havia organizado depois que ela saiu.
Fechando os olhos, ela quis chorar, mas não teve forças.
Não soube de nada mais sobre ele desde aquela noite da limpeza há uma semana – sobre o que, aliás, ele tinha avisado via mensagem de texto ao invés de pessoalmente ou falando ao telefone.
Depois disso? Nada de ligações, e-mails, visitas.
Era como se ele nunca tivesse existido.
E ele não deixou nada para trás. Quando ela voltou àquela casa, o cartão de visitas que Matthias havia dado a ela assim como as faixas de tecido retiradas da regata e a pasta cheia de dossiês haviam desaparecido. Juntamente com os dois corpos e os dois carros em Lincoln.
De maneira insana, ela procurou por um bilhete, assim como havia feito na primeira vez que ele “partiu”, mas não havia nada. E, às vezes, no meio da noite, quando não conseguia dormir, ela levantava para procurar novamente, verificando nos criados mudos ao lado da cama, na cozinha e até mesmo no closet.
Nada.
A única coisa que ela concluía que ele havia deixado para trás era aquele closet organizado. Mas era algo que ela dificilmente colocaria em seu diário e daria uma olhada de tempos em tempos quando se sentisse melancólica.
Durante aqueles sete dias que se passaram, o trabalho a manteve firme, forçando-a a levantar pela manhã quando tudo o que ela queria era puxar os cobertores sobre a cabeça e ficar deitada na cama o dia inteiro: em todas as manhãs, ela se levantou, se vestiu, tomou café e ficou presa no trânsito durante o curto caminho até o Distrito Financeiro, onde os escritórios se encontravam.
Seu pai tinha sido ótimo.
Eles jantaram juntos todas as noites, como se já tivessem esse hábito antes...
A única coisa mais próxima de uma luz no fim do túnel era – apesar daquilo ser apenas um fósforo aceso e não uma fogueira ou coisa assim – que havia persistido na ideia de tirar umas férias. Na próxima semana ela entraria em um avião e iria até...
Grier congelou, uma sensação de cócegas em seu pescoço interrompendo a rotina de angústia.
– Daniel?
Quando não houve resposta, ela soltou um palavrão. Além de procurar por um bilhete inexistente de Isaac, ela esperava ver o fantasma de seu irmão, mas era como se os dois a tivessem abandonado na pior sem dizer adeus.
Virando-se, ela...
– Daniel! – Ela agarrou o peito. – Cristo! Onde diabos você esteve?
Pela primeira vez, seu irmão não estava vestido com suas roupas da Ralph Lauren. Ele estava com uma longa bata branca, parecendo que estava prestes a se formar na faculdade ou algo assim.
Seu sorriso era terno, mas triste.
– Oi, irmãzinha.
– Pensei que havia me abandonado. – Ela quase saiu correndo para abraçá-lo quando percebeu que não ia dar certo: como sempre, a maior parte dele era de ar. – Por que você não...
– Eu vim para dizer adeus.
– Oh. – Seus olhos se fecharam por conta própria e ela respirou fundo. – Era como se eu já esperasse por isso, acho.
Quando ela abriu os olhos novamente, ele estava bem na frente dela e tudo o que pôde pensar foi em como ele parecia bem. Tão relaxado. Tão... curiosamente sábio.
– Você está pronta para isso agora – ele disse a ela. – Você está pronta para seguir em frente.
– Estou? – Ela não tinha certeza. A ideia de não vê-lo de novo a deixou em pânico.
– Sim, você está. Além disso, não é o tipo de coisa permanente. Vai me ver de novo... Mamãe também. Vai levar muito tempo, mas você tem algo pelo que viver agora.
– Certo, tenho a mim mesma. Sem ofensa, mas eu já venho fazendo isso há trinta anos e é meio vazio.
Agora, ele sorria e sua mão brilhante pairou sobre sua barriga.
– Não exatamente.
Quando olhou para si mesma, ela se perguntou sobre o que diabos ele estava falando.
– Eu amo você – seu irmão disse. – E você vai ficar bem. Eu também quero lhe dizer que acho que estava errado.
– Sobre o que?
– Eu pensei que estava preso entre os dois mundos por que você não me deixaria ir. Mas não era isso. Eu era o único que não me permitia partir. Contudo, você vai ficar em ótimas mãos e tudo ficará bem.
– Daniel, do que você está falando...?
– Vou dizer a mamãe que você a ama. E não se preocupe. Sei que me ama também. Diga “oi” para o papai por mim se puder. Diga a ele que estou bem e já o perdoei há muito tempo. – Seu irmão ergueu sua mão fantasmagórica. – Adeus, Grier. E Daniel seria ótimo. Sabe? Se for menino.
Grier recuou quando seu irmão desapareceu no ar.
Na sua ausência, ela ficou ali, parada de maneira idiota, imaginando no que em nome de Deus ele poderia...
Seus pés começaram a se mover sem que ela os ordenasse e, uma fração de segundo depois, ela se encontrava no banheiro. Escancarando a gaveta onde guardava a maquiagem e suas...
Pílulas anticoncepcionais.
Com a mão trêmula, ela pegou o bloco de bolhas quadrado e começou a contar.
Mas não era como se ela não se lembrasse qual havia esquecido... de tomar.
A última pílula que engoliu foi na noite anterior a de Isaac entrar em sua vida. E eles tinham feito amor duas vezes... talvez duas e meia sem proteção.
Grier saiu tropeçando do banheiro e imediatamente percebeu que não tinha para onde ir. Caindo sobre os pés da cama, ela ficou lá sentada na penumbra e olhava para a embalagem enquanto a chuva começava a cair lá fora.
Grávida? Seria possível que ela estivesse... grávida? Ela estava...?
A batida foi tão silenciosa que no começo ela achou ser apenas um efeito de seu coração que batia forte, mas quando aconteceu de novo, ela olhou para a porta francesa no terraço.
Do outro lado do vidro, uma forma enorme se sobressaía e por um segundo ela quase recorreu ao sistema de segurança. Mas, então, ela viu que não era uma arma na mão do homem.
Uma rosa.
Com certeza parecia uma única rosa.
– Isaac – ela gritou.
Explodindo, ela correu para a porta e a abriu com força.
Seu soldado desaparecido estava ali agora na garoa, seu cabelo úmido, a regata preta deixava seus ombros nus sob as gotas.
– Oi – ele disse com uma voz doce. Como se estivesse inseguro com a recepção que teria.
Grier colocou as pílulas atrás de si.
– Olá...
Sua mente girou em um frenesi ao se perguntar se ele tinha vindo para conversar sobre algum problema com a limpeza dos corpos... ou ele estava ali para avisá-la de que alguém estava atrás deles? Mas, então, por que ele traria uma...?
– Não há nada de errado – ele disse, como se talvez ela tivesse pensado em voz alta. – Só estou aqui para lhe dar isso. – Ele ergueu a rosa branca meio desajeitado. – É... ah, algo que os homens fazem. Quando eles... ah...
Quando a voz pareceu abandoná-lo, Grier olhou para as pétalas perfeitas da flor e, ao respirar fundo, ela sentiu o aroma – e, então, percebeu que estava fazendo com que ele ficasse na chuva.
– Deus, onde está minha educação... entre – ela disse. – Você está se molhando.
Quando ela recuou, ele hesitou. E, então, ele colocou a rosa entre os dentes e se abaixou para desfazer o laço das botas de combate.
Grier começou a rir.
Ela não conseguia evitar e não fazia qualquer sentindo, mas não havia como segurar. Ela riu até que precisou voltar e sentar-se no colchão de novo. Ela ria de alegria, confusão e esperança. Ela ria de tudo, desde a rosa perfeita até o momento perfeito... até o timing perfeito.
Até de ele ser um perfeito cavalheiro – ao ponto de não querer sujar o tapete de seu quarto.
Seu irmão estava certo.
Ela ia ficar bem.
Seu soldado estava em casa afinal... e ela ia ficar perfeitamente bem.
Isaac entrou no quarto de Grier de meias e foi cuidadoso ao fechar a porta atrás de si. Tirando a rosa dentre os dentes, ele passou a mão no cabelo e sentiu mais uma vez a sensação de querer ter aparecido em um smoking ou coisa assim.
Mas ele simplesmente não era o tipo de cara que usava smoking.
Ele se aproximou de sua mulher e ficou de joelhos na frente dela, observando-a dar risada e sorrindo um pouco de si mesmo. Ou ela tinha perdido a cabeça ou estava feliz em vê-lo – e ele esperava com todas as forças que fosse a última opção e não se importava que fosse a primeira se ela o deixasse ficar.
Deus, ela estava linda. Com nada além de uma blusa de seda preta e um par de meias finas, era a coisa mais linda que ele já tinha visto...
Quando ela enxugou os olhos, ele percebeu que havia alguma coisa em sua mão e não era uma flor boba. Era uma embalagem cheia de... pílulas?
Foi evidente quando Grier percebeu o que ele estava olhando, pois ela parou de rir e tentou fixar a coisa nas costas.
– Espere – ele disse. – O que é isso?
Ela respirou fundo, como se estivesse se preparando.
– Por que você voltou?
– O que faz com essas pílulas?
– Você primeiro. – Seu olhar estava mortalmente sério. – Você... responde primeiro.
Bem, agora, ele se sentia como um tolo, mas, novamente, apesar de tudo se justificar no amor e na guerra, não havia lugar para o orgulho de um homem naquela confusão, havia?
– Eu vim para ficar, se você permitir. Passei a última semana... cuidando das coisas. – Não havia motivos para detalhar isso e ele ficou aliviado por ela não perguntar. – E eu tive que pensar um pouco. Eu quero entrar na legalidade. Como você disse, não se pode mudar o passado, mas posso fazer alguma coisa quanto ao futuro. Meu tempo nas operações extraoficiais... vou ter que carregar esse fardo comigo pelo resto da minha vida – mas, e sei que isso vai soar mal, sou um assassino com a consciência tranquila. Não sei se isso faz sentido...
Porém, a questão de haver uma anotação em seu dossiê “Precisa de uma motivação moral” não era apenas fachada – e aquela era a única razão pela qual ele conseguiria viver sem se entregar à prisão ou à cadeira elétrica.
Ele limpou a garganta.
– Quero ir a julgamento pelas lutas clandestinas... talvez se eu concordar em cooperar, posso conseguir uma sentença reduzida, fiança ou algo assim. E, depois, quero conseguir um emprego. Talvez na área de segurança ou...
Ele gostaria de entrar para a equipe de Jim Heron, mas com Matthias morto talvez aqueles três tivessem se separado – contudo, ele nunca saberia. Se Jim não tinha vindo procurá-lo até agora, ele nunca mais iria.
– Acho que estou grávida.
Isaac congelou. Depois, piscou os olhos.
Hum, ele pensou. Considerando o zumbido em seus ouvidos, parecia que alguém tinha atingido sua nuca com um golpe.
O que não só explicava o barulho como também a súbita tontura.
– Desculpe... O que você falou?
Ela ergueu as pílulas.
– Eu me esqueci de tomá-las. Com todo aquele drama, eu simplesmente... não fiz isso.
Isaac esperou para ver se a sensação de “certo, eu fui atingido” voltava e, como pode imaginar, sim, ela voltou com tudo.
Porém, não durou muito. Uma alegria devastadora derrotou suas hesitações e, antes que se desse conta, ele saltou sobre Grier a derrubando no colchão em um abraço de esmagar os ossos. E isso, imediatamente, o deixou apavorado.
– Oh, Deus, eu machuquei você?
– Não – ela disse, sorrindo e o beijando. – Não, estou bem.
– Tem certeza?
Ela lançou um olhar estranho e distante em direção ao dele.
– Sim, estou bem mesmo. Podemos chamá-lo de Daniel se for menino?
– Podemos chamá-lo de tudo. Daniel. Fred. Susie seria complicado, mas eu aceito.
Não havia mais nada a dizer depois disso. Ele estava muito ocupado a despindo e, então, eles ficaram nus e...
– Caramba... – Ele gemeu ao entrar nela, sentindo seu forte abraço e encantado com aquela pressão quente e escorregadia. – Desculpe... eu não quis... reclamar...
Oh, o movimento, o glorioso movimento.
Oh, o glorioso futuro.
Ele estava livre enfim. E, graças à ela, Isaac saiu da tempestade, literalmente.
– Eu amo você, Isaac – ela arfou contra sua garganta. – Mas quero mais intenso... preciso de você mais forte...
– Sim, senhora – ele rosnou. – Qualquer coisa que a moça quiser.
E, em seguida, ele começou a dar-lhe tudo o que tinha... tudo o que era e tudo o que seria.
CAPÍTULO 38
Depois que Isaac se certificou que Grier estava segura, ele tateou ao redor do quarto dela e ouviu com atenção. Quando a falta de passos, confusão, ou tiros não lhe deu informações, ele continuou a ir em direção à entrada. Outra pausa. Será que ele deveria usar a escada dos fundos? A da frente?
Frente. Era mais provável que uma infiltração ocorresse a partir do jardim dos fundos. Havia mais cobertura nessa direção.
Droga, ele esperava que fosse apenas Jim Heron, mas não achava que o cara ia aparecer assim. E o pai de Grier poderia desativar o sistema – ele já tinha provado que conseguia fazer isso. Então, era evidente que ele não tinha permitido a entrada de quem estava ali.
Maldição, se era alguém mandado por Matthias, por que a chegada não foi anunciada pelo transmissor de alerta? Por outro lado, Isaac não permitiria que entrassem ali dentro e sem dúvida eles sabiam disso: Matthias pode ter exigido que Grier e seu pai estivessem por perto, mas Isaac não estava disposto a deixar que o matassem na frente deles.
Ela nunca superaria isso.
Por favor, Deus, ele pensou. Permita que ela fique onde está.
Andando com as costas deslizando contra a parede, ele desceu as escadas, sempre com sua arma à frente. Sons... onde estavam os sons? Não havia nada, literalmente, se movendo na casa e, considerando que o pai de Grier andava como um leão enjaulado, aquele silêncio todo não era animador.
Assim que a parede terminou e o percurso sem corrimão começou, ele se balançou, se soltou e, deliberadamente, aterrissou com força como uma pedra na sala da frente.
Às vezes, o ruído era um bom direcionador, dando ao seu oponente um alvo para perseguir.
E, como pode imaginar, o “boom” dos pés de Isaac atingindo o chão atraiu o visitante: da cozinha, um homem vestido de preto entrou em sua visão.
O segundo na linha de comando de Matthias.
E ele fez do pai de Grier um escudo humano.
– Quer trocar? – o cara disse severamente.
A arma apontada para a cabeça de Childe era uma automática equipada com um silenciador. Bem, não era surpresa. Era idêntica a que havia nas mãos de Isaac.
Movendo-se lentamente, Isaac curvou-se para baixo e colocou sua arma no chão. Então, chutou para longe.
– Deixe-o ir. Venha, leve a mim.
Childe arregalou os olhos, mas se segurou. Ainda bem.
Isaac virou para a parede, colocou as mãos em cima do gesso e abriu os tornozelos em posição de uma apreensão clássica. Olhando por cima do ombro, ele disse: – Estou pronto para ir.
O segundo no comando esboçou um sorriso.
– Olhe para você, todo condescendente. Traz até uma lágrima no olhar.
Com um movimento rápido, o soldado deu um golpe no pai de Grier com a coronha da arma, o velho Childe caiu ao chão como um saco de areia. Em seguida, foi a vez do segundo no comando caminhar até Isaac, com a arma apontada para ele e com uma atitude inabalável.
Tão estranho quanto isso era o seu olhar negro e fosco.
– Vamos fazer isso logo – Isaac disse.
– Onde está sua outra arma? Eu sei que você tem outra.
– Venha pegar.
– Você quer mesmo brincar comigo?
Isaac se aproximou e pegou sua outra arma.
– Onde você a quer?
– Pergunta errada. No chão e dê um pontapé.
Quando Isaac se inclinou, o outro homem também o fez. E não mudaram de posição até que os dois se endireitassem e Isaac percebesse que sua primeira arma, a do silenciador, tinha sido apanhada por uma mão negra, enluvada.
– Então – o segundo no comando falou devagar – Matthias tem se divertido com as conversinhas que vocês dois têm levado e ele quer que eu o mantenha aqui até ele chegar. – O maldito olhar do bastardo se aproximou. – Mas eis a questão, Isaac: há coisas maiores em jogo e esta é uma situação pela qual seu chefe não é responsável.
O que era aquela coisa de “seu chefe”, Isaac pensou.
E, então, ele franziu a testa ao perceber que o braço do cara, aquele que tinha sido quebrado há menos de dois dias, parecia estar completamente curado.
E aquele sorriso estava errado... havia algo de errado com aquele sorriso também.
– As coisas vão tomar um rumo diferente – o segundo no comando disse. – Surpresa!
Com isso, ele colocou a arma de Isaac no próprio queixo e puxou o gatilho, explodindo sua cabeça por completo.
CAPÍTULO 39
Jim saiu do coma com sua nuca em chamas. Ele não fazia ideia de quanto tempo ficou apagado, mas estava claro que Ad o colocou de novo na cama: a maciez sobre sua cabeça era, definitivamente, um travesseiro e não a barra fria e dura da banheira.
Quando ele se sentou na cama, ficou chocado: sentia-se forte de uma maneira curiosa e milagrosamente estável. Era como se o tempo de descanso que teve... bem, que deve ter durado horas, supondo que estava lendo o relógio direito... tinha o reiniciado por dentro e por fora.
O que era uma boa notícia.
Contudo, a tensão no topo de sua coluna não era nada além de uma coisa: Isaac.
Isaac estava com problemas.
Balançando as pernas para fora da cama na posição vertical e as firmando no chão, não sentiu náuseas, tonturas, dores ou incômodos. Apenas o formigamento na base do crânio – ele não estava apenas pronto para ir, estava rugindo para fazer isso.
– Adrian! – ele gritou enquanto se aproximava de sua mochila e puxava um par de calças jeans.
Onde, diabos, estava o Cachorro?
Através da porta que ligava os quartos, ele pôde ver que as luzes estavam acesas do outro lado, então, o anjo tinha que estar lá.
– Adrian! – ele pronunciou o comando e puxou as calças; em seguida, pegou uma camisa.
– Nós temos que ir!
Ele pegou sua adaga de cristal e a colocou no casaco.
– Ei, Ad...
Adrian estava esparramado no quarto com o Cachorro debaixo do braço.
– Eddie está em apuros.
Bem, aquilo não fez com que a sensação de sua nuca tivesse muita melhora.
– O quê?
Adrian se desfez do Cachorro e deixou que pulasse para dizer “oi” a Jim.
– Ele não está atendendo ao telefone. Eu liguei. E liguei de novo. E liguei uma terceira vez. Nunca aconteceu.
– Droga.
Quando Ad se aprontou, Jim deu uma olhada no Cachorro e colocou um pouco de comida e, em seguida, ele e seu braço direito decolaram, literalmente. Cara, ele nunca foi tão grato por aqueles instrumentos em suas costas com os quais em um piscar de olhos estavam em qualquer lugar: apenas alguns minutos depois, eles estavam em Beacon Hill.
Ele e Adrian desembarcaram no jardim murado em uma chama brilhante e se mantiveram ocultos de olhares indiscretos, pois eram apenas quatro da tarde. A casa parecia bem por fora e o feitiço vermelho reluzente ainda estava no local, mas seu pescoço estava o matando. E onde, diabos, estava Eddie...
– Droga – ele disse cuspindo quando viu as solas das botas de combate do anjo saindo de um arbusto.
Jim bateu os pés no dele e se agachou. O cara estava deitado de costas para baixo, parecendo que tinha lutado contra um trator e perdido.
– Eddie?
O grande anjo abriu os olhos.
– Que inferno... o que... Eu não sei o que aconteceu. Em um minuto eu estava em pé. No seguinte...
– Você parece um tapete de boas vindas.
Adrian estendeu uma de suas mãos para ajudar seu melhor amigo a levantar.
– Que droga foi essa?
– Não faço ideia. – Eddie ficou em pé devagar. Então, ele olhou para Jim e se encolheu. – Jesus Cristo...
Jim franziu a testa e olhou ao redor.
– O que?
– Seu rosto...
Certo, talvez ele apenas estivesse se sentindo melhor. Com sorte, a parte da aparência ficaria boa depois.
– Está dizendo que meus dias de modelo de calendário chegaram ao fim?
– Não sabia que estava nessa. – Eddie balançou a cabeça. – Ouça, Isaac quer falar com você. O mais rápido possível.
Jim olhou para Adrian.
– Você fica com o tapete de boas vindas.
– Como se eu pudesse ir a outro lugar.
Jim correu para casa. A porta dos fundos estava aberta, o que era uma má notícia – e a porcaria só aumentou ao atravessar a cozinha.
Deus, você nunca se acostuma com o cheiro de um ferimento mortal feito à bala: havia diferentes aromas, vísceras, sangue, cérebro, mas as nuances eram todas metálicas em meio aos componentes da bala.
O primeiro corpo que ele encontrou foi de um homem do qual ele conhecia: capitão Alistair Childe. O pobre coitado estava deitado no arco que dava para o corredor da frente, contorcido no chão todo amontoado.
No entanto, não era ele a origem do sangue. Não havia nada na roupa ou no piso e Childe estava respirando regularmente apesar do cochilo forçado por um nocaute.
O corpo número dois estava na metade do caminho da porta da frente e era evidente ser a origem do cheiro... Sim, uau, se Jim se lembrava dos que já tinha visto, o bastardo era um candidato para um caixão lacrado: seu rosto estava distorcido de dentro para fora, a bala deve ter viajado por entre a carne e os ossos de seu queixo e nariz antes de fazer uma saída triunfal no topo do crânio.
Considerando a tatuagem de uma serpente no pescoço do cara, tinha que ser o segundo na linha de comando de Matthias.
E Isaac estava parado próximo ao cara com uma expressão assustada de “Mas que droga!”
Rothe levantou os olhos e as mãos desarmadas.
– Ele fez isso... a si mesmo. Droga... Como está o pai?
Jim se ajoelhou ao lado do capitão para verificar mais uma vez. Sim, Childe tinha sido atingido na cabeça, provavelmente com a coronha de uma arma, mas ele já estava começando a gemer como se estivesse recobrando a consciência.
– Ele vai ficar bem. – Jim se levantou e se dirigiu a Isaac e ao outro cara. Ao chegar mais perto, o cheiro ficou pior...
Ele começou a andar devagar e, em seguida, parou completamente. E esfregou os olhos.
Uma sombra cinza cintilante cobria o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias da cabeça aos pés, movendo-se ao redor dos braços, pernas e da cabeça estourada da mesma maneira que o feitiço de Jim se movimentava e cobria a casa em que estavam. E havia algo de errado com o sangue – cinza e não vermelho brilhante.
Devina, pensou Jim. Ou ela estava no homem ou tinha assumido o controle.
– Ele simplesmente colocou a coisa debaixo do queixo e puxou o gatilho. – Isaac ajoelhou-se sobre os quadris e acenou para a arma que estava na mão direita do cadáver.
– Ele usou minha arma para fazer isso.
– Fique longe do corpo, Isaac.
– Vá se ferrar, eu tenho que limpar isso antes que...
Jim não estava interessado em discutir e agarrou o rapaz, puxando-o para cima e fazendo com que recuasse alguns passos.
– Você não sabe o que é isso.
– Para o inferno que não sei. Ele veio para me pegar.
Jim encarou Isaac.
– A última vez que o vi você estava fugindo.
– Mudança de prioridades.
Que droga, ele é sequestrado por doze horas e o mundo vira de cabeça para baixo: Isaac se entrega, um demônio estava morto na porta de entrada de um civil, nada mais fazia sentido.
– Eu não vou deixar que volte ao trabalho, Isaac. Ou se sacrifique para manter outra pessoa viva. – Pois quanto você quer apostar que era o que estava acontecendo ali?
– A escolha não é sua. E, sem ofensa, mas eu ainda não sei por que você dá a mínima. – O soldado pegou um dos dispositivos das operações extraoficiais que estava disfarçado de transmissor de alerta. – Além disso, não adianta. Eu já me entreguei.
Aquela luz piscando fez Jim querer gritar. E foi o que ele fez.
– Mas que droga é essa que você está fazendo? Matthias vai matá-lo...
– E?
Uma voz aristocrática interrompeu.
– Eu pensei que você se apresentaria com informações sobre Matthias.
Jim olhou sobre o ombro. Alistair Childe tinha ficado em pé e estava se aproximando deles, sua mão na parede como se precisasse de ajuda para se equilibrar.
– Eu pensei que esse era o plano, Isaac. E, Jim, eu pensei que tinha morrido em Caldwell. Três ou quatro dias atrás.
Jim e Isaac passaram por cima de tudo e ignoraram qualquer regra de retórica. O que era fácil de fazer, considerando o quanto precisavam explicar.
O fato de que o segundo na linha de comando tinha entrado e se matado com a arma de Isaac era apenas a superfície da coisa. A verdade principal era que Devina estava por trás de toda a situação. Mas com que finalidade? Se Isaac era o alvo, por que diabos ela simplesmente não o tomou enquanto Jim não estava por perto?
– Ela... ele tinha um bom ângulo para atirar em você? – Jim perguntou. – Em qualquer momento?
– Você quer dizer, para matar? Claro que sim... eu estava contra a parede, com as mãos espalmadas e minhas armas no chão. Esse é um ângulo bom o suficiente para você?
– Isso não faz sentido. – Ele olhou para baixo, em direção ao corpo. – Não faz sentido.
– Temos que nos livrar do corpo – Isaac disse. – Antes que eu vá, temos que...
– Não vou permitir que se entregue.
– Não é da sua conta.
– Que droga...
– Meu pensamento era exatamente esse.
Isaac franziu a testa, os olhos dele se estreitaram ao observar a face de Jim.
– E o que diabos aconteceu com você ontem à noite?
Em uma fração de segundo, Jim realmente considerou bater sua cabeça contra a parede, só que seria redundante, dado o formato em que ele já se encontrava. Como, diabos, ele ia tirar Isaac dessa confusão?
Ele não poderia deixar tudo às claras e explicar o que realmente estava acontecendo: Bem, entenda, eu morri mesmo e Matthias não é o problema. Estou tentando mantê-lo longe de um demônio que quer sua alma. E eu não faço ideia do que ela está fazendo aqui.
Sim, isso seria um desastre total.
Isaac não esperou por uma resposta sobre o rosto de Jim. Era evidente que o cara tinha se metido em alguma briga com oitocentos seguranças ou algo assim e isso não era da sua conta. O que lhe dizia mesmo respeito era o soldado que, de alguma maneira, consertou seu braço como se fosse mágica antes de se matar.
A menos que... gêmeos?
Droga... sim. Tinha que ser. E Matthias usaria isso como um belo instrumento para ajudar a ferrar com a mente das pessoas. Não surpreende que ele tenha escolhido o filho da mãe para ser o segundo na linha de comando.
Quando Jim soltou mais um palavrão e começou a percorrer o caminho do corredor de entrada, Isaac se inclinou e desabotoou rapidamente a manga da roupa do segundo na linha de comando. Nenhum sinal de qualquer coisa no antebraço com relação a uma reparação cirúrgica, não havia evidência de pele ou osso quebrado.
Gêmeos. Tinha que ser.
Com um golpe rápido, ele rasgou a camisa preta, os botões estalaram e saltaram sobre o chão. O colete a prova de balas exposto foi uma surpresa. Sim, era uma edição padrão, mas por que se preocupar com um se a intenção é explodir o crânio feito um balão de festa?
Sem ter certeza exata do que estava procurando, ele puxou as tiras do velcro do colete.
– Mas que... porcaria... – Ele se inclinou para se certificar de que estava enxergando direito.
Por toda a pele do estômago do cara havia profundas cicatrizes que formavam um padrão e quando Jim deu uma olhada nisso e começou outra rodada de palavrões, Isaac continuou a revistar rapidamente. Celular, o qual ele colocou de lado. Carteira com cem dólares em dinheiro, não havia carteira de identidade. Munição. Nada nas botas, a não ser as meias e o solado.
Passando por cima do corpo, ele foi em direção à cozinha para pegar uma lata de lixo. Quando estava puxando a coisa para fora do armário e se perguntava quantos braços e pernas caberiam ali, ele ouviu passos atrás dele. Obviamente, sua plateia de fãs o seguiu, mas vamos lá, pessoal. Chega de conversa; eles precisam de ação. Grier estava trancada no maldito armário lá em cima e ele tinha que limpar toda aquela porcaria antes de deixá-la sair...
– Você mentiu.
Isaac congelou e girou a cabeça. Grier estava parada do outro lado da ilha de mármore, acabando de fechar a porta da adega atrás dela. Mas como diabos ela... Droga, devia ter uma escada secreta que era ligada ao porão. Ele deveria ter adivinhado que havia várias rotas de fuga.
Quando ela olhou para ele estava branca como um lenço de papel e tremia.
– Sua intenção nunca foi se apresentar. Foi?
Ele balançou a cabeça, sem saber o que dizer e bem ciente do que havia no corredor de entrada da casa dela. Aquela situação estava totalmente fora de controle.
– Grier...
– Seu bastardo. Você mentiu seu b... – De repente, ela olhou por cima dos ombros dele. – Você... – Ela apontou para Jim, que estava em pé sob o arco. – Você é quem estava no meu quarto na outra noite. Não é?
Um expressão estranha passou pelos traços de Jim, uma espécie de “agora eu me ferrei”, mas, então, ele apenas deu de ombros e olhou para Isaac.
– Não vou permitir que você se entregue.
– Essa sua música nova está me dando nos nervos – Isaac exclamou ao decidir pegar o lixo e acabar com aquela história.
Conversa fiada, quanta conversa fiada da parte de todos... e todas direcionadas a ele. Mas que seja. Surdez seletiva era algo no qual se destacava quando era criança e, como pode imaginar, a habilidade voltou a ser exercida sem um pingo de ferrugem.
Isaac se curvou embaixo da pia e rezou para que o lugar mais lógico para se colocar sacos de lixo fosse mesmo ali... bingo. Ele pegou dois deles, uma vassoura e uma pá que não iriam sobreviver a esse trabalho em particular.
Deus, ele desejava ter uma serra. Mas talvez com alguma corda, eles poderiam dobrar o bastardo e carregá-lo como uma mala malfeita.
– Fique com ela – ele disse ao pai. – E a mantenha aqui...
– Eu vi o que aconteceu. – Quando Isaac congelou, ela o encarou. – Eu o vi fazer aquilo.
Houve uma pausa longa e silenciosa, como se ela tivesse acorrentado todos os homens do local.
Ela balançou a cabeça.
– Por que você fingiu que iria adiante com isso, Isaac?
Quando ela o encarou, a confiança tinha desaparecido de seus olhos. E, no lugar, havia um olhar frio – o qual ele imaginava que as pessoas que trabalhavam em laboratórios exibiam ao observar resultados de culturas em uma placa de Petri.
Não havia o que dizer a ela, não podia negar a mudança. E talvez fosse melhor assim. De qualquer maneira, eles não tinham que estar juntos – e isso era para ser assim até mesmo antes dele mergulhar na busca de excelência profissional na área de matar pessoas.
Isaac pegou seu kit de empregada feliz e se dirigiu para a entrada.
– Eu preciso tirar o corpo de lá.
– Não fuja de mim – ela gritou.
Ele ouviu Grier vindo atrás dele como se tivesse a intenção de gritar um pouco mais, então, ele parou e girou sobre os calcanhares ao chegar ao arco. Quando ela estacou para não passar por cima dele, Isaac olhou bem dentro de seus olhos.
– Fique aqui. Você não quer ver...
– Vá se ferrar! – Ela o empurrou, marchando até... – Oh... Deus... – Ela sufocou a palavra, sua mão subiu até a boca.
Bingo, ele pensou sombriamente.
Felizmente, o pai dela estava ali, aproximou-se e a direcionou gentilmente para longe daquela visão.
Amaldiçoando a si mesmo e tudo relacionado à sua vida, Isaac continuou até a entrada, mais determinado do que nunca a cuidar do problema... só que seu senso de urgência deu um tempo quando chegou ao corpo.
Um celular estava na mão do cadáver e a coisa estava enviando uma mensagem; a pequena tela no telefone estava brilhando com a imagem de um envelope entrando em uma caixa de correio várias vezes.
Certo. Hora de retomar alguns conceitos aqui: gente que não tinha o lobo frontal geralmente não pegava o celular e discava alguma coisa nele.
Um pequeno aviso brilhante apareceu indicando sucesso.
– Isaac, você vai precisar de mais do que uma pá para lidar com isso.
Ao som da voz de Jim, ele olhou sobre o ombro. E teve que piscar algumas vezes. O homem estava parado na parte escura do corredor, bem longe da luz, que passava pelos arcos, vinda da sala de estudos e da biblioteca... mas ele estava iluminado, havia um brilho em torno dele da cabeça aos pés.
O coração de Isaac deu altos pulos na caixa torácica. Então, pareceu tomar um pouco de fôlego.
Muitas vezes, ele esteve no campo, em meio a uma missão e as coisas não deram certo: você acha que sabe os hábitos e recursos de seu alvo, os pontos fracos e fortes, mas quando está prestes a atacá-lo, a paisagem muda como se alguém tivesse jogado uma bomba no meio da praça do seu plano perfeito. Era o mau funcionamento de uma arma. Uma testemunha em potencial que fazia com que perdesse a hora certa. O alvo pisando fora da faixa indicada.
O que você tinha que fazer era recalcular rapidamente a situação e Isaac sempre foi excelente nisso.
Que inferno, aquele jogo de videogame o treinou de maneira involuntária a abrir totalmente sua mentalidade para agir rápido.
Mas aquela porcaria estava fora de sua especialidade. Bem fora.
E isso foi antes de Jim empunhar uma longa adaga... que era feita de cristal.
– Você vai deixar com que eu cuide disso agora. Afaste-se do corpo, Isaac.
CAPÍTULO 40
Matthias passou muito tempo dentro daquela igreja de pedra. E, quando finalmente ele se esforçou para sair, concluiu que tinha permanecido lá uma hora ou mais, mas no instante em que olhou para a posição do sol no céu, percebeu que tinha perdido toda a manhã e a maior parte da tarde.
Ainda assim, ele teria ficado mais se pudesse.
Ele não era um homem religioso, mas havia encontrado uma paz chocante e rara debaixo daquelas galerias de vitrais e diante do altar glorioso. Mesmo agora, quando sua mente lhe dizia que aquilo era tudo besteira, que o lugar era apenas um edifício e que ele estava tão cansado que poderia dormir até numa montanha russa da Disney – apesar de tudo isso, seu coração se sentia melhor.
A dor havia cessado. Logo depois que ele se sentou, a dor em seu braço e peito esquerdo tinha desaparecido.
– Tanto faz – ele disse em voz alta ao chegar ao carro. – Tanto faz, tanto faz...
Voltar ao jogo era algo pelo qual ele se sentia compelido a agir e havia uma picada agradável com relação a isso, como se estivesse arrancando a casca de uma ferida. De alguma maneira, ele estava cativado pelo que tinha encontrado na igreja, mas seu trabalho, seus atos, seu modo de vida formavam um turbilhão que o sugava e o mantinha assim e ele, simplesmente, não tinha energia suficiente para lutar contra isso.
E depois... talvez houvesse um meio termo, ele pensou, quando fosse tratar de Isaac Rothe. Talvez ele pudesse fazer com que o rapaz continuasse a trabalhar em uma área diferente. Era evidente que o soldado tinha respondido bem às ameaças contra Grier Childe – o que poderia ser o suficiente para mantê-lo na linha.
Ou... ele poderia deixar o cara ir.
No instante em que o pensamento cruzou sua mente, algo dentro dele o atingiu como se aquilo fosse uma grande blasfêmia.
Irritado consigo mesmo e com a situação, ele ligou o motor e verificou o telefone. Nada vindo de seu segundo na linha de comando. Onde diabos estava o bastardo?
Ele enviou uma mensagem de texto exigindo uma atualização e dando seu tempo estimado de chegada, o que, naquele momento, seria depois do anoitecer. Para o inferno com a história de fora do estado. Era melhor que o filho da mãe estivesse com Isaac Rothe amarrado a uma cadeira antes de Matthias arregaçar as mangas – e Deus o ajudasse se tivesse matado Rothe.
Quando a impaciência contorceu suas mãos sobre o volante, Matthias saiu da calçada e pegou a estrada graças à tela do GPS no painel. Ele tinha seguido menos de um quilômetro antes da dor sob seu peito voltar, mas era como vestir uma roupa com a qual ele já estava acostumado depois de experimentar os trajes de outra pessoa: fácil e confortável de uma maneira maldita.
Seu telefone disparou. Mensagem de foto. Do seu segundo na linha de comando.
Quando ele aceitou, ficou aliviado. Uma confirmação visual de que Isaac estava vivo e sob custódia era uma coisa boa...
Não era uma imagem de Isaac. Eram os restos do rosto de seu subordinado. E aquela tatuagem de cobra que percorria a garganta do homem era a única maneira de ter certeza que era ele.
Abaixo da imagem dizia: Venha me pegar – I.
O primeiro e único pensamento de Matthias foi... mas que droga. Que filho da mãe maldito. Que diabos Rothe estava pensando? Que droga, se as ameaças contra sua querida, doce e encantadora Grier Childe não funcionaram, Isaac era totalmente incontrolável e, portanto, ele tinha que ser sacrificado.
Uma fúria cruel fez com que abandonasse os últimos resquícios remanescentes de seu tempo na igreja, uma fonte de vingança emanava e rugia. Quando essa sensação o atingiu, no fundo de sua mente, ele teve uma ideia concluindo que aquele não era ele, que a precisão fria e cortante de pensamento e ação que sempre foram sua marca registrada o teriam impedido de provocar aquele pico de destruição. Contudo, ele era incapaz de se afastar da necessidade de agir – e agir de maneira pessoal.
Chega de mandar outros fazerem o trabalho sujo... havia inúmeros agentes que poderia ter convocado, mas ele ia cuidar disso sozinho.
Da mesma maneira que teve que ver o corpo de Jim Heron com seus próprios olhos, ele iria até lá e acabaria com Rothe sozinho.
O homem tinha que morrer.
CAPÍTULO 41
Quando Grier se sentou no sofá no canto da cozinha, ela se lembrou de sua escolha pelo direito ao invés da medicina e soube que tinha tomado a decisão certa: ela nunca teria estômago para ser médica.
Suas notas e aproveitamento a permitiriam entrar em qualquer uma das graduações, mas o fator decisivo foi Anatomia Humana, que já ministravam no primeiro ano de faculdade: um olhar naqueles corpos durante sua excursão de pré-admissão e ela teve que colocar a cabeça entre os joelhos e tentar respirar como se estivesse em uma aula de ioga.
E, como pode imaginar, o fato de que havia alguém em uma condição ainda mais desagradável à frente era muito pior.
Surpresa, surpresa.
Outro choque para o momento – não que ela precisasse de um – foi a mão de seu pai fazendo círculos calmos e lentos em suas costas. As vezes em que ele tinha feito alguma coisa assim foram poucas e há muito tempo, isso porque ele não era o tipo de homem que lidava bem em mostrar suas emoções. E, ainda assim, quando ela realmente precisava disso, ele sempre estava lá: na morte de sua mãe. Na de Daniel. No terrível término de relacionamento com o cara com quem ela quase se casou logo depois que saiu da faculdade de direito.
Aquele era o pai que ela conhecia e a quem amou durante toda sua vida. Apesar das sombras que o cercavam.
– Obrigada – ela disse sem olhar para ele.
Ele clareou a garganta.
– Eu não acredito que mereço esse agradecimento. Tudo o que está acontecendo é por minha causa.
Ela não podia discutir isso, mas não tinha forças para condená-lo, especialmente considerando a terrível dor expressa em sua voz.
Agora que sua raiva tinha passado, ela percebeu que sua consciência iria assombrá-lo até o dia de sua morte e essa era a punição que ele merecia e que iria carregar. Além disso, ele já teve que enterrar uma criança, um filho imperfeito a quem ele tinha amado do seu jeito e que tinha perdido de uma maneira horrível. E, embora Grier pudesse passar o resto de seus dias se afastando dele e o odiando pela morte de Daniel... ela estava mesmo disposta a carregar esse fardo?
Ela pensou no corpo no corredor da frente e como a vida poderia ser arrebatada no intervalo de uma respiração e outra.
Não, ela decidiu. Ela não ia permitir que a mágoa e a raiva que sentia a afastasse do que restava de sua família. Levaria tempo, mas ela e seu pai iriam reconstruir seu relacionamento.
Pelo menos essa era uma coisa verdadeira e certa que Isaac havia dito.
– Não podemos chamar a polícia, podemos? – ela disse. Pois com certeza alguém que aparecesse ali em um uniforme seria caçado também.
– Isaac e Jim vão cuidar do corpo. É isso o que eles fazem.
Grier estremeceu com a ideia.
– Será que ninguém vai sentir falta dele? Qualquer pessoa?
– Ele não existe. Não de verdade. Qualquer família que ele tenha pensa que está morto... Esse é o requisito para os homens que entram nessa área das operações extraoficiais.
Deus, moralmente, ela tinha uns doze problemas com relação à morte. Mas ela não ia colocar sua vida em risco pelo cara que tinha sido enviado para matar Isaac e talvez matar a ela também.
Só que... bem, aparentemente, ele tinha cometido suicídio com testemunhas.
– O que vamos fazer? – ela disse, falando alto e sem esperar uma resposta.
E aquele nós na frase se referia a ela e seu pai. O nós não incluía Isaac.
Ele mentiu. Na cara dela. De fato, ele teve contato com aquelas pessoas terríveis – e, por algum tempo, ela pensou que tinham um plano. É claro que ele não ia trair seu pai, mas era apenas uma medida de prevenção, pois era evidente que tinha decidido se entregar – ou pelo menos era o que parecia. Um homem como ele, que lutava como ele e ficava à vontade com armas? Era muito mais provável que decidisse matar quem estivesse o levando em custódia e fugir do país livre, leve e solto.
Tudo bem. Ela permitiria que ele partisse.
Ele não era nada além de atração sexual embalada em uma caixa com uma bomba-relógio – e aquele som era o cronômetro da bomba que havia em todas as pessoas atraentes. E aquela coisa de “eu te amo”? A questão com os mentirosos é que você acredita em qualquer coisa que eles dizem por sua conta e risco – e não só nas coisas que você sabe serem falsas. Ela não tinha certeza de qual era a pegadinha a respeito daquela “confissão”, mas ela sabia agora que aquilo tudo não passava de fumaça.
Grier havia se decidido, estava cansada demais para qualquer coisa além da dormência. Bem, dormência e a sensação de ser uma idiota. Mas, vamos lá, como se aquela “rara combinação” de brutalidade e gentileza realmente existisse.
– Espere aqui – seu pai disse.
Quando ele se levantou, ela percebeu dois homens grandes entrando na cozinha. Os dois seguiam os mesmos moldes de Isaac e definitivamente não estavam mortos assim como Jim Heron – e a visão deles era ainda outro lembrete do que estava acontecendo no corredor da frente.
Contudo, ela precisava de ajuda para se lembrar disso?
– Somos amigos de Jim – o homem com uma trança disse.
– Aqui – Heron gritou pela passagem do corredor.
Quando os dois saíram com seu pai em direção ao corpo, ela ficou irritada consigo mesma e tentou tomar uma atitude mental madura. Quando se levantou, sua cabeça girou, mas aquela sensação rodopiante retrocedeu enquanto ela ia até a cafeteira e começava os movimentos para fazer um pouco de café fresco.
Filtro. Ok.
Água. Ok.
Pó de café. Ok.
Botão ligar. Ok.
A normalidade daquele ato a fazia se recompor um pouco mais, e quando o café ficou pronto, Grier estava preparada para lidar com a situação.
Algo bom também. Era hora de pensar no futuro... no que estava além daquela noite feia e daqueles angustiantes últimos três dias.
Infelizmente, sua mente era como um espectador de um acidente de carro, demorando-se em torno dos destroços retorcidos e dos corpos no chão, presa nas memórias dela e de Isaac juntos. Contudo, em dado momento, ela interrompeu aquele foco doentio, seu lado racional atuava como um tira e forçava seus pensamentos a se moverem, a seguir em frente agora.
A questão era que Isaac tinha entrado em sua vida por uma boa razão: graças a ele, ela finalmente tinha aprendido a lição que a morte de Daniel tinha para lhe ensinar. Moral da história? Por mais que você quisesse que alguém mudasse e acreditasse que essa pessoa poderia mudar, cada um tem o controle sobre sua própria vida. Não você. E você poderia atirar-se contra a parede de suas escolhas até que estivesse cheio de hematomas e tonto demais, mas a menos que decidisse tomar um rumo diferente, o resultado não será aquele que você deseja.
Aquela percepção não ia impedi-la de ajudar pessoas na cadeia ou assumir casos voluntariamente. Mas era hora de colocar alguns limites no quanto ela tinha que se doar... e o quão longe ela estava disposta a ir. Em todas as suas atitudes exageradas de boa samaritana, ela tentava ressuscitar Daniel – mesmo sabendo que conversar com seu fantasma deveria ser a primeira dica de que ele não iria voltar. No entanto, ao descobrir a verdade sobre o que tinha acontecido com ele e na tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio para si, talvez ela pudesse finalmente deixá-lo descansar e seguir em frente.
Tomando outro gole em sua caneca, ela sentiu um pouco de paz apesar das circunstâncias bizarras...
Neste momento, outro disparo se ouviu vindo da parte da frente da casa.
No corredor, Jim tinha acabado de se aproximar do corpo com a adaga de cristal quando sentiu a presença de Eddie e Adrian na cozinha. Deus, o momento para a entrada deles era perfeito. Ele estava preparado para agir por conta própria, mas ter cobertura nunca foi uma má ideia.
– Estou aqui – ele gritou.
Os dois vieram direto e nenhum parecia surpreso com o que estava no chão.
– Oh, cara, Devina tomou conta desse aí – Ad murmurou ao caminhar até os restos.
– O que diabos você está fazendo com essa adaga? – Isaac perguntou.
Bem, na verdade, ele ia fazer um rápido exorcismo. Essa era a única maneira de ter certeza que Devina estava fora...
A primeira pista de que o cadáver estava reanimando foi uma contração nas mãos. Em seguida, rapidamente, aquele pedaço de carne se ergueu do chão e conseguiu focar um globo ocular que parecia estar funcionando.
E não é que isso o fez se lembrar de Matthias?
Isaac soltou um grito e disparou sua arma, mas foi como atirar um elástico com força em um touro enraivecido.
Jim empurrou o soldado para fora do caminho e atacou dando um bote, seu corpo arremessou o zumbi contra a parede. No momento em que o impacto foi feito, a imagem do rosto de Devina sobrepôs os traços dizimados do homem cujo corpo ela tinha assumido o controle, a reconfiguração metamórfica das características sorria de satisfação para ele.
Como se ela já tivesse vencido.
Jim atacou com a faca em um golpe rápido e poderoso, a adaga de cristal penetrou entre os olhos corpóreos e também os metafísicos.
Um som estridente explodiu do zumbi e uma haste de fumaça negra subiu em um fedor vil, a névoa escura se fundiu e, em seguida, fez um caminho rápido para a porta da frente. No último segundo, a coisa brilhou sob os painéis da frente, como se tivesse sido sugada do outro lado – e na sua ausência, o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias caiu no chão como o saco de ossos que era, a fonte de sua animação não sustentava mais os limites de sua carne.
– Agora está morto mesmo – disse Jim ao respirar com dificuldade.
No silêncio chocante que se seguiu, ele olhou para Isaac por cima do ombro. Os olhos do cara dariam uma grana no quesito diâmetro se fossem pneus de caminhão e havia água escorrendo deles. Adrian e Eddie esvaziaram os canos da arma de cristal sobre sua cabeça para protegê-lo.
Bom lance. Só que... o demônio nem sequer tentou se aproximar do soldado. Ele decolou na direção oposta.
Os circuitos mentais de Jim lembravam a loucura de Las Vegas, seus instintos gritavam que aquilo estava errado. Muito errado. Segunda chance de pegar Isaac... e Devina deixou passar. De novo.
Por que ela...
Como uma cortina sendo arrancada de uma janela, a paisagem do jogo de repente ficou clara e abalou seu âmago. Mas que droga...
Perdendo de maneira abrupta o equilíbrio, ele estendeu sua mão e segurou-se na parede.
– Não é você – ele disse a Rothe sombriamente. – Oh, Deus nos ajude, não é você.
Quando Grier Childe surgiu no arco, vinda da cozinha, Isaac falou.
– Estamos bem. Todo mundo está bem.
O que era verdade até certo ponto. Claro, Devina aparentemente desapareceu seguindo e estilo “Elvis não morreu” e deixou o prédio. E, sim, ninguém no grupo brilhava com uma sombra profana e o pescoço de Jim não gritava mais “Oh, meu Deus!”. Mas eles estavam longe de se sentirem ótimos.
A questão urgente agora era... quem aquele demônio estava procurando? Por qual alma eles estavam lutando?
O celular, Jim pensou.
Quando todas as pessoas começaram a falar e o ar se encheu com suas vozes, ele colocou o ruído de lado e se agachou sobre os quadris. Do lado do corpo, agora duas vezes morto, ele pegou o telefone do chão e acessou a caixa de mensagens enviadas.
Ele reconheceu imediatamente o último número que tinha sido discado.
Matthias teve acesso à imagem.
A clareza fria que sobreveio a Jim trouxe a ele uma espécie de terror: ele estava tentando salvar o alvo... quando, o tempo todo, ele deveria ter focado o atirador.
CAPÍTULO 42
Reflexo, não reflexão.
Era nesse ponto em que Isaac se encontrava ao ficar em pé no corredor de Grier com algum tipo de solução escorrendo pelo seu nariz e queixo.
Seu cérebro poderia passar uma ou duas décadas tentando descobrir o que ele tinha acabado de ver, mas isso requeria um tempo que ele não tinha. Por mais que ele não entendesse – e aquele buraco negro era do tamanho de um estádio de futebol – ele ia ter que confiar no que seus olhos mostraram e deixar por isso mesmo: ele tinha visto um homem morto se levantar; ele atirou no bastardo e a única coisa que conseguiu derrubar de novo o cadáver foi algum tipo de faca de cristal ou vidro. Em seguida, alguma coisa deixou o corpo e escapou por baixo da porta da frente.
Era o tipo de coisa que acontecia no sKillerz, quando se passava para o mundo paranormal do jogo. Com um toque no controle, as regras normais iam para o ralo e você entrava em um universo alternativo onde as pessoas poderiam desaparecer na sua frente, vampiros viviam nas sombras e homens pálidos vinham atrás de você ao invés de seres humanos.
Claro, aquilo era uma brincadeira a qual você poderia desligar – e não havia um botão de pausa nessa situação. Razão pela qual ele ia gastar muita energia para entender tudo isso. Sim, claro, talvez depois que isso estivesse terminado ele pudesse perguntar a Jim o que diabos tinha acontecido... mas isso apenas se houvesse um “depois”.
Da maneira como as coisas estavam indo, algumas pessoas paradas naquela entrada poderiam muito bem ser direcionadas para uma “outra vida”.
– Para onde foi aquilo? – ele perguntou a Jim. – Não aquela coisa preta, a imagem.
Quando Jim olhou o celular, a voz do segundo na linha de comando lhe veio à mente: Matthias não está no comando. Então, isso significava que algum outro cabeça estava planejando um determinado resultado ao acionar as alavancas e roldanas dos vários fantoches em cena.
– Quem? – ele repetiu.
– Matthias recebeu – disse Heron, levantando-se.
– Matthias é... um daqueles? – Quando Isaac apontou o cadáver detonado, ele pensou que era ótimo estar em uma situação onde não havia termos para descrever nada.
– Não era quando o vi ontem à noite.
Bem, talvez isso explicasse por que o rosto do cara tinha sido usado como um saco de pancadas. E, sim, se os dois sobreviveram a isso, Jim tinha algumas explicações a dar.
– Você é um deles? – Isaac perguntou.
O tema do jogo de perguntas e respostas estava sugerido quando Jim olhou para seus dois colegas, depois para Grier e seu pai.
– De certa maneira, sim. Mas estamos do outro lado.
Isaac balançou a cabeça e deixou tudo isso para mais tarde. O mais importante agora era o caminho que estavam tomando por uma série de acontecimentos.
– Matthias tem essa imagem e ele vai pensar que eu matei... o cara... isso... tanto faz.
Etapa dois da extrapolação? Matthias viria mesmo atrás dele para matá-lo agora.
– Para quem você está ligando? – ele perguntou quando Jim colocou aquele telefone no ouvido como se estivesse fazendo uma ligação.
O cara pronunciou, Matthias... e, então, a próxima coisa que saiu de sua boca foi uma maldição.
– Maldito correio de voz.
E os outros continuaram falando. Isaac puxou Heron de lado.
– “Não sou eu.” Diga-me o que isso quer dizer.
– Não temos tempo...
– Temos um minuto e meio. Eu garanto.
– E isso não vai esclarecer nada, afinal. – Os olhos entediados de Jim encontraram os de Isaac. – Você se lembra do que eu disse quando o vi pela primeira vez? Que não ia deixar que nada acontecesse com você? Era verdade. Mas eu tenho que ir.
Isaac apertou o braço do cara, o mantendo no lugar.
– Onde?
Jim olhou seus dois colegas.
– Eu tenho que ir até Matthias. Acho que ela está atrás dele.
Quem era ela, Isaac se perguntou. E então ele se deu conta.
– Então, você não tem que ir a lugar algum. Quer vê-lo? – Ele puxou o transmissor de alerta e o deixou oscilar em sua corrente enquanto apontava para o próprio peito. – Tem sua isca bem aqui.
No final, a mala que Grier tinha feito acabou sendo necessária.
Ela iria com seu pai ficar em Lincoln por alguns dias – Isaac e Jim iam ficar para trás na casa dela para enfrentar aquele homem, Matthias. Apesar de ser estranho dispor a casa de sua família para estranhos, a realidade era que o local oferecia saídas que facilitariam as coisas para os dois homens.
E independentemente do que pensava sobre eles, ela não tomaria partido de suas mortes se pudesse fazer alguma coisa sobre isso.
Tragicamente, não havia mais o que falar sobre o que estava por vir e seu pai havia suspendido seus contatos. Isaac não ia dizer uma palavra sobre nada e seu pai não sabia o suficiente para promover um dano concreto – assim, os riscos, contrapostos aos possíveis benefícios, simplesmente não justificavam.
O que tinha acabado com os planos. Mas esse era o mundo real.
Olhando para sua mala, ela decidiu que deixar o local tinha muitos benefícios. Ela não queria estar por perto durante a remoção daquele corpo – não havia necessidade de ver isso em um dia bom, muito menos com as coisas se encaminhando daquela maneira. Além disso, ela simplesmente precisava de um tempo. Quando as coisas com Isaac começaram, aquilo já era tão familiar, toda aquela exaustão, os eventos e crises contraditórias. Mas ela estava cansada... e determinada a manter sua nova convicção: tempo para sair, se afastar, deixar para trás.
Então, ela estava indo para Lincoln com um coração pesado, mas os olhos estavam bem abertos.
Pegando a segunda temporada do Three’s Company da estante, ela destrancou a mala para colocá-la dentro...
Grier enrijeceu e se preparou.
Dessa vez, pela primeira vez, ela sabia que Isaac estava em pé na soleira da porta de seu quarto, embora não tivesse batido.
Olhando por cima do ombro, ela viu que seu cabelo estava revolvido por causa daquela solução que tinham derramado sobre sua cabeça e seu olhar estava tão intenso como nunca.
– Vim para dizer adeus – ele murmurou baixinho, aquele delicioso sotaque sulista percorria as palavras de uma maneira profunda. – E para dizer que sinto muito por ter mentido para você.
Quando ele deu um passo dentro do quarto, ela se voltou para a mala, deslizando o DVD para dentro e fechando a tampa.
– Sente muito?
– Sim.
Ela produziu um clique nas duas trancas ao encaixá-las.
– Sabe, a parte que eu não entendo é por que você se importa. Se você nunca teve a intenção de ir adiante com isso, por que conversou com meu pai? Ou por que fez isso chegar até ele? Para descobrir o quanto ele sabe e, então, avisar seus amigos? – Quando ele não respondeu, ela se virou. – Seria isso?
Seus olhos percorreram seu rosto como se estivesse memorizando.
– Eu tinha outra razão.
– Espero que seja boa o suficiente para arruinar a confiança que eu tinha em você.
Isaac assentiu devagar.
– Sim. Ela é.
Bem, aquilo não a fez se sentir menos usada.
Grier pegou sua mala de mão e ergueu a coisa da cama.
– E você acabou fazendo isso de novo.
– Fazendo o que?
– Ativou o maldito transmissor de alerta. Chamou aquele pesadelo do Matthias. – Ela franziu a testa. – Eu acho que você tem vontade de morrer. Ou algum outro plano que eu não consigo adivinhar. Mas, de qualquer maneira, não é da minha conta.
Olhando para o rosto belo e rígido ela pensou, Deus, isso dói.
– Enfim, boa sorte – disse ela, perguntando-se se no final da noite ele estaria nas condições daquele outro agente.
– É verdade aquilo que eu disse, Grier. Na cozinha.
– Difícil dizer o que é real e o que é mentira, não é mesmo?
Seu coração estava partido, apesar de não fazer qualquer sentido e, em face da dor, tudo o que ela queria era fugir do homem que estava parado tão quieto e poderoso do outro lado do quarto.
Na verdade, do outro lado de sua vida.
– Adeus, Isaac Rothe – murmurou ela, caminhando para a porta.
– Espere.
Por um breve momento, um tipo de esperança estranha e desastrosa alçou voo em seu peito. No entanto, a chama não durou. Era feita de fantasias e emoções fantásticas.
Contudo, ela deixou que ele se aproximasse enquanto estendia alguma coisa para ela.
– Jim pediu que lhe desse isso.
Grier pegou o que havia em sua mão. Era um anel – não, um piercing, um pequeno círculo de prata escuro com uma bola na qual a extremidade estava rosqueada. Ela franziu a testa enquanto olhava para a inscrição minúscula que percorria o interior. Era um idioma do qual ela não estava familiarizada, mas reconheceu o carimbo onde se lia PT950. O aro era feito de platina.
– Na verdade, é de Adrian – Isaac murmurou. – Eles estão dando isso a você e querem que o use.
– Por quê?
– Para mantê-la em segurança. Foi o que disseram.
Era difícil de imaginar o que a coisa poderia fazer por ela, mas servia em seu dedo indicador e quando Isaac respirou fundo, aliviado, isso a deixou um pouco surpresa.
– É apenas um anel – ela disse suavemente.
– Não tenho certeza se alguma coisa pode ser considerada como “apenas” neste momento.
Ela não podia discordar.
– Como você vai tirar aquele corpo de lá?
– Removendo.
– Bem, isso é com você. – Ela deu uma última olhada para ele. A ideia de que ele poderia ser morto em questão de horas era inevitável. E assim era a realidade de que, provavelmente, ela não saberia o que ia acontecer com ele. Ou para onde iria se sobrevivesse. Ou se ele dormiria em uma cama segura de novo.
Sentindo-se escorregar, ela caminhou até a mala, acenou para ele e saiu, deixando-o para trás.
Não havia outra escolha.
Ela tinha que cuidar de si mesma.
CAPÍTULO 43
A escolha tinha que ser resultado do livre-arbítrio.
Esse era o problema com essa coisa da disputa: a alma em questão tinha de escolher o seu caminho segundo sua própria vontade quando chegasse à encruzilhada.
Quando Devina saiu de sua suíte no hotel, ela pensou sobre o quanto odiava aquela besteira de livre-arbítrio. Era muito mais eficiente para ela tomar posse e dirigir o ônibus, por assim dizer. No entanto, de acordo com as regras, o Criador limitou o impacto que ela era autorizada a produzir.
Jim Heron era o único que poderia lidar com as almas... o único que poderia, de alguma maneira, tentar influenciar as escolhas.
Dane-se Jim Heron.
Dane-se aquele bastardo.
E também se dane o Criador nessa questão.
Ela puxou uma toalha da haste de bronze e secou o corpo da bela morena, pensando o tempo todo que aquela era uma morada muito melhor do que aquele soldado com tatuagem de cobra. Mas ela não tinha tempo para fazer o retorno adequado àquela carne. A rodada final com a alma atual em jogo não estava apenas se aproximando – estava acontecendo.
Hora de acertar as contas do jogo e vencê-lo.
Depois de desocupar a pele familiar do segundo na linha de comando de Matthias, ela se esvaiu no ar e livrou-se daquela casa de tijolos. O seu lado rancoroso queria estacionar dentro daquela advogada ou no pai dela – apenas por diversão, pelas risadas e pelo drama que isso causaria. Mas da forma como as coisas estavam, ela não achou que fosse uma boa ideia: tudo estava tão perfeitamente organizado, as predileções dos jogadores e as inclinações de como agiriam já garantidas.
Era o equivalente a uma roupa de corte perfeito.
E ela precisava ganhar essa por razões que iam além do jogo: Devina queria dar o troco pelo desempenho de Jim Heron em seus aposentos privados. E não aquele com seus subordinados, mas de quando estavam os dois sozinhos.
Ela estava totalmente despreparada para seu ataque. Ou foi o fato de que ele estava muito mais determinado do que apenas um anjo. Adrian e Eddie não poderiam ter feito nada parecido. Ela não conhecia ninguém que pudesse.
Aquilo não fazia sentido – Jim Heron foi escolhido para um papel definido e deveria ser um lacaio nem bom, nem mau. De fato, as duas partes concordaram com ele, pois cada equipe pensava que ele iria influenciar as coisas de acordo com seus valores e receber dicas de acordo com uma quantidade determinada de “treinamento”.
Que grande besteira aquilo tinha se tornado.
Aquela primeira alma que eles disputaram? Jim tinha feito todo o possível para empurrar o homem para o bem – provando que a confiança que Devina depositou nele tinha sido equivocada. Aquele filho da mãe era um salvador na pele de pecador, não era um dos dela. E foi por isso que ela se envolveu ainda mais a partir de então; não havia ninguém em campo representando seus interesses e manipular a situação era crucial se ela quisesse prevalecer em algum desses ciclos.
Se ela não refinasse as coisas, ia perder de quatro a zero.
E foi por isso que ela levou Jim até às profundezas de seu reino quando foi possível. Ela precisava afastá-lo de Matthias – qualquer contato entre os dois era uma má ideia.
Mas pelo menos a sua escolha pela alma parecia ter sido correta. Ela vinha cuidando do líder das operações extraoficiais nos últimos dois anos até agora, ele simplesmente a pertencia – então, quando Nigel e ela trataram sobre o próximo indivíduo que seria colocado no jogo seguinte, ela escolheu Martin O’Shay Thomas, também conhecido como Matthias.
Na próxima rodada, a escolha volta a ser de Nigel e, sem dúvida, ele vai escolher alguém bem mais difícil para ela.
Matthias... oh, querido e corrupto Matthias. Um último ato imoral e ele seria dela por toda a eternidade – assim como sua primeira vitória.
Tudo o que ele tinha que fazer era tirar a vida de Isaac Rothe e ding-ding-ding! Ela poderia fazer a volta da vitória bem diante do nariz de Jim Heron.
Contudo, considerando o que Heron tinha feito a ela, temia que ele não fosse apenas um zagueiro nesse jogo, mas um outro tipo de entidade. E esse era outro motivo pelo qual ela não tinha se detido em Beacon Hill. A negociação entre os dois lá embaixo drenou suas energias e ela não estava forte o suficiente para enfrentar um confronto direto com Jim tão cedo.
Especialmente tendo em conta que subestimar os poderes de seu inimigo foi claramente um erro.
Envolvendo-se na toalha, ela olhou o balcão de mármore em volta da pia. Parte da tarefa que sua terapeuta lhe deu duas semanas antes era se livrar de toda sua coleção de maquiagem e ela concordou, jogando fora inúmeros pós compactos, batons e sombras.
Agora, ao observar os espaços vazios, ela entrou em pânico com a falta de possessões. Uma bolsa com essas coisas era tudo o que sobrou. Era isso.
Com mãos desastradas, ela pegou a pequena sacola e a inclinou para baixo, tubos, quadrados e potes pretos se espalharam por todo o lugar. Respirando pela boca, ela começou a organizar dúzias ou mais de recipientes, organizando-os por tamanho e forma, não adiantou.
Não era o suficiente. Ela precisava de mais...
No fundo de sua mente, Devina sabia que estava em um espiral, mas ela não poderia se ajudar com isso. A constatação de que Jim era muito mais formidável do que ela pensava... e que estava correndo um perigo muito maior do que imaginava... fazia dela uma escrava de suas fraquezas internas.
Sua terapeuta afirmou que a compra de mais porcarias ou a aquisição de mais bugigangas ou ordenar e reordenar a colocação dos objetos não ia resolver nada. Mas com certeza aquilo a fazia se sentir melhor por um curto período de tempo...
No final, ela teve que se arrastar para fora do banheiro. O tempo estava passando e ela tinha que se certificar se todos os pequenos dominós que ela organizou estavam na posição certa e adequada.
Para acalmar sua obsessão, ela repetiu o que a terapeuta havia lhe dito há três dias: Não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo. É o espaço que você declarou como sendo seu emocional e espiritualmente.
Seja como for. Ela tinha trabalho a fazer.
E outro traje de pele para revesti-la.
CAPÍTULO 44
Depois que os Childes saíram em seus carros, com Eddie e Adrian indo sorrateiramente em seus calcanhares, Jim e Isaac ficaram nos fundos da casa das mil passagens secretas – as quais Jim conhecia todas, graças ao capitão Childe.
Após as partidas, a casa ficou escura, por dentro e por fora, e ele e Isaac permaneceram em pé, preparados.
Eram os velhos tempos de volta, Jim pensou.
Especialmente ao colocar seu telefone no ouvido e esperar que Matthias atendesse a ligação. Contudo... Se estivesse de volta no tempo, o bastardo atenderia o maldito telefone.
Neste momento, ele estava desesperado para encontrar o cara antes que ele chegasse com tudo...
A voz de seu ex-chefe ressoou em seu ouvido.
– Isaac.
– Não. – Jim falou com cuidado, porque só Deus sabia que havia pontas soltas por todo o lugar. – Não é Isaac.
Houve um momento de pausa, que foi preenchido por um zumbido sutil ao fundo. Carro? Avião? Difícil ter certeza, mas provavelmente um carro.
– Jim? É você? – A voz era robótica, totalmente sem vida. Claro, até mesmo um “oi, tudo bem” vindo dos mortos não era suficiente para abalar o cara, mas parecia não ser o caso do cérebro do líder estar sereno. Parecia mais que o homem estava anestesiado.
Jim escolheu cuidadosamente as palavras.
– Estou mais interessado em como você está. Isso e também gostaria de conversar sobre a imagem que recebeu.
– Você quer? Bem, eu tinha outras coisas em mente... como, por exemplo, você estar me ligando. Você está morto.
– Não exatamente.
– Engraçado, eu sonhei com você. Atirei em você, mas não morreu.
Droga, abranger os dois mundos era complicado.
– Sim, eu sei.
– Sabe?
– Estou ligando para falar do seu subordinado. Isaac não o matou.
– Oh. Mesmo?
– Eu matei. – Mentiroso, mentiroso, o nariz vai crescer. O bom é que ele nunca teve problemas com esse tipo de coisa.
– E, mais uma vez digo, pensei que estivesse morto.
– Não estou exatamente morto.
– Claro. – Longa pausa. – Então, se você está vivo e bem, por que fez isso com meu segundo homem na linha de comando, Jim?
– Eu o avisei que não permitiria que ninguém se aproximasse do meu garoto Isaac. Naquele sonho. Sei que me ouviu.
– Está dizendo que devo começar a te chamar de Lázaro ao invés de Zacarias?
– Pode me chamar do jeito que quiser.
– Bem, seja lá qual for o seu maldito nome, você simplesmente colocou uma bala na cabeça do “seu garoto”. Parabéns, pois Isaac é o único com quem eu vou acertar as contas, e você me conhece. Farei do meu jeito todo especial.
Droga. Grier Childe. Quanto você quer apostar, Jim pensou.
– Isso não tem lógica.
– É muito lógico. Ou Isaac fez isso e você está acobertando e espera por clemência. Ou você o fez e, nesse caso, eu realmente tenho contas para acertar com você... e a maneira como vou lidar com esse “você me pertence” vai deixar uma assassinato em sua consciência. Uma vez que você odeia efeitos colaterais, isso vai ser mesmo uma tapa na nuca.
– Rothe ajudou a salvá-lo. Naquele vale de areia onde você quase se matou.
Agora o cara simplesmente rosnou.
– Não me dê outra razão para ir atrás dele.
Bingo, Jim pensou, apertando o telefone. Aquele era seu jeito de lidar com as coisas e era mais importante que um confronto para saber “quem atirou no demônio”.
– Quanta amargura, Matthias. Você parece muito amargo. Sabe, você mudou.
– Não, eu não mudei...
– Sim, mudou, e sabe do que mais? Você não tem mais o ímpeto para fazer isso. Não tenho certeza se já se deu conta disso. Mas o velho Matthias não veria isso de maneira pessoal. Seriam apenas negócios.
– Quem disse que estou a caminho?
– Eu disse. Tem que estar. Você não sabe disso ainda, mas está sendo obrigado a vir aqui e matar um homem inocente. – O silêncio disse a ele que estava no maldito caminho certo. – Você não entende por que tem que fazer isso por si mesmo. Você não entende a maneira como pensa nesse exato momento. E sabe que está perdendo o controle. Está fazendo escolhas e besteiras que não fazem qualquer sentido. Mas eu posso lhe dizer os motivos disso: é porque você está sendo impulsionado por algo que não acreditaria se eu dissesse que existe. Contudo, isso ainda não o tomou por completo, então, ainda há tempo.
Jim fez uma pausa e deixou que aquela informação se acomodasse no cérebro de seu ex-chefe. O que Matthias precisava era de um exorcismo, mas aquilo requeria seu consentimento. O objetivo era levá-lo até a casa e começar a trabalhar nele...
E nesse tom ele continuou: – Foi com essa coisa que você lidou ao ligar para seu segundo na linha de comando. Ele não era o que pensava, Matthias. – Cavando ainda mais fundo, ele empurrou mais uma. – Quando ele falou com você, sentiu como se fizesse total sentido, certo? Ele o influenciou de maneira sutil, o direcionou, sempre esteve lá quando você precisou dele. Mal se nota em um primeiro momento e, então, você começou a confiar nele, delegar tarefas a ele, começou a prepará-lo para ser seu sucessor...
– Você não sabe do que está falando!
– Imagina. Eu sei exatamente o que está acontecendo. Você ia mesmo permitir que Isaac voltasse para as operações extraoficiais, não ia? Você ia encontrar um jeito de não matá-lo. Não é mesmo? Matthias...? Matthias, responda a maldita pergunta.
Uma longa pausa. Em seguida, uma resposta suave.
– Sim. Eu ia.
– E você não disse isso ao seu segundo homem, pois sabia que ele mudaria sua opinião.
– Contudo, ele estaria certo.
– Não, ele seria o demônio. É isso o que ele era. Pense nisso. Embora você tenha tentado sair das operações extraoficiais, ele o puxou de volta.
– Para sua informação, está falando com um sociopata. Logo, estou seguindo minha natureza.
– Uh-hun. Certo. Sociopatas que pretendem seguir uma “vida louca” não colocam bombas na areia e pisam em cima. Admita, você queria sair lá no deserto... você quer sair agora. Admita.
Por um tempo, não houve nada além de um zumbido ao fundo. E, então, Matthias jogou outra bomba, por assim dizer.
– Foi o filho de Childe.
Jim franziu a testa e recuou um pouco.
– Como?
– O filho de Childe... foi o que mudou tudo. Eu assisti a gravação... de Childe chorando enquanto seu filho morria na frente dele. Meu pai nunca teria feito isso se fosse eu quem estivesse naquele sofá. O mais provável é que ele teria preparado minha veia para a agulha. Eu não conseguiria ter aquilo... fora de questão. O jeito que o pobre coitado olhava e o que ele dizia... ele amava aquele garoto como um pai deve amar um filho.
Sim, nossa... de alguma maneira, era difícil imaginar que Matthias teve um pai. Desovado era mais adequado a ele.
Jim balançou a cabeça, sentindo-se mal pelo cara pela primeira vez desde que eles se conheceram há tantos anos.
– Estou dizendo, deixe Isaac ir. Esqueça a vingança. Esqueça as operações extraoficiais. Esqueça o passado. Vou ajudá-lo a desaparecer e ficar em segurança. Deixe tudo para trás... e confie em mim.
Longa pausa. Longa pausa onde não havia nada além daquele ruído límpido de um carro em movimento.
– Você está em uma encruzilhada, Matthias. O que fizer com relação a Isaac hoje à noite pode salvar você... e salvar a ele, também. Você tem mais poder do que imagina. Trabalhe conosco. Venha até aqui, sente-se e converse com a gente.
Provavelmente, era melhor não falar sobre a grande incisão nele com uma faca de cristal para retirar toda a pestilência de Devina pela garganta.
Matthias exalou o ar com força.
– Nunca pensei que você fosse do tipo Mahatma Gandhi.
– As pessoas mudam, Matthias – disse Jim bruscamente. – As pessoas podem mudar. Você pode mudar.
Em pé do outro lado da cozinha, Isaac não tinha certeza se estava ouvindo direito: Matthias plantou a bomba que tinha explodido sobre ele?
Deus, ele se lembrava de dirigir o Land Rover pelas dunas, de volta ao acampamento. Assim que Matthias foi tirado do veículo, os garotos com as bolsas de sangue, as agulhas e as luvas de látex o cercaram por completo e isso era praticamente tudo o que Isaac sabia.
Moral da história: Heron não tinha dito uma palavra sobre as maneiras, os lugares ou os motivos da explosão e Isaac não perguntou. “Saber só o necessário” era a regra de ouro das operações extraoficiais: o chefe e um soldado em atividade aparecem com um deles transformado em carne moída após uma explosão e o outro vem arrastando seus tristes corpos pela areia no meio da noite?
Tudo bem. Não é grande coisa. Tanto faz.
Além disso, algumas vezes, a informação a que tinha acesso era mais perigosa que uma arma carregada apontada na testa.
Quando Jim interrompeu de repente a ligação com o chefe, Isaac tinha algumas coisas para esclarecer com o filho da mãe.
– Primeiro, eu não preciso que banque o mártir por mim, então, não precisava daquela besteira de “eu atirei nele”. E, depois, que inferno. Matthias tentou se matar?
– Primeiro – Jim repetiu –, eu não sofro com as consequências, então, você pode aproveitar qualquer coisa que eu faça para salvar sua pele. Segundo... sim. Ele tentou. O dispositivo era um dos nossos e ele sabia exatamente onde pisar. Ele me encarou ao colocar o pé no local... e disse alguma coisa. – O cara balançou a cabeça. – Não faço ideia do que ele disse. Em seguida, boom! A maior parte do detonador foi vaporizada. Mas não detonou tudo.
Fascinante.
– Quanto tempo até ele chegar aqui?
– Não sei. Mas ele está vindo. Tem que vir.
Sim, e quanto àquelas coisas sobre o segundo na linha de comando? Sinceramente, não havia nada que ele quisesse saber sobre isso. Ele tinha informação suficiente para inchar seu crânio. A única coisa que importava era conseguir superar aquela noite.
– Estou cansado de esperar – ele murmurou.
– Junte-se ao clube.
Naquele momento, Isaac olhou ao redor. O sistema de segurança estava desativado, mas todas as portas estavam trancadas, então, havia grandes chances de saber se alguém tentasse entrar.
– Ouça, vou subir – ele disse. – Fique de olho lá em cima.
– Certo. – Jim apertou os olhos e voltou a focar o jardim dos fundos como se esperasse uma infiltração a qualquer momento. – Vou dar cobertura.
Quando Isaac chegou à base da escada dos fundos, ele parou e se inclinou em direção à cozinha. Heron estava parado em frente ao vidro, mãos nos quadris, sobrancelhas unidas.
Não, o cara não estava morto. E, honestamente, ele não parecia incomodado com a realidade de que uma bala podia entrar arrebentando tudo o que visse pela frente a qualquer segundo.
– Jim.
– Sim. – O homem olhou para trás.
– O que você é? De verdade.
No silêncio que se estendeu, a palavra “anjo” sobrevoou o espaço que havia entre eles. Só que aquilo não era possível, certo?
O homem deu de ombros.
– Sou o que sou.
Entendido, Isaac pensou.
– Bem... obrigado.
Jim balançou a cabeça.
– Você não saiu dessa ainda.
– Mesmo assim. Obrigado. – Isaac pigarreou. – Não posso dizer que ninguém tenha, alguma vez, arriscado seu pescoço por mim assim.
Bem, não era verdade, era? Grier o fez, à sua maneira. E, Deus, um mero pensamento sobre ela quase fez seus olhos arderem.
Heron fez um pequeno aceno e pareceu sinceramente comovido.
– Não é nada, cara. Agora, deixe de ser patético e vigie o terceiro andar.
Isaac teve que sorrir.
– Posso precisar de um emprego depois disso, sabe?
Um sorriso apareceu, mas se desvaneceu rapidamente.
– Não tenho certeza se quer passar pelo processo seletivo de onde trabalho. É difícil.
– Eu já estive num lugar parecido, fazendo coisas parecidas.
– Eu também pensei que fosse fácil assim.
Com isso, Isaac subiu as escadas.
Sim, com certeza, aparentemente ele ia vigiar do último andar, mas havia outra verdade nisso, outra motivação.
Quando ele entrou no quarto de Grier, foi direto ao seu armário e parou sobre a bagunça de roupas que ficou no carpete creme. Ela deixou o projeto de reorganizar tudo pela metade – pois, algum imbecil atirou em si mesmo na entrada de sua casa.
Mas ele poderia cuidar do problema.
Enquanto esperava para ver como seria uma espécie de reunião bizarra com Matthias ou um tiroteio que deixaria os dois mortos, ele pegava as blusas, saias e vestidos e, um a um, os ordenava dentre o caos.
Pelo menos poderia limpar alguma coisa para ela; Deus era testemunha de que aquele corpo ainda estava lá embaixo, ainda envolto em plástico como algo prestes a ser enviado pelo correio.
Contudo, haveria tempo para removê-lo mais tarde.
E não haveria outra oportunidade para cuidar das coisas dela.
Além disso, o “patético” nele queria algum contato final com ela – e o mais próximo que ele chegaria disso era pendurando com cuidado o que uma vez já esteve contra sua preciosa pele.
CAPÍTULO 45
Grier seguiu o Mercedes de seu pai em direção a Lincoln e quando os conhecidos pilares que havia de cada lado do caminho da fazenda apareceram, ela respirou fundo pela primeira vez depois que saiu de Beacon Hill. Virando à direita, em direção à pista de cascalho quebrado, ela parou em frente às placas de madeira cinza e brancas e estacionou seu Audi. Embora o centro da cidade de Boston estivesse apenas a pouco mais de trinta quilômetros dali, parecia muito ser trezentos. Tudo era silêncio quando ela desligou o motor e saiu do carro, o ar fresco e limpo formigou seu nariz.
Deus, como ela amava esse lugar, ela pensou.
A luz gentil que se desvanecia no crepúsculo suavizava a linha de árvores que percorria os seis hectares de campos e jardins e banhava a madeira com uma iluminação amanteigada. Antes da morte de sua mãe, o lugar tinha sido um refúgio para os quatro, uma maneira de sair da cidade quando não queriam ir até o Cabo – e Grier tinha passado muitos finais de semana ali, correndo ao longo da grama e brincando ao redor da lagoa.
Depois que seu pai ficou viúvo, precisava de um novo começo e, então, ela se mudou para a casa da cidade e ele fixou morada ali.
Quando o pai se aproximou da garagem onde tinha encaixado seu grande sedã, seus mocassins trituraram os pequenos fragmentos de cascalho. Quando era criança, ela pensava que caminhos como aquele eram cobertos de um tipo especial de cereais. Ao invés de derramar leite em uma tigela, tudo o que precisava fazer era pisar sobre eles para obter aquele som de estalos.
Ele foi cauteloso ao se aproximar dela.
– Quer que eu ajude com suas coisas?
– Sim, obrigada.
– E que tal se jantássemos?
Mesmo sem fome, ela assentiu.
– Isso seria ótimo.
Deus, eles pareciam estar em uma festa. Bem, uma festa que envolvia cadáveres, armas e fugir de assassinos... Neste caso, estar elegantemente atrasado significava sua morte, não seria apenas uma catástrofe com o penteado ou o trânsito ruim da Rua Vinte oito.
O que a lembrava de...
Grier olhou em volta e sentiu um arrepio na nuca. Eles estavam sendo vigiados. Ela podia sentir isso. Mas ela não estava ansiosa; estava calma com o que estava sentindo.
Ela podia apostar que eram os homens de Jim. Ela não os viu no caminho, mas eles estavam ali.
Depois que seu pai tirou suas malas e fechou o porta-malas, ela trancou o carro – e tentou não pensar no fato de que aquele homem com o tapa-olho já esteve ali dentro. Francamente, aquilo fez com que ela tivesse vontade de vender o Audi, mesmo com apenas uns 48 mil quilômetros rodados e funcionando muito bem.
– Vamos? – seu pai perguntou, indicando o caminho da frente com uma mão elegante.
Assentindo com a cabeça, ela se adiantou e iniciou o caminho de tijolos que havia até a porta. Antes de entrarem, seu pai desativou o sistema de segurança, que era igual ao da casa dela e, em seguida, destrancou os cadeados um por um. No momento em que atravessaram os batentes da porta, reativou o sistema e trancou tudo de novo.
Ninguém iria atrás deles ali: aquele lugar fazia com que a casa da cidade parecesse um brinquedo de papel machê no quesito segurança.
Após a morte de Daniel, aquela casa foi preparada para suportar um estado de sítio – algo que ela não tinha entendido até agora. Todas as placas foram arrancadas e painéis de microfilmes com substâncias retardadoras de fogo foram colocados no lugar delas por dentro e por fora; todos os vidros foram substituídos por vidros à prova de balas que tinham uma polegada de espessura; as portas antigas foram trocadas por outras reforçadas por molduras de chumbo; foram instalados sistemas de monitoramento de oxigênio e ventilação e não havia dúvidas de que foram feitas outras melhorias das quais ela não estava ciente.
Tinha custado mais do que a casa e, naquela época, Grier questionou a saúde mental de seu pai.
Agora, ela era grata.
Quando olhou para as familiares antiguidades americanas, para o chão de grandes pranchas e para a atmosfera de graciosidade casual, a noite que se aproximava se estendeu até o infinito. O que acontecia quando tudo o que se tinha diante de si eram momentos de espera: Jim e Isaac entrariam em contato com seu pai em algum momento, mas não havia como dizer quando. Ou quais notícias seriam dadas.
Horripilante. Como tudo aquilo era horripilante.
Deus, geralmente ela pensava na morte em termos de acidentes ou doenças. Hoje, não. Essa noite tudo era violência e premeditação, e ela não gostava desse mundo. Já era difícil o suficiente quando apenas a Mãe Natureza e a lei de Murphy estavam atrás de você.
Ela tinha um sentimento muito ruim sobre tudo isso.
– Gostaria de comer alguma coisa agora? – seu pai perguntou. – Ou prefere se refrescar primeiro?
Tão estranho. Geralmente, quando ela chegava àquela casa, ele a tratava como se fosse dela, abria a geladeira ou usava a cafeteira ou o fogão sem pestanejar. Era estranho e a incomodava ser tratada como hóspede.
Olhando por cima do ombro, ela observou seu pai, percorrendo as linhas de seu belo rosto. No silêncio constrangedor da casa blindada, ela se deu conta do quanto estavam sozinhos. Pelo bem deles, precisavam voltar a ser uma família ao invés de serem estranhos um ao outro.
– Que tal se eu fizer o jantar para nós dois?
Os olhos de seu pai lacrimejaram um pouco e ele limpou a garganta.
– Isso seria ótimo. Só vou levar isto até seu quarto.
– Obrigada.
Quando ele passou por ela, estendeu a mão e tocou seu braço, apertando um pouco – o que era a sua versão de um abraço. E ela aceitou o gesto colocando a palma de sua mão sobre a dele. Como sempre faziam.
Depois que ele subiu as escadas da frente, ela se dirigiu à cozinha sentindo-se trêmula e sem o controle de seu jogo... mas ela estava em pé e seguia em frente.
O que, no fim do dia, é tudo o que se tem, não é?
Havia apenas uma coisa faltando... ela parou e olhou por cima do ombro de novo. Então, ela andou pela cozinha e verificou a mesa da alcova... e o longo balcão onde estava o fogão... e o pé da escada dos fundos...
– Daniel? – ela sussurrou. – Onde está você?
Talvez ele não quisesse estar na casa do pai. Mas ele pôde aparecer no hotel naquela festa beneficente e, depois, em um ringue de luta clandestina, ele poderia muito bem dar o ar da graça ali.
– Eu preciso de você – ela disse. – Preciso vê-lo...
Ela esperou. Chamou seu nome baixinho mais algumas vezes. Mas parecia que apenas o forno duplo e a geladeira a ouviam.
Ah, pelo amor de Deus, ela sabia que seu irmão sempre evitou um conflito – e que seu pai o irritava. Mas ninguém o viu antes a não ser ela, então, era evidente que ele poderia escolher a quem se mostrava.
– Daniel.
Em um momento de pânico, ela se perguntou se ele nunca mais voltaria. Houve algum adeus de sua parte que ela não se deu conta?
Mais uma vez, sem respostas dos eletrodomésticos.
Pensando que teria mais sorte se os colocasse em funcionamento, ela foi até a geladeira e abriu a porta, perguntando-se que diabos poderia preparar para ela e seu pai.
Uma coisa era certa: o jantar não incluiria omeletes.
Levaria um tempo até ela preparar uma omelete de novo.
Quando a escuridão se instalou, os faróis do carro sem marcas oficiais de Matthias varriam a estrada à frente. Havia outros carros viajando na mesma estrada de asfalto que ele, outras pessoas por trás dos volantes, outros planos em outras mentes.
Tudo isso era irrelevante para ele, sem maior importância do que um filme passando em uma tela.
Sem mais profundidade que isso também.
Ele tinha problemas. Problemas terríveis. Do tipo que faziam nós em seu cérebro e que faziam a dor em seu lado esquerdo pegar fogo até o ponto de ter que se esforçar para se manter consciente.
Droga... Jim Heron sabia demais sobre coisas que deveriam estar apenas em pensamentos e conhecimentos particulares. Era como se o homem tivesse sintonizado a estação de rádio interna de Matthias e ouvido todas as suas músicas, comerciais e relatórios do trânsito.
E o filho da mãe estava certo. O segundo na linha de comando apenas se destacou de fato após o pequeno acidente de Matthias no deserto: nos últimos dois anos o soldado se fez indispensável e, olhando para as tarefas e situações com que Matthias tinha lidado, o cara tinha gradualmente influenciado suas decisões até que começou a tomá-las por si mesmo.
Tinha sido tão sutil. Como alguém girando lentamente o acendedor de uma chama sob uma panela de água. Seu subordinado foi quem o fez mudar de opinião sobre deixar Jim Heron ir. E o homem que direcionou Matthias a matar Isaac. E havia mais uma centena de exemplos... muitos dos quais ele acabou realizando conforme sua influência.
Ele nem sequer notou que isso estava acontecendo.
Deus, tinha começado com a morte do filho de Alistair Childe. Foi a primeira ideia brilhante.
Naturalmente, a lógica era indiscutível e Matthias não hesitou em puxar o gatilho. Mas quando viu as filmagens da morte, o choro do capitão o comoveu. Abriu uma porta que ele nem sequer sabia que existia dentro dele.
Matthias desligou o vídeo e foi para a cama. Na manhã seguinte, ele acordou e decidiu que já era o suficiente. Hora de deixar a festa que tinha iniciado há todos aqueles anos – ia deixar os convidados tomarem conta da casa e incendiá-la, tudo bem. Mas para ele bastava.
Já chega. Foi a gota d’água.
Focando suas mãos no volante, ele percebeu que outra pessoa o guiava, dirigia para ele, determinava as saídas e acionava as setas. Como aquilo tinha acontecido?
E por que, diabos, Jim Heron sabia?
Quando sua mente mais parecia uma máquina de lavar e começou um novo ciclo de rotação no passado, ele decidiu que todo aquele processo de lavagem e enxágue não era real. Não essa noite. Não naquela estrada. O que importava não era como ele tinha chegado atrás daquele volante e se encontrava a caminho de Boston. O que importava era o que ele faria quando chegasse lá.
Encruzilhada... certo. Ele sentia isso nos ossos – da mesma forma que sentiu quando preparou aquela bomba anos atrás.
A questão era: e agora? Acreditar no que Jim Heron havia dito. Ou seguir o impulso da raiva que o direcionava para o leste.
Qual destino ele seguiria?
Enquanto ele ruminava, tinha total certeza de que estava escolhendo entre o Céu e o Inferno.
CAPÍTULO 46
Enquanto Adrian vigiava a casa cinzenta daquele cavalheiro parado próximo a um carvalho, ele estava começando a se sentir como a porcaria de uma árvore. A não ser por aquele confronto na cidade na noite anterior, ele passou muito tempo esperando nos bastidores nos últimos dois dias.
Ele nunca gostou de ficar parado, para começar, mas naquela noite, quando toda a ação estava na cidade e ele e Eddie estavam presos feito troncos servindo de babá para dois adultos, Adrian estava realmente inquieto. Especialmente levando em conta que ele e seu colega eram responsáveis pelo que estava trancado em uma casa que fazia da base do exército dos Estados Unidos parecer um sanitário portátil em termos de solidez.
Dane-se tudo isso. Ele não conseguia acreditar que estavam indo atrás da alma errada.
Todas as conclusões pareciam boas, mas na verdade, a porcaria era como uma equação de álgebra que tinha algum elemento errado: parecia ótima no papel, mas a resposta estava errada.
E que grande escorregão aquele tinha sido. Ele sentia calafrios em pensar que estava tão perto e tão longe do final de uma partida.
Mas a quase derrota não era a única coisa que fazia suas bolas ficarem tensas, no mal sentido. A outra metade disso se dava à situação em que Jim se encontrava agora: a despeito do que Devina tinha feito com ele, o cara estava fazendo tudo como se estivesse muito bem... e sim, tudo bem, talvez fosse o caso no momento. Inferno, o fato de que tudo com Isaac e Matthias ia vir à tona naquela noite parecia ser uma coisa boa, pois dava a Jim algo para se concentrar. O único problema era que, Adrian sabia bem, essa crise ia passar e, então, o cara enfrentaria muitas horas longas e silenciosas sozinho com nada além de más memórias sibilando em seu crânio como balas perdidas.
A pior coisa, pelo menos na opinião de Adrian, era saber que ia acontecer de novo. Quando a situação requeresse, Adrian voltaria a descer até o mausoléu onde havia a brinquedoteca de Devina... e Jim também. Isso por serem o tipo de homem que eram. E esse era o tipo de vadia que ela era.
Ao lado dele, Eddie sufocou outro espirro.
– Saúde.
– Malditas lavandas. Sou o único imortal com alergia. Juro.
Quando o cara olhou para a floração que havia próxima a ele, Adrian respirou fundo pensando que pelo menos seu melhor amigo não teve que passar pelo inferno daquela mesa. Por outro lado, ele foi marcado por aquele demônio, o que dificilmente se aproximava de uma temporada na Disney.
Dez minutos, três espirros e um monte de nada para fazer depois, Adrian pegou seu celular e ligou para Jim. O cara atendeu no segundo toque.
– Diga – ele vociferou.
– Nada. Estamos em meio a lavandas – acho que é assim que são chamadas – olhando Grier comer com o pai dela. Parecem duas costeletas de porco. – O exalar do outro lado da linha era de pura frustração. – Nada de novo por aí também, eu acho.
Cara, algumas vezes, uma má ação era melhor do que aquela porcaria arrastada, onde brincar com os dedos era a única coisa a se fazer.
Jim soltou um palavrão.
– Eu falei com Matthias há mais ou menos uma hora, mas não tenho ideia de onde ele estava. Contudo, com certeza estava no trânsito.
– Acho que deveríamos voltar. – Adrian franziu a testa e se inclinou para frente em suas botas. Dentro da cozinha rústica, Grier se levantou, pegou algumas louças de um armário e ergueu a tampa de vidro de um prato de bolo. Parecia que havia um bolo de chocolate. Coberto de creme.
Que droga. Talvez eles devessem ficar um pouco mais. Convidarem-se para a sobremesa.
– Aguente firme – Jim disse. – Mas talvez eu precise ir até aí. Prefiro manter o confronto bem longe dos Childes, só que não sei se Grier é o alvo. Nesse momento, não sei o que Matthias está pensando... eu só consegui chegar até certo ponto com ele ao telefone antes dele desligar.
– Olha, tudo o que sei é que queremos estar onde a festa estiver. – Quando Eddie espirrou de novo, Ad balançou a cabeça para indicar onde estavam os anti-histamínicos. – E ouça, eu andei em torno dessa casa. É segura como não sei o que. Matthias é a alma em jogo, então, para onde quer que ele vá será por onde a ação vai seguir – e ele está indo encontrar Isaac.
Houve um breve silêncio. E, então, Jim disse: – Contudo, Grier é uma alma inocente e uma excelente maneira de Matthias conseguir sua vingança – talvez ela seja a única que ele pretenda capturar. Nós simplesmente não sabemos. É por isso que quero dar mais um tempo... e, então, talvez, possamos trocar de lugar.
– Tudo bem. Seja lá onde for que precise de nós, iremos. – Ad se ouviu dizer antes de desligar.
Dê só uma olhada, fazendo toda aquela coisa de um bom soldadinho. E aquilo era um pé no saco.
– Vamos ficar por aqui – ele reclamou. – Por enquanto.
– Difícil saber onde se posicionar.
– Precisamos de mais lutadores.
– Se Isaac sobreviver... podemos transformá-lo. Ele tem jeito.
Adrian o encarou.
– Nigel nunca permitiria isso. – Pausa. – Permitiria?
– Eu acho que ele não vai gostar de mais perdas, é o que posso dizer.
Adrian voltou a assistir Grier a cortar duas fatias e colocá-las no prato. Ele teve a impressão, pela maneira como seus lábios se moviam, que ela e seu pai estavam conversando com mais calma e ele estava feliz. Ele não sabia como era ter um pai, mas ele estava na Terra tempo suficiente para saber que um bom pai era uma coisa ótima.
Ele soltou um palavrão quando Grier se dirigiu ao congelador.
– Ah, cara. Sorvete também?
– A maneira que você consegue ter apetite em um momento como esse me surpreende.
Adrian pegou uma pequena tigela.
– Eu sou incrível.
– “Esquisito” também é um bom adjetivo.
Nesse momento, Ad começou a puxar de suas cordas vocais Super Freak fazendo uma imitação fantástica de Rick James. Nos arbustos de lavanda. Em... onde diabos eles estavam? Roosevelt, Massachusetts? Ou estavam em Adams?
Washington?
– Por tudo quanto é mais sagrado – Eddie murmurou ao cobrir os ouvidos. – Pare...
– ... in the name of loooooove. – Erguendo a mão, Ad começou a se mexer e a rebolar como Diana Ross. – Be... fore... you... breaaaaaaak... my...
A risada suave de Eddie dizia que ele estava no limite e assim que entrou no coro, Ad se calou.
Quando as coisas ficaram em silêncio novamente, ele pensou no bom e velho Isaac Rothe. Aquele filho da mãe, grandalhão, cabeça-dura poderia ser um excelente complemento para a equipe.
Claro, ele teria que morrer primeiro.
Ou ser morto.
As duas maneiras, levando em conta a forma como as coisas estavam acontecendo, poderiam ser arranjadas naquela noite.
Na cozinha, Grier sentou-se diante de seu pai em uma mesa feita de tábuas retiradas de um velho celeiro. Entre eles, havia dois pequenos pratos brancos marcados com manchas de chocolate e os garfos de sobremesa descansavam em ângulos acentuados.
Eles não falaram sobre nada importante durante a refeição, apenas coisas do cotidiano sobre o trabalho e o jardim dele e sobre os possíveis casos que ela assumiria no sistema penal. A conversa foi tão normal... talvez fosse ilusão, mas ela se apegou ao que eles tinham seguindo a regra do “faz de conta”.
– Outro pedaço? – ela perguntou, indicando com a cabeça o bolo no balcão.
– Não, obrigado. – Seu pai bateu suavemente os cantos da boca com o guardanapo. – Não deveria ter comido nem o primeiro.
– Parece que perdeu peso. Acho que deveria...
– Eu menti sobre Daniel para mantê-la em segurança – ele deixou escapar, como se a pressão de esconder aquilo tivesse chegado a um nível insustentável.
Ela piscou algumas vezes. Em seguida, estendeu a mão e começou a brincar com o garfo, desenhando um pequeno “op” e depois um “extra” em cima da cobertura que deixou de lado, seu estômago revirava todo o jantar que tinha acabado de comer.
– Eu acredito em você – ela disse em dado momento. – Contudo, isso dói muito. É como se ele tivesse morrido novamente.
– Sinto muito. Sei que não é o suficiente.
Seus olhos se ergueram e encontraram os dele.
– Entretanto, vai ficar tudo bem. Eu só preciso de um tempo. Você e eu... somos tudo o que restou um ao outro, entende?
– Eu sei. E isso é minha culpa...
Do nada, uma luz brilhou através das janelas, iluminando o cômodo e os dois que ali estavam em uma explosão de brilho.
Cadeiras arranharam o chão quando ela e seu pai ficaram em pé rapidamente e procuraram por abrigo atrás da sólida parede da cozinha.
Lá fora, no gramado da frente, as luzes de segurança acionadas pelo movimento foram ativadas e um homem estava andando sobre o gramado em direção à casa. Atrás dele, nas sombras, um carro que ela não conhecia estava estacionado no caminho de cascalho.
Seja lá quem fosse, deve ter vindo com os faróis desligados. E se fosse Jim, Isaac ou aqueles dois homens, alguém teria chamado.
– Pegue isto – seu pai disse entre dentes, pressionando algo pesado e metálico em sua mão.
Uma arma.
Ela aceitou sem hesitar e seguiu até a porta da frente – que era aonde parecia estar indo seu “convidado” inesperado. Contudo, qual era a lógica nisso? Você se esgueirava até a casa com as luzes do carro desligadas, mas andava decidido em direção a...
– Oh, graças a Deus – seu pai murmurou.
Grier relaxou assim que reconheceu quem era. Sob as luzes de segurança, o grande corpo de Jim Heron e seu rosto rígido estavam claros como o dia e o fato dele se esquivar pelo caminho fazia sentido.
Seu primeiro pensamento foi em Isaac e ela o procurou dentre as luzes quando seu pai desativou o sistema de segurança e abriu a porta. Contudo, ele não estava com Jim.
Oh, bom Deus...
– Estão todos bem – Jim gritou no gramado, como se tivesse lido sua mente. – Está tudo acabado.
O alívio foi tão grande que ela se afastou brevemente, esquivou-se até a cozinha, apoiou a arma e colocou seus braços sobre a mesa. Do outro cômodo, ela ouvia as vozes profundas de seu pai e de Heron, mas ela duvidava que conseguiria acompanhar a conversa mesmo se estivesse em pé ao lado deles. Isaac estavam bem. Ele estava bem. Estava bem...
Estava acabado. Terminou. E agora, com Isaac indo embora em relativa liberdade, ela poderia tentar seguir em frente também.
Cara, ela precisava de umas férias.
Em algum lugar frívolo e quente, ela decidiu ao se movimentar e pegar os pratos de sobremesa. Em algum lugar com palmeiras. Drinques e sombrinhas. Praia. Piscina...
Tick... tick... whir...
Grier franziu a testa e lentamente olhou por cima do ombro.
Perto da geladeira, a fechadura da porta dos fundos se deslocava da direita para a esquerda, ao mesmo tempo em que a velha trava se erguia.
As vozes na sala silenciaram de repente.
Silenciaram demais.
Aquilo estava errado. Muito errado...
Grier largou os pratos e se lançou para a arma que havia deixado no balcão...
Mas ela não chegou a fazer isso. Alguma coisa atingiu seu ombro e, em seguida, uma carga elétrica passou por seu corpo, curvando-a para trás, desequilibrando seus pés e a jogando com força no chão.
CAPÍTULO 47
Em Beacon Hill, Isaac subiu as escadas da frente da casa, parou no patamar do segundo andar e depois continuou até o quarto de Grier. Em seu espaço particular, ele passeou ao redor da cama e sentiu que estava perdendo sua preciosa sanidade.
Ele olhou o relógio despertador. Caminhou até as portas francesas. Observou o terraço.
Nada se movia lá fora e não havia ninguém na casa além dele e Jim.
O tempo passava, mas ninguém aparecia e não importava quantas vezes ele descesse até Jim e depois voltasse a subir ele não era capaz de prever a próxima sequência de eventos.
Era como um diretor sem megafone e um elenco que não dava a mínima para o que ele tinha a dizer.
O medo inevitável que o afligia era de que estivesse no lugar errado. Que ele e Jim estavam tranquilos aqui enquanto a ação acontecia em outro lugar. Como na fazenda do pai de Grier.
Como se fosse um caminho viciante, ele voltou para a escada e correu para baixo, esperando nada ao longo do caminho ou nos fundos além de uma breve parada na cozinha e outra viagem para cima.
Só que...
Quando ele chegou ao térreo, a porta da frente rangeu como se estivesse sendo aberta. Pegando suas armas, ele estava pronto para atacar... até que ouviu a voz irritada de Jim aumentando.
– O que vocês estão fazendo aqui? – Heron perguntou.
– Você nos mandou uma mensagem de texto.
Isaac franziu a testa ao som da voz do homem de piercing.
– Não, eu não mandei.
– Sim, mandou.
Naquele momento, o transmissor de alerta disparou com um movimento sutil no bolso de Isaac.
Todos os seus instintos queimavam, ele se abaixou silenciosamente no quarto de hóspedes onde tinha ficado. Segurando o transmissor nas mãos, ele ativou o dispositivo e, desta vez, não houve demora na resposta.
Matthias respondeu logo em seguida.
– Estou com sua garota na casa do velho pai dela. Venha para cá. Você tem meia hora.
– Se você a machucar...
– O tempo está passando. E não preciso dizer para vir sozinho. Não me faça esperar, ou vou ficar entediado e terei que preencher meu tempo. Você não vai gostar disso, prometo. Esteja aqui em trinta minutos.
A luz se apagou, a transmissão terminou de repente.
Quando Isaac se virou para sair, ele pulou para trás. Jim, de alguma maneira, subiu as escadas e atravessou a porta fechada para ficar em pé bem atrás dele.
– Ele está com ela – disse Jim categoricamente. – Não está?
– Vou sozinho ou ele vai matá-la.
Empurrando o homem para fora do caminho, Isaac correu escada abaixo. O corpo no corredor de entrada havia sido revistado a procura de armas como se fosse um presente embrulhado, mas chaves de carro era outra coisa.
Bingo. Bolso da frente. Ford.
Agora encontrar o carro do bastardo.
Quando Isaac se levantou, percebeu que tudo estava completamente silencioso e não havia ninguém no corredor da frente. Olhando ao redor, ele teve a sensação de que estava sozinho na casa, embora não fizesse ideia de como eles tinham saído tão rápido.
Seja como for – dane-se. Danem-se todos eles.
Isaac foi direto para a porta, mas no último minuto, ele girou sobre os calcanhares debaixo do arco e se voltou para o corpo para tirar algo mais dele. Então, correu na escuridão.
O carro sem marcas oficiais que ele observou na casa da Rua Pinckney no dia anterior estava estacionado um quarteirão acima e a chave do cara morto encaixou nele. O motor pegou bem e o GPS funcionava, então, ele rapidamente colocou o endereço que o pai de Grier havia dado a eles.
“Morcego vindo do inferno.” Era a descrição da viagem.
Rapidamente, ele pegou a estrada que ligava os locais, alcançando o limite de velocidade e depois ultrapassando-o. Mesmo assim, parecia que ele estava movendo-se em câmera lenta – e só piorou quando saiu da estrada e tentou atravessar um trecho da cidade que estava cheio de sinais vermelhos e estradas sinuosas.
Felizmente, o GPS o levou exatamente aonde ele precisava ir, seu destino tinha uma frente com dois pilares de pedra que ficavam de cada lado de um caminho pálido e brilhante.
Ele baixou os faróis e virou à direita, saindo da velocidade total para ficar cada vez mais lento. Descendo o vidro da janela para que pudesse ouvir melhor, ele avançou, odiando o som dos pneus esmagando um milhão de cascalhos. A única coisa boa era que o brilho permanente da cidade não existia ali em meio à natureza e a lua estava coberta por nuvens. Mas quanto você quer apostar que eles tinham sensores de movimento na parte externa da casa e/ou nas árvores?
Isaac se dirigiu até outro carro sem marcas oficiais que devia ser o carro de Matthias. Uma manobra depois e ele estava fora do carro. Pegando as chaves, ele correu ao longo da margem do gramado, seus sentidos avivados, sua raiva era como o inferno em seu sangue.
Matthias morreria se colocasse um dedo sequer em Grier. Um fio de cabelo daquela mulher fora do lugar e aquele canalha estaria massacrado.
Ao se aproximar da casa, ele procurou as portas. A da frente estava aberta e não conseguia ver a dos fundos.
Mas o que importava – esperavam por ele. E, assim, ele deveria jogar para o alto aquela rotina idiota de ninja e anunciar sua chegada.
Chegando à entrada da casa, ele manteve suas armas escondidas e seus olhos atentos ao fechar os punhos e bater na ombreira da porta de madeira.
– Matthias – ele gritou.
Ao entrar na casa, o silêncio retumbante era mais terrível que qualquer grito ou poça de sangue. Pois só Deus sabia no que ele estava entrando.
Jim elaborou um plano quando ele e os anjos saíram em direção à casa do pai de Grier. Ele não queria deixar Isaac sozinho na cidade, mas tudo o que eles teriam feito seria discutir e Deus sabia que o sagaz imbecil poderia cuidar de si mesmo.
Moral da história: Devina estava executando jogos mortais e isso era uma coisa com a qual apenas Jim poderia lidar. E ter um atraso antes da chegada de Isaac poderia não ser uma coisa ruim: se Matthias tivesse feito qualquer coisa à Grier, seria impossível controlar o soldado.
Sim, quando Jim aterrissou e foi direto para a porta aberta da casa da fazenda com seus homens de confiança na escolta, ele estava preparado para cuidar das coisas.
Nigel, porém, o desviou dos trilhos.
O arcanjo apareceu bem no seu caminho e, dessa vez, ele não estava com seu smoking ou com seu traje de críquete branco ou com qualquer outra roupa de tecido leve todo engomado: ele não era nada além de uma forma brilhante, uma silhueta ondulada com curvas de luz.
E ele disse apenas uma palavra.
– Não.
Quando Jim parou por um momento, ele poderia ter socado o desgraçado se ele tivesse qualquer forma sólida para atingir.
– Qual seu maldito problema?
Primeiro o engano quanto a Isaac, agora isso?
– A sorte está lançada. – Nigel levantou sua mão vacilante. – E se você intervier agora, vai perder de fato.
Jim apontou a porta aberta.
– A alma de um homem está em risco.
A voz de Nigel ficou obscura.
– Como se eu não soubesse disso.
– Se eu chegar a Matthias...
– Você teve sua chance...
– Eu não sabia que era ele! Quanta besteira!
– Não há nada que eu possa mudar. Mas posso dizer, deixe o final acontecer...
– Oh, você não pode mudar nada, mas pode entrar no caminho agora? Que maravilha de noção de tempo!
Jim tinha plena consciência de que sua voz era estrondosa, mas ele não tinha dificuldades para anunciar sua presença a Devina ou a qualquer outra pessoa.
– Dane-se, eu vou entrar...
Com a rápida emanação de um brilho, a forma de Nigel o cobriu da cabeça aos pés, a iluminação atuava como uma espécie de cola que o prendia no lugar. E, em seguida, aquela voz britânica não estava apenas em seu ouvido, mas percorria todo seu cérebro.
– Qual é o caminho mais confiável? O da emoção ou o da razão? Pense, Jim. Pense. Se alguém quebrar as regras, haverá uma punição. Pense nisso. Pense, idiota!
A fúria nublava sua mente e agitava seu corpo até ele pensar que iria se desfazer... mas, de repente, um raio atingiu sua cabeça dura e ele percebeu o que o anjo estava tentando lhe dizer.
Se alguém quebrar as regras... haverá uma punição.
– É isso, Jim. Tome isso como uma conclusão óbvia, leve-a para além dessa noite. E saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva. Eu imploro, confie em mim a respeito disso.
Relaxando sua musculatura, Jim sentiu uma calma curiosa percorrer suas entranhas e ele mudou de ideia devido aos simples argumentos que Nigel tinha exposto.
Olhando para Adrian e Eddie que se preparavam para batalha, viu que estavam tão chateados quanto ele. O que agregava um valor adicional ao que Nigel havia explicado.
– Confie em mim, Jim – disse Nigel. – Eu quero ganhar tanto quanto você. Eu também tenho minha carga de perda de entes queridos. Eu também faria o que fosse preciso para colocá-los em uma eternidade de paz. Não pense que eu o conduziria para o mau caminho.
Jim balançou a cabeça para seu amigos.
– Deixa pra lá – disse Jim a eles. – Vamos ficar à margem. Ficaremos aqui fora.
Quando seus colegas olharam para ele como se estivesse fora de si, ele não poderia concordar. Não entrar ia matá-lo, mas ele percebeu o contexto... e estava satisfeito com a intervenção do arcanjo. Graças a Devina ignorar as regras, o melhor para Matthias seria Jim permanecer fora disso.
Mesmo indo contra todos os seus instintos.
Depois de um momento, Nigel se desprendeu lentamente e sua iluminação mágica gradualmente se dispersou. Na sua ausência, Jim caiu de joelhos na grama, os olhos fixos na porta aberta da casa de madeira enquanto Adrian e Eddie começavam a questioná-lo, exigindo explicações para a ordem de parada.
À margem de sua mente e emoções, o desejo de voar no caminho do que Devina havia projetado ainda o atordoava.
Especialmente quando pensava na mulher de Isaac nas mãos de Matthias...
Oh, Deus... Rothe seria sacrificado, não seria?
As mãos de Jim procuraram a terra e ele cavou o gramado com os dedos, mantendo o corpo no lugar.
Inclinando a cabeça, ele rezou para que sua fé estivesse bem posicionada e que o bem, em algum momento, prevalecesse. Mas o fato era: fazer a coisa certa causaria a morte de um homem que não merecia morrer naquela noite.
CAPÍTULO 48
Matthias amarrou os Childes bem antes do momento que ele esperava que Isaac atravessasse a porta da frente.
Depois que a eletrocutou, descobriu que pegar Grier do chão e colocá-la em uma cadeira requeria mais força do que ele tinha – então, ele a deixou deitada onde estava, amarrando suas pernas e pulsos com a fita adesiva que encontrou na despensa de Alistair.
E quanto ao pai dela?
Não fazia ideia do que tinha feito o homem abrir caminho e ficar parado ali em transe, mas a distração e a falta de reação vieram bem a tempo. Matthias foi capaz de se posicionar atrás do cara e colocar uma arma em sua cabeça.
Então, sim, sentá-lo em uma cadeira na cozinha foi fácil demais; ele simplesmente uniu as próprias mãos e pés.
O que foi bem útil, uma vez que aquela dor no peito de Matthias estava tão ruim que ele mal podia respirar.
E agora, era apenas o caso de esperar por Isaac, os três na casa juntos com a porta aberta.
Houve um gemido e, em seguida, um movimento no chão quando Grier Childe começou a acordar. Ela teve um momento de confusão, como se estivesse tentando entender por que estava deitada sobre a madeira e por que não conseguia abrir a boca. E então ela se movimentou rapidamente com um impulso de corpo inteiro, os olhos bem abertos olhavam para ele.
– Acorde, pirralha – ele disse bruscamente, acenando com a cabeça quando seu pai começou a lutar contra suas amarras e a fazer ruídos abafados sob a fita adesiva na boca.
Matthias colocou a mira da arma em direção à cabeça do cara.
– Cale a boca.
Não havia ninguém por perto para ouvir, mas o sofrimento e a luta alfinetavam os nervos de Matthias. Na verdade, quando ficou em pé entre os dois, ele estava longe da calma e do “mestre da sobrevivência” que ele sempre foi no passado: ele estava com muita dor. Estava exausto. E ele sentia que o que estava prestes a acontecer estava predestinado, mas não era algo que ele teria escolhido.
Ele estava completamente fora de controle e totalmente preso ao mesmo tempo.
Com os olhos dos dois Childes nele e com todos em silêncio de novo, ele se apoiou contra o balcão, seu corpo decrépito protestando a mudança de posição.
– Sabe o que me irrita em você? – ele disse para Alistair. – Eu salvei a boa. – Ele balançou a cabeça em direção à Grier. – Eu poderia ter deixado aquele seu filho com você. Mas não, eu peguei o estragado... tirei seu querido Danny do sofrimento dele e do seu.
Ele se lembrava de ter se surpreendido com seu processo de pensamento na hora. Havia outras coisas dentro dele que machucariam muito mais, mas ele tomou um caminho diferente nessa encruzilhada.
Talvez ele tivesse começado a mudar antes de ordenar a morte. Quem sabe?
Quem se importa?
Ele estava mergulhado demais nas profundezas para ser salvo e sua conversa com Jim ao telefone mostrou a realidade da sua condenação ao invés das possibilidades de redenção. Era hora de acabar com isso... e sair dessa com um estrondo.
Só que dessa vez, ele faria a coisa direito.
Naquele momento, Isaac Rothe apareceu no arco da cozinha. Seus olhos foram até Grier primeiro e nem mesmo seu autocontrole estoico podia esconder seu medo.
Ele amava aquela mulher.
Bem, bom para ele, pobre coitado.
– Bem-vindo à festa – Matthias disse entorpecido ao erguer a arma e apontar para ele.
– Não faça isso – Isaac exclamou. – Leve a mim, não ela.
Matthias olhou os grandes e aterrorizados olhos da mulher e a maneira como ela parecia estar pronunciando algo como “Oh, Deus, não...”
– Eu sinto muito sobre tudo isso – Matthias disse a ela. E era verdade. Ele não sabia o que era mais cruel: matá-la em frente a Isaac... ou deixar que ela sobrevivesse à morte dele – supondo que o amor era recíproco.
Pena que um deles morreria agora – pois, em seguida, Jim Heron seria forçado a entrar e atirar em Matthias – portanto, estariam quites. O soldado o salvou há dois anos contra sua vontade e agora... naquela noite... ele faria o que deveria ter feito no deserto.
– Matthias – disse Isaac nitidamente. – Vou colocar minha arma no chão.
– Não se preocupe – ele murmurou, ainda focado em Grier. – Sabe, senhorita Childe, ele se entregou a mim para salvá-la. Duas vezes. Fez tudo isso por você.
– Matthias, olhe para mim.
Mas ele não olhou. Ao invés disso, encarou o rosto de Alistair e aquilo foi o que o fez ele se decidir.
Ele mudou a arma de direção.
Isaac estava pronto – e ele não esperava por menos.
Os dois puxaram o gatilho ao mesmo tempo.
CAPÍTULO 49
Grier gritou contra a fita que cobria sua boca com os tiros que explodiram na cozinha, o eco fez seus ouvidos ressoarem e seus olhos arderem.
Alguém estava gemendo.
Com seu coração trovejando, ela levantou a cabeça e esticou o pescoço. Matthias não estava mais à vista – então, ele deve ter sido atingido... Ela rezava para que ele tivesse sido atingido.
Isaac...? Seu pai...?
Rastejando ao longo do assoalho, ela avançou ao redor do balcão no meio da cozinha. A primeira coisa que viu foi seu pai na cadeira. E ele era o único que gemia ao lutar furiosamente contra a fita que havia ao redor de suas mãos e pés.
Onde Isaac estava?
Um pavor frio substituiu cada gota de sangue em suas veias e ela sabia a resposta para sua pergunta antes mesmo de vê-lo deitado de costas no cômodo.
Ele não se movia, sua arma estava sobre sua mão frouxa e aberta, seus olhos encaravam o vazio em direção ao teto.
Grier gritou mais uma vez, seu corpo se contraiu, seu rosto se arrastou no chão envernizado, toda sua alma e tudo que havia em sua mente negava o inevitável. Debatendo-se, ela avançou até ele, esperando ajudar, esforçando-se para atravessar a distância...
De repente, suas mãos estavam livres.
Com toda aquela luta ela rasgou o que a prendia. Explodindo em uma coordenação de movimentos inesperada, ela arrancou a fita da boca e se arrastou com os braços até Isaac.
A bala tinha atingido em cheio seu coração.
Era um buraco tão pequeno através da camisa, nada além de uma alfinetada em relação à mancha de fuligem que havia ao redor. Só que foi mais do que suficiente para matá-lo.
– Isaac – ela disse, tocando sua face fria. – Oh, Deus... não se vá...
Sua boca estava ligeiramente aberta, suas pupilas fixas e dilatadas, a respiração superficial prestes a parar. Ele tinha feito tudo para salvá-la, a mudança de planos, a entrega de si mesmo. Afinal, aquele homem louco e terrível não tinha motivos para mentir.
– Isaac... Eu te amo... Sinto muito...
Sua cabeça virou lentamente em direção à ela, seus olhos se esforçando para entrar em foco. Quando ele pareceu se fixar em seu rosto, lágrimas escorreram daquele olhar gélido, uma escapou do canto e rolou sobre suas têmporas, caindo no chão.
– Eu...
– Eu vou chamar a emergência – ela disse rápido.
Só que quando ela foi dar um salto para alcançar o telefone, ele agarrou seu braço com uma força surpreendente.
– Não...
– Você está morrendo...
– Não. – Com a mão livre, ele pegou o zíper do blusão. Mesmo com os dedos tremendo, ele conseguiu segurar a alavanca e puxar para baixo...
Para revelar o colete à prova de balas que estava usando.
– Apenas... perdi... a respiração. – Com isso, ele fez uma inspiração profunda, o que expandiu seu peito totalmente e exalou de maneira uniforme e limpa. – Tirei... do soldado morto...
Grier piscou. Em seguida, ergueu as mãos e sondou o buraco... onde a bala tinha sido capturada e mantida entre as fibras do colete.
Seu corpo reagiu por conta própria, uma estranha força a impulsionou quando ela o ergueu do chão e o segurou perto de seu coração.
– Você é... – ela começou a chorar copiosamente quando o horror e o terror deram lugar ao alívio que se espalhou nela. – Você é um homem brilhante. Um homem brilhante... e estúpido...
E então os braços dele estavam ao redor dela e ele estava, contra todas as possibilidades, cuidando dela.
Contudo, logo ele se separou dela e pegou sua arma.
– Fique aqui.
Com um grunhido, ele se levantou e saiu para checar Matthias e, quando ele se afastou, ela desatou seus pés e correu para seu pai.
– Você está bem? – ela perguntou quando começou a liberar os braços dele.
Ele balançou a cabeça furiosamente, seus olhos não estavam nela, mas em Isaac como se também não pudesse acreditar que o cara tinha sobrevivido. E no instante que suas mãos estavam livres, ele começou a soltar seus tornozelos.
Grier olhou em volta e por precaução, em caso de alguma outra pessoa aparecer ou estar na casa, procurou a nove milímetros que Jim Heron deu a ela quando tinha aparecido por ali.
Supondo que realmente tinha sido o homem.
Algo lhe dizia que talvez o que ela e seu pai viram não estava lá de fato.
Matthias sabia que tinha sido um golpe mortal e estava contente. Sim, ele queria que a arma de Jim fizesse isso, mas a de Isaac funcionou bem – e Rothe tinha feito parte de todo problema da sobrevivência, não tinha?
Pelo menos, ele tinha conseguido com um deles.
Quando o ferimento arterial começou a vazar em sua cavidade torácica, a respiração começou a se tornar difícil e sua pressão caiu, seu corpo foi se entorpecendo e esfriando. Não havia mais dor.
Bem, não exatamente. Aquela pontada de agonia em seu lado esquerdo acabava com ele... e foi enquanto estava morrendo que descobriu o que era aquilo: ele estava errado. Não era seu coração se preparando para um ataque coronário. Era – surpresa das surpresas – a sua consciência. E a maneira como soube foi que quando pensou no fato de ter matado um homem relativamente inocente na frente da mulher que o amava, a dor se tornou exponencialmente pior.
Não era irônico? De alguma maneira, nas profundezas de seu pecado, o sociopata havia encontrado sua alma.
Tarde demais.
Ah, inferno, contudo, estava tudo bem. Ele estaria morto em breve e, depois disso, nada importaria. A luz branca que já tinha se aproximado dele antes, ao entrar em paradas cardiorrespiratórias a na mesa de operações algumas vezes, estava mais perto dessa vez. Ele não achava que fosse o Céu. A porcaria provavelmente era algum produto da imaginação ou alguma disfunção ocular, apenas outra parte dos mecanismos da morte...
Isaac apareceu na frente dele, alto e forte, seu blusão aberto para mostrar um colete à prova de balas.
Quando teve certeza de que estava enxergando direito, Matthias começou a rir... e a dor em seu lado esquerdo aliviou de repente.
– Seu filho da... – Ele não chegou ao mãe, pois uma crise de tosse o atingiu.
Depois que a crise passou, ele pôde sentir sangue escorrendo em sua boca e no rosto quando seu coração começou a bater em sua caixa torácica como um animal se debatendo em uma jaula.
Quando Isaac se agachou, Matthias pensou na tatuagem nas costas dele. O Ceifeiro da Morte, de fato. Ele se perguntou se o soldado tatuaria outro ponto na parte inferior.
Quanto você quer apostar que também seria a última?
Isaac balançou a cabeça e sussurrou.
– Eu tenho que deixá-lo morrer. Sabe disso, não é?
Matthias assentiu.
– Obriga... do...
Ele ergueu a mão gelada e, um momento depois, sentiu que ela estava envolvida em algo quente e sólido. Era a mão de Isaac.
Como foi estranha a maneira como as coisas se resolveram. Naquele deserto, Jim tinha a intenção de salvá-lo, mas aqui e agora, naquela cozinha, Isaac estava dando o que ele queria há tanto tempo.
Antes que Matthias fechasse seus olhos pela última vez, ele olhou para Alistair Childe. Sua filha o havia libertado e ele a abraçava, a envolvia em segurança, a cabeça dele estava bem ao lado da dela. Como se o homem sentisse seu olhar, ele olhou também.
O alívio no rosto dele era épico, como se soubesse que Matthias estava morrendo e nunca mais voltaria – e que, apesar de saber que isso não ressuscitaria o filho perdido, o futuro dele e de sua filha estaria protegido para sempre.
Matthias acenou com a cabeça para ele e, então, fechou as pálpebras, preparando-se para o grande nada que estava por vir. Deus, ele ansiava por isso. Sua vida não tinha sido um presente para o mundo ou para ele mesmo e ele estava buscando a não existência.
Enquanto esperava no trecho entre os mundos, quando não se está nem vivo, nem exatamente morto, ele pensou em Alistair na noite em que seu filho havia morrido.
– ...Dan... ny... meu garoto Danny...
Matthias franziu a testa e, então, percebeu que não tinha apenas pensado nas palavras, mas as pronunciou em voz alta.
Foram as mesmas palavras que ele havia balbuciado antes de colocar o pé naquela bomba.
Naquele momento, a luz branca se apossou dele, um produto da dormência... ou talvez tivesse ultrapassado a sensação como se o sentimento fosse uma porta. Após a chegada dessa luz, uma grande e pacífica calma tomou conta de sua mente, corpo e alma como se estivesse limpo de todos os pecados que tinha imaginado ou cometido durante seu tempo na Terra.
A iluminação era muito mais do que qualquer coisa que seus olhos poderiam abranger. Era tudo o que via, tudo o que conhecia, tudo o que era.
O Paraíso realmente existia.
A oh, a adorável inexistência... ah, a felicidade...
Nas extremidades de sua visão, uma névoa cinza surgiu fervilhando, em sua primeira aparição não havia nada distinto, mas, em seguida, as sombras se expandiram em uma escuridão que começou a comer a luz.
Matthias lutou contra a invasão, seus instintos diziam que aquilo não era o que desejava – mas não era uma batalha que ele pudesse vencer.
A neblina tornou-se piche, o envolvia e o reclamava para si, o puxava para baixo em um espiral apertado, apertado... apertado... até que ele foi jogado em um mar com outros.
Quando ele se contorceu contra a maré oculta e asfixiante, ele esbarrou em corpos que se debatiam.
Preso em uma infinidade de óleo negro, ele gritou... junto a todos que estavam ali.
Mas ninguém apareceu. Ninguém se importou. Nada aconteceu.
Sua eternidade, finalmente, tomou posse dele e ela nunca mais o deixaria ir.
CAPÍTULO 50
– Ele está morto.
Quando Isaac pronunciou as palavras, ele se levantou e respirou fundo. Do outro lado, Grier e seu pai estavam envolvidos um ao outro e ele se permitiu um momento para apreciar a visão deles vivos e, enfim, juntos.
Obrigado, Deus, ele pensou – mesmo não sendo um homem religioso.
Obrigado, Deus todo-poderoso.
– Fiquem aqui – disse ele antes de percorrer o local, fechar e trancar a porta dos fundos.
Levou dez minutos para pesquisar e deixar toda a casa em segurança e a última coisa que ele fez foi ir até a porta da frente e verificar mais uma vez se os cadeados estavam devidamente trancados...
Isaac franziu a testa e olhou para o gramado através da janela. Havia um pequeno cachorro lá fora... parado com as pernas atarracadas, com a cabeça inclinada ao olhar para Isaac lá dentro. Que graça... precisava cortar o pelo, mas isso acontece nas melhores famílias.
Isaac abriu a porta e gritou.
– Você mora aqui?
Enquanto aquela cabeça continuava inclinada do outro lado, Isaac procurou pelo jardim da frente e rezou para que Jim Heron surgisse dentre as árvores a qualquer minuto.
Contudo, não havia nada além do cachorro.
– Quer entrar? – ele disse ao animal.
A coisa pareceu sorrir como se tivesse apreciado o convite. Mas, então, ele se virou e afastou-se, um leve mancar o fazia pender para a direita.
Em um piscar de olhos, o animal desapareceu.
Que trilha sonora a dessa maldita noite, Isaac pensou ao fechar a porta de novo.
Assim que entrou na cozinha, Grier se afastou de seu pai num rompante e veio correndo até ele, atingindo seu corpo com força, os braços o envolviam com uma força vital. E com um suspiro de gratidão, ele a segurou, pressionando sua cabeça sobre o peito, sentindo seu coração bater.
– Eu te amo – ela disse contra o colete à prova de balas. – Eu sinto muito. Eu te amo.
Droga, então ele ouviu direito quando estava no chão.
– Eu também te amo. – Erguendo seu rosto, ele a beijou. – Mesmo que eu não a mereça.
– Cale a boca.
Agora era ela quem o beijava e ele mais que a desejava – mas não durou muito. Logo ele interrompeu o contato.
– Ouça, eu quero que você e seu pai façam uma coisa por mim.
– Qualquer coisa.
Ele olhou o relógio. 9h59.
– Volte para a cidade – algum lugar público. Algum dos seus clubes ou algo assim. Eu quero que vocês dois sejam vistos juntos essa noite. Diga às pessoas que vocês foram jantar ou assistiram a um filme no cinema. Uma coisa de pai e filha.
Quando os olhos dela se lançaram sobre o corpo de Matthias, seu pai disse: – Eu posso ajudar.
– Nós podemos ajudar – Grier corrigiu.
Isaac recuou e balançou a cabeça.
– Eu vou cuidar dos corpos. Melhor que nenhum de vocês dois saiba onde eles vão parar. Eu cuido disso – mas têm que ir agora.
Os Childes pareciam dispostos a argumentar, mas ele não tinha nada a dizer.
– Pense nisso. Está tudo acabado. Matthias está morto. Assim como seu segundo no comando. Com eles mortos, as operações extraoficiais vão voltar a ser o que deveriam – e serão administradas pelas pessoas certas. Você está fora. – Ele balançou a cabeça para Childe. – Eu estou fora. A barra está limpa, permitindo com que eu lide com isso de agora em diante. Vamos fazer isso do jeito certo, pela última vez.
Seu pai soltou um palavrão – o que era algo que, sem dúvida, ele não fazia com frequência. E, em seguida, ele disse: – Ele está certo. Deixe-me trocar de roupa.
Quando seu pai desapareceu, Grier olhou para Isaac, seus braços envolveram a si mesma lentamente, seu olhar ficou grave.
– Isso é um adeus entre nós? Hoje à noite? Aqui e agora?
Isaac foi até ela e capturou seu rosto com as mãos, sentindo de maneira muito intensa a realidade da qual não podia escapar e a qual ela não seria capaz de sobreviver.
Com uma dor em seu peito que não tinha qualquer relação com a bala, ele disse uma única e devastadora palavra.
– Sim.
Quando ela cedeu, fechando os olhos com força, ele teve que dizer a verdade: – É melhor assim. Eu não sou seu tipo de homem, mesmo se não tivesse que me preocupar mais com as operações extraoficiais, eu não sou o que você precisa.
Suas pálpebras se abriram e ela o encarou.
– Quantos anos eu tenho? – ela perguntou. – Vamos lá, quantos? Diga!
– Ah... trinta e dois.
– E você sabe o que isso quer dizer, legalmente? Posso beber, posso fumar, posso votar, posso servir o exército e posso tomar minhas próprias decisões. Então, que tal deixar que eu escolha o que é e o que não é bom para mim?
Certo. Não era hora de discussões. E ele realmente achava que ela não tinha pensado nas implicações de estar com um homem com seus antecedentes.
Ele recuou.
– Vá com seu pai. Deixe-me limpar tudo aqui e na cidade.
Seus olhos se fixaram aos dele.
– Não parta meu coração, Isaac Rothe. Não parta meu coração quando você sabe perfeitamente bem que não precisa fazer isso.
Com isso, ela o beijou e saiu da cozinha... e enquanto ele a observava sair, se sentiu sendo direcionado a dois resultados: um onde ele ficava com ela e tentava fazer as coisas darem certo, outro onde ele a deixava para costurar sua vida e seguir em frente.
Ouviu os passos dela e de seu pai no andar de cima enquanto se aprontavam para sair e fingir que não tinham visto dois homens sendo mortos em suas casas e que não estavam rezando para que um soldado a quem eles nunca deveriam ter conhecido desaparecesse com os corpos.
Cristo, e ele sequer considerou estar na vida dela?
Isaac estava sozinho não mais que vinte minutos depois, os dois fizeram uma saída rápida para a cidade com o Mercedes de Childe.
Antes de partirem, Isaac apertou a mão do pai de Grier, mas não ofereceu sua palma a ela – pois ele não confiava que não iria beijá-la uma última vez: olhando para ela em seu vestido preto, com seu cabelo amarrado e maquiada, ela estava como da primeira vez que a viu, uma mulher bonita, bem educada, com os olhos mais inteligentes que ele nunca teve o privilégio de olhar fixamente antes.
– Fique bem – ele disse a ela com voz rouca. – Ligo quando estiver tudo certo para que possam voltar.
Sem lágrimas, sem protestos da parte dela no final. Ela apenas balançou a cabeça uma vez, girou sobre os calcanhares e se dirigiu para o carro do pai.
Quando os dois saíram, ele caminhou até a porta da frente e observou as luzes traseiras do sedã.
Ele teve que secar os olhos. Duas vezes.
E depois que os dois faróis vermelhos desapareceram, ele se sentiu abandonado. Mas aquilo era uma grande besteira, não era? Você não poderia ser abandonado quando se é o único a partir.
Certo?
Procurando algum tipo de contato, algum tipo de esperança, ele olhou ao redor da fileira de árvores do outro lado do gramado mais uma vez. Nenhum sinal de Jim e seus amigos... ou daquele cachorro.
E ele ainda podia jurar que estava sendo observado.
– Jim? Você está aí fora?
Ninguém respondeu. Ninguém saiu da folhagem.
– Jim?
Quando ele voltou para dentro, teve a estranha sensação de que nunca veria Heron novamente. O que era esquisito, pois Jim estava muito entusiasmado para ser um salvador.
Mais uma vez, ele observou o corpo de Matthias estirado no chão, o que significava que Isaac estava em segurança agora – a vida daquele homem acabou servindo para alguma coisa afinal, não é?
Contudo... só para garantir, ele ficou vestido com o colete à prova de balas até o amanhecer.
Não havia razão para não garantir a vida.
CAPÍTULO 51
– Jim? Você está aí fora, Jim?
Quando os olhos de Isaac procuraram pelas árvores, Jim estava a não mais que três passos de distância do cara e desejava poder abraçar o filho da mãe. Deus... quando aqueles tiros explodiram e ele viu pela janela da cozinha quando Matthias e Rothe caíram, anos foram arrancados de sua vida eterna.
Mas Isaac estava bem. Ele se salvou com um pensamento bastante óbvio e defensivo. Assim como foi treinado para fazer.
– Jim?
E agora, ao olhar para seu amigo soldado, uma alegria pura e inalterada o inundava. Ele tinha vencido. Mais uma vez.
Vá se ferrar, Devina, ele pensou. Vá se ferrar!
Isaac estava vivo, assim como Grier e seu pai. E apesar de ir atrás da alma errada no começo, as coisas funcionaram muito bem – embora a coisa de Nigel sobre punição acabou por ser irrelevante, não?
Jim olhou sobre o ombro para Adrian e Eddie e ficou surpreso por eles não estarem todos sorridentes.
– O que há de errado com...?
Ele não teve a chance de terminar a frase. Um turbilhão louco rodopiou sob seus pés, girando em torno dele, levantando-se para reivindicar suas pernas, quadris e peito. Ele tentou lutar, mas não conseguiu fugir...
Suas moléculas se misturaram e se dispersaram até que havia um enxame dentro dele que o fazia sair de suas dimensões de tempo e espaço, ele viajava para algum destino desconhecido. Quando ele se recompôs, sabia exatamente onde estava... e a visão da mesa de trabalho de Devina revirou o seu estômago.
Ele não tinha ganhado. Tinha?
– Não, você não ganhou – ela disse atrás dele.
Girando sobre os calcanhares, ele olhou para ela quando entrou atravessando o arco. Ela estava em sua forma morena, toda linda e exuberante e falsa como uma versão Barbie de si mesma.
Ela sorriu, seus lábios vermelhos ondulavam sobre seus belos dentes brancos.
– Matthias atirou em Isaac com a intenção de matar. Se houve ou não uma morte não importa. Isso significa dolo – uma mente culpada.
Acima de sua cabeça, uma bandeira preta estava pendurada na parede escura, seu primeiro troféu.
– Você perdeu, Jim. – Aquele sorriso ficou ainda maior quando ela levantou os braços e indicou sua grande e viscosa prisão que se erguia acima dos dois. – Ele está aqui agora, meu para sempre.
As mãos de Jim se fecharam para um soco.
– Você trapaceou.
– Trapaceei?
– Você fingiu ser eu, não foi? Foi assim que Matthias entrou na fazenda. Ou você fez com que ele se parecesse comigo ou apareceu como se fosse eu.
Sua satisfação presunçosa era toda a confirmação que ele precisava.
– O que é isso agora, Jim? Eu nunca trapaceei. Então, eu não sei do que está falando. – Devina caminhou até ele, aproximando-se em um sensual deslize. – Diga, você se incomoda de ficar mais um pouco? Eu tenho algumas ideias de como podemos passar o tempo.
Quando ela estava bem na frente dele, suas unhas vermelhas flutuaram sobre seu peito e ela se inclinou.
– Eu amo estar com você, Jim.
Com um forte estrondo, ele capturou o pulso dela e o apertou com força suficiente para quebrá-lo.
– Sei que você adora fazer os outros sofrerem. Mas caso não se lembre, eu resisti às suas torturas.
A vadia teve a coragem de fazer beicinho.
– Você está me machucando.
Ele não acreditou naquilo nem por um segundo.
– E você não vai dizer ou fazer nada.
Agora ela sorria de novo.
– Está certo, Jim, meu amor. Está certo.
Ele soltou dela como se ela o queimasse, o estômago apertou ao reconhecer a luz em seus olhos.
– Isso mesmo, Jim – ela murmurou. – Eu tenho sentimentos por você. E isso o assusta, não é? Com medo de ser recíproco?
– Nem. Um. Pouco.
– Ah, bem, teremos que trabalhar em cima disso.
Antes que ele pudesse detê-la, ela se ergueu e capturou a boca dele, beijando-o rápido e, em seguida, mordendo o lábio inferior com força suficiente para tirar sangue.
Ela recuou rápido, como se soubesse que estava forçando.
– Adeus, por enquanto, Jim. Mas nos veremos em breve. Prometo.
Com nojo, ele limpou a boca com as costas da mão e cuspiu no chão. Estava prestes a levá-la ao chão quando franziu a testa, pensando no que Nigel havia dito no gramado.
Saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva.
Agora, era Jim quem sorria – embora severamente. Havia coisas piores do que seu inimigo apaixonado por você: forte como ela era, tão imprevisível e perigosa quanto seus poderes, aquele olhar em seus olhos, aquele olhar em chamas, fora de controle, era uma arma.
Deixando para trás suas emoções, ele se viu descendo a mão e empurrando seu pênis.
A reação de Devina foi instantânea e elétrica. Seu olhar quente se voltou para os quadris dele, a boca dela se abriu como se não conseguisse respirar direito, os seios se erguiam sobre o corpete do vestido.
– Você quer isso? – ele perguntou rispidamente.
Como uma marionete, ela assentiu com a cabeça.
– Não é o suficiente – ele disse a ela, odiando-a, odiando a si mesmo. – Diga isso, vadia. Diga.
Com uma voz rouca e ansiosa, ela sussurrou: – Eu te desejo...
Jim soltou seu membro, sentindo imundo por dentro e por fora. Mas a guerra era feia, não era? Mesmo se você está do lado bom e moral.
Um mal necessário, ele pensou. Seu corpo e a necessidade dela eram um mal necessário e ele os usaria se precisasse.
– Bom – ele rosnou. – Isso é bom.
Com isso, ele desejou que seu corpo se levantasse do chão, dessa vez a energia era convocada por ele e por mais ninguém.
Ao levitar cada vez mais alto, Devina se aproximou dele, seu rosto se contorcia em um tipo de desejo doloroso que dava mais energia a ele.
E, então, ele não estava mais olhando para ela; ele estava examinando as paredes de sua masmorra, em busca da garota que ele odiaria deixar para trás de novo... assim como seu patrão a quem ele tinha tentado salvar e falhado.
Ele voltaria pela moça. Mas seu patrão... temia que Matthias tinha sido colocado para descansar ali por uma eternidade, o seu sofrimento interminável era merecido.
Contudo, Jim lamentava a perda do homem.
Ele queria redimir o cara.
Jim voltou a consciência no gramado do capitão Alistair Childe. E quando ele voltou a pensar em sua primeira missão, parecia que tinha ficado especialista no vai e vem na grama.
Adrian e Eddie estavam um de cada lado dele, os dois anjos graves e sérios.
– Perdemos – disse Jim. Como se eles já não soubessem.
Adrian estendeu a mão e quando Jim se ergueu, o cara o ajudou a colocá-lo em pé.
– Perdemos – Jim murmurou novamente.
Olhando por cima do ombro, ele pensou brevemente em ir até a fazenda e ajudar Isaac a cuidar dos restos de Matthias, mas decidiu ficar onde estava. O soldado já teria um momento difícil suficiente para fazer com que todas as coisas que não poderiam ser explicadas fizessem sentido – mais contato com Jim só daria a ele outra porcaria para pensar.
– Caldwell – disse Jim aos seus amigos. – Vamos voltar a Caldwell.
– Está certo – Eddie murmurou, como se não estivesse nem um pouco surpreso.
E Jim não ia se preocupar com quem seria o próximo no jogo. Como ele aprendeu com essa tarefa em particular, as almas iriam encontrá-lo. Assim, ele poderia muito bem seguir o que seu coração lhe dizia: que já era hora da família Burten encontrar o corpo de sua filha para enterrá-lo de maneira adequada.
Jim era o único anjo que poderia fazer isso acontecer.
Desfraldando suas grandes asas luminescentes, lançou um último olhar através das janelas da cozinha. Isaac Rothe estava trabalhando com uma determinação sombria, lidando com as coisas com a mesma competência, como sempre fez.
Ele ia ficar bem – desde que fosse inteligente o suficiente para ficar com aquela advogada. Deus, quem tem sorte de encontrar um amor assim? Só um idiota desperdiçaria isso.
Jim se dirigiu para o céu noturno como se tivesse nascido para ele, suas asas o carregavam através do ar frio, o vento batia em sua face e dedilhava seus cabelos, sua equipe de dois membros estava bem atrás dele.
Na próxima batalha ele seria mais rápido no gatilho. E usaria sua nova arma contra Devina para sua total vantagem.
Mesmo se isso o matasse.
CAPÍTULO 52
UMA SEMANA DEPOIS...
Ao se despir no closet, Grier pendurou seu terno preto com os outros e achou ser impossível não se lembrar da maneira como estava organizado antes. Os ternos ficavam à esquerda da porta. Agora, eles estavam bem à frente.
Apenas vestida com sua blusa de seda e meias, ela passou as mãos ao redor, tocando as roupas, perguntando-se quais foram penduradas por ela naquela tarde... e quais Isaac havia organizado depois que ela saiu.
Fechando os olhos, ela quis chorar, mas não teve forças.
Não soube de nada mais sobre ele desde aquela noite da limpeza há uma semana – sobre o que, aliás, ele tinha avisado via mensagem de texto ao invés de pessoalmente ou falando ao telefone.
Depois disso? Nada de ligações, e-mails, visitas.
Era como se ele nunca tivesse existido.
E ele não deixou nada para trás. Quando ela voltou àquela casa, o cartão de visitas que Matthias havia dado a ela assim como as faixas de tecido retiradas da regata e a pasta cheia de dossiês haviam desaparecido. Juntamente com os dois corpos e os dois carros em Lincoln.
De maneira insana, ela procurou por um bilhete, assim como havia feito na primeira vez que ele “partiu”, mas não havia nada. E, às vezes, no meio da noite, quando não conseguia dormir, ela levantava para procurar novamente, verificando nos criados mudos ao lado da cama, na cozinha e até mesmo no closet.
Nada.
A única coisa que ela concluía que ele havia deixado para trás era aquele closet organizado. Mas era algo que ela dificilmente colocaria em seu diário e daria uma olhada de tempos em tempos quando se sentisse melancólica.
Durante aqueles sete dias que se passaram, o trabalho a manteve firme, forçando-a a levantar pela manhã quando tudo o que ela queria era puxar os cobertores sobre a cabeça e ficar deitada na cama o dia inteiro: em todas as manhãs, ela se levantou, se vestiu, tomou café e ficou presa no trânsito durante o curto caminho até o Distrito Financeiro, onde os escritórios se encontravam.
Seu pai tinha sido ótimo.
Eles jantaram juntos todas as noites, como se já tivessem esse hábito antes...
A única coisa mais próxima de uma luz no fim do túnel era – apesar daquilo ser apenas um fósforo aceso e não uma fogueira ou coisa assim – que havia persistido na ideia de tirar umas férias. Na próxima semana ela entraria em um avião e iria até...
Grier congelou, uma sensação de cócegas em seu pescoço interrompendo a rotina de angústia.
– Daniel?
Quando não houve resposta, ela soltou um palavrão. Além de procurar por um bilhete inexistente de Isaac, ela esperava ver o fantasma de seu irmão, mas era como se os dois a tivessem abandonado na pior sem dizer adeus.
Virando-se, ela...
– Daniel! – Ela agarrou o peito. – Cristo! Onde diabos você esteve?
Pela primeira vez, seu irmão não estava vestido com suas roupas da Ralph Lauren. Ele estava com uma longa bata branca, parecendo que estava prestes a se formar na faculdade ou algo assim.
Seu sorriso era terno, mas triste.
– Oi, irmãzinha.
– Pensei que havia me abandonado. – Ela quase saiu correndo para abraçá-lo quando percebeu que não ia dar certo: como sempre, a maior parte dele era de ar. – Por que você não...
– Eu vim para dizer adeus.
– Oh. – Seus olhos se fecharam por conta própria e ela respirou fundo. – Era como se eu já esperasse por isso, acho.
Quando ela abriu os olhos novamente, ele estava bem na frente dela e tudo o que pôde pensar foi em como ele parecia bem. Tão relaxado. Tão... curiosamente sábio.
– Você está pronta para isso agora – ele disse a ela. – Você está pronta para seguir em frente.
– Estou? – Ela não tinha certeza. A ideia de não vê-lo de novo a deixou em pânico.
– Sim, você está. Além disso, não é o tipo de coisa permanente. Vai me ver de novo... Mamãe também. Vai levar muito tempo, mas você tem algo pelo que viver agora.
– Certo, tenho a mim mesma. Sem ofensa, mas eu já venho fazendo isso há trinta anos e é meio vazio.
Agora, ele sorria e sua mão brilhante pairou sobre sua barriga.
– Não exatamente.
Quando olhou para si mesma, ela se perguntou sobre o que diabos ele estava falando.
– Eu amo você – seu irmão disse. – E você vai ficar bem. Eu também quero lhe dizer que acho que estava errado.
– Sobre o que?
– Eu pensei que estava preso entre os dois mundos por que você não me deixaria ir. Mas não era isso. Eu era o único que não me permitia partir. Contudo, você vai ficar em ótimas mãos e tudo ficará bem.
– Daniel, do que você está falando...?
– Vou dizer a mamãe que você a ama. E não se preocupe. Sei que me ama também. Diga “oi” para o papai por mim se puder. Diga a ele que estou bem e já o perdoei há muito tempo. – Seu irmão ergueu sua mão fantasmagórica. – Adeus, Grier. E Daniel seria ótimo. Sabe? Se for menino.
Grier recuou quando seu irmão desapareceu no ar.
Na sua ausência, ela ficou ali, parada de maneira idiota, imaginando no que em nome de Deus ele poderia...
Seus pés começaram a se mover sem que ela os ordenasse e, uma fração de segundo depois, ela se encontrava no banheiro. Escancarando a gaveta onde guardava a maquiagem e suas...
Pílulas anticoncepcionais.
Com a mão trêmula, ela pegou o bloco de bolhas quadrado e começou a contar.
Mas não era como se ela não se lembrasse qual havia esquecido... de tomar.
A última pílula que engoliu foi na noite anterior a de Isaac entrar em sua vida. E eles tinham feito amor duas vezes... talvez duas e meia sem proteção.
Grier saiu tropeçando do banheiro e imediatamente percebeu que não tinha para onde ir. Caindo sobre os pés da cama, ela ficou lá sentada na penumbra e olhava para a embalagem enquanto a chuva começava a cair lá fora.
Grávida? Seria possível que ela estivesse... grávida? Ela estava...?
A batida foi tão silenciosa que no começo ela achou ser apenas um efeito de seu coração que batia forte, mas quando aconteceu de novo, ela olhou para a porta francesa no terraço.
Do outro lado do vidro, uma forma enorme se sobressaía e por um segundo ela quase recorreu ao sistema de segurança. Mas, então, ela viu que não era uma arma na mão do homem.
Uma rosa.
Com certeza parecia uma única rosa.
– Isaac – ela gritou.
Explodindo, ela correu para a porta e a abriu com força.
Seu soldado desaparecido estava ali agora na garoa, seu cabelo úmido, a regata preta deixava seus ombros nus sob as gotas.
– Oi – ele disse com uma voz doce. Como se estivesse inseguro com a recepção que teria.
Grier colocou as pílulas atrás de si.
– Olá...
Sua mente girou em um frenesi ao se perguntar se ele tinha vindo para conversar sobre algum problema com a limpeza dos corpos... ou ele estava ali para avisá-la de que alguém estava atrás deles? Mas, então, por que ele traria uma...?
– Não há nada de errado – ele disse, como se talvez ela tivesse pensado em voz alta. – Só estou aqui para lhe dar isso. – Ele ergueu a rosa branca meio desajeitado. – É... ah, algo que os homens fazem. Quando eles... ah...
Quando a voz pareceu abandoná-lo, Grier olhou para as pétalas perfeitas da flor e, ao respirar fundo, ela sentiu o aroma – e, então, percebeu que estava fazendo com que ele ficasse na chuva.
– Deus, onde está minha educação... entre – ela disse. – Você está se molhando.
Quando ela recuou, ele hesitou. E, então, ele colocou a rosa entre os dentes e se abaixou para desfazer o laço das botas de combate.
Grier começou a rir.
Ela não conseguia evitar e não fazia qualquer sentindo, mas não havia como segurar. Ela riu até que precisou voltar e sentar-se no colchão de novo. Ela ria de alegria, confusão e esperança. Ela ria de tudo, desde a rosa perfeita até o momento perfeito... até o timing perfeito.
Até de ele ser um perfeito cavalheiro – ao ponto de não querer sujar o tapete de seu quarto.
Seu irmão estava certo.
Ela ia ficar bem.
Seu soldado estava em casa afinal... e ela ia ficar perfeitamente bem.
Isaac entrou no quarto de Grier de meias e foi cuidadoso ao fechar a porta atrás de si. Tirando a rosa dentre os dentes, ele passou a mão no cabelo e sentiu mais uma vez a sensação de querer ter aparecido em um smoking ou coisa assim.
Mas ele simplesmente não era o tipo de cara que usava smoking.
Ele se aproximou de sua mulher e ficou de joelhos na frente dela, observando-a dar risada e sorrindo um pouco de si mesmo. Ou ela tinha perdido a cabeça ou estava feliz em vê-lo – e ele esperava com todas as forças que fosse a última opção e não se importava que fosse a primeira se ela o deixasse ficar.
Deus, ela estava linda. Com nada além de uma blusa de seda preta e um par de meias finas, era a coisa mais linda que ele já tinha visto...
Quando ela enxugou os olhos, ele percebeu que havia alguma coisa em sua mão e não era uma flor boba. Era uma embalagem cheia de... pílulas?
Foi evidente quando Grier percebeu o que ele estava olhando, pois ela parou de rir e tentou fixar a coisa nas costas.
– Espere – ele disse. – O que é isso?
Ela respirou fundo, como se estivesse se preparando.
– Por que você voltou?
– O que faz com essas pílulas?
– Você primeiro. – Seu olhar estava mortalmente sério. – Você... responde primeiro.
Bem, agora, ele se sentia como um tolo, mas, novamente, apesar de tudo se justificar no amor e na guerra, não havia lugar para o orgulho de um homem naquela confusão, havia?
– Eu vim para ficar, se você permitir. Passei a última semana... cuidando das coisas. – Não havia motivos para detalhar isso e ele ficou aliviado por ela não perguntar. – E eu tive que pensar um pouco. Eu quero entrar na legalidade. Como você disse, não se pode mudar o passado, mas posso fazer alguma coisa quanto ao futuro. Meu tempo nas operações extraoficiais... vou ter que carregar esse fardo comigo pelo resto da minha vida – mas, e sei que isso vai soar mal, sou um assassino com a consciência tranquila. Não sei se isso faz sentido...
Porém, a questão de haver uma anotação em seu dossiê “Precisa de uma motivação moral” não era apenas fachada – e aquela era a única razão pela qual ele conseguiria viver sem se entregar à prisão ou à cadeira elétrica.
Ele limpou a garganta.
– Quero ir a julgamento pelas lutas clandestinas... talvez se eu concordar em cooperar, posso conseguir uma sentença reduzida, fiança ou algo assim. E, depois, quero conseguir um emprego. Talvez na área de segurança ou...
Ele gostaria de entrar para a equipe de Jim Heron, mas com Matthias morto talvez aqueles três tivessem se separado – contudo, ele nunca saberia. Se Jim não tinha vindo procurá-lo até agora, ele nunca mais iria.
– Acho que estou grávida.
Isaac congelou. Depois, piscou os olhos.
Hum, ele pensou. Considerando o zumbido em seus ouvidos, parecia que alguém tinha atingido sua nuca com um golpe.
O que não só explicava o barulho como também a súbita tontura.
– Desculpe... O que você falou?
Ela ergueu as pílulas.
– Eu me esqueci de tomá-las. Com todo aquele drama, eu simplesmente... não fiz isso.
Isaac esperou para ver se a sensação de “certo, eu fui atingido” voltava e, como pode imaginar, sim, ela voltou com tudo.
Porém, não durou muito. Uma alegria devastadora derrotou suas hesitações e, antes que se desse conta, ele saltou sobre Grier a derrubando no colchão em um abraço de esmagar os ossos. E isso, imediatamente, o deixou apavorado.
– Oh, Deus, eu machuquei você?
– Não – ela disse, sorrindo e o beijando. – Não, estou bem.
– Tem certeza?
Ela lançou um olhar estranho e distante em direção ao dele.
– Sim, estou bem mesmo. Podemos chamá-lo de Daniel se for menino?
– Podemos chamá-lo de tudo. Daniel. Fred. Susie seria complicado, mas eu aceito.
Não havia mais nada a dizer depois disso. Ele estava muito ocupado a despindo e, então, eles ficaram nus e...
– Caramba... – Ele gemeu ao entrar nela, sentindo seu forte abraço e encantado com aquela pressão quente e escorregadia. – Desculpe... eu não quis... reclamar...
Oh, o movimento, o glorioso movimento.
Oh, o glorioso futuro.
Ele estava livre enfim. E, graças à ela, Isaac saiu da tempestade, literalmente.
– Eu amo você, Isaac – ela arfou contra sua garganta. – Mas quero mais intenso... preciso de você mais forte...
– Sim, senhora – ele rosnou. – Qualquer coisa que a moça quiser.
E, em seguida, ele começou a dar-lhe tudo o que tinha... tudo o que era e tudo o que seria.
CAPÍTULO 38
Depois que Isaac se certificou que Grier estava segura, ele tateou ao redor do quarto dela e ouviu com atenção. Quando a falta de passos, confusão, ou tiros não lhe deu informações, ele continuou a ir em direção à entrada. Outra pausa. Será que ele deveria usar a escada dos fundos? A da frente?
Frente. Era mais provável que uma infiltração ocorresse a partir do jardim dos fundos. Havia mais cobertura nessa direção.
Droga, ele esperava que fosse apenas Jim Heron, mas não achava que o cara ia aparecer assim. E o pai de Grier poderia desativar o sistema – ele já tinha provado que conseguia fazer isso. Então, era evidente que ele não tinha permitido a entrada de quem estava ali.
Maldição, se era alguém mandado por Matthias, por que a chegada não foi anunciada pelo transmissor de alerta? Por outro lado, Isaac não permitiria que entrassem ali dentro e sem dúvida eles sabiam disso: Matthias pode ter exigido que Grier e seu pai estivessem por perto, mas Isaac não estava disposto a deixar que o matassem na frente deles.
Ela nunca superaria isso.
Por favor, Deus, ele pensou. Permita que ela fique onde está.
Andando com as costas deslizando contra a parede, ele desceu as escadas, sempre com sua arma à frente. Sons... onde estavam os sons? Não havia nada, literalmente, se movendo na casa e, considerando que o pai de Grier andava como um leão enjaulado, aquele silêncio todo não era animador.
Assim que a parede terminou e o percurso sem corrimão começou, ele se balançou, se soltou e, deliberadamente, aterrissou com força como uma pedra na sala da frente.
Às vezes, o ruído era um bom direcionador, dando ao seu oponente um alvo para perseguir.
E, como pode imaginar, o “boom” dos pés de Isaac atingindo o chão atraiu o visitante: da cozinha, um homem vestido de preto entrou em sua visão.
O segundo na linha de comando de Matthias.
E ele fez do pai de Grier um escudo humano.
– Quer trocar? – o cara disse severamente.
A arma apontada para a cabeça de Childe era uma automática equipada com um silenciador. Bem, não era surpresa. Era idêntica a que havia nas mãos de Isaac.
Movendo-se lentamente, Isaac curvou-se para baixo e colocou sua arma no chão. Então, chutou para longe.
– Deixe-o ir. Venha, leve a mim.
Childe arregalou os olhos, mas se segurou. Ainda bem.
Isaac virou para a parede, colocou as mãos em cima do gesso e abriu os tornozelos em posição de uma apreensão clássica. Olhando por cima do ombro, ele disse: – Estou pronto para ir.
O segundo no comando esboçou um sorriso.
– Olhe para você, todo condescendente. Traz até uma lágrima no olhar.
Com um movimento rápido, o soldado deu um golpe no pai de Grier com a coronha da arma, o velho Childe caiu ao chão como um saco de areia. Em seguida, foi a vez do segundo no comando caminhar até Isaac, com a arma apontada para ele e com uma atitude inabalável.
Tão estranho quanto isso era o seu olhar negro e fosco.
– Vamos fazer isso logo – Isaac disse.
– Onde está sua outra arma? Eu sei que você tem outra.
– Venha pegar.
– Você quer mesmo brincar comigo?
Isaac se aproximou e pegou sua outra arma.
– Onde você a quer?
– Pergunta errada. No chão e dê um pontapé.
Quando Isaac se inclinou, o outro homem também o fez. E não mudaram de posição até que os dois se endireitassem e Isaac percebesse que sua primeira arma, a do silenciador, tinha sido apanhada por uma mão negra, enluvada.
– Então – o segundo no comando falou devagar – Matthias tem se divertido com as conversinhas que vocês dois têm levado e ele quer que eu o mantenha aqui até ele chegar. – O maldito olhar do bastardo se aproximou. – Mas eis a questão, Isaac: há coisas maiores em jogo e esta é uma situação pela qual seu chefe não é responsável.
O que era aquela coisa de “seu chefe”, Isaac pensou.
E, então, ele franziu a testa ao perceber que o braço do cara, aquele que tinha sido quebrado há menos de dois dias, parecia estar completamente curado.
E aquele sorriso estava errado... havia algo de errado com aquele sorriso também.
– As coisas vão tomar um rumo diferente – o segundo no comando disse. – Surpresa!
Com isso, ele colocou a arma de Isaac no próprio queixo e puxou o gatilho, explodindo sua cabeça por completo.
CAPÍTULO 39
Jim saiu do coma com sua nuca em chamas. Ele não fazia ideia de quanto tempo ficou apagado, mas estava claro que Ad o colocou de novo na cama: a maciez sobre sua cabeça era, definitivamente, um travesseiro e não a barra fria e dura da banheira.
Quando ele se sentou na cama, ficou chocado: sentia-se forte de uma maneira curiosa e milagrosamente estável. Era como se o tempo de descanso que teve... bem, que deve ter durado horas, supondo que estava lendo o relógio direito... tinha o reiniciado por dentro e por fora.
O que era uma boa notícia.
Contudo, a tensão no topo de sua coluna não era nada além de uma coisa: Isaac.
Isaac estava com problemas.
Balançando as pernas para fora da cama na posição vertical e as firmando no chão, não sentiu náuseas, tonturas, dores ou incômodos. Apenas o formigamento na base do crânio – ele não estava apenas pronto para ir, estava rugindo para fazer isso.
– Adrian! – ele gritou enquanto se aproximava de sua mochila e puxava um par de calças jeans.
Onde, diabos, estava o Cachorro?
Através da porta que ligava os quartos, ele pôde ver que as luzes estavam acesas do outro lado, então, o anjo tinha que estar lá.
– Adrian! – ele pronunciou o comando e puxou as calças; em seguida, pegou uma camisa.
– Nós temos que ir!
Ele pegou sua adaga de cristal e a colocou no casaco.
– Ei, Ad...
Adrian estava esparramado no quarto com o Cachorro debaixo do braço.
– Eddie está em apuros.
Bem, aquilo não fez com que a sensação de sua nuca tivesse muita melhora.
– O quê?
Adrian se desfez do Cachorro e deixou que pulasse para dizer “oi” a Jim.
– Ele não está atendendo ao telefone. Eu liguei. E liguei de novo. E liguei uma terceira vez. Nunca aconteceu.
– Droga.
Quando Ad se aprontou, Jim deu uma olhada no Cachorro e colocou um pouco de comida e, em seguida, ele e seu braço direito decolaram, literalmente. Cara, ele nunca foi tão grato por aqueles instrumentos em suas costas com os quais em um piscar de olhos estavam em qualquer lugar: apenas alguns minutos depois, eles estavam em Beacon Hill.
Ele e Adrian desembarcaram no jardim murado em uma chama brilhante e se mantiveram ocultos de olhares indiscretos, pois eram apenas quatro da tarde. A casa parecia bem por fora e o feitiço vermelho reluzente ainda estava no local, mas seu pescoço estava o matando. E onde, diabos, estava Eddie...
– Droga – ele disse cuspindo quando viu as solas das botas de combate do anjo saindo de um arbusto.
Jim bateu os pés no dele e se agachou. O cara estava deitado de costas para baixo, parecendo que tinha lutado contra um trator e perdido.
– Eddie?
O grande anjo abriu os olhos.
– Que inferno... o que... Eu não sei o que aconteceu. Em um minuto eu estava em pé. No seguinte...
– Você parece um tapete de boas vindas.
Adrian estendeu uma de suas mãos para ajudar seu melhor amigo a levantar.
– Que droga foi essa?
– Não faço ideia. – Eddie ficou em pé devagar. Então, ele olhou para Jim e se encolheu. – Jesus Cristo...
Jim franziu a testa e olhou ao redor.
– O que?
– Seu rosto...
Certo, talvez ele apenas estivesse se sentindo melhor. Com sorte, a parte da aparência ficaria boa depois.
– Está dizendo que meus dias de modelo de calendário chegaram ao fim?
– Não sabia que estava nessa. – Eddie balançou a cabeça. – Ouça, Isaac quer falar com você. O mais rápido possível.
Jim olhou para Adrian.
– Você fica com o tapete de boas vindas.
– Como se eu pudesse ir a outro lugar.
Jim correu para casa. A porta dos fundos estava aberta, o que era uma má notícia – e a porcaria só aumentou ao atravessar a cozinha.
Deus, você nunca se acostuma com o cheiro de um ferimento mortal feito à bala: havia diferentes aromas, vísceras, sangue, cérebro, mas as nuances eram todas metálicas em meio aos componentes da bala.
O primeiro corpo que ele encontrou foi de um homem do qual ele conhecia: capitão Alistair Childe. O pobre coitado estava deitado no arco que dava para o corredor da frente, contorcido no chão todo amontoado.
No entanto, não era ele a origem do sangue. Não havia nada na roupa ou no piso e Childe estava respirando regularmente apesar do cochilo forçado por um nocaute.
O corpo número dois estava na metade do caminho da porta da frente e era evidente ser a origem do cheiro... Sim, uau, se Jim se lembrava dos que já tinha visto, o bastardo era um candidato para um caixão lacrado: seu rosto estava distorcido de dentro para fora, a bala deve ter viajado por entre a carne e os ossos de seu queixo e nariz antes de fazer uma saída triunfal no topo do crânio.
Considerando a tatuagem de uma serpente no pescoço do cara, tinha que ser o segundo na linha de comando de Matthias.
E Isaac estava parado próximo ao cara com uma expressão assustada de “Mas que droga!”
Rothe levantou os olhos e as mãos desarmadas.
– Ele fez isso... a si mesmo. Droga... Como está o pai?
Jim se ajoelhou ao lado do capitão para verificar mais uma vez. Sim, Childe tinha sido atingido na cabeça, provavelmente com a coronha de uma arma, mas ele já estava começando a gemer como se estivesse recobrando a consciência.
– Ele vai ficar bem. – Jim se levantou e se dirigiu a Isaac e ao outro cara. Ao chegar mais perto, o cheiro ficou pior...
Ele começou a andar devagar e, em seguida, parou completamente. E esfregou os olhos.
Uma sombra cinza cintilante cobria o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias da cabeça aos pés, movendo-se ao redor dos braços, pernas e da cabeça estourada da mesma maneira que o feitiço de Jim se movimentava e cobria a casa em que estavam. E havia algo de errado com o sangue – cinza e não vermelho brilhante.
Devina, pensou Jim. Ou ela estava no homem ou tinha assumido o controle.
– Ele simplesmente colocou a coisa debaixo do queixo e puxou o gatilho. – Isaac ajoelhou-se sobre os quadris e acenou para a arma que estava na mão direita do cadáver.
– Ele usou minha arma para fazer isso.
– Fique longe do corpo, Isaac.
– Vá se ferrar, eu tenho que limpar isso antes que...
Jim não estava interessado em discutir e agarrou o rapaz, puxando-o para cima e fazendo com que recuasse alguns passos.
– Você não sabe o que é isso.
– Para o inferno que não sei. Ele veio para me pegar.
Jim encarou Isaac.
– A última vez que o vi você estava fugindo.
– Mudança de prioridades.
Que droga, ele é sequestrado por doze horas e o mundo vira de cabeça para baixo: Isaac se entrega, um demônio estava morto na porta de entrada de um civil, nada mais fazia sentido.
– Eu não vou deixar que volte ao trabalho, Isaac. Ou se sacrifique para manter outra pessoa viva. – Pois quanto você quer apostar que era o que estava acontecendo ali?
– A escolha não é sua. E, sem ofensa, mas eu ainda não sei por que você dá a mínima. – O soldado pegou um dos dispositivos das operações extraoficiais que estava disfarçado de transmissor de alerta. – Além disso, não adianta. Eu já me entreguei.
Aquela luz piscando fez Jim querer gritar. E foi o que ele fez.
– Mas que droga é essa que você está fazendo? Matthias vai matá-lo...
– E?
Uma voz aristocrática interrompeu.
– Eu pensei que você se apresentaria com informações sobre Matthias.
Jim olhou sobre o ombro. Alistair Childe tinha ficado em pé e estava se aproximando deles, sua mão na parede como se precisasse de ajuda para se equilibrar.
– Eu pensei que esse era o plano, Isaac. E, Jim, eu pensei que tinha morrido em Caldwell. Três ou quatro dias atrás.
Jim e Isaac passaram por cima de tudo e ignoraram qualquer regra de retórica. O que era fácil de fazer, considerando o quanto precisavam explicar.
O fato de que o segundo na linha de comando tinha entrado e se matado com a arma de Isaac era apenas a superfície da coisa. A verdade principal era que Devina estava por trás de toda a situação. Mas com que finalidade? Se Isaac era o alvo, por que diabos ela simplesmente não o tomou enquanto Jim não estava por perto?
– Ela... ele tinha um bom ângulo para atirar em você? – Jim perguntou. – Em qualquer momento?
– Você quer dizer, para matar? Claro que sim... eu estava contra a parede, com as mãos espalmadas e minhas armas no chão. Esse é um ângulo bom o suficiente para você?
– Isso não faz sentido. – Ele olhou para baixo, em direção ao corpo. – Não faz sentido.
– Temos que nos livrar do corpo – Isaac disse. – Antes que eu vá, temos que...
– Não vou permitir que se entregue.
– Não é da sua conta.
– Que droga...
– Meu pensamento era exatamente esse.
Isaac franziu a testa, os olhos dele se estreitaram ao observar a face de Jim.
– E o que diabos aconteceu com você ontem à noite?
Em uma fração de segundo, Jim realmente considerou bater sua cabeça contra a parede, só que seria redundante, dado o formato em que ele já se encontrava. Como, diabos, ele ia tirar Isaac dessa confusão?
Ele não poderia deixar tudo às claras e explicar o que realmente estava acontecendo: Bem, entenda, eu morri mesmo e Matthias não é o problema. Estou tentando mantê-lo longe de um demônio que quer sua alma. E eu não faço ideia do que ela está fazendo aqui.
Sim, isso seria um desastre total.
Isaac não esperou por uma resposta sobre o rosto de Jim. Era evidente que o cara tinha se metido em alguma briga com oitocentos seguranças ou algo assim e isso não era da sua conta. O que lhe dizia mesmo respeito era o soldado que, de alguma maneira, consertou seu braço como se fosse mágica antes de se matar.
A menos que... gêmeos?
Droga... sim. Tinha que ser. E Matthias usaria isso como um belo instrumento para ajudar a ferrar com a mente das pessoas. Não surpreende que ele tenha escolhido o filho da mãe para ser o segundo na linha de comando.
Quando Jim soltou mais um palavrão e começou a percorrer o caminho do corredor de entrada, Isaac se inclinou e desabotoou rapidamente a manga da roupa do segundo na linha de comando. Nenhum sinal de qualquer coisa no antebraço com relação a uma reparação cirúrgica, não havia evidência de pele ou osso quebrado.
Gêmeos. Tinha que ser.
Com um golpe rápido, ele rasgou a camisa preta, os botões estalaram e saltaram sobre o chão. O colete a prova de balas exposto foi uma surpresa. Sim, era uma edição padrão, mas por que se preocupar com um se a intenção é explodir o crânio feito um balão de festa?
Sem ter certeza exata do que estava procurando, ele puxou as tiras do velcro do colete.
– Mas que... porcaria... – Ele se inclinou para se certificar de que estava enxergando direito.
Por toda a pele do estômago do cara havia profundas cicatrizes que formavam um padrão e quando Jim deu uma olhada nisso e começou outra rodada de palavrões, Isaac continuou a revistar rapidamente. Celular, o qual ele colocou de lado. Carteira com cem dólares em dinheiro, não havia carteira de identidade. Munição. Nada nas botas, a não ser as meias e o solado.
Passando por cima do corpo, ele foi em direção à cozinha para pegar uma lata de lixo. Quando estava puxando a coisa para fora do armário e se perguntava quantos braços e pernas caberiam ali, ele ouviu passos atrás dele. Obviamente, sua plateia de fãs o seguiu, mas vamos lá, pessoal. Chega de conversa; eles precisam de ação. Grier estava trancada no maldito armário lá em cima e ele tinha que limpar toda aquela porcaria antes de deixá-la sair...
– Você mentiu.
Isaac congelou e girou a cabeça. Grier estava parada do outro lado da ilha de mármore, acabando de fechar a porta da adega atrás dela. Mas como diabos ela... Droga, devia ter uma escada secreta que era ligada ao porão. Ele deveria ter adivinhado que havia várias rotas de fuga.
Quando ela olhou para ele estava branca como um lenço de papel e tremia.
– Sua intenção nunca foi se apresentar. Foi?
Ele balançou a cabeça, sem saber o que dizer e bem ciente do que havia no corredor de entrada da casa dela. Aquela situação estava totalmente fora de controle.
– Grier...
– Seu bastardo. Você mentiu seu b... – De repente, ela olhou por cima dos ombros dele. – Você... – Ela apontou para Jim, que estava em pé sob o arco. – Você é quem estava no meu quarto na outra noite. Não é?
Um expressão estranha passou pelos traços de Jim, uma espécie de “agora eu me ferrei”, mas, então, ele apenas deu de ombros e olhou para Isaac.
– Não vou permitir que você se entregue.
– Essa sua música nova está me dando nos nervos – Isaac exclamou ao decidir pegar o lixo e acabar com aquela história.
Conversa fiada, quanta conversa fiada da parte de todos... e todas direcionadas a ele. Mas que seja. Surdez seletiva era algo no qual se destacava quando era criança e, como pode imaginar, a habilidade voltou a ser exercida sem um pingo de ferrugem.
Isaac se curvou embaixo da pia e rezou para que o lugar mais lógico para se colocar sacos de lixo fosse mesmo ali... bingo. Ele pegou dois deles, uma vassoura e uma pá que não iriam sobreviver a esse trabalho em particular.
Deus, ele desejava ter uma serra. Mas talvez com alguma corda, eles poderiam dobrar o bastardo e carregá-lo como uma mala malfeita.
– Fique com ela – ele disse ao pai. – E a mantenha aqui...
– Eu vi o que aconteceu. – Quando Isaac congelou, ela o encarou. – Eu o vi fazer aquilo.
Houve uma pausa longa e silenciosa, como se ela tivesse acorrentado todos os homens do local.
Ela balançou a cabeça.
– Por que você fingiu que iria adiante com isso, Isaac?
Quando ela o encarou, a confiança tinha desaparecido de seus olhos. E, no lugar, havia um olhar frio – o qual ele imaginava que as pessoas que trabalhavam em laboratórios exibiam ao observar resultados de culturas em uma placa de Petri.
Não havia o que dizer a ela, não podia negar a mudança. E talvez fosse melhor assim. De qualquer maneira, eles não tinham que estar juntos – e isso era para ser assim até mesmo antes dele mergulhar na busca de excelência profissional na área de matar pessoas.
Isaac pegou seu kit de empregada feliz e se dirigiu para a entrada.
– Eu preciso tirar o corpo de lá.
– Não fuja de mim – ela gritou.
Ele ouviu Grier vindo atrás dele como se tivesse a intenção de gritar um pouco mais, então, ele parou e girou sobre os calcanhares ao chegar ao arco. Quando ela estacou para não passar por cima dele, Isaac olhou bem dentro de seus olhos.
– Fique aqui. Você não quer ver...
– Vá se ferrar! – Ela o empurrou, marchando até... – Oh... Deus... – Ela sufocou a palavra, sua mão subiu até a boca.
Bingo, ele pensou sombriamente.
Felizmente, o pai dela estava ali, aproximou-se e a direcionou gentilmente para longe daquela visão.
Amaldiçoando a si mesmo e tudo relacionado à sua vida, Isaac continuou até a entrada, mais determinado do que nunca a cuidar do problema... só que seu senso de urgência deu um tempo quando chegou ao corpo.
Um celular estava na mão do cadáver e a coisa estava enviando uma mensagem; a pequena tela no telefone estava brilhando com a imagem de um envelope entrando em uma caixa de correio várias vezes.
Certo. Hora de retomar alguns conceitos aqui: gente que não tinha o lobo frontal geralmente não pegava o celular e discava alguma coisa nele.
Um pequeno aviso brilhante apareceu indicando sucesso.
– Isaac, você vai precisar de mais do que uma pá para lidar com isso.
Ao som da voz de Jim, ele olhou sobre o ombro. E teve que piscar algumas vezes. O homem estava parado na parte escura do corredor, bem longe da luz, que passava pelos arcos, vinda da sala de estudos e da biblioteca... mas ele estava iluminado, havia um brilho em torno dele da cabeça aos pés.
O coração de Isaac deu altos pulos na caixa torácica. Então, pareceu tomar um pouco de fôlego.
Muitas vezes, ele esteve no campo, em meio a uma missão e as coisas não deram certo: você acha que sabe os hábitos e recursos de seu alvo, os pontos fracos e fortes, mas quando está prestes a atacá-lo, a paisagem muda como se alguém tivesse jogado uma bomba no meio da praça do seu plano perfeito. Era o mau funcionamento de uma arma. Uma testemunha em potencial que fazia com que perdesse a hora certa. O alvo pisando fora da faixa indicada.
O que você tinha que fazer era recalcular rapidamente a situação e Isaac sempre foi excelente nisso.
Que inferno, aquele jogo de videogame o treinou de maneira involuntária a abrir totalmente sua mentalidade para agir rápido.
Mas aquela porcaria estava fora de sua especialidade. Bem fora.
E isso foi antes de Jim empunhar uma longa adaga... que era feita de cristal.
– Você vai deixar com que eu cuide disso agora. Afaste-se do corpo, Isaac.
CAPÍTULO 40
Matthias passou muito tempo dentro daquela igreja de pedra. E, quando finalmente ele se esforçou para sair, concluiu que tinha permanecido lá uma hora ou mais, mas no instante em que olhou para a posição do sol no céu, percebeu que tinha perdido toda a manhã e a maior parte da tarde.
Ainda assim, ele teria ficado mais se pudesse.
Ele não era um homem religioso, mas havia encontrado uma paz chocante e rara debaixo daquelas galerias de vitrais e diante do altar glorioso. Mesmo agora, quando sua mente lhe dizia que aquilo era tudo besteira, que o lugar era apenas um edifício e que ele estava tão cansado que poderia dormir até numa montanha russa da Disney – apesar de tudo isso, seu coração se sentia melhor.
A dor havia cessado. Logo depois que ele se sentou, a dor em seu braço e peito esquerdo tinha desaparecido.
– Tanto faz – ele disse em voz alta ao chegar ao carro. – Tanto faz, tanto faz...
Voltar ao jogo era algo pelo qual ele se sentia compelido a agir e havia uma picada agradável com relação a isso, como se estivesse arrancando a casca de uma ferida. De alguma maneira, ele estava cativado pelo que tinha encontrado na igreja, mas seu trabalho, seus atos, seu modo de vida formavam um turbilhão que o sugava e o mantinha assim e ele, simplesmente, não tinha energia suficiente para lutar contra isso.
E depois... talvez houvesse um meio termo, ele pensou, quando fosse tratar de Isaac Rothe. Talvez ele pudesse fazer com que o rapaz continuasse a trabalhar em uma área diferente. Era evidente que o soldado tinha respondido bem às ameaças contra Grier Childe – o que poderia ser o suficiente para mantê-lo na linha.
Ou... ele poderia deixar o cara ir.
No instante em que o pensamento cruzou sua mente, algo dentro dele o atingiu como se aquilo fosse uma grande blasfêmia.
Irritado consigo mesmo e com a situação, ele ligou o motor e verificou o telefone. Nada vindo de seu segundo na linha de comando. Onde diabos estava o bastardo?
Ele enviou uma mensagem de texto exigindo uma atualização e dando seu tempo estimado de chegada, o que, naquele momento, seria depois do anoitecer. Para o inferno com a história de fora do estado. Era melhor que o filho da mãe estivesse com Isaac Rothe amarrado a uma cadeira antes de Matthias arregaçar as mangas – e Deus o ajudasse se tivesse matado Rothe.
Quando a impaciência contorceu suas mãos sobre o volante, Matthias saiu da calçada e pegou a estrada graças à tela do GPS no painel. Ele tinha seguido menos de um quilômetro antes da dor sob seu peito voltar, mas era como vestir uma roupa com a qual ele já estava acostumado depois de experimentar os trajes de outra pessoa: fácil e confortável de uma maneira maldita.
Seu telefone disparou. Mensagem de foto. Do seu segundo na linha de comando.
Quando ele aceitou, ficou aliviado. Uma confirmação visual de que Isaac estava vivo e sob custódia era uma coisa boa...
Não era uma imagem de Isaac. Eram os restos do rosto de seu subordinado. E aquela tatuagem de cobra que percorria a garganta do homem era a única maneira de ter certeza que era ele.
Abaixo da imagem dizia: Venha me pegar – I.
O primeiro e único pensamento de Matthias foi... mas que droga. Que filho da mãe maldito. Que diabos Rothe estava pensando? Que droga, se as ameaças contra sua querida, doce e encantadora Grier Childe não funcionaram, Isaac era totalmente incontrolável e, portanto, ele tinha que ser sacrificado.
Uma fúria cruel fez com que abandonasse os últimos resquícios remanescentes de seu tempo na igreja, uma fonte de vingança emanava e rugia. Quando essa sensação o atingiu, no fundo de sua mente, ele teve uma ideia concluindo que aquele não era ele, que a precisão fria e cortante de pensamento e ação que sempre foram sua marca registrada o teriam impedido de provocar aquele pico de destruição. Contudo, ele era incapaz de se afastar da necessidade de agir – e agir de maneira pessoal.
Chega de mandar outros fazerem o trabalho sujo... havia inúmeros agentes que poderia ter convocado, mas ele ia cuidar disso sozinho.
Da mesma maneira que teve que ver o corpo de Jim Heron com seus próprios olhos, ele iria até lá e acabaria com Rothe sozinho.
O homem tinha que morrer.
CAPÍTULO 41
Quando Grier se sentou no sofá no canto da cozinha, ela se lembrou de sua escolha pelo direito ao invés da medicina e soube que tinha tomado a decisão certa: ela nunca teria estômago para ser médica.
Suas notas e aproveitamento a permitiriam entrar em qualquer uma das graduações, mas o fator decisivo foi Anatomia Humana, que já ministravam no primeiro ano de faculdade: um olhar naqueles corpos durante sua excursão de pré-admissão e ela teve que colocar a cabeça entre os joelhos e tentar respirar como se estivesse em uma aula de ioga.
E, como pode imaginar, o fato de que havia alguém em uma condição ainda mais desagradável à frente era muito pior.
Surpresa, surpresa.
Outro choque para o momento – não que ela precisasse de um – foi a mão de seu pai fazendo círculos calmos e lentos em suas costas. As vezes em que ele tinha feito alguma coisa assim foram poucas e há muito tempo, isso porque ele não era o tipo de homem que lidava bem em mostrar suas emoções. E, ainda assim, quando ela realmente precisava disso, ele sempre estava lá: na morte de sua mãe. Na de Daniel. No terrível término de relacionamento com o cara com quem ela quase se casou logo depois que saiu da faculdade de direito.
Aquele era o pai que ela conhecia e a quem amou durante toda sua vida. Apesar das sombras que o cercavam.
– Obrigada – ela disse sem olhar para ele.
Ele clareou a garganta.
– Eu não acredito que mereço esse agradecimento. Tudo o que está acontecendo é por minha causa.
Ela não podia discutir isso, mas não tinha forças para condená-lo, especialmente considerando a terrível dor expressa em sua voz.
Agora que sua raiva tinha passado, ela percebeu que sua consciência iria assombrá-lo até o dia de sua morte e essa era a punição que ele merecia e que iria carregar. Além disso, ele já teve que enterrar uma criança, um filho imperfeito a quem ele tinha amado do seu jeito e que tinha perdido de uma maneira horrível. E, embora Grier pudesse passar o resto de seus dias se afastando dele e o odiando pela morte de Daniel... ela estava mesmo disposta a carregar esse fardo?
Ela pensou no corpo no corredor da frente e como a vida poderia ser arrebatada no intervalo de uma respiração e outra.
Não, ela decidiu. Ela não ia permitir que a mágoa e a raiva que sentia a afastasse do que restava de sua família. Levaria tempo, mas ela e seu pai iriam reconstruir seu relacionamento.
Pelo menos essa era uma coisa verdadeira e certa que Isaac havia dito.
– Não podemos chamar a polícia, podemos? – ela disse. Pois com certeza alguém que aparecesse ali em um uniforme seria caçado também.
– Isaac e Jim vão cuidar do corpo. É isso o que eles fazem.
Grier estremeceu com a ideia.
– Será que ninguém vai sentir falta dele? Qualquer pessoa?
– Ele não existe. Não de verdade. Qualquer família que ele tenha pensa que está morto... Esse é o requisito para os homens que entram nessa área das operações extraoficiais.
Deus, moralmente, ela tinha uns doze problemas com relação à morte. Mas ela não ia colocar sua vida em risco pelo cara que tinha sido enviado para matar Isaac e talvez matar a ela também.
Só que... bem, aparentemente, ele tinha cometido suicídio com testemunhas.
– O que vamos fazer? – ela disse, falando alto e sem esperar uma resposta.
E aquele nós na frase se referia a ela e seu pai. O nós não incluía Isaac.
Ele mentiu. Na cara dela. De fato, ele teve contato com aquelas pessoas terríveis – e, por algum tempo, ela pensou que tinham um plano. É claro que ele não ia trair seu pai, mas era apenas uma medida de prevenção, pois era evidente que tinha decidido se entregar – ou pelo menos era o que parecia. Um homem como ele, que lutava como ele e ficava à vontade com armas? Era muito mais provável que decidisse matar quem estivesse o levando em custódia e fugir do país livre, leve e solto.
Tudo bem. Ela permitiria que ele partisse.
Ele não era nada além de atração sexual embalada em uma caixa com uma bomba-relógio – e aquele som era o cronômetro da bomba que havia em todas as pessoas atraentes. E aquela coisa de “eu te amo”? A questão com os mentirosos é que você acredita em qualquer coisa que eles dizem por sua conta e risco – e não só nas coisas que você sabe serem falsas. Ela não tinha certeza de qual era a pegadinha a respeito daquela “confissão”, mas ela sabia agora que aquilo tudo não passava de fumaça.
Grier havia se decidido, estava cansada demais para qualquer coisa além da dormência. Bem, dormência e a sensação de ser uma idiota. Mas, vamos lá, como se aquela “rara combinação” de brutalidade e gentileza realmente existisse.
– Espere aqui – seu pai disse.
Quando ele se levantou, ela percebeu dois homens grandes entrando na cozinha. Os dois seguiam os mesmos moldes de Isaac e definitivamente não estavam mortos assim como Jim Heron – e a visão deles era ainda outro lembrete do que estava acontecendo no corredor da frente.
Contudo, ela precisava de ajuda para se lembrar disso?
– Somos amigos de Jim – o homem com uma trança disse.
– Aqui – Heron gritou pela passagem do corredor.
Quando os dois saíram com seu pai em direção ao corpo, ela ficou irritada consigo mesma e tentou tomar uma atitude mental madura. Quando se levantou, sua cabeça girou, mas aquela sensação rodopiante retrocedeu enquanto ela ia até a cafeteira e começava os movimentos para fazer um pouco de café fresco.
Filtro. Ok.
Água. Ok.
Pó de café. Ok.
Botão ligar. Ok.
A normalidade daquele ato a fazia se recompor um pouco mais, e quando o café ficou pronto, Grier estava preparada para lidar com a situação.
Algo bom também. Era hora de pensar no futuro... no que estava além daquela noite feia e daqueles angustiantes últimos três dias.
Infelizmente, sua mente era como um espectador de um acidente de carro, demorando-se em torno dos destroços retorcidos e dos corpos no chão, presa nas memórias dela e de Isaac juntos. Contudo, em dado momento, ela interrompeu aquele foco doentio, seu lado racional atuava como um tira e forçava seus pensamentos a se moverem, a seguir em frente agora.
A questão era que Isaac tinha entrado em sua vida por uma boa razão: graças a ele, ela finalmente tinha aprendido a lição que a morte de Daniel tinha para lhe ensinar. Moral da história? Por mais que você quisesse que alguém mudasse e acreditasse que essa pessoa poderia mudar, cada um tem o controle sobre sua própria vida. Não você. E você poderia atirar-se contra a parede de suas escolhas até que estivesse cheio de hematomas e tonto demais, mas a menos que decidisse tomar um rumo diferente, o resultado não será aquele que você deseja.
Aquela percepção não ia impedi-la de ajudar pessoas na cadeia ou assumir casos voluntariamente. Mas era hora de colocar alguns limites no quanto ela tinha que se doar... e o quão longe ela estava disposta a ir. Em todas as suas atitudes exageradas de boa samaritana, ela tentava ressuscitar Daniel – mesmo sabendo que conversar com seu fantasma deveria ser a primeira dica de que ele não iria voltar. No entanto, ao descobrir a verdade sobre o que tinha acontecido com ele e na tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio para si, talvez ela pudesse finalmente deixá-lo descansar e seguir em frente.
Tomando outro gole em sua caneca, ela sentiu um pouco de paz apesar das circunstâncias bizarras...
Neste momento, outro disparo se ouviu vindo da parte da frente da casa.
No corredor, Jim tinha acabado de se aproximar do corpo com a adaga de cristal quando sentiu a presença de Eddie e Adrian na cozinha. Deus, o momento para a entrada deles era perfeito. Ele estava preparado para agir por conta própria, mas ter cobertura nunca foi uma má ideia.
– Estou aqui – ele gritou.
Os dois vieram direto e nenhum parecia surpreso com o que estava no chão.
– Oh, cara, Devina tomou conta desse aí – Ad murmurou ao caminhar até os restos.
– O que diabos você está fazendo com essa adaga? – Isaac perguntou.
Bem, na verdade, ele ia fazer um rápido exorcismo. Essa era a única maneira de ter certeza que Devina estava fora...
A primeira pista de que o cadáver estava reanimando foi uma contração nas mãos. Em seguida, rapidamente, aquele pedaço de carne se ergueu do chão e conseguiu focar um globo ocular que parecia estar funcionando.
E não é que isso o fez se lembrar de Matthias?
Isaac soltou um grito e disparou sua arma, mas foi como atirar um elástico com força em um touro enraivecido.
Jim empurrou o soldado para fora do caminho e atacou dando um bote, seu corpo arremessou o zumbi contra a parede. No momento em que o impacto foi feito, a imagem do rosto de Devina sobrepôs os traços dizimados do homem cujo corpo ela tinha assumido o controle, a reconfiguração metamórfica das características sorria de satisfação para ele.
Como se ela já tivesse vencido.
Jim atacou com a faca em um golpe rápido e poderoso, a adaga de cristal penetrou entre os olhos corpóreos e também os metafísicos.
Um som estridente explodiu do zumbi e uma haste de fumaça negra subiu em um fedor vil, a névoa escura se fundiu e, em seguida, fez um caminho rápido para a porta da frente. No último segundo, a coisa brilhou sob os painéis da frente, como se tivesse sido sugada do outro lado – e na sua ausência, o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias caiu no chão como o saco de ossos que era, a fonte de sua animação não sustentava mais os limites de sua carne.
– Agora está morto mesmo – disse Jim ao respirar com dificuldade.
No silêncio chocante que se seguiu, ele olhou para Isaac por cima do ombro. Os olhos do cara dariam uma grana no quesito diâmetro se fossem pneus de caminhão e havia água escorrendo deles. Adrian e Eddie esvaziaram os canos da arma de cristal sobre sua cabeça para protegê-lo.
Bom lance. Só que... o demônio nem sequer tentou se aproximar do soldado. Ele decolou na direção oposta.
Os circuitos mentais de Jim lembravam a loucura de Las Vegas, seus instintos gritavam que aquilo estava errado. Muito errado. Segunda chance de pegar Isaac... e Devina deixou passar. De novo.
Por que ela...
Como uma cortina sendo arrancada de uma janela, a paisagem do jogo de repente ficou clara e abalou seu âmago. Mas que droga...
Perdendo de maneira abrupta o equilíbrio, ele estendeu sua mão e segurou-se na parede.
– Não é você – ele disse a Rothe sombriamente. – Oh, Deus nos ajude, não é você.
Quando Grier Childe surgiu no arco, vinda da cozinha, Isaac falou.
– Estamos bem. Todo mundo está bem.
O que era verdade até certo ponto. Claro, Devina aparentemente desapareceu seguindo e estilo “Elvis não morreu” e deixou o prédio. E, sim, ninguém no grupo brilhava com uma sombra profana e o pescoço de Jim não gritava mais “Oh, meu Deus!”. Mas eles estavam longe de se sentirem ótimos.
A questão urgente agora era... quem aquele demônio estava procurando? Por qual alma eles estavam lutando?
O celular, Jim pensou.
Quando todas as pessoas começaram a falar e o ar se encheu com suas vozes, ele colocou o ruído de lado e se agachou sobre os quadris. Do lado do corpo, agora duas vezes morto, ele pegou o telefone do chão e acessou a caixa de mensagens enviadas.
Ele reconheceu imediatamente o último número que tinha sido discado.
Matthias teve acesso à imagem.
A clareza fria que sobreveio a Jim trouxe a ele uma espécie de terror: ele estava tentando salvar o alvo... quando, o tempo todo, ele deveria ter focado o atirador.
CAPÍTULO 42
Reflexo, não reflexão.
Era nesse ponto em que Isaac se encontrava ao ficar em pé no corredor de Grier com algum tipo de solução escorrendo pelo seu nariz e queixo.
Seu cérebro poderia passar uma ou duas décadas tentando descobrir o que ele tinha acabado de ver, mas isso requeria um tempo que ele não tinha. Por mais que ele não entendesse – e aquele buraco negro era do tamanho de um estádio de futebol – ele ia ter que confiar no que seus olhos mostraram e deixar por isso mesmo: ele tinha visto um homem morto se levantar; ele atirou no bastardo e a única coisa que conseguiu derrubar de novo o cadáver foi algum tipo de faca de cristal ou vidro. Em seguida, alguma coisa deixou o corpo e escapou por baixo da porta da frente.
Era o tipo de coisa que acontecia no sKillerz, quando se passava para o mundo paranormal do jogo. Com um toque no controle, as regras normais iam para o ralo e você entrava em um universo alternativo onde as pessoas poderiam desaparecer na sua frente, vampiros viviam nas sombras e homens pálidos vinham atrás de você ao invés de seres humanos.
Claro, aquilo era uma brincadeira a qual você poderia desligar – e não havia um botão de pausa nessa situação. Razão pela qual ele ia gastar muita energia para entender tudo isso. Sim, claro, talvez depois que isso estivesse terminado ele pudesse perguntar a Jim o que diabos tinha acontecido... mas isso apenas se houvesse um “depois”.
Da maneira como as coisas estavam indo, algumas pessoas paradas naquela entrada poderiam muito bem ser direcionadas para uma “outra vida”.
– Para onde foi aquilo? – ele perguntou a Jim. – Não aquela coisa preta, a imagem.
Quando Jim olhou o celular, a voz do segundo na linha de comando lhe veio à mente: Matthias não está no comando. Então, isso significava que algum outro cabeça estava planejando um determinado resultado ao acionar as alavancas e roldanas dos vários fantoches em cena.
– Quem? – ele repetiu.
– Matthias recebeu – disse Heron, levantando-se.
– Matthias é... um daqueles? – Quando Isaac apontou o cadáver detonado, ele pensou que era ótimo estar em uma situação onde não havia termos para descrever nada.
– Não era quando o vi ontem à noite.
Bem, talvez isso explicasse por que o rosto do cara tinha sido usado como um saco de pancadas. E, sim, se os dois sobreviveram a isso, Jim tinha algumas explicações a dar.
– Você é um deles? – Isaac perguntou.
O tema do jogo de perguntas e respostas estava sugerido quando Jim olhou para seus dois colegas, depois para Grier e seu pai.
– De certa maneira, sim. Mas estamos do outro lado.
Isaac balançou a cabeça e deixou tudo isso para mais tarde. O mais importante agora era o caminho que estavam tomando por uma série de acontecimentos.
– Matthias tem essa imagem e ele vai pensar que eu matei... o cara... isso... tanto faz.
Etapa dois da extrapolação? Matthias viria mesmo atrás dele para matá-lo agora.
– Para quem você está ligando? – ele perguntou quando Jim colocou aquele telefone no ouvido como se estivesse fazendo uma ligação.
O cara pronunciou, Matthias... e, então, a próxima coisa que saiu de sua boca foi uma maldição.
– Maldito correio de voz.
E os outros continuaram falando. Isaac puxou Heron de lado.
– “Não sou eu.” Diga-me o que isso quer dizer.
– Não temos tempo...
– Temos um minuto e meio. Eu garanto.
– E isso não vai esclarecer nada, afinal. – Os olhos entediados de Jim encontraram os de Isaac. – Você se lembra do que eu disse quando o vi pela primeira vez? Que não ia deixar que nada acontecesse com você? Era verdade. Mas eu tenho que ir.
Isaac apertou o braço do cara, o mantendo no lugar.
– Onde?
Jim olhou seus dois colegas.
– Eu tenho que ir até Matthias. Acho que ela está atrás dele.
Quem era ela, Isaac se perguntou. E então ele se deu conta.
– Então, você não tem que ir a lugar algum. Quer vê-lo? – Ele puxou o transmissor de alerta e o deixou oscilar em sua corrente enquanto apontava para o próprio peito. – Tem sua isca bem aqui.
No final, a mala que Grier tinha feito acabou sendo necessária.
Ela iria com seu pai ficar em Lincoln por alguns dias – Isaac e Jim iam ficar para trás na casa dela para enfrentar aquele homem, Matthias. Apesar de ser estranho dispor a casa de sua família para estranhos, a realidade era que o local oferecia saídas que facilitariam as coisas para os dois homens.
E independentemente do que pensava sobre eles, ela não tomaria partido de suas mortes se pudesse fazer alguma coisa sobre isso.
Tragicamente, não havia mais o que falar sobre o que estava por vir e seu pai havia suspendido seus contatos. Isaac não ia dizer uma palavra sobre nada e seu pai não sabia o suficiente para promover um dano concreto – assim, os riscos, contrapostos aos possíveis benefícios, simplesmente não justificavam.
O que tinha acabado com os planos. Mas esse era o mundo real.
Olhando para sua mala, ela decidiu que deixar o local tinha muitos benefícios. Ela não queria estar por perto durante a remoção daquele corpo – não havia necessidade de ver isso em um dia bom, muito menos com as coisas se encaminhando daquela maneira. Além disso, ela simplesmente precisava de um tempo. Quando as coisas com Isaac começaram, aquilo já era tão familiar, toda aquela exaustão, os eventos e crises contraditórias. Mas ela estava cansada... e determinada a manter sua nova convicção: tempo para sair, se afastar, deixar para trás.
Então, ela estava indo para Lincoln com um coração pesado, mas os olhos estavam bem abertos.
Pegando a segunda temporada do Three’s Company da estante, ela destrancou a mala para colocá-la dentro...
Grier enrijeceu e se preparou.
Dessa vez, pela primeira vez, ela sabia que Isaac estava em pé na soleira da porta de seu quarto, embora não tivesse batido.
Olhando por cima do ombro, ela viu que seu cabelo estava revolvido por causa daquela solução que tinham derramado sobre sua cabeça e seu olhar estava tão intenso como nunca.
– Vim para dizer adeus – ele murmurou baixinho, aquele delicioso sotaque sulista percorria as palavras de uma maneira profunda. – E para dizer que sinto muito por ter mentido para você.
Quando ele deu um passo dentro do quarto, ela se voltou para a mala, deslizando o DVD para dentro e fechando a tampa.
– Sente muito?
– Sim.
Ela produziu um clique nas duas trancas ao encaixá-las.
– Sabe, a parte que eu não entendo é por que você se importa. Se você nunca teve a intenção de ir adiante com isso, por que conversou com meu pai? Ou por que fez isso chegar até ele? Para descobrir o quanto ele sabe e, então, avisar seus amigos? – Quando ele não respondeu, ela se virou. – Seria isso?
Seus olhos percorreram seu rosto como se estivesse memorizando.
– Eu tinha outra razão.
– Espero que seja boa o suficiente para arruinar a confiança que eu tinha em você.
Isaac assentiu devagar.
– Sim. Ela é.
Bem, aquilo não a fez se sentir menos usada.
Grier pegou sua mala de mão e ergueu a coisa da cama.
– E você acabou fazendo isso de novo.
– Fazendo o que?
– Ativou o maldito transmissor de alerta. Chamou aquele pesadelo do Matthias. – Ela franziu a testa. – Eu acho que você tem vontade de morrer. Ou algum outro plano que eu não consigo adivinhar. Mas, de qualquer maneira, não é da minha conta.
Olhando para o rosto belo e rígido ela pensou, Deus, isso dói.
– Enfim, boa sorte – disse ela, perguntando-se se no final da noite ele estaria nas condições daquele outro agente.
– É verdade aquilo que eu disse, Grier. Na cozinha.
– Difícil dizer o que é real e o que é mentira, não é mesmo?
Seu coração estava partido, apesar de não fazer qualquer sentido e, em face da dor, tudo o que ela queria era fugir do homem que estava parado tão quieto e poderoso do outro lado do quarto.
Na verdade, do outro lado de sua vida.
– Adeus, Isaac Rothe – murmurou ela, caminhando para a porta.
– Espere.
Por um breve momento, um tipo de esperança estranha e desastrosa alçou voo em seu peito. No entanto, a chama não durou. Era feita de fantasias e emoções fantásticas.
Contudo, ela deixou que ele se aproximasse enquanto estendia alguma coisa para ela.
– Jim pediu que lhe desse isso.
Grier pegou o que havia em sua mão. Era um anel – não, um piercing, um pequeno círculo de prata escuro com uma bola na qual a extremidade estava rosqueada. Ela franziu a testa enquanto olhava para a inscrição minúscula que percorria o interior. Era um idioma do qual ela não estava familiarizada, mas reconheceu o carimbo onde se lia PT950. O aro era feito de platina.
– Na verdade, é de Adrian – Isaac murmurou. – Eles estão dando isso a você e querem que o use.
– Por quê?
– Para mantê-la em segurança. Foi o que disseram.
Era difícil de imaginar o que a coisa poderia fazer por ela, mas servia em seu dedo indicador e quando Isaac respirou fundo, aliviado, isso a deixou um pouco surpresa.
– É apenas um anel – ela disse suavemente.
– Não tenho certeza se alguma coisa pode ser considerada como “apenas” neste momento.
Ela não podia discordar.
– Como você vai tirar aquele corpo de lá?
– Removendo.
– Bem, isso é com você. – Ela deu uma última olhada para ele. A ideia de que ele poderia ser morto em questão de horas era inevitável. E assim era a realidade de que, provavelmente, ela não saberia o que ia acontecer com ele. Ou para onde iria se sobrevivesse. Ou se ele dormiria em uma cama segura de novo.
Sentindo-se escorregar, ela caminhou até a mala, acenou para ele e saiu, deixando-o para trás.
Não havia outra escolha.
Ela tinha que cuidar de si mesma.
CAPÍTULO 43
A escolha tinha que ser resultado do livre-arbítrio.
Esse era o problema com essa coisa da disputa: a alma em questão tinha de escolher o seu caminho segundo sua própria vontade quando chegasse à encruzilhada.
Quando Devina saiu de sua suíte no hotel, ela pensou sobre o quanto odiava aquela besteira de livre-arbítrio. Era muito mais eficiente para ela tomar posse e dirigir o ônibus, por assim dizer. No entanto, de acordo com as regras, o Criador limitou o impacto que ela era autorizada a produzir.
Jim Heron era o único que poderia lidar com as almas... o único que poderia, de alguma maneira, tentar influenciar as escolhas.
Dane-se Jim Heron.
Dane-se aquele bastardo.
E também se dane o Criador nessa questão.
Ela puxou uma toalha da haste de bronze e secou o corpo da bela morena, pensando o tempo todo que aquela era uma morada muito melhor do que aquele soldado com tatuagem de cobra. Mas ela não tinha tempo para fazer o retorno adequado àquela carne. A rodada final com a alma atual em jogo não estava apenas se aproximando – estava acontecendo.
Hora de acertar as contas do jogo e vencê-lo.
Depois de desocupar a pele familiar do segundo na linha de comando de Matthias, ela se esvaiu no ar e livrou-se daquela casa de tijolos. O seu lado rancoroso queria estacionar dentro daquela advogada ou no pai dela – apenas por diversão, pelas risadas e pelo drama que isso causaria. Mas da forma como as coisas estavam, ela não achou que fosse uma boa ideia: tudo estava tão perfeitamente organizado, as predileções dos jogadores e as inclinações de como agiriam já garantidas.
Era o equivalente a uma roupa de corte perfeito.
E ela precisava ganhar essa por razões que iam além do jogo: Devina queria dar o troco pelo desempenho de Jim Heron em seus aposentos privados. E não aquele com seus subordinados, mas de quando estavam os dois sozinhos.
Ela estava totalmente despreparada para seu ataque. Ou foi o fato de que ele estava muito mais determinado do que apenas um anjo. Adrian e Eddie não poderiam ter feito nada parecido. Ela não conhecia ninguém que pudesse.
Aquilo não fazia sentido – Jim Heron foi escolhido para um papel definido e deveria ser um lacaio nem bom, nem mau. De fato, as duas partes concordaram com ele, pois cada equipe pensava que ele iria influenciar as coisas de acordo com seus valores e receber dicas de acordo com uma quantidade determinada de “treinamento”.
Que grande besteira aquilo tinha se tornado.
Aquela primeira alma que eles disputaram? Jim tinha feito todo o possível para empurrar o homem para o bem – provando que a confiança que Devina depositou nele tinha sido equivocada. Aquele filho da mãe era um salvador na pele de pecador, não era um dos dela. E foi por isso que ela se envolveu ainda mais a partir de então; não havia ninguém em campo representando seus interesses e manipular a situação era crucial se ela quisesse prevalecer em algum desses ciclos.
Se ela não refinasse as coisas, ia perder de quatro a zero.
E foi por isso que ela levou Jim até às profundezas de seu reino quando foi possível. Ela precisava afastá-lo de Matthias – qualquer contato entre os dois era uma má ideia.
Mas pelo menos a sua escolha pela alma parecia ter sido correta. Ela vinha cuidando do líder das operações extraoficiais nos últimos dois anos até agora, ele simplesmente a pertencia – então, quando Nigel e ela trataram sobre o próximo indivíduo que seria colocado no jogo seguinte, ela escolheu Martin O’Shay Thomas, também conhecido como Matthias.
Na próxima rodada, a escolha volta a ser de Nigel e, sem dúvida, ele vai escolher alguém bem mais difícil para ela.
Matthias... oh, querido e corrupto Matthias. Um último ato imoral e ele seria dela por toda a eternidade – assim como sua primeira vitória.
Tudo o que ele tinha que fazer era tirar a vida de Isaac Rothe e ding-ding-ding! Ela poderia fazer a volta da vitória bem diante do nariz de Jim Heron.
Contudo, considerando o que Heron tinha feito a ela, temia que ele não fosse apenas um zagueiro nesse jogo, mas um outro tipo de entidade. E esse era outro motivo pelo qual ela não tinha se detido em Beacon Hill. A negociação entre os dois lá embaixo drenou suas energias e ela não estava forte o suficiente para enfrentar um confronto direto com Jim tão cedo.
Especialmente tendo em conta que subestimar os poderes de seu inimigo foi claramente um erro.
Envolvendo-se na toalha, ela olhou o balcão de mármore em volta da pia. Parte da tarefa que sua terapeuta lhe deu duas semanas antes era se livrar de toda sua coleção de maquiagem e ela concordou, jogando fora inúmeros pós compactos, batons e sombras.
Agora, ao observar os espaços vazios, ela entrou em pânico com a falta de possessões. Uma bolsa com essas coisas era tudo o que sobrou. Era isso.
Com mãos desastradas, ela pegou a pequena sacola e a inclinou para baixo, tubos, quadrados e potes pretos se espalharam por todo o lugar. Respirando pela boca, ela começou a organizar dúzias ou mais de recipientes, organizando-os por tamanho e forma, não adiantou.
Não era o suficiente. Ela precisava de mais...
No fundo de sua mente, Devina sabia que estava em um espiral, mas ela não poderia se ajudar com isso. A constatação de que Jim era muito mais formidável do que ela pensava... e que estava correndo um perigo muito maior do que imaginava... fazia dela uma escrava de suas fraquezas internas.
Sua terapeuta afirmou que a compra de mais porcarias ou a aquisição de mais bugigangas ou ordenar e reordenar a colocação dos objetos não ia resolver nada. Mas com certeza aquilo a fazia se sentir melhor por um curto período de tempo...
No final, ela teve que se arrastar para fora do banheiro. O tempo estava passando e ela tinha que se certificar se todos os pequenos dominós que ela organizou estavam na posição certa e adequada.
Para acalmar sua obsessão, ela repetiu o que a terapeuta havia lhe dito há três dias: Não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo. É o espaço que você declarou como sendo seu emocional e espiritualmente.
Seja como for. Ela tinha trabalho a fazer.
E outro traje de pele para revesti-la.
CAPÍTULO 44
Depois que os Childes saíram em seus carros, com Eddie e Adrian indo sorrateiramente em seus calcanhares, Jim e Isaac ficaram nos fundos da casa das mil passagens secretas – as quais Jim conhecia todas, graças ao capitão Childe.
Após as partidas, a casa ficou escura, por dentro e por fora, e ele e Isaac permaneceram em pé, preparados.
Eram os velhos tempos de volta, Jim pensou.
Especialmente ao colocar seu telefone no ouvido e esperar que Matthias atendesse a ligação. Contudo... Se estivesse de volta no tempo, o bastardo atenderia o maldito telefone.
Neste momento, ele estava desesperado para encontrar o cara antes que ele chegasse com tudo...
A voz de seu ex-chefe ressoou em seu ouvido.
– Isaac.
– Não. – Jim falou com cuidado, porque só Deus sabia que havia pontas soltas por todo o lugar. – Não é Isaac.
Houve um momento de pausa, que foi preenchido por um zumbido sutil ao fundo. Carro? Avião? Difícil ter certeza, mas provavelmente um carro.
– Jim? É você? – A voz era robótica, totalmente sem vida. Claro, até mesmo um “oi, tudo bem” vindo dos mortos não era suficiente para abalar o cara, mas parecia não ser o caso do cérebro do líder estar sereno. Parecia mais que o homem estava anestesiado.
Jim escolheu cuidadosamente as palavras.
– Estou mais interessado em como você está. Isso e também gostaria de conversar sobre a imagem que recebeu.
– Você quer? Bem, eu tinha outras coisas em mente... como, por exemplo, você estar me ligando. Você está morto.
– Não exatamente.
– Engraçado, eu sonhei com você. Atirei em você, mas não morreu.
Droga, abranger os dois mundos era complicado.
– Sim, eu sei.
– Sabe?
– Estou ligando para falar do seu subordinado. Isaac não o matou.
– Oh. Mesmo?
– Eu matei. – Mentiroso, mentiroso, o nariz vai crescer. O bom é que ele nunca teve problemas com esse tipo de coisa.
– E, mais uma vez digo, pensei que estivesse morto.
– Não estou exatamente morto.
– Claro. – Longa pausa. – Então, se você está vivo e bem, por que fez isso com meu segundo homem na linha de comando, Jim?
– Eu o avisei que não permitiria que ninguém se aproximasse do meu garoto Isaac. Naquele sonho. Sei que me ouviu.
– Está dizendo que devo começar a te chamar de Lázaro ao invés de Zacarias?
– Pode me chamar do jeito que quiser.
– Bem, seja lá qual for o seu maldito nome, você simplesmente colocou uma bala na cabeça do “seu garoto”. Parabéns, pois Isaac é o único com quem eu vou acertar as contas, e você me conhece. Farei do meu jeito todo especial.
Droga. Grier Childe. Quanto você quer apostar, Jim pensou.
– Isso não tem lógica.
– É muito lógico. Ou Isaac fez isso e você está acobertando e espera por clemência. Ou você o fez e, nesse caso, eu realmente tenho contas para acertar com você... e a maneira como vou lidar com esse “você me pertence” vai deixar uma assassinato em sua consciência. Uma vez que você odeia efeitos colaterais, isso vai ser mesmo uma tapa na nuca.
– Rothe ajudou a salvá-lo. Naquele vale de areia onde você quase se matou.
Agora o cara simplesmente rosnou.
– Não me dê outra razão para ir atrás dele.
Bingo, Jim pensou, apertando o telefone. Aquele era seu jeito de lidar com as coisas e era mais importante que um confronto para saber “quem atirou no demônio”.
– Quanta amargura, Matthias. Você parece muito amargo. Sabe, você mudou.
– Não, eu não mudei...
– Sim, mudou, e sabe do que mais? Você não tem mais o ímpeto para fazer isso. Não tenho certeza se já se deu conta disso. Mas o velho Matthias não veria isso de maneira pessoal. Seriam apenas negócios.
– Quem disse que estou a caminho?
– Eu disse. Tem que estar. Você não sabe disso ainda, mas está sendo obrigado a vir aqui e matar um homem inocente. – O silêncio disse a ele que estava no maldito caminho certo. – Você não entende por que tem que fazer isso por si mesmo. Você não entende a maneira como pensa nesse exato momento. E sabe que está perdendo o controle. Está fazendo escolhas e besteiras que não fazem qualquer sentido. Mas eu posso lhe dizer os motivos disso: é porque você está sendo impulsionado por algo que não acreditaria se eu dissesse que existe. Contudo, isso ainda não o tomou por completo, então, ainda há tempo.
Jim fez uma pausa e deixou que aquela informação se acomodasse no cérebro de seu ex-chefe. O que Matthias precisava era de um exorcismo, mas aquilo requeria seu consentimento. O objetivo era levá-lo até a casa e começar a trabalhar nele...
E nesse tom ele continuou: – Foi com essa coisa que você lidou ao ligar para seu segundo na linha de comando. Ele não era o que pensava, Matthias. – Cavando ainda mais fundo, ele empurrou mais uma. – Quando ele falou com você, sentiu como se fizesse total sentido, certo? Ele o influenciou de maneira sutil, o direcionou, sempre esteve lá quando você precisou dele. Mal se nota em um primeiro momento e, então, você começou a confiar nele, delegar tarefas a ele, começou a prepará-lo para ser seu sucessor...
– Você não sabe do que está falando!
– Imagina. Eu sei exatamente o que está acontecendo. Você ia mesmo permitir que Isaac voltasse para as operações extraoficiais, não ia? Você ia encontrar um jeito de não matá-lo. Não é mesmo? Matthias...? Matthias, responda a maldita pergunta.
Uma longa pausa. Em seguida, uma resposta suave.
– Sim. Eu ia.
– E você não disse isso ao seu segundo homem, pois sabia que ele mudaria sua opinião.
– Contudo, ele estaria certo.
– Não, ele seria o demônio. É isso o que ele era. Pense nisso. Embora você tenha tentado sair das operações extraoficiais, ele o puxou de volta.
– Para sua informação, está falando com um sociopata. Logo, estou seguindo minha natureza.
– Uh-hun. Certo. Sociopatas que pretendem seguir uma “vida louca” não colocam bombas na areia e pisam em cima. Admita, você queria sair lá no deserto... você quer sair agora. Admita.
Por um tempo, não houve nada além de um zumbido ao fundo. E, então, Matthias jogou outra bomba, por assim dizer.
– Foi o filho de Childe.
Jim franziu a testa e recuou um pouco.
– Como?
– O filho de Childe... foi o que mudou tudo. Eu assisti a gravação... de Childe chorando enquanto seu filho morria na frente dele. Meu pai nunca teria feito isso se fosse eu quem estivesse naquele sofá. O mais provável é que ele teria preparado minha veia para a agulha. Eu não conseguiria ter aquilo... fora de questão. O jeito que o pobre coitado olhava e o que ele dizia... ele amava aquele garoto como um pai deve amar um filho.
Sim, nossa... de alguma maneira, era difícil imaginar que Matthias teve um pai. Desovado era mais adequado a ele.
Jim balançou a cabeça, sentindo-se mal pelo cara pela primeira vez desde que eles se conheceram há tantos anos.
– Estou dizendo, deixe Isaac ir. Esqueça a vingança. Esqueça as operações extraoficiais. Esqueça o passado. Vou ajudá-lo a desaparecer e ficar em segurança. Deixe tudo para trás... e confie em mim.
Longa pausa. Longa pausa onde não havia nada além daquele ruído límpido de um carro em movimento.
– Você está em uma encruzilhada, Matthias. O que fizer com relação a Isaac hoje à noite pode salvar você... e salvar a ele, também. Você tem mais poder do que imagina. Trabalhe conosco. Venha até aqui, sente-se e converse com a gente.
Provavelmente, era melhor não falar sobre a grande incisão nele com uma faca de cristal para retirar toda a pestilência de Devina pela garganta.
Matthias exalou o ar com força.
– Nunca pensei que você fosse do tipo Mahatma Gandhi.
– As pessoas mudam, Matthias – disse Jim bruscamente. – As pessoas podem mudar. Você pode mudar.
Em pé do outro lado da cozinha, Isaac não tinha certeza se estava ouvindo direito: Matthias plantou a bomba que tinha explodido sobre ele?
Deus, ele se lembrava de dirigir o Land Rover pelas dunas, de volta ao acampamento. Assim que Matthias foi tirado do veículo, os garotos com as bolsas de sangue, as agulhas e as luvas de látex o cercaram por completo e isso era praticamente tudo o que Isaac sabia.
Moral da história: Heron não tinha dito uma palavra sobre as maneiras, os lugares ou os motivos da explosão e Isaac não perguntou. “Saber só o necessário” era a regra de ouro das operações extraoficiais: o chefe e um soldado em atividade aparecem com um deles transformado em carne moída após uma explosão e o outro vem arrastando seus tristes corpos pela areia no meio da noite?
Tudo bem. Não é grande coisa. Tanto faz.
Além disso, algumas vezes, a informação a que tinha acesso era mais perigosa que uma arma carregada apontada na testa.
Quando Jim interrompeu de repente a ligação com o chefe, Isaac tinha algumas coisas para esclarecer com o filho da mãe.
– Primeiro, eu não preciso que banque o mártir por mim, então, não precisava daquela besteira de “eu atirei nele”. E, depois, que inferno. Matthias tentou se matar?
– Primeiro – Jim repetiu –, eu não sofro com as consequências, então, você pode aproveitar qualquer coisa que eu faça para salvar sua pele. Segundo... sim. Ele tentou. O dispositivo era um dos nossos e ele sabia exatamente onde pisar. Ele me encarou ao colocar o pé no local... e disse alguma coisa. – O cara balançou a cabeça. – Não faço ideia do que ele disse. Em seguida, boom! A maior parte do detonador foi vaporizada. Mas não detonou tudo.
Fascinante.
– Quanto tempo até ele chegar aqui?
– Não sei. Mas ele está vindo. Tem que vir.
Sim, e quanto àquelas coisas sobre o segundo na linha de comando? Sinceramente, não havia nada que ele quisesse saber sobre isso. Ele tinha informação suficiente para inchar seu crânio. A única coisa que importava era conseguir superar aquela noite.
– Estou cansado de esperar – ele murmurou.
– Junte-se ao clube.
Naquele momento, Isaac olhou ao redor. O sistema de segurança estava desativado, mas todas as portas estavam trancadas, então, havia grandes chances de saber se alguém tentasse entrar.
– Ouça, vou subir – ele disse. – Fique de olho lá em cima.
– Certo. – Jim apertou os olhos e voltou a focar o jardim dos fundos como se esperasse uma infiltração a qualquer momento. – Vou dar cobertura.
Quando Isaac chegou à base da escada dos fundos, ele parou e se inclinou em direção à cozinha. Heron estava parado em frente ao vidro, mãos nos quadris, sobrancelhas unidas.
Não, o cara não estava morto. E, honestamente, ele não parecia incomodado com a realidade de que uma bala podia entrar arrebentando tudo o que visse pela frente a qualquer segundo.
– Jim.
– Sim. – O homem olhou para trás.
– O que você é? De verdade.
No silêncio que se estendeu, a palavra “anjo” sobrevoou o espaço que havia entre eles. Só que aquilo não era possível, certo?
O homem deu de ombros.
– Sou o que sou.
Entendido, Isaac pensou.
– Bem... obrigado.
Jim balançou a cabeça.
– Você não saiu dessa ainda.
– Mesmo assim. Obrigado. – Isaac pigarreou. – Não posso dizer que ninguém tenha, alguma vez, arriscado seu pescoço por mim assim.
Bem, não era verdade, era? Grier o fez, à sua maneira. E, Deus, um mero pensamento sobre ela quase fez seus olhos arderem.
Heron fez um pequeno aceno e pareceu sinceramente comovido.
– Não é nada, cara. Agora, deixe de ser patético e vigie o terceiro andar.
Isaac teve que sorrir.
– Posso precisar de um emprego depois disso, sabe?
Um sorriso apareceu, mas se desvaneceu rapidamente.
– Não tenho certeza se quer passar pelo processo seletivo de onde trabalho. É difícil.
– Eu já estive num lugar parecido, fazendo coisas parecidas.
– Eu também pensei que fosse fácil assim.
Com isso, Isaac subiu as escadas.
Sim, com certeza, aparentemente ele ia vigiar do último andar, mas havia outra verdade nisso, outra motivação.
Quando ele entrou no quarto de Grier, foi direto ao seu armário e parou sobre a bagunça de roupas que ficou no carpete creme. Ela deixou o projeto de reorganizar tudo pela metade – pois, algum imbecil atirou em si mesmo na entrada de sua casa.
Mas ele poderia cuidar do problema.
Enquanto esperava para ver como seria uma espécie de reunião bizarra com Matthias ou um tiroteio que deixaria os dois mortos, ele pegava as blusas, saias e vestidos e, um a um, os ordenava dentre o caos.
Pelo menos poderia limpar alguma coisa para ela; Deus era testemunha de que aquele corpo ainda estava lá embaixo, ainda envolto em plástico como algo prestes a ser enviado pelo correio.
Contudo, haveria tempo para removê-lo mais tarde.
E não haveria outra oportunidade para cuidar das coisas dela.
Além disso, o “patético” nele queria algum contato final com ela – e o mais próximo que ele chegaria disso era pendurando com cuidado o que uma vez já esteve contra sua preciosa pele.
CAPÍTULO 45
Grier seguiu o Mercedes de seu pai em direção a Lincoln e quando os conhecidos pilares que havia de cada lado do caminho da fazenda apareceram, ela respirou fundo pela primeira vez depois que saiu de Beacon Hill. Virando à direita, em direção à pista de cascalho quebrado, ela parou em frente às placas de madeira cinza e brancas e estacionou seu Audi. Embora o centro da cidade de Boston estivesse apenas a pouco mais de trinta quilômetros dali, parecia muito ser trezentos. Tudo era silêncio quando ela desligou o motor e saiu do carro, o ar fresco e limpo formigou seu nariz.
Deus, como ela amava esse lugar, ela pensou.
A luz gentil que se desvanecia no crepúsculo suavizava a linha de árvores que percorria os seis hectares de campos e jardins e banhava a madeira com uma iluminação amanteigada. Antes da morte de sua mãe, o lugar tinha sido um refúgio para os quatro, uma maneira de sair da cidade quando não queriam ir até o Cabo – e Grier tinha passado muitos finais de semana ali, correndo ao longo da grama e brincando ao redor da lagoa.
Depois que seu pai ficou viúvo, precisava de um novo começo e, então, ela se mudou para a casa da cidade e ele fixou morada ali.
Quando o pai se aproximou da garagem onde tinha encaixado seu grande sedã, seus mocassins trituraram os pequenos fragmentos de cascalho. Quando era criança, ela pensava que caminhos como aquele eram cobertos de um tipo especial de cereais. Ao invés de derramar leite em uma tigela, tudo o que precisava fazer era pisar sobre eles para obter aquele som de estalos.
Ele foi cauteloso ao se aproximar dela.
– Quer que eu ajude com suas coisas?
– Sim, obrigada.
– E que tal se jantássemos?
Mesmo sem fome, ela assentiu.
– Isso seria ótimo.
Deus, eles pareciam estar em uma festa. Bem, uma festa que envolvia cadáveres, armas e fugir de assassinos... Neste caso, estar elegantemente atrasado significava sua morte, não seria apenas uma catástrofe com o penteado ou o trânsito ruim da Rua Vinte oito.
O que a lembrava de...
Grier olhou em volta e sentiu um arrepio na nuca. Eles estavam sendo vigiados. Ela podia sentir isso. Mas ela não estava ansiosa; estava calma com o que estava sentindo.
Ela podia apostar que eram os homens de Jim. Ela não os viu no caminho, mas eles estavam ali.
Depois que seu pai tirou suas malas e fechou o porta-malas, ela trancou o carro – e tentou não pensar no fato de que aquele homem com o tapa-olho já esteve ali dentro. Francamente, aquilo fez com que ela tivesse vontade de vender o Audi, mesmo com apenas uns 48 mil quilômetros rodados e funcionando muito bem.
– Vamos? – seu pai perguntou, indicando o caminho da frente com uma mão elegante.
Assentindo com a cabeça, ela se adiantou e iniciou o caminho de tijolos que havia até a porta. Antes de entrarem, seu pai desativou o sistema de segurança, que era igual ao da casa dela e, em seguida, destrancou os cadeados um por um. No momento em que atravessaram os batentes da porta, reativou o sistema e trancou tudo de novo.
Ninguém iria atrás deles ali: aquele lugar fazia com que a casa da cidade parecesse um brinquedo de papel machê no quesito segurança.
Após a morte de Daniel, aquela casa foi preparada para suportar um estado de sítio – algo que ela não tinha entendido até agora. Todas as placas foram arrancadas e painéis de microfilmes com substâncias retardadoras de fogo foram colocados no lugar delas por dentro e por fora; todos os vidros foram substituídos por vidros à prova de balas que tinham uma polegada de espessura; as portas antigas foram trocadas por outras reforçadas por molduras de chumbo; foram instalados sistemas de monitoramento de oxigênio e ventilação e não havia dúvidas de que foram feitas outras melhorias das quais ela não estava ciente.
Tinha custado mais do que a casa e, naquela época, Grier questionou a saúde mental de seu pai.
Agora, ela era grata.
Quando olhou para as familiares antiguidades americanas, para o chão de grandes pranchas e para a atmosfera de graciosidade casual, a noite que se aproximava se estendeu até o infinito. O que acontecia quando tudo o que se tinha diante de si eram momentos de espera: Jim e Isaac entrariam em contato com seu pai em algum momento, mas não havia como dizer quando. Ou quais notícias seriam dadas.
Horripilante. Como tudo aquilo era horripilante.
Deus, geralmente ela pensava na morte em termos de acidentes ou doenças. Hoje, não. Essa noite tudo era violência e premeditação, e ela não gostava desse mundo. Já era difícil o suficiente quando apenas a Mãe Natureza e a lei de Murphy estavam atrás de você.
Ela tinha um sentimento muito ruim sobre tudo isso.
– Gostaria de comer alguma coisa agora? – seu pai perguntou. – Ou prefere se refrescar primeiro?
Tão estranho. Geralmente, quando ela chegava àquela casa, ele a tratava como se fosse dela, abria a geladeira ou usava a cafeteira ou o fogão sem pestanejar. Era estranho e a incomodava ser tratada como hóspede.
Olhando por cima do ombro, ela observou seu pai, percorrendo as linhas de seu belo rosto. No silêncio constrangedor da casa blindada, ela se deu conta do quanto estavam sozinhos. Pelo bem deles, precisavam voltar a ser uma família ao invés de serem estranhos um ao outro.
– Que tal se eu fizer o jantar para nós dois?
Os olhos de seu pai lacrimejaram um pouco e ele limpou a garganta.
– Isso seria ótimo. Só vou levar isto até seu quarto.
– Obrigada.
Quando ele passou por ela, estendeu a mão e tocou seu braço, apertando um pouco – o que era a sua versão de um abraço. E ela aceitou o gesto colocando a palma de sua mão sobre a dele. Como sempre faziam.
Depois que ele subiu as escadas da frente, ela se dirigiu à cozinha sentindo-se trêmula e sem o controle de seu jogo... mas ela estava em pé e seguia em frente.
O que, no fim do dia, é tudo o que se tem, não é?
Havia apenas uma coisa faltando... ela parou e olhou por cima do ombro de novo. Então, ela andou pela cozinha e verificou a mesa da alcova... e o longo balcão onde estava o fogão... e o pé da escada dos fundos...
– Daniel? – ela sussurrou. – Onde está você?
Talvez ele não quisesse estar na casa do pai. Mas ele pôde aparecer no hotel naquela festa beneficente e, depois, em um ringue de luta clandestina, ele poderia muito bem dar o ar da graça ali.
– Eu preciso de você – ela disse. – Preciso vê-lo...
Ela esperou. Chamou seu nome baixinho mais algumas vezes. Mas parecia que apenas o forno duplo e a geladeira a ouviam.
Ah, pelo amor de Deus, ela sabia que seu irmão sempre evitou um conflito – e que seu pai o irritava. Mas ninguém o viu antes a não ser ela, então, era evidente que ele poderia escolher a quem se mostrava.
– Daniel.
Em um momento de pânico, ela se perguntou se ele nunca mais voltaria. Houve algum adeus de sua parte que ela não se deu conta?
Mais uma vez, sem respostas dos eletrodomésticos.
Pensando que teria mais sorte se os colocasse em funcionamento, ela foi até a geladeira e abriu a porta, perguntando-se que diabos poderia preparar para ela e seu pai.
Uma coisa era certa: o jantar não incluiria omeletes.
Levaria um tempo até ela preparar uma omelete de novo.
Quando a escuridão se instalou, os faróis do carro sem marcas oficiais de Matthias varriam a estrada à frente. Havia outros carros viajando na mesma estrada de asfalto que ele, outras pessoas por trás dos volantes, outros planos em outras mentes.
Tudo isso era irrelevante para ele, sem maior importância do que um filme passando em uma tela.
Sem mais profundidade que isso também.
Ele tinha problemas. Problemas terríveis. Do tipo que faziam nós em seu cérebro e que faziam a dor em seu lado esquerdo pegar fogo até o ponto de ter que se esforçar para se manter consciente.
Droga... Jim Heron sabia demais sobre coisas que deveriam estar apenas em pensamentos e conhecimentos particulares. Era como se o homem tivesse sintonizado a estação de rádio interna de Matthias e ouvido todas as suas músicas, comerciais e relatórios do trânsito.
E o filho da mãe estava certo. O segundo na linha de comando apenas se destacou de fato após o pequeno acidente de Matthias no deserto: nos últimos dois anos o soldado se fez indispensável e, olhando para as tarefas e situações com que Matthias tinha lidado, o cara tinha gradualmente influenciado suas decisões até que começou a tomá-las por si mesmo.
Tinha sido tão sutil. Como alguém girando lentamente o acendedor de uma chama sob uma panela de água. Seu subordinado foi quem o fez mudar de opinião sobre deixar Jim Heron ir. E o homem que direcionou Matthias a matar Isaac. E havia mais uma centena de exemplos... muitos dos quais ele acabou realizando conforme sua influência.
Ele nem sequer notou que isso estava acontecendo.
Deus, tinha começado com a morte do filho de Alistair Childe. Foi a primeira ideia brilhante.
Naturalmente, a lógica era indiscutível e Matthias não hesitou em puxar o gatilho. Mas quando viu as filmagens da morte, o choro do capitão o comoveu. Abriu uma porta que ele nem sequer sabia que existia dentro dele.
Matthias desligou o vídeo e foi para a cama. Na manhã seguinte, ele acordou e decidiu que já era o suficiente. Hora de deixar a festa que tinha iniciado há todos aqueles anos – ia deixar os convidados tomarem conta da casa e incendiá-la, tudo bem. Mas para ele bastava.
Já chega. Foi a gota d’água.
Focando suas mãos no volante, ele percebeu que outra pessoa o guiava, dirigia para ele, determinava as saídas e acionava as setas. Como aquilo tinha acontecido?
E por que, diabos, Jim Heron sabia?
Quando sua mente mais parecia uma máquina de lavar e começou um novo ciclo de rotação no passado, ele decidiu que todo aquele processo de lavagem e enxágue não era real. Não essa noite. Não naquela estrada. O que importava não era como ele tinha chegado atrás daquele volante e se encontrava a caminho de Boston. O que importava era o que ele faria quando chegasse lá.
Encruzilhada... certo. Ele sentia isso nos ossos – da mesma forma que sentiu quando preparou aquela bomba anos atrás.
A questão era: e agora? Acreditar no que Jim Heron havia dito. Ou seguir o impulso da raiva que o direcionava para o leste.
Qual destino ele seguiria?
Enquanto ele ruminava, tinha total certeza de que estava escolhendo entre o Céu e o Inferno.
CAPÍTULO 46
Enquanto Adrian vigiava a casa cinzenta daquele cavalheiro parado próximo a um carvalho, ele estava começando a se sentir como a porcaria de uma árvore. A não ser por aquele confronto na cidade na noite anterior, ele passou muito tempo esperando nos bastidores nos últimos dois dias.
Ele nunca gostou de ficar parado, para começar, mas naquela noite, quando toda a ação estava na cidade e ele e Eddie estavam presos feito troncos servindo de babá para dois adultos, Adrian estava realmente inquieto. Especialmente levando em conta que ele e seu colega eram responsáveis pelo que estava trancado em uma casa que fazia da base do exército dos Estados Unidos parecer um sanitário portátil em termos de solidez.
Dane-se tudo isso. Ele não conseguia acreditar que estavam indo atrás da alma errada.
Todas as conclusões pareciam boas, mas na verdade, a porcaria era como uma equação de álgebra que tinha algum elemento errado: parecia ótima no papel, mas a resposta estava errada.
E que grande escorregão aquele tinha sido. Ele sentia calafrios em pensar que estava tão perto e tão longe do final de uma partida.
Mas a quase derrota não era a única coisa que fazia suas bolas ficarem tensas, no mal sentido. A outra metade disso se dava à situação em que Jim se encontrava agora: a despeito do que Devina tinha feito com ele, o cara estava fazendo tudo como se estivesse muito bem... e sim, tudo bem, talvez fosse o caso no momento. Inferno, o fato de que tudo com Isaac e Matthias ia vir à tona naquela noite parecia ser uma coisa boa, pois dava a Jim algo para se concentrar. O único problema era que, Adrian sabia bem, essa crise ia passar e, então, o cara enfrentaria muitas horas longas e silenciosas sozinho com nada além de más memórias sibilando em seu crânio como balas perdidas.
A pior coisa, pelo menos na opinião de Adrian, era saber que ia acontecer de novo. Quando a situação requeresse, Adrian voltaria a descer até o mausoléu onde havia a brinquedoteca de Devina... e Jim também. Isso por serem o tipo de homem que eram. E esse era o tipo de vadia que ela era.
Ao lado dele, Eddie sufocou outro espirro.
– Saúde.
– Malditas lavandas. Sou o único imortal com alergia. Juro.
Quando o cara olhou para a floração que havia próxima a ele, Adrian respirou fundo pensando que pelo menos seu melhor amigo não teve que passar pelo inferno daquela mesa. Por outro lado, ele foi marcado por aquele demônio, o que dificilmente se aproximava de uma temporada na Disney.
Dez minutos, três espirros e um monte de nada para fazer depois, Adrian pegou seu celular e ligou para Jim. O cara atendeu no segundo toque.
– Diga – ele vociferou.
– Nada. Estamos em meio a lavandas – acho que é assim que são chamadas – olhando Grier comer com o pai dela. Parecem duas costeletas de porco. – O exalar do outro lado da linha era de pura frustração. – Nada de novo por aí também, eu acho.
Cara, algumas vezes, uma má ação era melhor do que aquela porcaria arrastada, onde brincar com os dedos era a única coisa a se fazer.
Jim soltou um palavrão.
– Eu falei com Matthias há mais ou menos uma hora, mas não tenho ideia de onde ele estava. Contudo, com certeza estava no trânsito.
– Acho que deveríamos voltar. – Adrian franziu a testa e se inclinou para frente em suas botas. Dentro da cozinha rústica, Grier se levantou, pegou algumas louças de um armário e ergueu a tampa de vidro de um prato de bolo. Parecia que havia um bolo de chocolate. Coberto de creme.
Que droga. Talvez eles devessem ficar um pouco mais. Convidarem-se para a sobremesa.
– Aguente firme – Jim disse. – Mas talvez eu precise ir até aí. Prefiro manter o confronto bem longe dos Childes, só que não sei se Grier é o alvo. Nesse momento, não sei o que Matthias está pensando... eu só consegui chegar até certo ponto com ele ao telefone antes dele desligar.
– Olha, tudo o que sei é que queremos estar onde a festa estiver. – Quando Eddie espirrou de novo, Ad balançou a cabeça para indicar onde estavam os anti-histamínicos. – E ouça, eu andei em torno dessa casa. É segura como não sei o que. Matthias é a alma em jogo, então, para onde quer que ele vá será por onde a ação vai seguir – e ele está indo encontrar Isaac.
Houve um breve silêncio. E, então, Jim disse: – Contudo, Grier é uma alma inocente e uma excelente maneira de Matthias conseguir sua vingança – talvez ela seja a única que ele pretenda capturar. Nós simplesmente não sabemos. É por isso que quero dar mais um tempo... e, então, talvez, possamos trocar de lugar.
– Tudo bem. Seja lá onde for que precise de nós, iremos. – Ad se ouviu dizer antes de desligar.
Dê só uma olhada, fazendo toda aquela coisa de um bom soldadinho. E aquilo era um pé no saco.
– Vamos ficar por aqui – ele reclamou. – Por enquanto.
– Difícil saber onde se posicionar.
– Precisamos de mais lutadores.
– Se Isaac sobreviver... podemos transformá-lo. Ele tem jeito.
Adrian o encarou.
– Nigel nunca permitiria isso. – Pausa. – Permitiria?
– Eu acho que ele não vai gostar de mais perdas, é o que posso dizer.
Adrian voltou a assistir Grier a cortar duas fatias e colocá-las no prato. Ele teve a impressão, pela maneira como seus lábios se moviam, que ela e seu pai estavam conversando com mais calma e ele estava feliz. Ele não sabia como era ter um pai, mas ele estava na Terra tempo suficiente para saber que um bom pai era uma coisa ótima.
Ele soltou um palavrão quando Grier se dirigiu ao congelador.
– Ah, cara. Sorvete também?
– A maneira que você consegue ter apetite em um momento como esse me surpreende.
Adrian pegou uma pequena tigela.
– Eu sou incrível.
– “Esquisito” também é um bom adjetivo.
Nesse momento, Ad começou a puxar de suas cordas vocais Super Freak fazendo uma imitação fantástica de Rick James. Nos arbustos de lavanda. Em... onde diabos eles estavam? Roosevelt, Massachusetts? Ou estavam em Adams?
Washington?
– Por tudo quanto é mais sagrado – Eddie murmurou ao cobrir os ouvidos. – Pare...
– ... in the name of loooooove. – Erguendo a mão, Ad começou a se mexer e a rebolar como Diana Ross. – Be... fore... you... breaaaaaaak... my...
A risada suave de Eddie dizia que ele estava no limite e assim que entrou no coro, Ad se calou.
Quando as coisas ficaram em silêncio novamente, ele pensou no bom e velho Isaac Rothe. Aquele filho da mãe, grandalhão, cabeça-dura poderia ser um excelente complemento para a equipe.
Claro, ele teria que morrer primeiro.
Ou ser morto.
As duas maneiras, levando em conta a forma como as coisas estavam acontecendo, poderiam ser arranjadas naquela noite.
Na cozinha, Grier sentou-se diante de seu pai em uma mesa feita de tábuas retiradas de um velho celeiro. Entre eles, havia dois pequenos pratos brancos marcados com manchas de chocolate e os garfos de sobremesa descansavam em ângulos acentuados.
Eles não falaram sobre nada importante durante a refeição, apenas coisas do cotidiano sobre o trabalho e o jardim dele e sobre os possíveis casos que ela assumiria no sistema penal. A conversa foi tão normal... talvez fosse ilusão, mas ela se apegou ao que eles tinham seguindo a regra do “faz de conta”.
– Outro pedaço? – ela perguntou, indicando com a cabeça o bolo no balcão.
– Não, obrigado. – Seu pai bateu suavemente os cantos da boca com o guardanapo. – Não deveria ter comido nem o primeiro.
– Parece que perdeu peso. Acho que deveria...
– Eu menti sobre Daniel para mantê-la em segurança – ele deixou escapar, como se a pressão de esconder aquilo tivesse chegado a um nível insustentável.
Ela piscou algumas vezes. Em seguida, estendeu a mão e começou a brincar com o garfo, desenhando um pequeno “op” e depois um “extra” em cima da cobertura que deixou de lado, seu estômago revirava todo o jantar que tinha acabado de comer.
– Eu acredito em você – ela disse em dado momento. – Contudo, isso dói muito. É como se ele tivesse morrido novamente.
– Sinto muito. Sei que não é o suficiente.
Seus olhos se ergueram e encontraram os dele.
– Entretanto, vai ficar tudo bem. Eu só preciso de um tempo. Você e eu... somos tudo o que restou um ao outro, entende?
– Eu sei. E isso é minha culpa...
Do nada, uma luz brilhou através das janelas, iluminando o cômodo e os dois que ali estavam em uma explosão de brilho.
Cadeiras arranharam o chão quando ela e seu pai ficaram em pé rapidamente e procuraram por abrigo atrás da sólida parede da cozinha.
Lá fora, no gramado da frente, as luzes de segurança acionadas pelo movimento foram ativadas e um homem estava andando sobre o gramado em direção à casa. Atrás dele, nas sombras, um carro que ela não conhecia estava estacionado no caminho de cascalho.
Seja lá quem fosse, deve ter vindo com os faróis desligados. E se fosse Jim, Isaac ou aqueles dois homens, alguém teria chamado.
– Pegue isto – seu pai disse entre dentes, pressionando algo pesado e metálico em sua mão.
Uma arma.
Ela aceitou sem hesitar e seguiu até a porta da frente – que era aonde parecia estar indo seu “convidado” inesperado. Contudo, qual era a lógica nisso? Você se esgueirava até a casa com as luzes do carro desligadas, mas andava decidido em direção a...
– Oh, graças a Deus – seu pai murmurou.
Grier relaxou assim que reconheceu quem era. Sob as luzes de segurança, o grande corpo de Jim Heron e seu rosto rígido estavam claros como o dia e o fato dele se esquivar pelo caminho fazia sentido.
Seu primeiro pensamento foi em Isaac e ela o procurou dentre as luzes quando seu pai desativou o sistema de segurança e abriu a porta. Contudo, ele não estava com Jim.
Oh, bom Deus...
– Estão todos bem – Jim gritou no gramado, como se tivesse lido sua mente. – Está tudo acabado.
O alívio foi tão grande que ela se afastou brevemente, esquivou-se até a cozinha, apoiou a arma e colocou seus braços sobre a mesa. Do outro cômodo, ela ouvia as vozes profundas de seu pai e de Heron, mas ela duvidava que conseguiria acompanhar a conversa mesmo se estivesse em pé ao lado deles. Isaac estavam bem. Ele estava bem. Estava bem...
Estava acabado. Terminou. E agora, com Isaac indo embora em relativa liberdade, ela poderia tentar seguir em frente também.
Cara, ela precisava de umas férias.
Em algum lugar frívolo e quente, ela decidiu ao se movimentar e pegar os pratos de sobremesa. Em algum lugar com palmeiras. Drinques e sombrinhas. Praia. Piscina...
Tick... tick... whir...
Grier franziu a testa e lentamente olhou por cima do ombro.
Perto da geladeira, a fechadura da porta dos fundos se deslocava da direita para a esquerda, ao mesmo tempo em que a velha trava se erguia.
As vozes na sala silenciaram de repente.
Silenciaram demais.
Aquilo estava errado. Muito errado...
Grier largou os pratos e se lançou para a arma que havia deixado no balcão...
Mas ela não chegou a fazer isso. Alguma coisa atingiu seu ombro e, em seguida, uma carga elétrica passou por seu corpo, curvando-a para trás, desequilibrando seus pés e a jogando com força no chão.
CAPÍTULO 47
Em Beacon Hill, Isaac subiu as escadas da frente da casa, parou no patamar do segundo andar e depois continuou até o quarto de Grier. Em seu espaço particular, ele passeou ao redor da cama e sentiu que estava perdendo sua preciosa sanidade.
Ele olhou o relógio despertador. Caminhou até as portas francesas. Observou o terraço.
Nada se movia lá fora e não havia ninguém na casa além dele e Jim.
O tempo passava, mas ninguém aparecia e não importava quantas vezes ele descesse até Jim e depois voltasse a subir ele não era capaz de prever a próxima sequência de eventos.
Era como um diretor sem megafone e um elenco que não dava a mínima para o que ele tinha a dizer.
O medo inevitável que o afligia era de que estivesse no lugar errado. Que ele e Jim estavam tranquilos aqui enquanto a ação acontecia em outro lugar. Como na fazenda do pai de Grier.
Como se fosse um caminho viciante, ele voltou para a escada e correu para baixo, esperando nada ao longo do caminho ou nos fundos além de uma breve parada na cozinha e outra viagem para cima.
Só que...
Quando ele chegou ao térreo, a porta da frente rangeu como se estivesse sendo aberta. Pegando suas armas, ele estava pronto para atacar... até que ouviu a voz irritada de Jim aumentando.
– O que vocês estão fazendo aqui? – Heron perguntou.
– Você nos mandou uma mensagem de texto.
Isaac franziu a testa ao som da voz do homem de piercing.
– Não, eu não mandei.
– Sim, mandou.
Naquele momento, o transmissor de alerta disparou com um movimento sutil no bolso de Isaac.
Todos os seus instintos queimavam, ele se abaixou silenciosamente no quarto de hóspedes onde tinha ficado. Segurando o transmissor nas mãos, ele ativou o dispositivo e, desta vez, não houve demora na resposta.
Matthias respondeu logo em seguida.
– Estou com sua garota na casa do velho pai dela. Venha para cá. Você tem meia hora.
– Se você a machucar...
– O tempo está passando. E não preciso dizer para vir sozinho. Não me faça esperar, ou vou ficar entediado e terei que preencher meu tempo. Você não vai gostar disso, prometo. Esteja aqui em trinta minutos.
A luz se apagou, a transmissão terminou de repente.
Quando Isaac se virou para sair, ele pulou para trás. Jim, de alguma maneira, subiu as escadas e atravessou a porta fechada para ficar em pé bem atrás dele.
– Ele está com ela – disse Jim categoricamente. – Não está?
– Vou sozinho ou ele vai matá-la.
Empurrando o homem para fora do caminho, Isaac correu escada abaixo. O corpo no corredor de entrada havia sido revistado a procura de armas como se fosse um presente embrulhado, mas chaves de carro era outra coisa.
Bingo. Bolso da frente. Ford.
Agora encontrar o carro do bastardo.
Quando Isaac se levantou, percebeu que tudo estava completamente silencioso e não havia ninguém no corredor da frente. Olhando ao redor, ele teve a sensação de que estava sozinho na casa, embora não fizesse ideia de como eles tinham saído tão rápido.
Seja como for – dane-se. Danem-se todos eles.
Isaac foi direto para a porta, mas no último minuto, ele girou sobre os calcanhares debaixo do arco e se voltou para o corpo para tirar algo mais dele. Então, correu na escuridão.
O carro sem marcas oficiais que ele observou na casa da Rua Pinckney no dia anterior estava estacionado um quarteirão acima e a chave do cara morto encaixou nele. O motor pegou bem e o GPS funcionava, então, ele rapidamente colocou o endereço que o pai de Grier havia dado a eles.
“Morcego vindo do inferno.” Era a descrição da viagem.
Rapidamente, ele pegou a estrada que ligava os locais, alcançando o limite de velocidade e depois ultrapassando-o. Mesmo assim, parecia que ele estava movendo-se em câmera lenta – e só piorou quando saiu da estrada e tentou atravessar um trecho da cidade que estava cheio de sinais vermelhos e estradas sinuosas.
Felizmente, o GPS o levou exatamente aonde ele precisava ir, seu destino tinha uma frente com dois pilares de pedra que ficavam de cada lado de um caminho pálido e brilhante.
Ele baixou os faróis e virou à direita, saindo da velocidade total para ficar cada vez mais lento. Descendo o vidro da janela para que pudesse ouvir melhor, ele avançou, odiando o som dos pneus esmagando um milhão de cascalhos. A única coisa boa era que o brilho permanente da cidade não existia ali em meio à natureza e a lua estava coberta por nuvens. Mas quanto você quer apostar que eles tinham sensores de movimento na parte externa da casa e/ou nas árvores?
Isaac se dirigiu até outro carro sem marcas oficiais que devia ser o carro de Matthias. Uma manobra depois e ele estava fora do carro. Pegando as chaves, ele correu ao longo da margem do gramado, seus sentidos avivados, sua raiva era como o inferno em seu sangue.
Matthias morreria se colocasse um dedo sequer em Grier. Um fio de cabelo daquela mulher fora do lugar e aquele canalha estaria massacrado.
Ao se aproximar da casa, ele procurou as portas. A da frente estava aberta e não conseguia ver a dos fundos.
Mas o que importava – esperavam por ele. E, assim, ele deveria jogar para o alto aquela rotina idiota de ninja e anunciar sua chegada.
Chegando à entrada da casa, ele manteve suas armas escondidas e seus olhos atentos ao fechar os punhos e bater na ombreira da porta de madeira.
– Matthias – ele gritou.
Ao entrar na casa, o silêncio retumbante era mais terrível que qualquer grito ou poça de sangue. Pois só Deus sabia no que ele estava entrando.
Jim elaborou um plano quando ele e os anjos saíram em direção à casa do pai de Grier. Ele não queria deixar Isaac sozinho na cidade, mas tudo o que eles teriam feito seria discutir e Deus sabia que o sagaz imbecil poderia cuidar de si mesmo.
Moral da história: Devina estava executando jogos mortais e isso era uma coisa com a qual apenas Jim poderia lidar. E ter um atraso antes da chegada de Isaac poderia não ser uma coisa ruim: se Matthias tivesse feito qualquer coisa à Grier, seria impossível controlar o soldado.
Sim, quando Jim aterrissou e foi direto para a porta aberta da casa da fazenda com seus homens de confiança na escolta, ele estava preparado para cuidar das coisas.
Nigel, porém, o desviou dos trilhos.
O arcanjo apareceu bem no seu caminho e, dessa vez, ele não estava com seu smoking ou com seu traje de críquete branco ou com qualquer outra roupa de tecido leve todo engomado: ele não era nada além de uma forma brilhante, uma silhueta ondulada com curvas de luz.
E ele disse apenas uma palavra.
– Não.
Quando Jim parou por um momento, ele poderia ter socado o desgraçado se ele tivesse qualquer forma sólida para atingir.
– Qual seu maldito problema?
Primeiro o engano quanto a Isaac, agora isso?
– A sorte está lançada. – Nigel levantou sua mão vacilante. – E se você intervier agora, vai perder de fato.
Jim apontou a porta aberta.
– A alma de um homem está em risco.
A voz de Nigel ficou obscura.
– Como se eu não soubesse disso.
– Se eu chegar a Matthias...
– Você teve sua chance...
– Eu não sabia que era ele! Quanta besteira!
– Não há nada que eu possa mudar. Mas posso dizer, deixe o final acontecer...
– Oh, você não pode mudar nada, mas pode entrar no caminho agora? Que maravilha de noção de tempo!
Jim tinha plena consciência de que sua voz era estrondosa, mas ele não tinha dificuldades para anunciar sua presença a Devina ou a qualquer outra pessoa.
– Dane-se, eu vou entrar...
Com a rápida emanação de um brilho, a forma de Nigel o cobriu da cabeça aos pés, a iluminação atuava como uma espécie de cola que o prendia no lugar. E, em seguida, aquela voz britânica não estava apenas em seu ouvido, mas percorria todo seu cérebro.
– Qual é o caminho mais confiável? O da emoção ou o da razão? Pense, Jim. Pense. Se alguém quebrar as regras, haverá uma punição. Pense nisso. Pense, idiota!
A fúria nublava sua mente e agitava seu corpo até ele pensar que iria se desfazer... mas, de repente, um raio atingiu sua cabeça dura e ele percebeu o que o anjo estava tentando lhe dizer.
Se alguém quebrar as regras... haverá uma punição.
– É isso, Jim. Tome isso como uma conclusão óbvia, leve-a para além dessa noite. E saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva. Eu imploro, confie em mim a respeito disso.
Relaxando sua musculatura, Jim sentiu uma calma curiosa percorrer suas entranhas e ele mudou de ideia devido aos simples argumentos que Nigel tinha exposto.
Olhando para Adrian e Eddie que se preparavam para batalha, viu que estavam tão chateados quanto ele. O que agregava um valor adicional ao que Nigel havia explicado.
– Confie em mim, Jim – disse Nigel. – Eu quero ganhar tanto quanto você. Eu também tenho minha carga de perda de entes queridos. Eu também faria o que fosse preciso para colocá-los em uma eternidade de paz. Não pense que eu o conduziria para o mau caminho.
Jim balançou a cabeça para seu amigos.
– Deixa pra lá – disse Jim a eles. – Vamos ficar à margem. Ficaremos aqui fora.
Quando seus colegas olharam para ele como se estivesse fora de si, ele não poderia concordar. Não entrar ia matá-lo, mas ele percebeu o contexto... e estava satisfeito com a intervenção do arcanjo. Graças a Devina ignorar as regras, o melhor para Matthias seria Jim permanecer fora disso.
Mesmo indo contra todos os seus instintos.
Depois de um momento, Nigel se desprendeu lentamente e sua iluminação mágica gradualmente se dispersou. Na sua ausência, Jim caiu de joelhos na grama, os olhos fixos na porta aberta da casa de madeira enquanto Adrian e Eddie começavam a questioná-lo, exigindo explicações para a ordem de parada.
À margem de sua mente e emoções, o desejo de voar no caminho do que Devina havia projetado ainda o atordoava.
Especialmente quando pensava na mulher de Isaac nas mãos de Matthias...
Oh, Deus... Rothe seria sacrificado, não seria?
As mãos de Jim procuraram a terra e ele cavou o gramado com os dedos, mantendo o corpo no lugar.
Inclinando a cabeça, ele rezou para que sua fé estivesse bem posicionada e que o bem, em algum momento, prevalecesse. Mas o fato era: fazer a coisa certa causaria a morte de um homem que não merecia morrer naquela noite.
CAPÍTULO 48
Matthias amarrou os Childes bem antes do momento que ele esperava que Isaac atravessasse a porta da frente.
Depois que a eletrocutou, descobriu que pegar Grier do chão e colocá-la em uma cadeira requeria mais força do que ele tinha – então, ele a deixou deitada onde estava, amarrando suas pernas e pulsos com a fita adesiva que encontrou na despensa de Alistair.
E quanto ao pai dela?
Não fazia ideia do que tinha feito o homem abrir caminho e ficar parado ali em transe, mas a distração e a falta de reação vieram bem a tempo. Matthias foi capaz de se posicionar atrás do cara e colocar uma arma em sua cabeça.
Então, sim, sentá-lo em uma cadeira na cozinha foi fácil demais; ele simplesmente uniu as próprias mãos e pés.
O que foi bem útil, uma vez que aquela dor no peito de Matthias estava tão ruim que ele mal podia respirar.
E agora, era apenas o caso de esperar por Isaac, os três na casa juntos com a porta aberta.
Houve um gemido e, em seguida, um movimento no chão quando Grier Childe começou a acordar. Ela teve um momento de confusão, como se estivesse tentando entender por que estava deitada sobre a madeira e por que não conseguia abrir a boca. E então ela se movimentou rapidamente com um impulso de corpo inteiro, os olhos bem abertos olhavam para ele.
– Acorde, pirralha – ele disse bruscamente, acenando com a cabeça quando seu pai começou a lutar contra suas amarras e a fazer ruídos abafados sob a fita adesiva na boca.
Matthias colocou a mira da arma em direção à cabeça do cara.
– Cale a boca.
Não havia ninguém por perto para ouvir, mas o sofrimento e a luta alfinetavam os nervos de Matthias. Na verdade, quando ficou em pé entre os dois, ele estava longe da calma e do “mestre da sobrevivência” que ele sempre foi no passado: ele estava com muita dor. Estava exausto. E ele sentia que o que estava prestes a acontecer estava predestinado, mas não era algo que ele teria escolhido.
Ele estava completamente fora de controle e totalmente preso ao mesmo tempo.
Com os olhos dos dois Childes nele e com todos em silêncio de novo, ele se apoiou contra o balcão, seu corpo decrépito protestando a mudança de posição.
– Sabe o que me irrita em você? – ele disse para Alistair. – Eu salvei a boa. – Ele balançou a cabeça em direção à Grier. – Eu poderia ter deixado aquele seu filho com você. Mas não, eu peguei o estragado... tirei seu querido Danny do sofrimento dele e do seu.
Ele se lembrava de ter se surpreendido com seu processo de pensamento na hora. Havia outras coisas dentro dele que machucariam muito mais, mas ele tomou um caminho diferente nessa encruzilhada.
Talvez ele tivesse começado a mudar antes de ordenar a morte. Quem sabe?
Quem se importa?
Ele estava mergulhado demais nas profundezas para ser salvo e sua conversa com Jim ao telefone mostrou a realidade da sua condenação ao invés das possibilidades de redenção. Era hora de acabar com isso... e sair dessa com um estrondo.
Só que dessa vez, ele faria a coisa direito.
Naquele momento, Isaac Rothe apareceu no arco da cozinha. Seus olhos foram até Grier primeiro e nem mesmo seu autocontrole estoico podia esconder seu medo.
Ele amava aquela mulher.
Bem, bom para ele, pobre coitado.
– Bem-vindo à festa – Matthias disse entorpecido ao erguer a arma e apontar para ele.
– Não faça isso – Isaac exclamou. – Leve a mim, não ela.
Matthias olhou os grandes e aterrorizados olhos da mulher e a maneira como ela parecia estar pronunciando algo como “Oh, Deus, não...”
– Eu sinto muito sobre tudo isso – Matthias disse a ela. E era verdade. Ele não sabia o que era mais cruel: matá-la em frente a Isaac... ou deixar que ela sobrevivesse à morte dele – supondo que o amor era recíproco.
Pena que um deles morreria agora – pois, em seguida, Jim Heron seria forçado a entrar e atirar em Matthias – portanto, estariam quites. O soldado o salvou há dois anos contra sua vontade e agora... naquela noite... ele faria o que deveria ter feito no deserto.
– Matthias – disse Isaac nitidamente. – Vou colocar minha arma no chão.
– Não se preocupe – ele murmurou, ainda focado em Grier. – Sabe, senhorita Childe, ele se entregou a mim para salvá-la. Duas vezes. Fez tudo isso por você.
– Matthias, olhe para mim.
Mas ele não olhou. Ao invés disso, encarou o rosto de Alistair e aquilo foi o que o fez ele se decidir.
Ele mudou a arma de direção.
Isaac estava pronto – e ele não esperava por menos.
Os dois puxaram o gatilho ao mesmo tempo.
CAPÍTULO 49
Grier gritou contra a fita que cobria sua boca com os tiros que explodiram na cozinha, o eco fez seus ouvidos ressoarem e seus olhos arderem.
Alguém estava gemendo.
Com seu coração trovejando, ela levantou a cabeça e esticou o pescoço. Matthias não estava mais à vista – então, ele deve ter sido atingido... Ela rezava para que ele tivesse sido atingido.
Isaac...? Seu pai...?
Rastejando ao longo do assoalho, ela avançou ao redor do balcão no meio da cozinha. A primeira coisa que viu foi seu pai na cadeira. E ele era o único que gemia ao lutar furiosamente contra a fita que havia ao redor de suas mãos e pés.
Onde Isaac estava?
Um pavor frio substituiu cada gota de sangue em suas veias e ela sabia a resposta para sua pergunta antes mesmo de vê-lo deitado de costas no cômodo.
Ele não se movia, sua arma estava sobre sua mão frouxa e aberta, seus olhos encaravam o vazio em direção ao teto.
Grier gritou mais uma vez, seu corpo se contraiu, seu rosto se arrastou no chão envernizado, toda sua alma e tudo que havia em sua mente negava o inevitável. Debatendo-se, ela avançou até ele, esperando ajudar, esforçando-se para atravessar a distância...
De repente, suas mãos estavam livres.
Com toda aquela luta ela rasgou o que a prendia. Explodindo em uma coordenação de movimentos inesperada, ela arrancou a fita da boca e se arrastou com os braços até Isaac.
A bala tinha atingido em cheio seu coração.
Era um buraco tão pequeno através da camisa, nada além de uma alfinetada em relação à mancha de fuligem que havia ao redor. Só que foi mais do que suficiente para matá-lo.
– Isaac – ela disse, tocando sua face fria. – Oh, Deus... não se vá...
Sua boca estava ligeiramente aberta, suas pupilas fixas e dilatadas, a respiração superficial prestes a parar. Ele tinha feito tudo para salvá-la, a mudança de planos, a entrega de si mesmo. Afinal, aquele homem louco e terrível não tinha motivos para mentir.
– Isaac... Eu te amo... Sinto muito...
Sua cabeça virou lentamente em direção à ela, seus olhos se esforçando para entrar em foco. Quando ele pareceu se fixar em seu rosto, lágrimas escorreram daquele olhar gélido, uma escapou do canto e rolou sobre suas têmporas, caindo no chão.
– Eu...
– Eu vou chamar a emergência – ela disse rápido.
Só que quando ela foi dar um salto para alcançar o telefone, ele agarrou seu braço com uma força surpreendente.
– Não...
– Você está morrendo...
– Não. – Com a mão livre, ele pegou o zíper do blusão. Mesmo com os dedos tremendo, ele conseguiu segurar a alavanca e puxar para baixo...
Para revelar o colete à prova de balas que estava usando.
– Apenas... perdi... a respiração. – Com isso, ele fez uma inspiração profunda, o que expandiu seu peito totalmente e exalou de maneira uniforme e limpa. – Tirei... do soldado morto...
Grier piscou. Em seguida, ergueu as mãos e sondou o buraco... onde a bala tinha sido capturada e mantida entre as fibras do colete.
Seu corpo reagiu por conta própria, uma estranha força a impulsionou quando ela o ergueu do chão e o segurou perto de seu coração.
– Você é... – ela começou a chorar copiosamente quando o horror e o terror deram lugar ao alívio que se espalhou nela. – Você é um homem brilhante. Um homem brilhante... e estúpido...
E então os braços dele estavam ao redor dela e ele estava, contra todas as possibilidades, cuidando dela.
Contudo, logo ele se separou dela e pegou sua arma.
– Fique aqui.
Com um grunhido, ele se levantou e saiu para checar Matthias e, quando ele se afastou, ela desatou seus pés e correu para seu pai.
– Você está bem? – ela perguntou quando começou a liberar os braços dele.
Ele balançou a cabeça furiosamente, seus olhos não estavam nela, mas em Isaac como se também não pudesse acreditar que o cara tinha sobrevivido. E no instante que suas mãos estavam livres, ele começou a soltar seus tornozelos.
Grier olhou em volta e por precaução, em caso de alguma outra pessoa aparecer ou estar na casa, procurou a nove milímetros que Jim Heron deu a ela quando tinha aparecido por ali.
Supondo que realmente tinha sido o homem.
Algo lhe dizia que talvez o que ela e seu pai viram não estava lá de fato.
Matthias sabia que tinha sido um golpe mortal e estava contente. Sim, ele queria que a arma de Jim fizesse isso, mas a de Isaac funcionou bem – e Rothe tinha feito parte de todo problema da sobrevivência, não tinha?
Pelo menos, ele tinha conseguido com um deles.
Quando o ferimento arterial começou a vazar em sua cavidade torácica, a respiração começou a se tornar difícil e sua pressão caiu, seu corpo foi se entorpecendo e esfriando. Não havia mais dor.
Bem, não exatamente. Aquela pontada de agonia em seu lado esquerdo acabava com ele... e foi enquanto estava morrendo que descobriu o que era aquilo: ele estava errado. Não era seu coração se preparando para um ataque coronário. Era – surpresa das surpresas – a sua consciência. E a maneira como soube foi que quando pensou no fato de ter matado um homem relativamente inocente na frente da mulher que o amava, a dor se tornou exponencialmente pior.
Não era irônico? De alguma maneira, nas profundezas de seu pecado, o sociopata havia encontrado sua alma.
Tarde demais.
Ah, inferno, contudo, estava tudo bem. Ele estaria morto em breve e, depois disso, nada importaria. A luz branca que já tinha se aproximado dele antes, ao entrar em paradas cardiorrespiratórias a na mesa de operações algumas vezes, estava mais perto dessa vez. Ele não achava que fosse o Céu. A porcaria provavelmente era algum produto da imaginação ou alguma disfunção ocular, apenas outra parte dos mecanismos da morte...
Isaac apareceu na frente dele, alto e forte, seu blusão aberto para mostrar um colete à prova de balas.
Quando teve certeza de que estava enxergando direito, Matthias começou a rir... e a dor em seu lado esquerdo aliviou de repente.
– Seu filho da... – Ele não chegou ao mãe, pois uma crise de tosse o atingiu.
Depois que a crise passou, ele pôde sentir sangue escorrendo em sua boca e no rosto quando seu coração começou a bater em sua caixa torácica como um animal se debatendo em uma jaula.
Quando Isaac se agachou, Matthias pensou na tatuagem nas costas dele. O Ceifeiro da Morte, de fato. Ele se perguntou se o soldado tatuaria outro ponto na parte inferior.
Quanto você quer apostar que também seria a última?
Isaac balançou a cabeça e sussurrou.
– Eu tenho que deixá-lo morrer. Sabe disso, não é?
Matthias assentiu.
– Obriga... do...
Ele ergueu a mão gelada e, um momento depois, sentiu que ela estava envolvida em algo quente e sólido. Era a mão de Isaac.
Como foi estranha a maneira como as coisas se resolveram. Naquele deserto, Jim tinha a intenção de salvá-lo, mas aqui e agora, naquela cozinha, Isaac estava dando o que ele queria há tanto tempo.
Antes que Matthias fechasse seus olhos pela última vez, ele olhou para Alistair Childe. Sua filha o havia libertado e ele a abraçava, a envolvia em segurança, a cabeça dele estava bem ao lado da dela. Como se o homem sentisse seu olhar, ele olhou também.
O alívio no rosto dele era épico, como se soubesse que Matthias estava morrendo e nunca mais voltaria – e que, apesar de saber que isso não ressuscitaria o filho perdido, o futuro dele e de sua filha estaria protegido para sempre.
Matthias acenou com a cabeça para ele e, então, fechou as pálpebras, preparando-se para o grande nada que estava por vir. Deus, ele ansiava por isso. Sua vida não tinha sido um presente para o mundo ou para ele mesmo e ele estava buscando a não existência.
Enquanto esperava no trecho entre os mundos, quando não se está nem vivo, nem exatamente morto, ele pensou em Alistair na noite em que seu filho havia morrido.
– ...Dan... ny... meu garoto Danny...
Matthias franziu a testa e, então, percebeu que não tinha apenas pensado nas palavras, mas as pronunciou em voz alta.
Foram as mesmas palavras que ele havia balbuciado antes de colocar o pé naquela bomba.
Naquele momento, a luz branca se apossou dele, um produto da dormência... ou talvez tivesse ultrapassado a sensação como se o sentimento fosse uma porta. Após a chegada dessa luz, uma grande e pacífica calma tomou conta de sua mente, corpo e alma como se estivesse limpo de todos os pecados que tinha imaginado ou cometido durante seu tempo na Terra.
A iluminação era muito mais do que qualquer coisa que seus olhos poderiam abranger. Era tudo o que via, tudo o que conhecia, tudo o que era.
O Paraíso realmente existia.
A oh, a adorável inexistência... ah, a felicidade...
Nas extremidades de sua visão, uma névoa cinza surgiu fervilhando, em sua primeira aparição não havia nada distinto, mas, em seguida, as sombras se expandiram em uma escuridão que começou a comer a luz.
Matthias lutou contra a invasão, seus instintos diziam que aquilo não era o que desejava – mas não era uma batalha que ele pudesse vencer.
A neblina tornou-se piche, o envolvia e o reclamava para si, o puxava para baixo em um espiral apertado, apertado... apertado... até que ele foi jogado em um mar com outros.
Quando ele se contorceu contra a maré oculta e asfixiante, ele esbarrou em corpos que se debatiam.
Preso em uma infinidade de óleo negro, ele gritou... junto a todos que estavam ali.
Mas ninguém apareceu. Ninguém se importou. Nada aconteceu.
Sua eternidade, finalmente, tomou posse dele e ela nunca mais o deixaria ir.
CAPÍTULO 50
– Ele está morto.
Quando Isaac pronunciou as palavras, ele se levantou e respirou fundo. Do outro lado, Grier e seu pai estavam envolvidos um ao outro e ele se permitiu um momento para apreciar a visão deles vivos e, enfim, juntos.
Obrigado, Deus, ele pensou – mesmo não sendo um homem religioso.
Obrigado, Deus todo-poderoso.
– Fiquem aqui – disse ele antes de percorrer o local, fechar e trancar a porta dos fundos.
Levou dez minutos para pesquisar e deixar toda a casa em segurança e a última coisa que ele fez foi ir até a porta da frente e verificar mais uma vez se os cadeados estavam devidamente trancados...
Isaac franziu a testa e olhou para o gramado através da janela. Havia um pequeno cachorro lá fora... parado com as pernas atarracadas, com a cabeça inclinada ao olhar para Isaac lá dentro. Que graça... precisava cortar o pelo, mas isso acontece nas melhores famílias.
Isaac abriu a porta e gritou.
– Você mora aqui?
Enquanto aquela cabeça continuava inclinada do outro lado, Isaac procurou pelo jardim da frente e rezou para que Jim Heron surgisse dentre as árvores a qualquer minuto.
Contudo, não havia nada além do cachorro.
– Quer entrar? – ele disse ao animal.
A coisa pareceu sorrir como se tivesse apreciado o convite. Mas, então, ele se virou e afastou-se, um leve mancar o fazia pender para a direita.
Em um piscar de olhos, o animal desapareceu.
Que trilha sonora a dessa maldita noite, Isaac pensou ao fechar a porta de novo.
Assim que entrou na cozinha, Grier se afastou de seu pai num rompante e veio correndo até ele, atingindo seu corpo com força, os braços o envolviam com uma força vital. E com um suspiro de gratidão, ele a segurou, pressionando sua cabeça sobre o peito, sentindo seu coração bater.
– Eu te amo – ela disse contra o colete à prova de balas. – Eu sinto muito. Eu te amo.
Droga, então ele ouviu direito quando estava no chão.
– Eu também te amo. – Erguendo seu rosto, ele a beijou. – Mesmo que eu não a mereça.
– Cale a boca.
Agora era ela quem o beijava e ele mais que a desejava – mas não durou muito. Logo ele interrompeu o contato.
– Ouça, eu quero que você e seu pai façam uma coisa por mim.
– Qualquer coisa.
Ele olhou o relógio. 9h59.
– Volte para a cidade – algum lugar público. Algum dos seus clubes ou algo assim. Eu quero que vocês dois sejam vistos juntos essa noite. Diga às pessoas que vocês foram jantar ou assistiram a um filme no cinema. Uma coisa de pai e filha.
Quando os olhos dela se lançaram sobre o corpo de Matthias, seu pai disse: – Eu posso ajudar.
– Nós podemos ajudar – Grier corrigiu.
Isaac recuou e balançou a cabeça.
– Eu vou cuidar dos corpos. Melhor que nenhum de vocês dois saiba onde eles vão parar. Eu cuido disso – mas têm que ir agora.
Os Childes pareciam dispostos a argumentar, mas ele não tinha nada a dizer.
– Pense nisso. Está tudo acabado. Matthias está morto. Assim como seu segundo no comando. Com eles mortos, as operações extraoficiais vão voltar a ser o que deveriam – e serão administradas pelas pessoas certas. Você está fora. – Ele balançou a cabeça para Childe. – Eu estou fora. A barra está limpa, permitindo com que eu lide com isso de agora em diante. Vamos fazer isso do jeito certo, pela última vez.
Seu pai soltou um palavrão – o que era algo que, sem dúvida, ele não fazia com frequência. E, em seguida, ele disse: – Ele está certo. Deixe-me trocar de roupa.
Quando seu pai desapareceu, Grier olhou para Isaac, seus braços envolveram a si mesma lentamente, seu olhar ficou grave.
– Isso é um adeus entre nós? Hoje à noite? Aqui e agora?
Isaac foi até ela e capturou seu rosto com as mãos, sentindo de maneira muito intensa a realidade da qual não podia escapar e a qual ela não seria capaz de sobreviver.
Com uma dor em seu peito que não tinha qualquer relação com a bala, ele disse uma única e devastadora palavra.
– Sim.
Quando ela cedeu, fechando os olhos com força, ele teve que dizer a verdade: – É melhor assim. Eu não sou seu tipo de homem, mesmo se não tivesse que me preocupar mais com as operações extraoficiais, eu não sou o que você precisa.
Suas pálpebras se abriram e ela o encarou.
– Quantos anos eu tenho? – ela perguntou. – Vamos lá, quantos? Diga!
– Ah... trinta e dois.
– E você sabe o que isso quer dizer, legalmente? Posso beber, posso fumar, posso votar, posso servir o exército e posso tomar minhas próprias decisões. Então, que tal deixar que eu escolha o que é e o que não é bom para mim?
Certo. Não era hora de discussões. E ele realmente achava que ela não tinha pensado nas implicações de estar com um homem com seus antecedentes.
Ele recuou.
– Vá com seu pai. Deixe-me limpar tudo aqui e na cidade.
Seus olhos se fixaram aos dele.
– Não parta meu coração, Isaac Rothe. Não parta meu coração quando você sabe perfeitamente bem que não precisa fazer isso.
Com isso, ela o beijou e saiu da cozinha... e enquanto ele a observava sair, se sentiu sendo direcionado a dois resultados: um onde ele ficava com ela e tentava fazer as coisas darem certo, outro onde ele a deixava para costurar sua vida e seguir em frente.
Ouviu os passos dela e de seu pai no andar de cima enquanto se aprontavam para sair e fingir que não tinham visto dois homens sendo mortos em suas casas e que não estavam rezando para que um soldado a quem eles nunca deveriam ter conhecido desaparecesse com os corpos.
Cristo, e ele sequer considerou estar na vida dela?
Isaac estava sozinho não mais que vinte minutos depois, os dois fizeram uma saída rápida para a cidade com o Mercedes de Childe.
Antes de partirem, Isaac apertou a mão do pai de Grier, mas não ofereceu sua palma a ela – pois ele não confiava que não iria beijá-la uma última vez: olhando para ela em seu vestido preto, com seu cabelo amarrado e maquiada, ela estava como da primeira vez que a viu, uma mulher bonita, bem educada, com os olhos mais inteligentes que ele nunca teve o privilégio de olhar fixamente antes.
– Fique bem – ele disse a ela com voz rouca. – Ligo quando estiver tudo certo para que possam voltar.
Sem lágrimas, sem protestos da parte dela no final. Ela apenas balançou a cabeça uma vez, girou sobre os calcanhares e se dirigiu para o carro do pai.
Quando os dois saíram, ele caminhou até a porta da frente e observou as luzes traseiras do sedã.
Ele teve que secar os olhos. Duas vezes.
E depois que os dois faróis vermelhos desapareceram, ele se sentiu abandonado. Mas aquilo era uma grande besteira, não era? Você não poderia ser abandonado quando se é o único a partir.
Certo?
Procurando algum tipo de contato, algum tipo de esperança, ele olhou ao redor da fileira de árvores do outro lado do gramado mais uma vez. Nenhum sinal de Jim e seus amigos... ou daquele cachorro.
E ele ainda podia jurar que estava sendo observado.
– Jim? Você está aí fora?
Ninguém respondeu. Ninguém saiu da folhagem.
– Jim?
Quando ele voltou para dentro, teve a estranha sensação de que nunca veria Heron novamente. O que era esquisito, pois Jim estava muito entusiasmado para ser um salvador.
Mais uma vez, ele observou o corpo de Matthias estirado no chão, o que significava que Isaac estava em segurança agora – a vida daquele homem acabou servindo para alguma coisa afinal, não é?
Contudo... só para garantir, ele ficou vestido com o colete à prova de balas até o amanhecer.
Não havia razão para não garantir a vida.
CAPÍTULO 51
– Jim? Você está aí fora, Jim?
Quando os olhos de Isaac procuraram pelas árvores, Jim estava a não mais que três passos de distância do cara e desejava poder abraçar o filho da mãe. Deus... quando aqueles tiros explodiram e ele viu pela janela da cozinha quando Matthias e Rothe caíram, anos foram arrancados de sua vida eterna.
Mas Isaac estava bem. Ele se salvou com um pensamento bastante óbvio e defensivo. Assim como foi treinado para fazer.
– Jim?
E agora, ao olhar para seu amigo soldado, uma alegria pura e inalterada o inundava. Ele tinha vencido. Mais uma vez.
Vá se ferrar, Devina, ele pensou. Vá se ferrar!
Isaac estava vivo, assim como Grier e seu pai. E apesar de ir atrás da alma errada no começo, as coisas funcionaram muito bem – embora a coisa de Nigel sobre punição acabou por ser irrelevante, não?
Jim olhou sobre o ombro para Adrian e Eddie e ficou surpreso por eles não estarem todos sorridentes.
– O que há de errado com...?
Ele não teve a chance de terminar a frase. Um turbilhão louco rodopiou sob seus pés, girando em torno dele, levantando-se para reivindicar suas pernas, quadris e peito. Ele tentou lutar, mas não conseguiu fugir...
Suas moléculas se misturaram e se dispersaram até que havia um enxame dentro dele que o fazia sair de suas dimensões de tempo e espaço, ele viajava para algum destino desconhecido. Quando ele se recompôs, sabia exatamente onde estava... e a visão da mesa de trabalho de Devina revirou o seu estômago.
Ele não tinha ganhado. Tinha?
– Não, você não ganhou – ela disse atrás dele.
Girando sobre os calcanhares, ele olhou para ela quando entrou atravessando o arco. Ela estava em sua forma morena, toda linda e exuberante e falsa como uma versão Barbie de si mesma.
Ela sorriu, seus lábios vermelhos ondulavam sobre seus belos dentes brancos.
– Matthias atirou em Isaac com a intenção de matar. Se houve ou não uma morte não importa. Isso significa dolo – uma mente culpada.
Acima de sua cabeça, uma bandeira preta estava pendurada na parede escura, seu primeiro troféu.
– Você perdeu, Jim. – Aquele sorriso ficou ainda maior quando ela levantou os braços e indicou sua grande e viscosa prisão que se erguia acima dos dois. – Ele está aqui agora, meu para sempre.
As mãos de Jim se fecharam para um soco.
– Você trapaceou.
– Trapaceei?
– Você fingiu ser eu, não foi? Foi assim que Matthias entrou na fazenda. Ou você fez com que ele se parecesse comigo ou apareceu como se fosse eu.
Sua satisfação presunçosa era toda a confirmação que ele precisava.
– O que é isso agora, Jim? Eu nunca trapaceei. Então, eu não sei do que está falando. – Devina caminhou até ele, aproximando-se em um sensual deslize. – Diga, você se incomoda de ficar mais um pouco? Eu tenho algumas ideias de como podemos passar o tempo.
Quando ela estava bem na frente dele, suas unhas vermelhas flutuaram sobre seu peito e ela se inclinou.
– Eu amo estar com você, Jim.
Com um forte estrondo, ele capturou o pulso dela e o apertou com força suficiente para quebrá-lo.
– Sei que você adora fazer os outros sofrerem. Mas caso não se lembre, eu resisti às suas torturas.
A vadia teve a coragem de fazer beicinho.
– Você está me machucando.
Ele não acreditou naquilo nem por um segundo.
– E você não vai dizer ou fazer nada.
Agora ela sorria de novo.
– Está certo, Jim, meu amor. Está certo.
Ele soltou dela como se ela o queimasse, o estômago apertou ao reconhecer a luz em seus olhos.
– Isso mesmo, Jim – ela murmurou. – Eu tenho sentimentos por você. E isso o assusta, não é? Com medo de ser recíproco?
– Nem. Um. Pouco.
– Ah, bem, teremos que trabalhar em cima disso.
Antes que ele pudesse detê-la, ela se ergueu e capturou a boca dele, beijando-o rápido e, em seguida, mordendo o lábio inferior com força suficiente para tirar sangue.
Ela recuou rápido, como se soubesse que estava forçando.
– Adeus, por enquanto, Jim. Mas nos veremos em breve. Prometo.
Com nojo, ele limpou a boca com as costas da mão e cuspiu no chão. Estava prestes a levá-la ao chão quando franziu a testa, pensando no que Nigel havia dito no gramado.
Saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva.
Agora, era Jim quem sorria – embora severamente. Havia coisas piores do que seu inimigo apaixonado por você: forte como ela era, tão imprevisível e perigosa quanto seus poderes, aquele olhar em seus olhos, aquele olhar em chamas, fora de controle, era uma arma.
Deixando para trás suas emoções, ele se viu descendo a mão e empurrando seu pênis.
A reação de Devina foi instantânea e elétrica. Seu olhar quente se voltou para os quadris dele, a boca dela se abriu como se não conseguisse respirar direito, os seios se erguiam sobre o corpete do vestido.
– Você quer isso? – ele perguntou rispidamente.
Como uma marionete, ela assentiu com a cabeça.
– Não é o suficiente – ele disse a ela, odiando-a, odiando a si mesmo. – Diga isso, vadia. Diga.
Com uma voz rouca e ansiosa, ela sussurrou: – Eu te desejo...
Jim soltou seu membro, sentindo imundo por dentro e por fora. Mas a guerra era feia, não era? Mesmo se você está do lado bom e moral.
Um mal necessário, ele pensou. Seu corpo e a necessidade dela eram um mal necessário e ele os usaria se precisasse.
– Bom – ele rosnou. – Isso é bom.
Com isso, ele desejou que seu corpo se levantasse do chão, dessa vez a energia era convocada por ele e por mais ninguém.
Ao levitar cada vez mais alto, Devina se aproximou dele, seu rosto se contorcia em um tipo de desejo doloroso que dava mais energia a ele.
E, então, ele não estava mais olhando para ela; ele estava examinando as paredes de sua masmorra, em busca da garota que ele odiaria deixar para trás de novo... assim como seu patrão a quem ele tinha tentado salvar e falhado.
Ele voltaria pela moça. Mas seu patrão... temia que Matthias tinha sido colocado para descansar ali por uma eternidade, o seu sofrimento interminável era merecido.
Contudo, Jim lamentava a perda do homem.
Ele queria redimir o cara.
Jim voltou a consciência no gramado do capitão Alistair Childe. E quando ele voltou a pensar em sua primeira missão, parecia que tinha ficado especialista no vai e vem na grama.
Adrian e Eddie estavam um de cada lado dele, os dois anjos graves e sérios.
– Perdemos – disse Jim. Como se eles já não soubessem.
Adrian estendeu a mão e quando Jim se ergueu, o cara o ajudou a colocá-lo em pé.
– Perdemos – Jim murmurou novamente.
Olhando por cima do ombro, ele pensou brevemente em ir até a fazenda e ajudar Isaac a cuidar dos restos de Matthias, mas decidiu ficar onde estava. O soldado já teria um momento difícil suficiente para fazer com que todas as coisas que não poderiam ser explicadas fizessem sentido – mais contato com Jim só daria a ele outra porcaria para pensar.
– Caldwell – disse Jim aos seus amigos. – Vamos voltar a Caldwell.
– Está certo – Eddie murmurou, como se não estivesse nem um pouco surpreso.
E Jim não ia se preocupar com quem seria o próximo no jogo. Como ele aprendeu com essa tarefa em particular, as almas iriam encontrá-lo. Assim, ele poderia muito bem seguir o que seu coração lhe dizia: que já era hora da família Burten encontrar o corpo de sua filha para enterrá-lo de maneira adequada.
Jim era o único anjo que poderia fazer isso acontecer.
Desfraldando suas grandes asas luminescentes, lançou um último olhar através das janelas da cozinha. Isaac Rothe estava trabalhando com uma determinação sombria, lidando com as coisas com a mesma competência, como sempre fez.
Ele ia ficar bem – desde que fosse inteligente o suficiente para ficar com aquela advogada. Deus, quem tem sorte de encontrar um amor assim? Só um idiota desperdiçaria isso.
Jim se dirigiu para o céu noturno como se tivesse nascido para ele, suas asas o carregavam através do ar frio, o vento batia em sua face e dedilhava seus cabelos, sua equipe de dois membros estava bem atrás dele.
Na próxima batalha ele seria mais rápido no gatilho. E usaria sua nova arma contra Devina para sua total vantagem.
Mesmo se isso o matasse.
CAPÍTULO 52
UMA SEMANA DEPOIS...
Ao se despir no closet, Grier pendurou seu terno preto com os outros e achou ser impossível não se lembrar da maneira como estava organizado antes. Os ternos ficavam à esquerda da porta. Agora, eles estavam bem à frente.
Apenas vestida com sua blusa de seda e meias, ela passou as mãos ao redor, tocando as roupas, perguntando-se quais foram penduradas por ela naquela tarde... e quais Isaac havia organizado depois que ela saiu.
Fechando os olhos, ela quis chorar, mas não teve forças.
Não soube de nada mais sobre ele desde aquela noite da limpeza há uma semana – sobre o que, aliás, ele tinha avisado via mensagem de texto ao invés de pessoalmente ou falando ao telefone.
Depois disso? Nada de ligações, e-mails, visitas.
Era como se ele nunca tivesse existido.
E ele não deixou nada para trás. Quando ela voltou àquela casa, o cartão de visitas que Matthias havia dado a ela assim como as faixas de tecido retiradas da regata e a pasta cheia de dossiês haviam desaparecido. Juntamente com os dois corpos e os dois carros em Lincoln.
De maneira insana, ela procurou por um bilhete, assim como havia feito na primeira vez que ele “partiu”, mas não havia nada. E, às vezes, no meio da noite, quando não conseguia dormir, ela levantava para procurar novamente, verificando nos criados mudos ao lado da cama, na cozinha e até mesmo no closet.
Nada.
A única coisa que ela concluía que ele havia deixado para trás era aquele closet organizado. Mas era algo que ela dificilmente colocaria em seu diário e daria uma olhada de tempos em tempos quando se sentisse melancólica.
Durante aqueles sete dias que se passaram, o trabalho a manteve firme, forçando-a a levantar pela manhã quando tudo o que ela queria era puxar os cobertores sobre a cabeça e ficar deitada na cama o dia inteiro: em todas as manhãs, ela se levantou, se vestiu, tomou café e ficou presa no trânsito durante o curto caminho até o Distrito Financeiro, onde os escritórios se encontravam.
Seu pai tinha sido ótimo.
Eles jantaram juntos todas as noites, como se já tivessem esse hábito antes...
A única coisa mais próxima de uma luz no fim do túnel era – apesar daquilo ser apenas um fósforo aceso e não uma fogueira ou coisa assim – que havia persistido na ideia de tirar umas férias. Na próxima semana ela entraria em um avião e iria até...
Grier congelou, uma sensação de cócegas em seu pescoço interrompendo a rotina de angústia.
– Daniel?
Quando não houve resposta, ela soltou um palavrão. Além de procurar por um bilhete inexistente de Isaac, ela esperava ver o fantasma de seu irmão, mas era como se os dois a tivessem abandonado na pior sem dizer adeus.
Virando-se, ela...
– Daniel! – Ela agarrou o peito. – Cristo! Onde diabos você esteve?
Pela primeira vez, seu irmão não estava vestido com suas roupas da Ralph Lauren. Ele estava com uma longa bata branca, parecendo que estava prestes a se formar na faculdade ou algo assim.
Seu sorriso era terno, mas triste.
– Oi, irmãzinha.
– Pensei que havia me abandonado. – Ela quase saiu correndo para abraçá-lo quando percebeu que não ia dar certo: como sempre, a maior parte dele era de ar. – Por que você não...
– Eu vim para dizer adeus.
– Oh. – Seus olhos se fecharam por conta própria e ela respirou fundo. – Era como se eu já esperasse por isso, acho.
Quando ela abriu os olhos novamente, ele estava bem na frente dela e tudo o que pôde pensar foi em como ele parecia bem. Tão relaxado. Tão... curiosamente sábio.
– Você está pronta para isso agora – ele disse a ela. – Você está pronta para seguir em frente.
– Estou? – Ela não tinha certeza. A ideia de não vê-lo de novo a deixou em pânico.
– Sim, você está. Além disso, não é o tipo de coisa permanente. Vai me ver de novo... Mamãe também. Vai levar muito tempo, mas você tem algo pelo que viver agora.
– Certo, tenho a mim mesma. Sem ofensa, mas eu já venho fazendo isso há trinta anos e é meio vazio.
Agora, ele sorria e sua mão brilhante pairou sobre sua barriga.
– Não exatamente.
Quando olhou para si mesma, ela se perguntou sobre o que diabos ele estava falando.
– Eu amo você – seu irmão disse. – E você vai ficar bem. Eu também quero lhe dizer que acho que estava errado.
– Sobre o que?
– Eu pensei que estava preso entre os dois mundos por que você não me deixaria ir. Mas não era isso. Eu era o único que não me permitia partir. Contudo, você vai ficar em ótimas mãos e tudo ficará bem.
– Daniel, do que você está falando...?
– Vou dizer a mamãe que você a ama. E não se preocupe. Sei que me ama também. Diga “oi” para o papai por mim se puder. Diga a ele que estou bem e já o perdoei há muito tempo. – Seu irmão ergueu sua mão fantasmagórica. – Adeus, Grier. E Daniel seria ótimo. Sabe? Se for menino.
Grier recuou quando seu irmão desapareceu no ar.
Na sua ausência, ela ficou ali, parada de maneira idiota, imaginando no que em nome de Deus ele poderia...
Seus pés começaram a se mover sem que ela os ordenasse e, uma fração de segundo depois, ela se encontrava no banheiro. Escancarando a gaveta onde guardava a maquiagem e suas...
Pílulas anticoncepcionais.
Com a mão trêmula, ela pegou o bloco de bolhas quadrado e começou a contar.
Mas não era como se ela não se lembrasse qual havia esquecido... de tomar.
A última pílula que engoliu foi na noite anterior a de Isaac entrar em sua vida. E eles tinham feito amor duas vezes... talvez duas e meia sem proteção.
Grier saiu tropeçando do banheiro e imediatamente percebeu que não tinha para onde ir. Caindo sobre os pés da cama, ela ficou lá sentada na penumbra e olhava para a embalagem enquanto a chuva começava a cair lá fora.
Grávida? Seria possível que ela estivesse... grávida? Ela estava...?
A batida foi tão silenciosa que no começo ela achou ser apenas um efeito de seu coração que batia forte, mas quando aconteceu de novo, ela olhou para a porta francesa no terraço.
Do outro lado do vidro, uma forma enorme se sobressaía e por um segundo ela quase recorreu ao sistema de segurança. Mas, então, ela viu que não era uma arma na mão do homem.
Uma rosa.
Com certeza parecia uma única rosa.
– Isaac – ela gritou.
Explodindo, ela correu para a porta e a abriu com força.
Seu soldado desaparecido estava ali agora na garoa, seu cabelo úmido, a regata preta deixava seus ombros nus sob as gotas.
– Oi – ele disse com uma voz doce. Como se estivesse inseguro com a recepção que teria.
Grier colocou as pílulas atrás de si.
– Olá...
Sua mente girou em um frenesi ao se perguntar se ele tinha vindo para conversar sobre algum problema com a limpeza dos corpos... ou ele estava ali para avisá-la de que alguém estava atrás deles? Mas, então, por que ele traria uma...?
– Não há nada de errado – ele disse, como se talvez ela tivesse pensado em voz alta. – Só estou aqui para lhe dar isso. – Ele ergueu a rosa branca meio desajeitado. – É... ah, algo que os homens fazem. Quando eles... ah...
Quando a voz pareceu abandoná-lo, Grier olhou para as pétalas perfeitas da flor e, ao respirar fundo, ela sentiu o aroma – e, então, percebeu que estava fazendo com que ele ficasse na chuva.
– Deus, onde está minha educação... entre – ela disse. – Você está se molhando.
Quando ela recuou, ele hesitou. E, então, ele colocou a rosa entre os dentes e se abaixou para desfazer o laço das botas de combate.
Grier começou a rir.
Ela não conseguia evitar e não fazia qualquer sentindo, mas não havia como segurar. Ela riu até que precisou voltar e sentar-se no colchão de novo. Ela ria de alegria, confusão e esperança. Ela ria de tudo, desde a rosa perfeita até o momento perfeito... até o timing perfeito.
Até de ele ser um perfeito cavalheiro – ao ponto de não querer sujar o tapete de seu quarto.
Seu irmão estava certo.
Ela ia ficar bem.
Seu soldado estava em casa afinal... e ela ia ficar perfeitamente bem.
Isaac entrou no quarto de Grier de meias e foi cuidadoso ao fechar a porta atrás de si. Tirando a rosa dentre os dentes, ele passou a mão no cabelo e sentiu mais uma vez a sensação de querer ter aparecido em um smoking ou coisa assim.
Mas ele simplesmente não era o tipo de cara que usava smoking.
Ele se aproximou de sua mulher e ficou de joelhos na frente dela, observando-a dar risada e sorrindo um pouco de si mesmo. Ou ela tinha perdido a cabeça ou estava feliz em vê-lo – e ele esperava com todas as forças que fosse a última opção e não se importava que fosse a primeira se ela o deixasse ficar.
Deus, ela estava linda. Com nada além de uma blusa de seda preta e um par de meias finas, era a coisa mais linda que ele já tinha visto...
Quando ela enxugou os olhos, ele percebeu que havia alguma coisa em sua mão e não era uma flor boba. Era uma embalagem cheia de... pílulas?
Foi evidente quando Grier percebeu o que ele estava olhando, pois ela parou de rir e tentou fixar a coisa nas costas.
– Espere – ele disse. – O que é isso?
Ela respirou fundo, como se estivesse se preparando.
– Por que você voltou?
– O que faz com essas pílulas?
– Você primeiro. – Seu olhar estava mortalmente sério. – Você... responde primeiro.
Bem, agora, ele se sentia como um tolo, mas, novamente, apesar de tudo se justificar no amor e na guerra, não havia lugar para o orgulho de um homem naquela confusão, havia?
– Eu vim para ficar, se você permitir. Passei a última semana... cuidando das coisas. – Não havia motivos para detalhar isso e ele ficou aliviado por ela não perguntar. – E eu tive que pensar um pouco. Eu quero entrar na legalidade. Como você disse, não se pode mudar o passado, mas posso fazer alguma coisa quanto ao futuro. Meu tempo nas operações extraoficiais... vou ter que carregar esse fardo comigo pelo resto da minha vida – mas, e sei que isso vai soar mal, sou um assassino com a consciência tranquila. Não sei se isso faz sentido...
Porém, a questão de haver uma anotação em seu dossiê “Precisa de uma motivação moral” não era apenas fachada – e aquela era a única razão pela qual ele conseguiria viver sem se entregar à prisão ou à cadeira elétrica.
Ele limpou a garganta.
– Quero ir a julgamento pelas lutas clandestinas... talvez se eu concordar em cooperar, posso conseguir uma sentença reduzida, fiança ou algo assim. E, depois, quero conseguir um emprego. Talvez na área de segurança ou...
Ele gostaria de entrar para a equipe de Jim Heron, mas com Matthias morto talvez aqueles três tivessem se separado – contudo, ele nunca saberia. Se Jim não tinha vindo procurá-lo até agora, ele nunca mais iria.
– Acho que estou grávida.
Isaac congelou. Depois, piscou os olhos.
Hum, ele pensou. Considerando o zumbido em seus ouvidos, parecia que alguém tinha atingido sua nuca com um golpe.
O que não só explicava o barulho como também a súbita tontura.
– Desculpe... O que você falou?
Ela ergueu as pílulas.
– Eu me esqueci de tomá-las. Com todo aquele drama, eu simplesmente... não fiz isso.
Isaac esperou para ver se a sensação de “certo, eu fui atingido” voltava e, como pode imaginar, sim, ela voltou com tudo.
Porém, não durou muito. Uma alegria devastadora derrotou suas hesitações e, antes que se desse conta, ele saltou sobre Grier a derrubando no colchão em um abraço de esmagar os ossos. E isso, imediatamente, o deixou apavorado.
– Oh, Deus, eu machuquei você?
– Não – ela disse, sorrindo e o beijando. – Não, estou bem.
– Tem certeza?
Ela lançou um olhar estranho e distante em direção ao dele.
– Sim, estou bem mesmo. Podemos chamá-lo de Daniel se for menino?
– Podemos chamá-lo de tudo. Daniel. Fred. Susie seria complicado, mas eu aceito.
Não havia mais nada a dizer depois disso. Ele estava muito ocupado a despindo e, então, eles ficaram nus e...
– Caramba... – Ele gemeu ao entrar nela, sentindo seu forte abraço e encantado com aquela pressão quente e escorregadia. – Desculpe... eu não quis... reclamar...
Oh, o movimento, o glorioso movimento.
Oh, o glorioso futuro.
Ele estava livre enfim. E, graças à ela, Isaac saiu da tempestade, literalmente.
– Eu amo você, Isaac – ela arfou contra sua garganta. – Mas quero mais intenso... preciso de você mais forte...
– Sim, senhora – ele rosnou. – Qualquer coisa que a moça quiser.
E, em seguida, ele começou a dar-lhe tudo o que tinha... tudo o que era e tudo o que seria.
CAPÍTULO 38
Depois que Isaac se certificou que Grier estava segura, ele tateou ao redor do quarto dela e ouviu com atenção. Quando a falta de passos, confusão, ou tiros não lhe deu informações, ele continuou a ir em direção à entrada. Outra pausa. Será que ele deveria usar a escada dos fundos? A da frente?
Frente. Era mais provável que uma infiltração ocorresse a partir do jardim dos fundos. Havia mais cobertura nessa direção.
Droga, ele esperava que fosse apenas Jim Heron, mas não achava que o cara ia aparecer assim. E o pai de Grier poderia desativar o sistema – ele já tinha provado que conseguia fazer isso. Então, era evidente que ele não tinha permitido a entrada de quem estava ali.
Maldição, se era alguém mandado por Matthias, por que a chegada não foi anunciada pelo transmissor de alerta? Por outro lado, Isaac não permitiria que entrassem ali dentro e sem dúvida eles sabiam disso: Matthias pode ter exigido que Grier e seu pai estivessem por perto, mas Isaac não estava disposto a deixar que o matassem na frente deles.
Ela nunca superaria isso.
Por favor, Deus, ele pensou. Permita que ela fique onde está.
Andando com as costas deslizando contra a parede, ele desceu as escadas, sempre com sua arma à frente. Sons... onde estavam os sons? Não havia nada, literalmente, se movendo na casa e, considerando que o pai de Grier andava como um leão enjaulado, aquele silêncio todo não era animador.
Assim que a parede terminou e o percurso sem corrimão começou, ele se balançou, se soltou e, deliberadamente, aterrissou com força como uma pedra na sala da frente.
Às vezes, o ruído era um bom direcionador, dando ao seu oponente um alvo para perseguir.
E, como pode imaginar, o “boom” dos pés de Isaac atingindo o chão atraiu o visitante: da cozinha, um homem vestido de preto entrou em sua visão.
O segundo na linha de comando de Matthias.
E ele fez do pai de Grier um escudo humano.
– Quer trocar? – o cara disse severamente.
A arma apontada para a cabeça de Childe era uma automática equipada com um silenciador. Bem, não era surpresa. Era idêntica a que havia nas mãos de Isaac.
Movendo-se lentamente, Isaac curvou-se para baixo e colocou sua arma no chão. Então, chutou para longe.
– Deixe-o ir. Venha, leve a mim.
Childe arregalou os olhos, mas se segurou. Ainda bem.
Isaac virou para a parede, colocou as mãos em cima do gesso e abriu os tornozelos em posição de uma apreensão clássica. Olhando por cima do ombro, ele disse: – Estou pronto para ir.
O segundo no comando esboçou um sorriso.
– Olhe para você, todo condescendente. Traz até uma lágrima no olhar.
Com um movimento rápido, o soldado deu um golpe no pai de Grier com a coronha da arma, o velho Childe caiu ao chão como um saco de areia. Em seguida, foi a vez do segundo no comando caminhar até Isaac, com a arma apontada para ele e com uma atitude inabalável.
Tão estranho quanto isso era o seu olhar negro e fosco.
– Vamos fazer isso logo – Isaac disse.
– Onde está sua outra arma? Eu sei que você tem outra.
– Venha pegar.
– Você quer mesmo brincar comigo?
Isaac se aproximou e pegou sua outra arma.
– Onde você a quer?
– Pergunta errada. No chão e dê um pontapé.
Quando Isaac se inclinou, o outro homem também o fez. E não mudaram de posição até que os dois se endireitassem e Isaac percebesse que sua primeira arma, a do silenciador, tinha sido apanhada por uma mão negra, enluvada.
– Então – o segundo no comando falou devagar – Matthias tem se divertido com as conversinhas que vocês dois têm levado e ele quer que eu o mantenha aqui até ele chegar. – O maldito olhar do bastardo se aproximou. – Mas eis a questão, Isaac: há coisas maiores em jogo e esta é uma situação pela qual seu chefe não é responsável.
O que era aquela coisa de “seu chefe”, Isaac pensou.
E, então, ele franziu a testa ao perceber que o braço do cara, aquele que tinha sido quebrado há menos de dois dias, parecia estar completamente curado.
E aquele sorriso estava errado... havia algo de errado com aquele sorriso também.
– As coisas vão tomar um rumo diferente – o segundo no comando disse. – Surpresa!
Com isso, ele colocou a arma de Isaac no próprio queixo e puxou o gatilho, explodindo sua cabeça por completo.
CAPÍTULO 39
Jim saiu do coma com sua nuca em chamas. Ele não fazia ideia de quanto tempo ficou apagado, mas estava claro que Ad o colocou de novo na cama: a maciez sobre sua cabeça era, definitivamente, um travesseiro e não a barra fria e dura da banheira.
Quando ele se sentou na cama, ficou chocado: sentia-se forte de uma maneira curiosa e milagrosamente estável. Era como se o tempo de descanso que teve... bem, que deve ter durado horas, supondo que estava lendo o relógio direito... tinha o reiniciado por dentro e por fora.
O que era uma boa notícia.
Contudo, a tensão no topo de sua coluna não era nada além de uma coisa: Isaac.
Isaac estava com problemas.
Balançando as pernas para fora da cama na posição vertical e as firmando no chão, não sentiu náuseas, tonturas, dores ou incômodos. Apenas o formigamento na base do crânio – ele não estava apenas pronto para ir, estava rugindo para fazer isso.
– Adrian! – ele gritou enquanto se aproximava de sua mochila e puxava um par de calças jeans.
Onde, diabos, estava o Cachorro?
Através da porta que ligava os quartos, ele pôde ver que as luzes estavam acesas do outro lado, então, o anjo tinha que estar lá.
– Adrian! – ele pronunciou o comando e puxou as calças; em seguida, pegou uma camisa.
– Nós temos que ir!
Ele pegou sua adaga de cristal e a colocou no casaco.
– Ei, Ad...
Adrian estava esparramado no quarto com o Cachorro debaixo do braço.
– Eddie está em apuros.
Bem, aquilo não fez com que a sensação de sua nuca tivesse muita melhora.
– O quê?
Adrian se desfez do Cachorro e deixou que pulasse para dizer “oi” a Jim.
– Ele não está atendendo ao telefone. Eu liguei. E liguei de novo. E liguei uma terceira vez. Nunca aconteceu.
– Droga.
Quando Ad se aprontou, Jim deu uma olhada no Cachorro e colocou um pouco de comida e, em seguida, ele e seu braço direito decolaram, literalmente. Cara, ele nunca foi tão grato por aqueles instrumentos em suas costas com os quais em um piscar de olhos estavam em qualquer lugar: apenas alguns minutos depois, eles estavam em Beacon Hill.
Ele e Adrian desembarcaram no jardim murado em uma chama brilhante e se mantiveram ocultos de olhares indiscretos, pois eram apenas quatro da tarde. A casa parecia bem por fora e o feitiço vermelho reluzente ainda estava no local, mas seu pescoço estava o matando. E onde, diabos, estava Eddie...
– Droga – ele disse cuspindo quando viu as solas das botas de combate do anjo saindo de um arbusto.
Jim bateu os pés no dele e se agachou. O cara estava deitado de costas para baixo, parecendo que tinha lutado contra um trator e perdido.
– Eddie?
O grande anjo abriu os olhos.
– Que inferno... o que... Eu não sei o que aconteceu. Em um minuto eu estava em pé. No seguinte...
– Você parece um tapete de boas vindas.
Adrian estendeu uma de suas mãos para ajudar seu melhor amigo a levantar.
– Que droga foi essa?
– Não faço ideia. – Eddie ficou em pé devagar. Então, ele olhou para Jim e se encolheu. – Jesus Cristo...
Jim franziu a testa e olhou ao redor.
– O que?
– Seu rosto...
Certo, talvez ele apenas estivesse se sentindo melhor. Com sorte, a parte da aparência ficaria boa depois.
– Está dizendo que meus dias de modelo de calendário chegaram ao fim?
– Não sabia que estava nessa. – Eddie balançou a cabeça. – Ouça, Isaac quer falar com você. O mais rápido possível.
Jim olhou para Adrian.
– Você fica com o tapete de boas vindas.
– Como se eu pudesse ir a outro lugar.
Jim correu para casa. A porta dos fundos estava aberta, o que era uma má notícia – e a porcaria só aumentou ao atravessar a cozinha.
Deus, você nunca se acostuma com o cheiro de um ferimento mortal feito à bala: havia diferentes aromas, vísceras, sangue, cérebro, mas as nuances eram todas metálicas em meio aos componentes da bala.
O primeiro corpo que ele encontrou foi de um homem do qual ele conhecia: capitão Alistair Childe. O pobre coitado estava deitado no arco que dava para o corredor da frente, contorcido no chão todo amontoado.
No entanto, não era ele a origem do sangue. Não havia nada na roupa ou no piso e Childe estava respirando regularmente apesar do cochilo forçado por um nocaute.
O corpo número dois estava na metade do caminho da porta da frente e era evidente ser a origem do cheiro... Sim, uau, se Jim se lembrava dos que já tinha visto, o bastardo era um candidato para um caixão lacrado: seu rosto estava distorcido de dentro para fora, a bala deve ter viajado por entre a carne e os ossos de seu queixo e nariz antes de fazer uma saída triunfal no topo do crânio.
Considerando a tatuagem de uma serpente no pescoço do cara, tinha que ser o segundo na linha de comando de Matthias.
E Isaac estava parado próximo ao cara com uma expressão assustada de “Mas que droga!”
Rothe levantou os olhos e as mãos desarmadas.
– Ele fez isso... a si mesmo. Droga... Como está o pai?
Jim se ajoelhou ao lado do capitão para verificar mais uma vez. Sim, Childe tinha sido atingido na cabeça, provavelmente com a coronha de uma arma, mas ele já estava começando a gemer como se estivesse recobrando a consciência.
– Ele vai ficar bem. – Jim se levantou e se dirigiu a Isaac e ao outro cara. Ao chegar mais perto, o cheiro ficou pior...
Ele começou a andar devagar e, em seguida, parou completamente. E esfregou os olhos.
Uma sombra cinza cintilante cobria o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias da cabeça aos pés, movendo-se ao redor dos braços, pernas e da cabeça estourada da mesma maneira que o feitiço de Jim se movimentava e cobria a casa em que estavam. E havia algo de errado com o sangue – cinza e não vermelho brilhante.
Devina, pensou Jim. Ou ela estava no homem ou tinha assumido o controle.
– Ele simplesmente colocou a coisa debaixo do queixo e puxou o gatilho. – Isaac ajoelhou-se sobre os quadris e acenou para a arma que estava na mão direita do cadáver.
– Ele usou minha arma para fazer isso.
– Fique longe do corpo, Isaac.
– Vá se ferrar, eu tenho que limpar isso antes que...
Jim não estava interessado em discutir e agarrou o rapaz, puxando-o para cima e fazendo com que recuasse alguns passos.
– Você não sabe o que é isso.
– Para o inferno que não sei. Ele veio para me pegar.
Jim encarou Isaac.
– A última vez que o vi você estava fugindo.
– Mudança de prioridades.
Que droga, ele é sequestrado por doze horas e o mundo vira de cabeça para baixo: Isaac se entrega, um demônio estava morto na porta de entrada de um civil, nada mais fazia sentido.
– Eu não vou deixar que volte ao trabalho, Isaac. Ou se sacrifique para manter outra pessoa viva. – Pois quanto você quer apostar que era o que estava acontecendo ali?
– A escolha não é sua. E, sem ofensa, mas eu ainda não sei por que você dá a mínima. – O soldado pegou um dos dispositivos das operações extraoficiais que estava disfarçado de transmissor de alerta. – Além disso, não adianta. Eu já me entreguei.
Aquela luz piscando fez Jim querer gritar. E foi o que ele fez.
– Mas que droga é essa que você está fazendo? Matthias vai matá-lo...
– E?
Uma voz aristocrática interrompeu.
– Eu pensei que você se apresentaria com informações sobre Matthias.
Jim olhou sobre o ombro. Alistair Childe tinha ficado em pé e estava se aproximando deles, sua mão na parede como se precisasse de ajuda para se equilibrar.
– Eu pensei que esse era o plano, Isaac. E, Jim, eu pensei que tinha morrido em Caldwell. Três ou quatro dias atrás.
Jim e Isaac passaram por cima de tudo e ignoraram qualquer regra de retórica. O que era fácil de fazer, considerando o quanto precisavam explicar.
O fato de que o segundo na linha de comando tinha entrado e se matado com a arma de Isaac era apenas a superfície da coisa. A verdade principal era que Devina estava por trás de toda a situação. Mas com que finalidade? Se Isaac era o alvo, por que diabos ela simplesmente não o tomou enquanto Jim não estava por perto?
– Ela... ele tinha um bom ângulo para atirar em você? – Jim perguntou. – Em qualquer momento?
– Você quer dizer, para matar? Claro que sim... eu estava contra a parede, com as mãos espalmadas e minhas armas no chão. Esse é um ângulo bom o suficiente para você?
– Isso não faz sentido. – Ele olhou para baixo, em direção ao corpo. – Não faz sentido.
– Temos que nos livrar do corpo – Isaac disse. – Antes que eu vá, temos que...
– Não vou permitir que se entregue.
– Não é da sua conta.
– Que droga...
– Meu pensamento era exatamente esse.
Isaac franziu a testa, os olhos dele se estreitaram ao observar a face de Jim.
– E o que diabos aconteceu com você ontem à noite?
Em uma fração de segundo, Jim realmente considerou bater sua cabeça contra a parede, só que seria redundante, dado o formato em que ele já se encontrava. Como, diabos, ele ia tirar Isaac dessa confusão?
Ele não poderia deixar tudo às claras e explicar o que realmente estava acontecendo: Bem, entenda, eu morri mesmo e Matthias não é o problema. Estou tentando mantê-lo longe de um demônio que quer sua alma. E eu não faço ideia do que ela está fazendo aqui.
Sim, isso seria um desastre total.
Isaac não esperou por uma resposta sobre o rosto de Jim. Era evidente que o cara tinha se metido em alguma briga com oitocentos seguranças ou algo assim e isso não era da sua conta. O que lhe dizia mesmo respeito era o soldado que, de alguma maneira, consertou seu braço como se fosse mágica antes de se matar.
A menos que... gêmeos?
Droga... sim. Tinha que ser. E Matthias usaria isso como um belo instrumento para ajudar a ferrar com a mente das pessoas. Não surpreende que ele tenha escolhido o filho da mãe para ser o segundo na linha de comando.
Quando Jim soltou mais um palavrão e começou a percorrer o caminho do corredor de entrada, Isaac se inclinou e desabotoou rapidamente a manga da roupa do segundo na linha de comando. Nenhum sinal de qualquer coisa no antebraço com relação a uma reparação cirúrgica, não havia evidência de pele ou osso quebrado.
Gêmeos. Tinha que ser.
Com um golpe rápido, ele rasgou a camisa preta, os botões estalaram e saltaram sobre o chão. O colete a prova de balas exposto foi uma surpresa. Sim, era uma edição padrão, mas por que se preocupar com um se a intenção é explodir o crânio feito um balão de festa?
Sem ter certeza exata do que estava procurando, ele puxou as tiras do velcro do colete.
– Mas que... porcaria... – Ele se inclinou para se certificar de que estava enxergando direito.
Por toda a pele do estômago do cara havia profundas cicatrizes que formavam um padrão e quando Jim deu uma olhada nisso e começou outra rodada de palavrões, Isaac continuou a revistar rapidamente. Celular, o qual ele colocou de lado. Carteira com cem dólares em dinheiro, não havia carteira de identidade. Munição. Nada nas botas, a não ser as meias e o solado.
Passando por cima do corpo, ele foi em direção à cozinha para pegar uma lata de lixo. Quando estava puxando a coisa para fora do armário e se perguntava quantos braços e pernas caberiam ali, ele ouviu passos atrás dele. Obviamente, sua plateia de fãs o seguiu, mas vamos lá, pessoal. Chega de conversa; eles precisam de ação. Grier estava trancada no maldito armário lá em cima e ele tinha que limpar toda aquela porcaria antes de deixá-la sair...
– Você mentiu.
Isaac congelou e girou a cabeça. Grier estava parada do outro lado da ilha de mármore, acabando de fechar a porta da adega atrás dela. Mas como diabos ela... Droga, devia ter uma escada secreta que era ligada ao porão. Ele deveria ter adivinhado que havia várias rotas de fuga.
Quando ela olhou para ele estava branca como um lenço de papel e tremia.
– Sua intenção nunca foi se apresentar. Foi?
Ele balançou a cabeça, sem saber o que dizer e bem ciente do que havia no corredor de entrada da casa dela. Aquela situação estava totalmente fora de controle.
– Grier...
– Seu bastardo. Você mentiu seu b... – De repente, ela olhou por cima dos ombros dele. – Você... – Ela apontou para Jim, que estava em pé sob o arco. – Você é quem estava no meu quarto na outra noite. Não é?
Um expressão estranha passou pelos traços de Jim, uma espécie de “agora eu me ferrei”, mas, então, ele apenas deu de ombros e olhou para Isaac.
– Não vou permitir que você se entregue.
– Essa sua música nova está me dando nos nervos – Isaac exclamou ao decidir pegar o lixo e acabar com aquela história.
Conversa fiada, quanta conversa fiada da parte de todos... e todas direcionadas a ele. Mas que seja. Surdez seletiva era algo no qual se destacava quando era criança e, como pode imaginar, a habilidade voltou a ser exercida sem um pingo de ferrugem.
Isaac se curvou embaixo da pia e rezou para que o lugar mais lógico para se colocar sacos de lixo fosse mesmo ali... bingo. Ele pegou dois deles, uma vassoura e uma pá que não iriam sobreviver a esse trabalho em particular.
Deus, ele desejava ter uma serra. Mas talvez com alguma corda, eles poderiam dobrar o bastardo e carregá-lo como uma mala malfeita.
– Fique com ela – ele disse ao pai. – E a mantenha aqui...
– Eu vi o que aconteceu. – Quando Isaac congelou, ela o encarou. – Eu o vi fazer aquilo.
Houve uma pausa longa e silenciosa, como se ela tivesse acorrentado todos os homens do local.
Ela balançou a cabeça.
– Por que você fingiu que iria adiante com isso, Isaac?
Quando ela o encarou, a confiança tinha desaparecido de seus olhos. E, no lugar, havia um olhar frio – o qual ele imaginava que as pessoas que trabalhavam em laboratórios exibiam ao observar resultados de culturas em uma placa de Petri.
Não havia o que dizer a ela, não podia negar a mudança. E talvez fosse melhor assim. De qualquer maneira, eles não tinham que estar juntos – e isso era para ser assim até mesmo antes dele mergulhar na busca de excelência profissional na área de matar pessoas.
Isaac pegou seu kit de empregada feliz e se dirigiu para a entrada.
– Eu preciso tirar o corpo de lá.
– Não fuja de mim – ela gritou.
Ele ouviu Grier vindo atrás dele como se tivesse a intenção de gritar um pouco mais, então, ele parou e girou sobre os calcanhares ao chegar ao arco. Quando ela estacou para não passar por cima dele, Isaac olhou bem dentro de seus olhos.
– Fique aqui. Você não quer ver...
– Vá se ferrar! – Ela o empurrou, marchando até... – Oh... Deus... – Ela sufocou a palavra, sua mão subiu até a boca.
Bingo, ele pensou sombriamente.
Felizmente, o pai dela estava ali, aproximou-se e a direcionou gentilmente para longe daquela visão.
Amaldiçoando a si mesmo e tudo relacionado à sua vida, Isaac continuou até a entrada, mais determinado do que nunca a cuidar do problema... só que seu senso de urgência deu um tempo quando chegou ao corpo.
Um celular estava na mão do cadáver e a coisa estava enviando uma mensagem; a pequena tela no telefone estava brilhando com a imagem de um envelope entrando em uma caixa de correio várias vezes.
Certo. Hora de retomar alguns conceitos aqui: gente que não tinha o lobo frontal geralmente não pegava o celular e discava alguma coisa nele.
Um pequeno aviso brilhante apareceu indicando sucesso.
– Isaac, você vai precisar de mais do que uma pá para lidar com isso.
Ao som da voz de Jim, ele olhou sobre o ombro. E teve que piscar algumas vezes. O homem estava parado na parte escura do corredor, bem longe da luz, que passava pelos arcos, vinda da sala de estudos e da biblioteca... mas ele estava iluminado, havia um brilho em torno dele da cabeça aos pés.
O coração de Isaac deu altos pulos na caixa torácica. Então, pareceu tomar um pouco de fôlego.
Muitas vezes, ele esteve no campo, em meio a uma missão e as coisas não deram certo: você acha que sabe os hábitos e recursos de seu alvo, os pontos fracos e fortes, mas quando está prestes a atacá-lo, a paisagem muda como se alguém tivesse jogado uma bomba no meio da praça do seu plano perfeito. Era o mau funcionamento de uma arma. Uma testemunha em potencial que fazia com que perdesse a hora certa. O alvo pisando fora da faixa indicada.
O que você tinha que fazer era recalcular rapidamente a situação e Isaac sempre foi excelente nisso.
Que inferno, aquele jogo de videogame o treinou de maneira involuntária a abrir totalmente sua mentalidade para agir rápido.
Mas aquela porcaria estava fora de sua especialidade. Bem fora.
E isso foi antes de Jim empunhar uma longa adaga... que era feita de cristal.
– Você vai deixar com que eu cuide disso agora. Afaste-se do corpo, Isaac.
CAPÍTULO 40
Matthias passou muito tempo dentro daquela igreja de pedra. E, quando finalmente ele se esforçou para sair, concluiu que tinha permanecido lá uma hora ou mais, mas no instante em que olhou para a posição do sol no céu, percebeu que tinha perdido toda a manhã e a maior parte da tarde.
Ainda assim, ele teria ficado mais se pudesse.
Ele não era um homem religioso, mas havia encontrado uma paz chocante e rara debaixo daquelas galerias de vitrais e diante do altar glorioso. Mesmo agora, quando sua mente lhe dizia que aquilo era tudo besteira, que o lugar era apenas um edifício e que ele estava tão cansado que poderia dormir até numa montanha russa da Disney – apesar de tudo isso, seu coração se sentia melhor.
A dor havia cessado. Logo depois que ele se sentou, a dor em seu braço e peito esquerdo tinha desaparecido.
– Tanto faz – ele disse em voz alta ao chegar ao carro. – Tanto faz, tanto faz...
Voltar ao jogo era algo pelo qual ele se sentia compelido a agir e havia uma picada agradável com relação a isso, como se estivesse arrancando a casca de uma ferida. De alguma maneira, ele estava cativado pelo que tinha encontrado na igreja, mas seu trabalho, seus atos, seu modo de vida formavam um turbilhão que o sugava e o mantinha assim e ele, simplesmente, não tinha energia suficiente para lutar contra isso.
E depois... talvez houvesse um meio termo, ele pensou, quando fosse tratar de Isaac Rothe. Talvez ele pudesse fazer com que o rapaz continuasse a trabalhar em uma área diferente. Era evidente que o soldado tinha respondido bem às ameaças contra Grier Childe – o que poderia ser o suficiente para mantê-lo na linha.
Ou... ele poderia deixar o cara ir.
No instante em que o pensamento cruzou sua mente, algo dentro dele o atingiu como se aquilo fosse uma grande blasfêmia.
Irritado consigo mesmo e com a situação, ele ligou o motor e verificou o telefone. Nada vindo de seu segundo na linha de comando. Onde diabos estava o bastardo?
Ele enviou uma mensagem de texto exigindo uma atualização e dando seu tempo estimado de chegada, o que, naquele momento, seria depois do anoitecer. Para o inferno com a história de fora do estado. Era melhor que o filho da mãe estivesse com Isaac Rothe amarrado a uma cadeira antes de Matthias arregaçar as mangas – e Deus o ajudasse se tivesse matado Rothe.
Quando a impaciência contorceu suas mãos sobre o volante, Matthias saiu da calçada e pegou a estrada graças à tela do GPS no painel. Ele tinha seguido menos de um quilômetro antes da dor sob seu peito voltar, mas era como vestir uma roupa com a qual ele já estava acostumado depois de experimentar os trajes de outra pessoa: fácil e confortável de uma maneira maldita.
Seu telefone disparou. Mensagem de foto. Do seu segundo na linha de comando.
Quando ele aceitou, ficou aliviado. Uma confirmação visual de que Isaac estava vivo e sob custódia era uma coisa boa...
Não era uma imagem de Isaac. Eram os restos do rosto de seu subordinado. E aquela tatuagem de cobra que percorria a garganta do homem era a única maneira de ter certeza que era ele.
Abaixo da imagem dizia: Venha me pegar – I.
O primeiro e único pensamento de Matthias foi... mas que droga. Que filho da mãe maldito. Que diabos Rothe estava pensando? Que droga, se as ameaças contra sua querida, doce e encantadora Grier Childe não funcionaram, Isaac era totalmente incontrolável e, portanto, ele tinha que ser sacrificado.
Uma fúria cruel fez com que abandonasse os últimos resquícios remanescentes de seu tempo na igreja, uma fonte de vingança emanava e rugia. Quando essa sensação o atingiu, no fundo de sua mente, ele teve uma ideia concluindo que aquele não era ele, que a precisão fria e cortante de pensamento e ação que sempre foram sua marca registrada o teriam impedido de provocar aquele pico de destruição. Contudo, ele era incapaz de se afastar da necessidade de agir – e agir de maneira pessoal.
Chega de mandar outros fazerem o trabalho sujo... havia inúmeros agentes que poderia ter convocado, mas ele ia cuidar disso sozinho.
Da mesma maneira que teve que ver o corpo de Jim Heron com seus próprios olhos, ele iria até lá e acabaria com Rothe sozinho.
O homem tinha que morrer.
CAPÍTULO 41
Quando Grier se sentou no sofá no canto da cozinha, ela se lembrou de sua escolha pelo direito ao invés da medicina e soube que tinha tomado a decisão certa: ela nunca teria estômago para ser médica.
Suas notas e aproveitamento a permitiriam entrar em qualquer uma das graduações, mas o fator decisivo foi Anatomia Humana, que já ministravam no primeiro ano de faculdade: um olhar naqueles corpos durante sua excursão de pré-admissão e ela teve que colocar a cabeça entre os joelhos e tentar respirar como se estivesse em uma aula de ioga.
E, como pode imaginar, o fato de que havia alguém em uma condição ainda mais desagradável à frente era muito pior.
Surpresa, surpresa.
Outro choque para o momento – não que ela precisasse de um – foi a mão de seu pai fazendo círculos calmos e lentos em suas costas. As vezes em que ele tinha feito alguma coisa assim foram poucas e há muito tempo, isso porque ele não era o tipo de homem que lidava bem em mostrar suas emoções. E, ainda assim, quando ela realmente precisava disso, ele sempre estava lá: na morte de sua mãe. Na de Daniel. No terrível término de relacionamento com o cara com quem ela quase se casou logo depois que saiu da faculdade de direito.
Aquele era o pai que ela conhecia e a quem amou durante toda sua vida. Apesar das sombras que o cercavam.
– Obrigada – ela disse sem olhar para ele.
Ele clareou a garganta.
– Eu não acredito que mereço esse agradecimento. Tudo o que está acontecendo é por minha causa.
Ela não podia discutir isso, mas não tinha forças para condená-lo, especialmente considerando a terrível dor expressa em sua voz.
Agora que sua raiva tinha passado, ela percebeu que sua consciência iria assombrá-lo até o dia de sua morte e essa era a punição que ele merecia e que iria carregar. Além disso, ele já teve que enterrar uma criança, um filho imperfeito a quem ele tinha amado do seu jeito e que tinha perdido de uma maneira horrível. E, embora Grier pudesse passar o resto de seus dias se afastando dele e o odiando pela morte de Daniel... ela estava mesmo disposta a carregar esse fardo?
Ela pensou no corpo no corredor da frente e como a vida poderia ser arrebatada no intervalo de uma respiração e outra.
Não, ela decidiu. Ela não ia permitir que a mágoa e a raiva que sentia a afastasse do que restava de sua família. Levaria tempo, mas ela e seu pai iriam reconstruir seu relacionamento.
Pelo menos essa era uma coisa verdadeira e certa que Isaac havia dito.
– Não podemos chamar a polícia, podemos? – ela disse. Pois com certeza alguém que aparecesse ali em um uniforme seria caçado também.
– Isaac e Jim vão cuidar do corpo. É isso o que eles fazem.
Grier estremeceu com a ideia.
– Será que ninguém vai sentir falta dele? Qualquer pessoa?
– Ele não existe. Não de verdade. Qualquer família que ele tenha pensa que está morto... Esse é o requisito para os homens que entram nessa área das operações extraoficiais.
Deus, moralmente, ela tinha uns doze problemas com relação à morte. Mas ela não ia colocar sua vida em risco pelo cara que tinha sido enviado para matar Isaac e talvez matar a ela também.
Só que... bem, aparentemente, ele tinha cometido suicídio com testemunhas.
– O que vamos fazer? – ela disse, falando alto e sem esperar uma resposta.
E aquele nós na frase se referia a ela e seu pai. O nós não incluía Isaac.
Ele mentiu. Na cara dela. De fato, ele teve contato com aquelas pessoas terríveis – e, por algum tempo, ela pensou que tinham um plano. É claro que ele não ia trair seu pai, mas era apenas uma medida de prevenção, pois era evidente que tinha decidido se entregar – ou pelo menos era o que parecia. Um homem como ele, que lutava como ele e ficava à vontade com armas? Era muito mais provável que decidisse matar quem estivesse o levando em custódia e fugir do país livre, leve e solto.
Tudo bem. Ela permitiria que ele partisse.
Ele não era nada além de atração sexual embalada em uma caixa com uma bomba-relógio – e aquele som era o cronômetro da bomba que havia em todas as pessoas atraentes. E aquela coisa de “eu te amo”? A questão com os mentirosos é que você acredita em qualquer coisa que eles dizem por sua conta e risco – e não só nas coisas que você sabe serem falsas. Ela não tinha certeza de qual era a pegadinha a respeito daquela “confissão”, mas ela sabia agora que aquilo tudo não passava de fumaça.
Grier havia se decidido, estava cansada demais para qualquer coisa além da dormência. Bem, dormência e a sensação de ser uma idiota. Mas, vamos lá, como se aquela “rara combinação” de brutalidade e gentileza realmente existisse.
– Espere aqui – seu pai disse.
Quando ele se levantou, ela percebeu dois homens grandes entrando na cozinha. Os dois seguiam os mesmos moldes de Isaac e definitivamente não estavam mortos assim como Jim Heron – e a visão deles era ainda outro lembrete do que estava acontecendo no corredor da frente.
Contudo, ela precisava de ajuda para se lembrar disso?
– Somos amigos de Jim – o homem com uma trança disse.
– Aqui – Heron gritou pela passagem do corredor.
Quando os dois saíram com seu pai em direção ao corpo, ela ficou irritada consigo mesma e tentou tomar uma atitude mental madura. Quando se levantou, sua cabeça girou, mas aquela sensação rodopiante retrocedeu enquanto ela ia até a cafeteira e começava os movimentos para fazer um pouco de café fresco.
Filtro. Ok.
Água. Ok.
Pó de café. Ok.
Botão ligar. Ok.
A normalidade daquele ato a fazia se recompor um pouco mais, e quando o café ficou pronto, Grier estava preparada para lidar com a situação.
Algo bom também. Era hora de pensar no futuro... no que estava além daquela noite feia e daqueles angustiantes últimos três dias.
Infelizmente, sua mente era como um espectador de um acidente de carro, demorando-se em torno dos destroços retorcidos e dos corpos no chão, presa nas memórias dela e de Isaac juntos. Contudo, em dado momento, ela interrompeu aquele foco doentio, seu lado racional atuava como um tira e forçava seus pensamentos a se moverem, a seguir em frente agora.
A questão era que Isaac tinha entrado em sua vida por uma boa razão: graças a ele, ela finalmente tinha aprendido a lição que a morte de Daniel tinha para lhe ensinar. Moral da história? Por mais que você quisesse que alguém mudasse e acreditasse que essa pessoa poderia mudar, cada um tem o controle sobre sua própria vida. Não você. E você poderia atirar-se contra a parede de suas escolhas até que estivesse cheio de hematomas e tonto demais, mas a menos que decidisse tomar um rumo diferente, o resultado não será aquele que você deseja.
Aquela percepção não ia impedi-la de ajudar pessoas na cadeia ou assumir casos voluntariamente. Mas era hora de colocar alguns limites no quanto ela tinha que se doar... e o quão longe ela estava disposta a ir. Em todas as suas atitudes exageradas de boa samaritana, ela tentava ressuscitar Daniel – mesmo sabendo que conversar com seu fantasma deveria ser a primeira dica de que ele não iria voltar. No entanto, ao descobrir a verdade sobre o que tinha acontecido com ele e na tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio para si, talvez ela pudesse finalmente deixá-lo descansar e seguir em frente.
Tomando outro gole em sua caneca, ela sentiu um pouco de paz apesar das circunstâncias bizarras...
Neste momento, outro disparo se ouviu vindo da parte da frente da casa.
No corredor, Jim tinha acabado de se aproximar do corpo com a adaga de cristal quando sentiu a presença de Eddie e Adrian na cozinha. Deus, o momento para a entrada deles era perfeito. Ele estava preparado para agir por conta própria, mas ter cobertura nunca foi uma má ideia.
– Estou aqui – ele gritou.
Os dois vieram direto e nenhum parecia surpreso com o que estava no chão.
– Oh, cara, Devina tomou conta desse aí – Ad murmurou ao caminhar até os restos.
– O que diabos você está fazendo com essa adaga? – Isaac perguntou.
Bem, na verdade, ele ia fazer um rápido exorcismo. Essa era a única maneira de ter certeza que Devina estava fora...
A primeira pista de que o cadáver estava reanimando foi uma contração nas mãos. Em seguida, rapidamente, aquele pedaço de carne se ergueu do chão e conseguiu focar um globo ocular que parecia estar funcionando.
E não é que isso o fez se lembrar de Matthias?
Isaac soltou um grito e disparou sua arma, mas foi como atirar um elástico com força em um touro enraivecido.
Jim empurrou o soldado para fora do caminho e atacou dando um bote, seu corpo arremessou o zumbi contra a parede. No momento em que o impacto foi feito, a imagem do rosto de Devina sobrepôs os traços dizimados do homem cujo corpo ela tinha assumido o controle, a reconfiguração metamórfica das características sorria de satisfação para ele.
Como se ela já tivesse vencido.
Jim atacou com a faca em um golpe rápido e poderoso, a adaga de cristal penetrou entre os olhos corpóreos e também os metafísicos.
Um som estridente explodiu do zumbi e uma haste de fumaça negra subiu em um fedor vil, a névoa escura se fundiu e, em seguida, fez um caminho rápido para a porta da frente. No último segundo, a coisa brilhou sob os painéis da frente, como se tivesse sido sugada do outro lado – e na sua ausência, o corpo do segundo homem na linha de comando de Matthias caiu no chão como o saco de ossos que era, a fonte de sua animação não sustentava mais os limites de sua carne.
– Agora está morto mesmo – disse Jim ao respirar com dificuldade.
No silêncio chocante que se seguiu, ele olhou para Isaac por cima do ombro. Os olhos do cara dariam uma grana no quesito diâmetro se fossem pneus de caminhão e havia água escorrendo deles. Adrian e Eddie esvaziaram os canos da arma de cristal sobre sua cabeça para protegê-lo.
Bom lance. Só que... o demônio nem sequer tentou se aproximar do soldado. Ele decolou na direção oposta.
Os circuitos mentais de Jim lembravam a loucura de Las Vegas, seus instintos gritavam que aquilo estava errado. Muito errado. Segunda chance de pegar Isaac... e Devina deixou passar. De novo.
Por que ela...
Como uma cortina sendo arrancada de uma janela, a paisagem do jogo de repente ficou clara e abalou seu âmago. Mas que droga...
Perdendo de maneira abrupta o equilíbrio, ele estendeu sua mão e segurou-se na parede.
– Não é você – ele disse a Rothe sombriamente. – Oh, Deus nos ajude, não é você.
Quando Grier Childe surgiu no arco, vinda da cozinha, Isaac falou.
– Estamos bem. Todo mundo está bem.
O que era verdade até certo ponto. Claro, Devina aparentemente desapareceu seguindo e estilo “Elvis não morreu” e deixou o prédio. E, sim, ninguém no grupo brilhava com uma sombra profana e o pescoço de Jim não gritava mais “Oh, meu Deus!”. Mas eles estavam longe de se sentirem ótimos.
A questão urgente agora era... quem aquele demônio estava procurando? Por qual alma eles estavam lutando?
O celular, Jim pensou.
Quando todas as pessoas começaram a falar e o ar se encheu com suas vozes, ele colocou o ruído de lado e se agachou sobre os quadris. Do lado do corpo, agora duas vezes morto, ele pegou o telefone do chão e acessou a caixa de mensagens enviadas.
Ele reconheceu imediatamente o último número que tinha sido discado.
Matthias teve acesso à imagem.
A clareza fria que sobreveio a Jim trouxe a ele uma espécie de terror: ele estava tentando salvar o alvo... quando, o tempo todo, ele deveria ter focado o atirador.
CAPÍTULO 42
Reflexo, não reflexão.
Era nesse ponto em que Isaac se encontrava ao ficar em pé no corredor de Grier com algum tipo de solução escorrendo pelo seu nariz e queixo.
Seu cérebro poderia passar uma ou duas décadas tentando descobrir o que ele tinha acabado de ver, mas isso requeria um tempo que ele não tinha. Por mais que ele não entendesse – e aquele buraco negro era do tamanho de um estádio de futebol – ele ia ter que confiar no que seus olhos mostraram e deixar por isso mesmo: ele tinha visto um homem morto se levantar; ele atirou no bastardo e a única coisa que conseguiu derrubar de novo o cadáver foi algum tipo de faca de cristal ou vidro. Em seguida, alguma coisa deixou o corpo e escapou por baixo da porta da frente.
Era o tipo de coisa que acontecia no sKillerz, quando se passava para o mundo paranormal do jogo. Com um toque no controle, as regras normais iam para o ralo e você entrava em um universo alternativo onde as pessoas poderiam desaparecer na sua frente, vampiros viviam nas sombras e homens pálidos vinham atrás de você ao invés de seres humanos.
Claro, aquilo era uma brincadeira a qual você poderia desligar – e não havia um botão de pausa nessa situação. Razão pela qual ele ia gastar muita energia para entender tudo isso. Sim, claro, talvez depois que isso estivesse terminado ele pudesse perguntar a Jim o que diabos tinha acontecido... mas isso apenas se houvesse um “depois”.
Da maneira como as coisas estavam indo, algumas pessoas paradas naquela entrada poderiam muito bem ser direcionadas para uma “outra vida”.
– Para onde foi aquilo? – ele perguntou a Jim. – Não aquela coisa preta, a imagem.
Quando Jim olhou o celular, a voz do segundo na linha de comando lhe veio à mente: Matthias não está no comando. Então, isso significava que algum outro cabeça estava planejando um determinado resultado ao acionar as alavancas e roldanas dos vários fantoches em cena.
– Quem? – ele repetiu.
– Matthias recebeu – disse Heron, levantando-se.
– Matthias é... um daqueles? – Quando Isaac apontou o cadáver detonado, ele pensou que era ótimo estar em uma situação onde não havia termos para descrever nada.
– Não era quando o vi ontem à noite.
Bem, talvez isso explicasse por que o rosto do cara tinha sido usado como um saco de pancadas. E, sim, se os dois sobreviveram a isso, Jim tinha algumas explicações a dar.
– Você é um deles? – Isaac perguntou.
O tema do jogo de perguntas e respostas estava sugerido quando Jim olhou para seus dois colegas, depois para Grier e seu pai.
– De certa maneira, sim. Mas estamos do outro lado.
Isaac balançou a cabeça e deixou tudo isso para mais tarde. O mais importante agora era o caminho que estavam tomando por uma série de acontecimentos.
– Matthias tem essa imagem e ele vai pensar que eu matei... o cara... isso... tanto faz.
Etapa dois da extrapolação? Matthias viria mesmo atrás dele para matá-lo agora.
– Para quem você está ligando? – ele perguntou quando Jim colocou aquele telefone no ouvido como se estivesse fazendo uma ligação.
O cara pronunciou, Matthias... e, então, a próxima coisa que saiu de sua boca foi uma maldição.
– Maldito correio de voz.
E os outros continuaram falando. Isaac puxou Heron de lado.
– “Não sou eu.” Diga-me o que isso quer dizer.
– Não temos tempo...
– Temos um minuto e meio. Eu garanto.
– E isso não vai esclarecer nada, afinal. – Os olhos entediados de Jim encontraram os de Isaac. – Você se lembra do que eu disse quando o vi pela primeira vez? Que não ia deixar que nada acontecesse com você? Era verdade. Mas eu tenho que ir.
Isaac apertou o braço do cara, o mantendo no lugar.
– Onde?
Jim olhou seus dois colegas.
– Eu tenho que ir até Matthias. Acho que ela está atrás dele.
Quem era ela, Isaac se perguntou. E então ele se deu conta.
– Então, você não tem que ir a lugar algum. Quer vê-lo? – Ele puxou o transmissor de alerta e o deixou oscilar em sua corrente enquanto apontava para o próprio peito. – Tem sua isca bem aqui.
No final, a mala que Grier tinha feito acabou sendo necessária.
Ela iria com seu pai ficar em Lincoln por alguns dias – Isaac e Jim iam ficar para trás na casa dela para enfrentar aquele homem, Matthias. Apesar de ser estranho dispor a casa de sua família para estranhos, a realidade era que o local oferecia saídas que facilitariam as coisas para os dois homens.
E independentemente do que pensava sobre eles, ela não tomaria partido de suas mortes se pudesse fazer alguma coisa sobre isso.
Tragicamente, não havia mais o que falar sobre o que estava por vir e seu pai havia suspendido seus contatos. Isaac não ia dizer uma palavra sobre nada e seu pai não sabia o suficiente para promover um dano concreto – assim, os riscos, contrapostos aos possíveis benefícios, simplesmente não justificavam.
O que tinha acabado com os planos. Mas esse era o mundo real.
Olhando para sua mala, ela decidiu que deixar o local tinha muitos benefícios. Ela não queria estar por perto durante a remoção daquele corpo – não havia necessidade de ver isso em um dia bom, muito menos com as coisas se encaminhando daquela maneira. Além disso, ela simplesmente precisava de um tempo. Quando as coisas com Isaac começaram, aquilo já era tão familiar, toda aquela exaustão, os eventos e crises contraditórias. Mas ela estava cansada... e determinada a manter sua nova convicção: tempo para sair, se afastar, deixar para trás.
Então, ela estava indo para Lincoln com um coração pesado, mas os olhos estavam bem abertos.
Pegando a segunda temporada do Three’s Company da estante, ela destrancou a mala para colocá-la dentro...
Grier enrijeceu e se preparou.
Dessa vez, pela primeira vez, ela sabia que Isaac estava em pé na soleira da porta de seu quarto, embora não tivesse batido.
Olhando por cima do ombro, ela viu que seu cabelo estava revolvido por causa daquela solução que tinham derramado sobre sua cabeça e seu olhar estava tão intenso como nunca.
– Vim para dizer adeus – ele murmurou baixinho, aquele delicioso sotaque sulista percorria as palavras de uma maneira profunda. – E para dizer que sinto muito por ter mentido para você.
Quando ele deu um passo dentro do quarto, ela se voltou para a mala, deslizando o DVD para dentro e fechando a tampa.
– Sente muito?
– Sim.
Ela produziu um clique nas duas trancas ao encaixá-las.
– Sabe, a parte que eu não entendo é por que você se importa. Se você nunca teve a intenção de ir adiante com isso, por que conversou com meu pai? Ou por que fez isso chegar até ele? Para descobrir o quanto ele sabe e, então, avisar seus amigos? – Quando ele não respondeu, ela se virou. – Seria isso?
Seus olhos percorreram seu rosto como se estivesse memorizando.
– Eu tinha outra razão.
– Espero que seja boa o suficiente para arruinar a confiança que eu tinha em você.
Isaac assentiu devagar.
– Sim. Ela é.
Bem, aquilo não a fez se sentir menos usada.
Grier pegou sua mala de mão e ergueu a coisa da cama.
– E você acabou fazendo isso de novo.
– Fazendo o que?
– Ativou o maldito transmissor de alerta. Chamou aquele pesadelo do Matthias. – Ela franziu a testa. – Eu acho que você tem vontade de morrer. Ou algum outro plano que eu não consigo adivinhar. Mas, de qualquer maneira, não é da minha conta.
Olhando para o rosto belo e rígido ela pensou, Deus, isso dói.
– Enfim, boa sorte – disse ela, perguntando-se se no final da noite ele estaria nas condições daquele outro agente.
– É verdade aquilo que eu disse, Grier. Na cozinha.
– Difícil dizer o que é real e o que é mentira, não é mesmo?
Seu coração estava partido, apesar de não fazer qualquer sentido e, em face da dor, tudo o que ela queria era fugir do homem que estava parado tão quieto e poderoso do outro lado do quarto.
Na verdade, do outro lado de sua vida.
– Adeus, Isaac Rothe – murmurou ela, caminhando para a porta.
– Espere.
Por um breve momento, um tipo de esperança estranha e desastrosa alçou voo em seu peito. No entanto, a chama não durou. Era feita de fantasias e emoções fantásticas.
Contudo, ela deixou que ele se aproximasse enquanto estendia alguma coisa para ela.
– Jim pediu que lhe desse isso.
Grier pegou o que havia em sua mão. Era um anel – não, um piercing, um pequeno círculo de prata escuro com uma bola na qual a extremidade estava rosqueada. Ela franziu a testa enquanto olhava para a inscrição minúscula que percorria o interior. Era um idioma do qual ela não estava familiarizada, mas reconheceu o carimbo onde se lia PT950. O aro era feito de platina.
– Na verdade, é de Adrian – Isaac murmurou. – Eles estão dando isso a você e querem que o use.
– Por quê?
– Para mantê-la em segurança. Foi o que disseram.
Era difícil de imaginar o que a coisa poderia fazer por ela, mas servia em seu dedo indicador e quando Isaac respirou fundo, aliviado, isso a deixou um pouco surpresa.
– É apenas um anel – ela disse suavemente.
– Não tenho certeza se alguma coisa pode ser considerada como “apenas” neste momento.
Ela não podia discordar.
– Como você vai tirar aquele corpo de lá?
– Removendo.
– Bem, isso é com você. – Ela deu uma última olhada para ele. A ideia de que ele poderia ser morto em questão de horas era inevitável. E assim era a realidade de que, provavelmente, ela não saberia o que ia acontecer com ele. Ou para onde iria se sobrevivesse. Ou se ele dormiria em uma cama segura de novo.
Sentindo-se escorregar, ela caminhou até a mala, acenou para ele e saiu, deixando-o para trás.
Não havia outra escolha.
Ela tinha que cuidar de si mesma.
CAPÍTULO 43
A escolha tinha que ser resultado do livre-arbítrio.
Esse era o problema com essa coisa da disputa: a alma em questão tinha de escolher o seu caminho segundo sua própria vontade quando chegasse à encruzilhada.
Quando Devina saiu de sua suíte no hotel, ela pensou sobre o quanto odiava aquela besteira de livre-arbítrio. Era muito mais eficiente para ela tomar posse e dirigir o ônibus, por assim dizer. No entanto, de acordo com as regras, o Criador limitou o impacto que ela era autorizada a produzir.
Jim Heron era o único que poderia lidar com as almas... o único que poderia, de alguma maneira, tentar influenciar as escolhas.
Dane-se Jim Heron.
Dane-se aquele bastardo.
E também se dane o Criador nessa questão.
Ela puxou uma toalha da haste de bronze e secou o corpo da bela morena, pensando o tempo todo que aquela era uma morada muito melhor do que aquele soldado com tatuagem de cobra. Mas ela não tinha tempo para fazer o retorno adequado àquela carne. A rodada final com a alma atual em jogo não estava apenas se aproximando – estava acontecendo.
Hora de acertar as contas do jogo e vencê-lo.
Depois de desocupar a pele familiar do segundo na linha de comando de Matthias, ela se esvaiu no ar e livrou-se daquela casa de tijolos. O seu lado rancoroso queria estacionar dentro daquela advogada ou no pai dela – apenas por diversão, pelas risadas e pelo drama que isso causaria. Mas da forma como as coisas estavam, ela não achou que fosse uma boa ideia: tudo estava tão perfeitamente organizado, as predileções dos jogadores e as inclinações de como agiriam já garantidas.
Era o equivalente a uma roupa de corte perfeito.
E ela precisava ganhar essa por razões que iam além do jogo: Devina queria dar o troco pelo desempenho de Jim Heron em seus aposentos privados. E não aquele com seus subordinados, mas de quando estavam os dois sozinhos.
Ela estava totalmente despreparada para seu ataque. Ou foi o fato de que ele estava muito mais determinado do que apenas um anjo. Adrian e Eddie não poderiam ter feito nada parecido. Ela não conhecia ninguém que pudesse.
Aquilo não fazia sentido – Jim Heron foi escolhido para um papel definido e deveria ser um lacaio nem bom, nem mau. De fato, as duas partes concordaram com ele, pois cada equipe pensava que ele iria influenciar as coisas de acordo com seus valores e receber dicas de acordo com uma quantidade determinada de “treinamento”.
Que grande besteira aquilo tinha se tornado.
Aquela primeira alma que eles disputaram? Jim tinha feito todo o possível para empurrar o homem para o bem – provando que a confiança que Devina depositou nele tinha sido equivocada. Aquele filho da mãe era um salvador na pele de pecador, não era um dos dela. E foi por isso que ela se envolveu ainda mais a partir de então; não havia ninguém em campo representando seus interesses e manipular a situação era crucial se ela quisesse prevalecer em algum desses ciclos.
Se ela não refinasse as coisas, ia perder de quatro a zero.
E foi por isso que ela levou Jim até às profundezas de seu reino quando foi possível. Ela precisava afastá-lo de Matthias – qualquer contato entre os dois era uma má ideia.
Mas pelo menos a sua escolha pela alma parecia ter sido correta. Ela vinha cuidando do líder das operações extraoficiais nos últimos dois anos até agora, ele simplesmente a pertencia – então, quando Nigel e ela trataram sobre o próximo indivíduo que seria colocado no jogo seguinte, ela escolheu Martin O’Shay Thomas, também conhecido como Matthias.
Na próxima rodada, a escolha volta a ser de Nigel e, sem dúvida, ele vai escolher alguém bem mais difícil para ela.
Matthias... oh, querido e corrupto Matthias. Um último ato imoral e ele seria dela por toda a eternidade – assim como sua primeira vitória.
Tudo o que ele tinha que fazer era tirar a vida de Isaac Rothe e ding-ding-ding! Ela poderia fazer a volta da vitória bem diante do nariz de Jim Heron.
Contudo, considerando o que Heron tinha feito a ela, temia que ele não fosse apenas um zagueiro nesse jogo, mas um outro tipo de entidade. E esse era outro motivo pelo qual ela não tinha se detido em Beacon Hill. A negociação entre os dois lá embaixo drenou suas energias e ela não estava forte o suficiente para enfrentar um confronto direto com Jim tão cedo.
Especialmente tendo em conta que subestimar os poderes de seu inimigo foi claramente um erro.
Envolvendo-se na toalha, ela olhou o balcão de mármore em volta da pia. Parte da tarefa que sua terapeuta lhe deu duas semanas antes era se livrar de toda sua coleção de maquiagem e ela concordou, jogando fora inúmeros pós compactos, batons e sombras.
Agora, ao observar os espaços vazios, ela entrou em pânico com a falta de possessões. Uma bolsa com essas coisas era tudo o que sobrou. Era isso.
Com mãos desastradas, ela pegou a pequena sacola e a inclinou para baixo, tubos, quadrados e potes pretos se espalharam por todo o lugar. Respirando pela boca, ela começou a organizar dúzias ou mais de recipientes, organizando-os por tamanho e forma, não adiantou.
Não era o suficiente. Ela precisava de mais...
No fundo de sua mente, Devina sabia que estava em um espiral, mas ela não poderia se ajudar com isso. A constatação de que Jim era muito mais formidável do que ela pensava... e que estava correndo um perigo muito maior do que imaginava... fazia dela uma escrava de suas fraquezas internas.
Sua terapeuta afirmou que a compra de mais porcarias ou a aquisição de mais bugigangas ou ordenar e reordenar a colocação dos objetos não ia resolver nada. Mas com certeza aquilo a fazia se sentir melhor por um curto período de tempo...
No final, ela teve que se arrastar para fora do banheiro. O tempo estava passando e ela tinha que se certificar se todos os pequenos dominós que ela organizou estavam na posição certa e adequada.
Para acalmar sua obsessão, ela repetiu o que a terapeuta havia lhe dito há três dias: Não é sobre as coisas. É sobre seu lugar no mundo. É o espaço que você declarou como sendo seu emocional e espiritualmente.
Seja como for. Ela tinha trabalho a fazer.
E outro traje de pele para revesti-la.
CAPÍTULO 44
Depois que os Childes saíram em seus carros, com Eddie e Adrian indo sorrateiramente em seus calcanhares, Jim e Isaac ficaram nos fundos da casa das mil passagens secretas – as quais Jim conhecia todas, graças ao capitão Childe.
Após as partidas, a casa ficou escura, por dentro e por fora, e ele e Isaac permaneceram em pé, preparados.
Eram os velhos tempos de volta, Jim pensou.
Especialmente ao colocar seu telefone no ouvido e esperar que Matthias atendesse a ligação. Contudo... Se estivesse de volta no tempo, o bastardo atenderia o maldito telefone.
Neste momento, ele estava desesperado para encontrar o cara antes que ele chegasse com tudo...
A voz de seu ex-chefe ressoou em seu ouvido.
– Isaac.
– Não. – Jim falou com cuidado, porque só Deus sabia que havia pontas soltas por todo o lugar. – Não é Isaac.
Houve um momento de pausa, que foi preenchido por um zumbido sutil ao fundo. Carro? Avião? Difícil ter certeza, mas provavelmente um carro.
– Jim? É você? – A voz era robótica, totalmente sem vida. Claro, até mesmo um “oi, tudo bem” vindo dos mortos não era suficiente para abalar o cara, mas parecia não ser o caso do cérebro do líder estar sereno. Parecia mais que o homem estava anestesiado.
Jim escolheu cuidadosamente as palavras.
– Estou mais interessado em como você está. Isso e também gostaria de conversar sobre a imagem que recebeu.
– Você quer? Bem, eu tinha outras coisas em mente... como, por exemplo, você estar me ligando. Você está morto.
– Não exatamente.
– Engraçado, eu sonhei com você. Atirei em você, mas não morreu.
Droga, abranger os dois mundos era complicado.
– Sim, eu sei.
– Sabe?
– Estou ligando para falar do seu subordinado. Isaac não o matou.
– Oh. Mesmo?
– Eu matei. – Mentiroso, mentiroso, o nariz vai crescer. O bom é que ele nunca teve problemas com esse tipo de coisa.
– E, mais uma vez digo, pensei que estivesse morto.
– Não estou exatamente morto.
– Claro. – Longa pausa. – Então, se você está vivo e bem, por que fez isso com meu segundo homem na linha de comando, Jim?
– Eu o avisei que não permitiria que ninguém se aproximasse do meu garoto Isaac. Naquele sonho. Sei que me ouviu.
– Está dizendo que devo começar a te chamar de Lázaro ao invés de Zacarias?
– Pode me chamar do jeito que quiser.
– Bem, seja lá qual for o seu maldito nome, você simplesmente colocou uma bala na cabeça do “seu garoto”. Parabéns, pois Isaac é o único com quem eu vou acertar as contas, e você me conhece. Farei do meu jeito todo especial.
Droga. Grier Childe. Quanto você quer apostar, Jim pensou.
– Isso não tem lógica.
– É muito lógico. Ou Isaac fez isso e você está acobertando e espera por clemência. Ou você o fez e, nesse caso, eu realmente tenho contas para acertar com você... e a maneira como vou lidar com esse “você me pertence” vai deixar uma assassinato em sua consciência. Uma vez que você odeia efeitos colaterais, isso vai ser mesmo uma tapa na nuca.
– Rothe ajudou a salvá-lo. Naquele vale de areia onde você quase se matou.
Agora o cara simplesmente rosnou.
– Não me dê outra razão para ir atrás dele.
Bingo, Jim pensou, apertando o telefone. Aquele era seu jeito de lidar com as coisas e era mais importante que um confronto para saber “quem atirou no demônio”.
– Quanta amargura, Matthias. Você parece muito amargo. Sabe, você mudou.
– Não, eu não mudei...
– Sim, mudou, e sabe do que mais? Você não tem mais o ímpeto para fazer isso. Não tenho certeza se já se deu conta disso. Mas o velho Matthias não veria isso de maneira pessoal. Seriam apenas negócios.
– Quem disse que estou a caminho?
– Eu disse. Tem que estar. Você não sabe disso ainda, mas está sendo obrigado a vir aqui e matar um homem inocente. – O silêncio disse a ele que estava no maldito caminho certo. – Você não entende por que tem que fazer isso por si mesmo. Você não entende a maneira como pensa nesse exato momento. E sabe que está perdendo o controle. Está fazendo escolhas e besteiras que não fazem qualquer sentido. Mas eu posso lhe dizer os motivos disso: é porque você está sendo impulsionado por algo que não acreditaria se eu dissesse que existe. Contudo, isso ainda não o tomou por completo, então, ainda há tempo.
Jim fez uma pausa e deixou que aquela informação se acomodasse no cérebro de seu ex-chefe. O que Matthias precisava era de um exorcismo, mas aquilo requeria seu consentimento. O objetivo era levá-lo até a casa e começar a trabalhar nele...
E nesse tom ele continuou: – Foi com essa coisa que você lidou ao ligar para seu segundo na linha de comando. Ele não era o que pensava, Matthias. – Cavando ainda mais fundo, ele empurrou mais uma. – Quando ele falou com você, sentiu como se fizesse total sentido, certo? Ele o influenciou de maneira sutil, o direcionou, sempre esteve lá quando você precisou dele. Mal se nota em um primeiro momento e, então, você começou a confiar nele, delegar tarefas a ele, começou a prepará-lo para ser seu sucessor...
– Você não sabe do que está falando!
– Imagina. Eu sei exatamente o que está acontecendo. Você ia mesmo permitir que Isaac voltasse para as operações extraoficiais, não ia? Você ia encontrar um jeito de não matá-lo. Não é mesmo? Matthias...? Matthias, responda a maldita pergunta.
Uma longa pausa. Em seguida, uma resposta suave.
– Sim. Eu ia.
– E você não disse isso ao seu segundo homem, pois sabia que ele mudaria sua opinião.
– Contudo, ele estaria certo.
– Não, ele seria o demônio. É isso o que ele era. Pense nisso. Embora você tenha tentado sair das operações extraoficiais, ele o puxou de volta.
– Para sua informação, está falando com um sociopata. Logo, estou seguindo minha natureza.
– Uh-hun. Certo. Sociopatas que pretendem seguir uma “vida louca” não colocam bombas na areia e pisam em cima. Admita, você queria sair lá no deserto... você quer sair agora. Admita.
Por um tempo, não houve nada além de um zumbido ao fundo. E, então, Matthias jogou outra bomba, por assim dizer.
– Foi o filho de Childe.
Jim franziu a testa e recuou um pouco.
– Como?
– O filho de Childe... foi o que mudou tudo. Eu assisti a gravação... de Childe chorando enquanto seu filho morria na frente dele. Meu pai nunca teria feito isso se fosse eu quem estivesse naquele sofá. O mais provável é que ele teria preparado minha veia para a agulha. Eu não conseguiria ter aquilo... fora de questão. O jeito que o pobre coitado olhava e o que ele dizia... ele amava aquele garoto como um pai deve amar um filho.
Sim, nossa... de alguma maneira, era difícil imaginar que Matthias teve um pai. Desovado era mais adequado a ele.
Jim balançou a cabeça, sentindo-se mal pelo cara pela primeira vez desde que eles se conheceram há tantos anos.
– Estou dizendo, deixe Isaac ir. Esqueça a vingança. Esqueça as operações extraoficiais. Esqueça o passado. Vou ajudá-lo a desaparecer e ficar em segurança. Deixe tudo para trás... e confie em mim.
Longa pausa. Longa pausa onde não havia nada além daquele ruído límpido de um carro em movimento.
– Você está em uma encruzilhada, Matthias. O que fizer com relação a Isaac hoje à noite pode salvar você... e salvar a ele, também. Você tem mais poder do que imagina. Trabalhe conosco. Venha até aqui, sente-se e converse com a gente.
Provavelmente, era melhor não falar sobre a grande incisão nele com uma faca de cristal para retirar toda a pestilência de Devina pela garganta.
Matthias exalou o ar com força.
– Nunca pensei que você fosse do tipo Mahatma Gandhi.
– As pessoas mudam, Matthias – disse Jim bruscamente. – As pessoas podem mudar. Você pode mudar.
Em pé do outro lado da cozinha, Isaac não tinha certeza se estava ouvindo direito: Matthias plantou a bomba que tinha explodido sobre ele?
Deus, ele se lembrava de dirigir o Land Rover pelas dunas, de volta ao acampamento. Assim que Matthias foi tirado do veículo, os garotos com as bolsas de sangue, as agulhas e as luvas de látex o cercaram por completo e isso era praticamente tudo o que Isaac sabia.
Moral da história: Heron não tinha dito uma palavra sobre as maneiras, os lugares ou os motivos da explosão e Isaac não perguntou. “Saber só o necessário” era a regra de ouro das operações extraoficiais: o chefe e um soldado em atividade aparecem com um deles transformado em carne moída após uma explosão e o outro vem arrastando seus tristes corpos pela areia no meio da noite?
Tudo bem. Não é grande coisa. Tanto faz.
Além disso, algumas vezes, a informação a que tinha acesso era mais perigosa que uma arma carregada apontada na testa.
Quando Jim interrompeu de repente a ligação com o chefe, Isaac tinha algumas coisas para esclarecer com o filho da mãe.
– Primeiro, eu não preciso que banque o mártir por mim, então, não precisava daquela besteira de “eu atirei nele”. E, depois, que inferno. Matthias tentou se matar?
– Primeiro – Jim repetiu –, eu não sofro com as consequências, então, você pode aproveitar qualquer coisa que eu faça para salvar sua pele. Segundo... sim. Ele tentou. O dispositivo era um dos nossos e ele sabia exatamente onde pisar. Ele me encarou ao colocar o pé no local... e disse alguma coisa. – O cara balançou a cabeça. – Não faço ideia do que ele disse. Em seguida, boom! A maior parte do detonador foi vaporizada. Mas não detonou tudo.
Fascinante.
– Quanto tempo até ele chegar aqui?
– Não sei. Mas ele está vindo. Tem que vir.
Sim, e quanto àquelas coisas sobre o segundo na linha de comando? Sinceramente, não havia nada que ele quisesse saber sobre isso. Ele tinha informação suficiente para inchar seu crânio. A única coisa que importava era conseguir superar aquela noite.
– Estou cansado de esperar – ele murmurou.
– Junte-se ao clube.
Naquele momento, Isaac olhou ao redor. O sistema de segurança estava desativado, mas todas as portas estavam trancadas, então, havia grandes chances de saber se alguém tentasse entrar.
– Ouça, vou subir – ele disse. – Fique de olho lá em cima.
– Certo. – Jim apertou os olhos e voltou a focar o jardim dos fundos como se esperasse uma infiltração a qualquer momento. – Vou dar cobertura.
Quando Isaac chegou à base da escada dos fundos, ele parou e se inclinou em direção à cozinha. Heron estava parado em frente ao vidro, mãos nos quadris, sobrancelhas unidas.
Não, o cara não estava morto. E, honestamente, ele não parecia incomodado com a realidade de que uma bala podia entrar arrebentando tudo o que visse pela frente a qualquer segundo.
– Jim.
– Sim. – O homem olhou para trás.
– O que você é? De verdade.
No silêncio que se estendeu, a palavra “anjo” sobrevoou o espaço que havia entre eles. Só que aquilo não era possível, certo?
O homem deu de ombros.
– Sou o que sou.
Entendido, Isaac pensou.
– Bem... obrigado.
Jim balançou a cabeça.
– Você não saiu dessa ainda.
– Mesmo assim. Obrigado. – Isaac pigarreou. – Não posso dizer que ninguém tenha, alguma vez, arriscado seu pescoço por mim assim.
Bem, não era verdade, era? Grier o fez, à sua maneira. E, Deus, um mero pensamento sobre ela quase fez seus olhos arderem.
Heron fez um pequeno aceno e pareceu sinceramente comovido.
– Não é nada, cara. Agora, deixe de ser patético e vigie o terceiro andar.
Isaac teve que sorrir.
– Posso precisar de um emprego depois disso, sabe?
Um sorriso apareceu, mas se desvaneceu rapidamente.
– Não tenho certeza se quer passar pelo processo seletivo de onde trabalho. É difícil.
– Eu já estive num lugar parecido, fazendo coisas parecidas.
– Eu também pensei que fosse fácil assim.
Com isso, Isaac subiu as escadas.
Sim, com certeza, aparentemente ele ia vigiar do último andar, mas havia outra verdade nisso, outra motivação.
Quando ele entrou no quarto de Grier, foi direto ao seu armário e parou sobre a bagunça de roupas que ficou no carpete creme. Ela deixou o projeto de reorganizar tudo pela metade – pois, algum imbecil atirou em si mesmo na entrada de sua casa.
Mas ele poderia cuidar do problema.
Enquanto esperava para ver como seria uma espécie de reunião bizarra com Matthias ou um tiroteio que deixaria os dois mortos, ele pegava as blusas, saias e vestidos e, um a um, os ordenava dentre o caos.
Pelo menos poderia limpar alguma coisa para ela; Deus era testemunha de que aquele corpo ainda estava lá embaixo, ainda envolto em plástico como algo prestes a ser enviado pelo correio.
Contudo, haveria tempo para removê-lo mais tarde.
E não haveria outra oportunidade para cuidar das coisas dela.
Além disso, o “patético” nele queria algum contato final com ela – e o mais próximo que ele chegaria disso era pendurando com cuidado o que uma vez já esteve contra sua preciosa pele.
CAPÍTULO 45
Grier seguiu o Mercedes de seu pai em direção a Lincoln e quando os conhecidos pilares que havia de cada lado do caminho da fazenda apareceram, ela respirou fundo pela primeira vez depois que saiu de Beacon Hill. Virando à direita, em direção à pista de cascalho quebrado, ela parou em frente às placas de madeira cinza e brancas e estacionou seu Audi. Embora o centro da cidade de Boston estivesse apenas a pouco mais de trinta quilômetros dali, parecia muito ser trezentos. Tudo era silêncio quando ela desligou o motor e saiu do carro, o ar fresco e limpo formigou seu nariz.
Deus, como ela amava esse lugar, ela pensou.
A luz gentil que se desvanecia no crepúsculo suavizava a linha de árvores que percorria os seis hectares de campos e jardins e banhava a madeira com uma iluminação amanteigada. Antes da morte de sua mãe, o lugar tinha sido um refúgio para os quatro, uma maneira de sair da cidade quando não queriam ir até o Cabo – e Grier tinha passado muitos finais de semana ali, correndo ao longo da grama e brincando ao redor da lagoa.
Depois que seu pai ficou viúvo, precisava de um novo começo e, então, ela se mudou para a casa da cidade e ele fixou morada ali.
Quando o pai se aproximou da garagem onde tinha encaixado seu grande sedã, seus mocassins trituraram os pequenos fragmentos de cascalho. Quando era criança, ela pensava que caminhos como aquele eram cobertos de um tipo especial de cereais. Ao invés de derramar leite em uma tigela, tudo o que precisava fazer era pisar sobre eles para obter aquele som de estalos.
Ele foi cauteloso ao se aproximar dela.
– Quer que eu ajude com suas coisas?
– Sim, obrigada.
– E que tal se jantássemos?
Mesmo sem fome, ela assentiu.
– Isso seria ótimo.
Deus, eles pareciam estar em uma festa. Bem, uma festa que envolvia cadáveres, armas e fugir de assassinos... Neste caso, estar elegantemente atrasado significava sua morte, não seria apenas uma catástrofe com o penteado ou o trânsito ruim da Rua Vinte oito.
O que a lembrava de...
Grier olhou em volta e sentiu um arrepio na nuca. Eles estavam sendo vigiados. Ela podia sentir isso. Mas ela não estava ansiosa; estava calma com o que estava sentindo.
Ela podia apostar que eram os homens de Jim. Ela não os viu no caminho, mas eles estavam ali.
Depois que seu pai tirou suas malas e fechou o porta-malas, ela trancou o carro – e tentou não pensar no fato de que aquele homem com o tapa-olho já esteve ali dentro. Francamente, aquilo fez com que ela tivesse vontade de vender o Audi, mesmo com apenas uns 48 mil quilômetros rodados e funcionando muito bem.
– Vamos? – seu pai perguntou, indicando o caminho da frente com uma mão elegante.
Assentindo com a cabeça, ela se adiantou e iniciou o caminho de tijolos que havia até a porta. Antes de entrarem, seu pai desativou o sistema de segurança, que era igual ao da casa dela e, em seguida, destrancou os cadeados um por um. No momento em que atravessaram os batentes da porta, reativou o sistema e trancou tudo de novo.
Ninguém iria atrás deles ali: aquele lugar fazia com que a casa da cidade parecesse um brinquedo de papel machê no quesito segurança.
Após a morte de Daniel, aquela casa foi preparada para suportar um estado de sítio – algo que ela não tinha entendido até agora. Todas as placas foram arrancadas e painéis de microfilmes com substâncias retardadoras de fogo foram colocados no lugar delas por dentro e por fora; todos os vidros foram substituídos por vidros à prova de balas que tinham uma polegada de espessura; as portas antigas foram trocadas por outras reforçadas por molduras de chumbo; foram instalados sistemas de monitoramento de oxigênio e ventilação e não havia dúvidas de que foram feitas outras melhorias das quais ela não estava ciente.
Tinha custado mais do que a casa e, naquela época, Grier questionou a saúde mental de seu pai.
Agora, ela era grata.
Quando olhou para as familiares antiguidades americanas, para o chão de grandes pranchas e para a atmosfera de graciosidade casual, a noite que se aproximava se estendeu até o infinito. O que acontecia quando tudo o que se tinha diante de si eram momentos de espera: Jim e Isaac entrariam em contato com seu pai em algum momento, mas não havia como dizer quando. Ou quais notícias seriam dadas.
Horripilante. Como tudo aquilo era horripilante.
Deus, geralmente ela pensava na morte em termos de acidentes ou doenças. Hoje, não. Essa noite tudo era violência e premeditação, e ela não gostava desse mundo. Já era difícil o suficiente quando apenas a Mãe Natureza e a lei de Murphy estavam atrás de você.
Ela tinha um sentimento muito ruim sobre tudo isso.
– Gostaria de comer alguma coisa agora? – seu pai perguntou. – Ou prefere se refrescar primeiro?
Tão estranho. Geralmente, quando ela chegava àquela casa, ele a tratava como se fosse dela, abria a geladeira ou usava a cafeteira ou o fogão sem pestanejar. Era estranho e a incomodava ser tratada como hóspede.
Olhando por cima do ombro, ela observou seu pai, percorrendo as linhas de seu belo rosto. No silêncio constrangedor da casa blindada, ela se deu conta do quanto estavam sozinhos. Pelo bem deles, precisavam voltar a ser uma família ao invés de serem estranhos um ao outro.
– Que tal se eu fizer o jantar para nós dois?
Os olhos de seu pai lacrimejaram um pouco e ele limpou a garganta.
– Isso seria ótimo. Só vou levar isto até seu quarto.
– Obrigada.
Quando ele passou por ela, estendeu a mão e tocou seu braço, apertando um pouco – o que era a sua versão de um abraço. E ela aceitou o gesto colocando a palma de sua mão sobre a dele. Como sempre faziam.
Depois que ele subiu as escadas da frente, ela se dirigiu à cozinha sentindo-se trêmula e sem o controle de seu jogo... mas ela estava em pé e seguia em frente.
O que, no fim do dia, é tudo o que se tem, não é?
Havia apenas uma coisa faltando... ela parou e olhou por cima do ombro de novo. Então, ela andou pela cozinha e verificou a mesa da alcova... e o longo balcão onde estava o fogão... e o pé da escada dos fundos...
– Daniel? – ela sussurrou. – Onde está você?
Talvez ele não quisesse estar na casa do pai. Mas ele pôde aparecer no hotel naquela festa beneficente e, depois, em um ringue de luta clandestina, ele poderia muito bem dar o ar da graça ali.
– Eu preciso de você – ela disse. – Preciso vê-lo...
Ela esperou. Chamou seu nome baixinho mais algumas vezes. Mas parecia que apenas o forno duplo e a geladeira a ouviam.
Ah, pelo amor de Deus, ela sabia que seu irmão sempre evitou um conflito – e que seu pai o irritava. Mas ninguém o viu antes a não ser ela, então, era evidente que ele poderia escolher a quem se mostrava.
– Daniel.
Em um momento de pânico, ela se perguntou se ele nunca mais voltaria. Houve algum adeus de sua parte que ela não se deu conta?
Mais uma vez, sem respostas dos eletrodomésticos.
Pensando que teria mais sorte se os colocasse em funcionamento, ela foi até a geladeira e abriu a porta, perguntando-se que diabos poderia preparar para ela e seu pai.
Uma coisa era certa: o jantar não incluiria omeletes.
Levaria um tempo até ela preparar uma omelete de novo.
Quando a escuridão se instalou, os faróis do carro sem marcas oficiais de Matthias varriam a estrada à frente. Havia outros carros viajando na mesma estrada de asfalto que ele, outras pessoas por trás dos volantes, outros planos em outras mentes.
Tudo isso era irrelevante para ele, sem maior importância do que um filme passando em uma tela.
Sem mais profundidade que isso também.
Ele tinha problemas. Problemas terríveis. Do tipo que faziam nós em seu cérebro e que faziam a dor em seu lado esquerdo pegar fogo até o ponto de ter que se esforçar para se manter consciente.
Droga... Jim Heron sabia demais sobre coisas que deveriam estar apenas em pensamentos e conhecimentos particulares. Era como se o homem tivesse sintonizado a estação de rádio interna de Matthias e ouvido todas as suas músicas, comerciais e relatórios do trânsito.
E o filho da mãe estava certo. O segundo na linha de comando apenas se destacou de fato após o pequeno acidente de Matthias no deserto: nos últimos dois anos o soldado se fez indispensável e, olhando para as tarefas e situações com que Matthias tinha lidado, o cara tinha gradualmente influenciado suas decisões até que começou a tomá-las por si mesmo.
Tinha sido tão sutil. Como alguém girando lentamente o acendedor de uma chama sob uma panela de água. Seu subordinado foi quem o fez mudar de opinião sobre deixar Jim Heron ir. E o homem que direcionou Matthias a matar Isaac. E havia mais uma centena de exemplos... muitos dos quais ele acabou realizando conforme sua influência.
Ele nem sequer notou que isso estava acontecendo.
Deus, tinha começado com a morte do filho de Alistair Childe. Foi a primeira ideia brilhante.
Naturalmente, a lógica era indiscutível e Matthias não hesitou em puxar o gatilho. Mas quando viu as filmagens da morte, o choro do capitão o comoveu. Abriu uma porta que ele nem sequer sabia que existia dentro dele.
Matthias desligou o vídeo e foi para a cama. Na manhã seguinte, ele acordou e decidiu que já era o suficiente. Hora de deixar a festa que tinha iniciado há todos aqueles anos – ia deixar os convidados tomarem conta da casa e incendiá-la, tudo bem. Mas para ele bastava.
Já chega. Foi a gota d’água.
Focando suas mãos no volante, ele percebeu que outra pessoa o guiava, dirigia para ele, determinava as saídas e acionava as setas. Como aquilo tinha acontecido?
E por que, diabos, Jim Heron sabia?
Quando sua mente mais parecia uma máquina de lavar e começou um novo ciclo de rotação no passado, ele decidiu que todo aquele processo de lavagem e enxágue não era real. Não essa noite. Não naquela estrada. O que importava não era como ele tinha chegado atrás daquele volante e se encontrava a caminho de Boston. O que importava era o que ele faria quando chegasse lá.
Encruzilhada... certo. Ele sentia isso nos ossos – da mesma forma que sentiu quando preparou aquela bomba anos atrás.
A questão era: e agora? Acreditar no que Jim Heron havia dito. Ou seguir o impulso da raiva que o direcionava para o leste.
Qual destino ele seguiria?
Enquanto ele ruminava, tinha total certeza de que estava escolhendo entre o Céu e o Inferno.
CAPÍTULO 46
Enquanto Adrian vigiava a casa cinzenta daquele cavalheiro parado próximo a um carvalho, ele estava começando a se sentir como a porcaria de uma árvore. A não ser por aquele confronto na cidade na noite anterior, ele passou muito tempo esperando nos bastidores nos últimos dois dias.
Ele nunca gostou de ficar parado, para começar, mas naquela noite, quando toda a ação estava na cidade e ele e Eddie estavam presos feito troncos servindo de babá para dois adultos, Adrian estava realmente inquieto. Especialmente levando em conta que ele e seu colega eram responsáveis pelo que estava trancado em uma casa que fazia da base do exército dos Estados Unidos parecer um sanitário portátil em termos de solidez.
Dane-se tudo isso. Ele não conseguia acreditar que estavam indo atrás da alma errada.
Todas as conclusões pareciam boas, mas na verdade, a porcaria era como uma equação de álgebra que tinha algum elemento errado: parecia ótima no papel, mas a resposta estava errada.
E que grande escorregão aquele tinha sido. Ele sentia calafrios em pensar que estava tão perto e tão longe do final de uma partida.
Mas a quase derrota não era a única coisa que fazia suas bolas ficarem tensas, no mal sentido. A outra metade disso se dava à situação em que Jim se encontrava agora: a despeito do que Devina tinha feito com ele, o cara estava fazendo tudo como se estivesse muito bem... e sim, tudo bem, talvez fosse o caso no momento. Inferno, o fato de que tudo com Isaac e Matthias ia vir à tona naquela noite parecia ser uma coisa boa, pois dava a Jim algo para se concentrar. O único problema era que, Adrian sabia bem, essa crise ia passar e, então, o cara enfrentaria muitas horas longas e silenciosas sozinho com nada além de más memórias sibilando em seu crânio como balas perdidas.
A pior coisa, pelo menos na opinião de Adrian, era saber que ia acontecer de novo. Quando a situação requeresse, Adrian voltaria a descer até o mausoléu onde havia a brinquedoteca de Devina... e Jim também. Isso por serem o tipo de homem que eram. E esse era o tipo de vadia que ela era.
Ao lado dele, Eddie sufocou outro espirro.
– Saúde.
– Malditas lavandas. Sou o único imortal com alergia. Juro.
Quando o cara olhou para a floração que havia próxima a ele, Adrian respirou fundo pensando que pelo menos seu melhor amigo não teve que passar pelo inferno daquela mesa. Por outro lado, ele foi marcado por aquele demônio, o que dificilmente se aproximava de uma temporada na Disney.
Dez minutos, três espirros e um monte de nada para fazer depois, Adrian pegou seu celular e ligou para Jim. O cara atendeu no segundo toque.
– Diga – ele vociferou.
– Nada. Estamos em meio a lavandas – acho que é assim que são chamadas – olhando Grier comer com o pai dela. Parecem duas costeletas de porco. – O exalar do outro lado da linha era de pura frustração. – Nada de novo por aí também, eu acho.
Cara, algumas vezes, uma má ação era melhor do que aquela porcaria arrastada, onde brincar com os dedos era a única coisa a se fazer.
Jim soltou um palavrão.
– Eu falei com Matthias há mais ou menos uma hora, mas não tenho ideia de onde ele estava. Contudo, com certeza estava no trânsito.
– Acho que deveríamos voltar. – Adrian franziu a testa e se inclinou para frente em suas botas. Dentro da cozinha rústica, Grier se levantou, pegou algumas louças de um armário e ergueu a tampa de vidro de um prato de bolo. Parecia que havia um bolo de chocolate. Coberto de creme.
Que droga. Talvez eles devessem ficar um pouco mais. Convidarem-se para a sobremesa.
– Aguente firme – Jim disse. – Mas talvez eu precise ir até aí. Prefiro manter o confronto bem longe dos Childes, só que não sei se Grier é o alvo. Nesse momento, não sei o que Matthias está pensando... eu só consegui chegar até certo ponto com ele ao telefone antes dele desligar.
– Olha, tudo o que sei é que queremos estar onde a festa estiver. – Quando Eddie espirrou de novo, Ad balançou a cabeça para indicar onde estavam os anti-histamínicos. – E ouça, eu andei em torno dessa casa. É segura como não sei o que. Matthias é a alma em jogo, então, para onde quer que ele vá será por onde a ação vai seguir – e ele está indo encontrar Isaac.
Houve um breve silêncio. E, então, Jim disse: – Contudo, Grier é uma alma inocente e uma excelente maneira de Matthias conseguir sua vingança – talvez ela seja a única que ele pretenda capturar. Nós simplesmente não sabemos. É por isso que quero dar mais um tempo... e, então, talvez, possamos trocar de lugar.
– Tudo bem. Seja lá onde for que precise de nós, iremos. – Ad se ouviu dizer antes de desligar.
Dê só uma olhada, fazendo toda aquela coisa de um bom soldadinho. E aquilo era um pé no saco.
– Vamos ficar por aqui – ele reclamou. – Por enquanto.
– Difícil saber onde se posicionar.
– Precisamos de mais lutadores.
– Se Isaac sobreviver... podemos transformá-lo. Ele tem jeito.
Adrian o encarou.
– Nigel nunca permitiria isso. – Pausa. – Permitiria?
– Eu acho que ele não vai gostar de mais perdas, é o que posso dizer.
Adrian voltou a assistir Grier a cortar duas fatias e colocá-las no prato. Ele teve a impressão, pela maneira como seus lábios se moviam, que ela e seu pai estavam conversando com mais calma e ele estava feliz. Ele não sabia como era ter um pai, mas ele estava na Terra tempo suficiente para saber que um bom pai era uma coisa ótima.
Ele soltou um palavrão quando Grier se dirigiu ao congelador.
– Ah, cara. Sorvete também?
– A maneira que você consegue ter apetite em um momento como esse me surpreende.
Adrian pegou uma pequena tigela.
– Eu sou incrível.
– “Esquisito” também é um bom adjetivo.
Nesse momento, Ad começou a puxar de suas cordas vocais Super Freak fazendo uma imitação fantástica de Rick James. Nos arbustos de lavanda. Em... onde diabos eles estavam? Roosevelt, Massachusetts? Ou estavam em Adams?
Washington?
– Por tudo quanto é mais sagrado – Eddie murmurou ao cobrir os ouvidos. – Pare...
– ... in the name of loooooove. – Erguendo a mão, Ad começou a se mexer e a rebolar como Diana Ross. – Be... fore... you... breaaaaaaak... my...
A risada suave de Eddie dizia que ele estava no limite e assim que entrou no coro, Ad se calou.
Quando as coisas ficaram em silêncio novamente, ele pensou no bom e velho Isaac Rothe. Aquele filho da mãe, grandalhão, cabeça-dura poderia ser um excelente complemento para a equipe.
Claro, ele teria que morrer primeiro.
Ou ser morto.
As duas maneiras, levando em conta a forma como as coisas estavam acontecendo, poderiam ser arranjadas naquela noite.
Na cozinha, Grier sentou-se diante de seu pai em uma mesa feita de tábuas retiradas de um velho celeiro. Entre eles, havia dois pequenos pratos brancos marcados com manchas de chocolate e os garfos de sobremesa descansavam em ângulos acentuados.
Eles não falaram sobre nada importante durante a refeição, apenas coisas do cotidiano sobre o trabalho e o jardim dele e sobre os possíveis casos que ela assumiria no sistema penal. A conversa foi tão normal... talvez fosse ilusão, mas ela se apegou ao que eles tinham seguindo a regra do “faz de conta”.
– Outro pedaço? – ela perguntou, indicando com a cabeça o bolo no balcão.
– Não, obrigado. – Seu pai bateu suavemente os cantos da boca com o guardanapo. – Não deveria ter comido nem o primeiro.
– Parece que perdeu peso. Acho que deveria...
– Eu menti sobre Daniel para mantê-la em segurança – ele deixou escapar, como se a pressão de esconder aquilo tivesse chegado a um nível insustentável.
Ela piscou algumas vezes. Em seguida, estendeu a mão e começou a brincar com o garfo, desenhando um pequeno “op” e depois um “extra” em cima da cobertura que deixou de lado, seu estômago revirava todo o jantar que tinha acabado de comer.
– Eu acredito em você – ela disse em dado momento. – Contudo, isso dói muito. É como se ele tivesse morrido novamente.
– Sinto muito. Sei que não é o suficiente.
Seus olhos se ergueram e encontraram os dele.
– Entretanto, vai ficar tudo bem. Eu só preciso de um tempo. Você e eu... somos tudo o que restou um ao outro, entende?
– Eu sei. E isso é minha culpa...
Do nada, uma luz brilhou através das janelas, iluminando o cômodo e os dois que ali estavam em uma explosão de brilho.
Cadeiras arranharam o chão quando ela e seu pai ficaram em pé rapidamente e procuraram por abrigo atrás da sólida parede da cozinha.
Lá fora, no gramado da frente, as luzes de segurança acionadas pelo movimento foram ativadas e um homem estava andando sobre o gramado em direção à casa. Atrás dele, nas sombras, um carro que ela não conhecia estava estacionado no caminho de cascalho.
Seja lá quem fosse, deve ter vindo com os faróis desligados. E se fosse Jim, Isaac ou aqueles dois homens, alguém teria chamado.
– Pegue isto – seu pai disse entre dentes, pressionando algo pesado e metálico em sua mão.
Uma arma.
Ela aceitou sem hesitar e seguiu até a porta da frente – que era aonde parecia estar indo seu “convidado” inesperado. Contudo, qual era a lógica nisso? Você se esgueirava até a casa com as luzes do carro desligadas, mas andava decidido em direção a...
– Oh, graças a Deus – seu pai murmurou.
Grier relaxou assim que reconheceu quem era. Sob as luzes de segurança, o grande corpo de Jim Heron e seu rosto rígido estavam claros como o dia e o fato dele se esquivar pelo caminho fazia sentido.
Seu primeiro pensamento foi em Isaac e ela o procurou dentre as luzes quando seu pai desativou o sistema de segurança e abriu a porta. Contudo, ele não estava com Jim.
Oh, bom Deus...
– Estão todos bem – Jim gritou no gramado, como se tivesse lido sua mente. – Está tudo acabado.
O alívio foi tão grande que ela se afastou brevemente, esquivou-se até a cozinha, apoiou a arma e colocou seus braços sobre a mesa. Do outro cômodo, ela ouvia as vozes profundas de seu pai e de Heron, mas ela duvidava que conseguiria acompanhar a conversa mesmo se estivesse em pé ao lado deles. Isaac estavam bem. Ele estava bem. Estava bem...
Estava acabado. Terminou. E agora, com Isaac indo embora em relativa liberdade, ela poderia tentar seguir em frente também.
Cara, ela precisava de umas férias.
Em algum lugar frívolo e quente, ela decidiu ao se movimentar e pegar os pratos de sobremesa. Em algum lugar com palmeiras. Drinques e sombrinhas. Praia. Piscina...
Tick... tick... whir...
Grier franziu a testa e lentamente olhou por cima do ombro.
Perto da geladeira, a fechadura da porta dos fundos se deslocava da direita para a esquerda, ao mesmo tempo em que a velha trava se erguia.
As vozes na sala silenciaram de repente.
Silenciaram demais.
Aquilo estava errado. Muito errado...
Grier largou os pratos e se lançou para a arma que havia deixado no balcão...
Mas ela não chegou a fazer isso. Alguma coisa atingiu seu ombro e, em seguida, uma carga elétrica passou por seu corpo, curvando-a para trás, desequilibrando seus pés e a jogando com força no chão.
CAPÍTULO 47
Em Beacon Hill, Isaac subiu as escadas da frente da casa, parou no patamar do segundo andar e depois continuou até o quarto de Grier. Em seu espaço particular, ele passeou ao redor da cama e sentiu que estava perdendo sua preciosa sanidade.
Ele olhou o relógio despertador. Caminhou até as portas francesas. Observou o terraço.
Nada se movia lá fora e não havia ninguém na casa além dele e Jim.
O tempo passava, mas ninguém aparecia e não importava quantas vezes ele descesse até Jim e depois voltasse a subir ele não era capaz de prever a próxima sequência de eventos.
Era como um diretor sem megafone e um elenco que não dava a mínima para o que ele tinha a dizer.
O medo inevitável que o afligia era de que estivesse no lugar errado. Que ele e Jim estavam tranquilos aqui enquanto a ação acontecia em outro lugar. Como na fazenda do pai de Grier.
Como se fosse um caminho viciante, ele voltou para a escada e correu para baixo, esperando nada ao longo do caminho ou nos fundos além de uma breve parada na cozinha e outra viagem para cima.
Só que...
Quando ele chegou ao térreo, a porta da frente rangeu como se estivesse sendo aberta. Pegando suas armas, ele estava pronto para atacar... até que ouviu a voz irritada de Jim aumentando.
– O que vocês estão fazendo aqui? – Heron perguntou.
– Você nos mandou uma mensagem de texto.
Isaac franziu a testa ao som da voz do homem de piercing.
– Não, eu não mandei.
– Sim, mandou.
Naquele momento, o transmissor de alerta disparou com um movimento sutil no bolso de Isaac.
Todos os seus instintos queimavam, ele se abaixou silenciosamente no quarto de hóspedes onde tinha ficado. Segurando o transmissor nas mãos, ele ativou o dispositivo e, desta vez, não houve demora na resposta.
Matthias respondeu logo em seguida.
– Estou com sua garota na casa do velho pai dela. Venha para cá. Você tem meia hora.
– Se você a machucar...
– O tempo está passando. E não preciso dizer para vir sozinho. Não me faça esperar, ou vou ficar entediado e terei que preencher meu tempo. Você não vai gostar disso, prometo. Esteja aqui em trinta minutos.
A luz se apagou, a transmissão terminou de repente.
Quando Isaac se virou para sair, ele pulou para trás. Jim, de alguma maneira, subiu as escadas e atravessou a porta fechada para ficar em pé bem atrás dele.
– Ele está com ela – disse Jim categoricamente. – Não está?
– Vou sozinho ou ele vai matá-la.
Empurrando o homem para fora do caminho, Isaac correu escada abaixo. O corpo no corredor de entrada havia sido revistado a procura de armas como se fosse um presente embrulhado, mas chaves de carro era outra coisa.
Bingo. Bolso da frente. Ford.
Agora encontrar o carro do bastardo.
Quando Isaac se levantou, percebeu que tudo estava completamente silencioso e não havia ninguém no corredor da frente. Olhando ao redor, ele teve a sensação de que estava sozinho na casa, embora não fizesse ideia de como eles tinham saído tão rápido.
Seja como for – dane-se. Danem-se todos eles.
Isaac foi direto para a porta, mas no último minuto, ele girou sobre os calcanhares debaixo do arco e se voltou para o corpo para tirar algo mais dele. Então, correu na escuridão.
O carro sem marcas oficiais que ele observou na casa da Rua Pinckney no dia anterior estava estacionado um quarteirão acima e a chave do cara morto encaixou nele. O motor pegou bem e o GPS funcionava, então, ele rapidamente colocou o endereço que o pai de Grier havia dado a eles.
“Morcego vindo do inferno.” Era a descrição da viagem.
Rapidamente, ele pegou a estrada que ligava os locais, alcançando o limite de velocidade e depois ultrapassando-o. Mesmo assim, parecia que ele estava movendo-se em câmera lenta – e só piorou quando saiu da estrada e tentou atravessar um trecho da cidade que estava cheio de sinais vermelhos e estradas sinuosas.
Felizmente, o GPS o levou exatamente aonde ele precisava ir, seu destino tinha uma frente com dois pilares de pedra que ficavam de cada lado de um caminho pálido e brilhante.
Ele baixou os faróis e virou à direita, saindo da velocidade total para ficar cada vez mais lento. Descendo o vidro da janela para que pudesse ouvir melhor, ele avançou, odiando o som dos pneus esmagando um milhão de cascalhos. A única coisa boa era que o brilho permanente da cidade não existia ali em meio à natureza e a lua estava coberta por nuvens. Mas quanto você quer apostar que eles tinham sensores de movimento na parte externa da casa e/ou nas árvores?
Isaac se dirigiu até outro carro sem marcas oficiais que devia ser o carro de Matthias. Uma manobra depois e ele estava fora do carro. Pegando as chaves, ele correu ao longo da margem do gramado, seus sentidos avivados, sua raiva era como o inferno em seu sangue.
Matthias morreria se colocasse um dedo sequer em Grier. Um fio de cabelo daquela mulher fora do lugar e aquele canalha estaria massacrado.
Ao se aproximar da casa, ele procurou as portas. A da frente estava aberta e não conseguia ver a dos fundos.
Mas o que importava – esperavam por ele. E, assim, ele deveria jogar para o alto aquela rotina idiota de ninja e anunciar sua chegada.
Chegando à entrada da casa, ele manteve suas armas escondidas e seus olhos atentos ao fechar os punhos e bater na ombreira da porta de madeira.
– Matthias – ele gritou.
Ao entrar na casa, o silêncio retumbante era mais terrível que qualquer grito ou poça de sangue. Pois só Deus sabia no que ele estava entrando.
Jim elaborou um plano quando ele e os anjos saíram em direção à casa do pai de Grier. Ele não queria deixar Isaac sozinho na cidade, mas tudo o que eles teriam feito seria discutir e Deus sabia que o sagaz imbecil poderia cuidar de si mesmo.
Moral da história: Devina estava executando jogos mortais e isso era uma coisa com a qual apenas Jim poderia lidar. E ter um atraso antes da chegada de Isaac poderia não ser uma coisa ruim: se Matthias tivesse feito qualquer coisa à Grier, seria impossível controlar o soldado.
Sim, quando Jim aterrissou e foi direto para a porta aberta da casa da fazenda com seus homens de confiança na escolta, ele estava preparado para cuidar das coisas.
Nigel, porém, o desviou dos trilhos.
O arcanjo apareceu bem no seu caminho e, dessa vez, ele não estava com seu smoking ou com seu traje de críquete branco ou com qualquer outra roupa de tecido leve todo engomado: ele não era nada além de uma forma brilhante, uma silhueta ondulada com curvas de luz.
E ele disse apenas uma palavra.
– Não.
Quando Jim parou por um momento, ele poderia ter socado o desgraçado se ele tivesse qualquer forma sólida para atingir.
– Qual seu maldito problema?
Primeiro o engano quanto a Isaac, agora isso?
– A sorte está lançada. – Nigel levantou sua mão vacilante. – E se você intervier agora, vai perder de fato.
Jim apontou a porta aberta.
– A alma de um homem está em risco.
A voz de Nigel ficou obscura.
– Como se eu não soubesse disso.
– Se eu chegar a Matthias...
– Você teve sua chance...
– Eu não sabia que era ele! Quanta besteira!
– Não há nada que eu possa mudar. Mas posso dizer, deixe o final acontecer...
– Oh, você não pode mudar nada, mas pode entrar no caminho agora? Que maravilha de noção de tempo!
Jim tinha plena consciência de que sua voz era estrondosa, mas ele não tinha dificuldades para anunciar sua presença a Devina ou a qualquer outra pessoa.
– Dane-se, eu vou entrar...
Com a rápida emanação de um brilho, a forma de Nigel o cobriu da cabeça aos pés, a iluminação atuava como uma espécie de cola que o prendia no lugar. E, em seguida, aquela voz britânica não estava apenas em seu ouvido, mas percorria todo seu cérebro.
– Qual é o caminho mais confiável? O da emoção ou o da razão? Pense, Jim. Pense. Se alguém quebrar as regras, haverá uma punição. Pense nisso. Pense, idiota!
A fúria nublava sua mente e agitava seu corpo até ele pensar que iria se desfazer... mas, de repente, um raio atingiu sua cabeça dura e ele percebeu o que o anjo estava tentando lhe dizer.
Se alguém quebrar as regras... haverá uma punição.
– É isso, Jim. Tome isso como uma conclusão óbvia, leve-a para além dessa noite. E saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva. Eu imploro, confie em mim a respeito disso.
Relaxando sua musculatura, Jim sentiu uma calma curiosa percorrer suas entranhas e ele mudou de ideia devido aos simples argumentos que Nigel tinha exposto.
Olhando para Adrian e Eddie que se preparavam para batalha, viu que estavam tão chateados quanto ele. O que agregava um valor adicional ao que Nigel havia explicado.
– Confie em mim, Jim – disse Nigel. – Eu quero ganhar tanto quanto você. Eu também tenho minha carga de perda de entes queridos. Eu também faria o que fosse preciso para colocá-los em uma eternidade de paz. Não pense que eu o conduziria para o mau caminho.
Jim balançou a cabeça para seu amigos.
– Deixa pra lá – disse Jim a eles. – Vamos ficar à margem. Ficaremos aqui fora.
Quando seus colegas olharam para ele como se estivesse fora de si, ele não poderia concordar. Não entrar ia matá-lo, mas ele percebeu o contexto... e estava satisfeito com a intervenção do arcanjo. Graças a Devina ignorar as regras, o melhor para Matthias seria Jim permanecer fora disso.
Mesmo indo contra todos os seus instintos.
Depois de um momento, Nigel se desprendeu lentamente e sua iluminação mágica gradualmente se dispersou. Na sua ausência, Jim caiu de joelhos na grama, os olhos fixos na porta aberta da casa de madeira enquanto Adrian e Eddie começavam a questioná-lo, exigindo explicações para a ordem de parada.
À margem de sua mente e emoções, o desejo de voar no caminho do que Devina havia projetado ainda o atordoava.
Especialmente quando pensava na mulher de Isaac nas mãos de Matthias...
Oh, Deus... Rothe seria sacrificado, não seria?
As mãos de Jim procuraram a terra e ele cavou o gramado com os dedos, mantendo o corpo no lugar.
Inclinando a cabeça, ele rezou para que sua fé estivesse bem posicionada e que o bem, em algum momento, prevalecesse. Mas o fato era: fazer a coisa certa causaria a morte de um homem que não merecia morrer naquela noite.
CAPÍTULO 48
Matthias amarrou os Childes bem antes do momento que ele esperava que Isaac atravessasse a porta da frente.
Depois que a eletrocutou, descobriu que pegar Grier do chão e colocá-la em uma cadeira requeria mais força do que ele tinha – então, ele a deixou deitada onde estava, amarrando suas pernas e pulsos com a fita adesiva que encontrou na despensa de Alistair.
E quanto ao pai dela?
Não fazia ideia do que tinha feito o homem abrir caminho e ficar parado ali em transe, mas a distração e a falta de reação vieram bem a tempo. Matthias foi capaz de se posicionar atrás do cara e colocar uma arma em sua cabeça.
Então, sim, sentá-lo em uma cadeira na cozinha foi fácil demais; ele simplesmente uniu as próprias mãos e pés.
O que foi bem útil, uma vez que aquela dor no peito de Matthias estava tão ruim que ele mal podia respirar.
E agora, era apenas o caso de esperar por Isaac, os três na casa juntos com a porta aberta.
Houve um gemido e, em seguida, um movimento no chão quando Grier Childe começou a acordar. Ela teve um momento de confusão, como se estivesse tentando entender por que estava deitada sobre a madeira e por que não conseguia abrir a boca. E então ela se movimentou rapidamente com um impulso de corpo inteiro, os olhos bem abertos olhavam para ele.
– Acorde, pirralha – ele disse bruscamente, acenando com a cabeça quando seu pai começou a lutar contra suas amarras e a fazer ruídos abafados sob a fita adesiva na boca.
Matthias colocou a mira da arma em direção à cabeça do cara.
– Cale a boca.
Não havia ninguém por perto para ouvir, mas o sofrimento e a luta alfinetavam os nervos de Matthias. Na verdade, quando ficou em pé entre os dois, ele estava longe da calma e do “mestre da sobrevivência” que ele sempre foi no passado: ele estava com muita dor. Estava exausto. E ele sentia que o que estava prestes a acontecer estava predestinado, mas não era algo que ele teria escolhido.
Ele estava completamente fora de controle e totalmente preso ao mesmo tempo.
Com os olhos dos dois Childes nele e com todos em silêncio de novo, ele se apoiou contra o balcão, seu corpo decrépito protestando a mudança de posição.
– Sabe o que me irrita em você? – ele disse para Alistair. – Eu salvei a boa. – Ele balançou a cabeça em direção à Grier. – Eu poderia ter deixado aquele seu filho com você. Mas não, eu peguei o estragado... tirei seu querido Danny do sofrimento dele e do seu.
Ele se lembrava de ter se surpreendido com seu processo de pensamento na hora. Havia outras coisas dentro dele que machucariam muito mais, mas ele tomou um caminho diferente nessa encruzilhada.
Talvez ele tivesse começado a mudar antes de ordenar a morte. Quem sabe?
Quem se importa?
Ele estava mergulhado demais nas profundezas para ser salvo e sua conversa com Jim ao telefone mostrou a realidade da sua condenação ao invés das possibilidades de redenção. Era hora de acabar com isso... e sair dessa com um estrondo.
Só que dessa vez, ele faria a coisa direito.
Naquele momento, Isaac Rothe apareceu no arco da cozinha. Seus olhos foram até Grier primeiro e nem mesmo seu autocontrole estoico podia esconder seu medo.
Ele amava aquela mulher.
Bem, bom para ele, pobre coitado.
– Bem-vindo à festa – Matthias disse entorpecido ao erguer a arma e apontar para ele.
– Não faça isso – Isaac exclamou. – Leve a mim, não ela.
Matthias olhou os grandes e aterrorizados olhos da mulher e a maneira como ela parecia estar pronunciando algo como “Oh, Deus, não...”
– Eu sinto muito sobre tudo isso – Matthias disse a ela. E era verdade. Ele não sabia o que era mais cruel: matá-la em frente a Isaac... ou deixar que ela sobrevivesse à morte dele – supondo que o amor era recíproco.
Pena que um deles morreria agora – pois, em seguida, Jim Heron seria forçado a entrar e atirar em Matthias – portanto, estariam quites. O soldado o salvou há dois anos contra sua vontade e agora... naquela noite... ele faria o que deveria ter feito no deserto.
– Matthias – disse Isaac nitidamente. – Vou colocar minha arma no chão.
– Não se preocupe – ele murmurou, ainda focado em Grier. – Sabe, senhorita Childe, ele se entregou a mim para salvá-la. Duas vezes. Fez tudo isso por você.
– Matthias, olhe para mim.
Mas ele não olhou. Ao invés disso, encarou o rosto de Alistair e aquilo foi o que o fez ele se decidir.
Ele mudou a arma de direção.
Isaac estava pronto – e ele não esperava por menos.
Os dois puxaram o gatilho ao mesmo tempo.
CAPÍTULO 49
Grier gritou contra a fita que cobria sua boca com os tiros que explodiram na cozinha, o eco fez seus ouvidos ressoarem e seus olhos arderem.
Alguém estava gemendo.
Com seu coração trovejando, ela levantou a cabeça e esticou o pescoço. Matthias não estava mais à vista – então, ele deve ter sido atingido... Ela rezava para que ele tivesse sido atingido.
Isaac...? Seu pai...?
Rastejando ao longo do assoalho, ela avançou ao redor do balcão no meio da cozinha. A primeira coisa que viu foi seu pai na cadeira. E ele era o único que gemia ao lutar furiosamente contra a fita que havia ao redor de suas mãos e pés.
Onde Isaac estava?
Um pavor frio substituiu cada gota de sangue em suas veias e ela sabia a resposta para sua pergunta antes mesmo de vê-lo deitado de costas no cômodo.
Ele não se movia, sua arma estava sobre sua mão frouxa e aberta, seus olhos encaravam o vazio em direção ao teto.
Grier gritou mais uma vez, seu corpo se contraiu, seu rosto se arrastou no chão envernizado, toda sua alma e tudo que havia em sua mente negava o inevitável. Debatendo-se, ela avançou até ele, esperando ajudar, esforçando-se para atravessar a distância...
De repente, suas mãos estavam livres.
Com toda aquela luta ela rasgou o que a prendia. Explodindo em uma coordenação de movimentos inesperada, ela arrancou a fita da boca e se arrastou com os braços até Isaac.
A bala tinha atingido em cheio seu coração.
Era um buraco tão pequeno através da camisa, nada além de uma alfinetada em relação à mancha de fuligem que havia ao redor. Só que foi mais do que suficiente para matá-lo.
– Isaac – ela disse, tocando sua face fria. – Oh, Deus... não se vá...
Sua boca estava ligeiramente aberta, suas pupilas fixas e dilatadas, a respiração superficial prestes a parar. Ele tinha feito tudo para salvá-la, a mudança de planos, a entrega de si mesmo. Afinal, aquele homem louco e terrível não tinha motivos para mentir.
– Isaac... Eu te amo... Sinto muito...
Sua cabeça virou lentamente em direção à ela, seus olhos se esforçando para entrar em foco. Quando ele pareceu se fixar em seu rosto, lágrimas escorreram daquele olhar gélido, uma escapou do canto e rolou sobre suas têmporas, caindo no chão.
– Eu...
– Eu vou chamar a emergência – ela disse rápido.
Só que quando ela foi dar um salto para alcançar o telefone, ele agarrou seu braço com uma força surpreendente.
– Não...
– Você está morrendo...
– Não. – Com a mão livre, ele pegou o zíper do blusão. Mesmo com os dedos tremendo, ele conseguiu segurar a alavanca e puxar para baixo...
Para revelar o colete à prova de balas que estava usando.
– Apenas... perdi... a respiração. – Com isso, ele fez uma inspiração profunda, o que expandiu seu peito totalmente e exalou de maneira uniforme e limpa. – Tirei... do soldado morto...
Grier piscou. Em seguida, ergueu as mãos e sondou o buraco... onde a bala tinha sido capturada e mantida entre as fibras do colete.
Seu corpo reagiu por conta própria, uma estranha força a impulsionou quando ela o ergueu do chão e o segurou perto de seu coração.
– Você é... – ela começou a chorar copiosamente quando o horror e o terror deram lugar ao alívio que se espalhou nela. – Você é um homem brilhante. Um homem brilhante... e estúpido...
E então os braços dele estavam ao redor dela e ele estava, contra todas as possibilidades, cuidando dela.
Contudo, logo ele se separou dela e pegou sua arma.
– Fique aqui.
Com um grunhido, ele se levantou e saiu para checar Matthias e, quando ele se afastou, ela desatou seus pés e correu para seu pai.
– Você está bem? – ela perguntou quando começou a liberar os braços dele.
Ele balançou a cabeça furiosamente, seus olhos não estavam nela, mas em Isaac como se também não pudesse acreditar que o cara tinha sobrevivido. E no instante que suas mãos estavam livres, ele começou a soltar seus tornozelos.
Grier olhou em volta e por precaução, em caso de alguma outra pessoa aparecer ou estar na casa, procurou a nove milímetros que Jim Heron deu a ela quando tinha aparecido por ali.
Supondo que realmente tinha sido o homem.
Algo lhe dizia que talvez o que ela e seu pai viram não estava lá de fato.
Matthias sabia que tinha sido um golpe mortal e estava contente. Sim, ele queria que a arma de Jim fizesse isso, mas a de Isaac funcionou bem – e Rothe tinha feito parte de todo problema da sobrevivência, não tinha?
Pelo menos, ele tinha conseguido com um deles.
Quando o ferimento arterial começou a vazar em sua cavidade torácica, a respiração começou a se tornar difícil e sua pressão caiu, seu corpo foi se entorpecendo e esfriando. Não havia mais dor.
Bem, não exatamente. Aquela pontada de agonia em seu lado esquerdo acabava com ele... e foi enquanto estava morrendo que descobriu o que era aquilo: ele estava errado. Não era seu coração se preparando para um ataque coronário. Era – surpresa das surpresas – a sua consciência. E a maneira como soube foi que quando pensou no fato de ter matado um homem relativamente inocente na frente da mulher que o amava, a dor se tornou exponencialmente pior.
Não era irônico? De alguma maneira, nas profundezas de seu pecado, o sociopata havia encontrado sua alma.
Tarde demais.
Ah, inferno, contudo, estava tudo bem. Ele estaria morto em breve e, depois disso, nada importaria. A luz branca que já tinha se aproximado dele antes, ao entrar em paradas cardiorrespiratórias a na mesa de operações algumas vezes, estava mais perto dessa vez. Ele não achava que fosse o Céu. A porcaria provavelmente era algum produto da imaginação ou alguma disfunção ocular, apenas outra parte dos mecanismos da morte...
Isaac apareceu na frente dele, alto e forte, seu blusão aberto para mostrar um colete à prova de balas.
Quando teve certeza de que estava enxergando direito, Matthias começou a rir... e a dor em seu lado esquerdo aliviou de repente.
– Seu filho da... – Ele não chegou ao mãe, pois uma crise de tosse o atingiu.
Depois que a crise passou, ele pôde sentir sangue escorrendo em sua boca e no rosto quando seu coração começou a bater em sua caixa torácica como um animal se debatendo em uma jaula.
Quando Isaac se agachou, Matthias pensou na tatuagem nas costas dele. O Ceifeiro da Morte, de fato. Ele se perguntou se o soldado tatuaria outro ponto na parte inferior.
Quanto você quer apostar que também seria a última?
Isaac balançou a cabeça e sussurrou.
– Eu tenho que deixá-lo morrer. Sabe disso, não é?
Matthias assentiu.
– Obriga... do...
Ele ergueu a mão gelada e, um momento depois, sentiu que ela estava envolvida em algo quente e sólido. Era a mão de Isaac.
Como foi estranha a maneira como as coisas se resolveram. Naquele deserto, Jim tinha a intenção de salvá-lo, mas aqui e agora, naquela cozinha, Isaac estava dando o que ele queria há tanto tempo.
Antes que Matthias fechasse seus olhos pela última vez, ele olhou para Alistair Childe. Sua filha o havia libertado e ele a abraçava, a envolvia em segurança, a cabeça dele estava bem ao lado da dela. Como se o homem sentisse seu olhar, ele olhou também.
O alívio no rosto dele era épico, como se soubesse que Matthias estava morrendo e nunca mais voltaria – e que, apesar de saber que isso não ressuscitaria o filho perdido, o futuro dele e de sua filha estaria protegido para sempre.
Matthias acenou com a cabeça para ele e, então, fechou as pálpebras, preparando-se para o grande nada que estava por vir. Deus, ele ansiava por isso. Sua vida não tinha sido um presente para o mundo ou para ele mesmo e ele estava buscando a não existência.
Enquanto esperava no trecho entre os mundos, quando não se está nem vivo, nem exatamente morto, ele pensou em Alistair na noite em que seu filho havia morrido.
– ...Dan... ny... meu garoto Danny...
Matthias franziu a testa e, então, percebeu que não tinha apenas pensado nas palavras, mas as pronunciou em voz alta.
Foram as mesmas palavras que ele havia balbuciado antes de colocar o pé naquela bomba.
Naquele momento, a luz branca se apossou dele, um produto da dormência... ou talvez tivesse ultrapassado a sensação como se o sentimento fosse uma porta. Após a chegada dessa luz, uma grande e pacífica calma tomou conta de sua mente, corpo e alma como se estivesse limpo de todos os pecados que tinha imaginado ou cometido durante seu tempo na Terra.
A iluminação era muito mais do que qualquer coisa que seus olhos poderiam abranger. Era tudo o que via, tudo o que conhecia, tudo o que era.
O Paraíso realmente existia.
A oh, a adorável inexistência... ah, a felicidade...
Nas extremidades de sua visão, uma névoa cinza surgiu fervilhando, em sua primeira aparição não havia nada distinto, mas, em seguida, as sombras se expandiram em uma escuridão que começou a comer a luz.
Matthias lutou contra a invasão, seus instintos diziam que aquilo não era o que desejava – mas não era uma batalha que ele pudesse vencer.
A neblina tornou-se piche, o envolvia e o reclamava para si, o puxava para baixo em um espiral apertado, apertado... apertado... até que ele foi jogado em um mar com outros.
Quando ele se contorceu contra a maré oculta e asfixiante, ele esbarrou em corpos que se debatiam.
Preso em uma infinidade de óleo negro, ele gritou... junto a todos que estavam ali.
Mas ninguém apareceu. Ninguém se importou. Nada aconteceu.
Sua eternidade, finalmente, tomou posse dele e ela nunca mais o deixaria ir.
CAPÍTULO 50
– Ele está morto.
Quando Isaac pronunciou as palavras, ele se levantou e respirou fundo. Do outro lado, Grier e seu pai estavam envolvidos um ao outro e ele se permitiu um momento para apreciar a visão deles vivos e, enfim, juntos.
Obrigado, Deus, ele pensou – mesmo não sendo um homem religioso.
Obrigado, Deus todo-poderoso.
– Fiquem aqui – disse ele antes de percorrer o local, fechar e trancar a porta dos fundos.
Levou dez minutos para pesquisar e deixar toda a casa em segurança e a última coisa que ele fez foi ir até a porta da frente e verificar mais uma vez se os cadeados estavam devidamente trancados...
Isaac franziu a testa e olhou para o gramado através da janela. Havia um pequeno cachorro lá fora... parado com as pernas atarracadas, com a cabeça inclinada ao olhar para Isaac lá dentro. Que graça... precisava cortar o pelo, mas isso acontece nas melhores famílias.
Isaac abriu a porta e gritou.
– Você mora aqui?
Enquanto aquela cabeça continuava inclinada do outro lado, Isaac procurou pelo jardim da frente e rezou para que Jim Heron surgisse dentre as árvores a qualquer minuto.
Contudo, não havia nada além do cachorro.
– Quer entrar? – ele disse ao animal.
A coisa pareceu sorrir como se tivesse apreciado o convite. Mas, então, ele se virou e afastou-se, um leve mancar o fazia pender para a direita.
Em um piscar de olhos, o animal desapareceu.
Que trilha sonora a dessa maldita noite, Isaac pensou ao fechar a porta de novo.
Assim que entrou na cozinha, Grier se afastou de seu pai num rompante e veio correndo até ele, atingindo seu corpo com força, os braços o envolviam com uma força vital. E com um suspiro de gratidão, ele a segurou, pressionando sua cabeça sobre o peito, sentindo seu coração bater.
– Eu te amo – ela disse contra o colete à prova de balas. – Eu sinto muito. Eu te amo.
Droga, então ele ouviu direito quando estava no chão.
– Eu também te amo. – Erguendo seu rosto, ele a beijou. – Mesmo que eu não a mereça.
– Cale a boca.
Agora era ela quem o beijava e ele mais que a desejava – mas não durou muito. Logo ele interrompeu o contato.
– Ouça, eu quero que você e seu pai façam uma coisa por mim.
– Qualquer coisa.
Ele olhou o relógio. 9h59.
– Volte para a cidade – algum lugar público. Algum dos seus clubes ou algo assim. Eu quero que vocês dois sejam vistos juntos essa noite. Diga às pessoas que vocês foram jantar ou assistiram a um filme no cinema. Uma coisa de pai e filha.
Quando os olhos dela se lançaram sobre o corpo de Matthias, seu pai disse: – Eu posso ajudar.
– Nós podemos ajudar – Grier corrigiu.
Isaac recuou e balançou a cabeça.
– Eu vou cuidar dos corpos. Melhor que nenhum de vocês dois saiba onde eles vão parar. Eu cuido disso – mas têm que ir agora.
Os Childes pareciam dispostos a argumentar, mas ele não tinha nada a dizer.
– Pense nisso. Está tudo acabado. Matthias está morto. Assim como seu segundo no comando. Com eles mortos, as operações extraoficiais vão voltar a ser o que deveriam – e serão administradas pelas pessoas certas. Você está fora. – Ele balançou a cabeça para Childe. – Eu estou fora. A barra está limpa, permitindo com que eu lide com isso de agora em diante. Vamos fazer isso do jeito certo, pela última vez.
Seu pai soltou um palavrão – o que era algo que, sem dúvida, ele não fazia com frequência. E, em seguida, ele disse: – Ele está certo. Deixe-me trocar de roupa.
Quando seu pai desapareceu, Grier olhou para Isaac, seus braços envolveram a si mesma lentamente, seu olhar ficou grave.
– Isso é um adeus entre nós? Hoje à noite? Aqui e agora?
Isaac foi até ela e capturou seu rosto com as mãos, sentindo de maneira muito intensa a realidade da qual não podia escapar e a qual ela não seria capaz de sobreviver.
Com uma dor em seu peito que não tinha qualquer relação com a bala, ele disse uma única e devastadora palavra.
– Sim.
Quando ela cedeu, fechando os olhos com força, ele teve que dizer a verdade: – É melhor assim. Eu não sou seu tipo de homem, mesmo se não tivesse que me preocupar mais com as operações extraoficiais, eu não sou o que você precisa.
Suas pálpebras se abriram e ela o encarou.
– Quantos anos eu tenho? – ela perguntou. – Vamos lá, quantos? Diga!
– Ah... trinta e dois.
– E você sabe o que isso quer dizer, legalmente? Posso beber, posso fumar, posso votar, posso servir o exército e posso tomar minhas próprias decisões. Então, que tal deixar que eu escolha o que é e o que não é bom para mim?
Certo. Não era hora de discussões. E ele realmente achava que ela não tinha pensado nas implicações de estar com um homem com seus antecedentes.
Ele recuou.
– Vá com seu pai. Deixe-me limpar tudo aqui e na cidade.
Seus olhos se fixaram aos dele.
– Não parta meu coração, Isaac Rothe. Não parta meu coração quando você sabe perfeitamente bem que não precisa fazer isso.
Com isso, ela o beijou e saiu da cozinha... e enquanto ele a observava sair, se sentiu sendo direcionado a dois resultados: um onde ele ficava com ela e tentava fazer as coisas darem certo, outro onde ele a deixava para costurar sua vida e seguir em frente.
Ouviu os passos dela e de seu pai no andar de cima enquanto se aprontavam para sair e fingir que não tinham visto dois homens sendo mortos em suas casas e que não estavam rezando para que um soldado a quem eles nunca deveriam ter conhecido desaparecesse com os corpos.
Cristo, e ele sequer considerou estar na vida dela?
Isaac estava sozinho não mais que vinte minutos depois, os dois fizeram uma saída rápida para a cidade com o Mercedes de Childe.
Antes de partirem, Isaac apertou a mão do pai de Grier, mas não ofereceu sua palma a ela – pois ele não confiava que não iria beijá-la uma última vez: olhando para ela em seu vestido preto, com seu cabelo amarrado e maquiada, ela estava como da primeira vez que a viu, uma mulher bonita, bem educada, com os olhos mais inteligentes que ele nunca teve o privilégio de olhar fixamente antes.
– Fique bem – ele disse a ela com voz rouca. – Ligo quando estiver tudo certo para que possam voltar.
Sem lágrimas, sem protestos da parte dela no final. Ela apenas balançou a cabeça uma vez, girou sobre os calcanhares e se dirigiu para o carro do pai.
Quando os dois saíram, ele caminhou até a porta da frente e observou as luzes traseiras do sedã.
Ele teve que secar os olhos. Duas vezes.
E depois que os dois faróis vermelhos desapareceram, ele se sentiu abandonado. Mas aquilo era uma grande besteira, não era? Você não poderia ser abandonado quando se é o único a partir.
Certo?
Procurando algum tipo de contato, algum tipo de esperança, ele olhou ao redor da fileira de árvores do outro lado do gramado mais uma vez. Nenhum sinal de Jim e seus amigos... ou daquele cachorro.
E ele ainda podia jurar que estava sendo observado.
– Jim? Você está aí fora?
Ninguém respondeu. Ninguém saiu da folhagem.
– Jim?
Quando ele voltou para dentro, teve a estranha sensação de que nunca veria Heron novamente. O que era esquisito, pois Jim estava muito entusiasmado para ser um salvador.
Mais uma vez, ele observou o corpo de Matthias estirado no chão, o que significava que Isaac estava em segurança agora – a vida daquele homem acabou servindo para alguma coisa afinal, não é?
Contudo... só para garantir, ele ficou vestido com o colete à prova de balas até o amanhecer.
Não havia razão para não garantir a vida.
CAPÍTULO 51
– Jim? Você está aí fora, Jim?
Quando os olhos de Isaac procuraram pelas árvores, Jim estava a não mais que três passos de distância do cara e desejava poder abraçar o filho da mãe. Deus... quando aqueles tiros explodiram e ele viu pela janela da cozinha quando Matthias e Rothe caíram, anos foram arrancados de sua vida eterna.
Mas Isaac estava bem. Ele se salvou com um pensamento bastante óbvio e defensivo. Assim como foi treinado para fazer.
– Jim?
E agora, ao olhar para seu amigo soldado, uma alegria pura e inalterada o inundava. Ele tinha vencido. Mais uma vez.
Vá se ferrar, Devina, ele pensou. Vá se ferrar!
Isaac estava vivo, assim como Grier e seu pai. E apesar de ir atrás da alma errada no começo, as coisas funcionaram muito bem – embora a coisa de Nigel sobre punição acabou por ser irrelevante, não?
Jim olhou sobre o ombro para Adrian e Eddie e ficou surpreso por eles não estarem todos sorridentes.
– O que há de errado com...?
Ele não teve a chance de terminar a frase. Um turbilhão louco rodopiou sob seus pés, girando em torno dele, levantando-se para reivindicar suas pernas, quadris e peito. Ele tentou lutar, mas não conseguiu fugir...
Suas moléculas se misturaram e se dispersaram até que havia um enxame dentro dele que o fazia sair de suas dimensões de tempo e espaço, ele viajava para algum destino desconhecido. Quando ele se recompôs, sabia exatamente onde estava... e a visão da mesa de trabalho de Devina revirou o seu estômago.
Ele não tinha ganhado. Tinha?
– Não, você não ganhou – ela disse atrás dele.
Girando sobre os calcanhares, ele olhou para ela quando entrou atravessando o arco. Ela estava em sua forma morena, toda linda e exuberante e falsa como uma versão Barbie de si mesma.
Ela sorriu, seus lábios vermelhos ondulavam sobre seus belos dentes brancos.
– Matthias atirou em Isaac com a intenção de matar. Se houve ou não uma morte não importa. Isso significa dolo – uma mente culpada.
Acima de sua cabeça, uma bandeira preta estava pendurada na parede escura, seu primeiro troféu.
– Você perdeu, Jim. – Aquele sorriso ficou ainda maior quando ela levantou os braços e indicou sua grande e viscosa prisão que se erguia acima dos dois. – Ele está aqui agora, meu para sempre.
As mãos de Jim se fecharam para um soco.
– Você trapaceou.
– Trapaceei?
– Você fingiu ser eu, não foi? Foi assim que Matthias entrou na fazenda. Ou você fez com que ele se parecesse comigo ou apareceu como se fosse eu.
Sua satisfação presunçosa era toda a confirmação que ele precisava.
– O que é isso agora, Jim? Eu nunca trapaceei. Então, eu não sei do que está falando. – Devina caminhou até ele, aproximando-se em um sensual deslize. – Diga, você se incomoda de ficar mais um pouco? Eu tenho algumas ideias de como podemos passar o tempo.
Quando ela estava bem na frente dele, suas unhas vermelhas flutuaram sobre seu peito e ela se inclinou.
– Eu amo estar com você, Jim.
Com um forte estrondo, ele capturou o pulso dela e o apertou com força suficiente para quebrá-lo.
– Sei que você adora fazer os outros sofrerem. Mas caso não se lembre, eu resisti às suas torturas.
A vadia teve a coragem de fazer beicinho.
– Você está me machucando.
Ele não acreditou naquilo nem por um segundo.
– E você não vai dizer ou fazer nada.
Agora ela sorria de novo.
– Está certo, Jim, meu amor. Está certo.
Ele soltou dela como se ela o queimasse, o estômago apertou ao reconhecer a luz em seus olhos.
– Isso mesmo, Jim – ela murmurou. – Eu tenho sentimentos por você. E isso o assusta, não é? Com medo de ser recíproco?
– Nem. Um. Pouco.
– Ah, bem, teremos que trabalhar em cima disso.
Antes que ele pudesse detê-la, ela se ergueu e capturou a boca dele, beijando-o rápido e, em seguida, mordendo o lábio inferior com força suficiente para tirar sangue.
Ela recuou rápido, como se soubesse que estava forçando.
– Adeus, por enquanto, Jim. Mas nos veremos em breve. Prometo.
Com nojo, ele limpou a boca com as costas da mão e cuspiu no chão. Estava prestes a levá-la ao chão quando franziu a testa, pensando no que Nigel havia dito no gramado.
Saiba que irá mais longe nesse jogo se usar a cabeça ao invés da raiva.
Agora, era Jim quem sorria – embora severamente. Havia coisas piores do que seu inimigo apaixonado por você: forte como ela era, tão imprevisível e perigosa quanto seus poderes, aquele olhar em seus olhos, aquele olhar em chamas, fora de controle, era uma arma.
Deixando para trás suas emoções, ele se viu descendo a mão e empurrando seu pênis.
A reação de Devina foi instantânea e elétrica. Seu olhar quente se voltou para os quadris dele, a boca dela se abriu como se não conseguisse respirar direito, os seios se erguiam sobre o corpete do vestido.
– Você quer isso? – ele perguntou rispidamente.
Como uma marionete, ela assentiu com a cabeça.
– Não é o suficiente – ele disse a ela, odiando-a, odiando a si mesmo. – Diga isso, vadia. Diga.
Com uma voz rouca e ansiosa, ela sussurrou: – Eu te desejo...
Jim soltou seu membro, sentindo imundo por dentro e por fora. Mas a guerra era feia, não era? Mesmo se você está do lado bom e moral.
Um mal necessário, ele pensou. Seu corpo e a necessidade dela eram um mal necessário e ele os usaria se precisasse.
– Bom – ele rosnou. – Isso é bom.
Com isso, ele desejou que seu corpo se levantasse do chão, dessa vez a energia era convocada por ele e por mais ninguém.
Ao levitar cada vez mais alto, Devina se aproximou dele, seu rosto se contorcia em um tipo de desejo doloroso que dava mais energia a ele.
E, então, ele não estava mais olhando para ela; ele estava examinando as paredes de sua masmorra, em busca da garota que ele odiaria deixar para trás de novo... assim como seu patrão a quem ele tinha tentado salvar e falhado.
Ele voltaria pela moça. Mas seu patrão... temia que Matthias tinha sido colocado para descansar ali por uma eternidade, o seu sofrimento interminável era merecido.
Contudo, Jim lamentava a perda do homem.
Ele queria redimir o cara.
Jim voltou a consciência no gramado do capitão Alistair Childe. E quando ele voltou a pensar em sua primeira missão, parecia que tinha ficado especialista no vai e vem na grama.
Adrian e Eddie estavam um de cada lado dele, os dois anjos graves e sérios.
– Perdemos – disse Jim. Como se eles já não soubessem.
Adrian estendeu a mão e quando Jim se ergueu, o cara o ajudou a colocá-lo em pé.
– Perdemos – Jim murmurou novamente.
Olhando por cima do ombro, ele pensou brevemente em ir até a fazenda e ajudar Isaac a cuidar dos restos de Matthias, mas decidiu ficar onde estava. O soldado já teria um momento difícil suficiente para fazer com que todas as coisas que não poderiam ser explicadas fizessem sentido – mais contato com Jim só daria a ele outra porcaria para pensar.
– Caldwell – disse Jim aos seus amigos. – Vamos voltar a Caldwell.
– Está certo – Eddie murmurou, como se não estivesse nem um pouco surpreso.
E Jim não ia se preocupar com quem seria o próximo no jogo. Como ele aprendeu com essa tarefa em particular, as almas iriam encontrá-lo. Assim, ele poderia muito bem seguir o que seu coração lhe dizia: que já era hora da família Burten encontrar o corpo de sua filha para enterrá-lo de maneira adequada.
Jim era o único anjo que poderia fazer isso acontecer.
Desfraldando suas grandes asas luminescentes, lançou um último olhar através das janelas da cozinha. Isaac Rothe estava trabalhando com uma determinação sombria, lidando com as coisas com a mesma competência, como sempre fez.
Ele ia ficar bem – desde que fosse inteligente o suficiente para ficar com aquela advogada. Deus, quem tem sorte de encontrar um amor assim? Só um idiota desperdiçaria isso.
Jim se dirigiu para o céu noturno como se tivesse nascido para ele, suas asas o carregavam através do ar frio, o vento batia em sua face e dedilhava seus cabelos, sua equipe de dois membros estava bem atrás dele.
Na próxima batalha ele seria mais rápido no gatilho. E usaria sua nova arma contra Devina para sua total vantagem.
Mesmo se isso o matasse.
CAPÍTULO 52
UMA SEMANA DEPOIS...
Ao se despir no closet, Grier pendurou seu terno preto com os outros e achou ser impossível não se lembrar da maneira como estava organizado antes. Os ternos ficavam à esquerda da porta. Agora, eles estavam bem à frente.
Apenas vestida com sua blusa de seda e meias, ela passou as mãos ao redor, tocando as roupas, perguntando-se quais foram penduradas por ela naquela tarde... e quais Isaac havia organizado depois que ela saiu.
Fechando os olhos, ela quis chorar, mas não teve forças.
Não soube de nada mais sobre ele desde aquela noite da limpeza há uma semana – sobre o que, aliás, ele tinha avisado via mensagem de texto ao invés de pessoalmente ou falando ao telefone.
Depois disso? Nada de ligações, e-mails, visitas.
Era como se ele nunca tivesse existido.
E ele não deixou nada para trás. Quando ela voltou àquela casa, o cartão de visitas que Matthias havia dado a ela assim como as faixas de tecido retiradas da regata e a pasta cheia de dossiês haviam desaparecido. Juntamente com os dois corpos e os dois carros em Lincoln.
De maneira insana, ela procurou por um bilhete, assim como havia feito na primeira vez que ele “partiu”, mas não havia nada. E, às vezes, no meio da noite, quando não conseguia dormir, ela levantava para procurar novamente, verificando nos criados mudos ao lado da cama, na cozinha e até mesmo no closet.
Nada.
A única coisa que ela concluía que ele havia deixado para trás era aquele closet organizado. Mas era algo que ela dificilmente colocaria em seu diário e daria uma olhada de tempos em tempos quando se sentisse melancólica.
Durante aqueles sete dias que se passaram, o trabalho a manteve firme, forçando-a a levantar pela manhã quando tudo o que ela queria era puxar os cobertores sobre a cabeça e ficar deitada na cama o dia inteiro: em todas as manhãs, ela se levantou, se vestiu, tomou café e ficou presa no trânsito durante o curto caminho até o Distrito Financeiro, onde os escritórios se encontravam.
Seu pai tinha sido ótimo.
Eles jantaram juntos todas as noites, como se já tivessem esse hábito antes...
A única coisa mais próxima de uma luz no fim do túnel era – apesar daquilo ser apenas um fósforo aceso e não uma fogueira ou coisa assim – que havia persistido na ideia de tirar umas férias. Na próxima semana ela entraria em um avião e iria até...
Grier congelou, uma sensação de cócegas em seu pescoço interrompendo a rotina de angústia.
– Daniel?
Quando não houve resposta, ela soltou um palavrão. Além de procurar por um bilhete inexistente de Isaac, ela esperava ver o fantasma de seu irmão, mas era como se os dois a tivessem abandonado na pior sem dizer adeus.
Virando-se, ela...
– Daniel! – Ela agarrou o peito. – Cristo! Onde diabos você esteve?
Pela primeira vez, seu irmão não estava vestido com suas roupas da Ralph Lauren. Ele estava com uma longa bata branca, parecendo que estava prestes a se formar na faculdade ou algo assim.
Seu sorriso era terno, mas triste.
– Oi, irmãzinha.
– Pensei que havia me abandonado. – Ela quase saiu correndo para abraçá-lo quando percebeu que não ia dar certo: como sempre, a maior parte dele era de ar. – Por que você não...
– Eu vim para dizer adeus.
– Oh. – Seus olhos se fecharam por conta própria e ela respirou fundo. – Era como se eu já esperasse por isso, acho.
Quando ela abriu os olhos novamente, ele estava bem na frente dela e tudo o que pôde pensar foi em como ele parecia bem. Tão relaxado. Tão... curiosamente sábio.
– Você está pronta para isso agora – ele disse a ela. – Você está pronta para seguir em frente.
– Estou? – Ela não tinha certeza. A ideia de não vê-lo de novo a deixou em pânico.
– Sim, você está. Além disso, não é o tipo de coisa permanente. Vai me ver de novo... Mamãe também. Vai levar muito tempo, mas você tem algo pelo que viver agora.
– Certo, tenho a mim mesma. Sem ofensa, mas eu já venho fazendo isso há trinta anos e é meio vazio.
Agora, ele sorria e sua mão brilhante pairou sobre sua barriga.
– Não exatamente.
Quando olhou para si mesma, ela se perguntou sobre o que diabos ele estava falando.
– Eu amo você – seu irmão disse. – E você vai ficar bem. Eu também quero lhe dizer que acho que estava errado.
– Sobre o que?
– Eu pensei que estava preso entre os dois mundos por que você não me deixaria ir. Mas não era isso. Eu era o único que não me permitia partir. Contudo, você vai ficar em ótimas mãos e tudo ficará bem.
– Daniel, do que você está falando...?
– Vou dizer a mamãe que você a ama. E não se preocupe. Sei que me ama também. Diga “oi” para o papai por mim se puder. Diga a ele que estou bem e já o perdoei há muito tempo. – Seu irmão ergueu sua mão fantasmagórica. – Adeus, Grier. E Daniel seria ótimo. Sabe? Se for menino.
Grier recuou quando seu irmão desapareceu no ar.
Na sua ausência, ela ficou ali, parada de maneira idiota, imaginando no que em nome de Deus ele poderia...
Seus pés começaram a se mover sem que ela os ordenasse e, uma fração de segundo depois, ela se encontrava no banheiro. Escancarando a gaveta onde guardava a maquiagem e suas...
Pílulas anticoncepcionais.
Com a mão trêmula, ela pegou o bloco de bolhas quadrado e começou a contar.
Mas não era como se ela não se lembrasse qual havia esquecido... de tomar.
A última pílula que engoliu foi na noite anterior a de Isaac entrar em sua vida. E eles tinham feito amor duas vezes... talvez duas e meia sem proteção.
Grier saiu tropeçando do banheiro e imediatamente percebeu que não tinha para onde ir. Caindo sobre os pés da cama, ela ficou lá sentada na penumbra e olhava para a embalagem enquanto a chuva começava a cair lá fora.
Grávida? Seria possível que ela estivesse... grávida? Ela estava...?
A batida foi tão silenciosa que no começo ela achou ser apenas um efeito de seu coração que batia forte, mas quando aconteceu de novo, ela olhou para a porta francesa no terraço.
Do outro lado do vidro, uma forma enorme se sobressaía e por um segundo ela quase recorreu ao sistema de segurança. Mas, então, ela viu que não era uma arma na mão do homem.
Uma rosa.
Com certeza parecia uma única rosa.
– Isaac – ela gritou.
Explodindo, ela correu para a porta e a abriu com força.
Seu soldado desaparecido estava ali agora na garoa, seu cabelo úmido, a regata preta deixava seus ombros nus sob as gotas.
– Oi – ele disse com uma voz doce. Como se estivesse inseguro com a recepção que teria.
Grier colocou as pílulas atrás de si.
– Olá...
Sua mente girou em um frenesi ao se perguntar se ele tinha vindo para conversar sobre algum problema com a limpeza dos corpos... ou ele estava ali para avisá-la de que alguém estava atrás deles? Mas, então, por que ele traria uma...?
– Não há nada de errado – ele disse, como se talvez ela tivesse pensado em voz alta. – Só estou aqui para lhe dar isso. – Ele ergueu a rosa branca meio desajeitado. – É... ah, algo que os homens fazem. Quando eles... ah...
Quando a voz pareceu abandoná-lo, Grier olhou para as pétalas perfeitas da flor e, ao respirar fundo, ela sentiu o aroma – e, então, percebeu que estava fazendo com que ele ficasse na chuva.
– Deus, onde está minha educação... entre – ela disse. – Você está se molhando.
Quando ela recuou, ele hesitou. E, então, ele colocou a rosa entre os dentes e se abaixou para desfazer o laço das botas de combate.
Grier começou a rir.
Ela não conseguia evitar e não fazia qualquer sentindo, mas não havia como segurar. Ela riu até que precisou voltar e sentar-se no colchão de novo. Ela ria de alegria, confusão e esperança. Ela ria de tudo, desde a rosa perfeita até o momento perfeito... até o timing perfeito.
Até de ele ser um perfeito cavalheiro – ao ponto de não querer sujar o tapete de seu quarto.
Seu irmão estava certo.
Ela ia ficar bem.
Seu soldado estava em casa afinal... e ela ia ficar perfeitamente bem.
Isaac entrou no quarto de Grier de meias e foi cuidadoso ao fechar a porta atrás de si. Tirando a rosa dentre os dentes, ele passou a mão no cabelo e sentiu mais uma vez a sensação de querer ter aparecido em um smoking ou coisa assim.
Mas ele simplesmente não era o tipo de cara que usava smoking.
Ele se aproximou de sua mulher e ficou de joelhos na frente dela, observando-a dar risada e sorrindo um pouco de si mesmo. Ou ela tinha perdido a cabeça ou estava feliz em vê-lo – e ele esperava com todas as forças que fosse a última opção e não se importava que fosse a primeira se ela o deixasse ficar.
Deus, ela estava linda. Com nada além de uma blusa de seda preta e um par de meias finas, era a coisa mais linda que ele já tinha visto...
Quando ela enxugou os olhos, ele percebeu que havia alguma coisa em sua mão e não era uma flor boba. Era uma embalagem cheia de... pílulas?
Foi evidente quando Grier percebeu o que ele estava olhando, pois ela parou de rir e tentou fixar a coisa nas costas.
– Espere – ele disse. – O que é isso?
Ela respirou fundo, como se estivesse se preparando.
– Por que você voltou?
– O que faz com essas pílulas?
– Você primeiro. – Seu olhar estava mortalmente sério. – Você... responde primeiro.
Bem, agora, ele se sentia como um tolo, mas, novamente, apesar de tudo se justificar no amor e na guerra, não havia lugar para o orgulho de um homem naquela confusão, havia?
– Eu vim para ficar, se você permitir. Passei a última semana... cuidando das coisas. – Não havia motivos para detalhar isso e ele ficou aliviado por ela não perguntar. – E eu tive que pensar um pouco. Eu quero entrar na legalidade. Como você disse, não se pode mudar o passado, mas posso fazer alguma coisa quanto ao futuro. Meu tempo nas operações extraoficiais... vou ter que carregar esse fardo comigo pelo resto da minha vida – mas, e sei que isso vai soar mal, sou um assassino com a consciência tranquila. Não sei se isso faz sentido...
Porém, a questão de haver uma anotação em seu dossiê “Precisa de uma motivação moral” não era apenas fachada – e aquela era a única razão pela qual ele conseguiria viver sem se entregar à prisão ou à cadeira elétrica.
Ele limpou a garganta.
– Quero ir a julgamento pelas lutas clandestinas... talvez se eu concordar em cooperar, posso conseguir uma sentença reduzida, fiança ou algo assim. E, depois, quero conseguir um emprego. Talvez na área de segurança ou...
Ele gostaria de entrar para a equipe de Jim Heron, mas com Matthias morto talvez aqueles três tivessem se separado – contudo, ele nunca saberia. Se Jim não tinha vindo procurá-lo até agora, ele nunca mais iria.
– Acho que estou grávida.
Isaac congelou. Depois, piscou os olhos.
Hum, ele pensou. Considerando o zumbido em seus ouvidos, parecia que alguém tinha atingido sua nuca com um golpe.
O que não só explicava o barulho como também a súbita tontura.
– Desculpe... O que você falou?
Ela ergueu as pílulas.
– Eu me esqueci de tomá-las. Com todo aquele drama, eu simplesmente... não fiz isso.
Isaac esperou para ver se a sensação de “certo, eu fui atingido” voltava e, como pode imaginar, sim, ela voltou com tudo.
Porém, não durou muito. Uma alegria devastadora derrotou suas hesitações e, antes que se desse conta, ele saltou sobre Grier a derrubando no colchão em um abraço de esmagar os ossos. E isso, imediatamente, o deixou apavorado.
– Oh, Deus, eu machuquei você?
– Não – ela disse, sorrindo e o beijando. – Não, estou bem.
– Tem certeza?
Ela lançou um olhar estranho e distante em direção ao dele.
– Sim, estou bem mesmo. Podemos chamá-lo de Daniel se for menino?
– Podemos chamá-lo de tudo. Daniel. Fred. Susie seria complicado, mas eu aceito.
Não havia mais nada a dizer depois disso. Ele estava muito ocupado a despindo e, então, eles ficaram nus e...
– Caramba... – Ele gemeu ao entrar nela, sentindo seu forte abraço e encantado com aquela pressão quente e escorregadia. – Desculpe... eu não quis... reclamar...
Oh, o movimento, o glorioso movimento.
Oh, o glorioso futuro.
Ele estava livre enfim. E, graças à ela, Isaac saiu da tempestade, literalmente.
– Eu amo você, Isaac – ela arfou contra sua garganta. – Mas quero mais intenso... preciso de você mais forte...
– Sim, senhora – ele rosnou. – Qualquer coisa que a moça quiser.
E, em seguida, ele começou a dar-lhe tudo o que tinha... tudo o que era e tudo o que seria.
J. R. Ward
O melhor da literatura para todos os gostos e idades