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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Desenterrando o Passado / Agatha Christie
Desenterrando o Passado / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Desenterrando o Passado

                       

Dentro de poucas semanas estaremos partindo para a Síria!

Fazer compras para um clima quente no outono ou no inverno apresenta certas dificuldades. As roupas do verão passado, que, otimisticamente, a gente pensou que iam “dar”, agora que a hora chegou, “não dão”. Por um lado parecem estar (como as deprimentes relações de móveis em mudanças) “Machucadas, Arranhadas e Marcadas”. (E também Encolhidas, Desbotadas, e Estranhas!) Por outro lado — que lástima alguém ter que dizer isso! — estão apertadas por todos os lados.

Assim — para as compras e lojas, e:

“É claro, Madame, que no momento, ninguém está querendo este tipo de coisas! Nós temos alguns conjuntos lindos aqui — 46/48 em cores escuras.”

Ah, detestável 46/48! Que humilhante ser 46/48! E que humilhação maior ainda ser reconhecida imediatamente como 46/48!

(Se bem que haja dias melhores, quando, enrolada num longo manteau preto com gola de peles, uma vendedora diz animadoramente:

“Mas é claro que a Madame está só grávida?”)

Olho para os conjuntinhos lindos com suas aplicações inesperadas de pele e suas saias forradas. Explico desanimada que o que eu quero é alguma coisa de seda ou algodão bem lavável.

“A Madame pode tentar o Nosso Departamento de Cruzei­ros Marítimos”.

Madame experimenta o Nosso Departamento de Cruzeiros — mas sem nenhuma esperança exagerada. Cruzeiros ainda estão envolvidos na aura da fantasia romântica, têm um certo to­que mitológico. São garotas que fazem cruzeiros — garotas que são magras e jovens, e usam calças de linho que não amarrotam, larguíssimas nos pés e estreitíssimas nos quadris. São garotas que vivem maravilhosamente em roupas esporte. São garotas para quem existem estoques com dezoito variedades diferentes de shorts!

A maravilhosa criatura do Nosso Departamento de Cruzei­ros não é lá muito solidária.

— Oh, não, Madame, nós não temos tamanhos grandes. (Que horror! Tamanhos Grandes e Cruzeiros? Onde está o romance nessa história?)

Ela acrescenta:

— Dificilmente cairia bem, não é?

Eu concordo tristemente que não cairia bem.

Mas ainda há uma esperança. Há o Nosso Departamento Tropical.

O Nosso Departamento Tropical consiste principalmente de sombreros — sombreros marrons, sombreros brancos, sombreros de couro especial. Um pouco de lado, como se fossem ligeira­mente frívolos, sombreros duplos, florescendo em rosas, e azuis e amarelos como cachos de estranhas flores tropicais. Há também um cavalo de madeira imenso e um sortimento de roupas de montaria.

Mas — sim — há outras coisas também. Aqui há vestimentas convenientes para as esposas de Construtores-do-Império. Saias e blusas de Shantung! Shantung cortado de uma maneira sóbria — nada de fantasias de garotas por aqui — o volume é tão bem acomodado quanto a magreza. Eu vou para um cubículo com vá­rios estilos e tamanhos. E alguns minutos depois estou transfor­mada numa Memsahib! Eu tenho certos preconceitos — mas abafo-os. Afinal, é fresco e prático, e eu posso vestir.

Volto minha atenção para a escolha do tipo certo de chapéu. O tipo certo de chapéu não existindo por estes dias, eu vou ter que mandar fazê-lo de encomenda. Mas isto não é tão fácil como parece.

O que eu quero, — e pretendo ter, e o que certamente eu não terei, é um chapéu de feltro de proporções razoáveis que en­tre na minha cabeça. É o tipo de chapéu que era usado há uns vinte anos atrás para levar o cachorro para dar uma voltinha ou jogar uma partida de golfe. Agora, infelizmente, existem apenas as coisas que a gente ajeita na cabeça — em cima de um olho, uma orelha, ou na base do pescoço — como dita a moda — ou os sombreros, medindo, pelo menos, um metro de lado a lado.

Explico que quero um chapéu que entre na cabeça como um sombrero, com um quarto do seu diâmetro.

— Mas eles são feitos com essa largura para proteger bem do sol, Madame.

— É, mas para onde eu vou quase sempre venta terrivelmente, e um chapéu com esse tipo de abas não ficaria na cabeça da gente um minuto.

— Nós podemos colocar um elástico para a Madame.

— Eu quero um chapéu com abas do tamanho das deste que eu estou usando.

— Ah, claro, Madame, um chapéu bem achatado, ficaria muito bem.

— Não é um chapéu achatado que eu quero! O chapéu tem que Ficar Na Cabeça!

Vitória! Nós escolhemos a cor — um destes novos tons com nomes bonitos: Poeira, Ferrugem, Lama, Terra, Sujo, etc...

Algumas compras menores — compras que, instintivamen­te, sei que, ou vão ser inúteis, ou vão me dar um bocado de traba­lho. Uma maleta de viagem fechada com um zíper, por exemplo. A vida, hoje em dia, é dominada e complicada pelo cruel zíper. Blusas fecham com zíperes, saias abrem com zíperes, roupas de esqui abrem e fecham com zíperes por todos os lados. “Vestidinhos de bater” têm pedaços de zíper completamente desnecessá­rios, pregados só para distrair.

Por quê? Há alguma coisa mais terrível do que um Zíper que resolve implicar conosco? Ele nos envolve num tormento muito maior do que qualquer botão comum, fecho, colchete ou pres­são.

Nos primórdios da era do Zíper, minha mãe, deliciada com a novidade, mandou fazer um par de cintas que fechavam com zíper. Os resultados foram infelizes ao extremo. Não só fechar era uma agonia, mas as cintas, depois, se recusavam obstinada­mente a abrir! A sua remoção era, praticamente, uma operação cirúrgica! E devido à encantadora modéstia vitoriana de minha mãe, pareceu possível, durante uns tempos, que ela fosse viver com estas cintas o resto de sua vida — uma espécie moderna de Mulher da Cinta de Ferro!

Portanto, eu sempre encarei os zíperes de uma maneira meio desconfiada. Mas parece que todas as maletas têm zíperes!

— O fecho antigo está bastante superado, Madame — diz o vendedor, olhando-me com um ar penalizado. — Isso, a senhora vê, é tão simples — ele diz, demonstrando.

Não há dúvidas a respeito da simplicidade — mas acontece, penso cá comigo, que a mala está vazia.

— Bem, — digo suspirando — a gente tem que andar com os tempos.

Com alguma apreensão, acabo comprando a maleta.

Agora, sou a feliz possuidora de uma maleta de viagem de zíper, um casaco e uma saia de Esposa de Construtor-do-Império e um chapéu quase satisfatório.

Ainda há muita coisa a ser feita.

Passo no Departamento de Papelaria. Compro várias cane­tas — já tendo descoberto que, se bem que uma caneta-tinteiro se porte de maneira exemplar na Inglaterra, no momento em que se acha em redondezas desérticas descobre que está em liberda­de para fazer greve, e se porta de acordo, ou derramando tinta indiscriminadamente em mim, nas minhas roupas, meu caderno ou qualquer coisa à mão, ou se recusando, terminantemente, a fazer outra coisa qualquer além de rabiscar de maneira invisível no papel. Comprei também dois modestos lápis. Lápis, felizmen­te, não são temperamentais, e, apesar de dados a desaparecer sem dizer água vai, eu sempre tenho uma porção à mão. Afinal, qual é a utilidade de um arquiteto, senão emprestar lápis?

Quatro relógios de pulso são a próxima compra. O deserto não faz bem aos relógios. Depois de algumas semanas por lá, o relógio da gente desiste do trabalho continue de todos os dias. Tempo, diz, é só uma maneira de pensar. Então, trata de escolher entre parar oito ou nove vezes durante o dia por períodos de vin­te minutos, ou disparar indiscriminadamente. Às vezes, alterna com timidez as duas coisas. Finalmente, pára de todo. Então a gente passa para o relógio n° 2, e assim por diante. Há também a compra de inúmeros outros relógios sobressalentes para o momento quando o meu marido dirá: “Me empresta um relógio para dar ao chefe da turma, sim?”.

Nossos capatazes árabes, por melhores que sejam, têm o que se poderia descrever como uma mão pesada com qualquer tipo de relógio. Dizer as horas, de qualquer maneira, exige uma boa dose de esforço mental da parte deles. Eles podem ser vistos se­gurando um enorme e redondo relógio de cabeça para baixo, com a maior boa-fé, olhando para ele com uma concentração realmente dolorosa enquanto dão a resposta errada! Sua maneira de dar corda a estes tesouros é enérgica, e tão completa que pou­cos mecanismos conseguem suportar a tensão!

Assim, acontece que pelo fim da estação, os relógios do staff da expedição foram sacrificados um por um. Os meus inúmeros relógios são uma maneira de adiar o malfadado dia.

 

Fazer as malas!

Existem diversas escolas de pensamento quanto a fazer as malas. Há pessoas que começam a empacotar em qualquer tem­po entre uma semana e um dia antes. Há as que amontoam algu­mas coisas meia hora antes da partida. Há os empacotadores cuidadosos, insaciáveis de papel de seda! Há os que desprezam o papel de seda, juntam tudo, e esperam pelo melhor. Há os empacotadores que acabam deixando praticamente tudo o que eles querem para trás! E há os que levam imensas quantidades de coi­sas de que jamais irão precisar!

Uma coisa pode-se dizer com segurança a respeito das malas de um arqueólogo: elas consistem principalmente de livros. Que livros levar, que livros podem ser levados, para quantos livros há espaço, que livros podem (com que agonia!) ser deixados para trás. Estou firmemente convencida de que todos os arqueólogos empacotam da seguinte maneira: eles decidem qual o maior número de malas que uma traquejada companhia ferroviária os dei­xará carregar. Depois, enchem estas malas até o topo com livros. No fim, com relutância, retiram alguns livros e enchem o espaço obtido com camisas, pijamas, meias, etc.

Olhando para o quarto de Max, tenho a impressão de que todo o espaço cúbico está cheio de livros. Através de uma fresta entre os livros, consigo vislumbrar o seu rosto preocupado.

— Você acha que eu vou conseguir espaço para todos estes? — pergunta ele.

A resposta é tão obviamente negativa que parece pura crueldade dizê-la.

Às quatro e meia ele aparece no meu quarto e pergunta esperançoso:

— Há algum espaço nas suas malas?

A longa experiência deveria ter me ensinado a responder “não” firmemente, mas eu hesito, e imediatamente estou condenada.

— Se você pudesse guardar uma ou duas coisas...

— Não serão livros?

Max parece vagamente surpreso e diz: “Claro que são li­vros... o que mais poderia ser?”

Avançando, ele empilha dois volumes enormes sobre a rou­pa de Esposa de Construtor-do-Império elegantemente deitada numa das malas.

Tento protestar, mas é muito tarde.

— Bobagem, — diz Max — montes de espaço! E força a tampa, que se recusa terminantemente a fechar.

— Na verdade, nem agora está completamente cheio, — diz Max otimista.

Felizmente, nesse momento a sua atenção é atraída para um vestido de linho estampado que está em outra mala. “O que é isso?”

Eu respondo que é um vestido.

— Interessante — diz Max. — Tem motivos de fertilidade em toda a frente.

Uma das coisas mais desconfortáveis em se ser casada com um arqueólogo é o seu conhecimento especializado da origem dos estampados mais inofensivos.

Às cinco e meia, Max observa, negligentemente, que ele deveria sair e comprar algumas camisas e meias e coisas. Volta quinze minutos depois, indignado porque todas as lojas fecharam às seis. Quando eu digo que elas sempre fecham a essa hora, responde que nunca tinha reparado antes.

Agora, ele diz, a única coisa que tem a fazer é “arrumar seus papéis”.

Às onze da noite vou dormir, deixando Max na sua escrivaninha (que jamais deve ser limpa ou espanada, sob as mais severas penalidades) enterrado até os cotovelos em cartas, contas, panfletos, desenhos de potes, inumeráveis cacos, e diversas cai­xas de fósforos, nenhuma delas com fósforos, mas cheias de es­tranhas miçangas antiqüíssimas.

Às quatro e meia, ele entra excitado no quarto, xícara de chá na mão, para anunciar que finalmente encontrou aquele arti­go tão interessante sobre as descobertas anatólicas que ele per­dera em julho passado. Acrescenta que espera não ter me acor­dado.

Eu digo que é claro que ele não me acordou, e que será melhor que ele me traga também uma xícara de chá.

Voltando com o chá, Max diz que também encontrou muitas contas que pensava já ter pago. Eu também já passei por esta experiência. Concordamos que é deprimente.

Às nove da manhã, sou convocada como peso-pesado para sentar nas abarrotadas malas de Max.

— Se você não conseguir que elas fechem, — diz ele nada galante — ninguém consegue!

O feito sobre-humano é realizado, finalmente, com a ajuda de simples avoirdupois, e eu volto para lidar com a minha própria dificuldade, que é, como a visão profética me havia dito, a mala com zíper. Vazia na loja de Mr. Gooch, parecia simples, atraen­te, economizadora de trabalho. Como o zíper corria alegremente para cá e para lá, então! Agora, cheia até as bordas, fechá-la é um milagre de ajustamento sobre-humano. As duas pontas têm que ser unidas com uma precisão matemática, e então, exata­mente quando o zíper está andando vagarosamente, aparecem as complicações, graças à ponta de um saco com artigos de higiene pessoal. Quando fecha finalmente, eu juro não abri-la até chegarmos na Síria.

Refletindo melhor, porém, isso é quase impossível. Que fa­zer com o saco já mencionado? Será que eu vou viajar durante cinco dias sem me lavar? Mas no momento, mesmo isso me pare­ce melhor do que abrir a mala!

Sim, chegou o momento, e nós estamos realmente partindo. Quantidades de coisas importantes foram deixadas por fazer: a lavandaria, como sempre, falhou; os tintureiros, para tristeza de Max, não cumpriram as suas promessas... mas o que importa? Nós estamos indo!

Por um momento ou dois parecia que não iríamos: as malas de Max, de aparência traiçoeira, estão além das forças do chofer, que não conseguiu levantá-las. Ele e Max lutaram com elas, e, finalmente, com a ajuda de um transeunte, eis-nos dentro do táxi.

Vamos para Victoria.

Querida Victoria — portão para o mundo para lá da Inglaterra — como eu gosto da sua plataforma continental! E como eu gosto de trens, de qualquer maneira! Sorvendo em êxtase o chei­ro sulfuroso — tão diferente daquele, leve, amorfo e distantemente oleoso de um navio, que sempre me deprime com a sua profecia de nauseosos dias por vir. Mas um trem — grande, baru­lhento, apressado e amistoso, com sua enorme locomotiva fumacenta soltando nuvens de fumaça, que parece dizer, impaciente­mente: “Eu tenho que ir, eu tenho que ir, eu tenho que ir!” — é um amigo! Está no mesmo estado de espírito que você, já que vo­cê também está dizendo: “Eu estou indo, estou indo, estou in­do...”

Na porta do nosso Pullman, amigos estão esperando para se despedir com as mesmas idióticas conversas de sempre. Ultimas palavras famosas brotam dos meus lábios — instruções sobre cachorros, sobre crianças, sobre cartas que devem ser enviadas, sobre livros que devem ser expedidos, sobre coisas esquecidas, “e acho que você vai encontrá-lo no piano, mas pode ser que este­ja na prateleira do banheiro”. Todas estas coisas já foram ditas antes, e, de maneira alguma, precisam ser ditas de novo.

Max está rodeado dos seus parentes, eu, dos meus.

Minha irmã diz, chorosa, que está com o pressentimento de que nunca mais vai me ver de novo. Eu não fico muito impressionada, porque ela costuma ter este mesmo pressentimento todas as vezes que eu viajo para o Oriente. E o que, ela pergunta, vai fazer se Rosalind tiver apendicite? Não parece haver razão algu­ma pela qual minha filha de quatorze anos possa ter apendicite, e tudo o que eu consigo me lembrar de responder é: “Sobretudo, não se lembre de operá-la você mesma!” Pois a minha irmã tem uma grande reputação por sua habilidade em manejar tesouras, atacando imparcialmente furúnculos, cortes de cabelo, costuras — geralmente, eu tenho que admitir, com grande sucesso.

Max e eu trocamos de parentes, e minha querida sogra insiste em que eu me cuide muito bem, dando a entender que estou altruisticamente correndo um grande risco de vida.

Apitos soam, e troco algumas últimas e apressadas palavras com a minha amiga e secretária. Será que ela vai fazer todas as coisas que eu deixei de fazer, e repreender devidamente a Lavandaria e os Tintureiros, e dar uma boa referência à cozinheira, e mandar todos os livros que eu não pude empacotar, e recuperar o meu guarda-chuva na Scotland Yard, e escrever corretamente ao pastor que descobriu quarenta e três erros gramaticais no meu último livro, e dar uma olhada na lista de sementes para o jardi­neiro, e riscar fora abóboras e cenouras? Sim, ela vai fazer tudo isso, e se ocorrer alguma crise no Lar ou no Mundo Literário ela vai me telegrafar. Não tem problema, eu digo. Ela pode fazer o que quiser, tem todos os poderes necessários. Ela parece um pouco assustada e diz que vai tomar o maior cuidado. Outro api­to! Digo adeus à minha irmã, e digo desesperadamente que eu, também, estou com um pressentimento de que nunca mais vou vê-la, e que talvez Rosalind venha a ter mesmo apendicite. Que bobagem, diz minha irmã; por que ela teria? Nós subimos no Pullman, o trem ruge e começa a andar — partimos.

Por cerca de quarenta e cinco segundos eu me sinto muito mal, mas quando a Estação Victoria é deixada para trás, a alegria reaparece novamente. Começamos a viagem encantadora e excitante para a Síria.

Há algo de grandioso e arrogante num Pullman, apesar de ele não ser nem tão confortável quanto um canto de um vagão comum de primeira classe. Sempre vamos de Pullman por causa das malas de Max, que um vagão comum não aceitaria. Tendo perdido uma vez malas que viajaram separado, Max não se arris­ca com seus preciosos livros.

Chegamos a Dover, para encontrar o mar relativamente calmo. Mesmo assim, me retiro para o Salon des Dames, e deito e medito com o pessimismo que sempre me desperta o movimento das ondas. Mas logo chegamos a Calais, e o comissário francês arranja um imenso homem de camisa azul para tomar conta da minha bagagem. “Madame o encontrará na Douane”, ele diz.

— Qual é o número dele? — pergunto. O comissário assu­me um ar reprovador.

— Madame! Mais c’est le Charpentier du bateau!

Fico devidamente constrangida — para chegar à conclusão alguns minutos depois de que aquela não fora realmente uma resposta. Ora, pelo fato de ele ser o Charpentier du bateau, não será mais fácil identificá-lo entre centenas de outros homens de cami­sa azul, todos gritando “Quatre-vingt treize?”, etc. O seu mero si­lêncio não vai me bastar para identificá-lo. Além disso, será que o fato de ser Charpentier du bateau vai lhe permitir identificar, com toda a certeza, uma senhora inglesa de meia-idade numa verdadeira multidão de senhoras inglesas de meia-idade?

Nesta altura das minhas reflexões Max reúne-se a mim, e diz que tem um carregador para as minhas malas. Eu explico que o Charpentier du bateau já levou a minha bagagem, e Max me pergunta por que eu deixei. Toda a bagagem deveria ir junta. Eu concordo, mas justifico dizendo que o meu intelecto sempre fica enfraquecido por viagens marítimas. Max diz: “Deixa para lá; nós vamos juntá-la toda na Douane”. E nós penetramos naquele inferno de carregadores aos berros, partindo para o inevitável encontro com o único tipo de francesa realmente desagradável — a Mulher-da-Alfândega, um ser despido de charme, de chic, de qualquer graça feminina. Ela olha, mexe, remexe, diz “Pas de cigarettes?” com um ar de dúvida, e, finalmente, resmungando com relutância, rabisca com giz os místicos hieróglifos na nossa bagagem, e nós atravessamos a fronteira, vamos para a plataforma, para o Simplon Orient Express e para a viagem através da Europa.

Há muitos, muitos anos atrás, quando eu ia para a Riviera ou para Paris, costumava ficar fascinada pela visão do Orient Express em Calais, e desejava ardentemente viajar nele. Agora, ele já se tornou um amigo velho e familiar, mas a emoção não mor­reu de todo. Eu vou nele! Eu estou nele! Estou precisamente no carro azul, com uma simples legenda do lado de fora: CALAIS-ISTAMBUL. É, sem dúvida, o meu trem favorito. Gosto do seu tempo, que, começando allegro con furore, vibrando, e choca­lhando e movendo-se rapidamente de uma ponta a outra na sua louca pressa de deixar Calais e o Ocidente, esmorece aos poucos num rallentando enquanto se dirige para o Oriente, até tornar-se definitivamente legato.

Bem cedo de manhã no dia seguinte levanto a cortina, e observo os pálidos contornos das montanhas na Suíça, depois a des­cida às planícies italianas, passando pela linda Stresa com seu lago azul. Depois, mais tarde, entramos na pequena estação que é tudo que vemos de Veneza, saímos de novo, percorrendo o lito­ral, para Trieste e para a Iugoslávia. A velocidade diminui cada vez mais, as paradas são mais demoradas, os relógios das esta­ções mostram horários conflitantes. Os nomes das estações são escritos em letras excitantes e incríveis. As locomotivas são gordas, de ar confortável, e desprendem uma fumaça particularmen­te preta e sinistra. As contas nos carros-restaurantes vêm marca­das em misteriosas moedas, e garrafas de estranhas águas mine­rais começam a aparecer. Um pequeno francês que está sentado à nossa frente na mesa estuda a sua conta em silêncio por alguns minutos, depois ergue a cabeça e capta o olhar de Max. Sua voz, carregada de emoção, levanta-se queixosa: “Le change des Wagons Lits, c’est incroyable!” Do outro lado da cabina um homem escuro, de nariz adunco, pede que lhe digam o total da sua conta em (a) francos, (b) liras, (c) dinares, (d) libras turcas, (e) dólares. Quando isso é feito finalmente pelo garçom torturado, o viajante calcula em silêncio, e, sendo evidentemente um magnífico cé­rebro financeiro, produz a moeda mais vantajosa para seu bolso. Por este método, ele nos explica, economizou cinco pence em moeda inglesa!

Pela manhã, funcionários da Alfândega turca aparecem no trem. Eles estão cômoda e profundamente interessados na nossa bagagem. Por que, perguntam, eu tenho tantos pares de sapatos? É muita coisa para uma pessoa só. Mas argumento que, como não tenho cigarros, porque não fumo, posso muito bem ter al­guns pares de sapatos a mais, não é? O funcionário aceita a expli­cação. Parece-lhe bem razoável. E pergunta o que é este pó bran­co dentro desta caixinha.

Digo que é pó para os insetos; mas vejo que não fui compreendida. Ele sacode a cabeça, cheio de suspeitas. Evidentemente, está me tomando por contrabandista de drogas. Em tom de censura, comenta que não é pó nem para os dentes, nem para o rosto: para que é, então? Vivida pantomima de minha parte! Coço-me realisticamente, pego a caixinha, espalho um pouco de pó pela madeira. Ah, está tudo explicado! Ele joga a cabeça para trás, e dá uma boa gargalhada, repetindo uma palavra turca. É para eles, o pó! Repete a piada para um colega, e ambos seguem adiante, divertindo-se muito. Aparece o condutor do Wagon Lit, para nos dar instruções. Virão com os nossos passaportes e per­guntarão quanto dinheiro nós temos, “effectif, vous comprenez?” Eu adoro a palavra effectif — descreve tão exatamente quanto a gente tem, de fato. “Vocês terão exatamente tanto effectif, diz o condutor, indicando uma certa quantia. Max diz que nós temos muito mais. “Não importa. Confessar isto vai lhes causar aborre­cimentos. O senhor dirá que o resto está em vales, ou traveller’s cheques, e que de effectif tem tanto”. E acrescenta, explicando: “Na verdade, eles não se importam com quanto o senhor tem, compreende? O problema é que a resposta tem que estar en rè­gle”.

Oportunamente, aparece o cavalheiro encarregado das perguntas financeiras. Anota a nossa resposta antes mesmo que a gente a diga. Tudo está en règle. E agora estamos chegando a Istambul, serpenteando através de estranhas casas de madeira, captando de relance pesados bastiões de pedra e detalhes do mar, à nossa direita. Uma cidade enlouquecedora, Istambul — já que quando você se encontra nela, não a vê! Só quando você dei­xa o lado europeu e está atravessando o Bósforo para a costa asiática é que você realmente vê Istambul. É muito bonita nesta manhã — uma clara, pálida e brilhante manhã, sem névoa, e as mesquitas com seus minaretes erguendo-se contra o céu.

“La Sainte Sophie é muito interessante”, diz um cavalheiro francês.

Todo mundo concorda, com a lamentável exceção de mim mesma. Eu, alas, nunca admirei Santa Sofia! Uma infeliz falta de gosto; mas aí está. Sempre me pareceu decididamente de tama­nho errado. Envergonhada de minhas idéias pervertidas, fico em silêncio.

Agora, o trem que espera em Haidar Pacha, e, quando, finalmente ele parte, café da manhã — um café da manhã que se de­seja, a esta altura, vorazmente. Depois, uma encantadora viagem de um dia pela volteante costa do mar de Mármara, com ilhotas esparramadas que parecem opacas e maravilhosas. Penso pela centésima vez que gostaria de ter uma destas ilhas. É estranho se desejar uma ilha para si só! A maioria das pessoas sente este de­sejo mais cedo ou mais tarde. Simboliza, na nossa mente, liberdade, solidão, nenhuma preocupação. No entanto, na realidade, eu acho que não significaria liberdade, mas prisão. Sem dúvida todo o trabalho e os cuidados com a casa dependeriam inteiramente do continente. A gente passaria todo o tempo escrevendo inter­mináveis listas de compras para as lojas, pensando na carne e no pão, fazendo tudo, já que poucos empregados gostariam de mo­rar numa ilha longe de cinemas e amigos, sem ao menos uma li­nha de ônibus que os levasse de encontro aos seus semelhantes. Uma ilha dos mares do sul, sim, é que eu imagino que seria dife­rente. Lá a gente se sentaria preguiçosamente comendo as me­lhores frutas, dispensando pratos, facas, garfos, limpeza e proble­mas de gordura na pia! Mas na verdade, os únicos habitantes de ilhas dos mares do sul que eu jamais vi fazerem uma refeição es­tavam comendo pratos de carne quente, nadando em gordura, colocados numa toalha de mesa imunda.

Não; uma ilha é, e deve ser, uma ilha de sonho! Nesta ilha não é preciso varrer, nem espanar, nem fazer as camas, nem la­var a roupa, nem limpar, não há gordura, problemas de comidas, listas para a mercearia, não é preciso trocar as lâmpadas, descascar as batatas, não há sujeira. Na ilha de sonho há areia branca e mar azul — e uma casa de contos de fadas, talvez, construída en­tre o crepúsculo e a madrugada; a macieira, o cantar, e o ou­ro...

Neste ponto das minhas reflexões Max me pergunta em que estou pensando. Digo, simplesmente, “Paraíso!”

Max diz: — Ah, espere até ver Jaghjagha!

Eu pergunto se é muito bonito; e Max diz que não faz a mínima idéia, mas é uma parte notável do mundo e ninguém a conhece bastante!

O trem embarafusta por uma ravina, e deixamos o mar para trás.

Na manhã seguinte chegamos aos Portões Cilícios, e contemplamos uma das vistas mais bonitas que conheço. É como es­tar na beira do mundo e olhar lá de cima a Terra Prometida, e a gente se sente mais ou menos como Moisés deve ter se sentido. Pois aqui, também, não há entrada... A brumosa e macia maravilha azul-escuro é uma terra que jamais atingiremos; as verda­deiras cidades e povoados, quando chegarmos lá, serão apenas o mundo comum de todos os dias — e não essa beleza encantada que nos envolve completamente ...

O trem apita. Voltamos aos nossos compartimentos.

Para Alep. E de Alep a Beirute, onde o nosso arquiteto deve nos encontrar e onde as coisas vão começar a tomar corpo, para a nossa primeira inspeção do Habur e da região de Jaghjagha, que nos levará à escolha de um terreno propício à escavação.

Pois isso, como diz Mrs. Beeton, é o começo de tudo. Primeiro, agarre sua lebre, diz aquela estimável senhora.

Portanto, no nosso caso, primeiro encontre seu terreno. E é isso que estamos decididos a fazer.

 

UMA VIAGEM DE INSPEÇÃO

Beirute! Mar azul, uma baía curvilínea, um longo litoral de difusas montanhas azuis. Essa é a vista do terraço do Grande Hotel. Do meu quarto, que tem vista para a terra, vejo um jardim de flores vermelhas. O quarto é alto, caiado, parecendo-se um pou­co com uma prisão. Uma pia moderna, com todas as torneiras e ralos, dá uma nota chocantemente moderna. Sobre a pia, um grande tanque quadrado com uma tampa. Dentro, está cheio de uma água velha, parada, ligada apenas à torneira de água fria!

A chegada dos encanamentos ao Oriente é cheia de armadilhas. Quantas vezes a torneira de água fria produz água quente, e a de água quente, água fria! E como eu me lembro bem de um banho num recém-equipado banheiro “ocidental” onde um inti­midador sistema de água quente produzia uma água escaldante em terríveis quantidades, não se obtinha água fria, a torneira da água quente não queria fechar e a porta do banheiro não se abria!

Enquanto eu contemplo as flores vermelhas com prazer e as facilidades de banho com desgosto, ouço uma batida na porta. Um pequeno, atarracado armênio aparece, sorrindo de uma ma­neira estranha. Abre a boca, aponta a sua garganta com um de­do, e exclama, encorajadoramente: “Manger!”

Por este simples expediente, mostra claramente à menor das inteligências que o almoço está servido no refeitório.

Lá encontro Max à minha espera, e nosso novo arquiteto, Mac, que eu ainda mal conheço. Dentro de alguns dias, vamos partir para uma excursão de três meses para examinar o país procurando terrenos convenientes. Conosco, como guia, filósofo, e amigo, deve ir Hamoudi, por muitos anos capataz em Ur, um velho amigo de meu marido, e que deve ficar com a gente entre as estações, nesses meses de outono.

Mac levanta e me saúda polidamente, e sentamos para uma refeição muito boa, se bem que meio gordurosa. Eu faço alguns comentários supostamente amigáveis a Mac, que os bloqueia terminantemente respondendo: “Ah, sim?” “É mesmo?” “Realmente?”

Fico algo desanimada. Assalta-me a desagradável convicção de que o nosso jovem arquiteto vai se revelar uma dessas pessoas que, de tempos em tempos, conseguem me tornar completa­mente imbecil de tanta timidez. Graças a Deus já deixei para trás há muito tempo os dias em que era tímida com todo mundo. Com a meia-idade, consegui atingir certo grau de equilíbrio e de savoir-faire. Volta e meia me congratulo que toda aquela boba­gem já acabou. “Consegui superar tudo aquilo”, digo, satisfeita, de mim para mim. E basta que eu pense nisso para que logo apa­reça algum indivíduo inesperado que me reduz, novamente, à idiotice nervosa.

Não adianta que eu me diga que o jovem Mac é, provavelmente, extremamente tímido ele mesmo, e que é a sua própria ti­midez que produz a sua armadura defensiva. Persiste o fato de que, ante a sua maneira fria e superior, suas sobrancelhas gentil­mente arqueadas e seu ar de polida atenção a palavras que eu sei que não podem, positivamente, merecer atenção nenhuma, eu esmoreço, e me surpreendo dizendo coisas que compreendo per­feitamente que são pura besteira. Por volta do fim da refeição, Mac me contradiz.

— Certamente — ele diz gentilmente em resposta a uma desesperada afirmativa que fiz a respeito do Corne Inglês. — Isso não é bem assim, não é?

Ele está, é claro, perfeitamente certo. Não é bem assim.

Depois do almoço, Max me pergunta o que eu achei de Mac. Eu respondo prudentemente que ele parece não falar mui­to. Isso, diz Max, é uma grande coisa. Eu não faço idéia, ele diz, o que é ficar preso no deserto com alguém que não pára de falar!

— Eu escolhi ele porque me pareceu um tipo de sujeito meio fechado.

Admito que possa haver alguma razão nisso. Max continua, dizendo que ele é provavelmente tímido, mas que irá se abrir lo­go.

— Ele está provavelmente apavorado com você. — acrescen­ta gentilmente.

Pondero esta observação alentadora, mas sem me sentir convencida.

Tento, de qualquer maneira, me submeter a um pequeno tratamento mental.

Primeiro, digo a mim mesma, você é suficientemente velha para ser a mãe de Mac. Você é também uma escritora — uma escritora bem conhecida. Ora, um de seus personagens foi até par­te de um jogo de palavras cruzadas do Time! (O supra-sumo da fama!) E além de tudo, você é a mulher do Chefe da Expedição! Convenhamos, se há alguém que deve assustar o outro, é você quem deve assustar o rapaz, e não ele a você.

Mais tarde, decidimos ir tomar chá, e eu vou ao quarto de Mac para convidá-lo a nos fazer companhia. Decido ser amistosa e natural.

O quarto está inacreditavelmente limpo, e Mac está sentado sobre um tapete dobrado escrevendo o seu diário. Ele me olha inquisitivamente.

— Você vem lanchar com a gente?

Mac se levanta.

— Muito obrigado!

— Depois, acho que você gostaria de conhecer a cidade, — sugiro. — É sempre divertido explorar novos lugares.

Mac levanta as sobrancelhas gentilmente e diz, frio: — É mesmo?

Algo murcha, mostro o caminho até a sala onde Max nos espera. Mac consome uma grande xícara de chá num alegre silêncio. Max toma o seu chá no presente, mas o seu pensamento anda mais ou menos por volta de 4.000 a.C.

Com um sobressalto, desperta de suas divagações assim que come o último bolo, e sugere irmos ver como vai indo o nosso caminhão.

Assim, pois, vamos ver o nosso caminhão — um chassis Ford, sobre o qual está sendo construída uma nova carroçaria. Tivemos que optar por isso, já que não foi possível encontrar nenhum de segunda-mão em boas condições.

A carroçaria parece ser das melhores, do tipo “Inshallah”, e o conjunto todo tem uma aparência sólida e digna, que desconfio ser boa demais para ser verdade. Max está um pouco preocupa­do com o não-comparecimento de Hamoudi, que deveria ter vin­do nos encontrar em Beirute por estes dias.

Mac desdenha a idéia de olhar a cidade e volta para o seu quarto, para sentar no seu tapete e escrever no seu diário. Interessada especulação de minha parte sobre o que ele escreve no dito cujo.

Acordamos cedo. Às cinco da manhã, abre-se a porta do nosso quarto e uma voz anuncia em árabe: “Seus capatazes chegaram!”

Hamoudi e seus dois filhos entram com o ansioso charme que os distingue, segurando nossas mãos e apertando-as de encontro às suas cabeças. “Shlon kefek?” (Como vão?) “Kullish zen.” (Muito bem) “El hamdu lillah! Elhamdu lillah!” (Todos louvamos a Deus!)

Livramo-nos dos resquícios de sono encomendando chá, e Hamoudi e seus filhos sentam-se à vontade no chão, trocando novas com Max. Eu, que usei todo o árabe que sei, e que estou morta de sono, chego a desejar que a família Hamoudi adiasse os seus cumprimentos para uma hora mais condigna. Apesar de tudo, reconheço que, para eles, aparecer assim é a coisa mais natu­ral do mundo.

O chá afasta o sono, e Hamoudi me dirige algumas palavras que Max traduz, assim como minhas respostas. Os três transbordam de felicidade, e eu reconheço, mais uma vez, que pessoas encantadoras eles são.

Os preparativos estão, agora, a todo vapor — compra de mantimentos; contratação de um chofer e de um cozinheiro; visitas ao Service des Antiquités; um almoço agradabilíssimo com M. Seyrig, o Diretor, e sua encantadora esposa. Ninguém poderia ser mais atencioso com a gente do que eles — e, por acaso, o almoço estava mesmo delicioso.

Contrariando o pensamento do funcionário da alfândega turca de que eu teria muitos sapatos, trato de comprar mais sapatos. Comprar sapatos em Beirute é uma maravilha. Se o seu nú­mero está em falta, em alguns dias fazem um par de sapatos especiais, sob medida — perfeitos, num couro bom e macio. Devo admitir que comprar sapatos é uma das minhas fraquezas. Acho que não terei coragem de voltar para casa através da Turquia!

Passeamos pelos bairros nativos, e compramos quantidades de coisas interessantes — uma espécie de seda encorpada, bordada em ouro ou azul escuro. Compramos montes de seda para mandar para a Inglaterra, como presentes. Max está fascinado pelas diversas espécies de pão. Qualquer um que tenha algum sangue francês adora um bom pão. Pão, para um francês, signifi­ca mais do que qualquer outra espécie de alimento. Eu já ouvi um oficial dos Services Speciaux dizer de um colega num longín­quo posto de fronteira — “Ce pauvre garçon! Il n’a même pas de pain là bas, seulement la galette kurde!” com uma pena sincera e profunda.

Temos também negócios longos e enrolados com o Banco. Fico perplexa como sempre, no Oriente, com a relutância que os Bancos têm em fazer negócios. São gentis, atenciosos, mas preocupadíssimos em evitar qualquer transação de fato. “Oui, oui!”, murmuram cortesmente. “Écrivez une lettre!” E acomodam-se novamente, com um suspiro de alívio por terem adiado qualquer ação.

Quando são forçados a tomar alguma atitude, vingam-se usando um complicado sistema de timbres. Todo documento, todo cheque, toda transação de qualquer espécie é atravancada e complicada por “les timbres”. Pequenas quantias são continuamente desembolsadas. Quando você pensa que tudo acabou, lá vem complicação, mais uma vez!

— “Et deux francs cinquante centimes pour les timbres, s’il vous plaît”.

Mesmo assim, finalmente todos os negócios são fechados, inúmeras cartas são escritas, números incríveis de selos e estampilhas são colados. Com um suspiro de alívio o funcionário do Banco vê a perspectiva de se ver livre de nós. Ao deixarmos o Banco, nós o ouvimos dizer com firmeza a algum outro cliente importuno: “Écrivez une lettre, s’il vous plaît.”

Resta ainda resolver a contratação do chofer e do cozinhei­ro.

O problema do chofer é resolvido primeiro. Hamoudi chega, radiante, e nos informa que estamos com sorte: ele encontrou um ótimo chofer.

E como, pergunta Max, Hamoudi encontrou esse tesouro?

Muito simplesmente, parece. Como já estava desempregado por algum tempo, e já estava passando alguma necessidade, ele vai nos sair a um bom preço. Assim, logo de saída, já fazemos uma boa economia!

Mas como vamos saber se ele é um bom chofer? Hamoudi afasta o problema. Um padeiro é um homem que coloca pão no forno, e o assa. Um chofer é um homem que pega um carro e o dirige!

Max, sem nenhum entusiasmo prematuro, concorda em contratar Abdullah se não aparecer nada melhor, e Abdullah é convocado para uma entrevista. Ele se parece extraordinaria­mente com um camelo, e Max diz, com um suspiro, que pelo me­nos ele parece estúpido, o que já é alguma coisa. Pergunto por que, e Max diz que é porque assim ele não terá cérebro para ser desonesto.

Na nossa última tarde em Beirute, vamos até o Rio Cão, o Nahr el Kelb. Aqui, numa ravina arborizada que vai para o interior, há um bar onde se pode tomar café e passear agradavelmen­te numa estradinha sombreada.

Mas o verdadeiro fascínio do Nahr el Kelb está nas inscri­ções gravadas na rocha, onde um caminho leva à passagem sobre o Líbano. Por aqui, em incontáveis guerras, passaram exércitos, deixando os seus registros. Aqui há hieróglifos egípcios — de Ramsés II — e jactanciosas observações de exércitos assírios e babilônios. Há a efígie de Tiglathpileser I. Sennacherib deixou uma inscrição em 701 a.C. Alexandre passou e deixou seu regis­tro. Esarhaddon e Nebuchadrezzar comemoraram suas vitórias, e, finalmente, ligando-se à antigüidade, as tropas de Allenby escreveram nomes e iniciais em 1917. Eu nunca me canso de olhar para esta escavada superfície de rocha. Aqui há História, feita manifesto...

Fico empolgada a ponto de dizer com entusiasmo a Mac que aquilo é realmente emocionante, ele não acha?

Mac levanta suas corteses sobrancelhas e diz, numa voz completamente desinteressada que é, claro, muito interessan­te...

A chegada e carregamento do nosso caminhão são o próxi­mo acontecimento. A carroçaria parece definitivamente desequilibrada. Oscila e se inclina, mas tem um tal aspecto de digni­dade — majestade, mesmo! — que é prontamente batizada de Queen Mary.

Além de Queen Mary, contratamos um táxi — um Citroen, dirigido por um amável armênio chamado Aristides. Contrata­mos um cozinheiro de ar um tanto melancólico (‘Isa), cujas cre­denciais são tão boas que chegam a causar desconfiança. E final­mente chega o grande dia, e nós nos pomos em marcha — Max, Hamoudi, eu, Mac, Abdullah, Aristides e ‘Isa — companheiros, para o que der e vier, pelos próximos três meses.

Nossa primeira descoberta é que Abdullah é o pior chofer imaginável, a segunda é que o cozinheiro é um péssimo cozinheiro, a terceira è que Aristides é um bom chofer, mas tem um péssi­mo táxi!

Saímos de Beirute pela estrada litorânea. Passamos o Nahr el Kelb, e continuamos com o mar à nossa esquerda. Passamos pequenas aldeias de casas brancas, e pequenas baías e enseadas entre rochedos. Tenho vontade de parar e tomar um banho, mas começamos agora a parte séria da viagem. Em breve, também, nos afastaremos do mar em direção ao interior, e depois, durante muitos meses, não vamos mais ver o mar.

Aristides buzina constantemente, à maneira síria. Atrás de nós vem Queen Mary, oscilando como um navio em alto-mar com a sua carroçaria desequilibrada.

Passamos Byblos, e agora as pequenas aldeias de casas bran­cas se tornam cada vez mais espaçadas e menos numerosas. À nossa direita está uma montanha rochosa. E finalmente nos vira­mos, e nos dirigimos para o interior, na direção de Homs.

 

Há um bom hotel em Homs — um ótimo hotel, nos disse Hamoudi.

As qualidades do hotel mostram-se apenas no próprio edifício, que é espaçoso, com largos corredores de pedra. Mas a sua encanação, infelizmente, não está funcionando muito bem! Seus vastos quartos deixam muito a desejar em matéria de conforto. Contemplamos os nossos com todo o respeito, e em seguida Max e eu vamos explorar a cidade. Descobrimos que Mac está sentado no canto de sua cama, tapete dobrado ao lado, escrevendo se­riamente em seu diário.

(O que será que Mac escreve em seu diário? Ele parece não ter o mínimo interesse em ver Homs.)

Talvez ele tenha razão, pois não há muita coisa para se ver.

Comemos uma duvidosa refeição pseudo-européia, e vamos dormir.

Ontem, estávamos viajando pelos confins da civilização. Hoje, abruptamente, deixamos a civilização para trás. Em uma ou duas horas, não há mais nada verde para se ver em lugar nenhum. Tudo é um vasto areai marrom. Os caminhos parecem confusos. De vez em quando, com grandes intervalos, cruzamos com al­gum caminhão inesperadamente surgido do nada.

Faz muito calor. E com calor, e a irregularidade da estrada e o péssimo estado das molas do táxi, e a poeira que a gente engole e que deixa o rosto duro e áspero, eu fico com uma dor de cabeça terrível.

Há algo assustador, e, no entanto, fascinante, neste vasto mundo despido de vegetação. Não é plano como o deserto entre Damasco e Bagdá. Pelo contrário, a gente sobe e desce. Há uma certa sensação de que, de repente, a gente virou um grão de areia entre os castelos que a gente constrói quando criança.

E então, depois de sete horas de calor e monotonia e um mundo abandonado — Palmyra!

Nisso é que está, eu acho, o encanto de Palmyra — sua beleza esbelta e cremosa erguendo-se fantasticamente em meio à areia escaldante. Ê linda e fantástica e inacreditável, com toda a implausível teatralidade de um sonho. Palácios e templos e colunas em ruínas...

Nunca consegui decidir o que eu realmente acho de Palmy­ra. Sempre tem, para mim, aquela aparência de sonho da primei­ra visão. Minha cabeça dolorida e meus olhos ardentes fazem com que pareça, mais do que nunca, um delírio febril. Não é — não poder ser — real!

Mas de repente estamos no meio do povo — uma multidão de turistas franceses, rindo, e falando, e tirando fotografias. Paramos em frente a um edifício atraente: o Hotel.

Max me avisa apressadamente:

— Você não deve se incomodar com o cheiro. Demora um pouco, mas a gente acaba se acostumando.

Pois sim! O Hotel é bonito por dentro, decorado com graça e bom gosto. Mas o cheiro de água parada no quarto é fortíssimo.

— Até que é um cheiro saudável — Max me garante.

E o velhinho encantador que é, presumo, o dono do Hotel, acrescenta com grande ênfase:

— Mauvaise odeur, oui! Malsain, non!

Pois então, isso está resolvido. E, de qualquer jeito, estou pouco me importando. Tomo uma aspirina, bebo um chá e deito-me para descansar. Digo que mais tarde olharei a cidade — ago­ra, o que eu quero é escuridão e descanso.

Intimamente, sinto-me um pouco desapontada. Será que não serei uma boa viajante? Eu, que sempre gostei de andar de carro?

No entanto, uma hora mais tarde acordo sentindo-me perfeitamente restabelecida e ansiosa para ver o que há para ser vis­to.

Até mesmo Mac, uma vez na vida, concorda em ser afastado do seu diário.

Vamos passear, e passamos uma tarde maravilhosa.

No ponto mais distante do hotel, encontramos a turma de turistas franceses. Estão muito aflitos. Uma das mulheres, que está usando (como todas as outras) sapatos de saltos altos, quebrou um dos saltos, e está às voltas com a impossibilidade de retornar ao hotel andando. Eles vieram até aqui de táxi, ao que parece, e o táxi parou. Damos uma olhada nele: pelo visto, só há uma espé­cie de táxi no país inteiro. Este veículo é exatamente igual ao nosso — a mesma carroçaria dilapidada, e o aspecto geral de ter sido amarrado com barbante. O motorista, um sírio alto e magro, está olhando desanimadamente por dentro do capô.

Ele sacode a cabeça, e a turma francesa explica tudo. Eles chegaram aqui ontem, de avião, e devem ir embora amanhã, da mesma maneira. Alugaram o táxi no hotel, por uma tarde, e ago­ra o táxi quebrou. O que fará a pobre madame? “Impossible de marcher, n’est-ce pas, avec un soulier seulement.”

Nós manifestamos os nossos sentimentos, e Max, galantemente, oferece o nosso táxi. Ele irá até o hotel e o trará até aqui. Pode fazer duas viagens, e levar todo mundo de volta.

A sugestão é aceita com aclamações e profusos agradecimentos, e Max põe-se a caminho.

Converso com as senhoras francesas, enquanto Mac se reti­ra por trás de um impenetrável muro de timidez. Produz um ocasional oui ou non a qualquer tentativa de conversa, e logo é piedosamente deixado de lado. As francesas mostram um encanta­dor interesse pela nossa viagem.

— Ah, Madame, vous faites le camping?

Fico fascinada pela frase. Le camping! Classifica, definitivamente, a nossa aventura como um esporte!

Como vai ser agradável, comenta outra senhora, fazer le camping!

Eu digo que sim, que vai ser muito agradável.

O tempo passa: conversamos e rimos. De repente, para grande surpresa minha, Queen Mary aparece guinando para cá e para lá. Max, com uma cara zangada, está na direção.

Pergunto por que ele não trouxe o táxi?

— Porque — responde Max furiosamente — o táxi está aqui.

E aponta dramaticamente para o carro enguiçado, que o sírio magricela ainda tenta consertar.

Há um coro de exclamações de surpresa, e eu descubro porque o carro me parecia tão familiar.

— Mas — exclama uma das francesas, — este é o carro que alugamos no hotel!

Mesmo assim, Max explica, é o nosso táxi.

As explicações com Aristides são dolorosas. Nenhum dos lados compreendeu o ponto de vista do outro.

— Mas — diz Aristides, a própria inocência ofendida — o senhor não me disse que não ia precisar do carro de tarde? En­tão é claro que eu aproveitei a oportunidade para ganhar um dinheirinho extra. Combino com um amigo, e ele leva esse pessoal para passear em Palmyra. Qual é o mal que isso lhe causa, já que o senhor não queria usar mesmo o táxi?

— Me causa mal — replica Max, — porque, em primeiro lugar, não foi o que nós combinamos; e, em segundo lugar, o car­ro agora está enguiçado, e vai precisar de consertos, e, com toda a probabilidade, não vai poder partir amanhã cedo!

— Quanto a isso, o senhor pode ficar sossegado. Se for preciso, eu e meu amigo ficamos acordados a noite toda.

Max replica, secamente, que é o melhor que eles podem fazer.

E, de fato, no dia seguinte pela manhã, o fiel táxi nos espera na porta do hotel, com Aristides sorridente, não acreditando no seu pecado, sentado na direção.

 

Hoje chegamos a Der-ez-Zor, no Eufrates. Está muito quente. A cidade cheira mal, e não é nada atraente. Os Services Spéciaux gentilmente colocam alguns quartos à nossa disposição, já que não há nenhum hotel europeu. Há uma vista bonita além da correnteza marrom do rio. O oficial francês pergunta cortesmen­te sobre a minha saúde, e diz que espera que eu não tenha acha­do a viagem na poeira e no calor muito difícil.

— Madame Jacquot, a esposa do nosso General, estava complètement knock out quando chegou.

Gosto da expressão. E espero que eu, por minha vez, não fique complètement knock out no fim da nossa expedição.

Compramos verduras e grandes quantidades de ovos, e com Queen Mary cheio a ponto de quebrar as molas, partimos, desta vez para a expedição propriamente dita.

 

Busaira! Aqui há um posto policial. É um lugar que dava grandes esperanças a Max, já que está na junção do Eufrates com o Habur. Na outra margem, está o Circesium romano.

Busaira, no entanto, se mostra desanimadora. Não há sinais de nenhuma outra aldeia antiga, exceto a romana, que é tratada com o devido desprezo. “Min siman er Rum”, diz Hamoudi, sacudindo a cabeça com desgosto, e eu concordo com ele plenamen­te.

No nosso ponto de vista, os romanos são inapelavelmente modernos — crianças de ontem. Nosso interesse começa no segundo milênio a.C, com os diversos destinos dos hititas. Estamos particularmente interessados na dinastia militar de Mitanni, aventureiros de outras terras sobre os quais pouco se sabe, mas que viveram nesta parte do mundo, e cuja capital, Washshukkanni, ainda tem de ser identificada. Uma casta dominadora de guer­reiros, que impuseram seu domínio ao país, e que se casaram com a Casa Real egípcia, e que, ao que tudo indica, eram bons cavaleiros, já que um tratado da criação e treinamento de cava­los é atribuído a um certo Kikkouli, um homem de Mitanni.

E deste período para trás, é claro, até as brumosas eras da pré-história — uma idade sem documentos escritos, da qual apenas panelas, e delineamentos de casas e amuletos, e ornamentos e colares restam para dar o seu mudo testemunho da vida que se vivia então.

Como não encontramos nada em Busaira, prosseguimos para Meyadin, mais para o sul, se bem que Max não tenha grandes esperanças a respeito. Depois disso, vamos em direção ao norte, subindo pelas margens do Habur.

É em Busaira que tenho a minha primeira visão do Habur, que, até então, havia sido apenas um nome para mim — se bem que um nome bastante repetido por Max.

— O Habur! Este é o lugar. Centenas de colinas. — Ele continua. — E se nós não encontrarmos nada no Habur, vamos para o Jaghjagha!

— E o que é o Jaghjagha? — pergunto a primeira vez que ouço o nome, que me parece bastante fantástico.

Max diz gentilmente achar que eu nunca ouvi falar do Jaghjagha. E concorda em que um bocado de gente ainda não ouviu.

Admito a acusação e acrescento que, até ele falar a respeito, eu, na verdade, não tinha nem ouvido falar do Habur. O que o surpreende muito.

— Você não sabia que a colina Halaf está às margens do Habur? — pergunta, espantado com a minha chocante ignorân­cia.

Sua voz se abaixa em deferência enquanto fala daquele famoso local de cerâmicas pré-históricas.

Sacudo a cabeça, e me abstenho de lhe fazer ver que, se por acaso, não tivesse me casado com ele, eu provavelmente jamais teria ouvido falar na colina Halaf!

Eu devo acrescentar que explicar os lugares onde escavamos às pessoas é sempre uma tarefa das mais difíceis. Minha primeira resposta, em geral, é uma palavra só — Síria.

— Ah! — diz o inquisidor médio, já meio abalado. Uma ruga se traça na sua testa. — Sim, claro — Síria... — Memórias bíblicas começam a aparecer. — Deixe-me ver, fica na Palestina, não é?

— É perto da Palestina — digo, encorajadoramente. — Vo­cê sabe, um pouquinho mais para cima.

O que não adianta muito, já que a Palestina, estando geralmente associada à História bíblica e às aulas de religião mais do que a uma situação geográfica, tem conotações puramente literá­rias e religiosas.

— Não consigo localizá-la muito bem. — A ruga aprofunda-se. — Mais ou menos aonde vocês escavam — quer dizer, perto de que cidade?

— Perto de cidade nenhuma. Perto da fronteira com a Turquia e o Iraque.

Uma expressão de desânimo total aparece, então, no rosto do amigo.

— Mas deve haver alguma cidade por perto!

— Alep — digo — fica a umas duzentas milhas de distância.

Suspiram, e desistem. Então, novamente animados, perguntam o que comemos.

— Só tâmaras, não é?

Quando eu digo que temos carneiro, galinhas, ovos, arroz, ervilhas, pepinos, laranjas e bananas, eles me olham com um ar de censura, e dizem:

— Eu não chamo isso de vida muito dura!

Em Meyadin le camping começa.

Uma cadeira é armada para min, e eu me sento majestosamente no meio de um grande pátio, ou khan; enquanto isso, Max, Mac, Aristides, Hamoudi e Abdullah lutam para montar as bar­racas.

Não há dúvidas de que eu saio ganhando. É um espetáculo muito divertido. Há um forte vento do deserto que não ajuda na­da, e ninguém ainda está acostumado com o trabalho. Apelos à compaixão e à piedade de Deus partem de Abdullah, pedidos de assistência aos santos do armênio Aristides, gritos e risadas de encorajamento são oferecidos por Hamoudi, furiosas impreca­ções partem de Max. Só Mac trabalha em silêncio, muito embora volta e meia até ele solte uma ou outra palavra com seus botões.

Finalmente está pronto. As barracas parecem um pouco bêbadas, meio fora de foco, mas foram erguidas, de qualquer maneira. Juntos, todos, nos reunimos para xingar o cozinheiro, que em vez de começar a preparar alguma comida, estava apreciando o espetáculo. Mas temos algumas latas muito úteis que são aber­tas, é preparado um chá, e quando o sol se põe e o vento acalma, e começa a aparecer um súbito ar frio, vamos dormir. Esta é a minha primeira experiência com um saco de dormir. Requer os meus esforços e os de Max conjugados, mas, uma vez lá dentro, me sinto maravilhosamente à vontade. Sempre viajo com um tra­vesseiro realmente macio — para mim, ele faz toda a diferença entre o conforto e a miséria.

Digo alegremente a Max:

— Acho que gosto de dormir numa barraca!

Então, me vem um pensamento repentino.

— Você não acha que ratos, camundongos, ou coisas assim vão passar por cima de mim de noite, não é?

— É claro que vão — diz Max sonolento e animador.

Estou digerindo este pensamento quando adormeço. E acordo para descobrir que são cinco horas da manhã — alvorada, e tempo de levantar e começar um novo dia.

As colinas mais próximas de Meyadin se mostram pouco atraentes.

— Romanos! — murmura Max desgostoso. É sua última palavra de desânimo. Pondo de lado quaisquer resquícios que eu poderia ter quanto a achar os romanos um povo interessante, jogo fora um caco da cerâmica desprezada, dizendo “roma­nos...”. “Min Ziman... er Rum”, diz Hamoudi.

Pela tarde vamos visitar as escavações americanas em Doura. É uma visita agradável, e o pessoal é muito gentil conosco. No entanto, não estou muito interessada nos achados, e uma imensa dificuldade em ouvir ou participar da conversa começa a tomar conta de mim.

O relato das suas dificuldades em conseguir trabalhadores, porém, não deixa de ser interessante.

Trabalhar por salário nesta parte do fim do mundo é uma idéia inteiramente nova. A expedição se defrontou com terminantes recusas ou uma total falta de compreensão. Desespera­dos, apelaram para as autoridades francesas. Sua ação foi pronta e eficiente: os franceses prenderam duzentos ou qualquer outro número necessário, e mandaram trabalhar. Os prisioneiros foram amistosos, estavam no melhor bom humor e pareciam estar gostando do trabalho. Foi-lhes dito que voltassem no dia seguinte, mas não apareceram. Novamente os franceses foram chamados para ajudar, e novamente prenderam trabalhadores. Novamente os homens trabalharam evidentemente satisfeitos. Mas nova­mente deixaram de aparecer no dia seguinte. E assim por diante.

Até que, finalmente, o caso foi elucidado.

— Vocês gostam de trabalhar com a gente?

— Claro, por que não? Não temos nada para fazer em casa.

— Então por que é que vocês não vêm todo dia?

— Nós queríamos vir, mas naturalmente a gente tem que esperar que os soldados nos apanhem. Vou lhe contar, ficamos bem aborrecidos no dia em que eles não vieram! Afinal, é a obrigação deles!

— Mas nós queremos que vocês trabalhem para a gente sem que os ‘asker tenham que ir buscá-los!

— Que idéia gozada!

Ao final de uma semana foram pagos, e isso foi a última gota no seu espanto.

Disseram que, realmente, jamais conseguiriam compreen­der o jeito de ser dos estrangeiros!

— Os ‘asker franceses mandam aqui. Naturalmente, é pleno direito deles nos pegar, ou botar na prisão, ou mandar escavar para vocês. Mas por que é que vocês estão dando dinheiro para a gente? Para que é este dinheiro? Não faz sentido!

No entanto, por fim os estranhos costumes ocidentais foram aceitos, com disfarçadas sacudidelas de cabeça e murmúrios. Uma vez por semana, recebiam seu pagamento. Mas uma vaga implicância com os ‘asker permaneceu. O trabalho dos ‘asker era buscá-los todos os dias!

Verdade ou não, a história é boa. Eu só gostaria de poder me sentir mais inteligente. O que é que há comigo? Quando volta­mos ao acampamento, minha cabeça está rodando. Tiro minha temperatura, e descubro que está em 39°! Também estou com dor de barriga e me sinto extremamente doente. Fico feliz em me enfiar no meu saco de dormir, e dormir desdenhando o mero pensamento de jantar.

 

Max parece preocupado esta manhã, e pergunta como eu me sinto. Resmungo e respondo: “à morte”. Parece mais preo­cupado ainda. E pergunta se eu acho que estou doente mesmo.

Neste ponto eu o tranqüilizo. Eu só tenho o que se costuma chamar, no Egito, de “barriga egípcia”, e em Bagdá, de “barriga de Bagdá”. Não é uma queixa muito divertida quando se está em pleno deserto. Max não pode me deixar para trás sozinha, e, de qualquer forma, durante o dia, a temperatura dentro da barraca é de 40 graus! A expedição tem que continuar. Eu me sento encolhida dentro do carro, me agitando num sonho febril. Quando atingimos uma colina, saio e me deito na sombra que a altura de Queen Mary oferece, enquanto Max e Mac andam pela colina, examinando-a.

Francamente, os próximos quatro dias são um inferno! Uma das histórias de Hamoudi parece especialmente oportuna — aquela da linda esposa de um sultão, que ele carregou consigo, e que se queixava a Allah noite e dia de que não tinha companhia e estava sozinha no deserto.

— E finalmente Allah, cansado dos seus queixumes, mandou-lhe companhia. Mandou-lhe as moscas!

Eu me sinto particularmente irritada contra a linda senhora que incorreu na ira de Allah! Durante o dia inteiro, nuvens de moscas tornam qualquer descanso impossível.

Lamento amargamente ter vindo nesta expedição, mas consigo não dizer isso em voz alta.

Depois de quatro dias, sem tomar nada além de chá fraco, sem leite, revivo de repente. A vida é bela de novo. Como um prato enorme de arroz e cozido de legumes nadando em gordu­ra. Parece a coisa mais gostosa que já comi!

Mais tarde, subimos na colina em que montamos o nosso acampamento — na colina Suwar, na margem esquerda do Habur. Aqui não há nada. Nenhuma aldeia, nenhuma casa de espé­cie alguma, nem mesmo as tendas dos beduínos.

Há uma bela lua acima, e abaixo o Habur serpenteia numa grande curva em forma de “S”. O ar da noite é fresco, depois do calor do dia.

Digo: “Que colina linda! Não podemos escavar aqui?”

Max sacode a cabeça tristemente, e pronuncia a palavra fatídica:

— Romanos.

— Que pena. É um lugar tão bonito.

— Eu te disse — diz Max, — que o Habur é o lugar! Colinas por todos os lados!

Eu não me interessei por colinas durante vários dias, e fico feliz em ver que não perdi muita coisa.

— Você tem certeza que não há nada do que você quer por aqui? — pergunto esperançosa. — Gostei da colina Suwar.

— Sim, claro que há, só que está lá embaixo. Nós teríamos que escavar através do material romano. Podemos fazer coisa melhor.

Suspiro e murmuro: “É tão quieto e pacífico por aqui. Não há alma viva à vista”.

Neste exato momento, um velho aparece de lugar nenhum.

De onde é que ele veio? Ele sobe na colina devagar, sem pressa. Tem uma longa barba branca e uma inefável dignidade.

Saúda Max polidamente.

— Como está o seu conforto?

— Bem. E o seu?

— Bem, graças a Deus.

Ele se senta ao nosso lado. Há um longo silêncio — aquele cortês silêncio de boas maneiras que é tão repousante depois da pressa ocidental.

Finalmente, o velho pergunta o nome de Max. Max lhe diz. Ele o considera.

— Milwan! — repete.— Milwan... Como é leve! Como é luminoso! Como é bonito!

Fica sentado conosco mais algum tempo. Então, tão silenciosamente como veio, ele nos deixa. Nunca mais o veremos de novo.

 

Novamente bem de saúde, começo, agora, a me divertir realmente. Começamos todos os dias nas primeiras horas da manhã, examinando cada colina que encontramos, fazendo voltas e voltas em torno, pegando qualquer fragmento de cerâmica. Depois comparamos os resultados no topo, e Max guarda todos os espécimes úteis, colocando-os num saquinho de linho e rotulando-os.

Há uma grande competição para ver quem encontra a melhor peça do dia.

Começo a entender por que os arqueólogos costumam an­dar olhando para o chão. Logo começo a sentir que eu também esquecerei de olhar à minha volta, ou para o horizonte. Andarei olhando para os meus pés, como se tudo que interessasse estivesse lá.

 

Como sempre, surpreendo-me pela fundamental diferença entre as raças. Nada poderia ser tão diferente quanto a atitude dos nossos dois choferes perante dinheiro. Abdullah raramente deixa um dia passar sem pedir um vale. Se ele pudesse agir a seu modo, teria tudo de uma vez só, e suponho que gastaria tudo em menos de uma semana. Com a prodigalidade árabe, torraria tudo no bar. Faria uma figura! Faria a “sua reputação”.

Aristides, o armênio, mostra a maior relutância em receber um tostão sequer do seu salário.

— O senhor guarda para mim até o fim da viagem, Khwaja. Se eu precisar de dinheiro para qualquer despesazinha falo com o senhor.

Até agora, ele só pediu quatro pence do seu salário — para comprar um par de meias.

Seu queixo agora está adornado com uma barba incipiente, que o torna bem parecido com uma figura bíblica. Ele explica que sai mais barato não fazer a barba: a gente pode economizar o dinheiro que gastaria numa lâmina de barbear. E aqui no deserto não tem importância.

No fim da viagem, Abdullah vai estar outra vez sem um tostão, e vai, sem dúvida, enfeitar novamente a praça em Beirute, esperando com fatalismo árabe que a bondade divina lhe providencie um outro emprego. Aristides terá o dinheiro que ganhou na íntegra.

— E o que é que você vai fazer com ele? — pergunta Max.

— Vai servir para comprar um táxi melhor — replica Aristides.

— E quando você tiver um táxi melhor?

— Então vou ganhar mais, e vou ter dois táxis.

Posso me imaginar, tranqüilamente, voltando à Síria dentro de vinte anos, e encontrando Aristides como o dono imensamen­te rico de uma grande garagem, e provavelmente morando numa casa espaçosa em Beirute. E mesmo então, sou tentada a dizer, ele evitará fazer a barba no deserto porque economiza o preço de uma lâmina de barbear.

E no entanto Aristides não foi criado pelo seu próprio povo. Um dia, quando passávamos por alguns beduínos, foi chamado por eles e acenou-lhes de volta, gritando e gesticulando afetuosamente.

— Aquela é a tribo Anaizah, da qual faço parte — explicou.

— Como é que é? — perguntou Max.

E então Aristides, com sua voz alegre e gentil, seu sorriso tranqüilo e feliz, contou sua história. A história de um menininho de sete anos, que, junto com sua família e outras famílias armênias, foi jogado vivo pelos turcos dentro de um grande fosso. Por cima deles, jogaram alcatrão, e atearam fogo. Seu pai, sua mãe, dois irmãos e irmãs morreram queimados. Mas ele, que estava por baixo de todo mundo, ainda estava vivo quando os turcos fo­ram embora, e foi, mais tarde, encontrado por alguns dos árabes Anaizah. Eles levaram o menino consigo e o adotaram na tribo. Cresceu como um árabe, vagando com eles através dos seus pas­tos. Mas quando fez dezoito anos, foi para Mosul, e pediu papéis que comprovassem a sua nacionalidade. Ele era armênio, não árabe! Mas a criação perdura, e para os Anaizah, ele é um deles.

 

Juntos, Hamoudi e Max estão muito alegres. Eles riem, e cantam, e contam histórias. De vez em quando, eu peço que traduzam as piadas particularmente engraçadas. Há momentos em que eu invejo a farra que estão fazendo. Mac ainda está separado de mim por uma barreira impenetrável. Sentamos atrás do carro juntos, em silêncio. Qualquer observação que eu faça tem seus méritos gravemente considerados por Mac, e é tratada à altura. Nunca me senti tão fracassada socialmente! Mac, por outro lado, parece bastante feliz. Há nele uma maravilhosa auto-suficiência que só posso admirar.

 

Apesar de tudo, quando encaixada no meu saco de dormir, na intimidade noturna da nossa barraca, conto para Max os incidentes do dia, sustento que Mac não é totalmente humano.

Quando Mac diz qualquer coisa, geralmente é algum comentário de natureza desanimadora. Ele parece ter um estranho prazer em fazer criticas.

Hoje estou perplexa pela crescente insegurança da minha capacidade de locomoção. De uma certa maneira, os meus pés parecem não combinar. Fico intrigada com uma decidida tendência a naufragar. Será, penso amedrontada, o primeiro sinto­ma de alguma doença tropical?

Pergunto a Max se ele reparou que eu não estou conseguindo andar direito.

— Mas você nunca bebe — replica ele. — Deus sabe que eu fiz tudo o que foi possível com você — acrescenta, com um ar de censura.

Isto introduz um outro assunto controvertido. Todo mundo atravessa a vida com alguma infeliz falta de habilidade. A minha é ser incapaz de apreciar o álcool e o tabaco.

Se eu conseguisse pelo menos condenar estes produtos essenciais, meu amor-próprio estaria a salvo. Mas, pelo contrário, olho com inveja as mulheres seguras de si, jogando cinzas aqui, ali e em toda parte, e durante coquetéis, fico rondando miseravelmente pela sala, tentando encontrar algum lugar para escon­der o meu copo intocado,

Perseverança não adiantou nada. Durante seis meses, fumei, religiosamente, um cigarro depois do almoço e outro depois do jantar, tossindo um pouco, engolindo pedaços de fumo, e piscan­do quando a fumaça entrava nos meus olhos. Em breve, eu me dizia, terei aprendido a gostar muito de fumar. Não aprendi, e minha performance foi criticada severamente como nada artísti­ca, e francamente dolorosa de se ver. Aceitei a derrota.

Quando me casei com Max, apreciamos os prazeres da mesa em perfeita harmonia, comendo com sabedoria mas extrema­mente bem. Ele ficou aflitíssimo ao descobrir que a minha apre­ciação de uma boa bebida — ou, aliás, de qualquer bebida — era nula. Decidiu me educar, me tentando pacientemente com claretes, borgonhas, vinhos tintos e brancos e, em desespero de causa, com tokaï, vodka e absinto! No fim, ele também aceitou a derro­ta. Minha única reação foi perceber que alguns tinham gosto pior do que outros. Com um suspiro de resignação, Max contemplou uma vida em que estaria condenado a conseguir água para mim nos restaurantes, para sempre. Coisa que, segundo ele, já lhe fa­cilita a entrada no paraíso.

 

Daí sua observação quando tentei atrair sua simpatia para a minha aparência bêbada.

— Eu sinto que estou emborcando para a esquerda, o tem­po todo — explico.

Max diz que provavelmente é alguma destas doenças tropicais bem raras, que são conhecidas apenas pelo nome de alguém: doença de Stephenson, ou Hartley. O tipo de coisa que provavel­mente acaba com os seus dedos caindo um por um, ele acrescen­ta animadamente.

Contemplo esta perspectiva agradável. Então, me ocorre olhar os meus sapatos, e o mistério se esclarece de uma vez por todas. O lado externo do meu sapato esquerdo e o lado interno do meu sapato direito estão completamente gastos. Enquanto os contemplo meditativamente, a solução aparece de repente. Des­de que saímos de Der-ez-Zor, andei em torno de umas cinqüenta colinas, em diferentes alturas, de um lado ou de outro, mas sempre com a colina à minha esquerda. Tudo o que preciso é ir agora ao contrário, e rodear colinas pela direita, em vez de ir pela es­querda. Com o tempo, meus sapatos ficarão gastos por igual.

Hoje chegamos à colina Ajaja, antigo Arban, um grande e importante loca! de escavações.

O principal caminho de Der-ez-Zor fica perto daqui, de modo que estamos praticamente numa estrada importante. Che­gamos até a cruzar com três carros, todos indo disparados para Der-ez-Zor.                                                         

Pequenos agrupamentos de casas de barro enfeitam o local, e várias pessoas passam o dia conosco na grande colina. Isso é quase civilização. Amanhã, chegaremos a Hasetshe, a junção do Habur com o Jaghjagha. Lá estaremos em plena civilização. Há um posto militar francês, e uma cidade importante por estes la­dos do mundo. Lá travarei o meu primeiro contato com o legen­dário e prometido rio Jaghjagha! Sinto-me bastante excitada!

Nossa chegada a Hasetshe é das mais excitantes. É um lugar pouco atraente, com ruas e algumas lojas e uma agência de Correios. Nós fazemos duas visitas cerimoniosas — uma aos milita­res, outra aos Correios.

O tenente francês é muito atencioso e prestativo. Oferece-nos alojamento, mas nós lhe garantimos que as nossas barracas estão ótimas, perto do rio, onde as colocamos. Aceitamos, no en­tanto, um convite para jantar no dia seguinte. O Correio, para onde vamos em busca de cartas, é um assunto mais demorado. O chefe não está, e, conseqüentemente, tudo está trancado. Porém, um garoto vai procurá-lo, e, no devido tempo (meia hora!) ele aparece, cheio de atenções, nos dá as boas-vindas a Hasetshe, pede um cafezinho para nós, e, só depois de uma demorada troca de cumprimentos, é que vai ao assunto em questão — cartas.

— Mas não há pressa — ele diz, sorrindo. — Voltem ama­nhã, eu ficarei muito feliz em recebê-los..

— Amanhã — diz Max — temos que trabalhar. Gostaríamos de receber as nossas cartas hoje.

Ah, mas aqui está o café! Nós nos sentamos, e bebemos. Finalmente, depois de longas e cordiais exortações, o chefe abre o seu escritório e começa a procurar. Com toda sua generosidade, nos tenta impingir cartas extras, dirigidas a outros europeus.

— É melhor vocês ficarem com elas — ele diz. — Elas já estão aqui há mais de seis meses, e ninguém veio procurá-las até hoje. Certamente serão para vocês.

Gentil, mas firmemente, recusamos a correspondência dos senhores Johnson, Mavrogordata e Pye. O chefe dos Correios fi­cou desapontado.

— Tão poucas? — disse. — Vocês têm certeza que não querem essa grandona aqui?

Mas insistimos em ficar apenas com as cartas e papéis com o nosso nome. Como combinado, chegou uma ordem de pagamento, e Max agora tenta descontá-la. Isso, ao que parece, é extre­mamente complicado. O chefe dos Correios nunca viu uma or­dem de pagamento na vida, pelo que deduzimos, e está devidamente desconfiado. Chama dois assistentes, e o assunto é exaus­tivamente debatido, se bem que com muito bom humor. Cá está algo inteiramente novo e divertido, sobre o que todos podem opi­nar.

A questão fica afinal decidida, e vários formulários são assinados antes que se descubra que não há dinheiro nos Correios. Isso, o chefe nos garante, pode ser resolvido amanhã. Vai mandar buscar o dinheiro no bazar.

Saímos dos Correios algo exaustos, e vamos até o trecho que escolhemos, às margens do rio — um pouco longe da poeira e da sujeira de Hasetshe. Um triste espetáculo nos saúda. ‘Isa, o cozinheiro, está sentado ao lado de sua barraca, cabeça nas mãos, chorando amargamente.

— O que aconteceu?

Responde que está desgraçado. Alguns meninos reuniram-se para fazer troça dele. Sua honra foi manchada! Num momento de distração, cachorros devoraram o jantar que ele nos prepara­ra. Não sobrou nada, nada, a não ser arroz.

Comemos arroz puro tristemente, enquanto Hamoudi, Aristides e Abdullah admoestam o arrasado ‘Isa, dizendo-lhe que a principal função de um cozinheiro é jamais deixar que sua atenção seja desviada do jantar que está cozinhando, até o momento em que o dito jantar esteja colocado com toda a segurança na frente da pessoa a quem está destinado.

‘Isa diz que não suporta as tensões da vida de cozinheiro. Ele nunca foi cozinheiro na vida (“Isso explica muitas coisas!” diz Max), e preferiria trabalhar numa garagem. Será que Max lhe daria uma recomendação como chofer?

Max diz que é claro que não, já que nunca o viu dirigir nada.

— Mas um dia eu rodei a manivela de Big Mary numa manhã de frio — diz ‘Isa. — Isso o senhor viu?

Max admite que “isso”, realmente, ele viu.

— Então — retruca ‘Isa — o senhor pode me recomendar!

 

O HABUR E O JAGHJAGHA

Estes dias de outono são alguns dos mais perfeitos que já vi. Nós nos levantamos cedo, logo após o nascer do sol, bebemos chá quente, comemos ovos e pomos mãos à obra. Faz frio ainda, e eu uso duas blusas e um casacão de lã. A luz é maravilhosa — um rosa muito pálido suaviza os tons cinzas e marrons. Do topo de uma colina a gente olha para um mundo aparentemente de­serto. Há colinas por todos os lados — se a gente contar, vê tal­vez umas sessenta. Quer dizer, sessenta antigos povoados. Aqui, onde atualmente só algumas tribos passam com suas tendas mar­rons, foi há tempos uma parte movimentada do mundo. Aqui, há uns cinco mil anos atrás, era a parte movimentada do mundo. Aqui foi o berço da civilização, e aqui, descoberto por mim, este fragmento de tigela feito à mão, com um desenho de pontos e cruzes em tinta preta, é o antepassado da xícara do Woolworth’s em que, hoje de manhã, bebi o meu chá...

Dou uma olhada na coleção de cacos que estão tilintando nos bolsos do meu casaco (já tive que remendar o forro duas vezes), jogando fora tipos iguais, vendo o que é que eu posso oferecer para julgamento, ao Mestre, em competição com Mac e Hamoudi.

E então, o que é que eu tenho?

Um caco cinza pesado, parte da orla de um jarro (valioso por mostrar forma), alguns pedaços vermelhos e ásperos, dois fragmentos de jarros pintados, feitos à mão, e um com o desenho de pontos (o mais antigo Halaf!), uma faca de pedra lascada, par­te da base de um vaso fino e cinzento, vários outros pedaços indescritíveis de cerâmica pintada, um pouco de obsidiana.

Max faz sua seleção, jogando fora, impiedosamente, a maioria das peças, murmurando ruídos apreciativos a outras. Hamoudi tem a roda de uma carroça de barro e Mac o fragmento de ce­râmica esculpida e parte de uma estatueta.

Juntando a coleção, Max a coloca dentro de um saquinho de linho, amarra-o cuidadosamente, e o rotula como sempre com o nome da colina onde foi encontrado. Esta colina em particular não está no mapa. É batizada de colina Mak, em honra a Macart­ney, que fez a primeira descoberta.

Na medida em que a reserva de Mac pode exprimir alguma coisa, parece expressar uma pálida satisfação.

Nós descemos a colina e entramos no carro. Eu tiro uma de minhas blusas, já que o sol está esquentando.

Visitamos mais duas colinas pequenas, e na terceira, que tem vista para o Habur, almoçamos ovos cozidos, uma lata de carne, laranjas e um pão extremamente duro. Aristides faz chá no foga­reiro. Agora está muito calor, e as sombras e cores se foram. Tudo tem um mesmo tom uniforme e suave.

Max comenta que temos sorte em estar pesquisando agora, e não na primavera. Pergunto por quê. Ele diz que é porque seria muito mais difícil encontrar vestígios quando houver vegetação por toda a parte. Tudo isso estará verde na primavera, ele diz. Aqui é a estepe fértil. Digo admirada que este é um modo muito generoso de descrever o lugar. Max diz que tanto faz, e que decididamente é a estepe fértil!

Hoje levamos Mary pela margem direita do Habur, até a colina Halaf, visitando a colina Ruman (nome sinistro, mas na verdade, sem vestígios de romanos) e a colina Juma, de passagem.

Todas as colinas desta região oferecem possibilidades, ao contrário das do sul. Vestígios de cerâmica do segundo e terceiro milênio são freqüentes e restos de povoados romanos abundam. Há também cerâmica da pré-história, pintada e feita à mão. A dificuldade será escolher entre tantas colinas. Max repete constan­temente, com júbilo e uma completa falta de originalidade, que este é, sem dúvida, o lugar!

Nossa visita à colina Halaf tem algo da reverência de uma peregrinação a um templo. Colina Halaf é um nome que foi tão constantemente empurrado para dentro dos meus ouvidos nos últimos tempos que eu nem consigo acreditar que vou, realmen­te, ver o lugar em pessoa. Um lugar muito agradável, com o Ha­bur serpenteando na base.

Lembro-me de uma visita que fizemos ao Barão von Oppenheim em Berlim quando ele nos levou ao museu dos seus acha­dos. Max e ele conversaram, excitadíssimos, durante — calculo — umas cinco horas. Não havia lugar nenhum para se sentar. Meu interesse, a princípio bem grande, foi diminuindo, e, final­mente, acabou por completo. Com olhos esgazeados examinei as muitas estatuetas feíssimas que haviam vindo de Halaf, e que, na opinião do Barão, eram contemporâneas da cerâmica, por sua vez interessantíssima. Max estava tentando diferir dele polidamente, sem contradizê-lo frontalmente. Para meu olhar cansa­do, todas as estátuas pareciam curiosamente umas com as outras. Só depois de um certo tempo é que descobri que, de fato, elas eram mesmo todas iguais, já que todas, menos uma, eram repro­duções.

O Barão von Oppenheim interrompeu a sua dissertação apaixonada para dizer, carinhosamente: “Ah, minha linda Vê­nus” e acariciar a figura com afeição. Depois mergulhou nova­mente na discussão, e eu desejei, tristemente, que pudesse fazer o que diz a velha canção infantil: cortar os meus pés, e virá-los de cabeça para baixo!

 

Por todas as colinas, até chegarmos a Halaf, paramos para conversar. Por todos os lados, há várias lendas sobre El Baron — mais especificamente, sobre as incríveis quantias em ouro que pagava a torto e a direito. O tempo aumentou a quantidade do ouro. Mesmo o governo alemão não poderia ter derramado os rios do precioso metal da maneira que a tradição conta. A norte de Hasetshe há lugarejos e sinais de cultivo por toda parte. Des­de a chegada dos franceses e a partida do poder turco, o país está sendo ocupado novamente, pela primeira vez desde os tempos romanos.

Chegamos em casa tarde. A temperatura está mudando, um vento começa a soprar e é muito desagradável, poeira e areia no rosto da gente, fazendo os olhos lacrimejarem. Tivemos um jan­tar agradável com os franceses, apesar de ter sido meio trabalho­so nos arrumarmos, ou melhor, nos limparmos um pouco, já que uma blusa limpa para mim e camisas limpas para os homens é tudo o que podemos fazer neste sentido. Jantamos muito bem e passamos uma noite muito gostosa. Voltamos debaixo de um toró para as nossas barracas. Uma noite inquieta, com cachorros latindo e as barracas batendo e se esticando no vento.

Deixando o Habur de lado no momento, fazemos uma excursão hoje pelo Jaghjagha. Uma imensa elevação bem próxima atiçou o meu interesse, até que descobri tratar-se de um vulcão extinto: o Kawkab.

Nosso objetivo específico é uma certa colina Hamidi, de que temos tido boas referências, mas de difícil acesso, já que não há nenhuma estrada que leve diretamente até lá. Isso significa que temos que traçar uma reta por conta própria e atravessar inúmeros pequenos fossos e depressões. Hamoudi está muito animado esta manhã. Mac está silenciosamente aborrecido e diz que acha que jamais chegaremos à colina.

Gastamos sete horas de viagem — e umas sete horas muito cansativas, com o carro atolando diversas vezes e tendo que ser desatolado com a maior dificuldade

Hamoudi se exaspera nestas ocasiões. Sempre considera um carro como uma espécie de cavalo inferior, se bem que mais resistente. Em qualquer momento de indecisão com alguma depressão à frente, a voz de Hamoudi se eleva excitada, gritando ordens frenéticas a Aristides.

— Rápido, rápido! não dê tempo à máquina para recusar! Vá em frente, vá em frente!

Seu desgosto, quando Max pára o carro e se adianta a pé para examinar os empecilhos, é extremo. Sacode a cabeça completamente contrafeito.

Não é assim que se deve tratar um carro, tão genioso e nervoso, ele diz. Não lhe dê tempo para refletir, e tudo irá às mil ma­ravilhas.

Depois de retornos, confirmações, e auxílio de guias locais, acabamos, finalmente, chegando lá. A colina Hamidi está linda ao sol da tarde, e é com um exultante sentimento de dever cum­prido que o carro sobe a suave encosta que leva ao seu topo, de onde avistamos um pântano cheio de patos selvagens.

Mac fica bastante emocionado para murmurar uma observação.

— Ah — diz num tom de sombria satisfação. — Água para­da, bem se vê!

E este passa a ser o seu apelido desde então.

A vida agora torna-se mais febril e agitada. O exame de colinas se torna mais cuidadoso cada dia. Para a seleção final, três coisas são essenciais. Primeiro, deve estar bastante perto de um vilarejo ou de vilarejos para que se possa conseguir mão-de-obra. Segundo, deve haver água — isto é, deve estar perto do Habur ou do Jaghjagha, ou então deve ter água de poço que seja suficientemente potável. Terceiro, deve ter indícios de ter o que procura­mos. Qualquer escavação é um jogo — entre setenta colinas ocu­padas no mesmo período, quem pode apontar a que tem um edifício, ou um depósito de tabuletas, ou uma coleção de objetos particularmente interessantes? Uma colina pequena oferece tão boas perspectivas quanto uma colina grande já que as grandes cidades são as que mais probabilidades tiveram de ser arrasadas e destruídas num passado distante. A sorte é o fator predominante. Quantas vezes algum terreno foi dura e corretamente escavado, estação após estação, com resultados interessantes mas nada es­petaculares, e, então, numa mudança de alguns metros, algum achado único vem à luz, de repente. O verdadeiro consolo é que, em qualquer colina que se escolha, sempre se acha alguma coisa.

Fizemos uma excursão de um dia à margem oposta do Habur, à colina Halaf, novamente, e passamos dois dias no Jaghjagha — um rio algo superestimado, do ponto de vista da aparên­cia (uma corrente barrenta, entre margens altas) — e marcamos uma colina — a colina Brak — como altamente promissora. É uma elevação; alta com traços de vários períodos de ocupação, da alta pré-história aos tempos assírios. Está a cerca de duas mi­lhas do Jaghjagha, onde há um povoado armênio e várias aldeias espalhadas nas proximidades; está a cerca de uma hora de distân­cia de Hasetshe, o que será bem conveniente para mantimentos. Por outro lado, não há água na colina em si, apesar de que sem­pre se pode cavar um poço. A colina Brak é uma possibilidade.

Hoje pegamos a estrada principal de Hasetshe em direção ao nordeste, para Kamichlie — um outro posto militar francês, e cidade fronteiriça entre a Síria e a Turquia. A estrada corre mais ou menos entre o Jaghjagha e o Habur, até a metade do percur­so, e depois se une ao Jaghjagha em Kamichlie.

Já que examinar todas as colinas no caminho e voltar a Hasetshe de noite seria impossível, decidimos passar a noite em Ka­michlie e regressar no dia seguinte.

As opiniões em relação à acomodação variam. Segundo o tenente francês o chamado “hotel” de Kamichlie é impossível, completamente impossível! “C’est infecte, Madame!” Segundo Hamoudi e Aristides é um ótimo hotel, bem europeu, com camas e tudo! Primeira classe, mesmo!

Com a convicção íntima de que o tenente francês vai ter razão, nos pomos a caminho.

O tempo clareou depois de dois dias de chuva contínua. É de se esperar que o mau tempo só venha mesmo lá para dezembro. Há duas depressões entre Hasetshe e Kamichlie, e se elas se encherem de água a estrada ficará interrompida por alguns dias. Há apenas uma agüinha nelas hoje, e nós entramos e saímos sem muita dificuldade — isto é, nós, no táxi de Aristides. Abdullah, como de hábito, entra e tenta sair em terceira. Então, tenta pas­sar para segunda quando o carro está parado. O motor protesta e o carro morre, e Abdullah desliza suavemente para o fundo da depressão, com suas rodas traseiras afundadas na água e na lama. Todos descemos e tentamos dar a nossa contribuição à situação.

Max xinga Abdullah de idiota consumado. Por que não pode fazer o que já lhe disseram para fazer mil vezes? Hamoudi o acu­sa de falta de velocidade: “Mais depressa, mais depressa! Você mostrou muita precaução. Não dê tempo ao carro de refletir. Ele não teria recusado, se você tivesse feito isso!” Aristides exclama alegremente: “Inshallah!. Daqui a dez minutos já teremos saído daqui!” Mac rompe seu silêncio para murmurar seus comentá­rios de sempre. “É o pior lugar onde ele podia ter atolado. Olhem o ângulo! Não vamos sair daqui tão cedo.” Abdullah ergue as mãos para o céu e tenta defender os seus métodos. “Com um car­ro tão bom, nós poderíamos ter passado tranqüilamente em ter­ceira, não precisaríamos reduzir, assim economizaríamos gasoli­na. Eu faço tudo para agradar a vocês!”.

O coro de lamentações dá lugar a procedimentos mais práticos: as tábuas e enxadas e outros instrumentos carregados para estas emergências são desempacotados. Max empurra Abdullah para um lado, e coloca-se na direção de Mary; as tábuas são pos­tas no lugar; Mac, Hamoudi, Aristides e Abdullah se põem a pos­tos, prontos para cavar. E já que no Oriente as Khatuns não traba­lham (idéia maravilhosa!) eu me coloco à margem, pronta a dar gritos de encorajamento e úteis conselhos. Max dá a partida e acelera; nuvens de fumaça azul se desprendem, quase asfixiando os escavadores. Max engata e solta o freio; há um rugido terrível. Rodas giram loucamente; a fumaça azul aumenta; lá de dentro saem gritos de que Allah é extremamente misericordioso, Mary avança alguns passos, o barulho aumenta, Allah é extremamente misericordioso...

Infelizmente, Allah não é bastante misericordioso! As rodas se soltam e Mary afunda novamente. Nova colocação de tábuas, novos esforços, gritos, fontes de lama e fumaça azul. Desta vez, quase!

É preciso só mais um pouquinho de força. Uma corda é amarrada no nariz de Mary e na traseira do táxi de Aristides. Aristides se põe na direção, todos assumem seus lugares. Aristides, porém, mostra muito zelo e sai cedo demais. A corda parte. Nova saída. Fico com o encargo de sincronizadora. Quando eu acenar com um lenço, Aristides deve dar a partida.

Mais uma vez as manobras começam. Hamoudi, Abdullah e Mac preparam-se para empurrar, os dois primeiros gritando para o carro bem antes de qualquer esforço. Mais uma vez Max dá a partida. Mais uma vez fontes de lama e água levantam-se misturadas à fumaça; o motor funga e ronca; as rodas começam a se movimentar; eu aceno com o lenço; Aristides dá um grito selvagem, se benze, grita Allah Kerim e pisa no acelerador. Devagar, rangendo, Mary vai para a frente; a corda estica; Mary hesita; a roda de trás gira em falso; Max ziguezagueia doidamente; Mary recupera o terreno perdido e ziguezagueando para cá e para lá, subindo a encosta, lá vem ela!

Duas figuras, completamente encharcadas de lama, vêm atrás, gritando de alegria. Uma terceira figura, também cheia de lama, sobe sobriamente — Mac, o imperturbável. Ele não mostra sinais nem de perturbação nem de satisfação.

Olho o relógio, e digo: “Quinze minutos. Nada mau”. Mac retruca calmamente: — A próxima depressão vai ser provavelmente pior.

Decididamente, Mac não é humano!

Prosseguimos. Hamoudi anima a viagem com trechos de canções. Ele e Max estão se divertindo um bocado lá na frente. Eu e Mac vamos atrás, em silêncio. Nesta altura da situação, só consigo falar besteiras quando tento entabular conversa. Mac atura minhas besteiras pacientemente e com a cortesia de sem­pre, dispensando-lhes uma deliberada atenção que não merecem, e retrucando com uma ou outra de suas fórmulas: “É mes­mo?” ou com ar reprovador: “Não será bem assim?”

Em tempo, chegamos à outra depressão. Paramos. Max toma o lugar de Abdullah na direção de Mary. Aristides atraves­sa primeiro sem problemas. Max vai atrás, descendo em segunda e engatando primeira quando sobe e sai da água. Mary chega, balançando triunfalmente.

— Viu? — diz Max a Abdullah.

Abdullah faz a sua expressão mais cameliforme.

— Desta vez, ele teria passado em terceira. O senhor não precisava ter reduzido.

Max lhe diz novamente que ele é um consumado idiota e que, de qualquer maneira, quer queira quer não, no futuro terá que fazer como lhe ordenarem. Abdullah responde animadamen­te que sempre faz o melhor possível.

Max desiste da discussão e nós vamos em frente.

Há colinas aos montes. Começo a pensar se não está começando a chegar a hora de começar a andar em torno delas ao contrário, novamente.

Chegamos a uma colina chamada Chagar Bazar. Cachorros e crianças correm para fora das pequenas casas de adobe. Oportunamente, aparece uma estranha figura em esvoaçantes roupas brancas, com um brilhante turbante verde. É o Xeque local. Ele nos saúda gentilmente. Max desaparece com ele na maior casa. Depois de alguns minutos, o Xeque reaparece e grita: “Enge­nheiro! Cadê o engenheiro?” Hamoudi explica que esta chama­da é destinada a Mac. Mac se apresenta.

— Ha! — grita o Xeque — aqui tem leben! — e mostra uma terrina da coalhada típica da região. — Como é que você gosta do seu leben, engenheiro, grosso ou fino?

Mac, que gosta muito de leben, aponta para o jarro de água que o Xeque está segurando. Vejo Max tentando repelir a sugestão. Muito tarde: a água é acrescentada ao leben, que Mac bebe com o que poderia ser tomado como sinais de satisfação.

— Eu tentei te avisar — diz Max mais tarde. — Aquela água era praticamente barro puro!

Os achados em Chagar Bazar são bons... Há uma aldeia, poços, outras aldeias adjacentes e um Xeque amável, se bem que indubitavelmente voraz. É uma possibilidade, e nós continuamos o caminho.

Algumas voltas através de terrenos pantanosos para atingir colinas perto do Jaghjagha ao fim do dia nos atrasam e é bem tarde quando, finalmente, chegamos a Kamichlie.

Com o maior entusiasmo, Aristides estaciona o carro em frente ao hotel de primeira classe.

— Estão vendo? Não é bonito? É feito de pedra! — ele diz.

Nós evitamos dizer que o interior de um hotel é mais importante do que o seu exterior. De qualquer jeito, cá está o hotel, e, por pior que seja, vai ter que servir.

Nós entramos, subimos uma longa e estreita escadaria e che­gamos a um restaurante com mesas de tampo de mármore, onde há um intenso cheiro de parafina, alho e fumaça.

Max entra em negociações com o proprietário.

É claro que isso é um hotel. É um hotel com camas — camas de verdade! Ele abre a porta de um quarto, onde quatro pessoas, adormecidas sobre camas, provam a veracidade de suas palavras. Há duas camas desocupadas no aposento.

— Aqui está — ele diz. — E este animal aqui — ele chuta uma das pessoas — pode pular fora. É só o rapaz da estrebaria.

Max faz a inusitada exigência de pedir um quarto só para nós. O proprietário fica em dúvida. Isso, segundo ele, é terrivelmente caro.

Max diz com displicência que não se incomoda com o pre­ço. Quanto é?

O proprietário hesita, coça a orelha, avalia a nossa aparên­cia (que, devido à lama, não é lá das melhores) e finalmente arris­ca a opinião de que custará pelo menos uma libra para nós qua­tro.

Para seu assombro, Max concorda sem regatear.

Imediatamente, tudo é atividade e entusiasmo. Gente que estava dormindo é acordada, criados são chamados. Nós nos sentamos numa das mesas de tampo de mármore e pedimos a melhor refeição que a casa pode oferecer.

Hamoudi se encarrega de supervisionar as nossas acomodações. Volta um quarto de hora depois, todo sorrisos. Um dos quartos vai ficar à disposição de Max e eu. Ele e Mac vão dividir o outro. Além disso, “em prol da sua boa reputação”, como ele diz, teve que concordar com uma taxa adicional de cinco francos para que obtivéssemos lençóis limpos.

A comida chega; é gordurosa, mas está quente e saborosa. Nós comemos a valer, e sem mais nos retiramos e caímos nas camas feitas com lençóis limpos. Assim que vou adormecendo, a possibilidade de “bichos” me desperta. Max diz que, na sua opinião, estaremos livres de insetos. O lugar é recém-construído, e as camas são novas, de ferro.

Os cheiros da fumaça, alho e parafina filtram-se do restaurante, logo ao lado, e há o matraquear alto de vozes em árabe. Mas nada pode nos impedir de dormir. Nós dormimos.

Acordamos, sem mordidas. É mais tarde do que pensávamos. Mais uma vez, temos um dia cheio pela frente. Max abre a porta do quarto, e recua um pouco. O restaurante está cheio dos donos desalojados de seus dois quartos. Estão deitados entre as mesas — há pelo menos uma dúzia deles. A atmosfera está carre­gada. Chá e ovos nos são servidos e partimos mais uma vez. Ha­moudi diz desolado a Max que falou longa e honestamente com o Khwaja Macartney na noite passada, mas infelizmente, mesmo agora, depois de dois meses, o Khwaja Mac ainda não fala nem uma palavra de árabe! Max pergunta a Mac como é que ele está se dando com o Árabe Corrente de Van Ess. Mac responde que acha que perdeu o livro.

Depois de fazermos algumas compras em Kamichlie, pegamos a estrada para Amuda. Esta é uma estrada importante — po­deríamos dizer que é quase uma estrada de verdade, em vez de uma picada. Corre paralelamente à estrada de ferro, além da qual está a Turquia.

Sua superfície é desanimadora — contínuos sulcos e buracos. Somos sacudidos até dizer chega, mas não há dúvida de que se vê vida por aqui. Passamos por vários carros, e tanto Abdullah quanto Aristides têm que ser severamente repreendidos por ten­tarem incorrer no esporte favorito dos motoristas nativos: tentar atropelar, ou pelo menos, assustar bastante, grupos de camelos e jericos guardados por velhas ou meninos.

— Esta estrada não é larga para que você passe pelo outro lado? — pergunta Max.

Abdullah se vira, excitado.

— Não estou dirigindo um caminhão? Não tenho que escolher o melhor caminho? Esses miseráveis beduínos têm que sair da minha frente, com seus jericos desconjuntados!

Aristides desliza suavemente por trás de um burrico sobrecarregado, com um homem e uma mulher atrás, e deixa escapar uma terrível buzinada. O burrico dispara, a mulher grita e corre atrás dele, o homem sacode o punho. Aristides morre de rir.

Ele é repreendido, por sua vez, mas permanece, como sempre, serenamente satisfeito.

Amuda é uma cidade principalmente armênia, e deve-se dizer, a bem da verdade, que não é nada atraente. Há uma absurda quantidade de moscas, as crianças pequenas têm as piores ma­neiras que já vi, todos parecem aborrecidos e, apesar disso, tru­culentos. No todo, sai perdendo para Kamichlie. Compramos uma carne de aspecto duvidoso, da qual moscas se levantam num torvelinho, alguns vegetais bem cansados e um ótimo pão feito na hora.

Hamoudi vai fazer algumas investigações. Volta quando já acabamos as nossas compras, e nos leva para uma estradinha secundária onde há um portão que leva a um pátio.

Aqui somos saudados por um padre armênio — muito cortês, falando um pouco de francês. Mostrando o pátio e a constru­ção ao lado com a mão, diz que esta é a sua casa.

Sim, ele poderá nos alugá-la na próxima primavera se os “arranjos” forem satisfatórios. Sim, ele poderá esvaziar um dos quartos e cedê-lo logo para que já possamos ir guardando algumas coisas.

Desta forma, com as negociações encaminhadas, partimos para Hasetshe. Há um caminho direto de Amuda que leva à estrada de Kamichlie em Chagar Bazar. Examinamos algumas coli­nas no caminho, e chegamos ao nosso acampamento sem incidentes, mas cansadíssimos.

Max pergunta a Mac se a poluída água do Xeque lhe fez mal. Mac responde que nunca se sentiu melhor.

— Eu te disse que Mac era um achado — diz Max mais tarde, quando estamos enrolados em nossos sacos de dormir. — Um estômago de primeira classe! Nada lhe faz mal. Pode comer qual­quer quantidade de gordura e esterco. E quase nunca abre a bo­ca.

— Isso pode ser muito bom para você — digo. — Você e Hamoudi nunca param de falar e de rir. Mas, e eu?

— Eu não consigo entender por que você não se entrosa melhor com ele. Você tenta?

— Estou sempre tentando. Ele simplesmente me despreza. Max parece achar isso engraçado, e ri um bocado.

 

Hoje chegamos a Amuda — nosso novo centro de ativida­des. Mary e o táxi estão estacionados no pátio do padre armênio. Um dos quartos da casa foi esvaziado e está à nossa disposição, mas Hamoudi, depois de examiná-lo, recomenda que continue­mos a dormir nas barracas! Nós as montamos com dificuldade, já que sopra um vento forte, e está começando a chover. Parece que amanhã não haverá excursões. Vinte e quatro horas de chuva por estas regiões paralisam o tráfego completamente. É uma sor­te que tenhamos conseguido um quarto onde passar a noite, co­locar nossos achados em dia e onde Max possa atualizar o seu re­latório dos acontecimentos.

Mac e eu desempacotamos e arrumamos algumas coisas no quarto — mesa dobrável, cadeiras portáteis, lâmpadas, etc. Os outros vão à cidade para fazer as compras necessárias.

Lá fora, o vento aumenta e a chuva começa a cair para valer. Há vidros quebrados nas janelas e está muito frio. Olho cobiçosamente para o aquecedor.

— Eu gostaria que Abdullah voltasse logo, e que a gente pudesse ligar logo o aquecedor — digo.

Pois Abdullah, aparentemente destituído de qualquer inteligência, um motorista dos piores, e mentalmente deficiente sob quase todos os aspectos, é, apesar de tudo, o senhor indiscutível destas coisas temperamentais — lampiões e aquecedores a gás. Ele, e apenas ele, consegue lidar com suas trapalhadas.

Mac vai até o aquecedor e dá uma olhada.

Diz que o princípio científico é bem simples. Será que eu gostaria que ele o acendesse?

Digo que sim, e lhe estendo uma caixa de fósforos.

Mac começa a tarefa com uma serena confiança. O gás é ligado, e assim por diante. Suas mãos são rápidas e bem treinadas, e ele obviamente sabe o que está fazendo.

 

O tempo passa... o aquecedor continua apagado. Mac começa tudo novamente, liga o gás...

Cinco minutos mais tarde, ele murmura, mais para si mesmo do que para mim:

— O princípio é bem claro...

Lanço-lhe uma olhadela quando outros cinco minutos decorreram. Ele está ficando com calor. E também não está mais com um ar tão superior. Princípio científico ou não, o fato é que o aquecedor está ganhando dele. Ele deita no chão e luta com a coisa. Agora começa a suar...

Um sentimento de quase afeição passa por mim. Apesar de tudo, nosso Mac é humano. É derrotado por um simples aquecedor a gás!

Meia hora depois, Max e Abdullah regressam. Mac está vermelho e o aquecedor apagado.

— Ah, deixa isso comigo, Khwaja! — diz Abdullah. Ele pega o gás, os fósforos. Em dois minutos, o aquecedor está brilhando, embora eu tenha quase certeza de que Abdullah ignorou qual­quer princípio científico que pudesse haver...

— Bem! — diz Mac, inarticulado como sempre, mas exprimindo muita coisa nessa única palavra.

Nessa noite, mais tarde, o vento se transforma num vendaval, chove aos cântaros. Aristides entra no quarto correndo para dizer que acha que as barracas estão caindo. Todos corremos para fora, na chuva. De repente, me vem a idéia de que agora estou vendo o lado amargo de le camping.

Valorosamente, Max e Mac e Aristides lutam com a barraca grande. Mac sobe no mastro.

De repente ouve-se um estalo, o mastro quebra, Mac cai de cabeça na lama espessa e viscosa.

Arrasta-se para fora, completamente irreconhecível. Sua voz se levanta num tom perfeitamente natural:

— M..... de coisa, que......... ......... ......... ! — grita Mac finalmente, tornando-se completamente humano.

Desta noite em diante, Mac é um dos nossos!

 

O mau tempo passou, mas por um dia ainda as estradas esta­rão muito molhadas para que se possa percorrê-las de carro. Nós nos aventuramos, cautelosamente, a colinas mais próximas. Uma possibilidade é a Hamdun — uma grande colina não muito longe de Amuda e bem na fronteira, cortada pela estrada de ferro, de maneira que um pedaço seu está na Turquia.

Cá estamos nós uma manhã. Trouxemos alguns homens para cortar uma trincheira num dos lados da colina. O lugar onde eles estão cavando é frio, e eu vou para o outro lado da colina, longe do vento. Os dias agora têm ares positivamente outonais, e eu me sento enrolada na minha capa.

 

De repente, surgido do nada, como sempre, um cavaleiro aproxima-se da colina. Pára o seu cavalo, e se dirige a mim, falando num árabe fluente. Eu não entendo nada além do cumprimento, que retribuo educadamente, e digo que o Khwaja está do outro lado da colina. Ele parece espantado, pergunta outra coisa, e então, sem mais nem menos, atira a cabeça para trás e explode numa gargalhada.

— Ah, é uma Khatun! — ele exclama. — Que engano! Es­tou falando com uma Khatun! — e contorna a colina, intensa­mente divertido com o erro que cometeu, não tendo distinguido uma mulher à primeira vista.

 

Os melhores dias acabaram. Agora, freqüentemente o céu está encoberto. Acabamos de examinar colinas. Chegou o momento de decidir onde as picaretas vão cavar na próxima prima­vera.

Três colinas disputam a honra da nossa atenção — a colina Hamdun, que, geograficamente, está num setor interessante; a Chagar Bazar, nossa primeira escolha; e uma terceira, a colina Mozan. Esta é a maior das três, e muita coisa depende do fato de haver muitos depósitos romanos que tenham que ser escavados.

É preciso fazer sondagens nas três colinas. Começamos com a Mozan. Há uma aldeia perto, e com Hamoudi como embaixa­dor, vamos até lá tentar obter trabalhadores. Os homens estão cheios de dúvidas e de suspeitas.

— Nós não precisamos de dinheiro — dizem. — Foi uma boa colheita.

Pois esta é uma parte simples, e eu penso que, conseqüentemente, uma parte feliz do mundo. A comida é a única preocupa­ção. Se a colheita foi boa, você está rico. Pelo resto do ano, só há lazer e fartura, até que chegue novamente o tempo de plantar.

— Um dinheirinho extra — diz Hamoudi, como a serpente do Éden — é sempre bem-vindo.

A resposta deles é simples:

— Mas o que é que vamos fazer com ele? Já temos bastante comida até a próxima safra!

E aqui, infelizmente, a eterna Eva tem o seu papel. O astuto Hamoudi lança a sua isca. Eles podem comprar enfeites para suas mulheres!

As mulheres sacodem a cabeça apreciativamente. Essa escavação, dizem, é um ótimo negócio.

Relutantemente, os homens consideram a idéia. Há uma outra coisa a ser levada em conta — dignidade. Para um árabe, a sua dignidade é um bem precioso. Trata-se de uma coisa digna, uma coisa honrada?

Hamoudi explica que, por enquanto, será só por alguns dias. Eles poderão pensar melhor até a primavera.

Finalmente, com a expressão duvidosa de quem parte para uma aventura nova e inédita, uma dúzia dos homens mais progressistas se oferecem. Os velhos mais conservadores ficam sacudindo suas barbas brancas.

A um sinal de Hamoudi, enxadas e picaretas são descarregadas de Mary e distribuídas entre os homens. Hamoudi em pessoa pega uma picareta e faz uma demonstração.

Três cortes de prova são escolhidos em alturas diferentes da colina. Há um murmúrio de Inshallah! e as picaretas começam a trabalhar.

 

A colina Mozan foi apagada de nossa lista de possibilidades com relutância. Há várias camadas romanas, e, apesar de existirem períodos que nos interessam no fundo, levaríamos muitas temporadas para chegar até lá — quer dizer, mais tempo e di­nheiro do que poderíamos gastar.

Hoje vamos até o nosso amigo Chagar Bazar. Aqui, os arranjos para a mão-de-obra são concluídos com rapidez. O Xeque é um homem pobre, muito endividado, como todos os árabes donos de terras, e vê nisso tudo a chance de bons lucros a serem ob­tidos.

— Tudo o que eu tenho é seu, irmão — ele diz a Max, generosamente, o brilho dos cálculos refletido em seus olhos. — Não precisa pagar pela terra. Pode pegar tudo o que eu tenho!

Então, quando Max sobe a colina, o Xeque se vira para Hamoudi.

— Sem dúvida — sugere — este Khwaja è riquíssimo! Será que ele é tão rico quanto o famoso El Baron que pagava em sacos de ouro?

— Hoje em dia — diz Hamoudi — ninguém mais paga em ouro. No entanto, o Khwaja é extremamente generoso. Além do mais, com toda probabilidade, o Khwaja vai construir uma casa aqui — uma casa tão grandiosa e bonita, que será mencionada a muitas léguas de distância. Quanto prestígio esta casa e a escavação não trarão ao Xeque? Todo o mundo dirá: “Os Khwajas es­trangeiros escolheram este lugar para construir e escavar por causa da sua proximidade à santidade do Xeque, um homem que foi a Meca e que todos reverenciam”.

A idéia da casa agrada ao Xeque. Ele olha pensativamente para a colina.

— Vou perder todas as sementes que iria plantar na colina por estes dias. Uma perda pesada — uma perda muito pesada!

— Mas — diz Hamoudi — a estas alturas o chão já foi trabalhado e a colheita já foi feita!

— Houve atraso — diz o Xeque. — Eu iria plantar agora!

— O senhor já plantou aqui? Claro que não. Quem iria arar um colina quando há planícies em volta?

O Xeque diz com firmeza:

— As colheitas que eu vou perder serão uma perda pesada. Mas e daí? É um sacrifício que farei com alegria para contentar o Governo. Se eu me arruinar, o que importa?

E parecendo decididamente animado, voltou para sua casa.

Uma velha chega até Hamoudi, trazendo um garoto de cer­ca de doze anos pela mão.

— O Khwaja tem remédios?

— Ele tem alguns remédios — para quê?

— Ele daria algum remédio para o meu garoto aqui?

— Qual é o problema dele?

Nem é preciso perguntar. A aparência imbecil é clara de­mais.

— Ele não está de boa posse dos seus sentidos.

Hamoudi sacode a cabeça tristemente, mas diz que vai perguntar ao Khwaja.

Os homens já começaram a cavar valas. Hamoudi, a mulher e o menino vão para perto de Max.

Max olha para o menino e vira-se gentilmente para a mu­lher.

— O menino está assim porque esta é a vontade de Allah — ele diz. — Não posso lhe dar nenhum remédio para ele.

A mulher suspira — penso que uma lágrima corre em seu rosto. Então, diz num tom calmo:

— Então, Khwaja, me dê algum veneno, porque é melhor que ele não viva.

Max diz que isso também ele não pode fazer.

Ela olha para ele sem compreender, depois sacode a cabeça, zangada, e vai embora com o menino.

Passeio até o topo da colina onde Macartney está ocupado com sua pesquisa. Um menino árabe, cheio de importância, anda de cá para lá com a vara de medir. Mac, ainda sem vontade de arriscar uma palavra em árabe, expressa seus desejos através de gestos semafóricos que nem sempre produzem os resultados desejados. Aristides, sempre cortês, vem ajudar.

Olho à minha volta. Ao norte está o perfil das montanhas turcas, com um ponto brilhante que é Mardin. A leste, sul e oes­te, há apenas a estepe fértil, que na primavera estará verde e salpicada de flores. Colinas pontilham todo o horizonte. Aqui e ali aparecem tendas marrons de beduínos. Apesar de haver aldeias em muitas colinas, não se pode vê-las — em todo caso, são ape­nas algumas choupanas de barro. Tudo parece pacífico e remoto, longe do homem e dos caminhos da civilização. Gosto de Chagar Bazar e espero que venha a ser escolhida. Gostaria de morar numa casa construída aqui. Se a gente fizer escavações em Hamdun, a gente vai ter que morar em Amuda... Oh, não, eu quero esta colina!

A noite chega. Max está satisfeito com os resultados. Voltaremos amanhã e continuaremos a exploração. Esta colina, ele acredita, permaneceu desocupada desde o século XV a.C, exceto por alguns funerais romanos e islâmicos intrusos. Há excelente cerâmica pintada do tipo Arpachiyah de Halaf mais antigo.

O Xeque nos acompanha alegre até o carro.

— Tudo o que eu tenho é seu, irmão — reafirma ele novamente. — Por mais pobre que isso me faça!

— Como eu ficaria feliz se me coubesse enriquecê-lo por escavar aqui — replica Max polidamente. — Nós lhe pagaremos como combinado com as autoridades francesas por qualquer perda de safra, seus homens receberão bons salários, nós arrendaremos terra para construir uma casa, e além disso, no fim da temporada um belo presente lhe será dado, pessoalmente.

— Ah — exclama o Xeque muito bem humorado. — Eu não preciso de nada. Que história é essa de pagamento entre irmãos?

E partimos com essa observação altruísta.

Dois dias frios, com jeito de inverno, passados na colina Hamdun. Os resultados são razoavelmente bons, mas o fato de que parte da colina esteja na Turquia fala contra a sua eventual escolha. A decisão por Chagar Bazar parece óbvia, com uma concessão adicional à colina Brak, que poderia ser combinada com a escavação em Chagar numa segunda temporada.

Resta agora prosseguir nas negociações para a primavera. Há um lugar bom em Chagar para a casa; há o aluguel da casa em Amuda durante o tempo em que a casa em Chagar estiver em construção; há o arranjo a ser feito com o Xeque, e, mais urgente ainda, há uma outra ordem de pagamento em Hasetshe, que nós devemos ir buscar sem demora antes que as depressões se en­cham de água e a estrada se torne intransitável.

Hamoudi tem gasto dinheiro um tanto largamente em Amuda ultimamente, preocupado com a nossa “reputação”. Gastar dinheiro parece ser um ponto de honra entre os árabes — isto é, a prática de entreter as figuras mais importantes no bar! Parecer mesquinho é uma desonra terrível. Por outro lado, Hamoudi re­gateia sem remorsos o pagamento de velhas que trazem o leite e de outras velhas que lavam nossas roupas por somas incrivelmen­te pequenas.

Max e eu partimos para Hasetshe em Mary, torcendo para que tudo desse certo, apesar do céu estar encoberto e estar cain­do uma chuvinha fina. Chegamos aqui sem maiores dificuldades, mas agora chove bastante e duvidamos se jamais conseguiremos voltar.

Para nosso desespero, quando chegamos ao Correio o chefe estava fora. Ninguém sabe onde ele está, mas enviamos meninos em todas as direções para encontrá-lo.

A chuva começa a cair para valer. Max tem um ar ansioso, e diz que nunca vamos conseguir voltar, a menos que partamos logo. Nós esperamos ansiosamente enquanto a chuva continua.

De repente aparece o chefe dos Correios, caminhando tranqüilamente com uma cesta de ovos.

Ele nos saúda com prazer e surpresa. Max interrompe as gentilezas de costume com um urgente pedido de pressa. Nós vamos ficar ilhados, ele diz.

— Mas por que não? — diz o chefe. — Assim, vocês terão que ficar aqui vários dias, o que para mim será um grande prazer. Hasetshe é uma cidade das mais agradáveis. Fiquem conosco alguns dias — ele insiste, hospitaleiro.

Max renova seu pedido. O chefe abre gavetas vagarosamen­te, e procura sem muito entusiasmo, enquanto continua a nos apontar as vantagens de uma longa estada.

Gozado, ele diz, não consegue encontrar este envelope importante. Ele se lembra da sua chegada, quando disse para si mesmo: “Um dia o Khwaja vai chegar procurando isso”. De modo que guardou-o num lugar seguro, mas onde poderia ter sido este lugar? Um empregado chega para ajudar, e a busca con­tinua. Finalmente a carta é desencavada, e passamos pela dificul­dade costumeira em obter o dinheiro. Como antes, ele tem que ser obtido no bazar.

E a chuva continua caindo! Finalmente, temos o que queremos. Max tem a precaução de comprar pão e chocolate, para o caso de termos que passar uma ou duas noites en route, e nós reembarcamos em Mary e partimos a todo pano. Conseguimos atravessar a primeira depressão com sucesso, mas na segunda uma visão nefasta se nos depara: o ônibus dos Correios atolou, e atrás dele há uma fila de carros esperando.

Todo mundo está dentro da depressão — cavando, ajeitando tábuas, gritando palavras de encorajamento.

Max diz, desesperado:

— Vamos passar a noite aqui.

É um pensamento funesto. Já passei muitas noites em carros no deserto, mas nunca com muito prazer. A gente acorda amas­sada e com frio, com dores pelo corpo todo.

No entanto, desta vez temos sorte. O ônibus sai sacolejando-se com um rugido, os outros carros passam em seguida e nós atravessamos por fim. É bem na horinha — a água está subindo rapidamente.

Nossa viagem de volta pela estrada de Amuda parece um pesadelo — uma longa e contínua derrapada. Pelo menos duas vezes Mary se vira completamente, e olha decididamente na dire­ção de Hasetshe, apesar das correntes nos pneus. Essa derrapagem contínua é uma sensação estranha. A terra sólida não é mais terra sólida. Tem características fantásticas de pesadelo.

Chegamos depois de ter escurecido, e todo mundo vem nos receber com gritos de boas-vindas, segurando lanternas.

Pulo fora de Mary e procuro o caminho até a porta do nosso quarto. É difícil andar, porque a lama tem a peculiar capacidade de colar nos nossos pés imensas rodelas tão pesadas que a gente mal pode levantá-los.

Ao que parece, ninguém nos esperava de volta e as congratulações e El hamdu lillahs são estrondosos.

As rodelas nos meus pés me fazem rir. É exatamente a sensa­ção que se tem em sonhos.

Hamoudi ri também, e diz para Max:

— Como é bom ter a Khatun conosco! Qualquer coisinha faz ela rir!

 

Tudo está combinado. Houve um encontro solene entre Max, o Xeque e o militar francês dos Services Spéciaux encarre­gado do distrito. O arrendamento da terra, a compensação pela safra, as obrigações de ambas as partes — tudo é bem anotado, preto no branco. O Xeque ora diz que tudo o que ele tem é de Max, ora sugere que umas mil libras em ouro seriam uma soma condigna para receber!

Por fim ele vai embora, bem desapontado, tendo, com certeza, acalentado os mais loucos sonhos de riqueza. Consola-se, po­rém, com uma cláusula do contrato que diz que a casa construída pela expedição ficará para ele, quando a expedição acabar de usá-la. Seus olhos brilham, e sua grande barba vermelha sacode-se apreciativamente.

— C’est tout de même un brave homme — diz o capitão francês quando o Xeque se retira. Sacode os ombros — Il n’a pas le sou comme tous ces gens là!

As negociações para o aluguel da casa de Amuda são complicadas pelo fato — que só veio à luz recentemente — de que em vez de ser uma casa, como pensávamos, são seis. E como as seis casas são habitadas por onze famílias, as complicações aumentam. O padre armênio é simplesmente o porta-voz dos outros moradores.

Finalmente, chegamos a um entendimento. Numa certa data, as “casas” serão esvaziadas, e seu interior receberá duas mãos de cal!

Então, tudo está decidido. Deve-se providenciar, agora, o retorno ao litoral. Os carros tentarão chegar a Aleppo através de Ras-el-Ain e Jerablus. São cerca de duzentas milhas, e há muitas depressões que precisarão ser atravessadas no estágio inicial da viagem, que, com alguma sorte, pode ser feita em dois dias. Mas com a chegada de dezembro, o mau tempo se aproxima. O que é que fará a Khatun?

A Khatun, vergonhosamente, decide-se por um Wagon Lit. Assim o táxi me leva até uma estranha estaçãozinha, e, oportunamente, um grande e importante carro-dormitório aparece atrás de uma locomotiva fumegante. Um condutor num uniforme cor de chocolate se inclina para fora. A bagagem de Madame lhe é estendida, Madame em pessoa é empurrada com alguma dificuldade da plataforma para o alto degrau do trem.

— Acho que você está sendo inteligente — diz Max. — Está começando a chover.

Os dois choramos. “Te vejo em Aleppo!” O trem se põe em marcha. Sigo o condutor através do corredor. Ele abre a porta do meu compartimento. A cama está feita.

Aqui, mais uma vez, está a civilização. Le camping acabou. O condutor leva o meu passaporte, me traz uma garrafa de água mineral, diz:

— Chegaremos em Aleppo às seis da manhã. Bonne nuit, Madame.

Eu poderia estar indo de Paris para a Riviera!

De certa forma, parece estranho encontrar um Wagon Lit aqui, no meio do nada...

Aleppo!

Compras! Um banho! Meu cabelo devidamente lavado! Amigos para ver.

Quando Max e Mac aparecem três dias mais tarde, ensopados de lama e trazendo quantidades de perus selvagens abatidos en route, eu os saúdo com a superioridade de alguém novamente acostumado com cremes e loções.

Eles tiveram aventuras aos montes pelo caminho — o tempo estava horrível, e eu fiquei satisfeita em ter escolhido a melhor parte.

O cozinheiro, pelo visto, pediu sua recomendação como chofer. Max, antes de qualquer decisão, mandou-o dar uma volta com Mary pelo pátio.

Pulando para o assento do motorista, ‘Isa deu a partida, engatou uma marcha-à-ré e bateu no muro do pátio, derrubando um pedaço. E ficou muito ofendido quando Max se recusou a recomendá-lo como motorista. Finalmente, a apresentação foi escrita anunciando que ‘Isa fora nosso cozinheiro por três meses, e nos ajudara com o carro.

Assim, novamente Beirute, e despedidas de Mac.

Para nós, no inverno, Egito. Mac vai à Palestina.

 

PRIMEIRA TEMPORADA EM CHAGAR BAZAR

É primavera quando regressamos a Beirute. A primeira visão que nos saúda no cais é Mac, mas um Mac transformado.

Ele está sorrindo de orelha a orelha! Não há dúvidas — está feliz em nos rever! Até agora, nunca soubemos muito bem se ele gostava da gente ou não. Seus sentimentos estavam escondidos por trás de uma máscara de serena imperturbabilidade. Mas ago­ra está claro que, para ele, este é um reencontro com amigos. Nem lhes posso dizer como isso é reconfortante! De agora em diante, meu nervosismo com Mac desaparece. Chego até a perguntar-lhe se desde que nos despedimos ele tem sentado to­dos os dias em seu tapete e escrito o seu diário.

— É claro — responde Mac, ligeiramente surpreso.

 

De Beirute vamos até Aleppo, e as costumeiras tarefas de comprar coisas, etc. são levadas a termo. Contratamos um chofer para Mary — desta vez, não um “econômico” encontrado na praça, mas um armênio alto com ar preocupado, que, de qual­quer jeito, tem um certo número de testemunhos a favor de sua honestidade e capacidade. Trabalhou durante algum tempo para engenheiros alemães, e, à primeira vista, sua principal desvanta­gem é a voz, que tem um tom alto e irritante. Não restam dúvi­das, porém, de que ele será melhor do que o sub-humano Ab­dullah. Investigações a respeito de Aristides, que gostaríamos de ter novamente conosco, trazem a informação de que ele está agora, orgulhosamente, trabalhando no “serviço público”. Diri­ge um carro-pipa em Der-ez-Zor!

 

Chega a data fatídica, e partimos para Amuda em duas levas diferentes. Hamoudi e Mac, com Mary (agora, despojada de suas honras reais e conhecida como Blue Mary, já que recebeu uma mão de tinta azul algo lúgubre) devem chegar primeiro, e tomar as providências necessárias para que tudo esteja em ordem quan­do chegarmos. Max e eu viajamos grandiosamente de trem até Kamichlie, passando um dia lá para acertar os negócios com as autoridades militares francesas. São mais ou menos quatro horas quando deixamos Kamichlie em direção a Amuda.

É evidente, quando chegamos, que nem tudo correu conforme os planos. Há um ar de confusão geral, e ouvem-se recrimina­ções e queixas. Hamoudi tem aparência aturdida e Mac aparên­cia estóica.

Logo descobrimos o que há.

A casa que alugamos, que deveria ter sido limpa, pintada e desocupada há uma semana, foi encontrada por Mac e Hamoudi completamente imunda, e contendo ainda sete famílias armê­nias!

O que pode ser feito em vinte e quatro horas foi feito, mas o resultado não é nada estimulante.

Hamoudi, a estas alturas já bem treinado na conveniente doutrina de que o conforto das Khatuns vem em primeiro lugar, devotou todas as suas energias a desocupar um quarto de armênios e móveis e coisas e caiar vigorosamente as paredes. Duas ca­mas dobráveis foram armadas para mim e para Max. O resto da casa ainda é um caos, e deduzo que Mac e Hamoudi passaram uma noite bem desconfortável.

Mas tudo vai bem, agora, assegura-nos Hamoudi com seu sorriso irresistível.

As brigas e recriminações que estão ocorrendo agora entre as famílias armênias e o padre designado como seu porta-voz felizmente não nos dizem respeito, e Max os convida a continuar a discussão em outro lugar.

Mulheres, crianças, galinhas, gatos, cachorros — todos chorando, lamentando, gritando, xingando, rezando, rindo, miando, cacarejando e latindo — vão-se embora vagarosamente do pátio, como algum fantástico finale numa ópera.

Pelo que conseguimos entender, todo mundo quis tapear todo mundo. O caos financeiro é completo, e as acaloradas discussões surgidas entre irmãos e irmãs, cunhados, primos e bisa­vós são tão intrincadas que estão além de qualquer compreensão.

Em meio ao caos, porém, nosso cozinheiro (um novo cozinheiro, chamado Dimitri) continua, calmamente, a preparar o jantar. Nós nos sentamos e comemos com gosto, depois do que vamos, exaustos, para a cama. Para a cama — mas não para descansar. Nunca tive uma inimizade exagerada aos ratos. Um ou outro rato num quarto nem me abalam, e, certa vez, desenvolvi até certa afeição por um intruso constante carinhosamente chamado Elsie (sem nenhum conhecimento real de sexo, no entan­to).

Mas nossa primeira noite em Amuda é uma experiência que jamais esquecerei.

Assim que as lâmpadas foram apagadas, dúzias — acredito mesmo que centenas — de ratos começaram a sair de buracos na parede e no chão. Correm alegremente pelo chão, sobre nossas camas, chiando enquanto correm. Ratos no cabelo da gente, na cara da gente — ratos! ratos! RATOS!...

Acendo uma lanterna. Horror! As paredes estão cobertas de criaturas estranhas e pálidas, parecidas com baratas! Um rato está sentado à cabeceira da minha cama, cofiando os bigodes!

Coisas horrorosas que se arrastam por todos os lados!

Max murmura palavras de conforto.

Apenas durma, ele diz. Uma vez que você está dormindo, nada disso te incomoda.

Um ótimo conselho, mas nada fácil de ser seguido. Primeiro a gente tem que adormecer, o que não é nada fácil com ratos fazendo exercícios e praticando esportes em cima de você. Ou pelo menos, é impossível para mim. Max parece conseguir direitinho!

Consigo sobrepujar o meu nojo um pouco. Adormeço levemente, mas pequenos pés correndo pelo meu rosto me acordam. Acendo a luz. Há mais baratas ainda, e uma imensa aranha preta está descendo do teto bem em cima de mim!

A noite continua assim, e devo confessar, envergonhada, que às duas da manhã fico histérica. Assim que amanhecer, vou para Kamichlie esperar pelo primeiro trem, e Vou direto para Aleppo! E de Aleppo vou direto para a Inglaterra! Não agüento essa vida! Não vou agüentar mais! Vou para casa!

Max cuida do problema de uma maneira esplêndida. Levanta, abre a porta, chama Hamoudi.

Cinco minutos mais tarde nossas camas estão no pátio. Durante um tempinho permaneço olhando o sereno céu estrelado. O ar está frio e suave. Adormeço. Imagino que Max tenha solta­do um suspiro de alívio antes de adormecer também.

 

— Você não está pensando mesmo em ir para Aleppo? — pergunta Max ansioso no dia seguinte.

Eu fico meio vermelha ao me lembrar do meu ataque histérico. Digo que não; eu não iria mesmo por nada nesse mundo. Mas eu vou continuar dormindo no pátio, lá isso eu vou!

Hamoudi explica, para me acalmar, que dentro em breve tudo estará bem. Os buracos nas paredes estão sendo tampados com cimento. Mais cal será aplicada às paredes. Além disso, vem um gato: foi emprestado. É um supergato — um gato altamente profissional.

Pergunto a Mac que espécie de noite ele e Hamoudi passaram quando chegaram? Não havia coisas correndo por cima de­les o tempo todo?

— Eu acho que sim — responde Mac calmo como sempre. — Só que eu estava dormindo.

Maravilhoso Mac!

Nosso gato chega na hora do jantar. Nunca esquecerei este gato! Como Hamoudi anunciara, é mesmo um gato altamente profissional. Conhece o trabalho para o qual foi contratado, e trata de fazê-lo de uma maneira verdadeiramente especializada.

Enquanto jantamos, ele fica de tocaia atrás de um caixote. Quando falamos, ou nos mexemos, ou fazemos muito barulho, lança-nos um olhar impaciente. Ele parece dizer:

— Devo pedir aos senhores que fiquem quietos. Como é que posso trabalhar sem a mínima cooperação?

A expressão do gato é tão severa que nós obedecemos imediatamente, falando em sussurros e comendo com o mínimo ba­rulho de copos e pratos possível.

Cinco vezes durante a refeição um rato emerge e corre pelo chão, e cinco vezes o nosso gato pula. A ação é imediata. Não há a perda de tempo ocidental, as brincadeiras com a vítima. O gato simplesmente morde fora a cabeça do rato, mastiga-a e cuida do resto do corpo. É bastante horripilante e completamente profissional.

— O gato fica conosco cinco dias. Depois destes cinco dias, não aparece mais nenhum rato. O gato nos deixa, e os ratos nunca mais voltam. Nunca conheci, nem antes nem depois, outro gato tão competente. Não tinha interesse pela gente, nunca pe­diu leite ou um pouco da nossa comida. Era frio, científico e impessoal. Um gato realmente perfeito!

Agora estamos instalados. As paredes foram caiadas, as janelas e portas pintadas, um carpinteiro e seus quatro filhos se ins­talaram no pátio e estão fazendo a nossa mobília sob medida.

— Mesas! — diz Max. — Principalmente mesas. A gente nunca tem mesas que cheguem.

Peço um gaveteiro, e Max gentilmente me permite mandar fazer um guarda-roupa com ganchos para pendurar os vestidos. Depois os carpinteiros voltam a fazer mais mesas — mesas para espalharmos os nossos cacos, uma prancheta para Mac, uma mesa de jantar, uma mesa para minha máquina de escrever...

Mac desenha um cabide para toalhas e os carpinteiros começam a fazê-lo. Quando fica pronto, o velho o traz até o meu quarto. Parece meio diferente do desenho de Mac, e quando o carpinteiro o coloca no chão, vejo por quê. Tem pés colossais, grandes pés encurvados. Eles ficam tão protuberantes que, onde quer que a gente o coloque, sempre tropeça neles.

— Pergunte a ele por que ele fez estes pés em vez de fazer o que estava desenhado — digo a Max.

O velho nos olha com dignidade.

— Eu os fiz desta maneira para que ficassem bonitos — ele diz. — Eu queria que o que eu fiz fosse um objeto de arte, uma coisa bonita!

A este apelo do artista não pode haver resposta. Abaixo a cabeça e me conformo a tropeçar nestes pés monstruosos duran­te todo o resto da temporada.

Lá fora, na extremidade do pátio, alguns pedreiros estão fazendo um banheiro para mim.

Essa noite, no jantar, pergunto a Mac qual foi o seu primeiro trabalho de arquitetura.

— Este foi o meu primeiro projeto posto em prática — ele responde. — O seu banheiro.

Ele suspira desanimado, e eu me sinto solidária a ele. Temo que não fique muito bem nas memórias de Mac quando ele vier a escrevê-las.

Os sonhos florescentes de um jovem arquiteto não devem encontrar sua primeira expressão num banheiro para a mulher de seu patrão!

Hoje, o Capitaine Le Boiteux e duas freiras francesas vêm tomar chá. Nós os saudamos na aldeia, e os trazemos para casa. Colocada orgulhosamente em frente ao portão está a última obra do carpinteiro — o assento do banheiro!

 

A casa agora está organizada. O quarto em que dormimos na primeira noite, e que ainda está infestado de baratas, é o estúdio. Aqui Mac pode trabalhar sozinho, livre de contatos humanos. Ele, de qualquer jeito, não se incomoda muito com baratas.

Em seguida, vem a sala de jantar. Mais em frente, o quarto-antiquário, onde nossos achados são guardados, os cacos cola­dos, e objetos selecionados e classificados e etiquetados (está cheio de mesas!). Depois vem um pequeno escritório-sala-de-estar, onde repousa a minha máquina de escrever e onde estão colocadas as espreguiçadeiras. No que era a casa do padre, há três quartos — livres de ratos (graças ao nosso gato), livres de ba­ratas (graças às muitas mãos de cal?), mas, infelizmente, ainda cheios de pulgas.

Ainda vamos sofrer um bocado por causa das pulgas. A pulga tem uma vitalidade abundante, e parece ter uma vida milagro­samente protegida. Sobrevive ao Flit e ao DDT e a qualquer es­pécie de mata-pulgas. Untar as camas com inseticida apenas esti­mula as pulgas a fazerem mais exercícios. Explico a Mac que não é tanto a mordida que me incomoda. É a sua energia inesgotável, suas contínuas corridas em volta da gente. É impossível adorme­cer enquanto pulgas estão fazendo seus exercícios noturnos em volta da cintura da gente.

Max sofre mais por causa das pulgas do que eu. Um dia, encontro e mato cento e sete pulgas na dobra do seu pijama. Ele diz que acha as pulgas irritantes. E parece que eu só pego as sobras das pulgas — isso é, aquelas que não conseguiram ficar em Max. As minhas são de segunda-classe, pulgas inferiores, inelegíveis Para altos cargos!

Mac, pelo visto, não tem pulgas. Isso me parece injusto. Parece que ele não lhes agrada muito como campo de esportes!

A vida começa a entrar nos eixos. Max parte todos os dias, de madrugada, para a colina. Na maioria das vezes, vou com ele, embora ocasionalmente fique em casa, cuidando de outras coi­sas, como por exemplo colar cacos e objetos, etiquetá-los e, às vezes, ganhar o meu próprio pão na máquina de escrever. Mac também fica em casa uns dois dias por semana, ocupado no estúdio.

Se eu vou à colina é um longo dia, mas nunca longo demais se o tempo está bom. Faz frio até que o sol esteja bem no alto, mas depois é uma delícia. As flores começam a aparecer por to­dos os lados, principalmente as anemonazinhas vermelhas, que é como eu as chamo, erroneamente (acho que seu nome correto é ranúnculo).

Max trouxe um núcleo de trabalhadores de Jerablus, a cidade natal de Hamoudi. Os dois filhos de Hamoudi, depois de ter­minarem o trabalho da temporada em Ur, vieram ficar conosco. Yahya, o mais velho, é alto, com um sorriso amplo e exagerado. É como um cachorro amistoso. Alawi, o mais novo, é bonito e é, provavelmente, o mais inteligente dos dois. Mas tem um temperamento difícil, assim que volta e meia está metido em alguma briga. Um velho primo, Abd es Salaam, é também capataz. Ha­moudi, depois de deixar o trabalho engrenado, vai voltar para ca­sa.

Uma vez que o trabalho foi iniciado pelos estrangeiros de Jerablus, os trabalhadores da localidade apressam-se para serem recrutados. Os homens da aldeia do Xeque já começaram a trabalhar. Agora, os homens das aldeias vizinhas começam a chegar aos pares. Há curdos, que vêm de além da fronteira turca, alguns armênios e alguns poucos yezidis (chamados de adoradores-do-diabo) — homens gentis, de olhar melancólico, propensos a vira­rem vítimas dos outros.

O sistema é bem simples. Os homens são organizados em turmas. Os que têm alguma experiência prévia em escavações e os que parecem inteligentes e rápidos para aprenderem as coisas ficam com as picaretas. Homens, rapazes e meninos recebem o mesmo pagamento. Mas mais importante do que o pagamento é a comissão (tão cara ao coração oriental). Isto é, uma pequena quantia paga a cada objeto encontrado.

O homem da picareta, em cada turma, é o que tem maiores possibilidades de encontrar objetos. Quando o seu território lhe e designado, ele começa a escavá-lo. Depois dele vem o homem da pá. Com sua pá, ele joga a terra para dentro de cestas que três ou quatro “meninos-da-cesta” levam, então, para um lugar determinado, onde é despejado todo o entulho. Enquanto despejam a terra, procuram por objetos que tenham passado despercebidos ao Qasmagi e ao homem da pá, e como, freqüentemente, eles são menininhos que enxergam longe, não é incomum que pequenos amuletos ou contas lhe dêem uma boa recompensa. Eles amar­ram os seus achados num canto de suas roupas esfarrapadas para mostrá-los no fim do dia. De vez em quando oferecem algum ob­jeto a Max, cujo destino acaba decidido na sua resposta “...conserve-o, ou Shiluh, tire-o daí”. Isso acontece em geral com pequenos objetos — amuletos, cacos de cerâmica, contas, etc. Quando um grupo de potes, ou os ossos de algum funeral, ou paredes de tijolo são encontrados, o capataz encarregado do se­tor chama Max, e tudo se faz com o devido cuidado. Max ou Mac escavam cuidadosamente em torno do grupo de potes — ou da adaga, ou do que quer que seja — com uma faca, limpando a terra, soprando a poeira. Então o achado é fotografado antes de ser removido, e desenhado esquematicamente num caderninho.

Distinguir edificações, quando são encontradas, é também um assunto delicado, que requer um especialista. O capataz geralmente se encarrega, ele próprio, da picareta e vai seguindo os tijolos com cuidado. Mas um trabalhador inteligente, mesmo que seja inexperiente, logo aprende a arte de detectar tijolos, e em breve a gente pode ouvi-lo dizer, com confiança, durante a escavação: “Hadha libn” (Isto é tijolo).

Nossos trabalhadores armênios são, em geral, os mais inteligentes. Sua desvantagem é a sua atitude provocadora — eles sempre conseguem irritar os curdos e os árabes. As brigas, em todo caso, são quase contínuas. Todos os nossos trabalhadores são bem temperamentais, e todos carregam meios para se expressarem — peixeiras, canivetes e uma espécie de soqueira! Cabe­ças são rachadas, e furiosas figuras se agarram em ferozes brigas, se arrancando pedaços, enquanto Max proclama em voz alta as regras da escavação. Haverá uma multa para todos aqueles que brigarem!

— Tratem de brigar fora do horário de trabalho. Durante o trabalho não haverá brigas! Durante o trabalho eu sou o pai de vocês, e vocês farão o que eu mandar. Não vou ouvir os motivos das discussões, nem fazer nada nesse sentido. São precisos dois para começar uma briga, e todos que brigarem serão igualmente multados!

Os homens ouvem e sacodem as cabeças.

— É verdade. Ele é nosso pai. Não deve haver brigas, senão alguma coisa de valor e bom preço pode ser destruída.

No entanto, as brigas continuam. Um homem é despedido por brigar constantemente.

Devo dizer que isso não quer dizer mandado embora de uma vez. Às vezes, um homem é mandado embora por um ou dois dias; e mesmo quando é mandado embora em caráter definitivo, geralmente reaparece um dia depois do dia de pagamento pedin­do para ser readmitido.

Depois de algum tempo de experiência, o dia do pagamento é fixado após um período de cerca de dez dias. Alguns dos ho­mens vêm de lugares bem distantes, trazendo a sua comida com eles. A comida (um saco de farinha e algumas cebolas) acaba em geral em dez dias, e então o homem pede para ir embora para ca­sa, já que sua comida acabou. Uma das grandes desvantagens, como descobrimos, é que os homens não trabalham regularmen­te. Assim que são pagos, eles abandonam o emprego.

— Agora eu tenho dinheiro. Para que vou continuar trabalhando?

Um dia depois, o dinheiro gasto, o homem volta e pede para trabalhar novamente. Para nós isso é bem desagradável, já que uma turma que já se acostumou a trabalhar junta é bem mais eficiente do que uma nova combinação.

Os franceses têm o seu próprio método de lidar com este problema, que lhes causou enormes dificuldades durante a construção da estrada de ferro. Eles costumavam manter metade do pagamento dos seus trabalhadores sempre atrasada. Isso garantia um trabalho contínuo. O tenente aconselhou Max a adotar esse sistema, mas decidimos que não o faríamos, já que do ponto de vista de Max isso é uma injustiça. Os homens ganharam o seu di­nheiro, e têm direito a recebê-lo na íntegra. Assim, temos que agüentar as idas e vindas contínuas. Dá um bocado de trabalho com o livro de caixa, que deve ser revisto e alterado a toda hora.

Tendo chegado à colina às seis e meia, fizemos uma pausa às oito e meia para o café da manhã. Comemos ovos cozidos e pedaços de pão árabe, e Michel (o chofer) prepara um chá quen­te, que bebemos em canecas de ágate, sentados no topo da coli­na, o sol agradavelmente morno e as sombras da manhã tornando a paisagem incrivelmente bonita, com as montanhas turcas azuis ao norte, e pequenas flores vermelhas e amarelas por todos os la­dos. O ar está maravilhosamente doce. É um destes momentos em que a gente se sente feliz de estar viva. Os trabalhadores estão sorrindo, tranqüilos; criancinhas conduzindo vacas vêm e nos olham timidamente. Estão vestidas em farrapos inacreditáveis, seus dentes brilham de tão brancos quando sorriem. Penso com meus botões em como elas parecem felizes, e que boa é a vida que levam; como nos velhos contos de fadas, caminhando pelas colinas tomando conta do gado, às vezes sentando e cantando.

A essa hora, as ditas felizes crianças dos países europeus estão saindo para as salas de aula atulhadas, saindo do ar livre, sen­tando em mesas ou carteiras, pensando em letras do alfabeto, ou­vindo professores, escrevendo com dedos doídos. Imagino se algum dia, daqui a uns cem anos ou mais, a gente não vai dizer, num tom alarmado:

— Naqueles tempos, eles mandavam as pobres criancinhas para a escola, para ficarem sentadas dentro de edifícios durante horas! É horrível só de pensar! Criancinhas!

Voltando desta visão do futuro, dou um sorriso para uma menina com uma tatuagem na testa e lhe ofereço um ovo duro.

Ela sacode a cabeça imediatamente, assustada, e vai embora correndo. Tenho a sensação de ter cometido um engano.

Os capatazes apitam. Hora de voltar para o trabalho. Ando vagarosamente em torno da colina, parando de tempos em tempos em vários trechos do trabalho. A gente sempre espera es­tar exatamente no lugar onde se faz algum achado interessante, mas é claro que isso nunca acontece! Depois de me apoiar esperançosamente na minha bengala durante uns vinte minutos, ob­servando Mohammed Hassan e sua turma, vou ver ‘Isa Daoud, para saber depois que o achado do dia — um lindo jarro de cerâmica trabalhada — foi encontrado assim que eu resolvi mudar de lugar.

— Tenho outro serviço, também. Fico de olho nos meninos-da-cesta, pois alguns, mais preguiçosos, quando levam suas cestas para o entulho, não voltam logo. Sentam ao sol, enquanto examinam a terra da cesta, e às vezes levam meia hora assim, confortavelmente. Outros se enroscam confortavelmente na ter­ra è dão uma boa soneca!

Pelo fim da semana, vou fazer um relatório das minhas descobertas como espiã-mor.

— Aquele menino bem pequenininho, o de turbante amare­lo, é ótimo, ele não pára nunca. Eu despediria Salah Hassan; está sempre dormindo na terra. Abdul Aziz é meio preguiçoso, assim como aquele de casaco azul rasgado.

Max concorda que Salah Hassan já encheu as medidas, mas diz que Abdul Aziz tem olhos tão afiados que nada lhe escapa.

Volta e meia pela manhã, sempre que Max aparece, há um surto de energia completamente fictício. Todo mundo grita “Yallah!”, canta, dança. Os meninos-da-cesta vão e vêm do entulho correndo, jogando suas cestas vazias para o alto, rindo e gritando. Aí tudo morre de novo, e as coisas andam ainda mais vagarosamente do que antes.

Os capatazes usam uma série de gritos de Yallah! encorajadores e uma espécie de fórmula sarcástica, que, presumivelmen­te, já perdeu todo o significado pelo uso constante.

— Vocês são velhas, andando devagar desse jeito? É claro que vocês não são homens. Que moleza! Parecem vacas abati­das! etc. etc.

Eu me afasto do trabalho e vou para o outro lado da colina. Aqui, voltada para o norte, em direção à linha azulada das montanhas, sento entre as flores e entro numa espécie de coma agradabilíssima.

Um grupo de mulheres vem em minha direção. Pelas cores alegres de suas roupas, vejo que são curdas. Estão ocupadas catando folhas e raízes.

Cumprimentam-me, e logo estão sentadas em círculos à minha volta.

As mulheres curdas são alegres e bonitas. Usam cores vivas. Estas usam turbantes de um laranja vivo, e suas roupas são verdes, vermelhas e amarelas. Andam sempre com a cabeça bem le­vantada e são altas, meio curvadas para trás, de modo que sempre têm um ar orgulhoso. Têm rostos bronzeados, com traços re­gulares e bochechas vermelhas e, geralmente, olhos azuis.

Quase todos os homens curdos parecem com um retrato colorido de Lorde Kitchener que havia na parede do maternal, quando eu era criança. O rosto vermelho-tijolo, os grandes bigo­des marrons, os olhos azuis, a aparência feroz e marcial!

Por aqui, o número de povoados árabes e curdos é mais ou menos igual. Levam o mesmo tipo de vida e pertencem à mesma religião, mas a gente consegue distinguir imediatamente uma mulher curda de uma mulher árabe. As mulheres árabes são invariavelmente tímidas e modestas; viram a cabeça quando a gen­te fala com elas; se olham para a gente, é sempre à distância. Se sorriem, é timidamente, e com o rosto escondido. Usam principalmente roupas pretas ou escuras. E mulher árabe jamais iria fa­lar com um homem! Já uma mulher curda não tem a menor dúvi­da sobre se é igual ou melhor do que qualquer homem. Elas saem de casa e brincam com os homens, passando o dia no maior bom humor. E não se incomodam a mínima em chatear seus maridos. Nossos trabalhadores de Jerablus, que não conheciam curdos, fi­caram profundamente chocados.

— Nunca imaginei ver uma mulher respeitável falar com o marido desse jeito!— exclamou um deles. — Eu nem sabia para que lado olhar.

Minhas mulheres curdas desta manhã estão me examinando com o maior interesse e trocando animados comentários umas com as outras. São muito amistosas, sacodem a cabeça para mim, e riem, fazem perguntas, depois suspiram e meneiam a cabeça enquanto batem nos lábios.

Estão claramente dizendo: que pena que não podemos nos entender! Levantam uma prega da minha saia e a olham com interesse; apalpam a minha manga. Apontam na direção da colina. Eu sou a mulher do Khwaja? Digo que sim, com a cabeça. Elas fa­zem mais perguntas, depois riem quando verificam que não po­dem obter respostas. Sem dúvida, querem saber tudo a respeito dos meus filhos e dos meus abortos!

Tentam me explicar o que fazem com as folhas e raízes que colheram. Ah, mas não adianta!

Outra gargalhada irrompe. Elas se levantam, sorriem, me cumprimentam e vão embora, rindo e conversando. São como grandes flores bem coloridas...

Vivem em cabanas de pau a pique, tendo como únicos pertences talvez umas poucas panelas de barro. Apesar disso, a sua alegria e seus risos não são forçados. Acham a vida boa, com um sabor rabelaisiano. São bonitas, temperamentais e alegres.

Minha garotinha árabe passa, conduzindo as vacas. Sorri timidamente para mim, depois vira os olhos correndo.

Ouço, à distância, o apito dos capatazes. Puxa! Já é meio-dia e meia — uma hora de pausa para o almoço.

Volto até onde Max e Mac me esperam. Michel está arrumando o almoço que Dimitri preparou. Temos fatias de carneiro frias, mais ovos cozidos, pedaços de pão árabe, e queijo — o queijo típico daqui para Max e Mac; queijo de cabra, de gosto forte, cor pálida, e com alguns fiapos de pelo. Eu tenho uma sofisticada espécie de gruyère sintético, embrulhada em papel prateado dentro de uma caixa de papelão. Max o olha cobiçosamente. Depois da comida, há laranjas, e canecas de chá quente.

Depois do almoço, vamos ver o lugar da nossa casa.

Fica a cerca de um quilômetro além da aldeia e da casa do Xeque, a sudeste da colina. Está toda traçada, e eu pergunto a Mac se os quartos não serão muito pequenos. Ele acha engraça­do, e explica que isso é efeito dos vastos espaços que nos ro­deiam. A casa vai ser construída com uma grande cúpula central; vai ter uma grande sala de estar e escritório no meio, com dois quartos, um de cada lado. A cozinha e a área ficarão separadas. Poderemos acrescentar mais quartos à estrutura principal se as escavações demorarem muito tempo e nós precisarmos deles.

A alguma distância da casa, vamos cavar um novo poço, para não ficarmos dependendo do poço do Xeque. Max escolhe o lugar e volta para o trabalho.

Fico olhando Mac durante algum tempo, enquanto ele colo­ca as coisas em andamento através de gestos, sinais com a cabe­ça, assobios — tudo, menos a palavra falada!

Por volta das quatro horas, Max começa a percorrer as turmas e a dar a comissão aos homens. À medida que ele se aproxi­ma, eles param, enfileiram-se e mostram os pequenos achados do dia. Um dos meninos-da-cesta mais dinâmico limpou seus acha­dos com cuspe!

Abrindo seu livro imenso, Max começa as operações.

— Qasmagi? (homem da picareta).

— Mohammed Hassan.

O que é que Mohammed Hassan conseguiu? A metade de um grande pote marrom, uma faca de osso, um ou dois fragmentos de cobre.

Max revira a coleção, joga fora, impiedosamente, o que não tem valor — geralmente as peças que deram maiores esperanças ao homem da picareta — coloca as peças de osso numa das caixinhas que Michel carrega, as contas noutra. Os fragmentos de ce­râmica vão para uma das imensas cestas que um menino pequeno carrega.

Max anuncia o preço: dois pence e meio, ou, quem sabe, quatro pence, e anota no livro. Mohammed Hassan repete a so­ma, guardando-a com sua memória prodigiosa.

Pelo fim da semana, uma aritmética terrível nos aguarda. Quando as quantias diárias forem somadas ao pagamento nor­mal, o total é pago. Geralmente, o homem pago sabe exatamente quanto tem a receber. Às vezes, ele diz: “Não está certo — fal­tam dois pence”. Ou, com a mesma freqüência: “O Senhor me deu muito: o Senhor me deve quatro pence a menos”. E muito raramente estão enganados. Alguns erros ocasionais aparecem por causa da semelhança entre os nomes. Há, freqüentemente, três ou quatro Daoud Mohammeds e eles têm de ser distinguidos como Daoud Mohammed Ibrahan, ou Daoud Mohammed Suliman.

Max vai ao próximo homem.

— Seu nome?

— Ahmad Mohammed.

Ahmad Mohammed não tem muita coisa. Para falar a verdade, ele não tem absolutamente nada do que queremos, mas deve ser encorajado, mesmo que com pouca coisa, e assim Max sele­ciona alguns cacos de cerâmica, joga-os na cesta e anuncia alguns tostões.

Em seguida, vêm os meninos-da-cesta. Ibrahim Daoud traz um objeto de aspecto excitante que é, infelizmente, apenas um fragmento de um cachimbo árabe trabalhado. Mas agora vem o pequeno Abdul Jehar, apresentando duvidosamente algumas contas e um outro objeto que Max arrebata com aprovação. Um selo cilíndrico, intacto — e de um bom período. Um achado realmente bom. O pequeno Abdul é premiado, e cinco francos são anotados a seu favor no diário. Ouve-se um murmúrio de excitação.

Não há dúvida de que, para os trabalhadores, jogadores por natureza, a incerteza do negócio é o seu principal atrativo. E é impressionante como uma onda de sorte pode atingir determina­da turma. Às vezes, quando um terreno novo é aberto, Max diz:

— Vou colocar Ibrahim e sua turma neste terreno novo; já encontraram muita coisa ultimamente. Já o pobre Jorge Chuvis­co não tem tido sorte. Vou colocá-lo num bom lugar.

Mas que nada! No canteiro de Ibrahim, — as casas do bairro mais pobre da cidade velha, — imediatamente é encontrado num esconderijo um pote de barro contendo um monte de brincos de ouro — quem sabe o dote de uma filha de tempos antigos. E lá sobe a comissão de Ibrahim, enquanto que Jorge Chuvisco, escavando numa promissora área de cemitério, pega pouquíssimos túmulos.

Os homens que receberam suas comissões voltam para trabalhar com um jeito aéreo. Max continua, até chegar à última turma.

Falta agora meia hora para o sol se pôr. Soa o apito. Todo mundo grita “Acabou! Acabou!” Jogam suas cestas para o alto, tornam a pegá-las, e correm morro abaixo, gritando e rindo.

Um outro dia de trabalho chegou ao fim. Os que vêm de aldeias mais distantes começam a caminhada de volta para casa. Nossos achados, em suas cestas e caixas, são trazidos cuidadosamente e colocados a bordo de Mary. Alguns homens cujas casas ficam no caminho sobem no teto de Mary. Vamos para casa. Mais um dia acabou.

 

Por estranha coincidência, o poço que começamos a cavar prova estar no mesmíssimo lugar onde foi cavado um poço na antigüidade. Isso faz um efeito tão grande, que cinco dias depois, cinco graves e barbados cavalheiros esperam por Max na descida da colina.

Explicam que vieram de povoados muito distantes. Precisam de mais água. O Khwaja sabe os lugares aonde os poços estão escondidos — aqueles poços que os romanos tinham. Se ele lhes in­dicasse os locais, ficar-lhe-iam eternamente agradecidos. Max explica que foi por puro acaso que escavamos no local exato de um poço antigo.

Os cavalheiros sisudos sorriem com gentileza e um ar de dúvida.

— O senhor tem grande sabedoria, Khwaja; isso é sabido. Os segredos da antigüidade são, para o senhor, um livro aberto. Aonde estavam as cidades, aonde estavam os poços, todas essas coisas o senhor sabe. Portanto, indique-nos os lugares certos para escavar e haverá presentes.

Nenhuma das negativas de Max faz efeito. Ele é encarado mais como um mágico que quer guardar para si mesmo o seu segredo. Ele sabe, murmuram os cavalheiros, mas não vai dizer.

— Puxa, eu gostaria que a gente nunca tivesse encontrado este maldito poço romano — diz Max, aborrecido. — Está me causando um mundo de problemas.

Mais complicações aparecem quando temos que pagar aos homens. A moeda oficial do país é o franco francês, mas nessa parte do mundo o mejidi turco esteve tanto tempo em circulação que os habitantes, conservadores, não consideram nada tão satisfatório. Os bazares fazem negócio com o mejidi, enquanto que os bancos, não. Nossos homens se recusam a ser pagos em qualquer coisa que não seja o mejidi.

Assim, tendo conseguido o dinheiro oficial no banco, Mi­chel tem, então, que ser despachado para os bazares para trocá-lo pela moeda ilegal que é o effectif daqui.

O mejidi é uma moeda grande, pesada. Michel cambaleia trazendo bandejas delas — dezenas, centenas! Ele as joga na mesa. Todas são muito sujas, e têm cheiro de alho!

Temos verdadeiros pesadelos nas noites anteriores ao dia de pagamento, contando os nossos mejidis, quase asfixiados com o seu cheiro!

Michel é, sob muitos aspectos, inestimável. É honesto, pontual, e muito escrupuloso. Incapaz de ler ou de escrever, pode li­dar com as operações mais complicadas de cabeça, voltando do mercado com uma longa lista de compras, que chega às vezes até trinta itens ou mais, dizendo de cor o preço de tudo e trazendo o troco exato. Nunca faz um erro sequer em suas prestações de conta.

Ele é, por outro lado, extremamente opressor, extremamen­te brigão com todos os maometanos, muito obstinado e com uma mão infortunadamente pesada para qualquer tipo de mecanismo. Força! ele diz, com os olhos brilhantes, e no minuto seguinte ouve-se um barulho nada animador.

Ainda mais desastrosas são as suas economias. Fica muito sentido quando bananas podres e laranjas ressequidas não são devidamente apreciadas.

— Não havia nada bom, então?

— Havia, mas muito mais caro. Essas são mais econômicas.

É uma grande palavra — Economia! Custa-nos uma fortuna, em simples desperdícios.

O terceiro slogan de Michel é “Sawi proba” (Fazer tentati­va).

Ele o anuncia em todos os tipos de tom de voz — esperançoso, adulador, ansiosamente, confidencialmente, de vez em quan­do, desesperadoramente.

O resultado, geralmente, é dos mais infelizes.

 

Como a nossa lavadeira tem demorado muito a entregar os meus vestidinhos de algodão, eu arrisco pôr o conjunto de Esposa de Construtor-do-Império, que ainda não tive coragem de vestir.

Max dá uma olhada.

— O que diabos você está vestindo?

Digo, defensivamente, que é bonito e confortável.

— Você não pode usar isso! — diz Max. — Vá lá dentro e tire isso do corpo.

— Tenho que usar. Comprei para isto.

— É assustador. Você fica parecendo o tipo mais ofensivo de memsahib — vinda diretamente de Poonah!

Admito, tristemente, que tenho alguma consciência disso.

Max diz, encorajadoramente:

— Bota aquele troço esverdeado, com aqueles losangos Ha­laf escorridos.

— Eu gostaria que você parasse de usar termos de cerâmica para descrever as minhas roupas — digo com mau humor. — É verde-limão! E “losangos escorridos” é um termo detestável — como se fosse alguma coisa meio chupada por uma criança e esquecida no balcão de uma lojinha de aldeia. Não consigo imaginar de onde você tira essas descrições repugnantes para dese­nhos em cerâmica!

— Que imaginação você tem — diz Max. — E o losango escorrido é um desenho muito bonito do monte Halaf.

Ele o desenha para mim num pedaço de papel, e eu digo que sei direitinho do que se trata, e que realmente é um desenho dos mais encantadores. É a descrição que é tão revoltante.

Max olha para mim com tristeza e sacode a cabeça.

 

Ao passarmos pelo povoado de Hanzir, escutamos a seguin­te conversa:

— Quem são estes?

— São os estrangeiros que escavam.

Um velho nos observa, gravemente.

— Como eles são bonitos! — suspira. — Estão cheios de dinheiro!

Uma mulher se aproxima de Max:

— Khwaja! Piedade; interceda pelo meu filho. Levaram ele para Damasco — para a prisão. Ele é um homem bom, não fez nada — nada mesmo, eu juro!

— Mas então por que é que o levaram para a prisão?

— Por nada. É uma injustiça. Salve-o para mim.

— Mas o que é que ele fez, mãe?

— Nada. Juro por Deus. Juro por Deus, é verdade! Ele não fez nada demais, só matou um homem!

 

Agora surge nova preocupação. Vários dos homens de Jerablus caem doentes. Estão em tendas em Chagar Bazar. Três es­tão acamados, e o problema é que nenhum dos outros quer se aproximar deles. Não lhes levam nem água nem comida.

Esse hábito de se evitar os doentes é muito estranho. Mas na verdade, tudo parece ser estranho numa comunidade onde o va­lor da vida humana não tem importância nenhuma.

— Se vocês não levarem comida para eles, eles vão morrer de fome — diz Max.

Seus companheiros dão de ombros.

— Inshallah, se for a vontade de Deus.

Os capatazes, embora com alguma relutância, lembram-se de seu contato com a civilização e fazem o serviço, resmungando. Max apresenta, delicadamente, a questão do hospital. Ele poderia conseguir com as autoridades francesas que os dois ho­mens que estão seriamente doentes fossem admitidos num hospi­tal.

Yahya e Alawi sacodem a cabeça, duvidosos. Será uma desgraça ir para o hospital, pois num hospital acontecem coisas ver­gonhosas. A morte é sempre preferível à desgraça.

Eu penso loucamente em erros de diagnóstico, em negligência.

— Mas o que foram essas coisas vergonhosas que aconteceram? — pergunto.

Max se aprofunda no assunto. Depois, após uma longa série de perguntas e respostas que não consigo acompanhar, ele se volta e explica.

— Um homem deu entrada num hospital, e lá lhe fizeram um clister...

— Sim — digo, esperando o resto da história.

Max diz que isso é tudo.

— Mas o homem morreu?

— Não, mas teria preferido morrer.

— O quê? — exclamo incrédula.

Max diz que é assim mesmo. O homem voltou para sua aldeia, com um ressentimento profundo e amargo. Uma indignidade dessas era muito forte! Para ele, a morte teria sido preferível.

Acostumados, como estamos, às nossas idéias ocidentais sobre a importância da vida, é muito difícil ajeitar nosso pensamento a uma escala de valores diferente. E no entanto, para a mentalidade oriental, tudo é muito simples. A morte sempre vem — é tão inevitável quanto o nascimento, e se vem cedo ou tarde, depende da vontade de Allah. E essa crença, essa aquiescência, acaba com o que é a maldição dos nossos dias — a ansiedade. Pode não haver liberdade de escolha, mas certamente há liberda­de do medo. E a preguiça é um estado natural e abençoado — o trabalho é a necessidade nada natural.

Lembro-me de um velho mendigo que encontramos na Pérsia. Tinha uma barba branca e um ar digno, e falava orgulhosa­mente, apesar de sua mão estendida.

— Dê-me um pouco da sua generosidade, ó Príncipe. Eu tento evitar a morte.

O problema dos dois homens doentes se agrava. Max vai a Kamichlie e expõe suas preocupações ao comandante francês. Os oficiais lá são sempre gentis e prestativos. Max é apresentado ao médico militar francês que volta com ele para a colina e examina os pacientes.

Ele confirma nosso medo de que os homens estejam realmente doentes. Um dos homens, segundo ele, devia estar já se­riamente doente quando veio trabalhar conosco, e nunca se poderia esperar, mesmo, a sua recuperação. Recomenda que os dois sejam levados para o hospital. Os homens são persuadidos a concordar, e são levados para lá imediatamente.

O doutor francês muito gentilmente nos dá, também, um laxante realmente poderoso, que, nos garante, moveria até um cavalo.

É uma coisa de que precisamos, pois os homens vêm constantemente a Max com relatos gráficos de constipações, e laxan­tes comuns parecem não ter o mínimo efeito.

 

Um dos nossos homens doentes morreu no hospital. O outro está se recuperando. A notícia da morte nos chega dois dias depois, e ficamos sabendo que o homem já foi enterrado.

Alawi vem nos procurar com um ar preocupado.

— Trata-se — diz ele — da nossa reputação...

Meu coração encolhe-se um pouco. A palavra reputação vem sempre acompanhada de gastos e mais gastos.

— Esse homem — continua ele, — morreu longe de sua casa. Foi enterrado aqui.. Isso, lá em Jerablus, vai refletir muito mal sobre a gente.

— Mas a gente não podia fazer nada para impedir a morte dele — diz Max. — Ele já estava doente quando chegou, e nós fizemos tudo o que foi possível.

Alawi afasta a morte. A morte não é nada. Não é a morte do homem que importa, e sim o seu enterro.

Pois como é que vai ficar a posição dos parentes do homem — sua família? Ele foi enterrado num lugar estranho. Então, eles terão que sair de casa e vir até onde está o seu túmulo. É uma desgraça um homem não voltar para ser enterrado em sua terra natal.

Max diz que não vê o que possa serfeito agora. O homem está enterrado. O que é que Alawi sugere? Algum dinheiro para a família enlutada?

Isso seria aceitável, sim. Mas o que Alawi está realmente sugerindo é exumação.

— O quê?! Desenterrá-lo?

— Sim, Khwaja. Mande o corpo de volta a Jerablus. Então tudo terá sido feito de maneira honrada, e a sua reputação estará salva.

Max diz que não sabe se isso será possível ou não. Não lhe parece praticável.

Finalmente vamos a Kamichlie para ter uma conversa com as autoridades francesas. Estas, obviamente, pensam que fica­mos malucos.

Mas, inesperadamente, isso instiga a determinação de Max. Ele concorda que é, sem dúvida, uma bobagem, mas é possível?

O doutor dá de ombros. É claro que é possível. Haverá um monte de formulários — montes de formulários. “Et des timbres, beaucoup de timbres”.

— É claro, isso é inevitável — diz Max.

Providências são tomadas. Um chofer de táxi, que deve vol­tar para Jerablus em breve, entusiasticamente aceita a tarefa de conduzir o cadáver (devidamente desinfetado). Um trabalhador, primo do morto, irá junto. Tudo está decidido.

Primeiro, desenterrar; depois, a assinatura de inúmeros formulários e colagem de estampilhas; a prontidão do médico militar, armado com um imenso spray de formol; a colocação do cor­po no caixão; mais formol; o caixão é fechado, o chofer o coloca alegremente em posição.

— Opa! — ele grita. — Vamos ter uma viagem alegre! Te­mos que tomar cuidado para que o nosso amigo não caia pelo ca­minho!

As coisas começam a tomar aquele ar de intensa jocosidade que só pode ser comparado ao espírito de um velório irlandês. O táxi vai embora, com o chofer e o primo cantando a plenos pulmões. A gente sente que esta é uma oportunidade maravilhosa para ambos. Estão se divertindo a valer.

Max dá um suspiro de alívio. Pregou a última estampilha, e pagou as últimas taxas. Os formulários necessários (um pacote volumoso) foram entregues ao chofer.

— Bem! — diz Max. — Acabou-se!

Está enganado. A viagem do morto, Abdullah Hamid, pode­ria ser transformada numa saga poética. Há um momento em que se pensa que seu corpo nunca vai descansar.

O corpo chega direitinho a Jerablus. É recebido com as devidas lamentações, e, concluímos, com um certo orgulho, tão-esplêndida foi a viagem. Há uma grande celebração — uma festa, mesmo. O chofer do táxi, dando graças a Allah, prossegue a sua viagem até Alep. E só depois que ele parte é que se descobre que levou os formulários todo-poderosos.

Então, é o caos. Sem os formulários necessários, o morto não pode ser enterrado. Será necessário que volte para Ka­michlie? Ferozes discussões nascem deste ponto. Mensagens são enviadas — para as autoridades francesas em Kamichlie, para nós, para o incerto endereço do chofer em Alep. Tudo é feito à tranqüila maneira árabe — e no entretempo Abdullah Hamid permanece desenterrado.

Pergunto a Max ansiosamente quanto tempo duram os efeitos do formol. Um novo conjunto de formulários (completo, com les timbres) é obtido e enviado a Jerablus. Chega a notícia de que o corpo vai ser enviado de trem para Kamichlie. Telegramas ur­gentes vão e vêm.

De repente, tudo acaba bem. O chofer reaparece em Jerablus, formulários em punho.

— Que engano! — exclama ele.

O funeral é realizado em ordem com a maior decência. Alawi nos assegura que a nossa reputação está salva. As autori­dades francesas ainda nos consideram malucos. Nossos trabalha­dores aprovam, sisudos. Michel está furioso — que falta de eco­nomia! Para aliviar sua tensão, fica batendo tutti embaixo das ja­nelas até altas horas da madrugada, até ser forçado a parar.

Tutti é o nome que se dá em geral para todas as construções e todos os usos de tambores de óleo. A gente não consegue imaginar o que a Síria faria sem tambores de óleo! Mulheres buscam água no poço em tambores de óleo. Tambores de óleo são corta­dos e pregados em tiras nos telhados e para remendar casas.

Michel nos conta, numa explosão de confidências, que sua ambição é ter uma casa toda feita de tutti.

— Vai ser linda — diz embevecido. — Muito linda.

 

FIN DE SAISON

Chagar Bazar está indo bem, e B. chega de Londres como ajuda extra no último mês.

É interessante observar B. e Mac juntos — são um contraste tão completo! B. é um animal definitivamente sociável, Mac, um definitivamente insociável. Eles se dão muito bem, mas se olham um ao outro com uma maravilhosa perplexidade.

Um dia, quando estamos indo para Kamichlie, B. mostra uma preocupação repentina.

— É meio chato deixar o coitado do Mac sozinho o dia inteiro. Seria melhor que eu ficasse com ele.

— Mac gosta de ficar sozinho — garanto-lhe.

B. parece incrédulo. Vai para o estúdio.

— Vem cá, Mac, será que você gostaria que eu ficasse muito chato ficar sozinho o dia inteiro.

Um ar consternado aparece no rosto de Mac.

— Oh — ele diz. — Mas eu estava esperando por isso.

— Sujeito esquisito ele é — diz B. enquanto sacolejamos rumo a Kamichlie. — Você sabe aquele pôr-do-sol de ontem? Lindo! Eu estava no teto, olhando. Achei Mac lá. Confesso que estava meio entusiasmado, mas o Mac não disse nem uma palavra. Nem respondeu. No entanto, acho que ele subiu só para ver, não é?

— É, ele costuma subir lá ao anoitecer.

— É tão esquisito que ele não diga nada, então.

Imagino Mac no teto, distraído e silencioso, B. falando e falando entusiasmado a seu lado.

Mais tarde, sem dúvida, Mac, em seu quarto escrupulosamente limpo, sentará em seu tapete e escreverá no seu diário...

— Quero dizer, você não... — B. continua com perseve­rança, mas é interrompido quando Michel, cruzando a pista com intenções diabólicas, pisa com força no acelerador e arremete contra um grupo de árabes, duas velhas e um homem com um burro.

Eles fogem gritando, e Max se supera a si mesmo xingando Michel.

— O que diabos ele pensa que está fazendo? Poderia tê-los matado!

Isso, aparentemente, era mais ou menos a intenção de Michel.

— E daí? — ele pergunta, jogando as duas mãos para o alto e deixando que o carro siga seu próprio caminho. — São maometanos, não é?

Depois de manifestar este sentimento altamente cristão (segundo seu ponto de vista), cai no martirizado silêncio das pessoas incompreendidas. Que espécie de cristãos são estes, parece dizer de si para si, irresolutos e fracos na fé?!

Max estabelece a lei de que atentados a maometanos não são permitidos.

Michel fala baixo, por entre dentes:

— Pois seria melhor que todos os maometanos estivessem mortos.

 

Além dos nossos negócios costumeiros em Kamichlie, visitas ao Banco, compras no seu Yannako, e uma visita de cortesia aos franceses, B. tem negócios particulares a resolver — mais precisamente, buscar uma encomenda que lhe mandaram da Inglater­ra, contendo dois pijamas.

Recebemos uma notificação oficial de que a encomenda em questão está esperando no Correio, e assim vamos para o Cor­reio.

O chefe não está à vista, mas é chamado através de uma janelinha na parede. Aparece bocejando, vestido num pijama listrado. Embora tenha, evidentemente, sido arrancado do mais pe­sado dos sonos, é amável e gentil, dá a mão a todos, pergunta Pelo progresso das nossas escavações: encontraram algum ouro? Vamos tomar um cafezinho com ele? E assim, tendo preenchido todos os requisitos da boa educação, mudamos para o assunto da correspondência. Nossas cartas agora chegam no Correio de Amuda — o que não foi uma idéia muito feliz, já que o velho chefe do Correio de Amuda as acha tão preciosas que freqüentemente as guarda no cofre para valores e se esquece de entregá-las.

A encomenda de B., porém, ficou retida em Kamichlie, e começamos as negociações para que nos seja entregue.

— Ah, sim, chegou essa encomenda, sim — diz o chefe. — Veio de Londres, Inglaterra. Ah, que cidade grande essa deve ser! Como eu gostaria de vê-la! Está endereçada a um certo se­nhor B.

Ah, este é o senhor B., nosso novo colega? Dá a mão novamente a B. e murmura alguns cumprimentos amistosos. B. res­ponde gentil e corretamente, em árabe.

Depois desse interlúdio, voltamos ao assunto. Sim, diz o chefe — a encomenda esteve aqui, aqui no escritório, mesmo. Mas não está mais. Foi para o escritório da Alfândega. Monsieur B. tem que compreender, afinal, encomendas têm que passar pela Alfândega.

 

B. diz que são objetos de uso pessoal.

— Sem dúvida, sem dúvida, — diz o chefe. — Mas é problema da Alfândega.

— Então, temos que ir à Alfândega?

— Isso seria o certo     diz o chefe. — Só que não vai adian­tar nada hoje. Hoje é quarta-feira, e às quartas a Alfândega está fechada.

— Amanhã, então?

— É. Amanhã a Alfândega estará aberta.

— Sinto muito — diz B. a Max. — Acho que a gente vai ter que voltar amanhã para levar a minha encomenda.

O chefe diz que é claro que Monsieur B. vai ter que voltar amanhã, mas mesmo assim não vai poder levar a sua encomenda.

— Por quê? — pergunta B.

— Porque depois que tudo estiver resolvido na Alfândega, a encomenda volta para o Correio.

— Quer dizer que terei que voltar aqui?

— Exatamente. E isso não será possível amanhã, pois amanhã o Correio estará fechado — diz o chefe, triunfante.

Nós examinamos a questão com cuidado, mas a burocracia triunfa a toda hora. Pelo visto, não há um dia da semana em que a Alfândega e o Correio estejam abertos ao mesmo tempo.

Nós nos viramos e imediatamente começamos a repreender o pobre B., e a lhe perguntar por que cargas d’água ele não pode trazer a porcaria dos seus pijamas consigo, em vez de mandá-los pelo Correio.

— Porque — diz B. se defendendo — eles são pijamas mui­to especiais.

— Devem ser mesmo, — diz Max — levando em conta o trabalho que estão dando! Esse caminhão é para ir e vir da escavação, e não para ficar vindo a Kamichlie como serviço postal!

Tentamos persuadir o chefe do Correio a deixar B. assinar os formulários de encomenda agora, mas ele se mostra irredutí­vel. Formulários só podem ser preenchidos depois da Alfândega. Derrotados, deixamos o Correio, e o chefe, ao que supomos, vol­ta para a cama.

Michel vem nos encontrar excitado e diz que conseguiu uma ótima pechincha. Comprou duzentas laranjas por um preço mui­to econômico. Como sempre, leva uma bronca. Como é que ele imagina que vamos conseguir dar conta de duzentas laranjas antes que se estraguem — isto é, se já não estiverem estragadas?

Michel admite que algumas delas estão, talvez, um tiquinho passadas, mas são muito baratas e pode-se obter um bom desconto nas duzentas. Max concorda em inspecioná-las, e ao fazê-lo, recusa-as imediatamente. A maioria já está coberta por um mofo esverdeado!

Michel murmura com tristeza: “Economia!” Apesar de tu­do, são laranjas. Ele vai embora, e volta com algumas galinhas econômicas, carregando-as, como de hábito, de cabeça para bai­xo, com os pés amarrados. Outras compras econômicas e anti­econômicas tendo sido feitas, voltamos para casa.

Pergunto a Mac se ele teve um bom dia, e ele responde: “Esplêndido!” com um inegável entusiasmo.

Olhando espantado para Mac, B. se senta numa cadeira inexistente, e o dia perfeito de Mac tem um final brilhante. Nunca vi ninguém rir tanto. No jantar, em intervalos, recomeçava novamente. Se tivéssemos sabido o que desperta o humor de Mac, poderíamos ter dado um jeito de arranjar-lhe um bocado de distra­ção!

 

B. continua tentando ser sociável. Nos dias em que Max está na colina e nós três ficamos em casa, ele fica perambulando como uma alma penada. Vai até o estúdio, fala com Mac, mas, não obtendo nenhuma resposta, vem triste para o escritório, onde eu estou ocupada batendo os horripilantes detalhes de um assassinato na máquina.

— Oh — diz B. — você está ocupada?

Digo “sim” secamente.

— Escrevendo? — pergunta B.

— Sim (mais secamente ainda).

— Eu estava pensando, talvez eu pudesse trazer os rótulos e objetos para cá — diz B. esperançoso. — Eu não atrapalharia, atrapalharia?

Tenho que ser firme. Explico claramente que é totalmente impossível lidar com o meu corpo morto se há nas vizinhanças um corpo vivo, respirando, se mexendo, e, com toda a probabili­dade, falando.

O pobre B. vai-se embora triste, condenado a trabalhar em solidão e silêncio. Cada vez fico mais convencida que, se um dia B. escrever um livro, ele o fará mais facilmente com um rádio e uma vitrola ligados bem perto, e algumas conversas pelo mesmo quarto.

Mas quando chegam visitas, na colina ou em casa, então B. está em seu elemento.

Freiras, oficiais franceses, arqueólogos visitantes, turistas — B. está sempre pronto e desejoso de lidar com todos eles.

— Tem um carro chegando aí com algumas pessoas. Vou lá para ver quem são?

— Oh, por favor, vá mesmo!

E lá para as tantas a turma aparece, devidamente escoltada, com B. falando em qualquer língua que se faça necessária. Nes­sas ocasiões, como lhe dizemos, B. vale seu peso em ouro.

— Mac não é lá essas coisas, não é? — diz B. piscando para Mac.

— Mac não serve de jeito nenhum — digo severamente. — A gente sequer tentaria.

Mac dá seu sorriso gentil e distante...

Mac, como descobrimos, tem um fraco. Esse fraco é O Cavalo.

 

O problema do pijama de B. foi resolvido deixando-se Mac na escavação de manhã, o caminhão continuando com B. até Kamichlie. Mac quer vir para casa na hora do almoço, e Alawi suge­re que ele volte a cavalo. O Xeque tem vários cavalos. No mesmo instante a fisionomia de Mac se ilumina. A tranqüila indiferença desaparece, substituída pela avidez.

Daí em diante, sempre que há a menor desculpa, Mac aparece em casa cavalgando.

— O Khwaja Mac nunca fala — diz Alawi. — Ele assobia. Quando ele quer que o menino com as varas vá para a esquerda, ele assobia; quando precisa do pedreiro, assobia; agora, assobia por cavalos!

O problema do pijama de B. ainda não foi resolvido. A Alfândega está exigindo a exorbitância de oito libras! B. explica que os pijamas custaram apenas duas libras o par e se recusa a pagar. Cria-se, então, uma situação das mais intrincadas. A Alfândega quer saber o que fará com os pijamas. Devolvem a encomenda ao Correio. O chefe não pode entregá-la a B., nem deixá-la sair do país. Gastamos várias horas e dias indo a Kamichlie e discutindo o assunto. O gerente do Banco aparece para dar sua opinião, e os oficiais dos Services Spéciaux também. Até mesmo um alto dignitário da Igreja maronita que está visitando o gerente do Banco vem dar uma mãozinha, muito impressionante em suas vestes vermelhas, uma cruz imensa e um grande tufo de cabelos! O chefe dos Correios, ainda de pijama, não consegue mais dor­mir. O caso todo está se tornando, rapidamente, um incidente in­ternacional.

De repente, tudo se resolve. O chefe da Alfândega de Amu­da aparece na nossa casa, trazendo a encomenda. Todas as complicações foram resolvidas: trinta shillings pela encomenda, douze francs cinquante pour les timbres, et des cigarettes, n’est ce pas? (Empurramos pacotes de cigarros para suas mãos) “Voilá, Mon­sieur!” Ele se inclina, B. se inclina, todo mundo se inclina. Rodeamos B. e ficamos observando-o abrir sua encomenda.

Ele segura o conteúdo orgulhoso, explicando, como o Cavaleiro Branco, que essa é uma invenção especial, feita por ele!

— Mosquitos — explica. — Acaba com os mosquiteiros.

Max diz que jamais viu algum mosquito por aqui.

— Mas é claro que há mosquitos — diz B. — Todo mundo sabe. Água parada!

Meus olhos se voltam imediatamente para Mac.

— Não há água parada por aqui — eu digo. — Se houvesse, Mac já teria descoberto!

B. diz, triunfante, que há uma poça de água parada ao norte de Amuda.

Max e eu repetimos que jamais vimos algum mosquito. B. não presta atenção, e continua louvando sua invenção.

Os pijamas são de seda branca. São feitos numa peça só, com um capuz que cobre a cabeça, e as mangas terminam em luvas sem dedos. São fechados na frente com um zíper, de modo que as únicas partes do corpo de quem os estiver vestindo que ficam expostas aos mosquitos são os olhos e o nariz.

— E você respira pelo nariz, o que mantém os mosquitos afastados — diz B. triunfante.

Max repete secamente que aqui não há mosquitos.

B. tenta nos fazer ver que, quando todos nós estivermos febris, tremendo de malária, vamos nos arrepender de não ter adotado sua invenção.

Mac, de repente, começa a rir. Nós o olhamos interrogativamente.

— Estou me lembrando daquela vez em que você se sentou e a cadeira não estava lá — diz Mac, e continua rindo alegremen­te.

Estamos dormindo feito pedras aquela noite quando explo­de um tremendo quiproquó. Pulamos fora da cama, pensando, no momento, que estamos sendo atacados por ladrões. Corremos todos para a sala de jantar. Uma figura de branco está correndo loucamente para um lado e para outro, gritando e pulando.

— Deus do Céu, B., qual é o problema? — pergunta Max.

Por um instante, pensamos que B. enlouqueceu.

Mas tudo se esclarece.

De um ou outro jeito, um rato conseguiu se enfiar dentro do pijama à prova de mosquitos! O zíper enguiçou.

Quando amanhece, nós ainda estamos rindo.

Só B. é que não achou muita graça. 

 

A temperatura está cada vez mais quente. Novas flores aparecem pelo chão. Não sou botânica, não sei seus nomes, e, fran­camente, nem quero saber (qual é o prazer que lhe dá saber como as coisas são chamadas?). Mas há umas azuis, outras rosa-pastel, como pequenos tremoços e tulipinhas selvagens; e umas douradas, como cravos-de-defunto e delicadas espigas florescentes. Todas as colinas são verdadeiras orgias de cores. Essa é, real­mente, “a estepe fértil”. Visito o quarto-antiquário, e pego al­guns jarros de forma apropriada. Mac, querendo desenhá-los, procura por eles em vão. Estão cheios de flores.

 

Nossa casa está crescendo rapidamente. As estruturas de madeira foram erguidas e os tijolos estão sendo colocados. O efeito final será muito bom. Dou os parabéns a Mac, parada ao lado dele na colina.

— Isso é muito melhor do que o meu banheiro — digo.

O bem sucedido arquiteto concorda. Queixa-se, porém, dos seus homens, que não têm a mínima idéia do que seja, segundo ele diz, “exatidão”. Digo que tenho certeza que eles não têm, mesmo. Mac diz amargamente que eles só fazem rir e achar que não têm importância. Mudo a conversa, falando de cavalos, e Mac fica animado outra vez.

Com o tempo quente, o temperamento dos nossos homens esquenta também. Max aumenta as multas por cabeças quebradas e, finalmente, apela para uma decisão extrema. Todas as ma­nhãs, os homens têm que entregar as suas armas antes de irem trabalhar. É uma decisão pouco popular, mas, relutantemente, os homens concordam. Sob a supervisão de Max, soqueiras, maças, e longas facas de aspecto assassino são entregues a Michel, que as tranca em Mary. Ao entardecer, são devolvidas a seus donos. É uma perda de tempo e é cansativo, mas, pelo menos, os ho­mens escapam de estragos mais sérios.

Um trabalhador yezidi vem e se queixa que está quase morto de sede. Não pode trabalhar a menos que beba água.

— Mas há água aqui — por que você não bebe?

— Não posso beber daquela água. Vem do poço, e essa manhã o filho do Xeque jogou alface no poço.

Os yezidis, por sua religião, nunca devem mencionar alface °u tocar alguma coisa contaminada por ela, pois acreditam que Shaitan morou nela.

Max diz:

— Bem, eu acho que andaram contando mentiras a você. Pois essa manhã mesmo vi o filho do Xeque em Kamichlie, e ele me disse que já estava lá há dois dias. Disseram isso para enganar você.

O Decreto do Tumulto é, então, lido para os trabalhadores reunidos. Ninguém deve contar mentiras ou perseguir os yezidis. “Nesta escavação, todos são irmãos”.

Um maometano de olhar vivaz dá um passo à frente.

— O senhor segue Cristo, Khwaja, e nós seguimos Maomé, mas ambos somos inimigos de Shaitan (o diabo). Assim, é nosso dever perseguirmos aqueles que acreditam que Shaitan voltará e que o adoram.

— Então, fazer o seu dever lhe custará cinco francos de cada vez — diz Max.

Depois disso, não temos mais queixas dos yezidis, durante al­gum tempo.

Os yezidis são um povo amável, curioso e singular, e seu cul­to a Shaitan (Satã) tem mais o aspecto de um sacrifício. Além dis­so, eles acreditam que este mundo foi posto sob as ordens de Shaitan por Deus — e à era de Shaitan sucederá a de Jesus, que eles reconhecem como profeta, mas que ainda não tem poderes. O nome de Shaitan nunca deve ser pronunciado, assim como nenhuma palavra parecida.

Sua mesquita sagrada, Sheikh’Adi, fica situada nas montanhas curdas perto de Mosul, e nós a visitamos quando estivemos fazendo escavações lá por perto. Acho que não pode haver no mundo lugar mais bonito ou pacífico. Você sobe as montanhas, através de carvalhos e romãzeiras, seguindo um riacho da monta­nha. O ar é fresco, claro e puro. Deve-se ir a pé ou a cavalo nos últimos quilômetros da jornada. Dizem que a natureza humana é tão pura por estes lados que as mulheres cristãs podem-se banhar nuas nos riachos.

E, de repente, chega-se às torres brancas da mesquita. Tudo é calmo, e tranqüilo e cheio de paz por aqui. Há árvores, um pá­tio, água corrente. Guardiões de aspecto amável trazem refres­cos, e você se senta na mais perfeita paz, bebendo chá. No pátio interno, está a entrada para o templo, à direita da qual está escul­pida uma grande serpente negra. A serpente é sagrada, já que os yezidis acreditam que a arca de Noé encalhou no Jebel Sinjar e que ficou com um buraco. A serpente se enrolou e tampou o bu­raco para que a arca pudesse prosseguir.

Depois tiramos os sapatos e fomos conduzidos ao interior do templo, passando cuidadosamente sobre as soleiras das portas, já que é proibido pisar numa soleira. É proibido também mostrar as solas dos pés, um feito meio difícil quando se tem que sentar de pernas cruzadas no chão.

O interior é escuro e fresco e há o barulho da água, a fonte sagrada, que dizem que se comunica com Meca. A Imagem do Pavão é trazida para este templo em épocas de festa. O pavão foi escolhido como o representante de Shaitan, dizem alguns, por­que seu nome era a palavra mais diferente do Nome Proibido. De qualquer maneira, é Lúcifer, Filho da Manhã, que é o anjo-pavão da fé yezidi.

Nós saímos e nos sentamos novamente no silêncio fresco e na paz do pátio. Ambos nos sentíamos deprimidos em voltar des­te santuário da montanha para a confusão do mundo lá embai­xo...

Sheikh’Adi é um lugar que nunca esquecerei — assim como não esquecerei a grande paz e satisfação que possuíram o meu espírito lá...

O cabeça dos yezidis, o Mir, veio uma vez à nossa escavação no Iraque. Um homem alto, de ar triste, todo vestido de preto. Ele é o papa, bem como o chefe, apesar da tradição local dizer que este Mir em particular era completamente dominado pela tia, a Khatun da Mesquita de Sheikh’Adi e sua mãe, uma bela e ambiciosa mulher que manteria o filho drogado para poder exer­cer a sua autoridade.

Durante uma viagem pelo Jebel Sinjar, fizemos uma visita ao Xeque yezidi de Sinjar, Hâmo Shero, um homem muito velho, de quem se dizia ter noventa anos de idade. Durante a guerra de 1914-1918 centenas de refugiados armênios fugiram dos turcos, e foram abrigados no Sinjar. Suas vidas foram salvas.

 

Outra discussão furiosa ocorre sobre o dia de descanso. O dia seguinte ao dia do pagamento é sempre feriado. Os maometanos alegam que, como há mais maometanos na escavação do que cristãos, o dia de descanso tem que cair na sexta-feira. Os armênios, porém, se recusam terminantemente a trabalhar aos domingos, e dizem que, como esta é uma escavação cristã, o domingo é que deveria ser feriado.

Decretamos que o feriado será sempre uma quinta-feira, que, pelo que sabemos, não é data especial em nenhuma religião.

Ao entardecer, os capatazes vêm até nossa casa, tomam um café conosco, e falam das dificuldades ou problemas que tenham aparecido.

O velho Abd es Salaam está particularmente eloqüente esta tarde. Sua voz se eleva num longo e apaixonado monólogo. Ape­sar de ouvir com toda a atenção, não consigo descobrir do que se trata. No entanto, é tão dramático, que minha curiosidade é despertada. Quando Abd es Salaam pára para tomar fôlego, pergun­to a Max o que é que há.

Max responde numa única palavra: “Constipação”.

Sentindo o meu interesse, Abd es Salaam se vira em minha direção e apresenta mais detalhes retóricos de sua condição.

Max diz:

— Ele já tomou Eno, Beecham, laxantes vegetais, óleo de rícino. Ele está te dizendo como cada um deles fez ele se sentir, e como nenhum conseguiu o resultado desejado.

É evidente que este é um caso para o remédio de cavalo do doutor francês. Max administra uma dose terrível! Abd es Sa­laam vai embora esperançoso, e todos rezamos por um final feliz.

Agora ando bastante ocupada. Além de consertar cerâmica, há a fotografia — uma “câmara escura” me foi designada. De alguma maneira, lembra as solitárias da Idade Média.

Nela, a gente não pode nem se sentar, nem ficar em pé. Revelo filmes de quatro, me ajoelhando com a cabeça bem baixa. Saio de lá praticamente asfixiada pelo calor, incapaz de ficar em pé, e tirando um enorme prazer em relatar os meus sofrimentos, se bem que a audiência não seja das mais atenciosas — todo o seu interesse está nos negativos, e não na reveladora.

Max, de vez em quando, se lembra de dizer, carinhosamen­te: “Você é maravilhosa, querida”, de um jeito um tanto ou quanto distraído.

 

Nossa casa está pronta. Do alto da colina chega a ter uma aparência sagrada, com sua grande cúpula branca erguendo-se contra o solo torrado pelo sol. É muito agradável por dentro. A cúpula dá uma sensação de espaço, e é bem fresco. Os dois quartos de um lado são, primeiro o quarto-antiquário, e depois, o nosso quarto, meu e de Max. No outro lado fica o estúdio e depois um quarto dividido por Mac e B. Nós só vamos passar aqui uma semana ou duas, este ano. A época da colheita já chegou, e os homens abandonam o trabalho todos os dias para trabalharem no campo. As flores desapareceram da noite para o dia, pois os beduínos desceram das montanhas, suas tendas marrons estão espa­lhadas por todos os lados e seu gado vai pastando à medida que eles se dirigem para o sul.

Devemos voltar no ano que vem — voltar para casa, pois essa casa com cúpula no meio do nada já tem um ar de lar.

O Xeque, em suas roupas brancas, dá voltas e voltas em torno dela, seus olhinhos pequenos brilhando. No devido tempo, essa será a sua herança, e ele já sente um prestígio extra por conta dela.

Vai ser bom ver a Inglaterra novamente. Bom ver os amigos e a grama verde, e árvores altas. Mas será bom, também, voltar no ano que vem.

Mac está fazendo um esboço. É um esboço da colina — uma vista muito formal, mas que admiro muito.

Não há seres humanos; só traços e riscos. Descubro que Mac não é apenas arquiteto. Ele é um artista. E peço-lhe para desenhar uma capa para o meu próximo livro.

B. entra e se queixa de que todas as cadeiras já estão empacotadas e que não há onde se sentar.

— Para que você quer se sentar? — pergunta Max. — Há muito trabalho para ser feito.

Ele sai, e B. me diz, com ar ultrajado:

— Que homem vigoroso esse seu marido é!

Fico imaginando quem acreditaria nisso se visse Max dormindo numa tarde de verão na Inglaterra...

Começo a pensar em Devon, em rochas avermelhadas e no mar azul... É maravilhoso ir para casa — minha filha, o cachorro, potes de creme de Devonshire, maçãs, banhos de banhei­ra... Suspiro, em êxtase.

 

FIM DE VIAGEM

Nossos achados têm sido encorajadores, e vamos continuarescavando por mais uma temporada.

Este ano teremos uma equipe diferente.

Mac está em outra escavação na Palestina, mas espera vir ficar conosco pela última semana da temporada.

Assim, teremos um novo arquiteto. Haverá também um membro extra na equipe — o Coronel. Max espera escavar alternadamente na colina Brak e em Chagar, e o Coronel pode se en­carregar de uma das escavações enquanto Max estiver na outra.

Max, o Coronel e nosso novo arquiteto irão primeiro, e eu irei em seguida, algumas semanas depois.

Mais ou menos na véspera da partida, nosso arquiteto telefona procurando Max, que saiu. Parece preocupado. Pergunto se há alguma coisa que eu possa fazer? Ele diz:

— Bem, é a respeito da viagem. Eu estou na Cook tentando reservar um compartimento para mim num carro-leito para o lugar que Max falou, mas eles dizem que esse lugar não existe.

Eu o tranqüilizo.

— É, eles muitas vezes dizem isso mesmo. Ninguém vai, jamais, aos lugares que nós costumamos ir, por isso nunca ouviram falar deles.

— Me parece que eles estão pensando que o lugar para onde eu estou querendo ir mesmo é Mosul.

— Bem — eu digo — isso você não está.

Depois me lembro de estalo;

— Você pediu Kamichlie ou Nisibin?

— Kamichlie! Não é esse o nome do lugar?

— É o nome do lugar, exatamente. O nome da estação é Nisibin — fica no lado turco da fronteira. Kamichlie é a cidade síria.

— Ah, bom. Isso explica tudo. Max não disse que eu devia levar mais alguma coisa, não é?

— Penso que não Você está levando bastante lápis, não está?

— Lápis? — a voz parece surpresa. — Claro.

— Você vai precisar de um bocado de lápis — digo. Sem perceber completamente o sinistro significado disto, ele desliga.

 

Minha viagem até Istambul é tranqüila, e consigo passar a minha quota de sapatos sem maiores problemas pela Alfândega turca!

Em Haidar Pacha descubro que tenho que dividir o compartimento com uma volumosa senhora turca. Ela já tem seis malas, duas cestas esquisitas, alguns pacotes, e vários sacos de manti­mentos. Quando acabo de instalar minhas duas malas e uma cai­xa de chapéus, simplesmente não há mais espaço para as nossas pernas.

A senhora volumosa foi acompanhada até a estação por outra senhora mais magrinha e vivaz. Ela se dirige a mim em francês, e conversamos amavelmente. Eu vou até Alep? Ah, a sua prima não vai tão longe! Eu falo alemão? Sua prima fala um pouquinho de alemão.

Não, infelizmente eu não falo alemão! E não fala turco, também? Não, também não falo turco!

Que lástima! Sua prima não sabe falar francês! E o que é que faremos durante a viagem? Como poderemos conversar?

Digo que está parecendo que não vamos conversar.

— Mas que azar! — diz a prima vivaz. — Seria muito interessante para vocês duas. Mas antes que o trem vá embora, va­mos falar tudo o que pudermos. Você é casada, não é?

Admito que sou casada.

— E crianças — você tem muitas crianças, sem dúvida? Minha prima tem só quatro filhos — mas — acrescenta a prima, or­gulhosamente — três são meninos!

Sinto que, pelo bem do prestígio britânico, não posso confessar que estou perfeitamente satisfeita com apenas uma filha. Mentindo descaradamente, adiciono à conta um par de filhos a mais.

— Excelente! — diz a prima, radiante. — Agora, quanto aos abortos: quantos abortos você já teve? Minha prima teve cin­co — dois aos três meses, dois aos cinco meses, e um bebê pre­maturo que nasceu morto, de sete meses.

Estou exatamente imaginando se vou ou não inventar um aborto para aumentar o sentimento de amizade, quando soa um misericordioso apito, e a prima vivaz pula para fora do vagão.

— Vocês devem contar todos os detalhes uma para a outra através de sinais — ela grita.

A perspectiva é alarmante, mas nós nos entendemos bastante bem através de acenos, gestos e sorrisos. Minha companheira me oferece generosas porções do seu imenso suprimento de co­mida supertemperada, e eu lhe trago uma maçã do carro-restaurante como retribuição cortês.

Depois que as cestas de comida foram abertas, sobrou ainda menos espaço para nossos pés, e o cheiro de comida e de almís­car é quase esmagador.

Quando a noite chega, minha companheira de viagem certifica-se de que a janela está bem trancada. Vou para o beli­che de cima, e espero até que suaves e rítmicos roncos venham do de baixo.

Então, bem devagarzinho, escorrego para baixo, e sub-repticiamente abro um pedaço da janela. Torno a subir, quieta e escondida.

Grande pantomima de surpresa pela manhã, quando se descobre a janela aberta! Com gestos e mais gestos, a senhora turca tenta me garantir que não teve culpa. Ela pensou que tivesse fe­chado direito! Eu a tranqüilizo, também por meio de gestos, que nem por um momento a estou culpando de nada. Tenho a im­pressão de que isso é uma dessas coisas que costumam acontecer de vez em quando, sem mais nem menos.

Quando chegamos à estação da senhora turca, ela se despede de mim com grande cortesia. Nós sorrimos, acenamos, nos curvamos, e exprimimos todo o nosso pesar pela barreira da língua, que nos impediu de trocar idéias sobre os fatos essenciais da vida.

Na hora do almoço, sento-me ao lado de uma velhinha americana. Ela olha, pensativamente, para as mulheres que estão tra­balhando no campo.

— Pobres coitadas! — ela suspira. — Fico pensando se elas se dão conta de que estão livres!

— Livres? — digo, meio perdida.

— Pois, claro; elas não usam mais véus. Mustapha Kemal acabou com isso. Agora elas estão livres.

Olho, pensativamente, por minha vez, para as trabalhadoras. Não me parece que isso tenha o menor significado para elas. Seu dia é uma roda-viva de trabalho, e duvido muito de que algum dia jamais tenham tido o luxo de cobrirem seus rostos. Nenhuma das mulheres de nossos trabalhadores cobre.

No entanto, desisto de discutir o assunto.

A senhora americana chama o servente, e lhe pede um copo de água quente.

— Je vais prendre des remèdes — ela diz.

O homem não entende. Pergunta se ela gostaria de tomar chá, ou café? Com alguma dificuldade, conseguimos explicar-lhe que o que se quer é pura e simplesmente água quente.

— Você quer tomar alguns sais comigo? — pergunta amistosamente minha nova amiga, como se estivesse me convidando para tomar uns drinques.

Eu agradeço, e explico que não sou muito chegada a sais.

— Mas eles fazem bem — ela insiste.

— Tenho a maior dificuldade em evitar que o meu organis­mo seja drasticamente purificado.

Volto para o meu compartimento, e imagino como está indo a constipação de Abd es Salaam este ano!

 

Interrompo a viagem em Alep, já que há algumas coisas que Max quer que eu traga de lá. Já que tenho um dia inteiro para gastar antes do próximo trem para Nisibin, decido fazer parte de um grupo que vai até Kalat Siman de carro.

O grupo é composto por um engenheiro-minerador e um sacerdote muito velho, e quase surdo. O sacerdote, por alguma razão qualquer, mete na cabeça que o engenheiro, a quem nunca vi antes na vida, é o meu marido.

— Seu marido fala árabe muito bem, minha querida — ele observa, segurando benignamente a minha mão quando volta­mos da expedição.

Grito meio confusa:

— Ele fala, mas na verdade, ele não é...

— Oh, sim, ele é sim — diz o sacerdote me censurando. — Ele é um ótimo estudioso do árabe.

— Ele não é meu marido — grito.

— Sua mulher não fala nada de árabe, não é? — diz ele virando-se para o engenheiro, que fica completamente vermelho.

— Ela não é... — começa ele, berrando.

— Não — diz o sacerdote. — Eu achei que ela não era mes­mo lá muito fluente em árabe.

Ambos gritamos em uníssono:

— Nós não somos casados!

A expressão do sacerdote muda. Ele parece severo e zangado.

— Por que não? — pergunta.

O engenheiro me diz, desesperado: “desisto”. Ambos rimos, e a fisionomia do sacerdote relaxa.

— Aha! — ele diz. — Vocês estavam querendo brincar comigo!

O carro volta ao hotel, ele desce com cuidado, desenrolando um longo cachecol dos seus bigodes brancos. Vira-se, e nos sorri, bondosamente.

— Deus os abençoe! — ele diz. — Espero que vocês te­nham uma vida longa e feliz juntos!

 

Chegada triunfal em Nisibin! Como sempre, o trem pára de um jeito que há um verdadeiro despenhadeiro entre o seu chão e a superfície de pedras soltas e afiadas. Um dos passageiros pula primeiro, e retira as pedras, de modo a que eu possa pular sem torcer o pé. Lá longe, vejo Max se aproximando com nosso cho­fer, Michel. Lembro-me dos três lemas de Michel: Força — a aplicação da força bruta, geralmente com resultados desastrosos; Sawi proba e Economia, o princípio geral da economia, que já nos fez ficar parados no deserto, antes, por falta de gasolina.

Antes que nos encontremos, um turco uniformizado diz: “passaporte” rudemente, toma-o de mim, e pula de volta ao trem.

As saudações têm lugar. Aperto a mão calejada de Michel, que diz: “Bon Jour. Como vai?” e ainda acrescenta um “Deus-seja-louvado” em árabe pela minha chegada. Vários carregadores pegam as malas que o condutor está atirando pela janela. Menciono o meu passaporte, que desapareceu completamente junto com o turco uniformizado.

Blue Mary, nosso caminhão, está esperando fielmente. Michel abre a porta de trás, e vejo uma cena familiar. Várias galinhas amarradas desconfortavelmente juntas, pelos pés; galões de benzina e pilhas de trouxas que, observando-se com mais cuida­do, descobre-se serem seres humanos. Minha bagagem é empi­lhada sobre as galinhas e os humanos, e Michel parte em busca do meu passaporte. Temendo que ele possa aplicar Força e criar um incidente internacional, Max o segue. Depois de uns vinte minutos voltam, triunfantes.

Partimos — chiando, bufando, estalando, sacolejando para dentro e fora de buracos. Passamos da Turquia para a Síria. Cin­co minutos depois, chegamos àquela progressista cidade de Kamichlie.

Há muito o que fazer antes que possamos ir para casa. Primeiro vamos ao “Harrod’s” — mais precisamente, à loja de seu Yannakos. Aqui sou saudada com grande efusão, oferecem-me a cadeira por trás do balcão, preparam café fresco. Michel está ultimando a compra de um cavalo, que será atrelado a uma carroça para carregar água do rio Jaghjagha até a nossa escavação na colina Brak. Michel encontrou, ao que diz, um cavalo ex­tremamente economia.

— Quanto economia é esse cavalo? — pergunta Max desconfiado. — É um cavalo bom? Um cavalo grande? Um cavalo resistente? É melhor um cavalo bom que custe um pouco mais do que um cavalo inferior que seja barato.

Uma das pilhas de trouxas sai do caminhão e diz ser o ra­paz que tomará conta da água. Um homem com um bom conhecimento (ao menos, é o que ele diz) de cavalos. Ele irá com Mi­chel e dará uma olhada no cavalo. No entretempo, compramos frutas enlatadas, garrafas de vinho duvidoso, macarrão, potes de geléia de ameixa e maçã, e outros petiscos, com o seu Yannakos. Vamos em seguida aos Correios, onde encontramos o nosso ami­go chefe barbado, metido em seu pijama. O pijama não parece ter sido nem lavado, nem trocado. Pegamos os nossos jornais e uma ou duas cartas, rejeitamos as três cartas endereçadas em le­tras européias a um certo Mr. Thompson, que o chefe quer nos impingir de qualquer jeito, e continuamos, para o Banco.

 

O Banco é de pedra — grande, fresco, vazio, muito tranqüi­lo. No meio, há um banco, onde se sentam dois soldados, um ve­lho em pitorescas roupas rasgadas e barba tingida e um menino com esfarrapadas roupas européias. Todos estão pacificamente olhando para o nada, cuspindo de vez em quando. Há uma misteriosa cama com lençóis imundos, a um canto. Somos recebidos prazerosamente pelo funcionário, por trás do balcão. Max apre­senta um cheque para ser descontado, e somos levados à presen­ça de M. le Directeur. M. le Directeur é grande, cor de café, e vo­lúvel. Recebe-nos com a maior das atenções. Manda vir café. Substituiu o directeur do ano passado, e parece bem triste com isso. Veio de Alexandretta, onde, ele diz, há alguma vida. Mas aqui (suas mãos se agitam), “On ne peut même pas faire un Bridge!” Não, ele acrescenta cada vez mais indignado, “pas même un tout petit Bridge!” (Observação — qual é a diferença entre un Bridge e un tout petit Bridge? Presumivelmente, ambos precisam de quatro jogadores.)

Passamos meia hora conversando sobre a situação política, e as amenidades (ou falta delas) em Kamichlie.

— Mais tout de même on fait des belles constructions — admite ele.

Ao que parece, ele está morando numa destas novas construções. Não há eletricidade, nem instalações sanitárias, nem ne­nhum dos confortos civilizados, mas a casa é, pelo menos, uma Construction:

— Une Construction en pierre, vous comprenez! Madame a verá no caminho para Chagar Bazar.

Prometo que ficarei de olho.

Discutimos os Xeques da região. São todos iguais, ele diz.

— Des propriétaires — mais qui n’ont pas le sou!

Estão sempre endividados.

Durante a conversa, o caixa entra em intervalos com cinco ou seis formulários, que Max assina, e também desembolsa pequenas somas, como sessenta centavos pour les timbres.

Chega o café, e depois de quarenta minutos, o caixa entra com os três últimos documentos, e um pedido final de “Et deux francs quarante cinq centimes pour les timbres, s’il vous plaît”. Deduzimos que as cerimônias foram encerradas, e que o dinheiro pode ser retirado. “C’est à dire, si nous avons de l’argent ici!”

Secamente, Max diz que avisou que tinha intenção de descontar um cheque já há uma semana. O caixa dá de ombros, sor­rindo. “Bem, vamos ver”. Felizmente, tudo está certo, o dinheiro é entregue, les timbres são afixados, e nós podemos ir embora. As mesmas pessoas continuam sentadas no banco, ainda olhando para o nada e cuspindo.

Voltamos ao Harrod’s. O rapaz da água, o curdo, está nos esperando. Diz que o cavalo de Michel — bem, a gente não pode nem chamá-lo de cavalo, de jeito nenhum. É uma velha — só is­so: uma velha! Essa é a economia de Michel. Max vai inspecionar o cavalo, e eu volto para a cadeira por trás do balcão.

Yannakos Júnior me distrai com uma edificante conversa sobre os acontecimentos do grande mundo.

— Votre Roi — ele diz. — Votre Roi — vous avez un nouveau Roi.

Concordo que temos um novo Rei. Seu Yannakos luta para conseguir exprimir pensamentos que estão além de sua compreensão.

Le Roi d’Angleterre! — ele diz. — Grand Roi — Plus grand Roi dans tout monde — aller — comme ça. — Faz um gesto expres­sivo. Pour une femme! Está além da sua imaginação — Pour une femme!

Uma coisa destas é inacreditável! Será possível que se dê tamanha importância às mulheres na Inglaterra?

— Les plus grand roi au monde — repete, abismado.

Max, o curdo e Michel voltam. Michel, que havia ficado meio abatido pelo voto de censura ao seu cavalo, já recuperou a dignidade perdida. Vão começar, agora, negociações para a aquisição de uma mula. Michel murmura que uma mula vai sair mui­to caro. O curdo diz que uma mula sempre vale a pena. O curdo e Michel partem em busca de um homem cujo concunhado conhe­ce um homem que tem uma mula para vender.

Súbita aparição do nosso empregado idiota, Mansur. Ele dá as boas-vindas, e me dá a mão cordialmente. Ele é quem levou uma temporada inteira para aprender a pôr uma mesa — e mesmo agora, ainda é capaz de aparecer com garfos para o chá. Fazer as camas exige o máximo de sua inteligência. Seus movimen­tos são lentos, como os de um cachorro, e tudo o que ele faz é do jeito de um truque ensinado com sucesso a um cachorro.

Será que nós iríamos até a casa de sua mãe (que, por acaso, é a nossa lavadeira) e inspecionaríamos uma coleção de antigüidades?

Vamos. O quarto está muito varrido e arrumado. Pela terceira vez, em duas horas, bebo café. As antigüidades são mostradas — pequenas garrafas de vidro romanas, fragmentos de cerâmica, velhas moedas, e um bocado do mais puro lixo. Max divide a co­leção em dois grupos, rejeitando um, oferecendo seu preço pelo segundo. Uma mulher, que é claramente uma das partes interes­sadas, entra no quarto. Fico seriamente na dúvida sobre se ela vai primeiro terminar a transação, ou ter gêmeos. Pelo seu aspec­to, poderiam ser quíntuplos, até. Ela escuta Mansur, sacode a ca­beça.

Vamos embora, e voltamos para o caminhão. Já que as nego­ciações para a compra da mula foram iniciadas, vamos inspecio­nar as pipas d’água que deverão ficar na charrete que a mula vai puxar. Mais uma vez, Michel está bem arranjado. Ele encomen­dou uma pipa de dimensões tão gigantescas que jamais caberia na charrete, e provavelmente mataria qualquer mula ou cavalo. — Mas pode-se fazer mais economia com uma pipa grande do que com duas pequenas — alega Michel. — Além disso, carrega mais água!

Michel fica, então, sabendo que é um imbecil chapado e que da próxima vez tem que fazer exatamente o que lhe disserem para fazer. Murmura esperançoso: “Sawi proba?” mas mesmo isso lhe é negado.

Em seguida, encontramos o Xeque — nosso Xeque particular. Está cada vez mais parecido com Henrique VIII, com sua barba tingida de vermelho. Está vestido em suas roupas brancas costumeiras, com um turbante verde esmeralda na cabeça. Esta no melhor dos humores, como tenciona visitar brevemente Bag­dá, se bem que, é claro, levará algumas semanas para tirar o seu passaporte.

— Irmão — diz a Max. — Tudo o que eu tenho é seu. Por sua causa, não semeei nada na colina esse ano, para que toda a terra possa ficar à sua disposição.

Max retruca:

— Como fico feliz em saber que gesto tão nobre reverteu em seu benefício! Este ano, todas as colheitas estão ameaçadas! Todos os que semearam, perderão dinheiro. Você deve ser parabenizado pela sua visão.

Tendo sido cumpridas as formalidades, os dois se despedem no melhor relacionamento possível.

Subimos em Blue Mary. Michel joga um fardo de laranjas e batatas em cima da minha caixa de chapéus, amassando-a completamente; as galinhas cacarejam; vários árabes e curdos pedem carona — dois são aceitos. Instalam-se entre as galinhas, e as ba­tatas, e a bagagem, e lá vamos nós para Chagar Bazar.

 

A VIDA EM CHAGAR BAZAR

Muito excitada, enxergo a nossa casa. Lá está ela, com sua cúpula, parecendo uma mesquita dedicada a algum santo Venerável!

Max me diz que o Xeque está imensamente orgulhoso dela. Volta e meia ele e seus amigos vêm rodeá-la cheios de admira­ção, e Max suspeita que ele já esteja até conseguindo algum di­nheiro emprestado, dando a entender, falsamente, que a casa lhe pertence, e que está meramente alugada para nós.

Mary chega com a freada violenta de sempre, hábito de Michel (Força!) e todos vêm para fora para nos receber. Ao lado das velhas caras, há outras novas.

Dimitri, o cozinheiro, é o mesmo. Seu rosto comprido e gen­til é decididamente maternal. Está vestido em longas calças de musselina florida, radiante de prazer. Pega a minha mão, e a aperta de encontro à testa. Depois, orgulhosamente, mostra um caixote com quatro cachorrinhos recém-nascidos dentro. Esses serão nossos futuros cães-de-guarda, ele diz. Ali, o servente, também trabalhou conosco no ano passado. Ele, agora, está se sentindo algo superior, já que um segundo — e portanto, menos importante — servente foi contratado, Ferhid. Há pouca coisa a ser dita a respeito de Ferhid, exceto que ele parece preocupado com alguma coisa. Mas isso, segundo Max me informa, é sua condição crônica.                                          

Temos também um novo menino —. Subri. Subri é alto, e orgulhoso, e parece ser muito inteligente. Sorri, e mostra dentes brancos e dourados.

O Coronel e Bumps prepararam chá para nós. O Coronel faz as coisas com uma precisão militar. Já instituiu um novo hábito, o de enfileirar os homens em formação militar na hora da comissão. Eles estão se divertindo muito com isso. Ele gasta um tempão com limpeza. Os dias em que Max vai a Kamichlie são sua grande oportunidade. A casa, anuncia feliz, está tão brilhante, agora, como um alfinete novo! Tudo o que tem um lugar está em seu lugar, e mesmo as coisas que não tinham lugar nenhum já en­contraram um canto qualquer. Tanto assim, que isso vai criar uma série de problemas.

Bumps é o nosso novo arquiteto. Seu apelido surgiu de uma observação inocente que fez ao Coronel na chegada. Ao crepúsculo, assim que o trem estava se aproximando de Nisibin, Bumps puxou a cortina e olhou com interesse para a região onde os pró­ximos meses de sua vida seriam passados.

— Lugar curioso, esse! — observou. — Está cheio de calombos!

— Calombos, pois sim! — gritou o Coronel. — Pois você não vê, seu sujeito irreverente, que cada um desses calombos é uma cidade soterrada, que data de milhares de anos atrás?

E desde então, o nome de nosso novo colega passou a ser Bumps!

Há outras novidades. Primeiro, um Citroen de segunda-mão, que o Coronel batizou de Poilu.

Acontece que Poilu é um cavalheiro muito temperamental. Por uma ou outra razão, deu de escolher exatamente o Coronel; para fazer suas malcriações, recusando-se a pegar, ou então, encenando enguiços nos lugares mais inconvenientes.

Um dia, de repente, descubro qual a causa disso, e explico ao Coronel que a culpa é toda dele.

— Como assim — minha culpa?

— Você nunca devia tê-lo batizado de Poilu! Pois se o caminhão começou como Queen Mary, o mínimo que você poderia ter feito teria sido chamar o Citroen de Josefina. Assim, você não teria tido problemas!

O Coronel, disciplinado que é, diz que, de qualquer jeito, agora é muito tarde. Poilu é Poilu, e terá que se comportar. Olho de lado para Poilu, que parece estar encarando o Coronel com um ar folgazão. Tenho certeza que Poilu está pensando no mais sério dos crimes militares — o motim!

Em seguida, os capatazes vêm correndo me cumprimentar. Yahya está cada vez mais parecido com um grande cão amistoso. Alawi, como sempre, está muito bonito. O velho Abd es Salaam está, como sempre, também, muito conversador.

Pergunto a Max como vai a constipação de Abd es Salaam, e Max diz que a maioria das noites foram dedicadas a exaustivas discussões do assunto.

Então, vamos ao quarto-antiquário. O primeiro período de trabalho de dez dias acaba de ser concluído, com o magnífico resultado de quase cem tabuletas achadas, de modo que todo mun­do está animadíssimo. Dentro de uma semana, começaremos a escavar na colina Brak, simultaneamente com Chagar Bazar.

De volta à casa em Chagar, tenho a impressão de que nunca me ausentei, muito embora, devido à paixão do Coronel pela ordem, a casa esteja um bocado mais arrumada do que jamais a vi. O que me leva à triste história dos queijos Camembert.

Max, pensando que queijos Camembert podem ser guardados indefinidamente como queijos Emmenthal, comprou, em Alep, seis Camemberts. Um deles foi comido antes de minha chegada, e o Coronel, encontrando-se com os outros cinco du­rante uma de suas faxinas, guardou-os direitinho no fundo de um guarda-louça, na sala de estar. Lá, foram rapidamente encober­tos por papel de desenho, papel de carta, cigarros, charutos tur­cos, etc... e permaneceram nas sombras — sem serem vistos nem lembrados, mas, convém dizê-lo, bastante cheirados.

Algumas noites depois, estávamos todos cheirando e fazen­do adivinhações.

— Se eu não soubesse que a gente não tem esgotos... — diz Max.

— E que a estação de gás mais próxima fica a umas duzentas milhas daqui...

— Acho que deve ser mesmo um camundongo morto!

— No mínimo, um rato morto!

A vida doméstica tendo se tornado insuportável, iniciamos uma busca pelo hipotético rato morto. E então, só então, descobriu-se uma massa pegajosa e mal cheirosa que havia sido cinco queijos Camembert, que, tendo passado pelo seu estágio coulant, agora estavam coulant à enésima potência.

Olhos acusadores são voltados em direção ao Coronel, e os horripilantes restos são confiados a Mansur para um enterro solene em qualquer lugar que fique bem longe da casa. Max explica ao Coronel, veementemente, como isso confirma o que ele sem­pre soube — que a idéia geral de ordem é um grande erro! O Co­ronel explica que guardar os queijos foi uma boa idéia; tudo foi culpa da distração destes arqueólogos que são incapazes de se lembrar que têm queijos Camembert em casa. Eu explico que o grande erro foi comprar queijos Camembert maduros en bloc para armazená-los durante uma temporada inteira! Bumps per­gunta, para que comprar Camemberts, realmente? Ele nunca gostou de Camemberts! Mansur leva os horripilantes despojos embora e os enterra obedientemente, mas como sempre, não es­tá entendendo nada. É de se supor que os Khwajas gostam destas coisas, já que pagam um bom dinheiro por elas, não é? Por que, então, destruí-las quando suas boas qualidades se tornaram mui­to mais evidentes do que antes? Obviamente, é mais uma das ma­luquices dos patrões!

O problema de empregados no Habur é bem diferente do problema de empregados na Inglaterra. A gente poderia dizer que, aqui, os empregados é que têm problema de patrões! Nossos desejos, implicâncias, gostos e desgostos são algo fantásticos, e não seguem, para a mente nativa, nenhum padrão de lógica.

Por exemplo, vários panos de tecidos ligeiramente diferen­tes, com beiradas de cores diferentes, são feitos, com a finalidade de serem utilizados para diferentes tarefas. Para que tanta complicação?

Por que uma Khatun furiosa voa, cheia de recriminações, sobre Mansur que está limpando a lama do radiador do carro com um pano-de-prato de beiradas azuis? O pano conseguiu limpar a lama muito bem. Novamente, por que essas recriminações injustas quando uma visita à cozinha revela que os pratos do café da manhã, depois de lavados, estão sendo enxugados com um lençol?

— Mas, — protesta Mansur, tentando justificar a sua conduta. — Nós não estamos usando um lençol limpo! Este aqui está sujo!

Incompreensivelmente, isto parece piorar a situação.

Do mesmo modo, a invenção civilizada da mesa posta é outra coisa que causa dores de cabeça perpétuas a um servente afli­to.

Mais de uma vez, já observei através de portas entreabertas Mansur se desgastando com a tarefa de pôr a mesa para o almo­ço.

Primeiro, ele ajeita a toalha — com muita seriedade, experimentando-a de todos os lados, e dando alguns passos para trás para observar a disposição mais artística.

Inevitavelmente, acaba colocando o comprimento da toalha de lado, de modo que hajam sobras graciosas em ambos os lados, enquanto que as pontas da mesa revelam alguns centímetros de madeira descoberta. Sacode a cabeça, aprovando o resultado, e depois, uma ruga na testa, contempla uma cesta meio comida de traças, comprada a bom preço em Beirute, onde estão guardados talheres de todos os tipos.

Aqui está o problema principal. Cuidadosamente, e apresentando todos os sinais de grande esforço mental, coloca um garfo em cada pires e xícara, e uma faca no lado esquerdo de cada pra­to. Vai para trás, e estuda o efeito com a cabeça de lado. Sacode a cabeça e suspira. Algo lhe diz que esta não é a arrumação certa. Algo também parece lhe dizer que nunca, nem mesmo pelo fim da temporada, terá, realmente, dominado o principio que rege as várias combinações dessas três unidades — garfo, faca e colher. Mesmo no chá, a mais simples das refeições, seu arranjo de um único garfo não consegue agradar. Por alguma razão inescrutá­vel, num momento quando não há nada de sério para ser corta­do, pedimos uma faca! Simplesmente não faz sentido.

Com um suspiro profundo, Mansur continua sua complica­da tarefa. Hoje, pelo menos, está determinado a agradar. Olha novamente. Coloca um par de garfos à direita de cada prato, e junta uma colher ou faca em lugares alternados. Respirando fundo, coloca os pratos nos lugares, curva-se e sopra-os furiosamen­te, para remover qualquer poeira que esteja grudada. Camba­leando ligeiramente por causa do intenso esforço mental, sai da sala para avisar para o cozinheiro que tudo está pronto, e que ele pode tirar a omelete do forno, onde ela estava esquentando e fi­cando linda e dura nos últimos vinte minutos.

Ferhid, o menino, é enviado para nos avisar. Chega com um ar preocupado, como se estivesse prestes a anunciar a maior das catástrofes, de modo que é um alívio descobrir que tudo o que ele tem a dizer é que o jantar está pronto.

Hoje à noite, temos todos os pratos que Dimitri considera de primeira classe. Começamos com hors d’oeuvre, ovos cozidos com maionese, sardinhas, vagens frias e anchovas. Depois, temos a especialidade de Dimitri — ombro (?) de carneiro recheado com arroz, passas e especiarias. Há uma comprida costura de barbante que deve ser cortada. Depois disso, quantidades de re­cheio podem ser obtidas com relativa facilidade, mas a carne mesmo só é encontrada lá pelo final, quando alguém se lembra de virar o pedaço. Depois, comemos peras enlatadas, já que Di­mitri está proibido de fazer o único doce que conhece, e do qual nenhum de nós gosta — mais precisamente, pudim de caramelo. Depois, o Coronel anuncia orgulhosamente que ensinou Dimitri a fazer um petisco.

Pratos são distribuídos, neles há uma tira fininha de pão sírio embebido numa gordura quente que lembra, de longe, o gosto de queijo. Comunicamos ao Coronel que não temos o seu petisco em muito alta conta.

Doces turcos e algumas deliciosas frutas secas de Damasco são postas na mesa, e nesse exato momento o Xeque chega para nos fazer uma visita. Nossa decisão de escavar em Chagar modificou a sua situação de falência irremediável para a de um ho­mem sobre o qual pode começar a chover ouro a qualquer momento. Segundo os capatazes, já arranjou uma nova e bela mulher yezidi por conta disso, e aumentou incrivelmente suas dívi­das, em conseqüência de seu crédito ampliado. Está, certamen­te, muito bem humorado. Como sempre, está armado até os den­tes. Tirando descuidadamente sua espingarda, e atirando-a a um canto, começa a discorrer sobre os méritos de uma pistola que acabou de comprar.

— Estão vendo — diz ele, apontando-a em cheio para o Coronel. — O mecanismo é assim — simples, e excelente. A gente Põe o dedo no gatilho — assim — e as balas começam a sair, uma depois da outra.

Numa voz sumida, o Coronel pergunta se a pistola está carregada.

Claro que está carregada, responde o Xeque, muito surpre­so. Qual seria a vantagem de uma pistola descarregada?

O Coronel, que tem o típico horror militar de ver armas carregadas apontadas em sua direção, prontamente muda de lugar e Max distrai o Xeque de seu novo brinquedo oferecendo-lhe do­ces turcos. O Xeque se serve prodigamente, lambe os dedos apreciativamente, e sorri para todo mundo.

— Ah — diz ele, notando que estou entretida com as palavras cruzadas do The Times — então a sua Khatun sabe ler? Ela também escreve?

Max diz que, de fato, sei sim.

— Uma Khatun muito instruída — diz o Xeque, apreciativamente. — Ela sabe dar remédios a mulheres? Se sabe, minhas mulheres virão aqui uma noite dessas dizer-lhe quais são os seus males.

Max diz que as mulheres do Xeque serão bem-vindas, mas que essa Khatun, infelizmente, não entende muito árabe.

— A gente dá um jeito, a gente dá um jeito — diz o Xeque, animado.

Max indaga a respeito da viagem do Xeque a Bagdá.

— Ainda não está organizada — diz o Xeque. — Há dificuldades — formalidades.

Temos, todos, a suspeita de que essas dificuldades são finan­ceiras. Dizem que o Xeque já gastou todo o dinheiro que recebeu da gente, além do que cobrou de cada homem de sua aldeia que veio trabalhar. 

— Nos dias de El Baron... — começa.

Mas antes que um adiantamento em ouro possa ser mencionado, Max corta rapidamente a conversa perguntando onde está o recibo oficial pelas sessenta libras sírias que o Xeque já rece­beu. “O Governo vai exigir isso”.

O Xeque parece desistir rapidamente da idéia de nos dar uma facada e explica que tem um parente e amigo lá fora que es­tá com o olho ruim. Será que a gente poderia dar uma olhadela?

Saímos na noite, e, à luz de uma lanterna, olhamos o olho doente. Está certamente além de nossas possibilidades, sendo uma massa disforme e sanguinolenta. Um olho destes deve ser visto por um doutor, diz Max. E o mais breve possível, acrescen­ta.

O Xeque sacode a cabeça. Seu amigo vai a Alep. Será que nós lhe daríamos uma carta de apresentação ao Dr. Altounyan lá? Max concorda, e começa a escrever a carta no mesmo mo­mento, olhando para cima e perguntando:

— Esse homem é seu parente, não é?

— É.

— E como é o nome dele? — pergunta Max, ainda escrevendo.

— Seu nome? — o Xeque está meio desnorteado. — Não sei. Tenho que perguntar a ele.

O Xeque some-se na noite mais uma vez, voltando com a informação de que o nome do seu parente é Mahmoud Hassan.

— Mahmoud Hassan — diz Max, anotando.

— Ou será, — pergunta o Xeque — que é o nome do passaporte que você quer? O nome do passaporte é Daoud Suliman.

Max parece intrigado, e pergunta qual é, realmente, o nome do homem?

— Ah, chame-o como quiser — diz o Xeque, generosamen­te.

A carta é entregue, o Xeque recolhe seus aparatos bélicos, nos abençoa jovialmente e parte com o seu acompanhante misterioso na escuridão.

O Coronel e Bumps começam uma discussão sobre o rei Eduardo VIII e a Sra. Simpson. A isso segue-se o assunto do casamento em geral, que parece levar, muito naturalmente, ao tema do suicídio!

Nesse ponto os deixo, e vou para a cama.

 

Um vento forte, essa manhã. Aumenta mais e mais, até que por volta do meio-dia há praticamente uma tempestade de areia. Bumps, que veio para a colina com um chapelão que se prende no queixo, está tendo um bocado de trabalho no vento ululante, e finalmente acaba com ele preso ao pescoço. Michel, sempre prestativo, vem ajudar.

— Força — ele diz, puxando uma das correias.

Bumps fica vermelho, enquanto vai sendo lentamente estrangulado.

— Beaucoup força — diz Michel animadamente, puxando com mais força.

Bumps fica preto. É salvo na horinha.

Uma briga violenta irrompe depois do trabalho entre o temperamental Alawi e Serkis, nosso carpinteiro. Como sempre, parte de um nada, mas atinge proporções assassinas.

Max tem que administrar, à força, o que ele chama de “sermões de escola primária”. A cada dia, torna-se mais apto a tornar-se professor, diz ele, tão facilmente os sentimentos mais nauseantes estão lhe vindo à cabeça!

A bronca é muito impressionante!

— Então vocês acham que eu e o Khwaja Coronel e o Khwaja da régua sempre pensamos a mesma coisa? — pergunta Max. — Que nós nunca queremos discutir? Mas nós não elevamos nossas vozes, nem gritamos, nem puxamos as facas! Não! Tudo isso a gente deixa de lado até chegar a Londres! Aqui, coloca­mos o trabalho em primeiro lugar. Sempre o trabalho! Nós nos controlamos!

Alawi e Serkis ficam profundamente conscientizados, a paz é feita, e a comovente gentileza com que se tratam para saber quem vai passar pela porta primeiro é um espetáculo realmente bonito de se ver!

 

Compramos uma bicicleta — uma bicicleta japonesa extremamente ordinária. Será a possessão do orgulhoso Ali, que deve­rá ir nela a Kamichlie, duas vezes por semana, para buscar a nos­sa correspondência.

Ele parte, cheio de importância e felicidade, pela madruga­da, só retornando ao entardecer.

Digo a Max, preocupada, que o caminho é longo. Kamichlie fica a quarenta quilômetros de distância. Fico fazendo contas de cabeça, e murmuro:

— Vinte e cinco milhas para ir, vinte e cinco para voltar — e acrescento consternada — O menino não pode fazer isso. É muita coisa para ele.

Max diz (a meu ver, dando provas de grande insensibilida­de):

— Não acho.

— Ele deve estar exausto — digo.

Saio da sala e vou procurar o estafado Ali. Nem sinal dele. Finalmente, Dimitri entende o que estou falando.

— Ali? Ali chegou de Kamichlie há uma meia hora atrás. Onde ele está agora? Ah, foi de bicicleta até o povoado de Germayr, onde tem um amigo.

Minha preocupação por Ali se desvanece rapidamente, principalmente depois que ele ajuda a servir o jantar com uma fisionomia radiante que não demonstra os menores sinais de fadiga.

Max dá uma risadinha e murmura, crítico:

— Lembra de Swiss Miss?

Começo a pensar em Swiss Miss e em seus tempos.

Swiss Miss era uma de cinco cachorrinhos vira-lata da nossa primeira escavação em Arpachiyah, perto de Mosul. Atendiam (ou condescendiam em atender) pelos nomes de Wooly Boy, Boujy, Whitefang, Tomboy e Swiss Miss. Boujy morreu jovem, de uma indigestão causada por klechah que é uma espécie de massa excepcionalmente pesada comida por devotos cristãos no Oriente. Nossos capatazes cristãos nos trouxeram alguns pratos dela, que logo se tornaram uma espécie de incômodo. Tendo so­frido dos seus efeitos e tendo comprometido seriamente a diges­tão de uma inocente e jovem hóspede que a dividiu conosco du­rante o chá, subrepticiamente passamos o resto para Boujy. Bou­jy, desconfiado, foi para o sol, engoliu este rico alimento, e mor­reu na mesma hora! Foi uma morte em êxtase — muito invejá­vel! Dentre os cachorros restantes, Swiss Miss, por ser a Queridi­nha do Patrão, era a principal. Ao entardecer, quando o sol esta­va se pondo, ela vinha a Max que laboriosamente lhe tirava os; carrapatos. Depois disso, os cachorros, Swiss Miss na frente, faziam fila na porta da cozinha, e quando seus nomes eram chama­dos, vinham um por um receber seu jantar.

Então, em alguma aventura, Swiss Miss quebrou a perna e veio para casa mancando, muito doente. Porém, não morreu. Quando chegou a época de irmos embora, o destino de Swiss Miss começou a me afligir terrivelmente. Manca como estava, como poderia sobreviver quando não estivéssemos mais lá? Ar­gumentei que a única coisa a fazer seria matá-la. Não podíamos deixá-la morrer de fome. Max, no entanto, não quis nem ouvir falar nisso. Assegurou-me, com otimismo, que Swiss Miss saberia se virar. Os outros sim, provavelmente — disse eu. Mas Swiss Miss era uma aleijada.

A discussão foi indo, cada vez mais apaixonada de ambos os lados. Por fim, Max ganhou, e nós fomos embora, pondo algum dinheiro na mão do velho jardineiro e pedindo-lhe que “olhasse pelos cachorros, principalmente por Swiss Miss”, mas sem mui­tas esperanças que ele fizesse isso. Volta e meia, durante os pró­ximos dois anos, fui assaltada por temores em relação ao destino de Swiss Miss, e me reprovei constantemente por não ter fincado o pé. Quando passamos novamente por Mosul, fomos até a nossa velha casa para dar uma espiada. Estava vazia — não havia o menor sinal de vida. Disse baixinho a Max:

— Fico imaginando o que terá acontecido a Swiss Miss?

E então ouvimos um grunhido. Sentados nos degraus estava um cachorro — um cachorro horripilante (mesmo como filhote, Swiss Miss nunca fora uma beleza). Levantou-se, e vi que mancava. Chamamos Swiss Miss, e ele abanou a cauda ligeiramente, apesar de continuar a grunhir por entre os dentes. E então, dos arbustos, apareceu um cachorrinho que correu para sua mãe. Swiss Miss deve ter encontrado um belo marido, pois o filhote era um cachorrinho dos mais atraentes. Mãe e filho nos olharam placidamente, sem demonstrar, no entanto, qualquer sinal de re­conhecimento.

— Está vendo? — disse Max, triunfante. — Bem que eu dis­se que ela ia se virar. Pois não é que está até bem gorda? Swiss Miss tem massa cinzenta na cabeça, então é claro que tinha que sobreviver. Imagine quanta coisa divertida teria perdido se nós a tivéssemos matado?

Desde então, quando começo a me entregar a ansiedades, as palavras Swiss Miss são usadas para dobrar minhas objeções!

No final das contas, a mula acabou não sendo comprada. Em vez dela foi comprado um cavalo — um cavalo mesmo, mas um belo cavalo, um príncipe entre os cavalos. E com o cavalo, aparentemente inseparável dele, veio um circassiano.

— Que homem! — diz Michel, sua voz crescendo num paroxismo de admiração. — Os circassianos sabem tudo a respeito de cavalos. Eles vivem pelos cavalos. E quantos cuidados, quanta preocupação este homem demonstra pelo cavalo! Está sempre preocupado com o seu bem-estar. E como é educado! Como me trata bem!

Max não se impressiona, dizendo que o tempo mostrará se o homem é bom mesmo. Ele nos é apresentado. Tem um ar alegre, usa botas altas e me lembra algo saído de um ballet russo.

 

Hoje recebemos a visita de um colega francês — de Mari. Seu arquiteto vem com ele. Como muitos arquitetos franceses, parece um bocado com algum santo menos categorizado. Tem uma dessas barbas ralas e insignificantes. Não diz nada além de “Merci, Madame”, em gentis negativas quando qualquer coisa lhe é oferecida. M. Parrot explica que ele está sofrendo do estôma­go.

Depois de uma agradável visita, partem novamente. Admiramos o seu carro. M. Parrot diz, tristemente:

— Oui, c’est une bonne machine, mais elle va trop vite. Beaucoup trop vite. — E acrescenta: — L’année dernière elle a tué deux de mes architectes!

Entram no carro, o arquiteto com cara de santo senta-se ao volante e de repente dá a partida numa nuvem de poeira a sessenta milhas por hora — através de buracos, sobre calombos, ser­penteando pelo povoado curdo. Parece bem provável que mais um arquiteto, sem ser detido pelo destino de seus predecesso­res, cairá vítima da velocidade da máquina. Ê claro que a culpa é sempre do automóvel! Nunca do homem cujo pé está no acelerador.

O Exército francês está em manobras. Isso é excitante para o Coronel, cujo interesse marcial é imediatamente despertado. Suas ansiosas investidas são, porém, recebidas com muita frieza pelos oficiais a quem são dirigidas. Eles o encaram com suspeita.

Digo-lhe que estão pensando que ele é um espião.

— Um espião? Eu? — pergunta o Coronel, indignadíssimo. — Como é que eles podem pensar uma coisa dessas?

— Bem, evidentemente estão pensando.

— Eu estava só lhes fazendo algumas perguntas bem simples. Essas coisas são tecnicamente interessantes. Mas suas res­postas são muito vagas.

É muito desapontador para o pobre Coronel, que está morrendo de vontade de falar sobre o assunto que mais lhe agrada, ser rechaçado desse jeito.

As manobras preocupam também aos nossos homens, mas de forma diferente. Um homem sério e barbudo vem falar com Max.

— Khwaja, o ‘asker vai interferir com o meu trabalho?

— Não, claro que não. Eles não têm nada a ver com a escavação.

— Não estou falando da escavação, Khwaja. Estou falando do meu trabalho particular.

Max pergunta qual é o seu trabalho, e ele responde orgulhoso que é o contrabando de cigarros.

O contrabando de cigarros pela fronteira do Iraque parece ser praticamente uma ciência exata. O carro da Alfândega chega num povoado num dia — e no outro, os contrabandistas... Max pergunta se a Alfândega nunca volta, e visita um povoado pela segunda vez. O homem olha com ar reprovador, e diz que claro que não. Se voltassem, estragavam tudo. Do jeito que está, os trabalhadores podem fumar, felizes, alguns cigarros que lhes custaram dois pence o cento!

Max pergunta a alguns homens quanto, exatamente, gastam para viver. Muitos deles trazem consigo um saco de farinha, se moram em algum povoado distante. Isso lhes basta por cerca de dez dias. Alguém na aldeia faz o seu pão para eles, já que, aparentemente, está abaixo de sua dignidade assarem o próprio pão. Às vezes comem cebolas, às vezes arroz, e provavelmente arran­jam coalhada em algum lugar. Depois de imaginarmos os preços, descobrimos que isso custa, para cada homem, mais ou menos dois pence por semana.

Dois trabalhadores turcos aparecem agora, e, por sua vez, perguntam ansiosamente sobre os ‘asker.

— Será que vão nos perturbar, Khwaja?

— Por que é que eles perturbariam a vocês?

Pelo visto, os turcos não têm nada que fazer deste lado da fronteira. Um dos nossos trabalhadores, porém, os tranqüiliza:

— Tudo vai correr bem. Vocês usam kefiyaed.

Ninguém gosta muito de usar chapéu por estas bandas, e os árabes e curdos de kefiyaed gritam, derrisoriamente, apontando os infelizes que, por ordem de Mustapha Kemal, estejam usando chapéus europeus: “Turki! Turki!” A cabeça que usa um boné por aqui nunca está muito segura.

Hoje à noite, ao acabarmos o jantar, o ansioso Ferhid entra; anunciando em tom de desespero que o Xeque trouxe suas mulheres para pedir conselhos à Khatun.

Sinto-me ligeiramente nervosa. Aparentemente, consegui uma reputação e tanto por sabedoria médica. Isto é singularmen­te imerecido. Embora as mulheres curdas nem liguem em descre­ver minuciosamente os seus males a Max, para que ele os trans­mita para mim, as mulheres árabes, mais modestas, só me procu­ram quando estou sozinha. A cena que se segue é principalmente de pantomima. Dores de cabeça são facilmente indicadas, e uma aspirina aceita com um temor respeitoso. Olhos inflamados são fáceis de ver, muito embora explicar o uso do ácido bórico seja bem mais difícil.

— Mai harr — eu digo (água quente).

— Mai harr — elas repetem.

Faço, então, uma demonstração com uma pitada de ácido — “Mithl hadha”.

Uma pantomima final mostrando como se enxáguam os olhos.

A paciente responde, então, com a pantomima de tomar um gole caprichado. Sacudo a cabeça. Aplicação externa — nos olhos. A paciente fica meio desapontada. Porém, sabemos no dia seguinte, pelo capataz, que o remédio da Khatun fez muito bem à mulher de Abu Suleiman. Ela lavou seus olhos com ele, e depois bebeu o resto, até a última gota!

O gesto mais comum é uma expressiva massagem no abdome.

Isto tem dois significados — a) indigestão aguda; b) queixa de esterilidade.

Bicarbonato de sódio resolve às mil maravilhas o primeiro problema, e vem conseguindo uma reputação algo surpreenden­te no segundo.

— O pó branco da sua Khatun fez maravilhas na temporada passada! Agora tenho dois filhos bem robustos — gêmeos!

Mesmo revendo estes triunfos passados, preocupo-me bastante com o que me aguarda. Max me encoraja com seu otimis­mo habitual. O Xeque lhe disse que sua mulher sofre dos olhos. É um caso óbvio para ácido bórico.

As mulheres do Xeque, é claro, ao contrário das mulheres da aldeia, estão todas veladas. Portanto, uma lâmpada é levada até um pequeno depósito vazio, onde deverei examinar a pacien­te.

O Coronel e Bumps fazem as observações mais debochadas, e fazem o possível para me apavorar enquanto entro, apreensiva, no consultório.

Lá fora, cerca de dezoito pessoas me esperam, na escuridão. O Xeque saúda Max com um alegre rugido, e sacode a mão em direção a uma figura alta e encoberta.

Murmuro os cumprimentos de costume, e me encaminho para o depósito. Não uma, mas cinco mulheres me seguem até lá. Estão todas muito excitadas, rindo e falando.

A porta é fechada à nossa passagem. Max e o Xeque permanecem do lado de fora da porta para servirem de intérpretes, se for o caso.

Fico meio confusa vendo tantas mulheres. São todas esposas? E estão todas precisando de cuidados médicos?

Os véus são retirados. Uma mulher é jovem e alta — muito bonita. Acho que deve ser a nova esposa yezidi, recém-comprada com o aluguel adiantado da terra. A esposa principal é bem mais velha; parece ter uns quarenta e cinco anos, e tem, provavelmen­te, uns trinta. Todas as mulheres estão usando jóias, e são todas do alegre tipo curdo.

A mulher de meia idade aponta para seus olhos e aperta o rosto. Infelizmente, não é caso para ácido bórico. Eu diria que ela está sofrendo de algum tipo virulento de envenenamento sangüíneo.

Levanto a voz, e falo com Max. Digo que se trata de um envenenamento do sangue, e que ela deveria ir a algum médico ou hospital em Der-ez-Zor ou Alep, onde receberia as injeções apropriadas.

Max transmite isso ao Xeque, que parece muito impressionado pelo diagnóstico. Max chama novamente:

— Ele está muito impressionado com a sua sabedoria. Isso é exatamente o que um médico em Bagdá já lhe disse para fazer. Ele também disse que ela deveria tomar des piqures. Agora que você disse a mesma coisa, ele está pensando seriamente em se­guir o conselho. De conselho em conselho, ele certamente aca­bará levando a mulher para Alep.

Digo que seria bom que ele fizesse isto de uma vez.

Neste verão, diz o Xeque, ou mesmo no outono. Não ha pressa. Tudo será como Allah quiser.

As mulheres menos categorizadas ou sei-lá-o-quês estão agora examinando a minha roupa num êxtase de deliciada ale­gria. Dou à paciente alguns comprimidos de aspirina para aliviar a dor, e recomendo aplicações de água quente, etc. Ela, porém, está muito mais interessada na minha aparência do que no seu próprio estado. Ofereço doces turcos e todas rimos e sorrimos e apalpamos ás roupas umas das outras.

Finalmente, as mulheres colocam seus véus novamente, com pesar, e vão-se embora. Volto para a sala, uma pilha de ner­vos.

Pergunto a Max se ele acha que o Xeque vai levar a mulher a um hospital qualquer, e Max responde que provavelmente não. Hoje Michel vai a Kamichlie com a roupa suja, e uma longa lista de compras a serem feitas. Michel não sabe ler nem escrever, mas nunca esquece nada, e lembra o preço exato de cada item. É escrupulosamente honesto, o que sobrepuja os seus muitos defeitos irritantes. Eu os enumeraria na seguinte ordem:

1  — A voz alta e estridente.

2  — A tendência a bater “tutti” embaixo da janela dos outros.

3  — As esperançosas tentativas de assassinar maometanos na estrada.

4  — O poder de argumentação.

 

Um bocado de fotografia hoje, e sou apresentada à minha câmara-escura. Fez-se, sem dúvida, um grande progresso desde a “solitária” de Amuda. Posso ficar em pé, e há uma mesa e uma cadeira.

Mas como é uma extensão nova, tendo sido adicionada à casa alguns dias antes da minha chegada, os tijolos, de barro, ainda estão úmidos. Estranhos fungos crescem nas paredes, e quan­do se tem que trabalhar nela num dia quente, a gente sai asfixia­da!

Max deu uma barra de chocolate ao menininho que fica lá fora e lava a louça, e hoje à noite o menininho o espera no caminho.

— Me diga, Khwaja, eu lhe imploro, o nome daquele doce? E tão delicioso que não quero mais saber dós doces do bazar. Te­nho que comprar deste doce, nem que me custe um mejidi!

Digo a Max que ele deve estar se sentindo como se tivesse criado um viciado. Pois é claro que chocolate vicia.

Nem tanto, diz Max, contando o caso de um velho a quem ofereceu um pedaço de chocolate no ano passado. O velho agradeceu cortesmente, e guardou-o numa dobra de sua roupa. O ze­loso Michel perguntou-lhe se não iria comê-lo. “É bom”, disse Michel. O velho retrucou, simplesmente: “É novidade! Pode ser perigoso!”

 

Hoje é nosso dia livre, e vamos a Brak para resolver algumas coisas. A colina propriamente dita fica a cerca de uma milha do Jaghjagha, e o primeiro problema a ser resolvido é o da água. Trouxemos um cavador-de-poços da região para trabalhar, mas a água encontrada não é boa para beber. Portanto, terá mesmo que ser trazida do rio — eis o porquê do circassiano, da charrete, e das pipas-d’água (sem falar no cavalo que não é uma velha). Precisaremos também de um vigia para morar na escavação.

Para nós mesmos, estamos alugando uma casa na cidade armênia, à beira do rio. A maioria das casas estão vazias. O povoa­mento da região começou com um gasto considerável de dinhei­ro, mas pelo que se pode julgar, sem o necessário discernimento para se fazer as coisas mais importantes primeiro. As casas (mise­ráveis cabanas de adobe, como pareceriam a olhos ocidentais), foram, na realidade, superambiciosas, maiores e mais elabora­das do que seria preciso, enquanto que o moinho d’água, do qual dependia a irrigação e todo o sucesso do empreendimento, foi feito de qualquer jeito, já que não sobrara bastante dinheiro para construí-lo verdadeiramente bem. O povoado começou em bases comunitárias. Ferramentas, animais, arados, etc. foram comprados, e deveriam ser pagos pela comunidade, com seus lucros. Mas o que acabou acontecendo foi que uns após outros começa­ram a se cansar da vida campestre, e, desejosos de voltarem a uma cidade, foram embora, levando suas ferramentas e imple­mentos consigo. Resultado: estes tinham que ser constantemente repostos, e as pessoas que permaneceram e trabalharam, fica­ram, para seu espanto, cada vez mais endividadas. Por fim, o moinho d’água deixou de funcionar, e o povoado tornou-se uma mera aldeia — e uma aldeia bastante desconjuntada, diga-se de passagem. A dilapidada casa que estamos alugando é bem imponente, com um muro em volta de um pátio e uma “torre” de dois andares num dos lados. Olhando a torre, do outro lado, há uma série de quartos, que se abrem para o pátio. Serkis, o carpinteiro, está ocupado, agora, consertando as esquadrias das portas e ja­nelas de modo a tornar pelo menos alguns dos quartos habitáveis.

Michel é despachado para buscar um novo vigia para a escavação numa aldeia a algumas milhas de distância, junto com uma barraca.

Serkis diz que o quarto da torre é o que está em melhores condições. Subimos alguns degraus, através do pequeno teto achatado, e entramos nos quartos. Decidimos que no de dentro colocaremos duas camas de campanha, e que o de fora ficará para as refeições, etc. Há algumas tábuas para tampar as janelas, mas Serkis instalará alguns vidros.

Michel volta, e diz que o vigia que tinha que trazer para a colina tem três mulheres, oito filhos, vários sacos de farinha e arroz e um bocado de animais. Impossível trazer tudo no caminhão. O que é que ele faz?

Parte novamente com três libras sírias e as instruções de tra­zer o que puder: das sobras podem alugar burros para chegar até aqui.

O circassiano aparece subitamente, dirigindo a charrete da água. Está cantando, e sacudindo um longo chicote. A charrete está pintada de amarelo e de um azul vivo, as pipas são azuis, o circassiano usa botas altas e roupas coloridas. A coisa toda está mais parecida com um ballet russo do que nunca! O circassiano desce, estala o chicote e continua a cantar, cambaleante. Pelo visto, está bem bêbado!

Mais um dos pássaros de Michel!

O circassiano é despedido, e um certo Abdul Hassan, um homem sério e melancólico, que diz que entende os cavalos, é colocado em seu lugar.

Partimos para casa, e ficamos sem gasolina a duas milhas de Chagar. Max vira-se furioso para Michel, amaldiçoando-o.

Michel levanta as mãos para o céu e deixa escapar um gemido de inocência ofendida.

Ele agiu assim em nosso interesse. Queria utilizar a gasolina até a última gota.

— Seu imbecil! Eu já não lhe disse para encher o tanque sempre e carregar um galão de reserva?

— Não havia espaço para um galão de reserva, e além disso, ele poderia ter sido roubado.

— E por que você não encheu o tanque?

— Queria ver até onde o carro chegava com o que nós tínhamos.

— Idiota!

Michel diz, apaziguadoramente: “Sawi proba”, o que leva Max a um paroxismo de fúria. Sentimo-nos terrivelmente inclinados a aplicar alguma força em Michel, enquanto ele permane­ce a própria imagem da virtude — um homem inocente, acusado injustamente!

Max consegue se controlar, mas diz que agora está vendo por que os armênios são massacrados!

Finalmente chegamos em casa, para sermos saudados por Ferhid, que anunciada sua intenção de “se aposentar”, já que ele e Ali não param de brigar!

 

CHAGAR E BRAK

Nem sempre quem é o maior é o melhor. Dos nossos dois serventes, Subri é, incontestavelmente, o melhor. É inteligente, rápido, adapta-se logo a novos serviços e está sempre alegre. Sua aparência geral de ferocidade e a imensa faca, cuidadosamente afiada que guarda debaixo do travesseiro, à noite, são meras irrelevâncias! Assim como o fato de que, todas as vezes em que pede licença de alguns dias é para visitar algum parente que foi preso em Damasco ou outro lugar qualquer por assassinato! Subri ex­plica, com seriedade, que todos os assassinatos foram necessários. Tratou-se de uma questão de honra, ou prestígio familiar. A prova disso, ele diz, é o fato de que nenhuma das sentenças é uma sentença muito longa.

Subri, então, é de longe o melhor servente; mas Mansur, por estar nos servindo a mais tempo, é o chefe dos serventes. Man­sur, apesar de ajustar-se perfeitamente ao ditado de Max de que é muito burro para ser desonesto, é, de qualquer jeito, e para de­finir bem a situação, uma dor de cabeça.

E Mansur, sendo o chefe dos serventes, serve a mim e a Max, enquanto que o Coronel e Bumps, supostamente inferiores hierarquicamente, contam com os serviços do alegre e inteligen­te Subri.

Às vezes, de manhãzinha, chego a detestar Mansur! Ele entra no nosso quarto depois de bater à porta seis vezes, duvidando de que os repetidos “Entre!” são mesmo dirigidos a ele. Fica pa­rado, respirando com dificuldade e segurando, no mais precário dos equilíbrios, duas xícaras de chá forte.

Devagar, respirando estertorosamente e arrastando os pés, atravessa o quarto e coloca uma xícara na cadeira que fica ao lado da minha cama, derramando a metade do seu conteúdo no pires ao fazê-lo. Junto com ele vem um cheiro forte de, na melhor das hipóteses, cebola, e na pior, alho. Nenhum dos dois realmente agradável às cinco da manhã.

O chá derramado enche Mansur de desespero. Ele olha para a xícara e para o pires, sacudindo a cabeça e estendendo, duvidosamente, o seu indicador e seu polegar.

Numa voz feroz, semi-acordada, digo: “Deixa aí!”

Mansur leva um susto, respira fundo, e se arrasta através do quarto até Max, onde repete a performance.

Depois volta suas atenções para o lavatório. Pega a bacia esmaltada, leva-a cuidadosamente até a porta, e esvazia-a lá fora. Volta com ela, coloca cerca de um centímetro de água, e esfrega-a laboriosamente com um dedo. Isto leva cerca de dez minutos. Então suspira, sai, e volta com uma lata cheia de água quente, coloca-a ao lado, e lentamente arrasta-se para fora, fechando a porta de um jeito que ela imediatamente abre-se novamente.

Então bebo o chá frio, levanto, lavo a bacia eu mesma, jogo a água fora, fecho a porta convenientemente, e começo o dia.

Depois do café, Mansur se dedica à tarefa de “arrumar o quarto”. Depois de derramar um bocado de água em volta do lavatório, sua primeira providência é espanar metódica e cuidadosamente. O resultado em si não é lá muito ruim, mas gasta um tempo enorme.

Satisfeito com a primeira etapa do trabalho, Mansur sai, pega uma vassoura de galhos e começa a varrer furiosamente. Tendo levantado uma poeira tão grande que o ar se torna irrespirável, Mansur faz as camas — ou de uma maneira que os pés fi­cam de fora quando se deita, ou então pelo seu segundo método, que consiste em amarfanhar metade do lençol por baixo da ca­ma, deixando o bastante, apenas, para que se fique coberto até a cintura. Já nem ligo para besteiras como colocar os lençóis e os cobertores em camadas alternadas, ou as duas fronhas no mesmo travesseiro. Estes delírios de imaginação ocorrem apenas em dias de mudança de roupa de cama.

Finalmente, sacudindo a cabeça aprovativamente, Mansur sai bambo do quarto, exausto pelo árduo trabalho e pelo esforço mental. Ele leva a si mesmo e ao seu trabalho muito seriamente, e é imensamente consciencioso. Esta sua atitude já conseguiu impressionar devidamente ao resto do pessoal, e Dimitri, o cozinheiro, disse a Max, gravemente:

— Subri é trabalhador e demonstra a maior boa vontade, mas não tem, é claro, o conhecimento e a experiência de Man­sur, que já aprendeu tudo com os Khwajas!

Para não subverter a disciplina, Max produz sons de concordância, mas nós dois olhamos invejosamente para Subri enquan­to ele sacode e dobra as roupas do Coronel, alegremente.

Certa vez, tentei, oficiosamente, instilar na cabeça de Mansur algumas das minhas próprias idéias sobre o trabalho de casa, mas foi um passo em falso. Só consegui confundi-lo, e instigar a sua teimosia nativa.

— As idéias da Khatun não são nada práticas — ele disse tristemente a Max. — Ela quer que eu coloque folhas de chá no chão. Mas folhas de chá devem ser postas em xícaras, para serem bebidas. E como é que eu posso espanar o quarto depois de varrer? Eu tiro a poeira das mesas e deixo-a cair no chão, e só então é que vou varrer. Pura questão de bom senso.

Mansur é muito obstinado em relação às questões de bom senso. Um pedido do Coronel, que queria geléia para acrescentar ao seu leben (coalhada), encontrou a pronta resposta de Mansur:

— Não, não é preciso!

Alguns vestígios de tradição militar ainda envolvem Mansur. Sempre que alguém o chama, responde: Présent! E anuncia tanto o almoço quanto o jantar com a simples fórmula: La Soupe!

A hora do dia em que Mansur realmente está no seu elemento é a hora do banho, logo antes do jantar. Aqui, Mansur preside, e não tem que fazer nada. Sob seu olho vigilante, Ferhid e Ali trazem grandes latas de querosene cheias de água fervente, e ou­tras de água fria (mais lama do que água) da cozinha, e preparam as banheiras — que são coisas grandes e redondas, feitas de cobre, como imensas panelas para fazer conservas. Mais tarde, ainda sob a supervisão de Mansur, Ferhid e Ali levam as panelas de cobre para fora, cambaleantes, e as despejam, geralmente bem em frente à porta, de modo que se você, inadvertidamente, quiser dar uma volta depois do jantar, escorrega num lamaçal, e leva o maior tombo.

Ali, desde sua promoção a estafeta e a aquisição da bicicle­ta, está liberado de certos trabalhos domésticos. Ao preocupado Ferhid são designadas as tarefas de depenar as aves e a lavagem da louça, um ritual que costuma envolver uma quantidade imen­sa de sabão, e pouquíssima água.

Nas raras ocasiões em que entro na cozinha para “mostrar” a Dimitri a preparação de algum prato europeu, os maiores padrões de pureza e higiene são imediatamente instituídos.

Se eu pego uma vasilha que parece perfeitamente limpa, ela é imediatamente retirada de minha mão, e entregue a Ferhid.

— Ferhid, lave isto para a Khatun usar.

Ferhid pega a tijela, esfrega seu interior a duras penas com um sabão amarelado, aplica um ligeiro polimento à superfície ensaboada, e a devolve para mim. Tenho o pressentimento de que um suflê com gosto de sabão não vai, jamais, ficar realmente bom, mas trato de afastá-lo e me forço a continuar.

A coisa toda é terrível para os nervos. Para começar, a temperatura na cozinha está sempre em torno dos 38 graus, e para que não fique mais quente ainda, há apenas uma pequena abertu­ra para deixar entrar a luz. O efeito geral é o de trevas abrasadoras. Acrescente-se a isso o perturbador efeito da mais completa confiança e reverência em cada um dos rostos que me rodeiam. Há uma boa quantidade de rostos, pois além de Dimitri, do es­cravo Ferhid e do orgulhoso Ali, entraram também para obser­var as manobras: Subri, Mansur, Serkis, o carpinteiro, o homem da água e um homem qualquer da escavação que estava fazendo um serviço na casa. A cozinha é pequena, a multidão é grande. Rodeiam-me com admiração e reverência, vigiando todas as mi­nhas ações. Começo a ficar nervosa, e tenho certeza de que tudo vai sair errado. Deixo um ovo cair no chão e se quebrar. Mas a confiança depositada em mim é tão completa que, durante um bom minuto, todos pensam que isto faz parte do ritual!

Continuo, ficando cada vez mais nervosa, e cada vez com mais calor. As panelas são completamente diferentes de tudo o que já vi, a frigideira está com o cabo completamente solto, tudo o que eu uso tem um tamanho ou uma forma esquisitos... Crio coragem, e decido, desesperada, que seja qual for o resultado, vou fazer de conta que era isso mesmo que eu estava a fim de fazer!

Os resultados propriamente ditos variam. A coalhada de limão é um sucesso; o bolo inglês sai tão intragável que o enterramos secretamente; um suflê de baunilha sai bem, por verdadeiro milagre; enquanto que a galinha Maryland (devido, descubro mais tarde, ao estado e à incrível idade das galinhas) está tão dura que ninguém consegue sequer mordê-la.

Mas pelo menos, já sei o que posso pedir e o que é melhor deixar de lado. Nenhum prato que seja comido assim que sai do fogo deve, jamais, ser pedido no Oriente. Omeletes, suflês, bata­tas fritas vão, invariavelmente, ser preparados com uma hora de antecedência e postos no forno para esquentar. Demonstração alguma fará qualquer efeito. Por outro lado, qualquer coisa que possa ser preparada com uma boa antecedência, e que possa esperar, dará certo. Muito a contragosto, suflês e omeletes foram riscados da lista de Dimitri. Mas convém reconhecer que ne­nhum cozinheiro poderia preparar, dia após dia, uma maionese mais perfeita.

Um outro aspecto pode ser mencionado quanto à culinária. Refere-se ao prato que conhecemos como “bife”. Repetidamen­te o anúncio deste quitute nos desperta esperanças sempre fada­das a transformarem-se em decepções quando um prato conten­do alguns pedaços de gordurosa carne tostada é colocado à nossa frente.

— Não tem nem gosto de bife, — queixa-se o Coronel, amargamente.

E esta é, lógico, a verdadeira explicação — nunca é bife, mesmo.

O açougue é substituído por um processo muito simples. De tempos em tempos, Michel vai com o caminhão até um povoado vizinho. Volta, abre a porta, e de dentro de Mary saem oito carneiros!

Estes carneiros são despachados um de cada vez, de acordo com as necessidades, severas ordens tendo sido dadas para que não sejam sacrificados exatamente embaixo da janela da sala. Não gosto muito, também, de ver Ferhid correndo atrás das gali­nhas, com uma faca longa e pontiaguda na mão.

Estes enjôos da Khatun são tratados com indulgência pelo pessoal como mais uma dessas peculiaridades ocidentais.

Uma vez, quando estávamos escavando perto de Mosul, um capataz procurou Max, muito excitado.

— O Senhor tem que levar sua Khatun a Mosul amanhã. Há grande acontecimento. Vai haver um enforcamento — uma mulher! Sua Khatun vai gostar muito! Ela não deve perder isso de jeito nenhum!

Minha indiferença, e, na verdade, minha repugnância a este evento o espantaram muito.

— Mas é uma mulher, — insistiu. — Quase nunca a gente vê mulheres sendo enforcadas. É uma mulher curda que envene­nou três maridos! É claro — claro que a Khatun não gostaria de perder isto!

Minha firme recusa em ir me fez cair muito no seu conceito. Ele nos deixou entristecido, para se distrair com o enforcamento sozinho.

Mas mesmo outras formas de melindres costumam me assal­tar, inesperadamente. Se bem que seja indiferente à sorte de gali­nhas e perus (desagradáveis criaturas que só sabem cacarejar), compramos uma vez um belo ganso gorducho. Infelizmente, ele provou ser um ganso amistoso. Obviamente, tinha vivido em sua aldeia como um membro da família. Logo na primeira noite, ten­tou, a todo custo, partilhar do banho de Max. Estava sempre em­purrando as portas e botando o bico para dentro, como se esti­vesse dizendo: “estou sozinho”. Com o passar dos dias, fomos fi­cando desesperados. Ninguém conseguia assinar a sua sentença.

Um dia o cozinheiro tomou a tarefa a si. O ganso foi devidamente servido, cheio de recheio, segundo a moda local, e certa­mente, estava muito bonito e cheirava muito bem. Mas quem diz que algum de nós conseguiu apreciar uma migalha sequer? Foi a mais lúgubre refeição que já fizemos.

Bumps desacredita-se aqui no dia em que Dimitri nos serve, orgulhosamente, um cordeiro assado — com cabeça, patas e tu­do. Bumps dá uma olhada, e sai correndo da sala.

Mas voltando ao assunto do “bife”. Depois que um carneiro foi sacrificado, é servido na seguinte ordem: o ombro, ou qual­quer parte parecida, recheado com arroz e especiarias (o grande prato de Dimitri); depois as pernas; depois um prato do que se chamava, na última guerra, de “entranhas comestíveis”; depois uma espécie de guizado com arroz; e finalmente, as partes rejei­tadas do carneiro, que nem merecem a honra de serem incluídas nos melhores pratos, fritas até que estejam com o tamanho bem reduzido, e com a consistência de pedaços de couro — o prato chamado de “bife”!

O trabalho na colina vai indo bem — toda a metade inferior é pré-histórica. Temos cavado de alto a baixo num dos lados da colina. Isto nos mostrou quinze camadas de sucessivas ocupações. Dessas, as últimas dez são pré-históricas. Depois de 1500 d.C, a colina foi abandonada, provavelmente porque o solo já estava gasto. Como sempre, há alguns túmulos islâmicos e romanos inteiramente casuais. Para os trabalhadores, sempre dizemos que são romanos, para não ferir susceptibilidades muçulmanas, mas eles próprios são um bando de irreverentes.

— Nós estamos desenterrando o teu avô, Abdul!

— Nada disso, é o teu, Daoud!

Riem e fazem piadas tranqüilamente.

Encontramos vários amuletos bem interessantes em forma de animais, todos de um tipo bastante conhecido, mas agora, de repente, começam a aparecer umas figuras muito estranhas. Um pequeno urso escuro, a cabeça de um leão, uma estranha e primitiva figura humana. Max teve lá suas suspeitas sobre elas, mas a figura humana realmente é demais. Temos um falsário em cam­po.

— E ele é um sujeito bem esperto, — diz Max, rodando o urso nas mãos, apreciativamente. — Belo trabalho.

Começam as investigações. Os objetos estão aparecendo num canto da escavação e são, geralmente, encontrados por um ou outro de dois irmãos. Estes homens vêm de um povoado que fica a cerca de dez quilômetros de distância. Um dia, num ponto completamente diferente da escavação, aparece uma “colher” muito suspeita. Foi “encontrada” por um homem do mesmo povoado. A comissão é dada como sempre, e nada é dito.

Mas no dia do pagamento faz-se o grande desmascaramen­to! Max exibe as provas, faz um inflamado discurso de condena­ção, denuncia-as como falsas, e publicamente as destrói (embora tenha guardado o urso como curiosidade). Os homens que as produziram são despedidos e irão-se embora bem alegres, proclamando em altas vozes a sua inocência.

No dia seguinte, os homens estão rindo na escavação.

— O Khwaja sabe — eles dizem. — Ele é muito estudado nessas antigüidades. Ninguém consegue enganá-lo.

Max está triste, porque gostaria de saber exatamente como as falsificações foram feitas. O excelente trabalho é digno da sua aprovação.

Agora, a gente já pode ter uma idéia de como era a vida em Chagar de cinco a três mil anos atrás. Nos tempos pré-históricos, devia ter estado numa rota de caravanas muito freqüentada, ligando Harran e Halaf através de Jebel Sinjar na direção do Iraque e do Tigre, à velha Nínive. Pertencia a uma rede de grandes centros de intercâmbio.

Às vezes, a gente encontra um toque pessoal — um oleiro que fez sua marca na base de um pote, um esconderijo na parede onde está um jarrinho cheio de brincos de ouro, talvez o dote da filha da casa. Depois, um toque pessoal mais perto de nossos tempos — um medalhão de metal, com o nome Hans Krauwinkel de Nuremberg, cunhado por volta de 1600 d.C, que estava num tú­mulo islâmico, indicando que naquela época já havia contato entre esta região obscura e a Europa.

De cerca de cinco mil anos atrás, mais ou menos, há alguns jarros trabalhados muito bonitos — para mim, verdadeiras obras de arte — todos feitos à mão.

Há também as Madonas daquela época — figuras de turbante com grandes seios, grotescas e primitivas, mas representando, sem dúvida, ajuda e consolo.

Há também o fascinante desenvolvimento do motivo “bucraniano” na cerâmica, começando como uma simples cabeça de boi, e tornando-se cada vez menos naturalista e mais formal, até chegar a um ponto em que a gente não conseguiria identificá-la se não conhecesse os estágios intermediários. (Reconheço, consternada, que é exatamente o mesmo desenho de um vestido estampado que costumo usar de vez em quando. Em todo caso “bucraniano”, de qualquer jeito, soa muito melhor do que “losangos escorridos”!)

 

Chegou o dia em que a primeira pá será enterrada na colina Brak. É um momento bem solene.

Graças aos esforços combinados de Serkis e Ali, um ou dois quartos já estão arrumados. O homem da água, o cavalo que não é, de jeito nenhum, uma velha, a charrete, as pipas — tudo esta pronto.

O Coronel e Bumps vão para Brak na véspera, para dormirem lá e estarem na colina ao alvorecer.

Max e eu chegamos por volta das oito horas. O Coronel, coitado, passou uma noite terrível lutando contra morcegos! Parece que o quarto da torre está literalmente infestado de morcegos — criaturas por quem o Coronel cultiva uma grande aversão.

Bumps conta que todas as vezes em que acordou de noite, o Coronel estava rondando pelo quarto, tentando acertar os morcegos desesperadamente com uma toalha de banho.

Ficamos observando os preparativos na colina durante algum tempo.

O desanimado homem da água veio me procurar e contou uma longa história do que me pareceu ser a mais intensa amargura. Quando Max chegou, pedi a ele para descobrir do que se tra­tava.

Pelo visto, o homem tem uma mulher e dez filhos em algum lugar perto de Jerablus, e está desconsolado com a sua ausência. Será que a gente poderia lhe adiantar alguma coisa do salário para que ele mandasse buscar a família?

Intercedo por uma resposta favorável. Max está em dúvida. Diz que uma mulher na casa só vai dar confusão.

Voltando para Chagar, encontramos grandes quantidades dos nossos trabalhadores indo até a nova escavação.

— El hamdu lillah! — eles dizem — Haverá trabalho para a gente amanhã?

— Sim, haverá trabalho.

Eles dão graças a Deus novamente, e continuam a caminhada.

 

Passamos dois dias em casa, sem maiores acontecimentos, e agora é nossa vez de passar uns tempos em Brak. Por enquanto ainda não apareceu nada de muito importante, mas a escavação promete, e as casas, etc, são do período certo.

Hoje, sopra um vento forte do sul — o mais detestável dos ventos. Faz a gente ficar irritada e nervosa. Partimos, preparados para o pior, com botas de borracha, capas e até guarda-chuvas. Não levamos muito a sério a declaração de Serkis de que ele consertou o telhado. Hoje à noite será, como Michel diria, um caso de Sawi proba.

O caminho para Brak é através do campo, sem nenhuma estrada. Estamos pela metade, quando passamos por dois dos nos­sos homens que estão indo para “o trabalho”. Como temos lugar, Max pára Mary e lhes oferece uma carona, o que é motivo de grande júbilo. Atrás deles vem um cachorro, com um pedaço de corda amarrado no pescoço.

Os homens sobem, e Michel prepara-se para partir. Max pergunta pelo cachorro. Ele leva o cachorro também. Os homens dizem que o cachorro não é deles. Simplesmente apareceu de repente, no meio do deserto.

Olhamos o cachorro com mais atenção. Apesar de não ser de nenhuma raça específica, é claramente uma mistura européia! Tem a forma de um terrier, as cores de um Dandy Dinmont e um toque de perdigueiro. É muito comprido, tem brilhantes olhos castanhos, e um nariz marrom-claro bastante comum. Não pare­ce nem acossado, nem tímido, menos ainda com pena de si mes­mo — como o cachorro oriental médio. Sentado confortavel­mente, olha-nos prazerosamente, abanando a cauda ligeiramen­te.

Max diz que vai levá-lo conosco, e manda que Michel o pegue, e o coloque no carro.

Michel não parece animado,

— Vai me morder, — diz, duvidoso.

— É mesmo, — dizem os dois árabes. — Tem toda a cara de querer a tua carne! É melhor deixar ele aí, Khwaja!

— Pegue-o de uma vez e coloque-o aqui, seu imbecil! — diz Max a Michel.

Michel toma coragem e avança até o cachorro, que vira a cabeça na sua direção.

Michel bate em retirada. Eu perco a paciência, desço, pego o cachorro, e volto para Mary com ele. Suas costelas estão aparecendo através da pele. Vamos para Brak, onde o recém-chegado é entregue a Ferhid, com instruções de que seja bem alimentado. Discutimos um nome, e nos decidimos por Miss Ostapenko (já que estou lendo, exatamente, Tobit Transplanted). Po­rém, principalmente por causa de Bumps, Miss Ostapenko fica sendo conhecida apenas por Hiyou. Hiyou é um cachorro de espantoso temperamento. Ávida por viver, é absolutamente intrépida, e não demonstra medo de nada nem de ninguém. É muito bem humorada, e tem um gênio muito bom, se bem que esteja sempre decidida a fazer exatamente o que quer. Obviamente, possui as nove vidas geralmente atribuídas aos gatos. Se a gente a tranca dentro de casa, dá um jeito de sair. Se a gente a tranca fora de casa, dá um jeito de entrar — certa vez, cavando um bu­raco de um meio metro na parede. Ela acompanha todas as refei­ções, e é tão insistente que não há como não atendê-la. Ela não pede — manda.

Estou convencida de que alguém quis se livrar de Hiyou e levou-a com uma pedra amarrada no pescoço até o rio, onde tentou afogá-la. Mas Hiyou, determinada a gozar a vida, roeu a cor­da, nadou até à margem, e se pôs em marcha alegremente através do deserto, escolhendo os dois homens com seu instinto infalível. Confirmando a minha teoria, Hiyou vem conosco a qualquer lu­gar, menos ao Jaghjagha. Fica bem longe, mais ou menos sacu­dindo a cabeça, e volta para casa.

— Não, obrigada! — ela diz. — Não gosto de ser afogada. É muito chato!

 

Ficamos satisfeitos em saber que o Coronel passou uma noite mais agradável. Serkis expulsou a maioria dos morcegos con­sertando o telhado, e, para completar, o Coronel inventou um es­tranho sistema, que envolve uma grande bacia de água onde os morcegos caem eventualmente e morrem afogados. Segundo o Coronel nos informou, o mecanismo é muito complicado, e arrumá-lo diminuiu bastante as suas horas de sono.

Vamos para a colina, e almoçamos num lugar protegido do vento. Mesmo assim, um bocado de areia e poeira são engolidas com cada pedaço. Todo mundo parece animado, e mesmo o melancólico homem da água demonstra um certo orgulho ao ir e vir do Jaghjagha, trazendo a água dos trabalhadores. Ele a leva até o sopé da colina, e de lá, ela é conduzida em jarras presas no lombo de burricos. A coisa toda tem um aspecto bíblico muito fascinan­te.

Quando o dia de trabalho chega ao fim, trocamos despedidas, e o Coronel e Bumps partem em Mary para Chagar, e nós assumimos nosso plantão de dois dias em Brak.

O quarto da torre parece bastante atraente. Há esteiras no chão, e um par de tapetes. Temos uma bacia e uma jarra, uma mesa, duas cadeiras, duas camas de campanha, toalhas, lençóis, cobertores e até mesmo alguns livros. As janelas foram mais ou menos fechadas, e vamos para a cama, depois de uma refeição algo esquisita, servida por Ferhid e cozinhada por Ali. Consistia principalmente num espinafre muito líquido, com algumas ilhas flutuantes que suspeitamos ser, novamente, “bifes”!

Passamos uma noite bem agradável. Apenas um morcego aparece, e Max o enxota do quarto com uma lanterna. Decidi­mos que vamos dizer ao Coronel que as suas histórias de cente­nas de morcegos são um exagero descarado, devido, principal­mente, à bebida. Às quatro e quinze, Max é acordado com o chá e parte para a colina. Eu durmo novamente. Às seis, trazem o meu chá. Max volta para tomar o café da manhã às oito horas. A refeição é servida em grande estilo — ovos cozidos, chá, pão sírio, dois potes de geléia, uma lata de mostarda em pó (!) Alguns minutos depois, uma segunda bandeja é trazida, desta vez com ovos mexidos.

Max murmura: “Trop de zèle”, e temendo a iminente chega­da de uma omelete, comunica ao invisível Ali que o que nos trou­xe já é suficiente. Ferhid suspira e parte com a mensagem. Volta com a testa franzida de ansiedade e perplexidão. Ficamos espe­rando uma catástrofe — mas não; ele simplesmente pergunta:

— Vão querer que lhes mandem laranjas para o almoço?

Bumps e o Coronel aparecem ao meio-dia. Bumps tem um bocado de trabalho com o seu chapéu por causa do vento. Mi­chel chega, prestativo, pronto para aplicar Força, mas lem­brando-se da última vez, Bumps o evita com destreza.

Nosso almoço normal é carne fria e salada, mas a alma ambiciosa de Ali estava sequiosa de coisas melhores, de modo que comemos fatias de beringelas fritas, mornas e meio cruas, batatas fritas frias e gordurosas, pequenos discos de “bife” frito muito duro, e um prato de salada com molho e tudo, preparado há horas, assim que a coisa toda virou uma orgia de banha fria e esver­deada!

Max diz que ficará muito triste de desanimar os esforços de Ali, mas terá que controlar a sua imaginação.

Encontramos Abd es Salaam empregando a hora do almoço em fazer um longo discurso moral de caráter realmente nauseante.

— Vocês estão vendo como vocês são sortudos? — ele grita, sacudindo os braços. — Não está tudo pronto para vocês? Não são tomados todos os cuidados para com vocês? Vocês podem até trazer a sua comida para cá, para comer no pátio da casa! Salários imensos são pagos a vocês — sim, quer vocês achem alguma coisa, quer não, o salário é pago do mesmo jeito! E isto não é tudo! Além destes salários enormes, vocês ainda recebem por cada coisa que vocês acham! O Khwaja cuida de vocês como um pai; ele até impede que vocês se machuquem uns aos outros! Se vocês estão com febre, ele lhes dá remédios! Se vocês estão com os intestinos presos, ele lhes dá laxantes de primeira classe! Que felicidade, que grupo de gente de sorte vocês são! E há ainda mais generosidade! Ele deixa vocês trabalharem sedentos? Ele manda que vocês se virem para arranjar a sua própria água? Não! Nada disso! Apesar de não ter nenhuma obrigação, ele traz água para vocês do Jaghjagha, de graça, na sua imensa generosidade! Água trazida a duras penas, numa charrete com cavalo! Imaginem só as despesas, a verba! Que grande sorte vocês têm em serem empregados de um homem destes!

Nós escapulimos de lá, e Max comenta, pensativo, que não sabe como nenhum dos homens ainda não matou Abd es Salaam. Ele já teria matado, se fosse um deles. Bumps diz que, pelo contrário, os homens estão até gostando. Ê verdade. Gestos e ruídos de aprovação são ouvidos, um homem se vira para outro.

— O que ele está dizendo é verdade. Trazem água para a gente. Sim, há mesmo muita generosidade por aqui. Ele tem razão. Nós temos sorte. Ele é um homem sábio, esse Abd es Salaam.

Bumps diz que não consegue entender como eles se deixam influenciar. Mas eu discordo. Eu me lembro com que avidez a gente engolia as histórias mais moralistas quando era criança. O árabe tem um quê de ingênuo em sua atitude em relação à vida. O sentencioso Abd es Salaam é preferido ao moderno e menos cerimonioso Alawi. Além disso, Abd es Salaam é um grande dançarino, e durante a noite, no pátio da casa de Brak, os homens, li­derados pelo velho Abd es Salaam, dançam longas e intrincadas mesuras — ou, mais propriamente, um esquema — às vezes até altas horas da madrugada. Como eles conseguem fazer isso e es­tar de novo na colina, às cinco horas do dia seguinte, é um mistério. Mas há também o mistério de como homens que moram em povoados que ficam a três, cinco e dez quilômetros de distância conseguem chegar exatamente ao nascer do sol. Eles não têm re­lógios nem despertadores, e têm que sair de casa num tempo que varia de vinte minutos a uma hora antes do alvorecer, mas cá es­tão eles! Não chegam nem adiantados, nem atrasados. É sur­preendente, também, vê-los na hora da saída, quando o trabalho acaba (meia hora antes do por do sol), jogar suas cestas para ci­ma, rirem, colocarem as picaretas ao ombro, e correrem — é, correrem — alegremente os dez quilômetros de volta para casa. Sua única pausa foi meia hora para o café da manhã, e uma hora para o almoço, e pelos nossos padrões, sempre estão subnutridos. É verdade que eles trabalham num ritmo que se poderia chamar de lento, com arroubos ocasionais de frenética escavação ou correndo, quando são assaltados por alguma onda de animação, mas seu trabalho é, na verdade, um trabalho muito duro. O homem da picareta é, talvez, o mais favorecido, pois depois que limpou sua área, pode se sentar para apreciar um cigarro enquanto o da pá remove a terra em sua cesta. Os meninos da cesta só descan­sam nas suas escapulidas. Mas eles sabem dar estas escapulidas muito bem, andando em câmara lenta ou demorando horas para esvaziar as cestas.

No todo, são um bando maravilhosamente sadio. Há um bocado de problemas com os olhos, e são muito preocupados com constipação. Acredito que haja, hoje em dia, uma grande incidência de tuberculose, que acho que lhes foi trazida junto com a civilização ocidental. Mas o seu poder de recuperação é excelente. Um homem abre a cabeça de outro, fazendo uma ferida de terrível aspecto. O homem pede que a gente a trate e enfaixe, mas fica muito surpreso com a sugestão de que deveria parar de trabalhar e ir para casa.

— Só por causa disto? É só uma dor de cabeça, à-toa!

E em dois ou três dias a ferida está cicatrizada, apesar do tratamento altamente anti-higiênico que o próprio homem deve, sem dúvida, ter aplicado assim que se viu sozinho em casa.

Um homem tinha uma bolha grande e dolorosa na perna, e foi mandado para casa por Max, pois estava com febre.

— Você vai receber exatamente a mesma quantia que receberia se estivesse aqui.

O homem resmungou e foi embora. Mas naquela tarde, de repente, Max o pegou em flagrante, trabalhando.

— O que é que você está fazendo aqui? Eu não te mandei para casa?

— Eu fui para casa, Khwaja (oito quilômetros). Mas quando eu cheguei em casa fiquei chateado. Nada de conversa! Só as mulheres. Então voltei. E o Senhor vê, foi até bom, porque a bo­lha estourou!

Hoje voltamos a Chagar, e os outros dois vêm para Brak. É uma delícia voltar à nossa casa. Na chegada, descobrimos que o Coronel andou pregando avisos por toda a parte, principalmente uns avisos de caráter insultante. Também limpou e arrumou tudo com tanto zelo que não conseguimos encontrar mais nada do que precisamos! Ficamos bolando vinganças! Finalmente, recorta­mos alguns retratos da Sra. Simpson de alguns jornais velhos, e os pregamos em seu quarto.

Há um bocado de fotografias a serem feitas e reveladas, e, como é um dia quente, saio da minha câmara escura me sentin­do exatamente como uma parede cheia de fungos! O pessoal fi­cou ocupado me trazendo água relativamente pura. A lama mais grossa é coada primeiro, depois a água é coada novamente atra­vés de pano e lã. Quando chega a ser usada para os negativos, só areia fina e poeira do ar entraram nela, e os resultados são bastante satisfatórios. Um dos trabalhadores procura Max e pede cinco dias de licença.

— Por quê?

— Porque tenho que ir para a prisão!

 

Hoje foi um grande dia por causa de um salvamento. Cho­veu durante a noite, e esta manhã o chão ainda estava meio encharcado. Por volta do meio-dia, um cavaleiro tresloucado chegou galopando, com a urgência e o desespero de quem traz boas notícias de Aix para Ghent, etc. Na verdade, trazia más notícias. O Coronel e Bumps vinham nos visitar, e encalharam no cami­nho. O cavaleiro é despachado imediatamente com duas pás, e nós enviamos uma equipe de salvamento em Poilu. Cinco homens, comandados por Serkis, partem levando pás e tábuas extras, cantando alegremente.

Max grita para que eles tenham cuidado e não se atolem a si mesmos. Na verdade, é exatamente isto o que acontece, mas felizmente só a alguns metros do lugar onde Mary está atolada. Sua traseira está enterrada na lama, e sua tripulação está cansadíssi­ma, depois de ter tentado desenterrá-la durante cinco longas ho­ras, e de ter sido quase levada à loucura pelos bem-intencionados berros de Michel, emitidos na sua voz estridente e consistindo principalmente de “Força!”, enquanto ele quebrava, sucessiva­mente, três macacos! Com a assistência dos fortes (escolhidos pela sua massa muscular) e sob a direção mais competente de Serkis, Mary consente em sair da lama, o que faz muito de repen­te, cobrindo todos de lama, dos pés à cabeça, e deixando um bu­raco enorme para trás, batizado pelo Coronel de “túmulo de Ma­ry”.

Choveu bastante durante a nossa última estada em Brak, e o telhado de Serkis não agüentou a chuva lá muito bem. Além disso, as janelas abrem o tempo todo, e lufadas de vento e chuva en­tram no quarto. Felizmente, a pior chuva cai no nosso dia livre, de modo que o trabalho não é interrompido, embora a excursão ao vulcão Kawkab, que tínhamos planejado, seja adiada.

Por falar nisso, quase temos uma revolução por causa disto, já que o período de dez dias de trabalho acaba num sábado, e Abd es Salaam, escolhido para comunicar aos homens o feriado, como o perfeito idiota que é, diz:

— Amanhã é domingo — portanto, nada de trabalho!

Imediatamente, há um tumulto. O quê? Todos os gentis cavalheiros muçulmanos serem insultados e sacrificados por causa de uma vintena de miseráveis cristãos armênios? Um impetuoso cavalheiro chamado Abbas’Id tenta organizar uma greve. Max faz, então, um comunicado, dizendo que se ele quiser um feriado no domingo, segunda, terça, quarta, sexta ou sábado, haverá um feriado! Quanto a Abbas’Id, está convidado a nunca mais pôr os pés na escavação! Os armênios, que estão cortejando a morte por sorrir, triunfantes, são devidamente incitados a calarem as bocas, depois do que começa o pagamento.

Max vai para Mary, Michel sai de casa meio bambo, carregando sacolas de dinheiro (graças a Deus, não são mais mejidis! Eles foram declarados ilegais, e a moeda síria, agora, é de rigueur) que coloca no caminhão. O rosto de Max aparece na janela do motorista (parecendo com um caixa numa estação ferroviária). Michel senta-se no caminhão e assume o controle do dinheiro, empilhando as moedas e suspirando tristemente enquanto con­templa o tanto de dinheiro que está indo para mãos muçulmanas!

Max abre uma imensa caderneta, e a diversão começa! Turma após turma marcha enquanto os nomes são chamados, e leva o que lhe cabe de direito. Terríveis feitos aritméticos foram reali­zados na noite passada, até altas horas, enquanto a comissão diá­ria de cada homem era verificada e somada ao seu salário.

A desigualdade do Destino é muito acentuada no dia do pagamento. Alguns homens retiram um bocado, outros quase nada. Há muitas brincadeiras e gozações, e todos, mesmo aqueles abandonados pela Fortuna, estão muito alegres. Uma mulher curda alta e bonita corre para o seu marido, que está contando o que recebeu.

— Quanto é que você ganhou? Deixa eu ver! — sem escrúpulos, ela pega o dinheiro todo e some com ele.

Dois árabes de aspecto refinado viram o rosto gentilmente, chocados por semelhante espetáculo de comportamento nada feminino (ou de resto, nada masculino!)

A mulher curda reaparece de sua casa de barro e xinga o marido por causa da maneira como ele está tratando um burro. O curdo, um grande e belo homem, suspira tristemente. Quem seria um marido curdo?

Há um ditado que diz que, se um árabe o rouba no deserto, vai lhe bater, mas deixá-lo vivo; mas se um curdo o rouba, vai matá-lo só por prazer!

Talvez o fato de ser espezinhado em casa aumente a violência lá fora!

Finalmente, depois de duas horas, todos foram pagos. Um pequeno mal-entendido entre Daoud Suliman e Daoud Suliman Mohammed foi resolvido, para satisfação geral. Abdullah voltou sorridente para devolver dez francos e cinqüenta que lhe foram dados a mais. O pequeno Mahmoud faz um barulhão por causa de quarenta e cinco centavos — “duas contas, um caco de cerâ­mica e um pouco de obsidiana, Khwaja, foi na quinta-feira passa­da!” Todas as reclamações são examinadas e atendidas. São co­lhidas informações sobre quem continua trabalhando e quem vai embora. Quase todo mundo vai embora.

— Mas depois do próximo período — quem sabe, Khwaja?

— É — diz Max, — quando o seu dinheiro tiver acabado!

— É isso aí, Khwaja.

Amistosas saudações e despedidas são trocadas. À noite, há canto e dança no pátio.

 

De volta a Chagar, é um belo dia quente. O Coronel está explodindo de raiva de Poilu, que o deixou na mão quase todos os dias em Brak, nos últimos tempos. Todas as vezes Ferhid é chamado, diz que o carro está bom, nada de errado, e com sua demonstração o carro pega imediatamente. O Coronel considera isto um insulto a mais.

Michel vem, e explica com sua voz estridente que tudo o que é preciso é limpar o carburador — um procedimento muito simples, que ele vai mostrar ao Coronel. Michel então começa a fazer o seu truque favorito, que é aspirar um pouco de gasolina na boca, gargarejar com ela à vontade, e finalmente engoli-la. O Coronel observa com uma expressão de frio desgosto. Michel sacode a cabeça, sorri satisfeito, e diz ao Coronel: “Sawi proba?” começando a acender um cigarro. Prendemos o fôlego, esperan­do ver a garganta de Michel explodir em chamas, mas nada acon­tece.

Várias pequenas complicações acontecem. Quatro homens são despedidos por causa de brigas constantes. Alawi e Yahya brigaram, e não estão se falando. Um dos nossos tapetes foi roubado. O Xeque está muito indignado, e está procedendo a um in­quérito para apurar a questão. Temos o prazer de observar isso de longe — um círculo de homens barbados, vestidos de branco, sentados na planície com as cabeças juntas.

— Estão reunidos lá, — explica Mansur — para que nin­guém ouça os segredos que estão dizendo.

Os acontecimentos subseqüentes são bem orientais. O Xeque nos procura, garante que já descobriu quem são os malfeito­res, e que se encarregará de que o nosso tapete seja devolvido.

O que acontece, na verdade, é que o Xeque surra seis de seus inimigos particulares, e provavelmente chantageia outros tantos. O tapete não aparece, mas o Xeque está feliz e parece ter bastante dinheiro novamente.

Abd es Salaam procura Max, em segredo.

— Eu vou lhe dizer quem roubou o seu tapete. Foi o cunhado do Xeque, o Xeque yezidi. Ele é um homem muito mau, mas a sua irmã é bonita.

A esperança de uma agradável perseguiçãozinha aos yezidis aparece nos olhos de Abd es Salaam, mas Max declara que o tapete será dado por perdido, e não se fará mais nada a respeito.

— Da próxima vez — diz Max, olhando severamente para Mansur e Subri — será bom que vocês tomem mais cuidado, e que não deixem os tapetes por aí, tomando sol.

O próximo incidente desagradável é que os homens da Alfândega chegam e prendem dois de nossos homens por estarem fumando cigarros iraquianos contrabandeados. É muito azar dos dois homens em particular, já que, na verdade, duzentos e oiten­ta homens (a nossa lista de pagamento atual) estão todos fuman­do cigarros iraquianos contrabandeados! O funcionário da Al­fândega pede uma entrevista com Max.

— Isto é uma ofensa muito grave — ele diz. — Por deferên­cia ao senhor, Khwaja, não prendemos estes homens na sua escavação. Não ficaria bem para o senhor.

— Agradeço por sua delicadeza e cortesia — replica Max.

— Sugerimos, porém, que o senhor os despeça sem pagamento, Khwaja.

— Sinto muito, mas não pode ser. Não sou eu quem tem que fazer com que se cumpram as leis deste país. Sou um estran­geiro. Estes homens foram contratados para trabalhar para mim e eu tenho que pagar o que lhes é devido. Não posso deixar de pagá-los.

O assunto é decidido, finalmente (com o consentimento das partes culpadas), com duas multas retiradas dos salários dos homens e pagas ao funcionário da Alfândega.

— Inshallah! — dizem os homens dando de ombros e voltando para o trabalho.

Max, de coração mole, é um pouco generoso demais com as comissões dos dois culpados durante a semana, e o dia do pagamento os encontra felizes. Eles não suspeitam que Max é o seu benfeitor, e atribuem a sua boa sorte à infinita compaixão de Allah.

Fizemos outra excursão a Kamichlie. A estas alturas, é tão excitante quanto uma viagem a Londres ou a Paris. A rotina foi mais ou menos a mesma — Harrod’s, conversa fiada com seu Yannakos, longas sessões no Banco enriquecidas, desta vez, pela visita de um alto dignitário da Igreja Maronita, com cruz de ouro e tudo, cabelos luxuriantes e roupas vermelhas. Max me faz sinal para oferecer a minha cadeira a Monseigneur, o que eu faço relutantemente, e me sentindo terrivelmente protestante. (Nota — Em circunstâncias similares, eu ofereceria a única cadeira ao Arcebispo de York, se por acaso eu estivesse sentando nela? Decido que ofereceria, mas que ele jamais aceitaria!) O Arcemandrita, ou Grande Mufti, ou seja lá o que ele é, aceita, afundando com um suspiro de satisfação e me dirigindo um olhar benevo­lente.

Michel, é desnecessário dizer, irrita-nos ao extremo! Faz ridículas compras muito econômicas. Vai também ver com Man­sur a compra de um segundo cavalo, e Mansur, cheio de paixão eqüina, leva o dito cavalo exatamente para dentro da loja do barbeiro local, que está cortando o cabelo de Max.

— Fora daqui, seu louco! — grita Max.

— É um excelente cavalo, muito tranqüilo! — berra Man­sur.

Neste momento, o cavalo empina, e todos que estavam na barbearia se escondem, ameaçados por duas patas gigantescas.

Mansur e o cavalo são expulsos, Max continua o seu corte de cabelo, e guarda tudo o que ele tem a dizer a Mansur para mais tarde.

Temos um almoço delicioso e recherché com o comandante francês no acampamento, convidamos alguns oficiais franceses para virem nos visitar na escavação, e voltamos ao Harrod’s para ver quais são as últimas enormidades de Michel. Parece que vai chover, e assim partimos logo para casa.

O cavalo foi comprado, e Mansur pede que o deixem ir para casa nele.                                                  

Max diz que assim ele nunca vai chegar em casa.

Eu digo que esta é uma ótima idéia, e que, por favor, ele deixe Mansur voltar para casa a cavalo.

— Você vai ficar tão doído, que não vai nem conseguir se mexer — diz Max.

Mansur diz que nunca fica doído quando anda a cavalo.

Fica combinado que Mansur voltará com o cavalo no dia seguinte. O correio está atrasado de um dia, e assim Mansur pode­rá trazer a correspondência consigo.

Chove enquanto voltamos para casa (acompanhados pelas usuais e incômodas galinhas e pelos escombros humanos). Temos derrapadas fantásticas, mas chegamos em casa exatamente antes da estrada se tornar intransitável.

O Coronel acaba de voltar de Brak, onde teve um bocado de problemas com os morcegos. Empurrá-los com a lanterna para dentro da bacia surtiu muito efeito, só que como demora muito, ele não teve muito tempo para dormir. Comentamos friamente que nós nunca vimos morcego nenhum!

 

Entre os nossos trabalhadores, há um que sabe ler e escrever! Seu nome é Yusuf Hassan, e ele é um dos homens mais pre­guiçosos da escavação. Nunca encontro Yusuf trabalhando para valer. Ele sempre acabou, exatamente, de escavar o seu pedaço, ou está prestes a começar, ou parou só para acender um cigarro. É algo orgulhoso de suas letras, e um dia se diverte a si mesmo e a alguns amigos escrevendo num pacote de cigarros vazio: “Saleh Birro se afogou no Jaghjagha”. Todos se divertem com esta peça de erudição e espírito!

O pacote vazio é embrulhado num pacote vazio de pão, que é amassado dentro de um saco de farinha, e no devido tempo, o saco volta a seu lugar de origem — o povoado de Hanzir. Lá, alguém vê a inscrição. É levada a um homem letrado; ele a lê. Em seguida, a notícia é levada à aldeia de Germayr, cidade natal de Saleh Birro. Resultado: na quarta-feira seguinte, uma caravana de carpideiras — homens, mulheres chorosas, crianças berrando — chega à colina Brak.

— Ai, Ai! — eles choram. — Saleh Birro, nosso bem-amado, se afogou no Jaghjagha! Viemos buscar o seu corpo.

A primeira coisa que eles vêem, então, é Saleh Birro em pessoa, cavando alegremente, e cuspindo no seu montículo de terra. Espanto, explicações, e, conseqüentemente, Saleh Birro, louco de raiva, tentando quebrar a cabeça de Yusuf Hassan com sua pi­careta! Amigos de cada lado aderem à briga, o Coronel aparece e ordena (em vão!) que parem com aquilo, e tenta descobrir o que é que aconteceu.

Comissão de inquérito instaurada por Max, e sentença pronunciada.

Saleh Birro é despedido por um dia por — (a) brigar, (b) não parar de brigar quando advertido. Yusuf Hassan é condenado a ir até Germayr (quarenta quilômetros), e lá se explicar e se descul­par pela sua infeliz idéia. Além disso, está multado em dois dias de pagamento.

E a moral da história — diz Max, mais tarde, ao seu pequeno e seleto círculo — mostra que coisa perigosa é saber ler e escre­ver!

 

Mansur, tendo ficado retido em Kamichlie durante três dias, devido ao tempo, de repente aparece mais morto do que vivo no cavalo. Não só não consegue ficar em pé, mas teve a infelicidade adicional de ter comprado um grande e delicioso peixe em Kamichlie, que com a demora forçada acabou estragando. Por alguma razão desconhecida, trouxe-o com ele! É rapidamente enterrado, e Mansur se retira gemendo para a cama, não sendo vis­to por mais três dias. No entretempo, nós aproveitamos um boca­do o inteligente assessoramento de Subri!

 

Finalmente, a expedição ao Kawkab se realiza. Ferhid, mais concentrado do que nunca, apresenta-se como voluntário para ser nosso guia, já que “conhece a região”. Atravessamos o Jagh­jagha numa ponte de aspecto precário, e nos abandonamos à tris­te liderança de Ferhid.

Tirando o fato de Ferhid quase morrer de ansiedade durante o percurso, até que nós não nos saímos mal. O Kawkab está sempre à vista, o que ajuda um bocado, mas o chão cheio de pedre­gulhos por que temos que andar é aterrador, principalmente quando vamos chegando perto do vulcão extinto.

O ambiente em casa estava muito tenso antes de sairmos, já que uma acalorada discussão sobre um pedaço de sabão infla­mou todo o pessoal. Os capatazes dizem, friamente, que prefe­rem não vir à excursão, mas o Coronel os força a participarem. Entram em Mary por lados opostos, e sentam-se dando as costas uns aos outros. Serkis senta-se como uma galinha no fundo, e não quer falar com ninguém. Ê difícil descobrir quem exatamente brigou com quem, mas no final da escalada ao Kawkab, tudo está esquecido.

Esperávamos uma subida suave num chão atapetado de flores, mas quando chegamos lá, a subida é tão íngreme quanto os lados de uma casa, e o chão é terrivelmente escorregadio por causa de uma camada de cinzas pretas. Michel e Ferhid recusam-se terminantemente a sequer tentar, mas o resto do gru­po faz a tentativa. Eu desisto logo, e acomodo-me para contem­plar o espetáculo dos outros escorregando e caindo e rolando. Abd es Salaam faz o percurso praticamente todo de quatro!

Há uma cratera menor, e almoçamos ao seu lado. Há flores em quantidade, e é um momento encantador. A vista é maravilhosa, com as montanhas de Jebel Sinjar não muito ao longe. A paz total é esplêndida. Uma grande onda de felicidade me envol­ve, e eu vejo o quanto gosto deste pais, e como esta vida é com­pleta e satisfatória...

 

CHEGADA DE MAC

A temporada está chegando ao auge. Chegou a época de Mac vir nos fazer companhia, e estamos ansiosos em vê-lo. Bumps faz muitas perguntas a respeito de Mac, e demonstra não acreditar muito em algumas das minhas informações. Precisamos de um travesseiro extra, e compramos um em Kamichlie. É o me­lhor que conseguimos encontrar, mas é, sem dúvida, duro como uma pedra.

— O coitado não pode dormir nisso aí — diz Bumps.

Eu garanto que Mac nem se incomodará em saber onde está dormindo.

— Pulgas e insetos não o mordem; ele parece não ter nenhuma espécie de bagagem ou pertence pessoal espalhado por aí. — E acrescento, com saudade: — Só o seu tapeie e o seu diário.

Bumps parece mais incrédulo do que nunca.

 

O dia da chegada de Mac chegou. Coincide com o nosso dia livre, e planejamos uma complicada expedição. O Coronel vai para Kamichlie às cinco e meia da manhã, em Poilu, e aproveita­rá para pegar Mac e cortar o cabelo. (Coisa que tem feito bem freqüentemente, já que o Coronel insiste no tosquiado corte militar!)

Tomamos café às sete, e vamos às oito para Amuda, onde vamos nos encontrar com os outros e continuar, todos juntos, até Ras-el-Ain, onde pretendemos examinar algumas colinas da vizinhança. (Nossos feriados são sempre feriados de homens de ne­gócios!) Subri e o cortês Dimitri também estão participando desta excursão. Estão vestidos de maneira estranha, com botas bri­lhantes e chapéus Homburg, com roupas vermelhas muito aper­tadas para eles. Michel, que aprendeu por amarga experiência, está usando as suas roupas de trabalho, mas colocou polainas brancas para realçar o feriado.

Amuda está mais asquerosa do que nunca, com mais carcaças de animais apodrecidos pelas ruas do que já vi em toda a mi­nha vida. Mac e o Coronel ainda não apareceram, e arrisco a opi­nião de que Poilu, como sempre, deve ter deixado o Coronel na mão.

No entanto, eles chegam logo, e depois de saudações e algumas compras (principalmente pão; o pão de Amuda é muito bom), nós nos preparamos para partir, e descobrimos que Poilu, esquecendo suas boas maneiras, está com um pneu furado. Michel e Subri logo dão um jeito nisso, enquanto se junta uma mul­tidão em volta — chegando cada vez mais perto, como é de hábi­to dos Amudenses.

Finalmente nos pomos a caminho, mas depois de uma hora Poilu repete a má-criação, e mais um pneu se vai. Mais conser­tos, e torna-se evidente que nenhum dos petrechos de toalete de Poilu é realmente bom. Seu macaco está defeituoso, sua manive­la é um fracasso completo. Subri e Michel fazem milagres segu­rando pedaços de encanamento com unhas e dentes.

Tendo perdido uma hora preciosa, partimos novamente. Em seguida chegamos a uma depressão que, inesperadamente, está cheia de água (fato pouco comum nesta época do ano). Paramos, e começamos a discutir as nossas possibilidades de atravessá-la com êxito.

Michel, Subri e Dimitri são de opinião que é claro que podemos, se Deus quiser, e for misericordioso. Levando em conside­ração que, se o Todo Poderoso não quiser, e não suspender o chassis de Poilu por um milagre, nós vamos ficar atolados e provavelmente não vamos conseguir desatolar, decidimos, a contra­gosto, ficar do lado de cá.

O povoado local fica tão entristecido com a nossa decisão, que começamos a suspeitar que seus habitantes ganham a vida puxando para fora carros submersos. Michel resolve testar a altura da água, e nós ficamos fascinados pela revelação de suas roupas de baixo! É uma estranha vestimenta de algodão branco, amarrada com cordões nas pernas — exatamente igual às calcinhas de uma senhorita Vitoriana!

Decidimos almoçar ao lado da depressão. Depois do almoço, eu e Max ficamos mergulhando os pés na água — delicioso, até que uma cobra pula fora de repente, e nos faz desistir de toda e qualquer mergulhação.

Um velho aparece, e senta-se ao nosso lado. Há o habitual silêncio após as saudações.

Então, ele pergunta gentilmente se somos franceses? alemães? ingleses?

Ingleses!                                                                        

Sacode a cabeça.

— É aos ingleses que o país pertence, agora? Não consigo me lembrar. Só sei que não é mais dos turcos.

— Não — dizemos nós. — Os turcos já não estão mais aqui desde a guerra.

— Uma guerra? — diz o velho, perplexo.

— Guerra de vinte anos atrás...

Ele reflete.

— Eu não me lembro de guerra nenhuma... Ah, sim, pela época que os senhores mencionaram, muitos ‘asker iam e vinham pela estrada de ferro. Aquilo era uma guerra, então? Não sabía­mos disso. Não nos atingiu, por aqui...

Depois de outro silêncio demorado, ele se levanta, despede-se educadamente, e desaparece.

Voltamos pelo caminho da colina Baindar, onde se tem a impressão de que foram espetadas centenas de barracas pretas. São os beduínos indo em direção ao sul, procurando o pasto com a chegada da primavera. Há água no Wadi Wajh, e tudo está radiante de vida. Provavelmente, dentro de duas semanas estará vazio e silencioso novamente.

Faço um achado nas encostas da colina Baindar. Parece ser uma conchinha, mas ao examiná-la, vejo que, na verdade, é feita de barro e tem alguns traços de tintas. Ela me intriga, e fico especulando em vão quem a teria feito, ou por quê. Estaria enfeitan­do um prédio, ou uma caixa de maquilagem, ou um prato? É uma concha, mesmo. Quem pensaria no mar, ou o conheceria aqui no interior, há tantos mil anos atrás? Que orgulho criador e que ima­ginação foram usados ao prepará-la? Convido Mac a participar de minhas especulações, mas ele diz, cautelosamente, que não temos nenhum dado; e acrescenta, indulgente, que vai procurar paralelos para mim, e ver se alguma coisa semelhante já foi encontrada em algum lugar. Não tenho as mínimas esperanças de que Mac especule — não é do seu feitio, e, além disso, ele nem está interessado. Bumps é mais condescendente, e submete-se, de bom grado, a discorrer sobre o assunto comigo. “Variações em torno do achado de concha de cerâmica” prosseguem ainda por algum tempo, mas no fim acabamos nos unindo todos contra o Coronel, que resolveu nos aborrecer com bobagens romanas (erro imperdoável numa escavação como a nossa). Eu chego, po­rém, até a concordar em ter o trabalho de tirar uma fotografia de um broche romano, que estava entre os nossos achados (desprezados), e mesmo a revelá-la e copiá-la numa chapa especial, só para ele!

Chegamos em casa bem alegres, e o Xeque corre para cumprimentar Mac. “Ha, o Khwaja engenheiro!” Ele o beija calorosamente em ambas faces.

O Coronel cai na risada, e Max o adverte:

— Ano que vem, você é que será tratado assim!

— Eu, deixar-me beijar por este velho repulsivo?

Nós começamos a fazer apostas, e o Coronel fica muito sério e digno no seu canto. Ele nos informa que Mac foi recebido como Irmão, e submetido a um abraço muito caloroso; “mas isso não vai acontecer comigo”, diz o Coronel firmemente.

Mac é entusiasticamente saudado pelos trabalhadores. Eles desandam a falar em árabe, e Mac, como sempre, a responder em inglês.

— Ah, o Khwaja Mac! — suspira Alawi. — Vai ter que continuar assobiando para pedir qualquer coisa!

De repente, em honra a Mac, um imenso jantar aparece do nada, e depois que acaba, sentamos, cansados e com todo o conforto, para conversar sobre mil assuntos diferentes, entre quitu­tes especiais: doces turcos, chocolates, cigarros.

Chegamos ao assunto das religiões, em geral — uma questão muito delicada por estes lados do mundo, já que a Síria está cheia de fanáticos de todas as seitas, todos eles dispostos a se matarem uns aos outros pela justa causa! Daí, partimos para discutir a história do bom samaritano. Todas as histórias da Bíblia e do Novo Testamento adquirem um interesse e uma realidade renovada por aqui. Estão moldadas na língua e na ideologia que escutamos à nossa volta o dia inteiro, e volta e meia me surpreendo com o significado que adquirem, completamente diferente daquele ao qual estávamos acostumados. Um pequeno exemplo, por acaso, me ocorreu com a história de Jezebel, cujo caráter é definido, em puritanas localidades protestantes, pela pintura e pela maneira de amarrar o seu cabelo — atitudes que, imediatamente, definem uma “Jezebel”. Mas aqui, não é nem a pintura nem a maneira de enfeitar o cabelo que importam — já que todas as mulheres virtuosas pintam (ou tatuam) o rosto, e enfeitam os cabelos. É o fato de Jezebel ter olhado pela janela — uma atitude muito pouco modesta!

O Novo Testamento fica muito próximo quando peço a Max para reproduzir suas conversas com o Xeque, já que suas respostas são quase que inteiramente constituídas de parábolas — para ilustrar seus desejos ou suas ordens, você conta uma história que os indique, a outra pessoa responde com outra história, e assim por diante. Nunca se diz nada em linguagem direta.

A história do Bom Samaritano adquire, aqui, aspectos que jamais poderia ter numa atmosfera de ruas engarrafadas, policiais, ambulâncias, hospitais e assistência social. Se um homem caísse ao lado da estrada que atravessa o deserto entre Hasetshe e Der-ez-Zor, a história poderia facilmente repetir-se hoje, e ilus­tra bem que grande virtude é a compaixão aos olhos dos habitan­tes do deserto.

Quantos de nós, pergunta Max repentinamente, realmente socorreríamos um outro ser humano num contexto onde não há testemunhas, opinião pública, conhecimento ou censura pela fal­ta de auxílio prestado?

— Todos, é claro — responde o Coronel.

— Será? — pergunta Max. — Um homem está deitado, morrendo. Lembre-se de que a morte não é muito importante por aqui. Você está com pressa. Tem coisas a fazer. Você não quer chateação, nem quer se atrasar. O homem não tem nada a ver com você. E ninguém jamais saberá se você passar ao largo, dizendo que, no fundo, você não tem nada a ver com isso, que logo aparecerá alguém, etc.

Nós ficamos pensando, eu acho, todos um pouco abala­dos... Será que estamos tão certos assim, afinal de contas, do nosso espírito humanitário?

Depois de uma longa pausa, Bumps diz devagar:

— Eu acho que eu socorreria... É, eu acho que sim. Eu poderia passar direto, mas ficaria com remorsos e voltaria.

O Coronel concorda.

— Exatamente; ninguém se sentiria bem.

Max diz que ele acha que também socorreria, mas que não está tão seguro a respeito de si mesmo quanto gostaria de estar, e eu concordo com ele.

Ficamos todos em silêncio por uns tempos, até que me lembro que, como sempre, Mac não disse nada.

— O que é que você faria, Mac?

Mac se sobressalta, absorto em seus pensamentos.

— Eu? — pergunta meio surpreso. — Ora, eu iria adiante. Não pararia.

— É mesmo? Para valer?

Olhamos com interesse para Mac, que sacode sua cabeça tranqüila.

— As pessoas morrem tanto por aqui. A gente acaba achando que, um pouco antes, um pouco depois, tanto faz. Na verda­de, eu não esperaria que ninguém parasse por mim.

Não, é verdade, Mac jamais esperaria isto.

Sua voz continua, suave.

— Eu acho que é muito melhor a gente fazer o que a gente tem que fazer de uma vez, sem se deixar perturbar por pessoas ou acontecimentos de fora.

Nosso olhar interessado persiste. De repente, tenho uma idéia.

— Mas imagine, Mac — digo eu — que fosse um cavalo.

— Ah, um cavalo! — diz Mac, tornando-se, subitamente, bem humano e vivo e nada distante. — Isto seria bem diferente! É claro que eu faria tudo o que pudesse fazer por um cavalo.

Nós caímos na risada, e ele parece meio espantado.

Hoje, positivamente, foi o Dia da Constipação. A saúde de Abd es Salaam tem sido o assunto do dia há mais de uma semana. Todos os tipos de laxantes já lhe foram ministrados. Como resul­tado, ele está, segundo diz, “muito enfraquecido”.

— Eu gostaria de ir a Kamichlie, Khwaja, para ser espetado com uma agulha para recuperar a minha saúde.

Ainda mais delicada é a condição de um certo Saleh Hassan, cujo organismo resistiu a todos os tratamentos, desde um come­ço suave com Eno, até uma meia garrafa de óleo de rícino.

Max apela para o remédio de cavalo do médico de Ka­michlie. Uma dose enorme é ministrada, e Max se dirige ao pa­ciente, dizendo-lhe que se os seus intestinos “se moverem antes do por do sol”, receberá uma grande comissão.

Na mesma hora, seus amigos e parentes o rodeiam. A tarde é gasta em voltas e voltas que eles o fazem dar em torno da colina, soltando gritos e exclamações animadoras, enquanto contem­plam, ansiosos, o sol que começa a se por.

É por um triz: cerca de quinze minutos depois do fim do trabalho, ouvimos vivas e gritos. A notícia se espalha como fogo num capinzal. As comportas se abriram. Rodeado por uma multidão entusiasmada, o pálido sofredor é escoltado até a casa para receber o seu prêmio!

 

Subri, que vai assumindo cada vez mais controle das coisas, está dando um duro com nossa base em Brak, achando que não é suficientemente grandiosa. Como todo mundo, está sempre mui­to preocupado com a nossa “reputação”. Consegue persuadir Michel a deixar a economia de lado, e comprar umas terrinas no bazar de Kamichlie. Todas as noites, eles e uma imensa terrina de sopa aparecem na sala, ocupando um espaço enorme na mesa, de modo que todas as outras coisas têm que ser colocadas em cima da cama. A teoria de Ferhid de que qualquer prato pode ser comido apenas com uma faca também foi abolida, e um incrível sortimento de talheres aparece na mesa. Subri dá também um banho em Hiyou, e escova os nós do seu pêlo com um pente enorme (comprado relutantemente por Michel), chegando até a amarrar-lhe uma fita de cetim rosa muito ordinário em volta do seu pescoço. Hiyou lhe é muito devotada!

A mulher do homem da água, e três dos seus dez filhos chegaram. (Culpa sua, diz Max olhando para mim com um ar muito severo). Ela é uma mulher lamurienta e bem desagradável, e as crianças são incrivelmente pouco atraentes. Seus narizes vivem numa condição francamente asquerosa. (Por que será que só os filhotes de homem costumam ficar com o nariz escorrendo quan­do ficam soltos? Gatinhos, cachorrinhos e burricos não parecem ter este problema!)

Os pais agradecidos instruem seus rebentos a beijarem as mangas dos seus benfeitores, o que eles fazem obedientemente, apesar dos nossos esforços em escapar da cerimônia! Seus nari­zes ficam bem mais apresentáveis depois disto, e vejo que Max olha com desconfiança para a sua manga.

Distribuímos um bocado de aspirinas para dor de cabeça por estes dias. Está muito quente agora, e o ar está bastante carregado. Os homens se aproveitam tanto da ciência ocidental quanto da oriental. Depois de engolir as nossas aspirinas, correm para o Xeque, que, condescendente, lhes aplica discos de metal quentíssimos na testa, “para afastar os maus espíritos”. Não sei bem com quem fica o crédito da cura!

Esta manhã, Mansur descobre uma cobra no nosso quarto, quando vem fazer o seu “serviço”. Está enroscada na cesta que fica embaixo do lavatório. Grande excitação. Todos correm e participam da caçada. Pelas próximas três noites, fico ouvindo, apreensivamente, qualquer chocalhar, antes de ir dormir. De­pois, acabo esquecendo.

Um dia, pergunto a Mac, na hora do café, se ele gostaria de um travesseiro mais macio, olhando para Bumps, de lado.

— Acho que não — diz Mac, bastante surpreso. — Tem qualquer problema com o meu?

Jogo um olhar de triunfo para Bumps, que sacode a cabeça.

— Eu não tinha acreditado em você — confessa ele mais tarde. — Pensei que você estivesse inventando coisas sobre Mac, mas ele é incrível. Nada do que ele tem ou veste jamais parece se rasgar, ou sujar, ou amassar. E como você disse, não há nada no quarto dele, a não ser o tapete e o diário. Nem mesmo um livro. Não sei como é que ele consegue.

Dou uma olhada na metade de Bumps do quarto que ele divide com o Coronel, que está lotada com sinais de sua personalidade exuberante e extrovertida. Só a muito custo o Coronel con­segue evitar uma invasão à sua metade.

Michel de repente começa a martelar Mary bem em frente à janela, e Bumps parte como um foguete para mandá-lo parar.

Mac e Bumps apresentam um grande contraste em vestimentas, agora que o calor chegou. Bumps tirou tudo o que podia tirar. Mac, seguindo o costume árabe, está vestindo tudo o que conseguiu encontrar. Está vestido dos pés à cabeça, com um pesado cachecol de tweed em volta do pescoço, e nem parece se dar conta do sol.

Observamos que Mac não está nem queimado!

 

O angustiante momento da “Divisão” está cada vez mais próximo. Pelo fim da temporada, o Diretor do Services des Antiquités vem ou manda um representante para dividir todos os achados da temporada.

No Iraque, isto costumava ser feito objeto por objeto, e demorava vários dias.

Na Síria, porém, o sistema é bem mais simples. Compete a Max separar tudo em duas coleções, do jeito que quiser. Então, vem o representante sírio, examina as duas coleções, e escolhe a que quer para a Síria. A outra é empacotada em seguida, e enviada para o British Museum. Algum objeto único ou interessan­te que possa ter ficado na metade síria é geralmente emprestado por eles, para que possa ser estudado, exibido, fotografado, etc, em Londres.

A verdadeira agonia está em fazer as duas coleções. Você corre o risco de perder alguma coisa que você deseje desesperadamente. Pois muito bem, então você tem que contrabalanceá-la do outro lado. Somos todos chamados a ajudar Max enquanto ele lida com cada classe de objetos, alternadamente. Duas partes de celtas, duas partes de amuletos, e assim por diante. Jarros, mi­çangas, objetos de osso, obsidiana. Depois, um por um, cada um de nós é chamado.

— Bem, com qual destas duas coleções você ficaria? A ou B?

Uma pausa, enquanto estudo as duas.

— Eu ficaria com B.

— É, está bem. Chame Bumps.

— Bumps, A ou B?                                          

— B.

— Coronel?

— A, sem dúvida.

— Mac?

— Acho que B.

— Hum — diz Max. — Evidentemente, B está muito forte.

Ele tira um encantador amuleto de pedra em forma de cavalo do grupo B, passa-o para o A, substituindo-o por um carneiro meio deformado, e faz outras alterações.

Entramos novamente. Desta vez, todos escolhemos A.

Max arranca os cabelos.

Por fim, perdemos todo e qualquer senso de aparência e valor.

No entretempo, tudo está na mais febril das atividades. Bumps e Mac estão desenhando como loucos, voando para a colina para planejar casas e edifícios. O Coronel passa as noites ro­tulando e classificando os objetos que ainda não foram separados. Eu apareço de vez em quando e fico assistindo, e discorda­mos violentamente a respeito de nomenclatura.

— Cabeça de Cavalo — steatita, 3 cms.

Eu: — Não é um cavalo, é um carneiro.

— Nada disso, olhe os arreios.

— Isso são os chifres.

— Ei, Mac, o que é que é isto?

Mac: — É uma corça.

Cel.: — Bumps — como é que você chamaria isto?

Eu: — Um carneiro.

Bumps: — Parece um camelo.

Max: — Não havia camelo nenhum. Camelos são animais bem modernos.

Cel.: — Bem, mas como é que você chamaria isto?

Max: — Bucraniano estilizado!

E por aí vamos, passando por estranhos amuletos em forma de rim, e outros obscuros e ambíguos que são rotulados discretamente pelo conveniente nome de “objeto de culto”.

Estou revelando e copiando, e tentando manter a água fria. Faço o que posso por volta das seis da manhã. Faz um calorão agora, pelo meio do dia.

Nossos homens vão embora dia após dia.

— Está na época da colheita, Khwaja. Temos que ir.

As flores desapareceram há muito, comidas pelo gado que pasta por aqui. A colina está toda de um tom amarelo pálido. Na planície, em redor, há milho e cevada. A colheita este ano vai ser muito boa.

 

Finalmente, chega o dia fatídico. M. Dunand e sua esposa devem chegar esta tarde. São velhos amigos nossos, que encontramos em Byblos, quando estávamos em Beirute.

Chega a tarde: um magnífico jantar está pronto (ou, pelo menos, o que pensamos ser um magnífico jantar). Hiyou foi lavada. Max está dando uma última e aflita olhadela nas duas partes espalhadas pelas mesas.

— Eu acho que está bem equilibrado. Se perdermos aquele maravilhoso amuleto de cavalo e aquele raríssimo selo cilíndrico (interessante à beça!), bem, pelo menos ficamos com a melhor Deusa Mãe de Chagar, e o amuleto com os machados cruzados, e aquele maravilhoso jarro trabalhado... Mas é claro que do ou­tro lado, há aquele antigo jarro esculpido. Diabos! Agora tem que dar. O que é que você escolheria?

Num espírito humanitário comum, decidimos não continuar com isso. Dizemos que simplesmente não sabemos o que decidir. Max murmura tristemente que Dunand é um juiz muito esperto.

— Tenho certeza que vai ficar com a melhor metade!

Nós o levamos embora firmemente.

As horas passam. A noite chega. Nem sinal dos Dunands.

Max indaga se não teria sido possível que eles tivessem ido para Brak, em vez de terem vindo para cá.

— Não, claro que não. Eles sabem que nós estamos moran­do aqui.

À meia-noite, desistimos e vamos para a cama. Ninguém costuma muito andar de carro a estas horas, por aqui.

Duas horas depois, ouve-se o barulho de um carro. Os meninos correm, e vêm nos chamar, excitados. Arrastamo-nos para fora da cama, vestimos alguma coisa qualquer, e vamos para a sa­la.

São os Dunands, e foram para Brak, por engano. Na saída de Hasetshe, perguntaram o caminho para a “escavação de antigüidades”, e um homem que só trabalhou conosco em Brak lhes deu a direção de lá. Eles se perderam, e gastaram um bom tempo até chegarem lá. Quando chegaram, um guia veio com eles para mostrar o caminho até Chagar.

Viajaram o dia inteiro, mas estão bem alegres e despreocupados.

— Vocês têm que comer alguma coisa — diz Max.

Madame Dunand diz, educadamente, que não é preciso. Uma taça de vinho e um biscoito — será mais do que suficiente.

Neste exato momento entra Mansur, seguido por Subri e um jantar completo aparece triunfalmente! Como os empregados daqui conseguem fazer estas coisas, eu não sei. Parece uma espécie de milagre. Descobrimos que os Dunands não comeram na­da, e estão realmente esfomeados. Comemos e bebemos até altas horas, com Mansur e Subri servindo-nos cortesmente.

Quando vamos dormir, Max diz, sonhador, que bem que ele gostaria de levar Subri e Mansur para a Inglaterra.

— Eles são tão úteis...

Digo que eu, também, gostaria de levar Subri.

Na pausa que se segue, fico imaginando o impacto que Subri causaria num time de empregados ingleses — sua imensa faca, seu casaco manchado de óleo, sua barba mal feita, sua gargalhada retumbante. Os fantásticos usos que ele descobre para os guardanapos e panos de copa!

Os empregados do Oriente são, mais ou menos, como o gê­nio da garrafa. Aparecem do nada, e estão esperando por você quando você chega.

Nunca avisamos data da nossa chegada, mas, tranqüilamente, quando chegamos, lá está Dimitri nos esperando. Atravessou todo o país para vir nos encontrar.

— Como é que você soube que a gente vinha?

— Sabe-se por ai que vai haver escavação este ano. — E acrescenta, gentilmente: — É muito bem-vinda. Agora, tenho que sustentar a família de dois irmãos meus; numa delas há oito crianças, na outra dez. Eles comem muito. É bom ganhar dinheiro. ‘Cê vê, eu disse para uma das minhas cunhadas: Deus é gran­de. Este ano a gente não morre de fome — estamos salvos — os Khwajas vêm escavar!

Dimitri afasta-se tranqüilo, com suas calças de musselina florida. Seu ar gentil e meditador põe num chinelo o ar da Mado­na de Chagar. Ele adora cachorrinhos, gatinhos e crianças. É o único, entre todos os empregados, que jamais briga. Ele nem mesmo chega a ter uma faca — a não ser para necessidades culiná­rias!

Tudo acabou! A Divisão correu direitinho. M. e Madame Dunand examinaram, refletiram, olharam. Ficamos olhando com a angústia de sempre. M. Dunand levou cerca de uma hora para se decidir. Então, estica a mão num típico gesto gaulês.

— Eh bien, eu vou levar esta aqui!

Bem de acordo com a natureza humana, assim que ele escolhe sua coleção, nós achamos imediatamente que deveria ter sido a outra — qualquer que ela fosse.

De qualquer maneira, uma vez que o suspense acabou, a atmosfera desanuvia-se. Ficamos alegres, e tudo vira uma festa. Vamos para a escavação, examinamos os planos dos arquitetos e os seus desenhos, vamos até Brak, discutimos o trabalho da próxima temporada, e assim por diante. Max e M. Dunand discutem sobre as datas exatas e seqüências. Madame Dunand nos diverte a todos com seus comentários secos e espirituosos. Falamos em francês, se bem que eu imagine que ela fala inglês muito bem. Ela está se distraindo muito com Mac e sua teimosa limitação da conversa, restringida a ocasionais “Oui” e “Non”.

— Ah, votre petit architecte, il ne sait pas parler? Il a tout de même l’air intelligent!

Repetimos isso a Mac, que nem se abala.

No dia seguinte, os Dunands se preparam para partir. Não que haja muita preparação; eles se recusam a levar água ou comida.

— Mas vocês têm que levar água! — diz Max, educado no princípio de jamais viajar por estas bandas sem levar água.

Eles sacodem a cabeça descuidadamente.

— Mas imaginem se vocês tiverem que parar?

M. Dunand ri, e sacode a cabeça.                                 

— Não tem perigo!

Ele engata, e o carro parte no habitual estilo francês do deserto: sessenta milhas por hora!

Não nos espantamos mais com o alto índice de morte de arqueólogos capotados por estes lados.                   

E agora — empacotar mais uma vez. Dias de empacotamento. Caixa após caixa cheia, fechada e marcada.

Depois, vêm os preparativos para a nossa própria partida. Nós vamos de Hasetshe para a cidade de Raqqa, no Eufrates, através de uma estrada pouco usada que fica no mais completo dos descampados. De lá, cruzaremos o Eufrates.

— E poderemos dar uma olhada em Balikh! — diz Max.

Ele diz a palavra Balikh da mesma maneira que costumava dizer Jaghjagha, e percebo que ele está planejando se divertir um pouco pela região de Balikh antes que deixe, definitivamente, de escavar na Síria.

— Balikh? — pergunto, inocentemente.

— Colinas incríveis por todos os lados, — diz Max, reveren­te.

 

A ESTRADA PARA RAQQA

Lá vamos nós! Partimos!

A casa está toda fechada, e Serkis está pregando as últimas tábuas nas portas e janelas. O Xeque está por ali, cheio de importância. Tudo estará na mais perfeita segurança até que a gente volte. O homem mais honesto da aldeia será o nosso vigia! Ele to­mará conta da casa, diz o Xeque, noite e dia!

— Nada tema, irmão! — diz o Xeque. — Nem que eu tenha que pagar o vigia do meu próprio bolso, a sua casa estará em segurança!

Max sorri, sabendo muito bem que a bela remuneração já combinada com o vigia acabará, provavelmente, em sua maior parte, nos bolsos do Xeque — “rachando responsabilidades”.

— Tenho certeza de que tudo ficará seguro sob o seu olhar — ele replica. — O que está lá dentro não se estragará facilmen­te; quanto ao exterior, que prazer será para nós entregar-lhe a casa em boas condições quando o dia chegar!

— Que este dia esteja bem longe — diz o Xeque. — Pois quando ele chegar, nunca mais vocês virão, e isso será uma tristeza para mim. Vocês talvez só escavem por mais uma temporada, não é? — ele acrescenta, esperançoso.

— Uma ou duas, quem sabe? Depende do trabalho.

— É uma pena que não tenham encontrado ouro — só pedras e potes, — diz o Xeque.

— Estas coisas têm o mesmo interesse para nós.

— É, mas ouro é ouro. — Os olhos do Xeque brilham, gananciosamente. — Nos dias de El Baron...

Max interrompe rápido:

— E quando a gente voltar na próxima temporada, que presente pessoal eu posso lhe trazer da cidade de Londres?

— Nada — nada mesmo. Não quero nada. Um relógio de ouro é uma boa coisa para se possuir.

— Pode deixar que vou me lembrar.

— Que não haja conversas sobre presentes entre irmãos! Meu único desejo é servi-lo, e servir ao Governo. Mesmo que eu vá à falência — bem, perder dinheiro assim é uma honra!

— Nós jamais ficaríamos com a consciência tranqüila se não soubermos que o lucro, e não a perda foi o resultado que vo­cê obteve com o nosso trabalho aqui.

Michel chega neste instante, depois de chatear todo mundo e ficar gritando ordens, para dizer que tudo está pronto e que podemos partir.

Max controla a gasolina e o óleo, e vê se Michel está mesmo trazendo os galões de reserva que recebeu ordens de trazer, e que nenhum ataque repentino de economia conseguiu prevalecer. Provisões, um suprimento de água, nossa bagagem, a bagagem dos empregados — sim, tudo está certo. Mary está sobrecarrega­da tanto por dentro quanto no teto, e encolhidos entre tudo estão Mansur, Ali e Dimitri. Subri e Ferhid voltaram para Kamichlie, que é a sua terra, e os capatazes vão de trem até Jerablus.

— Adeus, irmão! — grita o Xeque, repentinamente abraçando o Coronel, e beijando-o em ambas as faces.

Felicidade gerai da expedição!

O Coronel fica cor de tomate.

O Xeque repete a saudação com Max, e aperta as mãos dos “engenheiros”.

Max, o Coronel, Mac e eu entramos em Poilu. Bumps vai com Michel em Mary, para refrear qualquer “boa idéia” que Mi­chel possa ter en route. Max reitera suas instruções a Michel. Ele tem que nos seguir de perto, mas não à distância de apenas meio metro. Se ele tentar atropelar grupos de burricos e velhas na estrada, terá seu salário cortado pela metade.

Michel murmura “maometanos!” entre os dentes, mas responde em francês: Très bien.

— Bem, podemos ir? Estamos todos aqui?

Dimitri está levando dois cachorrinhos. Hiyou está acompanhando Subri.

— Vou deixar ela um espetáculo para quando vocês vierem para a próxima temporada! — grita Subri.

— Cadê Mansur? — pergunta Max. — Cadê aquele idiota? Nós vamos embora sem ele, se ele não aparecer. Mansur!

— Present! — grita Mansur sem fôlego, aparecendo às carreiras.

Está trazendo duas imensas e fedorentas peles de carneiro.

— Você não pode levar isso. Ufa!

— Mas vão me dar dinheiro em Damasco!

— Que fedor!

— O sol vai secá-las se forem estendidas em cima de Mary, e aí não vão mais ter cheiro nenhum.

— Estão nojentas. Deixe-as aí.

— Mas ele tem razão. Elas valem dinheiro — diz Michel.

Sobe no topo do caminhão, e amarra-as precariamente com algumas cordas.

— Bem, como o caminhão está atrás da gente, pelo menos não vamos sentir o cheiro — diz Max, resignado. — E de qual­quer jeito, elas vão cair antes que a gente chegue a Raqqa. Man­sur deu um dos nós sozinho!

— Ha, ha! — ri Subri, jogando a cabeça para trás e mostrando dentes brancos e dourados. — Quem sabe Mansur quer ir a cavalo?

Mansur esconde a cabeça. O pessoal nunca deixou de chateá-lo por causa da sua viagem de volta de Kamichlie.

— Dois relógios de ouro — diz o Xeque — são coisas boas de se ter. A gente sempre pode emprestar um a um amigo...

Max, rapidamente, dá o sinal de partida.

Vamos devagar, através das casas, para o caminho Kamichlie-Hasetshe. Grupos de crianças gritam e acenam.

Quando atravessamos o povoado de Hanzir, homens saem correndo de suas casas e acenam e gritam. São nossos antigos trabalhadores.

— Voltem no ano que vem! — gritam eles.

— Inshallah! — grita Max, de volta.

Vamos pelo caminho de Hasetshe, e olhamos para trás para dar uma última olhada à colina em Chagar Bazar.

Paramos em Hasetshe, compramos frutas e pão, e vamos nos despedir dos oficiais franceses. Um jovem oficial que acaba de chegar de Der-ez-Zor se interessa pela nossa viagem.

— Então os senhores estão indo para Raqqa? Bem, vou lhes contar. Não sigam a tabuleta indicativa quando chegarem lá; em vez disso, peguem a estrada à direita, e depois, a que vira à esquerda. Assim vocês estarão num caminho reto, fácil de seguir. O outro é incrivelmente confuso.

O Capitaine, que estava ouvindo, interrompe para dizer que ele acha muito mais aconselhável seguirmos o norte até Ras-el-Ain, depois irmos até a colina Abyadh, e pegarmos a estrada de Abyadh a Raqqa, que é muito freqüentada. Assim, não correre­mos o risco de nos perdermos.

— Mas é muito mais longe, uma volta imensa.

— Pode acabar sendo mais curta, no final das contas.

Agradecemos, mas persistimos em seguir nossos planos originais.

Michel fez as compras necessárias e vamos embora, atravessando a ponte sobre o Habur.

Seguimos o conselho do jovem oficial quando chegamos a uma encruzilhada com uma ou duas placas. Uma diz colina Abyadh, a outra Raqqa, e entre ambas há uma que não está marcada. Deve ser esta.

Alguns quilômetros depois, a estrada se divide em três.

— Acho que é para a esquerda — diz Max, — ou será que ele quis dizer a do meio?

Pegamos a estrada da esquerda e, logo adiante, ela se divide em quatro.

O chão está cheio de buracos e corcovas. A gente tem que, positivamente, seguir uma estrada.

Max escolhe a da esquerda, novamente.

— A gente devia ter pego a da direita — diz Michel.

Mas ninguém presta atenção, pois ninguém jamais nos levou por estradas mais erradas do que Michel.

Cubro as próximas cinco horas com um véu. Estamos perdidos — perdidos numa parte do mundo onde não há aldeias, plan­tações ou beduínos — nada.

As estradas vão piorando, até que se tornam completamente apagadas. Max tenta seguir as que vão na direção certa, quer dizer, um pouco a leste do sudeste, mas a perversidade das estradas é indescritível. Elas viram e voltam, e geralmente, depois de ho­ras, acabam dando no lugar de partida.

Damos uma parada e tomamos chá, que Michel prepara. O calor está sufocante, as coisas vão mal. As sacudidas, o calor, o brilho intenso me causam uma dor de cabeça infernal. Todos es­tamos meio preocupados.

— Bem — diz Max. — De qualquer maneira, temos bas­tante água. Mas o que é que aquele imbecil chapado está fazendo?

Nós nos viramos. Mansur — o idiota — está alegremente derramando a nossa preciosa água e passando-a no rosto e nas mãos!

Consigo ultrapassar os xingamentos de Max! Mansur parece surpreso e ressentido. Suspira. Deve estar pensando: como este pessoal é difícil de contentar! Qualquer coisinha que a gente faça os aborrece!

Voltamos à estrada. As voltas e retornos estão piores do que nunca. Às vezes, simplesmente desaparecem.

Com a testa franzida, Max murmura que estamos indo muito para o norte.

Quando a estrada se divide novamente, parece estar indo para o norte e o nordeste. Não seria melhor voltarmos de uma vez?

A tarde começa a chegar. Mas, de repente, a qualidade da estrada melhora, há menos calombos e menos pedras.

— Daqui, temos que chegar a algum lugar — dia Max. — Podemos ir direto.

— Para onde é que você está indo? — pergunta o Coronel.

Max responde que está se dirigindo para o leste, em direção a Balikh. Se conseguirmos alcançar o Balikh, de lá poderemos pegar a estrada Raqqa-Abyadh, e continuar.

Vamos indo. Mary fica com um pneu furado, e perdemos um tempo precioso. O sol está se pondo.

De repente, temos uma visão animadora — homens caminhando lá na frente. Max dá um grito. Chega-se para perto deles, cumprimenta, faz perguntas.

O Balikh? O Balikh está logo em frente. Em dez minutos, com um carro como o nosso, estaremos lá. Raqqa? Nós estamos mais perto da colina Abyadh do que de Raqqa.

Cinco minutos depois, vemos uma faixa de verde adiante — é a vegetação que margeia o rio. Uma grande colina aparece no meio.

Max diz, em êxtase:

— O Balikh! Olhem lá! Colinas por todos os lados!

As colinas são realmente impressionantes — grandes, formidáveis, de sólido aspecto.

— Colinas estupidamente grandes! — diz Max.

— Minha cabeça e meus olhos estão doendo a mais não poder, e digo mal-humorada: “Min Ziman er Rum”.

— Você não deixa de ter razão — diz Max. — Este é o problema. Esta solidez significa trabalho romano — uma série de fortificações. Lá embaixo, porém, tenho certeza de que há coisas quentes. Mas leva muito tempo e muito dinheiro para se chegar até lá.

Sinto-me completamente desinteressada em arqueologia. Só quero algum lugar para me deitar, uma bela porção de aspirina e uma xícara de chá.

Chegamos a uma larga estrada que vai do norte ao sul, e nos viramos em direção ao sul, para Raqqa.

Estamos bem longe, e só uma hora e meia depois é que vemos a cidade espalhada à nossa frente. Já está escuro. Nós dirigi­mos pela periferia da cidade, que é inteiramente nativa — não há nada de estruturas européias. Procuramos os Services Spéciaux. O oficial de lá é gentil, e fica muito preocupado conosco. Por aqui, não há alojamento para viajantes. E se nós fôssemos até a colina Abyadh? Se nós dirigirmos rápido, dentro de umas duas horas poderemos chegar a um lugar realmente confortável.

Mas ninguém consegue mais nem pensar em sacolejar e balançar por mais duas horas — muito menos a minha sofrida pes­soa. O oficial diz, cortesmente, que dispõe de dois quartos — muito simples, nada europeu — mas se nós temos a nossa própria roupa de cama? E nossos criados?

Chegamos à casa na mais completa escuridão. Mansur e Ali correm de um lado para outro com lanternas e acendem o lam­pião e fazem as camas e ficam se atrapalhando um ao outro. Sin­to saudades do rápido e eficiente Subri. Mansur é terrivelmente vagaroso e relaxado. Daqui a pouco chega Michel, e critica o que Mansur está fazendo. Mansur pára, e os dois começam a dis­cutir. Despejo sobre eles todo o meu árabe. Mansur parece as­sustado, e recomeça a trabalhar.

Um pilha de colchas e lençóis é arranjada, e eu afundo completamente. De repente, Max está a meu lado com a tão desejada xícara de chá. Pergunta alegremente se estou passando mal. Digo sim, pego o chá, e engulo quatro aspirinas. O chá parece néctar. Nunca, nunca, nunca apreciei tanto uma coisa! Afundo de novo, meus olhos se fecham.

— Madame Jacquot — murmuro.

— Hem? — pergunta Max espantado. Ele se abaixa. — O que é que você disse mesmo?

— Madame Jacquot — repito.

Há uma associação qualquer aqui — eu sei muito bem o que significa — mas acontece que a frase me escapou. Max está com uma espécie de ar de enfermeira estampado no rosto — em hipótese alguma contradiga o paciente!

— Madame Jacquot não está aqui agora — ele diz num tom tranqüilizador.

Lanço-lhe um olhar exasperado. Meus olhos se fecham devagar. Ainda há um bocado de movimento — estão preparando uma refeição. Mas quem se importa? Eu vou dormir, dormir...

E assim que eu estou adormecendo, a frase aparece. Claro!

— Complètement knock out! — digo satisfeita.

— O quê? — diz Max.

— Madame Jacquot — digo, adormecendo.

 

A melhor coisa em se dormir completamente cansado e doente é a maravilhosa surpresa que se tem quando se levanta pela manhã bem e cheio de energia.

Eu me sinto cheia de vigor e terrivelmente esfomeada.

— Você sabe, Agatha — diz Max, — acho que você teve febre ontem à noite. Você estava delirando. Ficou falando o tem­po todo em Madame Jacquot.

Lanço-lhe um olhar desdenhoso, e assim que posso, começo a falar, já que, no momento, minha boca está cheia de ovo frito.

— Besteira! — digo, finalmente. — Se você tivesse tido o trabalho de me ouvir com cuidado, saberia exatamente o que eu estava querendo dizer. Mas acho que sua mente estava tão envolvida com as colinas do Balikh...

— Você sabe que seria bem interessante fazer uns cortes de prova numa ou duas daquelas colinas? — diz Max, imediatamen­te alvoroçado.

Mansur aparece, rindo com toda sua cara estúpida e honesta, e pergunta como está a Khatun esta manhã.

Digo que estou muito bem. Mansur, parece, está aborrecido porque eu estava dormindo tão profundamente quando o jantar ficou pronto, que ninguém teve coragem de me acordar. Será que eu vou querer outro ovo, agora?

— Sim — respondo imediatamente, apesar de já ter comido quatro.

E desta vez, basta que fique na frigideira por cinco minutos.

Partimos para o Eufrates por volta das onze horas. O rio é muito largo por aqui, a terra é plana, e pálida e brilhante, o ar é suave. É um tipo de sinfonia que Max descreveria como “jogo cor-de-rosa”, se estivesse descrevendo cerâmica.

Em Raqqa, atravessa-se o Eufrates numa balsa muito primitiva. Nós nos juntamos a outros carros, e nos instalamos alegre­mente para enfrentar a espera de uma ou duas horas, enquanto a balsa não chega.

Algumas mulheres aparecem, para encher latas de querosene com água. Outras estão lavando roupa. É como o relevo de um friso — as figuras altas, vestidas de preto, a parte inferior do rosto coberta, as cabeças muito eretas, as grandes latas pingando água. Ás mulheres sobem e descem, vagarosas, sem pressa algu­ma.

Penso, com inveja, que deve ser muito bom andar com o rosto velado. A gente deve se sentir muito íntima, muito secre­ta... Só os seus olhos vêem o mundo — você o vê, mas ele não vê você.

Pego o espelho na minha bolsa, e abro o meu pó compacto.

— É mesmo — fico pensando. — Seria muito interessante cobrir a minha cara!

Estar cada vez mais perto da civilização me excita. Começo a pensar em coisas... Um shampoo, um secador de cabelos. Manicure... Uma banheira de louça, com torneiras... Sais de banho. Luz elétrica. Mais sapatos!

— O que é que há com você? — diz Max. — Perguntei duas vezes se você observou aquela segunda colina que a gente pas­sou, na estrada de Abyadh, na noite passada!

— Eu não.

— Não?

— Não. Eu não estava observando nada na noite passada.

— Não era uma colina tão sólida quanto as outras. Um dos lados estava erodido. Fico pensando se...

Digo clara e firmemente:

— Estou cheia de colinas!

— O quê? — Max me olha com o horror que um inquisidor da Idade Média teria sentido ouvindo um trecho de uma inusita­da blasfêmia. E diz:

— Não pode ser!

— Estou pensando em outras coisas.

E enumero uma série delas, começando com luz elétrica. Max passa a mão na cabeça, e diz que não acharia nada ruim cortar o cabelo decentemente.

Ambos concordamos que é, realmente, uma pena que a gente não possa ir direto de Chagar para, digamos, o Savoy! Da ma­neira como se vai, a gente acaba perdendo o agudo prazer do contraste. Atravessamos um estágio de refeições indiferentes e conforto parcial, de modo que acender a luz ou abrir uma tornei­ra tornam-se prazeres apagados.

Agora a balsa está aqui. Mary é conduzida cuidadosamente através de tábuas inclinadas. Poilu vai atrás.

Estamos no largo Eufrates, Raqqa fica para trás. É bem bonita daqui, com suas construções de tijolos de barro e suas formas orientais.

— Jogo cor-de-rosa, — digo baixinho.

— Aquele vaso riscado, é?

— Não, — respondo. — Raqqa...

E repito o nome suavemente, como um até logo, antes de voltar ao mundo onde reinam as tomadas de eletricidade.

Raqqa...

 

ADEUS A BRAK

Novas caras, velhas caras!

Esta é a nossa última temporada na Síria. Estamos escavando em Brak, tendo acabado, finalmente, com Chagar.

Nossa casa, a casa de Mac, foi entregue (com imensas cerimônias) ao Xeque. O Xeque já arranjou dinheiro emprestado por conta dela em pelo menos três vezes o seu valor, mas mesmo as­sim mostra todo o orgulho de um feliz proprietário. Ter a casa será ótimo para sua “reputação”.

— Se bem que, provavelmente, vai levá-lo à falência — comenta Max, pensativamente.

Explicou longa e cuidadosamente ao Xeque que o teto deve ser visto todos os anos, e que os consertos necessários devem ser feitos.

— É claro, é claro! — diz o Xeque. — Inshallah, nada vai sair errado!

— Tenho muito Inshallah nessa história — diz Max. — Só Inshallah, e nada de consertos! É o que vai acabar acontecendo!

A casa, um brilhante relógio de ouro e um cavalo foram ofertados ao Xeque como presentes, além do aluguel devido e de indenização por perda de eventuais colheitas.

Mas não temos muita certeza se ele é um homem feliz ou desapontado. Ele é todo sorrisos e extravagantes demonstrações de afeição, mas deu um bom duro tentando conseguir uma indeniza­ção extra pelos “estragos causados ao jardim”.

— Que jardim é esse? — pergunta o oficial francês, diverti­do.

Qual, mesmo? Quando lhe pediram para mostrar traços de jamais ter tido um jardim, ou mesmo de saber o que um jardim é, o Xeque sucumbiu.

— Eu ia fazer um jardim — ele diz, muito sério. — Mas com a escavação, minha intenção foi frustrada.

“O jardim do Xeque” fica sendo um objeto de zombaria en­tre nós por algum tempo.

Este ano, estão conosco, em Brak: o inevitável Michel; o alegre Subri; Hiyou, com uma ninhada de quatro horríveis cachorrinhos; Dimitri, cuidando amorosamente dos cachorrinhos; e Ali. Mansur, o N° 1, o chefe da criadagem, o criado treinado em serviço europeu, está, El hamdu lillah, servindo o exército! Ele vem nos ver um dia, resplandecente em seu uniforme, sorrin­do de orelha a orelha.

Guilford veio esta primavera como arquiteto, e está conosco novamente. Conseguiu todo o meu respeito, por ser capaz de cortar as unhas de um cavalo.

Guilford tem um rosto comprido, sério e justo, e, no começo da sua primeira temporada, estava muito preocupado em esterilizar e cuidar muito eficientemente das feridas e machucados dos homens. No entanto, tendo visto o que acontecia com os curati­vos assim que os homens chegavam em casa, e tendo observado um certo Yusuf Abdullah tirar uma atadura limpa e se deitar no canto mais sujo da escavação, deixando a poeira e a areia entra­rem no seu machucado, agora passa apenas um bocado de solu­ção de permanganato (muito apreciada por causa de sua bela cor!) e se restringe a dizer o que deve ser aplicado no local, e o que pode ser bebido com segurança.

O filho de um Xeque da região, treinando um carro como se treinam os cavalos, e tendo capotado numa depressão, procurou Guilford para tratar um imenso buraco na cabeça. Horrorizado, Guilford encheu-o, mais ou menos, com iodo, e o rapaz ficou cambaleando por lá, gemendo de dor.

— Ah — sussurrou assim que pôde falar. — Isso é puro fogo! Muito bom. No futuro, sempre que precisar, venho ver o senhor — não quero saber de médicos. Isso mesmo — fogo, para valer!

Guilford insiste com Max para que lhe diga para ir a um médico pois a ferida é séria, mesmo.

— O quê — isso? — pergunta o filho do Xeque, com des­dém. — Isso é uma dor de cabeça à-toa. Gozado é que — acres­centa, pensativo, — se eu seguro o meu nariz e sopro — assim — sai cuspe pelo buraco!

Guilford fica verde, e o filho do Xeque vai embora, rindo.

Volta quatro dias depois para um tratamento subseqüente. A ferida está cicatrizando com uma rapidez incrível. Fica muito triste por que não se aplica mais nenhum iodo, só uma solução para limpeza.

— Isso não arde nada — ele diz, descontente.

Uma mulher vem a Guilford trazendo uma criança barriguda, e qualquer que fosse o mal verdadeiro, ficou maravilhada com os resultados dos medicamentos leves que Guilford lhe pres­creveu. Volta para abençoá-lo “por ter salvo a vida do meu fi­lho”, e acrescenta que ele terá a sua filha mais velha, assim que ela tiver idade suficiente; ao que Guilford fica vermelho, e a mu­lher vai embora, rindo feliz, e fazendo alguns comentários finais, absolutamente impublicáveis. Não é preciso dizer que é uma mu­lher curda, e não uma árabe!

Nessa escavação de outono que estamos fazendo agora, vamos terminar o nosso trabalho. Na primavera acabamos Chagar, e nos concentramos em Brak, onde encontramos várias coisas in­teressantes. Agora estamos acabando em Brak, e vamos terminar a temporada passando um mês, ou seis semanas, escavando na colina Jidle, no Balikh.

Um Xeque da região, cujo campo fica perto do Jaghjagha, nos convida para um banquete cerimonial, e nós aceitamos. Quando o dia chega, Subri aparece em toda a glória de seu estreito conjunto roxo, sapatos engraxados e um chapéu Homburg. Foi convidado como nosso criado, e está agindo como um inter­mediário, nos informando como andam os preparativos do ban­quete, e a que exato momento deverá ocorrer a nossa chegada.

O Xeque nos recebe com dignidade embaixo da cúpula marrom de sua tenda aberta. Há um grande grupo de parentes, ami­gos e comensais com ele.

Depois de gentis cumprimentos, os grandes (nós, os capatazes, Alawi e Yahya, o Xeque e seus principais amigos) se sentam todos em círculo. Um velho, elegantemente vestido, aproxima-se de nós, trazendo uma cafeteira e pequenas xícaras. Uma minús­cula gota de café é posta em cada xícara. A primeira é entregue a mim — prova de que o Xeque está acostumado com o (extraordi­nário!) hábito europeu de se servir primeiro às mulheres. Max e o Xeque recebem as duas seguintes. Nós nos sentamos e bebemos. No devido tempo, outra gotinha é pingada, e nós continua­mos a beber. Depois as xícaras são retiradas, reenchidas, e Guil­ford e os capatazes bebem, por sua vez. E assim por diante, pelo círculo todo. A uma pequena distância, há um considerável agru­pamento dos de segunda classe. Por trás da divisão da tenda mais próxima a mim, vêm sussurros baixinhos e risadas. As mulheres do Xeque estão espiando e ouvindo o que se passa.

O Xeque dá uma ordem, e um criado sai e volta com um poleiro, onde está um belo falcão, que é posto no meio da tenda. Max congratula o Xeque pelo seu magnífico pássaro.

Então, três homens aparecem, trazendo um grande caldei­rão de cobre, que é posto no meio do círculo. Está cheio de ar­roz, e de pedaços de carneiro. Tudo muito temperado, e fume­gante, e com um cheiro delicioso. Somos cortesmente convidados a comer. Pegamos pedaços de pão sírio, que, junto com os nossos dedos, nos ajudam a nos servirmos do prato.

No devido tempo (que demora um pouco, diga-se a bem da verdade) a fome e a cortesia estão satisfeitas. A grande travessa, de onde foram-se, já, os melhores pedaços, mas que ainda está cheia, é levantada, e colocada mais adiante, onde um segundo círculo (inclusive Subri) senta-se para comer.

São servidos doces e frutas cristalizadas, e mais café, para nós.

Depois que os convivas secundários satisfizeram sua fome, o prato é colocado em um terceiro lugar. Seu conteúdo, agora, é principalmente arroz e ossos. Os completamente inferiores sentam-se para comer, junto com os mendigos que vieram ficar “à sombra do Xeque”. Eles se atiram sobre a comida, e quando a travessa é retirada de lá, está completamente vazia.

Nós continuamos sentados durante algum tempo, e Max e o Xeque ficam trocando graves impressões a intervalos regulares. Depois nos levantamos, agradecemos ao Xeque pela sua hospitalidade, e vamos embora. O servidor de café é regiamente remu­nerado por Max, e os capatazes apontam-nos certos indivíduos misteriosos a quem seria bom demonstrar alguma largesse.

Está quente, e vamos a pé para casa, sentindo-nos algo empanturrados de arroz e carneiro. Subri está muito contente com a distração. Acha que tudo foi conduzido com a devida propriedade e decoro.

Hoje, uma semana depois, foi nossa vez de entreter um visitante: ninguém mais, ninguém menos do que o Xeque da tribo Shammar — indubitavelmente, um grande homem. Vários Xe­ques da região o estavam acompanhando, e ele chegou num belo carro cinza. Uma pessoa muito bonita e sofisticada, com um ros­to magro e bronzeado, e belas mãos.

Fizemos a melhor refeição européia possível, e o nosso staff ficou excitadíssimo com a presença do visitante!

Quando, finalmente, ele foi embora, ficamos nos sentindo como se, no mínimo, tivéssemos hospedado a família Real.

 

Hoje foi um dia catastrófico.

Max foi a Kamichlie com Subri para fazer compras e acertar negócios no Banco, deixando Guilford projetando edifícios na colina, e os capatazes tomando conta dos homens.

Guilford veio para casa para almoçar, e ao terminarmos, ele pronto para pegar Poilu e voltar ao trabalho, notamos que os capatazes todos vinham correndo em direção à casa o mais depres­sa possível, mostrando todos os sinais de agitação e desespero.

Irromperam pelo pátio adentro, e despejaram uma torrente de árabe excitadíssima.

Guilford não está entendendo absolutamente nada; eu entendo uma palavra em cada sete.

— Alguém morreu — digo a Guilford.

Alawi repete sua história com mais ênfase. Pelo que consigo compreender, quatro pessoas estão mortas. Penso, inicialmente, que houve uma briga, e que os homens mataram-se uns aos outros, mas Yahya sacode a cabeça veementemente às minhas pri­meiras perguntas.

Fico me maldizendo por não ter aprendido a compreender a língua. O meu árabe constitui-se, quase que inteiramente, de frases como “Isto não está limpo”, “Não gosto disso”, “Não use este pano”, “Traga-me um chá”, e outras ordens domésticas. Esta história de morte violenta está bem além da minha capaci­dade. Dimitri e o servente e Serkis saem de casa para ouvir. Eles compreendem o que aconteceu, mas como não falam nenhuma língua européia, Guilford e eu continuamos boiando.

Guilford diz:

— É melhor que eu vá lá verificar — e se dirige a Poilu.

Alawi o segura pela manga, e fala com veemência, evidentemente tentando dissuadi-lo da idéia. Ele aponta dramaticamente. Perto de Brak, a cerca de uma milha de distância, um grupo de figuras vestidas de branco e de cores vivas está aparecendo, e há nelas algo de feio e sinistro. Os capatazes estão assustados, ao que vejo.

— Estes camaradas fugiram — diz Guilford sério. — Eu gostaria de saber de que é que se trata...

Será que Alawi (temperamental) ou Yahya mataram algum homem com uma picareta? Parece bem improvável, e certamen­te jamais teriam matado quatro de uma vez.

Novamente sugiro que houve uma briga, ilustrando com gestos o que estou falando. Mas novamente a resposta é enfaticamente negativa. Yahya faz gestos de alguma coisa caindo sobre sua cabeça.

Olho para o céu. Será que as vítimas foram atingidas por um raio?

Guilford abre a. porta de Poilu.

— Vou lá ver o que é que há. Este pessoal tem que vir comigo.

Ele faz sinal para os homens, autoritariamente. Sua recusa é pronta e decisiva. Eles não vão.

Guilford estica um duro queixo australiano.

— Eles têm que vir, de qualquer jeito!

Dimitri está sacudindo sua cabeçorra gentil.

— Não, não — ele diz. — E muito mau.

— O que diabos é muito mau?

— Há alguma coisa por lá — diz Guilford, pulando no car­ro.

Mas então, ao olhar o grupo que se aproxima rapidamente, vira a cabeça. Olha para mim, consternado, e vejo o que se poderia chamar de típico olhar “mulheres-e-crianças-na-frente” sur­gir no seu rosto.

Ele desce do carro, tentando mover-se de uma maneira calma, e diz num alegre tom de fim-de-semana:

— Que tal a gente rodar um pouco na estrada procurando o Max? A gente não tem nada mesmo para fazer, não tem trabalho nenhum agora. Pegue o seu chapéu, ou o que mais você quiser levar.

Coitado do Guilford, até que ele está representando muito bem! Tão cuidadoso, tentando não me assustar.

Digo devagar que é mesmo, e não seria melhor eu levar o dinheiro? O dinheiro da expedição é guardado numa caixa registra­dora, embaixo da cama de Max. Se temos realmente uma multi­dão furiosa que está vindo para atacar a casa, seria uma pena que encontrassem dinheiro para roubar.

Guilford, ainda tentando não “me alarmar”, faz de conta que esta é uma sugestão corriqueira.

— Será que você poderia ser rápida? — diz ele.

Vou ao quarto, pego meu chapéu de feltro, a registradora, e vamos para o carro. Guilford e eu entramos, e chamamos Dimitri e Serkis e o menino para entrarem atrás.

— Vamos levar eles em vez dos capatazes — diz Guilford, ainda ressentido com estes últimos, por haverem “fugido”.

Fico com pena de Guilford, que obviamente está com vontade de enfrentar a multidão, e tem que, em vez disso, cuidar da minha segurança. Mas fico muito satisfeita que ele não vá até lá. Ele tem muito pouca autoridade com os homens, e, de qualquer maneira, não entenderia uma só palavra do que eles dissessem, o que poderia fazê-lo encarar as coisas com muito mais seriedade do que talvez fosse preciso. O que nós precisamos mesmo é en­contrar Max e trazê-lo para cá, para descobrir o que é que foi que aconteceu, mesmo.

O plano de Guilford de salvar Dimitri e Serkis e deixar que os capatazes se virem com suas responsabilidades é frustrado imediatamente por Alawi e Yahya, que empurram Dimitri e en­tram no carro. Guilford fica furioso e tenta expulsá-los, mas eles se recusam a sair.

Dimitri concorda placidamente, e encaminha-se à cozinha. Serkis volta com ele, parecendo muito infeliz.

— Não entendo por que estes homens... — começa a dizer Guilford.

Eu interrompo.

— Nós só podemos levar quatro pessoas no carro — e na verdade, parece que se os homens estão querendo matar alguém, estes alguéns são, no momento, Alawi e Yahya; assim, acho melhor que a gente os leve conosco. Não acredito que os homens fa­çam alguma coisa a Dimitri e a Serkis.

Guilford dá uma olhada, e vê que a multidão está próxima demais para que a gente possa continuar discutindo. Xinga Yahya e Alawi, e sai correndo do pátio, circundando a cidade, e indo para a estrada que leva a Kamichlie.

Max a estas horas já deve estar voltando, já que tinha intenções de voltar ao trabalho de tarde, de modo que devemos encontrá-lo logo.

Guilford suspira aliviado, e eu digo que tudo foi feito muito direitinho.

— O que é que foi o quê?

— Sua amável sugestão de um agradável passeio para encontrar Max, e a maneira pela qual você tentou não me assustar.

— Oh — diz Guilford, — então você percebeu que eu esta­va querendo tirá-la de lá?

Olho para ele penalizada.

Vamos à toda, e em cerca de quinze minutos encontramos Max voltando com Subri, em Mary. Muito surpreso ao nos ver, pára o carro. Alawi e Yahya pulam fora de Poilu, e correm em sua direção. Uma excitada enxurrada de árabe enche o ar, en­quanto Max faz rápidas perguntas em staccato.

Agora, finalmente, vamos saber o que é que aconteceu!

Já há alguns dias, ternos encontrado um grande número de pequenos amuletos em forma de animais muito bonitos, em marfim e pedra, numa certa parte da escavação. Os homens estavam ganhando uma comissão bem alta por eles, e para encontrar o maior número possível deles, começaram a escavar mais fundo, já que os amuletos estão numa camada inferior.

Ontem, Max mandou parar com a escavação lá, e colocou turmas para retirarem a parte superior da terra, já que estava ficando perigoso. Os homens se chatearam, pois isso significava que teriam que passar um ou dois dias escavando camadas sem interesse até atingirem, novamente, a camada dos amuletos.

Os capatazes foram encarregados de verificar que as ordens fossem cumpridas, e, apesar de estarem chateados, os homens fizeram o que lhes foi mandado, e começaram a cavar em cima, vigorosamente.

As coisas estavam neste pé quando o trabalho parou na hora do almoço. E agora vem uma história de traição e ambição desmedida. Os homens estavam todos descansando perto da água. Uma turma de homens que estava trabalhando no outro lado es­capuliu, deu a volta à colina até chegar ao lugar rico, e começou a cavar furiosamente no local que já estava escavado demais. Queriam roubar o terreno dos outros homens, e exibir os acha­dos como se pertencessem ao seu próprio terreno.

E então, Nemesis intercedeu. Cavaram muito mais do que deveriam ter cavado, e a parte superior desabou em cima deles!

Os gritos de um homem que escapou levaram todo mundo correndo ao local. Na mesma hora, os capatazes e os trabalhadores perceberam o que havia ocorrido, e três homens começaram a escavar para libertar seus companheiros. Um dos homens ainda estava vivo, mas quatro outros morreram.

Na mesma hora, ergueu-se um excitamento selvagem. Gritos, lamentos aos Céus, e um grande desejo de culpar alguém. É difícil dizer se os capatazes ficaram nervosos e decidiram fugir, ou se realmente foram atacados. Mas o resultado é que os ho­mens vieram atrás deles numa disposição realmente sinistra.

Max tem a impressão de que os capatazes perderam o controle, e acabaram por dar, eles mesmos, a idéia do ataque aos ho­mens. No entanto, não perde tempo com recriminações. Voltamos para os carros, e vamos para Kamichlie o mais rápido que podemos. Lá, Max expõe toda a situação ao oficial dos Services Spéciaux encarregado da segurança.

O tenente entende e age rapidamente. Pega seu carro e quatro soldados, e voltamos todos juntos para Brak. Os homens es­tão agora na colina, zanzando e murmurando como um bando de abelhas. Ao verem a autoridade se aproximando, ficam quietos, imediatamente. Subimos a colina numa procissão. O tenente manda seu carro embora com um dos soldados, e vai em pessoa ao local da tragédia.

Lá mergulha nos fatos, e os “donos” do terreno explicam que não eram eles, e sim uma outra turma que estava tentando passar a perna neles. O sobrevivente é interrogado em seguida, e confirma a história. Estes eram todos os membros da turma? Um são e salvo, um ferido, e quatro mortos? Não há possibilidade de que algum ainda esteja enterrado? Não.

Nessa altura, o carro do tenente volta, trazendo o Xeque da tribo à qual pertenciam os homens mortos. Ele e o tenente encarregam-se juntos do caso. Perguntas e respostas continuam.

Finalmente o Xeque ergue a voz e dirige-se à multidão. Absolve a expedição de qualquer culpa. Os homens estavam escavando fora do horário de trabalho, e estavam, além de tudo, ten­tando roubar seus próprios camaradas. Receberam a recompen­sa que cabe à desobediência e à ambição. Agora, todos devem ir para casa.

A essa hora, o sol já se pôs, e a noite está caindo.

O Xeque, o tenente e Max dirigem-se para casa (onde, aliviados, encontramos Dimitri cozinhando o jantar calmamente, e Serkis sorrindo).

A troca de idéias prossegue por mais ou menos uma hora. O incidente é lamentável. O tenente diz que os homens tinham famílias, e que, embora não haja nenhuma obrigação, uma doa­ção qualquer seria muito apreciada. O Xeque diz que a generosi­dade é o ponto alto de um nobre caráter, e que engrandeceria muito a nossa reputação pelo país.

Max diz que gostaria de dar algum presente às famílias, desde que ficasse bem estabelecido que é apenas um presente, e não uma compensação, em nenhum sentido. O Xeque concorda ple­namente. Isto será escrito pelo oficial francês, ele diz. Além disso, ele mesmo dirá isso aos homens, de própria voz. O problema agora é estabelecer quanto será dado. Quando isto é decidido, e os refrescos de praxe são oferecidos, o Xeque e o tenente vão embora. Dois soldados permanecem para montar guarda ao local fatídico.

— E veja bem — diz Max, quando vamos para a cama, mui­to cansados, — amanhã, alguém terá que vigiar este lugar na hora do almoço, senão vai acontecer tudo de novo.

Guilford está incrédulo.

— Não é possível, depois que eles viram que é perigoso e depois que viram o que aconteceu!

Max diz, soturno:

— Espere e verá.                                                  .

No dia seguinte, ele mesmo fica de guarda, escondido por trás de uma parede de tijolos. E, dito e feito, enquanto os outros homens estão almoçando, três homens aparecem subrepticiamente, e começam a escavar feito loucos logo ao lado, a menos de um metro do local onde seus companheiros foram mortos!

Max aparece, e dá-lhes uma bronca terrível. Então será que eles não percebem que o que estão fazendo poderá levá-los à morte?

Um dos homens murmura “Inshallah!”

São despedidos formalmente por tentar roubar seus companheiros.

Depois disso, o local é cuidadosamente vigiado depois do trabalho, até o momento em que, na tarde seguinte, as camadas superiores são cortadas.

Guilford diz num tom de voz horrorizado:

— Estes homens parecem não se preocupar a mínima com suas vidas. E são incrivelmente duros. Estavam zombando das mortes e imitando o que aconteceu hoje, durante o trabalho!

Max diz que, na verdade, a morte não importa muito por aqui.

O apito do capataz marca o fim do dia de trabalho, e os homens correm morro abaixo, passando por nós e cantando: “Yusuf Daoud estava conosco ontem — hoje está morto! Nunca mais vai en­cher a pança. Ha, ha, ha!

Guilford está profundamente chocado.

 

AIN EL ARUS

Mudança de Brak para o Balikh.

Andamos pelas margens do Jaghjagha na nossa última noite, e sentimos uma suave melancolia. Acabei tendo uma grande afei­ção pelo Jaghjagha, esta estreita corrente de barrenta água mar­rom.

No entanto, Brak nunca me prendeu tanto quanto Chagar. A aldeia de Brak é melancólica, semideserta, caindo aos peda­ços, e os armênios em suas roupas pseudo-européias não combi­nam bem com a região que os cerca. Suas vozes se erguem ranco­rosas, e não há nada da rica alegria de viver dos árabes e curdos. Sinto falta das mulheres curdas passeando pelo campo — aquelas grandes e alegres flores, com seus dentes brancos e suas fisionomias sorridentes, seu porte belo e altivo.

Alugamos um caminhão em frangalhos para levar a mobília de que precisaremos. É aquele tipo de caminhão em que tudo tem que ser amarrado com cordas, e tenho a nítida impressão de que, quando chegamos em Ras-el-Ain, tudo já terá caído.

Tudo está em seus devidos lugares, e finalmente partimos, Max, Guilford e eu em Mary, e Michel e os criados em Poilu, com Hiyou.

Na metade do caminho para Ras-el-Ain paramos para um almoço tipo piquenique, e encontramos Subri e Dimitri rindo a valer.                                                                             

— Hiyou passou mal a viagem inteira — eles explicam. — Subri veio segurando a cabeça dela o tempo todo.

O chão e os bancos de Poilu atestam, tristemente, esta história! É uma sorte que eles achem graça, penso com meus botões.

Hiyou, pela primeira vez desde que a conheço, parece derrotada. Ela parece dizer:

— Posso enfrentar um mundo hostil aos cachorros, a inimizade dos muçulmanos, a morte por afogamento, por fome, gol­pes, chutes ou pedradas. Não tenho medo de nada. Gosto de to­dos mas não amo ninguém. Mas que coisa estranha é esta que me rouba todo o meu amor-próprio?

Seus olhos castanhos vão de um a outro de nós. Sua fé em sua habilidade em enfrentar o pior que o mundo tem a oferecer está abalada.

Felizmente, cinco minutos depois Hiyou está restabelecida, e devora enormes porções do almoço de Dimitri e Subri. Pergun­to se isso será bom, já que vamos recomeçar a viagem logo.

— Ah — exclama Subri — aí ela vai passar mal novamente!

Bem, se isso os diverte...

Chegamos a nossa casa bem cedo. Fica numa das ruas principais de Abyadh. É quase que uma localidade urbana; o que o gerente do Banco chama de “Construction en pierre”. Há árvores ao longo da rua, e suas folhas, agora, ostentam uma brilhante coloração de outono. A casa, infelizmente, é muito úmida, estando abaixo do nível da rua numa aldeia onde há riachos por toda parte. De manhã, as colchas estão bem molhadas, e tudo o que a gente pega parece molhado e pegajoso. Fico tão dura que mal consigo me mexer.

Há um agradável jardinzinho atrás da casa, e é muito mais sofisticado do que qualquer lugar em que eu tenha morado nos últimos tempos.

Perdemos três cadeiras, uma mesa, e o assento do lavatório quando o caminhão chegou! Um bocado menos do que eu pensei que perderíamos.

A colina Jidle fica às margens de uma lagoa muito azul, formada pela fonte que alimenta o Balikh. Há árvores em volta da lagoa, e o lugar é realmente delicioso. Segundo a tradição, é o lugar onde Isaac e Rebecca se encontravam. É tudo muito diferente de onde estávamos antes. Tem um charme agradável mas me­lancólico, mas nada da frescura intocada de Chagar e de suas re­dondezas.

Há bastante prosperidade por aqui, armênios bem vestidos e outras pessoas passeiam pelas ruas, e há casas e jardins.

 

Já estávamos instalados há uma semana quando Hiyou nos desgraçou. Todos os cachorros de Ain el Arus vieram cortejá-la, e como nenhuma das portas fecha direito, é impossível mantê-los do lado de fora, ou a ela do lado de dentro. Há ganidos, latidos e lutas. Hiyou, uma pensativa dama de olhos castanhos, faz de tudo para encorajar o pandemônio.

A cena é exatamente igual àquelas de velhas pantomimas em que demônios surgem nas portas e janelas, vindos de todo lu­gar. Enquanto estamos jantando, uma janela se abre e um ca­chorrão pula para dentro, seguido por um outro — crash! A por­ta do quarto se abre, surge outro cachorro. Os três correm feito loucos em volta da mesa, investem contra a porta de Guilford, abrem-na, e somem, para reaparecer como num passe de mágica pela porta da cozinha, seguidos de perto por uma frigideira que Subri lhes atirou em cima.

Guilford passa a noite sem dormir, com cachorros aparecendo pela porta, pela janela, subindo na sua cama. Volta e meia Guilford se levanta e atira coisas neles. Há ganidos, gemidos e uma geral confusão canina.

Quanto a Hiyou, mostra-se uma esnobe de primeira. Interessa-se apenas pelo único cachorro de Ain el Arus que usa coleira. “Aqui”, ela parece dizer, “há classe, para valer!” Ele é um cachorro preto, de nariz achatado, e com um imenso rabo, mais ou menos como um daqueles cavalos que costumam puxar coches fúnebres.

 

Subri, depois de passar várias noites sem dormir por causa de uma dor de dentes, pede licença para ir a Aleppo de trem para fazer uma consulta ao dentista. Volta sorridente dois dias depois.

Seu relato dos acontecimentos é o seguinte:

— Fui ao dentista. Sentei na cadeira. Mostro-lhe meu den­te. É, ele diz, tem que cair fora. Quanto? eu pergunto. Vinte fran­cos, ele responde. Um absurdo, eu digo, e vou embora. Volto de novo, de tarde. Quanto? Dezoito francos. O tempo todo a dor es­tá aumentando, mas a gente também não pode se deixar roubar desta maneira. Volto na manhã seguinte. Quanto? Ainda dezoito francos. Ao meio-dia? Dezoito francos. Ele acha que a dor vai me vencer, mas eu continuo regateando. No fim, Khwaja, ganhei!

— Ele baixou o preço?

Subri sacode a cabeça.

— Isso não, ele não quis baixar o preço. Mas fiz uma ótima pechincha. Muito bem, disse eu. Dezoito francos. Mas por este preço você não vai me tirar um dente só, mas quatro!

Subri ri com enorme contentamento, exibindo suas falhas.

— Mas os outros dentes estavam doendo?

— Não, claro que não. Mas iam começar a doer algum dia. Agora, não têm mais essa chance. Foram todos tirados, e pelo preço de um só.

Michel, que estava parado na porta escutando, sacode a cabeça aprovando tudo. “Beaucoup economia”, comenta.

Subri trouxe, gentilmente, um colar de contas vermelhas, que amarrou em volta do pescoço de Hiyou.

— Isto é o que as garotas colocam no pescoço para mostrar que são casadas — ele diz. — E Hiyou andou se casando ultimamente.

Decididamente! E com todos os cachorros de Ain el Arus, acho eu!

 

Esta manhã, que é domingo e nosso dia livre, estou sentada rotulando achados, e Max está ocupado colocando o livro de pagamentos em dia, quando entra uma mulher, conduzida por Ali. Ela é uma mulher de ar muito respeitável, impecavelmente vesti­da de preto, com uma enorme cruz de ouro no peito. Seus lábios estão apertados um contra o outro, e parece muito aborrecida.

Max a saúda cortesmente, e ela começa, imediatamente, a contar uma longa história, evidentemente queixosa. Volta e meia o nome de Subri entra na narrativa. Max concorda, e parece es­tar muito sério. A lenga-lenga continua, cada vez mais veemente.

Desconfio que se trata da velha e conhecida história da traição da virgem da aldeia. Esta mulher é a mãe, e nosso alegre Subri é o vil traidor.

A voz da mulher se eleva em justa indignação. Agarra a cruz que traz ao peito com uma das mãos, e a levanta, como se estivesse jurando alguma coisa.

Max chama Subri. Achando que talvez fosse mais prudente que eu me retirasse agora, faço menção de me levantar, mas Max faz um gesto para que eu fique aonde estou. Sento novamente, e já que, presumivelmente, tenho que agir como testemunha de alguma coisa, faço de conta que estou entendendo tudo.

A mulher, uma grave e digna figura, fica silenciosa até o aparecimento de Subri. Então, ergue uma mão acusadora, e evidentemente repete sua acusação contra ele.

Subri não se defende lá muito vigorosamente. Dá de ombros, levanta as mãos, e parece admitir a veracidade da afir­mação.

O drama continua. Argumentos, contra-argumentos, e uma atitude cada vez mais judicial da parte de Max. Subri está sendo derrotado. Muito bem, ele parece dizer, façam como bem entenderem.

De repente, Max lhe estende uma folha de papel, e escreve. Coloca a folha de papel em frente à mulher. Ela faz uma marca — uma cruz — no papel, e, segurando a cruz de ouro, faz alguma jura solene. Max assina, então, e Subri também põe a sua marca, e aparentemente, também faz uma jura lá dele. Max pega algum dinheiro, e o dá à mulher. Ela o pega, agradece a Max com uma digna inclinação de cabeça, e vai embora. Max faz algumas recriminações a Subri, que sai parecendo muito aborrecido.

Max se encosta na sua cadeira, passa um lenço no rosto, e exclama: “uf!”

Desando a falar.

— O que é que foi, hem? Uma garota? A filha desta mulher?

— Não foi bem isso não. Esta era a dona do bordel.

— Quê?

Max me transmite, na medida do possível, as próprias palavras da mulher.

 

Ela veio vê-lo, explica, para ver se ele pode reparar um grande mal que seu empregado Subri lhe fez.

— O que é que Subri fez? — pergunta Max.

— Eu sou uma mulher de honra e caráter. Sou respeitada em toda a região. Todos falam bem de mim! Minha casa é conduzida de maneira correta, temente a Deus! Agora chega este camarada, este Subri, e encontra na minha casa uma garota que ele conheceu em Kamichlie. E o que é que ele faz? Ele reata sua amizade com ela de uma maneira correta e decorosa? Nada dis­so! Ele age de uma maneira violenta, fora da lei — de uma ma­neira que pode me desonrar! Ele atira escada abaixo, e da porta para fora, um cavalheiro turco — um rico cavalheiro turco, um dos meus melhores clientes. Faz isso com a maior violência, de uma maneira nunca vista! Além disso, consegue persuadir a me­nina, que estava me devendo dinheiro e que foi tratada por mim da melhor maneira possível, a abandonar a minha casa. Compra uma passagem para ela, e a manda embora de trem. Além disso, ela leva com ela cento e dez francos que me pertencem, o que já é roubo! Agora, Khwaja, não está certo que estes abusos sejam cometidos. Eu sempre fui uma mulher direita, virtuosa, uma viú­va temente a Deus, contra quem ninguém pode falar uma pala­vra. Lutei muito tempo, e muito duro, contra a pobreza, e conse­gui vencer graças aos meus esforços e à minha honestidade. O se­nhor não pode ficar do lado da violência e do erro. Eu lhe peço uma recompensa, e juro (este foi o ponto em que a cruz entrou na história) que tudo o que eu lhe disse é verdade, e que repito tudo em frente a seu empregado Subri. O senhor pode perguntar ao juiz, ao padre, aos oficiais franceses da guarnição — todos vão lhe dizer que sou uma mulher honesta e respeitável!

Subri, convocado, não nega nada. É, ele conheceu a menina em Kamichlie. Era amiga dele. Ele se chateou com o turco, e o empurrou escada abaixo. E sugeriu à menina que voltasse para Kamichlie. Ela preferia Kamichlie a Ain el Arus. A menina pe­gou algum dinheiro emprestado, mas sem dúvida devolveria al­gum dia.

Max teve, então, que julgar a questão.

— Francamente, as coisas que a gente tem que fazer neste país. A gente nunca sabe o que vai acontecer em seguida — queixou-se ele.

Perguntei-lhe qual foi o seu veredicto.

Max limpa a garganta e continua o seu relato.

— Estou surpreso e aborrecido de que um empregado meu entrou na sua casa, pois isto não está de acordo com a nossa honra, a honra da expedição, e ordeno que nenhum de meus empre­gados entre na sua casa novamente, daqui em diante!

Subri diz, emburrado, que compreendeu.

— Quanto ao fato da menina ter ido embora da sua casa, não vou fazer nada, porque este assunto não me compete. Quan­to ao dinheiro que ela levou consigo, acho que deveria ser restituído à senhora — irei restituí-lo agora, por honra dos emprega­dos da expedição. Esta quantia será retirada do salário de Subri. Escreverei um papel, que lerei para a senhora, acusando o pagamento deste dinheiro, e retirando qualquer outra reclamação contra nós. A senhora fará sua marca nele, e jurará que acabou-se a história.

Relembro a dignidade e fervor bíblico com que a mulher segurou a cruz.

— Ela disse mais alguma coisa?

— Eu lhe agradeço, Khwaja. A justiça e a verdade prevaleceram, como sempre, e o mal não conseguiu triunfar.

— Bem — digo meio desnorteada. — Bem...

Ouço passinhos leves do lado de fora, através da janela. É a nossa visitante, carregando um grande missal, ou livro de rezas. Está indo para a Igreja. Seu rosto está sério e compenetrado. A grande cruz sobe e desce em seu peito.

Mais tarde eu me levanto, tiro a Bíblia da estante, e vou até a história de Rahab, a rameira. Consigo compreender agora, mais ou menos, como Rahab a rameira deve ter sido. Vejo esta mulher nesse papel — zelosa, fanática, corajosa; profundamente religiosa, e, não obstante, Rahab, a rameira.

 

Dezembro está aí; chegou o fim da temporada. Talvez por­que seja outono e nós estejamos acostumados à primavera, talvez porque já existam pelo ar rumores de inquietude na Europa, o fato é que há um certo toque de tristeza. A gente está sentindo, desta vez, que talvez a gente não volte...

No entanto, a casa de Brak ainda está alugada. Nossa mobília ficará guardada lá, e ainda há muita coisa a ser descoberta na colina. É claro que voltaremos...

Mary e Poilu pegam a estrada de Jerablus para Aleppo. De Aleppo vamos para Ras Shamra, e passamos o Natal com nossos amigos, o Professor e a senhora Schaeffer, e com suas crianças encantadoras. Não há lugar mais maravilhoso no mundo do que Ras Shamra, uma adorável baiazinha azul emoldurada por areia branca e rochas baixas. Eles nos proporcionam um ótimo Natal. Falamos do ano que vem — um ano qualquer. Mas o sentimento de insegurança aumenta. Nós nos despedimos. “Vamos nos reencontrar em Paris!”

Paris!

Desta vez, deixamos Beirute de barco.

Fico olhando da amurada. Como é bonita esta costa com as montanhas do Líbano recortadas em azul, contra o céu! Não há nada para atrapalhar o romantismo da cena. A gente se sente poético, quase sentimental...

Um barulho familiar irrompe — excitados gritos vindos de um navio de carga pelo qual estamos passando. O guindaste deixou cair uma carga no mar, a caixa se abriu...

A superfície do mar está pontilhada de assentos de vasos sanitários!

Max se aproxima e pergunta qual o motivo da barulheira. Eu aponto, e explico que o meu romântico sentimento de despedida da Síria, a estas alturas, está bem abalado!

Max diz que não imaginava que a gente os exportasse em tão grandes quantidades! E ele jamais pensaria que existem tantos encanamentos que os tornem necessários, por aqui!

Fico calada, e ele pergunta no que estou pensando.

Estou me lembrando de como o carpinteiro em Amuda colocou a tampa do nosso vaso orgulhosamente na porta de entrada quando as freiras e o oficial francês vieram nos visitar. Estou me lembrando do meu toalheiro de “pés bonitos”! E do gato profis­sional! E de Mac andando no telhado, ao entardecer, com um ar distante e feliz...

Estou me lembrando das mulheres curdas de Chagar, iguais a alegres tulipas listradas. E da vasta barba avermelhada do Xeque. Estou me lembrando do Coronel, ajoelhado com sua malinha preta para assistir a uma exumação, e da conversa entre os homens, dizendo que “aqui está o doutor para tratar do caso”, de modo que desde então o apelido do Coronel ficou sendo “M. le Docteur”. Estou me lembrando de Bumps e de seu chapéu teimoso, e de Michel gritando “Força!” enquanto puxava os cordões. Estou me lembrando da colina coberta de margaridas onde almo­çamos num dos nossos dias livres; e fechando os olhos, posso sentir em torno de mim o cheiro maravilhoso das flores e da este­pe fértil...

— Estou pensando — digo a Max — que esta era uma maneira muito feliz de se viver...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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